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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL ISSN: 1809-8487 DE JURE Número 9 REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Julho/Dezembro de 2007 CIRCULAÇÃO NACIONAL De Jure 9 prova 2.indd 1 11/3/2008 16:20:54 De Jure - Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais / Ministério Público do Estado de Minas Gerais. n. 9 (jul./dez. 2007). Belo Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2007. v. Semestral. ISSN: 1809-8487 Continuação de : Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. O novo título mantém a seqüência numérica do título anterior. 1. Direito – Periódicos. I. Minas Gerais. Ministério Público. CDU. 34 CDD. 342 De Jure 9 prova 2.indd 2 11/3/2008 16:21:04 MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL DE JURE Número 9 REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Julho/Dezembro de 2007 SEMESTRAL De Jure De Jure 9 prova 2.indd 3 Belo Horizonte n. 9 jul./dez. 2007 11/3/2008 16:21:05 DE JURE - Número 9 REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA Procurador de Justiça Jarbas Soares Júnior DIRETOR DO CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL Procurador de Justiça Gregório Assagra de Almeida CONSELHO EDITORIAL CONSELHEIROS Promotor de Justiça Adilson de Oliveira Nascimento Promotor de Justiça Carlos Alberto da Silveira Isoldi Filho Promotor de Justiça Cleverson Raymundo Sbarzi Guedes Procurador de Justiça João Cancio de Mello Junior Promotor de Justiça Lélio Braga Calhau Promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo Promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda Promotor de Justiça Renato Franco de Almeida EDITORAÇÃO Alessandra de Souza Santos REVISÃO Fernando Soares Miranda Luciano José Alvarenga Alessandra de Souza Santos Dalvanôra Noronha Silva CAPA Alex Lanza (FOTO DA CAPA) Bernardo José Gomes Silveira (ARTE) Foto capa: escultura barroca em pedra-sabão representando a Justiça, cuja autoria é atribuída ao português Antônio José da Silva Guimarães e datada como anterior a 1840. Faz parte da obra que representa as quatro virtudes cardeais – Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza – que se encontram na antiga Câmara e Cadeia de Vila Rica, atual Museu da Inconfidência de Ouro Preto. A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores. PEDE-SE PERMUTA WE ASK FOR EXCHANGE ON DEMANDE L’ÉCHANGE MANN BITTET UM AUSTAUSCH SI RIQUIERE LO SCAMBIO PIDEJE CANJE Av. Álvares Cabral, 1690, 10º andar, Santo Agostinho, Belo Horizonte, MG, cep. 30.170-001 www.mp.mg.gov.br [email protected] De Jure 9 prova 2.indd 4 11/3/2008 16:21:05 SUMÁRIO PREFÁCIO...............................................................................................................11 APRESENTAÇÃO..................................................................................................12 SEÇÃO I – ASSUNTOS GERAIS..........................................................................13 1. DOUTRINA INTERNACIONAL.....................................................................13 1.1 Politica Criminal del Estado en Colombia – HERNANDO LEÓN LONDOÑO BERRÍO.......................................................13 2. DOUTRINA NACIONAL..................................................................................50 2.1 Ação Monitória: Primeiras Impressões – RODRIGO MAZZEI E HERMES ZANETI JÚNIOR.......................................50 2.2 Agências Reguladoras Independentes e Legitimidade Democrática – RICARLOS ALMAGRO....................................................................................67 3. PALESTRA.........................................................................................................85 3.1 O Poder Judiciário e o Ministério Público: Uma Visão Crítica – HÉLIO PEREIRA BICUDO...............................................................................85 4. DIÁLOGO MULTIDISCIPLINAR................................................................... 92 4.1 Agências Reguladoras – ELIANA OLIVEIRA COSTA TAFURI.............................................................. 92 4.2 Reflexões para o Século XXI sobre o Pensamento Marxista – RIANY ALVES DE FREITAS.......................................................................... 102 SEÇÃO II – DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL...............................109 SUBSEÇÃO I – DIREITO PENAL......................................................................109 1. ARTIGOS..........................................................................................................109 De Jure 9 prova 2.indd 5 11/3/2008 16:21:05 1.1 A Metapsicologia Freudiana da Vingança e o Direito Penal: uma Interseção Reveladora dos Fundamentos Necessários de uma Teoria do Crime Adequada – ANA CECÍLIA CARVALHO; MARCELO CUNHA DE ARAÚJO; MARIA JOSEFINA MEDEIROS SANTOS; NAYANA FINHOLDT HIMARU; LUCIANA ANDRADE MARINHO E CLÁUDIO JÚNIO PATRÍCIO........109 2. JURISPRUDÊNCIA........................................................................................ 143 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA.....................................................146 3.1 Inviolabilidade Noturna de Domicílio e Inexigibilidade de Conduta Diversa KARINA SILVA DE ARAÚJO .........................................................................146 SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL PENAL..................................150 1. ARTIGOS......................................................................................................150 1.1 O Princípio da Presunção de Inocência e a Exploração Midiática – MICHELLE KALIL FERREIRA.......................................................................150 1.2 Comentários à Lei de Violência Doméstica – ÂNGELO ANSANELLI JÚNIOR.....................................................................182 2. JURISPRUDÊNCIA........................................................................................ 205 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA.....................................................209 3.1 Limites Constitucionais à Competência por Prerrogativa de Função: Análise Crítica da Súmula 721 do Supremo Tribunal Federal – MAÍRA CARVALHO LUZ...............................................................................209 4. TÉCNICAS.......................................................................................................215 4.1 Recurso Especial Criminal – JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO..........................................215 SEÇÃO III – DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.................................220 SUBSEÇÃO I – DIREITO CIVIL........................................................................220 1. ARTIGOS..........................................................................................................220 De Jure 9 prova 2.indd 6 11/3/2008 16:21:05 1.1 Uniões Homoafetivas: uma Nova Modalidade de Família? – LIDIANE DUARTE HORSTH..........................................................................220 2. JURISPRUDÊNCIA.........................................................................................243 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA......................................................248 3.1 Duplicatas APARECIDO JOSÉ DOS SANTOS FERREIRA.............................................248 SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL CIVIL...........................................266 1. ARTIGOS...........................................................................................................266 1.1 Interceptação Telefônica em Ação de Execução de Alimentos – LEONARDO BARRETO MOREIRA ALVES..................................................266 2. JURISPRUDÊNCIA..........................................................................................278 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA......................................................283 3.1 Capítulos da Sentença e Formação da Chamada Coisa Julgada Progressiva: início do prazo para o ajuizamento da Ação Rescisória SAMUEL ALVARENGA GONÇALVES..........................................................283 4. TÉCNICAS........................................................................................................293 4.1 Formulação de Requerimento de Antecipação dos Efeitos da Tutela: Análise e Compreensão do Requisito da Irreversibilidade no Plano das Conseqüências ao Direito do Requerido e também do Requerente. Irreversibilidade Fática e Jurídica GREGÓRIO ASSAGRA DE ALMEIDA E SAMUEL ALVARENGA GONÇALVES....................................................................................................293 SEÇÃO IV – DIREITO COLETIVO E PROCESSUAL COLETIVO.............299 SUBSEÇÃO I – DIREITO COLETIVO..............................................................299 1. ARTIGOS............................................................................................................299 1.1 O Meio Ambiente na Perspectiva Cultural Contemporânea do Direito no Brasil – FRANCISCO DE ASSIS BRAGA E LUCIANA IMACULADA DE PAULA...............................................................................................................299 De Jure 9 prova 2.indd 7 11/3/2008 16:21:05 2. JURISPRUDÊNCIA........................................................................................313 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA....................................................320 3.1 Um Novo Olhar par a o Cerrado: Ensaio Interdisciplinar para o (Re) Conhecimento da Dignidade Florística e Jurídica do Bioma – LUCIANO JOSÉ ALVARENGA......................................................................320 SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL COLETIVO................................337 1. ARTIGOS..........................................................................................................337 1.1 Class Action – RENATO BRETZ PEREIRA.............................................................................337 1.2 Comentários sobre a Coisa Julgada e a sua Sistemática nas Ações Coletivas – MARCELO MALHEIROS CERQUEIRA.........................................................353 2. JURISPRUDÊNCIA........................................................................................373 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA.....................................................379 3.1 Inconstitucionalidade de Gratificação a Presidente de Câmara de Vereadores MARCUS PAULO QUEIROZ MACÊDO........................................................379 4. TÉCNICAS.......................................................................................................386 4.1 Valoração Econômica de Danos Ambientais SHIRLEY FENZI BERTÃO..............................................................................386 SEÇÃO V – DIREITO PÚBLICO........................................................................394 SUBSEÇÃO I – DIREITO CONSTITUCIONAL...............................................394 1. ARTIGOS..........................................................................................................394 1.1 A Inconstitucionalidade do Sistema de Quotas: Estudo Comparado entre o Direito Brasileiro e o Norte Americano – CARLOS FREDERICO BRAGA DA SILVA..................................................394 De Jure 9 prova 2.indd 8 11/3/2008 16:21:05 2. JURISPRUDÊNCIA........................................................................................ 407 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA.....................................................412 3.1 A Desnecessidade do Ato de Tombamento para a Preservação de Bem Dotado de Valor Cultural MARCOS PAULO DE SOUZA MIRANDA.................................................... 412 4. TÉCNICAS...................................................................................................... 417 4.1 Recurso Extraordinário: ADI n.º 1.0000.05.429012-7/000 – ELAINE MARTINS PARISE; RENATO FRANCO DE ALMEIDA................417 SUBSEÇÃO II – DIREITO INSTITUCIONAL..................................................450 1. ARTIGOS...........................................................................................................450 1.1 Uma Nova Perspectiva na Atuação Criminal por parte do Ministério Público – Sugestão de Um Novo Perfil – WILSON PAULA MENDONÇA NETO...........................................................450 2. JURISPRUDÊNCIA.........................................................................................458 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA.....................................................465 3.1 Atuação do Ministério Público em Defesa da Saúde LUCIANO MOREIRA DE OLIVEIRA.............................................................465 4 . TÉCNICAS........................................................................................................475 4.1 Parecer em Procedimento da Lei Maria da Penha: da competência do Juízo de Família para conhecer das causas de separação judicial que noticiam casos de violência doméstica e familiar contra a mulher ÂNGELO ALEXANDRE MARZANO............................................................ 475 SUBSEÇÃO III – DIREITO ADMINISTRATIVO ...........................................483 1. ARTIGOS............................................................................................................483 1.1 Procedimento Administrativo de Defesa da Concorrência – ANDRÉ GONÇALVES GODINHO FRÓES....................................................483 De Jure 9 prova 2.indd 9 11/3/2008 16:21:05 2. JURISPRUDÊNCIA.........................................................................................496 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA......................................................502 3.1 Exame Psicotécnico em Sede de Concurso Público: Aspectos Pontuais SAMUEL ALVARENGA GONÇALVES..........................................................502 4. TÉCNICAS.........................................................................................................502 4.1 Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta LUANA CIMETTA...........................................................................................509 SEÇÃO VI – INFORMAÇÕES VARIADAS 1. Normas de Publicação da Revista Jurídica De Jure.......................................512 ERRATA DE JURE Nº 8, JAN./JUN. 2007 1. Na pág. 249: Onde lê-se “LUCIANA PERPÉTUA CORRÊA, Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais leia-se LUCIANA PERPÉTUA CORRÊA, Técnica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais”. 2. Na pág. 326: Onde se lê “COM”, leia-se “CPM”. De Jure 9 prova 2.indd 10 11/3/2008 16:21:06 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS PREFÁCIO Com grande satisfação, atingimos a edição nº 9 da Revista De Jure - Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, reconhecido instrumento dialógico entre práxis e teoria. A realidade cambiante do Direito e a efetiva defesa da ordem jurídica, do Estado democrático de direito e dos interesses metaindividuais pressupõem o permanente compromisso e adequação das instituições, sendo inquestionável a importância transformadora do Ministério Público nesse processo de aprimoramento da Ciência Jurídica. Progressivamente, a publicação consolida-se como um expressivo instrumento de divulgação não só do pensamento jurídico, mas da produção científica brasileira de modo geral. Com efeito, o perfil da revista é o da diversidade dos assuntos. Seu caráter pluralista e democrático no acesso às informações tem a grande missão de estimular e divulgar reflexões acadêmicas no âmbito da Instituição. Nesta 9ª edição, contamos com os preciosos trabalhos do jurista colombiano Hernando Leon Londoño Berrío, que trata do assunto da política criminal naquele país; de Rodrigo Mazzei e Hermes Zaneti Júnior, que nos brindaram com brilhante artigo sobre a ação monitória, de Emerson Garcia, que discorre sobre o princípio da separação dos poderes; de Hélio Pereira Bicudo, cuja palestra nos traz uma visão crítica sobre o Poder Judiciário e o Ministério Público – ficamos por aqui, pois são muitos os colaboradores de todo o país a firmar o perfil pluralista da Revista. A eles nossos agradecimentos, certos de que continuamos contando com o contínuo apoio para as futuras edições. Esperamos que a revista seja de extrema valia para todos os leitores e que se apresente como instrumento de mudança e de promoção do debate jurídico. Boa leitura! GREGÓRIO ASSAGRA DE ALMEIDA Promotor de Justiça Presidente do Conselho Editorial da Revista De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. 11 De Jure 9 prova 2.indd 11 11/3/2008 16:21:06 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS APRESENTAÇÃO Na eterna lição de Norberto Bobbio, os direitos fundamentais são reconhecidos historicamente. O conjunto amplo de prerrogativas jurídicas existentes atualmente é único no processo histórico civilizatório. Os direitos de hoje transcendem os de ontem e, certamente, serão superados em número e complexidade por novos direitos, a serem declarados pelo ordenamento jurídico no futuro, num movimento em que o homem, conhecendo a si próprio, reconhece suas necessidades básicas enquanto ser individual e social. Tanto é assim que a Constituição de 1988 apresenta uma redação “aberta” e declara que os direitos e garantias nela referidos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (art. 5º, § 2º). Assim, novas demandas surgirão; com elas, novos direitos e, em seguida, a concepção e o desenvolvimento de novos instrumentos para atendê-los e torná-los efetivos. Esse aspecto dinâmico da realidade exige do profissional jurídico uma contínua atualização e, por outro lado, um diálogo aberto com outras ciências, indispensável para o conhecimento adequado de alguns dos mais significativos institutos jurídicos da modernidade (p.ex.: direito à preservação do patrimônio cultural, à defesa de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, direitos dos portadores de deficiência física, etc.). A Revista De Jure, além de trazer artigos científicos destinados à necessária atualização teórica no âmbito da Ciência Jurídica, oferece ao leitor trabalhos acadêmicos interdisciplinares, que bem demonstram a abertura do Direito às contribuições de outros setores do saber. Ademais, seguindo a linha das edições anteriores, publica acórdãos relevantes das mais altas Cortes de Justiça brasileira, bem como reflexões teórico-críticas sobre a prática jurisdicional. E é com grande alegria, mais uma vez, que publicamos o presente volume da De Jure, informativo jurídico-científico que se consolida, a cada nova edição, como um expressivo canal de propagação de textos técnicos e teóricos para auxílio à atuação dos membros do Ministério Público, como também de todos aqueles que têm a nobre missão de lutar pela efetividade dos direitos. JARBAS SOARES JÚNIOR Procurador-Geral de Justiça 12 De Jure 9 prova 2.indd 12 11/3/2008 16:21:06 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS SEÇÃO I – ASSUNTOS GERAIS 1. DOUTRINA INTERNACIONAL 1.1 POLITICA CRIMINAL DEL ESTADO EN COLOMBIA HERNANDO LEÓN LONDOÑO BERRÍO Profesor de Criminología y de Derechos Humanos - Universidad de Antioquia, MedellínColombia Master en Ciencia Política del Instituto de Estudios Políticos de la U. de A Doctorando en “Derechos Humanos y Desarrollo”, en la Universidad Pablo de Olavide, Sevilla- España Aclaraciones necesarias Son dos los ejes que he escogido para explicar y comprender las tendencias de la política criminal del Estado colombiano: el conflicto político armado, o en otras palabras, la guerra; y el conflicto entre la seguridad y las libertades, esto es, entre el eficientismo y el garantismo. Naturalmente, pueden ser muchos más los ejes a partir de los cuales abordar el tema que nos convoca, entre ellos, la globalización, pero la brevedad del tiempo destinado para nuestra exposición, nos obliga a privilegiar los escogidos por su especial relevancia en el caso colombiano. Y existe otra razón para la selección de los mismos: dan cuenta de fenómenos que están incidiendo en las discusiones científicas y en las políticas públicas de los países latinoamericanos. De esta forma espero que la ponencia les sirva de referencia y de motivación para hacer un análisis de la política criminal del Estado Brasilero, en cuyo contexto se desenvuelve su trabajo académico, investigativo, profesional y jurisdiccional, en muchos de los casos. Y una aclaración final: dado que la política criminal, en el caso del Estado, se expresa, se manifiesta en los procesos de criminalización, vamos a procurar determinar las notas características de la misma, en el proceso legislativo, en el ámbito de intervención judicial, y en la ejecución de la pena. 13 De Jure 9 prova 2.indd 13 11/3/2008 16:21:06 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 1. El contrato social o la guerra: marco sociopolítico de integibilidad de la política criminal 1.1 El Contrato social y dogmática jurídico penal Los discursos contractualistas, que son hegemónicos en la explicación y legitimación del Estado Moderno, parten del presupuesto de que la soberanía radica en el Estadonación, consecuente con lo cual, éste también es el titular monopólico de los poderes que la caracterizan: La configuración del orden y la seguridad; el recaudo de los impuestos; la coerción y la violencia “legítimas”; la producción del derecho, y obviamente, el monopolio del ius puniendi. De conformidad con el paradigma teórico del Contrato Social y de la soberanía Estatal, éste es quien representa los intereses públicos y por ello es el único con poder y con legitimidad suficiente y exclusiva para formular y ejecutar las políticas públicas en relación con la cuestión criminal, esto es, definir tanto los delitos y las penas -en su calidad y cantidad-, los procesos de adjudicación, como la forma de ejecución de las sanciones. De otro lado, la dogmática jurídico penal, tributaria de dicho paradigma de la política, define el sistema penal como el conjunto de normas, instituciones, agentes y procedimientos que el Estado ha dispuesto para el control de las conductas definidas por él mismo como delictivas o criminales; y el castigo o la pena, como la sanción que se encuentra prescrita por la ley penal para el delito, impuesta por un funcionario judicial imparcial e independiente, cumpliendo los cauces constitucional y legalmente dispuestos para ello. En otras palabras: el poder legitimado para la creación del delito y de la pena debe describirlos de manera expresa y clara en la ley –principio de legalidad, en su versión formal y sustancial-, y que la adjudicación, esto es, la determinación de la imputación y de la responsabilidad, sea el resultado de un proceso de construcción de la “verdad procesal” respetuoso de los derechos y las garantías previstos por la misma ley (presunción de inocencia, contradicción, publicidad, defensa, etc.), como condición de su validez y legitimidad. 1.2 Soberanía en vilo y pluralidad jurídica y/o de prácticas punitivas La representación de la soberanía, con titularidad exclusiva del Estado, ha sido relativizada, puesta en entredicho o claramente confrontada por politólogos, violentólogos, sociólogos e investigadores de otras disciplinas, a partir de la constatación de que en algunos territorios de los estados nacionales la confrontación bélica llega a tal intensidad, que cabe aseverar la fragmentación de la soberanía estatal, su puesta en vilo, configurándose en algunos casos soberanías simultaneas, paralelas 14 De Jure 9 prova 2.indd 14 11/3/2008 16:21:06 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS o superpuestas al Estado, ejercidas por poderes que no necesariamente se expresan directamente a través de él, o que son antagónicos al mismo. Colombia, con un conflicto político armado próximo a cumplir 5 décadas, que se caracteriza por la presencia permanente de ejércitos rebeldes o de grupos de paramilitares, con unidad de mando y que han logrado dominio permanente e incluso, exclusivo, en parcelas territoriales importantes del país, es un escenario en el cual es posible hallar plurales órdenes normativos y fácticos, con cierto grado de eficacia y en algunos casos con consenso y apoyo social. Consecuente con ello, cabe hablar de sistemas punitivos insurgentes, rebeldes o guerrilleros y paramilitares, que se expresan en unos casos como paralelos, complementarios o superpuestos al sistema punitivo Estatal –tal puede ser el caso del sistema punitivo paramilitar-, o excluyentes del mismo –como predominantemente lo son los sistemas punitivos guerrilleros-. Todos ellos con la particular condición que regulan un vasto universo de relaciones sociales, comprendiendo las que existen entre quienes configuran el grupo armado, las de éstos con los integrantes de la sociedad civil o con sus contradictores armados, hasta los conflictos que se suscitan entre los propios miembros de la sociedad ajenos a su grupo, para lo cual establecen leyes, códigos, jurisdicciones, procedimientos y sanciones. Todos también, buscan legitimarse en “razones de Estado”, como que es un “derecho natural” de la guerra, o la necesidad de salvaguardad el statu quo o la de construir un “orden” alternativo al existente, etc. Las territorialidades bélicas no se circunscriben a un espacio para las operaciones militares de insurgentes o contrainsurgentes, a una geografía de la violencia o a una geopolítica del conflicto armado. Son algo más, pues en arcos de tiempo prolongado se van configurando en órdenes alternativos de hecho en tanto que reclaman para sí el monopolio de los impuestos, proveen orden y organización en sus ámbitos territoriales, configuran ejércitos capaces de defender fronteras y disputar nuevos espacios y construyen algún consenso así como formas embrionarias de representación1. Si conforme a este enfoque teórico es posible aseverar la existencia de soberanías simultáneas, consecuente con ello no hay tampoco dificultad para afirmar la pluralidad de sistemas punitivos, y el estudioso de la criminología y de la política criminal, debe comprenderlos en su análisis2. Y debe hacerlo porque el sistema punitivo es uno de 1 María Teresa Uribe. “Las soberanías en disputa: ¿conflicto de identidades o de derechos?” En: Estudios Políticos Nº 15. Medellín: Instituto de Estudios Políticos, Universidad de Antioquia, julio-diciembre de 1999, pp. 35. 2 Cfr. Mario Aguilera P. “Justicia guerrillera y población civil, 1964-1999. En: El Caleidoscopio de las justicias en Colombia. Tomo II, Siglo del Hombre, Bogotá, 2001, pp. 389-422; Alfredo Molano. “La jus- 15 De Jure 9 prova 2.indd 15 11/3/2008 16:21:07 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS los dispositivos dispuestos por el poder político para garantizar un “orden predecible”, el cual constituye un elemento de la soberanía y del actor investido con tales poderes cabe afirmar su condición de soberano, como lo expresa URIBE DE HINCAPIÉ: Estos poderes alternativos van configurándose soberanías en tanto que proveen un orden predecible, formado por normas explícitas e implícitas que los pobladores conocen, aceptan o le son impuestas y que son percibidas por ello como una ley con capacidad de sanción y de castigo, pero que regulan y dirigen la vida en común. Se trata de una autoridad que pretende ser absoluta, suprema y universal en el territorio y que exige lealtad y obediencia, sirviendo como principio inteligible del universo social y como guía para las acciones y los comportamientos de los pobladores 3 Y aunque que la situación de Brasil difiere del caso colombiano, al no registrar la presencia de grupos insurgentes o rebeldes, este enfoque político criminal puede tener un valor heurístico, porque permite preguntarse si los poderes armados definidos como “criminalidad organizada”, generalmente ligados al tráfico de drogas y/o a otros tráficos ilegales, que ejercen amplio dominio en fabelas de algunas ciudades del país, han puesto en vilo la soberanía estatal, la misma se halla en disputa o ha sido desplazada en gran parte por dichos poderes. En tal caso, cabe asimismo preguntarse por el tipo de conflictos que regulan y controlan, la relación que con ello guarda la coerción y la violencia, el grado de articulación que han logrado con los grupos sociales más vulnerables, si se han erigido en custodios del “orden” y la “seguridad”, y si ello ha contribuido a su legitimación entre la población que habita los territorios bajo su dominio. ticia guerrillera”. En: El Caleidoscopio de la justicias en Colombia, Tomo II, Siglo del Hombre, Bogotá, 2001, pp. 331-388. William Fredy Pérez Toro. “Lícito e ilícito en territorios de conflicto armado”. En: Análida Rincón Patiño (Editora- compiladora): Espacios urbanos no con-sentidos. Legalidad e ilegalidad en la producción de ciudad Colombia- Brasil, Medellín, Universidad Nacional de Colombia – Alcaldía de Medellín – Área Metropolitana del Valle de Aburrá, 2005, pp. 75- 105. 3 María Teresa Uribe de Hincapié. “Las soberanías en disputa: ¿conflicto de identidades o de derechos?”, Op.cit., pp. 37. Cfr. También, De la misma, “Las soberanías en vilo en un contexto de guerra y paz”. En: Estudios Políticos No. 13, Instituto de Estudios Políticos, Universidad de Antioquia. Medellín, julio-diciembre 1998. pp. 11-37. De la misma, La política en escenario bélico. Complejidad y fragmentación en Colombia. Legado del Saber No. 11, Universidad de Antioquia – Icfes – UNESCO. Medellín, 2003. Manuel Alberto Alonso Espinal y Juan Carlos Vélez Rendón. “Guerra, soberanía y órdenes alternos”. En: Estudios Políticos, No. 13, Medellín, Instituto de Estudios Políticos, Universidad de Antioquia, 1998, pp. 41-71. Gloria Naranjo Giraldo. “Ciudadanía y desplazamiento forzado en Colombia: una relación conflictiva interpretada desde la teoría del reconocimiento”. En: Estudios Políticos, No. 25, Medellín, Instituto de Estudios Políticos, Universidad de Antioquia, julio-diciembre de 2004, pp. 137-160. Mauricio García Villegas. “Estado, derecho y crisis en Colombia”. En: Estudios Políticos, No. 17, Instituto de Estudios Políticos, Universidad de Antioquia, Medellín, 2000. 16 De Jure 9 prova 2.indd 16 11/3/2008 16:21:07 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Respecto a conflictos de este orden, por las experiencias que he podido indagar en mi país, no se trata de militarizar, de llenar de fuerza pública los territorios, criminalizar la población en general, o más grave aún, delegar en poderes ilegales – v.gr. el paramilitarismo en Colombia- el trabajo “sucio” para el control de los contradictores legales del Estado, que son las políticas más hegemónicas. Soy del criterio de que es preciso acometer programas de inclusión social y política de la población, de reconocimiento de derechos (laborales, sociales, educativos, culturales, etc); proscribir los estigmas que como mancha de aceite se esparcen y terminan comprendiendo a toda la población; generar confianza en las autoridades, lo cual supone un control de sus ilegalidades, de sus abusos y que la dimensión social del Estado también se haga presente y de manera relevante, para pagar en parte la inmensa “deuda social” que generalmente se tiene con estos grupos poblacionales. Esta es la mejor forma para fracturar los vínculos que la comunidad ha construido con dichos poderes armados, producto tanto de la coerción, el miedo, la vulnerabilidad, el pragmatismo o la necesidad de “seguridad”, y condición sine qua non para una solución democrática y eficaz al conflicto. En conclusión, respecto de macroconflictos, como lo son aquellos en los que la soberanía está fragmentada, la política criminal circunscrita a una huida hacia el derecho penal, constituye una cortina de humo, un desplazamiento de las responsabilidades, porque se pretende que el sistema penal, y manera especial la jurisdicción, resuelva problemas que conciernen fundamentalmente a la política. Y cuando afirmamos que conciernen a la política, para el caso colombiano significa que respecto del conflicto armado con las diversas expresiones armadas insurgentes o rebeldes, debe privilegiarse una solución negociada del conflicto, simultánea con políticas públicas que vayan a la raíz de los factores objetivos que están en la génesis de las expresiones rebeldes, esto es, una radicalización de la democracia, una distribución equitativa del ingreso, una política efectiva de inclusión, ataque frontal a la pobreza y la miseria, etc. 1.3 El derecho penal subterráneo La observación atenta de los acontecimientos políticos de Latinoamérica en las décadas de los 70s y 80s, permitió conocer que el sistema penal estatal positivo (el regulado por las normas constitucionales y los códigos penal, procesal penal y carcelario y penitenciario), era utilizado en la práctica, tanto durante los Estados de Excepción (Estado de sitio, hoy de conmoción interior) como en épocas de “normalidad”, de manera complementaria a otras prácticas de control social punitivo, según variables que cambiaban de acuerdo a correlaciones de fuerzas del poder. Para ser más precisos, en determinadas coyunturas y según fueran los actores, se utilizaba el sistema penal 17 De Jure 9 prova 2.indd 17 11/3/2008 16:21:07 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS positivo, y cuando el mismo no soportaba un juicio de legitimidad o devenía inocuo para garantizar la exclusión social de determinados actores, se utilizaban otras formas de control social, de contenido manifiestamente punitivo. Esto se pudo verificar respecto de activistas y dirigentes políticos, indígenas, universitarios, sindicales, campesinos, populares y defensores de derechos humanos, que confrontaron con sus ideas y sus luchas la legitimidad los sistemas y regímenes políticos antidemocráticos, adalides de modelos económicos generadores de explotación, exclusión, pobreza y miseria. La judicialización a cargo del sistema penal positivo de estos actores políticos resultaba absolutamente ilegítima, dada la jerarquía de las personas, el conocimiento público de su conducta cotidiana, los vínculos sociales nacionales e internacionales tanto personales como de las organizaciones y movimientos de los cuales hacían parte. Dada esta circunstancia, los regímenes ya descritos, optaron por implementar políticas públicas caracterizadas por el homicidio selectivo, la amenaza, la detención desaparición, la tortura, el desplazamiento forzado, etc. En otras ocasiones, por la ineficacia del sistema penal para contener el conflicto suscitado por grupos sociales ubicados en la marginalidad del sistema productivo, porque la pena privativa de la libertad se reputaba ineficiente para su contención o inocuización, conjuntamente con el estatus de “desechables” se institucionalizaron prácticas punitivas subterráneas a cargo de “escuadrones de la muerte” responsables de la “limpieza social”, o formas de “justicia privada”, que han contado con el aval, el apoyo y las aquiescencia del poder estatal e incluso, de grupos sociales y económicos con poder político. Esta realidad dio pábulo a los investigadores sociales, en especial a los dogmáticos y criminólogos críticos, a hablar de un sistema penal subterráneo, enfoque que tuvo como presupuesto una redefinición del sistema punitivo. ZAFFARONI, al referirse al mismo, expresa que se encuentra presente en todos los sistemas penales, aunque de manera diferente, lo cual permite concluir el carácter universal y estructural del fenómeno: Todas alas agencias ejecutivas ejercen poder punitivo al margen de cualquier legalidad o con marcos legales muy cuestionables, pero siempre fuera del poder jurídico. Esto proota que el poder punitivo se comporte fomentando empresas ilícitas, lo que es una paradoja en el ámbito del saber jurídico, pero no lo es para las ciencias políticas ni sociales, donde es claro que cualquier agencia con poder discrecional termina abusando del mismo. Este abuso configura el sistema penal subterráneo que institucionaliza la pena de muerte (ejecuciones sin proceso), 18 De Jure 9 prova 2.indd 18 11/3/2008 16:21:07 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS desapariciones, torturas, secuestros, robos, botines, tráfico de tóxicos, armas y personas, explotación del juego, de la prostitución, etc. La magnitud y modalidades del sistema penal subterráneo depende de las características de cada sociedad y de cada sistema penal, de la fortaleza de las agencias judiciales, del equilibrio de poder entre sus agencias, de los controles efectivos entre los poderes, etc. Pero en ningún caso esto significa que se reduzca a países latinoamericanos o periféricos del poder mundial, sino que se reconoce su existencia en todos los sistemas penales, aunque en medida a veces muy diferente. Los campos de concentración, los grupos paraoficiales (Ku Flux Kan y parapoliciales), la expulsiones fácticas de extranjeros, las extradiciones mediante secuestros [...] etc., muestran la universalidad y estructuralidad del fenómeno. En la medida que el discurso legitima el poder punitivo discrecional y, por ende, renuncia a realizar cualquier esfuerzo por limitarlo, está ampliando el espacio para el ejercicio del poder punitivo por los sistemas penales subterráneos4. De conformidad con el enfoque que venimos describiendo, podemos aseverar que el sistema punitivo estatal comprende todo ejercicio del poder con las siguientes características: i) que el actor sea un agente estatal o alguien que actúa por anuencia o aquiescencia de éste; b) se ejerza con pretexto o con motivo de hechos punibles (delitos y contravenciones); c) tenga un carácter coactivo, porque el dolor que se inflige se hace sin la anuencia o concurso de la persona afectada; d) que dicha intervención afecte derechos fundamentales de la persona humana (la vida, la libertad, la dignidad humana, etc.). La vigencia del sistema punitivo subterráneo en el caso colombiano es palmaria. A guisa de ejemplo, describimos la situación de los últimos años de los dirigentes y activistas sindicales en Colombia, según el informe de uno de los centros de investigación que lo representan: La mayoría de las violaciones a los derechos humanos de los sindicalistas en Colombia se encuentran ligadas a conflictos laborales (paros, huelgas, negociaciones colectivas y creación de sindicatos). Aunque ellas ocurran en el contexto de la guerra y sean cometidas, en la mayoría de los casos, por alguno de los actores de la guerra, es necesario considerar que en Colombia, la guerra y los actores armados funcionan como procesos o instituciones paralelas e ilegales de regulación del conflicto laboral colombiano. 4 Eugenio Raúl Zaffaroni, et. al.,. Derecho Penal. Parte General, Buenos Aires, Ediar, 2000, pp. 24. En el mismo sentido, cfr. Lola Aniyar de Castro. “Los Derechos Humanos, modelo integral de la ciencia penal, y sistema penal subterráneo”, en: Revista del Colegio de Abogados Penalistas del Valle, No. 13, Cali, 1985, pp. 301 y ss. 19 De Jure 9 prova 2.indd 19 11/3/2008 16:21:07 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Por ello, la violencia contra los sindicalistas se inscribe como una acción deliberada, estratégica y sistemática que obedece a un interés específico que busca anular las acciones sindicales de reivindicación y defensa de los derechos laborales. Estas consideraciones evidencian que las violaciones se han realizado en momentos marcados por el aumento de las reivindicaciones laborales y no como razón o consecuencia del conflicto armado, de ahí que los y las sindicalistas no aparecen como víctimas casuales o colaterales del conflicto armado. Entre el 1 de enero de 1991 y el 31 de diciembre de 2006, según datos del Banco de Datos de la ENS (Escuela Nacional Sindical) se han registrado 8.105 casos de violaciones a la vida, integridad física y la libertad personal de trabajadores afiliados a sindicatos en Colombia, discriminadas así: 2.245 homicidios, 3.400 amenazas, 1.292 casos de desplazamiento, 399 detenciones arbitrarias, 206 hostigamientos,192 atentados, 159 secuestros, 138 desapariciones, 37 casos de tortura y 34 allanamientos ilegales. Lo que nos daría una cifra de 2.515 sindicalistas asesinados desde 1986, año de fundación de la CUT. En términos generales, el promedio anual de se asesinatos de sindicalistas en los últimos 21 años ha sido de 120 5. Esta violencia punitiva guarda estrecha relación con la conflictividad creciente liderada por las organizaciones sindicales, surgida con motivo de la implementación del modelo económico neoliberal6, y las nefastas consecuencias derivadas del mismo 5 Escuela Nacional Sindical. “La coyuntura laboral y sindical 2006- 2007 en cifras”. En: Caja Virtual de Herramientas, No. 061, Bogotá. Véase también, Guillermo Correa. “Una historia tejida de olvidos, protestas y balas”. En: Controversia, Nº 188, Bogotá, Cinep, junio de 2007, p. 13, donde se expresa: “…la violencia antisindical en Colombia, en tiempo pasado y presente, ha sido una violencia de orden sistemático, intencionada y selectiva, que opera bajo una lógica de exterminio y neutralización de la acción sindical en un juego encubierto de victimarios y responsabilidades y provisto de una retórica dispersa en su explicación, como una especie de violencia disciplinante que enmascara a sus principales verdugos. En esta dirección se hace necesario revisar el pasado para corroborar con contundencia, que pese a los innumerables conflictos bélicos que han tenido lugar en nuestra historia nacional y a las complejas realidades sociales y políticas, el aniquilamiento de la acción sindical es un propósito que muchas de las veces cabalga independiente de la guerra misma, un propósito que se ha materializado en innumerables figuras de muerte”. 6 El cual es posible caracterizar, entre otras cosas, por: la liberalización de los mercados, incluyendo el relativo al trabajo; la desregulación económica; la privatización de los bienes y servicios públicos; el recorte del gasto social y el subsecuente incremento de los gastos para la guerra y la “defensa”; la tutela especial al capital multinacional y transnacional, y la subordinación del Estado a las agencias multilaterales (Banco Mundial, Fondo Monetario Internacional y Organización Mundial del Comercio). Cfr. Boaventura de Sousa Santos. La caída del Angelus Novus: Ensayos para una nueva teoría social 20 De Jure 9 prova 2.indd 20 11/3/2008 16:21:08 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS para la libertad sindical, los ingresos laborales, la estabilidad del trabajo, la seguridad social y otros derechos de la clase trabajadora. Los indígenas son otro actor que en Colombia sufre actualmente los rigores del sistema punitivo subterráneo, tal como se describe a continuación: […] durante el gobierno de Uribe Vélez la situación humanitaria de los indígenas se ha agravado por acciones de las Fuerzas Armadas del Estado y los paramilitares, quienes supuestamente se encuentran en cese al fuego desde diciembre de 2002 [...]. En su administración han sido asesinados 576 indígenas, es decir, cerca de la tercera parte de todas las víctimas de los últimos 32 años; han sido desaparecidos otros 100, cifra que representa el 37% de todos los desaparecidos en ese mismo lapso; 244 indígenas fueron heridos, el 30,9 % de todos los casos ocurridos desde 1974. Y cada vez más, los responsables son miembros de la Fuerza Pública” 7. Pero respecto de este actor, el sistema penal conjuga todas las formas de lucha, porque también acude a la criminalización a través de capturas masivas y/o selectivas y la judicialización amparada en delatores e informantes profesionales8. Todo lo cual es conuna nueva práctica política. Introducción y notas de César A. Rodríguez. Bogotá, Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos - ILSA- /Universidad Nacional de Colombia- Facultad de Derecho, Ciencias Políticas y Sociales, enero de 2003, pp. 281-282. Del mismo, Crítica de la Razón Indolente. Contra el desperdicio de la experiencia. Vol I. Traducido por Joaquin Herrera Flores (Coordinador – Editor), Fernando António de Carvalho Dantas, Manues Jeús Sabariego Gómez, Juan Antonio Senent de Frutos y Alejandro Marcelo Médici. Bilbao. Editorial Desclée de Brouwer, S.A., 2003, pp. 234 y ss. 7 Centro de Cooperación al Indígena – Cecoin. “Pueblos Indígenas. Resistencia en medio de la violencia”·. En: AA.VV. Deshacer el Embrujo. Alternativas a las políticas del Gobierno de Álvaro Uribe Vélez. Plataforma Colombiana de Derechos Humanos, Democracia y Desarrollo. Bogotá, noviembre de 2006, pp. 240. Véase también, Héctor Mondragón. “Estatuto Rural hijo de la parapolítica”, Caja Virtual de Herramientas, No. 069, Viva la Ciudadanía, Bogotá; El Tiempo, “Indígenas colombianos están en medio del fuego cruzado: 357 han sido asesinados en cuatro años”, Bogotá, diciembre 2 de 2004. 8 “Durante todo el período de Uribe, uno de los departamentos indígenas más victimizados fue el Cauca, donde han tenido lugar 212 detenciones arbitrarias, 61 asesinatos políticos, 114 heridos, 30 amenazas individualizadas y reiteradas amenazas colectivas, especialmente contra indígenas Nasas, Kokonucos y Yanaconas. A esto debe sumarse la orden de captura contra más de 200 líderes indígenas de Caldoso, Jambaló y Toribío, tras operativos de la insurgencia en la zona, con el argumento de ser colaboradores de la guerrilla. Paradójicamente, la orden afectó a los líderes más caracterizados en la defensa de la autonomía indígena frente a los actores armados [...]. Algunos de los más destacados líderes de los Consejos Regionales Indígenas de Risaralda y Caldas han sido detenidos en dos y tres oportunidades. “Tales detenciones arbitrarias, señalamientos y heridos fueron preludio inmediato o fruto de acciones represivas oficiales simultáneas a las movilizaciones indígenas contra Uribe, realizadas en septiembre de 2004, octubre de 2005 y mayo de 2006, ocasionados en su mayoría por la Fuerza Pública en uso del llamado presidencia y ministerial a atacar a los terroristas infiltrados en dichas acciones pacíficas”. Centro de Cooperación al Indígena – Cecoin. “Pueblos Indígenas. Resistencia en medio de la violencia”· En: AA.VV. Deshacer el Embrujo. Op.cit., p. 239. 21 De Jure 9 prova 2.indd 21 11/3/2008 16:21:08 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS secuencia de que las comunidades y las organizaciones indígenas son actores políticos que confrontan la legitimidad de diversas políticas públicas del programa de gobierno del presidente Álvaro Uribe Vélez9, lo que han hecho a través de mingas, marchas, toma de instalaciones públicas, denuncias ante organismos y ONGs internacionales protectoras de los derechos humanos. La pluralidad de estas expresiones de resistencia y de lucha, han contado muchas veces con la participación de toda la comunidad y con el liderazgo y/o el aval de sus autoridades, lo cual hace que por razones obvias no sean reprochadas y mucho menos castigadas por la jurisdicción indígena, la que constitucionalmente es la competente para conocer de dichos conflictos. 1.4 La colonización del sistema jurídico por el Derecho penal del enemigo. El poder punitivo a lo largo de la historia, siempre ha sido proclive a institucionalizar tratos diferenciados para quienes el mismo define como “enemigos”. Los antecedentes más remotos cabe situarlos en el pensamiento griego10, pero es quizá en el derecho romano, donde se desarrolla una primera concepción de “enemigo político”, al distinguir entre éste (hostil) del enemigo personal (inimicus). Al enemigo político (hostis), reputado el verdadero enemigo, siempre le es posible plantearle la guerra como la negación absoluta de su condición de persona, con lo cual también se le despojaba por completo de derechos. Así mismo, el ciudadano romano, que a través de la traición o la conspiración amenazaba la seguridad de la república, podía ser también declarado enemigo por el Senado (hostis judicatus)11. Luego de esta breve referencia histórica, cabe decir con Zaffaroni que si algo le es consustancial a todo poder punitivo, es su carácter selectivo y discriminatorio, o lo que es lo mismo, “siempre se reprimió y controló de modo diferente a los iguales 9 Véase: Organización Nacional Indígena de Colombia “Violencia política, exclusión y etnicidad en Colombia”, Bogotá, 14 de enero de 2007, en: www.onic.org./documentos. Entre las políticas pública que aquí se destacan, encontramos: la restricción creciente de las libertades y derechos de la población civil, con pretexto del control del orden público; el Incremento de operaciones militares en el marco del Plan Colombia; restricciones del mecanismo de Tutela para proteger los Derechos colectivos y especialmente los derechos sociales y económicos; el aumento de bases militares, especialmente en territorios indígenas; la creación de nuevas estrategias de cooptación y reclutamiento (Soldados Campesinos, Soldados por un Día, Etc.) y el reforzamiento de las estructuras de delación (Red de Informantes, Recompensas, rebaja de penas, etc.); la criminalización de la protesta social; “paramilitarización del Estado y Estatalización del paramilitarismo a través de la Ley de Justicia y Paz”. 10 “La consideración del delincuente como un enemigo se puede entender presente ya en la teoría del pacto social de la sofística griega del siglo V a. C. En el mito de Prometeo, Zeus ordena “que al incapaz de participar del honor y la justicia lo eliminen como a una enfermedad de la ciudad”. Luis Gracia Martín. “Consideraciones críticas sobre el actualmente denominado “derecho penal del enemigo”. En: Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminológica. 2005 Nº 07-02. http://www.criminet.ugr.es. 11 Cfr. Eugenio Raúl Zaffaroni. El enemigo en el derecho penal. Bogotá, Grupo Editorial Ibáñez, 1ª edición, 2006, pp. 32 y 33. 22 De Jure 9 prova 2.indd 22 11/3/2008 16:21:08 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS y a los extraños, a los amigos y a los enemigos”12. La veracidad de este aserto lo demuestra el mismo autor con la descripción de los sistemas punitivos imperantes en diversos períodos históricos, que se han inspirado en diversos referentes políticojurídicos, desde la inquisición, el poder colonialista y neocolonialista, el liberalismo, el positivismo criminológico, el Nacionalsocialismo, la Doctrina de la seguridad nacional, la teoría de la emergencia o la excepción en las democracias constitucionales, los nuevos autoritarismos y de más reciente fecha, en la “guerra contra el terrorismo”, que tiene como pretexto los hechos del 11 de septiembre de 2001 en los Estados Unidos de Norteamérica. Sea el caso referirnos, así brevemente, a la nueva “guerra contra el terrorismo” liderada por los Estados Unidos, la cual es paradigmática en la construcción de un modelo punitivo en materia sustantiva y procesal para “enemigos”, con las correlativas presiones de todo orden para que el mismo se instaure en todos los países del orbe, lo cual en parte se ha logrado a través de las resoluciones emitidas contra el “terrorismo” por el Consejo de Seguridad de la ONU, después del 11 de septiembre de 200113. Las particularidades más relevantes de este modelo, es que pretende legitimar, entre otras cosas: la guerra preventiva contra pueblos, obviando la intermediación de la ONU; el estatus de “enemigos combatientes”, para los sospechosos de agredir la seguridad de los Estados Unidos, despojados tanto de su condición de prisioneros de guerra y de ciudadanos, y correlativamente, sin amparo en el Derecho Internacional Humanitario y en la Constitución Americana; tribunales, acusadores y defensores militares; detención preventiva ilimitada, sin mediación judicial, acompañada de una incomunicación absoluta, sin formulación de cargos y sin oportunidad de contradecir acusación; la tortura, “flexibilizando” la reinterpretación de normas internacionales y los tipos penales que la definen; la posibilidad de ser capturado en cualquier lugar del mundo, y hacer uso de secuestros institucionales sin que se conozca siquiera el país en donde el retenido se encuentra. Esa despersonalización de los contradictores operada en la dinámica de los conflictos bélicos después de la guerra fría, bajo la hegemonía de los Estados Unidos, encuentra respaldo en los nuevos desarrollos de la “ciencia jurídica”. Y tal vez sea el profesor alemán Günther Jakobs, quien para finales del siglo anterior y comienzos del presente, 12 “El poder punitivo siempre discriminó a seres humanos y les deparó un trato punitivo que no correspondía a la condición de personas, dado que sólo los consideraba como entes peligrosos y dañinos. Se trata de seres humanos a los que señala como enemigos de la sociedad y, por ende, se les niega el derecho a que sus infracciones sean sancionadas dentro de los límites del derecho penal liberal, esto es, de las garantías que establece –universal y regionalmente- el derecho internacional de los Derechos Humanos”. Eugenio Raúl Zaffaroni, El Enemigo en el Derecho Penal. Op.cit., p. 19. 13 Cfr. Sobre dichas resoluciones, Kai Ambos. La lucha antiterrorista tras el 11 de septiembre de 2001. Traducción de Ana María Garrrocho Salcedo, Bogotá, Universidad Externado de Colombia – Centro de Investigación en Filosofía y Derecho, 2007, pp. 17 y ss. 23 De Jure 9 prova 2.indd 23 11/3/2008 16:21:08 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ha presentado la tesis que mayor controversia ha suscitado14, la cual normativiza el concepto de persona humana, reservando tal condición para quienes por su conducta y forma de vida le generan confianza de obediencia al poder político, y a contrario sensu, califica como “enemigos”, y los despoja de los derechos y garantías universales en las constituciones de los Estados de Derecho, a quienes por la “peligrosidad” de su conducta, o el haberse articulado a una organización de manera permanente o por ocupación profesional (delincuencia económica, delincuencia organizada), supuestamente han abandonado de manera duradera y permanente el derecho, Quien no presta una seguridad cognitiva suficiente de un comportamiento personal, no sólo no puede esperar ser tratado aún como persona, sino que el Estado no debe tratarlo ya como persona, ya que de lo contrario vulneraría el derecho a la seguridad de las personas. Por lo tanto sería completamente erróneo demonizar aquello que aquí se ha denominado Derecho penal del enemigo; con ello no se puede resolver el problema de cómo tratar a los individuos que no permiten su inclusión en una constitución ciudadana”15 (cursivas no originales). Más que inventariar los desarrollos doctrinarios que inspirados en tales presupuestos, avalan, con diversos matices, la tesis del autor citado, creo más oportuno referirme, así sea brevemente, a las transformaciones político-criminales que se vienen legitimando, en los diversos campos de expresión que integran el sistema punitivo: En el ámbito del derecho penal sustantivo, el discurso del derecho penal del enemigo viene avalando reformas del siguiente tenor: el regreso a la hegemonía del derecho penal de autor, al sancionar no los actos sino los modos de vida de las personas o su “peligrosidad”; la erosión del principio de lesividad, al criminalizar los peligros presuntos o abstractos (v.gr. los tipos penales de sospecha y la sanción para los actos preparatorios); el soslayamiento de la garantía del principio de legalidad, tanto por los tipos penales vagos y equívocos, como por la delegación de la función legislativa penal en autoridades del poder ejecutivo, con el pretexto de las denominadas leyes penales en blanco. En el ámbito del derecho procesal penal, bajo el amparo del derecho penal del enemigo, se está reinstitucionalizando el procedimiento inquisitivo, no solo por el aniquilamiento para los “enemigos” de los derechos y sus garantías que el liberalismo político construyó como condición de legitimación del proceso (defensa, publicidad, 14 Sobre la controversia suscitada por las tesis de este autor, véase: Cancio Melía y Gómez –Jara Díez (Coordinadores). Derecho Penal del Enemigo. El discurso penal de la exclusión. 2 volúmenes, Buenos Aires, Edisofer S.L – Editorial IB de F, 2006. 15 Günter Jakobs y Manuel Cancio Meliá. Derecho Penal del Enemigo, Madrid, Civitas, 2003, p. 47-48. 24 De Jure 9 prova 2.indd 24 11/3/2008 16:21:08 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS contradictorio, juez natural, etc.), sino también, por erigir en columnas vertebrales del mismo instituciones de inequívoco y claro origen inquisitorial, como la negociación del proceso y de la pena entre el Estado y el imputado o procesado, en supuestos como la autoincriminación, la delación o el “sapeo”. Así mismo, la instrumentalización de la detención o prisión preventiva como pena anticipada. Y en materia probatoria, el erigir al espía, al agente provocador o al el informante profesional, como columnas vertebrales de la prueba incriminativa; igualmente, abre paso a la legitimación de la tortura, y la flexibilización de los criterios sobre admisibilidad de la prueba ilegal. Y en el ámbito de la pena, la misma termina legitimándose en criterios de prevención especial negativa (inocuización, exclusión) o de prevención general positiva, ambos lesivos de la dignidad humana16. Correlativo a ello se relegitima la pena de muerte y las cárceles de máxima seguridad. De las observaciones de contenido crítico que cabe formularle a esa nueva relegitimación del sistema punitivo, vamos a hacer eco de las que consideramos más relevantes: La primera, que no obstante reclamarse como excepcional, circunscrita a ámbitos conflictivos muy concretos, termina contagiando toda la legislación, por serle consustancial la proclividad a colonizar todos los espacios del sistema penal. La segunda, de la mano de Muñoz Conde, cabe afirmar que no es lo mismo Estado con Derecho que Estado de derecho, dado que este último tiene un compromiso real, con la vigencia de los derechos humanos, sin discriminación alguna (igualdad), que es su elemento sine que non de existencia. El Estado de derecho, ‘por definición no admite que se pueda distinguir entre “ciudadanos” y “enemigos”, como sujetos con distintos niveles de respeto y protección jurídicas. Los derechos y garantías fundamentales propia del Estado de derecho, sobre todo las de carácter penal material (principios de legalidad, intervención mínima y culpabilidad) y procesal penal (derecho 16 Para una crítica de la prevención especial negativa, véase Alessandro Baratta. “Viejas y nuevas estrategias de legitimación del sistema penal”, en: Poder y Control, Nº O, PPU, Barcelona, pp. 87-88; del mismo, “Funciones instrumentales y simbólicas del Derecho Penal: una discusión en la perspectiva de la criminología crítica”. En: Pena y Estado, No. 1, Trad. de Mauricio Martínez Sánchez, Barcelona, PPU, 1991, pp. 37-55. Y sobre la prevención general positiva, en sentido crítico, véase Alessandro Baratta. “Funciones instrumentales y simbólicas…”, Op. cit., pp. 53 y 54; Luigi Ferrajoli. “El Derecho Penal Mínimo”. En: Poder y Control, No. 0. Barcelona, PPU, 1986, pp. 25 – 48; del mismo, Derecho y Razón: teoría del garantismo penal. Trad. de Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino, Juan Terradillos Basoco y Rocío Cantarero Bandrés, 2ª ed. Madrid, Trotta, parágrafo 22.1, pp. 274-275; Eugenio Raúl Zaffaroni, et. al., Derecho Penal. Parte General, Buenos Aires, Ediar, 2000, §6 III,4. 25 De Jure 9 prova 2.indd 25 11/3/2008 16:21:09 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS a la presunción de inocencia, a la tutela judicial, a no declarar contra sí mismo, etc.), son presupuestos irrenunciables de la propia esencia del Estado de Derecho. Si se admite su derogación, aunque sea en casos puntuales extremos y muy graves, se tiene que admitir también el desmantelamiento del Estado de derecho, cuyo Ordenamiento jurídico se convierte en un ordenamiento puramente tecnocrático o funcional, sin ninguna referencia a un sistema de valores, o, lo que es peor, referido a cualquier sistema, aunque sea injusto, cuyos valedores tengan el poder o la fuerza suficiente para imponerlo (…). El Derecho es entonces simplemente lo que en cada momento conviene al Estado, que es, al mismo tiempo, lo que perjudica y hace el mayor daño posible a sus enemigos’17 Finalmente, prevalencia de la “seguridad” como valor fundamental. El ceder en derechos y garantías, con el pretexto eficientista de seguridad contra el “enemigo”, es una bola de nieve, un alud, un hueco negro, insaciable, que tiene la potencialidad de aniquilar todo vestigio de derechos y garantías, incluso, es de la esencia de la lógica en la cual se haya inscrito (más de lo mismo): cuando el derecho penal del enemigo, sea realidad habitual y corriente, y sigan “terrorismos”, incluso del Estado para contener dichas acciones: regresará la tortura, campos de concentración, detención policial, tribunales militares de excepción, la presunción de culpabilidad?18 1.5 Derecho penal del amigo: tratamiento institucional al paramilitarismo El paramilitarismo es un proyecto que se autoproclama como contrainsurgente, con vigencia en Colombia durante muchos años, responsable de millones de desplazados forzados internos19, el exilio de miles, de masacres, genocidios, etnocidios, secuestros, 17 Francisco Muñoz Conde. “El nuevo Derecho penal autoritario”. En: Nuevo Foro Penal, No. 66, Medellín, Universidad Eafit, tercera época, año I, septiembre-diciembre de 2003, p. 29. Del mismo, Edmundo Mezguer y el Derecho penal de su tiempo. Estudios sobre el Derecho penal en el nacionalsocialismo, 3ª edición, Valencia, Tirant lo Blanch, 2003. 18 Francisco Muñoz Conde. “El nuevo Derecho penal autoritario”, Op. cit., p. 33. 19 Según el Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Refugiados- ACNUR-, 3 de los 13 millones de desarraigados internos a los que atendió el año pasado en todo el mundo son colombianos. Esta cifra, que equivale al 23 por ciento del total, “elevó al país al indeseable primer lugar en número de desplazados atendidos por esa agencia de la ONU”. Lo peor es que Colombia también está cerca de los primeros lugares en este campo en materia de refugiados: Si se suman los refugiados colombianos en Ecuador (250.000), Venezuela (20.000), Costa Rica (20.000) y Panamá (12.500), pasan de 300 mil. El Tiempo, “Colombia tiene tres millones de desplazados, un millón más que hace un año, dice ACNUR”, junio 19 de 2007. 26 De Jure 9 prova 2.indd 26 11/3/2008 16:21:09 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS desapareciones, asesinatos selectivos, violencias sexuales, torturas20, etc. Los investigadores nacionales discuten el grado de compromiso del Estado Colombiano en el surgimiento, expansión y consolidación del paramilitarismo, asunto que no vamos a profundizar aquí21. Lo cierto es que la Corte Interamericana de Derechos Humanos, en plurales ocasiones, con motivo de diversas masacres que han contado con la participación de los paramilitares, ha fallado condenando al Estado Colombiano, aduciendo que tal fenómeno llegó a ser una política de Estado, fuera de que agentes del mismo participaron en dichos hechos. A manera de ilustración, en el caso de “La Rochela”, en la que se produjo una masacre de funcionarios judiciales que investigaban la desaparición y el asesinato de personas tanto por paramilitares como miembros de la fuerza pública, la Corte expresó: 70. …Colombia sostuvo que “no puede ser más objeto de reproche jurídico alguno por [el] hecho” de haber creado “una situación de riesgo especial (pero tolerado jurídicamente)” al haber expedido el Decreto 3398 de 1965 y la Ley 48 de 1968, normas a través de las cuales se crearon los grupos de autodefensa, ya que ha venido adoptando las “medidas […] conducentes a mitigar las nefastas consecuencias de su actuar especialmente riesgoso”. 20 Cfr. Hollman Morris. “En las entrañas de una verdad inconclusa. El regreso de los muertos Dolorosa crónica sobre macabros hallazgos en las fosas comunes que los paramilitares dejaron a su paso por el Putumayo”, El Espectador, 13 mayo de 2007, crónica en la cual se recoge la versión del paramilitar Francisco Enrique Villalba, quien se refiere al proceso al cual eran sometidos, para el aprendizaje del descuartizamiento de personas: “Advirtió que sabía mucho del tema porque había sido entrenado para descuartizar -con campesinos vivos que le llevaban para practicar- y porque ingresó a la organización paramilitar a los 16 años. “No es bueno dedicarse a picar gente por mucho tiempo. Uno empieza a secarse, a ponerse flaco, porque todas las personas tienen un calor y al rajarles la barriga eso sale y uno se lo traga”, afirmó. “Me llamo Róbinson y llegué al Putumayo reclutado en Buenaventura. Me prometieron sueldo de $700.000 y me dijeron que no tenía que matar sino cuidar laboratorios, pero todo fue engaño. Lo descubrí rápidamente (…). Un día los comandantes llegaron al pueblo con varios civiles amarrados y, de repente, uno de ellos dio una orden perentoria: Los nuevos salgan de la fila y fórmense. Y delante de ellos, el comandante alias Maluco agarró del cabello a uno de los civiles y delante de todos le clavó el cuchillo en la garganta. Luego dijo sonriente: ‘Esto se hace para que no puedan gritar’. Y luego explicó sin inmutarse que había que tener cuidado con no cortar la yugular, porque la idea era que sufrieran (…). Algunos paracos alcanzaron a desmayarse, pero durante los cuatro años que estuve con los paramilitares, descuarticé a nueve personas”. Una de ellas fue a su propio “lanza”, es decir, a su mejor amigo. El muchacho contó que tuvo que hacerlo porque quiso desertar del grupo. Entonces lo obligaron a descuartizarlo vivo. El espontáneo narrador hizo silencio, clavó su mirada en el piso, y confesó con amargura: “Me dieron ganas de vomitar, pero tuve que sacarle los órganos, porque si no, me mataban” (…)“Yo lo que quiero es estudiar criminalística y ciencias forenses”. 21 Sobre esta discusión, véase: Edwin Cruz Rodríguez. “Los estudios sorbe el paramilitarismo en Colombia”. En: Análisis Político, Nº 60, Instituto de Estudios Políticos y Relaciones Internacionales – Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 2007, pp. 117-134; Mauricio Romero (Editor). Parapolítica. La ruta de la expansión paramilitar y los acuerdos políticos. Bogotá, Corporación Arco Iris, 2007. 27 De Jure 9 prova 2.indd 27 11/3/2008 16:21:09 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 71. Por su parte, la Comisión considera que la masacre “no se produjo en el vacío” y ocurrió “como consecuencia de una serie de acciones y omisiones que tuvieron lugar desde días antes, y en un contexto social y normativo determinado”. Además, la Comisión indicó que la creación de los grupos paramilitares fue propiciada por el Estado como una herramienta de lucha contrainsurgente al amparo de normas legales que se encontraban vigentes al momento de perpetrarse la masacre de La Rochela. Asimismo, señaló que “en los casos en los cuales paramilitares y miembros del Ejército llevan a cabo operaciones conjuntas o cuando los paramilitares actúan gracias a la aquiescencia [o] colaboración de la Fuerza Pública, debe considerarse que los miembros de los grupos paramilitares actúan como agentes estatales”. Según la Comisión, en el presente caso “existen elementos de prueba que demuestran la comisión de actos de agentes del Estado con grupos paramilitares en la ejecución de la masacre perpetrada en La Rochela” y, por lo tanto, “son imputables al Estado tanto las violaciones a la Convención Americana cometidas como resultado de los actos y omisiones de sus propios agentes como aquellas cometidas por los miembros del grupo de autodefensa que operaba en la región con su apoyo y que, a tales efectos, éstos deben ser considerados como agentes del Estado”. 74. En el presente caso, el Estado confesó que el 18 de enero de 1989, por lo menos cuarenta miembros del grupo paramilitar “Los Masetos”, contando con la cooperación y aquiescencia de agentes estatales, inicialmente retuvieron a las 15 víctimas de este caso, quienes conformaban una Comisión Judicial (Unidad Móvil de Investigación) compuesta por dos jueces de Instrucción Criminal, dos secretarios de juzgado y once miembros del Cuerpo Técnico de la Policía Judicial (CTPJ) y posteriormente perpetró una masacre en su contra, en la cual fueron ejecutados doce de ellos y sobrevivieron tres. Ese factor no se produjo como un caso aislado en Colombia. Por el contrario, se enmarca dentro de un contexto de violencia contra funcionarios judiciales. ..”22. Le asiste razón a esta corporación, en el sentido de que durante la década del 60, en el contexto de la guerra fría, e inspirada en la doctrina de la seguridad nacional, se expidieron normas que favorecían la configuración de ejércitos privados con 22 Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso de la Masacre de La Rochela Vs. Colombia, Sentencia de 11 de Mayo de 2007. En: http://www.corteidh.or.cr/pais.cfm?id_Pais=9 28 De Jure 9 prova 2.indd 28 11/3/2008 16:21:09 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS función contrainsurgente23. Más tarde, mediante el Decreto 356 de 1994, se autorizó a los grupos especialmente afectados por el accionar de la guerrilla, a conformar cooperativas privadas de vigilancia (Convivir), con derecho a portar armas de uso privativo de la fuerza pública, a ejercer funciones de control social complementario al Estado, etc., con el pretexto fue que de el Estado no podía estar presente en todo el territorio y que las víctimas tenían derecho de defenderse. El tiempo le daría razón a quienes afirmaron que esta era una forma de legalizar el paramilitarismo24. En este mismo orden de ideas, versiones libres de los jefes paramilitares, como la de “Mancuso”, que se han venido realizando como parte de sus compromisos con la “Verdad, la Justicia y la Reparación”, derivados de la “Ley de Justicia y Paz”, afirman que el paramilitarismo es política de Estado, esto es, que altos miembros del ejército y de policía fueron sus gestores e impulsadores, parte importante de la clase política fueron sus aliados y los ganaderos, empresarios y multinacionales, sus financiadores. Entre la dirigencia política menciona a los hermanos Juan Manuel y Francisco Santos, actuales ministro de defensa y vicepresidente de la república, respectivamente25. 23 Se trata del Decreto Legislativo 3398 de 1965, el cual fue adoptado como legislación permanente mediante la Ley 48 de 1968, emitidos en el marco de la lucha contra grupos guerrilleros, por cuya actividad el Estado declaró “turbado el orden público y en estado de sitio el territorio nacional”. Los artículos 25 y 33 del Decreto Legislativo 3398 dieron fundamento legal para la creación de “grupos de autodefensa”. El referido artículo 25 estipuló que “[t]odos los colombianos, hombres y mujeres, no comprendidos en el llamamiento al servicio militar obligatorio, pod[í]an ser utilizados por el Gobierno en actividades y trabajos con los cuales contribuy[eran] al restablecimiento de la normalidad”. Asimismo, en el parágrafo 3 del mencionado artículo 33 se dispuso que “[e]l Ministerio de Defensa Nacional, por conducto de los comandos autorizados, podrá amparar, cuando lo estime conveniente, como de propiedad particular, armas que estén consideradas como de uso privativo de las Fuerzas Armadas”. Véase, Corte interamericana, Caso 19 Comerciantes, supra nota 33, párr. 84.a). 24 “Las Convivir estaban plenamente articuladas al proyecto de las autodefensas desde su fundación. Es decir, no sólo fueron la cantera de la cual los paramilitares reclutaron una parte de sus integrantes para su gran expansión, una vez les quitaron el respaldo legal, sino que, en el tiempo en el que contaron con la anuencia de las instituciones del Estado, también hacía parte de la estrategia paramilitar. Mancuso le cuenta a Glenda Martínez que, por los días en que estaba tramitando la posibilidad de un marco legal para desarrollar las cooperativas de seguridad, se encontró con Vicente Castaño en la finca Las Tangas, y en esa tarde “se crearon las bases de lo que serían las Autodefensas Campesinas de Córdoba y Uraba”. La reflexión de Castaño era que la guerra había entrado en una nueva etapa y que esto exigía una coordinación y concentración de fuerzas, hombres, armas y municiones. Los Castaño se encargarían de la parte ilegal y Mancuso, por un tiempo, se dedicaría a utilizar las cooperativas amparadas legalmente. Es decir, las denuncias de las organizaciones de derechos humanos estaban bien encaminadas”. León Valencia y Observatorio del Conflicto Armado. “Los caminos de la alianza entre los paramilitares y los políticos”, en: Mauricio Romero (Editor). Parapolítica. La ruta de la expansión paramilitar y los acuerdos políticos. Bogotá, Corporación Nuevo Arco Iris, 2007. 25 Informe de la campaña “Memorias Contra el Silencio y la Impunidad. Nunca Más Crímenes de Estado”, del 18 de mayo de 2007. 29 De Jure 9 prova 2.indd 29 11/3/2008 16:21:09 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Lo cierto es que a esta estrategia o proyecto de “guerra sucia”, se articularon en calidad de instigadores, organizadores, financiadores o promotores, diversos actores económicos y sociales legales e ilegales del país; entre los primeros, los terratenientes, los comerciantes, algunos empresarios de la minería, de la agroindustria, y algunas multinacionales (dedicadas a la explotación del petróleo, la minería y el banano)26; y entre los ilegales, sobresale el narcotráfico, en función de la seguridad para sus cultivos ilegales, y de las actividades económicas antes descritas, en las cuales en los últimos años han invertido sus ganancias. Para la consolidación de su poder militar, político y social a nivel tanto local, regional como nacional, el paramilitarismo configuró alianzas con la clase política, con el fin de garantizarse inmunidad, representación en los cuerpos colegiados, rentas de los recursos públicos, reconocimiento social y facilitar el proceso de negociación para lograr impunidad de sus actos y legalización del botín adquirido de la guerra. Pero las elites políticas regionales, para resistir los cambios democráticos promovidos a nivel nacional, los procesos de negociación del Estado con la insurgencia, e impedir su desplazamiento electoral por movimientos y partidos cuyos programas y propuestas erosionaban sus privilegios, encontraron ventajas estratégicas en aliarse con este actor armado ilegal27. Este fenómeno, que se ha venido a descubrir recientemente, es conocido con el nombre de la “Parapolítica”. Y para dar cuenta de la magnitud del mismo, algunos de los jefes paramilitares, con motivo del proceso de desmovilización, fueron invitados por los congresistas amigos a hacerse presentes en el Congreso de la República, donde luego su intervención, fue objeto de vítores y ovaciones. Luego le expresaron a los medios de comunicación que el 35% de los Congresistas eran simpatizantes de su movimiento o llevaban su representación28. Tal afirmación, que fue recibida inicialmente con cierta incredulidad, 26 La multinacional Chiquita Brands, que tuvo grandes inversiones en la explotación y exportación del banano, ha sido condenada por la justicia de Estados Unidos a pagar una multa de 25 millones de dólares por haber aceptado la entrega entre 1997 y el 2004, de fondos a los paramilitares, por valor de 1,7 millones de dólares, y la importación y entrega de 3.000 fusiles AK 47 para este mismo grupo. Vésase: El Tiempo, Septiembre 18 de 2007, “Multa contra Chiquita Brands por pagos a ‘paras’ es cuatro veces menor a la de McLaren en Fórmula 1”; El Tiempo, Septiembre 12 de 2007, “Justicia de E. U. no presentará cargos contra ex directivos Chiquita Brands por pagos a Autodefensas”. 27 Véase, León Valencia. Prólogo, en: Mauricio Romero (Editor). Parapolítica. La ruta de la expansión paramilitar y los acuerdos políticos. Bogotá, Corporación Nuevo Arco Iris, 2007. 28 “Las elecciones del 2002 cambian la historia política del país El punto de llegada de la investigación arrojó esta realidad: en las elecciones del 2006, 33 senadores y 50 representantes a la Cámara resultaron elegidos en zonas de control paramilitar. Estos senadores obtuvieron 1.845.773 votos que representan una tercera parte de la votación para Congreso y un punto muy alto de la votación para presidente. La gran mayoría de estos senadores habían sido elegidos en los nuevos grupos que aparecieron en el 2002. Hay allí una continuidad de lo ocurrido entre las anteriores y estas elecciones”. León Valencia y Observatorio del Conflicto Armado. “Los caminos de la alianza entre los paramilitares y los políticos”, en: Mauricio Romero (Editor). Parapolítica…, Op. cit.,, 30 De Jure 9 prova 2.indd 30 11/3/2008 16:21:10 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS con las investigaciones que adelantaran tanto la Sala Penal de la Corte Suprema de Justicia como la Fiscalía, fue corroborada, al ser judicializados más de 40 congresistas, y existir además un grupo igualmente de investigados, respecto de los cuales están pendientes de decisiones judiciales. Estas investigaciones permitieron descubrir que en muchos territorios, bajo amenaza o mediante el asesinato de candidatos, aseguraron que los de su movimiento no tuviesen contradictores al configurarse como candidaturas únicas (municipios y gobernaciones). Las investigaciones judiciales de la parapolítica, también han permitido aproximarse al grado de penetración del paramilitarismo ha hecho de instituciones importantes del Estado, como es el caso de su máximo organismo de inteligencia, el DAS29, y de la misma Fiscalía General de la Nación, durante la dirección del Exfiscal Luis Camilo Osorio, a quien le atribuyen haber precluido y archivado importantes investigaciones contra paramilitares, parapolíticos y la misma fuerza pública. Inmediatamente que el presidente Alvaro Uribe Vélez toma posesión para ejercer su primer período (2002-2006), propone una negociación con el paramilitarismo, lo cual es recibido con beneplácito por los comandantes del grupo ilegal. Se dispone entonces la concentración en un territorio bajo el dominio paramilitar (Santafe de Ralito) de sus máximos líderes para adelantar las negociaciones, producto de las cuales el gobierno propone a cambio de la desmovilización, una ley de Perdón y Olvido, en el que les da el estatus de delincuentes políticos (sediciosos), y por lo tanto, beneficiarios de indultos y amnistías, y además, no extraditables. En este mismo contexto, los paramilitares reclaman ser reconocidos como “héroes”, por cuanto han sido hijos del Estado, fuerza contrainsurgente, y han garantizado la seguridad a importantes grupos sociales, económicos y políticos del país. No obstante los serios reparos a la propuesta gubernamental, por parte de organizaciones del orden nacional e internacional defensoras de los derechos humanos (v.gr. Amnistía Internacional, Human Rights), de organismos internacionales (ONU, OEA), de organizaciones de víctimas, de los partidos de oposición, y hasta del Departamento de Estado Americano, se aprueba la Ley de Justicia y Paz, producto de las mayorías parlamentarias que hacen parte del bloque del gobierno, entre los cuales se encontraban un gran número de congresistas que hoy están siendo investigados por parapolítica. Y aunque la ley consagra penas mínimas para los crímenes de lesa humanidad y crímenes de guerra de los cuales son responsables sus beneficiarios, ello se hizo de manera explícita para garantizar que la Corte Penal Internacional no adquiera luego competencia para juzgar esas mismas conductas. 29 Departamento Administrativo de Seguridad. El Exdirector del Das (Jorge Noguera), actualmente es acusado de suministrar listas de dirigentes sindicales, profesores y líderes que deberían ser asesinados por los paramilitares y de la organización del fraude electoral para las elecciones del 2002 al Congreso y a la Presidencia. 31 De Jure 9 prova 2.indd 31 11/3/2008 16:21:10 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS La ley, entre otros asuntos, prescribe: Estatus de delincuentes políticos a los paramilitares que se sometieran al proceso, y a los reacios a ello, serán tratados como “narcoterroristas”; una pena de prisión de 5 a 8 años; centros especiales de reclusión; no pierden derechos políticos, por lo tanto, podrán ser elegidos; no extradición; el narcotráfico, se reputa delito conexo con la sedición; para obtener dichos beneficios, no hay obligación de confesar, ni de indemnizar a las víctimas; compromiso de no volver a delinquir. La Corte Constitucional, en el control de constitucionalidad de la ley30, declaró la inexequibles, por vicios de forma, las normas que asimilaban el paramilitarismo al delito político, y concluyó además que para acceder a los beneficios de la ley, era necesario que los procesados confesaran toda la verdad e indemnizaran cabalmente a las víctimas. La Corte Suprema de Justicia, en un fallo ulterior, negó al paramilitarismo la condición de delito político31. El gobierno, en cabeza del presidente, luego de acusar a la Corte Suprema de Justicia de tener un “sesgo ideológico” al no reconocerle a los paramilitares la condición de delincuentes políticos, y de entorpecer indebidamente con ello el proceso de paz32, procede a expedir algunos decretos, en los cuales todos los beneficios consagrados en la ley, por el principio de favorabilidad, comprende a los paramilitares que se encontraban vinculados al proceso al momento de la misma expedirse33. 30 Corte Constitucional, sentencia C-370 de 2006, magistrados ponentes: Manuel José Cepeda Espinosa, Jaime Córdoba Treviño, Rodrigo Escobar Gil, Marco Gerardo Monroy Cabra, Álvaro Tafur Galvis, Clara Inés Vargas Hernández. 31 Corte Suprema de Justicia. Sala de Casación Penal, magistrados ponentes: Dres. Yesis Ramírez Bastidas y Julio Enrique Socha Salamanca, acta N° 117, Bogotá, D. C., Julio once (11) de dos mil siete (2007). Entre los considerandos relevantes, se dice que es “una norma contraria a la Constitución Política, que desconoce la jurisprudencia y contradice la totalidad de doctrina nacional y extranjera (…). Aceptar que en lugar de concierto para delinquir el delito ejecutado por los paramilitares constituye sedición, no sólo equivale a suponer que los mismos actuaron con fines altruistas sino burlar el derecho de las víctimas y de la sociedad a que se haga justicia”. Los magistrados, además, criticaron al Gobierno y al Congreso por lo que llamaron una “política criminal inexistente”: Hay “razones superiores para cuestionar la legitimidad de las decisiones legislativas que soterradamente pretenden introducir beneficios a determinada clase de delincuentes (...) Estas no sólo resultan político-criminalmente precarias sino también jurídicamente incorrectas y moralmente injustas”. 32 El Tiempo, Julio 27 de 2007, “Como ‘censura grave y peligrosa’ califica Corte Suprema declaraciones del presidente Álvaro Uribe”; Ramiro Bejarano Guzmán, Abusos de un presidente en apuros, en: El Espectador, 28 de julio de 2007. 33 Cfr. Iris Marín Ortiz. “Grupos paramilitares y delito político en Colombia”. En: Semanario Virtual Caja de Herramientas, Nº 79. 32 De Jure 9 prova 2.indd 32 11/3/2008 16:21:10 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Para cerrar el tema es preciso señalar que muchos narcotraficantes, pedidos en extradición por los Estados Unidos, compraron franquicias a los paramilitares, y se presentan en las negociaciones como jefes de dicha organización. Incluso, según los mismos extraditables, muchos de ellos se refugian en Santa Fe de Ralito, para evitar su captura y extradición, lo cual comporta obviamente, una contraprestación. Adicional a ello, el Comisionado de Paz expresó en una reunión con los paramilitares, que las posibilidades del triunfo de la negociación con el Estado, estaba condicionada a la reelección presidencial, con lo cual se les invitaba a trabajar en tal sentido. Con lo expuesto podemos concluir que el paramilitarismo le hizo el trabajo sucio a los poderes económicos y políticos en Colombia. El poder emergente (económico y político) que lograron, quisieron verlo traducir en un trato como “héroes” en lo jurídico, en lo político y en lo social; consecuente con ello, también, inmunidad para sus rapiñas, su botín de la guerra - v.gr. millones de hectáreas producto de los desplazamientos forzosos- y trato privilegiado de la ley. Y como tienen capacidad de denunciar complicidades, someten a chantaje a los poderes institucionales del Estado. Consecuente, una ley, producto de la negociación. La guerra define entonces los contenidos del derecho: el trato privilegiado, de “amigo” para los aliados y el trato de “enemigos”, para los contradictores, incluyendo los que ejercen sus luchas en el terreno de la legalidad. 2. Orden y Seguridad Vs Libertades públicas y derechos fundamentales y garantías Toda política criminal está atravesada por la tensión entre la salvaguarda del orden, del statu quo, y la protección de las libertades públicas, de los derechos fundamentales y de sus técnicas jurídicas de salvaguarda (garantías). La forma como se resuelva dicho conflicto, es testimonio del grado de democracia que ha alcanzado un régimen político. Para aproximarnos a la solución de dicho conflicto en el paradigma del Estado constitucional de derecho, es preciso referirnos a los elementos que lo caracterizan: a) El titular de los derechos es la persona humana; b) la legitimación del Estado y del Derecho es heteropoyética, esto es, en un enfoque teleológico, su legitimación deviene por salvaguarda real y eficaz de las libertades y de todos los derechos de todos los seres humanos34; c) la legitimación de la jurisdicción y de los operadores jurídicos, 34 “El Estado se sólo una institución derivada de los derechos de los ciudadanos, de ellos recibe su legitimación, y ellos son, al mismo tiempo, los límites de su poder. El contrato social no permite ningún poder autónomo, ni usurpador (….) el derecho penal es ciertamente un medio violento de represión, pero también un instrumento de garantía de la libertad ciudadana, y como tal es indispensable para asegurar la convivencia; lo que no quiere decir que sea autónomo, sino un eslabón de una cadena; la ultima ratio para la solución de los problemas sociales, y no una panacea de los mismos”. Winfried Hassemer. Persona, 33 De Jure 9 prova 2.indd 33 11/3/2008 16:21:10 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS también la define su compromiso auténtico con la eficacia de los derechos humanos y sus técnicas de garantía35. Frente a este escenario, cabe prohijar una propuesta magistralmente expuesta por el desaparecido criminólogo Alessandro Baratta36, quien afirma que es perentorio, y ya, despojar a la seguridad del carácter sustantivo con el cual las razones de Estado la han querido investir; además, develar que cuando se le presenta acompañada con nombres sugestivos y rimbombantes como “democrática”, “nacional”, “ciudadana”, etc., las más de las veces lo que se pretende es mimetizar adefesios e iniquidades, si nos atenemos a las infamias que han posibilitado, y las justificaciones y legitimaciones que han impartido a prácticas nugatorias de los derechos más caros y sentidos por la humanidad. En conclusión, no hay alternativa diversa en el terreno de la cultura política y jurídica democrática que insistir que cuando se habla de seguridad, es perentorio entender que no se trata de crear indemnidades y salvaguardas para entelequias, sistemas, órdenes normativos, instituciones, incluso así lleven, hasta de forma merecida, nombres como “Estado”, “sistema democrático”, “instituciones legítimamente constituidas”, etc. Por seguridad, habrá sólo de entenderse “la seguridad de los derechos” de todas las personas, sin exclusión alguna, incluyendo obviamente, los “no honorables”, los “molestos”, los “desviados”. La política criminal del Estado colombiano, contrasta con esta indicación, porque con el pretexto de la seguridad de las instituciones, entre ellas, el Estado, ha terminado sacrificando la seguridad de los derechos de las personas y la indemnidad de las garantías para su tutela. Y ello acontece en todos los ámbitos que integran el sistema penal, como procedemos a documentarlo. Mundo y responsabilidad. Bases para una teoría de la imputación en derecho penal. Santa Fe de Bogotá, Temis, 1999, pp. 18-19. 35 “En esta sujeción del juez a la constitución y, en consecuencia, en su papel de garante de los derechos fundamentales constitucionalmente establecidos, está el principal fundamento actual de la legitimidad de la jurisdicción y de la independencia del poder judicial de los demás poderes…(….) no es otra cosa que el valor de la igualdad como igualdad en drotis (…) esta legitimación no tiene nada que ver con la de la democracia política ligada a la representación (…) su fundamento es únicamente la intangibilidad de los derechos fundamentales. Y, sin embargo, es una legitimación democrática de los jueces, derivada de su función de garantía de los derechos fundamentales, sobre la que se basa la que he llamado “democracia sustancial…”. Luigi Ferrajoli. Derechos y garantías. La ley del más débil. Madrid, Trotta, 1999, pp. 27-28 36 Alessandro Baratta. “Seguridad”. En: Alessandro Baratta. Criminología y sistema penal (Compilación in memoriam), Colección Memoria Criminológica, No. 1, Montevideo – Buenos Aires, Editorial IB de F, 2004, pp. 199-220. 34 De Jure 9 prova 2.indd 34 11/3/2008 16:21:10 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2.1 En el proceso de criminalización primaria o creación de la ley 2.1.1 A través del referendo, mecanismo de democracia directa, el gobierno de Alvaro Uribe Vélez quiso reformar la constitución para criminalizar la tenencia o porte de droga para el consumo personal (Dosis personal)37. Ante el fracaso rotundo de esta iniciativa, el mismo gobierno, promueve la reforma a través del Congreso, presentando una iniciativa de Acto Legislativo en los mismos términos38. Se vio obligado a acudir a tales procedimientos, por cuanto la Corte Constitucional colombiana había declarado la inexequibilidad de las normas que criminalizaban dicha conducta, por cuanto comportaba, entre otras cosas, una violación al derecho constitucional del libre desarrollo de la personalidad39. 2.1.2 Con el pretexto de la eficacia en la lucha contra el “terrorismo” se produjo una reforma constitucional para otorgarle competencia a la fuerza pública (ejército y policía), para practicar allanamientos (registros domiciliarios), o la interceptación de comunicaciones (teléfono, correo, etc.), sin previa orden judicial. 2.1.3 La política de “seguridad democrática” del actual gobierno, tiene como eje la creación institucional de una “red de informantes” entre la población civil - que asciende al millón de personas-, y retribuciones económicas y beneficios judiciales para quienes se conviertan en “colaboradores de la justicia”, entre los cuales tienen un papel protagónico los “reinsertados” y/o “desmovilizados” de los grupos paramilitares y de la insurgencia40. 37 Ley 796 de 2003, art. 16. 38 Entre los argumentos que se aducen, es que ello es necesario para ponerle límites al narcotráfico; es un “clamor de las madres de familia” la aprobación de la reforma, ante “la angustia que está viviendo la familia colombiana, viendo como sus niños y adolescentes se van por el camino de la droga”; la mayoría de los crímenes se cometen en Colombia bajo la influencia de estupefacientes. Cfr. El Tiempo, Mayo 3 de 2007, “Por aprobación de la penalización de la dosis personal de drogas, uribistas se dividieron”. 39 Sentencia C-221 de 1994, magistrado ponente, Dr. Carlos Gaviria Díaz, sentencia que declaró la inexequibilidad del literal j) del artículo 2o. y artículo 51 de la ley 30 de 1986. El argumento es el siguiente: “..los asuntos que sólo a la persona atañen, sólo por ella deben ser decididos. Decidir por ella es arrebatarle brutalmente su condición ética, reducirla a la condición de objeto, cosificarla, convertirla en medio para los fines que por fuera de ella se eligen (…). Reconocer y garantizar el libre desarrollo de la personalidad, pero fijándole como límites el capricho del legislador, es un truco ilusorio para negar lo que se afirma. Equivale a esto: “Usted es libre para elegir, pero sólo para elegir lo bueno y qué es lo bueno, se lo dice el Estado”. En la providencia, se aducen otras razones: el derecho no puede inmiscuirse en asunto de la moral; la protección de la salud individual no es deber jurídico; el castigo del drogadicto es contraproducente; el individuo no es instrumento de la comunidad; no puede haber discriminación a favor de otras sustancias con efectos similares; ante la ineficacia e inconveniencia del castigo es mejor la educación. Consúltese la sentencia en: http://www. constitucional.gov.co/corte 40 El régimen de desmovilización individual esta contenido en la Ley 418 de 1997, la cual fue reglamentada por el Decreto 128 de 2003, cuyo artículo 9º establece que “el desmovilizado que voluntariamente 35 De Jure 9 prova 2.indd 35 11/3/2008 16:21:11 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS En un escenario de conflicto armado, la instrumentalización de estos dispositivos, genera inseguridad para todos, incluyendo los funcionarios de organismos estatales, que como las Procuradurías Locales, tienen que velar por los derechos ciudadanos. Con motivo de una marcha en la ciudad de Medellín, organizada por el sindicato de educadores, con la participación de las universidades públicas, en la que se denunciaba la política pública del gobierno nacional de reducir de manera ostensible los recursos para la educación - siguiendo directrices del FMI -, para dedicarlos a la guerra y a la amortización de la deuda externa, un paramilitar, supuestamente desmovilizado, tomaba fotos a la marcha, lo cual obligó a una intervención de funcionarios de la Procuraduría local, que lograron que dicha persona se identifira. La noticia es dada en los siguientes términos: Fuertes señalamientos contra la Unidad Permanente de Derechos Humanos (UPDH) de la Personería de Medellín hizo este martes Guillermo González, alias Memin, un reinsertado del bloque Cacique Nutibara de las Autodefensas Unidas de Colombia, momentos después de ser descubierto tomando fotografías a los participantes de la marcha de protesta programada por la Asociación de Institutores de Antioquia (Adida). A voz en cuello y frente a transeúntes y policías, alias Memín aseveró repetidamente que en esa Unidad “había una célula guerrillera” y que había que acabar con “todos esos terroristas guerrilleros” Las imputaciones del reinsertado, quien es un reconocido líder de la Comuna 8 e integrante de la Corporación Democracia, que aglutina a por lo menos 3.000 desmovilizados de los bloques Cacique Nutibara y Héroes de Granada de las Auc, fueron literalmente “gritadas” luego de ser requisado por una agente de Policía y por un funcionario de derechos humanos de la Personería, tras ser descubierto mientras tomaba fotografías a los marchantes de manera furtiva”41. desee hacer un aporte eficaz a la justicia entregando información conducente a evitar atentados terroristas, secuestros o que suministre información que permita liberar secuestrados, encontrar caletas de armamento, equipos de comunicación, dinero producto del narcotráfico o de cualquier otra actividad ilícita realizada por organizaciones armadas al margen de la ley, de conformidad con las disposiciones legales vigentes o la captura de cabecillas, recibirá del Ministerio de Defensa Nacional una bonificación económica acorde al resultado, conforme al reglamento que expida este Ministerio”. Cfr. El Tiempo. “Delación por recompensas, 1.136 Ex ‘Paras’ y Exguerilleros han suministrado información. El ‘negocio’ de los desmovilizados”, Bogotá, 10 abril de 2005. Aquí se recoge la valoración positiva del gobierno sobre esta política: “En la desmovilización un elemento muy importante es ayudarnos a restablecer el imperio de la ley; es así como ofrecemos unas bonificaciones a los desmovilizados que se entreguen con material de guerra; también hay bonificaciones para aquellos que con su información nos ayuden a rescatar secuestrados, a localizar caletas, etcétera”, explica el viceministro de Defensa, Andrés Peñate. 41 Véase: www.ipc.org.co. “Reinsertado sindicó a Unidad de la Personería de «célula guerrillera». Consultada el 06/13/07. 36 De Jure 9 prova 2.indd 36 11/3/2008 16:21:11 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2.1.4 En cuanto al diseño de modalidades punitivas, la seguridad es un recurrente pretexto, para promover la instauración de la pena de muerte, la prisión perpetua o la fijación de máximos de la pena privativa de la libertad que la hacen perpetua. Todo ello con el fin de responder al clamor de la indignación pública cuando acontecen hechos graves que tienen amplio despliegue mediático (v.gr. agresión y muerte de niños), o para responder a reclamos de grupos sociales especialmente victimizados y con poder político y económico (v.gr. secuestro). Es importante reparar en los argumentos: La eficacia de la pena, que da seguridad de la no repetición del hecho; la irrecuperabilidad del sujeto delincuente, convierte en contraproducente una intervención de contenido “resocializador”; el delincuente no merece consideración alguna, porque quien viola los derechos humanos, no tiene derecho a que se le respeten. Es obvio que en todas esas iniciativas, y con mayor razón los argumentos, comportan una transgresión a la dignidad humana, esto es, a la concepción de la persona como fin en sí mismo, no instrumentalizable por razones de interés general, no erigible en simple medio para fines institucionales, por muy loables que sean42. La dignidad humana es un valor, columna vertebral del Estado Constitucional de Derecho, y por tal motivo, es una talanquera, un límite infranqueable para cualquier poder político. En razón de la expresa prohibición constitucional de ambas modalidades punitivas, y el hecho de que el DIDH es parte del bloque constitucional, esto es, incorporado al derecho interno, todas esas iniciativas no han logrado materializarse. Pero lo anterior, no ha sido suficiente para que en Colombia, a la pena privativa de libertad se le hayan impuesto topes máximos, que la equiparan a una pena perpetua. En esta materia hay que recuperar a Beccaria, quien desde hace 200 años expresaba que la eficacia disuasoria de la pena no la determina la severidad sino la certeza de su imposición. 2.2 En el proceso de adjudicación judicial 2.2.1 Con el pretexto de la seguridad, la detención preventiva (medida cautelar de carácter personal), se convierte en la regla en vez de tener un carácter excepcional; 42 “La protección de la persona y sus derechos básicos no es, se repite, cuestión de interés individual (o individualista), sino también de preponderante interés social en una comunidad democrática. Es claro que al enfatizar este interés bifronte del Derecho penal, lo que se hace es señalar el primado de los derechos individuales sobre cualquier otra pretensión comunitaria (…) Un buen derecho penal debe hallar siempre equilibrio –históricamente variable, pero inclinado siempre a la tutela preponderante de la persona –entre intereses antagónicos pero esenciales concomitantes de la defensa social (…) y de la protección de la persona en su dignidad y en el ámbito de sus derechos fundamentales, también y en primer lugar contra las intervenciones arbitrarias o irracionales del poder institucional (protección de la persona frente al poder punitivo del Estado, que desde luego es también un interés social de primer plano”. Juan Fernández Carrasquilla. Derecho Penal Liberal de Hoy. Introducción a la dogmática axiológica jurídico penal, Ediciones Jurídicas Gustavo Ibañez, Bogotá, 2002, pp. 256-258. 37 De Jure 9 prova 2.indd 37 11/3/2008 16:21:11 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS y tan grave como esto, se le convierte en pena anticipada, con las mismas funciones que hoy son hegemónicas, esto es, la inocuización y la prevención general positiva y negativa. Es recurrente que a través de informantes, sujetos que “profesionalmente” sirven a los organismos de seguridad y a la misma fiscalía, que derivan su sustento de señalamientos, se acuse a personas respecto de las cuales el poder tiene interés de inocuizar (v.gr. defensores de derechos humanos, dirigentes políticos, populares, sindicales, indígenas, estudiantiles, etc), de tener militancia en organizaciones rebeldes o insurgentes. De esta forma la acusación y/o la detención preventiva subsecuente, cumple las siguientes funciones: Se estigmatiza al acusado o detenido y a las entidades u organizaciones a las cuales éstos pertenecen; los acusados pierden la confianza de la comunidad, que los mira con recelo, con prevención, y se deslegitiman sus luchas y reinvidicaciones; se rompe el tejido social de la organización y de la misma comunidad en la cual operan, por el temor de las bases a ser judicializadas; en momentos coyunturales - v.gr. negociación colectiva, o un reclamo de una política pública-, se pierde la fuerza, se merma eficacia por el cercenamiento de los liderazgos. Y como todo estigma tiene la tendencia a perpetuarse, no obstante que la decisión judicial posterior declare la inocencia del acusado, siempre queda la duda, con lo cual se hace víctima del sistema, vulnerable a prácticas punitivas de escuadrones de la muerte, de los paramilitares, o fuerzas institucionales encubiertas (derecho penal subterráneo). No queda otro camino que el exilio o el desplazamiento forzado interno, con bajo perfil. Esta tesis tiene corroboración en lo denunciado por investigadores que se han ocupado de manera específica del tema: Es de público conocimiento que la mayor parte de estas detenciones son arbitrarias, pues se realizan con base en procedimientos de justicia autoritaria intrínsecamente ajenos a las garantías procesales de un Estado democrático, y en muchos casos ha generado nuevas situaciones de desplazamiento forzado, ya que muchas de las personas detenidas han recuperado la libertad por falta de pruebas, pero son estigmatizadas públicamente, por lo cual carecen de garantías mínimas para regresar a sus regiones, donde son señaladas y perseguidas por los grupos armados, especialmente por los paramilitares.43 43 Codees. “Profundización de la guerra”. En AA.VV. Reelección: El embrujo continúa, Plataforma Co- 38 De Jure 9 prova 2.indd 38 11/3/2008 16:21:11 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2.2.2 Las Capturas masivas: un dispositivo bélico, que cumple funciones no declaradas como pena anticipada. El fenómeno de la captura y la detención preventiva, pueden ser abordadas desde dos enfoques: El primero, es el dogmático jurídico, hegemónico en los estudios de derecho, conforme al cual estas instituciones deben leerse, interpretarse o comprenderse a partir de las justificaciones que la constitución y/o la ley procesal prescriben para su existencia. La captura, por ejemplo, se asume como medida preventiva, para personas aprehendidas en flagrancia de un delito, o respecto de las cuales existe cierta probabilidad de haber participado en el mismo, con el fin de lograr su identidad, darle oportunidad de defenderse a través de su versión sobre los hechos imputados, precaver que siga delinquiendo o evitar respuestas informales arbitrarias, abusivas y desproporcionadas (justicia por la propia mano, v.gr. linchamientos), previa valoración que realiza un juez sobre su conveniencia y necesidad. El segundo, es el enfoque sociopolítico, que en escenarios de guerra como la que vive Colombia, permite comprender la captura y la detención preventiva como dispositivos de guerra, es decir, armas o instrumentos bélicos para combatir a los enemigos o facilitar los triunfos. Obviamente, desde este punto de vista, la investigación científica trata de conocer las funciones latentes de los dispositivos, las cuales, por razones obvias, no son las declaradas por la ley o por el discurso oficial. En Colombia, el gobierno del presidente Uribe Vélez, recientemente reelegido, impuso como principal tema de su plan de gobierno derrotar a la insurgencia, representada por las Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC-EP) y el Ejército de Liberación Nacional (ELN). Para ello implementó el programa de “Seguridad democrática”, que comporta un significativo incremento del presupuesto estatal para lombiana, Derechos Humanos y Desarrollo, Bogotá, D.C., 2004, pp. 178-179. De otra parte, “13 Organizaciones No Gubernamentales (ONG) de Estados Unidos, envían una carta al presidente Alvaro Uribe, en la cual expresan su preocupación “por la tendencia de individuos que luego de ser detenidos por las Fuerzas de Seguridad y liberados posteriormente ante la falta de evidencia, son asesinados por miembros de grupos ilegales posiblemente como consecuencia de falsas acusaciones”. “Organizaciones de E.U. critican política de detenciones del gobierno de Álvaro Uribe”, El Tiempo, noviembre 3 de 2004. El Colectivo de Abogados José Alvear Restrepo, agregaría: “(....) las consecuencias se extienden de forma alarmante a otras expresiones de violaciones de los derechos humanos como lo son el estado de inseguridad jurídica y zozobra; la tortura, el desplazamiento forzado; los asesinatos, desapariciones, etc (…), desmembración del tejido social, puesto que las personas que han vivido la experiencia de una detención, ya sea de manera directa (detenido) o indirecta (familiares, amigos), suelen alejarse de las diversas organizaciones sociales por temor a ser procesados, perseguidos, amenazados, desaparecidos y/o asesinados”. Corporación Colectivo de Abogados “José Alvear Restrepo” y Fundación Comité de Solidaridad con los Presos Políticos. “¿Cacería de brujas? Detenciones masivas y seguridad democrática”. En: AA.VV. Reelección: El embrujo continúa, Plataforma Colombiana, Derechos Humanos y Desarrollo, Bogotá, D.C., 2004, p. 189. Véase también: “Con la lápida en la espalda”. Revista Semana, 25 septiembre de 2004. 39 De Jure 9 prova 2.indd 39 11/3/2008 16:21:12 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS la guerra, la ampliación del número de efectivos del ejército, la modernización del equipo militar, la especialización de contingentes, el comprometer a la población civil en el conflicto armado, con el argumento que nadie puede ser neutral en su lucha contra el “terrorismo”, etc. Dentro de este orden de ideas, uno de los problemas que el gobierno colombiano ha pretendido confrontar, son las territorialidades bélicas, esto es, parcelas concretas del territorio nacional en las que no solo hace mucho tiempo hay carencia de presencia estatal, sino que las autoridades reales, el Leviatán, lo han sido las organizaciones guerrilleras. En este contexto es en el que se han producido las capturas masivas, que han tenido como afectadas, personas residentes en dichos territorios, cuya recuperación pretende lograr el gobierno nacional. Una de las funciones de dichas capturas, es “privar” a los insurgentes del apoyo de la población civil, bien sea que este se les brinde por simpatía, temor o coacción, obligando a los pobladores a sopesar los nuevos costos que representa su posible judicialización frente a los que pueden tener origen en los grupos insurgentes, y también como forma de quebrar la confianza en la seguridad brindada por el actor armado ilegal La estrategia de contrainsurgencia de las fuerzas armadas ha consistido desde hace tiempo en minar lo que consideran que es un apoyo constante de la población civil a la guerrilla. Esta estrategia, basada en el concepto de “quitar el agua al pez”, considera a las víctimas civiles del conflicto armado, incluidas las que entran inadvertidamente en contacto con los grupos armados de oposición, no como víctimas inocentes sino como parte del enemigo.44 De otra parte, las capturas masivas, con la violencia que implican y la estigmatización de la que parten y la que recrean45, pueden llegar a ser vistas –por gobernantes, 44 Amnistía Internacional. ¿Seguridad a qué precio? La falta de voluntad del gobierno para hacer frente a la crisis de derechos humanos, diciembre de 2002. “La estrategia del Ejército de tratar de cortar el abastecimiento de la guerrilla ha afectado en algunos casos a la población civil, por la estigmatización de que fue objeto, así como por acciones de atropellos, saqueos y amenazas”. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Informe anual 2003, diciembre 29 de 2003, cap. IV, párrafo 62. 45 “En Colombia, las detenciones arbitrarias se han convertido en una práctica generalizada, masiva y sistemática. Durante el período comprendido entre el 7 de agosto de 2002 y el 30 de junio de 2006, por lo menos 6.912 personas fueron detenidas arbitrariamente. Eso significa que cada día, en promedio, fueron detenidas arbitrariamente casi cinco (4,7) personas. En relación con las cifras correspondientes a los seis años precedentes, durante la administración del presidente Álvaro Uribe Vélez las detenciones arbitrarias se incrementaron en un 240,9%”. Gabriel Bustamante Peña. “Los falsos positivos: ni falsos ni positivos”. En: Caja de Herramientas. Semanario Virtual, 0041. Bogotá, 1º de diciembre de 2006. 40 De Jure 9 prova 2.indd 40 11/3/2008 16:21:12 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS políticos y la ciudadanía- como una manera de satisfacer demandas de “seguridad”. La judicialización de personas –a la postre liberadas en su gran mayoría-, la espectacularidad de los operativos, la presentación pública a través de los medios masivos de comunicación “de milicianos y subversivos”, que han sembrado el terror, logra en algunos auditorios –locales y nacionales- los siguientes efectos: a) aceptar plenamente las declaraciones gubernamentales según las cuales el estado ha venido obrando con absoluta eficacia y exterminó el mal de raíz; b) generar una sensación de seguridad, en cuanto ese “foco” de criminalidad ha sido definitivamente exterminado; c) aceptar finalmente que para enfrentar la “inseguridad” y la impunidad se justifica cualesquier restricción, flexibilización o neutralización de los derechos y de sus garantías46. En este sentido las capturas masivas serían una típica expresión de populismo punitivo y darían cuenta, en una versión muy colombiana, de esas transformaciones de la penalidad y las formas de control acaecidas en las últimas décadas del siglo veinte. Proteger al público se ha convertido en el tema dominante de la política penal [...]. En estas cuestiones el público parece estar (o se lo presenta como que está) decididamente en contra de correr riesgos e intensamente preocupado por el peligro de ser dañado por delincuentes descontrolados. Ya no parecen tener un lugar tan destacado en la preocupación del público el riesgo de que representaban las autoridades estatales sin control, el poder arbitrario y la violación de las libertades civiles 47. 2.3 En el proceso de ejecución penal y en la política pospenitenciaria 2.3.1 Con el pretexto de salvaguardar el orden y la seguridad, en el ámbito de la ejecución penal, la pena privativa de la libertad se está legitimando en la prevención especial negativa (inocuización), testimonio de lo cual son las cárceles de máxima seguridad. Y si ayer, en el marco de la ideología resocializadora, las políticas públicas en materia 46 “(…) es el viejo argumento republicano según el cual para preservar las libertades hay que restringirlas, y para garantizar la estabilidad democrática se deben suspender, neutralizar, minimizar o ignorar los derechos humanos y ciudadanos”. María Teresa Uribe. “El Republicanismo patriótico”, Introducción al libro Reelección: El embrujo continúa. Segundo año del gobierno de Alvaro Uribe Vélez, Plataforma Colombiana Derechos Humanos y Desarrollo. Bogotá, D.C. 2004, p. 15. Véase también: Perfecto Andrés Ibáñez. “Viaje a la prehistoria de las garantías: la ‘modernización’ de la ley Corcuera”. En:Jueces para la Democracia, Nº 13, Madrid, 1991, pp. 4-6. 47 David Garland. La cultura del control. Trad. Máximo Sozzo. Barcelona, Gedisa, 2005, p. 47-48. Véase también: Elena Larrauri. “Populismo punitivo… y cómo resistirlo”. En: Jueces para la Democracia, Nº 55. Madrid, marzo de 2006, pp. 15-22; Cristina De la Torre. Álvaro Uribe o el Neopopulismo en Colombia. Medellín, La Carreta, 2005. 41 De Jure 9 prova 2.indd 41 11/3/2008 16:21:12 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS pospenitenciaria, privilegiaban estrategias reintegradoras48, ahora las políticas públicas tienen un contenido manifiestamente de control social, e incluso, no se descartan medidas de naturaleza punitiva. De manera paradigmática, en lo relacionado con la delincuencia sexual o la que tiene como víctimas a los niños, el Concejo Municipal de la capital del país – Bogotá-, legisló obligando al gobierno municipal a construir “Muros de la infamia”, en la que en diversos lugares de las ciudades, se publican vallas grandes, con los nombres y fotografías de las personas condenadas por abuso contra niños. Para iniciativas de este orden, también se aducen razones de seguridad, que terminan aniquilando derechos fundamentales de las personas, que no obstante haber ya cumplido con la pena impuesta judicialmente, se les irroga esta nueva pena de carácter infamante. Según la concejal Gilma Jiménez, una de las impulsoras del proyecto, “no solo para darles un escarnio público, sino para que los habitantes de las distintas localidades sepan quiénes son estos delincuentes y tengan cuidado con sus hijos cuando estos salgan de la cárcel”. Jiménez agrega que con este proyecto se le daría cumplimiento al Código de la Infancia y la Adolescencia, que estará en plena vigencia en mayo, y que le da vía libre a la publicación de las fotos y los datos de los condenados por delitos sexuales contra menores de edad, como una forma 48 V.gr., con vinculación laboral o la capacitación para que el ex -condenado tuviere una fuente autónoma de ingresos, su articulación a su grupo familiar y social, y el trabajo con la comunidad más cercana para contrastar el estigma y el sentimiento de desconfianza de ésta respecto aquél, etc. 42 De Jure 9 prova 2.indd 42 11/3/2008 16:21:12 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS de reparación. Jiménez agrega que “el proyecto de acuerdo también incluye que se pongan los datos de estas personas en volantes, que se repartirán cada tres meses en centros de alta afluencia masiva de público. Y dos veces al año se incluirá la información en los recibos públicos domiciliarios”49. Dentro de muy poco es probable que se implementen estrategias actualmente vigentes en los Estados Unidos, consistentes en la disponibilidad de una base de datos, asequible para todos a través de Internet, en la cual están relacionados los nombres y las direcciones actuales (Estado, ciudad, barrio), de las personas que han sido condenadas por delitos, de manera particular, de contenido sexual. Pero a estas hay sumar otras iniciativas, como los controles permanentes sobre personas, gracias a los avances técnicos, como la instalación de dispositivos electrónicos (microchips, collares, pulseras, etc.), que transfieren información satelital y que permiten un registro de donde se encuentra la persona en cada momento. Ello se ha prohijado de manera expresa por el Código de Procedimiento Penal en el caso colombiano, para el control de personas con detención domiciliaria, prisión domiciliaria (casa por cárcel), libertad condicional. Y para los trabajadores colombianos que ingresan legalmente a los Estados Unidos, para cumplir actividades laborales de manera temporal. Estas son también iniciativas, inspiradas en el populismo punitivo, esto es, hacer proselitismo o marketing político, con políticas de claro contenido punitivo, aduciendo la salvaguarda de la “seguridad” colectiva, y con desprecio absoluto de derechos fundamentales de las personas objeto de las mismas. Entre las observaciones de contenido crítico que cabe formularle a los “muros de la infamia”, podemos aducir las siguientes: a) la picota pública, es un trato cruel e inhumano; b) la vindicta, la venganza, está adquiriendo de esta forma carta de ciudadanía; c) el INRI, el estigma, en sociedades proclives a “justicia por mano propia”, propicia formas punitivas informales, complementarias a la pena legalmente dispuesta; d) si la resocialización es un fin legítimo de la pena, que condiciona su calidad y cantidad, resulta inadmisible esta política, porque el estigma que se impone, el cual pretende perpetuarse más allá de la pena, limita seriamente e incluso aniquila, oportunidades de reintegración social; e) hay otros hechos delictivos tanto o más 49 El Tiempo, Bogotá, abril 11 de 2007, “Piden publicar fotos y nombres de condenados por abuso sexual a menores en muros y vallas, en Bogotá”. La norma fue aprobada en los siguientes términos: “La norma aprobada por el Concejo en abril pasado ordenaba a las autoridades locales a publicar cada seis meses en los medios de comunicación las fotos de los violadores condenados por la justicia. Asimismo, cada tres meses los recibos de los servicios públicos deberán ir acompañados de las fotos de los violadores, mientras las carteleras estarían ubicadas en zonas de alto flujo de personas”. El Tiempo, Junio 20 de 2007 “Fallan tutela contra acuerdo que busca publicar en muros fotos de violadores de niños en Bogotá”. 43 De Jure 9 prova 2.indd 43 11/3/2008 16:21:13 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS graves que los que dieron lugar a los muros de la infamia, - v.gr genocidio, homicidio, tortura, desaparición forzada, corrupción, etc -, que si van a ser también comprendidos por la política de colocarlos en la picota pública, los espacios públicos de las ciudades, localidades, y poblados, no darían abasto; f) es una falacia que ello contribuya a resarcir a la víctima. 2.3.2 Finalmente, en el ámbito carcelario, en virtud de la hegemonía del mercado lo cual es propio del modelo económico neoliberal, se viene produciendo la privatización del sistema, como parte, de lo que denominara Nils Christie, “la industria del control del delito”. Ello agudiza el conflicto entre los derechos y las garantías de los detenidos y condenados, con los intereses de lucro propio de los operadores del sistema. “Controlar a partes de la población ociosa en forma directa y crea nuevas tareas para la industria y sus propietarios. Desde este último punto de vista, los reclusos adquieren un papel nuevo e importante: se convierten en la materia prima de la industria del control del delito “50. La privatización también se manifiesta en la financiación, construcción y administración de las unidades carcelarias, en el equipamiento (v.gr sistemas de vigilancia electrónica, la pulsera carcelaria), y en el caciquismo, esto es, el poder delegado por la administración carcelaria en personas reclusas, con la responsabilidad de garantizar la “disciplina” carcelaria, recibiendo como contraprestación el monopolio del mercado de algunas ilegalidades (v.gr. prostitución, la droga, el alcohol, etc.)51. 2.4 ¿Un nuevo protagonismo de la víctima o su instrumentalización? La víctima paulatinamente ha venido ganando protagonismo en el escenario del proceso penal, de tal modo que del reconocimiento de su derecho a la indemnización económica por los daños52, se ha pasado a reconocerle de manera explícita los derechos a la verdad y la justicia53. De esta tendencia, la mayor observación crítica se 50 Nils Christie. La Industria del control del delito. ¿La nueva Forma del holocausto? Buenos Aires, Editores del Puerto s.r.l.,1993, p. 123. 51 La privatización de la seguridad, es un tema muy vasto, que se corresponde con la representación del ciudadano como garante de su seguridad, dado que ésta es una mercancía más, asequible sólo para quienes disponen de recursos para adquirirla. Manifestaciones de este enfoque teórico, son: la policía privada, los paramilitares, los escuadrones de la muerte, las milicias y el mercenarismo en las guerras actuales. 52 Cfr. En tal sentido limitativo, Corte Constitucional, sentencias C-293 de 1995 y SU-717 de 1998. 53 “la víctima o perjudicado por un delito no sólo tiene derecho a la reparación económica de los perjuicios que se le hayan causado, trátese de delitos consumados o tentados, sino que además tiene derecho a que a través del proceso penal se establezca la verdad y se haga justicia”. Corte Constitucional, sentencia C-228 de 2002. Sobre los derechos de la víctima, en el sistema penal en conjunto, siguiendo este enfoque, cfr. Corte Constitucional, sentencias C-277 de 1998, C-1149 de 2001, C-740 de 2001, C-1149 de 2001, T- 44 De Jure 9 prova 2.indd 44 11/3/2008 16:21:13 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS encuentra en que la víctima se ha instrumentalizado político criminalmente ― tanto en la creación de la ley, como en el juzgamiento y en la ejecución de la pena―, en un juego de suma cero, para negar o limitar derechos fundamentales de los procesados y de los condenados. El nuevo imperativo político es que las víctimas deben ser protegidas, se deben escuchar sus voces, honrar su memoria, deben poder expresar su ira y debe haber respuestas s sus temores. La retórica del debate penal frecuentemente invoca la figura de la víctima [...] como alguien que tiene derechos, que debe poder expresar su sufrimiento y cuya seguridad en el futuro debe ser garantizada. Toda atención inapropiada de los derechos o del bienestar del delincuente se considera como algo que va en contra de la justa media de respeto por las víctimas. Se asume un juego político de suma cero, en el que lo que el delincuente gana lo pierde la víctima y estar «de parte» de las víctimas automáticamente significa ser duro con los delincuentes 54. En el Estado constitucional de derecho, obviamente, la víctima es titular derechos de diverso orden, y el reconocimiento y tutela de los mismos, es baremo para medir la autenticidad de tal régimen político. Pero lo que sí rechazamos, es que éstos se instrumentalicen para torpedear los derechos de los procesados y de los condenados. La referencia a los muros de la infamia, es una muestra de dicho procedimiento. Los ejemplos, para el caso colombiano, podrían ser muchos más, pero el escaso tiempo disponible, no me permite abordarlos. Finalmente, como advertí al comienzo, esta conferencia es apenas una referencia muy breve al sistema penal colombiano. Procuré dar cuenta de algunas tendencias político-criminales, que pretenden hegemonizarse en diversas latitudes. Espero que su abordaje les sirva para encontrar un registro de las mismas en su país, y la valoración crítica que apenas he bosquejado, sea un faro que los incentive a su profundización y análisis, no olvidando la especificidad de su contexto. 622 de 2002, C-805 de 2002, C-916 de 2002 , C-570 de 2003, SU-1184 de 2001 y C-899 de 2003. 54 David Garland. La cultura del control. Crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Traducción de Máximo Sozzo. Barcelona, Gedisa, 2005, pp. 46-47. 45 De Jure 9 prova 2.indd 45 11/3/2008 16:21:13 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Bibliografía citada AGUILERA P., Mario “Justicia guerrillera y población civil, 1964-1999. En: El Caleidoscopio de las justicias en Colombia. 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AÇÃO MONITÓRIA – PRIMEIRAS IMPRESSÕES APÓS A LEI Nº 11.232/05 * RODRIGO MAZZEI Professor da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES Professor do Instituto Capixaba de Estudos – ICE Vice-Presidente do Instituto dos Advogados do Estado do Espírito Santo – IAEES Mestrando pela PUC – SP Advogado em Vitória-ES e Brasília-DF HERMES ZANETI JÚNIOR Professor de Processo Civil (graduação e pós-graduação) da UFES Mestre e Doutor pela UFRGS Membro do Ministério Público-ES SUMÁRIO: 1. O perfil da ação monitória com base na Lei nº 9.079/95. 2. Breve comparativo. 3. Alteração centrada no art. 1.102-C. 4. Novo trânsito executório (Livro I, Título VIII, Capítulo X, do reformado Código de Processo Civil). 5. Impugnação na fase propriamente executiva: novo perfil (art. 475-L). 6. Execução contra a Fazenda Pública. Título executivo obtido em ação monitória (cabimento dos embargos à execução: art. 741 do CPC). 7. Ação Monitória e a formação de título para entrega de coisa fungível ou de determinado bem móvel (parte final do art. 1.102-C). 8. Referências bibliográficas. 1. O perfil da ação monitória com base na Lei nº 9.079/95 Durante quase dez anos de vigência da Lei nº 9.079, de 14.07.1995, que introduziu os arts. 1.102-A, 1.102-B e 1.102-C no Código de Processo Civil, houve intensa discussão no âmbito da ação monitória, sendo o debate doutrinário, diante da economia do legislador na disposição da matéria, relevante para a fixação dos contornos da figura jurídica em comento. ____________________________ * Os autores do presente texto são responsáveis pelos comentários ao art. 1.102-c do CPC, em obra coletiva. (OLIVEIRA, 2006), cujo foco é a Lei nº 11.232/05. 50 De Jure 9 prova 2.indd 50 11/3/2008 16:21:14 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Em resenha, com o advento da ação monitória, o credor munido de prova escrita – mas sem eficácia executiva – tem a possibilidade de ajuizar demanda de rito bem singular, visando obter, de forma abreviada, bilhete de trânsito para adentrar na fase executiva, daí a doutrina, a exemplo de Dinamarco (2003, p. 740), incluí-la entre os chamados processos diferenciados (tutela diferenciada em busca da maior efetividade processual).1 Para tanto, na parte inicial da ação monitória, o ato judicante liminar possui natureza ímpar em nosso sistema processual. Com efeito, a decisão judicial liminar2, ao determinar a expedição de mandado injuntivo3, fica, em parte, como se em condição suspensiva, na medida em que seu efeito total (e final) depende de ato futuro do réu da ação monitória4, que poderá: reconhecer o direito do credor (ficando 1 Vale lembrar que ação monitória está em total sintonia com as recentes reformas constitucionais da EC 45/05, principalmente a busca pela duração razoável do processo (art. 5º, LXXXVIII, CF/88). 2 O conceito de decisão liminar que utilizamos é puramente topológico, isto é, no início do processo, no seu limiar. No sentido, com boa pesquisa doutrinária, confira-se Neto (2002, p. 7-16). Assim, a expressão não pode ser utilizada como sinônimo de tutela de urgência, até porque a última é gênero da tutela de urgência liminar, isto é deferida no ‘início do processo. Segundo Lamy (2004, p. 39): “A tutela jurisdicional terá natureza urgente quando cuidar de situações em que determinado pronunciamento jurisdicional necessitar ser proferido em curto período de tempo, através de cognição sumária, por meio de técnicas antecipatórias ou assecuratórias, dada a possibilidade de dano ao direito material envolvido”. 3 A decisão que determina a expedição do mandado injuntivo, pela sua natureza muito própria, não se encaixa com exatidão em nenhum dos conceitos do art. 162 do Código de Processo Civil (que também foi alterado pela Lei nº 11.232/05, em seu § 1º, confira-se: “Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos. § 1º. Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei. § 2º. Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente. § 3o. São despachos todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma. § 4º. Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessários). Há grande discussão sobre a natureza jurídica da decisão liminar que agasalha a ação monitória brasileira. Entendendo se tratar de sentença,Cruz e Tucci (2001, p. 47) afirma que a positiva decisão liminar em sede de ação monitória tem “[...] natureza de um accertamento com attitudine al giudicato, em tudo idêntico àquele contido em uma sentença definitiva de condenação emitida ao final de um processo comum de cognição” (vide ainda, na mesma obra, p. 91, em que o autor ratifica a fala inicial). Com posição assemelhada, Bermudes (1996, p. 214) entende que se cuida de “[...] sentença condenatória condicional (ainda que com a forma de despacho ou decisão interlocutória)” e Nery Jr. (1996, p. 229-230). Com outro raciocínio, repudiando a idéia de equiparação da decisão liminar monitória às sentenças condenatórias, Talamini (2001, p. 94) leciona: “Todos os provimentos emitidos no curso do processo e que não afastam sua continuidade excluem-se da categoria de ‘sentença’- e isso por força do único critério classificatório existente. A definição da ‘essência’ (da ‘ontologia’) da sentença, enfim, se dá exclusivamente através do parâmetro estabelecido em lei. É com base nele que se pode afirmar que a decisão concessiva do mandado não é sentença”. Colhe-se posição, ainda, no sentido de que não se trata de nenhum tipo de ato judicial decisório, identificando o ato judicial que determina a expedição do mandado injuntivo com simples despacho. Nessa linha, Santos (2000, p. 51): “O juiz não sentencia, nada decide, no sentido estrito do termo, porque a transformação do mandado em título executivo, que, na verdade, nada mais é do que o próprio título injuncional, vazado em prova escrita, adquirindo executividade, fica restrita a atividade processual das partes. 4 Bem fundamentado, confira-se Macedo (1999, p. 119). 51 De Jure 9 prova 2.indd 51 11/3/2008 16:21:14 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS isento do pagamento de custas e honorários em caso de pronto pagamento – § 2º do art. 1.102-C do Código de Processo Civil); não apresentar defesa (embargos), não se opondo ao mandado monitório; apresentar defesa (embargos). A decisão (de recepção da ação monitória) não resultará em mandado executivo, obviamente, se houver o adimplemento judicial pelo réu da obrigação reclamada que, inclusive, recebe o prêmio da isenção do pagamento de custas e honorários. De outro giro, a oposição vencedora dos embargos à monitória terá o condão de tornar sem efeito a decisão primitiva (que determinou a expedição do mandado injuntivo), o que, em conseqüência, neutraliza a conversão em mandado executivo. De forma diversa, caso não haja pelo réu o reconhecimento do direito do credor ou não se obtenha resultado favorável ao requerido na apresentação dos embargos, segundo os regramentos da Lei nº 9.079/95, a decisão inicial se aperfeiçoaria, com a constituição, de pleno direito, de título executivo, através da conversão do mandado injuntivo em executivo, prosseguindo-se os atos processuais no desenho contido no Livro II, Título II, Capítulos II e IV, do Código de Processo Civil (caput e parágrafo terceiro do art. 1.102-C). Com outras palavras, se o devedor não apresentar embargos ou, o fazendo, venha ocorrer a rejeição judicial da sua defesa, a pretérita decisão que aceitou a ação monitória, determinando a expedição de mandado injuntivo, consolida-se no plano da formação de um título executivo judicial – deixando para trás qualquer condição –, seguindo-se (na formatação anterior ao texto da Lei nº11.232/05) ao rumo picado do Livro II, Título II, Capítulos II e IV, do Código de Processo Civil. Sem dúvida, como se pode perceber, ação monitória encarta-se no sistema processual como tutela diferenciada, sendo importante observar que existem particularidades que não podem ser renegadas, sob pena de se vulgarizar a dita válvula legal5. 2. Breve comparativo Antes de qualquer aferição mais aguda, faz-se prudente o confronto analítico entre o quadro legal anterior e o posterior à Lei nº 11.232/05, que, como é curial, imprimiu nova redação ao art. 1.102-C. Vejamos: 5 Infelizmente não foi absorvida pela jurisprudência a arquitetura ímpar da ação monitória como tutela diferenciada, o que conspirou, ainda que involuntariamente, para resultado muito aquém do esperado no uso da figura. Próximo, com visão na problemática, Paulo Hoffman (Monitória efetiva ou cobrança especial? Uma proposta para que o processo monitório atinja seus objetivos), afirma que pontos capitais da ação monitória merecem ser revisitados (Repro n. 117, p. 176 et. seq.). 52 De Jure 9 prova 2.indd 52 11/3/2008 16:21:15 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Redação anterior do art. 1.102-C do CPC (Lei nº 9.079/95) Art. 1.102.c - No prazo previsto no artigo anterior, poderá o réu oferecer embargos, que suspenderão a eficácia do mandado inicial. Se os embargos não forem opostos, constituirse-á, de pleno direito, o título executivo judicial, convertendo-se o mandado inicial em mandado executivo e prosseguindo-se na forma prevista no Livro II, Título II, Capítulos II e IV. § 1o Cumprindo o réu o mandado, ficará isento de custas e honorários advocatícios. § 2o Os embargos independem de prévia segurança do juízo e serão processados nos próprios autos, pelo procedimento ordinário. § 3o Rejeitados os embargos, constituir-se-á, de pleno direito, o título executivo judicial, intimando-se o devedor e prosseguindo-se na forma prevista no Livro II, Título II, Capítulos II e IV. Nova redação do art. 1.102-C do CPC (Lei nº 11.232/05) Art. 1.102-C. No prazo previsto no art. 1.102B, poderá o réu oferecer embargos, que suspenderão a eficácia do mandado inicial. Se os embargos não forem opostos, constituir-se-á, de pleno direito, o título executivo judicial, convertendo-se o mandado inicial em mandado executivo e prosseguindo-se na forma do Livro I, Título VIII, Capítulo X, desta Lei. § 1o - sem alteração. § 2o – sem alteração § 3o Rejeitados os embargos, constituir-se-á, de pleno direito, o título executivo judicial, intimando-se o devedor e prosseguindo-se na forma prevista no Livro I, Título VIII, Capítulo X, desta Lei. 3. Alteração centrada no art. 1.102-C Pela manutenção intacta dos arts. 1.102-A e 1.102-B, a reforma legislativa deflagrada pela Lei nº 11.232/05 não alterou a ação monitória na sua parte inicial, mantendo-se as mesmas regulações para fins de obtenção do título executivo judicial.6 Como a 6 Em cochilo do legislador, já que poderia ter resolvido discussões doutrinária, não houve a inclusão do título obtido na ação monitória no rol dos títulos executivos judiciais. A leitura do art. 465-N (que revogou o art. 584 do CPC), segundo perfil impostos pela Lei nº 11.232/05, demonstra tal ‘esquecimento’, confirase: “Art. 475-N. São títulos executivos judiciais: I – a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia; II – a sentença penal con- 53 De Jure 9 prova 2.indd 53 11/3/2008 16:21:15 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS reforma atingiu apenas parte do art. 1.102-C, vê-se que a empreitada do legislador se voltou à parte executiva, ou seja, para relação processual posterior à conversão do mandado monitório em executivo, uma vez que, com a Lei nº 11.232/05, permutou-se o caminho executório do Livro II, Título II, Capítulos II e IV do Código de Processo Civil (previsto na Lei nº 9.079/95), pela trilha do Livro I, Título VIII, Capítulo X, introduzida pelo novel legislativo. 4. Novo trânsito executório (Livro I, Título VIII, Capítulo X, do reformado Código de Processo Civil) Nos termos da parte final do caput do art. 1.102-C e do seu § 3º, qualquer que seja o motivo, ocorrendo a conversão do mandado monitório em executivo, deverão ser seguidas na execução com título obtido em ação monitória as mesmas regras atinentes ao cumprimento da sentença, na conformidade do Livro I, Título VIII, Capítulo X do Código de Processo Civil alterado pela Lei nº 11.232/05. 5. Impugnação na fase propriamente executiva: novo perfil (art. 475-L) No sistema anterior, havia grande discussão se a parte passiva da ação monitória poderia opor embargos à execução. Em síntese, fixaram-se duas indagações: a) O réu regularmente citado da ação monitória que, deixando passar o prazo in albis, não apresentou embargos monitórios, teria a possibilidade de opor embargos à execução? b) O requerido da ação monitória que fez resistência ao mandado injuntivo, através da defesa do caput do art. 1.102-C, poderia opor embargos à execução? Não suficiente o debate sobre a viabilidade dos embargos com ação de defesa incidental à execução iniciada na ação monitória, mesmo para aqueles que respondiam positivamente as questões acima, não havia posição uniforme quanto ao âmbito das matérias que poderiam ser suscitadas no corpo dos embargos à execução. Seria hipótese de cognição plena (art. 745, CPC) ou de cognição limitada (art. 741, CPC)?7 denatória transitada em julgado; III – a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que inclua matéria não posta em juízo; IV – a sentença arbitral; V – o acordo extrajudicial, de qualquer natureza, homologado judicialmente; VI – a sentença estrangeira, homologada pelo Superior Tribunal de Justiça; VII – o formal e a certidão de partilha, exclusivamente em relação ao inventariante, aos herdeiros e aos sucessores a título singular ou universal. Parágrafo único. Nos casos dos incisos II, IV e VI, o mandado inicial (art. 475-J) incluirá a ordem de citação do devedor, no juízo cível, para liquidação ou execução, conforme o caso”. A omissão ora denunciada já foi motivo de crítica anterior, ainda sobre a égide do art. 584 do CPC, consoante reclame de Macedo (1999, p.115-116). 7 A questão, bem intrincada, desafiava discussões de grande profundidade nos Tribunais. Em exemplificação, pode-se tirar o recente julgamento (10/01/2006) da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na apelação nº 70013641477, em que a Desembargadora Elaine Harzheim Macedo 54 De Jure 9 prova 2.indd 54 11/3/2008 16:21:15 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS funcionou como relatora. Da transcrição de parte do voto condutor, extraem-se os fundamentos que dão as fronteiras da discussão: “Cuida-se de embargos à execução baseada em título executivo judicial obtido com fundamento no art. 1.102b do CPC. Vale dizer, o título judicial que ampara a execução não é revestido das mesmas características daqueles arrolados no art. 584 do estatuto processual, pois foi alcançado a partir de duas premissas básicas: a verossimilhança de crédito documentado (no caso, cheque prescrito), conforme art. 1.102a, à qual soma-se o silêncio da parte demandada, conforme art. 1.102c, caput, 2ª parte, ambos do CPC. É da natureza da ação monitória a obtenção de título executivo judicial, absolutamente apto para autorizar a expropriação patrimonial, independentemente da ação sumária que o instrumentaliza. Até aí, nenhuma discussão surge, especialmente nos limites do caso concreto, mostrando-se claro e objetivo o sistema processual no sentido de tutelar créditos verossímeis, aos quais o devedor não se opõe na forma da lei, situação essa que se ajusta à hipótese dos autos relativamente à ação monitória, autos em apenso. Apenas com uma advertência: o título executivo é o mandado judicial de fl. 9 dos autos, pois a ação monitória não se reveste de sentença. O que o estatuto processual não responde com precisão, permitindo, portanto, a maior e mais ampla intervenção do intérprete, é se essa forma sumária de obtenção do título executivo, já esgotada a pretensão monitória (que é meramente a formação do título), autoriza, em sede de execução, a discussão plenária ou a discussão sumária da dívida (conceito de direito material e não processual). A distinção bipartida, assim, reconhecida desde o nascedouro de nosso código, através de embargos sumários (art. 741 do CPC) e embargos plenários (art. 745 do CPC), veio contemplada para atender a taxativa previsão dos títulos judiciais (formados em ações de cognição plenária) arrolados no art. 584 e dos títulos extrajudiciais (formados sem participação da atuação jurisdicional) do art. 585 do codex procedimental, tendo, portanto, inspiração e previsão casuística divorciada da hipótese contemplada pelo art. 1.102b, absolutamente inovadora no ordenamento jurídico pátrio. A questão, por natureza controvertida, por certo não encontra unanimidade nos respectivos enfrentamentos, seja na doutrina, seja na jurisprudência. A exemplo, o 9° Grupo Cível deste Tribunal decidiu em maioria simples, situação análoga para permitir o amplo debate nos embargos à execução, autorizando a discussão de causas extintivas da obrigação anteriores à formação do título mesmo o devedor não tendo se valido dos embargos à monitória do art. 1.102c, caput, 1ª parte, a saber: EMBARGOS INFRINGENTES. EXECUCAO. TITULO DECORRENTE DE MONITORIA ONDE NAO OFERTADA OPOSICAO PRELIMINAR. EMBARGOS. LIMITES. ART. 745, DO CPC. 1. EM EXECUCAO DECORRENTE DE DEMANDA MONITORIA ONDE, NA PRIMEIRO FASE, INERTE O DEVEDOR, ADMITEM-SE EMBARGOS COM DISCUSSAO PLENARIA (ART. 745, CPC). 2. INEXISTENCIA DE COISA JULGADA MATERIAL. 3. SE PARA A RELACAO A MONITORIA, ADMITE-SE QUESTIONAMENTO POSTERIOR ACERCA DA CLDD E EFICACIA DO TITULO QUE A APARELHA, COM MAIS RAZAO PARA COM RELACAO A ESTA, QUE E MINUS, DIVERSO NAO SE HA DE CONSIDERAR. 4. CONCILIACAO DE CERTEZA JURIDICA E ATE MESMO DE CELERIDADE E EFETIVIDADE DA JURISDICAO, INFORMAM O CABIMENTO DE EMBARGOS PLENARIOS NA EXECUCAO DA MONITORIA CONTRA A QUAL NAO OFERTADA OPOSICAO PRELIMINAR. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS, POR MAIORIA”. (Embargos Infringentes Nº 598306942, Nono Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Demétrio Xavier Lopes Neto, Julgado em 20/11/1998). Embora as respeitáveis posições em contrário, tem-se que, entre uma solução alimentada por princípios processuais de natureza formal, onde prevaleçam as regras procedimentais, e um processo que atenda princípios de ampla defesa e contraditório, sem que com isso a parte adversa se veja prejudicada (o debate, mesmo plenário, em sede de embargos, igualmente carece de garantia de juízo e se serve do mesmo procedimento dos embargos sumários), opta-se por essa segunda corrente, admitindo-se, quando o título executivo judicial tiver por amparo o art. 1.102b do CPC agregado pelo silêncio do demandado (art. 1.102c caput, 2ª parte), agora em sede de embargos à execução, a discussão mais ampla, de modo que se atenda, tanto quanto possível, a justiça material do caso concreto, aplicando-se analogicamente não o art. 741, mas o art. 745 do CPC, até porque nenhum deles veio formado para regular esse tipo de título executivo, irrelevante a adoção do procedimento executório que o art. 1.102c, caput, na sua parte final determina (aliás, ao determinar a aplicação dos capítulos II e IV do Título II do Livro II, o texto legal está apenas referindo a aplicação dos arts. 621 a 631, tratando-se de entrega de coisa certa, e dos arts. 646 a 731, se for obrigação de pagar quantia certa, nada referindo sobre o Título III, esse sim destinado aos embargos)”. 55 De Jure 9 prova 2.indd 55 11/3/2008 16:21:15 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Pois bem, pensamos agora, como pensávamos antes, que não estará vedado ao réu da ação monitória apresentar resistência no âmbito da execução do título judicial. Contudo, a discussão acerca dos limites da cognição parece se esvaziar, diante do novo panorama legal, trazido pela aplicação na ação monitória das regras do Livro I, Título VIII, Capítulo X, pois, ao contrário do regramento anterior, não terá o suposto devedor a possibilidade de opor embargos à execução, devendo apresentar a nova impugnação prevista no art. 475-L, que prevê rol taxativo das matérias a serem argüidas pela parte passiva do título executivo, a saber: Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre: I – falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia; II – inexigibilidade do título; III – penhora incorreta ou avaliação errônea; IV – ilegitimidade das partes; V – excesso de execução; VI – qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que superveniente à sentença. § 1º. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. § 2º. Quando o executado alegar que o exeqüente, em excesso de execução, pleiteia quantia superior à resultante da sentença, cumprir-lhe-á declarar de imediato o valor que entende correto, sob pena de rejeição liminar dessa impugnação. 56 De Jure 9 prova 2.indd 56 11/3/2008 16:21:15 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Ademais, pelo disposto no caput do art. 475-M, ao contrário dos embargos à execução, o instituto traçado no art. 475-L não possui efeito suspensivo automático8-9, devendo a suspensão ser pleiteada pelo interessado (leia-se: executado) no bojo de sua impugnação, apontando, nessa peça, que há fundamentação relevante e que, em adição fática, existe risco de intenso dano, com difícil (senão impossível) reparação, caso a execução prossiga. São dois, portanto, requisitos independentes, sendo obtido o efeito suspensivo apenas se houver a soma de ambos no caso concreto. Vale, às claras, a transcrição da norma em tela: Art. 475-M. A impugnação não terá efeito suspensivo, podendo o juiz atribuir-lhe tal efeito desde que relevantes seus fundamentos e o prosseguimento da execução seja manifestamente suscetível de causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação. § 1º. Ainda que atribuído efeito suspensivo à impugnação, é lícito ao exeqüente requerer o prosseguimento da execução, oferecendo e prestando caução suficiente e idônea, arbitrada pelo juiz e prestada nos próprios autos. § 2º. Deferido efeito suspensivo, a impugnação será instruída 8 Segue-se aqui uma tendência já presente, em certa medida, no âmbito dos recursos, em que o efeito suspensivo pode ser automático ou provocado. No efeito suspensivo automático (também chamado de legal – por decorrer simplesmente da lei), os critérios objetivos são fechados, estando estes previamente traçados a exaustão pelo legislador, sem a necessidade de integração (e aferição) de outros dados que não a apresentação sadia do recurso. Assim, o efeito suspensivo será automaticamente alcançado se a interposição recursal estiver hígida e moldada ao desenho previsto na legislação processual (por exemplo, haverá efeito suspensivo legal nas apelações que não são abrangidas pelo rol do art. 520 do CPC, situação não afetada pela Lei nº 11.276/06 que, alterando o art. 518, dispõe sobre a admissibilidade do recurso, e não sobre os efeitos, propriamente dito, do apelo). No efeito suspensivo provocado, diferentemente, não basta apenas a robusta interposição do recurso para se alcançar o efeito suspensivo. Com efeito, além do aviamento do recurso, o interessado é compelido a fazer o requerimento no sentido e ainda demonstrar que estão satisfeitos - no caso concreto - os critérios para a suspensão dos atos de execução (sentido amplo da expressão) desencadeados pela decisão judicial. No caso dos recursos, o efeito suspensivo provocado se justifica pela demonstração do recorrente de bom grau de probabilidade no êxito da sua postulação recursal, sendo necessária a suspensão do ato decisório recorrido pelos efeitos danosos (de difícil reparação) que podem advir da dicção judicante guerreada (basta lembrar do disposto no art. 558 do CPC e no art. 43 da Lei 9.099/95). Trabalha-se no efeito suspensivo provocado com critérios objetivos abertos, sendo necessário o preenchimento destes para a respectiva concessão. Sobre o tema, entre vários, confira-se: Mazzei (2001, p. 128-134); Bermudes (In: MAZZEI 2001, p. 169-73) e Ferreira (2000). Em adaptação, para o efeito suspensivo provocado no espectro da impugnação do art. 475-L, deverá aquele indicado como devedor, em razão do art. 475-M, apresentar pedido expresso ao magistrado, apontando de forma clara os motivos que sustentam sua impugnação detém alto grau de probabilidade vencedora no julgamento do incidente, sendo fundamental a suspensão imediata (ainda que parcial) do prosseguimento da execução, diante da possibilidade de se causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação. A não concessão do efeito suspensivo provocado, previsto no art. 475-M, desafia, a nosso sentir, agravo de instrumento, podendo, em casos extremados, a parte executada se valer de mandado de segurança. 9 Contra, Assis (2006, p. 348-349) sustenta que como não há exigência de pedido no art. 475-M, poderá o juiz conceder efeito suspensivo ex offício. 57 De Jure 9 prova 2.indd 57 11/3/2008 16:21:16 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS e decidida nos próprios autos e, caso contrário, em autos apartados. § 3º. A decisão que resolver a impugnação é recorrível mediante agravo de instrumento, salvo quando importar extinção da execução, caso em que caberá apelação. Saliente-se que, preenchidos todos os requisitos para que a impugnação carregue o predicado da suspensividade, não há para o julgador liberdade para negar o pedido porque, ainda que o art. 475-M traga conceitos objetivos abertos (isto é, conceitos jurídicos indeterminados), representados pela vagueza proposital das expressões relevantes fundamentos e grave dano de difícil ou incerta reparação, a conduta legislativa não outorgou poder discricionário ao julgador. No mesmo sentido, com propriedade, Assis (2006, p. 349) pontifica acerca do art. 475-M: Nenhum dos requisitos mencionados, isoladamente, autoriza a medida excepcional da suspensão. Impõe-se a conjugação de ambos no caso concreto. No entanto, uma vez atendidos tais pressupostos, nenhuma discrição é dada ao juiz, devendo suspender a execução. O inverso também se mostra verdadeiro. Não se caracterizando os pressupostos, ou existindo tão-só um deles, deverá o juiz negar efeito suspensivo à impugnação. Costuma-se dizer que o ato judicial, nesses caso, é e pode ser discricionário. Perante os conceitos jurídicos indeterminados, na verdade, a atividade do juiz não se afigura como discricionária no sentido e exata e preciso do termo, mas vinculada à única resolução correta que lhe cabe tomar em razão do seu ofício: ou bem se verificam os elementos de incidência, hipóteses em que se suspenderá a execução; ou se não se verificarem tais elementos, caso em que a lei proíbe suspender a marcha da execução.10 Da exposição, conclui-se que: a)não se cogita mais em manejo de embargos à execução quando houver título executivo proveniente de ação monitória11, sendo caso de utilização da figura prevista no art. 475-L (impugnação), que possui rol blindado de matérias que podem ser argüidas (com cognição horizontal limitada); 10 O autor faz referência, em nota de rodapé, ao seguinte trabalho da professora Wambier (2000, p. 239.263). Sobre correção no preenchimento de conceitos indeterminados e cláusulas gerais, (inclusive em sede de recurso de índole especial), confira-se Mazzei (DIDIER JUNIOR; MAZZEI, 2006, p. 39-57). 11 Haverá apenas, em exceção, os casos de execução com título obtido no ventre de ação monitória contra a Fazenda Pública, uma vez que, nessa situação especial, o art. 741 do CPC poderá ser invocado pela devedora (adiante examinaremos a questão). 58 De Jure 9 prova 2.indd 58 11/3/2008 16:21:16 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS b) sendo assim, não subsiste frente ao rigor da lógica, a defesa doutrinária de que essa impugnação, como meio de defesa, tenha cognição irrestrita como nos embargos de título executivo extrajudicial; c) a impugnação não possui efeito suspensivo automático, cabendo ao devedor provocar a sua concessão, através de requerimento expresso, em modulação ao disposto no art. 475-M . 6. A execução contra a Fazenda Pública. Título executivo obtido em ação monitória (cabimento dos embargos à execução: art. 741 do CPC) O caput do art. 1.102-C e o seu § 3º não indicam para o credor da ação monitória, depois de constituído o título judicial, a possibilidade de caminho executivo diverso ao traçado no Livro I, Título VIII, Capítulo X, do Código de Processo Civil, criando a (falsa) impressão de que não há qualquer tipo de exceção. No entanto, exame mais detido da Lei nº 11.232/05 informa que os dispositivos constantes na alteração legislativa merecem ser interpretados dentro da totalidade do contexto sistemático da reforma processual. Com o alerta acima lançado, tem-se que apesar da regra geral do art. 475-L, na situação especialíssima de ação monitória contra a Fazenda Pública12, persistirá no sistema 12 Parte-se aqui, bem é verdade, do entendimento que se consolidou do cabimento da ação monitória contra a Fazenda Pública, conforme precedentes múltiplos do Superior Tribunal de Justiça. No sentido, colocando uma pá de cal na discussão, ao final de 2005, decidiu-se em sede de embargos de divergência (EREsp. 345752/MG):” PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. CABIMENTO. 1. No procedimento monitório distinguem-se três espécies de atividades, distribuídas em fases distintas: uma, a expedição de mandado para pagamento (ou, se for o caso, para entrega da coisa) no prazo de quinze dias (art. 1.102b). Cumprindo a obrigação nesse prazo, o demandado ficará isento de qualquer ônus processual (art. 1.102c, § 1º). Nessa fase, a atividade jurisdicional não tem propriamente natureza contenciosa, consistindo, na prática, numa espécie de convocação para que o devedor cumpra sua prestação. Nada impede que tal convocação possa ser feita à Fazenda, que, como todos os demais devedores, tem o dever de cumprir suas obrigações espontaneamente, no prazo e na forma devidos, independentemente de execução forçada. Não será a eventual intervenção judicial que eliminará, por si só, a faculdade – que, em verdade, é um dever – da Administração de cumprir suas obrigações espontaneamente, independentemente de precatório. Se o raciocínio contrário fosse levado em conta, a Fazenda Pública estaria também impedida de ajuizar ação de consignação em pagamento. 2. A segunda fase, ou atividade, é a cognitiva, que se instala caso o demandado ofereça embargos, como prevê o art. 1.102c do CPC. Se isso ocorrer, estar-se-á praticando atividade própria de qualquer processo de conhecimento, que redundará numa sentença, acolhendo ou rejeitando os embargos, confirmando ou não a existência da relação creditícia. Também aqui não há qualquer peculiaridade que incompatibilize a adoção do procedimento contra a Fazenda, inclusive porque, se for o caso, poderá haver reexame necessário. 3. E a terceira fase é a executiva propriamente dita, que segue o procedimento padrão do Código, que, em se tratando da Fazenda e não sendo o caso de dispensa de precatório (CF, art. 100, § 3º), é o dos artigos 730 e 731, sem qualquer dificuldade. 4. Não procedem as objeções segundo as quais, não havendo embargos, constituir-se-ia título executivo judicial contra a Fazenda Pública, (a) consagrando contra ela efeitos da revelia a que não se sujeita, e (b) eliminando reexame necessário, a que tem direito. Com efeito, (a) também na ação cognitiva comum (de rito ordinário ou sumário) a Fazenda pode ser revel e nem por isso há impedimento à constituição do título, ainda mais quando, como ocorre na ação monitória, a obrigação tem suporte em documento escrito; e (b) o reexame 59 De Jure 9 prova 2.indd 59 11/3/2008 16:21:16 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS processual a possibilidade de oposição de embargos à execução para atacar execução e/ou título executivo judicial, em atendimento à redação conferida pela própria Lei nº 11.232/05 para o art. 741 do Código de Processo Civil. A posição vencedora do cabimento da ação monitória contra a Fazenda Pública, à luz da Lei nº 9.079/95, sustentou – para a admissão da tutela diferenciada – que não há embaraço que prejudique a Fazenda, como ré de demanda monitória, pois, nos termos do (revogado) art. 1.102-C, tão logo convertido o mandado injuntivo em executivo, o credor estaria jungido a observar a “[...] forma do Livro II, Título II, Capítulo II e IV (execução stricto sensu)”. Essa justificativa encontra-se (ao menos formalmente) abalada, haja vista que sua motivação estava encartada no art. 1.102-C e seu respectivo § 3º que, justamente, foram modificados no detalhe pela Lei nº 11.232/05. No novo panorama legal, a execução do título obtido na ação monitória segue a via traçada pelo novo capítulo (cumprimento da sentença), conforme Livro I, Título VIII, Capítulo X, do Código de Processo Civil. Ocorre que, mesmo com a alteração do art. 1.102-C, e, via de talante, a ação monitória não seguir mais o gabarito do Livro II, Título II, Capítulo II e IV, é perfeitamente possível interpretarem-se as nuances da Lei nº 11.232/05 para, com base na posição favorável da Fazenda Pública, afirmar que é viável o ajuizamento da ação monitória no particular, desde que se unifique a interpretação do sistema e se apliquem os novos regramentos frente às exigências constitucionais. No mister, é essencial transcrever a redação do art. 741 do Código de Processo Civil, deflagrada pela Lei nº 11.232/05: Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre: I – falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia; II – inexigibilidade do título; III – ilegitimidade das partes; IV - cumulação indevida de execuções; V – excesso de execução; VI – qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que superveniente à sentença; VII - incompetência do juízo da execução, bem como suspeição necessário não é exigência constitucional e nem constitui prerrogativa de caráter absoluto em favor da Fazenda, nada impedindo que a lei o dispense, como aliás o faz em várias situações. 5. Registre-se que os óbices colocados à adoção da ação monitória contra a Fazenda poderiam, com muito maior razão, ser opostos em relação à execução, contra ela, de título extrajudicial. E o STJ consagrou em súmula que ‘é cabível execução por título extrajudicial contra a Fazenda Pública’ (Súmula 279). Precedente da 1ª Seção: RESP 434571/SP, relator p/acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 08.06.2005. 6. Embargos de divergência a que se dá provimento.” (STJ, Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, 1ª Seção, j. 09/11/2005, DJ 05.12.2005, p. 207). Confira, também, fundamentado: (STJ, REsp. 603.859/RJ, 1ª Turma, Rel. Ministro LUIZ FUX, j. 01.06.2004, DJ 28.06.2004, p. 205). 60 De Jure 9 prova 2.indd 60 11/3/2008 16:21:16 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ou impedimento do juiz. Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. A alteração legislativa não implicou a mudança apenas de um dispositivo (art. 741), tendo efeito mais amplo, haja vista que ocorreu a reformulação do Livro II, Título III, Capítulo II, do Código de Processo Civil, fixando-se os embargos à execução do art. 741 (e disposições seguintes) como ferramental do microssistema do Poder Público em juízo. Com efeito, não se pode negar que o art. 741, nada obstante sua posição geográfica estar centrada no Código de Processo Civil, é norma que compõe o chamado micromodelo processual do Estado, consoante a locução de Silva (2004, p. 79), em que há a amplificação dos meios de defesa para a Fazenda Pública, sob a justificativa da necessidade de proteção do patrimônio e interesse público13, quebrando a isonomia processual, ainda que no seu aspecto ideológico. O art. 475-L é absolutamente incompatível com o micromodelo processual do Estado, pois sua concepção está firmada em várias normas, que aduzem medidas de apoio em prol do credor, que não se coadunam com a execução contra a Fazenda Pública. Basta 13 Quer dizer, em pontuação mais precisa, interesse público secundário, conforme classificação de Renato Alessi, que será coincidente ou não com o interesse público primário, do povo. A distinção é oportuna, consoante versa a doutrina italiana os interesses públicos primários são os interesses da coletividade como um todo, do povo compreendido como ente filosófico e último depositário dos poderes estatais (“todo poder emana do povo”, na dicção do art. 1º, parágrafo único da CF/88). Secundários, por outro lado, seriam os interesses em que o Estado, em razão de sua configuração como pessoa jurídica, se apresenta em relação aos outros sujeitos de direito, independente da condição de zelador de direitos de terceiros, da coletividade. Os interesses secundários são – resguardada a sua legítima função - a atuação pela administração dos interesses públicos primários. Contudo, como no caso em tela, a identificação entre uns e outros nem sempre é direta. Seguindo a linha do pensamento de Alessi, expõe Mello (2005, p. 57) essa diferença, afirmando-a sobre a doutrina de Picardi e Carnelutti, hoje moeda corrente na Itália: “Esta distinção a que se acaba de aludir, entre interesses públicos propriamente ditos – isto é, interesses primários do Estado – e interesses secundários (que são os últimos a que se aludiu) é de trânsito corrente e moente da doutrina italiana, e a um ponto tal que, hoje, poucos doutrinadores daquele país se ocupam em explicá-los, limitando-se a fazer-lhe menção, como referência a algo óbvio, de conhecimento geral. Este discrímen, contudo, é exposto com exemplar clareza por Renato Alessi (1960, p. 197 e notas de rodapé 3 e 4), colacionando lições de Carnelutti e Picardi, ao elucidar que os interesses secundários do Estado só podem ser por ele buscados quando coincidentes com os interesses primários, isto é, com os interesses públicos propriamente ditos”. Justamente por isso, os interesses secundários não são atendíveis a não ser quando coincidem, se identificam no mínimo teleologicamente, com os interesses primários, estes sim, únicos que devem ser perseguidos por aqueles que os encarnam e representam. Como foi dito: “Percebe-se, pois, que a Administração não pode proceder com a mesma desenvoltura e liberdade com que agem os particulares, ocupados na defesa das próprias conveniências, sob pena de trair sua missão própria e sua própria razão de existir.” (MELLO, 2005, p. 57). 61 De Jure 9 prova 2.indd 61 11/3/2008 16:21:16 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS lembrar que o art. 475-J fala sobre constrição de bens, possibilidade inadmissível em execuções contra a Fazenda Pública, e o art. 475-M fixa, como regra, a falta de suspensividade da impugnação do devedor (o que não ocorre com os embargos à execução, sendo inconcebível tal posição absolutamente favorável ao credor nas execuções contra o Poder Público). Dessa forma, tratando-se de execução contra a Fazenda Pública, tendo como vetor título executivo resultante de ação monitória, utilizam-se – pela natureza especial da relação – os embargos do art. 741 do Código de Processo Civil, como instrumento processual adequado para a defesa dos interesses do executado, dada a falta de simetria estrutural do art. 485-L para a situação, e como perfeita possibilidade de adaptabilidade da primeira norma (art. 741) para a missão.14 Caso a execução decorrente da ação monitória seja de valor inferior, para efeito do § 3º do art. 100 da Carta Constitucional, não vislumbramos óbice intransponível para que credor legitimado venha a se valer da via extraordinária da Lei 10.259/01 (que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal), fazendo-se a requisição judicial do montante devido, nos termos do art. 17, § 1º, do diploma em referência. O mais importante é, pois, perceber que a execução do título monitório (aperfeiçoado em executivo) deve respeitar os meandros do micromodelo processual do Estado, não sendo praticável o uso de normas gerais, como é o caso, especificamente, do art. 475-L. 7. Ação Monitória e a formação de título para entrega de coisa fungível ou de determinado bem móvel (parte final do art. 1.102-C) Em arremate final, deve-se anotar que a nova redação do art. 1.102-C acabou por afastar os arts. 621 a 628 (execução para entrega de coisa certa) e os arts. 629 a 621 (execução para entrega de coisa incerta) no que tange às duas últimas hipóteses de cabimento da ação monitória, segundo a estampa da parte final do art. 1.102-A (entrega de coisa fungível ou entrega de determinado bem móvel).15 O art. 1.102-C, ao eliminar do espectro da ação monitória o tecido do Livro II, Título II, Capítulos II e IV do Código de Processo Civil, rejeitou, no seu traçado, a formação de processo executivo previsto nos ditos compartimentos, a saber: execução para entrega de coisa 14 Sobre o princípio da adaptabilidade, pouco conhecido, mas essencial à instrumentalidade processual e à operabilidade material, confira-se: Oliveira (1999) e Didier Júnior (2001), para quem: “Em síntese: adaptase o processo ao seu objeto, tanto no plano pré-jurídico, legislativo, abstrato, com a construção de procedimentos compatíveis com o direito material, como no plano do caso concreto, processual, permitindo-se ao magistrado, desde que previamente (em homenagem ao princípio da tipicidade), alterar o procedimento conforme às exigências”. 15 “Art. 1.102-A - A ação monitória compete a quem pretender, com base em prova escrita sem eficácia de título executivo, pagamento de soma em dinheiro, entrega de coisa fungível ou de determinado bem móvel” (grifo nosso). 62 De Jure 9 prova 2.indd 62 11/3/2008 16:21:17 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS (Capítulo II); execução por quantia certa contra devedor solvente (Capítulo IV). Desse modo, os arts. 621 a 628 (execução para entrega de coisa certa) e os arts. 629 a 621 (execução para entrega de coisa incerta) perderam o vínculo com a redação do art. 1.102-A, razão pela qual, tratando-se de ação monitória, a projeção para a entrega de coisa fungível ou entrega de determinado bem móvel, após a Lei nº 11.232/05, deverá observar os ditames dos arts. 461 e 461-A do Código de Processo Civil. A conclusão intuitiva é reforçada pela letra legal do caput do art. 475-I, que justamente se localiza no novo ambiente legal vinculado à ação monitória (Livro I, Título VIII, Capítulo X – Cumprimento da sentença). Senão vejamos: “Art. 475-I. O cumprimento da sentença far-se-á conforme os arts. 461 e 461-A desta Lei ou, tratando-se de obrigação por quantia certa, por execução, nos termos dos demais artigos deste Capítulo” (grifo nosso)16. Desse modo, o art. 475-I faz a devida recepção do art. 1.102-A em toda sua completude. De toda sorte, a alteração em tela demonstra que não houve qualquer intenção do legislador em permitir que a parte passiva da ação monitória venha a se utilizar dos embargos à execução, em oposição executiva, às hipóteses do leque legal do art. 1.102A do Código de Processo Civil: (a) pagamento em soma em dinheiro, (b) entrega de coisa fungível, e (c) entrega de determinado bem móvel. 16 Dispositivo na íntegra: Art. 475-I. O cumprimento da sentença far-se-á conforme os arts. 461 e 461-A desta lei ou, tratando-se de obrigação por quantia certa, por execução, nos termos dos demais artigos deste Capítulo. § 1º. É definitiva a execução da sentença transitada em julgado e provisória quando se tratar de sentença impugnada mediante recurso ao qual não foi atribuído efeito suspensivo. § 2º. Quando na sentença houver uma parte líquida e outra ilíquida, ao credor é lícito promover simultaneamente a execução daquela e, em autos apartados, a liquidação desta. 63 De Jure 9 prova 2.indd 63 11/3/2008 16:21:17 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 8. Referências bibliográficas ALESSI, Renato. Sistema instituzionale del diritto amnistrativo italiano. 3. ed. Milão: Giuffrè, 1960. ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 7. ed. rev. atual. amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. ALVIM, José Eduardo Carreira. Procedimento monitório. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2000. ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006. BERMUDES, Sergio. A reforma do Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. ______. Considerações sobre o efeito suspensivo dos recursos cíveis. In: MAZZEI, Rodrigo Reis. (Coord.). Dos recursos: temas obrigatórios e atuais. Vitória: Instituto Capixaba de Estudos, 2001. 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O advento do Estado social agiganta as tarefas administrativas e a insustentabilidade desse quadro clama por novos paradigmas administrativos que irão culminar no novo papel do Estado, situado no âmbito de formação de parcerias entre o público e o privado, diminuindo a tensão entre os dois conceitos, a par de outros câmbios, como aquele indicado por Bresser Pereira2: 1 O presente texto foi produzido ao longo dos estudos desenvolvidos no âmbito da disciplina “Tendências do Direito Administrativo: Adm. Pública Dialógica”, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Marinella Machado Araújo, no Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Faculdade Mineira de Direito (PUC-Minas). 2 Bresser Pereira esclarece que “Desde meados dos anos 80, os países altamente endividados têm-se dedicado a promover o ajuste fiscal, a liberalizar o comércio, a privatizar, a desregulamentar”. A par dos avanços que daí advieram, complementa o autor (PEREIRA, 1999, 22-23): A premissa neoliberal que estava por trás das reformas – de que o ideal era um Estado mínimo, ao qual caberia apenas garantir os direitos de propriedade, deixando ao mercado a total coordenação da economia – provou ser irrealista (...) Por outro lado, tornou-se cada vez mais claro que a causa básica da grande crise dos anos 80 – uma crise que só os países do Leste e do Sudeste asiático conseguiram evitar – foi o Estado: uma crise fiscal do Estado, uma crise do tipo de intervenção estatal e uma crise da forma burocrática de administração do Estado. 67 De Jure 9 prova 2.indd S1:67 11/3/2008 16:21:17 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Paralelamente a tudo isso, a crise dos anos 80, que assolou sobretudo os países sul-americanos, recomendou a flexibilização do arquétipo administrativo de outrora, afirmando a luta pela quebra dos parâmetros da administração burocrática e pela adoção de um modelo gerencial de administração, voltado sobretudo à concretização do princípio da eficiência (PEREIRA in PEREIRA; SPINK, 1999, p. 22). Nesse contexto surgem as agências reguladoras, só tardiamente ingressando em nosso sistema jurídico (por volta dos anos 90), com a criação da ANATEL pela Lei nº 9.472/97. O presente trabalho visa a dar notícia desse panorama histórico e perfilhar um quadro estrutural dessas entidades, bem como do seu regime jurídico, para, afinal, mudando o enfoque mais tradicional, voltado ao estudo do campo de autonomia dessas agências, situar a questão da sua legitimidade democrática, com a análise da possibilidade de introdução de mecanismos dialógicos de participação popular na sua atuação e controle. 2. Do liberalismo ao estado social A idealização de um modelo estatal que atenda aos ditames de um sistema justo não é preocupação recente. A derrocada do feudalismo revela a insurreição contra os privilégios feudais. A sociedade atomizada foi substituída pela idéia de unidade nacional, que convergiu no surgimento dos Estados-Nação, fundados na construção de um conceito de soberania que serviu de instrumento de concentração de poderes na pessoa do príncipe. Assim, tais estados nacionais revelaram, no regime monárquico absolutista, a opressão esmagadora dos direitos individuais, favorecendo o lançamento do manifesto liberal, propelido pelo ideal de liberdade frente ao Estado. Inaugurou-se a dicotomia do poder. A soberania implícita na idéia de Estado representava afronta ao mais caro ideal humano – a liberdade. Como bem assevera Paulo Bonavides (1996, p. 40), na doutrina do liberalismo, o Estado foi sempre o fantasma que atemorizou o indivíduo. O poder, de que não pode prescindir o ordenamento estatal, aparece, de início, na moderna teoria constitucional como o maior inimigo da liberdade. Paralelamente, o comércio medieval, sustentado em bases de produção corporativas, expande-se pelo mar e a economia de urbana passa a ser nacional. Esse crescimento econômico, embora ainda incipiente, frente à revolução que iria ocorrer no século 68 De Jure 9 prova 2.indd S1:68 11/3/2008 16:21:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS seguinte, lançou o manifesto burguês, modelado sob um arquétipo de representação de todo o corpo social, viabilizando a instalação do Terceiro Estado no poder, historicamente atrelada ao movimento revolucionário de 1789. Para tal desiderato, carecia a burguesia de legitimação, conquistada ao arvorar-se defensora das liberdades ou, nas palavras de Paulo Bonavides (1996, p. 44), “[...] fez, pretensiosamente, da doutrina de uma classe a doutrina de todas as classes”. A sua instalação no poder não veio acompanhada da concretização dos caros ideais revolucionários, sufocados por desigualdades sociais que se instalaram. A mão invisível do mercado levou o primado da liberdade à esfera econômica, projetando desigualdades sociais que asfixiavam as próprias liberdades individuais. Assim, as antíteses verificadas entre o modelo proposto pela burguesia e a realidade social e política emergente conduziram à corrosão da expressão liberal. As novas tecnologias que, incipientes, introduziam novos modos de produção, provocaram uma silenciosa renovação nas relações de trabalho, onde a usurpação do ideal de vida boa levou a uma verdadeira revolução. Constatava-se a formação de castas privilegiadas economicamente e, de outro lado, uma sociedade escravizada, a qual retoma a luta pela afirmação das liberdades, agora pautada no viés da igualdade. O Estado, até então liberal e não interventor, tornar-se-ia o garante do reequilíbrio das forças econômicas e o provedor das necessidades básicas dos cidadãos. Já não basta aquela liberdade negativa frente ao Estado, impõe-se a atuação desse na realização de prestações efetivas que garantam o bem-estar social. O Estado de bem-estar social (welfare state) se compromete com um novo plexo de atribuições que somente aumentam com o tempo, o que levaria à falência do modelo providencial. A ineficiência e os insuportáveis custos estatais conduziram à busca de novos modelos de gestão, sobretudo pela descentralização da prestação dos serviços públicos, a retirada parcial do Estado do âmbito econômico, como explorador direto dessa classe de atividade, firmando o seu papel na regulação desse mercado e no incentivo à formação de parcerias entre o público e o privado, sobretudo mediante a técnica de fomento. É como resumidamente esclarece Luiz Roberto Barroso (2005, p. 2): A quadra final do século XX corresponde à terceira e última fase , a pós-modernidade, que encontra o Estado sob crítica cerrada, densamente identificado com a idéia de ineficiência, desperdício de recursos, morosidade, burocracia e corrupção. Mesmo junto a setores que o vislumbravam outrora como protagonista do processo econômico, político e social, o Estado perdeu o charme 69 De Jure 9 prova 2.indd S1:69 11/3/2008 16:21:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS redentor, passando-se a encarar com ceticismo o seu potencial como instrumento do progresso e da transformação. O discurso deste novo tempo é o da desregulamentação, da privatização e das organizações não-governamentais. Tal é a noção de subsidiariedade, em cujas idéias centrais sobressai a de que devem ser respeitadas as liberdades individuais, contendo-se a intervenção estatal, de forma a permitir ao particular que detenha condições de exercer atividades, que o faça por sua própria iniciativa e recursos. Por outro lado, a participação do Estado deve voltarse à garantia de sucesso do empreendimento particular, mediante o fornecimento de incentivos, a coordenação, a fiscalização e o fomento. Finalmente, propõe-se, através dele, uma parceria entre o poder público e particulares (parceria público-privado). De notar-se que o perfil que ora é descrito não se adequa ao ideal de Estado mínimo. Ao contrário, a perspectiva não é a de supressão do papel estatal, mas da sua redefinição, sob novos moldes de gestão e organização, como já se adiantou acima. Essa distinção é bem colocada por Di Pietro (1997, p. 25): Como se vê, não se confunde o Estado Subsidiário com o Estado Mínimo; neste, o Estado só exercia as atividades essenciais, deixando tudo o mais para a iniciativa privada, dentro da idéia de liberdade individual que era inerente ao período do Estado Liberal; naquele, o Estado exerce as atividades essenciais, típicas do Poder Público, e também as atividades sociais e econômicas que o particular não consiga desempenhar a contento no regime da livre iniciativa e livre competição. Além disso, com relação a estas últimas, o Estado deve incentivar a iniciativa privada, auxiliando-a pela atividade de fomento. Portanto, a falência do Estado providencial impôs um processo amplo de privatização3, efetivado em âmbito global, caracterizando um verdadeiro giro histórico, para utilizarmos uma expressão de Gaspar Ariño Ortiz (CASAGNE; ORTIZ, 2005, p. 9). Confira: 3 Na lição de Di Pietro (1997, p. 13-15), o termo assume, de um lado, conotação ampla, abarcando a desregulação (diminuição da intervenção do Estado no domínio econômico), a desmonopolização de atividades econômicas, a venda de ações de empresas estatais ao setor privado (desnacionalização ou desestatização), a concessão de serviços públicos e os contracting out (“Fórmula pela qual a Administração Pública celebra acordos de variados tipos para buscar a colaboração do setor privado, podendo-se mencionar, como exemplos, os convênios e os contratos de obras e prestação de serviços”), aqui entrando a terceirização; e, de outro lado, tem uma conotação restrita, que “abrange apenas a transferência de ativos ou de ações de empresas estatais para o setor privado” (disciplinada no direito brasileiro pela Lei n.º 8.031/95). No texto, empregamos a expressão no primeiro sentido. 70 De Jure 9 prova 2.indd S1:70 11/3/2008 16:21:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS El término ‘privatización’ ha sido en estos anos una palabra mágica que encarnaba en si misma una transformación profunda en el modelo de Estado. Ha significado un verdadero ‘tournant de l’historie’, como una nueva encrucijada histórica, caracterizada por la liberalización de actividades, la apertura de fronteras, la supresión de monopolios y la privatización de tareas y empresas públicas. Después de más de medio siglo de expansión del Estado, este ha empezado a retirarse de la actividad económica, para concentrarse en lo que son sus funciones soberanas. Este cambio de modelo, que se inicia a finales de los ochenta en el Reino Unido, no es propio de un país o de un gobierno concreto. Es universal, es un proceso de biología histórica que está teniendo importantes manifestaciones tanto en Europa como en Iberoamérica, e implica esencialmente un cambio de tareas - de roles - entre el Estado y la Sociedad. Nesse novo modelo de atuação do Estado, revela-se importante o papel das agências reguladoras. 3. As agências reguladoras Como vimos, a idéia de um Estado subsidiário se reflete, dentre outros, na diminuição do seu papel como agente econômico e prestador direto dos serviços públicos; no incremento da atividade de fomento, em decorrência da visão de parceria entre o público e o privado, cuja separação estanque é diluída em processos de simbiose na formação do espaço público, como adiante se verá; e no repúdio aos modelos burocráticos de organização, que, auto-referenciais, centram-se em procedimentos formalistas e, descurando-se dos resultados, obnubilam o princípio da eficiência. Há uma evidente interpenetrabilidade entre os sistemas econômico e jurídico, a reclamar um reajuste dos modelos estruturais e de atuação da Administração Pública. Nesse contexto, a idéia de descentralização vai assumir relevância crescente. Em uma visão tradicional, costuma-se diferenciá-la da noção de desconcentração, própria de qualquer atividade administrativa, em que se constata, em um quadro de unidade subjetiva, divisão orgânica de competências, mantendo-se o controle hierárquico. Por sua vez, na descentralização, são criados novos entes, dotados de autonomia funcional para a persecução dos seus objetivos institucionais com maior eficiência. Assim, ela é marcada pela pluralidade de sujeitos e pela ausência de subordinação hierárquica. Em que pese tal nota, a realidade institucional brasileira foi marcada pelo apego a processos burocráticos de administração, que acabaram por resistir a essa flexibilização 71 De Jure 9 prova 2.indd S1:71 11/3/2008 16:21:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS do controle ministerial, asfixiando a autonomia das autarquias criadas por tal processo de descentralização. A tal ponto isso ocorreu, que se chega a afirmar a existência de um quadro de “desautarquização das autarquias” (VENÂNCIO FILHO, 1998 apud ARAGÃO, 2002, p. 273), daí gerando a formação das denominadas autarquias de regime especial, exatamente para conferir-lhes maior autonomia. Com isso, queremos afirmar que a mera criação de uma pessoa jurídica, destacada do Poder Central e voltada à perseguição de fins específicos, não lhes dá a nota típica de entidade descentralizada, senão formalmente. O que nos interessa essencialmente é o regime de autonomia reforçada, próprio de uma descentralização material4. A interpenetrabilidade entre os sistemas jurídico e econômico, tal como anotado acima, reivindica novos mecanismos de gestão do interesse público. Nesse contexto, sem totalizar o fenômeno, são criadas entidades, como fruto de uma efetiva descentralização administrativa, marcando o surgimento das agências reguladoras independentes, onde a nota da autonomia é essencial à maleabilidade necessária ao enfrentamento das oscilações do sistema econômico. 3.1 A autonomia das agências reguladoras independentes As agências reguladoras têm na autonomia a sua marca típica, sendo exatamente ela que permitirá o seu caráter dinâmico, associado à blindagem contra oscilações políticas que poderiam comprometer a sua eficiência. Efetivamente, não se trata de uma total independência, como à primeira vista poderia sugerir o seu nome; ao contrário, como bem salienta Alexandre Aragão (2002), trata-se apenas de uma autonomia reforçada, pois estão submetidas aos objetivos demarcados em lei e às políticas públicas fixadas para o setor em que atuam. No Direito Francês, as agências reguladoras têm a sua autonomia marcada pelo que é denominado estatuto da independência. As autoridades administrativas independentes (como lá são denominadas as agências reguladoras), diferentemente do que ocorre no direito brasileiro, não são dotadas de personalidade jurídica, sendo órgãos integrantes da estrutura administrativa do Poder Central. Por isso mesmo, a sua independência assume ainda maior importância. Como bem observa Olivier Dugrip (1988, p. 3): 4 De notar-se ainda o fato de que, no direito francês, as autoridades administrativas independentes (paralelo das agências estudadas) não são dotadas de personalidade jurídica, mas, a despeito de tal nota, além de poderem perseguir seus interesses em juízo, são brindadas com uma autonomia reforçada, típica de um quadro de descentralização material. 72 De Jure 9 prova 2.indd S1:72 11/3/2008 16:21:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A independência de tais autoridades administrativas em face do Governo é sua razão de ser. Ela lhes dá a sua originalidade e as distingue de outras estruturas administrativas integrantes da hierarquia administrativa. Ela exclui toda noção de dependência, tutela ou controle; os poderes públicos não lhes podem dirigir nem ordens nem instruções. Dispondo de um poder próprio, elas definem, elas mesmas, sua ação e exercem suas atribuições de maneira totalmente autônoma [...]. Para que esta independência seja realmente assegurada, elas se beneficiam de garantias de independência orgânica e funcional próprias a protegê-las de pressões exteriores. Esse estatuto da independência se reflete na existência de garantias estatutárias e independência orgânica e funcional. Quanto à independência orgânica, ela se faz presente na composição colegiada daqueles órgãos, definida no texto constitucional, sendo a indicação dos seus membros dirigentes feita por assembléias das mais altas cortes jurisdicionais, tais como a Corte de Contas, o Conselho de Estado e a Corte de Cassação, ou por altas autoridades políticas, como o Presidente da República e o Presidente do Senado (ou ainda por uma e outra). A par dessa forma de designação, há garantias estatutárias, como a existência de um mandato de duração fixa e relativamente longa, o qual não é renovável, tampouco revogável; e a garantia da inamovibilidade dos seus membros. Completando o quadro sucintamente delineado, destaca-se ainda a independência funcional, marcada pela autonomia de gestão material e financeira; pelo quadro próprio de pessoal, subordinado à autoridade do seu presidente, que também é ordenador de despesas; pela competência normativa para a elaboração do seu próprio regulamento interno; dentre outras. No Brasil, o surgimento das agências reguladoras tem a sua marca na década de noventa, com a criação da ANATEL pela Lei nº 9.472/97. Considerando que nos Estados Unidos da América, a primeira agência surgiu em 1887 (ICC – Interstate Commerce Comission), pode-se afirmar que por aqui houve uma eclosão retardada do fenômeno. Não sendo a análise da sua causa objeto do presente trabalho, podemos apenas resumidamente sinalizar para possíveis influências no retardamento do surgimento das agências. Uma delas, a tardia retirada do Estado do mercado, como agente econômico, de forma que a sua presença como agente prestador direto tornava, ao menos em tese, menos relevante o papel da regulação independente5. 5 Reforçando a idéia, a nota de Armínio Fraga, quando na Presidência do Banco Central do Brasil (Jornal do Comércio, 20/21 de agosto de 2000): “Com a redução das estatais, o Governo teme que haja uma concorrência predatória, repasses indiscriminados de custos e acordos de cartelização. Por isso, o governo pretende criar imediatamente as superagências reguladoras”. 73 De Jure 9 prova 2.indd S1:73 11/3/2008 16:21:19 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Por outro lado, a abertura dos mercados ao capital internacional, ocorrida no âmbito do Governo Fernando Henrique Cardoso, gerava a necessidade de segurança para os investidores estrangeiros contra oscilações nas políticas governamentais, exigindose um compromisso regulatório, viabilizado pela criação de agências independentes que pudessem manter a estabilidade dos acordos, a justificar os elevados ingressos de capital no País. Nesse sentido, o magistério de Gustavo Binenbojm (2005, p. 6): O contexto político, ideológico e econômico em que se deu a implantação das agências reguladoras no Brasil, durante os anos 1990, foi diametralmente oposto ao norte-americano. Com efeito, o modelo regulatório brasileiro foi adotado no bojo de um amplo processo de privatizações e desestatizações, para o qual a chamada reforma do Estado se constituía em requisite essencial. É que a atração do setor privado, notadamente o capital internacional, para o investimento nas atividades econômicas de interesse coletivo e serviços públicos objeto do programa de privatizações e desestatizações estava condicionada à garantia de estabilidade e previsibilidade das regras do jogo nas relações dos investidores com o Poder Público. Na verdade. mais do que um requisito, o chamado compromisso regulatório (regulatory commitment) era, na prática, verdadeira exigência do mercado para a captação de investimentos. Em países cuja história recente foi marcada por movimentos nacionalistas autoritários (de esquerda e de direita), o risco de expropriação e de ruptura dos contratos é sempre um fantasma que assusta ou espanta os investidores estrangeiros. Assim, a implantação de um modelo que subtraísse o marco regulatório do processo político-eleitoral se erigiu em verdadeira tour de force da reforma do Estado. Dai a idéia da blindagem institucional de um modelo, que resistisse até a uma vitória da esquerda em eleição futura. Se, de uma parte, a criação de agências reguladoras dotadas de acentuado grau de autonomia servia ao bom propósito de desestruturar os chamados “anéis burocráticos” existentes nos Ministérios, de outra parte, o mandato fixo de seus dirigentes e seu compromisso técnico sinalizavam ao mercado o compromisso do próprio país de proteger o direito de propriedade dos investidores e garantir o cumprimento fiel dos contratos celebrados ao cabo dos processos de privatização e desestatização. 74 De Jure 9 prova 2.indd S1:74 11/3/2008 16:21:19 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Sob o aspecto jurídico, destaca-se a resistência do Supremo Tribunal Federal em aceitar a autonomia dessas entidades, tal como nos dá mostra o verbete nº 25 da sua súmula jurisprudencial, verbis: “a nomeação a termo não impede a livre demissão, pelo Presidente da República, de ocupante de cargo de dirigente de Autarquia”. Essa posição somente tardiamente foi alterada, como registra a decisão proferida na Ação direta de Inconstitucionalidade n.º 1.949-0: [...] é inquestionável a relevância da alegação de incompatibilidade com o princípio fundamental da separação e independência dos poderes, sob o regime presidencialista do art. 8.º das leis locais, que outorga à Assembléia Legislativa o poder de destituição dos conselheiros da agência reguladora autárquica, antes do final do período da sua nomeação a termo. A investidura a termo – não impugnada e plenamente compatível com a natureza das funções das agências reguladoras – é, porém, incompatível com a demissão ad nutum pelo Poder Executivo: por isso, para conciliá-la com a suspensão cautelar da única forma de demissão prevista na lei – ou seja, a destituição por decisão da Assembléia Legislativa -, impõe-se explicitar que se suspende a eficácia do art. 8.º dos diplomas estaduais referidos, sem prejuízo das restrições à demissibilidade dos conselheiros da agência sem justo motivo, pelo Governador do Estado, ou da superveniência de diferente legislação válida. Portanto, podemos destacar que as agências reguladoras se inserem em um quadro de redefinição do papel do Estado, orientado para mudanças operadas pelo sistema econômico sobre o jurídico, que se reflete no modus operandi da Administração Pública. Há um processo de descentralização determinante no marco do surgimento dessas agências, que lhes dá a nota típica da autonomia reforçada de que acima falamos. Contrariamente aos móveis que orientaram o surgimento dessas agências no direito norte-americano6, no Brasil, diversos fatores concorreram para a sua formação tardia, como vimos. A sua autonomia, como nota típica, desde cedo proporcionou conflitos 6 Os móveis que impulsionam o desenvolvimento do direito regulatório nos EUA são bem diversos daqueles presentes no direito brasileiro. Como bem afirma Binenbojm (2005, p. 3): “As agências reguladoras se afirmam, portanto, no cenário político norte-americano, como entidades propulsoras da publicização de determinados setores da atividade econômica, mitigando as garantias liberais clássicas da propriedade privada e da autonomia da vontade”. E conclui (BINENBOJM, 2005, p. 6): “De fato, enquanto nos Estados Unidos as agências foram concebidas para propulsionar a mudança, aqui foram elas criadas para garantir a preservação do status quo; enquanto lá buscavam elas a relativização das liberdades econômicas básicas, como o direito de propriedade e a autonomia da vontade, aqui sua missão era a de assegurá-las em sua plenitude contra eventuais tentativas de mitigação por governos futuros”. 75 De Jure 9 prova 2.indd S1:75 11/3/2008 16:21:19 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS estruturais, sobretudo no campo do apego à doutrina da separação de poderes, já que tais agências são dotadas de competências normativas próprias, além da possibilidade de dirimirem conflito de interesses no âmbito do seu campo regulatório, sem prejuízo ainda da nítida competência administrativa. Entretanto, a par dessas questões históricas, que também passamos a enfrentar7, certo é que o paradigma do Estado Democrático de Direito revela o vértice de um ângulo, a partir do qual se projetam novos questionamentos, que tocam a legitimidade política dessas entidades e de sua atuação sob um viés democrático-participativo, inclusive no âmbito do seu controle. 3.2 Da democracia liberal à visão dialógica Como esclarecemos acima, a tradição liberal tem seu substrato na idéia de liberdade individual. Assim, se as suas bases estão nas liberdades humanas, como arcabouço indispensável à realização das suas capacidades, então devem estar ao abrigo de interferências estatais ou mesmo das massas, daí resultando a idéia de liberdade negativa. O Estado é programado para o interesse da sociedade. Esse modelo reflete conseqüências sobre a própria concepção de cidadão, cujo status é determinado pela medida dos direitos subjetivos que detém frente aos concidadãos e ao próprio Estado. Como afirma Jürgen Habermas, “Direitos subjetivos são direitos negativos que garantem um espaço de ação alternativo, em cujos limites as pessoas do direito se vêem livres de coação externas” (2002, p. 277-292). Por sua vez, o problema fundamental, no viés político, reside em equacionar o respeito a tais liberdades no governar, i.e., “como ser governado sem ser oprimido?” (VILANI, 2002, p. 40). Em função disso, certas estruturas de garantia e participação estarão presentes nos modelos liberais, tais como a representação política, a separação de poderes, o pluripartidarismo e a constitucionalidade. Portanto, os direitos políticos conferem aos cidadãos a possibilidade de validar os seus interesses particulares, agregando-os a outros interesses privados e, afinal, transformados em uma vontade política que exerça influência sobre a Administração. Daí porque “segundo a concepção liberal, a formação democrática da vontade tem exclusivamente a função de legitimar o exercício do poder político. Resultados de eleições equivalem a uma licença para a tomada do poder governamental, ao passo que o governo tem de justificar o uso desse poder perante a opinião pública e o parlamento” (VILANI, 2002, p. 289). 7 Esse foco de tensão decorrente da autonomia das agências deu mostra na manifestação irresignada do Presidente Lula, por ocasião do seu primeiro mandato, no sentido de que “as agências mandam no país”, criticando o seu desconhecimento acerca das decisões que mais afetavam a população, porquanto não partiam do governo (Folha de São Paulo, 20.02.2003). 76 De Jure 9 prova 2.indd S1:76 11/3/2008 16:21:19 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Em um balanço positivo, Maria Vilani (2002, p. 43) assevera: O liberalismo, quando visto não somente como mero produto de interesses burgueses, pode ser reconhecido por seus grandes legados à modernidade. Ao enfatizar o direito à individualidade, ao proclamar a fecundidade das diferenças e da pluralidade de pontos de vista, forneceu as bases para os “direitos fundamentais do homem. Ao contrário do liberalismo, na visão Republicana, a noção de liberdade assume conotação bem diversa, não estando posta como poder dos cidadãos de autorizar governos, mas de participar dos assuntos públicos, no sentido de autodeterminação de um povo, de escolher o seu próprio destino. Essa idéia de participação política repercute na noção de virtude cívica, a qual, juntamente com o valor atribuído à idéia de bem comum, tem servido à manifestação de novas classes de direitos, realçando também a idéia de participação popular nos assuntos do Governo, bem como a valorização da solidariedade e dos interesses coletivos (VILANI, 2002, p. 44). Portanto, aqui, ao contrário do que ocorre na visão liberal, a política não é o elemento de intermediação entre o Estado e o cidadão; ela é constitutiva do processo de coletivização social como um todo. Enquanto na concepção liberal, o Estado se justifica pela sua função de proteção a direitos metapositivos, pré-existentes, naturais do homem; na concepção republicana ele existe para permitir a inclusão da vontade do cidadão na construção dos objetivos e normas que se voltem ao interesse comum. Resumindo com Habermas (2002, p. 290): Segundo a concepção republicana, a formação democrática da vontade tem a função essencialmente mais forte de constituir a sociedade como uma coletividade política e de manter viva a cada eleição a lembrança desse ato fundador. O governo não é apenas investido de poder para o exercício de um mandato sem maiores vínculos, por meio de uma eleição entre grupos de lideranças concorrentes; ao contrário, ele está comprometido também programaticamente com a execução de determinadas políticas. Sendo mais uma comissão do que um órgão estatal, ele é parte de uma comunidade política que se administra a si própria, e não o topo de um poder estatal separado. No modelo democrático procedimental (ou dialógico), busca-se superar o excessivo peso ético que a visão republicana atribui ao cidadão. Aqui, busca-se a integração de elementos dos dois modelos anteriores, através de um procedimento de aconselhamento 77 De Jure 9 prova 2.indd S1:77 11/3/2008 16:21:19 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS para a tomada de decisões. “Procedimento e pressupostos comunicacionais da formação democrática da opinião e da vontade funcionam como importantes escoadouros da racionalização discursiva das decisões de um governo e administração vinculados ao direito e à lei” (HABERMAS, 2002, p. 290). Aqui, o conceito de público não é dado a priori. O cidadão é pró-ativo, dividindo com o Estado a responsabilidade pela sua definição. Rompe-se com essa dicotomia brutal entre o público e o privado. O Estado deixa de assumir uma posição distanciada da sociedade para construir com ela. A estrutura proposta é procedimental, dinâmica. Está ausente uma primazia vigorosa. Não se tome, com isso, uma aproximação com o modelo republicano, pois nesse último há um novo significado atribuído ao interesse público, mais independente do interesse privado e construído com base em uma vontade geral. Ao contrário, no modelo dialógico, reconhece-se uma sociedade pluralista, a qual, dada essa heterogeneidade, multiplica o plexo de valores que a permeia. Então, a virtude predominante não é aquela cívica, de orientação republicana, mas a de aprender a conviver em meio a essa diversidade, o que somente será possível através de um ambiente discursivo, em que se permita a ampla participação dos interessados. Daí porque Habermas (1997, p. 142) afirmará que “São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento na qualidade de participantes de discursos racionais”. Se essa percepção provoca críticas contra uma possível ingenuidade quanto à existência de situações ideais de fala, sobretudo nos países subdesenvolvidos, que permitam aquela participação, Alexandre Travessoni (GOMES in GOMES; MERLE, 2007, p. 69) replica: [...] a situação ideal do discurso possui a força de uma idéia reguladora: além de servir como guia para discursos empíricos, ela torna possível criticar os resultados neles obtidos. Só podemos buscar, seja no Brasil, seja em qualquer outro lugar, um discurso empírico mais próximo das condições ideais justamente porque pressupomos as condições ideais. E onde estaria a pertinência desse processo dialógico no âmbito da atuação das agências reguladoras independentes? 3.3 A autonomia das agências reguladoras independentes sob o viés democratico-dialógico Como acentua Alexandre Aragão, a maior vantagem das agências reguladoras (distanciamento dos centros político-pártidários de decisão) é também o seu maior risco. De fato: 78 De Jure 9 prova 2.indd S1:78 11/3/2008 16:21:20 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS [...] A insurgência de espaços administrativos efetivamente autônomos frente ao Poder Executivo central, do que as agências reguladoras independentes constituem o exemplo mais relevante em nosso Direito Positivo, é uma exigência da eficaz regulação estatal de uma sociedade também diferenciada e complexa. Todavia, a adoção de um modelo multiorganizativo de Administração Pública traz riscos à legitimidade democrática da sua atuação. Em outras palavras, uma das suas maiores vantagens – a distância dos critérios político-partidários de decisão, assegurada, sobretudo, pela impossibilidade do Chefe do Poder Executivo (eleito) exonerar livremente os seus dirigentes (nomeados) – é também um dos seus maiores riscos. (ARAGÃO, 2002, p. 219) E o problema não se resolve com a afirmação de que, exatamente em razão dessa deficiência de legitimidade, a sua atuação seria meramente técnica, sob pena de, com isso, encobrirmos o problema. José Luiz Quadros assevera que os mecanismos tradicionais de participação popular, centrados no modelo de eleições periódicas e de consultas esporádicas (plebiscito e referendo), não dão conta em uma sociedade permeada por processos tecnológicos de comunicação de massa, em tempo real e em âmbito global, que viabilizam a abertura de novos mecanismos de diálogo. A manter-se aquele modelo, o que se constata é um jogo de forças para a conquista e manutenção do poder, que acaba por asfixiar o diálogo, sobretudo na ausência de participação no processo de representação democrática, em face da inexistência de efetiva representatividade e ineficácia da atuação do Poder Público. Configura-se um quadro de inação participativa que, dentre outras origens, tem a sua fonte na supressão de espaço democrático no âmbito da definição das políticas pertinentes aos serviços públicos, usurpada sob o fundamento de tratar-se de âmbito de atuação técnico-administrativo, acobertando um discurso sintaticamente excludente, por, em tese, desautorizar a opinião popular. Daí o lançamento da seguinte questão pelo citado autor: seria possível estabelecer uma dicotomia forte entre gestão administrativa e funções de governo, a justificar a centralização dessas últimas no âmbito político e as primeiras em instâncias técnicas independentes? Para ele, a definição das linhas mestras das políticas públicas de investimento, econômicas, de saúde e de educação, próprias da função de governo não poderiam ser usurpadas pelas denominadas agências reguladoras, de inspiração norte-americana, que, sob a justificativa da administração técnica, acabam por definir políticas públicas, sob o manto excludente da tecnicidade de suas funções. Confira: 79 De Jure 9 prova 2.indd S1:79 11/3/2008 16:21:20 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A questão que nos interessa é que, para regular estes serviços públicos privatizados, e, portanto, sujeitos aos interesses privados que se impõem na prática aos interesses do público, criou-se agências reguladoras, que passaram a assumir competências de escolhas e definições de políticas públicas destes setores, claramente usurpando funções de governo, e portanto, usurpando funções democráticas, o que não tem amparo constitucional. (MAGALHÃES, 2004, p. 5) Já se disse acima que, a despeito da denominada independência das agências, o que se verifica é uma autonomia reforçada, exatamente porque, mesmo diante da impossibilidade de demissão ad nutum dos seus dirigentes, assegurando-lhe amplo espectro de liberdade na persecução dos fins regulatórios da agência, ela deve obediência às linhas mestras traçadas pelas políticas governamentais, ao que essa dicotomia maniqueísta entre administração técnica e governo democrático se dissolve. Além disso, “nem toda atividade dos reguladores é ditada apenas por sua expertise, algum canal de comunicação entre os agentes políticos eleitos e as agências deve existir, como exigência mínima de um /estado democrático” (BINENBOJM, 2005, p. 12). Concordamos com Fátima Anastásia (2002), quando salienta que o grande desafio da democracia contemporânea é a institucionalização de mecanismos contínuos de participação política que viabilizem o controle dos governantes pelos governados, que não se limitem a um processo de accountability vertical somente presente nos momentos eleitorais. Ademais, é preciso reforçar a idéia de que o mecanismo participativo de decisão por maioria pode não refletir adequadamente esse processo participativo, daí porque o status representativo deve vir acompanhado de um crescente nível participativo, que suprima o oligopólio da participação política pelos partidos. A soberania popular não pode prestar-se a fundamentar ideologias dominantes e oligopólios, como se tudo pudesse ser feito em nome daquele povo icônico a que se referia Friedrich Müller, descontextualizado das nervuras do real. Ainda atual aquela advertência formulada pelo autor mencionado, no sentido de devermos “Compreender a soberania popular não como fórmula gasta de legitimação, mas como a ferida aberta do estado constitucional moderno” (MÜLLER, 2000, p. 36). Assim, é mister reconhecer que as democracias contemporâneas enfrentam ainda o desafio da sua efetiva implementação como um processo contínuo de participação e de controle dos governantes pelos governados8. Embora esses traços já se mostrem 8 Aqui novamente realçamos a inexistência de uma distinção forte entre a função de governo e a atuação das agências reguladoras, aplicando-se o desafio mencionado tanto no contexto da atuação dessas entidades, como no seu controle. 80 De Jure 9 prova 2.indd S1:80 11/3/2008 16:21:20 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS desde a instituição do mecanismo de freios e contrapesos, aí se vêem limitados por restringirem-se ao plano horizontal. Nas democracias contemporâneas, a verticalidade desse processo (accountability) somente se constata nas eleições, sendo, portanto, descontínua. Por isso, impõe-se a criação de instituições que viabilizem o exercício do controle público dos governantes pelos governados nos interstícios eleitorais. No âmbito do Brasil, constituições e leis orgânicas dão mostra dessas instituições quando prevêem a participação popular na elaboração dos orçamentos públicos – orçamento participativo, audiências públicas, iniciativa popular, seminários legislativos e fóruns técnicos. Esses mecanismos dão mostra da necessidade e da possibilidade de, servindo ao propósito da participação democrática na atuação e no controle das agências reguladoras independentes, criarmos espaços dialógicos de acompanhamento da sua ação. Já não podemos mais contentarmo-nos com um programa liberal, tampouco sobrecarregar aquele ideal de virtude cívica republicana, sendo importante a abertura de canais de participação dialógica entre o cidadão, o governo e o administrador público, a fim de que aquela dimensão plural da sociedade seja conciliada com o exercício de uma democracia efetivamente participativa e construtora de um ideal dinâmico de vida comum. E de que forma poderíamos efetivar esse caro ideal, no âmbito das agências reguladoras independentes? Que alternativas seriam palpáveis á consolidação desse objetivo? Como bem ressalta Gustavo Binenbojm (2005, p. 15), “[...] de parte os mecanismos de controle exercidos pelos poderes instituídos, a participação dos cidadãos se apresenta como a mais alentada forma de suprimento do problema do déficit de legitimação democrática das agências independentes”. Assim, a participação dialógica, como modelo habermasiano de superação do monopólio da gestão administrativa, mesmo quando fundado no argumento da discricionariedade técnica, bem poderia ser introduzida por mecanismos tais como audiências públicas de instâncias sociais técnicas, como as universidades, para a definição das denominadas “políticas técnicas”. Também a maior democratização dos previstos conselhos consultivos, que se abririam a uma composição plural, integrados por representantes das operadoras dos serviços regulados, dos poderes Legislativo e Executivo, usuários e partidos políticos, fixando a sua competência para a análise e fiscalização9 da atuação das agências, inclusive no que tange ao seu poder normativo. 9 Aliás, como determina a Constituição, em seu art. 37, § 3.º, introduzido pela EC 19/98. 81 De Jure 9 prova 2.indd S1:81 11/3/2008 16:21:20 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A realização de consultas públicas prévias e a posteriori, referentes aos projetos de relevância das agências também se enquadra entre os mecanismos participativos. Há que se destacar ainda a necessidade de ampla publicidade dos mecanismos de possível participação popular na atuação das agências, a qual contribuiria sobremaneira no papel educativo, no contexto da cidadania e da democracia participativa, em uma sociedade ainda sem expressão nessa seara, como bem dão conta as pesquisas envolvendo os conselhos gestores municipais. 4. Conclusão 1. No marco do Estado Contemporâneo, já não se tem espaço para a atuação estatal burocrática, auto-referente, fragilizada pelo predomínio da corrupção e da ineficiência. O Estado, assoberbado pelas demandas sociais, revê o seu papel como agente econômico e passa a prestigiar o fomento e a regulação, em detrimento da atuação direta na economia. 2. A interação entre os sistemas jurídico e econômico estabelece a exigência de uma nova estrutura de atuação estatal, mais ágil para enfrentar as nuances desse mercado altamente cambiante, além de exigir um estreito compromisso com o princípio da eficiência. 3. Os novos tempos reclamam ainda atenção ao pluralismo de valores co-existentes na sociedade, a exigir um modelo já não mais centrado no ideal liberal de proteção de liberdades pré-existentes à comunidade jurídica e que devem estar ao abrigo de toda e qualquer influência estatal. Tampouco o avanço do modelo republicano pode dar conta dessas transformações. Buscando a superação do excessivo peso ético que atribui ao cidadão, instaura-se a idéia de um perfil procedimental, de inspiração habermasiana, em que se rompe com uma posição distanciada entre o público e o privado, havendo um novo significado atribuído ao interesse público, já não mais como expressão de uma simples vontade geral, mas, pautando-se no reconhecimento de uma sociedade plural, incita a convivência em meio à diversidade, através de um ambiente dialógico, em que se permita a ampla participação de todos os interessados. 4. As agências reguladoras, fruto desse novo tempo, são portadoras apenas de uma autonomia reforçada, porque, conquanto submetidas a um estatuto de independência, que lhes assegura um amplo aspecto de liberdade na persecução dos seus fins, estão vinculadas às linhas mestras traçadas pelas políticas governamentais, o que acaba por fazer ceder a dicotomia maniqueísta entre administração técnica e governo democrático. 82 De Jure 9 prova 2.indd S1:82 11/3/2008 16:21:20 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 5. O distanciamento das agências dos centros políticos, de grande vantagem do modelo, acaba por representar também o seu maior perigo, a saber, a delimitação de um quadro deficitário no campo da legitimidade democrática, sobretudo se constatarmos o plexo de competências que lhes são atribuídas, as quais se enquadram no âmbito administrativo, normativo e da pacificação de conflitos de interesses. 6. O resgate dessa legitimidade pode ser viabilizado por meio da introdução de mecanismos de participação dialógica, próprios a uma atuação administratviogovernamental procedimental, tais como: a instauração de procedimentos de consulta popular sobre ações de ampla repercussão social, a previsão de um colegiado de participação permanente, com formação plural, a ampla publicidade da sua atuação, dentre outros. 5. Bibliografia ANASTASIA, Fátima. Teoria democrática e o novo institucionalismo. Cadernos de Ciências Sociais. Vol. 8, n. 11. Belo Horizonte: PUC-MINAS, dez/2002. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002. BARROSO, Luiz Roberto. Constituição, ordem econômica e agências reguladoras. Revista Eletrônica de Direito Administrativo e Econômico, Salvador, n. 1, fevereiro, 2005, p. 2. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br BINENBOJM, Gustavo. Agências reguladoras independentes e democracia no Brasil. Revista Eletrônica de Direito Administrativo e Econômico, Salvador, n. 3, agosto/out. 2005. Disponível em :http://www.direitodoestado.com.br BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. CASSAGNE, Juan Carlos et ORTIZ, Gaspar Ariño. Servicios públicos, regulación y renegociación. 1. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2005. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1997. DUGRIP, Olivier. Les autorités administratives indépendantes. La Documentation Française: Droit Administratif et Administration, 1988. 83 De Jure 9 prova 2.indd S1:83 11/3/2008 16:21:20 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS GOMES, Alexandre Travessoni. O rigorismo na ética de Kant e a situação ideal do discurso de Habermas – um ensaio comparativo. In: GOMES, Alexandre Travessoni; MERLE, Jean-Christophe. A moral e o direito em Kant: ensaios analíticos. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. In: A inclusão do outro. São Paulo: Loyola, 2002, p. 277-292. __________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Agências reguladoras: a inconstitucional usurpação da política democrática pela ditadura da técnica. Jus navegandi, Teresina, ano 8, n. 430, 10 set. 2004. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=5678>. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo: a questão fundamental da democracia. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo Estado. In: Reforma do estado e administração pública gerencial. 3. ed. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter (orgs.). Rio de Janeiro: FGV, 1999, p. 21-38. VILANI, Maria Cristina Seixas. Cidadania moderna: fundamentos doutrinários e desdobramentos históricos. In: Cadernos de Ciências Sociais, vol. 8, n. 11. Belo Horizonte: PUC-MINAS, dez/2002. VENANCIO FILHO, Alberto. A interpretação do estado no domínio econômico: o direito público econômico no Brasil. Rio de Janeiro: RENOVAR, 1998. 84 De Jure 9 prova 2.indd S1:84 11/3/2008 16:21:21 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3. PALESTRA 3.1 O PODER JUDICIÁRIO E O MINISTÉRIO PÚBLICO - UMA VISÃO CRÍTICA1 HÉLIO PEREIRA BICUDO Procurador de Justiça aposentado do Estado de São Paulo Gostaria de fazer um pequeno preâmbulo sobre o que representam os três poderes de Estado desde suas origens. Codificou-se o poder judiciário como um dos três poderes que, ao lado do executivo e do parlamento, constituem-se em um dos fundamentos do estado de direito democrático imaginado, nem sempre superando os parâmetros teóricos conseguidos pelo grande pensador e filósofo que foi Montesquieu no seu espírito das leis. Enquanto, a magistratura se aperfeiçoava, impondo ao Estado a vigilância sempre exigida para a construção da democracia, o Ministério Público fazia as vezes de representante do rei e como tal atuava. Era o acusador que falava em nome do rei, na pretensão de alcançar um ideal de Justiça que se configurava distante da realidade exatamente pela subordinação jurídica do promotor ao rei. Principalmente na terceira década do século passado é que se deu início a um movimento que crescia dentro do próprio Ministério Publico para a construção de uma instituição nova, autônoma, que viesse a opor aos interesses da coroa os reais interesses da sociedade. O promotor público não deveria ser o inquisidor na figura de um personagem, como no romance dos Miseráveis de Victor Hugo e, muito menos, o acusador sistemático em matéria penal. Nesta luta, cujos resultados estão escritos na Constituição Federal de 1946 e da qual participaram insígnes membros do Ministério Público de São Paulo, como Antonio Queiroz Filho, João Batista de Arruda e Sampaio, Mário de Moura e Albuquerque, Odilon da Costa Manso, Cezar Salgado, Márcio Martins Ferreira e tantos outros, que do meu Estado e de outras unidades da Federação se juntaram para se conseguir as primeiras vitórias no sentido de dar real autonomia à instituição: a proibição da advocacia, a imposição do tempo integral no exercício das funções. E com a nova organização vieram, evidentemente, novas atribuições. Uma delas que não parece implícita agora na Constituição de 1988 é a investigação do crime pelo Ministério Público. É parte, sem dúvida, da própria dinâmica do exercício de suas atividades e tem amparo nos dispositivos legais que dão ao Ministério Público a competência para propor a ação penal pública e acompanhá-la, intervindo, se for o caso, no andamento do processo que lhe é conseqüente. A problemática da ação investigativa do Parquet não é tão simples como possa parecer, 1 Palestra proferida na Semana do Ministério Público, em 14 de setembro de 2007. 85 De Jure 9 prova 2.indd S1:85 11/3/2008 16:21:21 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS não bastando as cinco leituras do artigo 144, parágrafo segundo da Constituição Federal, para chegar-se a conclusões pelo afastamento do Ministério Público da investigação criminal. A lei, segundo Francisco Ferrara, citado por Alípio Silveira, não se identifica com a letra da lei, “essa é apenas um meio de comunicação, as palavras são símbolos e portadoras de pensamentos, mas podem ser defeituosas”. A interpretação de uma nova norma constitucional não pode se ater, portanto, exclusivamente ao que nela está escrito, a norma deve estar conforme o sistema e com os princípios gerais íncitos no conjunto do texto constitucional, com os costumes e a realidade sócio-política. Eles estão indicados em Maximiliano: a tarefa primordial do executor das normas estabelecidas é descobrir a relação entre o texto abstrato e o texto concreto. Isto é, entre a norma jurídica e o fato social, aplicando dessa maneira o direito. Para consegui-lo, explica o autor, será iniciado um trabalho preliminar. Descobrir e fixar um sentido verdadeiro da regra positiva e logo depois, o respectivo alcance de sua extensão. Vejamos, como escreve Gomes Canotilho, o sentido da norma constitucional desvenda-se através da utilização como elementos interpretativos do elemento filológico: literal, gramatical, textual; do elemento lógico: elemento sistemático; do elemento histórico; do elemento teológico: elemento racional. Segundo o constitucionalista português, a articulação desses vários fatores hermenêuticos irá apontar para uma interpretação jurídica da Constituição e o princípio da legalidade, diríamos normatividade constitucional, é fundamentalmente salvaguardado pela ampla relevância atribuída ao texto. Ponto de partida para tarefa de mediação ou captação do sentido por parte dos concretizadores das normas constitucionais, limite da tarefa de interpretação, pois a função de intérprete será a de desvendar o sentido do texto sem ir para lei, muito menos centrar sobre o teor literal do preceito. Na hipótese, com base na lição do eminente constitucionalista, do ponto de vista racional do dispositivo ora em discussão, vamos encontrar no artigo 127 da Constituição Federal, que o Ministério Público, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, e ao qual incube a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Por aí já se vê a relevância das atribuições do Ministério Público, que lhe são assinadas, tendo até mais em vista, que é fundamento do Estado da cidadania, a dignidade da pessoa humana, como está escrito no artigo primeiro da Constituição. Tudo em consonância com os objetivos fundamentais da República, como a construção de uma sociedade livre, justa, solidária. A erradicação da pobreza, da marginalização, a promoção do bem de todos sem quaisquer preconceitos. Pois bem, se ao Ministério Publico incube a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, essas atribuições objetivam a concretude daquilo que é fundamento do Estado, tendo em vista as metas assinaladas indispensáveis para a construção de uma sociedade democrática. Quando a Constituição confere poder geral ou prescreve dever, franqueia também implicitamente todos os poderes particulares necessários para o exercício de um, ou o cumprimento do outro. Isto me parece muito claro se nos detivermos à leitura do art. 139 da Constituição Federal, que estabelece quais 86 De Jure 9 prova 2.indd S1:86 11/3/2008 16:21:21 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS são as funções institucionais do Ministério Público. O dispositivo em questão não fala da função de investigar, mas ele impõe ao Ministério Público o zelo pelo efetivo respeito aos poderes públicos e aos serviços de relevância pública, promovendo as medidas necessárias a sua garantia, entregando-lhe depois a inquisição de diligências investigatórias. Bem, como o dever de exercer outras funções, desde que compatíveis com a sua finalidade, portanto, como concluir que não pode o Ministério Público investigar de um modo próprio? E acrescentar-se que não se pode ignorar na interpretação da lei a realidade da sociedade brasileira, onde a polícia não conseguiu, como atestam os inúmeros procedimentos abertos pelo Ministério Público, sair do atoleiro em que se afunda pela corrupção e pela prática da violência. A esse propósito, os seus órgãos corregedores não têm correspondido às imposições de transparência e de probidade administrativa impostas pela Constituição , renegando a um segundo plano as recomendações das suas ouvidorias de polícia, deixando de proceder quando averiguações esclarecem autorias dos ilícitos funcionais. Aí o corporativismo fala mais alto, permitindo a mais deslavada imunidade. A constituição, como assinala Jorge Miranda, deve ser apreendida a qualquer instante, como um todo, na busca de uma unidade harmonia de sentido. Assim, o apelo ao elemento sistemático, que consiste aqui em procurar as recíprocas implicações de preceitos e princípios em que aqueles fins se traduzem, em situá-los e defini-los na sua interrelação e em tentar chegar assim em uma idônea síntese globalizante crível e adotada de energia normativa. Na hipótese, argumenta-se de uma contradição de princípios, tal contradição há de ser superada mediante a preferência ou a prioridade na efetivação de certos princípios frente aos restantes. É o que diz Jorge Miranda. Realmente, se a interpretação sistemática dos textos constitucionais leva à convicção da preeminência da ação do Ministério Público ante a atividade policial, a qual não têm os seus titulares as incumbências e atribuições do Ministério Público, ao autor da ação penal não se pode negar a capacidade de reunir provas para indiciá-la. Ao elemento sistemático junta-se o fato de que em um número tão expressivo de casos, a investigação do Ministério Público se sobrepôs à intervenção policial, seja para completá-la, seja para aperfeiçoá-la, ou até mesmo para substituí-la. Os grandes e emblemáticos procedimentos penais foram sempre sustentados pelo Ministério Público que tem, a propósito, uma história de coerência e de independência relativa aos poderes do Estado. Como pondera o filósofo Luis Recaséns Siches, em sua Nueva Filosofia de la Interpretácion del Derecho, o direito não é um sistema constante, uniforme, igual, se não, pelo contrário é mutável, e tem uma dimensão essencialmente plástica de adaptação a novas situações e circunstâncias , tem sempre esse caráter em medida maior ou menor, mas em nossa época o tem em uma enorme proporção. Recorda-se que as investigações sobre as atividades do esquadrão da morte foram efetuadas pelo Ministério Público e desvendaram violência, corrupção, 87 De Jure 9 prova 2.indd S1:87 11/3/2008 16:21:21 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS favorecimento ao tráfico de drogas e outras violações de nosso ordenamento jurídicopenal por reagentes policias. Essas investigações foram questionadas, já naquele tempo, na década de 70, perante o Supremo Tribunal Federal, que, entretanto, considerou-as legais e necessárias a esse propósito, com voto do Ministro Octavio Gallotti que elucida bem essa questão da atuação investigativa do MP. Como controlar, pois, a atividade policial, senão entrando na sua área de competência. Essas investigações não poderiam prosperar dentro da própria polícia. E somente a ação do Ministério Público é que as pode desvendar. A proibição pretendida busca embasamento em atitudes isoladas de membros do Ministério Público, que não tem levado em conta a unidade funcional do Ministério Público, uno e indivisível. Distorções na sua atuação que podem ser facilmente corrigíveis decorrem da concepção já ultrapassada, que entregavam ao chefe da instituição, então demissível pelos governadores do Estado ou pelo presidente da República, o monopólio do exercício da atribuição do País. A figura do chamado promotor natural surgiu exatamente para impedir a filiação política da instituição, quando, para atender a reclamos da chefia do poder executivo, destituíam-se promotores que não se alinhavam a uma determinada linha política. Nos dias atuais, nomeado dentro da classe por mandato certo que somente será revogado segundo as dificuldades impostas pelo procedimento instituído, o Procurador Geral de Justiça dos Estados ou da República não tem a temer sua destituição se sua atuação não se conforma à vontade da política dominante. Ele passa a agir segundo os princípios que formam a pureza procedimental do Ministério Público na forma do quanto dispõe a constituição com o que tivemos a oportunidade de assinalar. Vejam bem, hoje é muito difícil passarmos além da figura do promotor natural. E isso, na minha visão é uma distorção no que diz respeito ao princípio da unidade funcional do Ministério Público. O Procurador-Geral de Justiça é autônomo, independente, então ele não está sujeito às questões políticas que podem surgir durante a sua atuação. Se um promotor público desvia-se na sua atuação, porque o ProcuradorGeral de Justiça não pode avocar esse procedimento? Ele é o chefe da instituição e depois evidentemente submete a sua decisão ao Conselho Superior da classe. Assim, a avocação do procedimento se torna diante da unicidade da instituição uma atitude normal com qualificativos da coerência de ação do Ministério Público. Mas isto, embora tenha contornos constitucionais, é matéria prevalentemente de lei ordinária, de organização do Ministério Público, que deve tê-la com vistas ao princípio de unidade fundamental na atuação do Parquet. Como se vê, não existem argumentos que possam permitir a redução das atribuições do Ministério Público, reduzi-las seria premiar os chamados delinqüentes de colarinho branco e o próprio crime organizado. Em remate, na decisão a ser tomada, essa matéria está sujeita a decisão do Supremo Tribunal Federal, que deverá fazer profunda reflexão sobre a questão constitucional e infra-constitucional, sem esquecer do seu papel de árbitro maior, não só da Lei 88 De Jure 9 prova 2.indd S1:88 11/3/2008 16:21:21 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Magna, mas da própria realidade brasileira, pois interpretar é descobrir tudo aquilo que a norma dispõe, para que ela seja instrumento de paz social. Nesse caso especial, não importa que se tenha editado ou não a lei complementar prevista no parágrafo segundo do seu artigo 127, pois como ensina Clémerson Merlin Cléve: “No Brasil tem-se como certo que todas as disposições, ainda que adjetivas da constituição são essenciais, imperativas e então, mandatórias, como já teve a oportunidade de asseverar o velho Francisco Campos. Muito pelo contrário. Como na sociedade atual, onde a criminalidade viceja e se desenvolve, impedir-se a ampla atuação do Ministério Público será acoroçoar-se a ilicitude daqueles que se situam em patamares superiores da sociedade e que por isso mesmo se sentem imunes. A lei penal, segundo se pensa, não é para eles, mas para aqueles que o sistema político econômico marginalizou ou excluiu das classes sociais”. Como se vê, a combinação de critérios interpretativos de início mencionados só podem levar a uma conclusão, não se pode retirar meios, quaisquer que sejam, que impeçam ou dificultem a propositura da ação penal pelo MP. Se a tanto chegarmos, estaremos decretando a própria falência do atual ordenamento jurídico que o constituinte de 86 e 88 buscou normatizar, tendo em vista a contribuição do Ministério Público na construção do estado democrático. De outra parte, é preciso assinalar que necessária, segundo o pensamento jurídico nacional, a reforma do poder judiciário de 2004 não passou de uma simples maquiagem. Na prática, manteve-se a mesma situação que antes vigia, assim não se pôs termo ao foro privilegiado, não se tocou na estrutura da Justiça Eleitoral e acrescentou dispositivos inócuos, que, passado mais de ano, não disseram a que vieram. Quero a respeito lembrar que a federalização das violações graves de direitos humanos sob o fito do Procurador Geral da República ainda não aconteceu, muito embora solicitações que se enquadram na qualificação legal não tenham sido atendidas, frustrando-se as expectativas sobre o novo dispositivo. Nós mesmos em São Paulo, a propósito vocês devem ter notícias de um chacina de moradores de rua, diante da morosidade, já faz três, quatro anos e não se toma nenhuma medida, solicitou-se a federalização não só das investigações, mas, do julgamento subseqüente e não se obteve. No outro caso em que a polícia armou um esquema para eliminar supostos delinqüentes, que foram chacinados dentro de um ônibus por policiais em uma estrada próxima a São Paulo, que vai da capital a Sorocaba, chamada Castelinho, e quando se pediu primeiro que a Polícia Federal fizesse as investigações, porque a polícia investigar a si própria não dá nenhum resultado. Em São Paulo está o maior contingente de policiais militares de todo o Brasil, nós temos uma Polícia Militar com cerca de 150 mil de pessoas, com grande ingerência na política e na atuação de governança do Estado. Solicitamos então a federalização e não obtivemos. 89 De Jure 9 prova 2.indd S1:89 11/3/2008 16:21:22 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Eu me lembro de que, há dois anos, quando o comitê de defesa dos direitos humanos das Nações Unidas discutiu o relatório oferecido pelo Brasil, a respeito do cumprimento dos tratados sobre direitos civis e políticos e que se perguntou durante esse colóquio entre Nações Unidas e o Governo brasileiro a respeito da federalização dos crimes praticados contra os direitos humanos. E, a procuradora da república, encarregada do setor, afirmou na ocasião, e depois disso não houve nenhuma alteração, que nenhum dos oito casos apresentados na Procuradoria Geral da República foram admitidos para que fossem ao Superior Tribunal de Justiça e se obtivesse a federalização no procedimento desses crimes. Portanto, um dispositivo absolutamente inócuo e que consta da reforma do Poder Judiciário. Quanto à Justiça Eleitoral, nós vimos com surpresa que pessoas denunciadas pelo Procurador Geral da República como incursos em vários artigos das leis penais puderam ter seus nomes registrados como candidatos e receber cadeiras no parlamento como se tivessem uma vida pregressa isenta de qualquer deslize, na forma do disposto do artigo 14, parágrafo 9º da Constituição, que considera para o registro de candidaturas o exame prévio da vida pregressa do candidato e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou abuso do exercício da função, cargo ou emprego. O que quer dizer tudo isso? A meu ver não se exige uma decisão transitada em julgado, reconhecendo o crime e seu autor para varrer pretensões políticas ilegítimas. A vida pregressa do candidato é que vai permitir a presunção de que sua candidatura e eventual eleição não vão se opor à normalidade e legitimidade das eleições, sem interferência do poder econômico ou do abuso do exercício da função, cargo ou emprego . Ora, tem-se interpretado, provavelmente sopraram nos ouvidos do chefe da nação que tudo se resume a uma sentença transitada em julgado, condenando o candidato a registro, na forma do disposto no artigo 5º inciso 57 da Constituição, quando dispõe que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Considere-se que se trata de uma interpretação pelo menos equivocada. O inciso 57 citado, do artigo 5º do texto constitucional está entre os direitos e garantias fundamentais, no caso, o direito à liberdade, quer dizer, ninguém pode ser preso sem uma sentença transitada em julgado. Mas isso não quer dizer que um candidato que queira obter o registro deva ter uma sentença transitada em julgado para que haja então a presunção de que ele não voltará a delinqüir. Segundo penso, isso não tem nada a ver com o registro do candidato, mesmo porque uma sentença transitada em julgado não pode ser considerada como passaporte para corrupção ou para o exercício indevido do poder. E vocês sabem tanto quanto eu quanto custa, quanto tempo demora uma sentença para transitar em julgado, quanta chicanas podem ser postas no meio do caminho para se evitar o trânsito em julgado de uma sentença penal. Aliás, os 90 De Jure 9 prova 2.indd S1:90 11/3/2008 16:21:22 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS juízes penais nas suas decisões não consideram na aplicação da pena apenas o fato, mas o autor e sua vida pregressa, o que em uma palavra significa que não basta a reincidência reconhecida judicialmente para dosagem da pena, pois outros fatores são imprescindíveis, dentre eles, o exame da vida pregressa do acusado. Não é por outro motivo que pessoas com passado criminal ainda que não condenadas por decisões transitadas em julgado exercem mandato no executivo e no legislativo, desfigurando o interesse público que busca o desenvolvimento do Brasil, para que ele não seja o País do futuro, mas que seja o País do presente, onde os direitos humanos sejam realmente o fundamento do Estado. Se de um lado o Ministério Público, como verdadeira magistratura que tem, precisa atuar sem acepção de pessoas, de correntes sociais e de cargos para conduzir na Justiça a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis e outro contra o poder judiciário, mediante as demandas que chegam à sua apreciação, sobretudo a guarda da Constituição, não se podendo esquecer nessa atuação a relevância dos direitos fundamentais, preservando o Estado de Direito , que em última análise é o Estado democrático. Em último, é elementar o episódio, que não poderia deixar de fazer menção, macula esse sonhado estado democrático em especial, augures de que se tratava de matéria de competência exclusiva de uma das casas do Parlamento. Na democracia não há exclusividade. Todos os representantes do povo devem ao povo os seus mandatos. E se deles se divorciam, não mais o representam. Num escândalo, num dos poderes não atingem tão-somente a esse poder, mas ao Estado como um todo, cabendo uma reação conjunta, que sempre se busca tardiamente, para que se possa caminhar na construção do Estado de direito. Portanto, Judiciário e Ministério Público devem sempre atuar lado a lado em busca da Justiça. 91 De Jure 9 prova 2.indd S1:91 11/3/2008 16:21:22 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 4. DIÁLOGO MULTIDISCIPLINAR 4.1 AGÊNCIAS REGULADORAS ELIANA OLIVEIRA COSTA TAFURI Analista do Tribunal Regional Eleitoral/ MG SUMÁRIO: 1. Contexto histórico. 2. Natureza jurídica. 3. Aspectos do regime especial das agências reguladoras. 4. Poder normativo. 5. Independência política dos gestores. 6. Independência técnica decisional. 7. Estabilidade dos dirigentes. 8. Conclusão. 9. Referências bibliográficas. 1. Contexto histórico Só é possível entender o instituto das agências reguladoras se considerarmos o contexto político-econômico e social do mundo moderno que, num salto, viu-se imerso em mudanças estruturais de monta, tais como o desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação; o processo de globalização, que fez surgirem poderosas organizações econômicas transnacionais (capital apátrida); o enfraquecimento do setor primário de produção e a valorização dos setores que dominam a tecnologia de ponta. Essas transformações forçaram o Estado a alterar sua linha de atuação. É neste cenário que acontece o movimento de intervencionismo direto para a descentralização administrativa, visando à celeridade e à eficiência reivindicadas pela sociedade – atualizada na Era do Conhecimento –, que não mais aceita a inábil onipotência estatal. É nessa tentativa de ajustamento que, hodiernamente, o ponto central da discussão que se trava é o tamanho ideal que deve ter o Estado em sua esfera de atuação, notadamente em questões econômicas. Sabe-se que o Estado em versão hiper, nos moldes dominantes do século passado, não atende aos anseios da população, visto que, ineficiente e paquidérmico, é fonte de corrupção e perpetua desigualdades. É essa a opinião de Barroso (2006), para quem: O modelo dos últimos vinte e cinco anos se exaurira. O Estado brasileiro chegou ao fim do século XX grande, ineficiente, com bolsões endêmicos de corrupção e sem conseguir vencer a luta contra a pobreza. Um Estado da direita, do atraso social, da concentração de renda. Um Estado que tomava dinheiro emprestado no exterior para emprestar internamente, a juros baixos, para a burguesia industrial e financeira brasileira. Esse Estado, portanto, que a classe dominante brasileira agora abandona e do qual quer se livrar, foi aquele que a serviu 92 De Jure 9 prova 2.indd S1:92 11/3/2008 16:21:22 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS durante toda a sua existência. Parece, então, equivocada a suposição de que a defesa desse Estado perverso, injusto e que não conseguiu elevar o patamar social no Brasil seja uma opção avançada, progressiva, e que o alinhamento com o discurso por sua desconstrução seja a postura reacionária. Nesse contexto, buscando o tamanho adequado do Estado, bem como sua ingerência em medidas precisas, é que se descortina a perspectiva das agências reguladoras, agências executivas, organizações da sociedade civil de interesse público, enfim, parcerias público-privadas dos mais diferentes matizes. A preparação do terreno para a descentralização administrativa ocorreu com a reforma do aparelho do Estado implementada por alterações paulatinas nos textos normativos, na lúcida lição de Barroso, que destacou três transformações estruturais, a saber: 1ª) as Emendas Constitucionais nos 6 e 7, que suprimiram restrições ao capital estrangeiro; 2ª) as Emendas Constitucionais nos 05, 08 e 09, que proporcionaram a flexibilização dos monopólios estatais, e a 3ª) privatização, levada a efeito mediante a edição de legislação infraconstitucional, notadamente a Lei n° 8.031, de 12.04.90, substituída pela Lei n° 9.491, de 09.09.97. Este trabalho objetiva traçar as linhas principais das agências reguladoras, sem a pretensão de esgotar o novel e instigante tema. 2. Natureza jurídica As agências reguladoras possuem natureza de autarquias em regime especial. E, como tal, não podemos deixar de trazer a lume a natureza jurídica das autarquias. O DecretoLei nº 200, de 25.02.1967, estabelece que a “Administração indireta é integrada por autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações públicas”. No que toca às autarquias, prescreve o Decreto-Lei nº 200 que se trata de “[...] serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada”. Assim, as autarquias possuem natureza administrativa e personalidade jurídica de Direito Público. Executam atividades estatais, atuando em nome próprio, sendo criadas por lei específica (CF, art. 37, XIX), de iniciativa do Chefe do Executivo, sendo que a sua organização é imposta por decreto, regulamento ou estatuto. Leciona Meirelles (2000, p. 208) que: A autarquia não age por delegação, age por direito próprio e com autoridade pública, na medida do jus imperii que lhe foi outorgado pela lei que a criou. Como pessoa jurídica de direito público interno, a autarquia traz ínsita, para a consecução de seus fins, uma parcela do poder estatal que lhe deu vida. 93 De Jure 9 prova 2.indd S1:93 11/3/2008 16:21:22 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Sendo um ente autônomo, não há subordinação hierárquica da autarquia para com a entidade estatal a que pertence, porque, se isto ocorresse, anularia seu caráter autárquico. Há mera vinculação à entidade-matriz, que, por isso, passa a exercer um controle legal, expresso no poder de correção finalística do serviço autárquico. 3. Aspectos do regime especial das agências reguladoras O objetivo último da criação das agências reguladoras é, como já acima exposto, carrear eficiência à máquina estatal. A justificativa é de que quem tem especialidade técnica será, por conseqüência, mais competente e célere – como exige o mercado – na regulação da atividade que se propõe a tutelar, uma vez que exerce poder de polícia sobre o prestador de serviço público concedido/permitido. Os doutrinadores são assentes no fato de que são antigas, no ordenamento brasileiro, instituições com funções reguladoras. Fato é que o vocábulo agência é recente. Na Constituição vigente, no seu texto original, o constituinte não fez previsão de agências. Ocorre que a Emenda Constitucional n° 8, de 15.08.95, em nova redação ao art. 21, XI, traz órgão regulador referindo-se a serviços de telecomunicações, fato sobre o qual a Prof.ª Di Pietro (2004) fez a seguinte observação: “Note-se que a Constituição, apegada à tradição do direito brasileiro, empregou o vocábulo órgão, a legislação ordinária é que copiou o vocábulo de origem norte-americana”. O Prof. Floriano (p. 23) menciona sua opção pelo termo Autoridades Reguladoras Independentes, e o faz assim dispondo: Menos por razões de purismo conceitual e mais por uma questão didática e metodológica, de nossa parte preferimos utilizar o termo Autoridades Reguladoras Independentes para designar estes entes reguladores de nova geração. E isso por um singelo motivo. Essa designação (constante na doutrina européia, portuguesa em particular) tem o mérito de nela embutir os três aspectos centrais para caracterização das Agências: serem elas I) órgãos públicos dotados de autoridade; II) voltados para exercício da função de regulação III) caracterizados pela independência. Se bem entendidos estes três aspectos, estarão expostos os pressupostos das agências no direito brasileiro. São nomeados para dirigentes das agências os experts nas suas respectivas áreas de atuação, o que acarreta implicações, visto que tais profissionais são vindos, no mais das vezes – devido à especialização técnica de seus conhecimentos –, do próprio setor a ser regulado. Tal fato desperta dúvidas sobre a necessária isenção para gerir os interesses dos usuários dos serviços prestados. Noutro vértice, para neutralizar essa 94 De Jure 9 prova 2.indd S1:94 11/3/2008 16:21:22 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS possibilidade, tem-se que as agências são dirigidas em regime de Colegiado, o que por certo dificulta possível influência das empresas reguladas. A gestão de recursos humanos das agências reguladoras está disposta na Lei nº 9.986, de 18.07.2000, sendo estabelecido que as relações de trabalho serão de emprego público. É de ver que, embora recente, referida lei teve seu texto modificado por várias legislações posteriores (MP 0002143-035-2001, MP 000155.000-2003, L 010.871-2004, L 011-292-2006) dando mostras de que a questão de pessoal nas agências reguladoras está em franco processo de adequação. Certo é que atualmente, enquanto não se sedimenta a questão, as agências improvisam valendo-se de servidores requisitados de outros Órgãos da Administração, contratações temporárias, e, ainda, de cargos de livre provimento. Há, ainda, a questão atinente à criação, por alguns Estados-membros, de agências reguladoras abrangendo uma pluralidade de áreas de atuação. Essa opção, sem dúvida, descaracteriza a especialização que é da essência das agências. Vê-se que é inviável reunir em uma única agência técnicos-especialistas nos mais diversos setores de atuação, o que implica reconhecer a impossibilidade de uma regulação efetiva, pois ressentir-se-ão os dirigentes de referidas agências da falta de domínio técnico em todas as matérias objeto de regulação. Como aponta Menezes (2002, p. 57): “Acredito que tais casos denotam a avidez pelo empréstimo de modelos alienígenas, a intenção de ‘modernidade’, sem que tenha havido, contudo, o acurado estudo prévio relativo aos institutos em debate, além de, é claro, flexibilizar as normas relativas ao regime de pessoal, licitação, controle externo”. 4. Poder normativo O poder normativo das agências reguladoras é ponto nevrálgico, haja vista a dificuldade de se estabelecer um equilíbrio entre a concessão de uma confortável margem de atuação com a finalidade de conferir celeridade à normatização de cunho eminentemente técnico e, de outro lado, preservar as funções do Poder Legislativo, que, em última análise, foi quem recebeu poderes para desempenhar tal função. Travase acalorada discussão na doutrina sobre ofensa à tão cultuada separação dos poderes, bem como ao princípio da legalidade. Contudo, ponto comum entre os doutos é que a separação dos poderes com o rigor da disposição feita por Montesquieu – embora se reconheça a sua importância, e ainda, o princípio da legalidade –, hodiernamente, comporta adequações. Nesse sentido, esclarece Menezes (2002, p. 60): “A moderna doutrina propaga que as técnicas de controle do constitucionalismo representam corretivos eficazes ao rigorismo da separação de poderes, sendo suficiente a separação das funções estatais, atuando em cooperação, de forma harmônica e equilibrada”. Quanto à questão atinente ao princípio da legalidade, não afastando sua importância no texto constitucional em vigor, Barroso (2006, p. 2) esclarece: 95 De Jure 9 prova 2.indd S1:95 11/3/2008 16:21:23 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS É verdade que a doutrina tem construído em torno do tradicional princípio da legalidade uma teorização mais sofisticada, capaz de adaptá-lo à nova distribuição de espaços de atuação entre os três Poderes. Com efeito, o crescimento do papel do Executivo, alimentado pela necessidade moderna de agilidade nas ações estatais e pela relação cada vez mais próxima entre ação estatal e conhecimentos técnicos especializados, acabou por exigir uma nova leitura do princípio, e nessa linha é que se admite hoje a distinção entre reserva absoluta e reserva relativa de lei, de um lado, e de outro, entre reserva de lei formal ou material. Ainda com relação à separação de poderes e sua nova feição, vale destacar a lição de Clève (2000, p. 57): Está agonizando um conceito de lei, um tipo de parlamento e uma determinada concepção do direito. O parlamento monopolizador da atividade legiferante do Estado sofreu abalos. Deve continuar legislando, é certo. Porém, a função legislativa será, no Estado contemporâneo, dividida com o Executivo. O parlamento não deve deixar de reforçar o seu poder de controle sobre os atos, inclusive normativos, do Executivo. A crise do parlamento burguês conduz ao nascimento do parlamento ajustado às profundas alterações pelas quais passaram a sociedade e o Estado. Há quem sustente que as agências reguladoras não podem inovar na ordem jurídica, uma vez que apenas a lei, em sentido formal, pode impor obrigações e restringir direitos. Tal argumentação não pode vingar, se posta em termos absolutos, sem evidente prejuízo da almejada finalidade de celeridade e do cunho eminentemente técnico na solução das questões específicas, que justificam a criação das agências. É que necessária a mitigação, como acima mencionado, dos princípios da separação dos poderes e da legalidade dispostos nos artigos 2° e 5°, II, da Constituição da República, respectivamente. Assim, as normas expedidas pelas agências devem cingir-se apenas ao conteúdo técnico afeto à sua área de atuação, cujo domínio o legislador ordinário não possui. As agências reguladoras, a fim de atingir seus objetivos institucionais, deverão receber delegação com parâmetros previamente fixados, nos moldes dos standards das agências norte-americanas. Só assim estarão aptas a desenvolver a regulação e fiscalização que se propõem a implementar de forma exclusiva. As agências não poderão extrapolar, no exercício de seu poder normativo, os parâmetros fixados na delegação, sob pena de usurpação do poder que, por certo, não lhes foi conferido. 96 De Jure 9 prova 2.indd S1:96 11/3/2008 16:21:23 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 5. Independência política dos gestores As agências reguladoras adotaram o modelo de formação de conselhos compostos por profissionais altamente especializados em suas áreas, com independência em relação ao Estado e com poderes de mediação, arbitragem e capacidade para traçar diretrizes e normas, com o objetivo de solucionar eventuais acontecimentos imprevisíveis no ato de lavratura dos contratos de longo prazo realizados entre as empresas concessionárias e o Estado. A independência política dos gestores das agências decorre, principalmente, da investidura em mandatos com prazo certo e com restrições quanto à demissão, circunstância que, por certo, visa ao fornecimento de condições para se estabelecer a imparcialidade e, conseqüentemente, a confiança da população em suas decisões, haja vista a capacidade de resistir às pressões políticas e econômicas das partes envolvidas, o que confere credibilidade à sua atuação. A ausência de vínculo hierárquico formal dos gestores das agências reguladoras fornecelhes a autonomia não existente na maior parte dos administradores das entidades da administração indireta, que, por ocuparem cargos de confiança do Chefe do Poder Executivo, acabam por curvar-se a interferências, mesmo que à margem da legalidade e/ou moralidade. São as conhecidas contraprestações, tão comuns daqueles que, de uma forma ou de outra, possuem dependência funcional. Como já dito, o processo de nomeação e demissão dos dirigentes, bem como a fixação de mandatos longos, não coincidentes com o mandato eleitoral, são providências que buscam blindar os gestores dos favores políticos, que, certamente, não atendem ao interesse público. 6. Independência técnica decisional Deseja-se que, quando da composição e julgamento de litígios entre particulares em questões controvertidas, as agências reguladoras emitam decisões valendo-se de seu conhecimento técnico, sem, contudo, descuidar-se de, na sua apreciação, considerar com sensatez os interesse das partes envolvidas nas pretensões contrapostas. Não se pode perder de vista que, em tais questões, haverá sempre três tipos de interesses a tutelar. O interesse do Estado, o interesse das empresas concessionárias/permissionárias e o interesse do usuário, sendo o grande desafio saber sopesar e conferir legitimidade democrática a tão díspares forças, uma vez que sabemos agir o primeiro notadamente com visão política; as concessionárias/permissionárias, com profundo conhecimento técnico, visando ao capital; e, por fim, o usuário, que, neste jogo de forças, é, incontestavelmente, a parte hipossuficiente. Isso porque em que pese o instrumento da audiência pública, em que se privilegia a participação popular, sabe-se que esta é incipiente no nosso ordenamento jurídico, notadamente em questões como tais, em que a exigida capacitação técnica afasta qualquer tentativa incalculada de participação. Ademais, é necessário um amadurecimento social que ainda não possuímos. 97 De Jure 9 prova 2.indd S1:97 11/3/2008 16:21:23 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS É por empecilhos dessa ordem que se corre o risco de ser a participação popular apenas um artificialismo sem implementação fática, sendo esta uma questão que também deverá ser considerada pelas decisões proferidas nas agências. Vê-se que a pedra de toque para conferir legitimidade às decisões das agências passa, necessariamente, pela capacidade de resistir a pressões de poderosas forças econômicas e de grupos com ascendência no jogo político do momento. Para tanto, deverão as agências reguladoras atuar com a firmeza e o equilíbrio necessários, sem distar da razoabilidade, assegurando a adequada remuneração do concessionário e a satisfação dos usuários, o que, por certo, não é tarefa fácil de ser equacionada. Portanto, deverá sempre ser preservado o objetivo de harmonizar os interesses do usuário do serviço concedido, como preço e qualidade, com os do fornecedor – a viabilidade econômica de sua atividade comercial –, como forma de perpetuar o atendimento aos interesses de todos os envolvidos. 7. Estabilidade dos dirigentes Entre as questões polêmicas envolvendo as agências, merece menção a questão da demissão dos seus dirigentes. É que as leis instituidoras de referidas agências apontam basicamente as seguintes características próprias das agências: estabilidade dos dirigentes (impossibilidade de demissão ad nutum pelo Chefe do Poder Executivo, salvo por faltas graves apuradas mediante devido processo legal, tais como crimes de improbidade administrativa, violação grave dos deveres funcionais, descumprimento do contrato de gestão); mandato certo, sendo, na sua maioria, de quatro anos; nomeação de diretores com lastro político; impossibilidade de recurso hierárquico, que normalmente seria ao Ministro a que estivesse vinculado o órgão; inexistência de instância revisora hierárquica dos seus atos, ressalvada a revisão judicial; autonomia de gestão; não-vinculação hierárquica a qualquer instância de governo; estabelecimento de fontes próprias de recursos financeiros advindos de dotações orçamentárias gerais e arrecadação de receitas próprias, provenientes, dentre outras fontes, de taxas de fiscalização ou de participações nos contratos, como ocorre nos setores do petróleo e energia elétrica. Certo é que as duas principais características dos dirigentes das agências reguladoras, quais sejam independência e especialidade, assemelham-se, de perto, com as características de um Juiz integrante do Poder Judiciário. É necessário destacar como ponto polêmico o fato de não ser possível a demissão ad nutum dos dirigentes. Ou seja, o Chefe do Executivo tem competência para nomeá-los, porém uma vez nomeados, não pode demiti-los, o que foge do lugar comum dos casos de cargos em comissão ou funções de confiança. A razão de ser vedação é simples. É induvidoso que se tenciona conferir ao dirigente liberdade para tomar qualquer decisão ainda que contrária aos interesses do Chefe do Executivo, sem que isso implique a sua destituição de forma imotivada. 98 De Jure 9 prova 2.indd S1:98 11/3/2008 16:21:23 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Percebe-se, portanto, uma diferenciação substancial entre os dirigentes das agências e os dirigentes das demais autarquias, pois nestas o Chefe do Executivo tem a possibilidade de demitir de forma imotivada, haja vista a Súmula 25 do STF: “A nomeação a termo não impede a livre demissão, pelo Presidente da República, de ocupante de cargo dirigente de autarquia”. Esse diferencial tem uma relevante razão, uma vez que, para assegurar imparcialidade e isenção nos julgamentos, torna-se imperioso que os dirigentes das agências contem com essa garantia. Nesse ponto, merece trazer o destaque feito por Morais (2002, p. 27): Observe-se ainda que o próprio STF, reconhecendo o novo estágio do Direito Administrativo, com base no binômio privatização/eficiência, permitiu à lei estadual a fixação de mandato certo e impossibilidade de destituição ad nutum dos dirigentes das agências, na Adin 1.949. Observe-se que o STF excepcionou a regra geral da impossibilidade de a lei criar outras formas de acesso à Administração Pública que não sejam o concurso público ou os cargos em comissão ou funções de confiança de livre escolha do Chefe do Executivo. Assim é que, no meu entender, não assiste razão àqueles que dizem revestir-se de inconstitucionalidade a estabilidade dos dirigentes das agências reguladoras, prevista em vários dispositivos legais, notadamente no art. 9° da Lei n° 9.986/2000, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras. No caso específico das agências, a nomeação para direção não tem o mesmo perfil das nomeações feitas quanto aos demais cargos de confiança, pois a escolha levará em conta, prioritariamente, a especialização na área da respectiva atuação, conforme dispõe o art. 5° da Lei n° 9.986/2000: Art. 5º. O Presidente ou o Diretor-Geral ou o Diretor-Presidente (CD I) e os demais membros do Conselho Diretor ou da Diretoria (CD II) serão brasileiros, de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeados, devendo ser escolhidos pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea f do inciso III do art. 52 da Constituição Federal. Nesses termos, entendo que a crítica feita ao referido instituto é fruto de uma visão conservadora desafinada com os modernos posicionamentos que as agências reguladoras requerem. É relevante, também, a previsão contida no art. 8° da Lei n° 9.986/2000 de quarentena, por quatro meses, para os ex-dirigentes das agências, consubstanciada naquele período em que, após o término do mandato, ficarão estes vinculados à agência, auferindo remuneração equivalente à do cargo que exerciam. 99 De Jure 9 prova 2.indd S1:99 11/3/2008 16:21:23 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A norma visa a impedir que o ex-dirigente seja imediatamente absorvido pelo setor regulado e que, nesta continuidade, possa valer-se de informações privilegiadas que adquiriu na recente gestão. O tempo nos dirá se, na prática, esse afastamento da direção por quatro meses, persistindo, contudo, o vínculo com a agência, será suficiente para distar o ex-dirigente do uso de informações privilegiadas. 8. Conclusão O estágio atual de desenvolvimento social e econômico exigiu alterações de rota na administração do Estado, sendo certo que, atualmente, o Estado brasileiro implementou reformas no ordenamento jurídico para possibilitar a transição na sua atuação na economia. O Estado, reconhecendo-se lento e ineficiente, valeu-se das agências reguladoras para verificar se as atividades desenvolvidas pelas empresas concessionárias são desempenhadas com a competência existente no mercado. Para assimilação das agências reguladoras, tornam-se imperiosas adequações normativas, além das já efetuadas, no sentido de compatibilizar a nova estrutura de Estado com as normas ainda conflitantes, tais como os princípios da separação dos poderes e da reserva legal. Não se pode olvidar que, para obterem êxito nas suas atribuições, as agências reguladoras hão de ser dotadas de autonomia técnica, decisional, normativa, financeira, administrativa e política. Esses instrumentos deverão ser sopesados para que não se façam dessas autarquias especiais entes com superpoderes. As agências reguladoras requerem uma sociedade mais estruturada. Assim, vivemos um momento de transição, em que, para fazer vitorioso o projeto nacional, serão necessários empenho e ética de todos os envolvidos, a saber: máquina estatal, empresas concessionárias e usuários dos serviços. É esse o grande desafio que se apresenta. 100 De Jure 9 prova 2.indd S1:100 11/3/2008 16:21:24 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 9. Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras: constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. Disponível em: http://www.jusnavegandi. Acesso em: 16 maio 2006. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras: instrumentos do fortalecimento do Estado. São Paulo: ABAR, 2003. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2000. MENEZES, Roberta Fragoso de Medeiros. As agências reguladoras no direito brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 227, jan./mar. 2002. MORAIS, Alexandre de. (Org). Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002. 101 De Jure 9 prova 2.indd S1:101 11/3/2008 16:21:24 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 4.2 REFLEXÕES PARA O SÉCULO XXI SOBRE O PENSAMENTO MARXISTA RIANY ALVES DE FREITAS Técnica do Ministério Público de Minas Gerais Pós-Graduada em Gestão Estratégica da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais Acadêmica em Direito pela PUC-Minas SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Período revolucionário. 3. A liberdade. 4. A igualdade. 4.1. Igualdade formal e substancial. 5. A democracia liberal. 6. O coletivismo. 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas. 1. Introdução Este trabalho tem como objetivo mostrar os aspectos envolvidos no contexto histórico revolucionário, no qual Marx estava inserido, bem como mostrar as críticas marxistas ao sistema capitalista, que gera a expansão econômica, constante busca de riquezas, mas em contrapartida, o desequilíbrio social. Além disso, visa explicar as fases concebidas por Marx – Capitalismo, Socialismo e Comunismo – e esclarecer sua visão no que se refere à liberdade, à igualdade, sua crítica à democracia liberal e sua percepção de que o Estado Liberal, ou Liberal-Democrata contraria os ideais de igualdade e liberdade concebidos por ele. Visa também demonstrar que o indivíduo é uma parcela de um corpo sistemático em que as partes não podem funcionar sozinhas. A teoria marxista, apesar de ter sido escrita no século XVIII, sempre nos fará refletir sobre como o Capitalismo é o centro de todo o planeta e engole qualquer forma de vida que o contrarie. Por isso, a visão de Marx e de seu companheiro Engels é semelhante à de muitos que se preocupam com problemas dos dias atuais, no tocante à defesa da diminuição da exploração humana e das desigualdades sociais. 2. Período revolucionário Marx viveu entre os anos de 1818 e 1883, período em que afloravam grandes conseqüências da Revolução Industrial: produção em larga escala, exploração do homem pelo homem e altas jornadas de trabalho. Viveu em uma Europa revolucionária, pouco depois da Revolução Francesa e da era Napoleônica, quando os interesses da burguesia se transformavam em leis, o que facilitava a exploração dos trabalhadores. Nesse contexto, começaram a surgir muitos protestos e lutas pela redução da jornada de trabalho. Por outro lado, emergia a resistência daqueles que concebiam o Capitalismo como sistema ideal de liberdades econômicas. Uns defendiam as diferenças, cada qual com seu mérito e sorte, outros, a igualdade de oportunidades e modos de vida. 102 De Jure 9 prova 2.indd S1:102 11/3/2008 16:21:24 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Os episódios mais importantes que Marx pôde presenciar foram as Revoluções de 1830 e 1848 – Revoluções da Burguesia – e a Comuna de Paris (1871), primeira direção coletiva representada pelo proletariado em que predominavam os interesses das classes trabalhadoras e que simbolizava um pouco o início da concretização do ideal comunista de Marx. De acordo com Weffort (1990), o ano de 1848 marca a diminuição das perspectivas revolucionárias nos países mais modernos da Europa, mas elas são transferidas para os países mais atrasados da periferia, como Irlanda e Rússia. “Marx escreve em uma época de revoluções na perspectiva de quem busca as diretrizes para as revoluções de seu tempo e dos tempos futuros” (WEFFORT, 1990, p. 234). 3. A liberdade A concepção de liberdade marxista é diferente da concepção de liberalismo. Marx considerava que a liberdade é o autogoverno, que seria possível através da transição ao Comunismo. A liberdade para Marx só é conseguida com a abolição de classes, da exploração das capacidades que ameaçam a vida do ser humano, da propriedade privada e da liberdade econômica. No liberalismo, porém, liberdade significa a baixa intervenção do Estado nas relações de produção entre os indivíduos, a defesa da propriedade privada, da liberdade econômica e da liberdade de comércio. Pode-se também diferenciar aqui o conceito de ditadura na visão marxista e na atual. Ditadura para Marx era a ditadura da burguesia, uma concepção classista, na qual as liberdades econômicas são mero interesse burguês, que aliena os trabalhadores e que não permite que tenham consciência de sua própria vida. Essa visão classista de ditadura não passou dos anos 20. Após esse período, passou a ser considerada como o domínio de uma ou algumas pessoas através da coerção, podendo melhor ser entendida na fase do Socialismo. Entre as fases analisadas por Marx, o Capitalismo é amplamente criticado, no qual a liberdade é relativa, pois a alta produção transforma os indivíduos em alienados e coagidos ao consumo exacerbado. Não possuem liberdade de escolha e são obrigados a vender sua força de trabalho ao capitalista para garantir a sua sobrevivência. Nessa fase, então, existe a ditadura da burguesia, que detém os meios de produção e comanda a economia, limitando as liberdades da classe oprimida. Para o teórico, o Capitalismo é incapaz de permitir a distribuição eqüitativa das mercadorias produzidas em uma era tecnológica avançada, dominada pela burguesia. Para os marxistas, como lembra Held (1987), a liberdade no Capitalismo é meramente formal, porque a desigualdade corrói fundamentalmente a liberdade e deixa a maioria dos cidadãos livres apenas nominalmente. O povo é governado pelo capital e a liberdade é impossível de ser conquistada enquanto durar a exploração dos seres humanos. Surge a necessidade do Socialismo, com a nacionalização dos meios de produção de forma a atender os objetivos sociais. 103 De Jure 9 prova 2.indd S1:103 11/3/2008 16:21:24 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS No Socialismo, a ditadura do proletariado impede as liberdades de propriedade e dos meios de produção. Esses setores seriam comandados pelo Estado, na intenção de formar um ideal igualitário, futuramente chamado de Comunismo. Nessa ditadura, o proletariado exerce seu poder a fim de controlar os meios de produção e acabar com a divisão de classes. É nessa fase que a ditadura é considerada como nos dias atuais, pois expressa a coerção do Estado através da força, caso ela se torne necessária. Sartori (1994) enfatiza que na ditadura do proletariado, a vasta maioria tem o poder de liberdade. É aqui que a livre iniciativa é combatida, ao se fazer através do Estado o controle da economia, em que o operário se torna apenas uma peça do sistema econômico. Dessa forma, a liberdade requer (de acordo com a dialética marxista) sua negação, ou seja, para se conseguir chegar à liberdade no autogoverno, seria necessária a negação da liberdade através da ditadura do proletariado. No Comunismo idealizado por Marx, o povo se auto-governa. Todos os meios de produção tornam-se comunitários. Lênin, ditador russo, principal dirigente do partido Bolchevique, em 1917, e seguidor das idéias marxistas defende que somente no Comunismo a liberdade poderia ser estabelecida, porém nunca permitiu que isso acontecesse. A liberdade para Marx, portanto, está condicionada à abolição das classes e da exploração da vida humana. A liberdade só existe enquanto a igualdade for o carro chefe. Podemos perceber, então, que tanto o Socialismo quanto o Comunismo das idéias marxistas pregam o ideal igualitário, e a liberdade torna-se conseqüência dessa igualdade. 4. A igualdade Para Marx, a igualdade só seria possível de ser alcançada quando fosse alcançado o estágio do Comunismo, após a revolução. “Falar em revolucionar uma sociedade significa que, no bojo mesmo da velha sociedade, formaram-se elementos da nova sociedade e que a queda de velhos conceitos acompanham a queda das antigas condições de vida.” (MARX, 1983, p. 34). Nessa fase, não haveria mais classes dominantes. Toda a sociedade trabalharia em prol de um bem comum de acordo com as capacidades de cada indivíduo. O Capitalismo seria totalmente abolido, porque só faz com que os trabalhadores não tenham controle dos bens que produzem, ou seja, trabalham alienados. O trabalhador, assim, não pode se reconhecer no produto do seu trabalho, não pode encarar aquilo que ele criou como fruto de sua livre atividade criadora, pois trata-se de uma coisa que para ele não terá utilidade alguma. A criação (o produto), na medida em que não pertence ao criador (ao operário), apresenta-se diante dele como um ser estranho, uma coisa hostil, e não como resultado normal da sua atividade e do seu poder de modificar livremente a natureza (KONDER, 1983, p. 45). 104 De Jure 9 prova 2.indd S1:104 11/3/2008 16:21:24 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS E isso, definitivamente, não é a igualdade que Marx almejava. Para ele, somente quando a igualdade fosse alcançada, a liberdade seria possível. Outros autores, porém, discordam de que a liberdade depende da igualdade. Para Bobbio (1998), liberdade e igualdade são conceitos antitéticos, no que diz respeito à esfera econômica. Não se pode realizar um sem limitar o outro. Para Sartori (1994), liberdade e igualdade são ideais independentes. Para ele, não somos livres por sermos iguais e vice-versa. “Se o Estado se torna todo-poderoso, não há qualquer garantia de que venha a ser um Estado benevolente, um Estado que gera igualdade; ao contrário, é extremamente provável que não venha a sê-lo. Nesse caso, nossas igualdades desaparecerão com nossas liberdades. (SARTORI, 1994, p.137). O autor ainda defende que a igualdade é o mais insaciável de nossos ideais e lança o homem numa disputa interminável. Defende também que a igualdade, enquanto apresentação de propostas ou como ideal construtivo, é algo complicado de se desenvolver. Só é fácil como expressão de protesto. Para Marx, porém, não era bem assim. A disputa pela igualdade terminaria com a conquista do Comunismo, período de efetiva justiça social e fim da alienação provocada pelo Capitalismo. 4.1. Igualdade formal e substancial Marx mantinha sua preocupação na igualdade substancial, ou seja, a igualdade de fato, na qual os homens teriam as mesmas condições e os bens seriam distribuídos igualitariamente. Marx sabia que somente com a distribuição de riquezas em busca de um bem comum e com a abolição das classes, seria possível impedir a exploração dos homens pela classe dominante. Assim, a igualdade formal, aquela que é definida na Constituição, ou seja, igualdade perante as leis, tornar-se-ia também igualdade real e sensível entre os homens. É nessa igualdade substancial que temos muito que evoluir. De acordo com Sartori (1994, p. 127), “O terreno é movediço, claro está, não com respeito às igualdades que temos (como a igualdade política e a jurídica), mas com respeito às igualdades que não temos, ou que temos minimamente”. Weffort (1994, p. 239) considera que as constituições burguesas prejudicam o estabelecimento da igualdade substancial: “Nas constituições burguesas, os ‘direitos do homem’,[...] acabam, na realidade, sendo definidos pelo molde dos direitos do burguês. Deste ponto de vista, os ‘direitos do homem’ – ou os direitos gerais assegurados pelo Estado – não definem uma igualdade que se deva realizar na sociedade”. De acordo com Duguit (2006, p. 13), a doutrina individualista encontrou sua forma precisa e acabada na “Declaração dos Direitos do Homem” de 1789. Esta define em seu artigo 4º: “O exercício dos direitos naturais do homem só tem por limites os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos”. 105 De Jure 9 prova 2.indd S1:105 11/3/2008 16:21:25 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Assim, percebe-se que igualdade formal e substancial são complementares e ambas necessárias na efetivação de uma justiça social, baseada no bem comum. Porém, são independentes, porque a existência de uma não implica a existência da outra. Marx, portanto, era adepto da igualdade substancial e acreditava que só ela seria capaz de acabar com a diferença de classes e a exploração do homem. 5. A democracia liberal Os conceitos como liberdade e democracia, para Marx, são sempre vinculados à igualdade, que era o fim pretendido. Para ele, a democracia era a liberdade para a grande maioria e seria conseguida através da ditadura do proletariado. Esse era o significado da palavra democracia em sua concepção. Sartori (1994), porém, menciona que Marx foi a favor de uma organização democrática, aberta, baseada no voto majoritário em sua participação na Primeira Internacional, entre 1864 e 1873. Marx, sendo um igualitário, criticava o sistema liberal no que diz respeito às liberdades econômicas. Bobbio (1988, p. 39) deixa claro que o objetivo do liberalismo não é o ideal igualitário que Marx almejava. “Para o liberal, o fim principal é a expansão da personalidade individual, mesmo se o desenvolvimento da personalidade mais rica e dotada puder se afirmar em detrimento do desenvolvimento da personalidade mais pobre e menos dotada; para o igualitário, o fim principal é o desenvolvimento da comunidade em seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera das liberdades singulares.” Bobbio (1988) escreve que a única forma de igualdade aceita na doutrina liberal é a igualdade na liberdade, ou seja, cada qual com sua liberdade desde que não interfira na liberdade do outro. O significado de igualdade para Marx não significava exatamente isso, e sim a igualdade econômica, na qual os indivíduos abrem mão de suas individualidades em benefício da sociedade como um todo. Portanto, a democracia marxista estava sempre vinculada à igualdade, mas o liberalismo econômico, não. Ele era considerado um entrave aos anseios revolucionários e igualitários dos ideais marxistas, pois contribuía com o crescimento da complexidade dos problemas a serem enfrentados. 6. Coletivismo Marx foi um teórico extremamente coletivista e abominava a concepção individualista constante do Capitalismo, em que os trabalhadores eram explorados pela burguesia e não obtinham sucesso nas suas lutas revolucionárias. Percebe, então, que os trabalhadores necessitavam de ações coletivistas, nas quais os interesses individuais 106 De Jure 9 prova 2.indd S1:106 11/3/2008 16:21:25 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS seriam combatidos e somente os interesses gerais seriam atendidos. Held (1987) enfatiza que a natureza humana é, acima de tudo, social. Nesse contexto de lutas de classes, entre as disputas de interesses individuais e coletivos, surge a figura do Estado, com a função de dirimir esses conflitos. Assim, Marx expõe que “[...] a luta prática desses interesses particulares, que constantemente e de modo real chocam-se com os interesses coletivos e ilusoriamente tidos como coletivos, torna necessário o controle e a intervenção do Estado.” (MARX,1983 p. 49). O individualismo, para Marx, era um tipo de alienação que deixava o homem dominado completamente pelos modos de produção capitalista. O coletivismo de Marx pressupõe que a personalidade do indivíduo se dissolve na totalidade e que o indivíduo aparece como uma peça para a engrenagem do organismo coletivo. Marx é, portanto, um defensor de um ideal coletivista, pois, em sua ideologia comunista, a base de sustentação é o coletivismo sem divisão de classes, que agiria conforme o ideal de bem comum. De acordo com Przeworski: “O interesse de classe é algo vinculado aos operários como coletividade e não como um amontoado de indivíduos, a seu interesse ‘grupal’ e não a seu interesse ‘seriado’” (PRZEWORSKI , ano, p. 34). 7. Conclusão A Revolução Industrial representou grandes mudanças sociais, porque fez firmar o sistema capitalista no mundo, provocando a constante busca de riquezas. No século XXI, muito do que Marx percebeu ainda persiste, como o aumento das desigualdades sociais e a baixa qualidade de vida da maioria da população. Apesar disso, amplas críticas são feitas ao sistema capitalista e o governo tem aumentado a fiscalização, de forma a minimizar os impactos que este sistema provoca sobre a sociedade. Na tentativa de aliviar estes impactos, citamos como exemplo a Lei 14.223 de 26 de setembro de 2006, que dispõe sobre a ordenação dos elementos que compõem a paisagem urbana do Município de São Paulo, de forma a regulamentar os anúncios e a diminuir a poluição visual para quem esteja na cidade. Consideramos grandes conquistas as ações que buscam maior rigor ético nas propagandas publicitárias, e conseqüentemente que propiciam maior discernimento e controle na aplicação da estrutura capitalista a qual vivemos. Pode-se concluir que Marx concebia a liberdade e a ditadura de forma diferente do que é concebido hoje: ditadura era o que a burguesia exercia sobre o proletariado; liberdade era a abolição de classes, da opressão e a conquista da igualdade social. Para Marx, a democracia era conciliável com o Socialismo, mas os ideais liberais não. Assim, Marx pregava profundas críticas ao liberalismo. Para ele, a propriedade privada deveria ser abolida, assim como a liberdade econômica. Conclui-se que o 107 De Jure 9 prova 2.indd S1:107 11/3/2008 16:21:25 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS pensamento de Marx era coletivista, pois se preocupava com o bem-estar de todos, não apenas de um grupo pequeno de indivíduos, fazendo-nos sempre refletir até que ponto o liberalismo e o Capitalismo influenciam negativamente nas desigualdades sociais tão presentes no mundo contemporâneo. 8. Referências bibliográficas BOBBIO, Roberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988. BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão vota regulamentação de propaganda para crianças. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/internet/homeagencia/materias. html?pk=96863. Acesso em: 23 jan. 2007. DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. Tradução: Márcio Pugliesi. 2. ed. São Paulo: Ícone, 2006. HELD, David. Modelos de democracia. Belo Horizonte: Paidéia, 1987. KONDER, Leandro. Marx: vida e obra. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. MARX, Karl et al. 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ARTIGOS 1.1 A METAPSICOLOGIA FREUDIANA DA VINGANÇA E O DIREITO PENAL – UMA INTERSEÇÃO REVELADORA DOS FUNDAMENTOS NECESSÁRIOS DE UMA TEORIA DO CRIME ADEQUADA ANA CECÍLIA CARVALHO Psicóloga e Psicanalista Mestra em Psicologia, Doutora em Literatura Comparada Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da UFMG MARCELO CUNHA DE ARAÚJO Promotor de Justiça em Minas Gerais Mestre e Doutor em Direito Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da PUC-MG MARIA JOSEFINA MEDEIROS SANTOS Acadêmica de Psicologia, Bolsista PIBIC-CNPq NAYANA FINHOLDT SHIMARU Acadêmica de Psicologia, Bolsista Probic-FAPEMIG LUCIANA ANDRADE MARINHO Acadêmica de Psicologia CLÁUDIO JÚNIO PATRÍCIO Acadêmico de Psicologia SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A tratativa da vingança na obra de Sigmund Freud. 3. Conclusões. 1. Introdução Os profissionais que têm experiência na seara criminal, independentemente do campo de formação (juristas, psicólogos, assistentes sociais etc.), percebem que o crime constitui, freqüentemente, um evento divisor de águas na vida dos envolvidos 109 De Jure 9 prova 2.indd S1:109 11/3/2008 16:21:25 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS no fato. A partir do momento em que ocorre, independentemente de efetiva atuação estatal, tanto o criminoso como todos aqueles que, de uma forma ou de outra, foram afetados referem-se ao evento como algo particular em sua existência. Esse círculo de afetação do evento criminoso, que, a priori, parece refletir apenas no autor e na vítima, quando se verifica com maior vagar, percebe se tratar de um evento propagador, como uma pedra atirada em um lago, que se estende a partir dos maiores atingidos pela conduta criminosa. Nessa linha, a família do agente, a família da vítima, os operadores do sistema criminal e, de forma geral, toda população que toma conhecimento do fato, todos, dependendo do nível de reflexos reais sentidos a partir da ocorrência do fato proibido, acabam por ter sua esfera particular modificada e passam a ter expectativas que atribuem às mais diferentes searas de convivência social. Torna-se, por conseguinte, comum, após a ocorrência de um delito, o surgimento de diversas expectativas, como as religiosas (espera-se que o criminoso se sinta arrependido), morais (que reconheça seu erro), éticas (que reconheça o valor do bem jurídico protegido pela norma – como, por exemplo, a vida ou o respeito à esfera jurídica patrimonial de terceiros), econômicas (que se disponha a ressarcir o prejuízo causado), entre outras. Associado às expectativas citadas, uma esperança presente, via de regra, é a da atuação do Direito, mais especificamente do direito penal. Nesse diapasão, uma vez que os sistemas sociais humanos devem servir aos próprios homens, passou a ser interessante se perquirir a respeito das finalidades do direito penal que deveriam ser condizentes ao que se espera dele, tanto numa visão micro, como macro. Dessa feita, percebe-se que uma teoria dos fundamentos do direito penal deve abarcar, a um só tempo, tanto a teoria do crime como a da pena, o que constitui, justamente, a noção do funcionalismo em contraposição ao ontologismo restritivo finalista. Nesse passo, explicita Greco (2000, p. 42) que “[...] a teoria dos fins da pena adquire portanto valor basilar no sistema funcionalista. Se o delito é o conjunto de pressupostos da pena, devem ser estes constituídos tendo em vista sua conseqüência, e os fins desta”. Isso significa, portanto, claras modificações na forma de interpretação do tipo penal, da ação, do nexo causal, da ilicitude e da culpabilidade, o que se reflete, por exemplo, na adoção do princípio da insignificância; na ilicitude material consolidada (pelo princípio da lesividade ou da ofensividade – que já vinham propostos antes no finalismo); na imputação objetiva; nos fins da pena; na culpabilidade, entre outros. Dessa forma, pode-se dizer que, nas duas visões mais difundidas do funcionalismo, que tomamos, simplificadamente, como o funcionalismo sistêmico de Jakobs (2003)1 1 V., para uma introdução à teoria dos sistemas, Araújo (2007; 2004); além, é claro, da obra de Luhmann e De Georgi (1993) e do próprio Jakobs (2003). 110 De Jure 9 prova 2.indd S1:110 11/3/2008 16:21:25 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS e o funcionalismo teleológico de Roxin2 e, de forma geral, em todas as correntes do direito penal voltado às conseqüências, houve uma fusão conciliadora das teorias da pena na teoria do delito, passando ambas a se constituírem como a teoria dos fundamentos do direito penal. Nesse sentido assinala Hassemer (1994, p. 26) que, “[...] alterava-se a reflexão penal de uma ênfase no ‘input’ para uma ênfase no ‘output’ de uma justificação do Direito Penal fundada em abstração e sistema para uma justificação pelos efeitos que possa produzir”. Continua, ainda, dizendo que “[...] sanções e execução penal convertem-se em objetos centrais de reflexão penal”. Com efeito, apenas a título de explanação, pode-se dizer que temos basicamente três abordagens que se prestam à fundamentação da pena: a absoluta, a relativa e a eclética ou unificadora. Todas as teorias possuem aspectos que podem ser vislumbrados mais prementemente até hoje em determinadas normas de execução penal. Dessa feita, não podemos identificar que o sistema brasileiro adotou explicitamente e exclusivamente uma teoria apenas, sendo proeminente, em determinados momentos, uma ou outra abordagem e, analisado o sistema como um todo, a teoria eclética. A idéia primordial e absoluta, inicialmente trazida dos cânones religiosos, indicava que o pecado deveria ser expiado com determinado castigo. Da mesma forma que a penitência no descumprimento das normas religiosas, a ofensa à ordem jurídica exigia uma retribuição em pena, como forma de restauração e manutenção do Direito. Ressalte-se que essa primeira teoria revela os iniciais laços intrincados entre o Direito e a religião, que se perpetuam hodiernamente, o que é facilmente visualizado pela conotação geral em que se verifica a proximidade entre termos como pecado e crime; criminoso e pecador; padre e juiz; pena, castigo e penitência; ressocialização e arrependimento; culpa e tentação, entre muitos outros que podem ser citados. Por conseguinte, o mal da conduta do criminoso deve ser compensado com a imposição de outro mal: a pena. Para Kant, o fundamento da pena seria de ordem ética pelo imperativo categórico de que a justiça será realizada pela restauração retributiva do direito. Hegel, por sua vez, vê na necessidade de restabelecer a vigência da vontade geral como o fundamento da pena. Pode-se dizer, então, que enquanto Kant fundamenta a pena na ordem ética, Hegel o faz na ordem jurídica. Uma vez que o direito (tese) é negado pelo crime (antítese); a negação da negação, que geraria uma reafirmação da tese, seria alcançada pela síntese (pena). Nessa esteira, verifica-se que as teorias absolutas possuem como ponto de referência a culpabilidade e a reprovabilidade do agente e sua conduta, ao passo que as teorias relativas se embasam na periculosidade, conforme lição de Bitencourt (2006, p. 71). Interessante consignar, seguindo as lições de Hassemer (1994, p. 35) que: 2 V. a excelente tradução de Luís Greco da obra de Roxin (2000). Sobre o funcionalismo e o finalismo, recomenda-se a obra de Chamon Júnior (2004). 111 De Jure 9 prova 2.indd S1:111 11/3/2008 16:21:26 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS [...] é fora de dúvida que mesmo as teorias ‘sem fins’ da pena, no fundo perseguiam fins, e as teorias ‘clássicas’, ao invocarem em seu favor a busca da justiça e da compensação pela infração, atribuíam tais efeitos a certa conotação empírica. Todas elas podem ser agrupadas sob o rótulo ‘persecução de fins através da negação de fins’. As teorias relativas, por sua vez, saem do paradigma da retribuição do castigo reafirmador do direito, para se focalizarem na função preventiva, voltada ao futuro, do direito penal. Essa prevenção pode ser visualizada de forma geral ou especial e nos aspectos positivos e negativos. A prevenção geral, inicialmente apontada por Feuerbach, visa à criminalidade como fenômeno social.Acominação abstrata de penalidade a determinadas condutas e a aplicação efetiva da pena quando elas ocorrem deveriam gerar uma coação psicológica, uma intimidação social, desestimuladora da prática em todas as pessoas. Haveria, assim, uma intimidação dos cidadãos de forma a se alcançar a prevenção da prática delituosa. Verifica-se que as teorias relativas, em sua prevenção geral, baseiamse num suposto conhecimento generalizado das normas penais em toda sociedade. A prevenção geral positiva seria, então, a finalidade da solidificação da crença na operosidade e confiabilidade do direito em punir condutas nocivas à sociedade. O cidadão, ao verificar a previsão abstrata das penas e sua aplicação a criminosos, pensa que deve seguir as normas e que o Direito efetivamente é um sistema que funciona adequadamente. A prevenção geral negativa, a seu turno, implica numa intimidação do cidadão em não praticar delitos, ainda que, em determinadas circunstâncias, sinta-se tentado a tal. A prevenção especial, por outro lado, trazida por von Liszt, dirige-se exclusivamente àquele que praticou o delito com o objetivo de que ele não volte a delinqüir no futuro. O delito seria um dano social e o criminoso um perigo à convivência em sociedade. Dessa feita, o agente deve ser tratado de acordo com sua periculosidade. A prevenção especial negativa significa que o sujeito deve ser apartado do convívio social enquanto perdurar o risco, que pode ser inferido pelo passado do cidadão associado à gravidade da conduta perpetrada. A prevenção especial positiva, por sua vez, implica a finalidade de se buscarem os meios para se alcançar, durante o afastamento do convívio com o corpo social, o aprendizado de como a pessoa deve se portar em comunidade (ressocialização). As teorias mistas ou unificadoras, por fim, entendem que a retribuição, a prevenção (geral ou especial; positiva ou negativa) são apenas diferentes aspectos de um mesmo fenômeno complexo: a pena3. As idéias funcionalistas, de certa forma, implicam que: 3 Saliente-se que diversos autores verificam nos próprios fins apontados uma contradição impossibilitadora das penas (em especial, a privativa de liberdade) atingirem todas as finalidades propostas a um só tempo. Nesse sentido, citamos Thompson (1991, p. 3): “Propõe-se, oficialmente, como finalidade da pena de prisão, a obtenção não de um, mas de vários objetivos concomitantes: punição retributiva do mal causado 112 De Jure 9 prova 2.indd S1:112 11/3/2008 16:21:26 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A pena retributiva é rechaçada, em nome de uma pena puramente preventiva, que visa a proteger bens jurídicos ou operando efeitos sobre a generalidade da população (prevenção geral), ou sobre o autor do delito (prevenção especial). Mas enquanto as concepções tradicionais de prevenção geral visavam, primeiramente, a intimidar potenciais criminosos (prevenção geral de intimidação, ou prevenção geral negativa), hoje ressaltam-se, em primeiro lugar, os efeitos da pena sobre a população respeitadora do direito, que tem sua confiança na vigência fática das normas dos bens jurídicos reafirmada (prevenção geral de integração, ou prevenção geral positiva). Ao lado dessa finalidade, principal legitimadora da pena, surge também a prevenção especial, que é aquela que atua sobre a pessoa do delinqüente, para ressocializá-lo (prevenção especial positiva), ou, pelo menos, impedir que cometa novos delitos enquanto segregado (prevenção especial negativa). (GRECO, 2000, p. 43). Concluindo, verifica-se que, após as doutrinas funcionalistas, não há como se falar em uma filosofia do direito penal, sem se levar em consideração, a um só tempo, a teoria do delito e a teoria da pena que, apesar de terem nascido separadamente, se unem necessariamente para a explicação funcional desse ramo do Direito4. pelo delinqüente; prevenção da prática de novas infrações, através da intimidação do condenado e das pessoas potencialmente criminosas; regeneração do preso, no sentido de transforma-lo de criminoso em não criminoso”. Continua, ainda, o autor, “[...] a maioria das pessoas recuse reconhecer uma verdade que está entrando pelos olhos: reformar criminosos pela prisão traduz uma falácia e o aumento de recursos, destinados ao sistema prisional, seja razoável, médio grande ou imenso, não vai modificar a assertiva. Atentemos para o seguinte: até hoje, em nenhum lugar, em nenhum tempo, nem nos países mais ricos e nos momentos de maior fastígio, sistema penitenciário algum exibiu um conjunto de recursos que tivesse sido considerado como, pelo menos, satisfatório. O que parece algo inviável, mesmo porque jamais foram estabelecidos precisamente e especificamente, quais seriam, em qualidade e quantidade, tais recursos ideais. Essa indefinição garante a perpetuidade à justificativa mencionada, pois permite seja aplicada ad eternum” (THOMPSON, 1991, p. 16-17). 4 Reveladora a lição crítica de Batista (1995, p. 111-116), que, por sua precisão e pertinência, merece ser trazida na totalidade de seu argumento: “Por isso, a missão do direito penal defende (a sociedade), protegendo (bens, ou valores, ou interesses), garantindo (a segurança jurídica, ou a confiabilidade nela) ou confirmando (a validade das normas). [...]. Observe-se que os fins assinalados se projetam predominantemente na relação pena-sociedade. [...]. Um iniciante estaria tentado a considerar até que os fins do direito penal e os fins da pena habitam a mesma casa, porém os primeiros na sala de visitas e os segundos na cozinha. Essa descrição comparativa, algo caricata, das mais usuais respostas oferecidas às perguntas sobre a missão do direito penal e os objetivos da pena, põe de manifesto que, se os penalistas não sucumbem à tentação de substituir a missão do direito penal que devem descrever pelo direito penal de seus sonhos, ou existem diferenças entre aquilo que pretende o direito penal e aquilo que pretende seu instrumento essencial e característico – a pena –, ou este é o ponto mais densamente turvo, do ponto de vista ideológico, do discurso jurídico-penal. Mais do que em qualquer outra passagem, a ideologia transforma aqui fins particulares em fins universais, encobre as tarefas que o direito penal desempenha para a classe dominante, transvestindo-as 113 De Jure 9 prova 2.indd S1:113 11/3/2008 16:21:26 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A par de tais considerações, importante que se anote que, em nenhum momento, nem nas teorias absolutas, nem nas relativas ou mistas, existe qualquer finalidade do direito penal que leva em consideração qualquer tipo de resposta do sistema voltada às vítimas. Pode-se dizer, atualmente, que os sistemas penais, de forma geral, são fulcrados numa criticável “[...] neutralização da vítima, a fim de que se possa serenamente aplicar a sanção penal ao infrator” (CALHAU, 2003, p. 25). Percebe-se que, ao argumento de se impedir uma modificação da rechaçada vingança privada por uma indesejável vingança pública, instituiu-se, de forma geral, o direito de ação, e mais especificamente, para o processo criminal, o ius puniendi de titularidade exclusiva estatal. Nesse sentido, percebe-se a correta lição de Cintra, Dinamarco e Grinover (1997, p. 249): “[...] vedada em princípio a autodefesa e limitadas a autocomposição e a arbitragem, o Estado moderno reservou para si o exercício da função jurisdicional, como uma de suas tarefas fundamentais”. Ainda, na mesma trilha, Tornaghi (1987, p. 100) esclarece que: Já vimos que, primitivamente, quando alguém via insatisfeita sua pretensão, agia diretamente contra o adversário para compeli-lo fisicamente à prestação. Um dia, porém, o Estado proibiu fazer justiça pelas próprias mãos, chamou a si a tarefa de resolver os conflitos de interesses e disse aos particulares: de ora em diante só quem tem o poder de fazer justiça (jurisdição) sou eu; não há mais ação de um particular contra o outro; a única maneira de agir permitida é esta: vir a mim; de um interesse social geral, e empreende a mais essencial inversão, ao colocar o homem na linha de fins da lei: o homem existindo para a lei, e não a lei existindo para o homem. [...] Por isso mesmo, ao lado das funções aparentes da pena, [...] o eterno esquema das teorias absolutas, relativas e mistas, fala-se hoje nas funções ocultas ou não declaradas da pena. [...] Sandoval Huertas organizou as funções não declaradas da pena privativa de liberdade em três níveis: a) o nível psicossocial (funções vindicativa e de cobertura ideológica); b) o nível econômico social (funções de reprodução de criminalidade, controle coadjuvante do mercado de trabalho, e reforço protetivo à propriedade privada); c) o nível político (funções de manutenção do status quo, controle sobre as classes sociais dominadas e controle de opositores políticos). Pensamos que numa sociedade verdadeiramente justa e democratizada os fins do direito penal e da pena constituirão, transparentemente expostos e debatidos, um só e indivisível projeto. Entrementes, cabe um esforço, a exemplo do que ocorreu na área das funções da pena, no sentido de desmistificar os fins do direito penal, questionando as respostas usuais. [...] Definitivamente é inegável que numa sociedade dividida, o bem jurídico, que opera nos lindes entre a política criminal e o direito penal, tem caráter de classe. Tal constatação permite o aproveitamento crítico do conceito de bem jurídico, no amplo espectro de funções que, como vimos, lhe corresponde. Podemos, assim, dizer que a missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos, através da cominação, aplicação e execução da pena. Numa sociedade dividida em classes, o direito penal estará protegendo relações sociais (ou ‘interesses’, ou ‘estados sociais’, ou ‘valores’) escolhidos pela classe dominante, ainda que aparentem certa universalidade, e contribuindo para a reprodução dessas relações. Efeitos sociais não declarados da pena também configuram, nessas sociedades, uma espécie de ‘missão secreta’ do direito penal”. 114 De Jure 9 prova 2.indd S1:114 11/3/2008 16:21:26 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS de mim é que o particular poderá exigir justiça. Eu a farei usando do poder que tenho sobre todos e, portanto, sobre o adversário de quem a pede. Dessa forma aquele (que podemos chamar autor) nada pode exigir desse (a quem podemos chamar réu), mas esse não se poderá furtar ao meu poder. A esses fatores, acrescentem-se as problematizações de que, no processo penal, a maioria dos delitos se procedem mediante as ações penais públicas incondicionadas (relegando a vítima à atuação dependente da interpretação do Ministério Público) e da inoperosidade total do sistema. Esclarecedora a lição de Calhau (2003, p. 26-27): Ao contrário do aspecto racional, que seria o fim do sofrimento ou o abrandamento da situação em face da ação do sistema repressivo estatal, a vítima sofre danos psíquicos, físicos, sociais e econômicos adicionais, em conseqüência da reação formal e informal derivada do fato. Não poucos os autores a afirmarem que essa reação traz mais danos efetivos à vítima do que o prejuízo derivado do crime praticado anteriormente. Essa situação é chamada de sobrevitimização do processo penal ou vitimização secundária, quer dizer o dano adicional que causa a própria mecânica da justiça penal formal em seu funcionamento. No processo penal ordinário e na fase de investigação policial, a vítima é tratada com descaso e, muitas vezes, com desconfiança pelas agências de controle estatal da criminalidade. A própria sociedade também não se preocupa em ampará-la, chegando, muitas vezes, a incentivá-la a manterse no anonimato, contribuindo para a formação da malsinada cifra negra, o grupo formado pela quantidade considerável de crimes que não chegam ao conhecimento do sistema penal. Torna-se claro que, num direito penal que se proponha moderno, respeitador, a um só tempo, dos avanços das teorias do delito e dos fins da pena; da noção de funcionalidade do sistema baseada em seus objetivos e outputs e dos direitos fundamentais, o estudo da vítima não seja relegado a segundo plano. Faz-se primordial, por conseguinte, estudar as repercussões do crime na vítima para que o sistema social não se desvincule da realidade do dia-a-dia; não num ontologismo aprisionador do finalismo, mas num empirismo político-criminal, embasado no dualismo de compromisso entre a realidade social e o normativismo cunhado na resistência da coisa (Widerstand der Sache) de Roxin. O estudo que se propõe no presente artigo parte da premissa de que há algo de inerente ao aparelho psíquico que tornam próximas não apenas todas as vítimas, mas, na verdade, todos os homens. Nesse sentido, a partir de entrevista informal 115 De Jure 9 prova 2.indd S1:115 11/3/2008 16:21:26 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS com a mãe de uma vítima de um homicídio culposo no trânsito, que se demonstrava nitidamente frustrada com a resposta estatal e clamava por um significado para o que ocorreu, ou do pai de uma vítima de homicídio que sempre repetia sua intenção de ceifar a vida do assassino, caso o direito penal não atuasse adequadamente, surgiu uma interrogação, dessas que nos incomodam, porém permanecem sem resposta: qual seria o papel que deveria ser ocupado pelo sistema penal na vida das vítimas? Interessante notar que, no discurso das vítimas, sempre alguma faceta da vingança, de forma direta ou velada, surge como tema. Pode a mesma se explicitar numa expectativa de vingança pública ou privada. Pode a vítima afirmar que efetuará a vingança apenas no caso de ineficiência do Estado. O discurso de justiça com as próprias mãos, por sua vez, também é claramente vingativo. Ainda podem ser reconhecidos traços de vingança, muitas vezes, no próprio clamor de justiça, porém com uma conotação evidentemente sádica. Esse tema recorrente da vingança, que sempre aparece nos discursos não apenas policiais mas também em nosso cotidiano, sendo, inclusive, tema central de inúmeras obras literárias, musicais ou cinematográficas, deve, por hipótese, revelar alguma faceta inerente à condição humana que precisa, sob pena de total inadequação e, portanto, perda de sentido, ser respeitada pelo direito penal. Neste sentido, pesquisa realizada no período de 2003 a 2005 revelou que 18,61% dos 462 homicídios registrados em Belo Horizonte foram motivados por vingança. Outros 5,19% foram efetuados a partir de conflitos amorosos que também culminaram na retaliação homicida. Ou seja, aproximadamente 110 dos 462 assassinatos analisados apenas por essa pesquisa, nesse curto intervalo de tempo, estão, de alguma forma, associados à vingança (SILVA, 2006). É bem provável que esses números se repitam em muitos outros lugares, naqueles casos em que a vingança comparece em destaque na enumeração dos motivos de um crime ou de um ato infracional. Assim, resguardadas as diferenças porventura existentes entre os vários contextos socioeconômicos e culturais que se relacionam a esses crimes, tais dados apenas reforçam a importância de um estudo sistemático sobre esse assunto. Cabe, então, um primeiro pedido ao leitor: o de que se coloque, durante o estudo do texto, de forma neutra e imparcial, refletindo os questionamentos puramente humanos que possua, sem a tentativa de enquadramento em tal ou qual teoria. Isso se dá, uma vez que se percebe que o tema da vingança é um assunto claramente envolvido por um certo tabu na seara jurídica, já que, conforme citado supra, podese dizer que a criação de todo ordenamento jurídico envolve a idéia de repúdio à vingança, devendo os homens resolver seus problemas de forma digna e racional, preterindo maneiras bestiais de solução de conflitos. Já fica uma observação no sentido de que, em momento algum, os autores pretendem uma volta à violência privada por uma defesa insana da vingança. O que se propõe é, simplesmente, olhar 116 De Jure 9 prova 2.indd S1:116 11/3/2008 16:21:27 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS de forma desarmada para algo tão natural ao ser humano que, por isso mesmo, causa tanto espanto ao nos sentirmos tentados a agir de forma vingativa, o que demonstra nossa inescapável humanidade, apesar de todo e qualquer tampão racional. Nessa trilha, apesar de não sermos afetos às afirmações categóricas, podemos dizer que todas as pessoas, freqüentemente, possuem ímpetos vingativos como respostas a ações que nos atingem de uma maneira determinada. Esses freqüentes ímpetos vingativos ocorrem, por exemplo, quando dirigimos um veículo no trânsito congestionado e somos fechados por outra pessoa; quando alguém fura a fila do supermercado, demonstrando total descaso aos demais; quando somos traídos por nossas esposas e maridos, além de uma infinidade de outras situações. Nessas hipóteses, dependendo, entre outros fatores, da gravidade do evento, surge uma verdadeira ferida em nosso mais profundo interior. Essa ferida, às vezes, é tão dolorida e pulsa de uma forma tão latejante que choramos, perdemos noites de sono e, até mesmo, passamos a atos vingativos, que podem configurar pequeninas retaliações ou mesmo grandes crimes. Essa vontade de se vingar, presente em todos os homens e mulheres, em maior ou menor grau, com maior ou menor possibilidade de se efetivar em ações vingativas, é, usualmente, percebida em casos de vítimas de crimes. Tanto é assim, que, conforme exposto alhures, autores justificam o direito de ação e o ius puniendi, por uma exigência em se coibir a vingança privada. Sem falsos moralismos ou discursos politicamente corretos, o que se propõe é a abordagem séria do tema da vingança como algo natural de todo ser humano e, mais importante, que possui uma função específica na organização da economia psíquica do aparelho mental, o que pode ser verificado através do olhar psicanalítico na obra freudiana. Com isso, como se verá no decorrer da exposição, não se pretende, de forma alguma, implicar o direito penal com uma necessidade de vingança5 (pública ou privada) ou mesmo afirmar que a vingança seja uma saída apropriada a ofensas. Busca-se, tão-somente, estudar o fenômeno da vingança do ponto de vista freudiano no sentido de se explicitar seu papel e, com isso, revelar a importância do direito penal na recomposição dos aparelhos psíquicos afetados pelo crime (incluindose, aí, o agente, a vítima e todos os círculos de afetação oriundos do delito). 5 O perigo da associação da pena à vingança é bem exposto por Batista (2004, p. 134): “Nos tempos que correm, em nosso país, as velhas senhoras bondosas são freqüentemente instigadas a reencarnar-se nas deusas do ódio e da vingança. Para as necessidades de controle penal do capitalismo sem trabalho, para ajudar na neutralização dos inúteis da nova economia, nada mais oportuno. A vingança, que Nietzsche localizou na alma das tarântulas, é um velho produto que os publicitários-criminólogos brasileiros estão relançando no mercado, com novos rótulos, para ajudar a vender sua irmã mais nova ‘chapa branca’, a pena”. 117 De Jure 9 prova 2.indd S1:117 11/3/2008 16:21:27 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2. A tratativa da vingança na obra de Sigmund Freud Apesar das muitas menções à vingança, nos volumes que compõem a Edição standard das obras completas de Sigmund Freud, nem uma vez o assunto é ali abordado de maneira sistemática e, do mesmo modo, tampouco por seus seguidores, embora a teoria psicanalítica tenha se consolidado para fornecer os operadores necessários para um exame minucioso desse fenômeno. Torna-se necessário, por conseguinte, focalizar metapsicologicamente o fenômeno da vingança, isto é, examiná-lo em seus aspectos dinâmicos (isto é, relativos ao conflito psíquico que a anima), em relação aos seus aspectos econômicos (isto é, relativos à sua função no meio dos outros processos psíquicos) e em relação à sua determinação inconsciente. Portanto, o que aqui se descreve como a metapsicologia da vingança é o que nos permitirá articular esse fenômeno aos conceitos centrais da psicanálise, tais como o inconsciente, a sexualidade, os mecanismos de defesa, o narcisismo e as pulsões de morte, dentre outros. Inicialmente, nos socorremos dos primórdios da psicanálise, que remontam ao texto de Freud e Breuer (1976, v. 2, p. 29-296), intitulado Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar, que oferece considerações que podem contribuir na sistematização do fenômeno da vingança. Nesse trabalho, Freud e Breuer discorrem acerca dos fenômenos histéricos. A afirmação de que “[...] os histéricos sofrem principalmente de reminiscências” faz alusão a algumas observações relatadas por Freud sobre a histeria cujos sintomas estariam ligados às cenas de um passado doloroso em que a emoção não pôde ser exteriorizada. Essa emoção fica, em parte, retida na vida psíquica e, outra parte, é liberada para inervações e inibições sintomáticas. Tal emoção é provocada por um trauma psíquico caracterizado por qualquer experiência que possa provocar afetos aflitivos (susto, angústia, vergonha, dor física). É nesse contexto que Freud e Breuer introduzem o termo vingança, que é considerado como uma reação, ou seja, um meio de descarregar o afeto. Para os autores, quando a reação ocorre em grau suficiente, grande parte do afeto desaparece. Quando a reação é reprimida, o afeto permanece vinculado à lembrança. Com isso, pode-se ter uma elucidação acerca do ressentimento, tal como se segue: O que acontece no ressentimento é que o ofendido não se atreve, ou não se permite, responder à altura da ofensa recebida. O envenenamento psicológico produz-se a partir da reorientação para o eu dos impulsos agressivos impedidos de descarga, gerando uma disposição passiva para a queixa e a acusação, assim como a impossibilidade de esquecer o agravo passado. (KEHL, 2005, p.13). 118 De Jure 9 prova 2.indd S1:118 11/3/2008 16:21:27 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Freud e Breuer (1976, v. 2, p. 49) ainda consideram que: [...] uma ofensa revidada, mesmo que apenas com palavras, é recordada de modo bem diferente de outra que teve que ser aceita. A linguagem também reconhece essa distinção, em suas conseqüências mentais e físicas; de maneira bem característica, ela descreve uma ofensa sofrida em silêncio como ‘uma mortificação’ [‘Kränkung’, literalmente, um ‘fazer adoecer’]. - A reação da pessoa insultada em relação ao trauma só exerce um efeito inteiramente ‘catártico’ se for uma reação adequada - como, por exemplo, a vingança. Mas a linguagem serve de substituta para a ação; com sua ajuda, um afeto pode ser ‘ab-reagido’ quase com a mesma eficácia. Em outros casos, o próprio falar é o reflexo adequado: quando, por exemplo, essa fala corresponde a um lamento ou é a enunciação de um segredo torturante, por exemplo, uma confissão. Quando não há uma reação desse tipo, seja em ações ou palavras, ou, nos casos mais benignos, por meio de lágrimas, qualquer lembrança do fato preserva sua tonalidade afetiva do início. Entretanto, os autores abordam que uma pessoa normal que tenha passado por um trauma psíquico pode se utilizar do processo de associação para lidar com a situação, provocando o desaparecimento do afeto concomitante. Um exemplo citado foi o de que a lembrança de uma humilhação corrige-se quando a pessoa normal situa os fatos nos devidos lugares, considerando o seu próprio valor. Em outro capítulo, há menção de uma pulsão de vingança – mas pulsão no sentido de impulso – encontrada em uma nota de rodapé que se segue: A pulsão de vingança que é tão poderosa no homem primitivo e que é mais disfarçada do que recalcada pela civilização, nada mais é do que a excitação de um reflexo não liberado. Defender-se de uma agressão numa luta e assim agredir o adversário é o reflexo psíquico adequado e pré-formado. Quando não é levado a efeito ou o é de maneira insuficiente, o reflexo é constantemente liberado pela lembrança, e a pulsão de vingança surge como um impulso volitivo irracional, do mesmo modo que todas as outras ‘pulsões’. A prova disso está precisamente na irracionalidade do impulso, em seu descompromisso com qualquer questão de utilidade ou conveniência e, a rigor, no seu desprezo por todas as considerações relativas à própria segurança do indivíduo. Tão logo o reflexo é liberado, a natureza irracional do impulso pode tornar-se consciente (FREUD; BREUER, 1976, v. 2, p. 212). 119 De Jure 9 prova 2.indd S1:119 11/3/2008 16:21:27 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Posteriormente, após o desenvolvimento de um arcabouço inicial da teoria psicanalítica (principalmente na obra A Interpretação dos Sonhos, de 1900-1901 – inclusive com menção expressa a sonhos vingativos de realização de desejos), Freud (1976, v. 4 e 5, p. 157-317) expõe uma análise terapêutica efetivamente por ele realizada, que acabou por se constituir em marco na consolidação do arcabouço da teoria e da práxis da psicanálise. Ao caso Dora (1976, v. 7) Freud confere uma importância singular, uma vez que o concebe como um complemento daquela que é considerada a obra fundadora da psicanálise – A Interpretação dos Sonhos. O caso Dora trata-se de um fragmento de uma análise que durou cerca de três meses. Apesar de Freud ter condensado o referido caso a fim de vislumbrá-lo no tocante aos sintomas histéricos e suas interpretações, o caso Dora é um dos mais extensos da obra freudiana. Nesse sentido, procurar-se-á colocar, aqui, apenas aqueles elementos indispensáveis para a elucidação do caso e suas vinculações com o fenômeno vingativo. Dora é o pseudônimo de uma jovem histérica chamada Ida Bauer (1882-1945). Ela foi encaminhada por seu pai, Philipp Bauer, ao Dr. Freud quando tinha dezoito anos de idade em decorrência de uma série de sintomas – enxaqueca, tosse, afonia e outros – que não eram apaziguados por tratamentos médicos convencionais. A palavra histeria, morfologicamente, vem do grego hystera e significa útero. Os gregos a consideravam uma afecção restrita às mulheres, surgindo em função de uma movimentação uterina anômala na cavidade abdominal. Freud, a partir de seus estudos com Charcot no Hospital de Salpêtrière (1885), atribui à histeria uma nova etiologia. Diante de sintomas que não encontravam quaisquer determinantes anatômicos e fisiológicos, Freud se lança em uma empresa que buscou conferir à histeria um estatuto plenamente diferenciado. Freud (1976, v. 4, p. 16) relaciona a etiologia dessa doença às “[...] intimidades da vida psicossexual dos pacientes, e que os sintomas histéricos são a expressão de seus mais secretos desejos recalcados”. Dora era a filha mais nova de uma família composta pelo pai, pela mãe, Katharinna Gerber-Bauer, e pelo irmão, Otto Bauer. O pai era um industrial abastado e de notável inteligência. No entanto, Phillip Bauer tinha uma saúde frágil, fato que levava Dora a dispensar-lhe cuidados freqüentes. A mãe era uma figura menosprezada por Dora, sendo esta descrita por Freud como vítima de um quadro denominado de psicose da dona-de-casa, ou seja, uma mãe sem a menor compreensão acerca dos interesses dos filhos e que se volta exclusivamente a ocupações domésticas, como faxinas com nuances obsessivas. O irmão de Dora era um ano e meio mais velho e, durante a infância da paciente, constituiu-se como um modelo a seguir. Contudo, anos mais tarde, o irmão distanciou-se dela, uma vez que ele sempre apoiava a mãe em quaisquer discussões que surgiam no seio familiar. 120 De Jure 9 prova 2.indd S1:120 11/3/2008 16:21:27 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O pai era o membro central nesse núcleo, erigindo-se também como a figura à qual Dora dirigia grande afeto. O pai, após ser acometido por uma tuberculose, passa uma temporada em uma cidade denominada no caso, em razão do sigilo que se fazia necessário na época, como B----. Foi nessa viagem que a família de Dora conheceu e desenvolveu uma cara amizade com o Sr. e a Sra. K, casal de significativa influência no quadro histérico da jovem. O pai de Dora e a Sra. K tornaram-se muito próximos, pois ela cuidou dele com muito zelo durante suas enfermidades. A estreita amizade cultivada pelos dois suscitou rumores de que esse vínculo não se sustentava apenas em função da gratidão do pai de Dora pela Sra. K, mas sim em razão de uma relação amorosa entre os dois. Foi também na cidade B----, local em que o Sr. e Sra. K haviam se radicado há muitos anos, que transcorreu a cena creditada por ser a deflagradora (trauma psíquico) do quadro histérico da paciente. Dora estava caminhando com o Sr. K ao redor de um lago nos Alpes quando ele lhe fez uma audaciosa proposta amorosa, informando-lhe que seu casamento já estava arruinado (“Eu não tenho nada com a minha mulher”). Dora sentiu-se ultrajada e esbofeteou a face de K, decidindo retornar subitamente com seu pai para Viena. Quatorze dias após o ocorrido no lago, Dora resolve contar aos seus pais sobre a investida do Sr. K. O pai já havia observado alterações no comportamento de Dora, notando-a abatida e irritável. No entanto, o que mais preocupou o pai foi encontrar uma carta suicida deixada por Dora em uma cômoda no seu quarto. Philipp Bauer estava certo de que tais condutas deviam-se, então, ao que havia ocorrido entre sua filha e o Sr. K. Assim, o pai decide confrontá-lo, exigindolhe explicações acerca do que realmente havia sucedido. O Sr. K nega a acusação que lhe fora desferida, dizendo ao pai de Dora que o depoimento de sua filha era calunioso, fato que não lhe surpreendia, uma vez que Dora, de acordo com K, lhe parecia uma menina com fortes interesses e imaginações de cunho sexual. A Sra. K havia dito ao seu marido sobre os livros a que Dora dedicava uma atenção especial – leituras como Fisiologia do Amor, de Mantegazza. Diante das circunstâncias, aparece, então, uma das primeiras menções à vingança no caso Dora. A garota tenta se vingar do Sr. K, ao contar a seus pais sobre a cena do lago. Ela esperava que, ao falar do ocorrido, o Sr. K. seria desmoralizado, enquanto ela se sairia vitoriosa. Dora busca restituir-se moralmente através desse ato, restabelecendo uma virtude que ela dera por maculada na cena do lago. No entanto, essa vingança acabou sendo malograda, uma vez que o Sr. K desacreditou e desmoralizou Dora diante de seus pais. A cena do lago, como já foi explicitado, constitui-se como o trauma psíquico, ou seja, um acontecimento que, em função de sua intensidade, não é passível de ser elaborado de forma adequada pelo sujeito e acaba por ocasionar um quadro patogênico. Alguns eventos, então, possuem tamanha 121 De Jure 9 prova 2.indd S1:121 11/3/2008 16:21:28 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS carga de energia que acabam por ser demasiados ao controle do aparelho psíquico que acabam por transbordar as possibilidades do sujeito, sendo chamados de traumáticos. Freud explica que o aparelho psíquico é regulado pelo princípio do prazer que se esforça por manter uma harmonia de excitações. Um aumento de tensões é sentido como desprazeroso, enquanto sua diminuição é prazerosa. A cena do lago possui um forte caráter sexual que resgata em Dora lembranças recalcadas de sua infância, período no qual a paciente se entregou a satisfações auto-eróticas. Materiais como esse, cujo teor está embebido de significações sexuais, são comumente sentidos como excessivos e, como conseqüência, geradores de ansiedade e desprazer. A masturbação infantil emerge como um elemento salutar no quadro histérico da jovem – Dora não permite se entregar a K. em função da enorme culpa inconsciente que sentia em decorrência desse período remoto de sua infância. Nesse sentido, a vingança está estreitamente ligada a um dos três pontos norteadores da metapsicologia – o ponto de vista econômico. Ao vingar-se, ou pelo menos tentar fazê-lo, o aparelho psíquico de Dora trabalha por uma descarga de tensões. A vingança, portanto, não deve ser encarada como uma atividade essencialmente destrutiva; pelo contrário, ela é o meio encontrado para se obter um alívio absolutamente necessário para um equilíbrio mental. Não seria arriscado dizer que Dora adoece por não ser capaz de vingar-se. Outra vingança que Dora tenta infligir, mas que novamente cai no insucesso diz respeito ao desejo de vingar-se de seu pai através de seus sintomas – e também da carta suicida. Dora sempre caía enferma quando seu progenitor viajava ao encontro da Sra. K. A jovem paciente sentia um ciúme exacerbado pelo pai, fato que evidenciava um reavivamento de uma paixão com raízes edipianas. Essa regressão a um passado infantil revela uma solução encontrada inconscientemente por Dora para suprimir algo que lhe era extremamente forte e também inaceitável – o seu amor pelo Sr. K. Dora tentava dissuadir o pai com reiteradas súplicas e argumentos de que não deveria ir ao encontro da Sra. K, mas os desejos da jovem permaneciam inauditos. Embora Dora exigisse de seu pai um afastamento das Sra. K., os seus rogos eram pouco firmes. A jovem, ao mesmo tempo em que demandava um distanciamento de seu pai em relação a Sra. K, era também bastante permissiva diante da união infiel. Freud acreditava que Dora procedia com tal ambigüidade para não ter de dizer de seu próprio relacionamento com o Sr. K, e também por desejar afastar a Sra. K do homem com quem ansiava desposar-se. Vale complementar que K havia investido sexualmente na jovem em outra circunstância que não a do lago, mas quando Dora tinha apenas 14 anos. Nessa ocasião, o Sr. K arquitetou uma forma de ficar a sós com a garota e roubar-lhe um beijo, que, por sinal, suscitou em Dora uma intensa repugnância (já nessa época, de acordo com as exposições de Freud, Dora exibia atitudes histéricas, pois diante de uma oportunidade de excitação sexual, sentimentos desprazerosos de ojeriza são 122 De Jure 9 prova 2.indd S1:122 11/3/2008 16:21:28 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS despertos). Novamente, a via sintomática encontrada por Dora é usada como um instrumento para impossibilitar o adultério do pai. A paciente demonstra-se mais uma vez inábil no sentido de encontrar caminhos mais sãos de alívio tensional, recorrendo à somatização que, embora fosse imobilizante, era a única saída que lhe surgia. Torna-se imprescindível dizer que o próprio sintoma também possui aspectos econômicos, já que a somatização possibilita a vazão de excitação. O sintoma também traz à baila outro elemento norteador da metapsicologia – o ponto de vista dinâmico. Esse aspecto da metapsicologia revela a existência de um conflito psíquico, ou seja, de exigências internas contrárias que se opõem. Essas forças conflitantes podem se dar entre desejos e uma exigência moral que os tolhe, fato que pode traduzir-se na formação de sintomas. No caso Dora, o ponto de vista dinâmico é facilmente contemplado, uma vez que a histeria da paciente decorre de um choque entre o seu desejo inconsciente (entregar-se ao Sr. K) e sua própria exigência moral, acompanhada por um sentimento inconsciente de culpa que impossibilitava sua satisfação pulsional. O caso Dora foi, para Freud, um estudo muito caro e de enorme valia no sentido de auxiliá-lo a melhor compreender os sonhos na histeria. Freud publicou em 1900 A Interpretação dos Sonhos, trabalho que contém indispensáveis teorizações no tocante à metapsicologia. É nesse estudo que Freud faz uma estruturação sistemática da noção do inconsciente e formula as relações desse sistema com a formação onírica. Freud irá dizer que os sonhos são a via de realização de um desejo inconsciente. Até mesmo aqueles sonhos que parecem estar completamente apartados dessa formulação, devido ao seu conteúdo angustiante, são também realizações de desejos. No caso Dora, Freud faz uma análise pormenorizada de dois sonhos da paciente, o Sonho I e o II. A fim de não tornar esta exposição ainda mais extensa, será tratado aqui apenas o Sonho II em função de seu conteúdo vingativo. Nesse sonho, Dora se vê passeando por uma cidade desconhecida. Na sua caminhada, ela se depara com uma casa onde estava morando sozinha e é levada a subir até o seu quarto onde encontra uma carta de sua mãe que lhe comunica que seu pai havia morrido. Dora então parte para a estação e dirige-se até a casa de sua família, onde é informada pela criada que sua mãe e os outros já estavam no cemitério. Após uma análise minuciosa de cada elemento de tal elaboração onírica, Freud conclui que o teor do sonho correspondia a uma fantasia de vingança contra o pai. Dora deseja se vingar de sua figura paterna, que a abandonou duas vezes: primeiro deixando-a nas mãos do Sr. K, como uma espécie de prêmio, devido à sua relação infiel com a Sra. K e, segundo, ao não lhe dar crédito quando confessa que havia sido importunada com uma investida amorosa do Sr. K. No sonho, portanto, as relações se invertem. Dora não mais se sujeita aos abandonos do pai, pelo contrário, ela o sujeita ao abandono no momento de seu falecimento. Ela 123 De Jure 9 prova 2.indd S1:123 11/3/2008 16:21:28 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS também se vinga da coerção que lhe fora imposta por seu pai durante toda sua vida, se ele morresse, ela poderia ler e amar o que melhor lhe aprazesse. Assim, o sonho surge como um caminho que não o sintomático, no sentido de lidar com fantasias de vingança. Entretanto, o sonho por si só não é capaz de extinguir em Dora o seu anseio por vingança. A jovem desejava ser levada a sério, ser livre e poder se entregar ao homem que tanto amava. Mas, diante da interdição dessas aspirações, seja pela incredulidade do pai, seja pelas limitações impostas por uma sociedade vitoriana que tolhia qualquer manifestação sexual feminina, ou por um sentimento inconsciente de culpa que impossibilitava a jovem de amar o Sr. K, Dora se sentia no direito de vingar-se, de encontrar um modo de ser restituída de tudo que lha fora subtraído. Um mero sonho vingativo, por sua vez, não seria efetivo no sentido de realizar todas essas pretensões. Uma nova tentativa de vingança surge no momento em que Dora esbofeteia o Sr. K quando ele faz a investida no lago. Dora procede de tal maneira, pois se lembra de uma conversa que havia tido com uma jovem governanta que trabalhara no domicílio do casal K. A governanta confessou-lhe que o Sr. K tinha agido de modo assaz atrevido, propondo a ela um romance e afirmando-lhe não ter mais nada com sua esposa. O Sr. K usou da mesma aproximação com Dora, fato que a irritou profundamente e a levou a agredir o Sr. K. A vingança de Dora novamente foi manejada com incongruência, já que ao Sr. K não foi dito o porquê do bofetão. Dora ataca K. por achar que a ela não poderia ser dirigida uma investida idêntica à que outrora fora usada com uma serviçal. A paciente pertencia a uma argentária família e por isso merecia tratamento diferenciado. O Sr. K., portanto, feriu a sua condição narcísica, já tão alquebrada em função das inúmeras interdições que eram impostas à jovem. Mas Dora, ao esbofetear K, não achou que ele não voltaria a lhe procurar. A jovem cria que o Sr. K lhe procuraria arrependido e clamando por perdão, no entanto, K. não o fez. A vingança novamente voltou à garota, fato que agravou enormemente o seu quadro histérico. De fato, quem se vingou ao banir de suas aspirações amorosas foi o Sr. K. Ele é quem, em função de um agravo, restitui-se narcisicamente, dando a Dora o troco por não ceder com aceite a sua sedução. Por fim, Freud expõe uma forma singular de vingança com enorme relevância na prática psicanalítica – a vingança transferencial. A transferência, sucintamente, diz respeito ao “[...] processo pelo qual desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica” (Laplanche; Pontalis, 2004, p. 514). Dora abandonou o tratamento analítico de forma abrupta, impossibilitando que Freud completasse as suas interpretações acerca do quadro histérico da paciente. Dora, ao abandonar Freud, vingou-se do analista, impossibilitando o seu trabalho, mas também se vingou dos papéis que o doutor acabou representando 124 De Jure 9 prova 2.indd S1:124 11/3/2008 16:21:28 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS no inconsciente da paciente, papéis que o aproximavam tanto de seu progenitor como do Sr. K. Freud possuía determinados traços de caráter que o assemelhavam ora ao pai de Dora, ora o Sr. K. Assim, a paciente acabou reatualizando desejos inconscientes de vingança referentes aos dois no setting psicanalítico, vingando-se do analista que os suscitou. Essa talvez tenha sido a vingança mais efetiva de Dora, uma vez que de fato frustrou as expectativas de Freud em relação ao tratamento. Por outro lado, Dora não se satisfez ao vingar-se do representante daqueles que lhe feriram. A afecção histérica continuou lhe torturando, já que a paciente não elaborou o material inconsciente determinante de sua doença. Freud cometeu um erro no que concerne ao manejo da transferência de Dora – ele, no curto período em que se deu a análise da jovem, não foi capaz de perceber os papéis que representava no inconsciente da analisando. Se Freud houvesse notado isso durante o tratamento, poderia ter evitado a vingança transferencial e prolongado a análise até o seu desfecho apropriado, ou seja, o desfecho da elaboração. A última e mais eficaz vingança executada por Dora ocorreu quando houve a morte de um dos filhos do casal K. A jovem retornou à cidade B---- e confrontou os dois, forçando-os a admitir sobre a investida amorosa no lago e sobre a relação infiel que a Sra. K mantivera por longos anos com seu pai. Interessante notar que essa empresa parece ter repercutido muito positivamente no quadro da paciente. Os padecimentos histéricos rarearam e Dora finalmente se casou com um rapaz que vinha lhe cortejando. Nesse sentido pode-se observar a relevância do dizer. A articulação de um afeto a uma rede de significantes que o nomeiam e o exteriorizam parece ter uma forte implicação no apaziguamento de um ressentimento. Dora deixa de se envenenar com fantasias de vingança que nunca alcançavam a concretude e parte para outra via muita mais harmoniosa – a da palavra. O aspecto econômico do vingar-se, ou seja, a possibilidade de descarregar tensões por demais excessivas no aparelho psíquico por meio da retaliação, pode se dar não só pelo viés destrutivo do ataque físico, mas por outro mais sereno representado pela linguagem. É importante salientar que incentivar um paciente a relatar sobre os afetos que animam suas fantasias de vingança traz benefícios, mas não é um manejo suficiente. Noutra linha de raciocínio, impende sublinhar que a psicanálise é uma prática sustentada pelo infantil. É durante o período da infância que se instaura o aparelho psíquico e que se configura a formação do eu. É também na vida infantil que se erigem importantes fenômenos que são salutares na formação do sujeito. Dentre eles, o estádio do espelho e o complexo de Édipo emergem como acontecimentos essencialmente estruturantes para o psiquismo da criança. 125 De Jure 9 prova 2.indd S1:125 11/3/2008 16:21:28 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O estádio do espelho é um conceito lacaniano, conforme descrito por Dor (1992) e pelo próprio Lacan (1998, p. 96-103), que visa elucidar a forma como se dá a compreensão por parte da criança de que é um corpo inteiriço. A experiência da criança de aproximadamente seis meses a dois anos e meio de se olhar no espelho e perceber-se uma, propicia-lhe uma experiência assaz jubilatória, pois lhe garante a apreensão de sua imagem corpórea. O complexo de Édipo, por sua vez, não deve ser entendido apenas como aquela experiência na qual a criança se vê enamorada pelo progenitor do sexo oposto e rivalizando com o progenitor do mesmo sexo. A passagem pelo complexo de Édipo e sua posterior dissolução inserem a criança em um jogo identificatório em que se prefiguram a estruturação da personalidade e a orientação do desejo humano. A maneira como a criança enfrenta esses momentos repercute diretamente em sua estruturação psíquica. Se o aparelho psíquico já se encontra formado durante a infância e conseqüentemente apto a receber as mais variadas inscrições, pode-se, também, compreender a vingança infantil pelos pressupostos metapsicológicos. Para a psicanálise, toda vingança é infantil, uma vez que, como já foi exposto, a prática se ampara em fenômenos que datam desse período. Contudo, vale fazer uma diferenciação entre a vingança que ocorre no período adulto, mas que contém elementos infantis, e aquela vingança que se dá durante a infância. Freud tratou em sua obra de várias formas de vingança efetuadas por crianças, sendo o Caso Hans (1909) a teorização em que mais surgem menções à vingança. Freud, para explanar o Caso Hans, lançou mão de textos como: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1976, v. 7, p. 119-230), O esclarecimento sexual das crianças (1976, v. 9, p. 135-144), Sobre as teorias sexuais das crianças (1976, v. 9, p. 211-228) e Algumas conseqüências da diferença anatômica entre os sexos (1976, v. 19, p. 303-320). Esses textos são utilizados como base para compreender as descobertas de Hans sobre a origem dos bebês. As crianças, antes de adquirirem uma noção condizente acerca da procedência dos nenéns, se apóiam em uma série de teorias. A mais comum entre elas, e que terá significativa relevância na elucidação do Caso Hans, é a atribuição de pênis a todos os indivíduos, seja do sexo masculino ou feminino (Hans arquitetou uma hipótese que estendeu a atribuição de pênis até mesmo a objetos inanimados). Também é comum que o infante acredite que os bebês apareçam após a ingestão por parte da mãe de pequenas sementinhas, que acabam por se desenvolver em sua barriga. Outra conjectura infantil envolve a teoria cloacal, ou seja, a de que os bebês não nascem pela vagina materna, órgão ainda desconhecido ou denegado pela criança, mas sim de seu ânus, tal como ocorre em aves. A emersão dessas teorias sexuais infantis no seio teórico da psicanálise foi possibilitada após diversas observações de crianças efetuadas por Freud. A análise de Hans foi efetuada a duas mãos, havendo contribuições do próprio Freud como também do pai do garoto, figura que vinha se dedicando aos 126 De Jure 9 prova 2.indd S1:126 11/3/2008 16:21:29 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS estudos da psicanálise. O trabalho com Hans se iniciou quando ele tinha apenas cinco anos, em razão de uma fobia por cavalos. O medo e a angústia exacerbada que o garoto possuía de eqüinos tinha implicações agudas na época, uma vez que esses animais representavam o principal meio de transporte. Um aspecto central na análise de Hans diz respeito às teorias sexuais ideadas pelo garoto. Em um primeiro momento, o garoto acreditava na concepção anedótica referente à entrega de bebês pela cegonha. No entanto, a partir da gravidez de sua mãe, Hans se envolveu com novas investigações, percebendo que as mudanças ocorridas no corpo materno se relacionavam com a presença de outro bebê (sua irmã Hanna). Hans, durante suas averiguações, conseguiu estabelecer algumas analogias entre a fábula das cegonhas e a origem dos bebês. O garoto possuía um livro de figuras no qual se ilustrava um ninho de cegonhas em uma chaminé vermelha que, após minuciosa análise, pôde ser identificada como um útero. Curiosamente, na mesma página em que há o desenho das cegonhas, também se exibe o esboço de um cavalo. Durante o trabalho analítico com Hans, seu pai o questionou acerca da possível analogia existente entre os cavalos da fazenda de sua família saindo pelo portão da estrebaria e o processo de defecação que, por sua vez, também possuía parecenças com o parto. Hans assente à análise efetuada pelo pai e realiza a seguinte dedução: cavalo igual à lumf (fezes) que também seria correlativo a bebês (cavalo=fezes=bebês). O pai de Hans então o argüiu sobre a agressividade que ele sentia pelos cavalos. Houve o seguinte diálogo entre o pai e o garoto: “Pai: Você gostaria de bater nos cavalos assim como mamãe bate em Hanna? Você gosta disso também, você sabe. Hans: Não se acontece nada de mal aos cavalos quando se bate neles” (reproduzindo a fala do pai). Pai: Em quem é que você realmente gostaria de bater? Mamãe, Hanna ou em mim? Hans: Na mamãe!”. A despeito do que foi revelado por Hans nessa inquirição, investigações ulteriores não confirmam sua reposta. Na verdade, o desejo do garoto era que seu pai se ferisse contra uma pedra e sangrasse (Fritz, um companheiro de brincadeira de Hans, havia se ferido de tal forma) para que ele pudesse então ficar sozinho com sua mãe. A fobia de Hans em relação a cavalos somava-se ao desejo de maltratá-los. O anseio do garoto de achacar os eqüinos possuía duas determinantes: a primeira se referia ao desejo sádico de ferir a mãe e a segunda se configurava como um impulso de vingança contra o pai. Assim, através de sua fobia, Hans encontrou uma via para vingar-se de seu pai por ele se interpor na relação com sua mãe. O pai representava os cavalos na fantasia da criança, sendo o elemento que ameaça o menino com o temor da castração. A vingança de Hans, tal como no Caso Dora, processou-se pela mediação sintomática. Em um plano inconsciente, Hans transpôs a sua agressividade perante o pai para os cavalos, garantindo, assim, sua integridade narcísica. Caso Hans efetuasse sua vingança diretamente em sua figura paterna, sem a interposição de um representante 127 De Jure 9 prova 2.indd S1:127 11/3/2008 16:21:29 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS (cavalos) no qual pôde depositar sua destrutividade, ele colocaria em risco seu narcisismo, uma vez que estaria se sujeitando à possibilidade de seu pai intervir com a castração. A vingança de Hans, portanto, obedeceu à lógica da autopreservação. No processo relativo à formação de uma fobia, dois mecanismos essenciais dos processos inconscientes se destacam – a condensação e o deslocamento. A condensação é uma noção que foi bastante contemplada na Interpretação dos Sonhos, trabalho no qual foi tratada de forma bastante sistemática. A condensação: [...] traduz-se no sonho pelo fato de o relato manifesto, comparado com o conteúdo latente, ser lacônico: constitui uma tradução resumida. A condensação nem por isso deve ser assimilada a um resumo: se cada elemento manifesto é determinado por várias significações latentes, inversamente, cada uma destas pode encontrar-se em vários elementos. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004, p. 87). A partir disso, pode-se dizer que o fenômeno da vingança possui afinidades com a elaboração onírica, uma vez que no vingar-se ocorrem construções semelhantes à condensação. No desejo de vingança de Hans em relação ao pai, o elemento manifesto representado pela fobia é determinado por significações latentes referentes ao ódio edipiano do garoto perante sua figura paterna. O deslocamento, por sua vez, caracteriza-se pelo fato de “[...] a importância, o interesse a intensidade de uma representação ser suscetível de se destacar dela para passar a outras representações originariamente pouco intensas, ligadas à primeira por uma cadeia associativa” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004, p. 116). No caso Hans, nota-se que a vingança se desloca do pai para os cavalos – o deslocamento é justificável, pois seu pai freqüentemente brincava de cavalo com seu filho. Embora a fobia do garoto comprometesse severamente sua qualidade de vida, essa via seria menos intensa do que se ele transpusesse diretamente seu desejo vingativo à sua figura paterna, uma vez que, como já foi dito, isso poderia comprometer a sua integridade narcísica. O Homem dos Lobos (1918) é outro caso clínico freudiano de alta relevância para a psicanálise. Nele, também se expõe um caso de fobia que, embora tenha se desdobrado até a fase adulta, possuía determinações infantis. O paciente padecia de um temor exagerado pela figura de lobos que, assim como ocorreu no caso Hans, representavam a figura paterna. O impulso hostil contra o pai foi reprimido e transformado em quadro fóbico. No caso Homem dos Lobos, observa-se uma interessante faceta do fenômeno vingativo referente à projeção. Durante a infância do paciente, ele projetou ao pai impulsos hostis. Por meio de tal operação, o Homem dos Lobos expulsou de si e localizou no pai a agressividade que ele mesmo possuía (assim como no Caso Hans, a 128 De Jure 9 prova 2.indd S1:128 11/3/2008 16:21:29 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS hostilidade perante o pai se baseava no conflito edipiano). O Homem dos Lobos, por meio da projeção, alocou inconscientemente o seu desejo vingativo no pai, fato que levou o paciente a temê-lo. Nesse caso, o jovem Homem dos Lobos era atormentado pela fantasia de que seu pai iria lhe devorar, temor que se encontra enraizado na fase oral da libido. Outro caso em que se exibem diversas alusões ao vingar-se infantil diz respeito ao Homem dos Ratos (1909), trabalho em que se efetua a mais sistemática construção acerca da neurose obsessiva na obra freudiana. O Homem dos Ratos foi o codinome encontrado por Freud para sigilosamente relatar o caso de seu paciente Ernest Lanzer, que procurou o Dr. Freud em função de obsessões que datavam desde sua infância, mas que haviam se intensificado nos últimos anos. O paciente contava que sentia um medo intenso de que algo ruim pudesse acontecer com o seu pai e com uma dama que lhe era muito estimada. Além disso, ele se queixava de impulsos compulsivos, como o ímpeto de cortar sua própria garganta com uma lâmina. Posteriormente, ele criou uma série de proibições que foram estabelecidas com o intuito de afastar de sua mente pensamentos desprazerosos. Freud denominou o caso como Homem dos Ratos em decorrência do grande medo obsessivo que assolava o seu paciente. A experiência que precipitou o primeiro encontro de Lanzer com Freud ocorreu em função de um relato que o paciente ouvira de um capitão durante o tempo em que serviu ao Exército. Em uma parada para descanso durante uma manobra militar, o Homem dos Ratos sentou-se com dois oficiais e o capitão, figura que lhe atemorizava, pois sabia que ele defendia castigos corporais no meio militar. Com o transcorrer da conversa, o capitão relatou acerca de um castigo que estava sendo aplicado por oficiais no Leste. A punição era efetuada de modo que o prisioneiro era despido e amarrado, e sobre suas nádegas era virado um vaso com ratos que tentavam cavar um caminho de saída no ânus do torturado. Logo após esse relato, atravessou na mente do paciente, como um relâmpago, a idéia de que aquele castigo estava ocorrendo com uma pessoa que lhe era muito cara. A princípio, o analisando acreditava que a dama a qual tanto admirava estava sofrendo tal tortura. Logo depois, essa idéia estendeu-se ao seu pai, fato que levou o paciente a crer que ele, mesmo estando morto há nove anos, podia estar padecendo com o mesmo castigo no além-mundo. Embora o Homem dos Ratos só tenha procurado o Dr.Freud na idade adulta, ele já vinha sofrendo de um quadro neurótico desde sua infância. A primeira menção ao fenômeno vingativo no caso contextualiza-se durante a meninice do paciente. Com o transcurso da análise, Lanzer contou a Freud sobre o intenso ciúme que sentia de seu irmão mais novo. Ele era considerado por todos como o filho mais forte e bonito, sendo eleito o favorito da família. Um dia, durante uma brincadeira envolvendo espingardinhas, o Homem dos Ratos convenceu seu irmão para que olhasse dentro 129 De Jure 9 prova 2.indd S1:129 11/3/2008 16:21:29 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS do cilindro sob a alegação de que veria algo interessante. O caçula é persuadido e é atingido na testa, não se ferindo gravemente. O paciente então confessa que havia tido a real intenção de feri-lo, mas que logo após o ocorrido, sentiu-se extremamente culpado, questionando-se sobre como havia tido a coragem de fazê-lo. A rivalidade entre irmãos não raro atua como um propulsor de atos vingativos. Inúmeros casos de agressões e outras formas de violência permeiam essa modalidade relacional. O nascimento de um filho freqüentemente ocasiona modificações no seio familiar, alterando fortemente a relação entre os pais e seus outros filhos. A criança que até então era a caçula e se vê destituída de tal posição, amiúde torna-se agressiva, desafiadora e rebelde. Embora essas atitudes sejam um tanto equivocadas na tentativa de restituir à criança aquele zelo que lhe foi subtraído em função da chegada de um bebê, essas são as vias encontradas por ela para voltar a atenção de seus cuidadores a si mesmo. Para a criança, qualquer forma de atenção, até mesmo a punitiva diante de suas traquinagens, é melhor do que sua ausência. Nesse sentido, a vingança infantil pode ser vislumbrada por meios diversos, seja através de rusgas incessantes, de agressões físicas e verbais, ou por caminhos mais sutis, em que a retaliação é endereçada aos pais. Nessa trilha, Winnicott (1995) foi um pediatra e psicanalista britânico que agregou relevantes contribuições ao campo da psicanálise com crianças. Esse teórico trouxe uma nova luz ao fenômeno da delinqüência, encarando-o como uma busca de solução da privação emocional. Ele acreditava que atos delinqüentes cometidos na infância e adolescência são formas encontradas pelos jovens de alcançar continência e limites. Crianças que sofreram severas privações emocionais se enveredariam por caminhos escusos, efetuando furtos, agressões, e outros delitos com o intuito de se restituírem emocionalmente em decorrência das privações e frustrações que lhe foram impostas por suas figuras parentais. Além disso, comportamentos anti-sociais permitiriam também a descarga de tensões acumuladas, restaurando o equilíbrio no aparelho psíquico. Assim, percebe-se que determinados atos agressivos e hostis têm determinantes estritamente emocionais, configurando-se como uma espécie de vingança infantil em relação aos pais negligentes. Contudo, essa vingança freqüentemente se volta não aos relapsos cuidadores, mas à sociedade que serve como um representante parental. Ao efetuarem delitos, os jovens delinqüentes esperam encontrar a contenção e o equilíbrio social que se fizeram ausentes em suas vidas familiares. Freud, em seu texto Romances familiares (1976, v. 11, p. 243-247), elucida uma outra forma de vingança infantil dirigida aos pais. Nesse ensaio, Freud fala a respeito de crianças neuróticas e sobre a tendência à fantasia que elas exibem. A criança, à medida que vai crescendo, tem a oportunidade de conhecer e se relacionar com pais que não os seus. Assim que a criança expande suas relações interpessoais, ela se engaja em um exercício comparativo, buscando confrontar o 130 De Jure 9 prova 2.indd S1:130 11/3/2008 16:21:29 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS modo como é tratada com o modo como percebe que outras são. Essas comparações subsidiam fantasias por parte da criança de que não está sendo alimentada ou cuidada com o devido zelo, ou seja, de que está sendo vítima de negligência. A partir disso, ela cria uma fantasia vingativa em que imagina que seu pai é alguém rico e de muito melhor linhagem que seu pai verdadeiro. Essa forma de vingança dirige-se unicamente à figura paterna, a partir do momento que a criança percebe que os bebês só podem nascer de mulheres. Quando a criança alcança essa compreensão, ela apreende que a mãe é sempre certíssima, enquanto a paternidade é sempre duvidosa. Embora pareça que a fantasia vingativa infantil de se imaginar fruto de um pai mais poderoso que seu verdadeiro seja uma atitude ingrata ou infiel, ela, na verdade, enaltece seu progenitor. Esses romances familiares expressam a saudade que a criança possui de tempos do passado, em que ela era feliz por ter um pai que lhe parecia ser o mais nobre e forte dos homens. Freud concebia o fantasiar como uma via de realização de desejo, assim, a criança neurótica, por intermédio de suas fantasias, busca concretizar seus anseios vingativos. Ainda em relação ao Homem dos Ratos, pode-se dizer acerca de um formato do fenômeno vingativo que se faz especialmente presente em quadros de neurose obsessiva. Nesse transtorno observam-se conflitos psíquicos que se expressam em sintomas como idéias obsedantes, dúvida, efetuação de ritos, ambivalência de afetos (amor e ódio, por exemplo, se debatem com particular violência causando grande angústia para o paciente) e autopunição decorrente de uma forte tensão entre o ego e um superego especialmente feroz. Além disso, nota-se outro aspecto nessa afecção relacionado com a equivalência entre pensar e acontecer. O Homem dos Ratos cria que o simples fato de desejar algo, podia levar a sua real concretização. Assim, apenas por fantasiar uma vingança, ele se sentia deveras culpado, uma vez que sua distinção entre o plano real e ideativo estava comprometida. Em função disso, se o Homem dos Ratos fantasiasse uma vingança contra a dama por ela não ter aceitado o seu pedido de casamento, ele se envergonhava muitíssimo, acusando-se impiedosamente por possuir pensamento de tal sorte. Pode-se fazer uma relação entre esse aspecto (desejar = acontecer) da neurose obsessiva com outro texto freudiano – Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1976, v. 14, p. 350-377). Nele, Freud expõe achados clínicos referentes à existência de um certo tipo de caráter que efetua atos criminosos em função de um sentimento de culpa – “[...] criminosos devido ao sentimento de culpa”. Freud confere a atos criminosos um olhar analítico, tratando-os como uma forma do delinqüente, a partir da punição devida, localizar um sentimento inconsciente de culpa. O criminoso executaria o delito por sentir uma culpa da qual desconhece sua origem, mas que o angustia severamente no plano da não-consciência. Realizado o crime, o delinqüente anseia por uma punição que contemple não só o delito pelo qual foi incriminado, mas 131 De Jure 9 prova 2.indd S1:131 11/3/2008 16:21:29 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS que o puna especialmente pelo crime-mor que cometera quando criança – o desejo do parricídio e do incesto. O sentimento inconsciente de culpa, que mobiliza o criminoso, tem para Freud raízes edipianas. O grande desejo que aplaca a criança durante o complexo de Édipo de tomar a figura do sexo oposto do genitor do mesmo sexo pode gerar uma culpa feroz, a depender da forma como o superego se estrutura no infante. A analogia entre esse texto e o Homem dos Ratos se alinhava com o fato de Lanzer se sentir, por grande parte de sua existência, como um grande criminoso. Ele não precisou executar nenhum crime concreto no mundo externo, mas ele o fazia a todo o momento em seus pensamentos. Como para ele havia uma equivalência entre pensar e acontecer, suas fantasias vingativas dirigidas seja para a dama, para seu pai ou para Freud localizavam a sua culpa da mesma forma que se houvesse de fato cometido um crime. A recriminação que vinha da ferocidade de seu superego já era suficiente para fazê-lo sentir punido por seus desejos edípicos. A neurose obsessiva possui nuances que determinam uma relação diferenciada com o fenômeno vingativo. A partir do que foi exposto referente ao Homem dos Ratos, nota-se que o neurótico obsessivo não raro padece de uma culpa rigorosa em razão de um superego particularmente cruel. No texto intitulado Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (contribuições à psicologia do amor) (1976, v. 11, p. 148-157), Freud disserta acerca de duas possíveis escolhas objetais de um homem neurótico: ou ele opta por investir libidinalmente em uma mulher comprometida, alimentando assim os seus impulsos de rivalidade e hostilidade; ou, então, ele elege uma mulher que se assemelhe a uma prostituta, podendo assim vivenciar uma experiência de ciúme. Ambas as escolhas estão diretamente relacionadas com o complexo de Édipo. O desejo de vingança relatado por Freud nesse texto é novamente infantil e se dirige à figura materna, uma vez que ela concede o privilégio da relação sexual ao pai, e não à criança. Em outro texto denominado O tabu da virgindade (contribuição à psicologia do amor II) (1976, v. 11, p. 179-182), Freud diz acerca do tabu da virgindade em povos primitivos. O teórico afirma que o desvirginar feminino não tem apenas conseqüências relativas ao estreitamento de vínculos entre a mulher deflorada e seu parceiro; em alguns casos ele pode também desencadear uma reação arcaica de hostilidade das mulheres para com seus defloradores. Nesse caso, o sentimento de vingança feminino nasceria quando os homens que lhe tiraram a virgindade não são mais os seus companheiros. Entretanto, elas não conseguiriam dirigir sua libido para um outro objeto pelo fato de ainda se sentirem ligadas, por sujeição e não por afeição, àqueles que as desvirginaram. Em Luto e Melancolia (1976, v. 14, p. 271-291), a vingança aparece relacionada ao processo melancólico. A melancolia caracteriza-se por ser um transtorno no 132 De Jure 9 prova 2.indd S1:132 11/3/2008 16:21:30 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS qual o sujeito se identifica com um objeto perdido. Esse processo identificatório, todavia, ocorre com a incorporação de traços ruins do objeto que não mais se faz presente. Em razão disso, o melancólico se auto-recrimina, considerando-se uma figura absolutamente execrável. A autopunição efetuada pelo sujeito melancólico é endereçada não propriamente a si, mas àquele objeto mau que o abandonou. A vingança do melancólico efetua-se por meios específicos, em que a retaliação se dirige ao próprio sujeito. Embora a vingança do melancólico pareça malograda, ela constitui-se como uma via autêntica de retaliar um objeto que lhe rejeitou. Em função de sua ausência, o melancólico descobre nos caminhos identificatórios um modo de se vingar. “Via de regra, [...] os pacientes ainda conseguem pelo caminho indireto da autopunição, vingar-se do objeto original” (FREUD, 1976, v. 14, p. 284). A vingança também é recorrente nos escritos de Freud relacionados aos sonhos. No texto A censura dos sonhos (FREUD, 1976, v. 15, p. 165-178), a vingança aparece como um dos desejos censurados que têm sua realização através dos sonhos: “Desejos de vingança e de morte, dirigidos contra aqueles que nos são mais próximos e mais caros na vida desperta, contra os pais, irmãos e irmãs, maridos ou esposa, e contra os próprios filhos, não são nada raros” (FREUD, 1976, p. 173). Em O Ego e o Id (1976, v. 14, p. 13-83), texto metapsicológico que inaugura explicitamente a segunda tópica da teoria psicanalítica, Freud cita conto de Otto Rank, que exemplifica alguns atos neuróticos de vingança dirigidos a pessoas erradas (pelos mecanismos explicitados supra), o que remete à tétrica história dos três alfaiates de uma aldeia, em que um deles deveria ser enforcado porque o único ferreiro do povoado havia cometido um grave delito. A punição aparece dessa forma como uma medida retaliativa dirigida à pessoa errada, entretanto, possuindo um mecanismo reparador da ordem. A vingança opera semelhantemente ao trabalho do sonho no qual aparece primeiramente esse tipo de frouxidão de deslocamento resultante do processo primário. No entanto, seria característico do ego ser mais seletivo sobre a escolha tanto de objeto, quanto de um meio de descarga libidinal. Caso essa energia deslocável seja libido dessexualizada, também pode ser denominada como energia sublimada, pois ainda conservaria a finalidade primordial de Eros que seria a de unir, ligar e de estabelecer unidade ou ao menos tentar fazê-lo. Em trabalhos posteriores como O futuro de uma ilusão e O mal estar na civilização (1976, v. 21, p. 13-71; p. 75-171), Freud explana acerca da gênese da consciência. Para isso utiliza como base o instinto agressivo e a renúncia dele. Quando o indivíduo abdica da satisfação de um instinto hostil, o superego encarrega-se de aumentar sua ferocidade contra o ego. A psicanálise atribui uma importância sublinhada à agressividade, destacando como essa tendência que visa ao prejuízo do outro se encontra presente desde muito cedo na infância. A moção hostil faz-se premente na relação que a criança desenvolve com a autoridade dos pais que tolhem determinados 133 De Jure 9 prova 2.indd S1:133 11/3/2008 16:21:30 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS comportamentos infantis, impedindo com que se satisfaçam plenamente. A criança, aos poucos, introjeta a autoridade paterna, identificando-se com ela. A internalização dos pressupostos morais providos pela cultura e cuidadores resultará na formação do superego da criança. Contudo, essa sujeição aos ditames morais que impedem, em especial, o incesto e o parricídio, animam na criança uma agressividade vingativa. A criança sadia encontra formas para sair dessa submissão garantida pela lei paterna principalmente pela via lúdica. Através da brincadeira, a criança pode inverter situações reais, abandonando a condição passiva e assumindo certa atividade. No jogo simbólico, a criança pode tratar mal o seu pai e mãe, manipulando a brincadeira a fim de infligir-lhes a dor que ela sentiu ao ver-se obrigada a se sujeitar aos seus desmandos. Assim, a brincadeira pode ser encarada como um recurso pelo qual o desejo de vingança perante os pais é passível de ser apaziguado. Por fim, interessante citar que Freud, a fim de elucidar o fenômeno vingativo, utiliza algumas contribuições do campo literário, como é o caso de Hamlet, de William Shakespeare. A história que subjaz a essa tragédia possui uma temática semelhante à do Édipo Rei, de Sófocles. Em Hamlet, contudo, a fantasia infantil edipiana não se configura tão explicitamente quanto em Édipo Rei. “O que impede Hamlet de executar sua vingança está na natureza peculiar da tarefa. Hamlet é incapaz de se vingar do homem que eliminou seu pai e tomou o lugar deste junto a sua mãe. O homem que lhe mostra os desejos recalcados de sua própria infância realizados” (FREUD, 1976). Hamlet defrontando-se com a tarefa de vingar a morte do pai, no entanto, vê-se paralisado diante da incumbência. O príncipe da Dinamarca não consegue fazê-lo, pois está identificado com o assassino de seu pai, Cláudio, vendo nele a concretização do desejo universal que assola toda criança do sexo masculino – o anseio de tomar o lugar do pai junto à mãe pela via do parricídio. O retorno desse conteúdo recalcado é sentido como um tormento para Hamlet, que é incapaz de entender por que, a despeito de seu ódio por Cláudio, é incapaz de matá-lo. Shakespeare, sem o aparato teórico da psicanálise, montou uma peça que diz de nossas primárias fantasias infantis. Esse conhecimento endopsíquico do sujeito humano, ou seja, essa habilidade que alguns autores têm em desnudar nossos desejos reprimidos, enriquece imensamente a tragédia shakespeariana. O autor constrói a trama de modo que Hamlet enfrente inquietações morais e auto-recriminações diante da incapacidade de vingar a morte do pai. Hamlet não conseguia eliminar Cláudio, pois, ao fazê-lo, estaria eliminando uma parte de si. Quando o príncipe, ao término da peça, é finalmente capaz de assassiná-lo, ele acaba morrendo; fato que insinua que a identificação de Hamlet com o assassino de seu pai estava tão fortemente instalada, que a morte de Cláudio significou a sua própria. 134 De Jure 9 prova 2.indd S1:134 11/3/2008 16:21:30 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3. Conclusões Após toda a exposição dos momentos em que Sigmund Freud utilizou o termo vingança em sua obra, podemos intentar realizar uma sistematização inicial e superficial, apenas para os fins do presente artigo. Da análise supra procedida, podemos elencar alguns pontos primordiais em que o conceito psicanalítico do fenômeno vingativo se apresenta. Primeiramente, seguindo os estudos sintomáticos de Freud e Breuer (1893) do nascimento da psicanálise, podemos apontar o aspecto econômico da vingança que se revela no fato do sintoma surgir, quando em decorrência de uma não-resposta adequada a uma ofensa sofrida. A lembrança da ofensa permaneceria ligada a um afeto, caso não fosse atuada numa ab-reação adequada pela pessoa que a sofreu. No mesmo sentido econômico, vemos, no caso Dora (1905), a importância do conceito de trauma psíquico, gerador do impulso vingativo, considerado como um evento que é percebido pelo sujeito como excessivo. Seu aparelho psíquico não consegue trabalhar adequadamente o evento traumático, o que provocaria um transbordamento da energia que permanece incontrolada e pulsante, até ser canalizada de uma determinada forma apropriada (como, por exemplo, na vingança). Ainda, nesse mesmo caso, nota-se que existem diversas formas, além da vingança, pelas quais o aparelho psíquico tentar trabalhar o trauma, como num sonho, no surgimento de um sintoma somático, ou até mesmo pela elaboração pela palavra. Assim como na Interpretação dos Sonhos (1900-1901) e no texto A censura dos sonhos (1915), o caso Hans (1909) nos ensina que a elaboração do material pulsante oriundo do trauma psíquico original do ímpeto vingativo passa pelos processos de deslocamento, condensação e mesmo de projeção (esse último explicitado no caso do Homem dos Lobos – 1918). Tal importa em perceber e reafirmar que a vingança é, como já dito, apenas uma das formas de manifestação do latente, seguindo os mesmos processos já verificados de afloramento do material inconsciente. No Homem dos Ratos, com o auxílio dos textos sobre os Romances Familiares, Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico, Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (contribuições à psicologia do amor) e O tabu da virgindade (contribuições à psicologia do amor II), verificamos a importância dos movimentos de formação da estrutura psíquica do sujeito no reflexo da atualização do movimento vingativo. Dessa feita, momentos psíquicos como o do conflito de Édipo, o complexo de castração, a identificação com os cuidadores, as fases infantis do desenvolvimento, o momento de igualdade entre o desejar e o acontecer, a consolidação das estruturas do aparelho psíquico, entre outras, possuem influência direta sobre a vingança ou os impulsos vingativos da atualidade do sujeito. Verifica- 135 De Jure 9 prova 2.indd S1:135 11/3/2008 16:21:30 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS se, então, que assim como se pode dizer que toda psicanálise é infantil, toda vingança também o será, pois será referida à atualização de moldes infantis há muito forjados. Posteriormente, na trilha que culminou na segunda tópica freudiana, temos a implicação da formação do ego narcísico e suas conseqüências no fenômeno vingativo. Logo, em Luto e Melancolia já existe a explicitação do processo de identificação de uma parte do eu com certas características do objeto amado e perdido, para posterior acusação do próprio eu pela perda. Nesse caminho, o texto inaugural da segunda tópica freudiana (O Ego e o Id – 1923) elabora a idéia de constituição narcísica do ego de qualquer indivíduo a partir da identificação e perdimento de objetos amados, formando uma representação razoavelmente coerente do corpo físico, em associação a aspectos psicológicos daqueles objetos. No texto, há a indicação do caminho que aponta para a função específica da vingança: a de reparadora da ordem anteriormente afetada. Nas obras O futuro de uma ilusão e O mal estar na civilização, Freud explicita implicações de uma noção já trazida desde Além do Princípio do Prazer e O Ego e o Id: o de haver uma pulsão, autônoma e diversa da pulsão sexual (libidinal – pulsão de vida), que visa à desobjetificação dos vínculos e à manutenção do mesmo. Essa pulsão, chamada de pulsão de morte, pulsão de agressão ou pulsão de dominação6, refletir-se-ia nos fenômenos vingativos, associada à libido como força motriz. Esse lineamento geral da exposição faz-se necessário na medida em que, para explicitar uma primeira abordagem à metapsicologia da vingança, tomaremos o fenômeno sob a ótica já traçada por Freud e repetida nas diversas manifestações concretas ao nosso redor. Num tangenciamento inaugural, pode-se dizer que, ao tomar contato com um fato que seja interpretado pelo aparelho psíquico como excessivo, há um abalo das estruturas relativamente coesas do ego narcísico do indivíduo. Logo, o trauma psíquico, por definição, acaba por gerar uma verdadeira lesão, não física, porém real, na medida em que o ressentido7 pode efetivamente sentir essa ferida de uma forma tão real quanto a tangível folha de papel onde se encontra impressa essa idéia (afinal, seria essa idéia menos real que a folha de papel?). Essa lesão, como qualquer ferida física em nosso corpo, não deixa de doer enquanto não suficientemente tratada e reabilitada. Por conseguinte, enquanto aberta, exposta e não tratada, permanece pulsando numa dor característica da amargura dos ressentidos. A própria palavra re-sentido já indica esse latejar constante de dor (re - sentire), num sentimento que não se dá apenas uma vez, 6 Sobre a interseção dos conceitos de narcisismo, libido e pulsão de morte, essenciais à plena compreensão do fenômeno vingativo, vide obra de Green (1988). 7 V. Khel (2005). 136 De Jure 9 prova 2.indd S1:136 11/3/2008 16:21:30 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS pois se repete em re-sentimentos da mesma dor. Essa repetição da volta ao sentimento de dor se dará, como dito, até que a ferida tenha sido tratada e efetivamente curada. Para tanto, existem diversos tipos de tratamento, sendo que, um deles, com certeza, é a passagem ao ato vingativo. Assim, explicam-se os impulsos vingativos que possuem, na verdade, uma característica de serem uma resposta natural do aparelho psíquico com vistas à cura, como uma ferida que tende a se curar por si mesma. A vingança, sob essa ótica, possui uma função terapêutica evidente, e verdadeiramente pode ser assim manejada, como vimos no caso Dora e em diversos casos do cotidiano ou mesmo no exemplo de obras literárias, musicais ou cinematográficas. Insta salientar, outrossim, o papel do tempo. Assim como não se espera que as feridas somáticas se curem instantaneamente, também as da mente precisam de um período de cura apropriado. Como resultado direto disso, é fácil se notar que os impulsos vingativos serão mais fortes quanto mais próximos do trauma. Além disso, o aspecto convalescente em que se quedam os doentes, que se desinteressam de tudo aquilo que não seja a sua doença, é verificado nos ressentidos, que passam a viver em função da dor. Mais uma vez na analogia da ferida em carne viva, cabe frisar que, da mesma forma que algumas lesões não podem ser plenamente reparadas, também os traumas psíquicos, caso muito intensos, acabam por deixar verdadeiras cicatrizes e mutilações egóicas. Essas mutilações, na hipótese de serem trabalhadas com sucesso após muito tempo, acabarão por amargurarem em nível mais reduzido – e somente de tempos em tempos –, embora ainda persista, sempre, a clara sensação de que se perdeu um pedaço relevante do eu. Aqui já se percebe que a ferida do ego narcísico oriunda de um trauma psíquico, conforme já dito alhures, pode ser trabalhada pelo sujeito de diversas maneiras, como pela vingança, pelo desenvolvimento de uma doença sintomática somatizada, pelos sonhos de fixação em traumas, pela palavra, entre outras formas. O que importa é que a repetição do ressentido (re – sentire) no impulso da cura visa à recomposição do ego através da atribuição de um sentido adequado (ou, ao menos, razoável) ao evento traumático. Essa atribuição de significado pode se dar, conforme já dito, pelas vias elencadas, a depender de diversos fatores próprios de cada sujeito e de cada sociedade (por exemplo, a par da vingança, a manifestação de sintomas, os sonhos, a palavra, etc. – pode o sujeito buscar o caminho da recomposição egóica por formas sociais como a religião, a psicanálise terapêutica, a expressão artística, entre outros). A grande pergunta que se propôs no presente artigo e que aqui se conclui é de se estipular se o Direito Penal possui um papel para auxiliar o sujeito na recomposição de sua integridade psíquica. 137 De Jure 9 prova 2.indd S1:137 11/3/2008 16:21:31 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Obviamente, não se espera que o direito penal tenha um papel terapêutico nos moldes de uma análise, da religião ou de expressão artística, mas é de se perquirir qual a verdadeira obrigação de um ramo do Direito que trata dos fatos que atingem mais gravemente aos bens jurídicos mais importantes em determinada sociedade. Levando-se em consideração as lições de Freud, deve o Direito punitivo se tornar ciente de mais uma função a ele afeta: a de auxiliar na recomposição das estruturas egóicas abaladas pelo delito por uma atribuição de sentido por meio de uma resposta estatal razoável e coerente ao fato praticado e às suas conseqüências, de maneira a evitar outros caminhos não adequados socialmente de ab-reação, como a vingança. Em primeiro plano, bom que se diga que, com isso, não se pretende o reconhecimento desta como a função única do direito penal. Continuam intactas, embora possam ser reanalisadas à luz da psicanálise, as funções funcionalistas de prevenção geral e especial, positiva e negativa. A função retributiva-absoluta da pena, por sua vez, pode ser revista por essa necessidade do sistema em auxiliar na atribuição de um significado coerente e responsável ao fato criminoso, tanto para o agente8 (que deve ter a possibilidade de se auto-implicar no ocorrido), quanto para a vítima (e seus respectivos círculos concêntricos de afetação). Como já dito na introdução do presente artigo, apesar da função político-criminal proposta aqui se destinar a todos envolvidos no delito, não se nega que sua origem e aplicação terão como baluarte a vítima. Tal visão privilegiada visa, a um só tempo, atuar em duas distorções: a de não haver qualquer abordagem no âmbito vitimológico no presente estado de coisas do Direito Penal e o fato da vítima ser a principal abalada, do ponto de vista do aparelho psíquico, pelo delito. Por fim, cabe o convite a outros autores aprimorarem e expandirem o que foi aqui proposto, na medida em que diversas implicações poderiam ser retiradas desse compromisso a ser assumido pelo Direito Penal. Por fugir aos breves objetivos do presente artigo, apenas enumeramos alguns possíveis campos de estudo que necessitam ser revisitados sob a ótica psicanalítica, tais como: o princípio da insignificância; o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade; o princípio da adequação das penas; o princípio da individualização das penas; entre outros. 8 Ressalte-se que já no início do século XX, von Liszt (2005, p. 26-27) asseverava, embora não no sentido psicanalítico, da importância da pena para o agente: “Basta colocarmos em evidência este conceito de pena objetiva – quer dizer, o fato de a desenfreada força punitiva que, autolimitando-se, se transforma em pena juridicamente regulada – aparece claro o valor que a ‘objetivação’ se reveste propriamente, e especialmente, para o autor do crime. Ser punido é um importante direito do cidadão (Flichte); na pena, o malfeitor vem honrado como ser racional (Hegel). Estas e similares proposições, só à primeira vista paradoxais, são expressões do núcleo mais profundo, da mais genuína essência, não da pena genericamente considerada, mas da pena objetivada”. 138 De Jure 9 prova 2.indd S1:138 11/3/2008 16:21:31 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 4. Referências bibliográficas ARAÚJO, Marcelo Cunha de. Coisa julgada inconstitucional: hipóteses de flexibilização e procedimentos para impugnação. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. ______. Corrupção e irritação das decisões judiciais sob a ótica da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Revista da Faculdade Mineira de Direito da PUC-MG, Belo Horizonte, v. 7, n. 13 e 14. 1º e 2º sem. 2004. p. 35-49. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1995. ______. Novas tendências do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. 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(Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud). ______. Além do princípio do prazer. In: ______. Psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 13-86. v. 18. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud). ______. O ego e o id. In: ______. O ego e o id, uma neurose demoníaca e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 13-83. v. 19. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud). ______. Algumas conseqüências da diferença anatômica entre os sexos. In: ______. O ego e o id, uma neurose demoníaca e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 303-320. v. 19. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud). ______. O futuro de uma ilusão. In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal estar na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 13-71. v. 21. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud). ______. O mal estar na civilização. In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal estar na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 75-171. v. 21. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud). GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito. Revista Jurídica, n. 272, p. 35-63, junho 2000. 141 De Jure 9 prova 2.indd S1:141 11/3/2008 16:21:31 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988. HASSEMER, Winfrid. História das idéias na Alemanha do pós-guerra. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, a. 2. v. 6, 1994. JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. KHEL, Maria Rita. Ressentimento. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 96-103. LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. 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São Paulo: Martins Fontes, 1995. 142 De Jure 9 prova 2.indd S1:142 11/3/2008 16:21:32 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2. JURISPRUDÊNCIA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1o Acórdão. EMENTA: DIREITO PENAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. CONCURSO DE AGENTES. UTILIZAÇÃO DE ARMA DE FOGO. AFASTAMENTO, PELO TRIBUNAL A QUO, DA CAUSA DE AUMENTO PELA UTILIZAÇÃO DA ARMA DE FOGO POR AUSÊNCIA DE APREENSÃO E PERÍCIA, BEM COMO DA AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA. PENA-BASE: 4 ANOS E DOIS MESES DE RECLUSÃO E MULTA. PENA CONCRETIZADA: 5 ANOS, 6 MESES E 20 DIAS DE RECLUSÃO E MULTA PARA AMBOS OS RECORRIDOS. DESNECESSIDADE DA PERÍCIA PARA A APLICAÇÃO DA CAUSA ESPECIAL DE AUMENTO DE PENA. ARMAS DISPARADAS DURANTE O ASSALTO. POTENCIALIDADE LESIVA DEMONSTRADA. IMPRESCINDIBILIDADE DA CONSIDERAÇÃO DA AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA NO MOMENTO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. A apreensão e a perícia da arma de fogo utilizada no roubo são desnecessárias para configurar a causa especial de aumento de pena, mormente quando as demais provas são firmes sobre sua efetiva utilização na prática da conduta criminosa. In casu, foram disparados tiros para o alto, com o objetivo de intimidar as vítimas, durante o assalto, fato que, por si só, demonstra a real potencialidade lesiva das armas. Precedentes desta Corte. 2. Comprovada a reincidência, a circunstância legal deve ser obrigatoriamente considerada como agravante no momento da individualização da pena. Precedentes do STJ. 3. Parecer do MPF pelo conhecimento e provimento do recurso. 4. Recurso conhecido e provido, para restabelecer a sentença condenatória, em todos os seus termos. (STJ, 5a Turma, RESP 965998/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 25/09/2007, DJ 22/10/2007, p. 368). 2o Acórdão. EMENTA: PETIÇÃO. ESTELIONATO. PLEITO DE ABRANDAMENTO DO REGIME PRISIONAL IMPOSTO NO ÉDITO CONDENATÓRIO. SUPERVENIÊNCIA DO JULGAMENTO DO RECURSO DE APELAÇÃO ORIGINARIAMENTE INTERPOSTO. PENA REDUZIDA E EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ DE SOLTURA DETERMINADA EM RAZÃO DO CUMPRIMENTO INTEGRAL DA PENA. RÉU BENEFICIADO COM LIVRAMENTO CONDICIONAL. PEDIDO PREJUDICADO. 1. Hipótese na qual o peticionário, condenado pela prática de estelionato, requer o estabelecimento de regime prisional mais brando do que o imposto no édito condenatório. 2. Evidenciada a superveniência do julgamento do apelo defensivo, tendo sido reduzida a pena, e, conseqüentemente, determinada a expedição de alvará de soltura em virtude do cumprimento integral da 143 De Jure 9 prova 2.indd S1:143 11/3/2008 16:21:32 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS pena, bem como a concessão do benefício do livramento condicional na execução penal anteriormente instaurada em seu desfavor, restam superados os argumentos expendidos na petição, pois o direito ambulatorial do peticionário restou restabelecido. 3. Pedido prejudicado. (STJ, 5a Turma, PET 5066/SP, Rel. Min. Jane Silva – Desembargadora convocada do TJ/MG, j. 25/09/2007, DJ 15/10/2007, p. 294). 3o Acórdão. EMENTA: RECURSO EM HABEAS CORPUS. ROUBO. PROGRESSÃO PARA O REGIME ABERTO. FALTA GRAVE. NECESSIDADE DE EXAME PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL. DUPLA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. EVASÃO OCORRIDA APÓS O CUMPRIMENTO DE UM SEXTO DA PENA. DIREITO ADQUIRIDO À PROGRESSÃO. INEXISTÊNCIA. BENEFÍCIO QUE TAMBÉM PRESSUPÕE O PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS SUBJETIVOS PREVISTOS EM LEI. NECESSIDADE DE EXAME PELO MAGISTRADO. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. I. Um dos efeitos da prática de falta grave pelo apenado é a regressão para regime mais gravoso, o que obsta a concessão da almejada progressão. II. A estreita via do habeas corpus, por ser desprovida de dilação probatória, não comporta o profundo revolvimento do conteúdo fático-probatório colhido no processo de execução penal do recorrente. III. Por essa razão, inviável o reconhecimento de que sua fuga teria sido motivada em ameaças sofridas e, portanto, incapaz de constituir falta grave, situação que ainda configuraria dupla supressão de instância. IV. O cumprimento de um sexto da pena pelo condenado não lhe gera direito adquirido à progressão, que também depende do exame, pelo Juiz, do cumprimento dos requisitos subjetivos previstos na Lei de Execução Penal. V. Negado provimento ao recurso. (STJ, 5a Turma, RHC 20851/SP, Rel. Min. Jane Silva – Desembargadora convocada do TJ/MG, j. 25/09/2007, DJ 15/10/2007, p. 297). 4o Acórdão. EMENTA: PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ECA. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO A HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. EMPREGO DE VIOLÊNCIA. MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE INTERNAÇÃO. PRETENSÃO DE NOVA DILAÇÃO PROBATÓRIA. INADMISSIBILIDADE NA VIA ELEITA. DECISÃO AMPARADA PELAS TESTEMUNHAS OUVIDAS EM JUÍZO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. AUSÊNCIA DO EXAME DE CORPO DE DELITO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA.RECURSO IMPROVIDO. 1. A medida de internação por prazo indeterminado é de aplicação excepcional, de modo que somente pode ser imposta ou mantida nos casos taxativamente previstos no art. 122 do ECA, e quando evidenciada sua real necessidade. 2. No caso em apreço, a aplicação da medida encontra fundamentos sólidos, providos de suporte fático e aliados aos requisitos legalmente previstos, o que demonstra idoneidade suficiente para respaldar a medida constritiva. A pretensão de exame de matéria probatória é 144 De Jure 9 prova 2.indd S1:144 11/3/2008 16:21:32 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS inviável na via eleita. 3. Não se pronunciando o Tribunal a quo sobre a ausência dos laudos de necropsia das vítimas, fica esta Corte impedida de enfrentar tal questão, sob pena de supressão de instância. 4. Recurso improvido, em conformidade com o parecer ministerial. (STJ, 5a Turma, RHC 21668/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 25/09/2007, DJ 22/10/2007, p. 316). 5o Acórdão. EMENTA: RECURSO ESPECIAL. PENAL. ESTUPRO. CRIME HEDIONDO. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. MAJORANTE PREVISTA NO ART. 9.º DA LEI N.º 8.072/90. INAPLICABILIDADE. BIS IN IDEM. 1. O crime de estupro, ainda que de sua prática não resulte violência real, está inserido no rol dos crimes considerados hediondos, consoante estabelece o art. 1º, inciso V, da Lei n.º 8.072/90. 2. Embora possa haver violência real contra vítima que esteja entre as indicadas no art. 224 de Código Penal, a ensejar a aplicação do aumento previsto no art. 4º da Lei nº 8.072/90, na hipótese não houve a efetiva violência real já que a própria sentença condenatória considerou ter sido a mesma presumida. 3. Mostra-se incabível o aumento de pena previsto pelo art. 9.º da Lei n.º 8.072/90 nos crimes de estupro ou atentado violento ao pudor, quando cometidos com violência presumida, se não sobrevier o resultado lesão corporal de natureza grave ou morte, pois sua ocorrência implicaria violação ao princípio do non bis in idem. 4. Recurso parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido para caracterizar a hediondez do crime de estupro. (STJ, 5a Turma, RESP 954897/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 29/08/2007, DJ 15/10/2007, p. 353). 6o Acórdão. EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE ESTUPRO. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE VIOLÊNCIA. AGRAVO IMPROVIDO. 1. A presunção de violência prevista no art. 224, a, do Código Penal, tem natureza absoluta, entendendo-se, por conseguinte, que o consentimento da vítima é irrelevante para a caracterização do delito, tendo em conta a incapacidade volitiva da pessoa menor de catorze anos de consentir na prática do ato sexual. Precedentes do STJ e do STF. 2. Agravo regimental improvido. (STJ, 5a Turma, AGRG no RESP 857550/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 14/08/2007, DJ 24/09/2007, p. 362). 145 De Jure 9 prova 2.indd S1:145 11/3/2008 16:21:32 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA 3.1 INVIOLABILIDADE NOTURNA DE DOMICÍLIO E INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA KARINA SILVA DE ARAÚJO Advogada – Pós-graduada em Direito Constitucional 1. Acórdão Por entender caracterizada a ofensa ao art. 5°, XI, da CF (“a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;”), a Turma deu provimento a recurso extraordinário para, reformando acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, restabelecer a sentença que absolvera o recorrente por inexigibilidade de conduta diversa. No caso, a Corte a quo reputara configurado o crime de resistência, uma vez que o recorrente, desprezando a existência de mandado judicial expedido nos moldes do § 2º do art. 172 do CPC — que permite, em situações excepcionais e mediante autorização expressa do juiz, a citação, em domingos e feriados, ou nos dias úteis, em horário diverso daquele estabelecido no caput —, desacatara, mediante violência, oficial de justiça que pretendia, num sábado à noite, ingressar no domicílio daquele para intimar o seu cônjuge. Aduziu-se que o acórdão impugnado colocara em plano secundário a defesa do próprio domicílio e, portanto, o esforço a evidenciar, conforme registrado na sentença, a inexigibilidade de conduta diversa. Ademais, asseverou-se que a Constituição preconiza a inviolabilidade noturna do domicílio, pouco importando a existência de ordem judicial, pois em relação a esta última mesmo que ocorre a limitação constitucional. (RESP 460880/RS, Relator Ministro. Marco Aurélio, Data do Julgamento 25.9.2007. (RE-460880) 2. Razões Os presentes comentários visam analisar a interpretação e aplicação dos elementos do delito, examinados no caso concreto, em julgado do STF, em que se investiga a suposta configuração do crime de resistência, pelo fato do Acusado não permitir a entrada do oficial de justiça em seu domicílio, na noite de sábado, para intimar seu cônjuge. Na hipótese, a turma absolveu o Acusado por exclusão da culpabilidade, ante a inexigibilidade de conduta diversa. Todavia, o caso era de absolvição pela não configuração do próprio tipo penal, conforme abordaremos a seguir. 146 De Jure 9 prova 2.indd S1:146 11/3/2008 16:21:33 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3. Inviolabilidade noturna do domicílio e o cumprimento de ordens judiciais A Constituição da República declara a inviolabilidade de domicílio em seu art. 5º, inciso XI, no Título dos direitos e garantias fundamentais1. Nos termos do dispositivo constitucional retro, resta claro que, para cumprimento de ordem judicial, o oficial de justiça somente poderia adentrar domicílio alheio, durante o dia, ou com o consentimento do morador. O que não ocorreu no caso em tela, já que o próprio morador foi até mesmo denunciado pelo delito de resistência, quando se opôs ao cumprimento da diligência judicial, no sábado à noite2. Cumpre destacar que, o Código de Processo Civil, quando dispõe sobre o tempo e lugar para a prática dos atos processuais, art. 172, prevê uma exceção no §2º, para situações excepcionais, desde que sejam observados os requisitos constitucionais do art. 5º, inciso XI3. Tal dispositivo foi desprezado pela Corte recorrida e considerado, sabiamente, pela Corte Suprema, tendo em vista o necessário cotejo da lei infraconstitucional com a Constituição da República. Interpretação essencial na análise do caso concreto, para garantia da inviolabilidade de domicílio ao Acusado. 4. Da atipicidade do delito de resistência (art. 329 do Código Penal) O crime de resistência4 está inserido no título dos crimes contra a administração pública, no capítulo dos crimes praticados por particular contra a administração em geral. O bem jurídico tutelado por esse tipo penal é o regular andamento da 1 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo, em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou durante o dia, por determinação judicial; 2 Em que pese não restar dúvidas no caso em tela sobre o cumprimento da ordem em horário noturno, cabe destacar que a doutrina tem entendido que o melhor critério seria considerar horário noturno de 6 às 18 horas (Alexandre de Morais), nesse diapasão, também é a posição Celso Mello, que trabalha com critério físico-astronômico, dividido entre a aurora e o crepúsculo. (Lenza. 11ª ed. p. 709) 3 Art. 172 – Os atos processuais realizar-se-ão em dias úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas. § 2º A citação e a penhora poderão, em casos excepcionais, e mediante autorização expressa do juiz, realizar-se em domingos e feriados, ou nos dias úteis, fora do horário estabelecido neste artigo, observado o disposto no art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal. 4 Art. 329 - Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio: Pena - detenção, de dois meses a dois anos. § 1º - Se o ato, em razão da resistência, não se executa: Pena - reclusão, de um a três anos. § 2º - As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência. 147 De Jure 9 prova 2.indd S1:147 11/3/2008 16:21:33 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS administração pública e a autoridade de seus atos. Ocorre que, o tipo legal do delito de resistência configura-se quando o agente se opõe a execução de ato legal, e, no caso em epígrafe, o ato resistido era ilegal, contrário aos ditames constitucionais, conforme demonstrado no tópico acima. É o que esclarece Luiz Regis Prado: Importa assinalar que a ilegalidade pode ser substancial ou formal. A primeira sedimenta-se na ausência de fundamento ou razão de ser para a concretização do ato, enquanto a segunda está relacionada à forma ou à execução do ato. Assim, v.g., não basta que a autoridade seja competente para a realização do ato e que este encontre fundamento no ordenamento que circunda a Administração pública, sendo imprescindível que se utilize dos meios legais para a sua execução. Frise-se, ainda, que, mesmo diante de um ato injusto, mas desde que esteja autorizado por lei, não manifestamente inconstitucional, a resistência não é admitida. (g.n) (Prado. 2ª ed. p. 493). Assim, a absolvição do Acusado por exclusão da culpabilidade ante a inexigibilidade de conduta diversa poderia ter sido configurada, se o caso não fosse hipótese de exclusão do próprio tipo penal5. Ora, sendo o ato ilegal, ocorre a atipicidade da conduta, obstando até mesmo a análise dos demais elementos do delito, quais sejam: ilicitude ou antijurididade e culpabilidade. Desse modo, a controvérsia deveria ter sido exaurida no âmbito estrutural do próprio tipo e não da culpabilidade, afastando a inexigibilidade de conduta diversa. 5. Conclusão A Constituição da República declara a inviolabilidade noturna do domicílio como garantia fundamental, portanto, a oposição do Acusando ao cumprimento da ordem é legitima, pois se trata de ordem manifestamente ilegal. Ante o exposto, em que pese louvável a decisão da Suprema Corte absolvendo o Acusado pelo delito de resistência, tal provimento deveria ter sido prolatado com fundamento na atipicidade do fato e não na exclusão da culpabilidade ante a inexigibilidade de conduta diversa, já que a caracterização do fato atípico inviabiliza a própria análise e configuração dos demais elementos do crime. 5 Em sentido diverso, Guilherme de Souza Nucci enquadra tal situação em uma causa de exclusão da ilicitude, veja-se seu comentário sobre a configuração do delito de resistência: “é preciso que o funcionário esteja fazendo cumprir um ato lícito. Caso pretenda concretizar algo ilegítimo, é natural que o particular possa resistir, pois está no exercício regular de direito (ou em legitima de defesa, se houver agressão), já que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.” (Nucci. 5º ed. p. 1011) 148 De Jure 9 prova 2.indd S1:148 11/3/2008 16:21:33 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 6. Referências Bibliográficas LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 11. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Método, mar./2007. NUCCI, Guilherme de Souza, Código penal comentado. 5 ed. ver., atual. e ampli. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. PRADO, Regis Luiz. Curso de direito penal brasileiro, volume 4: parte especial : arts. 289 a 359-H. 2. ed. ver., atual. e ampl. 2002. 149 De Jure 9 prova 2.indd S1:149 11/3/2008 16:21:33 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL PENAL 1. ARTIGOS 1.1 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A EXPLORAÇÃO MIDIÁTICA MICHELLE KALIL FERREIRA Acadêmica do curso de Direito Estagiária do Ministério Público do Estado de Minas Gerais SUMÁRIO: 1. Direito Penal e política criminal. 2. O sistema acusatório brasileiro e suas garantias: a mitigação pela mídia. 3. Os juízos paralelos da imprensa. 4. A construção do transgressor pela mídia. 5. A exploração midiática apontada em caso real. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas. 1. Direito Penal e política criminal Referir-se ao Direito Penal de alguma forma é falar de violência. No entanto, modernamente, sustenta-se que a criminalidade é um fenômeno social normal. Durkhein afirma que o delito não ocorre somente na maioria das sociedades de uma ou outra espécie, mas sim em todas as sociedades constituídas pelo ser humano. Assim, para ele, o delito não só é um fenômeno social normal, como também cumpre outra função importante, qual seja, a de manter aberto o canal de transformações de que a sociedade precisa. Sob um outro prisma, pode-se concordar, pelo menos em parte, com Durkhein: as relações humanas são contaminadas pela violência, necessitando de normas que as regulem. E o fato social que contrariar o ordenamento jurídico constitui ilícito jurídico, cuja modalidade mais grave é o ilícito penal, que lesa os bens mais importantes dos membros da sociedade. Quando as infrações aos direitos e interesses do indivíduo assumem determinadas proporções e os demais meios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes para harmonizar o convívio social, surge o Direito Penal com sua natureza peculiar de meio de controle social formalizado, procurando resolver conflitos e suturando eventuais rupturas produzidas pela desinteligência dos homens. O Direito Penal apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que têm por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de 150 De Jure 9 prova 2.indd S1:150 11/3/2008 16:21:33 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS segurança. Esse conjunto de normas e princípios, devidamente sistematizados, tem por finalidade tornar possível a convivência humana, ganhando aplicação prática nos casos ocorrentes, observando rigorosos princípios de justiça. A expressão direito penal traduz duas entidades distintas, como esclarece Zaffaroni (2004). A primeira é o conjunto de leis penais que traduzem normas que visam tutelar bens jurídicos e que determinam o alcance de sua tutela. A violação dessas normas se chama delito, e aspira como conseqüência uma coerção jurídica particularmente grave. Essa força coercitiva do Direito Penal visa evitar o cometimento de novos delitos por parte do autor. No segundo sentido, direito penal é o sistema de interpretação e compreensão dessa legislação, ou seja, o saber do direito penal. Com esse sentido, recebe também a denominação de Ciência Penal, desempenhando igualmente uma função criadora, libertando-se das amarras do texto legal ou da dita vontade estática do legislador, assumindo seu papel valorativo e essencialmente crítico, no contexto da modernidade jurídica. Acontece que, diante do referido conjunto de normas que formam o Direito Penal, pode-se afirmar que o indivíduo autuado, até que seja submetido ao cumprimento de uma sanção criminal, percorre as seguintes etapas: policial, judiciária e penitenciária. Atribui-se a denominação de Sistema Penal ao conjunto dessas instituições que têm por finalidade a efetivação do Direito Penal. Torna-se, portanto, a forma de atuação do Direito Penal responsável por determinar qual a estratégia de política criminal será adotada. São três os ideais de políticas criminais compreendidos pelo Abolicionismo, Direito Penal Mínimo e Direito Penal Máximo. Ao tratar de maneira pormenorizada dessas políticas sobressalta-se a necessidade de buscar um Direito Penal do Equilíbrio (Direito Penal Mínimo), onde não predomine o pensamento de erradicar o Direito Penal (Abolicionismo), nem o uso intensificado do mesmo aplicado-o de forma indiscriminada em situações passíveis de serem resolvidas por outros ramos do Direito (Direito Penal Máximo). A intensificação da atuação penal tem como grande aliada nos dias atuais à mídia, que através dos meios de comunicação de massa, divulga a todo instante à criminalidade. A mídia exerce poderosa influência em nosso meio social, encarregando-se de convencer a sociedade da necessidade da cominação de penas mais gravosas. Ao mostrar casos atrozes, terríveis sequer de serem imaginados, e, como resposta, clamar por um Direito Penal mais severo, mais radical em suas punições, a mídia caracterizase como a principal difusora do Direito Penal Máximo no Brasil. Considera-se mídia todo suporte de difusão da informação que constitui um meio intermediário de expressão capaz de transmitir mensagens. Abrangem esses meios o rádio, o cinema, a televisão, a escrita impressa em livros, revistas, boletins, jornais, o computador, os satélites de comunicações e, de um modo geral, os meios eletrônicos e telemáticos de 151 De Jure 9 prova 2.indd S1:151 11/3/2008 16:21:34 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS comunicação em que se incluem também as diversas telefonias. Essa pesquisa tratará da influência da mídia por meio dos veículos de comunicação de massa, considerados aqueles capazes de serem usufruídos pela maioria da população, dessa forma são eles: televisão, rádio, jornal. Como primeira análise ao que tange às políticas criminais, tomemos o movimento abolicionista, que, segundo Greco (2005), teve sua origem atribuída a Fillipo Gramatica, ao final da Segunda Guerra Mundial. Para Gramatica, a defesa social consistia na ação do Estado destinada a garantir a ordem social, mediante meios que importassem a própria abolição do Direito Penal e dos sistemas penitenciários vigentes. O movimento partiu da deslegitimação do poder punitivo e de sua incapacidade para resolver conflitos, postula o desaparecimento do sistema penal e sua substituição por modelos de solução de conflitos alternativos preferentemente informais. Os mentores do movimento abolicionista partem de diversas bases ideológicas, podendo ser assinalada de modo prevalentemente a fenomenológica, de Louk Hulsman, a marxista, da primeira fase de Thomas Mathiesen, a fenomenológico-histórica, de Nils Christie e, embora não tenha formalmente integrado o movimento, não parece temerário incluir nele a estruturalista, de Michel Foucault. Comprometidos com o princípio da dignidade da pessoa humana, esses autores chegaram às suas conclusões diante da irracionalidade e injustiça do nosso sistema penal, que é capaz de punir delitos de bagatela, enquanto deixa impunes crimes de colarinho branco. E ainda, o que faz permitir a transformação de um fato que, até então, era plenamente tolerado em uma conduta proibida pelo Direito. Louk Hulsman (apud GRECO, 2005, p. 12), um dos precursores do movimento abolicionista, assevera: Não se costuma perder tempo com manifestações de simpatia pela sorte do homem que vai para a prisão, porque se acredita que ele fez por merecer. ‘Este homem cometeu um crime’pensamos; ou, em termos mais jurídicos, ‘foi julgado culpável por um fato punível com pena de prisão e, portanto, se fez justiça ao encarcerá-lo’. Bem, mas o que é um crime? O que é um ‘fato punível?’ Como diferenciar um fato punível de um fato não-punível? Por que ser homossexual, se drogar ou ser bígamo são fatos puníveis em alguns países e não em outros? Por que condutas que antigamente eram puníveis, como a blasfêmia, a bruxaria, a tentativa de suicídio, etc, hoje não são mais? As ciências criminais puseram em evidência a relatividade do conceito de infração, que varia no tempo e no espaço, de tal modo que o que é ‘delituoso’ em um contexto é aceitável em outro. Conforme você tenha nascido num lugar ao invés de outro, ou numa determinada época e não em outra, você é passível – ou não – de ser encarado pelo que fez, ou pelo que é. 152 De Jure 9 prova 2.indd S1:152 11/3/2008 16:21:34 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A crítica abolicionista é construída desde o momento em que surge a lei penal, proibindo ou impondo determinado comportamento sob a ameaça de sanção, questionando os critérios, bem como a necessidade do tipo penal incriminador, passando pela escolha das pessoas que, efetivamente, sofrerão a aplicação da lei penal. Analisando os critérios da lei penal é muito fácil perceber quem deveras é ameaçado por suas sanções, sofrendo os rigores dessa legislação: [...] a ‘clientela’ do Direito penal é constituída pelos pobres, miseráveis, desempregados, estigmatizados por questões raciais, relegados em segundo plano pelo Estado, que deles somente se lembra no momento crucial de exercitar a sua força como forma de contenção das massas, em benefício de uma outra classe, considerada superior, que necessita desse ‘muro divisório’ para que tenha paz e tranqüilidade, a fim de que possa ‘produzir e fazer prosperar a nação’ (GRECO, 2005, p. 13). Mesmo tendo conhecimento de seu público-alvo, o Direito Penal esbarra ainda na conhecida cifra negra, parcela de infrações penais que não chegam ao conhecimento dos órgãos formais de repressão. E ainda assim quando faz valer o seu ius puniendi, com a aplicação da pena previamente cominada pela lei penal, não cumpre com a função que lhe é conferida, reprovar e prevenir o delito. Na visão dos abolicionistas, as condutas selecionadas pelo Estado de acordo com um critério político, para fazerem parte do âmbito de aplicação do Direito Penal, poderiam merecer a atenção tão-somente dos demais ramos do ordenamento jurídico, principalmente do Direito Civil e do Direito Administrativo, preservando-se, dessa forma, a dignidade da pessoa humana, que não se encontraria na estigmatizante condição de condenada pela Justiça Criminal. O ideal abolicionista considera a prisão um instrumento irracional incapaz de ser utilizado sem desrespeitar a dignidade do ser humano. Porém, torna-se utópico outro ramo do direito atuando em situações mais gravosas, como latrocínios, estupros ou homicídios, onde só o Direito Penal é capaz de punir com medidas proporcionais ao crime praticado. Destarte, o ideal abolicionista é de fato louvável, mas insustentável na sociedade atual que sofre danos irreparáveis a todo instante. Infelizmente, determinadas práticas criminais só são acalentadas pelo sistema penal, que apesar de cruel ainda é o remédio mais eficaz para nossa sociedade. Marchi Júnior (apud GRECO, 2005, p. 15), dissertando sobre a impossibilidade atual de se afastar completamente o sistema penal, erigiu a alternativa do Direito Penal Mínimo como a que melhor se adapta às necessidades sociais: 153 De Jure 9 prova 2.indd S1:153 11/3/2008 16:21:34 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O abolicionismo surgiu a partir da percepção de que o sistema penal, que havia significado um enorme avanço da humanidade contra a ignomínia das torturas e contra a pena de morte, cujos rituais macabros encontram-se retratados na insuperável obra de Michel Foucault, perdeu sua legitimidade como instrumento de controle social. Todavia, o movimento abolicionista, ao denunciar essa perda de legitimidade, não conseguiu propor um método seguro para possibilitar a abolição imediata do sistema penal. Diante de tal impasse, o princípio da intervenção mínima conquistou rapidamente ampla adesão da maioria da doutrina, inclusive de alguns abolicionistas que passaram a enxergar nele um estágio em direção à abolição da pena. De fato, a opção pela construção de sociedades melhores, mais justas e mais racionais, impõe a reafirmação da necessidade imediata de redução do sistema penal enquanto não se alcança a abolição, de forma a manter as garantias conquistadas em favor do cidadão e, ao mesmo tempo, abrir espaço para progressiva aplicação de mecanismos não penais de controle, além de privilegiar medidas preventivas de autuação sobre as causas e as origens estruturais de conflitos e situações socialmente negativas. Ressaltando o pensamento de Marchi Júnior, este estudo terá continuidade tratando do Princípio da intervenção mínima, adotado pelo Movimento do Direito Penal Mínimo, que, apresenta-se com um ideal equilibrado, diferentemente das demais concepções político criminais. Seu discurso é mais coerente com a realidade social, tratando como finalidade do Direito Penal a proteção tão somente dos bens necessários e vitais ao convívio em sociedade. Aqueles bens que, em razão de sua importância, não poderão ser somente protegidos pelos demais ramos do ordenamento jurídico. Seu raciocínio é baseado em vários princípios, que orientam o legislador na criação e na revogação dos tipos penais, servindo de norte, ainda, aos aplicadores da lei penal, a fim de que seja produzida uma correta interpretação. São princípios indispensáveis à essa concepção minimalista o da intervenção mínima, lesividade, adequação social, insignificância, individualização da pena, proporcionalidade, responsabilidade pessoal, limitação das penas, culpabilidade e da legalidade, sendo estes explicados a seguir. Vital ao Direito Penal Mínimo, o princípio da intervenção mínima tem por sua primeira missão orientar o legislador quando da criação ou revogação dos tipos penais. Ele gira 154 De Jure 9 prova 2.indd S1:154 11/3/2008 16:21:34 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS em torno da proteção dos bens mais importantes existentes na sociedade, bem como da natureza subsidiária do Direito Penal. O primeiro passo para a criação do tipo penal incriminador é, efetivamente, a valoração do bem. Se for concebido como bem de relevo, passaremos ao segundo raciocínio, ainda no mesmo princípio, vale dizer, o da subsidiariedade. Embora importante o bem, se os outros ramos do ordenamento jurídico forem fortes e capazes o suficiente para levar a efeito a sua proteção, não haverá necessidade da intervenção drástica do Direito Penal. Sua importância deverá também ser aferida para fins de revogação dos tipos. Se um bem que era importante no passado, mas, atualmente, já não goza desse prestígio, não poderá mais merecer a tutela do Direito Penal, servindo o princípio da intervenção mínima de fundamento para a sua revogação. Em seguida ao princípio da intervenção mínima, tomado apenas como um primeiro passo, a análise deve continuar para fins de criação típica. Na seqüência deve se averiguar se aquele bem, considerado como importante e incapaz de ser protegido pelos outros ramos do ordenamento jurídico, é atacado por uma conduta não tolerada socialmente. Este raciocínio é primordial porque, mesmo sendo o bem importante, se a conduta que o atinge for socialmente tolerada, não poderá haver a criminalização, pois, se assim o fizéssemos, estaríamos, na verdade, convocando a sociedade a praticar infrações penais, pois que ela não deixaria de praticar os comportamentos a que estava acostumada. Serve o princípio da adequação social na orientação do legislador tanto na criação quanto na revogação dos tipos. Condutas que já foram consideradas socialmente inadequadas, se na atualidade forem aceitas pela sociedade, deverá o legislador afastar a criminalização. Tal como se exige, hoje, com a prática do jogo do bicho, conduta perfeitamente assimilada pela sociedade, que, inclusive, pratica jogos semelhantes, e que não mereceram a repressão oficial do Estado. Este princípio deverá, também, orientar a interpretação dos tipos penais, a fim de adaptá-los à realidade, tal como se exige com relação à interpretação da expressão ato obsceno, constante do art. 233 do Código Penal. O que era obsceno em 1950 pode não ser hoje. Enfim, é um princípio de verificação obrigatória tanto pelo legislador como pelo aplicador da lei. O terceiro passo para a criação dos tipos penais seria o princípio da lesividade, por intermédio do qual proíbe-se a incriminação de pensamentos, de modos ou formas de ser e de se comportar, bem como de ações que não atinjam bens de terceiros. Seria vetar as punições pela cogitação, pelo fato de ser homossexual, suicida ou simplesmente por não tomar banho. Apto estaria o legislador a criar a figura típica tão logo ultrapassado os princípios anteriores. Escolhido o bem, após concluir que o comportamento que o ataca é inadequado e lesivo socialmente, abre-se a possibilidade 155 De Jure 9 prova 2.indd S1:155 11/3/2008 16:21:34 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS de na conduta haver a criminalização. Criada a infração penal, passará a fazer parte do acervo que pertence ao Direito Penal, mostrando assim sua natureza fragmentária, em sentido que o Direito Penal não interessa a proteção de todos os bens, mais daqueles de maior relevância para o meio social. Devemos trabalhar com princípios instrumentais com capacidade de nos levar a uma interpretação garantista e correta após criada a infração penal. Dentre esses princípios podemos destacar o da insignificância. O princípio da insignificância, cuja aplicação conduz à atipicidade do fato praticado, merecerá análise em sede de tipicidade globante, especificamente na vertente correspondente à tipicidade material, que é o critério pelo qual o Direito Penal afere a importância do bem no caso concreto. Se concluirmos pelos princípios anteriores em análise que o patrimônio, por exemplo, é um bem de relevância a ponto de ser protegido pelo Direito Penal, que socialmente a conduta que o ataca é lesiva e inadequada, obteremos razões para criarmos os crimes patrimoniais. Greco (2005, p. 33) coloca-nos a par da seguinte indagação e bem nos ensina que: Se é certo que o patrimônio abstratamente considerado, é um bem importante a ponto de receber a proteção do Direito Penal, o bem em análise, isto é, que fora objeto de subtração pelo agente, goza desse status? Foi pensando nesse bem que o legislador criou a figura do delito contra o patrimônio? Se a resposta for positiva, concluiremos que a conduta é típica e passaremos à aferição das outras características da infração penal (ilicitude e culpabilidade). Se a resposta for negativa, o estudo da infração penal estará interrompido por ausência de tipicidade material, conduzindo-nos em último caso à completa atipicidade do fato. Previsto no inciso XLVI do art. 5° de nossa Constituição Federal, o princípio da individualização da pena obriga-nos a pensarmos da seguinte forma: o Direito Penal pela finalização de exercer sua proteção, somente faz a opção pelos bens mais importantes ao convívio da sociedade. Feita essa opção, presume-se, que o bem é relevante. No entanto os bens selecionados gozam da mesma relevância, ou cada um deles possui importância maior sobre os outros? Sem muito esforço podemos perceber que cada bem escolhido possui uma importância distinta dos outros, daí decorre a necessidade de se individualizar a pena, que é justamente o critério de que se vale o Direito Penal a fim de atribuir a importância merecida a cada bem. A pena nada mais é que o pagamento por cada infração penal cometida, correspondente à gravidade do delito consumado e ligada à importância do bem. A individualização da pena pode ocorrer em três fases diferentes: a) cominação: que é a que ocorre no plano abstrato, de competência do legislador; b) aplicação: que ocorre no plano concreto, 156 De Jure 9 prova 2.indd S1:156 11/3/2008 16:21:34 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS sendo atribuída ao julgador; e por fim c) execução: que ocorre durante a execução da pena. Intimamente ligado ao da individualização da pena, o princípio da proporcionalidade teve sua origem no período iluminista. Segundo ele, a pena deverá ser proporcional ao mal praticado pelo agente e o pensamento da proporcionalidade deverá ser levado em conta tanto num plano abstrato como num plano concreto. É adotado por nossa Constituição Federal ainda o princípio da responsabilidade pessoal, através do qual podemos concluir que a pena não deverá ultrapassar a pessoa do condenado. Embora isso não ocorra na realidade como já colocamos anteriormente em nosso estudo, uma vez que a punição atinge, ainda que indiretamente, às pessoas próximas ao agente. Nossa Carta Constitucional expressa também o princípio da limitação da pena em seu art. 5°, inciso XLVII, tendo verificado que todas as escritas usadas para definir este princípio atende ao amplo fluido do princípio da dignidade humana. Tendo a natureza de princípio intimamente ligado ao próprio agente, deve-se obrigatoriamente analisar o princípio da culpabilidade que prega que se torna impossível a intervenção do Direito Penal quando a conduta do agente não for passível de censuras, sendo que não poderia ter agido de outra forma na situação em que se encontrava. O princípio da legalidade, considerado a coluna de todos os outros princípios, será observado para fins de aferição tanto material quanto formal, sendo que o interprete não poderá somente avaliar a legalidade formal, mas, principalmente sua legalidade material. Deverá não somente evidenciar se o procedimento legislativo de criação típica foi devidamente observado, como também pesquisar se o conteúdo da lei penal não contraria os princípios expressos e implícitos contidos em nossa Lei Maior, norteadores de todo o sistema. Diferentemente dos movimentos antagônicos – abolicionista e lei e ordem – o Direito Penal mínimo se encontra em equilíbrio, sendo na opinião de Greco “[...] a única via de acesso razoável para que o estado possa fazer valer o seu ius puniend, sem agir como tirano, ofendendo a dignidade de seus cidadãos”. Cabe transcrever as palavras de Paulo de Souza Queiroz (apud GRECO, 2005, p. 35): Reduzir,pois, tanto quanto seja possível, o marco de intervenção do sistema penal, é uma exigência de racionalidade. Mas é também [...] um imperativo de justiça social. Sim, porque um Estado que se define Democrático de Direito (CF, art. 1°), que declara, como seus fundamentos, a ‘dignidade da pessoa humana’, a ‘cidadania’, ‘os valores sociais da trabalho’, e proclama, como seus objetivos fundamentais, ‘construir uma sociedade livre, justa, solidária’,que promete erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais 157 De Jure 9 prova 2.indd S1:157 11/3/2008 16:21:35 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS e regionais’, ‘promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’(art. 3°), e assume, assim declaradamente, missão superior em que lhe agigantam as responsabilidades, não pode, nem deve, pretender lançar sobre seus jurisdicionados, prematuramente, esse sistema institucional de violência seletiva, que é o sistema penal, máxime quando é esse Estado, sabidamente, por ação e/ou omissão, em grande parte coresponsável pelas gravíssimas disfunções sociais que sob seu cetro vicejam e pelos dramáticos conflitos que daí derivam. Isso posto, cabe ressaltar conforme as palavras de Queiroz a existência de um movimento de Direito Penal Máximo, que idealiza punições mais severas e que abranjam um maior número de atos ilícitos. O Direito Penal Máximo é a contraposição do Abolicionismo. Desde o final do século passado, grande responsável pela propagação e divulgação dessa corrente, vem sendo a mídia. Através de profissionais não habilitados (jornalistas, repórteres, apresentadores de programas de entretenimento, etc.) que chamaram para si a responsabilidade de criticar as leis penais, fazendo a sociedade acreditar que, mediante o recrudescimento das penas, a criação de novos tipos penais incriminadores e o afastamento de determinadas garantias processuais, a sociedade ficaria livre daquela parcela de indivíduos não adaptados. O sensacionalismo é a arma utilizada pela mídia para esse convencimento da sociedade, transmitindo imagens chocantes, em rede nacional, que causam revolta e repulsa no meio social. Homicídios cruéis, estupros de crianças, presos que, durante rebeliões, torturam suas vítimas, corrupções, enfim, situações que deixam a sociedade acuada mediante assustadora violência, fazendo com que ela acredite ser o Direito Penal a solução de todos os seus problemas. Com isso, o Estado social saiu de cena para que estrelasse um Estado Penal. Investimentos em ensino fundamental, médio e superior, lazer, cultura, saúde, habilitação são relegados a segundo plano, priorizando-se o setor repressivo. O Congresso fecha seus olhos para uma melhoria nas condições sociais da população, o que deveras ajudaria na diminuição da criminalidade, preocupa-se em anunciar a todo instante novas medidas de combate ao crime. A violência deve ser combatida não de forma ainda mais violenta do que a dos crimes praticados. Não é punindo com crueldade que se obtêm êxito. Pelo contrário, dessa forma só se incentiva a criminalidade. A invasão de favelas não deveria ser feita por policiais excessivamente armados e dispostos a exterminar vidas, mas sim por um exército de sabedoria com disposição para educar e assassinar a ignorância desses marginalizados que muitas vezes enveredam no caminho do crime por questão de sobrevivência. 158 De Jure 9 prova 2.indd S1:158 11/3/2008 16:21:35 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O Movimento de Lei e Ordem e o Direito Penal do Inimigo são dois movimentos que aderiram ao ideal do Direito Penal Máximo, logo, este estudo terá seqüência acerca dos mesmos. O movimento denominado Lei e Ordem, integrante do ideal do Direito Penal Máximo, tem por adeptos ao seu pensamento os que acreditam ser o Direito Penal a solução de todos os males que afligem a sociedade. Não importando a dimensão do crime para que optem pela intervenção do ramo penal do direito, julgando o uso desse necessário não só em casos extremos. Quando se busca caracterizar o Movimento de Lei e Ordem é inevitável citar o exemplo norte-americano, do movimento denominado Tolerância Zero, uma de suas vertentes, criado no começo da década de 90, na cidade de Nova York, e iniciado pelo então prefeito, Rudolph Giuliani, juntamente com o chefe de polícia William Bratton. Com essa teoria pretendiam reorganizar o trabalho da polícia local, objetivando refrear o medo das classes médias e superiores por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus, metrô, etc.): Usam para isso três meio: aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um sistema de radar informatizado (com arquivo central sinalético e cartográfico consultável em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) que permite a redistribuição contínua a intervenção quase instantânea das forças da ordem, desembocando em uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como embriaguez, a jogatina, a mendicância, os atentados aos costumes, simples ameaças e outros comportamentos antisociais associados aos sem-teto (WACQUANT apud GRECO, 2005, p. 17). A política desse movimento era tornar o Direito Penal o protetor de, basicamente, todos os bens existentes na sociedade, não se devendo perquirir a respeito de sua importância. Se um bem jurídico é atingido por um comportamento anti-social, tal conduta poderá transformar-se em infração penal, bastando, para tanto, a vontade do legislador. Por essa teoria educar a população virou função do direito penal, fazendo com que comportamentos de pouca monta, irrelevantes, sofram as conseqüências graves desse ramo do ordenamento jurídico. O que descaracteriza a real função do direito penal que, utilizado levianamente, induz à criminalidade ao invés de detê-la. Não se educa a sociedade por intermédio de leis e sanções. O raciocínio da Direito Penal Máximo nos conduz, obrigatoriamente, à sua falta de credibilidade. Quanto mais infrações penais, menores são as possibilidades de serem efetivamente punidas as condutas infratoras, tornando-se ainda mais seletivo e maior a cifra negra. Afinal, a certeza de um castigo brando, causa mais impacto do que o temor de uma punição severa. 159 De Jure 9 prova 2.indd S1:159 11/3/2008 16:21:35 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O pensamento do movimento Lei e Ordem, de forma resumida, entende que deve ser utilizado o Direito Penal como prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção do Estado perante os cidadãos, cumprindo um papel de cunho eminentemente educador e repressor, não permitindo que as condutas socialmente intoleráveis, por menor que sejam, deixem de ser reprimidas. O falacioso conforto trazido à sociedade pelo raciocínio maximalista dessa corrente não pode prosperar. Nem a própria sociedade toleraria a punição de todos os seus comportamentos anti-sociais, os quais já está acostumada a praticar cotidianamente. Afinal, severas sanções são bem vindas aos outros, mas quando nos atingem, ou a amigos e familiares, julgamos as mesmas absurdas. Já o Direito Penal do Inimigo é tido como um dos membros mais agressivos do Direito Penal Máximo. Destacaremos em nosso estudo o Direito Penal do Inimigo desenvolvido pelo professor alemão Günter Jakobs, na segunda metade da década de 90. Ele procurou traçar uma distinção entre um Direito Penal do Cidadão, garantista, com observância de todos os princípios fundamentais que lhe são pertinentes, e um Direito Penal do Inimigo, despreocupado com seus princípios fundamentais, pois que não estaríamos diante de cidadãos., mas sim de inimigos do Estado: Um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa. E é que o estado natural é um estado de ausência de norma, quer dizer, a liberdade excessiva tanto como de luta excessiva. Quem ganha a guerra determina o que é norma, e quem perde há de submeter-se a essa determinação (JAKOBS apud GRECO, 2005, p. 23). No Direito Penal do inimigo são evidentes três elementos: amplo adiantamento da punibilidade, penas desproporcionalmente altas, relativização ou até mesmo a supressão de determinadas garantias processuais. Segundo Jakobs, esse direito estaria presente no Brasil na lei que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção de ações praticadas por organizações criminosas (Lei n° 9.034, de 3 de maio de 1995). Atualmente pode ser enquadrado naquilo que se reconhece como a terceira velocidade do Direito Penal, dentre as três velocidades possivelmente visualizadas. A primeira velocidade seria a que tem por fim último a aplicação da pena privativa de liberdade, onde são mantidos rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais. Na segunda velocidade, temos o Direito Penal à aplicação de penas não privativas de liberdade, a exemplo do que ocorre no Brasil com os Juizados Especiais Criminais, cuja finalidade de acordo com o art. 62 da Lei n° 9.099/95, é, precipuamente, a aplicação de penas que não importem na privação de liberdade do cidadão, devendo, pois, ser priorizadas as penas restritivas de direitos e a pena de multa. Nessa segunda velocidade do Direito Penal, poderiam ser afastadas algumas garantias, com o escopo de agilizar a aplicação da lei 160 De Jure 9 prova 2.indd S1:160 11/3/2008 16:21:35 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS penal. Apesar da resistência, tem-se procurado estender o Direito Penal do Inimigo a uma terceira velocidade, com a finalidade de aplicar penas privativas de liberdade (primeira velocidade), com uma minimização das garantias necessárias a esse fim (segunda velocidade). A dificuldade da aplicação dessa teoria se dá principalmente em como caracterizar quem é considerado inimigo, tendo suprimidas suas garantias penais e processuais penais. Para Jakobs eles seriam os terroristas. Mas no Brasil, seriam eles os traficantes das grandes cidades? Não seria extremamente perigoso ao sistema um Direito Penal, baseado no perigo e sem nenhum tipo de limitações ao poder punitivo do Estado, em face do delinqüente perigoso e especialmente para o delinqüente habitual? Ainda que, considerado por essa corrente, um inimigo do Estado não deveria de acordo com o princípio da dignidade humana ser levado em conta o fato de ser um cidadão? Enfim, taxar de irrecuperável qualquer ser humano, ainda que pertencente a facções organizadas (terroristas ou traficantes), é o auge da insensatez. Desistir de recuperar alguém sob o rótulo de possuir um defeito de caráter, que o impede de agir como os demais cidadãos, é caminhar para trás abrindo mão dos direitos e garantias que conquistamos vagarosamente a duras penas até então. Nesse sentido, a mídia se mostra um importante instrumento de difusão do ideal maximalista, quando utiliza seu poder de formadora de opinião pública para inserir na consciência dos espectadores repudia com relação a determinado infrator. Toma para si o posto de justiceira e condena um cidadão antes mesmo de ser indiciado, através de programas sensacionalistas como o do Ratinho, transmitido pelo SBT. Provoca tamanho desprezo da sociedade com relação ao criminoso (ou possível criminoso em determinados casos), fomentando o ódio e o desejo de puni-lo da forma mais severa possível, muitas vezes violando garantias de qualquer cidadão brasileiro. Essa mitigação pela mídia das garantias do sistema acusatório brasileiro ensejará o prosseguimento desse estudo acerca da influência midiática no âmbito judiciário. 2. O sistema acusatório brasileiro e suas garantias: a mitigação pela mídia Sistema processual penal é o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do direito penal a cada caso concreto. O Estado deve tornar efetiva a ordem normativa penal, assegurando a aplicação de suas regras e de seus preceitos básicos, e esta aplicação somente poderá ser feita através do processo, que deve se revestir, em princípio, de duas formas: a inquisitiva e a acusatória. Em um Estado Democrático de Direito, o sistema acusatório é a garantia do cidadão contra qualquer arbítrio do Estado. A contrario sensu,no Estado totalitário, em que a repressão é a mola mestra e há supressão dos direitos e garantias individuais, o sistema inquisitivo encontra sua guarida. 161 De Jure 9 prova 2.indd S1:161 11/3/2008 16:21:35 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O sistema inquisitivo surgiu nos regimes monárquicos e se aperfeiçoou durante o direito canônico, passando a ser adotado em quase todas as legislações européias dos séculos XVI, XVII e XVIII. Este sistema surgiu após o acusatório privado, com sustento na afirmativa de que não se poderia deixar que a defesa social dependesse da boa vontade dos particulares, já que eram estes que iniciavam a persecução penal. O cerne de tal sistema era a reivindicação que o Estado fazia para si do poder de reprimir a prática dos delitos, não sendo mais admissível que tal repressão fosse encomendada ou delegada aos particulares. O Estado-juiz passou a concentrar em suas mãos as funções de acusar e julgar, comprometendo sua imparcialidade. Caracterizado por não haver nele separação de funções, no processo inquisitivo, o próprio órgão que investiga é o que pune. O juiz inicia a ação, defende o réu e julga-o, acumulando todas as funções em suas mãos. No sistema inquisitivo, o juiz não forma seu convencimento diante das provas dos autos que lhe foram trazidas pelas partes, mas visa convencer as partes de sua íntima convicção, pois já emitiu, previamente, um juízo de valor ao iniciar a ação. O processo inquisitivo é regido pelo sigilo, de forma secreta, longe dos olhos do povo. Não há contraditório nem ampla defesa, pois o acusado é mero objeto do processo e não sujeito de direitos, não sendo a ele conferida nenhuma garantia. O sistema de provas é o da prova tarifada ou prova legal, o que conseqüentemente torna a confissão a rainha das provas. Considerando as características peculiares ao sistema inquisitivo a fala de Rangel (2002, p. 45) deve ser destacada: O sistema inquisitivo, assim, demonstra total incompatibilidade com as garantias constitucionais que devem existir dentro de um Estado Democrático de Direito e, portanto, deve ser banido das legislações modernas que visem assegurar ao cidadão as mínimas garantias de respeito à dignidade da pessoa humana. No entanto, não adianta o direito brasileiro adotar o sistema acusatório teoricamente, e permitir que na prática seu processo judicial tenha violado as garantias inerentes a qualquer cidadão. O sistema misto tem fortes influências do sistema acusatório privado de Roma e do posterior sistema inquisitivo desenvolvido a partir do Direito canônico e da formação dos Estados nacionais sob o regime da monarquia absolutista. Procurouse com ele temperar a impunidade que estava reinando no sistema acusatório, em que nem sempre o cidadão levava ao conhecimento do Estado a prática da infração penal, fosse por desinteresse ou por falta de estrutura mínima e necessária para suportar as despesas inerentes àquela atividade; ou, quando levava, em alguns casos, fazia-o movido por um espírito de vingança. Neste caso, continuava nas mãos do Estado a persecução penal, porém feita na fase anterior à ação penal e levada a cabo pelo Estado-juiz. As investigações criminais eram feitas pelo magistrado com sérios 162 De Jure 9 prova 2.indd S1:162 11/3/2008 16:21:36 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS comprometimentos de sua imparcialidade, porém a acusação passava a ser feita, agora, pelo Estado-administração: o Ministério Público. Segundo Rangel (2002, p. 48), duas fases procedimentais distintas dividem o sistema misto: 1ª) instrução preliminar: nesta fase, inspirada no sistema inquisitivo, o procedimento é levado a cabo pelo juiz, que procede às investigações, colhendo as informações necessárias a fim de que se possa, posteriormente, realizar a acusação perante o tribunal competente; 2ª) judicial: nesta fase, nasce a acusação propriamente dita, onde as partes iniciam um debate oral e público, com a acusação sendo feita por um órgão distinto do que irá julgar, em regra, o Ministério Público. No sistema misto, a fase preliminar de investigação é levada a cabo, em regra, por um magistrado que, com o auxílio da polícia judiciária, pratica todos os atos inerentes à formação de um juízo prévio que autorize a acusação. Há nítida separação entre as funções de acusar e julgar, não havendo processo sem acusação. Na fase preliminar, o procedimento é secreto, escrito e o autor do fato é mero objeto de investigação, não havendo contraditório nem ampla defesa, face à influência do procedimento inquisitivo. Já a fase judicial é inaugurada com acusação penal feita, em regra, pelo Ministério Público, onde haverá um debate oral, público e contraditório, estabelecendo plena igualdade de direitos entre a acusação e a defesa. O acusado, na fase judicial, é sujeito de direitos e detentor de uma posição jurídica que lhe assegura o estado de inocência, devendo o órgão acusador demonstrar a sua culpa, através do devido processo legal, e destruir este estado. O ônus é todo e exclusivo do Ministério Público. O procedimento na fase judicial é contraditório, sendo assegurada ao acusado a ampla defesa, garantida a publicidade dos atos processuais e regido pelo princípio da concentração, em que todos os atos são praticados em audiência. O sistema misto, não obstante ser um avanço frente ao sistema inquisitivo, não é considerado o melhor sistema, pois ainda mantém o juiz na colheita de provas, mesmo que na fase preliminar da acusação. A função jurisdicional deve ser ao máximo preservada, reiterando-se, nos Estados democráticos de direito, o juiz da fase persecutória e entregando-se a mesma ao Ministério Público, que é quem deve controlar as diligências investigatórias realizadas pela polícia judiciária, ou, se necessário for, realizá-las pessoalmente, formando sua opinio delicti e iniciando a ação penal. Logo, os sistemas processuais já vistos, inquisitivo e misto, são frutos do período político de cada época, pois, à medida que o estado se aproxima do autoritarismo, diminuem as garantias do acusado. 163 De Jure 9 prova 2.indd S1:163 11/3/2008 16:21:36 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Porém, à medida que se aproxima do Estado Democrático de Direito, as garantias constitucionais são-lhe entregues. Portanto, levando em conta o atual período político brasileiro, este estudo terá seqüência analisando o sistema processual atualmente por ele adotado, o sistema acusatório. O sistema acusatório tem nítida separação de funções, ou seja, o juiz é órgão imparcial de aplicação da lei, que somente se manifesta quando devidamente provocado; o autor é quem faz a acusação (imputação penal + pedido), assumindo todo o ônus da acusação, e o réu exerce todos os direitos inerentes à personalidade, devendo defenderse utilizando todos os meios e recursos inerentes à sua defesa. Assim, no sistema acusatório, cria-se o actum trium personarum, ou seja, o ato de três personagens: juiz, autor e réu. Neste sistema, o juiz não mais inicia, ex officio, a persecução penal in iudicium. Há um órgão próprio, criado pelo Estado, para propositura da ação. Na França, em fins do século XIV, surgiram os les procureurs du roi (os procuradores do rei), dando origem ao Ministério Público. Assim, o titular da ação penal pública passou a ser o Ministério Público, afastando o juiz da persecução penal. O processo acusatório visa preservar a imparcialidade do juiz, para que seja um autêntico julgador supra partes. Evidente é a imparcialidade do órgão julgador, pois o juiz está distante do conflito de interesses instaurado entre as partes, mantendo seu equilíbrio, porém dirigindo o processo adotando as providências necessárias à instrução do feito, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias. O sistema acusatório caracteriza-se pela separação entre as funções de acusar, julgar e defender, com três personagens distintos: autor, juiz e réu. Seu processo é regido pelo princípio da publicidade dos atos processuais, admitindo-se, como exceção, o sigilo na pratica de determinados atos. Os princípios do contraditório e da ampla defesa informam todo o processo. O réu é sujeito de direitos, gozando de todas as garantias constitucionais que lhe são outorgadas. O meio de provas adotado é o do livre convencimento, ou seja, a sentença deve ser motivada com base nas provas carreadas para os autos. O juiz está livre na sua apreciação, porém não pode se afastar do que consta no processo. Hodiernamente, no direito brasileiro, vige o sistema acusatório, pois, a função de acusar foi entregue, privativamente, a um órgão distinto: o Ministério Público, e, em casos excepcionais, ao particular. Não existindo a figura do juiz instrutor, pois a fase preliminar e informativa que temos antes da propositura da ação penal é a do inquérito policial e este é presidido pela autoridade policial. Mas ao analisar o sistema acusatório adotado pelo Brasil atualmente muitos doutrinadores não o consideram um sistema puro em sua essência, pois o inquérito policial regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o indiciado como objeto de investigação, integra os autos 164 De Jure 9 prova 2.indd S1:164 11/3/2008 16:21:36 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS do processo, e o juiz, muitas vezes, pergunta, em audiência, se os fatos que constam do inquérito policial são verdadeiros. Inclusive, ao tomar depoimento de uma testemunha, primeiro lê seu depoimento prestado, sem o crivo do contraditório, durante a fase do inquérito, para saber se confirma ou não, e, depois, passa a fazer as perguntas que entende necessárias. Nesse caso, o procedimento meramente informativo, inquisitivo e sigiloso dá o pontapé inicial na atividade jurisdicional à procura da verdade real. Dessa forma, como afirmar que o sistema acusatório adotado pelo Brasil é puro? Pode se dizer que avançou, porém, não há que se negarem os resquícios do sistema inquisitivo. Exordial do processo acusatório o inquérito policial assume grande responsabilidade, pois ameaça garantias inerentes ao cidadão. Ao refletir sobre esta etapa da persecução penal percebe-se o quanto torna-se prejudicial ao processo a influência que a mídia exerce sob o inquérito policial. A Constituição Federal brasileira traz uma série de princípios que deveriam servir de norte ao legislador e aos aplicadores da lei. Ocorre, que tais princípios ainda que não possam ser deixados de lado formalmente, são constantemente ignorados informalmente. Assegurados por nossa lei maior os princípios constitucionais garantidores são um direito inerente a qualquer cidadão, porém vêm sendo mitigados pelo poder da mídia. É o caso do Princípio da Presunção da Inocência, o da Ampla Defesa, do Contraditório e o da Publicidade. O Princípio da Presunção de Inocência expresso no artigo 5°, inciso LVII da Constituição Federal, consiste no fato que, “[...] ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória”. Seu marco principal ocorreu no final do século XVIII, em pleno iluminismo, quando, na Europa Continental, surgiu a necessidade de se insurgir contra o sistema processual penal inquisitório, de base romano-canônica, que vigia desde o século XII. Nesse período e sistema o acusado era desprovido de toda e qualquer garantia. Surgiu, daí, a necessidade de se proteger o cidadão do arbítrio do Estado que, a qualquer preço, queria sua condenação, presumindo-o, como regra, culpado. Com a eclosão da Revolução Francesa, nasce o diploma marco dos direitos e garantias fundamentais do homem: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Nela fica consignado, em seu art. 9º, que “Todo o homem é considerado inocente, até o momento em que, reconhecido como culpado, se julgar indispensável a sua prisão: todo o rigor desnecessário empregado para a efetuar deve ser severamente reprimido pela lei”. Foi exatamente quando o processo penal europeu passou a se deixar influenciar pelo sistema acusatório que surgiu uma maior proteção da inocência do acusado. A Constituição da República Federativa do Brasil, pela primeira vez, consagrou o chamado princípio da presunção de inocência, proclamado, em 1948, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU. Assim, para parte da doutrina, qualquer 165 De Jure 9 prova 2.indd S1:165 11/3/2008 16:21:36 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS medida de coerção pessoal contra o acusado somente deve ser adotada se revestida de caráter cautelar e, portanto, se extremamente necessária. Enquanto não definitivamente condenado, presume-se o réu inocente. Sendo este presumidamente inocente, sua prisão, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, somente poderá ser admitida a título de cautela. Alguns doutrinadores, como Rangel (2002), questionam a terminologia presunção de inocência, pois, se o réu não pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, também não pode ser presumidamente inocente. A Constituição não presume a inocência, mas declara que ninguém será considerado culpado até o transito em julgado da sentença penal condenatória. Em outras palavras, uma coisa é a certeza da culpa, outra, bem diferente, é a presunção da culpa. Ou, se preferirem, a certeza da inocência ou a presunção da inocência. A atuação da mídia é questionável justamente neste ponto, pois, não apenas noticia o fato e o provável suspeito de forma imparcial, mantendo-se no campo da presunção. Ocorre que, a maneira sensacionalista como ataca o suspeito, em rede nacional, o apontando como culpado, ultrapassa o campo da presunção. Dessa forma, a mídia considera culpado até que se prove o contrário, desrespeitando o princípio constitucional da presunção de inocência. O magistrado, ao condenar, presume a culpa; ao absolver, presume a inocência, presunção júris tantum, pois o recurso interposto dessa decisão fica sujeito a uma condição (evento futuro e incerto), qual seja a reforma (ou não) da sentença pelo tribunal. Desta forma, o réu tanto pode ser presumido culpado como presumido inocente e isto em nada fere a Constituição Federal. Seria ilógico imaginarmos que o juiz ao condenar, presume o réu inocente. Não. Neste momento, a presunção é de culpa e, óbvio, ao absolver, a presunção é de inocência. Destarte, nem o juiz de primeira instância ao condenar o réu excede a etapa da presunção, até que sua sentença transite em julgado. E se até mesmo para presumir alguém culpado fazse necessário um processo guardado pelas garantias e direitos inerentes ao cidadão. Como pode o judiciário permitir que a mídia considere alguém culpado e condenável sem qualquer tramitação jurisdicional prévia? Não estaria sendo desconsiderado o Princípio da Presunção de Inocência? A Constituição da República Federativa do Brasil consagra mais dois princípios importantes para essa pesquisa, ainda em seu art. 5º, porém inciso LV, “[...] aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. A instrução contraditória é inerente ao próprio direito de defesa, pois não se concebe um processo legal, buscando a verdade dos fatos, sem que se dê ao acusado a oportunidade de 166 De Jure 9 prova 2.indd S1:166 11/3/2008 16:21:36 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS desdizer as afirmações contra ele feitas na peça exordial. O ato jurídico que garante o direito do réu de ser ouvido sobre as acusações que pesam sobre ele é a citação. No processo penal, o respeito a este chamado vai tão longe que, uma vez citado e não comparecendo o réu, o Estado-juiz nomeia-lhe defensor para que faça sua defesa técnica, para garantir o equilíbrio na relação jurídico-processual, onde as partes (autor e réu) ficam no mesmo pé de igualdade, mantendo uma perfeita harmonia entre os bens jurídicos que irão se contrastar: pretensão punitiva x pretensão de liberdade. O dispositivo constitucional acima citado (art. 5º, LV) não pode levar o intérprete a pensar que a expressão processo administrativo compreende a fase inquisitorial ou uma colocação mais precisa no procedimento administrativo instaurado na delegacia de polícia. O conceito de processo administrativo é diferente do de procedimento administrativo. O primeiro é gênero, do qual surgem várias espécies, sendo a mais freqüente o processo disciplinar, onde se busca uma sanção de caráter administrativo ao administrado. É a este que a Constituição Federal refere-se, dando o direito de defesa e assegurando o contraditório a quem resiste administrativamente a esta pretensão punitiva disciplinar. O segundo é o meio e modo pelo qual os atos administrativos serão praticados. O rito, a forma de proceder e o conjunto de formalidades que serão adotadas. O inquérito policial, assim, não passa de mero expediente administrativo, que visa apurar a prática de uma infração penal coma delimitação da autoria e as circunstancias em que a mesma ocorrera, sem o escopo de infligir pena a quem seja objeto desta investigação. Assim, o caráter inquisitorial afasta, do inquérito policial, o princípio do contraditório. O princípio do contraditório traz, como conseqüência lógica, a igualdade das partes, possibilitando a ambas a produção, em idênticas condições, das provas de suas pretensões. Através da definição do princípio do contraditório fica perceptível seu desencontro com a maneira de agir da mídia. Afinal, alguém já foi citado para aparecer em horário nobre da programação jornalística para ter a oportunidade de desdizer as afirmações contra ele feitas? Quando, nas Constituições, se assegura à ampla defesa, entende-se que, para observância desse comando, deve a proteção derivada da cláusula constitucional abranger o direito à defesa técnica durante todo o processo e o direito de autodefesa. Colocam-se ambos em relação de diversidade e complementariedade. A defesa técnica, para ser ampla como exige o texto constitucional, apresenta-se no processo como defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva. Por outro lado, além de ser garantia, a defesa técnica é também direito e assim, pode o acusado escolher defensor de sua confiança. Não se pode imaginar defesa ampla sem defesa técnica, essencial para se garantir a paridade de armas. De um lado, tem-se, em regra, o Ministério Público composto de membros altamente qualificados e que conta, para auxiliá-lo, com a 167 De Jure 9 prova 2.indd S1:167 11/3/2008 16:21:37 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS polícia Judiciária, especializada na investigação criminal. Deve, assim, na outra face da relação processual, estar o acusado amparado também por profissional habilitado, ou seja, por advogado ou defensor público. Além de a defesa ser necessária, é indeclinável, não podendo o acusado a ela renunciar. O direito de defesa é ao mesmo tempo garantia da própria justiça, havendo interesse público em que todos os acusados sejam defendidos, pois só assim será assegurado efetivo contraditório, sem o qual não se pode atingir uma solução justa. Sendo a defesa necessária e indeclinável, deve ela se manifestar durante todo o iter processual. Não basta, como sucede com a ação civil, o poder de reação inicial, sendo mister que se assegure ao acusado a garantia de que, no correr do processo, terá efetiva contraposição à acusação: garantia de contraditório, garantia do direito à prova, garantia ao duplo grau de jurisdição. Além de necessária, indeclinável, plena, a defesa deve ser efetiva, não sendo suficiente a aparência de defesa. O fato de ter o réu defensor constituído, ou de ter sido nomeado advogado para sua defesa, não é suficiente. É preciso que se perceba, no processo, atividade efetiva do advogado no sentido de assistir o acusado. De que adiantaria defensor designado que não arrolasse testemunhas, não reperguntasse, oferecesse alegações finais exageradamente sucintas, sem análise da prova, e que, por exemplo, culminassem com pedido de justiça? Haveria, aí, alguém designado para defender o acusado, mas a sua atuação seria tão deficiente que é como se não houvesse defensor. É importante assegurar ao acusado, como derivação do direito à defesa técnica, a possibilidade de escolher defensor, porque a relação que se deve estabelecer entre os dois é de recíproca confiança, sendo assegurada ao acusado pobre assistência judiciária gratuita. A mídia, por sua vez, além de não assegurar ao acusado defesa, muitas vezes entrevista o promotor criminal responsável pelo caso sem ceder o mesmo espaço ao defensor do réu. Inibe os princípios do contraditório e da ampla defesa, ao negar que o acusado disserte sobre sua versão dos fatos. A garantia da publicidade dos atos processuais está expressa no art. 5º, “LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. No inciso IX do art. 93 ficou ainda estabelecido que “[...] todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”. Foi a atual Carta Magna, de 5 de outubro de 1988, que elevou à eminência constitucional a garantia da publicidade dos atos processuais. O tema, antes, era cuidado apenas pelo Código de Processo Penal, no art. 792. Assim, apesar de não estar antes na Carta 168 De Jure 9 prova 2.indd S1:168 11/3/2008 16:21:37 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Constitucional, a garantia “[...] já estava incorporada à cultura do processo brasileiro”, encontrada nos Códigos. A inserção da garantia na Constituição alterou situações em que a regra era o julgamento em sigilo, como sucedia, por exemplo, nos julgamentos militares, os quais, depois, passaram a ser feitos com maior publicidade, assegurando-se a participação das partes. Trata-se de garantia relevante e que assegura a transparência da atividade jurisdicional, permitindo ser fiscalizada pelas partes própria comunidade. Com ela são evitados excessos ou arbitrariedades no desenrolar da causa, surgindo, por isso, a garantia como reação aos processos secretos, proporcionando aos cidadãos a oportunidade de fiscalizar a distribuição da justiça. Há publicidade plena, popular ou geral, quando os atos do processo estão abertos a todo o público. Com pequenas variações de conteúdo, a doutrina refere-se à publicidade restrita, especial, mediata, interna, para as partes, quando há limitação à publicidade dos atos do processo. Mas a regra, no sistema constitucional e processual, é a publicidade plena, ficando expressas as hipóteses em que se permite a publicidade restrita: defesa da intimidade e interesse social (art. 5º., LX, da CF) e escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem (art. 792, § 1º, do CPP). Os atos processuais devem ser transparentes, o que deve ser evitado é a publicidade desnecessária e sensacionalista, como as transmissões de julgamentos por rádio ou televisão. Expõe demasiadamente os protagonistas da cena processual ao público em geral e causa constrangimento ao acusado, à vítima e às testemunhas. Na fase do inquérito policial, deve a autoridade policial assegurar o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade. O que não ocorre na atualidade com os casos de grande repercussão nacional. É necessário cuidado nas divulgações de fatos e dados relativos à vítima na fase de investigação policial. Muito comumente acontece que, instaurado o inquérito, iniciada a investigação, os meios de comunicação passem a veicular fatos graves, sem a mínima preocupação com a vítima: seu nome é noticiado, é ela qualificada, seu endereço é mencionado, são relatados fatos desagradáveis de intensa repercussão na sua vida pessoal, familiar, social. Exemplo gritante é o dos crimes sexuais violentos em que a divulgação expõe a mulher ofendida à curiosidade pública, impondo-lhe, após o sofrimento do crime, novos dissabores e impedindo que possa logo retornar a sua vida particular, com a sua privacidade resguardada, protegida, amparada. Em certos crimes, cometidos por grupos organizados ou pessoas perigosas, a divulgação do nome da vítima, de seu endereço residencial, de seu local de trabalho, de seus hábitos, só contribui para aumentar o risco de ser novamente atingida e atrapalhar a investigação. Nestes crimes, norma relevante para acautelar os interesses da vítima seria a de não constar seu endereço nos autos quando houver perigo de vingança ou, por outro motivo, não for conveniente, sendo o endereço fornecido diretamente ao Ministério Público ou ao 169 De Jure 9 prova 2.indd S1:169 11/3/2008 16:21:37 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Poder Judiciário em folha avulsa, a fim de poder a pessoa ser chamada para prestar declarações na fase processual. Também a Lei Antitóxicos preocupou-se com o sigilo, ao prescrever que os “[...] registros, documentos ou peças de informação, bem como os autos de prisão em flagrante e os de inquérito policial para apuração do crimes definidos nesta Lei serão mantidos sob sigilo, ressalvadas, para efeito exclusivo de atuação profissional, as prerrogativas do juiz, do Ministério Público, da autoridade policial e do advogado na forma da legislação específica”, pune como crime a violação desse sigilo no art. 17. No caso de julgamento por Tribunal de Júri, a votação na sala secreta foi preservada quando a Constituição Federal (art. 5º, XXXVIII, b) previu o sigilo das votações. Trata-se de hipótese de publicidade restrita justificável pela necessidade de preservar os jurados, que podem, com a presença do réu e de populares, sentirem-se intimidados, afetando-se a imparcialidade do julgamento. Mas a colheita da prova, os debates e a leitura da sentença são públicos. O legislador preocupou-se, ainda, com o sigilo das diligencias, gravações e transcrições obtidas com base em interceptações telefônica (art. 8º, caput, da Lei nº 9.296/96). 3. Dos Juízos Paralelos da Imprensa Nos dias atuais, a nota de democracia referida ao moderno processo penal há que propor nova reflexão no tocante à publicidade por conta da modificação, tanto na esfera pública, que não mais se restringe ao Estatal ou não se confunde com ele, como em virtude da verdadeira revolução proporcionada pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação e sua forma de penetração e influência na complexa sociedade de massas. Traçar a trajetória liberal do princípio da publicidade, focalizando o fato de, nos tempos das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, na Europa Ocidental, a publicidade procurar submeter a pessoa ou a questão ao julgamento público, tornando as decisões políticas sujeitas à revisão perante a opinião pública, mostra sua mudança com relação ao momento atual. O controle empresarial dos meios de comunicação de massa, a lógica da competitividade e do mercado que orienta a atuação deles e a distorção da própria noção de publicidade, que, antes de incentivarem a participação democrática da maioria das pessoas relativamente aos negócios da sua cidade e de seu país anulam essa participação, constroem uma nova realidade, paradoxalmente virtual ou espetacular: Na mudança de função do Parlamento, torna-se evidente a natureza problemática da ‘publicidade’ enquanto princípio de organização da ordem estatal: de um princípio de crítica (exercida pelo público), a ‘publicidade’ teve redefinida a sua função, tornando-se princípio de uma integração 170 De Jure 9 prova 2.indd S1:170 11/3/2008 16:21:37 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS forçada (por parte das instancias demonstrativas – da administração e das associações, sobretudo dos partidos). Ao deslocamento plebiscitário da esfera pública parlamentar corresponde uma deformação no consumismo cultural da esfera pública jurídica. Com efeito, os processos penais que são suficientemente interessantes para serem documentados e badalados pelos meios de comunicação de massa, invertem, de modo análogo, o princípio crítico da ‘publicidade’, do tornar público; ao invés de controlar o exercício da justiça por meio dos cidadãos reunidos, serve cada vez mais para preparar processos trabalhados judicialmente para a cultura de massas dos consumidores arrebanhados (HABERMAS apud PRADO, 2005, p. 162). O poder (contrapoder) da mídia é empregado especialmente nos casos penais. É grande a influência da sociedade espetacular, da ansiedade midiática e da informação como mercadoria de consumo, destacando negativamente seja o acusado ou os próprios juristas. Na década de 90, já chamava atenção à nova postura do fenômeno mídia e das suas relações com o processo penal. A exploração das causas penais como casos jornalísticos, com intensa cobertura por todos os meios, leva à constatação de que, ao contrário do processo penal tradicional, no qual o réu e a defesa poderão dispor de recursos para tentar resistir à pretensão de acusação em igualdade de posições e paridade de armas com o acusador formal, o processo paralelo difundido na mídia é superficial, emocional e muito raramente oferece a todos os envolvidos igualdade de oportunidade para expor seus pontos de vista. A disparidade de tratamento que, em muitas ocasiões, é tratada como cobertura isenta e lisa do meio de comunicação, que procura acentuar sua liberdade em face dos investigados quando porventura estes integram ou são vistos como parte das elites políticas, econômicas ou intelectuais, na verdade está a descobrir um fato e produzir algumas danosas conseqüências. A presunção de inocência sofre drástica violação, pois a imagem do investigado é difundida como da pessoa responsável pela infração penal, e em vista disso, o desequilíbrio de posições que os sujeitos têm de suportar durante o período de exposição do caso pela mídia transfigura os procedimentos seculares de apuração e punição, passando subliminarmente a idéia do caráter obsoleto e ineficiente das garantias processuais, a que se soma a percepção do processo penal como meio demorado de se fazer justiça em comparação com a célere e perfeita investigação da mídia. Semelhante situação sofre o devido processo legal e a liberdade de imprensa, sendo esta última apresentada como direito civil elementar em uma sociedade democrática, mas que geralmente acaba produzindo em seu extremo um modelo autoritário de exercício de poder, em virtude do fato de que os procedimentos acabam tendo 171 De Jure 9 prova 2.indd S1:171 11/3/2008 16:21:37 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS valor exclusivamente formal. Os meios de comunicação socorrem-se em muitas oportunidades de procedimentos ilegais de apuração dos fatos e transmitem a imagem do crime flagrado enquanto ocorre (a antiga verdade real, agora com nova roupagem) amplamente documentado e provado, supostamente, cabendo à Justiça tão-só sacramentar o veredicto de condenação e punir o culpado. A organização do sistema de direitos fundamentais em sua etapa inicial considerou a necessidade histórica de conter o poder do Estado, opondo-lhe barreiras consistentes nas liberdades públicas. Era e de alguma maneira ainda é assim porque ao Estado são conferidos poderes cujo exercício implica em virtual interferência na esfera privada das pessoas, ameaçando o status de dignidade de que devem ser portadores todos os seres humanos, independentemente de quaisquer outras considerações. No âmbito do processo penal, a proibição do emprego da tortura, a garantia da inviolabilidade física, do domicílio, das comunicações e do patrimônio, conjugam-se como regras destinadas a proteger a honra, a liberdade e a vida dos indivíduos, sendo que a crônica do exercício arbitrário do poder registra o emprego do processo penal como forma de exclusão e controle dos grupos sociais indesejáveis, naturalmente ao mesmo tempo em que se procurava controlar as ações que realmente atentavam contra interesses expressivos das comunidades. Ter tudo em um mesmo conjunto sempre facilitou o poder no instante de encontrar um pretexto para excepcionar o emprego de meios processuais racionais e éticos de apuração das infrações penais, de sorte que a defesa social fundamentou discurso de compressão de exercício de direitos fundamentais em condições de justificar o processo penal dos regimes autoritários de meados do século XX, na Europa Ocidental. Apesar disso, o movimento de internacionalização dos direitos fundamentais, iniciado após o fim da Segunda Guerra Mundial, ocupou espaços e detonou irreversível conscientização do caráter inalienável e irrenunciável destes direitos, obrigando o Estado a perseguir o delito e punir o delinqüente com as armas dispostas em um regime de estrita legalidade e eticidade. Porém, um novo tipo de poder foi edificado, fora do Estado, com o desenvolvimento da comunicação de massa, em um contexto de sociedade capitalista e com uma forma cada vez mais acentuada de empresas transnacionais de comunicação (as grandes corporações, que monopolizam estes meios). A lógica de freios e contrapesos não funciona em relação a eles, que preconizam auferir legitimidade em virtude do consumo massivo das informações que veiculam. O emprego da censura não é aceitável, pois no lugar de eliminar a doença mata o paciente, abrindo caminho para o extermínio da liberdade de informação e expressão. Embora se saiba que, no tocante ao funcionamento geral das corporações do ramo, a liberdade de imprensa é ditada por interesses mercadológicos, sobrevive em importante 172 De Jure 9 prova 2.indd S1:172 11/3/2008 16:21:37 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS medida a liberdade de informação de que fazem uso os operadores da imprensa e que tem sido fundamental para esclarecer as pessoas (detentoras do direito à informação) a respeito de fatos relevantes da vida pública e social. Destarte, o controle das situações de conflito entre liberdade de imprensa e devido processo legal pode estar em se proibir à imprensa aquilo que é igualmente proibido ao Estado, isto é, fazer uso de informações obtidas criminosamente. A censura prévia é impossível, portanto, duas são as possíveis alternativas, segundo Geraldo Prado (2005), a primeira seria recorrer aos mecanismos de responsabilidade tradicional, de natureza reparatória. E a segunda alternativa seria a intransigente proibição de que as partes do processo lancem mão das provas obtidas dessa maneira, a qualquer título. A fidelidade ao sistema acusatório implica em estipular que a sede para a solução dos conflitos de interesse de natureza penal é o processo judicial. Nos casos de intensa exploração pela mídia, é conveniente que se proceda ao desaforamento temporal, suspendendo o curso do procedimento enquanto durar o estado de excitação social. Visando resguardar a coerência interna entre os diversos elementos constitutivos do sistema acusatório, quando confrontados com a publicidade pós-moderna, segundo Prado (2005), convém seguir e ampliar o exemplo espanhol, pelo qual, em virtude da ordem ministerial de 27 de novembro de 1959, completada pelo ofício circular de 22 de abril de 1985, o Ministério Público está autorizado a emitir comunicados escritos, destinados à imprensa, a fim de evitar informações errôneas. A propósito destes comunicados, deve a lei garantir à parte que se sentir prejudicada o direito de fazer uso de igual expediente, assegurando-se, assim, não só a liberdade de informação como também o exercício desta liberdade verdadeiramente como função social. O processo penal democrático necessita da publicidade dos seus procedimentos e assegurá-la pode impedir que se coloque no seu lugar a publicidade espetacular dos atores que deles tomam parte, além de facilitar o controle e coibir os excessos. Para Batista (1993), em seminário realizado no Rio de Janeiro, em 1993, os princípios que regem hoje no Brasil a cobertura policial jornalística, de modo objetivo e enxuto, são o princípio da verdade primacial, os princípios da progressividade, o princípio da mais-valia da violência impune, o princípio da manipulação estatística, o princípio da ineficiência do Estado, o princípio da credibilidade imediata do terror e o princípio do estereótipo criminal. É impossível pensar a questão da liberdade de imprensa hoje ignorando: a) que o modelo idealista-liberal da informação neutra, objetiva, secundada pela opinião não funciona em sociedades de consumo, nas quais os proprietários dos meios de comunicação necessitam de uma informação adequada à subseqüente opinião; b) que a mídia se constitui e opera como poder político, tendo em vista a formação de opinião pública – potencialmente, formação de opção eleitoral 173 De Jure 9 prova 2.indd S1:173 11/3/2008 16:21:38 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS e, portanto, de poder; c) que a sobrevivência dos veículos se subordina a relações de mercado, perante as quais o direito de informar tem como pressuposto a capacidade competitiva de vender. É ingênuo e injusto supor que os princípios a seguir enunciados, mais detalhadamente, são observados em nível de consciência profissional de repórteres e editores, e não opressivamente imposto por essas e outras circunstâncias de um sistema que tem nos órgãos de informação precioso instrumento para sua reprodução. Por outro lado, só um espírito antidemocrático procuraria extrair, da observação específica das páginas policiais, conclusões e preceitos para uma política geral sobre a liberdade de manifestação do pensamento. O princípio da verdade primacial consiste no fato que a primeira notícia veiculada sobre um fato criminal, que o próprio jornal apurou ou que divulga com exclusividade, constitui-se em dogma, matriz e fio condutor de todo o noticiário subseqüente. Quando a notícia se revela incompatível com a realidade posteriormente aflorada, qualquer versão que proceda a compatibilização é admitida e veiculada. E se em decorrência de conseqüências jurídicas prováveis ou adotadas, impõe-se retificar a notícia, isso é feito da forma mais discreta possível, sem contraste algum. O princípio da progressividade, caracteriza-se pelo fato de a violência progressiva (continuada, organizada) vender mais que a episódica (individualizada, circunscrita). Por isso, sempre que possível, casos isolados devem ser articulados e o episódio individual inserido num contexto de progressividade. Quando for impossível, pelas características estritamente interindividuais de um caso, inseri-lo num contexto de progressividade, o noticiário subseqüente pode buscar elementos para uma matéria com análise extensiva, o que produz efeitos e garante permanências semelhantes às da violência progressiva ou continuada. O princípio da mais-valia da violência impune significa dizer que o caso criminal imediatamente apurado merece menos espaço do que aquele não apurado. A notícia que contém ao mesmo tempo a ação criminosa e a identificação ou prisão de seus autores perde pontos na classificação editorial. Salvo casos nos quais peculiaridades dos protagonistas ou do modo de execução permitem a análise extensiva que faz perdurar a imagem da violência, do contrário, a punição geralmente encerra o interesse jornalístico. A violência impune vende mais que a violência punida. O princípio da manipulação estatística ocorre quando as informações diariamente divulgadas sobre violência desconsideram por completo as séries estatísticas que poderiam realmente orientar o público sobre a verdadeira tendência das diversas incidências criminais. As páginas policiais criam e manipulam suas próprias 174 De Jure 9 prova 2.indd S1:174 11/3/2008 16:21:38 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS estatísticas, selecionando arbitrariamente períodos e casos. Quando se trata de divulgar levantamentos estatísticos completos, dedicam espaço diferente para tendências de ascensão e tendências de rebaixamento da violência. O princípio da ineficiência do Estado, deve-se ao fato da violência social noticiada ser sempre atribuída à ineficiência do Estado, e jamais se converter em objeto de discussão da própria organização social. A crônica policial só excepcionalmente ultrapassa o horizonte da ineficiência do Estado, mesmo diante de casos nos quais a transgressão evidentemente implicaria outras considerações. A organização social inquestionada, a polícia ilesa, o Estado ineficiente, essa é a fórmula. O princípio da credibilidade imediata do terror implica a cobertura jornalística de um caso policial conferir espaço aos depoimentos proporcional à mensagem de aterrorização que ele contenha. A credibilidade da fonte é desconsiderada em favor de uma credibilidade imediata em seu próprio terror. O princípio do estereótipo criminal ocorre quando um protagonista do episódio de violência integra alguma minoria, objeto de preconceito ou marginalização social (homossexuais, egressos da prisão, drogadictos, dentre outros), sendo tal condição sempre mencionada e freqüentemente enfatizada, ainda que não se possa relacionála, de qualquer modo, ao episódio em questão. As matérias que abordam, exclusiva ou acessoriamente, o pânico social relacionado à violência, recrutam os depoimentos amedrontados de sorte a direcionar o medo para os grupos sociais criminalmente estereotipados. Dessa forma, aplicando estes princípios próprios, é que a mídia constrói e molda a violência e o transgressor à maneira que lhe convém, violando seja a própria ética ou até mesmo o direito. 4. A construção do transgressor pela mídia A mídia começa a moldar o perfil do transgressor penal no inquérito policial. Momento esse da persecução penal onde ainda não se pode nem tomar alguém por suspeito e a mídia já constrói a imagem de culpa sobre quem lhe convém. O inquérito policial tem por escopo, segundo Paulo Rangel, “[...] apurar a autoria e materialidade de uma infração penal, dando ao Ministério Público elementos necessários que viabilizem o exercício da ação penal” (RANGEL, 2002, p. 65). Porém, nosso código não define claramente esta fase da persecução penal, o que leva a guiarmo-nos pela explicação do Código de Processo Penal Português (art. 262, item 1): “O Inquérito policial compreende o conjunto de diligencias que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação”. 175 De Jure 9 prova 2.indd S1:175 11/3/2008 16:21:38 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Essa definição caracteriza o inquérito policial como processo preliminar ou preparatório da ação penal, dando a ele grande importância por ser responsável pelas investigações basilares do fato a ser apurado em sede jurisdicional. Assim, este conjunto de atos administrativos, visando à elucidação de um fato considerado, em tese, infração penal, precede a instauração da competente ação penal, ou não quando através do mesmo percebemos-na desnecessária. Daí ter o inquérito policial, na verdade, uma função garantidora. Pois, a investigação tem o nítido caráter de evitar a instauração de uma ação penal infundada por parte do Ministério Público diante do fundamento do processo penal, que é a instrumentalidade e o garantismo penal. O garantismo penal busca evitar o custo para o sujeito passivo (e para o Estado) de um juízo desnecessário. Através dessa análise rápida do ideal garantista, adotado (ainda que teoricamente) por nosso direito percebemos o quanto é danosa a intervenção da mídia em sede de inquérito policial. Essa influência muitas das vezes provoca a instauração de uma ação penal desnecessária prejudicando garantias do indiciado. Casos em que existe grande repercussão nacional e a mídia passa a veicular sem qualquer imparcialidade, influenciam tanto na instauração do processo quanto na motivação do juiz para sentenciar, pois ele, como qualquer cidadão comum, é convencido pelo apelo midiático. Observemos no caso da instauração de uma ação penal derivada de um inquérito policial influenciado pela mídia. Ainda que no curso do processo o acusado tenha direito ao devido processo legal e ao contraditório o juiz certamente ao dar sua sentença já estará influenciado não só pelas provas colhidas nos autos, bem como pelo sensacionalismo da Mídia. Dessa forma, não estaria a mídia mitigando os princípios basilares do direito e as garantias do sistema processual acusatório e tornando o garantismo penal uma falácia? O Ministério Público tem o dever de exigir que a investigação seja feita pela polícia, que exerce a atividade de polícia judiciária dentro do devido processo legal, e portanto com respeito aos direitos e garantias individuais, colhendo as informações necessárias e verdadeiras, sejam a favor ou não do indiciado. Portanto, a função investigativa de qualquer fato do qual suspeita-se ser um ato ilícito não é da mídia, que por sua vez tem função informativa e imparcial. O inquérito não é para apurar culpa, mas sim a verdade de um fato da vida que tem aparente tipificação penal. Logo, o trabalho sem ética de alguns profissionais do jornalismo, em que o suspeito já é tratado como condenado é inaceitável. E deveria ser melhor fiscalizado pelo direito, afinal, “[...] ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5°, LVII, CF/88). 176 De Jure 9 prova 2.indd S1:176 11/3/2008 16:21:38 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O suspeito pode prejudicar-se ao ter sua imagem constituída pela exploração midiática em sede de inquérito policial. A mídia é impiedosa ao caracterizar um transgressor quando se trata de arrebatar audiência. Essa impiedade destaca-se mediante algumas celebridades do mundo criminal como, Fernandinho Beira Mar (traficante), Marcola (líder das rebeliões em cadeia por todo o Brasil em 2006), Suzana Von Richtofen (assassina dos próprios pais), Guilherme de Pádua (assassino da atriz Daniela Perez), dentre outros. Será que sentiríamos tanto desprezo por essas pessoas se não fosse a mídia? 5. A exploração midiática apontada em caso real Em análise ao processo legislativo da lei de crimes hediondos, percebemos que esta lei foi, como tantas outras, aprovada às pressas, sem uma análise extensiva por parte dos legisladores, que o fizeram em um momento de clamor popular pela diminuição da criminalidade devido a seqüestros de pessoas influentes que vinham acontecendo e em virtude da pressão da mídia para a criação da mesma. Resultou, de tudo isso, uma lei que seguiu o clamor por penas mais rígidas para condenados por certos crimes rotulados pela própria norma. Sob o ponto de vista jurídico, com relação à criação da lei, evidencia um fracasso, por contrariar, em certos artigos e ou incisos, toda a história da pena, que se mostra contrária a penas severas como as impostas por esta lei, além de violar também princípios fundamentais constitucionais relacionados a pena como a individualização, a proporcionalidade e a humanidade. Ocorre que a mídia teve grande participação na criação da Lei de Crimes Hediondos em tão pouco espaço de tempo e com punições tão severas. Pois a repressão aos crimes hediondos já existia desde a Carta Política de 1988, a qual determinou que “[...] a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. E após a promulgação dela, tiveram início no Congresso Nacional inúmeros projetos de lei, que objetivavam regulamentar o assunto, uma vez que o inciso acima abria caminho para uma lei complementar que considerasse o assunto. Em 1990 o assunto ainda era persistente no Congresso, com o projeto de número 5.270, que propunha o aumento das penas para os crimes de extorsão mediante seqüestro, baseado na justificativa que este crime estava se tornando uma indústria lucrativa às custas das famílias das vítimas, além do pânico causado na sociedade. Logo após, vieram muitos outros projetos. Até que em 25 de junho de 1990, foi promulgada a lei ordinária, mas com caráter de lei complementar, de número 8.072, baseada no projeto substitutivo número 5.405, elaborado pelo Deputado Roberto 177 De Jure 9 prova 2.indd S1:177 11/3/2008 16:21:38 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Jefferson, então relator de Comissão de Constituição, Justiça e Redação. Esse projeto teve por base a mensagem presidencial 546/89 (projeto 3.754/89), além dos projetos anteriores. Na fase de votação houve um acordo entre todos os líderes de partidos políticos, que, sem nenhuma discussão mais aprofundada, aprovaram-no na Câmara dos Deputados e em seguida no Senado Federal. Na fase de sanção presidencial, houve apenas o veto parcial (artigos quatro e onze), por parte do então Presidente da República Fernando Collor. Em sua redação original, classificava quais eram os crimes considerados hediondos no artigo primeiro, que possuía apenas o caput, onde eram elencados todos os referidos delitos: Art. 1º São considerados hediondos os crimes de latrocínio (art. 157, § 3º, in fine), extorsão qualificada pela morte, (art. 158, § 2º), extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º), estupro (art. 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º), envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte (art. 270, combinado com o art. 285), todos do Código Penal (DecretoLei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), e de genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956), tentados ou consumados (Lei 8072/90). Além disso, em consonância com a carta magna, a redação original da referida lei, em seu artigo segundo, caput, determinou que, além dos crimes hediondos, os crimes de prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e o terrorismo, se equiparam aos crimes hediondos nas hipóteses citadas dentre os incisos e parágrafos do mesmo artigo. O que teria conduzido o legislador constituinte a formular o nº XLIII do art. 5º da CF, neste momento, depois de exaustivas tentativas anteriores? O que estaria por trás do posicionamento adotado? Nos últimos anos, a criminalidade violenta aumentou aparentemente, atingindo até mesmo seguimentos sociais que até então estavam livres de ataques criminosos, atos de terrorismo político e mesmo de terrorismo gratuito abalaram diversos países do mundo, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins assumiu gigantismo incomum. Diante desse quadro, os meios de comunicação de massa começaram a atuar, de forma a exagerar a situação real, formando uma idéia de que seria mister, contra determinada forma de criminalidade ou determinados tipos de delinqüentes, uma medida mais severa, mesmo que isso significasse a perda das tradicionais garantias do Direito Penal e do Direito Processual Penal. Dessa forma, a lei de crimes hediondos foi uma resposta do direito penal brasileiro ao apelo midiático e ao clamor popular àquela época. O objetivo, logicamente, seria diminuir a onda de crimes desta natureza o que infelizmente não se concretizou e, ao 178 De Jure 9 prova 2.indd S1:178 11/3/2008 16:21:39 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS que se percebe, tomou tamanho muito maior e mais ofensivo à sociedade. O que se nota com os acontecimentos posteriores que inclusive provocaram mudanças na Lei de Crimes Hediondos. Após a ocorrência do polêmico homicídio qualificado em 1992, da atriz Daniela Perez, filha de Glória Perez (escritora de renome), que teve como autores o ator Guilherme de Pádua e sua esposa, sendo que Guilherme e a vítima faziam parte do elenco de uma novela da Rede Globo de televisão, em apresentação na época do homicídio, a lei 8.930, que entrou em vigor em 07 de outubro de 1994, veio a revogar o artigo primeiro, supramencionado, substituindo-o. Esta nova redação incluiu o homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente e homicídio qualificado e, por outro lado, excluiu o envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte. Atualmente os crimes classificados como hediondos são os enumerados pelo artigo primeiro, incisos I a VII – B e parágrafo único, da Lei nº 8.702/90: I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V); II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine); III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º); IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2º e 3º); V - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); VI - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º). VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1º, § 1º-A e § 1º-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998). Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei no 2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado (Lei 8.702/90, art. 1°, incisos I a VII-B e parágrafo único). Não teria a mídia mostrado mais uma vez seu poder de persuasão ao incentivar a modificação da Lei de Crimes Hediondos? Será que, se Daniela não fosse atriz e sua mãe reconhecida nacionalmente, a lei teria incluído em seu rol o crime de homicídio? 179 De Jure 9 prova 2.indd S1:179 11/3/2008 16:21:39 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 6. Conclusão Percebi ao término deste estudo acerca do princípio da presunção de inocência e a exploração midiática, que os objetivos por mim propostos foram atingidos de algum modo. Foi possível vislumbrar a articulação da teoria das ciências jurídicas com a prática jornalística almejada por este estudo. Nos dias atuais a mídia mostrou expandir a teoria maximalista enquanto política criminal no Brasil. Ocorre que os doutrinadores de forma geral vêm buscando uma teoria inversa, para propor um direito penal mais equilibrado, ressaltando não ser a severidade das penas a solução para a criminalidade brasileira. Em um Estado Democrático de Direito, o sistema acusatório é a garantia do cidadão contra qualquer arbítrio do Estado. Portanto, a mitigação dos direitos e garantias processuais pela mídia,mostradas por este estudo, não podem ser admitidas num sistema penal que é regido pelo princípio da dignidade humana. Solução aparente para a questão da influência midiática aqui levantada pode ser a lei garantir à parte que se sentir prejudicada o direito de fazer uso de igual expediente, assegurando, assim, não só a liberdade de informação como também o exercício dessa liberdade verdadeiramente como função social. O processo penal democrático necessita da publicidade dos seus procedimentos e assegurá-la pode impedir que se coloque no seu lugar a publicidade espetacular dos atores que deles tomam parte, além de facilitar o controle e coibir os excessos. Este estudo não se manifesta em favor de calar a imprensa, pois, ela exerce importante papel em nossa sociedade. A questão é favorecer uma mídia que não ultrapasse o campo das presunções e invada o campo jurídico exercendo um papel que é exclusivo do direito. Este trabalho é um começo incipiente em termos de apontar a necessidade de um jornalismo ético e um direito justo. Sabemos que temos ainda uma longa caminhada pela frente, acreditando na possibilidade desta pesquisa bibliográfica servir de alguma forma como contribuição para o meio acadêmico. 180 De Jure 9 prova 2.indd S1:180 11/3/2008 16:21:39 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 7. Referências bibliográficas BATISTA, Nilo. Regras do Mercado da Informação sobre violência: seminário realizado no Hotel Glória. Rio de Janeiro: FAPERJ, 1993. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1 e v. 2. DEFLEUR, Melvin L. Teorias da comunicação de massa. São Paulo: Zahar, 1993. FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. GRECO, Rogério. Direito Penal do equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1. LOPES JUNIOR, Aury. Sistema de investigação preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2005. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2002. SILVA, José Maria da; SILVEIRA, Emerson Sena da. Apresentação de trabalhos acadêmicos: normas e técnicas. Juiz de Fora: Templo, 2004. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 181 De Jure 9 prova 2.indd S1:181 11/3/2008 16:21:39 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 1.2. COMENTÁRIOS À LEI DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ÂNGELO ANSANELLI JÚNIOR Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais SUMÁRIO: 1. A violação do princípio da isonomia. 2. A violação do princípio da proporcionalidade. 3. As medidas a serem adotadas pela autoridade policial. 4. A competência. 5. A renúncia à representação. 6. A ação penal. 7. A violação do princípio da individualização da pena. 8. As medidas protetivas. 9. Considerações finais sobre a Lei de Violência Doméstica. 10. Referências bibliográficas. Em 7 de agosto de 2006, foi promulgada a Lei nº 11.340, que regulamentou as questões referentes à violência doméstica contra a mulher, contendo inúmeras disposições difíceis de compatibilizar com as demais leis. 1. A violação do princípio da isonomia Primeiramente, é de se ver que o art. 4º coloca a mulher como hipossuficiente, equiparando-a a crianças e adolescentes, o que se nos mostra inconcebível, ante o disposto no art. 5º, I, da CF/88, que reza que “[...] homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Ora, ao equiparar homens e mulheres, tem-se que o legislador constitucional só admite o tratamento diferenciado entre ambos, em hipóteses restritas, como no caso da aposentadoria, em que o limite de idade para as mulheres é menor. O artigo 3º preceitua que se devem assegurar às mulheres condições para o exercício de uma série de direitos e garantias fundamentais. Sendo assim, Souza (2007), com quem fazemos coro, acertadamente afirma: [...] que a própria lei, que procura evitar a discriminação, é, por si, discriminatória, por que afasta a sua incidência protetiva quando a violência doméstica e familiar tiver como vítima uma pessoa do sexo masculino, o que, por si só, faz crer que é possível que se questione a sua constitucionalidade, pois pode afrontar o disposto no artigo 5º, inciso I, da Constituição Republicana, que estabelece o princípio da isonomia entre homens e mulheres. A edição de leis sem a devida reflexão tem levado à confusão para o intérprete, pois várias disposições são inconciliáveis, incoerentes, e, por vezes, violentadoras de princípios constitucionais. O 3º Encontro de Juízes de Juizados Especiais Criminais e de Turmas Recursais Criminais do Estado do Rio de Janeiro teve como discussão principal referida lei. Segundo os Juízes, é inconstitucional o artigo 41 da nova Lei que diz não ser aplicável a Lei nº 9.099/95 (dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente 182 De Jure 9 prova 2.indd S1:182 11/3/2008 16:21:39 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS da pena prevista. Para eles, esse artigo afasta os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 para crimes que se enquadram na definição de menor potencial ofensivo, na forma do artigo 98, I, e 5º, I, da Constituição Federal. No mesmo sentido, posiciona-se Souza (2007), que ensina: Entretanto, se for mulher a vítima de lesão corporal leve, ainda que qualificada (art. 129, § 9º, do CP), nas circunstâncias da lei em análise (art. 7º), não se aplica a Lei nº 9.099/05, por força do referido artigo 41 da Lei nº 11.340/2006, o que faz que, nesta hipótese, a lesão corporal leve, ainda que qualificada, seja de ação penal pública incondicionada, não se admitindo suspensão condicional do processo, apesar de a pena mínima ser de três meses, o que fere o princípio da isonomia, pois a lei prevê tratamento diferenciado para pessoas em circunstâncias jurídicas iguais, sendo, portanto, inconstitucional. Com razão os magistrados fluminenses. O legislador, em razão do princípio da isonomia, não poderia afastar a incidência dos institutos despenalizadores da transação penal e da suspensão condicional do processo, somente pelo fato de a mulher ser vítima de delito perpetrado no seio de sua casa, uma vez que isso cria situação injusta e violentadora do princípio da igualdade. Imaginemos que a mulher seja vítima de uma lesão corporal leve praticada pelo seu marido e faça a representação. O suposto autor, obrigatoriamente, será denunciado, e, ao final, condenado, sem que lhe fosse concedido o direito à transação penal. No caso da situação inversa, ou seja, se o homem for vítima de uma lesão leve praticada pela sua esposa, ela será beneficiada com a transação penal, o que evidencia a violação do princípio da isonomia. Não poderia o legislador eleger o sexo (no caso a qualidade de vítima, a mulher) e nem as circunstâncias (violência doméstica) como elemento diferenciador para vedar a aplicação dos institutos despenalizadores. O mesmo ocorreria no caso de uma lesão grave. O homem, autor do delito, não poderia ser beneficiado com a suspensão condicional do processo, devendo o feito tramitar até o final da sentença. Já a mulher autora do mesmo crime gozaria da suspensão em flagrante violação do princípio da igualdade. Comungando com nossa opinião, Santin (2006, grifo nosso) defende que a lei é discriminatória e violadora do princípio da igualdade, pois impede o homem, quando autor, de se beneficiar de institutos despenalizadores. Assim ensina: Em relação à violência doméstica, o constituinte delineou a garantia de assistência à família a cada um dos integrantes e mecanismos de coibição da violência doméstica e familiar (art. 226, § 8º, CF). Como se vê, a pretexto de proteger a mulher, numa pseudopostura ‘politicamente correta’, a nova legislação 183 De Jure 9 prova 2.indd S1:183 11/3/2008 16:21:40 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS é visivelmente discriminatória no tratamento de homem e mulher, ao prever sanções a uma das partes do gênero humano, o homem, pessoa do sexo masculino, e proteção especial à outra componente humana, a mulher, pessoa do sexo feminino, sem reciprocidade, transformando o homem num cidadão de segunda categoria em relação ao sistema de proteção contra a violência doméstica, ao proteger especialmente a mulher, numa aparente formação de casta feminina. Pelo texto normativo, a mulher (sexo feminino) vítima será beneficiada por maiores mecanismos de proteção e de punição ao homem (sexo masculino) agressor enquanto o homem vítima será prejudicado pela ausência de instrumentos de proteção especial e menor sanção à mulher agressora. Se a mulher for agredida, recebe proteção policial e medidas protetivas; ao homem agredido, não há previsão de proteção policial nem medida protetiva. O homem agressor pode ser preso preventivamente por violência doméstica e obrigado a freqüentar programas de recuperação e reeducação; não há previsão legal em relação à mulher agressora. A sanção deve ser igual ao agressor masculino ou feminino. A proteção e repressão devem ser dirigidas a todos, com a utilização de termos como ‘cônjuge’ ou ‘convivente’ ou ‘familiar’ ou equivalentes, observando que são adequados os termos como ‘criança’, ‘adolescente’ ou ‘idoso’, comuns de dois gêneros, para expressão legislativa de outros diplomas legislativos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003).6 Em sentido contrário, Gomes (2006) ensina: A Lei 11.340/2006 constitui exemplo de ação afirmativa, no sentido de buscar uma maior e melhor proteção a um segmento da população que vem sendo duramente vitimizado (no caso, mulher que se encontra no âmbito de uma relação doméstica, familiar ou íntima). O art. 5º, I, da CF diz que ‘homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição’. Mas o tratamento diferenciado em favor da mulher (tal como o que lhe foi conferido agora com a Lei 11.340/2006) justifica-se, não é desarrazoado (visto que a violência doméstica tem como vítima, em regra, a mulher). Quando se trata de diferenciação justificada, por força do critério valorativo não há que se falar em violação ao princípio da igualdade (ou seja: em discriminação, sim, em uma ação afirmativa que visa a favorecer e conferir equilíbrio existencial, social, econômico, educacional etc. a um determinado grupo). 6 V. também no sentido da inconstitucionalidade: Sampaio; Fonseca (2006, p. 4). 184 De Jure 9 prova 2.indd S1:184 11/3/2008 16:21:40 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Nucci (2006), no mesmo esteio da lição de Gomes (2006), assevera que a Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito) possibilitou, através do parágrafo único, a aplicação do instituto da transação penal nos crimes de lesão corporal culposa, participação em competição (racha) e embriaguez ao volante, sendo que este último delito (previsto no art. 306 da Lei nº 9.503/97) prevê pena máxima de três anos. Argumenta o autor que a lei pode alterar o conceito de crime de menor potencial ofensivo para situações específicas, motivo pelo qual a possibilidade de transação penal em face da prática do delito mencionado seria válida. Por isso, afirma Nucci (2006, p. 884), “[...] o art. 41 da Lei 11.340/2006 pode estipular outra exceção, agora para restringir o alcance da lei 9.099/95. Na realidade, com outras palavras, firmou o entendimento de que os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não são de menor potencial ofensivo, pouco importando o quantum da pena”. Com o devido respeito, assim não pensamos. O legislador pode estabelecer diferenciações, desde que elas estejam de acordo com a finalidade da norma. A Lei nº 10.740, por exemplo, como já colocamos, veda a incidência das escusas absolutórias, quando os idosos forem vítimas dos crimes – nela previstos e nos demais delitos contra o patrimônio, elencados no Código Penal. Aí sim, entendemos presente a ação afirmativa, uma vez que os idosos experimentam mais dificuldades para o exercício de seus direitos, e, sendo a ação penal pública incondicionada, fará com que o Ministério Público supra tal deficiência. Em relação ao princípio da isonomia, explica Mello (1999, p. 39, grifo nosso): A discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia. No caso presente, elege-se a mulher vítima como elemento discriminador, e a finalidade da norma seria sua maior proteção. Ora, a mulher que tanto luta para se igualar ao homem em direitos, que busca maior acesso ao mercado de trabalho, que deseja remuneração paritária com as pessoas do sexo masculino, ao mesmo tempo, e de forma paradoxal, é colocada como hipossuficiente. Assim, entendemos que não há correlação lógica em impedir que o sujeito ativo seja beneficiado com os institutos despenalizadores – transação penal e suspensão condicional do processo –, única e simplesmente pelo fato de a mulher ser vítima de violência doméstica. 185 De Jure 9 prova 2.indd S1:185 11/3/2008 16:21:40 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Poderia o legislador, sem qualquer problema, vedar a aplicação dos institutos despenalizadores da transação penal e suspensão condicional do processo nos crimes de violência doméstica. Contudo, tal deveria se dar em relação a todos os casos, ou seja, quando o homem também fosse vítima. Aí sim estar-se-ia respeitando o princípio da isonomia. Além disso, há um grande problema em conciliar o art. 41 da Lei nº 11.340/06 com o art. 94 da Lei nº 10.741, que determina a aplicação da Lei nº 9.099 no caso da prática dos crimes do Estatuto do Idoso, sendo que aquele veda a incidência dos institutos despenalizadores nas hipóteses de violência doméstica (art. 5º, I a III, c/c art. 7º, I a III, da Lei nº 11.340). Ao que parece, o art. 94 da Lei nº 10.741, que determina a aplicação do rito da Lei nº 9.099, será afastado quando ocorrer casos de violência doméstica, cuja vítima for mulher idosa. Imaginemos uma mulher vítima do delito previsto no art. 99 da Lei nº 10.741, em que o autor seja seu marido, por exemplo. Seria um caso de violência doméstica, em que seria aplicado o rito dos crimes apenados com detenção, sem a possibilidade de transação penal. Nogueira (2006, grifo nosso) entende que: [...] não foi proibida a aplicação do rito sumaríssimo da Lei 9.099/95 aos delitos de menor potencial, ainda que praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, pois disso nenhum prejuízo resultará à proteção jurídica da mulher vítima de violência doméstica ou familiar; pelo contrário, tais lides penais terão andamento mais célere (artigo 62, Lei 9.099/95); não pode ser esquecida ainda a garantia do devido processo legal que a todos deve alcançar (artigo 5º, LIV, CF). Assim não pensamos. Os ritos são muito diversos, sendo que a adoção do procedimento da Lei nº 9.099/95 quando deveria ser adotado o dos crimes apenados com reclusão ou detenção violará a garantia da ampla defesa, já que esses procedimentos são mais amplos. E, finalmente, se a vítima for homem, sendo o delito apenado com pena máxima de dois anos, o procedimento será dos juizados especiais, com possibilidade de transação penal e suspensão condicional do processo. Com isso, demonstramos a incoerência do legislador: se a mulher é idosa e é vítima dos delitos do Estatuto do Idoso, cuja pena máxima for de dois anos, em que haja violência física ou psíquica (consoante art. 7º, I a III, da Lei nº 11.340), sendo tal delito praticado nas hipóteses dos incisos I a III do art. 5º da Lei nº 11.340, o autor não será beneficiado com a transação penal e a suspensão condicional do processo, e o feito deverá seguir o rito dos crimes apenas com detenção ou reclusão, dependendo da hipótese. Porém, se a vítima for homem idoso, estando nas mesmas situações acima mencionadas, e a autora for mulher, ela terá direito aos benefícios da Lei dos Juizados Especiais, e, caso não sejam os institutos aplicados, o feito deverá seguir o rito da Lei nº 9.099/95, em flagrante violação ao princípio da isonomia. 186 De Jure 9 prova 2.indd S1:186 11/3/2008 16:21:40 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Toda essa argumentação serve para evidenciar que, na verdade, o art. 41 da Lei nº 11.340, além de colidir com todo o sistema, é inconstitucional, pois impede que o autor homem seja beneficiado com os institutos despenalizadores da transação penal e suspensão condicional do processo; mas permite que seja possibilitada a proposta de tais institutos quando a mulher for a autora dos delitos de violência doméstica. 2. A violação do princípio da proporcionalidade A Lei nº 11.340, além de violar o princípio da isonomia, conforme acima exposto, viola também o princípio da proporcionalidade, ao tornar defesa a aplicação dos institutos da Lei nº 9.099/95, mormente o da suspensão condicional do processo. O legislador, no art. 89 da Lei nº 9.099/95, permitiu a apresentação de proposta de suspensão condicional do processo aos autores de crimes cuja pena mínima seja igual ou inferior a um ano. Desta forma, é possível a proposta de suspensão condicional do processo em relação ao sujeito ativo do delito previsto no art. 124 do Código Penal, que prevê o crime de aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento, uma vez que as penas vão de 1 a 3 anos de detenção. Visualiza-se a incoerência do legislador, ao permitir a incidência da proposta de suspensão condicional do processo no delito mencionado, em que o bem jurídico vida é violado, e vedá-lo em relação a um delito de lesão corporal leve com violência doméstica. Essa questão não passou desapercebida ao crivo de Sampaio e Fonseca (2006, p. 5): “É visivelmente desproporcional que no crime de aborto consentido, que protege o bem jurídico vida, seja permitido o sursis processual previsto na lei 9.099/95 e na hipótese de ameaça no âmbito familiar contra a mulher não seja possível a aplicação de qualquer dos institutos despenalizadores da lei 9.099/95”. Desta forma, entendemos que o art. 41 da lei em comento viola o princípio da proporcionalidade, uma vez que veda a incidência da suspensão condicional do processo em relação a crimes mais leves, sendo permitido sursis processual, contudo, no que tange a delitos mais graves. 3. As medidas a serem adotadas pela autoridade policial O art. 12 da Lei nº 11.340 determina quais são as medidas a serem adotadas pela autoridade policial, após a lavratura da ocorrência. Primeiramente, o inciso I reza que a autoridade policial deverá ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada. Ora, não haveria necessidade do dispositivo, uma vez que, conforme pacífico entendimento, a representação não depende de ato formal, sendo que a simples lavratura do boletim de ocorrência já é suficiente. Além disso, é curial que a autoridade policial só reduzirá a termo a representação em caso 187 De Jure 9 prova 2.indd S1:187 11/3/2008 16:21:40 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS de infrações de ação penal condicionada à representação, já que nas de ação penal privada e incondicionada o ato é desnecessário. O inciso II determina, de forma despicienda, que a autoridade deverá colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias. A remessa do expediente em 48 horas é medida constante no inciso III do art. 12. É de se ver que, em várias delegacias, será impossível que a autoridade policial tome por termo a representação, colha todas as provas dos fatos e remeta o expediente em 48 horas para o Juiz, em razão dos inúmeros inquéritos policiais em trâmite. A norma, obviamente, deverá ser abrandada. O inciso IV reza que deverá ser realizado o exame de corpo de delito e o inciso V prevê que o delegado ouvirá o agressor e testemunhas. A autoridade policial deverá ordenar a identificação do agressor (consoante inciso VI do art. 12). É de se ver que a norma deve ser interpretada de forma sistemática, não sendo crível que o legislador tenha querido que em todas as hipóteses seja realizada a identificação criminal. Não se trata, segundo pensamos, de nova hipótese de identificação necessária, e sim de providência a ser adotada quando o agente estiver nas hipóteses previstas no art. 3º, incisos I a VI da Lei nº 10.054/00. Nesse sentido é a lição de Gomes (2006): Leitura rápida desse dispositivo sinalizaria mais uma hipótese “obrigatória” de identificação criminal (CPP, art. 6º, VIII), na linha do que já ficou estabelecido no art. 3º da Lei 10.054/2000. Ocorre que toda interpretação não é só texto, sim contexto. Justifica-se a identificação criminal (dactiloscópica e fotográfica) em situações de dúvida ou quando o agente não conta com identificação civil (não conta com cédula de identidade). Logo, quando o agente apresenta esta última e não paira nenhuma dúvida razoável sobre sua individualidade, falta razoabilidade para a exigência da identificação criminal, que passa a ter cunho puramente simbólico e punitivo. Pior: punitivismo inútil (porque, em relação a quem já é civilmente e indiscutivelmente identificado, absolutamente nada acrescenta a identificação criminal). Aquilo que nada representa de útil para o Estado e, ao mesmo tempo, constitui um deplorável constrangimento para o sujeito, traz em seu bojo o total desequilíbrio exigido na relação entre custo e benefício: é nisso que reside a falta de razoabilidade da exigência (abusiva) da identificação criminal. Assim, entendemos que o agente só poderá ser identificado quando (art. 3º da Lei nº 10.054/00) o agente estiver indicado ou acusado pela prática de homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, crime de receptação qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de documentos públicos (I); houver fundada suspeita de falsificação ou adulteração do documento de identidade (II); o estado de conservação ou a distância temporal 188 De Jure 9 prova 2.indd S1:188 11/3/2008 16:21:41 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS da expedição de documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais (III); constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações (IV); houver registro de extravio do documento de identidade (V); o indiciado ou acusado não comprovar, em quarenta e oito horas, sua identificação civil (VI). 4. A competência Outra inconstitucionalidade, apontada pelos magistrados do Rio de Janeiro, refere-se ao artigo 33 da Lei nº 11.340/06, que versa sobre matéria de organização judiciária, cuja competência legislativa é estadual (art. 125, § 1º, da CF/88). Souza (2007, grifo nosso), no mesmo esteio, ensina: Ademais, como fez referência à ‘separação de corpos e alimentos provisórios e provisionais’, é possível, inclusive, chegar-se à interpretação de que se a mulher for violentada nas circunstâncias desta lei (violência doméstica ou familiarart. 7º), poderá pleitear junto ao referido Juizado Especial separação judicial por culpa, em decorrência da violência (art. 7º), requerendo cautelarmente a separação de corpos e cumulativamente alimentos ao ofensor que a violentou, suprimindo assim a competência, neste caso específico, das Varas de Família, o que deveria. s.m.j., ter ocorrido através de Lei estadual de Organização e Divisão Judiciária, podendose questionar, inclusive, a constitucionalidade do referido dispositivo, qual seja, do artigo 33 da Lei nº 11.340/2006. Ademais, na esteira deste raciocínio, o próprio legislador estabeleceu regras de competência para os processos de natureza não penal, conforme consta no artigo 15. Santin (2006) entende que o dispositivo viola o princípio do juiz natural, uma vez que determina a criação de um tribunal especial: Há previsão até de um tribunal especial para o homem agressor, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com finalidade de julgamento e execução de causas relativas à violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 14), indicando que a mulher agressora seria julgada por outro juiz natural, pela simples condição sexual, em visível afronta ao princípio de vedação de juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII, CF). 189 De Jure 9 prova 2.indd S1:189 11/3/2008 16:21:41 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Dias (2006), discordando da tese da inconstitucionalidade, afirma: “Também não há inconstitucionalidade no fato de lei federal definir competências. Nem é a primeira vez que o legislador assim age. Como foi afastada a incidência da lei que criou os juizados especiais, a definição da competência deixa de ser da esfera organizacional privativa do Poder Judiciário (CF, 125, § 1º)”. A autora exemplifica com a Lei nº 9.278/96, que, ao regulamentar a união estável, definiu a competência do Juizado da Família. Com o devido respeito à autora, entendemos que não lhe assiste razão. A Lei nº 9.278/96 disse o óbvio: a competência para o conhecimento das questões de união estável seria das varas de família. Como a lei, embora federal, tenha fixado a competência das varas de família, e que isso seria o lógico, não houve qualquer questionamento a respeito. No caso em tela, a situação é bem diferente: caberia aos Estados, aquilatadas as condições peculiares de cada região, determinar a competência para as varas criminais, juizados especiais, ou outras, em observância ao disposto no § 1º do art. 125 da Constituição. Aliás, o art. 14 da Lei nº 11.340/06 trará inúmeras discussões no que tange à competência. Reza o dispositivo: “Os juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, órgãos da Justiça Ordinária, com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”. De acordo com o artigo, deverão ser criadas varas especializadas para as questões referentes à violência doméstica, como já ocorreu no Estado de Santa Catarina. Enquanto não forem criadas as varas mencionadas, nos termos do art. 33 da mesma lei, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Gomes (2006) ensina que a fixação da competência das varas criminais depende da conjugação de dois critérios: 1º) violência contra mulher e 2º) que ela (mulher) faça parte do âmbito doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo do agente do fato. Em outras palavras, a competência será firmada em razão da pessoa da vítima (“mulher”) assim como em virtude do seu vínculo pessoal com o agente do fato (ou seja: é também imprescindível a ambiência doméstica, familiar ou íntima). Note-se: não importa o local do fato (agressão em casa, na rua etc.). Não é o local da ofensa que define a competência (das varas criminais e dos Jufams). Fundamental é que se constate violência contra mulher e seu vínculo com o agente do fato. Observe-se que, no futuro, quando criados os Jufams, a competência deles não terá por base o atual critério dos juizados (infrações penais até dois anos). Trata-se de competência que será definida em razão de critérios próprios. Qualquer delito contra mulher praticado no âmbito das relações domésticas, de 190 De Jure 9 prova 2.indd S1:190 11/3/2008 16:21:41 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS família ou íntima (não importa a pena nem a natureza do crime: lesão corporal, ameaça, crime contra a honra, constrangimento ilegal, contra a liberdade individual, contra a liberdade sexual etc.) será da competência dos Jufams (e, de imediato, das varas criminais). Cárcere privado, lesões corporais, tortura, violência sexual, calúnia, injúria, ameaça etc.: tudo é da competência imediata das varas criminais (e, no futuro, dos Jufams). Salienta o autor que: [...] exceções a essa regra ficam por conta das competências definidas na Constituição Federal: júri, crimes da competência da Justiça Federal, crimes da competência da Justiça militar etc. No caso de homicídio (crime doloso contra a vida) a competência é do Tribunal do Júri, Diga-se a mesma coisa em relação à competência da Justiça Federal: agressão do marido contra a mulher dentro de um avião ou navio (é da competência da Justiça Federal, CF, art. 109). Note-se que a lei não prevê os Jufams no âmbito da Justiça Federal. Pois bem. Imaginemos que uma mulher, com sessenta anos ou mais, seja vítima dos delitos previstos nos arts. 96 a 99 da Lei nº 10.741 (Estatuto do Idoso), estando a mesma na situação do art. 5º, I a III, da Lei nº 11.340. Os delitos são de competência do juizado especial. Os tipos dos arts. 96 a 99 da presente podem configurar hipóteses de violência física, previsto no inciso I do art. 7º da Lei nº11.340 ou psicológica, prevista no inciso II do mesmo dispositivo. O art. 5º, por sua vez, estipula que: Art. 5º. Configura violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I) no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II) no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III) em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. 191 De Jure 9 prova 2.indd S1:191 11/3/2008 16:21:41 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O inciso I do art. 5º refere-se ao domicílio da mulher, incluindo as esporadicamente agregadas, ou seja, uma pessoa do sexo feminino que por qualquer motivo tenha sido acolhida por uma família (uma mulher que esteja convalescendo, parente ou não, e que se encontre sob os cuidados daquele núcleo, por exemplo). O inciso II, em franca redundância, repete, com outra redação, o que já estava disposto no inciso I. Apenas faz menção a pessoas que se considerem aparentadas, o que causa espécie, pois o parentesco é estipulado pela lei civil. Finalmente, o inciso III englobaria os casos em que há uma relação afetiva entre as pessoas, independentemente de coabitação, como um namoro, um noivado. Obviamente que, se o marido ou companheiro expõe sua esposa idosa a perigo, sua integridade e a saúde, física ou psíquica, submetendo-a a condições desumanas ou degradantes ou privando-a de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, faz com que a mesma sofra a violência física (inciso I do art. 7º da Lei nº 11.340) ou psicológica (inciso II do art. 7º da Lei nº 11.340), e incide no disposto no art. 99 da Lei nº 10.741/03. E aí surge a questão: quando a mulher for idosa e vítima dos delitos previstos no Estatuto do Idoso (art. 96, 97, 98, 99), que constituem formas de violência física ou psíquica contra a pessoa, praticados nas condições dos arts. 5º, incisos I a III, e 7º, incisos I a III, da Lei nº 11.340, a competência seria do juizado especial ou da vara de violência doméstica (ou a criminal, enquanto não criadas estas)? Segundo pensamos, a competência será da vara de violência doméstica. Primeiramente, entendemos, juntamente com os Magistrados do Rio de Janeiro, que a estipulação de competência via norma federal é inconstitucional, nos termos do art. 125, § 1º, da Constituição, já que se trata de matéria inerente aos Estados. Mas, ainda que se entenda pela constitucionalidade do art. 33 da Lei nº 11.340, o que fazemos apenas à guisa de argumentação, entendemos que a competência seria da vara de violência doméstica. Isso porque a Lei nº 11.340 definiu competência ratione materiae, sendo, portanto, absoluta. Desta forma, cometido um delito do Estatuto do Idoso, em que a vítima seja mulher, a competência será da vara de violência doméstica (ou da criminal, enquanto esta não for criada). Gomes (2006), embora não mencionando ser a lei inconstitucional, faz críticas à mesma, no que tange à adoção do modelo tradicional para combater a violência doméstica: O sistema penal retributivo clássico é gerenciado por uma máquina policial e judicial totalmente desconexa (seus agentes não se entendem), morosa e extremamente complexa. Trata-se de um sistema que não escuta realmente as pessoas, que não registra tudo que elas falam, que usa e abusa de frases estereotipadas (‘o depoente nada mais disse nem lhe foi perguntado’ etc.), que só foca o acontecimento narrado no processo, que não permite o 192 De Jure 9 prova 2.indd S1:192 11/3/2008 16:21:41 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS diálogo entre os protagonistas do delito (agressor e agredido), que rouba o conflito da vítima (que tem pouca participação no processo), que não a vê em sua singularidade, vitimizando-a pela segunda vez, que canaliza sua energia exclusivamente para a punição, que se caracteriza pela burocracia e morosidade, que é discriminatória e impessoal, que é exageradamente estigmatizante, que não respeita (muitas vezes) a dignidade das pessoas, que proporciona durante as audiências espetáculos degradantes, que gera pressões insuportáveis contra a mulher (vítima de violência doméstica) nas vésperas da audiência criminal etc. Tudo quanto acaba de ser descrito nos autoriza concluir que dificilmente se consegue, no modelo clássico de Justiça penal, condenar o marido agressor. E quando ocorre, não é incomum alcançar a prescrição. Na prática, a ‘indústria’ das prescrições voltará com toda energia. O sistema penal clássico, que é fechado e moroso, que gera medo, opressão etc., com certeza, continuará cumprindo seu papel de fonte de impunidade e, pior que isso, reconhecidamente não constitui meio hábil para a solução desse tenebroso conflito humano que consiste na violência que (vergonhosamente) vitimiza, no âmbito doméstico e familiar, quase um terço das mulheres brasileiras. Batista (2006), no que tange à competência das varas criminais, também critica a lei: “Neste caso temos um grande perigo, a ser ver obrigado a atender primeiramente os processos de violência doméstica o Juiz poderá abrir uma grande brecha no que tange à prescrição dos demais processos”. Com razão os autores. O legislador olvida que as varas criminais estão abarrotadas de processos e, obviamente, que o Juiz dará preferência aos processos referentes aos delitos mais graves, como tráfico de entorpecentes, roubos, furtos, homicídios, deixando para segundo plano as questões da violência doméstica. Isso acarretará a prescrição das infrações, contribuindo para o descrédito da lei e do Poder Judiciário. 5. A renúncia à representação O art. 16 da Lei nº 11.340 reza que “[...] nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata essa lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”. A renúncia, causa extintiva da punibilidade, é tratada no art. 104 do Código de Processo Penal, referente à ação penal privada, verbis: “O direito de queixa não pode ser exercido quando renunciado expressa ou tacitamente”. Consoante ensinamento de Tourinho Filho (1992, p. 515), “[...] pela redação do dispositivo em exame, percebe-se que a renúncia 193 De Jure 9 prova 2.indd S1:193 11/3/2008 16:21:41 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS antecede à propositura da ação penal, isto é, iniciada a ação penal, já não haverá lugar para a renúncia”. Desta forma, temos que a renúncia à representação só pode mesmo ocorrer antes do recebimento da denúncia, motivo pelo qual, Gomes (2006), acertadamente, afirma: Nesse ponto, salvo melhor juízo, o legislador escreveu palavras inúteis. Se a renúncia só pode ocorrer antes do oferecimento da representação e se o Ministério Público antes dessa manifestação de vontade da vítima não pode oferecer denúncia, parece evidente que a lei não poderia ter feito qualquer menção ao recebimento da denúncia. O autor entende que não se pode utilizar da analogia para alcançar a retratação, uma vez que, nessa hipótese, a mesma seria in malan partem. Afirma que: [...] considerando-se os inequívocos reflexos penais (aliás, reflexos penais imediatos, não remotos) da retratação da representação (visto que ela pode conduzir à decadência desse direito, que é causa extintiva da punibilidade nos termos do art. 107, IV, do CP), não há como admitir referida analogia. As normas genuinamente processuais admitem amplamente analogia (CPP, art. 3º), mas quando possuem reflexos penais imediatos (ou seja: quando estamos diante de normas processuais materiais), elas contam com a mesma natureza jurídica das normas penais. (GOMES, 2006). Contudo, com propriedade, Souza (2007) defende que o legislador quis se referir à retratação, uma vez que “[...] se o ‘Parquet’ já ofereceu denúncia é porque teve a representação, inclusive foi obtida pela autoridade policial (art. 12, inciso I), conseqüentemente na audiência suso referida, quando muito, poderá a ofendida desistir ou se retratar da representação oferecida”. No mesmo sentido é a lição de Cunha e Pinto (2007, p. 75): Sabendo que renúncia significa abdicação do exercício de um direito, clara está a impropriedade terminológica utilizada pelo legislador, quando, na realidade, pretendeu se referir à retratação da representação, ato da vítima (ou de seu representante legal) reconsiderando o pedido-autorização antes externado (afinal, não se renuncia a direito já exercido!). Assim, em que pese o posicionamento em contrário, entendemos que o legislador se referiu à retratação, motivo pelo qual não há aplicação da analogia in malam partem e sim interpretação sistemática, para esclarecer a vontade do próprio legislador. Desta 194 De Jure 9 prova 2.indd S1:194 11/3/2008 16:21:42 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS forma, em se tratando de retratação da representação é que se necessitará da observância da formalidade prevista no dispositivo. Outra questão que deve ser analisada concerne às ações penais privadas. Nelas não há necessidade de representação, e sim de oferecimento de queixa-crime. Na hipótese de o marido praticar um crime contra a honra de sua esposa (calúnia, injúria ou difamação), tal conduta se caracterizaria como violência doméstica, ex vi do disposto no art. 7º., inciso II da Lei 11.340 (violência psicológica). Hodiernamente, quando lavrada uma ocorrência em face de crime de ação penal privada, de competência dos Juizados Especiais, é feito o Termo Circunstanciado, e, posteriormente, realizada audiência preliminar, em que é tentada a composição civil, e oferecida proposta de transação penal (se for o caso) 7. Não sendo possíveis a composição civil e a transação, cabe ao ofendido propor no prazo legal a queixa-crime. Tratando-se de infração de ação penal privada, é possível que a ofendida renuncie ao exercício do direito de queixa (arts. 49 e 50 do Código de Processo Penal), ofereça o perdão (arts. 51 a 56 do Código de Processo Penal), ou deixe ocorrer a perempção (art. 60, incisos I a IV do Código de Processo Penal), acarretando a extinção da punibilidade do agente. Nestes casos, haveria necessidade da designação da audiência especial, exigida pelo art. 16 da Lei nº 11.340? Entendemos que a resposta negativa se impõe. O art. 16 da Lei nº 11.340, por ser norma processual com reflexos na esfera penal, que torna mais dificultosa a extinção da punibilidade, deve ser interpretado restritivamente. Assim sendo, caso a ofendida deseje renunciar, perdoar, ou deixar a ação perimir, não haverá necessidade de designação de audiência especial para tais atos. 6. A ação penal Gomes (2006, grifo nosso) entende que, a partir da entrada em vigor da Lei nº 11.340, os delitos de lesão corporal (dolosa ou culposa) passaram a ser de ação pública incondicionada, sendo que os demais (ameaça, crimes contra a honra e costumes) continuariam a depender de representação. Assim afirma: Dentre todos os delitos que, no Brasil, admitem representação acham-se a lesão corporal culposa e a lesão corporal (dolosa) simples. Nessas duas hipóteses a exigência de representação (que é condição específica de procedibilidade) vem contemplada no art. 88 da Lei 9.099/1995 (lei dos juizados especiais). Esse dispositivo não foi revogado, sim, apenas derrogado (ele não se 7 Já deixamos assentado em outro trabalho (ANSANELLI JUNIOR, 2004, p. 5-7) que entendemos cabível a transação penal nos crimes de ação penal privada, cabendo ao Juiz o oferecimento da proposta em caso de negativa da vítima. 195 De Jure 9 prova 2.indd S1:195 11/3/2008 16:21:42 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS aplicará mais em relação à mulher de que trata a Lei 11.340/2006 - em ambiência doméstica, familiar ou íntima). Note-se que o referido art. 88 só fala em lesão culposa ou dolosa simples. Logo, nunca ninguém questionou que a lesão corporal dolosa grave ou gravíssima (CP, art. 129, § 1º e 2º) sempre integrou o grupo da ação penal pública incondicionada. Considerandose o disposto no art. 41 da nova lei, que determinou que ‘aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099/1995’, já não se pode falar em representação quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples atinge a mulher que se encontra na situação da Lei 11.340/2006 (ou seja: numa ambiência doméstica, familiar ou íntima) (nesse sentido cf. também: José Luiz Joveli; em sentido contrário: Fernando Célio de Brito Nogueira). Nesses crimes, portanto, cometidos pelo marido contra a mulher, pelo filho contra a mãe, pelo empregador contra a empregada doméstica etc., não se pode mais falar em representação, isto é, a ação penal transformouse em pública incondicionada (o que conduz à instauração de inquérito policial, denúncia, devido processo contraditório, provas, sentença, duplo grau de jurisdição etc.). Esse ponto, sendo desfavorável ao acusado, não pode retroagir (isto é: não alcança os crimes ocorridos antes do dia 22.09.06). Não existe nenhuma incompatibilidade, de outro lado, entre o art. 41 e o art. 16. O primeiro excluiu a representação nos delitos de lesão corporal culposo e lesão simples. No segundo existe expressa referência à representação da mulher. Mas é evidente que esse ato só tem pertinência em relação a outros crimes (ameaça, crimes contra a honra da mulher, contra sua liberdade sexual quando ela for pobre etc.). Aliás, nesses outros crimes, a autoridade policial vai colher a representação da mulher (quando ela desejar manifestar sua vontade) logo no limiar do inquérito policial (art. 12, I, da Lei 11.340/2006). Em que pese o brilhantismo do autor, assim não pensamos. As hipóteses de violência doméstica insculpidas nos incisos I a III do art. 7º, da Lei nº 11.340, nas situações do art. 5º, incisos I a III, da mesma lei englobam todos os delitos em que haja violência física (lesão corporal, dolosa ou culposa, vias de fato), psicológica (ameaça, constrangimento ilegal) e sexual (assédio sexual). Assim, em todos esses casos, estará sendo o sujeito passivo (a mulher) vítima de violência doméstica. Portanto, quando o art. 41 afirma que não será aplicada a Lei nº 9.099/95, significa que deseja que o procedimento dos delitos mencionados siga os ritos dos crimes apenados com detenção, ou reclusão, mas não determina que a ação penal seja pública incondicionada nas hipóteses mencionadas pelo autor (lesão corporal, dolosa e culposa). Do contrário, o art. 16 da mesma lei estaria em colidência com todo o sistema e com a própria lei. Se o legislador exige 196 De Jure 9 prova 2.indd S1:196 11/3/2008 16:21:42 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS que a renúncia (leia-se retratação) seja realizada em audiência, é porque continua a entender que os delitos de lesão corporal, que configuram hipóteses de violência física, ex vi do inciso I do art. 7º da Lei nº 11.340, dependem de representação. Nesse sentido é a lição de Nogueira (2006, grifo nosso): Em princípio, pode parecer que desapareceram também a representação, como condição de procedibilidade trazida pelo artigo 88 da Lei 9.099/95 para as hipóteses de lesões corporais dolosas simples e culposas, bem como a possibilidade de adoção do rito procedimental previsto nos artigos 77 e seguinte da Lei 9.099/95 para as infrações penais de menor potencial ofensivo, praticadas em detrimento da mulher na situações tratadas na Lei 11.340/06. Não é essa, contudo, a interpretação a que nos filiamos.O que quis a lei vedar foram os benefícios decorrentes da aplicação da Lei do Juizado Especial Criminal aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Devemos buscar no conjunto das normas trazidas pela nova lei a vontade e os objetivos do legislador ao editá-la. Para isso, não podemos interpretar isoladamente determinados preceitos nela contidos. Devemos conjugar as disposições da lei, sem perder de vista os valores nela resguardados e as finalidades da lei. É a interpretação teleológica ou finalística da lei. Desse modo, segundo nossa interpretação, podem ser extraídas as seguintes conclusões da conjugação dos artigos 16, 17 e 41 da Lei 11.340/06: b) persiste a exigência de representação nos casos do artigo 129, § 9º, do CP, e artigo 21, da LCP (por analogia); no caso do artigo 147 do CP, o parágrafo único exigia e exige tal condição de procedibilidade; se o legislador pretendesse banir referida condição da ação penal pública, não teria trazido a previsão do artigo 16 da lei, que impõe formalidade para a renúncia à representação. Destarte, entendemos que os delitos mencionados continuam a ser de ação penal condicionada à representação. 7. A violação do princípio da individualização da pena O art. 17 da Lei nº 11.340/06 veda a aplicação de cestas básicas (?) ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. O art. 7º, inciso I, da presente lei, conceitua a violência física como sendo “[...] qualquer conduta que ofenda sua integridade física ou corporal”. E o inciso II do mesmo dispositivo, a violência psicológica: 197 De Jure 9 prova 2.indd S1:197 11/3/2008 16:21:42 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS [...] entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe e pleno desenvolvimento e que vise a degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. Pois bem, estariam incluídos no conceito, obviamente, as vias de fato (art. 21 da LCP) e a lesão corporal (art. 129 CP). De acordo com o disposto no art. 17 da Lei nº 11.340/06, se o homem pratica a contravenção penal de vias de fato contra a mulher com quem coabita, em caso de condenação, o juiz não poderia aplicar somente a pena de multa, sendo obrigado a fixar-lhe pena privativa de liberdade, de 15 dias a 3 meses, e convertê-la (se for o caso) nas penas previstas nos incisos II a VI do art. 43 do CP. Já o inverso, ou seja, se a mulher pratica vias de fato contra seu marido, o juiz poderá fixar apenas a reprimenda pecuniária, ou converter a privativa de liberdade em prestação pecuniária (art. 43, I, do CP). Tal dispositivo, além de desrespeitar o princípio da isonomia, violenta fragrantemente o princípio da individualização da pena, conferida ao magistrado quando da fixação da reprimenda. Como explica Franco (1994, p. 141): [...] embora a Carta Magna afirme que a lei regulará a individualização da pena, força é convir que a lei poderá dar parâmetros para atuação judicial, mas não poderá, de modo algum, obstar que se realize a individualização punitiva. Destarte, lei ordinária que estabeleça pena fixamente determinada na sua quantidade, ou que impeça a discricionariedade vinculada do juiz na sua aplicação ou que não permita, a atividade judicial concretizadora na sua execução, é lei inaceitável, do ponto de vista constitucional. Cabe ao juiz avaliar os requistios dos arts. 59 e 44 do Código Penal para encontrar a pena mais adequada, sendo defeso ao legislador vedar ao Judiciário a aplicação dessa ou daquela reprimenda, ainda mais levando-se em consideração apenas a qualidade da vítima. Pode ser que o juiz, no caso concreto, entenda pela inaplicação da pena de multa, ou pela conversão em prestação pecuniária; mas tudo depende de uma série de circunstâncias a serem analisadas pelo magistrado, não sendo lícito ao legislador obstar a atividade discricionária vinculada do juiz. 198 De Jure 9 prova 2.indd S1:198 11/3/2008 16:21:42 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Por fim, necessário se mostra fazer crítica à redação do dispositivo no que tange à pena de “cesta básica”. Tal pena, com o devido respeito ao legislador, inexiste em nosso ordenamento. Há a pena de prestação pecuniária, que é revertida para instituições de caridade ou similares em forma de alimentos. Isso demonstra a ausência de conhecimento do legislador do sistema penal. 8. As medidas protetivas O art. 12 da Lei nº 11.340 determina que a autoridade policial reduzir a termo a representação (inciso I), remeter ao Juiz, em 48 horas expediente apartado para a concessão de medidas protetivas de urgência (inciso II), e realizar as demais diligências pertinentes, como requisitar o ACD, colher os depoimentos do agressor e testemunhas, e, finalmente, remeter o inquérito ao juiz (incisos II a VII). Já o art. 18 da mesma lei reza que recebido o expediente com pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 horas decidir sobre as medidas protetivas (inciso I), determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária (inciso II) e, finalmente, comunicar ao Ministério Público, para as medidas cabíveis (inciso III). O art. 19 prevê a possibilidade de que as medidas de urgência sejam concedidas pelo juiz a requerimento do Ministério Público ou da ofendida (caput), e, inclusive, ex officio, independentemente de oitiva das partes e de manifestação do Ministério Público (§ 1º). O § 2º do art. 19 permite a aplicação das medidas de forma isolada ou cumulada, e alteração da medida a qualquer tempo, para assegurar os direitos da ofendida. Conforme o art. 22, constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá aplicar as seguintes medidas: suspensão da posse ou restrição do porte de armas (I), afastamento do lar (II), proibição de aproximação da ofendida (III, a), de contato com a ofendida (III, b), e de frequentação de determinados lugares (III, c); há ainda a previsão de restrição ao direito de visitas aos dependentes menores (IV) e prestação de alimentos (V). Depreende-se pela leitura dos dispositivos que o legislador deseja que o Juiz adote medidas de caráter cautelar, sem que tenha sido devidamente provocado, com violação do princípio da inércia da jurisdição. Ora, ao determinar que a autoridade policial remeta o expediente, em 48 horas, para que o Juiz adote as providências cabíveis, sendo possível a concessão de medidas sem ajuizamento de ação, através de profissional habilitado, e, ainda, que tais medidas se consubstanciam em verdadeira prestação jurisdicional, estamos que o legislador feriu o princípio da inércia. Isso acarretará enormes riscos aos eventuais agressores. Não que os mesmos não devam ser punidos; o que se questiona é a forma com que o legislador quer que isso ocorra. As medidas de afastamento do lar (diversa da cautelar de separação de corpos), fixação de alimentos, restrição ao direito de visitas, são questões que devem ser discutidas em 199 De Jure 9 prova 2.indd S1:199 11/3/2008 16:21:43 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS processo de conhecimento próprio, com contraditório (ainda que diferido) e ampla defesa, produção de provas. Houve total violação do princípio do devido processo legal, em prol da busca de proteção da mulher, o que não se nos afigura salutar, uma vez que, à toda evidência, estará sendo colocado em risco o próprio Estado democrático de direito. A adoção de medidas desse jaez, como o mandado de afastamento já foi adotado sem sucesso entre nós. A Lei nº 10.455/02 alterou o parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099/95, para acrescentar a possibilidade de afastamento do lar do autor do fato: “Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima”. Tal alteração foi alvo de sérias críticas por parte da doutrina. Primeiramente, diferencia Rangel (2005, p. 180) a separação cautelar de corpos da medida de afastamento do lar, enfatizando que “[...] a separação de corpos depende tão somente da simples constatação da existência do casamento ou da união estável” enquanto que “[...] a medida de afastamento temporário do lar é mais extrema, de caráter mais enérgico, mas que tem escopo de preservar a integridade física e/ou psíquica do cônjuge que sofre agressões, sevícias ou maus tratos na constância da sociedade conjugal ou estável”. Firmada a distinção, aplicável no que tange à lei em comento, cabe analisar a possibilidade de aplicação da medida de afastamento. Em análise ao parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099, com a redação conferida pela Lei nº 10.455/02, Rangel (2005, p. 181) enfatiza que a medida de afastamento do lar é juridicamente impossível de ser aplicada, já que “[...] afastado do lar, ex officio, pelo juiz, a vítima (não necessariamente o cônjuge) não necessita, nem pode ser obrigada a promover a ação”. Além disso, critica o autor a questão do tempo do afastamento, não previsto pela lei, defendendo que o “[...] juiz do crime não deve adotar, ex officio, tal medida que, no cível, tem o escopo de preparar uma ação principal, como autoriza o art. 1.562 do CC”. Concluindo, Rangel (2005, p. 182) entende que a Lei nº 10.455/02 viola os princípios: a) da estrita legalidade: as normas de restrições e limitações das liberdades públicas devem ter prazo fixado em lei, sob pena de se eternizarem e tornarem-se inconstitucionais, pois a regra é a permanência no lar e nele comportamento compatível com o ambiente doméstico, e não seu afastamento compulsório; b) da inércia da jurisdição: o juiz (criminal) não pode obrigar a parte a demandar no juízo cível ação de separação judicial, divórcio ou de dissolução da sociedade estável. Razão pela qual não faz sentido afastar do lar aquele que não deseja ajuizar qualquer ação no cível, não obstante estar em conflito no âmbito familiar. 200 De Jure 9 prova 2.indd S1:200 11/3/2008 16:21:43 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Lima (2005, p. 71, grifo nosso), da mesma forma, entende inconstitucional o dispositivo do parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099, pois autoriza o juiz a prolatar decisão sem que tenha sido provocado. Ensina o autor: Queremos crer que, apesar do dispositivo fazer parecer que o juiz pode decretar a medida de ofício, tal só será possível no curso do processo, pois não tendo sido o mesmo ainda instaurado, o atuar de ofício seria inconstitucional, violando o princípio acusatório, e o juiz estaria atuando de forma a promover medida de promoção de ação cautelar, violando o princípio ne procedat ex officio e o disposto no art. 129, I, da CF. Fazendo coro com Rangel (2005), entendemos que o parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099, com a redação alterada pela Lei nº 10.455/02, bem como o art. 22, inciso II, da Lei nº 11.340 violam os princípios da inércia, uma vez que haverá deferimento de medida sem provocação, não podendo o Juiz obrigar a mulher a intentar ação de separação, e da legalidade, ante a ausência de prazo fixado pelo legislador. É de se ver que a Lei nº 11.340/06, da mesma forma que a Lei nº 10.455/02, não fixou prazo para que o cônjuge seja afastado do lar, com clara violação do princípio da legalidade, uma vez que, deferida a medida, ela será eternizada, sem que o cônjuge possa voltar para a casa. Embora entendamos inaplicável o dispositivo, por questões doutrinárias, passamos a analisar a questão. Pensamos que deve ser aplicado, por analogia, o disposto no art. 806 do Código de Processo Civil, no sentido de ser fixado o prazo de trinta dias, período em que a mulher deve intentar ação de separação, pena de perda de eficácia da medida. Do contrário, a mulher permanecerá no imóvel, o cônjuge, companheiro ou companheira afastados, sem que se resolvam questões de partilha de bens, guarda de filhos, alimentos, o que não se nos afigura aceitável. As alíneas “a” a “c” do inciso III do art. 22 prevêem a possibilidade de adoção das medidas de proibição de aproximação da ofendida, de contato com a ofendida e de freqüentação de determinados lugares. Embora a intenção do legislador tenha sido boa, entendemos que as medidas são inócuas. Mesmo que o magistrado expeça ordem de proibição de aproximação da ofendida, é cediço que não haverá quem fiscalize o cumprimento de tal medida. As polícias civil e militar não terão estrutura suficiente para acompanhar a observância de tal medida. E, além disso, caso o agente venha a descumpri-la, aproximando-se da ofendida, temos que o mesmo responderia apenas pelo crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal, em que seria possível a aplicação da transação penal e suspensão condicional do processo, uma vez que se trata de infração de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/95), em que não há violência contra a mulher. 201 De Jure 9 prova 2.indd S1:201 11/3/2008 16:21:43 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O mesmo ocorrerá no que concerne à medida de proibição de freqüência a locais em que a ofendida esteja (trabalho, escola). Essas medidas encontram os mesmos óbices da medida anterior: violação da inércia da jurisdição, vez que haverá medida sem pedido, sem provocação, e da legalidade, pois o legislador também não fixou prazo de duração da medida, nem da distância a ser mantida pelo suposto agressor. Na ausência de critério legal, e apenas à guisa de argumentação, caberá ao Juiz aquilatar as peculiaridades do local para fixar a que distância deverá o agressor manter da ofendida. Imaginemos, por hipótese, uma cidade de pequeno porte, em que o agressor trabalhe em um local próximo ao local de trabalho da ofendida. Expedida a ordem para que o mesmo permaneça afastado dela por uma distância superior à dos locais de trabalho dos dois, o agressor teria que sair do emprego para respeitar a ordem judicial, com prejuízo ao seu próprio sustento. Assim, deverá o magistrado analisar todas essas questões para, ao mesmo tempo, assegurar os direitos da ofendida, mas sem sacrifícios de sobrevivência para o agressor. Na verdade, a falta de critérios e de possibilidade de fiscalização tornará essas medidas inaplicáveis, sem qualquer resultado prático, fazendo o Poder Judiciário, o Ministério Público e as polícias caírem em descrédito. A suspensão da posse ou restrição do porte de armas (inciso I do art. 22) é medida que visa a evitar a prática de crimes mais graves, como o homicídio. Em relação às carreiras que utilizam armas de fogo, como os policiais, afirma Nucci (2006, p. 879) que “[...] se o juiz decretar a medida de restrição do porte, em face da agressão à mulher, deve o superior hierárquico zelar para o efetivo cumprimento da ordem, sob pena de responsabilização criminal”. O dispositivo permite que o Juiz restrinja o direito de visitas do agressor aos dependentes menores (IV) e fixe verba alimentar (V). Tais medidas são eminentemente de natureza cível, sendo dificultoso ao juiz da vara criminal sopesar todas as circunstâncias para fixar alimentos, sem qualquer pedido ou o mínimo de cognição. São medidas, com o devido respeito, teratológicas. A restrição ao direito de visitas aos filhos menores é medida extrema, dificilmente adotada pelas varas de família, sendo que nessas, há um processo de cognição. O que se depreende é que a mulher procurará a autoridade policial, lavrará um simples boletim de ocorrência, e poderá pedir o afastamento do lar, a fixação de distância do suposto agressor, proibição de visitas aos filhos e fixação de alimentos, sem que a jurisdição seja devidamente provocada e sem o mínimo de suporte probatório para supedanear o juiz em sua decisão. Determinada a restrição ao direito de visitas (sem provocação da autoridade judiciária), quem teria competência para revogar a medida? O próprio juiz da vara criminal que deferiu a medida? O juiz da vara de família, em processo de cognição? E os alimentos, fixados pelo juiz criminal, serão executados também na vara criminal ou na vara de família? 202 De Jure 9 prova 2.indd S1:202 11/3/2008 16:21:43 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Entendemos que, uma vez deferidas as medidas de restrição de direito de visitas e fixação de alimentos, como as mesmas possuem caráter nitidamente cautelar, as demais questões devem ser resolvidas na vara cível. Nestas, como haverá a cognição, o juiz poderá aquilatar os elementos coligidos e, através da persuasão racional, decidir de forma mais consentânea. 9. Considerações finais sobre a lei de violência doméstica Depreende-se que a Lei Maria da Penha se trata de mais uma lei simbólica, com o escopo de fazer crer que, a partir da entrada em vigor do diploma legal, haverá diminuição dos casos de violência contra a mulher. O que deveria ser feito é a adoção de políticas públicas que visem a evitar a prática de violência doméstica. Há necessidade de se investir nas polícias, no Judiciário e no Ministério Público, na Defensoria Pública, na criação de equipes multidisciplinares, enfim, na criação de uma estrutura para que seja minimizada a questão da violência doméstica. Do contrário, a simples edição de uma lei será inócua e fará o Judiciário, o Ministério Público e a polícia caírem em descrédito perante a sociedade. Finalizando, concordamos com a Moção aprovada durante o 3º Encontro de Juízes dos Juizados Especiais Criminais e de Turmas Recursais Criminais do Estado do Rio de Janeiro, relativa à Lei nº 11.340/06: Os juízes de Juizados Especiais Criminais e de Turmas Recursais do Estado do Rio de Janeiro, reunidos entre os dias 1 e 3 de setembro de 2006, resolvem aprovar a presente moção de preocupação pela forma assistemática e acientífica com que têm sido redigidas várias leis penais e processuais penais nas últimas legislaturas.Entre estas, e motivo principal desta manifestação, estão as duas últimas leis aprovadas pelo Congresso Nacional, as Leis nº 11.343/06 - de tóxicos - e 11.340/06 - de violência doméstica, que têm sérias imperfeições técnicas que comprometem a sua exeqüibilidade. A sucessão de leis imperfeitas frustra a sociedade e aumenta o sentimento de desesperança.Urge uma completa revisão das leis penais e processuais penais e que os projetos de futuras leis destas naturezas recebam a contribuição das universidades e de órgãos de classe envolvidos na sua aplicação. 203 De Jure 9 prova 2.indd S1:203 11/3/2008 16:21:43 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 10. Referências bibliográficas ANSANELLI JUNIOR, Ângelo. A transação penal e os crimes de ação penal privada. Boletim do ICP, n. 44, p. 5-7, mar. 2004. BATISTA, Antonio. Nova lei contra violência doméstica: como combater os retrocessos com avanços. Disponível em: http://www.juristas.com.br/revista/imprimir. jsp?idObjeto=2069. Acesso em: 24 set. 2006. CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) comentada artigo por artigo. São Paulo: RT, 2007. DIAS, Maria Berenice. A violência doméstica na Justiça. 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BUSCA DA VERDADE REAL. PRERROGATIVA LIMITADA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO EVIDENCIADO. 1. O órgão do Ministério Público, assim como a Autoridade Policial, indubitavelmente, podem realizar diligências investigatórias a fim de elucidar a materialidade de crime e indícios de autoria, mediante a colheita de elementos de convicção, na busca da verdade real, observados os limites legais e constitucionais. 2. Na espécie, conquanto a escuta ambiental e a filmagem do depoimento da menor sem a sua ciência não constituam providências vedadas expressamente pela lei, certamente, mostramse desproporcionais, em se considerando não apenas o ferimento aos direitos constitucionais individuais da menor, como também a existência de medida menos gravosa para a colheita da prova. Direito líquido e certo não evidenciado. 3. Recurso desprovido. (STJ, 5a Turma, RMS 22050/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 23/08/2007, DJ 24/09/2007, p. 328). 2o Acórdão. EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME HEDIONDO LIVRAMENTO CONDICIONAL. INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO EM EXECUÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. OBTENÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO POR MEIO MANDADO DE SEGURANÇA. ILEGITIMIDADE. 1. Não é possível, por meio de mandado de segurança, emprestar efeito suspensivo a recurso de agravo em execução interposto pelo Ministério Público - em razão de sua ilegitimidade ativa ad causam, almejando desconstituir a decisão do Juízo das Execuções criminais que concede a condenado o benefício de livramento condicional. 2. Habeas Corpus concedido para cassar o acórdão proferido nos autos do MS n.º 841238.3/0-00, assegurando à ora Paciente o direito de aguardar em livramento condicional a decisão colegiada a ser tomada pelo Tribunal de origem no julgamento do agravo em execução ao qual a referida ação mandamental emprestava efeito suspensivo. (STJ, 5a Turma, RHC 73418/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 14/08/2007, DJ 17/09/2007, p. 317). 3o Acórdão. EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE EXTORSÃO. PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO. INCIDENTE DE SANIDADE MENTAL REQUERIDO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. EXCESSO DE PRAZO 205 De Jure 9 prova 2.indd S1:205 11/3/2008 16:21:44 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS CONFIGURADO. PROCESSO QUE AGUARDA INDEFINIDAMENTE A REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS REQUERIDAS PELA ACUSAÇÃO. 1. O Paciente encontra-se preso cautelarmente por mais de um ano e não foi, sequer, interrogado, em razão da demora na realização do exame de sanidade mental requerido pelo Ministério Público, que, por duas vezes marcado, não se realizou pela ausência de apresentação do Paciente ao Instituto Médico Legal. 2. Uma vez que não há qualquer previsão para o fim da prestação jurisdicional, sem existir qualquer incidente relevante, atribuível à Defesa, capaz de afastar o excesso de prazo, o atraso é completamente desmedido, violando, assim, o princípio da razoabilidade dos prazos processuais, bem como o direito inerente à dignidade humana, a ponto de ensejar o relaxamento da custódia cautelar. 3. Ordem concedida para expedir alvará de soltura em favor do Paciente, se por outro motivo não estiver preso, para que possa aguardar o seu julgamento em liberdade. (STJ, 5a Turma, RHC 75314/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 14/06/2007, DJ 13/08/2007, p. 398). JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS 1o Acórdão. EMENTA: ESTUPRO, CORRUPÇÃO DE MENORES E SUBMISSÃO À PROSTITUIÇÃO OU À EXPLORAÇÃO SEXUAL - PRELIMINARES. 1ª) DEFENSOR NOMEADO AO RÉU E DEFESA PRÉVIA OPORTUNIZADA CAUSÍDICO QUE OPTOU POR REBATER O MÉRITO DA AÇÃO PENAL POR OCASIÃO DA INSTRUÇÃO - DEVIDO PROCESSO LEGAL - OBSERVÂNCIA - PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. A falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua alegada deficiência só anula o processo se houver prova efetiva do prejuízo, conforme dispõem as Súmulas 523, do STF, e 39, da Jurisprudência Criminal deste egrégio Tribunal, o que, em absoluto, ficou comprovado no caso dos autos. 2ª) LAUDOS PERICIAIS SUBSCRITOS POR UM SÓ PERITO - PERITO OFICIAL - INEXISTÊNCIA DE COMPROMISSO LEGAL - DESNECESSIDADE - ART. 159, §2º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - PARTICIPAÇÃO DO PERITO MÉDICO DO MINISTÉRIO PÚBLICO - NULIDADE - INOCORRÊNCIA - LAUDO ASSINADO TAMBÉM POR MÉDICO LEGISTA - AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. A exigência de dois peritos, nos termos da Súmula 361 do Supremo Tribunal Federal, refere-se a peritos leigos, sendo este também o entendimento esposado pela Súmula 20, do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. A declaração de nulidade só pode ser pronunciada quando o defeito jurídico tiver produzido gravame real e manifesto, ou para a defesa, ou para a acusação, o que não ocorre na hipótese em questão, em que o Magistrado, que é livre para apreciar as provas e formar seu convencimento, não está adstrito aos laudos e perícias apresentados no processo, 206 De Jure 9 prova 2.indd S1:206 11/3/2008 16:21:44 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS firmando a condenação baseado em outras provas. 3ª) MINISTÉRIO PÚBLICO PODER INVESTIGATÓRIO - POSSIBILIDADE. Dentro de uma interpretação sistemática do sistema processual-PENAL, em sede constitucional, descabido seria limitar o poder de apuração dos fatos por parte do MINISTÉRIO PÚBLICO, que é justamente o titular da ‘opinio delicti’, devendo privativamente promover a ação PENAL pública, como é o caso, nos termos do artigo 129, I, da Constituição Federal. ESTUPRO - VIOLÊNCIA PRESUMIDA - CONDENAÇÃO - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA - CONSENTIMENTO DA VÍTIMA - RELACIONAMENTO ANTERIOR DA VÍTIMA - IRRELEVÂNCIA. Malgrado súmula deste Tribunal no sentido de que a presunção de violência pela idade da vítima é relativa, podendo ser elidida caso se demonstre que a mesma possuía pleno discernimento em matéria de relacionamento sexual e para este consentiu, o critério cronológico deve prevalecer. ARTIGO 244A, DA LEI Nº 8.069/1990 - CASO CONCRETO - PROVAS - ATIPICIDADE DA CONDUTA - ABSOLVIÇÃO - MANUTENÇÃO - NECESSIDADE. Impõe-se a absolvição quando não restaram comprovados os elementos necessários para a configuração do crime, quais sejam, a submissão das menores às ordens do réu e a habitualidade da conduta, com o objetivo de obter lucro. ART. 218, DO CÓDIGO PENAL - CRIME MATERIAL - NÃO-CONFIGURAÇÃO - AUSÊNCIA DE PROVA DA CORRUPÇÃO OU DA FACILITAÇÃO DA CORRUPÇÃO - VÍTIMAS COM EXPERIÊNCIA SEXUAL PRETÉRITA - MENORES JÁ CORROMPIDAS. Não se caracteriza o delito de corrupção de menores se as vítimas já eram corrompidas, possuindo experiência sexual anterior. Não se tratando de crime formal, mas material, o tipo exige, para sua caracterização, a comprovação de que as menores efetivamente foram corrompidas ou tiveram facilitada a corrupção, após os fatos. Rejeito as preliminares e, no mérito, nego provimento a ambos os recursos. (TJMG, Processo 1.0611.04.010264-6/001, Relator Judimar Biber, Julgamento 25/09/2007, Publicação 02/10/2007, por Unanimidade Rejeitaram Preliminares e Negaram Provimento aos Recursos). 2o Acórdão. EMENTA: PROCESSO PENAL - AGRAVO EM EXECUÇÃO - PENA DE MULTA - AÇÃO DE EXECUÇÃO - TITULARIDADE - MINISTÉRIO PÚBLICO - CONSEQÜÊNCIA DA NATUREZA JURÍDICA DA SANÇÃO PENAL, DO SISTEMA PÚBLICO ACUSATÓRIO E DOS PRINCÍPIOS DE DIREITO E DE PROCESSO PENAL. Na medida em que a pena de multa não perde o caráter de sanção PENAL, cabe ao MINISTÉRIO PÚBLICO, a despeito das alterações operadas pela Lei 9.298/96, promover a sua execução, por ser o legitimado constitucionalmente para a persecutio criminis in iudicio, além de ser o único órgão aparelhado, em termos práticos, para zelar pelo cumprimento das funções da pena e pelos princípios do direito 207 De Jure 9 prova 2.indd S1:207 11/3/2008 16:21:44 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS PENAL. Recurso provido. (TJMG, Processo 1.0000.07.453802-6/001, Relator Hélcio Valentim, Julgamento 31/07/2007, Publicação 11/08/2007, Deram Provimento). 3o Acórdão. EMENTA: “”HABEAS CORPUS”” - “”MÁFIA DO CARVÃO”” - MINISTÉRIO PÚBLICO - PODER INVESTIGATÓRIO - POSSIBILIDADE. Dentro de uma interpretação sistemática do sistema processual-PENAL, em sede constitucional, descabido seria limitar o poder de apuração dos fatos por parte do MINISTÉRIO PÚBLICO, que é justamente o titular da “”opinio delicti””, devendo privativamente promover a ação PENAL pública, como é o caso, nos termos do artigo 129, inciso I, da Carta Magna. PRESENÇA DOS REQUISITOS DA PREVENTIVA - CONDIÇÕES PESSOAIS - IRRELEVÂNCIA - MATÉRIAS MERITÓRIAS - ANÁLISE VEDADA - CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE - Se restam evidenciados todos os elementos para justificar a segregação preventiva, fundados em dados concretos dos autos, mormente tendo em vista a periculosidade dos agentes, não há dúvida de que a segregação cautelar não pode ser afastada. As circunstâncias de natureza pessoal, tais como primariedade, bons antecedentes, serviço lícito, família e residência em nada se relacionam com os motivos determinantes que levaram à segregação, sendo irrelevantes para a análise da liberdade, de modo que não impedem a segregação, mormente em crime onde há enorme clamor PÚBLICO. A avaliação de questões que envolvam o próprio mérito da ação PENAL não é possível na via estreita do remédio constitucional, por exigir análise completa das provas. Ordem denegada. (TJMG, Processo 1.0000.07.449536-7/000, Julgamento 27/03/2007, Publicação 04/04/2007, por Unanimidade Denegaram a Ordem). 208 De Jure 9 prova 2.indd S1:208 11/3/2008 16:21:45 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA 3.1 LIMITES CONSTITUCIONAIS À COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO: ANÁLISE CRÍTICA DA SÚMULA 721 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL MAÍRA CARVALHO LUZ Advogada Integrante da Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares - RENAP 1. Teor da Súmula a ser comentada Súmula 721 do STF – (DJU de 9/10/2003, publicada também no DJU de 10 e 13/10/2003): a competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecida exclusivamente pela Constituição Estadual. 2. Razões A repartição de competência jurisdicional no tocante à competência originária para processo e julgamento de crimes comuns e de responsabilidade pelos tribunais é fixada na Constituição da República, de forma expressa e exaustiva, vedada qualquer interpretação extensiva. Da mesma forma, ocorre com os tribunais estaduais, cuja competência há de ser fixada, em sede constitucional estadual, segundo expresso mandamento do art. 125, § 1º, da Constituição Federal. Ou seja, os limites da competência dos tribunais estão no texto constitucional, seja esse tribunal federal ou estadual, de modo que o legislador ordinário não pode ultrapassá-los, acrescentando nova competência ao rol exaustivo posto na Constituição, como se constituinte fosse. 3. Justificativa Apesar de a Constituição Federal de 1988 delimitar o âmbito dos agentes políticos que usufruem a garantia do foro por prerrogativa de função, e, conseqüentemente, estender a referida prerrogativa àqueles agentes públicos que exerçam funções simétricas, desde que previstas nas respectivas Constituições Estaduais, há controvérsia quanto à definição de quais funções possuem a referida simetria. Com isso, por vezes, a Súmula 721 do STF vem sendo descumprida, ao ter Tribunais que julgam crimes dolosos contra a vida, praticado por agente público que não usufruem a aludida prerrogativa de foro. 209 De Jure 9 prova 2.indd S1:209 11/3/2008 16:21:45 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 4. Comentários 4.1. Aspectos introdutórios O agente político que goza de foro especial por prerrogativa de função, estabelecido pela Constituição Federal, na hipótese de cometer crimes dolosos contra a vida, será processado e julgado pelo respectivo foro especial e não pelo Tribunal do Júri, tendo em vista que a própria Carta Magna prevê essa exceção. Isso significa que a regra de competência do Tribunal Popular não é absoluta, pois sempre que houver instituição de competência especial por prerrogativa de função na Constituição Federal, haverá o afastamento da norma geral. É o que acontece nos art. 29, X, da CF, em que o Prefeito será julgado pelo Tribunal de Justiça; art. 96, III, da CF, que prevê que Juízes e Promotores também serão julgados pelo Tribunal de Justiça; art. 102, I, b e c , art. 105, I, a, e art. 108, I, da CF/88. Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2006) esclarecem que, tratando-se de duas competências constitucionais, deve prevalecer a garantia da prerrogativa de função, específica, sobre a genérica instituição do Júri para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por agentes públicos que gozam do referido foro especial estabelecido na Constituição Federal, sendo essa a linha adotada pela jurisprudência brasileira. Caso o crime doloso contra a vida tenha sido praticado em co-autoria, tendo, um dos réus, foro por prerrogativa de função e o outro não, haverá separação dos processos, e aquele que não tem prerrogativa deverá ser julgado pelo Tribunal do Júri, uma vez que, nesse caso, prepondera a regra constitucional sobre a competência do Tribunal do Júri em detrimento da norma de lei ordinária (Código de Processo Penal) sobre a competência por conexão ou continência. Os Estados membros podem, no exercício de seu poder constituinte decorrente, estabelecer privilégios de foro para seus agentes políticos em suas Constituições Estaduais, em correspondência com os casos previstos na Constituição Federal. O art. 125 da Constituição Federal prescreve que os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nessa Constituição, acrescentando, no § 1º, que a competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a Lei de Organização Judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça. Compreende-se, assim, que o foro privativo deferido às autoridades estaduais deverá limitar-se ao julgamento de crimes estaduais, excluídos os juízos naturais previstos na Constituição Federal, de modo que, tratando-se de crimes federais ou eleitorais, a competência será a prevista na Carta Maior. A regra é que haja obediência às normas constitucionais e seja feita uma interpretação restritiva quanto às normas estaduais. 210 De Jure 9 prova 2.indd S1:210 11/3/2008 16:21:45 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 4.2. Entendimento jurisprudencial acerca da Súmula 721 do STF O Supremo Tribunal Federal tem considerado constitucionais os dispositivos estaduais que atribuem ao Tribunal de Justiça o processo e o julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados por certas autoridades locais, tais como, deputados estaduais e secretários de Estado. Argumenta-se que, em razão do princípio da simetria com o centro, os deputados federais serão julgados pelo STF, e os deputados estaduais deverão ser julgados pelos Tribunais de Justiça dos Estados, com amparo legal no art. 27, §1º, da CF/88, no art. 102, I, b, da CF/88 - simetria com os membros do Congresso Nacional e no art. 125, caput, da CF/88. Assim, por se tratar de matéria constitucional, o Supremo Tribunal Federal aponta para a declaração de inconstitucionalidade ou para a suspensão, em sede de liminares, da eficácia de dispositivos de Constituições Estaduais que outorgam competência originária a seus tribunais para processar e julgar ações instauradas contra seus agentes políticos, cujos símiles, no âmbito federal, não detenham prerrogativas de foro conferidas pela Carta da República (ADI 2797/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; ADI 2860/DF, Rel. Min. Menezes Direito; ADI 2.587/GO, Rel. Min. Maurício Corrêa; ADI 882-0/MT, Rel. Min. Maurício Corrêa; ADI 2.553-8/MA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence). Moraes (2007) defende que os deputados estaduais e secretários de Estado serão processados e julgados pelo Tribunal de Justiça de seu respectivo Estado, incluindo os crimes dolosos contra a vida, desde que expressamente previstos na Constituição Estadual. Argumentam que as respectivas Constituições estaduais, com base no exercício do poder constituinte derivado decorrente de auto-organização, corolário da autonomia federal prevista no art. 18 da Carta Federal, poderão atribuir a seus agentes políticos as mesmas prerrogativas de função de natureza processual penal que a Constituição Federal concedeu a seus correspondentes. Em Minas Gerais, a Constituição estadual prevê que o foro privativo do Secretário de Estado e dos deputados estaduais será perante o Tribunal de Justiça, nos termos do art. 93, § 2º, e do art. 56, § 1º. Nessa linha de raciocínio, Oliveira (2007) explica que a competência dos Tribunais de Justiça para o julgamento dos crimes comuns praticados pelos deputados estaduais decorre do disposto no art. 27, § 1º, da Constituição Federal, que prevê igual tratamento aos referidos parlamentares no que diz respeito à inviolabilidade e imunidades, e do contido na norma geral do art. 25 da Constituição Federal, que explicita o princípio constitucional federativo, pois não há nenhuma determinação expressa de foro privativo aos deputados estaduais. Com isso, o campo de exercício dos poderes dos referidos deputados e, daí, de sua responsabilização penal, deverão limitar-se ao âmbito da 211 De Jure 9 prova 2.indd S1:211 11/3/2008 16:21:45 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS jurisdição do Poder Público estadual, no que se refere às infrações a bens e valores cuja proteção não se estenda a interesses federais da União. Assim todos os crimes da competência da justiça estadual, quando praticados pelos deputados estaduais, serão julgados pelo Tribunal de Justiça, incluindo os crimes dolosos contra a vida. Esses parlamentares submetem-se ao critério de competência de regionalização, desde que não se trate de crime da competência da Justiça Eleitoral ou da Justiça Federal. No julgamento da ADI 2587/GO, em que foi relator o eminente Min. Maurício Corrêa, a Suprema Corte, por maioria, reconheceu a constitucionalidade de criação, na Constituição do Estado de Goiás, de foro privativo por prerrogativa de função aos Procuradores de Estado e da Assembléia Legislativa e aos Defensores Públicos, rejeitando-a, porém, em relação aos delegados de polícia. Argumentou-se que as referidas funções seriam necessárias ao Estado democrático de direito, ao contrário do que ocorreria com os delegados de polícia, funcionalmente subordinados aos governadores estaduais e submetidos a controle externo pelo Ministério Público. Há que se registrar, contudo, que a Suprema Corte já decidiu que o direito constitucional estadual pode estabelecer casos de competência originária, em razão da pessoa, atribuindo ao Tribunal de Justiça o julgamento, por exemplo, ao Chefe de Polícia (Precedente: STF, RT 706/420). Já no HC 78.168/PB, em que foi relator o eminente Min. Néri da Silveira, o STF decidiu, em sessão plenária, que Procurador de Estado não tem prerrogativa de função. A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no HC 40.388/RJ, em que foi relator o eminente Min. Gilson Dipp, entendeu que a Constituição estadual pode atribuir competência ao respectivo Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, vereador, por ser agente político, ocupante de cargo eletivo, integrante do Legislativo municipal, o qual encontra simetria com os cargos de deputados estaduais, federais e senadores, sendo que estes, por força do disposto na própria Constituição Federal (art. 102, I, alínea b), têm foro por prerrogativa de função perante o Supremo Tribunal Federal, e aqueles perante os respectivos Tribunais de Justiça, conforme Cartas estaduais, tendo em vista, inclusive, a regra contida no art. 25, parte final, da Carta da República. Precedente, em sentido contrário, STJ, HC 11.939/RJ, Rel. Min. Edson Vidigal. Posto isso, verifica-se que parte da jurisprudência interpreta a Súmula 721 do STF no sentido de que o poder constituinte estadual comporta um juízo discricionário, cuja matéria é infensa a exame pelo Poder Judiciário, de modo que agentes políticos previstos exclusivamente pela Constituição estadual, que exerçam atribuições em que haja simetria com os cargos políticos previstos pela Carta Magna, como os vereadores, por exemplo, poderão gozar do foro especial por prerrogativa de função, ainda que cometam crimes dolosos contra a vida. 212 De Jure 9 prova 2.indd S1:212 11/3/2008 16:21:45 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 5. Conclusão O julgamento dos crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal do Júri é uma garantia constitucional, que advém da previsão do Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, do Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, da Constituição Federal. Trata-se de competência em razão da matéria (crimes dolosos contra a vida, sejam consumados ou tentados) e qualificada pela Constituição Federal. Carneiro (2007) explica que o Tribunal do Júri é exemplo de competência funcional, pois pode caber a um juiz de Vara Criminal comum instruir o processo, ao juiz da vara privativa do Júri proferir a sentença de pronúncia e presidir o Júri, aos jurados responder aos quesitos, ao juiz fixar a pena e, por fim, ao juiz das execuções criminais apreciar os incidentes surgidos durante a execução da pena. Trata-se de competência funcional horizontal, tramitando o processo no mesmo grau de jurisdição. Conclui, referindose a Grinover, que a competência funcional é sempre absoluta, pois é instituída em razão do interesse público, e não da conveniência das partes. Não comporta, portanto, modificação, seja legal ou convencional. A competência por prerrogativa de função concedida às autoridades estaduais, inclusive com relação aos crimes dolosos contra a vida, decorre do princípio da simetria, do poder auto-organizatório dos Estados-membros e da autonomia dos entes federativos, nos termos art. 18 da Constituição Federal. Entretanto, como bem observam Mirabete (2007), Bulos (2007), Lenza (2004), Grinover; Fernandes; Gomes Filho (2006), se o foro especial for estabelecido exclusivamente pela Constituição Estadual, por lei processual ou de organização judiciária, o autor de crime doloso contra a vida deverá ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, visto que tais preceitos jurídicos não podem excluir a competência do Juízo instituído pela Carta Magna. Como bem afirma Bulos (2007), o art. 5º, XXXVII, d, da Constituição Federal, é o paradigma a ser seguido pelas ordens jurídicas estaduais. Assim, a instituição de foro especial por prerrogativa de função exclusivamente pela Constituição Estadual seria uma forma de infirmar a vigência e a eficácia da referida Carta Magna, tendo em vista que os valores instrumentais da efetivação da justiça, como a segurança pública e as garantias penais, estariam sendo gravemente transgredidas. Isto é, priorizar a competência por prerrogativa de função instituída exclusivamente pela Constituição Estadual em detrimento da competência constitucional do Júri seria violar os contornos da segurança jurídica da cidadania. Pois, como bem explica Silva (2005), o princípio constitucional da segurança jurídica, previsto no art. 5º, caput, da CF/88, visa assegurar o direito à igualdade, de modo que a segurança legítima do direito é apenas aquela que signifique garantia contra a arbitrariedade e contra as injustiças. 213 De Jure 9 prova 2.indd S1:213 11/3/2008 16:21:46 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Ademais, ressalvadas as hipóteses previstas na Constituição Federal, preterir a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida para Tribunais de segundo grau compostos somente por membros togados, é uma afronta à vontade do legislador constituinte originário que elegeu o Júri como competente para julgar crimes de tal gravidade (competência em razão da matéria e qualificada pela Constituição Federal, art. 5º, XXXVIII) sem distinção das pessoas acusadas, que devem ser julgadas pelo mesmo procedimento, de modo que a decisão dos jurados na decisão da causa é soberana, não podendo ser substituída pelo entendimento do juiz togado, o que desrespeita o direito constitucional da igualdade. Atribuir o foro por prerrogativa de função para o processamento e julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por agentes políticos, cujos cargos estão previstos exclusivamente na Constituição Estadual, por conseguinte, é inconstitucional e afronta a Súmula 721 do Supremo Tribunal Federal. Isso significa que as Constituições Estaduais podem estabelecer foro privilegiado para outros cargos além daqueles que tenham simetria com a Constituição Federal, nos termos do art. 125 da Carta Magna, mas tal prerrogativa não alcançará os crimes dolosos contra a vida. 6. Referências bibliográficas BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; FILHO, Antônio Magalhães Gomes. As nulidades no processo penal. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 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TÉCNICAS 4.1 RECURSO ESPECIAL CRIMINAL JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais FEITO Nº : XXXXX COMARCA : XXXXX ESPÉCIE : RECURSO ESPECIAL CRIMINAL RECORRENTE : XXXXXX RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS INCIDÊNCIA PENAL: ARTIGO 14 DA LEI FEDERAL Nº 10.826/03 Eminente Desembargador XXX Colendo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais Eminentes Ministros do Egrégio Superior Tribunal de Justiça Eminente Subprocurador-Geral da República Pelo Insigne Ministério Público Federal O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, por um de seus Procuradores de Justiça, o ora signatário, em face da interposição, pelo réu em epígrafe, intermédio de combativa defesa constituída, e em face do acórdão de fl. ___ (apelação) do presente RECURSO ESPECIAL, com fulcro nos artigos 105, III, “a”, da Constituição Federal, e 26 e seguintes da Lei Federal nº 8.038/90, a esse respeito vem da seguinte forma se posicionar. O inconformismo em tela, na fase do primitivo juízo prelibador, merece ser admitido, uma vez que é próprio, mostra-se tempestivo (vide fls. ___ e ___, ambas do segundo volume dos autos), ostenta regularidade formal, encontra-se regularmente processado, vêem-se esgotadas as instâncias recursais ordinárias e é detectável, ainda, o legítimo interesse recursal, este advindo da quase total sucumbência imposta ao ora recorrente. No que toca, porém, à satisfação do pressuposto do prequestionamento, há de se levar em conta algumas considerações não sem alguma complexidade. De fato, tem-se que a defesa pleiteou a fixação da pena corporal no seu limite mínimo legal por ocasião das razões de apelação (fls. 313/319-vol.2), fazendo-o, no entanto, sob a roupagem 215 De Jure 9 prova 2.indd S1:215 11/3/2008 16:21:46 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS de pedido de decote da circunstância agravante da reincidência. Muito embora não haja o defensor constituído expendido sequer mínimos esforços para justificar o seu importante posicionamento (vide fl. 319-vol.2), lógica é a conclusão no sentido de que esperava, com o desaparecimento da agravante na instância recursal, a estipulação da sanção privativa de liberdade no seu patamar mínimo. O problema é que o prequestionamento vem sendo erigido, e não é de agora, a um requisito com características de verdadeira charada, o que acabou por transformá-lo em um filtro recursal de quase impossível transponibilidade, em prejuízo franco e claro dos princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal. Não é por outro motivo que, na abalisada advertência de Pantuzzo1, vem se constituindo na causa mais freqüente de inadmissão dos recursos excepcionais. No caso em apreço, infere-se, claramente, que a defesa pretendia a fixação da pena no seu limite mínimo, embora haja se limitado a propugnar, pura e simplesmente, pelo decote da agravante. Ora, tendo o acórdão mantido a circunstância (e aqui não se está, embora possa parecer, adentrando ao mérito da irresignação especial aviada), a uma primeira análise pode exsurgir a impressão – errônea, registre-se – de que o recurso não se vê devidamente prequestionado, já que, nas razões, o que se pede é a estipulação da sanção corporal em seu patamar mínimo legal. Não obstante a não-exigência do requisito, por parte do constituinte de 88, o que levaria ao raciocínio lógico de José Afonso da Silva (apud PANTUZZO, 2004, p. 74) no sentido de que “[...] o silêncio constitucional desonera o recorrente da demonstração do prequestionamento”, compartilhado por outros mestres no assunto2, o STF vem sistematicamente exigindo o cumprimento, pelo recorrente especial ou extraordinário, do ultracomplexo pressuposto. Diz-se prequestionada a matéria, federal ou constitucional, quando ela foi objeto de suscitação, pela parte, e de debate, pelo tribunal a quo, sendo imprescindível, pois, que o colegiado do Judiciário local haja emitido, a respeito dela, juízo de valor explícito. A questão assume complexidade ímpar, no entanto, quando se tenta abstrair a explicitude, ou mera implicitude, do entendimento estampado na decisão proferida e que é objeto de impugnação extraordinária (lato sensu). Não satisfaz, para o primeiro e para o segundo juízos de prelibação, lamentavelmente, que a questão tenha sido meramente proposta e decidida, tornando-se res controversa, res dubia, mas, sim, que 1 PANTUZZO, Giovanni Mansur Solha. Prática dos recursos especial e extraordinário. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 74. 2 O então Ministro do STF Carlos Mário Velloso, em palestra publicada na RDA 175/9, alertou: “[...] o prequestionamento, sob o pálio da CF de 1988, não terá vez, ao que penso. É que o constituinte quis alargar o raio de ação do recurso especial. Isto está evidente no texto constitucional” (apud PANTUZZO, 2004, p. 75, nota de rodapé nº 7). 216 De Jure 9 prova 2.indd S1:216 11/3/2008 16:21:46 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ela haja sido expressa e inequivocamente apreciada pelo tribunal local, razão por que a formulação da questão pela parte, exige-se, haverá de ter apresentado todos os seus contornos possíveis e imagináveis. Apesar de a dicção do Enunciado de número 282 da Súmula do STF apenas aludir à mera ventilação da questão (“[...] é inadmissível o recurso extraordinário quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”), na prática o que se vem exigindo é muito mais do que isso, já que se deliberou emprestar, ao texto do enunciado em tela, um rigor formalístico exagerado, logrando-se, com isso, uma limitação severa das admissões de recursos que tais, em detrimento, data venia, do ideal de melhor prestação jurisdicional possível. O direito sumular não se compraz, e nem poderia se comprazer, com as minúcias do direito processual, havendo, ao contrário, de se caracterizar pela interpretação literal dos enunciados, marcando-se pela agilidade, pelo repúdio à teleologia. Ao se erguer às raias da quase impraticabilidade um remédio processual que deveria, ao contrário, ser marcado por maior liberalidade, dada a importância de sua significação social, o que se obtém é, na quase totalidade das vezes, que somente sejam objeto de enfrentamento por parte do STF ou do STJ aquelas irresignações formalmente perfeitas, produto quase exclusivo apenas dos mais preparados escritórios de advocacia, longe do alcance da imensa maioria daqueles que batem às portas do Judiciário. É a consagração do extravasamento dos critérios de razoabilidade, é a prática do capricho, é o enaltecimento da vaidade pessoal, do poder de se obstaculizar, mediante regras de difícil observância, o acesso do povo à Justiça. Para a satisfação do pressuposto do prequestionamento, não se perdendo de vista jamais a importância fundamental dos princípios da ampla defesa, da legalidade, do devido processo legal, do contraditório e do acesso ao Judiciário, há de bastar ter-se em mira a regra genérica da não-supressão de instância, mediante a constatação de que o tema, federal ou constitucional, haja sido objeto de apreciação e deliberação pelo tribunal a quo. Assim, forte no que ora se aponta como um inconformismo devidamente prequestionado, in casu, há de se dar seguimento, de fato, ao especial aviado. Tratando-se, então, de hipótese de plena viabilidade do remédio eleito, tal circunstância, evidentemente, dá ensejo ao processamento do recurso em pauta, ou, se já na fase do segundo juízo de prelibação, propicia o conhecimento do mesmo pela Corte ad quem, o egrégio Superior Tribunal de Justiça. Tais argumentos são suficientes, pois, para se concluir que o presente especial está a merecer seguimento e conhecimento, salvo o muito melhor juízo tanto do Excelentíssimo Desembargador do colendo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, digna autoridade judiciária incumbida do primeiro juízo prelibador, como dos 217 De Jure 9 prova 2.indd S1:217 11/3/2008 16:21:46 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Excelentíssimos Ministros do egrégio Superior Tribunal de Justiça, haja vista o preenchimento, a contento, de todos os seus pressupostos de admissibilidade. Já no que toca ao mérito, propriamente dito, do apelo especial interposto, tem-se que razão assiste ao réu, pois que, com efeito, o que ocorreu foi um equívoco por parte da douta turma julgadora. Procedente vem a ser, pois, a r. linha de argumentação da combativa defesa (fls. 367/371-vol. 2 do feito). Com efeito, os desembargadores acolheram a tese da plena compensação entre as circunstâncias atenuante da confissão espontânea e agravante da reincidência, como às expressas ficou consignado no corpo do acórdão, inclusive em sua ementa (vide fls. 354/362-vol. 2). Na fase do cômputo matemático da questão, todavia, é que o lapso surgiu: o magistrado monocrático emprestara à circunstância agravante da reincidência peso bem maior (6 meses) do que à atenuante da confissão espontânea (3 meses), como se deduz, claramente, da análise do raciocínio do juiz sentenciante, à fl.292-vol. 2 dos autos. Ao se referir a esse raciocínio, contudo, assim se manifestou a relatora do acórdão: No entanto, entendo que ambas (as circunstâncias) se equiparam, a confissão por se ater à personalidade do agente e a reincidência por expressa disposição legal, nos termos do artigo 67 do Código Penal. Assim, equiparando tais circunstâncias, sua pena final deverá ser mantida em dois anos e três meses de reclusão [...] (fl. 359vol. 2). Ora, deixando claro os sobrejuízes (o voto da relatora foi integralmente acompanhado pelo revisor e pelo vogal) que ambas as circunstâncias, agravante e atenuante, equiparavam-se plenamente, o cálculo matemático correto seria o recuo da pena privativa de liberdade ao seu limite legal mínimo, ou seja, dois anos de reclusão (art. 14 do ED), mas o que aconteceu foi, lamentavelmente, que não atentaram para o fato de que o juiz sentenciante avaliara diferentemente ambas as circunstâncias, como já aqui registrado, conferindo peso em dobro superior à reincidência, em comparação com a confissão espontânea. Assim, correta a tese de que se vulnerou o dispositivo de número 59 do Código Penal, havendo injustiça a ser corrigida pelo Judiciário. Viável, portanto, o presente remédio processual, para se atingir referido objetivo. Dessarte, há de se falar em contrariedade ou negativa de vigência a texto de lei federal (art. 59, CP), in casu, sendo hipótese, com redobradas vênias, de provimento do presente apelo especial, para a específica finalidade de estipulação da pena corporal em seu limite mínimo legal. 218 De Jure 9 prova 2.indd S1:218 11/3/2008 16:21:47 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Ex positis, em resumo é esta a manifestação do MPMG: admissão do recurso em tela, fase do denominado primitivo juízo de prelibação, e, ato contínuo, conhecimento do mesmo pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça; no mérito, por fim, haverá de ser o presente Recurso Especial provido, porquanto consistente a sua linha de argumentação, havendo o decisório colegiado de ser reformado. Com essas humildes considerações, em conclusão propugna-se ao eminente Desembargador do colendo Tribunal de Justiça de Minas Gerais seja deferido o seguimento do presente recurso especial, por se encontrarem integralmente preenchidos os indispensáveis pressupostos de sua admissibilidade. Roga-se aos eminentes Ministros do egrégio Superior Tribunal de Justiça, por seu turno, o conhecimento da censura em foco, e, no mérito, o seu provimento, por consistência das rr. razões, corrigindo-se, por via conseqüencial, o acórdão vergastado, fixando-se a apenação mínima em desfavor do réu e ora recorrente, evidentemente para tanto devendo serem acrescidas as indispensáveis luzes do alumiado Ministério Público Federal. Belo Horizonte, 12 de junho de 2007. 219 De Jure 9 prova 2.indd S1:219 11/3/2008 16:21:47 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS SEÇÃO III – DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL SUBSEÇÃO I – DIREITO CIVIL 1. ARTIGOS 1.1 UNIÕES HOMOAFETIVAS – UMA NOVA MODALIDADE DE FAMÍLIA? LIDIANE DUARTE HORSTH Promotora de Justiça no Estado de Minas Gerais Especialista em Direito Civil pela PUC-Minas SUMÁRIO: 1. Introdução. 1.1. Origem da família. 1.2. União livre entre homem e mulher como modalidade de família. 1.3. A família na Constituição Federal de 1988. 2. A relação homoafetiva como entidade familiar. 3. Relacionamentos afetivos homossexuais e união estável heterossexual: espécies de um mesmo gênero? 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas. 1. Introdução Antes de adentrar no estudo do tema proposto, mister se impõe salientar, conforme Thomaz (2003, p. 84), que “[...] não se pode pensar em sociedade sem antes se pensar na família. A família é a célula mater da sociedade. Forma-a, desenvolve-a e a consolida”. A idéia de família comporta diversos enfoques. Em sentido amplo, pode ser entendida como um conjunto de pessoas unidas pelos laços de parentesco e que descendem de um tronco comum. Dentro desse conceito amplo de família incluirse-iam os ascendentes, descendentes e colaterais de uma mesma linhagem. Em um sentido mais restrito, poder-se-ia dizer que família é “[...] o núcleo formado por pais e filhos que vivem sob o poder familiar” (THOMAZ, 2003, p.85). Sob o aspecto sociológico, por outro lado, a família pode ser vista como sendo o conjunto de pessoas que vivem em um mesmo lar e cuja autoridade é exercida por um dos integrantes dessa família. Há notícia de que nas civilizações primitivas a família era formada pela mãe e sua prole, por ser desconhecido o pai. Isso ocorria pelas constantes guerras entre tribos, que faziam as mulheres serem subjugadas por bravos guerreiros vindos de outras tribos. Até, talvez por instinto natural (ou animal), os homens das tribos tinham relações sexuais com diferentes mulheres, engravidavam-nas e deixavam com elas o produto de tais relações. Neste contexto fala-se do surgimento da 220 De Jure 9 prova 2.indd S1:220 11/3/2008 16:21:47 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS poligamia, conduta que seria mais tarde relegada a poucas tribos, hoje a pouquíssimas civilizações (THOMAZ, 2003, p. 85). 1.1 Origem da família Com o advento e fortalecimento do cristianismo, o padrão da família passou a ser o daquela surgida do casamento de um homem e uma mulher, com caráter monogâmico, patriarcal, sendo que o marido era o chefe daquela célula familiar integrada pela mulher e pela prole. Os princípios relativos à família do direito romano serviram para inspirar a família brasileira. A nossa família primitiva, assim como na Roma antiga, era entendida como o grupo de pessoas formado por um pai, mãe e filhos. Essa família tinha o caráter monogâmico, patrimonialista, era chefiada pelo homem, que, como marido e pai, exercia toda a autoridade patriarcal daquele grupo familiar. O poder do pater familias compreendia: a patria potestas, ou o poder sobre os filhos e netos dos filhos masculinos; a manus, ou o poder sobre as mulheres casadas com o mesmo pater familias ou com um seu descendente; o mancipium, ou o poder de pater sobre as pessoas a ele vendidas como escravos (in mancipio); a dominica potestas, ou o poder sobre os escravos (THOMAZ, 2003, p. 85). A família é um fenômeno natural. Forma-se com ou sem a participação da igreja ou do Estado. Até há pouco tempo atrás o nosso legislador, notadamente o constitucional, entendia como família tão-somente aquela formada pelo casamento entre um homem e uma mulher. No entanto, a evolução dos costumes e a força dos fatos sociais compeliram o Direito a reconhecer o novo panorama fático daquelas famílias brasileiras que não se formavam com a chancela estatal. Daí veio a Constituição Federal de 1988 e, consolidando situação há muito já consagrada na doutrina, previu no seu artigo 226, § 3º, como entidade familiar a união estável formada por um homem e uma mulher. A partir de então, dispondo a Magna Carta de 1988 que a família protegida pelo Estado não mais seria tão-somente aquela formada pelo casamento, mas também outras, como a oriunda das relações fáticas não oficializadas, entre um homem e uma mulher, desde que atendidos certos requisitos, o panorama jurídico da família brasileira alterou-se profundamente. 1.2 União livre entre homem e mulher como modalidade de família A união heterossexual livre, sem a interferência estatal, apesar de ser fenômeno freqüente na nossa sociedade, não era reconhecida como entidade familiar até a promulgação da Constituição de 1988. Para que isso ocorresse, foi necessário que se percorresse um árduo e longo caminho. Em um primeiro momento, apenas a doutrina 221 De Jure 9 prova 2.indd S1:221 11/3/2008 16:21:47 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS e a jurisprudência pátria atribuíam efeitos a essas uniões de fato, tratando-as, muitas vezes, como relações intrinsecamente ligadas ao direito das obrigações. Após um árduo trabalho, notadamente da jurisprudência pátria, veio o reconhecimento constitucional e legal, sendo que hoje, a união livre entre um homem e uma mulher, que tenha as características de estabilidade, publicidade e intuito de formação de uma vida em comum, é considerada como uma entidade familiar tão importante quanto àquela formada pelo casamento e que merece, assim como as uniões formais, a proteção estatal. Inicialmente, quando ocorria o desfazimento de uma união livre, que tinha características assemelhadas às da família legítima, originada do casamento, os nossos Tribunais, com o escopo de evitar o locupletamento de um em detrimento do outro, o enriquecimento ilícito na maioria das vezes do homem em detrimento da mulher, passou a reconhecer efeitos patrimoniais a tais relações. Começaram os Tribunais Superiores e os dos diversos Estados Brasileiros a aplicar a teoria da sociedade de fato, sendo que todo o patrimônio amealhado pelo esforço comum deveria ser dividido entre os sócios dessa sociedade de fato. Para se reconhecer a sociedade de fato e determinar a divisão do patrimônio adquirido durante a convivência, os julgadores exigiam a prova do esforço comum das partes, sendo que “[...] quando isso não era possível e para impedir o desamparo da concubina, os tribunais concediam a ela uma indenização por serviços domésticos” (THOMAZ, 2003, p. 87). Posteriormente passou-se a se admitir a contribuição indireta da concubina para caracterização do esforço comum. Os serviços domésticos prestados no lar pela mulher passaram a ser considerados como esforço tão relevante quanto a contribuição direta, em pecúnia, para aquisição dos bens do casal. Veio daí a Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal que, ao enunciar: “Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum[...]”, trouxe para o direito das obrigações as relações afetivas heterossexuais não oficializadas pelo casamento, afastando, nessas hipóteses, qualquer efeito de direito de família. A partir de então foram sendo concedidos direitos, principalmente à concubina, como por exemplo: concedeu-se o direito de perceber a indenização do companheiro morto por acidente de trabalho e de trânsito, desde que não estivessem casados e ela estivesse incluída como beneficiária (Dec. Lei 703/44; Lei 8.213/91). Foram consolidados os direitos previdenciários da companheira na legislação respectiva (Leis 4.297/63 e 6.194/74), permitindo que ela fosse designada beneficiária do contribuinte falecido, tendo a orientação jurisprudencial se encarregado de alargar o conceito, 222 De Jure 9 prova 2.indd S1:222 11/3/2008 16:21:47 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS permitindo o mesmo direito também na falta de designação expressa se provada a convivência ou a existência de filhos comuns. Deste modo, permitiu-se a divisão da pensão entre a esposa legítima e a companheira (Súmula 159 do extinto TRF). A Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), no artigo 57, §§2º e 3º, com redação dada pela Lei 6.216/75, autorizou a companheira a adotar o sobrenome do companheiro, após cinco anos de vida em comum ou na existência de prole, desde que nenhum deles tivesse vínculo matrimonial (THOMAZ, 2003, p.87). Muito se fez na legislação infraconstitucional pelas uniões livres heterossexuais até a vinda da norma constitucional que eliminou de vez a controvérsia acerca do caráter familiar ou não das relações afetivas estáveis entre homem e mulher não oficializadas pelo casamento. Finalmente, após longa batalha jurisprudencial, discussões doutrinárias e até mesmo iniciativas legislativas, veio a norma do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal que prescreveu que “[...] para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. A partir do reconhecimento constitucional, vieram as Leis nº 8.971/94 e nº 9.278/96 e, posteriormente, o novo Código Civil, que trataram expressamente da união estável heterossexual, agora considerando tal instituto como ele sempre deveria ter sido tratado, ou seja, dentro das regras do direito de família. Estando sob o manto do direito de família, os integrantes das uniões livres entre heterossexuais passaram a ter garantidos direitos sucessórios, direito a alimentos, direitos previdenciários e, ainda, admitida a aplicação aos companheiros de institutos como o de guarda, tutela, adoção, curatela, dentre outros, com a mesma preferência de exercício do que a conferida aos casais casados. 1.3 A Família na Constituição Federal de 1988 Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o direito de família sofreu profundas transformações. Até então, o nosso ordenamento jurídico reconhecia apenas o casamento como a instituição formadora da família merecedora da proteção estatal. Na restrita visão do Código Civil de 1916, a finalidade essencial da família era a continuidade. Emprestava-se juridicidade apenas ao relacionamento matrimonial, afastadas quaisquer outras formas de relações afetivas. Expungia-se a filiação espúria e proibiam-se doações extraconjugais. A doutrina ortodoxa apontava entre as finalidades do casamento 223 De Jure 9 prova 2.indd S1:223 11/3/2008 16:21:47 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS a disciplina do relacionamento sexual entre os cônjuges, a proteção à prole e a mútua assistência (FUGIE, 2002, p.134). Com a Constituição Federal de 1988, além da família oriunda do casamento, também a família monoparental (aquela formada por qualquer dos ascendentes com seus descendentes) e a família formada pela união estável entre um homem e uma mulher passaram a ser consideradas como entidades familiares tuteladas pelo Estado. E a partir daí surgem os inafastáveis questionamentos: Serão só essas as modalidades de família merecedoras da tutela estatal? A Constituição Federal enumerou de forma taxativa os tipos de entidades familiares, ou essa enumeração é meramente exemplificativa? E as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo? Serão elas uma modalidade de família merecedora da proteção do Estado? Pode-se responder aos questionamentos acima levantados de duas formas, a depender do caminho que se escolhe seguir com o nosso entendimento e interpretação da norma constitucional. Em primeiro lugar, se se partir da premissa de que a enumeração feita pelo artigo 226 da Constituição Federal é taxativa, que são modalidades de entidades familiares tão-somente aquelas constituídas pelo casamento, pela união estável entre homem e mulher e pelos ascendentes com seus descendentes, a conclusão a que se chega é a de que a vedação constitucional à inclusão dos relacionamentos homoafetivos no laço jurídico e social da família é inconstitucional. Por outro lado, se não se aceita a tese da existência de uma norma constitucional inconstitucional, conforme preleciona Bachof, essa vedação atenta ao menos contra os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade e da proibição de discriminação por motivo de origem, raça, sexo, cor, idade (art. 3º, IV, CF/88), princípios que são fundantes do nosso Estado democrático de direito. Esse é o entendimento hoje predominante entre a grande maioria dos nossos juristas e pensadores que se dedicam ao tema. Para juristas hodiernos, como Thomaz (2003) e Azevedo, por exemplo, a norma do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, ao exigir a diversidade de sexos para a existência da união estável entre homem e mulher, acabou por impedir e vedar a existência de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Como não há casamento entre homossexuais previsto no nosso ordenamento jurídico e a Constituição Federal previu como modalidades de entidades familiares tão-somente aquelas formadas pelo casamento, pelos ascendentes e seus descendentes e pela união estável entre homem e mulher, a consideração das uniões homólogas estáveis como modalidade de família seria vedada em nosso ordenamento jurídico. Para afastar tal entendimento e buscar um reconhecimento dessas uniões homoafetivas, os estudiosos e intérpretes do direito têm feito verdadeiros malabarismos jurídicos. Em primeiro lugar cumpre assinalar que existe um projeto de emenda constitucional, de autoria da ex-deputada Marta Suplicy, com o escopo de excluir a exigência da 224 De Jure 9 prova 2.indd S1:224 11/3/2008 16:21:48 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS diversidade de sexos prevista no § 3º do artigo 226 da Constituição Federal para a configuração da união estável. Como esse projeto de emenda constitucional ainda não foi apreciado pelo Congresso, os nossos intérpretes do Direito têm que conviver com a vedação constitucional e encontrar um meio de defender a existência, validade, geração de efeitos e até mesmo o caráter de família das uniões estáveis homossexuais. Lado outro, existem os que defendem que a enumeração constitucional não é taxativa e que, assim não sendo, não haveria nenhum óbice constitucional intransponível à aceitação dos relacionamentos homossexuais como um tipo de entidade familiar. Lôbo (2002) defende, em artigo de sua autoria, que, apesar da doutrina dominante entender que o artigo 226 da Constituição Federal tutela apenas os três tipos de entidades familiares explicitamente previstos, se se fizer uma adequada interpretação do texto constitucional perceber-se-á que tal afirmativa não é a mais acertada. Assevera primeiramente Lôbo (2002) que o caput do artigo 226, ao dizer tão-somente que a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado, já faz revolucionária mudança no conceito de família. Diz o civilista que as constituições brasileiras anteriores diziam que “[...] a família, constituída pelo casamento, tinha a proteção do Estado”. Ao suprimir a locução constituída pelo casamento, sem substituí-la por qualquer outra, o legislador de 1988 pôs sob a tutela constitucional qualquer tipo de família. Conclui o ilustre civilista, que “[...] o caput do artigo 226 é cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade” (LÔBO, 2002, p. 95). Diz, por fim, que “[...] a regra do § 4º do artigo 226 integra-se à cláusula geral de inclusão[...]”, já que o dispositivo legal, ao dizer que a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, entende-se, também, como entidade familiar, esse termo também significa a possibilidade de inclusão, sendo que o termo significaria inclusão da comunidade monoparental sem a exclusão de outras modalidades de família. Esse brilhante e genial trabalho de interpretação das normas constitucionais feito por Lôbo representou a carta de alforria para aqueles que pretendem defender a inclusão dos relacionamentos afetivos estáveis homossexuais no rol das entidades familiares. Isso porque, se for adotado tal entendimento, o de que a enumeração das modalidades de família feita pela Constituição Federal é apenas e tão-somente exemplificativa, não mais serão necessários os argumentos complexos, como o de afirmar que a norma do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal é inconstitucional ou o de que as uniões estáveis podem ser formadas por pares hetero ou homossexuais em razão dos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade de todos perante a lei. Basta tão-somente entender que as uniões estáveis homoafetivas são sim um tipo de família, não previsto expressamente na Constituição Federal, que não precisam ser, necessariamente, iguais às uniões estáveis entre homem e mulher, já regulamentadas no nosso Ordenamento Jurídico. E, assim sendo, havendo previsão 225 De Jure 9 prova 2.indd S1:225 11/3/2008 16:21:48 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS constitucional, ainda que implícita, dessa modalidade de família que merece a proteção estatal, a ausência de lei formal infraconstitucional não poderá representar óbice para o julgador deixar de atribuir efeitos, agora de direito de família e não mais tão-somente de direito obrigacional, aos conviventes homossexuais, podendo, até mesmo, valer-se da aplicação da analogia para decidir hipóteses concretas em que haja lacuna na legislação. 2. A Relação homoafetiva como entidade familiar Hoje, fazendo uma análise literal da Constituição Federal de 1988, pode-se dizer que se enquadram no conceito de família apenas aquelas hipóteses expressamente previstas no artigo 226, ou seja, são entidades familiares apenas aquelas formadas pelo casamento, pela união estável entre homem e mulher e pela família monoparental entendida como aquela formada por um dos ascendentes com seus descendentes. Ficaram fora da enumeração constitucional outros tipos de famílias sociais, tais como as famílias concubinárias, as famílias formadas por pais e filhos adotivos de fato, as famílias formadas por irmãos que vivem juntos sem a presença de pai ou mãe e, enfim, as famílias formadas por pessoas do mesmo sexo, com ou sem filhos. E aí vem o seguinte questionamento: a enumeração das entidades familiares feita pela Constituição Federal no seu artigo 226 é taxativa? Conforme discutido no item supra defende-se que não. A enumeração feita pela Constituição Federal das modalidades de família é apenas exemplificativa, existindo atualmente diversas representações sociais e antropológicas de famílias que não foram enumeradas pelo legislador, mas que não podem ficar fora do manto protetor do Direito de Família. Os relacionamentos afetivos entre pessoas do mesmo sexo é uma dessas modalidades de família não previstas de forma expressa pela Constituição Federal, mas que deve ser considerada como tal diante de toda a lógica do nosso ordenamento jurídico. O mesmo caminho legal e jurisprudencial trilhado pelas uniões livres heterossexuais, que levou ao reconhecimento constitucional da união estável como entidade familiar, está hoje sendo percorrido pelos casais formados por pessoas do mesmo sexo que mantêm relações afetivas estáveis e com as características fundamentais de uma família. Inicialmente, assim como os casais de sexos opostos que mantinham relacionamentos não oficiais, as relações homoeróticas começaram a ser caracterizadas como sociedades de fato. A mesma Súmula nº 380 do Supremo Tribunal Federal que preceitua que “[...] comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”, e as regras do artigo 981 do Código Civil que disciplinam, no direito das obrigações, as sociedades de fato prevendo que “[...] celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha entre si, dos resultados”, estão sendo aplicadas 226 De Jure 9 prova 2.indd S1:226 11/3/2008 16:21:48 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS pelos nossos Tribunais nas hipóteses de dissolução de relações homossexuais, seja pela simples separação do casal, ou no caso de morte de um dos parceiros. Com a existência cada vez mais crescente dos relacionamentos homoafetivos e com o início do ingresso na aceitação social e jurídica daqueles que têm orientação sexual diversa daquela considerada como padrão na sociedade, os aplicadores do direito sentiram a necessidade de reconhecer algumas conseqüências jurídicas advindas dessas relações como o direito de herança e de percepção de benefício previdenciário como dependente do segurado, por exemplo. Daí, novamente veio à tona a teoria da sociedade de fato do direito das obrigações, em que “[...] é reconhecida a sociedade de fato quando pessoas mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos para lograr fim comum”. Hoje, apesar de alguns avanços, principalmente do Tribunal de Justiça e dos juízes do Rio Grande do Sul, essa é ainda a orientação predominante ao se falar em conseqüências jurídicas de relações homossexuais. O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, na ocasião em que foi instado a se manifestar sobre o tema, entendeu aplicável a teoria da sociedade de fato do direito das obrigações a uma hipótese de rompimento de uma relação homossexual, negando, no entanto, qualquer inclusão de tal fenômeno no âmbito do direito de família. EMENTA: SOCIEDADE DE FATO. Homossexuais. Partilha do bem comum. O parceiro tem o direito de receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhecida a existência de sociedade de fato com os requisitos previstos no art. 1363 do CCivil. RESPONSABILIDADE CIVIL. Dano Moral. Assistência do doente com AIDS. Improcedência da pretensão de receber do pai do parceiro que morreu com Aids a indenização pelo dano moral de ter suportado sozinho os encargos que resultaram da doença. Dano que resultou da opção de vida assumida pelo autor e não da omissão do parente, faltando o nexo causalidade. Art. 159 do CCivil. Ação possessória julgada improcedente. Demais questões prejudicadas. Recurso conhecido em parte e provido (BRASIL, 1998). Da mesma forma que as uniões livres, no passado, hoje as relações entre homossexuais também vêm recebendo a tutela específica de algumas normas infraconstitucionais. O INSS, através de sua Instrução Normativa nº 50, de 8 de maio de 2001, já possibilitou ao parceiro ou parceira homossexual, pleitear junto à Previdência Social pensão por morte ou auxílio reclusão do companheiro, ou companheira, segurado. Assim, observa-se que as uniões homossexuais vêm trilhando o mesmo caminho que foi percorrido pelas uniões livres heterossexuais em um passado não muito remoto. 227 De Jure 9 prova 2.indd S1:227 11/3/2008 16:21:48 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Se hoje ainda existem discussões favoráveis e contrárias à inserção do relacionamento homoerótico no âmbito do direito de família, certamente amanhã essas discussões serão, assim como na união estável heterossexual, tão-somente histórias. Alguns juristas, como Almeida Júnior (2002, p. 3), hodiernamente, entendem que as uniões de pessoas de sexos semelhantes, mesmo que reúnam as características da afetividade, respeito mútuo, comunhão de vida e interesses, publicidade e estabilidade, não podem ser consideradas entidades familiares ante a disposição do artigo 226 da Constituição Federal, que prevê que as entidades familiares são, além da família monoparental, aquelas formadas por um homem e uma mulher, através do casamento ou da união estável: Em face da atual Constituição Federal, entendemos, sem embargo das robustas opiniões em contrário, que os avanços legislativos jamais poderão dar às uniões homossexuais condição de entidade familiar. [...] somente as uniões heterossexuais gozam de proteção constitucional, a nível de entidade familiar. Assim, somente com uma emenda constitucional apropriada, é que uma união homossexual poderia ser guindada à nível de entidade familiar. Nunca, porém, mediante simples Lei Ordinária. Thomaz (2003, p. 98), em interessante artigo sobre o tema, apesar de concordar e encontrar fundamentos para a inserção dos relacionamentos homossexuais no rol das entidades familiares entende, em uma visão equivocada a nosso sentir, que a simples ausência de previsão constitucional acerca dos relacionamentos homossexuais ou a previsão do § 3º do artigo 226 da CF de que as uniões estáveis devem se dar apenas entre um homem e uma mulher, inviabiliza o entendimento de que as uniões homoafetivas podem ser consideradas como entidades familiares. Não se nega a existência de tais uniões, o que se nega é a formação de entidade familiar. A relação entre homossexuais existe e surte efeitos no mundo jurídico, não efeitos de Direito de Família, mas de Direito Obrigacional. Nada obsta que no futuro venha o legislador a admitir essa união como entidade familiar, mormente se houver o respeito mútuo, a fidelidade, a convivência pública, contínua e duradoura, e a conjunção de esforços ou recursos para lograr fins comuns. Quais seriam esses fins comuns? Seria a formação de uma sociedade, não mais de fato, mas sim familiar. Destarte, passariam a ser uma outra espécie de família de fato. Ao lado da família concubinária, haveria a família homossexual. Se se permite a união estável entre o homem e a mulher e se ela é reconhecida como entidade familiar, deve-se considerar como entidade familiar a união ou parceria homossexual. 228 De Jure 9 prova 2.indd S1:228 11/3/2008 16:21:48 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Rainer Czajkowsky, citado por Brito (2000, p. 27), asseverou: Por mais estável que seja, a união sexual entre pessoas do mesmo sexo – que morem juntas ou não – jamais se caracteriza como uma entidade familiar. A não configuração de família, nestes casos, é resultante não de uma análise sobre a realização afetiva e psicológica dos parceiros, mas sim da constatação de que duas pessoas do mesmo sexo não formam um núcleo de procriação humana e de educação de futuros cidadãos. A união entre um homem e uma mulher pode ser, pelo menos potencialmente, uma família, porque o homem assume o papel de pai e a mulher o de mãe, em face dos filhos. Parceiros do mesmo sexo, dois homens ou duas mulheres, jamais oferecem esta conjugação de pai e mãe, em toda a complexidade psicológica que tais papéis distintos envolvem. [...] Menos por força de a Constituição expressamente dizê-lo; mais porque a concepção antropológica de família supõe as figuras de pai e de mãe, às quais se fez referência linhas acima, o que as uniões homossexuais não conseguem imitar. Conforme examinado anteriormente, a enumeração feita pela Constituição Federal, no seu artigo 226, não é taxativa. A família, conforme dispõe a Carta Magna, se forma pelo casamento, pela união estável heterossexual e pelo ascendente com seus descendentes. No entanto, essas não são e nem poderiam ser as únicas formas de família tuteladas pelo Estado. Se dois homens ou duas mulheres vivem juntos de forma estável, têm amor um pelo outro, mantêm relacionamento sexual, dividem receitas, despesas, alegrias, tristezas, ajudam-se mutuamente, têm um projeto de vida comum que pretende garantir a cada um deles a felicidade e a realização pessoal, não se pode dizer que essas pessoas não formam uma família pelo simples fato de serem do mesmo sexo. O conceito atual de família está alargado. Família não é mais tão-somente um homem e uma mulher unidos pelo casamento com a sua prole. Hoje família é muito mais que isso. Tradicionalmente, a família sempre foi entendida como a união de um homem e uma mulher, inicialmente sacralizada apenas pelo casamento religioso e, mais tarde, pelo casamento legalizado civilmente perante os homens. A família formada pelo casamento tinha como objetivos legalizar as relações sexuais existentes entre esse homem e essa mulher; propiciar a reprodução e perpetuar a transmissão do patrimônio familiar. Essa família tradicional, refletida no Código Civil de 1916, era patriarcal, tendo no homem o chefe de todos os seus integrantes. Tinha o caráter monogâmico, permitia a certeza do homem quanto à paternidade dos filhos nascidos de sua esposa e tinha, concomitantemente, a responsabilidade integral pelo sustento do lar. Era necessariamente heterossexual e machista, já que era sempre o homem que tinha 229 De Jure 9 prova 2.indd S1:229 11/3/2008 16:21:49 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS os poderes de comando da família e que decidia os destinos da esposa e dos filhos. Por fim, era nítido o seu caráter patrimonialista sendo que diversos casamentos eram realizados entre pessoas previamente escolhidas pelos seus pais, para que a herança familiar pudesse ser incrementada, preservada dentro de um determinado núcleo familiar e transmitida de forma proveitosa entre os descendentes legítimos daquela família. Hoje, a família já é vista de uma forma bem diversa. Veio a revolução francesa, que pregou a liberdade, igualdade e fraternidade. A revolução industrial, por sua vez, promoveu a divisão do trabalho entre os sexos e acabou por inserir a mulher, gradativamente, no mercado de trabalho. Os movimentos feministas tentaram reduzir a condição de submissão na qual as mulheres viviam, notadamente quando se encontravam como membro de uma família dominada pelo marido. Diante dessas e de outras diversas realidades sociais, os papéis do homem e da mulher na sociedade foram mudando gradativamente, sendo que essa mudança refletiu diretamente no conceito de família. O Estatuto da Mulher Casada, de 1962, em razão das constantes lutas feministas, veio para melhorar as condições da mulher dentro do casamento. Note-se que, antes de tal diploma legal, a mulher, ao se casar, se já fosse civilmente capaz, passava a ser relativamente capaz, ou seja, dava um passo para trás na sua liberdade e autonomia para ceder espaço ao homem que, a partir de então, era a pessoa que deveria tomar as decisões mais relevantes da vida da família e, até mesmo, da vida da mulher enquanto membro daquela família de caráter patriarcal. A Lei do Divórcio, de 1977, possibilitou a dissolubilidade do casamento e começou a permitir a mudança daquele conceito tradicional de família. A partir de tal diploma legal, diversas situações de fato desfavoráveis legalmente foram legalizadas possibilitando o desfazimento de famílias que não se adaptaram às características tradicionais e possibilitando a regularização de famílias que já existiam de fato, mas de forma legalmente clandestina. A Constituição de 1988 trouxe a grande revolução nas relações familiares. A partir de então, o casamento deixou de ser a única forma legítima de constituição de uma família. Os integrantes de uma família, homem e mulher, passaram a ter direitos e deveres iguais, rompendo com o antigo caráter patriarcal da velha família de origem romana. Os filhos, fossem eles advindos de qualquer tipo de relacionamento dos seus pais, passaram a ter os mesmos direitos. Assim, a partir de então, a família começou a ser entendida com o espaço do amor, do respeito, da ajuda mútua, da comunhão de interesses, da existência de planos comuns para o futuro, etc. Diz ainda a moderna doutrina que a família hoje deve ter as características da estabilidade, ostensibilidade e afetividade. Dessa forma, a família atual pode ser entendida como o agrupamento de duas ou mais pessoas, em caráter estável e ostensivo, que tem como motivo principal da sua manutenção a existência 230 De Jure 9 prova 2.indd S1:230 11/3/2008 16:21:49 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS do amor e do afeto entre os seus membros, sendo que tais membros dessa família se ajudam mutuamente nas dificuldades cotidianas da vida, respeitam-se como indivíduos dignos e únicos e têm comunhão de interesses e planos comuns para o futuro. Dentro desse nosso conceito amplo de família, enquadra-se, sem qualquer sombra de dúvidas, a família formada pelo casamento, aquela formada pela união estável entre um homem e uma mulher, a comunidade formada por pai ou mãe e seus descendentes, o grupo integrado por um conjunto de irmãos que vivem juntos com todas as características de um ente familiar, a família formada por pessoas do mesmo sexo que tenham como propósitos algo mais que apenas sexo, o agrupamento familiar composto por avós viúvos, pais, filhos biológicos, adotivos e/ou de criação, dentre outros. O que importa, para a definição do que seja a família merecedora da proteção estatal, é que se esteja dentro de um grupo de duas ou mais pessoas unidas pelo afeto, respeito, ajuda mútua, e que viva em relativa estabilidade, de forma pública, apresentando-se, para a sociedade, como um grupo familiar. Hoje, diversos civilistas modernos como Barros (2001), Dias e Pereira (2003) perceberam toda a revolução da família trazida pela Constituição Federal de 1988 e também formularam seus novos conceitos de família. Barros (2001, p. 11) assim define família: O que define família é o afeto que conjuga intimamente, enquanto ele existe, da origem ao fim de sua existência, para uma vida em comum. É o afeto que define a entidade familiar, mas não um afeto qualquer. Se fosse um afeto qualquer, uma simples amizade seria família, ainda que sem convívio. O conceito de família seria estendido com inadmissível elasticidade. O que identifica a família é um afeto especial. Com ele se constitui a diferença específica que define a entidade familiar. É o afeto entre duas ou mais pessoas que se afeiçoam pelo convívio em virtude de uma origem comum ou em razão de um destino comum, que conjuga suas vidas intimamente, tornando-as cônjuges quanto aos meios e aos fins de sua afeição, até mesmo gerando efeitos patrimoniais, seja patrimônio moral, seja patrimônio econômico. Este é o afeto que define a família. O afeto conjugal. Dias e Pereira (2003, p. 9), prefaciando obra sobre direito de família, disseram que: A família atual é um mosaico composto de forma harmoniosa, a retratar a complexidade da realidade social. Não mais se concebe a família como estrutura única, engessada pelos sagrados laços do matrimônio. Também ela não mais se caracteriza pela presença de um homem, uma mulher e sua prole. Nem sequer necessita 231 De Jure 9 prova 2.indd S1:231 11/3/2008 16:21:49 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS haver parentesco em linha reta entre seus integrantes, ou necessita haver parentesco em linha reta entre os seus integrantes, ou diversidade de sexo entre seus partícipes, para caracterizar uma entidade familiar. O traço principal que a identifica é o vínculo de afetividade. Onde houver envolvimento de vidas com mútuo comprometimento formando uma estruturação psíquica, isto é, onde houver afeto é imperioso reconhecer que aí se está no âmbito do Direito de Família. Concluindo, após a análise de todos os conceitos vistos até então acerca do que seria a nova família estruturada a partir da Constituição de 1988 e do Novo Código Civil, repete-se que a família hoje deve ser entendida como o agrupamento de duas ou mais pessoas, em caráter estável e ostensivo, que tem como motivo principal da sua manutenção a existência do amor e do afeto entre os seus membros, sendo que tais integrantes dessa família se ajudam mutuamente nas dificuldades cotidianas, respeitam-se como indivíduos dignos e únicos, têm comunhão de interesses e planos comuns para o futuro. Assim, obviamente, se duas pessoas de mesmo sexo vivem relação afetiva que reúne esses elementos primordiais de afeto, respeito mútuo, assistência mútua, projetos de vida comuns e comunhão de interesses, essa relação não pode ser afastada do conceito e do direito de família pelo simples fato de seus integrantes serem do mesmo sexo. 3 Relacionamentos afetivos homossexuais e união estável heterossexual: espécies de um mesmo gênero? A grande discussão atual acerca das uniões entre pessoas do mesmo sexo envolve o seguinte questionamento: são as relações estáveis entre homossexuais uma modalidade de união estável ou não passam tão-somente de sociedades de fato? Doutrinadores nacionais como Azevedo (2002) e Thomaz (2003) vêm enfrentando o tema, sendo que além dos dois posicionamentos acima mencionados há, ainda, o entendimento, ao qual me filio, de que a relação estável entre duas pessoas do mesmo sexo não é sociedade de fato nem união estável, mas sim uma entidade familiar com características próprias não expressamente prevista na Constituição Federal. Azevedo (2002, p. 470), ao estudar o tema, disse que “[...] ainda que se cogite de mera convivência, no plano fático, entre pessoas do mesmo sexo, não se configura a união estável”. Para o professor paulista, diante da regra expressa do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988 o posicionamento de só se reconhecer como união estável o relacionamento entre um homem e uma mulher é o mais acertado. O relacionamento estável entre homossexuais, no entendimento de Azevedo poderia, tão-somente, ser considerado como uma sociedade de fato, isso se ficasse comprovada a aquisição de bens pelo 232 De Jure 9 prova 2.indd S1:232 11/3/2008 16:21:49 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS esforço comum dos sócios nos termos do artigo 1.363 do Código Civil. Thomaz (2003, p. 95), da mesma forma que Azevedo, rechaça a possibilidade de reconhecer a união homossexual como um tipo de união estável. Diz o professor paulista que “[...] juridicamente, também impossível a união estável entre homossexuais”. Consigna-se que, neste momento, que a união entre homossexuais existe, só que o Direito de Família dispensa o seu regramento e o seu tratamento. O Direito de Família tutela os direitos, obrigações, relações pessoais, econômicas e patrimoniais, a relação entre pais e filhos, o vínculo de parentesco e a dissolução da família, mas das famílias matrimonial, monoparental e concubinária. A união entre homossexuais, juridicamente, não constitui nem tem o objetivo de constituir família, porque não pode existir pelo casamento, nem pela união estável (THOMAZ, 2003, p. 95). O posicionamento defendido por Thomaz (2003, p. 95) é o de que as relações homossexuais são tuteladas pelo direito das obrigações, não estando nos laços do direito de família. “Se houver vida em comum, laços afetivos e divisão de despesas, não há como se negar efeitos jurídicos à união homossexual. Presentes esses elementos, pode-se configurar uma sociedade de fato, independentemente de casamento ou união estável”. Entendimento diverso é adotado por juristas como Dias, Fachin, Giorgis, dentre outros. Giorgis (apud DIAS, 2003, p. 56), em voto proferido no julgamento de Embargos Infringentes, defendeu a tese de que as uniões homossexuais afetivas são uniões estáveis. “Mesmo sem lei que as regule, as uniões homoeróticas são reconhecidas pela Constituição como verdadeiras entidades familiares, para alguns como entidades distintas, em vista de sua natureza e para outros, onde ainda me filio, como verdadeiras uniões estáveis”. Dias (2001, p. 96), comungando do entendimento do colega Giorgis, defende que: Conferida juridicidade à união estável, a limitação, quer constitucional, quer legal, não tem o condão de deixar à margem da proteção do Estado relacionamentos afetivos outros que geram conseqüências no âmbito do Direito. Podem e devem ser aplicadas, por analogia, as leis reguladoras do relacionamento entre um homem e uma mulher. As relações homossexuais constituem uma unidade familiar que em nada se diferencia da união estável. 233 De Jure 9 prova 2.indd S1:233 11/3/2008 16:21:49 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O aspecto mais relevante do ponto de vista prático em se considerar a união entre pessoas do mesmo sexo como sociedade de fato ou união estável reside nas conseqüências jurídicas, notadamente patrimoniais, daí advindas. Se se considerar que a união entre homossexuais caracteriza uma sociedade de fato, estão se retirando essas relações do âmbito do direito de família. Nesse caso, a sociedade entre os dois parceiros, animada pela affectio societatis, rege-se pelas regras do artigo 1.363 do Código Civil, sendo indispensável para a sua caracterização a comprovação da contribuição de cada um dos parceiros para a formação ou preservação do patrimônio. Se as relações afetivas estáveis entre duas pessoas do mesmo sexo forem tidas como uma sociedade de fato, não há de se falar em direitos sucessórios, direito real de habitação ou usufruto aos integrantes dessa sociedade. A única conseqüência jurídica que poderá ser extraída do relacionamento é a partilha de bens que será feita em proporção ao esforço empregado por cada um dos parceiros na aquisição do patrimônio. Por outro lado, caso se entenda que esses relacionamentos configuram uma união estável, diversas serão as conseqüências jurídicas. A união estável é um tipo de entidade familiar prevista expressamente na Constituição Federal e recebe, como modalidade de família que é, especial proteção do Estado. Por ter natureza familiar, a união estável rege-se pelos princípios e normas do direito de família, abrindo mão de qualquer prova de contribuição dos parceiros para a formação do patrimônio, que é comum a ambos em razão da simples comprovação da relação, sendo presumida a contribuição a teor do art. 5º, da Lei n.º 9.278/96. Ademais, há previsão de que, ao companheiro, integrante de uma união estável, é conferido direito sucessório, nos termos do art. 2º, da Lei n.º 8.971/94 (DIAS, 2003, p. 80). A união estável, de modo diverso da sociedade de fato, é inspirada pela affectio conjugalis. Se o relacionamento homoerótico é visto como uma união estável, aplicase a ele a legislação do companheirismo, sendo conferidos aos parceiros homoafetivos direitos hereditários, direito real de habitação e usufruto. Assim, verifica-se que a preponderante razão da atual tentativa dos juristas contemporâneos de enquadrar as relações afetivas homossexuais como um tipo de união estável é a necessidade de se assegurar aos conviventes do mesmo sexo direitos de cunho familiar que não são garantidos a esses parceiros caso a relação deles seja entendida como mera sociedade de fato regida pelo direito das obrigações. 234 De Jure 9 prova 2.indd S1:234 11/3/2008 16:21:50 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Apesar de acreditar ser louvável o esforço de juristas como Dias, Giorgis e outros, que tentam ultrapassar o preconceito hoje existente e garantir a dignidade daqueles que têm orientação sexual diversa da tradicionalmente considerada padrão pela sociedade, não concordamos em que o relacionamento afetivo entre os homossexuais seja uma união estável. O relacionamento homoafetivo, ao nosso sentir, não é uma união estável conforme definida pela Constituição Federal e leis ordinárias, mas, mesmo diante disso, defendemos que seguramente é uma entidade familiar, como as demais previstas na Constituição Federal, sem maior ou menor valor ou importância. A união estável heterossexual prevista na Constituição Federal e disciplinada por leis ordinárias é, realmente, somente aquela existente entre um homem e uma mulher, conforme restrição do § 3º do artigo 226 da Magna Carta, em que esteja presente o caráter de estabilidade, publicidade e intenção de constituir família. Isso não implica, no entanto, que a união homossexual deva ser alijada do conceito de entidade familiar. É aí que reside toda a problemática da questão. Para garantir àqueles que mantêm relacionamento afetivo e sexual com pessoas do mesmo sexo as garantias e efeitos jurídicos de uma entidade familiar não há necessidade de dizer que o relacionamento entre eles é uma união estável. A união estável heterossexual prevista constitucionalmente e disciplinada por leis infraconstitucionais tem suas características próprias. Os casais que viviam um relacionamento não selado pela oficialidade trilharam todo um caminho legal e jurisprudencial para ver assegurado, constitucionalmente, o seu reconhecimento como uma entidade familiar tão importante como aquela formada pelo casamento. As uniões homossexuais não se equivalem àquelas heterossexuais. Podem, muitas vezes, duas pessoas do mesmo sexo viverem uma relação afetiva estável, pública, com o intuito de constituir família e de construir toda uma história de vida comum. A relação pode, às vezes, em muito se assemelhar à união estável heterossexual sendo a única diferença aparente o fato dos conviventes serem, em um dos relacionamentos, pessoas de sexos diversos e, em outros, do mesmo sexo. No entanto, para garantir aos relacionamentos homossexuais o necessário e devido reconhecimento como entidade familiar, com todas as conseqüências jurídicas que lhes é peculiar, não há necessidade de dizer que os relacionamentos afetivos homossexuais são um tipo de união estável e que a restrição de diversidade de sexos constante do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal é dispositivo que afronta os princípios constitucionais maiores em razão de vedar que pessoas do mesmo sexo possam viver em união estável juridicamente reconhecida. A enumeração constitucional do artigo 226, conforme entendimento já anteriormente explicitado, não é, ao nosso juízo, uma enumeração hermética, taxativa, mas tão-somente exemplificativa. Assim nada impede que se afirme que as uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo que preencham 235 De Jure 9 prova 2.indd S1:235 11/3/2008 16:21:50 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS as características de uma família (convivência duradoura, exclusiva, com o objetivo de dividir os bons e maus momentos da vida, de partilhar os mesmos objetivos e propósitos) seja uma entidade familiar, a exemplo daquela formada por um dos pais e seus descendentes (família monoparental), daquela formada pelo casamento e daquela formada pelos casais heterosexuais que vivem em união estável. Amanhã talvez se possa incluir nesse rol até mesmo as uniões oficializadas (como uma parceria civil registrada, por exemplo) entre pessoas do mesmo sexo como uma modalidade de família que mais se assemelhará ao casamento do que à união estável heterossexual em razão da chancela oficial do Estado. Depois de ser afirmado que as uniões afetivas entre homossexuais, apesar de não estarem previstas de forma expressa na Constituição, são um tipo de entidade familiar, a garantia dos direitos desses conviventes do mesmo sexo e a proteção estatal podem ser obtidos mesmo diante da ausência de regramento legal específico. Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e pelo respeito, com o objetivo de construir um lar, tal vínculo, independentemente do sexo do casal, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei (DIAS, 2001, p. 92). Aí entra, então, a aplicação da analogia. “A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um regime normativo originariamente destinado a situação diversa de tais relações, qual seja, a comunidade familiar formada pela união estável entre um homem e uma mulher” (DIAS, 2003, p. 69). Ao juiz não é dada a faculdade de deixar de julgar os casos concretos que lhe são apresentados sob o argumento de inexistência de lei disciplinando a questão. Inexistindo lei que discipline determinada questão específica, deve o julgador buscar nos costumes, nos princípios gerais de direito e na analogia os subsídios para resolver o impasse levado ao Judiciário. A analogia consiste na aplicação do regramento legal concernente a uma hipótese semelhante ao caso não previsto em lei cuja solução se procura. “A analogia ocupa-se com uma lacuna do Direito Positivo, com hipótese não prevista em dispositivo nenhum, e resolve esta por meio de soluções estabelecidas para casos afins” (MAXIMILIANO, 1997, p. 215). Ao utilizar a analogia para solucionar o problema da existência de uma lacuna no Direito Positivo, como é o caso das relações homoafetivas, o julgador não cria direito novo, não se arvora das funções do legislador. O que ele faz, tão-somente, é descobrir o direito já existente, integrar o ordenamento jurídico positivo. 236 De Jure 9 prova 2.indd S1:236 11/3/2008 16:21:50 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O uso da analogia pressupõe: 1º) uma hipótese não prevista, senão se trataria apenas de interpretação extensiva; 2º) a relação contemplada no texto, embora diversa da que se examina, deve ser semelhante, ter com ela um elemento de identidade; 3º) este elemento não pode ser qualquer, e sim, essencial, fundamental, isto é, o fato jurídico que deu origem ao dispositivo. (MAXIMILIANO, 1997, p. 212). Diante disso, acredita-se ser equivocada a posição defendida por juristas que, após enfrentar a enorme dificuldade em contestar a constitucionalidade ou coerência da regra constitucional do §3º do artigo 226 que exige a diversidade de sexos para a configuração da união estável, dizem que o relacionamento afetivo homossexual é uma espécie do gênero união estável. Mais acertado talvez seria se afirmar que a união homoafetiva é um tipo de entidade familiar peculiar e que diante da ausência de regramento constitucional deve o julgador, para atribuir efeitos jurídicos a essas relações, valer-se da analogia e usar o regramento legal da união estável homossexual, ressalte-se entidade familiar semelhante, mas, distinta, para solucionar os conflitos advindos desse tipo de união. Acredita-se que, assim como a união informal entre homem e mulher, a relação afetiva estável entre homossexuais é uma entidade familiar em construção, sendo que a jurisprudência, ao fazer esse processo integrativo, irá possibilitar, talvez, que amanhã esse tipo de família esteja previsto de forma expressa na Constituição e devidamente regulamentado através de leis ordinárias específicas. Até lá, para que não se cometa a injustiça de não atribuir direitos a esses relacionamentos, ou de considerar como sociedade de fato uma sociedade de afeto3 deve o aplicador do Direito socorrer-se da analogia e aplicar, quando cabível, a legislação infraconstitucional da união estável aos relacionamentos homoeróticos de modo que seja efetivamente garantida a proteção estatal a esse tipo de entidade familiar. 4. Conclusão Após todo o estudo feito, questiona-se: são as relações afetivas homossexuais uma nova modalidade de família? Acredita-se que, apesar da inexistência de dispositivo expresso na Constituição Federal prevendo que os relacionamentos homossexuais são entidades familiares, ainda assim tais relações devem ser tidas como 1família se atenderem aos requisitos fundamentais dela, que são a ostensibilidade, a publicidade, a afetividade e o propósito de comunhão de vida. Se duas pessoas vivem juntas, com propósito de vida comum, dividindo alegrias, preocupações, tempos fáceis e difíceis, 1 Expressão utilizada pela Desembargadora Maria Helena Diniz nos diversos trabalhos publicados a respeito do tema. 237 De Jure 9 prova 2.indd S1:237 11/3/2008 16:21:50 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS rendimentos, despesas, amigos, enfim, dividindo a vida, esse relacionamento sem dúvida alguma deve ser tido como uma família. Não é correto, a nosso ver, limitar o conceito de família às três hipóteses previstas de forma expressa na Constituição. Uma correta interpretação da Carta Constitucional, o manejo e entendimento dos seus princípios norteadores não remetem a esse entendimento limitante. Existem muitos outros tipos de família diversos daqueles taxativamente previstos na Constituição Federal de 1988 e a relação afetiva estável entre homossexuais é um deles. Não há necessidade alguma, permissa venia, de dizer ser inconstitucional a norma que dispõe que a união estável prevista na Magna Carta somente pode se dar entre homem e mulher. Entende-se ser desnecessária a tentativa vã de muitos juristas e intérpretes da lei em buscar proteger os relacionamentos homossexuais, entendendo-os como sendo uma espécie do gênero união estável, gênero esse que englobaria a união estável homossexual e a heterossexual. Esse é, com o devido respeito pelos que entendem de forma diversa, o caminho mais árduo para se buscar a tutela dos relacionamentos homoeróticos. Para classificar as uniões homoafetivas como entidades familiares e garantir a essas uniões os direitos e deveres de um grupo familiar, não há qualquer necessidade de dizer serem elas uniões estáveis iguais às heterossexuais nos moldes da previsão constitucional. São esses dois agrupamentos familiares entidades distintas, com características diversas, assim como também são diferentes a união estável o casamento e as entidades monoparentais. Cada uma dessas uniões ou agrupamentos familiares tem suas características próprias, suas peculiaridades, e nem por isso umas são famílias mais ou menos importantes do que as outras. O que se deve ter em mente é que o conceito de família hoje está alargado. A família, atualmente, pode ser entendida como sendo aquele grupo de pessoas que se reúnem de forma relativamente permanente para prestarem auxílio e assistência mútua em razão de terem comunhão de interesses, afinidade sexual, laços afetivos ou de parentesco, objetivos de vida comuns, etc. Pode a família existir com todas essas características ou tão-somente com algumas delas. A entidade monoparental, a exemplo, entidade familiar expressamente prevista na Constituição, não tem como característica a existência de afinidade sexual entre os seus membros. No entanto, não deixam seus integrantes de perseguirem um objetivo comum, de se auxiliarem mutuamente, de terem comunhão de interesses e laços afetivos em razão da relação de parentesco. Um casal unido pelo matrimônio, mesmo sem filhos e mesmo que não mantenham relacionamento sexual não deixam de formar uma família. Diante disso, verifica-se que os relacionamentos homossexuais, ao menos diante do princípio constitucional maior da dignidade da pessoa humana, devem ser protegidos. Se eles reunirem as características básicas de uma família devem ser entendidos como tal, 238 De Jure 9 prova 2.indd S1:238 11/3/2008 16:21:50 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS mesmo sem a previsão expressa da Constituição. A Carta Constitucional, repita-se, apesar de haver previsto expressamente apenas três tipos de entidades familiares não pretendeu excluir os demais relacionamentos da proteção estatal nem tampouco quis dizer que só seria família aquele grupo de pessoa reunidos pelo casamento, união estável heterossexual ou os ascendentes e seus descendentes. Se assim o tivesse feito, tais normas estariam se contrapondo aos próprios princípios maiores da Constituição Federal. Assim, devem-se entender os relacionamentos afetivos homólogos como um novo tipo familiar. Uma família diferente da união estável heterossexual assim como essa é diferente daquela constituída pelo casamento. As pessoas são diferentes e, por isso, escolhem maneiras de viver e de buscar a felicidade e a realização pessoal de formas diferentes. Alguns preferem viver sob a tutela estatal e formam grupos familiares constituídos pelo casamento. Outros dispensam ou mesmo repugnam a ingerência estatal em suas vidas pessoais e afetivas, preferindo viver uniões livres com ou sem filhos. São os casais heterossexuais que vivem em união estável. Duas pessoas do mesmo sexo, dessa forma, podem também querer constituir uma família, a seu modo próprio. Hoje, isso somente é possível de forma livre, sem a chancela estatal. Amanhã, talvez, as famílias formadas por homossexuais poderão ser famílias formais, protegidas pela chancela estatal prévia. Dessa forma, a conclusão a que se chega é que as relações estáveis afetivas entre homossexuais são, a exemplo de tantas outras, um tipo de família. Uma família não prevista expressamente na Constituição Federal, diferente daquela formada pelo casamento, pela união estável heterossexual ou das famílias monoparentais, mas, nem por isso, entidades familiares de menor ou maior importância do que as outras. A proteção estatal a esses tipos de famílias deve existir desde já, pois, na hipótese contrária, não se estará dando efetividade aos princípios maiores da nossa Carta Constitucional, princípios fundantes do Estado democrático de direito. Até que o legislador pátrio cumpra o seu papel e inclua no laço jurídico os relacionamentos homoeróticos, deve o intérprete do Direito, para assegurar os direitos dos membros desse tipo peculiar de família, socorrer-se de normas aplicáveis a outros tipos de famílias hoje existentes. A utilização da analogia e a aplicação das regras que disciplinam as uniões estáveis heterossexuais às uniões homoafetivas deve acontecer, já que o julgador não pode deixar de decidir em razão da inexistência de lei disciplinando uma hipótese levada ao Judiciário. No entanto, o que se deve ter em mente é que as uniões afetivas homossexuais são famílias com características próprias, próximas, mas diversas das dos outros tipos de família. Cada tipo de família tem as suas características próprias. A formada pelo casamento não é de forma alguma igual à família formada por um ascendente e seus 239 De Jure 9 prova 2.indd S1:239 11/3/2008 16:21:51 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS descendentes nem tampouco igual à entidade familiar formada pela união estável heterossexual. Isso não quer dizer, porém, que uma família seja superior à outra, já que, o objetivo final de cada uma dessas famílias, seja ela de que modalidade for, é incontestavelmente o mesmo, ou seja, a busca da felicidade e realização pessoal de cada um dos seus integrantes. 5. Referências bibliográficas ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo de. As uniões homossexuais e o Direito atual. Juris Síntese, Porto Alegre, n. 35, maio/jun. 2002. AMARAL, Lídia M de Lima Amaral. A união estável entre estrangeiros à luz da legislação de imigração. Revista Consulex, Brasília, n. 149, p. 36-37, mar. 2003. AZEVEDO, Álvaro Villaça. 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DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ART. 668 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. FALTA DE PRONUNCIAMENTO DOS MINISTROS INTEGRANTES DA TURMA SOBRE MATÉRIA APRECIADA PELO MINISTRO RELATOR. DESNECESSIDADE. OMISSÃO. INOCORRÊNCIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. I - É desnecessária a manifestação expressa dos membros da Turma julgadora sobre todos os aspectos suscitados pela parte e apreciados pelo Ministro Relator. II - Embargos de declaração em que se pretende reapreciação do julgado. III - Embargos de declaração rejeitados. (STF, 1a Turma, RHC-ED 90759/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgamento 09/10/2007, DJ 26/10/2007). 2o Acórdão. EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL. FURTO DOS BENS PENHORADOS. DEPÓSITO NECESSÁRIO. SÚMULA 619 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. EFICÁCIA DA DECISÃO JUDICIAL. COAÇÃO ILEGAL. INOCORRÊNCIA. RECURSO IMPROVIDO. I - O depósito judicial é obrigação legal que estabelece relação de direito público entre o juízo da execução e o depositário, permitindo a prisão civil no caso de infidelidade. II - A via eleita necessita de comprovação pré-constituída acerca dos elementos de convicção que, de forma inequívoca, comprove as alegações apresentadas. III - A substituição de bens penhorados, nos termos do art. 668 do Código de Processo Civil, depende da comprovação da impossibilidade de prejuízo para o exeqüente, o que não ocorre no caso em análise. IV - Recurso improvido. (STF, 1a Turma, RHC 90759/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgamento 15/05/2007, DJ 22/06/2007). JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1o Acórdão. EMENTA: ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. TRANSPORTE PÚBLICO COLETIVO. PERMISSÃO. ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 165, 458, II, E 535, I E II, DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL. INAPLICABILIDADE. SÚMULA 39/STJ. DESEQUILÍBRIO ECONÔMICOFINANCEIRO. INDENIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. FALTA DE LICITAÇÃO. 243 De Jure 9 prova 2.indd S1:243 11/3/2008 16:21:51 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO. DISSÍDIO PRETORIANO. SÚMULA 83/STJ. PRECEDENTES. 1. Não viola os arts. 165, 458, II, e 535, I e II, do CPC, nem importa negativa de prestação jurisdicional, o acórdão que decide, motivadamente, todas as questões argüidas pela parte, julgando integralmente a lide. 2. A prescrição qüinqüenal regulada pelo Decreto 20.910/32 e pelo Decreto-Lei 4.597/42 não se aplica às ações indenizatórias ajuizadas em face da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S/A (BHTRANS), por se tratar de sociedade de economia mista, sob a forma de sociedade anônima, dotada de personalidade jurídica de direito privado (Lei Municipal 5.953/91). Aplicação da Súmula 39/STJ. 3. Não é devida indenização a permissionários de serviço público de transporte coletivo de passageiros por prejuízos decorrentes de tarifas deficitárias, tendo em vista a inexistência de licitação e o atendimento ao princípio da supremacia do interesse público. 4. “Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida” (Súmula 83/STJ). 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido, apenas para se afastar a prescrição qüinqüenal da pretensão condenatória. (STJ, RESP 839111/MG, 1a Turma, Rel. Min. Denise Arruda, Julgamento 04/09/2007, DJ 11/10/2007, p. 301). 2o Acórdão. EMENTA: DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ERRO MÉDICO. OPERAÇÃO GINECOLÓGICA. MORTE DA PACIENTE. VERIFICAÇÃO DE CONDUTA CULPOSA DO MÉDICO-CIRURGIÃO. NECESSIDADE DE REEXAME DE PROVA. SUMÚLA 7/STJ. DANOS MORAIS. CRITÉRIOS PARA FIXAÇÃO. CONTROLE PELO STJ. I – Dos elementos trazidos aos autos, concluiu o acórdão recorrido pela responsabilidade exclusiva do anestesista, que liberou, precocemente, a vítima para o quarto, antes de sua total recuperação, vindo ela a sofrer parada cárdio-respiratória no corredor do hospital, fato que a levou a óbito, após passar três anos em coma. A pretensão de responsabilizar, solidariamente, o médico cirurgião pelo ocorrido importa, necessariamente, em reexame do acervo fático-probatório da causa, o que é vedado em âmbito de especial, a teor do enunciado 7 da Súmula desta Corte. II – O arbitramento do valor indenizatório por dano moral sujeita-se o controle do Superior Tribunal de Justiça, podendo ser majorado quando se mostrar incapaz de punir adequadamente o autor do ato ilícito e de indenizar satisfatoriamente os prejuízos extrapatrimoniais sofridos. Recurso especial provido, em parte. (STJ, RESP 880349/MG, 3a Turma, Rel. Min. Castro Filho, Julgamento 26/06/2007, DJ 24/09/2007, p. 297). 244 De Jure 9 prova 2.indd S1:244 11/3/2008 16:21:51 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS 1o Acórdão. EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA - INTERESSE INDIVIDUAL INDISPONÍVEL DE UM ÚNICO MENOR - MINISTÉRIO PÚBLICO - ILEGITIMIDADE ATIVA - PRECEDENTES DO STJ. - Os “”interesses individuais”” a serem defendidos pelo MINISTÉRIO PÚBLICO englobam apenas a categoria dos direitos individuais homogêneos, entendidos como tais, aqueles, cuja titularidade pertença a variados indivíduos, ajustando-se à noção de DIREITO coletivo em sua acepção ampla. - A pretensão de que seja reconhecida a legitimidade do Parquet para representar uma pessoa individualizada, em Ação CIVIL Pública, implica em supressão do requisito da homogeneidade do DIREITO a ser defendido. V.V.P. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. TUTELA DE INTERESSE INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DE MÁXIMA PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE. REQUISITOS LEGAIS PARA DEFERIMENTO DA LIMINAR. PREVALÊNCIA DO DIREITO À VIDA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA SOBRE AS NORMAS QUE REGEM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. A interpretação harmônica dos artigos 227 e 129, inciso IX, ambos da Constituição da República e do artigo 201, inciso V, do Estatuto da Criança e Adolescente, autoriza a conclusão de que o MINISTÉRIO PÚBLICO possui legitimidade para defender interesse individual indisponível de criança e adolescente, via ação CIVIL pública. Entender o contrário significa fragilizar a efetivação dos direitos fundamentais e dificultar a defesa em juízo de crianças e adolescentes que tenham individualmente seus direitos fundamentais ameaçados ou lesados, afastando, pois, a essência protetiva do artigo 227 da Constituição da República. A tutela individual dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, por envolver bens jurídicos como, dignidade, respeito, saúde, vida, lazer, alimentação, cultura, profissionalização, liberdade, educação e convivência familiar e comunitária, é sempre considerada como DIREITO socialmente relevante, estando permanentemente sujeita à proteção pelo MINISTÉRIO PÚBLICO. O traço marcante desses direitos fundamentais, que concretizam o princípio constitucional da proteção integral à criança e ao adolescente, é o de ser considerado como indisponível, seja no plano individual ou transindividual. Nenhuma interpretação jurídica ou lei hierarquicamente inferior pode trazer restrições, de modo a negar efetividade jurídica a direitos afetos às crianças e adolescentes, garantidos constitucionalmente. O julgador deve observar as normas que regem a Administração Pública, mas não a ponto de impedir a concretização de direitos fundamentais que digam respeito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana, sob pena de privilegiar bem juridicamente inferior a outros. A assertiva de que há formalidades que se opõem ao pedido de concessão de liminares se afigura desarrazoada e desproprocional, ao se 245 De Jure 9 prova 2.indd S1:245 11/3/2008 16:21:52 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS constatar que ela é suficientemente hábil a atingir a vida, a saúde e a dignidade dos munícipes de Pará de Minas. Há um interesse PÚBLICO maior na defesa intransigente à vida do que na obediência formal às regras que regem a gestão da Administração Pública. Sumula: DERAM PROVIMENTO PARCIAL, VENCIDA, EM PARTE, A RELATORA. (TJMG, Processo 1.0471.05.040104-4/001, Relatora Maria Elza, Julgamento 02/06/2007, Publicação 24/06/2007). 2o Acórdão. EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. MINISTÉRIO PÚBLICO. RESPONSABILIZAÇÃO DA ADMINSITRAÇÃO PÚBLICA. OMISSÃO NO CUMPRIMENTO DE DEVERES LEGAIS. DANOS DECORRENTES DE INUNDAÇÃO. DIREITO À REPARAÇÃO. O MINISTÉRIO PÚBLICO possui legitimidade para propositura de ação CIVIL pública que tutele os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, notadamente aqueles correlacionados com a prestação de serviços públicos, quando a lesão a tais interesses, visualizada em sua dimensão coletiva, compromete interesses sociais relevantes. Precedente: STJ 417.804 - PR e 610.235 - DF. A responsabilização solidária do Município de Ouro Preto e do DER/MG deve ser mantida, pois foram omissos no cumprimento dos deveres legais correlacionados com a prestação dos serviços públicos a que foram atribuídos. Caracterizada a responsabilização, surge o DIREITO à reparação daqueles que sofreram prejuízos. Eventual dificuldade na apuração do valor dos prejuízos sofridos não impede o DIREITO à reparação, sob pena de mácula aos princípios da reparação integral e ao enriquecimento ilícito. Por fim, o único reparo a ser feito na sentença é em relação à condenação em honorários favoráveis ao MINISTÉRIO PÚBLICO, o que não é cabível em sede de ação CIVIL pública. Se os honorários de sucumbência têm por finalidade remunerar o trabalho do advogado e se eles pertencem, por destinação legal, ao profissional, não podem ser auferidos pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, seja por vedação constitucional art. 128, § 5º, II, letra a, seja por simetria, seja porque a atribuição de recolhimento aos cofres estatais feriria a sua destinação. (Precedente do STJ: REsp 493.823 - DF). Sumula: REFORMARAM PARCIALMENTE A SENTENÇA, NO REEXAME NECESSÁRIO, PREJUDICADO O RECURSO VOLUNTÁRIO. (TJMG, Processo 1.0461.97.000382-2/001, Relatora Maria Elza, Julgamento 31/05/2007, Publicação 14/06/2007). 3o Acórdão. EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO. APELAÇÃO CIVEL. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. MINISTÉRIO PÚBLICO. INTERESSE DE MENOR. MUNICÍPIO. COMPETÊNCIA. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. MEDICAMENTO. ESSENCIAL. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DE ASSISTÊNCIA CONSTITUCIONALMENTE ATRIBUÍDO AO PODER PÚBLICO. CONFIRMAR A SENTENÇA. 1. O 246 De Jure 9 prova 2.indd S1:246 11/3/2008 16:21:52 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS MINISTÉRIO PÚBLICO tem legitimidade para interpor ação CIVIL pública em favor de interesse individual de menor, por força do que dispõem o art. 196 da Constituição Federal e art. 201, V, do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. O dever de zelar pela saúde pública estende-se a todos os entes da federação, os quais devem assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação, além dos serviços médicos e hospitalares necessários aos tratamentos de doenças e de outras mazelas. 3. A Lei 9.494/97, além de não exigir a prévia audiência do representante legal da pessoa jurídica de DIREITO PÚBLICO, não impede a concessão da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, sendo vedado seu deferimento apenas nas hipóteses previstas no art. 1º da referida norma. 4. O DIREITO à saúde - além de qualificar-se como DIREITO fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do DIREITO à vida. 5. Rejeitam-se as preliminares e confirma-se a sentença, prejudicado o recurso voluntário. Súmula: REJEITARAM PRELIMINARES E CONFIRMARAM A SENTENÇA, PREJUDICADO O RECURSO VOLUNTÁRIO. (TJMG, Processo 1.0024.05.837294-7/001, Relator Célio César Paduani, Julgamento 17/05/2007, Publicação 24/05/2007). 247 De Jure 9 prova 2.indd S1:247 11/3/2008 16:21:52 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA 3.1. DUPLICATAS APARECIDO JOSÉ DOS SANTOS FERREIRA Especialista em Direito de Empresa pela UGF/CAD Mestrando em Direito Empresarial, na Universidade de Itaúna/MG 1. Acórdão EMENTA: APELAÇÃO - AÇÃO CAUTELAR - EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS - AUSÊNCIA DA NEGATIVA DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL ILEGITIMIDADE PASSIVA - INOCORRÊNCIA - INOVAÇÃO PROCESSUAL - NÃO CARACTERIZAÇÃO - DUPLICATA EM MEIO MAGNÉTICO IMPOSSIBILIDADE DE EXIBIÇÃO. Não há que se cogitar negativa de prestação jurisdicional baseada na ausência de fundamentação quando declinadas as razões de decidir do magistrado a quo, sendo de se lembrar que ao julgador também não se impõe a abordagem de todos os argumentos deduzidos pelas partes no curso da demanda. - Se a parte não comprova que se recusou a proceder à cobrança do título, é legítima para configurar no pólo passivo da ação. - O magistrado não se encontra adido à fundamentação jurídica invocada pela parte, bastando para a aplicação correta do direito a narração dos fatos na contestação - Na cobrança escritural efetuada pelos meios eletrônicos, in casu, a duplicata virtual, inexiste título de crédito a ser exibido, donde se conclui pela impossibilidade de sua apresentação. SÚMULA: Rejeitaram as preliminares e deram provimento. Assistiu ao julgamento, pelo apelado, o Dr. Vinícius Moreira Mitre (TJMG - Apelação nº 2.0000.00.438655-4/000(1); Apte.: Banco do Brasil S/A, Apdo.: Constractor Serviços e Locações Ltda; Rel.: Des. Dídimo Inocêncio de Paula; Data do acórdão: 11/11/2004; Data da publicação: 26/11/2004) ACÓRDÃO “Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N. 438.655-4, da Comarca de BELO HORIZONTE, sendo Apelante (s): BANCO DO BRASIL S.A. e Apelado (a) (os) (as): CONSTRACTOR SERVIÇOS E LOCAÇÕES LTDA., ACORDA, em Turma, a Sexta Câmara Civil do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais REJEITAR PRELIMINARES E DAR PROVIMENTO. 248 De Jure 9 prova 2.indd S1:248 11/3/2008 16:21:52 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Presidiu o julgamento o Juiz VALDEZ LEITE MACHADO e dele participaram os Juízes DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA (Relator), ELIAS CAMILO (Revisor) e HELOÍSA COMBAT (Vogal). O voto proferido pelo Juiz Relator foi acompanhado na íntegra pelos demais componentes da Turma Julgadora. Produziram sustentação oral, pelo apelante, o Dr. Luiz Carlos Pereira Rocha e, pelo apelado, o Dr. Vinícius Moreira Mitre. Belo Horizonte, 11 de novembro de 2004. JUIZ DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA Relator VOTO JUIZ DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA: Trata-se de recurso de apelação manejado por Banco do Brasil S.A. contra sentença de f. 54/59, proferida pelo MM. Juiz de Direito da 4ª Vara Cível da comarca de Belo Horizonte/MG, nos autos da ação de exibição de documentos promovida por Constractor Serviços e Locações Ltda. em face do apelante. Inconformado com a sentença que julgou parcialmente procedente a exibição de documentos, aduz o apelante, em sede de preliminares, a ocorrência da negativa de prestação da tutela jurisdicional em virtude da ausência de fundamentação da sentença no tocante a multa que lhe foi imposta, bem como a sua ilegitimidade passiva. Quanto ao mérito, alega tratar-se de cobrança escritural efetuada pelos meios eletrônicos de responsabilidade da cedente, ao final, insurge contra a multa que lhe foi imposta em primeiro grau, por violação ao disposto no art. 412 do CC/2002. Contra-razões às fls. 86/95, alegando a ocorrência de inovação recursal, oportunidade em que impugna os demais documentos lançados pelo apelante em seu recurso. Este é o relatório. Conheço do recurso, porquanto tempestivo e presentes os demais pressupostos de admissibilidade. Preambularmente, há que se registrar que retirei os autos da seção de julgamento do dia 21/10/2004, para o fim de melhor examiná-los, em virtude da sustentação oral do ilustre procurador do apelado. 249 De Jure 9 prova 2.indd S1:249 11/3/2008 16:21:52 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS De início, cumpre analisar a preliminar de negativa de prestação da tutela jurisdicional levantada pelo apelante, em virtude de ser a r. sentença carente de fundamentação, uma vez que nela inexistem argumentos a justificar o valor da multa que lhe foi imposta. É de se registrar que, de corrente e pacífica jurisprudência, não se deve confundir concisão da sentença com falta de fundamentação, ou até mesmo divergência de entendimento com esta. Verifico que, da análise dos arrazoados das partes e das provas contidas nos autos, ficaram bem estabelecidas as primícias da decisão hostilizada, vez que o ilustre juiz sentenciante fixou a multa em percentual muito inferior ao valor da obrigação principal, uma vez que a obrigação contida na duplicata de que se pretende a exibição corresponde a R$ 1.739.402,05 (um milhão, setecentos e trinta e nove mil, quatrocentos e dois reais e cinco centavos). Assim, tenho que, ao decidir, o magistrado a quo aplicou a norma e o entendimento que julgou correto e condizente ao caso examinado, razão pela qual não há o apontado vício. Ademais, é sabido que não se pode exigir do juiz a abordagem de todos os argumentos suscitados pelas partes no curso da demanda, bastando, para a validade de sua decisão, decida arrimado em bases jurídicas o cerne da quaestio. Nesta quadra a jurisprudência pacificou: ‘O juiz não está obrigado a examinar, um a um, os pretensos fundamentos das partes, nem todas as alegações que produzem: o importante é que indique o fundamento suficiente de sua conclusão, que lhe apoiou a convicção no decidir’ (Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 172.059-MG, Min. Fernando Gonçalves, DJU 8.9.1998). Por estas razões, tenho que não restou caracterizada a nulidade da decisão ora combatida por negativa da prestação jurisdicional, caracterizada pela ausência de fundamentação. No que tange à preliminar de ilegitimidade passiva, aduz o apelante, em suas razões, que não é parte legítima para figurar no pólo passivo, pois trata-se de cobrança escritural registrada eletronicamente, em que a cártula não foi emitida, sendo que o Banco apenas processa os dados impostados pela cedente, qual seja, CNH Latino Americana Ltda., alegando, ainda, não ser credor do apelado, tendo em vista que sequer enviou qualquer boleto de cobrança para o mesmo. 250 De Jure 9 prova 2.indd S1:250 11/3/2008 16:21:53 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS No caso em comento, trata-se de cobrança simples mediante endosso mandato, conforme f. 37/40, operação em que a cobrança é registrada eletronicamente, não havendo a emissão do título. Neste tipo de procedimento, a instituição que procederá à cobrança recebe da empresa cedente todos os dados acerca da operação que deu origem ao título, inclusive no que toca ao comprovante de entrega de mercadoria. Assim, não há que se cogitar ilegitimidade passiva do apelante, embora tenha feito alegações no sentido de que não emitiu boleto de cobrança em razão dos problemas financeiros da apelada, o apelante participou da formação do título eletrônico de que ora se pretende a exibição. No que concerne a preliminar de inovação processual, alega a apelada que o apelante inova em matéria recursal, ao argumentar que jamais possuiu o título cambial e que o mesmo se tratava de uma cobrança eletrônica. Entretanto, entendo que razão não lhe assiste, uma vez que, na própria contestação, o apelante expressamente afirma que se trata de “cobrança escritural, registrada eletronicamente, conforme relatórios anexos.” - f. 33. Demais disso, cediço é que o magistrado não se encontra adido à fundamentação jurídica invocada pela parte, que no caso remete à existência de cobrança escritural, registrada eletronicamente, bastando para a aplicação correta do direito a narração dos fatos na contestação, a teor do aforismo ‘da mihi factum, dabo tibi jus’. Assim, não há falar em inovação recursal. Rejeito, pois, as preliminares invocadas e passo ao deslinde do mérito. Aduz o apelante que inexiste título de crédito a ser exibido, porquanto trata-se de cobrança escritural efetuada pelos meios eletrônicos, em que o documento não existe fisicamente, uma vez que os dados são impostados pelo cedente através de uma fita magnética, não havendo emissão de documento. Neste tempo, com a evolução do direito comercial e avanço tecnológico, a prática de emissão de duplicatas formais a partir da década de 80 tornou-se rara, sendo que em seu lugar surgiu a duplicata eletrônica. A respeito do tema vale a bem lançada lição de Marcos da Costa: O mercado financeiro, a partir do início da década de 80, começou a operar com a duplicata escritural, a duplicata eletrônica. Hoje, 99% da duplicatas que circulam no mercado 251 De Jure 9 prova 2.indd S1:251 11/3/2008 16:21:53 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS financeiro são eletrônicas; não existe mais aquela duplicata formal material. O comerciante saca a duplicata eletronicamente, desconta eletronicamente essa duplicata no Banco, o Banco emite o boleto de cobrança dessa duplicata, e então o sacado paga, ou não, sua dívida. Se não pagar, dependendo do tipo de desconto (se é um desconto caução ou se é um desconto mandato, enfim, há uma série de espécies de descontos), o Banco pode levar a duplicata a protesto. Só que o faz de uma forma eletrônica, porque a duplicata não existe fisicamente, desde a origem ela não foi materializada. Isso acontece, reiterese, desde a década de 80, e hoje o desconto de duplicata é a modalidade mais importante de alavancagem de recursos por parte do comércio (Donaldo Armelin, João Bosco Lee, Osvaldo Contreras Strauch, Waldo Augusto Sobrinho, Marcos da Costa, Arbitragem e Seguro/ Comércio Eletrônico e Seguro, Ed. Max Limonad, p.160). Do cotejo dos autos, dúvida não há de se estar diante de duplicata eletrônica, cuja exibição, ao meu sentir, é de fato impossível, em face da sua inexistência material. Importante registrar, inclusive, que o direito pátrio abraça a execução da duplicata virtual, ou seja, admite e legitima sua existência, visto que, para uma satisfativa prestação jurisdicional, não exige a exibição do título em papel. Neste sentido são os ensinamentos do ilustre doutrinador Fábio Ulhôa Coelho: Se a obrigação não é cumprida no vencimento, os dados pertinentes à duplicata virtual seguem, em meio magnético, ao cartório de protesto. Assim é, ou poderia ser, nas grandes comarcas. Trata-se do protesto por indicações, instituto típico do direito cambiário brasileiro, criado inicialmente para tutelar os interesses do sacador, na hipótese de retenção indevida da duplicata pelo sacado. Não há, na lei nenhuma obrigatoriedade do papel como veículo de transmissão das indicações para o protesto, de modo que também é plenamente jurídica a utilização dos meios informáticos para a realizar. E mais adiante: ‘O instrumento de protesto da duplicata, realizado por indicações, quando acompanhado do comprovante da entrega das mercadorias, é título executivo extrajudicial. É inteiramente dispensável a exibição da duplicata, para aparelhar a execução, quando o protesto é feito por indicações do credor (LD, art.15, §2º)’ (Coelho, Fábio Ulhôa, Curso de Direito Comercial, v. 1, Saraiva, p. 466). 252 De Jure 9 prova 2.indd S1:252 11/3/2008 16:21:53 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Destarte, não há cogitar exibição do documento pretendido, por tratar-se de duplicata virtual, não existindo fisicamente. Quanto às alegações de fraude ou irregularidades na emissão do título, tenho que não cabe análise em sede de ação de exibição, tais questões devem ser discutidas em ação própria. No que concerne à discussão do quantum da multa diária fixada pelo julgador monocrático, entendo que sua análise ficou prejudicada em virtude da improcedência do pedido pórtico, qual seja, a exibição do documento. Por fim, em sede da alegação de litigância de má-fé, entendo inaplicável o instituto à hipótese em tela, porquanto não se encaixa a presente situação em nenhuma daquelas insculpidas no artigo 17 do CPC, estando o recorrente, tão somente, a exercer seu direito de defesa constitucionalmente consagrado. Em face do exposto, dou provimento à apelação, para julgar improcedente a demanda, invertendo o ônus sucumbencial fixado na decisão vergastada. Custas recursais pela apelada. JUIZ DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA 2. As duplicatas 2.1. Visão geral das duplicatas Em que pese a objetividade deste artigo, para o seu perfeito entendimento, necessária se faz uma visão geral, ainda que rápida, sobre as duplicatas, bem como uma visão histórica, compreendendo assim todas as vicissitudes deste título de crédito. 2.2. Visão histórica Sua origem4 remonta ao Código Comercial, de 1850, cujo artigo 219 introduziu o título no ordenamento jurídico pátrio (BARBI FILHO, 2005), [...] impondo aos comerciantes atacadistas, na venda aos retalhistas, a emissão da fatura ou conta – isto é, a relação por escrito das mercadorias entregues. O instrumento devia ser emitido em duas vias (‘por duplicado’, dizia a lei), as quais, assinadas pelas partes ficariam uma em poder do comprador, 4 Há autores (COSTA, 2005), porém, que entendem que o dispositivo do Código Comercial revogado trouxe, somente, a inspiração para a duplicata, que teria surgido mais tarde. Para Borges (1977, p.206) a “[...] a Duplicata nasceu com o decreto nº 16.041, de 22 de maio de 1923, alterado neste mesmo ano, pelo dec. nº 16.189, de 20 de outubro de 1923”. 253 De Jure 9 prova 2.indd S1:253 11/3/2008 16:21:53 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS e outra do vendedor. A conta assinada pelo comprador, por sua vez, era equiparada aos títulos de crédito, inclusive para fins de cobrança judicial (ULHÔA, 2006, p. 454). Assim, “[...] não sendo a fatura e a sua duplicata reclamadas por vendedor ou comprador dentro de dez dias da entrega, presumir-se-iam líqüidas suas contas” (BARBI FILHO, 2005, p. 2). Ainda sob a vigência do revogado Código Comercial, por meio do seu art. 427, a duplicata teve reconhecida a feição de título de crédito, a partir do momento que ele determinou que as disposições da letra de câmbio se aplicariam aos títulos mercantis – dentre eles a duplica (BARBI FILHO, 2005). Mais tarde, com a edição do Decreto nº 2.044/08, que traçava novas nuances dos títulos de crédito, as determinações do Código Comercial que fossem com ele incompatíveis foram revogadas, e, dentre elas, as que tratavam da duplicata. Portanto, perdiam os comerciantes uma importante característica da duplicata, seu efeito cambiário. Novamente eram exigidas as notas promissórias e as letras de câmbio, prática não muito aceita pelo mercado (REQUIÃO, 2005). Posteriormente, com nítidos interesses tributários, o Governo interessado em fazer ressurgirem as duplicatas, visando cobrar impostos – imposto do selo –, fê-las ressurgir com aspectos cambiários e com fácil realização de seus créditos (REQUIÃO, 2005), por meio da Lei Orçamentária nº 2.929/14 e o Decreto nº 11.527/15 instituindo o imposto do selo e equiparando as duplicatas à nota promissória e à letra de câmbio (BARBI FILHO, 2005). Durante o I Congresso das Associações Comerciais houve uma sugestão – posteriormente acatada pelo Governo – de criação de um título, a duplicata da fatura, de modo que pudesse amparar os dois lados da moeda, o Governo com a incidência do imposto do selo e seu controle e, de outro, os empresários que poderiam ter seus créditos circulando livremente (COELHO, 2006). A idéia foi aceita e implementada alguns anos depois com a Lei nº 4.625/22, regulamentada pelo Decreto nº 16.041/23 e pelo Decreto nº 16.275/24, que devidamente combinados sedimentou a duplicata mercantil no ordenamento jurídico brasileiro (BARBI FILHO, 2005). Com o apetite tributário voraz do Governo, foi editada a Lei nº 187/36, determinando que a emissão da duplicata seria obrigatória, por ser o imposto do selo a ela atrelado (REQUIÃO, 2005; BARBI FILHO, 2005). Em decorrência dessa obrigatoriedade, surgiu também a obrigatoriedade de seu controle, surgindo então o livro de registro de duplicatas, em que as irregularidades nele constantes impingiam aos então comerciantes pesadas multas (COSTA, 2005) e tal obrigação ainda permanece, mas atualmente caracteriza ilícito penal5. 5 O Código Penal, em seu art. 172, tipifica como crime a emissão de fatura ou duplicata que não corresponda à mercadoria vendida ou ao serviço prestado. O mesmo vale para a falsificação ou adulteração do livro de registro de duplicatas, imputando pena de detenção, com prazo de dois a quatro anos e multa. 254 De Jure 9 prova 2.indd S1:254 11/3/2008 16:21:53 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Tal panorama, entretanto, não permaneceu durante muito tempo, pois com a mudança tributária havida no País com a edição do Código Tributário Nacional, em 1966, a competência para cobrar o tributo incidente sobre a duplicata que era da União6 passou para os Estados – já que incidia sobre as mercadorias vendidas –, o que alterou substancialmente toda tributação (BARBI FILHO, 2005; REQUIÃO, 2005). Finalmente, a Lei nº 5.474/68, devidamente complementada pelo Decreto-Lei nº 436/69, veio reger definitivamente a duplicata. Desde então, a duplicata tem caráter eminentemente cambial e comercial (REQUIÃO, 2005; BARBI FILHO, 2005; ROSA JÚNIOR, 2006). 2.3. Visão geral A duplicata mercantil é regida pela Lei nº 5.474/68, que determina a obrigatoriedade de emissão da fatura nas vendas cujo prazo seja superior a trinta dias, facultando a emissão da duplicata7. Portanto, a duplicata é na realidade uma cópia fiel do documento de emissão obrigatória, a fatura8. Salienta-se que, por meio de convênio realizado ainda na década de setenta entre o Ministério da Fazenda e as Secretarias de Fazenda Estaduais, foi possível a emissão da nota fiscal como fatura, criando-se, pois, a nota fiscal-fatura (BARBI FILHO, 2005), sendo comum a emissão atualmente apenas da nota fiscal-fatura. O mecanismo de funcionamento é simples. Uma vez realizado o negócio jurídico de compra e venda mercantil, é expedida pelo empresário a nota fiscal-fatura. Após isso, Nos 30 dias seguintes à emissão, o sacador deve remeter a duplicata ao sacado. Se o título é emitido à vista, o comprador, ao recebê-lo, deve proceder ao pagamento da importância devida; se a prazo, ele deve assinar a duplicata, no campo próprio para o aceite, e restituí-lo em 10 dias. Isto, por evidente, se não existirem motivos para a recusa do aceite, hipótese em que a duplicata é devolvida ao vendedor acompanhada da exposição deles. (LD, art. 7º e § 1º) (COELHO, 2006, p. 459). 6 No novo regime tributário foi criado o Imposto sobre Circulação de Mercadorias – ICM, que passou a ser de competência dos Estados, e que tinha na duplicata uma forma eficaz de fiscalização e arrecadação. 7 Art. 1º e 2º, caput, e requisitos dispostos no § primeiro deste último artigo, todos da Lei nº 5.474/68. 8 Para Requião (2005, p. 546-547), fatura é “[...] uma nota de mercadorias que um comerciante expede a outro com a menção das qualidades que a caracterizam e de seu preço, com o fim de efetuar um contrato de compra e venda, entre eles estipulado, ou cuja estipulação é proposta ou oferecida”, cuja natureza “[...] não é um título representativo da mercadoria ou do crédito a ela relativo. Ela é apenas o documento que identifica o objeto, as condições e características do contrato de compra e venda firmado, provando a operação sobre a qual incide o tributo” (BARBI FILHO, 2005, p. 10). 255 De Jure 9 prova 2.indd S1:255 11/3/2008 16:21:53 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Ocorre, porém, que tal procedimento não é tão comum em virtude da forte característica deste título funcionar como meio eficaz de financiamento mercantil, fazendo com que as duplicatas sejam enviadas aos bancos e estes enviem apenas avisos de cobranças (os chamados boletos) para o que o sacado tome ciência da data do vencimento do título, do valor a ser pago e do local de pagamento, que hoje pode ser em qualquer agência bancária (ROSA JÚNIOR, 2006). Impossível se torna evitar a comparação9 entre a duplicata e a letra de câmbio considerando-se as congruências, bem como suas divergências, principalmente porque nos dois títulos estão presentes todas as declarações cambiais10, necessárias e eventuais, o que a torna um título de crédito tão versátil quanto a letra de câmbio. Entretanto, a mais importante das divergências baseia-se no regime do aceite, pois [...] enquanto o ato de vinculação do sacado [letra de câmbio] à cambial é sempre facultativo (quer dizer, mesmo que devedor, o sacado não se encontra obrigado a documentar sua dívida pela letra), no título brasileiro [duplicata], a sua vinculação é obrigatória11 (ou seja, o sacado, quando devedor do sacador, se obriga ao pagamento da duplicata, ainda que não assine). (COELHO, 2006, p. 455). Aliado a essa existe uma outra, não menos importante, que é a relação de causalidade existente na duplicata e que não há na letra de câmbio, porque “[...] a sua emissão somente se pode dar para a documentação de crédito nascido de compra e venda mercantil” (COELHO, 2006, p. 456). Mas considerando as hipóteses existentes, há três modalidades de aceite, quais sejam, o ordinário, por presunção e por comunicação. Tratar-se-á, de agora em diante, de cada uma dessas modalidades. O aceite ordinário12, o mais simples de todos, caracteriza-se pela assinatura hológrafa do sacado no espaço específico para ela (COELHO, 2006). O aceite por presunção tem sua origem no 9 Rosa Júnior (2006) tece excelente comparação entre os dois títulos, cuja leitura se recomenda para aprofundamento. 10 Declaração necessária é o saque ou emissão, corporificada pela assinatura do sacador ou emitente. A declaração eventual pode ser o aceite, o endosso e o aval, representadas pelas assinaturas do aceitante, do endossante e do avalista, respectivamente (COSTA, 2005). 11 De acordo com a Lei nº 5.474/68, nos termos do art. 8º, o sacado somente pode deixar de aceitar a duplicata quando haja avaria ou não recebimento das mercadorias, sob responsabilidade do sacador; por vícios, defeitos e diferenças na qualidade ou quantidade das mercadorias comprovadamente; e por divergências nos prazos ou preços ajustados. 12 Coelho (2006, p. 460) assevera que nesta modalidade, atualmente, requer maior atenção do julgador quanto à sua causa, uma vez que, segundo ele, na modalidade eletrônica, é comum não haver a assinatura do sacado e, em sede de embargos à execução, podem ser questionados vários argumentos, dentre eles o fato de ter sido a duplicata simulada, ter havido vício de consentimento no ato do aceite, o que, na opinião do autor, teria forte possibilidade de acontecer. 256 De Jure 9 prova 2.indd S1:256 11/3/2008 16:21:54 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS recebimento normal das mercadorias pelo sacado, inexistindo qualquer recusa formal (COELHO, 2006). Importante observar que o aceite presumido ocorre [...] quando, cumulativamente, estejam presentes os seguintes elementos: a) haja sido protestada por falta de pagamento; b) esteja acompanhada de documento hábil comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria; c) o sacado não tenha, comprovadamente, recusado o aceite, no prazo, nas condições e pelos motivos previstos nos arts. 7º e 8º da LD (ROSA JÚNIOR, 2006, p. 704). E como se verá no item 2.4, o aceite presumido tem sido fortemente utilizado por instituições bancárias e de crédito, para procederem à criação de títulos executivos, baseados na supressão documental da duplicata. Por fim, resta o aceite por comunicação. Trata-se da possibilidade, e também direito do sacador, de reter a duplicata quando ela lhe for apresentada para aceite e ele deverá comunicar, no prazo de dez dias, ao remetente, sacador ou instituição bancária, que está retendo o título e que irá pagá-lo na data do vencimento, oportunidade em que deverá o credor firmar recibo na cártula. De todas as modalidades, esta é, sem dúvida, a que ocorre com menor incidência, por dois motivos: primeiro, porque geralmente não há anuência do credor, sacador ou instituição bancária; e, segundo, porque pela atual prática, a própria duplicata não mais chega às mãos do sacado. Demonstradas as principais diferenças, passar-se-á para as congruências. Uma delas é a incidência de aval, cuja modalidade se dá também nos mesmos moldes da letra de câmbio e que, por isso, não merece maiores esclarecimentos. Há também a incidência do endosso que, a exemplo do aval, segue os mesmos ditames da letra de câmbio. Todavia, há que se fazer aqui uma ressalva importante, pois, quanto ao endosso póstumo, não ocorre a transferência dos direitos derivados do título, mas sim originários, pois não há incidência no título do art. 20 da LUG13, por prevalecerem os dispositivos do art. 25 da Lei nº 5.474/68, determinando que somente se aplica a LUG subsidiariamente (ROSA JÚNIOR, 2006). A exemplo da letra de câmbio, a duplicata também pode ser protestada pelos mesmos motivos, a saber: a) falta de aceite, b) falta de pagamento e c) falta de devolução (Lei nº 5.474/68). Mas antes de adentrar-se nesta seara, mister saber o que é protesto e quais documentos são protestáveis. Buscando auxílio na Lei nº 9.492/1997 e nos ensinamentos de Darold (2005, p. 17), tem-se que “[...] o protesto cambial é ato formal, requerido ao organismo estatal pelo interessado, à salvaguarda dos seus direitos expressos em título de crédito e à Constituição em mora do devedor para todos os efeitos legais”. 13 Em sentido contrário, Borges (1977) assevera que à duplicata se aplicam todas as normas da LUG. 257 De Jure 9 prova 2.indd S1:257 11/3/2008 16:21:54 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS O mesmo autor (2005) vaticina ainda que, de acordo com art. 202 do Código Civil, protesto tem ainda função interruptiva da prescrição. E explica que, por se tratar de severo meio de constrangimento, o protesto deve seguir, rigorosamente, os ditames da lei, sob risco de transformar-se em ato ilegal. No que tange aos documentos protestáveis, o documento deve estar revestido das formalidades legais, seguindo os ditames da Lei nº 9.492/97, art. 9º e seu parágrafo único (DAROLD, 2005). Portanto, [...] nem de longe, então, se poderá admitir que [...] poderão ser protocolizados a protesto documentos não revestidos das formalidades preconizadas por lei aos títulos de crédito, pois que o ato de constrangimento via organismo estatal, e o protesto o é, somente se faz admissível contra pessoa que se obrigou dentro dos requisitos estabelecidos em lei, requisitos estes geradores da presunção relativa de certeza, liqüidez e exigibilidade do crédito, só reunidos no título de crédito (DAROLD, 2006, p. 26). Por se tratar de um documento cujo aceite é obrigatório, caso o sacado se recuse a aceitar a duplicata, poderá o credor valer-se do protesto para suprir o aceite, que “[...] obviamente não formará título cambial contra o sacado que não o aceitou, mas criará um título executivo” (BARBI FILHO, 2005, p. 24). Portanto, [...] se o credor encaminha a duplicata sem a assinatura do devedor, antes do vencimento, o protesto será por falta de aceite. Se encaminha a triplicata não assinada ou as indicações relativas à duplicata retida, também antes do vencimento, o protesto será tirado por falta de devolução. Finalmente, se encaminha a duplicata ou triplicata, assinadas ou não, ou apresenta as indicações da duplicata, depois de vencido o título, o protesto será necessariamente por falta de pagamento (Lei nº 9.492/97, art. 21, §§ 1º e 2º). (COELHO, 2006, p. 461). O que foi notável na Lei de Protestos é o parágrafo único do art. 8º, ao permitir o protesto de duplicatas mercantis por meio magnético ou por gravação eletrônica de dados, cuja responsabilidade será do apresentante (ROSA JÚNIOR, 2006). Tal inovação abriu caminho para implementação da duplicata eletrônica que, no entendimento de alguns doutrinadores (COELHO, 2006; ROSA JÚNIOR, 2006), o ordenamento jurídico consegue sustentar tranqüilamente, ao passo que para outros (COSTA, 2006) ainda são necessárias algumas adaptações, principalmente no que tange à declaração cambial, tendo em vista a impossibilidade de se apor a assinatura de próprio punho no título. 258 De Jure 9 prova 2.indd S1:258 11/3/2008 16:21:54 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2.4. Duplicata eletrônica x duplicata cartular: ponderação do princípio da cartularidade Com as irrefutáveis inovações tecnológicas, a atividade comercial mudou, no que lhe seguiu a atividade empresarial. E dentre as inovações tecnológicas mais marcantes, sem dúvida alguma, a que mais afetou foi a tecnologia da informática que possibilitou dinamizar tarefas. Tudo isso dentro de um relativo curto espaço de tempo. Assim, a duplicata, como se viu supra, que levou algumas décadas para solidificar-se na prática comercial e no ordenamento jurídico brasileiro, tomando lugar de destaque em sede de títulos de crédito, já sofre significativas transformações impingidas pela informática, cujos reflexos são expressivos como os da Lei nº 9.492/9714, que prevê a possibilidade de que as informações relativas à duplicata circulem por meio eletrônico, magnético, enfim, por meio diverso do papel. Isso deu margem para que os empresários, impulsionados principalmente pela atividade bancária, desmaterializassem a duplicata, gerando celeuma acerca da cartularidade nesta modalidade de documento. Diante desse contexto, a doutrina passou a questionar a existência ou não do princípio da cartularidade na duplicata eletrônica, escritural ou virtual15 como tem sido chamada na doutrina. E parte dessa mesma doutrina entende não haver na duplicata eletrônica o princípio da cartularidade, simplesmente pelo fato de que não há nela papel, transmitindo a mensagem, negócio jurídico, ali corporificado, causando acirradas discussões acerca de um assunto que poderia ser resolvido com razoável tranqüilidade16, pois cártula, em si, é um documento e o documento pode assumir outras formas, até porque não há, na lei, restrição neste sentido, se em papel ou em meio eletrônico, o que autoriza afirmar que [...] os documentos gerados no meio eletrônico e que hoje é uma normalidade nas práticas comerciais não encontram nenhuma 14 “Art. 8º. [...] Parágrafo único. Poderão ser recepcionadas as indicações a protestos das Duplicatas Mercantis e de Prestação de Serviços, por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados, sendo de inteira responsabilidade do apresentante os dados fornecidos, ficando a cargo dos Tabelionatos a mera instrumentalização das mesmas.” 15 Há autores (Luiz Emygdio, Fábio Ulhôa) a chamam de duplicata virtual, outros (Amador Paes de Almeida) a trata de duplicata escritural e alguns outros como duplicata eletrônica. 16 Em momento algum se pretende passar ao leitor uma idéia de facilidade na resolução do problema da cartularidade na duplicata eletrônica, apenas pelo fato de se aceitar que ela pode ter cártula, mesmo em meio eletrônico, até porque, mesmo que fosse consensual na doutrina tal assertiva, com ela viriam inúmeras vicissitudes, pois ainda não há tecnologia suficiente para que ela possa funcionar tal como funcionaria, em termos de cartularidade, em meio papélico. Portanto, alertamos somente para o documento cartular não o deixa de sê-lo, somente porque está no meio eletrônico. Além disso, o documento eletrônico tem sido aceito em várias instâncias do judiciário, além de órgãos da receita, estadual ou federal, enfim, tudo isto demonstra sua factibilidade e possibilita a manutenção das mesmas características que há no meio físico. 259 De Jure 9 prova 2.indd S1:259 11/3/2008 16:21:54 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS proibição na Lei 5.474/66, motivo pela qual se constata que a característica da cartularidade esta presente na duplicata virtual uma vez que o credor pode exercer o seu direito de crédito (sic) (MOLLETA, 2003, p. 53). No mesmo sentido, Barbosa (2004, p. 114) explica que “[...] o Direito Cambiário não está mais preso a um cartão, um documento escrito, um corpo de celulose industrializado.” Portanto, acertada é a posição do magistrado ao asseverar, citando Fábio Ulhôa Coelho, que não é obrigatória a apresentação da duplicata em papel, pois para seu devido processamento (saque, protesto etc.) o suporte físico é dispensável. Entretanto, vale aqui a ressalva de que, “[...] para que um documento de crédito possa ser considerado uma duplicata é preciso que atenda todos os requisitos formais [...]” (BOECHAT, 2004, p. 81). Portanto, seja eletrônico ou em papel, o princípio da cartularidade prevalece, desde que atendidos os ditames da Lei nº 5.474/68, em seus arts. 1º e 2º e também da Resolução nº 102/68 do Banco Central, porque se consegue a “[...] gravação do fato jurídico [...]” (BOECHAT, 2004, p. 86) que, à exemplo do papel, fornece a autoria e a integridade necessárias, desde que utilizadas as tecnologias adequadas. Logo, caso opte o sacador pela duplicata eletrônica, ela deverá ficar adstrita às normas legais, consoante disciplinado acima. 2.5. Análise do instituto A duplicata despontou como um eficaz meio de financiamento mercantil, tanto que é o título de crédito mais utilizado no ambiente empresarial, se comparado a outros títulos. E essa característica se deve ao fato da sua versatilidade e por conter todas as declarações cambiais existentes. Paradoxalmente, é justamente por esses motivos também que tem causado tanta discussão, seja em meio acadêmico ou profissional, pois há alguns aspectos que ainda trazem problemas, de ordem prática, que, por vezes, inviabiliza, por enquanto, que a duplicata na modalidade virtual possa ser completamente implementada e que certamente influencia diretamente no exercício do direito nela representado e, em juízo, pode até dar margem a fraudes, consoante se verá abaixo. O primeiro aspecto importante é que, segundo a Lei de Duplicatas, mister seria sua apresentação ao sacado para que desse o aceite e, caso houvesse algum problema, pudesse justificar a recusa do aceite pelos motivos17 legalmente elencados, uma vez que o aceite é obrigatório no título brasileiro. Logo, mister a sua existência, seja em papel ou em meio eletrônico, diferentemente do que afirma o prolator do aresto sob comento, pois se ela inexistisse, inexistiria também, baseado do princípio da literalidade, o 17 De acordo com a Lei de Duplicatas somente se pode negar o aceite na duplicata de acordo com o disposto no art. 8º. 260 De Jure 9 prova 2.indd S1:260 11/3/2008 16:21:54 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS direito nela incorporado18. Então, percebe-se que, ainda que implicitamente, mesmo sem sentir, acredita-se que o julgador acredite na sua existência, pois do contrário certamente a decisão do presente julgado seria outra, bem como os comentários que ora são feitos. O problema maior é que ainda não se desenvolveu uma metodologia (tecnologia) própria, para que se efetivasse o saque da duplicata eletrônica, bem como sua apresentação, ainda que em meio eletrônico, ao sacador, pois aí sim poderiam se evitar todos esses problemas. Uma saída apresentada pela doutrina é que se o título nasce eletrônico deve permanecer neste meio, pois a mudança de meio pode facilitar as fraudes (ROHRMANN, 2000). E, nesse ponto, concorda-se com o referido doutrinador, pois a utilização do meio eletrônico não deve restringir direitos e da forma em que está é inviável que o sacado exerça, regularmente, seu direito de negar o aceite na duplicata, uma vez que ela sequer é enviada e, quiçá, emitida. Dessa forma, é impossível a exibição da duplicata em juízo pela falta de tecnologia e não pela sua inexistência física, como alegou o prolator deste aresto. Se houvesse a devida preocupação tanto dos empresários quanto do Judiciário, deveria haver meio tecnológico disponível para a exibição dessa duplicata em juízo, ainda que eletronicamente. A doutrina tem criticado bastante a prática empresarial no que tange à negociação com duplicatas e a sua execução, pois há omissão dos cartórios em conferir os títulos e até mesmo dos sacados em não exigirem os títulos, como demonstra Barbi Filho (2005, p. 41), pois para ele os [...] cartórios de protestos, [...] não exigem dos apresentantes dos títulos a comprovação da remessa e entrega da duplicata ao sacado para realizarem o protesto por indicações. E a segunda é dos próprios sacados que, quando intimados do protesto por indicações ou mesmo citados da execução judicial, não argúem a falta de emissão, remessa e recebimento da duplicata original. Some-se a isto, o fato de que [...] o sacado tem o direito de examinar a duplicata sacada contra ele, para conferir o valor, a praça de pagamento e, tendo recebido as mercadorias ou os serviços com defeitos, avarias, diferenças no valor e outros defeitos, ele, o sacado, tem o direito de impugnar a duplicata e não aceitá-la, o que deve fazer por 18 Para compreender essa ilação basta lembrar os ensinamentos de Rosa Júnior (2006, p. 52) ao falar do conceito de Vivante, pacífico na doutrina, de que “[...] título de crédito é o documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido”. 261 De Jure 9 prova 2.indd S1:261 11/3/2008 16:21:55 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS escrito e no prazo de devolução da duplicata (10 dias) (COSTA, 2005, p. 420). Percebe-se, pois, a importância e a urgência de se repensar a prática forense e empresarial com as duplicatas eletrônicas. 2.6. Supressão documental da duplicata Esse talvez seja o ponto mais importante, tanto acadêmico quanto pragmático, uma vez que a duplicata pode fundamentar execução, por ser considerada pelo Código de Processo Civil, art. 585, I, como título executivo extrajudicial. Necessário então compreender esse título executivo extrajudicial, pois os títulos de crédito também o são e mister a distinção entre eles. Por se tratar de duplicata aceita e não paga, haverá título de crédito19 e título executivo extrajudicial, e a execução será tranqüila, baseada no título de crédito. O maior problema ocorre nas hipóteses em que não há o aceite na duplicata. Aí, nesse caso, [...] segundo já pacificado na doutrina e jurisprudência pátrias, a duplicata constitui-se em título executivo extrajudicial desde que: a) esteja aceita pelo sacado; b) embora ausente o aceite, esteja acompanhada do comprovante de entrega da mercadoria ou da prestação do serviço e do protesto, bem como não tenha o sacado, comprovadamente, recusado o aceite nos moldes previstos em lei (Lei 5.474/68, arts. 15 e 20, com redação que lhe foi atribuída pela Lei 6.458/77). (DAROLD, 2005, p. 39/40). Barbi Filho (2005, p. 48) comunga dessa opinião e ensina que “[...] na realidade, de acordo com art. 15, inciso II, da Lei de Duplicatas, o que constitui título executivo é o conjunto formado pela certidão de protesto e pelo comprovante de entrega da mercadoria ou da prestação de serviço”. Nery Júnior e Nery (2003, p. 973), asseverando a importância do aceite, diz que “[...] a duplicata só é líqüida, certa e exigível, e, título de crédito executivo (CPC, 586), se aceita (LDup 15 I; redação da L6458/77) [...]”, do contrário o procedimento é o mesmo citado por Barbi Filho (2005) e Darold ( 2005). Percebe-se que a formação do título de executivo extrajudicial na duplicata é uma reação em cadeia: saque, apresentação para aceite, título executivo. Deste ponto há dois caminhos: havendo o aceite, forma-se o título executivo normalmente; em caso negativo, não sendo hipótese justificada, deverá o credor/portador, proceder ao protesto e juntar o comprovante da entrega da mercadoria ou prestação de serviço. 19 Por ser o aceite obrigatório na duplicata, o título de crédito somente se aperfeiçoa com o aceite (BARBI FILHO, 2005; ROSA JÚNIOR, 2006; COELHO, 2006). 262 De Jure 9 prova 2.indd S1:262 11/3/2008 16:21:55 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Como a duplicata normalmente não é enviada para aceite, os credores/portadores têm se valido, erroneamente do protesto por indicação. Entretanto, segundo a maioria da doutrina (COSTA, 2006; DAROLD, 2005, BARBI FILHO, 2005) esse tipo de protesto somente pode se dar nas hipóteses em que o título é retido, não cabendo aqui nem mesmo o saque de triplicata, até porque, nessa hipótese, deveria ser remetida para aceite novamente (BARBI FILHO, 2005). No caso sob comento, como então haveria título executivo, se, segundo o magistrado prolator “[...] não há cogitar exibição do documento pretendido [duplicata], por se tratar de duplicata virtual, não existindo fisicamente”? Ora, se não há documento para ser apresentado em juízo, certamente ele também não foi enviado ao sacado para aceite. Portanto, nessa hipótese, injustificável o protesto [por indicações], porque ele somente é permitido em hipótese de retenção do título. Conclui-se, dessa forma, que o título executivo extrajudicial necessário a fundamentar a execução, como se viu acima, ao que parece, inexistiu in casu, logo deveria ter prevalecido a sentença primeva. 3. Conclusão: a duplicata eletrônica em Juízo São indiscutíveis as facilidades que a duplicata traz, seja ela em meio eletrônico ou não, contudo os empresários precisam melhorar a prática comercial e não somente fazer vistas grossas às exigências legais como também o próprio Judiciário precisa compreender melhor os institutos, pois, se continuar dessa forma, poderá ser desvirtuado esse instituto utilíssimo, além de, usando os ensinamentos de Rohrmann, possibilitar margem às fraudes. É preciso, portanto, desenvolver tecnologia eficiente e eficaz para transações importantes e vultuosas como a que ocorreu no caso do acórdão sob comento, aplicando a assinatura digital, bem alicerçada em legislação própria e incrementando método eficaz de apresentação para aceite on line ao sacado do título, pois aí sim o procedimento poderá voltar ao procedimento legal, não mais ficando à margem da lei como está. 263 De Jure 9 prova 2.indd S1:263 11/3/2008 16:21:55 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 4. Referências bibliográficas ALMEIDA, Amador Paes. Teoria e prática dos títulos de crédito. 20. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2001. BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais dos títulos. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 37, n. 115. ______. A supressão documental da duplicata. Revista Literária de Direito, set./out., 1997. ______. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005. BARBOSA, Lúcio de Oliveira. A duplicata virtual: aspectos controvertidos. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. BOECHAT, Clara de Souza Martins. Duplicata virtual: possibilidade e necessidade de regulamentação. 2004. 140 f. Dissertação (Mestrado em Direito Empresarial)– Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima, 2004. BORGES, João Eunápio, Títulos de crédito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 13. ed. rev. atual. segundo o Código Civil de 2002 e pela Emenda Constitucional 45/2002. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. COSTA, Wille Duarte, Títulos de crédito de acordo com o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. DAROLD, Ermírio Amarildo. Protesto cambial. 3. ed. 2. tir. Curitiba: Juruá, 2005. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito de acordo com o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de; ALVES, Vilson Rodrigues. Tratado de direito cambiário. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2001. 264 De Jure 9 prova 2.indd S1:264 11/3/2008 16:21:55 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS MOLLETE, Laerte Américo. Documentos eletrônicos x processo de execução: o contrato, a duplicata virtual e o cheque eletrônico e a sua eficácia. 2003. 100 f. Dissertação (Mestrado em Direito)– Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, 2003. MOREIRA. José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 22. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002. OLIVEIRA JÚNIOR, João Batista Caldeira de. A desmaterialização e a circulação do crédito hoje. Aspectos jurídicos. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2193>. Acesso em: 11 jun. 2005. SILVA, Marcos Paulo da. Títulos de crédito no Código Civil de 2002. 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ARTIGOS 1.1 INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA EM AÇÃO DE EXECUÇÃO DE ALIMENTOS LEONARDO BARRETO MOREIRA ALVES Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) Pós-Graduando em Direito Civil pela PUC/MG “O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar tal como está”. Bertold Brecht 1. Introdução Em 28 de março de 2007, a 7ª Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no bojo dos autos do Agravo de Instrumento nº 70018683508, exarou acórdão absolutamente inédito no cenário jurídico nacional, permitindo a interceptação telefônica em sede de ação de execução de alimentos. Em um primeiro momento, o decisum pretoriano afigura-se como violador do quanto disposto no art. 5º, XII, da Carta Magna, segundo o qual a interceptação telefônica é excepcionalmente admitida apenas em investigação criminal e instrução processual penal. Destarte, uma análise mais acurada desse importante julgado irá evidenciar que, na verdade, a Corte gaúcha agiu com acerto, deixando de lado, no caso concreto, o direito à intimidade do devedor dos alimentos com a finalidade de salvaguardar os direitos à vida e à proteção integral dos credores menores de idade. É justamente essa análise que nos propomos a fazer no presente trabalho. Antes de darmos início a ela, recomenda-se a transcrição, na íntegra, do acórdão de lavra do TJRS. 2. Acórdão EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA DO DEVEDOR DE ALIMENTOS. CABIMENTO. Tentada a localização do executado de todas as formas, residindo este em outro Estado e arrastando-se a execução por quase dois anos, mostra-se cabível a interceptação telefônica do devedor de alimentos. Se por 266 De Jure 9 prova 2.indd S1:266 11/3/2008 16:21:56 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS um lado a Carta Magna protege o direito à intimidade, também abarcou o princípio da proteção integral a crianças e adolescentes. Assim, ponderando-se os dois princípios sobrepõe-se o direito à vida dos alimentados. A própria possibilidade da prisão civil no caso de dívida alimentar evidencia tal assertiva. Tal medida dispõe inclusive de cunho pedagógico para que outros devedores de alimentos não mais se utilizem de subterfúgios para safarem-se da obrigação. Agravo provido. Agravo de Instrumento n.º 70018683508 Sétima Câmara Cível da Comarca de Porto Alegre Agravante: A. S. P. Agravado: A. P. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao agravo de instrumento interposto. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além da signatária (Presidente), os eminentes Senhores Des. Luiz Felipe Brasil Santos e Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Porto Alegre, 28 de março de 2007. DES.ª MARIA BERENICE DIAS, Presidenta e Relatora. RELATÓRIO Des.ª Maria Berenice Dias (presidenta e RELATORA) Trata-se de agravo de instrumento interposto por A. S. P. e S.J.S.P., representados por R. S. em face da decisão da fl. 76, que, nos autos da execução de alimentos movida em face de A. P., indeferiu o pedido de escuta e de quebra do sigilo telefônico do executado. Alegam que o agravado após ser citado escondeu-se para impedir o cumprimento do mandado de prisão. Asseveram que a polícia paulista não tem efetivo suficiente para ficar em campana na moradia do agravado. Seguindo sugestão dos agentes, realizaram 267 De Jure 9 prova 2.indd S1:267 11/3/2008 16:21:56 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS pedido de escuta telefônica com a finalidade de localizar o agravado. Salientam que não se trata de mera prisão administrativa, mas, de prisão judicial. Requerem o provimento do recurso para a determinação de escuta nos telefones do recorrido (fls. 2-8). O Desembargador-Plantonista indeferiu o pedido liminar (fl. 79). A parte agravada deixou de ser intimada para prestar contra-razões, uma vez não angularizada a relação processual. A Procuradora de Justiça opinou pelo conhecimento e provimento do recurso (fls. 80-5). É o relatório. VOTOS Des.ª Maria Berenice Dias (presidenta e RELATORA) Pretendem os recorrentes a reforma da decisão que indeferiu o pedido de escuta e de quebra do sigilo telefônico do executado. Justificam que tal medida se faz necessária tão-somente para possibilitar a localização do foragido a fim de tornar eficaz a ordem de prisão. A presente execução desenrola-se desde maio de 2005 (fl. 21), ou seja, há mais de 22 meses, tendo os alimentados sido pagos, pela última vez, no longínquo mês de março de 2004, exclusivamente com o objetivo de afastar o cumprimento de um mandado de prisão. O réu foi citado para o pagamento das prestações em atraso em janeiro de 2006 (fl. 31). Não tendo realizado o pagamento, nem justificado a impossibilidade de fazê-lo, teve sua prisão decretada em abril de 2006 (fl. 38), oportunidade em que a dívida alimentar já era superior ao montante de R$ 37.000,00 (fl. 67). Compulsando os autos, verifica-se que a localização do recorrido foi tentada de todas as formas. Nem mesmo a louvável e diligente disposição da procuradora dos credores, que em mais de duas oportunidades foi até a Cidade de São Paulo, e, em companhia dos agentes da Delegacia de Capturas daquele Município, conseguiu obter sucesso para o cumprimento do mandado (fls. 44-45 e 52-53). 268 De Jure 9 prova 2.indd S1:268 11/3/2008 16:21:56 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS De acordo com o art. 5°, XII, regulamentado pela Lei n. 9.296/96, a interceptação telefônica somente pode ocorrer, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal e instrução penal. Contudo, o presente caso trata de situação excepcional. Se por um lado a Carta Magna protege o direito à intimidade, também abarcou o princípio da proteção integral a crianças e adolescentes, conforme tenho manifestado doutrinariamente: O princípio não é uma recomendação ética, mas diretriz determinante nas relações da criança e do adolescente com seus pais, com sua família, com a sociedade e com o Estado. A maior vulnerabilidade e fragilidade dos cidadãos até os 18 anos, como pessoas em desenvolvimento, os faz destinatários de um tratamento especial. Daí a consagração do princípio da prioridade absoluta, de repercussão imediata sobre o comportamento da administração pública, na entrega, em condições de uso, às crianças e adolescentes, dos direitos fundamentais específicos que lhes são consagrados constitucionalmente. (Manual de Direito das Famílias. 3. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 57). A matéria aqui tratada confronta duas questões de ordem constitucional que merecem ser sopesadas: de um lado está o direito à intimidade do devedor de alimentos, e, de outro, o princípio da proteção integral a crianças e adolescentes, a quem é destinada a verba alimentar. Ocorrendo choque entre dois princípios constitucionais, é certo que impossível a aplicabilidade de ambos, um deverá necessariamente ser afastado, a partir de uma análise e interpretação sistemática do ordenamento jurídico relativamente ao caso concreto, aplicando-se a este o princípio da proporcionalidade. A respeito ao princípio supracitados, merecem ser elencados os ensinamentos de Humberto Bergmann Ávila: É exatamente do modo de solução da colisão de princípios que se induz o dever de proporcionalidade. Quando ocorre uma colisão de princípios é preciso verificar qual deles possui maior peso diante das circunstâncias concretas... Assim, o dever de proporcionalidade estrutura-se em três elementos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Uma medida é adequada se o meio escolhido está apto para alcançar o resultado pretendido; necessária, se, todas as disponíveis e igualmente eficazes para atingir um fim, é a menos gravosa em relação 269 De Jure 9 prova 2.indd S1:269 11/3/2008 16:21:56 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS aos direitos envolvidos; proporcional ou correspondente, se, relativamente ao fim perseguido, não restringir excessivamente os direitos envolvidos”. (A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, n. 215, p. 158/159, jan./mar. 1999). Conforme bem posto pela Procuradora de Justiça, Drª Ida Sofia da Silveira (fl. 83): no caso dos autos, por ocorrer a violação do alimentante com relação às suas filhas menores, o direito à sua intimidade não pode se sobrepor de forma absoluta ao direito das meninas de receberem a verba alimentar. Assim, patente a sobreposição do direito à vida dos alimentados em frente à intimidade do executado. A própria possibilidade da prisão civil no caso de dívida alimentar evidencia o caráter superior da verba alimentar, devendo sobrepor o direito do devedor à intimidade. Oportuno destacar que o deferimento de tal medida possui inclusive cunho pedagógico para que outros devedores de alimentos não mais se utilizem de subterfúgios para inadimplirem a obrigação que lhes é imposta. Por tais fundamentos, o provimento do agravo se impõe. Des. Luiz Felipe Brasil Santos - De acordo. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves - De acordo. DES.ª MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Agravo de Instrumento nº 70018683508, Comarca de Porto Alegre: “PROVERAM. UNÂNIME.” Julgador(a) de 1º Grau: NELSON JOSE GONZAGA 3. Comentário Se fôssemos adotar a linha de pensamento neopositivista apregoada pelo austríaco Kelsen (2006), a análise de decisões judiciais teria importância mínima na perspectiva de construção do Direito. Isso porque, nas sendas das concepções kelsenianas, o Direito não necessitaria ser construído no caso concreto, muito pelo contrário, a edição de normas jurídicas pelo legislador já implicaria a sua formação, daí porque um ato de aplicação, de execução do Direito seria entendido como simples concretude de uma norma hierarquicamente superior que lhe daria legitimidade, mera subsunção do fato à norma. 270 De Jure 9 prova 2.indd S1:270 11/3/2008 16:21:56 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Em outras palavras, o Direito constituiria um sistema convencional, formal, preconcebido, em que a solução de todos as hipóteses fáticas já estaria fixada aprioristicamente no ordenamento jurídico. Sendo assim, na resolução do caso concreto, o jurista não teria o poder de construir o Direito, restringindo-se apenas à cômoda missão de fazer valer a previsão normativa naquele caso. Acrescente-se ainda que Kelsen, intentando afastar do Direito qualquer influência valorativa, procurou atribuir ao mesmo uma perspectiva pura, no sentido de que o fenômeno jurídico deveria ser sinônimo de norma (conceito mais amplo do que o de lei), razão pela qual não atribuiu força normativa a um princípio jurídico, dada a sua carga extremamente valorativa. No Brasil, essa concepção foi amplamente aplicada durante o processo de interpretação do Código Civil de 1916, dando azo à (errônea) idéia de que o Codex era um prontuário completo que, de antemão, previa a solução para todos os problemas da vida civil, motivo pelo qual os fatos não abarcados por ele não mereciam proteção do ordenamento – basta relembrar a heróica batalha travada pelos companheiros de união estável para que a comunidade por eles formada fosse reconhecida como entidade familiar, o que somente ocorreu quase setenta anos depois da promulgação do Código, com o advento da Lex Fundamentallis, em 1988 (art. 226, § 3º). Aliás, não obstante a mudança dos tempos e a evolução da dogmática jurídica, ainda é muito comum verificar inúmeros (indagação preocupante: a maioria?) aplicadores do Direito, em plena pós-modernidade, adotando as idéias apregoadas por Kelsen na metade do século passado, deixando de conceder tutela jurisdicional às situações fáticas não previstas expressamente pelo ordenamento, a exemplo das uniões homoafetivas1, que continuam sendo tratadas, em diversos julgados2, como sociedades de fato (Direito Obrigacional) e não como entidades familiares (Direito de Família). Voltando-se radicalmente contra o caráter convencional do Direito, o jurisfilósofo americano Dworkin (2002), em algumas das suas geniais obras, sustentando que não há como o ordenamento prever todas as hipóteses fáticas da vida humana, aponta para a necessidade de que o Direito seja construído a partir da resolução do caso concreto. A solução de litígios, portanto, não deve ser preconcebida, mas sim engendrada caso a caso. 1 A nosso ver, o reconhecimento da união homoafetiva enquanto entidade familiar ocorreu no plano legislativo com o advento do art. 5º, II e parágrafo único, da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006. A esse respeito, recomendamos a leitura de ALVES (2003). 2 Destarte, impende registrar que importantes decisões judiciais vêm sendo recentemente proferidas reconhecendo a união homoafetiva como entidade familiar. A título de exemplo, mencionemos o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na Apelação Cível nº 70013801592, brilhantemente comentado Galvão (2007). 271 De Jure 9 prova 2.indd S1:271 11/3/2008 16:21:56 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Para esse fim, o ordenamento deve apenas fornecer as ferramentas, os instrumentos do trabalho a ser operado pelo jurista. Dentre tais instrumentos, sobreleva destacar que os princípios, sobretudo os constitucionais (direitos fundamentais), no entender de Dworkin, possuem força normativa, no que é muito bem acompanhado pelo Professor português Gomes Canotilho. Ademais, privilegiar a construção do Direito na prática significa estabelecer que somente existe uma única solução para a resolução de um dado caso concreto, a solução ideal. Nesse sentido, sem querer soar repetitivo, esclareça-se que a solução é ideal apenas e tão-somente para aquele caso concreto, podendo não valer para outros casos distintos, mesmo que eles guardem enorme semelhança com aquele. A partir desse raciocínio de Dworkin (ao qual nos filiamos sem restrições), é que consideramos de incomensurável importância a análise de decisões judiciais, ainda mais quando se trata de uma decisão judicial de tamanha envergadura como a que está ora em apreciação. Feito esse breve intróito, volvemos a mirar nossa atenção ao acórdão de lavra do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. No bojo da ação de execução de alimentos movida por A. S. P. e S.J.S.P., menores representados por R. S., foi indeferido o pedido de quebra do sigilo telefônico do executado. Irresignados, os exeqüentes interpuseram junto ao Tribunal o recurso de agravo de instrumento, o qual foi provido in totum, possibilitando a interceptação telefônica do devedor de alimentos. Assim julgando, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, seguindo a sua tradição sempre de vanguarda em matérias de direito de família, proferiu, com muita coragem, decisão absolutamente inédita no cenário jurídico nacional, a nosso ver com todo acerto, já que garantiu efetividade, no caso concreto, ao princípio constitucional do direito à vida (art. 5º, caput), que, sendo o seu titular criança ou adolescente, deverá ser assegurado pela família, sociedade e pelo Estado com absoluta prioridade (art. 227, caput). É bem verdade que uma primeira análise do acórdão sub occulis, feita de forma perfunctória, deve suscitar uma instigante dúvida: não estaria sendo violado por ele o quanto disposto no art. 5º, XII, da Carta Magna Federal? Segundo o aludido dispositivo constitucional, “[...] é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei3 estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Com base nesse dispositivo, 3 A lei que disciplina as interceptações telefônicas é a Lei nº 9.296, de 24.07.1996. 272 De Jure 9 prova 2.indd S1:272 11/3/2008 16:21:57 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS prevalece a regra geral de que a intimidade do cidadão, em suas diversas facetas (in casu, sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas), é inviolável (princípio constitucional da intimidade), regra esta que cede espaço excepcionalmente nas hipóteses de investigação criminal ou instrução processual penal, desde que haja autorização judicial nesse sentido. Ora, tendo em vista que a ação de execução de alimentos, como é cediço, tem natureza civil, a decisão do TJRS não afrontaria o mandamento constitucional em destaque? A resposta, em tese, deve ser positiva. Por conta disso, abalizada doutrina critica severamente a norma constitucional, sustentando a conveniência de que ela permitisse a interceptação telefônica em processo não penal (civil). Nesse trilhar, Grinover (2001, p. 180) leciona que “[...] não se pode apoiar a opção da Constituição, limitando a possibilidade de interceptações telefônicas ilícitas ao processo penal. Também no processo não-penal pode haver relações controvertidas de direito material que envolvam valores relevantes”. Destarte, a resposta positiva àquela indagação, como já afirmado alhures, é válida apenas em tese, ou seja, aprioristicamente. A avaliação das circunstâncias fáticas trazidas pelo presente caso concreto, como registramos no início deste trabalho, evidenciará que não houve desrespeito a nenhum princípio constitucional, muito pelo contrário, o decisum pretoriano teve justamente o mérito de resguardar, com absoluta prioridade, o direito à vida dos menores-agravantes. Nesse sentido, faz-se indispensável, neste momento, apontar as peculiaridades próprias do caso em testilha. Nos termos do relatório e do voto de lavra da Desembargadora Presidenta-Relatora, a brilhante Dra. Maria Berenice Dias, a medida de interceptação telefônica foi requerida pelos agravantes tão-somente para possibilitar a localização do executado, foragido há mais de um ano, e tornar eficaz a ordem de prisão expedida em seu desfavor. Aliás, aqui é importante também destacar que a desídia do executado no pagamento dos alimentos devidos foi renitente, possuindo um longo histórico, senão vejamos: a ação de execução foi interposta em maio de 2005, sendo que os alimentos foram pagos, pela última vez, no distante mês de março de 2004, exclusivamente com o objetivo de afastar o cumprimento de um mandado de prisão; em seguida, o executado foi citado para o pagamento das prestações em atraso em janeiro de 2006, sendo que deixou transcorrer tal prazo in albis, motivo pelo qual sua prisão foi decretada em abril de 2006, oportunidade em que a dívida alimentar já era superior ao montante de R$ 37.000,00; visando frustrar o cumprimento do mandado de prisão, o executado evadiu-se; ainda assim, os agravantes e sua Procuradora intentaram por diversas vezes encontrá-lo, tendo esta última, inclusive, ido até a cidade de São Paulo, em mais de 273 De Jure 9 prova 2.indd S1:273 11/3/2008 16:21:57 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS duas oportunidades, e acionado os agentes da Delegacia de Capturas desse município, sem, contudo, lograrem êxito na localização do devedor; atualmente o executado continua foragido, tanto assim que não foi intimado para apresentar contra-razões do agravo de instrumento interposto. Como se vê, portanto, foi em razão desses insucessos na localização do executado que os agravantes pleitearam a interceptação telefônica dele. Pode-se afirmar então que tal medida foi requerida como ultima ou extrema ratio4, já que teve lugar apenas quando os credores esgotaram todos os meios para encontrar o devedor, em sede da já extremada ação de execução. Caso assim não fosse procedido, a vida daqueles estaria em sério risco, afinal de contas, como se sabe, o direito a alimentos tem como função precípua assegurar a sobrevivência, a vida do seu titular. Nessa linha de intelecção, impende relembrar que o direito à vida, assim como o direito à intimidade, também possui status constitucional, estando expressamente consubstanciado no artigo 5º, caput, do Texto Maior, e igualmente protegido pelo artigo 60, § 4º, IV, da Constituição, que o define como cláusula pétrea. Nunca é demais reprisar ainda que a Carta Magna vai além da proteção à vida ao estipular como princípio vetor da República Federativa do Brasil, no seu artigo 1º, III, o direito a uma vida digna (princípio da dignidade da pessoa humana). Noutro giro, sobreleva destacar que, no caso particular das crianças e dos adolescentes, faixa etária ocupada pelos agravantes, em face da situação peculiar por eles vivenciada de formação e desenvolvimento da personalidade, há comando constitucional (art. 227, caput) determinando que o direito à vida será garantido pela família, sociedade e pelo Estado com absoluta prioridade (princípio da proteção integral), o que implica, em bom português, a supremacia de tal direito sempre que o exercício de um direito de terceiro (mesmo com foro constitucional) possa prejudicá-lo. Como se vê, saímos daquela situação inicial em que uma mera atividade de subsunção do fato à norma constitucional (art. 5º, XII) levaria ao equivocado entendimento de que o acórdão de lavra do TJRS teria violado a proteção à intimidade ali consagrada e, após analisar as circunstâncias fáticas do caso concreto, percebemos que, na verdade, resta desenhado um cenário onde princípios de origem constitucional estão em jogo: de um lado, o princípio da proteção à intimidade; de outro, os princípios do direito à vida e da proteção especial conferida às crianças e aos adolescentes. O conflito que se estabelece, portanto, não é entre uma decisão judicial e um dispositivo constitucional, mas sim entre princípios com a mesma hierarquia constitucional. 4 A título de curiosidade, registre-se que, mutatis mutandis, a idéia de ultima ou extrema ratio na interceptação telefônica também tem aplicabilidade na seara penal, pois ela somente será admitida se a prova do crime não puder ser feita por outros meios disponíveis, nos termos do art. 2º, II, da Lei nº 9.296/96. 274 De Jure 9 prova 2.indd S1:274 11/3/2008 16:21:57 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Para a resolução desse conflito (que nunca existe em tese, surgindo somente na prática, pois há a presunção de que as normas constitucionais foram criadas para conviverem em harmonia), há de se recorrer ao princípio da proporcionalidade (Robert Alexy) – ou da razoabilidade ou da ponderação dos interesses, conforme o Professor Daniel Sarmento, ou ainda, como é tratado pela doutrina alemã, da vedação do excesso – segundo o qual um princípio de menor relevância (aspecto a ser apurado também na prática) deve ceder espaço temporariamente, naquele caso concreto, a um princípio de maior estirpe, que, a nosso ver, será sempre aquele garantidor do (super)princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), razão de ser de todo o ordenamento jurídico. Não é preciso muito esforço para identificar que, no caso sub examine, a efetivação dos princípios do direito à vida e da proteção integral da criança e do adolescente será a única forma de promover a dignidade da pessoa humana dos agravantes, devendo então a intimidade do executado ser aqui preterida. Ora, o dano provocado à situação pessoal do executado por conta da desconsideração do seu direito à intimidade será muito menor do que aquele causado aos agravantes se a eles não forem disponibilizados os alimentos devidos, pois, na segunda hipótese, estará em risco a própria vida deles. Ademais, como muito bem ponderado pela Desembargadora Dra. Maria Berenice Dias, é noção das mais comezinhas da Teoria Geral do Direito que nenhum direito é absoluto, mesmo o direito à vida, que pode ser subjugado no caso de guerra declarada contra agressão estrangeira (art. 5º, XLVII, parte final, e art. 84, XIX, ambos da Constituição). Por se tratar de ação de execução de alimentos, a própria ordem jurídica determina de antemão uma hipótese em que os direitos à intimidade e à liberdade cederão lugar aos direitos à vida e à proteção integral do exeqüente, qual seja, a possibilidade da prisão civil do executado. À guisa de tudo quanto expendido, forçoso reconhecer o acerto da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em permitir a interceptação telefônica em sede de ação de execução de alimentos como medida garantidora da verba alimentar devida, o que, em uma perspectiva de fundo, importa em salvaguarda dos direitos à vida e à proteção integral dos agravantes, enfim, da dignidade humana de tais pessoas. Neste cenário, pode-se afirmar que o direito constitucional à intimidade não foi violado ou sequer relativizado, mas apenas afastado em um determinado caso concreto. Em outras palavras, reconhecemos que persiste a regra geral da possibilidade de interceptação telefônica somente em investigações e processos criminais, como consta da redação do art. 5º, XII, da Constituição Federal; destarte, tal regra não pode 275 De Jure 9 prova 2.indd S1:275 11/3/2008 16:21:57 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ter aplicação na hipótese prática aqui discutida para que não haja prejuízos a direitos igualmente constitucionais que in casu se mostram superiores, quais sejam, o direito à vida e o direito à proteção integral dos menores de idade. De outro lado, deve-se reconhecer que o julgado do TJRS foi a solução única e ideal para esse caso concreto, diante das circunstâncias fáticas por ele apresentadas, não sendo certo, porém, que tal decisão poderia ser proferida em outras situações diversas. Com isso queremos dizer que não passou a estar autorizada a interceptação telefônica em todo e qualquer processo civil, mesmo de direito de família. Reiteramos novamente que a regra constitucional da vedação da interceptação telefônica em processos dessa natureza continua aprioristicamente válida. A exceção a essa regra somente é cabível quando direitos constitucionais de maior relevância (aspecto a ser também aferido na casuística) são colocados em conflito com ela, devendo aqueles afastar a incidência desta, por força do princípio da proporcionalidade. Como visto ao longo deste trabalho, tal situação efetivamente ocorreu no caso apreciado pelo Tribunal gaúcho, já que, em virtude da injustificada desídia do executado no pagamento da pensão alimentícia e do insucesso dos agravantes na incessante procura daquele, considerando-se ainda que é ínsita ao instituto dos alimentos a proteção à vida, a qual deve ser garantida com absoluta prioridade aos credores menores de idade, eles não tiveram outra alternativa a não ser a postulação em juízo da quebra do sigilo telefônico do devedor, como ultima ratio na tentativa de encontrar o seu paradeiro e, como finalidade maior, para a obtenção dos alimentos. 4. Considerações finais Após analisarmos com vagar a inédita decisão proferida pelo TJRS, permitindo a interceptação telefônica em ação de execução de alimentos, concluímos, em definitivo, que ela não violou o direito à intimidade do executado previsto no art. 5º, XII, da Carta Magna, mas sim, com base no princípio da proporcionalidade, deu preponderância a outros direitos com sede igualmente constitucional, quais sejam, os direitos à vida e à proteção integral dos exeqüentes menores de idade, por possuírem esses últimos direitos, no caso concreto, maior relevância. Sem dúvida alguma, como muito bem destacado pela Desembargadora-Relatora em seu voto, a louvável decisão da Corte gaúcha cumpre importante função educativa de evitar que devedores de alimentos voltem a se comportar de forma tão negligente, como sói ocorrer em ações dessa natureza. Nessa esteira, encerramos este trabalho manifestando o desejo de que o raciocínio desenvolvido pelos juristas dos pampas sirva como balizamento em todas as demandas 276 De Jure 9 prova 2.indd S1:276 11/3/2008 16:21:57 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS de direito de família levadas aos Tribunais deste País, o que certamente assegurará a materialização do (super)princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Uma salva de palmas ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul! 5. Referências bibliográficas ALVES, Leonardo Barreto Moreira. A constitucionalização do direito de família. JusNavigandi, Teresina, a. 6, n. 52, nov. 2001. Disponível em: http://www1.jus.com. br/doutrina/texto.asp?id=2441 Acesso em: 4 jan. 2003. ______. O reconhecimento legal do conceito moderno de família: o art. 5o, II e parágrafo único, da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Jus Navigandi, Teresina, a. 11, n. 1225, 8 nov. 2006. Disponível em: <htt://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=9138>. Acesso em: 12 nov. 2006. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. GALVÃO, Heveraldo Galvão. Revista Brasileira de Direito de Família, v. 8, n. 40, p. 72-99, fev./mar. 2007. GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. As Nulidades no Processo Penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2001. KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 4. ed. São Paulo: RT, 2006. 277 De Jure 9 prova 2.indd S1:277 11/3/2008 16:21:58 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2. JURISPRUDÊNCIA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL o 1 Acórdão. EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO IMPETRADO PELA OAB EM DEFESA DE SEUS MEMBROS. COMPETÊNCIA: JUSTIÇA FEDERAL. ART. 109, I DA CONSTITUIÇÃO. 1. O apelo extremo está bem fundamentado na parte em que renova a preliminar de incompetência da justiça estadual, pois impugna todos os argumentos adotados pelo Tribunal a quo em sentido contrário. Não há falar, portanto, em aplicação da Súmula STF nº 283. 2. O art. 109, I da Constituição não faz distinção entre as várias espécies de ações e procedimentos, bastando, para a determinação da competência da Justiça Federal, a presença num dos pólos da relação processual de qualquer dos entes arrolados na citada norma. Precedente: RE 176.881. 3. Presente a Ordem dos Advogados do Brasil - autarquia federal de regime especial - no pólo ativo de mandado segurança coletivo impetrado em favor de seus membros, a competência para julgá-lo é da Justiça Federal, a despeito de a autora não postular direito próprio. 4. Agravo regimental parcialmente provido, tão-somente para esclarecer que o acolhimento da preliminar de incompetência acarretou o provimento do recurso extraordinário. (STF, RE-AGR 266689/MG, 2a Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, Julgamento 17/08/2004, DJ 03/09/2004). 2o Acórdão. EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECURSO TRABALHISTA - TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO - CF/88, ART. 7º, XIV - DIRETRIZ JURISPRUDENCIAL FIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SÚMULA 675/STF - CÁLCULO DOS ADICIONAIS RELATIVOS ÀS HORAS SUPLEMENTARES - MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL - PAGAMENTO DA SÉTIMA E DA OITAVA HORAS TRABALHADAS - REEXAME DE FATOS E DE PROVAS - IMPOSSIBILIDADE - SÚMULA 279/STF - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO IMPROVIDO. MULTA E EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE RECORRER. - O abuso do direito de recorrer - por qualificar-se como prática incompatível com o postulado éticojurídico da lealdade processual - constitui ato de litigância maliciosa repelido pelo ordenamento positivo, especialmente nos casos em que a parte interpõe recurso com intuito evidentemente protelatório, hipótese em que se legitima a imposição de multa. A multa a que se refere o art. 557, § 2º, do CPC possui função inibitória, pois visa a impedir o exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do processo como instrumento de retardamento da solução jurisdicional do conflito de interesses. Precedentes. (STF, AI-AGR 656944/MG, 2a Turma, Rel. Min. Celso de Mello, Julgamento 26/06/2007, DJ 24/08/2007). 278 De Jure 9 prova 2.indd S1:278 11/3/2008 16:21:58 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1o Acórdão. EMENTA: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. TURMA RECURSAL DE JUIZADO ESPECIAL CÍVEL E TRIBUNAL DE JUSTIÇA. COMPETÊNCIA RECURSAL. SENTENÇA PROFERIDA EM COMARCA DE VARA ÚNICA. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. RITO POSTULADO E, DE FATO, IMPRIMIDO À CAUSA: ARTS. 926 E SS. DO CPC. VALOR DO IMÓVEL SUPERIOR A QUARENTA SALÁRIOS MÍNIMOS. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1. Tendo sido proposta a possessória perante a Vara Única da Comarca de Brasília de Minas/MG, em que o Juiz de Direito exerce também a competência dos Juizados Especiais, uma vez não instalada vara especializada, discute-se, in casu, a competência recursal para julgamento da apelação, se da Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis ou do Tribunal de Justiça. 2. Da interpretação lógico-sistemática da petição inicial, concluise que não objetivava o autor que a ação seguisse o rito célere dos Juizados Especiais, preferindo fosse observado o procedimento dos arts. 926 e ss. do Código de Processo Civil. 3. Na espécie houve apreciação do pedido de liminar, realização de audiência de justificação prévia, apresentação de réplica e memoriais, bem como extensa fase de instrução probatória. Assim, considerando que “quando processadas as ações possessórias perante o Juizado Especial Cível, devemos observar o procedimento especial regulado pela Lei nº 9.099/95, e não o especial regulado no Código de Processo Civil, em seus arts. 920 e segs.” (SILVA, Luiz Cláudio. “Os Juizados Especiais Cíveis na Doutrina e na Prática Forense”. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 19), não há como negar que a demanda foi processada e julgada pela magistrada a quo no exercício da competência de Juíza de Direito de Vara Cível ordinária. 4. O valor do imóvel objeto da ação possessória, para que seja cabível seu processamento e julgamento no âmbito do Juizado Especial Cível, não pode ser superior a quarenta salários mínimos. Interpretação doutrinária e jurisprudencial do art. 3º, I e IV, da Lei 9.099/95. 5. Cuidando os autos de ação de reintegração de posse de imóvel rural com área de 275,88 ha (duzentos e setenta e cinco vírgula oitenta e oito hectares), cuja real expressão econômica é indiscutivelmente superior não apenas ao valor atribuído à causa (R$ 500,00 – quinhentos reais), mas ainda ao máximo legal, o processamento e julgamento da demanda cabe à Justiça Comum ordinária. 6. Conflito conhecido para declarar competente o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o suscitado. (STJ, CC 62402/MG, 2a Seção, Rel. Min. Fernando Gonçalves, Julgamento 26/09/2007, DJ 11/10/2007, p. 283). 2o Acórdão. EMENTA: PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – CF/88, ARTS. 5º, INCISO XXXV, E 93, INCISO IX – QUESTÕES NÃO DEBATIDAS – PRINCÍPIO DEVOLUTIVO – INOVAÇÃO DE FUNDAMENTOS – VEDAÇÃO NA VIA RECURSAL ELEITA – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – ANÁLISE DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL 279 De Jure 9 prova 2.indd S1:279 11/3/2008 16:21:58 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS – IMPOSSIBILIDADE – IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA – AUSÊNCIA – INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 182/STJ. I – As recentes alterações introduzidas no Código de Processo Civil autorizam o Relator a julgar monocraticamente o mérito do recurso especial, mesmo em sede de agravo de instrumento. Precedentes. II – Não é possível, em sede de agravo interno, analisar questão não suscitada em sede de recurso especial, nem debatida pelo Tribunal a quo. Precedentes. III – Em sede de recurso especial, a competência desta Corte Superior se limita à interpretação e uniformização do direito infraconstitucional federal, a teor do disposto no art. 105, inciso III, da Constituição Federal. Impossibilitado, portanto, o exame de eventual violação de dispositivos constitucionais, sob pena de usurpação da competência atribuída ao augusto Supremo Tribunal Federal. IV – A ora agravante não demonstrou o desacerto da negativa de provimento. Aplicação da Súmula n. 182/STJ, uma vez que deixou de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada. Precedentes. V – AGRAVO REGIMENTAL NÃO CONHECIDO. (STJ, AGRGAG 654960/MG, 4a Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, Julgamento 02/10/2007, DJ 22/10/2007, p. 280). JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS 1o Acórdão. EMENTA: DIREITO PREVIDENCIÁRIO - DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA - SERVIDOR INATIVO - REPETIÇÃO DE INDÉBITO - IPSEMG - LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO NULIDADE DO PROCESSO. Em sendo o IPSEMG o destinatário das contribuições previdenciárias descontadas pelo Município de Cambuí, de seus servidores, e ausente a demonstração de que o referido município deixou de repassá-las à autarquia estadual, o pólo passivo, na ação de repetição de indébito tributário, deverá ser composto pelas duas pessoas jurídicas de DIREITO público, como litisconsortes necessários. DIREITO PREVIDENCIÁRIO - DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA - SERVIDOR INATIVO - REPETIÇÃO DE INDÉBITO - JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE - CERCEAMENTO DE DEFESA - OCORRÊNCIA. Caracteriza-se o cerceamento de defesa, quando o juiz julga prematuramente o feito, sem a dilação probatória necessária ao esclarecimento dos fatos alegados pelas partes, violando o comando contido no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal. DIREITO PREVIDENCIÁRIO - DIREITO PROCESSUAL CIVIL - CONEXÃO - DENUNCIAÇÃO DA LIDE - EX-PREFEITO - CONVERSÃO DE RITO - NÃO CABIMENTO - CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SERVIDOR INATIVO - REPETIÇÃO DE INDÉBITO - AUSÊNCIA DE CONVÊNIO - EMENDA CONSTITUCIONAL 41/03 - IMPOSSIBILIDADE. Ausentes os requisitos previstos no artigo 103 do Código de Processo CIVIL, não há como reconhecer a ocorrência de conexão. Descabe a denunciação da lide do ex-Prefeito, em ação de repetição de indébito, seja pela ausência de previsão legal, seja por se tratar 280 De Jure 9 prova 2.indd S1:280 11/3/2008 16:21:58 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS de fundamento novo, que não guarda pertinência com a causa de pedir. O rito sumário é cabível para as causas de pequena complexidade, cujo valor não ultrapasse o limite previsto no artigo 275, I, do Código de Processo CIVIL. Inexistindo convênio ou legislação municipal autorizando o município a descontar contribuição previdenciária, a restituição dos valores é medida que se impõe, ainda mais quando a maioria dos descontos foi suportada por servidor inativo, antes do advento da emenda constitucional 41/03. Súmula: REJEITARAM PRELIMINAR DE NULIDADE DO PROCESSO, VENCIDO O RELATOR. REJEITARAM PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA, VENCIDO O RELATOR. REJEITARAM PRELIMINAR DE CONEXÃO, À UNANIMIDADE. REJEITARAM PRELIMINAR DE DENUNCIAÇÃO À LIDE, À UNANIMIDADE. REJEITARAM PRELIMINAR DE IMPROPRIEDADE DE RITO, À UNANIMIDADE. NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO, À UNANIMIDADE. (TJMG, Processo 1.0106.06.022396-8/001, Relator Moreira Diniz, Julgamento 19/04/2007, Publicação 24/05 2007). 2o Acórdão. EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITO PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – TUTELA JURISDICIONAL VOLTADA A INTERESSES COLETIVOS – DIREITO INDIVIDUAL – INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA – ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO – CARÊNCIA DE AÇÃO – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO CONDICIONADA À CONDUTA FALTOSA DOS PAIS. A ação CIVIL pública, uma das espécies da denominada jurisdição coletiva, deve ser destinada, em virtude da sua essência, à obtenção de provimento judicial que diga com direitos trans-individuais, que tenda ao favorecimento de uma gama despersonalizada de interesses. Ante a inexistência de autorização, pela Constituição Federal, ou pela lei processual, para o MINISTÉRIO PÚBLICO, em nome próprio, ingressar em juízo em favor de pessoas naturais específicas, impõe-se a extinção do processo, sem julgamento de mérito, por ilegitimidade ativa, se a ação foi proposta nesses moldes. Para admitir que o MINISTÉRIO se lance na defesa de direitos individuais de criança, exige-se a demonstração de que os pais, legítimos representantes do menor, estejam impossibilitados de fazê-lo ou tenham perdido a qualificação jurídica para tanto. DIREITO CONSTITUCIONAL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – ATENDIMENTO INTEGRAL – INTERNAÇÃO EM HOSPITAL HABILITADO – DIREITO ASSEGURADO - GARANTIA CONSTITUCIONAL. É assegurado ao cidadão o DIREITO de ter uma prestação integral dos serviços públicos de saúde, aí incluída a internação em casa de saúde que ofereça suficientes condições de tratamento dos enfermos, em obediência às garantias fundamentais consagradas pela Constituição Federal. Súmula: REJEITARAM PRELIMINAR, VENCIDO O RELATOR. NO MÉRITO, REFORMARAM A SENTENÇA PARCIALMENTE. (TJMG, Processo 1.0015.03.012410-9/001, Relator Moreira Diniz, Julgamento 04/08/2005, Publicação 02/09/2005). 281 De Jure 9 prova 2.indd S1:281 11/3/2008 16:21:58 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3o Acórdão. EMENTA:APELAÇÃO CÍVELNº 444.452-0 - DIVINÓPOLIS - 13.04.2005 EMENTA: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - INÉPCIA DA INICIAL - INOCORRÊNCIA - NÃO-INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PRIMEIRO GRAU NULIDADE AFASTADA - SENTENÇA ILÍQÜIDA - NULIDADE INEXISTENTE - PRESCRIÇÃO - NÃO-OCORRÊNCIA - PREVIDÊNCIA PRIVADA - CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO - DEVOLUÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES CORREÇÃO MONETÁRIA - EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. 1- Descrevendo o autor os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido, bem como formulando o próprio pedido, não trazendo ao réu a mínima dificuldade para se defender, nem ao Judiciário para compor a lide, não há que se falar em inépcia da inicial. 2- Não há que se falar em nulidade do processo, pela não-intervenção do MINISTÉRIO PÚBLICO no Juízo a quo, se desse fato não resultou prejuízo para as partes, e se, ademais, o representante do Parquet no segundo grau nada alegou. 3- Não é passível de anulação a sentença ilíquida se o pedido do autor também não foi certo, e mormente se a questão foi argüida pelo réu, a quem não se reconhece o interesse jurídico para fazê-lo, uma vez que o preceito contido no parágrafo único, do art. 459, do CPC, foi instituído em benefício do primeiro. 4- Segue a regra geral do art. 177 do Código CIVIL de 1916, e não a do § 10, inciso II, do art. 178, do mesmo diploma legal, a prescrição do DIREITO de cobrar a diferença de correção monetária que supostamente deveria incidir sobre a reserva de poupança dos associados da REFER, na medida em que a questão não guarda identidade com quaisquer outras prestações a serem pagas da mesma forma, bem como pelo fato de se tratar de DIREITO pessoal. 5- O recibo de quitação assinado pelo associado, ainda que ausente qualquer ressalva, não lhe retira o DIREITO de discutir em Juízo valor não recebido, uma vez que a quitação é dada somente pelo que o associado efetivamente recebeu. 6- O associado de fundação de assistência e previdência privada tem DIREITO, por ocasião do rompimento do contrato de trabalho, ao recebimento das parcelas que pagou, atualizadas monetariamente pelo índice que mais fielmente reflita a recomposição da real expressão da moeda, com a inclusão, na conta de liquidação, dos chamados “expurgos inflacionários” que tenham sido excluídos a cada plano econômico do Governo Federal. 7- “A restituição das parcelas pagas a plano de previdência privada deve ser objeto de correção plena, por índice que recomponha a efetiva desvalorização da moeda” (Súmula 289 do STJ). 8- Os índices integrais a serem aplicados no cálculo de correção monetária, incluídos os “expurgos inflacionários”, de acordo com a orientação da jurisprudência, são de 26,06% em junho de 1987, 42,72% em janeiro de 1989, 10,14% em fevereiro de 1989, 84,82% em março de 1990, 44,80% em abril de 1990, 7,87% em maio de 1990, 21,87% em fevereiro de 1991 e 11,79% em março de 1991. Rejeitaram as preliminares e negaram provimento. (TJMG, Processo 2.0000.00.444452-0/000, Relator Maurício Barros, Julgamento 13/04/2005, Publicação 07/05/2005). 282 De Jure 9 prova 2.indd S1:282 11/3/2008 16:21:59 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA 3.1 CAPÍTULOS DA SENTENÇA E FORMAÇÃO DA CHAMADA COISA JULGADA PROGRESSIVA: INÍCIO DO PRAZO PARA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO RESCISÓRIA SAMUEL ALVARENGA GONÇALVES Oficial do Ministério Público Bacharel em Direito 1. Ementa do Acórdão RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. PRAZO DECADENCIAL. TERMO A QUO. TRÂNSITO EM JULGADO DA ÚLTIMA DECISÃO PROFERIDA NA CAUSA. ENTENDIMENTO FIRMADO PELA CORTE ESPECIAL. O certo é que, havendo um único processo e uma única sentença, não há cogitar de coisa julgada material progressiva. A coisa julgada material somente ocorre com o trânsito em julgado da última decisão proferida na causa. É impossível dividir uma única ação, que deu origem a um único processo, em tantas quantas forem as questões submetidas ao Judiciário, sob pena de se provocar um verdadeiro caos processual, ferindo os princípios que regem a preclusão, a coisa julgada formal e material, e permitindo, até mesmo, a rescisão de capítulos em relação aos quais nem sequer se propôs ação rescisória. A ação rescisória representa a última barreira para a definição permanente dos direitos discutidos no processo e tem como fundamento rigorosa ponderação entre o princípio de justiça e o da segurança jurídica. Por esse motivo, no dizer do mestre Pontes de Miranda, “é processo sobre outro processo”, razão pela qual pressupõe, obviamente, extinção do processo rescindendo, operada a coisa julgada material. Dessa forma, a jurisprudência desta Corte Superior se orienta no sentido de que “o termo inicial para a contagem do prazo do artigo 495 do CPC deve ser o do trânsito em julgado da última decisão da causa, momento em que ocorre a coisa julgada material” (AR 846, da relatoria deste Magistrado, DJU 1.8.2000) e, bem assim, de que “o prazo de decadência para ingresso de ação rescisória conta-se a partir do trânsito em julgado da decisão rescindenda que ocorre com o término do prazo para interposição do último recurso, em tese, pela parte, sem se levar em consideração a situação peculiar de cada parte” (EDAR 1.275/SP, Rel. Min. José Arnaldo, DJU 22.10.01). 283 De Jure 9 prova 2.indd S1:283 11/3/2008 16:21:59 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Ainda que se considere ter um determinado tema se tornado absolutamente imutável durante o caminhar do processo, seria escusado afirmar que o prazo para o ajuizamento da ação rescisória a seu respeito estaria suspenso, visto que essa ação, como já se explicitou, pressupõe o encerramento do processo. De acordo com os fundamentos acima explicitados, portanto, forçoso concluir que a presente ação rescisória foi proposta dentro do prazo decadencial de 2 anos. O raciocínio acima expendido foi o que prevaleceu no julgamento, pela colenda Corte Especial, do EREsp 404.777/DF (Rel. p/acórdão Min. Peçanha Martins, j. em 03.12.2003). Recurso especial improvido. (BRASIL, 2005). 2. Justificativa Decidimos comentar o aresto acima citado no intuito de apresentar a polêmica que se observa acerca do início do prazo para ajuizamento de ação rescisória em face de sentenças que foram apenas parcialmente impugnadas. Em outros termos, o nosso trabalho propõe, de forma sucinta, demonstrar como a doutrina e a jurisprudência, notadamente a do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, visualizam essa matéria. Como é cediço ocorrer, o magistrado, em sua sentença, pode julgar procedente apenas parte dos pedidos formulados. Nesse sentido, o autor insurge-se exclusivamente contra os tópicos da sentença que lhe foram desfavoráveis. Por exemplo, um cidadão ajuíza uma ação pedindo A, B e C. O juiz de 1ª instância, no ano de 2002, julga procedente A, rejeitando B e C. O demandante, então, apela para o respectivo Tribunal de Justiça do seu Estado, pugnando pela reforma em relação aos pedidos B e C, julgados improcedentes no 1º grau; o Tribunal, no ano de 2004, dá provimento ao recurso somente em relação a B; por fim, o recorrente apresenta Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça impugnando a decisão do 2ª grau sobre o item C do seu pedido inicial, o que não é acolhido no STJ, conforme decisão proferida em 2006. Diante do cenário fictício apresentado, indaga-se: quando começa a correr o prazo decadencial de 2 anos (CPC, art. 495) para o ajuizamento da ação rescisória? Seria o caso de ajuizamento de uma única rescisória abrangendo todos os pedidos A, B e C, e cujo prazo começaria a fluir a partir do último julgamento no processo pelo STJ, em 2006? Ou então, seria a hipótese de ajuizamento de várias ações rescisórias especificamente em relação a cada pedido não submetido a recurso – assim, o prazo da rescisória em relação ao pedido A terminaria no ano de 2004; em relação ao pedido B em 2006 e em relação ao pedido C em 2008? Ocorre que, de um modo geral, doutrina e jurisprudência não possuem um mesmo entendimento sobre a matéria, o que faz gerar algumas discussões e mesmo repercussões significantes na sistemática recursal e no atual esquema de cumprimento 284 De Jure 9 prova 2.indd S1:284 11/3/2008 16:21:59 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ou execução de sentença. Por isso, a dúvida: quando a sentença transita em julgado em relação a vários pedidos formulados no bojo de uma mesma ação, mas que tenham sido apreciados e recebido julgamento de mérito em momentos diferentes? O tema, portanto, traz à baila institutos como a chamada coisa julgada progressiva e os denominados capítulos de sentença. Vejamos, pois, o tratamento da questão pela doutrina e jurisprudência pátrias. 3. Comentários 3.1 A coisa julgada progressiva na visão do STJ Como se observa na ementa em destaque, tem prevalecido o entendimento de que o STJ não aceita essa formação progressiva da coisa julgada. Conforme explicado pelo Ministro Franciulli Netto no seu excelente voto: Para contornar o postulado de que, ainda que a lide seja formada por várias pretensões, a sentença deve ser una, apreciando todas elas, há quem defenda a possibilidade de existir também várias decisões dentro da sentença que solucionar o conflito, ou quem destrince a sentença em capítulos, tantos quantos forem os pedidos formulados. Não há, porém, como se escapar da realidade: sempre existirá uma única ação, ainda que ela contenha, em seu bojo, várias pretensões, amparadas pela mesma causa de pedir. Capítulos poderiam existir desde que para cada pedido houvesse uma correspectiva causa de pedir. É notória a possibilidade de cumulação. Aliás, preceitua o artigo 292 do Código de Processo Civil a permissão de cumulação num único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos, ainda que entre eles não haja conexão. Segundo os desdobramentos do mesmo artigo, os requisitos de admissibilidade da cumulação voltam-se para a compatibilidade dos pedidos entre si, da competência do juízo para deles conhecer e do tipo de procedimento; se incompatíveis os últimos, ainda assim a cumulação pode ser admitida desde que o autor escolha o procedimento ordinário. Vê-se desde logo que o mencionado artigo de lei não diz que com a cumulação irão concorrer vários processos, mas sim que o processo é um só. Dessarte, não se pode falar em uma sentença com várias decisões, ou capítulos distintos, mas sim de uma única sentença que, em sua parte dispositiva, define tantos pedidos quantos foram formulados, não como capítulos à parte, mas como conseqüência da escolha inicial feita pela 285 De Jure 9 prova 2.indd S1:285 11/3/2008 16:21:59 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS própria embargante. O certo é que, havendo um único processo e uma única sentença, não há cogitar de coisa julgada material progressiva. A coisa julgada material somente ocorre com o trânsito em julgado da última decisão proferida na causa. (BRASIL, 2005). Na visão do relator do acórdão em comento, é perfeitamente admissível que o julgado rescindendo não seja o último proferido na causa. Em outras palavras: pouco importa que a matéria discutida na rescisória não tenha sido sequer cogitada no último acórdão proferido durante o processo. E para ratificar esse seu entendimento, o Ministro Franciulli Netto anota a lição dos Professores Coqueijo Costa e Calmom de Passos: De fato, na lição de Coqueijo Costa, ‘a data do trânsito em julgado da decisão de mérito nada tem a ver com a do termo inicial do prazo de decadência para a propositura da ação rescisória. Se esta só cabe quando formada a coisa julgada material, o que ocorre quando esgotado o último recurso, daí decorrerá o prazo preclusivo (decadencial de acordo com a doutrina predominante), que só flui quando pode ser utilizado’ (in ‘Ação Rescisória’, 6ª edição, revista e atualizada por Roberto Rosas, Editora São Paulo, p. 127). Em outro passo, lembra o ilustre Professor a lição de Calmon de Passos, para quem “nem sempre coincide o termo inicial do prazo de decadência com o momento mesmo em que transitou em julgado a decisão rescindenda, porque não se identificam o pressuposto de admissibilidade e o termo inicial desse prazo preclusivo. É certo – diz o mestre baiano – que o trânsito em julgado decorre da irrecorribilidade; que na hipótese de não conhecimento de um recurso, a decisão recorrida transitou em julgado na própria ocasião em que se configurou a causa da inadmissibilidade. Mas não é a partir desse momento em que se inicia a contagem do prazo para a propositura da ação rescisória, porque ‘nenhum prazo pode ter curso quando é impossível sua utilização’. É o princípio da ‘utilidade’, indissociável da configuração de qualquer prazo, e requer: lapso de tempo para recorrer e possibilidade prática de realização desse ato no curso de sua duração – duração que não pode ser eliminada nem restringida’ (opus. cit., p. 167). (BRASIL, 2005). No mesmo sentido, cita-se: PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO RESCISÓRIA - PRAZO PARA PROPOSITURA - TERMO INICIAL – TRÂNSITO 286 De Jure 9 prova 2.indd S1:286 11/3/2008 16:21:59 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS EM JULGADO DA ÚLTIMA DECISÃO PROFERIDA NOS AUTOS - CPC, ARTS. 162, 163, 267, 269 E 495. - A coisa julgada material é a qualidade conferida por lei à sentença /acórdão que resolve todas as questões suscitadas pondo fim ao processo, extinguindo, pois, a lide. - Sendo a ação una e indivisível, não há que se falar em fracionamento da sentença/acórdão, o que afasta a possibilidade do seu trânsito em julgado parcial. - Consoante o disposto no art. 495 do CPC, o direito de propor a ação rescisória se extingue após o decurso de dois anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida na causa. Embargos de divergência improvidos. (BRASIL, 2003). Em outro precedente, agora da lavra da Ministra Eliana Calmom, ficou assentado que deve ser afastada a tese da formação progressiva da coisa julgada em virtude das dificuldades de ordem prática surgidas com a possibilidade de ajuizamento de mais de uma ação rescisória, em momentos diversos, oriundas de uma mesma ação, o que depõe contra o princípio da economia processual, além de ensejar, em tese, decisões conflitantes. Vejamos a ementa do aresto: PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AÇÃO RESCISÓRIA – PRAZO DECADENCIAL - TERMO A QUO. 1. O termo inicial para o ajuizamento da ação rescisória é a data do trânsito em julgado da última decisão da causa, independentemente de o recurso ter sido interposto por apenas uma das partes ou a questão a ser rescindida não ter sido devolvida ao Tribunal. 2. O trânsito em julgado material somente ocorre quando esgotada a possibilidade de interposição de qualquer recurso. 3. Afasta-se tese em contrário, no sentido de que os capítulos da sentença podem transitar em julgado em momentos diversos. 4. Recurso especial provido. (BRASIL, 2002). A culta ministra, contudo, fez questão de apresentar que mesmo no STJ a questão já recebeu tratamento diverso, conforme denota a ementa do julgamento ao REsp nº 212286/RS: RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. PRAZO PARA O AJUIZAMENTO. TERMO INICIAL. DECADÊNCIA. QUESTÕES AUTÔNOMAS EM UMA SÓ DECISÃO. IRRESIGNAÇÃO PARCIAL. TRÂNSITO EM JULGADO DA MATÉRIA NÃO 287 De Jure 9 prova 2.indd S1:287 11/3/2008 16:22:00 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS IMPUGNADA. PRAZOS DISTINTOS. RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. O termo inicial do prazo decadencial para a propositura de ação rescisória não se conta da última decisão proferida no processo, mas, sim, do trânsito em julgado da que decidiu a questão que a parte pretende rescindir. 2. Deliberando o magistrado acerca de questões autônomas, ainda que dentro de uma mesma decisão, e, como na espécie, inconformando-se a parte tão-somente com ponto específico do decisum, olvidando-se, é certo, de impugnar, oportunamente, a matéria remanescente, tem-se-na induvidosamente por trânsita em julgado. 3. A interposição de recurso especial parcial não obsta o trânsito em julgado da parte do acórdão federal recorrido que não foi pela insurgência abrangido. 4. “Se partes distintas da sentença transitaram em julgado em momentos também distintos, a cada qual corresponderá um prazo decadencial com seu próprio dies a quo: vide PONTES DE MIRANDA, Trat. da ação resc., 5ª ed., pág. 353.” (in Comentários ao Código de Processo Civil, de José Carlos Barbosa Moreira, volume V, Editora Forense, 7ª Edição, 1998, página 215, nota de rodapé nº 224). 5. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. 6. Recurso não conhecido. (BRASIL, 2001). Vejamos, na seqüência, a opinião da parte da doutrina que esposa orientação contrária à sustentada pelo Egrégio STJ. 3.2 A coisa julgada progressiva na visão da doutrina Na fundamentação do julgamento ao REsp nº 415586/DF, a Ministra Eliana Calmom asseverou não desconhecer a doutrina de Barbosa Moreira e Humberto Theodoro Júnior, “[...] quanto ao trânsito em julgado, em momentos diversos, de partes (capítulos) da sentença, reconhecendo a possibilidade de ajuizamento de ações rescisórias diversas e com termo a quo do prazo decadencial a depender de quando ocorreu o trânsito em julgado” (BRASIL, 2002). Para melhor compreensão, destaco os seguintes trechos: Cumpre todavia enfatizar que, se algo da decisão recorrida transitou em julgado - por ter ficado fora do alcance do recurso, ou por dele não haver conhecido, no particular, o órgão ad quem -, e se é esse ponto que se quer impugnar, a ação rescisória deve ser proposta contra a decisão recorrida. Assim, v.g., quando o vício alegado, e existir, residiria na parte unânime do acórdão proferido em grau de apelação, e não naquele que, tomado por maioria de votos, tenha dado ensejo a embargos infringentes. 288 De Jure 9 prova 2.indd S1:288 11/3/2008 16:22:00 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Pode, naturalmente, caber outra ação rescisória contra o acórdão dos embargos; mas cada qual terá seus fundamentos próprios e inconfundíveis, e serão diferentes - ponto de enorme importância prática - os termos iniciais dos respectivos prazos de decadência. (Barbosa Moreira, Comentários ao CPC, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense, n. 195, p. 317/318). O ato decisório sujeito à rescisão é tanto a sentença do juiz como o acórdão do Tribunal. No caso de recurso, o julgamento do tribunal substitui a sentença recorrida (art. 512). Por isso, a ação rescisória, na espécie, terá como objeto o acórdão e não a sentença, salvo se o recurso não foi conhecido ou se não abrangeu o tema da sentença que motiva a rescisão. (Humberto Theodoro Júnior, CPC Anotado, Rio de Janeiro, Forense, 1995, p. 202) . (BRASIL, 2002). Com efeito, o mestre Pontes de Miranda (2003, p. 355) há muito ensinava haver tantas ações rescisórias quantas decisões transitadas em julgado em diferentes juízos e nas diferentes jurisdições. Explica o ilustrado jurista: O prazo preclusivo para a rescisão da sentença que foi proferida, sem recurso, ou com decisão que dele não conheceu, começa com o trânsito em julgado da sentença irrecorrida. Se houve recurso quanto a algum ponto, ou alguns pontos, ou todos, tem-se de distinguir aquilo de que se conheceu e pó de que não se conheceu. Há o prazo preclusivo a contar da coisa julgada naqueles pontos que foram julgados pelo segundo grau de jurisdição. A extensão da ação rescisória não é dada pelo pedido. É dada pela sentença em que se compõe o pressuposto da rescindibilidade. Se a petição continha 3 pedidos e o trânsito em julgado, a respeito do julgamento de cada um, foi em três graus de jurisdição, há tantas ações rescisórias quantos os graus de jurisdição. Nessa mesma quadra, Theodoro Júnior (2007, p. 792) também é favorável à tese da coisa julgada formada progressivamente no curso do processo, em se tratando de rescisão de sentenças complexas. Segundo o notável processualista mineiro: “É longa e consolidada a tradição de nosso direito processual civil, segundo a qual as partes do julgado que resolvam questões autônomas forma de per si sentenças que ostentam vida própria , podendo cada qual ser mantida ou reformada sem prejuízo para as demais”. Essas questões autônomas dentro de um mesmo dispositivo formam o que se convencionou denominar capítulos da sentença. O capítulo da sentença seria cada unidade do dispositivo sobre o qual o juiz decidiu um ponto específico na demanda. 289 De Jure 9 prova 2.indd S1:289 11/3/2008 16:22:00 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Segundo anotam Didier Jr., Braga e Oliveira (2007, p. 243), essas unidades autônomas e independentes podem ser capítulos puramente processuais ou capítulos de mérito: i) capítulos puramente processuais são aqueles que se pronunciam explicitamente sobre a possibilidade de se examinar o mérito, isto é, tratam da presença ou ausência dos requisitos de admissibilidade do julgamento de mérito; ii) capítulos de mérito são aqueles que se pronunciam sobre o próprio objeto litigioso do procedimento. Assim, as decisões homogêneas seriam aquelas que contêm ou apenas capítulos puramente processuais ou tão-somente capítulos de mérito; já as heterogêneas conteriam tanto capítulos processuais quanto de mérito (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 243). Seja como for, o certo é que para esse setor da doutrina, se um capítulo da sentença não for impugnado juntamente com os demais em recurso próprio à instância superior, haveria coisa julgada para aquele desde logo, a partir de quando o prazo da rescisória já começaria a fluir. Mas isso somente é possível se entre os capítulos impugnados e não impugnados houver total independência e autonomia. É a lição escorreita de Theodoro Júnior (2007, p. 594): Esse panorama da sentença dividida em capítulos oferecerá reflexos também no plano da rescisória, que, como dispõe o art. 485, se presta a desconstituir a sentença de mérito transitada em julgado. Logo, se é possível no mesmo processo formar-se, por capítulos, a coisa julgada em momentos diferentes, claro é que se poderá também cogitar de rescisão desses capítulos em ações rescisórias aforadas separadamente e em tempo diverso. Isto, porém, pressupõe a autonomia a independência ente os capítulos, pois só assim se haverá de pensar na possibilidade de sucessivas coisas julgadas em diferentes momentos. Barbosa Moreira (2006, p. 62), citado por Theodoro Júnior (2007, p. 795), também se filia à correntes daqueles que defendem a coisa julgada progressiva. Segundo o ilustre professor da Faculdade de Direito da UERJ, as resoluções de mérito proferidas em momentos distintos fazem com que essas decisões transitem em julgado em momentos distintos, estando aptas a produzir coisa julgada não restrita ao âmbito do feito em que emitidas. Para cada uma dessas decisões, se houver motivo legalmente previsto de rescindibilidade, será proponível uma ação rescisória individualizada, cujo prazo de decadência deverá ser computado caso a caso. Theodoro Júnior (2007, p. 796) leciona ainda que existem casos em que a própria lei impõe o julgamento escalonado da lide, desmembrando o procedimento em fases ou estágios, cada um deles encerrado mediante sentença e trânsito em julgado distintos. 290 De Jure 9 prova 2.indd S1:290 11/3/2008 16:22:00 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS É o caso da ação de prestação de contas, da ação de divisão e demarcação, da ação de inventário e partilha, da ação condenatória com uma parte líquida e ilíquida, da ação de consignação em pagamento em caso de dúvida quanto ao verdadeiro credor etc. Relembrando o nosso exemplo constante da parte preambular desses comentários, em que houve decisões de mérito desde o juiz de direito, passando pelo respectivo TJ até finalmente a última questão ser debatida em sede do STJ, calha trazer mais uma vez a orientação de Theodoro Júnior (2007, p. 796): Se foi possível encerrar capítulos da lide antes de chegar a causa ao STJ, não haverá inconveniente algum em que as rescisórias tratem separadamente de cada um dos capítulos perante o tribunal competente para apreciá-los. Não haverá contradição ou interferência dos julgados de um nos de outros tribunais, justamente porque a demanda fracionou-se em questões distintas e autônomas. Nada impedirá que a solução de uma persista, mesmo sendo rescindida a de outra. Por fim, conjugando do mesmo entendimento dessa parte doutrina, vale conferir o item II do Enunciado nº 100 da súmula do Tribunal Superior do Trabalho, in verbis: TST 100. AÇÃO RESCISÓRIA. DECADÊNCIA (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 13, 16, 79, 102, 104, 122 e 145 da SBDI-2) - Res. 137/2005, DJ 22, 23 e 24.08.2005. [...] II - Havendo recurso parcial no processo principal, o trânsito em julgado dá-se em momentos e em tribunais diferentes, contando-se o prazo decadencial para a ação rescisória do trânsito em julgado de cada decisão, salvo se o recurso tratar de preliminar ou prejudicial que possa tornar insubsistente a decisão recorrida, hipótese em que flui a decadência a partir do trânsito em julgado da decisão que julgar o recurso parcial. (exSúmula nº 100 - alterada pela Res. 109/2001, DJ 20.04.2001) 4. Conclusão A par do que foi visto, pode-se afirmar que a questão sobre a formação progressiva da coisa julgada ainda é bastante debatida em sede jurisprudencial e doutrinária. A divisão da sentença em unidades autônomas ou capítulos traz repercussões nas mais variadas áreas do processo civil, seja na sistemática recursal, seja na efetivação das decisões etc. Por um lado, o STJ entende não ser possível esse fracionamento na formação da coisa julgada, haja vista ser: 291 De Jure 9 prova 2.indd S1:291 11/3/2008 16:22:00 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS [...] impossível dividir uma única ação, que deu origem a um único processo, em tantas quantas forem as questões submetidas ao Judiciário, sob pena de se provocar um verdadeiro caos processual, ferindo os princípios que regem a preclusão, a coisa julgada formal e material, e permitindo, até mesmo, a rescisão de capítulos em relação aos quais nem sequer se propôs ação rescisória. (BRASIL, 2005). Em sentido oposto, parte considerável da doutrina de peso considera possível a chamada cisão em capítulos do dispositivo da sentença. Esses capítulos poderiam ser puramente processuais ou de mérito, e as decisões seriam homogêneas ou heterogêneas conforme abrangessem somente uma ou as duas espécies desses capítulos em seu dispositivo. (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 243). Disso, conclui esse setor da doutrina que julgamentos de mérito, de natureza definitiva, proferidos por juízos distintos e em momentos diversos, dentro de um só processo, provocam preclusões e formam coisas julgadas em estágios diferentes da marcha processual, o que possibilitaria impugnar individualmente cada um desses capítulos pela via da rescisória. (THEODORO JÚNIOR, 2007, p. 793). Assim, o “[...] termo inicial do prazo decadencial para a propositura de ação rescisória não se conta da última decisão proferida no processo, mas, sim, do trânsito em julgado da que decidiu a questão que a parte pretende rescindir”. (BRASIL, 2001). 5. Referências Bibliográficas BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 212286/RS. Relator: Min. Hamilton Carvalhido. Brasília, 14 de agosto de 2001. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 212.286/RS. Relatora: Min. Eliana Calmom. Brasília, 12 de novembro de 2002. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 404777/DF. Relator: Min. Fontes de Alencar. Relator para o Acórdão: Min. Francisco Peçanha Martins. Brasília, 3 de dezembro de 2003. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 705354 / SP. Relator: Min. Franciulli Netto. Brasília, 8 de março de 2005. DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Salvador: Podivum, 2007, v. 2. MIRANDA, Pontes de. Tratado da ação rescisória: das sentenças e de outras decisões. 2. ed. atual. por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2003. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, v. 1. 292 De Jure 9 prova 2.indd S1:292 11/3/2008 16:22:00 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 4. TÉCNICAS 4.1 FORMULAÇÃO DE REQUERIMENTO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA: ANÁLISE E COMPREENSÃO DO REQUISITO DA IRREVERSIBILIDADE NO PLANO DAS CONSEQÜÊNCIAS AO DIREITO DO REQUERIDO E TAMBÉM DO REQUERENTE. IRREVERSIBILIDADE FÁTICA E JURÍDICA GREGÓRIO ASSAGRA DE ALMEIDA Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Diretor do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional Mestre em Direito Processual Civil – PUC-SP Doutor em Direitos Difusos e Coletivos – PUC-SP Coordenador e membro do corpo docente do Mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (MG) SAMUEL ALVARENGA GONÇALVES Oficial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Bacharel em Direito Um dos temas mais desenvolvidos na processualística atual, sem dúvida, diz respeito às chamadas tutelas de urgência, das quais é espécie a antecipação dos efeitos da tutela final pretendida prevista no art. 273 do CPC. Na verdade, é imperioso ressaltar que a tutela antecipada no ordenamento jurídico brasileiro pode advir tanto da tutela de urgência quanto da tutela de evidência. A tutela de evidência diz respeito à probabilidade daquilo que se afirma no processo, relaciona-se aos fatos alegados pelas partes; por seu turno, a tutela de urgência referese ao perigo ou risco de lesão que os direitos discutidos na lide podem vir a sofrer no caso concreto, diante da situação fática em si. As situações de evidência e urgência não se contrapõem; antes, convivem harmonicamente e podem, inclusive, complementarem-se em alguns casos. A antecipação de tutela sempre será de evidência, pois um de seus pressupostos é a prova inequívoca da afirmação; mas também poderá ser baseada na urgência, como na hipótese do inciso I do art. 273 do CPC, em que o pedido se baseia em fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Em suma, a tutela antecipada consiste em uma técnica de antecipar aquilo que somente poderia ser obtido ao final, mediante o preenchimento de alguns pressupostos bem como a observância de alguns requisitos. Segundo escreveram Marinoni e Arenhart 293 De Jure 9 prova 2.indd S1:293 11/3/2008 16:22:01 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS (2006, p. 203), a técnica antecipatória visa distribuir o ônus do tempo do processo. Se antes, somente o autor sofria os efeitos da demora na tramitação do feito, agora, o demandado também será atingido com a extemporaneidade da entrega da prestação judicial, especialmente se contra si houver um provimento de caráter antecipatório. Ao escrever sobre a nova era do processo civil brasileiro, o insigne Dinamarco (2007, p. 65) asseverou sobre o tempo-inimigo e os males do retardamento da marcha processual: A realidade sobre as quais todos esses dispositivos opera é o tempo como fator de corrosão dos direitos, à qual se associa o empenho em oferecer meios de combate à força corrosiva do tempo-inimigo (sic). Quando compreendermos que tanto as medidas cautelares como as antecipações de tutela se inserem nesse contexto de neutralização dos males de decurso do tempo antes que os direitos hajam sido reconhecidos e satisfeitos, teremos encontrado a chave para nossas dúvidas conceituais e o caminho que há de conduzir à solução dos problemas práticos associados a elas. Pois bem. Em que pese a vasta gama de ponderações que poderiam ser feitas em relação ao tema, nos presentes comentários iremos abordar exclusivamente o § 2º do art. 273 do CPC no que diz respeito à não- concessão da tutela antecipada quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. Aliás, precisas são as lições de Nery Junior e Nery (2007, p. 529) ao comentarem o equívoco técnico da lei. Segundo explicam, não é o provimento que será irreversível, já que se trata de um ato revogável e provisório. O que poderão ser irreversíveis são as conseqüências ocorridas com a antecipação dos efeitos da tutela. O tema é importante justamente porque o requerimento na tutela antecipada deve demonstrar de forma clara a reversibilidade da medida; é, portanto, a partir da boa técnica na formulação do pleito, que o autor poderá ver deferidos a seu favor os efeitos da tutela final pretendida. Ocorre que, na maioria das ações, os requerentes se preocupam em demonstrar apenas que a medida poderá ser reversível sob a ótica do direito do requerido; todavia, não é essa a melhor interpretação que deve ser feita acerca da matéria. Haverá situações em que a irreversibilidade da medida poderá ocorrer em prejuízo ao direito do próprio autor, que, dada as circunstâncias da demanda, poderá estar a merecer proteção com absoluta prioridade, como no caso de violação ao direito fundamental à vida; pode ocorrer, também, que a irreversibilidade alcance o direito de ambos os litigantes, hipótese em que a solução jurídica ao caso concreto deverá passar pelo crivo da proporcionalidade. 294 De Jure 9 prova 2.indd S1:294 11/3/2008 16:22:01 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Em outras palavras, não basta a irreversibilidade de eventual lesão ao direito do demandado para que seja obstada a concessão de tutela antecipada. Didier Junior, Braga e Oliveira (2007, p. 543) aduzem que a exigência legal da irreversibilidade deve ser lida com temperamentos, pois uma interpretação por demais ampliada poderá conduzir à própria inutilidade da tutela. Nesse sentido, é válido transcrever o seu entendimento: Isso porque, em muitos casos, mesmo sendo irreversível a medida antecipatória – ex.: cirurgia em paciente terminal, despoluição de águas fluviais, dentre outros - , o seu deferimento é essencial para que se evite um mal maior para a parte/requerente. Se o seu deferimento é fadado à produção de efeitos irreversíveis para o requerido, o seu indeferimento também implica conseqüências irreversíveis para o requerente. Nesse contexto, existe, pois, perigo da irreversibilidade decorrente da nãoconcessão da medida. Não conceder a tutela antecipada para a efetivação do direito à saúde, pode, por exemplo, muita vez, implicar a conseqüência irreversível da morte do demandante. Nessa seara, o próprio Superior Tribunal de Justiça, em reiteradas decisões, vem acolhendo a tese de que irreversibilidade da medida não constitui, de per si, óbice para o deferimento da tutela antecipada. Preconiza-se, dessa maneira, uma mitigação ao rigorismo do § 2º do art. 273 do CPC: PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS N. 282 e 356 do STF. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. INTELIGÊNCIA DO ART. 273, § 2º, DO CPC. 1. O prequestionamento dos dispositivos legais tidos como violados constitui requisito indispensável à admissibilidade do recurso especial. Incidência das Súmulas n. 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal. 2. O possível risco de irreversibilidade dos efeitos do provimento da antecipação da tutela contida no art. 273, § 2º, do CPC não pode ser interpretado ao extremo, sob pena de tornar inviável o direito do reivindicante. 3. Agravo regimental que se nega provimento. (BRASIL, 2005, grifo nosso). ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. Tratamento médico. Atropelamento. Irreversibilidade do provimento. A regra 295 De Jure 9 prova 2.indd S1:295 11/3/2008 16:22:01 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS do § 2º do art. 273 do CPC não impede o deferimento da antecipação da tutela quando a falta do imediato atendimento médico causará ao lesado dano também irreparável, ainda que exista o perigo da irreversibilidade do provimento antecipado. Recurso não conhecido. (BRASIL, 2002, grifo nosso). PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. TUTELA ANTECIPATÓRIA. DIREITOS PATRIMONIAIS. CONCESSÃO: POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 273 DO CPC. RECURSO NÃO CONHECIDO. I - A Tutela Antecipatória prevista no art. 273 do CPC pode ser concedida em causas envolvendo direitos patrimoniais ou nãopatrimoniais, pois o aludido dispositivo não restringiu o alcance do novel instituto, pelo que e vedado ao interprete fazê-lo. nada obsta, por outro lado, que a tutela antecipatória seja concedida nas ações movidas contra as pessoas jurídicas de direito publico interno. II - A exigência da irreversibilidade inserta no par. 2. do art. 273 do CPC não pode ser levada ao extremo, sob pena de o novel instituto da tutela antecipatória não cumprir a excelsa missão a que se destina. III - Recurso Especial não conhecido. (BRASIL, 1997, grifo nosso). De acordo com os arestos citados acima, caberá ao autor, na formulação de seu requerimento de antecipação de tutela, expor de forma clara que a irreversibilidade da lesão gerada também poderá ser em relação ao seu direito, justamente diante da nãoconcessão da medida. Por exemplo, ao se pleitear, de forma antecipada, a realização de um transplante de órgão, caso o autor venha a perder a demanda, certamente a medida deferida não poderá ser desfeita em relação ao demandado vitorioso; todavia, no confronto de valores, o não-deferimento da tutela antecipada também seria irreversível ao próprio demandante, uma vez que fatalmente ele poderia perder a vida caso a cirurgia não fosse realizada naquele instante. Em termos mais claros: há situações em que a não-concessão da tutela antecipada é muito mais prejudicial do que a sua concessão, notadamente porque, como veremos ao final, quase sempre poderá haver a transmudação da obrigação específica em perdas e danos, caso o favorecido pela tutela perca a demanda e não seja possível restaurar o cenário ao seu status quo ante. Nessa seara, citamos o magistério de Moreira (2007, p. 87), ao justificar a análise da irreversibilidade na ótica do direito do requerente: Exclui-se, a princípio, a possibilidade da antecipação quando houver perigo de mostrar-se irreversível a 296 De Jure 9 prova 2.indd S1:296 11/3/2008 16:22:01 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS situação resultante da decisão antecipatória; mas é forte a tendência a atenuar, em casos graves, o rigor da proibição, sobretudo quando se afigurar também irreversível o dano a ser sofrido pela parte interessada, se não se antecipar a tutela. Logo, apenas uma visão sistêmica e harmônica do caso concreto é que, de fato, irá determinar a viabilidade ou não da concessão da tutela antecipada. Em um confronto de interesses igualmente protegidos pela ordem jurídico-constitucional, deverá prevalecer o de maior relevância, conforme apurado na técnica da ponderação. Nesse sentido, foi o voto do eminente Ministro Herman Benjamin: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. INTELIGÊNCIA DO ART. 273, § 2º, DO CPC. PRECEDENTES. 1. O perigo de irreversibilidade do provimento adiantado, óbice legal à concessão da antecipação da tutela, nos termos do artigo 273, § 2º, do CPC, deve ser interpretado cum grano salis, sob pena de se inviabilizar o instituto. 2. Irreversibilidade é um conceito relativo, que deve ser apreciado ad hoc e de forma contextual, levando em conta, dentre outros fatores, o valor atribuído pelo ordenamento constitucional e legal aos bens jurídicos em confronto e também o caráter irreversível, já não do que o juiz dá, mas do que se deixa de dar, ou seja, a irreversibilidade da ofensa que se pretende evitar ou mesmo da ausência de intervenção judicial de amparo. 3. Agravo Regimental não provido. (BRASIL, 2006). Por fim, Nery Junior e Nery (2007, p. 529) trazem também a diferença entre irreversibilidade de fato e de direito: quando ela for de fato, haverá real perigo de irreversibilidade ao estado anterior, situação em que a medida não poderá ser deferida. Mas quando houver irreversibilidade de direito, ou seja, quando a obrigação prestada antecipada puder resolver-se em perdas e danos, a tutela poderá, em tese, ser deferida, sem que com isso haja violação ao devido processo legal, seja na sua dimensão formal, seja na sua dimensão substancial. Conclusão Quando da formulação de requerimento de antecipação dos efeitos da tutela final pretendida, em relação à condição da reversibilidade da medida, o requerente deverá analisá-la não apenas sob a ótica da situação jurídica do requerido, mas também em relação à sua própria esfera de direitos, uma vez que existem situações de tamanha 297 De Jure 9 prova 2.indd S1:297 11/3/2008 16:22:01 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS gravidade em que a não-concessão da antecipação pleiteada tornará inócuos os fins da jurisdição e poderá produzir um dano bem maior ao requerente do que em relação ao requerido. Além disso, havendo confronto de interesses, o juiz deverá analisar criteriosamente qual dos valores deverá prevalecer no caso concreto: o social em sobreposição ao meramente privado; o direito fundamental e a dignidade da pessoa humana em relação ao de expressão meramente econômica etc. E por último, a irreversibilidade jurídica permite a concessão da tutela antecipada, já que a obrigação prestada em caráter antecipado poderá resolver-se em perdas e danos. Referências Bibliográficas MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. 25. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 144656/ES. Relator: Min. Adhemar Maciel. Brasília, 6 de outubro de 1997. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 417005/SP. Relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar. Brasília, 25 de setembro de 2002. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 502173/RJ. Relator: Min. João Otávio de Noronha. Brasília, 2 de agosto de 2005. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 736826/RJ. Relator: Min. Herman Benjamin. Brasília, 12 de dezembro de 2006. DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Salvador: Podivum, 2007. v. 2. DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. 2. ed. rev. atual. e aument. São Paulo: Malheiros, 2007. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 10. ed. rev. ampl. e atual. até 1º.10.2007. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 298 De Jure 9 prova 2.indd S1:298 11/3/2008 16:22:02 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS SEÇÃO IV – DIREITO COLETIVO E PROCESSUAL COLETIVO SUBSEÇÃO I – DIREITO COLETIVO 1. ARTIGOS 1.1 O MEIO AMBIENTE NA PERSPECTIVA CULTURAL CONTEMPORÂNEA DO DIREITO NO BRASIL FRANCISCO DE ASSIS BRAGA Engenheiro Florestal D.S. Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais Campus da Fundação Educacional de Divinópolis LUCIANA IMACULADA DE PAULA Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais Coordenadora das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente das Subbacias dos Rios das Velhas e Paraopeba SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Questão ambiental: origem. 3. Cenário legal. 3.1. Definição legal. 3.2. Meio ambiente e Constituição. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas. 1. Introdução O século XX caracterizou-se por uma crescente, e sem precedentes, exploração dos recursos naturais, acarretando alterações significativas nas condições ambientais da biosfera, notadamente sobre os seus componentes físicos (água, solo e atmosfera), bióticos (fauna e flora) e socioeconômicos (antrópicos). Isso se deu porque a expansão econômica, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, acentuou a pressão sobre os recursos naturais, mas não foi acompanhada de ações compatíveis visando monitorar, prevenir e minimizar os impactos gerados nos sistemas naturais e artificiais (construídos). Vale considerar que os problemas ambientais atingiram níveis transfronteiriços e globais, destacando-se a destruição da camada de ozônio, o aquecimento global, a poluição das águas doces (superficiais e subterrâneas) e dos mares, o desmatamento e a perda de biodiversidade de plantas e animais (UNITED, 2005). Diante desse quadro, a consciência em relação à questão ambiental ampliou-se desde a década de 1960, intensificando-se a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, 1972. Em seguida, na década de 1980, com a detecção de problemas ambientais de efeitos planetários, a questão ambiental ganha espaço na 299 De Jure 9 prova 2.indd S1:299 11/3/2008 16:22:02 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS pauta da agenda internacional, reconhecendo-se politicamente a biosfera como espaço comum importante para a vida de todos os seus habitantes. Na seqüência, foi lançado um novo estilo de desenvolvimento, denominado desenvolvimento sustentável, a partir do Relatório Brundtland, de 1987, referendado posteriormente na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, no Rio de Janeiro (BRÜSEKE, 2003). Paralelamente a todo esse processo de identificação e conscientização da problemática ambiental, ocorreu a evolução de organizações e instrumentos legais e normativos, em nível nacional e internacional, tratados, acordos e convenções multi e bilaterais, buscando-se construir uma governabilidade sobre o ambiente nacional e planetário. Os instrumentos legais surgiram para codificar a separação de atribuições no processo de acomodação cultural de comunidades territorialmente autônomas e soberanas em estados-nações, após a dissolução da estrutura feudal na Europa. Paralelamente, surgiu também o direito internacional, para estabelecer as relações entre as nações (ALBAGLI, 1998). Portanto, a legislação de uma dada nação codifica e expressa, culturalmente, o modo de ser e de pensar do seu povo, e por isso mesmo, evolui com o passar do tempo, refletindo a realidade contemporânea. É possível, contudo, que as regras vigentes reflitam um posicionamento ético ultrapassado, constituído sob visões cientificamente desmentidas como, por exemplo, a idéia de que os recursos naturais são inesgotáveis (BENJAMIN, 2001). Posto isto, o presente trabalho tem por objetivo caracterizar e analisar a perspectiva de meio ambiente no contexto cultural do Direito no Brasil contemporâneo. 2. Origem da questão ambiental Modernamente, o despertar para a questão ambiental remonta à década de 60 e tem como fundamento básico a idéia de que a utilização dos recursos naturais, visando somente a interesses particulares, num modelo de crescimento desenfreado e sem observar as conseqüências no sistema natural e social, não conduz à utopia do crescimento incessante da riqueza nacional, mas sim à catástrofe sem volta da destruição do Planeta (NOBRE; AMAZONAS, 2002). Um dos ícones da época foi o polêmico artigo de Hardin (1968), apresentado como conferência em congresso da Sociedade Americana para o Progresso da Ciência, em dezembro de 1967. Segundo aquele autor, a tragédia das áreas comuns se desenvolve como em um pasto aberto a todos. Nesse caso, é de se esperar que todo boiadeiro vá tentar manter o máximo possível, e sem limite, de animais nesse pasto comum, terreno esse que tem uma capacidade de suporte de animais limitada. Nesse caso, a liberdade do pasto comum trará a ruína para todos os seus usuários. Logo, por analogia simples, a ruína será o destino ao qual se lançam todos os homens, quando cada um persegue o 300 De Jure 9 prova 2.indd S1:300 11/3/2008 16:22:02 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS seu melhor interesse, em uma sociedade que acredita na liberdade das áreas comuns. Nesse contexto, importante destacar a idéia inicial de meio ambiente proclamada no item 1 da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano de 19721: O homem é ao mesmo tempo obra e construtor do meio ambiente que o cerca, o qual lhe dá sustento material e lhe oferece oportunidade para desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente... Os dois aspectos do meio ambiente humano, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma. No item 5 da Declaração de Estocolmo encontra-se a proclamação “[...] de que de todas as coisas do mundo, os seres humanos são a mais valiosa”. Uma visão extremamente antropocêntrica da importância da espécie humana, num planeta que surgiu e evoluiu desde 4,5 bilhões de anos atrás, onde os primeiros mamíferos surgiram apenas nos últimos 300 milhões de anos (ODUM; BARRETT, 2007). Dentre os princípios propostos na Declaração de Estocolmo, merece destaque o primeiro: O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. A Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, reafirma os princípios da Declaração de Estocolmo e apresenta 27 princípios, pautados na cooperação entre as nações, na proteção integral do sistema global de meio ambiente e no desenvolvimento sustentável, reconhecendo a terra como nosso lar. Merecem destaque alguns desses princípios: 1. Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm o direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza. 1 O ambiente compõe-se de um conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais, que se constituem no meio em que habitamos. Com efeito, o meio ambiente, ao contrário do que muita gente pensa, não é só natureza. Além das árvores, dos rios, das praias, do mar, do ar que a gente respira, o meio ambiente também é a nossa rua, a nossa casa, o nosso corpo e as relações que temos com as outras pessoas (INSTITUTO..., 1998). Assim, ambiente, por definição, relaciona-se a tudo aquilo que nos circunda. De certa forma, a palavra ambiente já expressa o sentido da palavra meio. Por isso, é comum haver crítica ao termo meio ambiente como pleonástico e redundante. Entretanto, segundo observa Silva (2002, p. 20), a palavra ambiente expressa o conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que nos cercam e o vocábulo meio representa o resultado da interação desses elementos, razão pela qual a expressão meio ambiente se manifesta mais rica de sentido (como conexão de valores). 301 De Jure 9 prova 2.indd S1:301 11/3/2008 16:22:02 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2. Os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do direito internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e de desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob a sua jurisdição ou seu controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional. [...] 4. Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste. [...] 25. A paz, o desenvolvimento e a proteção ambiental são interdependentes e indivisíveis. Além de refletirem uma visão utilitarista, compartimentalizada e fragmentada de meio ambiente, os princípios em destaque exprimem um pensamento antropocêntrico mais brando, chamado antropocentrismo mitigado ou reformado, que incorpora a preocupação com o direito das gerações futuras. A concepção mais moderada, segundo André Chartrand (apud BENJAMIN, 2001, p. 159), situa-se entre o antropocentrismo radical, que apregoa o homem como centro e senhor do universo, e o não-antropocentrismo, modelo também conhecido como biocentrismo ou ecocentrismo. Atualmente, o antropocentrismo reformado é o paradigma dominante como fundamento para as normas jurídicas de defesa do meio ambiente em todo o mundo. O princípio 2 da Declaração do Rio reproduz fielmente o princípio 21 da Declaração de Estocolmo, reafirmando sua proposição e demonstrando a falta de evolução, em termos conceituais e filosóficos acerca da temática em pauta. Resta saber como “[...] assegurar que as atividades não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou áreas além dos limites da jurisdição nacional” (segundo os princípios da Declaração de Estocolmo e do Rio de Janeiro), diante da impossibilidade de se confinar e delimitar, num dado espaço geográfico, elementos como a água e o ar atmosférico. A erradicação da cobertura vegetal nativa de um dado local, por exemplo, implica a perda direta de biodiversidade e de habitat para fauna, na liberação do carbono acumulado na biomassa para a atmosfera, em alteração climática (elevação de temperatura, redução da umidade do ar), em alteração no funcionamento da bacia hidrográfica (relação entre infiltração, escoamento superficial, evapotranspiração), dentre outras conseqüências. Os gases de efeito estufa, liberados em diferentes regiões do planeta, contribuem, indistintamente, para o aquecimento global, ou seja, tudo está conectado com tudo. Conforme Meadows (1989, p. 46); tem-se: 302 De Jure 9 prova 2.indd S1:302 11/3/2008 16:22:02 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A fim de conhecer o mundo, nossa mente o divide em conceitos, partes, categorias e disciplinas. Mas o mundo é um todo único. Não há claras linhas divisórias entre química e física, terra e mar; Irã e Iraque; entre homem e natureza, exceto as linhas estabelecidas pela mente humana. Cada vez que você inspira, uma parte do ambiente torna-se parte de você; cada vez que você expira, uma parte de você torna-se parte do ambiente. O ciclo das águas flui através de você, como o fazem os ciclos do carbono, do oxigênio, do nitrogênio e de outros elementos que formam a sua estrutura. Embora você não possa ver a conexão entre o escapamento de um automóvel e seus pulmões; a saúde do solo ou da bacia hidrográfica e a saúde das pessoas que comem o alimento produzido nesse solo ou consome a água gerada pela bacia, essas conexões existem. Mesmo quando as pessoas reconhecem as interconecções complexas do mundo, ainda assim é freqüente surpreenderem-se com elas, especialmente quando as causas estão muito distantes dos efeitos, em lugar ou tempo. Uma seca em Kansas afeta os preços do trigo em Gana. Poluentes do ar emitidos na Inglaterra matam árvores na Suécia, devido à chuva ácida. Agrotóxicos aplicados em campos agrícolas podem aparecer nas águas subterrâneas dez anos mais tarde, e causar câncer 30 anos depois. Muitas dessas conecções são determináveis e reconhecíveis se as estivermos procurando. Porém, se a nossa mente não estiver acostumada a cruzar categorias conceituais e perceber inter-relações, não administraremos muito bem as coisas e nos depararemos com algumas surpresas. Ou seja, não basta colocar desenvolvimento, numa perspectiva de crescimento econômico, e sustentabilidade, como controle ou tecnologia de baixo impacto ambiental, incorporados a modelos e processos de exploração e de produção – avaliação de impactos ambientais, medidas de controle ambiental, produção mais limpa etc. É preciso adotar uma visão mais ampliada, onde desenvolvimento seja igual à eqüidade social – redução da pobreza e distribuição de renda – e sustentabilidade contemple, além do processo produtivo em si, a interdependência entre as demais dimensões ambientais, políticas e socioculturais (BURSZTYN, 1993 e NOBRE; AMAZONAS, 2002). Vale lembrar que a matéria não pode ser criada ou destruída, ou seja, os materiais do planeta permanecem nele, passando por transformações contínuas, alimentadas 303 De Jure 9 prova 2.indd S1:303 11/3/2008 16:22:02 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS pela energia da terra e do sol, os chamados ciclos biogeoquímicos – trocas de materiais entre os componentes vivos e não-vivos da biosfera, através dos quais os materiais circulam continuamente pelo planeta, em velocidade determinada por suas características físicas, químicas e bioquímicas (ODUM; BARRETT, 2007). Assim, pode se dizer que: Embora a quantidade total de materiais se mantenha quase que totalmente fixa, a sua distribuição e mistura no planeta estão em constante movimento... vastas quantidades de água evaporam num determinado local e vão cair em forma de chuva noutro; vulcões entram em erupção e expelem cinzas e rocha derretida, que podem dar origem a novas ilhas, como também sepultar cidades. Todos os anos, bilhões de toneladas de metais e combustíveis são extraídos pelo homem; a cada ano, criam-se, a partir de matéria-prima básica, milhares de novos produtos químicos e recombinações moleculares que nunca existiram antes. Os elementos necessários à vida - água, carbono, oxigênio, nitrogênio etc. - passam por ciclos biogeoquímicos que mantêm sua pureza e a capacidade de serem aproveitados pelas coisas vivas (MEADOWS, 1997. p. 36). Por exemplo, a liberação de gases na atmosfera provenientes de motores de combustão, implica a introdução de óxidos de enxofre e nitrogênio no ar. Esses compostos irão participar e alterar processos físicos, químicos e biológicos na biosfera, podendo acarretar a precipitação de chuva ácida (pH < 5,6), devido à formação de ácidos de enxofre (ácido sulfúrico) e de nitrogênio (ácido nítrico). Por sua vez, a chuva ácida pode provocar a queima de folhas e até a morte de plantas, a acidificação do solo e das águas, e a mortandade de peixes (BRADY, 1989), podendo acarretar ainda a deterioração de fachadas de construções, de obras de arte etc. Caso memorável ocorreu na região de Cubatão, no Estado de São Paulo, onde a poluição atmosférica de origem industrial acarretou, dentre outros problemas, a morte de árvores da mata atlântica em encostas íngremes da Serra do Mar, provocando sérios problemas de erosão, devido a sua exposição direta do solo à ação da chuva (POMPÉIA, 1998). Uma das possíveis origens da crise ambiental atual pode estar relacionada ao paradigma dominante a partir do século XIV, calcado no método empírico-dedutivo como requisito para validação científica da verdade e como forma de apreensão e de controle dos fenômenos naturais. Assim, o caráter pretensamente neutro da ciência moderna e a centralidade do conhecimento científico constituiriam o fundamento ontológico para o abandono de uma atitude ético-normativa, em favor de um racionalismo meramente instrumental, em relação aos processos naturais e sociais. Assim, em vez de se questionar o porquê das coisas, passou-se a buscar o como – a ciência passou a ocupar lugar de destaque na geração de tecnologia para processos produtivos e no aparato 304 De Jure 9 prova 2.indd S1:304 11/3/2008 16:22:03 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ideológico hegemônico, centrando-se na livre instrumentalização de uma natureza dessacralizada. A natureza perdeu a força prescritiva sobre a consciência ética e política do homem, passando a ser concebida como algo uniforme, quantificável e mecânico. Na visão de muitos pensadores, esse seria o cerne da crise contemporânea, de cunho não só ambiental, mas de dimensões mais amplas e mais profundas (ALBAGLI, 1998). 3. Evolução ético-legislativa das normas protetivas do meio ambiente A história da evolução legislativa demonstra que a influência econômica sempre dirigiu os maiores ou menores cuidados pelos bens ambientais. Onde escassearam os bens ambientais, os governos cuidaram de estabelecer normas restritivas ao consumo, de punir o desperdício e a destruição. Onde era abundante, não havia preocupação em normatizar o assunto. Além disso, historicamente, os povos sempre se ocuparam em proteger o meio ambiente como forma indireta de proteção ao próprio homem. Não é de se estranhar, portanto, que os primeiros registros legislativos sobre o tema demonstram uma preocupação com a destruição da natureza pelo fogo. Isto porque a população instalava-se às margens das florestas, sítio abundante de alimento e lenha, e onde o incêndio poderia causar danos aos núcleos populacionais. No direito grego, afirma Hofacher, há registros de que o crime de incêndio era punido com pena capital. A propósito, é expressiva a alusão contida na oração de Demóstenes contra Aristócrates, em que o incendiário era punido com pena capital. Outrossim, no direito romano, punia-se o delito de incêndio com a morte pelo fogo, como uma espécie de reprodução da Lei de Talião (PEREIRA, 1950). Ao contrário de Roma, que, por volta do ano 640 a.C – época em que prevaleciam as normas penais na defesa dos bens ambientais – já possuía uma administração florestal tal como a concebemos atualmente, as demais nações civilizadas somente em meados do século XIX passaram a perceber a insuficiência do direito penal para conservar e desenvolver as riquezas naturais, indispensável à manutenção da vida. Nessa época, surgiram em vários países leis destinadas a regular o uso racional da terra, firmando diretrizes de aproveitamento do solo, os chamados Códigos Florestais. Como era de se esperar, as leis em referência não obedeceram a uma política florestal uniforme, pois cada Estado dirigiu suas orientações conforme a concepção dominante em seu território. Porém, um traço seria comum a todas as leis em referência: a visão puramente antropocêntrica, que sustenta “[...] a crença na existência de uma linha divisória clara e moralmente relevante, entre a humanidade e o resto da natureza; que o ser humano é a principal ou única fonte de valor e significado do mundo e 305 De Jure 9 prova 2.indd S1:305 11/3/2008 16:22:03 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS que a natureza-não-humana aí está com o único propósito de servir aos homens” (ECKERSLEY, 1992). Em contraponto ao paradigma antropocêntrico, surgem concepções que afirmam que o homem é parte integrante da natureza e não um ser destacado dela. Dentre as correntes não-antropocêntricas, as mais conhecidas são o biocentrismo, que reforça o pensamento de que o mandamento primordial é não violar a vida em suas várias manifestações, e o ecocentrismo, ou holismo, para a qual seres vivos e ecossistemas merecem igual respeito, e só podem ser tratados em conjunto. Manifestação nãoantropocêntrica muito conhecida é a Hipótese Gaia (Gaia, do grego, deusa terra), proposta pelos cientistas James Lovelock e Lynn Margulis, na década de 1970, segundo a qual a terra funciona como um único e complexo organismo, capaz de auto-regulação e auto-organização. Nessa perspectiva, o papel dos organismos vivos é essencial na manutenção do equilíbrio climático, gerando as condições químicas e físicas favoráveis para todas as formas de vida do planeta, o chamado controle biológico do ambiente geoquímico (ODUM; BARRETT, 2007). Nesse caso, todas as demais espécies, além da humana, desempenhariam papel fundamental na manutenção de processos vitais, cabendo assim, a preservação de todas elas para a manutenção de um ambiente equilibrado na biosfera. Mister enfatizar que correntes não-antropocêntricas não são contrárias ao homem. Elas repudiam – com o aval inequívoco da ciência – a visão do homem como ente apartado da natureza. 4. O meio ambiente na perspectiva contemporânea legislativa brasileira No Brasil, as normas que compõem o arcabouço legislativo de proteção ambiental não possuem bases éticas coincidentes. Além disso, os fundamentos éticos que amparam os textos normativos não obedecem a uma sucessão histórica conceitual, antes, os padrões coexistem de forma absolutamente circunstancial.2 Considere-se, a princípio, a Lei Federal nº 6.938, promulgada em 31 de agosto de 1981, que estabeleceu as diretrizes básicas da Política Nacional de Meio Ambiente. A referida norma, conhecida como Lei de Política Nacional de Meio Ambiente, trouxe a definição legal de meio ambiente no inciso I do art. 3º, prevendo ser meio ambiente o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Como se vê, o texto normativo expressa uma ampla perspectiva conceitual de meio ambiente e abarca os meios teoricamente denominados de físico (ar, solo e água), biótico (fauna e flora) e antrópico (cultural, econômico e político), ou seja, exprime e recepciona o cabedal teórico-conceitual do termo meio ambiente e acolhe todas as formas e vida. No entanto, quanto à perspectiva 2 Confirma a assertiva de modo irrefutável um paralelo entre o Decreto nº 24.645/1934 e o Decreto nº 23.793/1934, o primeiro Código Florestal Brasileiro, visto que aquele exprime tendência não-antropocêntrica e o segundo registra forte fundamento antropocêntrico. 306 De Jure 9 prova 2.indd S1:306 11/3/2008 16:22:03 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS filosófica, a Lei em comento expressa um posicionamento antropocêntrico. Veja-se, a propósito, o disposto no artigo 2º: Art. 2º. A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios: [...]. A Lei referida elegeu como objetivos primordiais da Política Nacional de Meio Ambiente a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, em todas as suas formas (art. 2º c/c 3º, I). Porém, a tutela da qualidade ambiental, segundo a Lei, objetiva assegurar condições ao desenvolvimento socioeconômico, garantir interesses da segurança nacional e proteger a dignidade da vida humana. Não há, pois, intenção de proteger o meio ambiente se a medida não for condição ao desenvolvimento do país e à proteção da vida do homem. Por seu turno, a Constituição da República de 1988, em seu capítulo VI, art. 225, tratou especificamente do tema do meio ambiente: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O § 1º desse mesmo artigo propõe, dentre outros: 1. Preservar e restaurar os processos ecológicos; 2. Promover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; 3. Preservar a biodiversidade; 4. Proteger a fauna e a flora, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. Conforme observa Fiorillo (2003), o texto constitucional aporta dispositivos modernos, contemplando os interesses de caráter difuso, assumindo direitos à vida, saúde, cidades, função social de propriedades, higiene e segurança do trabalho, educação, pesquisa, cultura, consumidor, e especificamente, ao meio ambiente, configurando e disciplinando nova realidade jurídica de um bem, que não é público, nem particular – todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida. Segundo o mesmo autor, o art. 225 da Carta Magna estabelece quatro concepções fundamentais no âmbito do direito ambiental brasileiro: 307 De Jure 9 prova 2.indd S1:307 11/3/2008 16:22:03 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 1. De que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; 2. De que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado diz respeito à existência de um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, criando em nosso ordenamento o bem ambiental; 3. De que a Carta Maior determina tanto ao Poder Público como à coletividade o dever de defender o bem ambiental, assim como o dever de preservá-lo; 4. De que a defesa e a preservação do bem ambiental estão vinculadas não só às presentes como também às futuras gerações. Contudo, cabe uma questão fundamental (FIORILLO, 2003, p. 15), sob o prisma constitucional: o destinatário do direito ambiental seria o homem ou seria a vida em todas as suas formas? Considerando-se o texto em destaque, a proteção legal dos seres vivos não-humanos dependeria da condição de que esses seres vivos sejam essenciais à sadia qualidade de vida humana. Nessa perspectiva, os demais seres vivos somente seriam tutelados na medida em que a sua existência implicasse a garantia da sadia qualidade de vida do homem contemporâneo ou vindouro, numa sociedade organizada onde o homem é o destinatário de toda e qualquer norma. Evidente, pois, a opção do constituinte pelo paradigma antropocêntrico intergeracional, considerando a conservação dos valores ambientais para as gerações vindouras, objetivando assegurar a continuidade da espécie humana, com a conservação do padrão ambiental hoje caracterizado – manutenção da diversidade biológica e cultural. Não obstante, opções não-antropocêntricas também podem ser conferidas no sistema normativo pátrio. Veja-se, a propósito, o Decreto Federal nº 4.339, de 22 de agosto de 2002, que instituiu princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional de Biodiversidade e foi editado em consideração aos compromissos assumidos pelo Brasil ao assinar a Convenção sobre Diversidade Biológica, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, a qual foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 2, de 3 de fevereiro de 1994, e promulgada pelo Decreto no 2.519, de 16 de março de 1998. O decreto sinaliza avanços como: 2.I. A diversidade biológica tem valor intrínseco, merecendo respeito independentemente de seu valor para o homem ou potencial para uso humano; 2.XI. O homem faz parte da natureza e está presente nos diferentes ecossistemas brasileiros há mais de dez mil anos... 2. XIV. O valor de uso da biodiversidade é determinado pelos valores culturais e inclui valor de uso direto e indireto, de 308 De Jure 9 prova 2.indd S1:308 11/3/2008 16:22:03 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS opção de uso futuro e, ainda, valor intrínseco, incluindo os valores ecológicos, genéticos, sociais, econômicos, científicos, educacionais, culturais, recreativos e estéticos. Entretanto, já se passaram mais de cinco anos da edição do Decreto, mas a Lei de Política Nacional de Biodiversidade ainda não foi promulgada. Somente foi editado mais um decreto, o Decreto nº 4.703, de 21 de maio de 2003, dispondo sobre o Programa Nacional da Diversidade Biológica - PRONABIO e a Comissão Nacional de Biodiversidade, visando orientar a elaboração e a implementação da lei, considerando os princípios elencados no Decreto nº 4.339/2002. Se o legislador ordinário seguir a tendência não-antropocêntrica esboçada no Decreto nº 4.339/2002 na vindoura Política Nacional de Biodiversidade, haverá maior proteção às diversas formas de vida existentes. Assim, alternativamente, à perspectiva antropocêntrica, segundo Amaral (apud FIORILLO, 2003, p. 18-19) “[...] ter-se-á proteção à natureza em função dela mesma, como valor em si, e não apenas como um objeto útil ao homem. [...]”. Por certo, a natureza carece de uma proteção pelos valores que ela representa em si mesma, proteção que, muitas vezes, poderá ser dirigida contra o próprio homem. Aliás, propõe-se que: A natureza tem seu próprio valor, independente do valor que os homens lhe conferem. As sociedades humanas não poderiam existir sem os sistemas naturais. O ser humano faz parte da natureza. Porém, a mente humana dualista, gosta de separar o seu caráter humano da mera natureza. Feita essa distinção, caímos então na armadilha de ter que defender a natureza por causa do seu valor (em geral, econômico) que ela tem para a humanidade. Se não pudermos ver o imediato valor econômico de um inseto, de uma floresta, pântano ou pradaria, não vemos o sentido de sua existência e achamos que podemos interferir ou destruir tudo isso (MEADOWS, 1997). Certo é que nossa atitude em relação a qualquer coisa criada neste planeta deve ser, e é para muitas pessoas, de reverência. Embora possamos não perceber sua finalidade, não podemos descartá-la como se não existisse. Embora não possamos calcular seu valor para nós, existe um valor intrínseco. Nada na natureza tem de justificar-se em relação a nós para ter direito de existir. O ecologista Aldo Leopold (apud ODUM; BARRETT, 2007) colocou esse princípio numa declaração moral que denominou de Ética da Terra. Aldo define ética, do ponto de vista ecológico, como “[...] uma limitação sobre a liberdade de ação na luta pela existência”, e afirma que “[...] a relação terra-humanos ainda é estritamente econômica, implicando privilégios, mas não obrigações”. Segundo Odum e Barrett (2007), a manutenção e a melhoria da qualidade ambiental requerem embasamento ético. Assim, o abuso de sistemas de 309 De Jure 9 prova 2.indd S1:309 11/3/2008 16:22:04 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS suporte à vida deveria ser considerado ilegal e antiético. Afirmam ainda que os direitos humanos vêm recebendo crescente atenção ética, legal e política, enquanto os direitos dos outros organismos e do ambiente não têm merecido o mesmo tratamento O cientista russo Vernadskij imaginou, em 1945, um sistema dominado ou gerenciado pela mente humana denominado de noosfera (do grego noos = mente); e sugeriu que pensemos na noosfera, ou no mundo dominado pela mente humana, gradualmente substituindo a biosfera, o mundo em evolução, que existiu por bilhões de anos (ODUM; BARRETT, 2007). No entanto, a adoção de um paradigma não-antropocêntrico importará no enfrentamento de questões complexas, tais como a posição dos valores ambientais nas relações jurídicas – a natureza como bem ou como titular de direitos. Certo é que as respostas a essas indagações acarretarão conseqüências dogmáticas inevitáveis e profundas. A propósito, pondere-se o seguinte: O paradigma não-antropocêntrico, ao contrário do que imaginam alguns, mantém a validade e a plenitude dos objetivos antropocêntricos do Direito Ambiental: a tutela da saúde humana, das paisagens com apelo turístico, e do valor econômico de uso direto dos recursos da natureza. Mas, vai além disso, aceitando que a natureza é dotada de valor inerente, que independe de qualquer apreciação utilitarista de caráter homocêntrico; o reposicionamento, portanto, opera no plano do balanceamento axiológico dos objetivos ambientais e no seu rol casuístico (BENJAMIN, 2001, p. 157). Por derradeiro, importante considerar que os padrões antropocêntricos e nãoantropocêntricos poderão professar escopos comuns de preservar a Natureza em certas situações, pois a manutenção do equilíbrio do meio ambiente é condição necessária tanto para a preservação da espécie humana sobre a Terra como para a manutenção das demais formas de vida. 5. Conclusão A temática ambiental ganhou expressão a partir dos anos 60, sendo institucionalizada no direito brasileiro através da Política Nacional de Meio Ambiente, estabelecida pela Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, e reafirmada, posteriormente, pela Constituição Federal de 1988, tratando do tema do meio ambiente em capítulo específico. A visão contemporânea de meio ambiente no Brasil, materializada culturalmente por esses dois instrumentos legais, denotam uma visão antropocêntrica, fragmentada, utilitarista, reducionista e compartimentalizada de meio ambiente e colocando o homem como o ser mais importante da natureza, para o qual as ações ambientais 310 De Jure 9 prova 2.indd S1:310 11/3/2008 16:22:04 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS devem estar voltadas, visando assegurar-lhe um ambiente saudável e que lhe proporcione vida com qualidade. Essa mesma perspectiva pode ser captada também nas declarações internacionais sobre o meio ambiente de Estocolmo (1972) e do Rio de Janeiro (1992). Para a Constituição da República e para a Lei de Política Nacional de Meio Ambiente, a proteção dos seres vivos não-humanos é assegurada somente quando comprovada a sua importância para resguardar a sadia qualidade de vida dos seres humanos atuais e futuros. Entretanto, a vida, em todas as suas formas, tem valor intrínseco e direito de existir, independentemente do valor que a espécie humana venha a lhe conferir, cabendo ao homem, enquanto ser racional, a atitude moral e ética de defendê-la e preservá-la. Talvez seja esse o ponto nevrálgico e fundamental para reflexão dentro do direito ambiental brasileiro. O direito ambiental, nacional e internacional, carece de incorporar uma perspectiva não-antropocêntrica de meio ambiente, recepcionando mais elementos do repertório de conhecimentos científicos já acumulados acerca da vida e do funcionamento dos ecossistemas e da biosfera, ressacralizando a natureza. Existem indícios nesse sentido, mas a evolução, em termos de instrumentos formais legais, tem sido lenta e construída a partir de acirradas disputas entre aqueles que desejam manter o sistema atual de valores e de proteção aos interesses particulares e aqueles que buscam introduzir avanços no sentido de proteção à vida como um todo e aos bens de interesse difuso e coletivo. 5. Referências bibliográficas ALBAGUI, Sarita. Geopolítica da biodiversidade. Brasília: IBAMA, 1998. BENJAMIN, Antônio Herman. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. Caderno Jurídico, São Paulo, a. 1, n. 2, jul. 2001. BRADY, Nyle C. Natureza e propriedades dos solos. 7. ed. 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UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME – UNEP. Geo Year book 2004/5. Disponível em: <http:\\www.unep.org/geo/yearbook/yb2004/. Acesso em: 20 set. 2006. 312 De Jure 9 prova 2.indd S1:312 11/3/2008 16:22:04 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2. JURISPRUDÊNCIA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL 1o Acórdão. EMENTA: PROCESSO CIVIL. SINDICATO. ART. 8º, III DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEGITIMIDADE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES COLETIVOS OU INDIVIDUAIS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. O artigo 8º, III da Constituição Federal estabelece a legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam. Essa legitimidade extraordinária é ampla, abrangendo a liquidação e a execução dos créditos reconhecidos aos trabalhadores. Por se tratar de típica hipótese de substituição processual, é desnecessária qualquer autorização dos substituídos. Recurso conhecido e provido. (STF, Tribunal Pleno, RE 210029/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, Julgamento 12/06/2006, DJ 17/08/2007). 2o Acórdão. EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DE PARTIDO POLÍTICO. IMPUGNAÇÃO DE EXIGÊNCIA TRIBUTÁRIA. IPTU. 1. Uma exigência tributária configura interesse de grupo ou classe de pessoas, só podendo ser impugnada por eles próprios, de forma individual ou coletiva. Precedente: RE nº 213.631, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 07/04/2000. 2. O partido político não está, pois, autorizado a valer-se do mandado de segurança coletivo para, substituindo todos os cidadãos na defesa de interesses individuais, impugnar majoração de tributo. 3. Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF, 1a Turma, RE 196184/AM, Rel. Min. Ellen Gracie, Julgamento 27/10/2004, DJ 18/02/2005). JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1o Acórdão. EMENTA: TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO. PROGRAMA DE DEMISSÃO VOLUNTÁRIA. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO. ISENÇÃO PARA PROGRAMAS INSTITUÍDOS EM CUMPRIMENTO DE CONVENÇÃO OU ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. 1. O imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador, nos termos do art. 43 e seus parágrafos do CTN, os 313 De Jure 9 prova 2.indd S1:313 11/3/2008 16:22:04 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS “acréscimos patrimoniais”, assim entendidos os acréscimos ao patrimônio material do contribuinte. 2. O pagamento de indenização por rompimento de vínculo funcional ou trabalhista, embora represente acréscimo patrimonial, está contemplado por isenção em duas situações: (a) a prevista no art. 6º, V, da Lei 7.713/88 (“Ficam isentos do imposto de renda (...) a indenização e o aviso prévio pagos por despedida ou rescisão de contrato de trabalho, até o limite garantido por lei (...)”) e (b) a prevista no art. 14 da Lei 9.468/97 (“Para fins de incidência do imposto de renda na fonte e na declaração de rendimentos, serão considerados como indenizações isentas os pagamentos efetuados por pessoas jurídicas de direito público a servidores públicos civis, a título de incentivo à adesão a programas de desligamento voluntário”). 3. No domínio do Direito do Trabalho, as fontes normativas não são apenas as leis em sentido estrito, mas também as convenções e os acordos coletivos, cuja força impositiva está prevista na própria Constituição (art. 7º, inc. XXVI). Nesse entendimento, não se pode ter por ilegítima a norma do art. 39, XX, do Decreto 3.000/99, que, ao regulamentar a hipótese de isenção do art. 6º, V, da Lei 7.713/88, inclui entre as indenizações isentas, não apenas as decorrentes de ato do poder legislativo propriamente dito, mas também as previstas em “dissídio coletivo e convenções trabalhistas homologados pela Justiça do Trabalho (...)”. 4. Pode-se afirmar, conseqüentemente, que estão isentas de imposto de renda, por força do art. 6º, V da Lei 7.713/88, regulamentado pelo art. 39, XX do Decreto 3.000/99, as indenizações por rescisão do contrato pagas pelos empregadores a seus empregados quando previstas em dissídio coletivo ou convenção trabalhista, inclusive, portanto, as decorrentes de programa de demissão voluntária instituídos em cumprimento das referidas normas coletivas. 5. Assim, ao estabelecer que “a indenização recebida pela adesão a programa de incentivo à demissão voluntária não está sujeita à incidência do imposto de renda”, a súmula 215/STJ se refere não apenas a “pagamentos efetuados por pessoas jurídicas de direito público a servidores públicos civis, a título de incentivo à adesão a programas de desligamento voluntário” do serviço público (isenção prevista no art. 14 da Lei 9.468/97), mas também a indenizações por adesão de empregados a programas de demissão voluntária instituídos por norma de caráter coletivo (isenção compreendida no art. 6º, V da Lei 7.713/88). 6. No caso concreto, não tendo sido demonstrado que a indenização seja decorrente de qualquer desses programas, não está configurada a liquidez e certeza do direito a isenção, razão pela qual o recurso merece provimento, para, sem prejuízo das vias ordinárias, denegar a segurança. 7. Recurso especial provido. (STJ, RESP 876446/RJ, 1a Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Julgamento 06/11/2007, DJ 26/11/2007, p. 123). 2o Acórdão. EMENTA: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO SUPOSTAMENTE INDEVIDA ORIUNDA DO FUNDO DE INDENIZAÇÃO DO TRABALHADOR PORTUÁRIO AVULSO - FITP. 314 De Jure 9 prova 2.indd S1:314 11/3/2008 16:22:05 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS PRETENSÃO VISANDO A RESTITUIÇÃO DA QUANTIA PAGA. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. CONFLITO LEGAL DE CARÁTER TRIBUTÁRIO. INTERESSE SECUNDÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA MOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. INTERVENÇÃO DO PARQUET COMO CUSTOS LEGIS. DESNECESSIDADE. VIOLAÇÃO DOART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. 1. A ilegitimidade ativa ad causam do MPF para intentar ação civil pública com o escopo de reaver indenização supostamente indevida, paga a trabalhador portuário avulso, oriunda do Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - FITP, ressoa evidente porquanto o mesmo atua, não na defesa do erário, mas sim em nome de um ente público; no caso a União, que dispõe de sua Procuradoria para intentar essa ação com espectro de repetição do indébito, ora rotulada de ação civil pública. 2. Deveras, mercê de o AITP configurar receita da União, resta equivocada, com a devida vênia, a sua inserção na categoria de patrimônio público federal, utilizada pelo Parquet como fator legitimador para o aforamento da ação civil pública em baila. É que o patrimônio público se perfaz de bens que pertencem a toda coletividade, não individualizáveis, e que não sofrem distinção pertinente a eventuais direitos subjetivos, como por exemplo, imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico-Cultural. Daí, inviável se considerar receita da União como patrimônio público federal, na medida em que o seu ressarcimento não denota interesse metaindividual relevante, mas sim do próprio ente público. Nesse sentido é doutrina pátria: A ação civil pública é instrumento de defesa dos interesses sociais, categoria que compreende o interesse de preservação do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, expressões que, na lição de Miguel Reale (Questões de Direito Público, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 132). “compõem uma díade incindível”, enquanto bens pertencentes a toda a comunidade, “a todos e a cada um, como um bem comum, não individualizável, isto é, sem haver possibilidade de distinção formal individualizadora em termos de direitos subjetivos ou situações jurídicas subjetivas”. (Ilmar Galvão, A ação civil pública e o Ministério Público, in Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública, São Paulo, Arnoldo Wald, 2003, p. 2002.) 3. Consectariamente, a rubrica receita da União caracteriza-se como interesse secundário da Administração, o qual não gravita na órbita dos interesses públicos (interesse primário da Administração), e, por isso, não guarnecido pela via da ação civil pública, consoante assente em sede doutrinária: Um segundo limite é o que se estabelece a partir da distinção entre interesse social (ou interesse público) e interesse da Administração Pública. Embora a atividade administrativa tenha como objetivo próprio o de concretizar o interesse público, é certo que não se pode confundir tal interesse com o de eventuais interesses próprios das entidades públicas. Daí a classificação doutrinária que distingue os interesses primários da Administração (que são os interesses públicos, sociais, da coletividade) e os seus interesses secundários (que se limitam à esfera interna do ente estatal). “Assim”, escreveu Celso Antônio Bandeira de Mello, 315 De Jure 9 prova 2.indd S1:315 11/3/2008 16:22:05 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS “independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais essoas, interesses que lhes são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoas. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer sujeito”. Nessa linha distintiva, fica claro que a Administração, nas suas funções institucionais, atua em representação de interesses sociais e, eventualmente, de interesses exclusivamente seus. Portanto, embora com vasto campo de identificação, não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse da Administração. Pode-se afirmar, utilizando a classificação de Engisch, que interesse social encerra conceito jurídico indeterminado (porque o seu “conteúdo e extensão são em larga medida incertos”) e normativo (porque “carecido de um preenchimento valorativo”), e sua função “em boa parte é justamente permanecerem abertos às mudanças das valorações”. Conforme observou o Ministro Sepúlveda Pertence, em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, “é preciso ter em conta que o interesse social não é um conceito axiologicamente neutro, mas, ao contrário - e dado o permanente conflito de interesses parciais inerente à vida em sociedade - é idéia carregada de ideologia e valor, por isso, relativa e condicionada ao tempo e ao espaço em que se deva afirmar”. É natural, portanto, que os interesses sociais não comportem definições de caráter genérico com significação unívoca. Como demonstrou J. J. Calmon de Passos, “a individualização do interesse público não ocorre, de uma vez por todas, em um só momento, mas deriva da constante combinação de diversas influências, algumas das quais provêm da experiência passada, enquanto outras nascem da escolha que cada operador jurídico singular cumpre, hic et nunc, no exercício da função que lhe foi atribuída. Assim, a atividade para individualização dos interesses públicos é uma atividade de interpretação de atos e fatos e normas jurídicas (recepção dos interesses públicos fixados no curso da experiência jurídica anterior) e em parte é uma valoração direta da realidade pelo operador jurídico, atendidos os pressupostos ideológicos e sociais que o informam e à sociedade em que vive, submetidos à ação dos fatos novos, capazes de modificar juízos anteriormente irreversíveis” . Genericamente, como Calmon de Passos, podese definir interesse público ou interesse social o “interesse cuja tutela, no âmbito de um determinado ordenamento jurídico, é julgada como oportuna para o progresso material e moral da sociedade a cujo ordenamento jurídico corresponde”. A Constituição identifica claramente vários exemplares dessa categoria de interesses, como, por exemplo, a preservação do patrimônio público e da moral idade administrativa, cuja defesa pode ser exercida inclusive pelos próprios cidadãos, mediante ação popular (CF, art. 5.°, LXXIII), o exercício probo da administração pública, que sujeita seus infratores a sanções de variada natureza, penal, civil, e política (CF, art. 37, § 4.º), e a manutenção da ordem econômica, que “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (CF, art. 316 De Jure 9 prova 2.indd S1:316 11/3/2008 16:22:05 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 170). São interesses, não apenas das pessoas de direito público, mas de todo o corpo social, de toda a comunidade, da própria sociedade como ente coletivo. (ZAVASKI, Teori Albino, Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 52-54.) 4. Deveras, a Procuradoria da Fazenda Nacional, no seu mister, detém atribuições legalmente instituídas, que, acaso não observadas, importam em procedimento administrativo na órbita funcional, e até criminal. Descabida, portanto, a atuação do MPF na defesa de interesse da União, juridicamente acautelado por órgão próprio. 5. Gravitando a demanda em torno de tema de natureza tributária, há que se aplicar o art. 1º, parágrafo único, da Lei da Lei 7.347/85, com redação conferida pela Lei 8.884/94, consoante os precedentes da Suprema Corte e deste STJ (AgRg no RExt 248.191 - 2 - SP, Relator Ministro CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, DJ de 25 de outubro de 2.002 e REsp 845.034 - DF, Relator Ministro José Delgado, Primeira Seção Seção, julgado em 14 de fevereiro de 2.007), os quais assentam a ilegitimidade ativa ad causam do Ministério Público para impugnar a cobrança de tributos ou pleitear a sua restituição. 7. O § 1º do art. 5º da Lei 7.347/85, regulamentadora das ações civis públicas e, portanto, prevalecente sobre a Lei Complementar 75/93 e ao CPC quanto a esse particular, dispõe que O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei, ressoando de forma inequívoca que não se exige vista dos autos ao Ministério público para que labore na qualidade de custos legis, se ele é o autor da ação.(Precedentes: REsp 554.906 - DF, Relatora Ministra CALMON, Segunda Turma, DJ de 28 de maio de 2.007; EDcl no REsp 186.008 - SP, Relator Ministro SALVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Quarta Turma, DJ de 28 de junho de 1999; REsp 156.291 - SP, Relator Ministro ADHEMAR MACIEL, Segunda Turma, DJ de 01º de fevereiro de 1999). 8. Inexiste ofensa do art. 535 do CPC, quando o Tribunal de origem, embora sucintamente, pronuncia-se de forma clara e suficiente sobre a questão posta nos autos. Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão. (Precedentes: REsp 396.699 - RS, Relator Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, 4ª Turma, DJ 15 de abril de 2002; AGA 420.383 - PR, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, Primeira Turma, DJ de 29 de abril de 2002; Resp 385.173 - MG, Relator Ministro FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJ 29 de abril de 2002). 9. Recurso especial desprovido. (STJ, RESP 786328/ RS, 1a Turma, Rel. Min. Luiz Fux, Julgamento 18/10/2007, DJ 08/11/2007, p. 168). 317 De Jure 9 prova 2.indd S1:317 11/3/2008 16:22:05 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS 1o Acórdão. EMENTA: TRANSPORTE COLETIVO DE PASSAGEIROS - EMPRESA CONCESSIONÁRIA - LEGITIMIDADE ATIVA - REVELIA - ART. 319, DO CPC - PROBLEMAS NO TRANSPORTE REGULAMENTADO - MOTIVO INSUFICIENTE PARA JUSTIFICAR A INFRAÇÃO - AUSÊNCIA DE PROVA DE TRANSFERÊNCIA DO VEÍCULO - PROCEDÊNCIA - PRETENSÃO DE CONDENAÇÃO DE PESSOAS INDETERMINADAS - IMPOSSIBILIDADE AÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE. A empresa concessionária de serviço público de transporte coletivo de passageiros tem legitimidade para propor ação visando a impedir a ação de “perueiros”, pois, embora não possa substituir o município na regulamentação e fiscalização do serviço, tem interesse econômico, juridicamente protegido, de afastar a concorrência ilícita e desleal. O art. 30, V, da CR/88, atribui ao município competência para “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”. A Lei nº 10.233/2001 veda, em seu art. 13, §2º, “a prestação de serviços de transporte coletivo de passageiros, de qualquer natureza, que não tenham sido autorizados, concedidos ou permitidos pela autoridade competente”. Permanecendo revéis seis dos oito réus, deve ser aplicado, quando a eles, o disposto no art. 319, do CPC. Não pode ser acolhida, como justificativa para a prestação de serviço clandestino de transporte de passageiros, a argumentação de que tal serviço encontra-se em estado caótico, no município em questão. A simples alegação de venda da van, desacompanhada de qualquer prova, não pode conduzir à improcedência da demanda. Inadmissível a pretensão da autora, de condenação de todos os prestadores de transporte clandestino em suas linhas, mesmo os não indicados na exordial, a cessarem sua atividade. O Processo Civil brasileiro não admite esse tipo de condenação de pessoas indeterminadas, que representaria grave infração aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. (TJMG, Processo 2.0000.00.511013-4/000, Relator Eduardo Mariné da Cunha, Julgamento 09/06/2005, Publicação 23/06/2005). 2o Acórdão. EMENTA: PREVIDENCIÁRIO - REVELIA - EFEITOS QUE NÃO PREJUDICA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO - SUPREMACIA DO ENTERESSE PÚBLICO SOBRE O PARTICULAR - ERRO MATERIAL NO “”DECISUM”” QUE NÃO NULIFICA O JULGADO - PRELIMINARES RECURSAIS REJEITADAS INDENIZAÇÃO DE PECÚLIO E SEGURO COLETIVO - PAGAMENTO FEITO 318 De Jure 9 prova 2.indd S1:318 11/3/2008 16:22:05 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS NO LIMITE DE 20 VEZES O VENCIMENTO MÍNIMO ESTADUAL - TETO REVOGADO ANTES DO FALECIMENTO DO SEGURADO - INOBSERVÂNCIA DE NOVA DISPOSIÇÃO LEGAL - CONSTATAÇÃO DE CONTRIBUIÇÕES RECOLHIDAS A MENOR - CULPA SOLIDÁRIA DO ESTADO DE MINAS GERAIS E DO IPSEMG - ART. 28 DA LEI 13.455/2000 - NECESSIDADE DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO RECONHECIDO DE OFÍCIO - ANULAÇÃO DO PROCESSO - RETORNO DOS AUTOS À COMARCA DE ORIGEM PARA CUMPRIMENTO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 47 DO CPC - CITAÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS - MÉRITO DO RECURSO PREJUDICADO. O direito controvertido, qual seja, diferença de pecúlio e seguro coletivo, embora propriamente não seja considerado como indisponível, por ser demandado contra Pessoa Jurídica de Direito Público, atinente à administração indireta, como é o caso do IPSEMG, adquire uma indisponibilidade relativa, tendo por justificativa a supremacia do interesse público sobre o particular, razão pela qual deve-se afastar a aplicação dos efeitos da revelia. Quando o Magistrado, por erro material, se funda em dispositivo alheio à situação discutida nos autos, tal fato, por si só, não tem o condão de nulificar a decisão inaugural, mas, quando muito, ocasionar a reforma do julgado em sede recursal, quando pela análise das outras provas se verificar o real direito dos autores. Restando constatado que as contribuições destinadas ao custeio de pecúlio e seguro coletivo foram descontadas em folha do segurado falecido em desacordo com as disposições legais vigentes, tem-se que os efeitos da decisão final destes autos afetarão tanto o Estado de Minas Gerais quanto o IPSEMG, ante a responsabilidade solidária destes Entes, prevista no artigo 28 da Lei 13.455/2000, devendo-se, assim, reconhecer, de ofício, a necessidade da formação do litisconsórcio passivo necessário, acarretando, por conseqüência, a anulação do feito, bem como a prejudicialidade do exame do mérito recursal. (TJMG, Processo 1.0024.03.0101596/001, Relator José Domingues Ferreira Esteves, Julgamento 26/04/2005, Publicação 13/05/2005). 319 De Jure 9 prova 2.indd S1:319 11/3/2008 16:22:05 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA 3.1 UM NOVO OLHAR PARA O CERRADO: ENSAIO INTERDISCIPLINAR PARA O (RE)CONHECIMENTO DA DIGNIDADE FLORÍSTICA E JURÍDICA DO BIOMA LUCIANO JOSÉ ALVARENGA Assessor no Ministério Público do Estado de Minas Gerais Mestrando em Ciências Naturais (DEGEO-UFOP) Grupo de Estudos “Direito, Justiça Ambiental e Florestas: Reflexões Interdisciplinares para a Conservação do Patrimônio Florestal Mineiro” (CEAF/MP-MG) 1. Acórdão APELAÇÃO CÍVEL N. 1.0000.00.297454-1/000(1) Relator: Desembargador Carreira Machado Apelantes: Dinamérico Gomes e Outros Apelado: Oficial do Cartório de Registro de Imóveis de Ibiraci EMENTA: A reserva legal será instituída como forma de preservar as florestas e matas nativas existentes, evitando-se o desmatamento e a degradação do imenso potencial florístico brasileiro. Acórdão: Vistos etc., acorda, em Turma, a QUARTA CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em dar provimento. Data do julgamento: 28 de novembro de 2002. 2. Razões Decisões jurisdicionais contrapostas à reserva legal (RL) não têm sido escassas em Minas Gerais. Um exemplo é encontrado no acórdão em referência, segundo o qual a obrigatoriedade da averbação da reserva não se aplicaria a glebas desprovidas de cobertura vegetal ou localizadas em regiões de Cerrado ou de Campos. Segundo o voto do Desembargador Almeida Melo (MINAS GERAIS, 2002): A exigência é descabida quando se trate de terras de cultura, cerrado e campos, por não serem florestas ou vegetações nativas que tenham preservação amparada pelo citado Código. A cultura é criada e mantida pelo homem. Não é nativa. O cerrado é a vegetação composta de arbustos enfezados, de galhada tortuosa, entre os quais vegetam as gramíneas que servem de pasto ao gado. O campo é a extensão de terra, arável 320 De Jure 9 prova 2.indd S1:320 11/3/2008 16:22:06 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ou arada, que não possui vegetação nativa e importante. Tratase de vegetação herbácea, raras árvores, poucos acidentes, que o homem aproveita para a plantação. A noção básica da proteção florestal diz respeito à defesa da cobertura vegetal necessária à terra que reveste (art. 1º da Lei n. 4.771, de 15 de setembro de 1965, que contém o Código Florestal). Somente nesta acepção compreendem-se “outras formas de vegetação nativa”, acrescidas pela alteração da Medida Provisória n. 2.166-67, de 24 de agosto de 2001. Seja supressão, seja exploração, o art. 16 do Código Florestal sempre relaciona-se com floresta ou área cuja vegetação nativa seja cobertura da terra que deva ser preservada. No caso dos autos, não se encontra floresta nem vegetação nativa que constitua cobertura objeto de exploração ou de supressão. Simples transmissão da terra no estado em que se encontra. Alberto Caeiro tinha razão: “Não basta abrir a janela / Para ver os campos e o rio / Não é bastante não ser cego / Para ver as árvores e as flores” (PESSOA, 2005, p. 157). 3. Justificativa Em 1711, o jesuíta André João Antonil escrevia em seu tratado descritivo da economia brasileira, intitulado Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas: “[...] feita a escolha da melhor terra para a cana, roça-se, queima-se e alimpa-se, tirandolhe tudo o que podia servir de embaraço” (ANTONIL, 1976, p. 112). Hoje, quase trezentos anos depois, a percepção que orientava esse comportamento, representativo do padrão colonial de ocupação do território brasileiro, atualiza-se, não raramente, em práticas sociais e institucionais no País. A paisagem tropical ainda é vista como um embaraço frente ao progresso e ao desenvolvimento, fortemente calcados no pressuposto, ecologicamente antinômico, da produtividade crescente e infindável. “Em poucos países do mundo o peso do passado é tão intenso quanto no Brasil” (PÁDUA, 2003-2004, p. 7)1. Um passado que deixou suas marcas nas bases da cultura brasileira e influencia até mesmo decisões de órgãos administrativos e jurisdicionais que, por princípio, deveriam se comprometer à construção de uma nova realidade, a partir de um acordo responsável com a natureza (SERRES, 1991) e da promoção de um meio ambiente dignificante (CF/88: art. 1º, inc. III, e art. 225, caput). O acórdão em comento traz consigo essas marcas históricas. Ademais, do ponto de vista jurídico, opõe-se à Constituição da República (1988), ao Código Florestal 1 Pádua (2003-2004, p. 7) observa que o Brasil não nasceu como uma nação, nem mesmo como um país. “O Brasil nasceu de um macro projeto de exploração ecológica ou, melhor dizendo, de um arquipélago de projetos de exploração ecológica. Isto está indicado no próprio nome ‘Brasil’, que venceu uma disputa histórica com o nome ‘Santa Cruz’, apesar da força ideológica do catolicismo”. 321 De Jure 9 prova 2.indd S1:321 11/3/2008 16:22:06 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS vigente e à Lei nº 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA. Não bastasse isso, funda-se numa imagem distorcida de aspectos biológicos e fitogeográficos da realidade, patente na desconsideração do Cerrado, a despeito de toda a riqueza florística e biodiversidade que o caracteriza, como eco-região digna de proteção legal e jurisdicional. Este texto promove uma breve análise de conteúdo (GUSTIN; DIAS, 2006) e critica, sob os olhares do Direito Ambiental e da Fitogeografia, o entendimento subjacente ao Acórdão 1.0000.00.297454-1/000(1), do TJMG, reiterado em vários julgados posteriores desse tribunal. Para isso, apresenta argumentos baseados nos textos normativos acima referidos e em indicadores biogeográficos correlativos ao bioma Cerrado. 4. Comentários 4.1. Dissociação entre averbação obrigatória da RL e presença de cobertura arbórea densa na gleba O direito brasileiro protege parcelas significativas de todos os domínios paisagísticos e ecológicos existentes no País, com seus variados tipos e fisionomias de vegetação. Como observam Alvarenga e Vasconcelos (2005, p. 18): A Constituição da República Federativa do Brasil, ao estabelecer as hipóteses de configuração da competência comum (administrativa) da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, no que toca à proteção da vegetação brasileira (art. 23, VII, da CRFB), faz alusão ao vocábulo ‘flora’, ou seja, a todo o conjunto de espécies vegetais existentes na extensão territorial brasileira. Por conseguinte, pode-se afirmar que a CRFB protege todas as formações vegetais brasileiras, não obstante algumas dessas formações (caatinga, cerrado etc.) não encontrem referência explícita no texto constitucional em vigor. Alguns contra-argumentarão que essa interpretação é demasiadamente extensiva, que a CF/88 não se reporta a todas as fisionomias da flora brasileira, mas somente aos espaços densamente ocupados por floresta. Entretanto, regras situadas no patamar infraconstitucional, ao refletirem as normas de escalão superior, infirmam essa visão desvirtuada do sistema jurídico e permitem que a imagem constitucional se revele com nitidez. Assim é que, ao espelhar os contornos principiológicos e detalhar essa imagem, a legislação brasileira dissocia a averbação da RL da presença de cobertura arbórea densa na gleba. Primeiro, porque o art. 1º, inc. III, da Lei nº 4.771/1965, 322 De Jure 9 prova 2.indd S1:322 11/3/2008 16:22:06 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS acrescentado pela MP 2.166-67/2001, ao definir a RL, refere-se à “[...] área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural”, e não apenas à vegetação ali ocorrente.2 Segundo, devido ao art. 16, caput e inc. III, da mesma lei, alusivo a outras formas de vegetação nativa (arbustivas, herbáceas, rasteiras etc.) típicas do território nacional. Terceiro, porque o inc. IV do dispositivo em comento exige a conservação de 20% da composição florística em área de campos gerais (localizada em qualquer região do País), ambiente natural em que fitofisionomias reconhecidamente florestais não são comuns. Em suma, a Lei nº 4.771/1965 contém regras destinadas à conservação de parcelas significativas de todos os biomas e tipos de vegetação nativa ocorrentes no Brasil, e não apenas dos espaços densamente ocupados por florestas. As áreas naturalmente cobertas por vegetação arbustiva, herbácea, rasteira ou rarefeita também compõem o acervo florístico brasileiro e são dignas, tanto quanto as áreas tipicamente florestais, de proteção legal, administrativa e jurisdicional. Com efeito, no âmbito do Estado de Minas Gerais, o art. 14, caput, da Lei nº 14.309/2002 exige que a RL seja “[...] representativa do meio ambiente natural da região”. Portanto, a proteção legal não abrange somente as áreas com densa cobertura arbórea, e sim todas as formas de vegetação nativa ocorrentes no território mineiro. Como se não bastassem tais argumentos, o art. 44 do Código Florestal, com redação determinada pela MP 2.166-67/2001, é categórico ao exigir do proprietário ou possuidor de imóvel rural a recuperação ou compensação da RL, na hipótese em que a cobertura vegetal apresente, in situ, extensão inferior às posturas normativas mínimas. Portanto, a averbação obrigatória da RL no registro imobiliário, além da conservação de parcelas significativas do acervo florístico brasileiro, preconiza o ressurgimento ou reabilitação de formações vegetais típicas da gleba, representativas desse acervo. Logicamente, se o próprio legislador previu hipóteses em que o proprietário ou possuidor do imóvel rural deve recuperar a área de RL, a exigência da averbação independe da presença de vegetação nativa conservada in loco. A insistência, ou quiçá renitência, em compreensão oposta, além de desrespeitar a CF/88 e o Código Florestal, contrapõe-se à Lei nº 6.938/1981, que fixou as normas gerais da PNMA. Por certo, essa política objetiva “[...] a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional 2 Pode-se afirmar que o Código Florestal considera as interações sistêmicas entre os diversos tipos de vegetação e os domínios fitogeográficos em que eles podem ocorrer (AB’SÁBER, 2003). Ou seja, a lei é compreensiva das relações entre cobertura florística e diferentes feições de relevo, tipos de solo, aspectos geomorfológicos, condições climático-hidrológicas, etc. Não é à toa, pois, que a Lei nº 4.771/1965 emprega o termo área ao conceituar a APP e a RL. A lei protege a paisagem como um sistema, e não apenas a flora nela existente. 323 De Jure 9 prova 2.indd S1:323 11/3/2008 16:22:06 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS e à proteção da dignidade da vida humana” (art. 2º, caput). Além disso, a PNMA visa à racionalização do uso do solo, da água e do ar, à proteção dos ecossistemas, com a preservação das áreas representativas e, em destaque, à recuperação das áreas degradadas (art. 2º, incisos II, IV e VIII).3 Por outro lado, o fato de o atual proprietário ou possuidor do imóvel tê-lo assumido com a reserva de vegetação nativa já degradada não o exime de recuperá-la. Como observam Mantovani e Bechara (1999, p. 148), essa obrigação figura-se como propter rem. Ou seja, ela “[...] acompanha a coisa independente de quem seja o seu titular e independente do fato de este titular ter ou não ter contraído, ele próprio, a obrigação”. Dessa forma, o adquirente de propriedade sem RL, ou cuja RL tenha sido desmatada, é obrigado a recompô-la (podendo se ressarcir, ulteriormente, com o autor do desmatamento). Nas palavras de Führer, citado por Paccagnella (1997, p. 12): As obrigações reais, propter rem (em razão da coisa), ou in rem scriptae (gravadas na coisa), situam-se numa zona cinzenta, entre o direito real e o direito obrigacional. Surgem como obrigações pessoais de um devedor, por ser ele titular de um direito real. Mas acabam aderindo mais à coisa do que ao seu eventual titular... Todas essas dívidas, além de não largarem o devedor originário, sob o aspecto obrigacional, vão também acompanhando sempre a coisa, sob o aspecto real, até que sejam satisfeitas, não importando se o devedor originário já foi substituído. Por isso se diz que são dívidas em razão da coisa (propter rem). Seguindo essa linha de pensamento, o STJ, ao julgar o Recurso Especial 195274PR, que versava sobre a RL, expressou a compreensão, legalmente fundada (Lei nº 6.938/1981: art. 14, §1º), de que a responsabilidade por dano ambiental é objetiva, “[...] devendo o proprietário, ao tempo em que conclamado para cumprir obrigação de reparação ambiental, responder por ela”. No mesmo acórdão, aquela Corte referiu que o novo adquirente do imóvel rural “[...] é parte legítima para responder ação civil pública que impõe obrigação de fazer consistente no reflorestamento da reserva legal, pois assume a propriedade com ônus restritivo” (BRASIL, 2005a). Mais categórico, no julgamento do Recurso Especial 217858-PR, o STJ concluiu que: “Aquele que perpetua a lesão ao meio ambiente cometida por outrem está, ele mesmo, praticando o ilícito. A obrigação de conservação é automaticamente transferida do alienante 3 Ao pormenorizar princípios da PNMA, o Decreto nº 5.975, de 30 de novembro de 2006, que regulamenta o art. 16 do Código Florestal, incentiva a reposição florestal da RL, ao preceituar, no texto do art. 19, que: “O plantio de florestas com espécies nativas em áreas de preservação permanente e de reserva legal degradadas poderá ser utilizado para a geração de crédito de reposição florestal”. 324 De Jure 9 prova 2.indd S1:324 11/3/2008 16:22:06 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ao adquirente, independentemente deste último ter responsabilidade pelo dano ambiental” (BRASIL, 2003). Por se basearem nas mesmas razões, também podem ser mencionados os acórdãos proferidos nos recursos especiais 343741-PR (BRASIL, 2002), 263383-PR (BRASIL, 2005b) e 927979-MG (BRASIL, 2007). 4.2. Caracterização do cenário fitogeográfico, fitofisionômico e de uso socioeconômico do Cerrado Para Walter (2006, p. 57), “[...] a adoção de um termo técnico, na escala de ‘bioma’, não pode ser considerada rígida e inquestionável, embora tendências certamente existam – e esta lógica vale para qualquer escala”. A literatura fitogeográfica brasileira, segundo o ecólogo, aceita como equivalentes, na contemporaneidade, as expressões bioma, província e domínio. Isso, contudo, sem unanimidade. Quanto ao Cerrado, ele é referido, neste texto, mediante o emprego dos três verbetes mencionados, bem assim pela locução forma de vegetação nativa, utilizada no Código Florestal em vigor (art. 16). Ocasionalmente, empregam-se as expressões “domínio ecológico”, “domínio paisagístico”, “eco-região” ou similares. Parte-se da definição de província ou domínio fitogeográfico elaborada por Ab’Sáber (2003, p. 11), para quem os termos designam “[...] um conjunto espacial de certa ordem de grandeza territorial [...] onde haja um esquema coerente de feições de relevo, tipos de solo, formas de vegetação e condições climático-hidrológicas”. Esse conjunto, de feições paisagísticas e ecológicas integradas, ocorre em uma área principal, contínua e de arranjo normalmente poligonal (denominada área core ou nuclear), em que as condições fisiográficas e biogeográficas formam um complexo relativamente homogêneo e extensivo. As dimensões territoriais atribuídas ao Cerrado variam bastante. Os resultados dependem do cômputo das áreas de transição (ou tensão) ecológica, situadas nas bordas da área nuclear do bioma, nas quais há uma mistura com elementos florísticos de regiões adjacentes.4 Além disso, como anotam Machado e outros (2004, p. 2), “[...] existem encraves de vegetação de Cerrado em outros domínios de vegetação, como as áreas de Cerrado no Estado de Roraima, Amapá, Amazonas (Campos de Humaitá), Rondônia (Serra dos Pacaás Novos), Pará (Serra do Cachimbo), Bahia (Chapada de Diamantina) e para o sul do Estado de São Paulo e Paraná”. Estima-se que a província fitogeográfica ocupe aproximadamente 21% do Brasil, o que lhe confere a posição de segunda maior eco-região do País, superada em extensão apenas pela Amazônia (CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL, 1999, p. 12; KLINK; MACHADO, 2005, p. 148). A Fig. 1 representa o Cerrado brasileiro em sua área nuclear, sem considerar seus encraves noutros domínios fitogeográficos e as áreas de transição ecológica. 4 Ab’Sáber (1977), Witmore e Prance (1987), Prado e Gibbs (1993), Oliveira-Filho e Ratter (1995) e Silva (1995), citados por Machado e outros (2004, p. 2), explicam que a existência de áreas de tensão ecológica deriva de “[...] processos históricos de contração e expansão dos ecossistemas brasileiros, dinâmica essa que foi resultante das mudanças climáticas do passado”. 325 De Jure 9 prova 2.indd S1:325 11/3/2008 16:22:07 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Fig. 1: O Cerrado brasileiro, em sua área nuclear. Fonte: <http://www.bdt.org.br>. Do ponto de vista fitofisionômico, o termo Cerrado possui, de acordo com Walter (2006, p. 36-37), três acepções técnicas distintas. A primeira, mais geral, concerne ao domínio fitogeográfico, como um todo, predominante no Brasil Central (Fig. 1). Dessa perspectiva, o vocábulo designa o conjunto de ecossistemas (savanas, matas, campos e matas de galeria) que ocorrem nessa grande província (KLINK; MACHADO, 2005, p. 148). A segunda, Cerrado em sentido amplo (lato sensu), reúne as formações savânicas e campestres do bioma, incluindo desde o Cerradão, de estrutura florística mais densa, até o Campo Limpo. “Portanto, sob este conceito” – explica Walter (2006, p. 37) – “há uma única formação florestal incluída, o Cerradão”. A última acepção, Cerrado em sentido estrito (stricto sensu), é, para o ecólogo, a que melhor caracteriza o bioma. Aproximando-se da noção usual de savana, ela concerne a uma “[...] formação tropical com domínio de gramíneas, contendo uma proporção maior ou menor de vegetação lenhosa aberta e árvores associadas” (COLLINSON apud WALTER, 2006, p. 37). Uma típica vegetação de savana ocupa a maior parte da área do bioma. De 80 a 90% do Brasil Central, segundo Eiten, citado por Walter (2006, p. 37). Esse dado tem importância diante da constatação de que em muitas partes do globo, notadamente no Brasil, paisagens sem cobertura arbórea densa não sensibilizam o público leigo tanto quanto as comumente ditas florestais (WALTER, 2006, p. 33). O fato é que, a despeito de sua singularidade ecológica, o Cerrado, principalmente em suas feições savânicas, não ostenta o prestígio social e simbólico de outros domínios fitogeográficos, como o Tropical Atlântico e o Amazônico. Na observação de Walter (2006, p. 35, grifo nosso): 326 De Jure 9 prova 2.indd S1:326 11/3/2008 16:22:07 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS [...] embora as savanas sejam a casa de um bilhão de pessoas (Mistry, 2000), elas têm sido sistematicamente destruídas para dar lugar a outras formas de uso da terra. Existe uma preocupação mundial com as florestas, que despertam no grande público muito mais interesse que qualquer outra vegetação. Das savanas, erroneamente ainda tidas como vegetações de importância menor, foi pinçado o termo “savanização” – ainda ausente na maioria dos dicionários –, que identifica os processos de transformação de áreas originalmente florestadas. Como o seu termo irmão “desertificação” – este, há muito dicionarizado – a savanização é tratada como algo a ser combatido. Para as florestas como é correto que se combatam esses processos, é incorreto que a associação ao termo savana impute a este algo que deve ser igualmente combatido. Isso é um erro! Savanas naturais são um fato biológico, e são importantes por cobrirem vastas superfícies do planeta, podendo ser tão ricas quanto as mais ricas florestas tropicais; como é o caso do Cerrado brasileiro. De fato, o Cerrado é um dos dois biomas brasileiros, ao lado da Mata Atlântica, incluídos entre os Hotspots (regiões biologicamente mais ricas do planeta que se encontram mais ameaçadas). Focalizando os elementos florísticos do bioma, Klink e Machado (2005, p. 149) anotam que: O número de plantas vasculares é superior àquele encontrado na maioria das regiões do mundo: plantas herbáceas, arbustivas, arbóreas e cipós somam mais de 7.000 espécies (Mendonça et al., 1998). Quarenta e quatro por cento da flora é endêmica e, nesse sentido, o Cerrado é a mais diversificada savana tropical do mundo. Existe uma grande diversidade de habitats e alternância de espécies. Por exemplo, um inventário florístico revelou que das 914 espécies de árvores e arbustos registradas em 315 localidades de Cerrado, somente 300 espécies ocorrem em mais do que oito localidades, e 614 espécies foram encontradas em apenas uma localidade (Ratter et al., 2003). Dados da Conservação Internacional (1999, p. 12) apontam o Cerrado como uma das mais ricas savanas tropicais (Tabela 1) e sugerem que a quantidade de espécies de plantas ocorrentes nele seria ainda maior, chegando a 10.000. Número que, associado ao alto grau de endemismo da província fitogeográfica, evidencia sua singularidade florística (Tabela 2).5-6 5 Endemismo significa que uma determinada espécie tem distribuição restrita a uma certa unidade de área, que pode ser um bioma ou um País (MACHADO et al., 2004, p. 3). 6 Muitas espécies de plantas e animais estão fortemente associadas a ecossistemas locais. No âmbito do 327 De Jure 9 prova 2.indd S1:327 11/3/2008 16:22:07 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Tabela 1: Número de espécies de plantas e vertebrados endêmicos (E) e ocorrências (O) (CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL, 2005, p. 11). Plantas HOTSPOT E Mamíferos O Aves Répteis Anfíbios Peixes de água doce E O E O E O E O E O Andes Tropicais 15000 30000 75 569 584 1728 275 610 664 1155 131 380 Tumbes-ChocóMagdalena 2750 11000 10 283 112 892 98 325 29 204 115 251 Mata Atlântica 8000 20000 71 263 148 936 94 306 286 475 133 350 Cerrado 4400 10000 14 195 16 605 33 225 26 251 200 800 Florestas Valdívias 1957 3892 14 65 12 226 27 41 29 43 24 43 Mesoamérica 2941 17000 66 440 213 1124 240 686 353 575 340 509 Florestas de Pinho-Encino de Sierra Madre 3975 5300 6 328 23 525 37 384 50 218 18 84 Ilhas do Caribe 6550 13000 41 89 167 607 468 499 164 165 65 161 Província Florística da Califórnia 2124 3488 18 151 8 341 4 69 25 54 15 73 Florestas da Guiné, África Ocidental 1800 9000 67 320 75 793 52 206 83 246 143 512 Província Florística do Cabo 6210 9000 4 90 6 324 22 100 16 51 14 34 Karoo das Plantas Suculentas 2439 6356 2 74 1 227 15 94 1 29 0 28 MaputalandPondolandAlbany 1900 8100 5 193 0 541 36 205 12 80 20 73 Cerrado, aves como o Soldadinho (Antilophia galeata) ou o Pula-Pula de Sobrancelha (Basileuterus leucophrys) são encontradas apenas em matas de galeria (MACHADO, 2000). Mamíferos como o ratinho Kunsia fronto só ocorrem em áreas de Cerradão (MARINHO-FILHO, RODRIGUES, JUAREZ, 2002). Lagartos como o Cnemidophorus ocellifer só existem em cerrados de terrenos arenosos. Palmeiras como o buriti (Mauritia flexuosa) estão associadas a formações de veredas. Orquídeas como a Constancia cipoense são observadas, tão-somente, em campos rupestres (MACHADO et al., 2004). 328 De Jure 9 prova 2.indd S1:328 11/3/2008 16:22:07 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Montanhas do Arco Oriental 1750 4000 11 198 12 636 54 250 8 102 32 219 Florestas de Afromontane 2356 7598 104 490 110 1325 93 347 79 285 617 893 Chifre da África 2750 5000 20 219 25 704 93 284 7 53 10 100 Madagascar e Ilhas do Oceano Índico 11600 13000 144 155 183 313 367 381 226 228 97 164 Bacia do Mediterrâneo 11700 22500 25 224 32 497 77 228 27 86 63 216 Cáucaso 1600 6400 18 130 2 381 20 87 4 17 12 127 Região IranoAnatólica 2500 6000 10 141 0 384 13 116 4 21 30 90 Montanhas da Ásia Central 1500 5500 6 143 0 493 1 59 4 9 5 27 Ghats Ocidentais, Índia e Sri Lanka 3049 5916 18 140 35 457 176 265 138 179 139 191 Himalaia 3160 10000 12 300 15 979 4 177 41 124 33 269 Montanhas do Centro Sul da China 3500 12000 5 237 1 611 15 94 40 98 23 92 Regiões da Indo-Birmânia 7000 13500 73 433 73 1277 204 518 139 311 553 1262 Sunda 15000 25000 173 381 146 771 244 449 172 242 350 950 Wallacea 1500 10000 127 222 265 650 99 222 32 58 50 250 Filipinas 6091 9253 102 167 185 535 160 235 74 99 67 281 Japão 1950 5600 46 91 15 368 28 64 44 58 52 214 Sudoeste da Austrália 2948 5571 12 57 10 285 27 177 19 33 10 20 Ilhas de Melanésia Oriental 3000 8000 39 86 154 365 54 114 38 44 3 52 Nova Zelândia 1865 2300 2 4 89 198 37 37 4 4 25 39 Nova Caledônia 2432 3270 6 9 23 105 62 70 0 0 9 85 Ilhas de Melanésia e Micronésia 3074 5330 11 15 170 300 31 61 3 3 20 96 329 De Jure 9 prova 2.indd S1:329 11/3/2008 16:22:08 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Tabela 2: Número de espécies de vertebrados e plantas que ocorrem no Cerrado, porcentagem de endemismos do bioma e proporção da riqueza de espécies do bioma em relação à riqueza de espécies no Brasil (KLINK; MACHADO, 2005, p. 149). NÚMERO DE ESPÉCIES % ENDEMISMOS DO CERRADO % ESPÉCIES EM RELAÇÃO AO BRASIL Plantas 7.000 44 12 Mamíferos 199 9,5 37 Aves 837 3,4 49 Répteis 180 17 50 Anfíbios 150 28 20 Peixes 1.200 ? 40 Todos esses indicadores biogeográficos atestam as dignidades biológica, fitogeográfica e florística do Cerrado. Dignidades bastantes para justificar a máxima proteção possível do bioma (que é absolutamente singular). Dessa perspectiva, remontando à feição diacrônica do direito fundamental a um meio ambiente dignificante (CF/88: art. 1º, inc. III, art. 225, caput), a província fitogeográfica em questão devem ser vista como uma herança7, materializada em conjuntos paisagísticos de longa e complexa elaboração fisiográfica e ecológica. Como pontifica Ab’Sáber (2003, p. 10): Mais do que simples espaços territoriais, os povos herdaram paisagens e ecologias, pelas quais certamente são responsáveis, ou deveriam ser responsáveis. Desde os mais altos escalões do governo e da administração até o mais simples cidadão, todos têm uma parcela de responsabilidade permanente, no sentido da utilização não-predatória dessa herança única que é a paisagem terrestre. Entrementes, um estudo recente, que utilizou imagens de satélite MODIS de 2002, concluiu que 55% do Cerrado já foram desmatados ou transformados pela ação humana. O percentual equivale a quase três vezes a cobertura vegetal suprimida na Amazônia (MACHADO et al., 2004, p. 5). As taxas anuais de desmatamento também são mais elevadas naquele bioma. De acordo com Klink e Moreira (2002), entre 1970 e 1975, o desmatamento médio no Cerrado foi de 40.000km2/ano – 1,8 vezes a taxa de desmatamento da Amazônia durante o período de 1978-1988. Os níveis atuais de desmatamento variam entre 22.000 e 30.000km2/ano (MACHADO 7 Visualizada como herança, a paisagem terrestre e todo o acervo geológico e biológico nela existente também podem ser reconhecidos como patrimônio cultural (CF/88: art. 216, inc. V). 330 De Jure 9 prova 2.indd S1:330 11/3/2008 16:22:08 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS et al., 2004), superiores aos da Amazônia.8 As transformações no Cerrado são acompanhadas por grandes danos ambientais, tais como fragmentação de habitats, extinção da biodiversidade, invasão de espécies exóticas, erosão e compactação dos solos, poluição de aqüíferos, degradação de ecossistemas, alterações nos regimes de queimadas, desequilíbrios nos ciclos do carbono, modificações climáticas regionais e perda de nutrientes (KLINK; MACHADO, 2005, p. 148-149). Para Klink e Machado (2005, p. 148), esses dados resultam, em certa medida, dos diferentes modos com que o Código Florestal vigente trata os biomas brasileiros: “[...] enquanto é exigido que apenas 20% da área dos estabelecimentos agrícolas sejam preservadas como reserva legal no Cerrado, nas áreas de floresta tropical na Amazônia esse percentual sobe para 80%”.9 Em função da crescente retirada da cobertura florística daquele bioma, para o avanço das fronteiras agrícolas, Machado e outros (2004, p. 7) prevêem que ele pode vir a desaparecer em 2030. Um triste cenário futuro que pode se concretizar devido, em certa medida, a uma contradição na base das políticas públicas brasileiras: se, por um lado, o Ministério do Meio Ambiente postula a ampliação de áreas protegidas no Cerrado, a bancada ruralista e setores do próprio Governo defendem, por outro, a utilização de centenas de milhões de hectares adicionais para a expansão da agricultura intensiva. Diante dessa realidade, Klink e Machado (2005, p. 152) destacam que um dos principais desafios para a conservação do Cerrado será demonstrar a relevância dos serviços que a biodiversidade desempenha no funcionamento dos ecossistemas. As políticas públicas devem considerar o acervo cognitivo “[...] tanto sobre espécies e habitats quanto sobre funcionamento de ecossistemas, uma vez que as modificações da paisagem têm implicações sobre o regime de queimadas, a hidrologia, a ciclagem e os estoques de carbono e possivelmente o clima”. Implicações que órgãos administrativos e jurisdicionais de alto escalão, na linha do comportamento geral dos povos que habitam o Cerrado, continuam a desconhecer. 4.3. A decisão do TJMG e suas antinomias jurídicas e biológicas Uma visão distorcida do Cerrado e de seu significado biológico pode afetar, ou até mesmo tornar inócuos, os instrumentos legais, administrativos e jurisdicionais originariamente destinados à sua conservação (WALTER, 2006, p. 5). Greuter, citado 8 Os dados apresentados contrastam com as recomendações de Machado et al. (2004, p. 8-9). Para os autores, o Governo Federal, em articulação com os governos estaduais e municipais, devem adotar uma postura de desmatamento zero para o Cerrado, pelo menos até que seja feito um planejamento integrado para a ocupação do bioma. 9 Com base na Biologia da Conservação e na teoria da percolação, Metzger (2002) sugere que as áreas de RL devem ocupar 60%, no mínimo, da propriedade rural. 331 De Jure 9 prova 2.indd S1:331 11/3/2008 16:22:08 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS por Walter (2006, p. 246), tem razão em dizer que: “A nomenclatura biológica é relevante para todos que necessitem comunicar-se a respeito dos organismos”. Talvez por ignorar essa assertiva, o TJMG, ao julgar a Apelação 1.0000.00.297454-1/000(1), reduziu o bioma à condição de “[...] vegetação composta de arbustos enfezados, de galhada tortuosa, entre os quais vegetam as gramíneas”. Para o órgão jurisdicional, o domínio fitogeográfico não seria constituído por florestas, que não existem “[...] em terras de campo, cerrado, e muito menos de cultura” (MINAS GERAIS, 2002). A visão de que a referida província fitogeográfica não apresentaria feições arbóreas densas, associada a uma interpretação restritiva das exigências normativas relativas à RL, segundo a qual ela concerniria apenas a áreas densamente florestadas, conferiu aparência de sensatez a uma decisão biologicamente antinômica. O falso pressuposto de que não há florestas no Cerrado, ou (o que é pior) o de que este, para receber proteção legal, deve ser densamente ocupado por plantas de alto porte, serviu para motivar a inexigibilidade da averbação da RL por proprietários de glebas localizadas nesse domínio fitogeográfico. Entrementes, o Cerrado, como bioma, reúne atributos biogeográficos que o tornam apto a ser protegido como tal, independentemente da existência de cobertura arbórea densa em todas as suas áreas de ocorrência. Até mesmo porque, como referido no item 4.2, a presença difusa de estruturas florísticas densas é própria desse domínio fitogeográfico. Sem embargo disso, num patamar mais profundo de abordagem, alguns estudiosos observam que a distribuição esparsa dessas estruturas no Cerrado e a descontinuidade entre agrupamentos arbóreos nas parcelas savânicas do bioma não o desqualificam como sistema florestal. Dados extraídos dos estudos de Goodland e Ferri (1979, p. 75) demonstram que a eco-região, em todas as suas feições, apresenta propriedades fisionômicas, como dossel arbóreo, que a aproximam de paisagens reconhecidamente florestais (p.ex.: Mata Atlântica, Amazônia). Importa destacar, de outra perspectiva, a alta incidência florística, com significativa diversidade, em todas as categorias do domínio fitogeográfico (Tabela 3), lembrando que, para Goodland e Ferri (1979, p. 75), a diferença entre árvores e arbustos “[...] é inteiramente arbitrária, baseando-se meramente no porte do vegetal. Muitas das plantas enquadradas na categoria de porte arbustivo são, efetivamente, espécies de porte potencialmente arbóreo”. Com relação a esse aspecto, outro dado significativo é que uma expressiva diversidade de plantas do Cerrado ocorre precisamente em suas áreas savânicas. 332 De Jure 9 prova 2.indd S1:332 11/3/2008 16:22:08 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Tabela 3: Quadro das Características do Cerrado do Triângulo Mineiro (GOODLAND; FERRI, 1979, p. 76). Categoria de cerrado CAMPO SUJO CAMPO CERRADO CERRADO CERRADÃO Número de locais pesquisados 28 24 30 28 mín. méd. máx. mín méd. máx. mín. méd. máx. mín. méd. máx. Altitute (metros) 550 713 950 550 742 950 400 692 950 550 752 850 Dossel (%) 0 1 2 0 3 15 1 19 55 15 46 85 Recobrimento do solo (%) 30 65 85 45 67 85 10 55 80 2 35 75 Altura das árvores (m) 1 3 5 3 4 6 4 6 8 6 9 18 Altura dos arbustos (m) 0 1 1 0 1 2 0 1 2 0 1 3 Altura das gramíneas (m) 0 1 2 0 1 3 0 2 4 0 1 3 Área Basal total (cm2x10-3) 1 3 6 2 5 7 3 7 13 4 8 18 No de árvores/ hectare 266 849 2070 335 1408 2928 836 2253 3976 1631 3215 4925 No de árvores/ acre Área Basal/ hectare (cm2x10-3) No de espécies arbóreas No de espécies arbustivas No total de espécies 344 570 912 1300 10 30 60 17 76 142 62 168 253 203 313 513 19 31 43 18 36 52 26 43 60 40 55 72 1 5 9 1 4 6 1 4 6 0 3 7 96 93 95 100 333 De Jure 9 prova 2.indd S1:333 11/3/2008 16:22:09 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Diante desse fato, afirmar que o direito brasileiro protege apenas as áreas de Cerrado onde ocorrem formações arbóreas densas e de alto porte significa, concomitantemente, ignorar a condição biogeográfica própria do bioma. Adicionalmente, é preciso levar em conta que a composição florística de uma paisagem mantém relações de interdependência com as condições pedológicas, geomorfológicas, físicas, bióticas e ecológicas ali ocorrentes. Alterações qualitativas e quantitativas na flora geram implicações noutros constituintes do sistema, como, por exemplo, no solo, outro bem protegido pela legislação. Com efeito, as formas de vegetação presentes numa determinada área não se encontram ali ao acaso. Múltiplos fatores, de diferentes ordens e com diferentes pesos, mas todos interdependentes, determinam a caracterização fitofisionômica e florística de um local. Uma caracterização a que o Direito deve, antes de tudo, compreensão e reverência. 5. Síntese conclusiva e proposições 5.1. A Lei nº 4.771/1965 contém regras destinadas à conservação de parcelas significativas de todos os biomas e tipos de vegetação nativa ocorrentes no Brasil, e não apenas dos espaços densamente ocupados por formações arbóreas densas e de alto porte. As áreas naturalmente cobertas por vegetação arbustiva, herbácea, rasteira ou rarefeita também compõem o acervo florístico brasileiro e merecem, tanto quanto os espaços tipicamente florestais, proteção legal, administrativa e jurisdicional. 5.2. A averbação obrigatória da RL no registro imobiliário, além da conservação de parcelas significativas dos domínios ecológicos brasileiros, preconiza o ressurgimento ou reabilitação de formações vegetais típicas da gleba, representativas da eco-região em que ela se insere. Logicamente, se o próprio legislador previu hipóteses em que o proprietário ou possuidor do imóvel rural deve recuperar a área de RL, a exigência da averbação independe da presença de vegetação nativa conservada in loco. 5.3. Indicadores biogeográficos atestam as dignidades biológica, fitogeográfica e florística do Cerrado. Dignidades bastantes para justificar a máxima proteção possível do bioma. Sob essa perspectiva, remontando à feição diacrônica do direito fundamental a um meio ambiente dignificante (CF/88: art. 1º, inc. III, art. 225, caput), a província fitogeográfica em questão deve ser vista como herança, materializada em conjuntos paisagísticos de longa e complexa elaboração fisiográfica e ecológica. 5.4. O Cerrado apresenta características únicas que o habilitam a ser protegido como tal, independentemente da existência de cobertura arbórea densa e de alto porte em todas as suas áreas de ocorrência. Com efeito, a presença difusa de tal fitofisionomia é própria desse domínio ecológico. Por isso, afirmar que o direito brasileiro protege apenas as áreas onde ocorrem estruturas florísticas densas significa ignorar e desprezar a condição biogeográfica própria do bioma. 334 De Jure 9 prova 2.indd S1:334 11/3/2008 16:22:09 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Referências bibliográficas AB’SÁBER, A.N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. ALVARENGA, L. J.; VASCONCELOS, A. S. Introdução ao Código Florestal Brasileiro: Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. In: AZEVEDO, M. G. L.; DELMANTO, F. M. A; MORAES, R. J. (Org.). As leis federais mais importantes de proteção ao meio ambiente comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ANTONIL, A. J. Cultura e opulência no Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: Melhoramentos, 1976. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. Processo n. 343741 – Paraná. Relator: Ministro Franciulli Netto. Acórdão 4 jun. 2002. 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Class action em virtude de questões comuns. 3.3. Poderes do Órgão Julgador. 3.4. Right to opt out. 3.5. Renúncia ou transação. 3.6. Legitimação. 3.7. Limites subjetivos da coisa julgada. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas. 1. Introdução A revolução industrial representa verdadeiro marco de transformação da sociedade. O principal efeito de tal fenômeno histórico é a criação das classes de trabalhadores e dos donos do capital. Via de conseqüência, a visão do homem individual passa a ser cada vez mais rara, sendo substituída aos poucos pela visão do indivíduo como mero integrante de grandes classes ou categorias. Tal transformação histórica é relatada com maestria por Mancuso (1997, p. 77): Nessa sociedade de massa, não há lugar para o homem enquanto indivíduo isolado; ele é tragado pela roda-viva dos grandes grupos de que se compõe a sociedade; não há mais preocupação com as situações jurídicas individuais, o respeito ao indivíduo enquanto tal, mas, ao contrário, indivíduos são agrupados em grandes classes ou categorias e, como tais, normatizados. A nova configuração social acima descrita tem conseqüências no modelo de processo até então adotado. A visão clássica de Ticio contra Caio (MANCUSO, 1997, p. 76) torna-se notoriamente insuficiente para resolver as intrincadas questões do processo coletivo. A premente necessidade de uma tutela coletiva de interesses que transpõem a esfera individual é devidamente ressaltada por Mendes (2002, p. 29): Na verdade, a necessidade de processos supra-individuais não é nova, pois há muito tempo ocorrem lesões a direitos, que atingem coletividades, grupos, ou certa quantidade de 337 De Jure 9 prova 2.indd S1:337 11/3/2008 16:22:10 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS indivíduos, que poderiam fazer valer seus direitos de modo coletivo. A diferença é que, na atualidade, tanto na esfera da vida pública como privada, as relações de massa expandem-se continuamente, bem como o alcance dos problemas correlatos, ‘fruto’ do crescimento da produção, dos meios de comunicação e do consumo bem como do número de funcionários públicos e de trabalhadores, de aposentados e pensionistas, da abertura de capital das pessoas jurídicas e conseqüente aumento do número de acionistas e dos danos ambientais causados. Multiplicam-se, portanto, as lesões sofridas pelas pessoas, seja na ‘qualidade’ de consumidores, contribuintes, aposentados, servidores públicos, trabalhadores, moradores,etc, decorrentes de circunstâncias de fato ou relações jurídicas comuns. Desta forma, o surgimento do processo coletivo toma por base não só o crescimento social desordenado como também algumas dificuldades não superadas pela tutela individual dos interesses dos jurisdicionados. Com efeito, se percebe a notória insuficiência do modelo clássico para solucionar questões em que o processo individual apresenta um custo financeiro injustificável se comparado com o eventual proveito que a parte vencedora retiraria da demanda. Tais inconveniências do processo individual para a tutela de interesses coletivos são corriqueiramente apontadas pela doutrina: Em outras palavras, poderíamos entender a class action como artifício processual, mediante o qual demandas que não seriam apresentadas no judiciário, em especial por conter um número muito grande de titulares, ou ainda pelo inexpressivo valor econômico que cada demanda individualmente considerada apresenta, são aforados por um, ou alguns poucos litigantes, que representará (ão) a todos no processo. No mesmo sentido, Mendes (2002, p. 30): A eventual falta ou deficiência dos instrumentos processuais adequados para os chamados danos de bagatela, que, considerados globalmente, possuem geralmente enorme relevância social e econômica, estimula a repetição e perpetuação de práticas ilegais e lesivas. Por conseguinte, tendem a se beneficiar, ao invés de serem devidamente sancionados, os fabricantes de produtos defeituosos de reduzido valor, os entes públicos que cobram tributos indevidos ou não concedem os direitos funcionais cabíveis e os consumidores que realizam negócios abusivamente, apenas ‘para’ citar alguns exemplos. 338 De Jure 9 prova 2.indd S1:338 11/3/2008 16:22:10 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Inegável ainda que a ação coletiva, pelo simples fato de versar sobre interesses atinentes a uma coletividade de sujeitos, é instrumento de economia processual, na medida em que substitui o ajuizamento de uma série de ações que versam sobre circunstâncias semelhantes pelo aforamento de uma única ação. Raciocínio análogo é apresentado por Mendes (2002, p. 33): A questão não deixa de ser, também, lógica, pois, a priori, os conflitos eminentemente singulares devem ser resolvidos individualmente, enquanto os litígios de natureza essencial ou acidentalmente coletiva precisam contar com a possibilidade de solução metaindividual. A inexistência ou o funcionamento deficiente do processo coletivo dentro do ordenamento jurídico, nos dias de hoje, dá causa à multiplicação desnecessária do número de ações distribuídas, agravando ainda mais a sobrecarga do Poder Judiciário. Nota-se ainda que, muitas vezes, o ajuizamento de uma ação individual causa um certo temor de represálias junto ao autor, o que não ocorreria caso a ação se instaurasse por iniciativa de uma coletividade devidamente representada. Outra deficiência do modelo individual de processo é atribuída à possibilidade de decisões contraditórias em processos que tratam de situações fáticas praticamente idênticas. Tais inconvenientes são superados pela adoção do processo coletivo. Desta forma, verifica-se que as ações coletivas, se bem estruturadas, podem representar não só um verdadeiro instrumento de acesso do cidadão à Justiça, como também um elemento de aperfeiçoamento do sistema jurisdicional. 2. Origem Verifica-se a existência dos primeiros registros de ações coletivas, na Inglaterra, por volta do ano de 1199, ocasião em que um pároco tentou valer-se da via coletiva para exigir oferendas dos paroquianos: O primeiro caso teria ocorrido em torno do ano de 1199, quando, perante a Corte Eclesiástica de Canterbury, o pároco Martin, de Barkway, ajuizou ação, versando sobre o direito a certas oferendas e serviços diários, em face dos paroquianos de Nuthamstead, uma povoação de Hertfordshire, assim considerados como um grupo, chamado, no entanto, a juízo apenas algumas pessoas, para, aparentemente, responder por todos (MENDES, 2002, p. 44). Não obstante à existência de casos isolados, doutrina aponta que os traços básicos da class action surgiram no direito inglês já no final do século XVII. O instituto que 339 De Jure 9 prova 2.indd S1:339 11/3/2008 16:22:10 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS delimitou algumas das características da class action era denominado Bill of peace e tomava por base juízos de eqüidade. Neste sentido, Guerra (2000, p. 17): Assim, as origens da class action remontam ao instituto do Direito inglês denominado Bill of peace. Os tribunais da equidade, chancery court, tinham jurisdição para dirimir as lides processadas através do Bill of peace. Era esse o instrumento que possibilitava a agregação de várias pequenas demandas, quando as parte comungassem interesses comuns relacionados ao objeto da lide. Portanto, o bill of peace forneceu os lineamamentos da class action. O caso concreto que alcançou maior notoriedade – Brown x Vermuden – data de 1676 e envolveu um grupo de mineradores que se opuseram aos tributos impostos pela igreja. Nos Estados Unidos, a primeira regulamentação do instituto se deu pela Equity Rule 48, de 1842. Mendes (2002, p. 66) aponta tal dispositivo legal como “[...] a primeira norma escrita relacionada com a class action nos Estados Unidos [...]”. Não obstante o seu caráter pioneiro, a rule 48 não representava um avanço significativo, na medida em que não permitia que os efeitos do provimento atingissem terceiros que não fizessem parte do processo. Dentre as poucas vantagens do instituto, poderíamos apontar a possibilidade de dispensa do litisconsórcio necessário, quando o mesmo fosse inconveniente em virtude do número excessivo de demandantes, ocasião em que tal instituto era substituído pela ação coletiva. Em 1912, a Suprema Corte Americana editou a regra 38, em substituição à regra 48. O novo dispositivo corrige a principal falha da regra 48, passando a permitir que os efeitos da sentença se estendam àqueles que não fizeram parte do processo. Todavia, as class action adquiriram importância com a regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure, apontadas pela doutrina como o primeiro Código de Processo Civil no âmbito federal. A regra 23 foi incialmente proposta em 1938 e reformulada com seu perfil atual em 1966. Neste sentido, o posicionamento de Perin Júnior (1994, p. 49), em monografia sobre o tema: A partir de 1938, com a rule 23 das Federal Rules of Civil Procedure, este instrumento adquire uma função hoje considerada, conforme já mencionado, central e com contornos bem definidos no ordenamento dos Estados Unidos da América. A rule 23 (a) foi depois completamente reelaborada na emenda proposta e aprovada em 1966 pelo Advisore Commitee on Civil Rules. 340 De Jure 9 prova 2.indd S1:340 11/3/2008 16:22:10 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Registre-se que a regra 23, com seu perfil inicial de 1938, admitia três espécies de class action, a saber as autênticas (true class action), híbridas (hibrid) e espúrias (spurious). A classificação em questão tomava por base a natureza do interesse objeto da ação. A seguir, passaremos ao estudo da rule 23, já com as modificações de 1966, que lhe definiram o perfil atual. 3. A revisão da rule 23 (1966) O diploma legal em questão regulamenta minuciosamente as class actions no direito americano. Desta forma, a rule 23, já com o perfil alterado pela emenda de 1966, trata de temas como os pressupostos do instituto em estudo, juízo de admissibilidade a respeito do processamento de uma ação sob a forma de class action, poderes do Tribunal na condução do processo, possibilidade de atos dispositivos das partes, legitimação, representação adequada, direito de exclusão do litigante individual e coisa julgada. Registre-se que o instituto, por seu aspecto inovador à época em que foi criado, não se viu livre de críticas contundentes. Neste sentido (DAM apud PERIN JUNIOR, 1994, p. 48): Afirma ironicamente Dam que ‘para os defensores dos interesses dos consumidores, para os ambientalistas, para os maníacos por liberdade civil e para todos aqueles que gostariam de reformar a sociedade por meio dos Tribunais, a rule 23 tornou-se uma nova carta constitucional’. Passemos agora à análise do dispositivo legal americano. 3.1. Requisitos O primeiro requisito para o processamento de uma demanda sob a forma de class action é a existência de uma classe identificável. Com efeito, a doutrina é bastante flexível no preenchimento de tal requisito. Desta forma, classe poderá ser delineada tão-somente por um conjunto de pessoas com um interesse comum. Basta pois que a definição de classe seja clara o bastante para que, ao proferir o provimento final, o Tribunal possa elencar com precisão os limites subjetivos do julgado. Não se exige a existência de uma relação jurídica base. Registre-se que o requisito acima transcrito é considerado como implícito, uma vez que não está contido expressamente no texto da regra 23. No entanto, outros requisitos para o processamento de uma demanda sob a forma de class action são apontados de forma expressa pelo texto normativo. Com efeito, a regra 23 estabelece que a categoria ou classe deve ser numerosa a ponto de que a reunião de todos os seus membros torne inviável o litisconsórcio. Observa-se que não 341 De Jure 9 prova 2.indd S1:341 11/3/2008 16:22:10 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS é necessário que o litisconsórcio seja impossível, bastando que o mesmo apresente uma considerável dificuldade de processamento. Justificando a existência do requisito em tela, Guerra (2000, p. 19) fornece exemplos em que a simples conferência do instrumento do mandato (procuração) torna inviável o ajuizamento de um litisconsórcio ativo multitudinário em substituição a uma demanda coletiva: O litisconsórcio se verifica impraticável nos casos que envolvem lesões massivas, onde juntar em um único processo todos os interessados é tarefa bastante complexa. Por exemplo, cinco mil usuários de um serviço de transporte podem ter sofrido uma lesão comum e juntá-los no pólo ativo em um único processo traria dificuldades ao órgão jurisdicional na operacionalização processual. Uma primeira dificuldade estaria na simples conferência da procuração outorgada pelas partes a seus advogados. Ao magistrado cabe averiguar se aqueles que se encontram em um pólo da relação processual conferiram poderes específicos aos patronos da causa. Havendo um grande número de pessoas, só o tempo gasto na conferência da documentação é suficiente para acarretar a lentidão no processamento do feito. Mendes (2002, p. 33) aponta ainda outros fatores diversos do número excessivo de demandantes que justificam o ajuizamento da class action: Inúmeros fatores podem influenciar no sentido de tornar viável a reunião dos interessados. Dentre outros, podem ser apontados, e.g., a dispersão geográfica dos membros da classe, pois se estivessem espalhados por diversas regiões, será mais difícil, onerosa e inconveniente a reunião; o diminuto valor patrimonial da indenização ou do direito pretendido, individualmente considerado, tendo em vista que é da natureza humana confrontar os custos e benefícios para que decisões sejam tomadas, o que tornará mais improvável o ajuizamento de ações separadas, quando as pretensões representarem quantias pequenas ou irrisórias; a natureza e a complexidade das causas: determinadas lides estão relacionada com intrincadas questões técnicas, científicas ou jurídicas, desestimulando e encarecendo o ajuizamento de ações individuais, na medida em que profissionais qualificados e estudos prévios serão necessários; ou a própria mutabilidade dos integrantes do grupo. Portanto, o aspecto quantitativo deverá ser sempre sopesado em consonância com as demais circunstâncias do caso concreto, não sendo fundamental, deste modo, a estipulação arbitrária e isolada de limites numéricos. 342 De Jure 9 prova 2.indd S1:342 11/3/2008 16:22:11 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Outro requisito de admissibilidade da class action constante do texto da regra 23 é a existência de questões de direito e de fato comuns ao grupo de litigantes. O texto normativo é expresso ao exigir apenas a identidade de uma ou mais questões de direito e de fato, não sendo obrigatória a coincidência de todas as questões. Ponto relevante a ser ressaltado diz respeito à circunstância de que a questão de direito ou de fato comum, chamada de commonality, deve se referir a um ponto relevante da causa. A regra 23 exige ainda que os pedidos ou defesas dos representantes da classe sejam idênticos aos pedidos ou defesas das partes representadas pelos mesmos. Tal condição é conhecida como tipicality. Conforme se infere do próprio nome dado ao instituto, o mesmo visa a constatar se tanto o pedido quanto a defesa formulados são típicos da classe representada. Tal ausência de tipicidade poderá redundar tanto na extinção como na divisão da causa, conforme ressalta Mendes (2002, p. 77), no caso La Mar v. H & B. Novlety & Loan Co. : A falta de tipicidade pode ensejar a inadmissibilidade ou a subdivisão da ação de classe. No caso La Mar v. H&B. Novelty & Loan Co., por exemplo, numa ação versando sobre agiotagem, a Corte de Apelação do 9o. Circuito determinou a formação de subclasses, porque as partes representativas só poderiam efetuar a defesa das vítimas que tivessem sido enganadas pelo mesmo agiota. O quarto e último requisito expresso pelo texto da regra 23 diz respeito à verificação da proteção adequada pelo representante dos interesses da classe. Desta forma, o risco de ajuizamento de ações contrárias ao interesse da classe por um membro desta mesma classe é superado pela regra 23 através de um juízo de adequação da representação – adequacy of representation – formulado pelo Tribunal. Verificado que o autor da class action não representa de forma satisfatória os seus pares, o Tribunal poderá determinar a troca do autor por um outro representante de classe. Nesse sentido, Tucci (1990, p. 21): Ora, quando isto não ocorrer, ou seja, quando não se vislumbrar adequada representação, o tribunal poderá, por certo, à luz da regra insculpida na alínea c (2), determinar a intervenção de um outro integrante da classe mais idôneo, e assistido por advogado, a fim de que o pressuposto da adequacy of representation seja satisfatoriamente preenchido. A relevância de um juízo correto de adequacy of representation se deve à circunstância de que o processo coletivo norte-americano possibilita a defesa de interesses de terceiros, independentemente de qualquer autorização deles. Destarte, devido à 343 De Jure 9 prova 2.indd S1:343 11/3/2008 16:22:11 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS própria ausência do titular do direito na demanda coletiva, é de curial importância a verificação do zelo do representante na proteção de interesses alheios. Gize-se que o requisito em questão se presta ainda a evitar conluios entre o representante da classe e a parte contrária. Os critérios a serem utilizados pelo julgador ao apreciar a adequacy of representation são devidamente elencados pela doutrina abalizada de Mendes (2002, p. 82): Na apreciação do requisito, os tribunais costumam aferir vários fatores. Mais do que a quantidade de litigantes presentes, para a certificação, importa a qualidade da defesa dos interesses da classe. Em relação às partes representativas, são considerados o comprometimento com a causa, a motivação e o vigor na condução do feito, o interesse em jogo, as disponibilidades de tempo e a capacidade financeira, o conhecimento do litígio, honestidade, qualidade de caráter, credibilidade e, com especial relevo, a ausência de conflito de interesse. Importante ainda observar que a adequacy of representation abrange não só as partes como também implica necessariamente verdadeira correição sobre a competência do advogado e de seu zelo para com a causa. Igual posicionamento é defendido por Wagner Junior (2003, p. 60): É inerente à figura da representatividade adequada a competência dos advogados que conduzirão a ação, mormente aquela da class. Neste particular, a Corte deverá examinar a sua bone fides e sua competência técnica, vale dizer, se tem condições de vencer os desafios que são apresentados no desenvolver das ações destas espécies. A ausência de representação adequada pode ainda ser apontada pela própria parte contrária ao interesse defendido pelo representante. Tal assertiva, a princípio contraditória, pode ser explicada pelo fato de ter a parte contrária interesse em um pronunciamento de mérito sobre a improcedência do pedido, que vinculasse toda a classe. Com efeito, caso a inexistência da adequacy of representation só fosse verificada em momento posterior à prolação da sentença, esta última seria inócua em relação àqueles que não se viram representados de forma adequada. Desta forma, a parte contrária àquela que se viu representada de forma inadequada teria empreendido tempo e esforços em vão, uma vez que o julgado, mesmo que lhe fosse favorável, nenhum efeito produziria em relação àquele que foi representado de forma inadequada. 344 De Jure 9 prova 2.indd S1:344 11/3/2008 16:22:11 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3.2. Espécies de Class Action 3.2.1. Class Action baseada na incompatibilidade de conduta para a parte contrária (Incompatible standards) Alguns conflitos de interesses necessariamente devem ser julgados pelo mesmo órgão jurisdicional, sob pena de que as decisões conflitantes se tornem praticamente impossíveis de serem cumpridas. Com efeito, não se afigura razoável que duas ações ajuizadas por vizinhos e que versem, v.g., sobre a perturbação da tranqüilidade causada pela ruidosa atividade de uma fábrica, em área de intensa concentração urbana, sejam decididas por órgãos jurisdicionais diversos. No caso em tela, há sério risco de que as sentenças sejam contraditórias a ponto de que uma determine o fechamento do empreendimento enquanto a outra julgue improcedente o pedido, por entender que a fábrica em questão não exerce qualquer atividade ruidosa. 3.2.2. Limited Fund Class Action A segunda espécie de class action diz respeito àquelas ações em que o julgamento proferido em benefício de determinados membros da classe pode prejudicar os outros integrantes desta mesma classe que não integrem o processo coletivo. Dentre os exemplos fornecidos pela doutrina, podemos destacar a hipótese em que a quantia pretendida por determinados membros da classe pertence a um fundo comum, cujo montante será exaurido em hipótese de procedência do pedido, circunstância que prejudicaria os membros da classe que não fazem parte da relação processual, mesmo porque, o crédito deles não seria viabilizado devido à ausência de recursos do fundo. 3.2.3. Rule 23(b)(2) A regra 23(b)(2) estabelece uma nova modalidade de class action para os casos em que a parte contrária à classe pratica atos ou se abstém de praticá-los de forma lesiva à classe. Ressalta-se, todavia, que a presente modalidade de class action só é aplicável aos casos em que se pretenda uma condenação de fazer ou não fazer ou uma sentença declaratória, não se podendo afirmar que a categoria em questão se preste à obtenção de indenizações exclusivamente pecuniárias. Mendes (2002, p. 88) observa que tal modalidade de class action se presta, na maioria das vezes, para a defesa de direitos civis e fundamentais: A maioria dos processos instaurados nesta categoria refere-se a litígios relacionados com direitos civis (civil rights) ou com base em outros direitos fundamentais de natureza constitucional, embora o tipo não seja cabível apenas nestas hipóteses. 345 De Jure 9 prova 2.indd S1:345 11/3/2008 16:22:11 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3.2.4. Class action em virtude de questões comuns Conforme enuncia o próprio título deste tópico, a presente espécie de ação de classe será admitida quando as questões de direito e de fato comuns aos integrantes da classe forem predominantes se comparadas às questões individuais. Trata-se de um juízo de conveniência que visa a constatar se o ajuizamento da ação coletiva se apresenta como a forma mais adequada à justa composição do conflito. A avaliação do cabimento de tal espécie de class action deverá levar em conta os interesses dos integrantes do grupo em controlar e acompanhar individualmente o desenrolar do procedimento, a extensão e natureza do litígio, a conveniência da concentração da demanda em um único órgão jurisdicional e as dificuldades de processamento da ação de classe. No que diz respeito aos critérios acima mencionados para a admissibilidade da espécie de class action em comento, a hipótese mais polêmica é a da possibilidade de processamento sob a forma de class action nos casos de responsabilidade civil por danos causados a um número massivo de pessoas. Tais casos são conhecidos como mass torts. Inicialmente, a jurisprudência norte-americana entendeu pela inadmissibilidade de tais ações de classe, sob o argumento de que questões significativas como o montante de cada indenização, responsabilidade no que diz respeito a cada um dos ofendidos e até mesmo as defesas apresentadas, tendem a ser diversas. No entanto, a partir da década de 80, tal posicionamento vem se alterando a ponto de Mendes (2002, p. 93) apontar sucessivas decisões em que houve o julgamento de procedência do pedido das chamadas mass torts actions, dentre as quais se destaca a ação ajuizada coletivamente por combatentes atingidos pelo agente orange no Vietnam: Nos tribunais, podem ser mencionados , como ilustrativos da nova posição, os casos jenkins v. Raymark Industries, versando sobre danos pessoais causados pelo amianto (asbesto); In re ‘Agent Orange’ Product Liabiliy Litigation, no qual excombatentes no Vietnam, bem como suas esposas, pais e filhos, pediam indenizações pelos prejuízos decorrentes da exposição ao agente esfoliante, tendo o governo americano alegado que estaria imune à responsabilidade, na medida em que a arregimentação ocorrera em razão da atividade militar, o que acabou sendo uma questão comum central; Biechele v. Norfolk anda Western Railway Company, por danos causados pela poluição proveniente d poeira de carvão aos habitantes de região próxima à mina. Observa-se que, no caso do agente Orange, embora admitida o processamento inicial da lide sob a forma de class action, a quantificação do dano causada a cada um dos 346 De Jure 9 prova 2.indd S1:346 11/3/2008 16:22:11 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ex-combatentes foi detalhada em ações individuais, respeitando-se as peculiaridades de cada caso. Para Tucci (1990, p. 30): A Suprema Corte dos Estados Unidos, a despeito de ter deferido o processamento da demanda em forma de class no tocante à existência e à natureza dos danos resultantes daquele elemento tóxico, que consubstanciava na questão comum, rejeitou o pedido em relação à quantificação do (eventual) dano, com base no permissivo da alínea c (4) (A) da Regra 23, entendendo que essa parte da lide deveria constituir objeto de demandas individualizadas. 3.3. Poderes do Órgão Julgador Prevê ainda a regra 23 que, após o ajuizamento, o Tribunal deverá decidir se a demanda poderá ser processada sob a forma de class action. Igual entendimento é esposado por Guerra (2000, p. 25): “O magistrado tem o poder legal para verificar, no caso concreto, se a class action é o instrumento processual mais adequado para viabilizar a solução da lide coletiva”. Interessante observar que a decisão que admite o processamento de uma ação sob a forma de class action é revogável a qualquer tempo, não fornecendo a Regra 23 qualquer critério objetivo para eventual alteração da decisão em questão. Ainda por ocasião da análise da admissibilidade da class action, o Tribunal poderá não só traçar os limites da demanda, como também cindi-la. No mesmo sentido Tucci (1990, p. 22): “Poderá, outrossim, a teor da alínea c (4) (A) e (B), delimitar o objeto da demanda, ou mesmo cindi-la em mais de uma class action” . De igual forma caberá ao Tribunal autorizar a prática de atos dispositivos, tais como a transação e renúncia. Insere-se ainda na esfera de poderes do Tribunal determinar a notificação dos integrantes da classe que não integrem a demanda. Devido a dificuldades ligadas ao número excessivo de integrantes da classe, em determinados casos, é dispensada a exigência de notificação pessoal dos integrantes da classe. A doutrina enumera o seguinte exemplo, em que a notificação se estendeu apenas a parte dos integrantes (fair notice): No precedente Richland v. Cheatham, por outro lado, em razão do elevadíssimo número de integrantes da categoria, a corte permitiu que a notificação fosse feita pelo correio, sobretudo para conceder-lhes uma ‘chance to avoid being bound by the judgement’. Já no caso Booth v. General Dynamicas Corp., no qual o demandante demonstrou a desproporcional despesa que seria 347 De Jure 9 prova 2.indd S1:347 11/3/2008 16:22:11 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS necessária com as notificações de todos os contribuintes que estavam na mesma situação, autorizou-se a feitura destas por edital, uma vez que a corte entendeu constituir mais do que razoável esforço a identificação pessoal de todos os interessados. (TUCCI, 1990, p. 25). Campos (1995, p. 88) manifesta-se não só sobre a sobre a possibilidade de notificação pessoal de apenas alguns dos integrantes do grupo, como também pela viabilidade de se determinar o pagamento das custas da notificação em tela pelo demandado: Diante deste aspecto, ou seja, a citação individual representar um obstáculo, surgiu a tendência dos Tribunais de, se muito dispendiosa esta citação, aceitar que a mesma se fizesse através de jornais, ou ainda determinar que o demandado pagasse parte destas despesas. Por fim, segundo a regra 23, caberá ainda ao Tribunal evitar dilações indevidas, tanto no que diz respeito à produção de provas desnecessárias, como no tocante ao abuso do direito de defesa. Salienta-se que é justamente com base neste poder/dever do Tribunal, expressamente previsto na regra 23, que a jurisprudência norte-americana entende cabível a notificação de alguns integrantes da classe por outras maneiras que não a pessoal. 3.4. Right to opt out Uma vez admitido o processamento sob a forma de class action, aqueles integrantes da classe que não façam parte da ação coletiva deverão ser notificados sobre o andamento desta última. Tão logo cientificados, os litigantes individuais poderão optar por requerer a exclusão do processo, exercendo seu right to opt out. Caso não formulem pedido de exclusão, fica franqueada aos integrantes da classe a possibilidade de intervirem no processo. Registre-se que aqueles que não exercerem o right to opt out encontram-se vinculados aos efeitos da sentença, bem como pelos abrangidos pelos limites subjetivos da coisa julgada. No mesmo sentido o pensamento esposado por Guerra (2000, p. 18): A class action é uma ação exercida por um ou mais membros de um grande grupo. Se a corte admitir a ação de classe, todos os membros devem ter ciência da ação assim como devem ter garantida a oportunidade para requerer exclusão do feito, se for esta a sua vontade. A decisão alcançará todos os membros da classe que não tiverem requerido a exclusão, mesmo que esta seja desfavorável. 348 De Jure 9 prova 2.indd S1:348 11/3/2008 16:22:12 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Cumpre observar que, de início, parte da doutrina entendeu ter havido ofensa ao princípio do devido processo legal, com a formação de coisa julgada extensiva a integrantes da classe que não fizessem parte da relação processual. Todavia, em uma segunda análise, a doutrina passou a entender que o direito de ser informado do andamento da demanda propiciava ao integrante da parte um amplo controle da atuação de seu representante na class action, o que eliminava a possibilidade de ofensa ao due process of law: E é bem de ver, ainda, que, por força do disposto na alínea c (2), os integrantes do grupo têm o direito de ser informados (notice) do ajuizamento da class action: a notificação poderá ser pessoal àqueles cuja identificação seja possível com razoável esforço, e deverá ser a mais eficaz dentro das circunstâncias. Essa exigência legal, que não vinha prevista na redação original da Regra 23, foi inserida porque o Comitê Consultivo das Normas Civis invocou expressamente o precedente Mullane v. Central Hanover Bank & Trust Co., no qual se decidiu cientificar todos os integrantes da classe para satisfazer a garantia do due process. Propicia-se, então, oportunidade de amplo controle à atuação dos litigantes-representatives, podendo, inclusive, haver intervenção de um integrante de classe, desde que o tribunal entenda que o interveniente possa trazer subsídios para a perfeita delimitação do interesse do grupo (TUCCI, 1990, p. 24). Some-se a isso que, não obstante à existência da obrigatoriedade da notificação (não necessariamente pessoal), restava ainda ao integrante da classe não representado no processo o exercício do direito em comento (right to opt out), o qual impedia que os efeitos do julgado o alcançassem. Destarte, não há que se falar em ofensa ao Devido Processo legal. 3.5. Renúncia ou transação Devido à natureza dos interesses em conflito, a regra 23 dispõe que qualquer ato dispositivo só poderá ser realizado com autorização do Tribunal. Determina ainda o dispositivo legal em questão que, havendo renúncia ou transação, o Tribunal deverá dispor sobre a notificação dos membros da classe a respeito de tais fatos. Cabe ao magistrado, ao homologar os acordos, preservar os interesses dos membros de classe ausentes. Igual posicionamento é sustentado por Leonel (2002, p. 77): O juiz pode aprovar ou não o acordo, procurando preservar a melhor solução para a demanda, mais adequada aos interesses 349 De Jure 9 prova 2.indd S1:349 11/3/2008 16:22:12 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS dos membros da classe. Deverá inclusive assegurar a notice aos membros ausentes, para que se manifestem a respeito da transação ou possam exercer o opt out, para não ficarem vinculados ao acordo (binding efect). 3.6. Legitimação O direito norte-americano é extremamente flexível no que diz respeito à legitimação para agir na class action. Ao contrário do ordenamento legal brasileiro a respeito da ação civil pública, o qual enumera taxativamente quais os legitimados para propositura da demanda, a regra 23 concede a qualquer membro da classe legitimidade para propositura da class action. A parte autora sequer necessita da autorização dos demais membros da classe para ajuizar o pedido. Gize-se a semelhança da legitimação ativa da class action e da ação popular, uma vez que, em ambas as hipóteses, o autor defende interesses próprios e alheios, de forma simultânea. Tal flexibilidade, no que diz respeito à legitimação ativa da class action, é evidenciada pela doutrina: Assim, a legitimação ativa ou passiva para defender em juízo os integrantes da categoria é outorgada a qualquer integrante, desde que titular de uma posição juridicamente idêntica aos demais (TUCCI, 1990, p. 21). 3.7. Limites subjetivos da coisa julgada A sentença proferida em uma class action produzirá efeitos perante todos os integrantes da classe, à exceção daqueles que fizerem uso de seu direito de exclusão (right to opt out), instituto já comentado ao longo deste trabalho. Caberá, no entanto, ao Tribunal declarar, no ato da sentença, quais são os integrantes do grupo abrangidos pelos efeitos de sua decisão. Reitera-se a inexistência de qualquer ofensa ao princípio do devido processo legal, em virtude da formação de coisa julgada perante aqueles integrantes da classe que não compuseram a lide. Conforme já ressaltado, a notificação do integrante da classe permite ao mesmo tempo acompanhar a demanda e verificar a adequação da representação, como também, se preferir, exercer o seu direito de exclusão. Registrese, por fim, que, ao contrário do que dispõe o ordenamento jurídico brasileiro, não há o fenômeno da coisa julgada secundum eventum litis, de acordo com o qual não haveria coisa julgada em ações coletivas julgadas improcedentes por insuficiência de provas. 350 De Jure 9 prova 2.indd S1:350 11/3/2008 16:22:12 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 4. Conclusão Percebe-se, pelo exame das disposições supra, que a class action apresenta alguns traços peculiares que propiciam uma correta definição e compreensão do instituto em apreço. O primeiro traço distintivo das class actions pode ser representado por sua legitimidade ativa, a qual é outorgada a qualquer membro da classe, independentemente da existência de uma relação jurídica base formalizada. Ainda no que diz respeito à legitimidade, chama atenção a total desnecessidade de outorga de procuração a esse membro da classe ou grupo para litigar em nome alheio. Conforme já salientado, tal circunstância não afrontaria o Princípio do Devido Processo Legal, uma vez que ao integrante da classe é garantido o direito de ser notificado a respeito do andamento processual, ocasião em que tanto pode requerer sua exclusão, como acompanhar o patrocínio da causa pelo representante. Outro tópico a ser ressaltado diz respeito aos amplos poderes conferidos ao órgão jurisdicional, ao qual compete não só homologar ou não os atos dispositivos, como também verificar o zelo com que o representante da classe desempenha sua função, podendo até mesmo substituí-lo, se verificada a inexistência da adequacy of representation. Peculiaridade que também merece ser ressaltada diz respeito aos limites subjetivos da coisa julgada, os quais serão definidos somente por ocasião da prolação de sentença. Na oportunidade, o Tribunal discriminará quem são os integrantes da classe e, via de conseqüência, quem será atingido pelos efeitos do julgado. Por fim, representa ainda traço distintivo do instituto em apreço o chamado right to opt out, prerrogativa que permite ao integrante devidamente notificado o exercício de seu direito de não ser atingido pelos efeitos do julgado na ação coletiva. 351 De Jure 9 prova 2.indd S1:351 11/3/2008 16:22:12 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 5. Referências bibliográficas CAMPOS, Ronaldo Cunha. Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Aide, 1995. GUERRA, Isabela Franco. Ação Civil Pública e meio ambiente. Rio de Janeiro: Forense, 2000. LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. PERIN JUNIOR, Ecio. Aspectos Relevantes da Tutela Coletiva do Consumidor no Direito Italiano em face do Direito Comunitário Eutorpeu. Class Actions NorteAmericanas e a Experiência Brasileira. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v.10, n. 38. p. 49-50, 1994. TUCCI, José Rogério Cruz e. Class Action e mandado de segurança coletivo: diversificações conceituais. Saraiva: São Paulo, 1990. WAGNER JUNIOR, Luiz Guilherme da Costa. A Ação Civil Pública como instrumento de defesa da ordem urbanística. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 352 De Jure 9 prova 2.indd S1:352 11/3/2008 16:22:12 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 1.2 COMENTÁRIOS SOBRE A COISA JULGADA E SUA SISTEMÁTICA NAS AÇÕES COLETIVAS MARCELO MALHEIROS CERQUEIRA Assessor Judiciário do TJMG Pós-graduando em Direito Processual SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A concepção de coisa julgada. 2.1. Limites objetivos e subjetivos. 3. A ação coletiva e seus elementos. 4. A coisa julgada nas ações coletivas. 4.1. Tratamento dado à matéria pelo direito brasileiro. 4.2. A coisa julgada nos direitos difusos. 4.3. A coisa julgada nos direitos coletivos em sentido estrito. 4.4. A coisa julgada nos direitos individuais homogêneos. 4.5. Fundamentos da extensão da coisa julgada secundum eventum probationis e secundum eventum litis e controvérsias a respeito do tema. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas. 1. Introdução O direito processual pode ser definido como o conjunto de princípios e normas por meio do qual se procura estabelecer condições para que o direito material possa ser efetivado. Dentro dessa perspectiva instrumentalista do processo, deve-se salientar a importância de se garantir a todos os cidadãos o acesso à Justiça1, ou seja, a possibilidade concreta de utilização do processo para obtenção da tutela jurisdicional. Para tanto, necessário é propiciar a efetiva tutela jurisdicional, ou seja, colocar à disposição dos jurisdicionados meios ou procedimentos que possibilitem a adequada tutela dos seus direitos. Ao se reconhecer a instrumentalidade do direito processual, deve-se, ao mesmo tempo, conceder tratamento diferenciado aos diferentes, como forma de aplicação do princípio da igualdade material. Entretanto, constata-se que, no Brasil, ainda hoje, o acesso à Justiça é precário. Não obstante as diversas garantias constitucionais e o extenso rol de leis que compõem o ordenamento jurídico brasileiro, o que se percebe é, além da baixa eficiência de muitos dos procedimentos previstos em lei, uma tímida procura do Judiciário pela população. A título de exemplificação, permite-se transcrever informações e dados coletados por Silva (2004, p. 63): 1 Utiliza-se a expressão acesso à Justiça em detrimento de acesso ao Judiciário propositadamente, uma vez que o direito não pode se satisfazer com mera garantia de um aparato qualquer para que a tutela seja concedida, ou, em outras palavras, com uma mera neutralidade positivista. É preciso ter em mente, conforme ressaltado por juristas como Cândido Rangel Dinamarco, Chiovenda e Kazuo Watanabe, que é inerente ao processo a idéia de servir de instrumento para alcançar a satisfação do direito material, e, por isso, o acesso ao Judiciário deve implicar a garantia de tudo o que for necessário e exigível para que aquele que tem direito à tutela possa efetivamente obtê-la. Por tais razões, muito mais lógico é se falar em acesso à Justiça. 353 De Jure 9 prova 2.indd S1:353 11/3/2008 16:22:13 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS [...] numa população de 185.000.000 pessoas, apenas 12.234 [rectius: 12.234.000], isto é, 6,61%, procuram o Judiciário. Este número é mínimo em relação ao total da população, o que faz pensar nas causas desta reduzida proporção. Evidentemente, num país que se coloca como a décima economia do mundo, é de esperar que a conflitualidade seja intensa, como acontece em todo o sistema capitalista, em razão da intensidade dos negócios e da freqüência das transações. Mas não é isso que acontece. Diante desse problema, diversas possíveis soluções têm sido debatidas e, por vezes, positivadas no ordenamento jurídico brasileiro, na tentativa de ampliar o acesso à Justiça e, por conseguinte, mitigar problemas como a morosidade da prestação jurisdicional, o custo elevado que muitas vezes lhe é inerente e o desconhecimento por parte dos jurisdicionados a respeito de seus direitos. Em face de tais circunstâncias jurídicosociais e da constante necessidade de integração entre Direito e sociedade, tem-se preocupado em tutelar de forma mais eficiente os chamados direitos transindividuais ou metaindividuais, que são aqueles que transcendem os limites individuais dos direitos subjetivos e potestativos comuns. Assim, em razão da massificação dos conflitos sociais iniciada no século XVIII e atualmente inerente à sociedade, faz-se imprescindível, inclusive sob o ponto de vista da atuação do Estado democrático de direito, a colocação de um meio ou instrumento cada vez mais desenvolvido e apto a garantir a efetiva proteção dos direitos de natureza transindividual. O que se observa, então, é uma constante evolução e crescimento de novo enfoque do direito processual civil – em relação aos institutos processuais tradicionais que buscam a proteção dos direitos individuais –, tratando justamente a respeito dos direitos coletivos em sentido lato. A razão disso é que se entende que uma das muitas maneiras de se maximizar o acesso à Justiça no Brasil é tutelando eficazmente os direitos transindividuais, o que permitirá não só a proteção dos direitos de uma comunidade ou coletividade, bem como de um grupo de indivíduos homogeneamente considerados. Além disso, a tutela de tais direitos importa, inevitavelmente, na redução da quantidade de ações ajuizadas individualmente e, por conseqüência, diminui a quantidade de processos nos tribunais com a mesma matéria a ser decidida. Ocorre que, para que se cumpra tal mister, não basta apenas criar diversas espécies de ações coletivas e disciplinar em quais hipóteses poderão ser ajuizadas. O acesso à Justiça pressupõe a tutela jurisdicional diferenciada, ou seja, a consideração dos meios mais amplos e satisfatórios possíveis para que se solucionem os conflitos de interesse da maneira mais justa e razoável, e, desse modo, em virtude das características e 354 De Jure 9 prova 2.indd S1:354 11/3/2008 16:22:13 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS dos aspectos peculiares dos direitos metaindividuais, impõe-se a necessidade de reanalisar os institutos jurídico-processuais já existentes. É assim que se verifica que o avanço na proteção dos direitos metaindividuais propiciou a revisitação e adaptação de diversos institutos processuais tradicionais, como a litispendência, a legitimação para a causa, a coisa julgada e a execução. Entre esses diversos institutos processuais que foram analisados novamente e adaptados para melhor tutelar os direitos coletivos em sentido lato, merece destaque o instituto da coisa julgada. A coisa julgada no processo coletivo, talvez pelo excessivo apego às concepções tradicionais e individualistas quanto aos seus limites subjetivos, enseja diversas dúvidas e polêmicas por parte daqueles que se destinam a estudar o tema e por aqueles que, no dia-a-dia, vêem-se obrigados a aplicar normas pertinentes à matéria para solucionar um caso concreto. Diante da fundamental importância que a coisa julgada possui como elemento apto a garantir estabilidade e segurança nas relações jurídicas, imperioso se faz um estudo com o objetivo de contribuir para melhor compreensão da sua aplicabilidade no âmbito do processo coletivo. É com base em tais considerações que se propõe, neste trabalho, definir o instituto da coisa julgada e examinar as principais diferenças do seu tratamento no âmbito das ações individuais e das ações coletivas, bem como partir para uma discussão a respeito das qualidades e defeitos do atual sistema brasileiro quanto à extensão dos limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo. 2. A concepção de coisa julgada A noção de coisa julgada passa, necessariamente, pela análise da teoria de Liebman, que foi acatada de forma dominante pela doutrina e pelo direito processual brasileiro, embora com certa imprecisão pelo Código de Processo Civil. Na lição do renomado processualista, deve-se diferenciar entre eficácia natural da sentença e autoridade da coisa julgada, por se tratar de conceitos ontologicamente distintos. A eficácia natural da sentença refere-se à formulação autoritativa duma vontade de conteúdo imperativo, denominada de comando. O comando contido na sentença, que tem natureza declaratória, constitutiva ou condenatória, não é imutável por si só. A imutabilidade decorre de uma qualidade da sentença, chamada de autoridade da coisa julgada, que incide, acidentalmente, por razões de utilidade política e social. Assim, define-se a autoridade da coisa julgada como: [...] a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, 355 De Jure 9 prova 2.indd S1:355 11/3/2008 16:22:13 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato (LIEBMAN, 1984, p. 54). Em sentido diverso, Alves (2004, p. 87) defende que a coisa julgada não pode ser tida como qualidade da sentença, mas sim como nova situação jurídica, decorrente da imutabilidade e indiscutibilidade que incidem sobre a sentença depois do seu trânsito em julgado. Na verdade, não há qualquer problema em se dizer que a coisa julgada é uma qualidade. Conforme afirma Braga (2000, p. 20): “[...] o único equívoco de Liebman foi trazê-la [coisa julgada] para junto dos efeitos da sentença, petrificandoos. Qualidade é definida como uma propriedade, atributo ou condição das coisas ou das pessoas capaz de distingui-las das outras e de lhes determinar a natureza”. Assim, conclui que “[...] a coisa julgada é uma qualidade que adere ao conteúdo e não aos efeitos da sentença, à declaração feita pelo juiz na parte dispositiva” (BRAGA, 2000, p. 2, grifo nosso). Definido que a autoridade da coisa julgada consiste em qualidade acidental que adere ao conteúdo da sentença, deve-se reconhecer que seu fundamento principal é justamente a manutenção da segurança jurídica, evitando que o comando contido na sentença possa ser discutido diversas vezes e, assim, acabe por perpetuar indefinidamente os litígios. Disso ressalta a extrema necessidade social, em regra, da imposição da autoridade da coisa julgada, haja vista que é fundamental para garantir a segurança e a certeza necessárias ao convívio social pacífico e à preservação da ordem jurídica. 2.1 Limites objetivos e subjetivos Por se tratar de coisa julgada material, deve-se analisar quais seus limites objetivos e subjetivos, ou seja, aquilo que fica abrangido pela imutabilidade e quem será afetado por ela. Em relação aos limites objetivos, em razão de não haver alterações na sistemática do processo coletivo, deve-se apenas mencionar, brevemente, que a autoridade da coisa julgada material irá incidir sobre a parte dispositiva da sentença que decide a respeito do pedido (pretensão) formulado no processo, restringindo-se, assim, aos limites da lide e das questões decididas (art. 468 do CPC). A identificação dos limites subjetivos da coisa julgada, por outro lado, é o que mais interessa para o desenvolvimento do presente trabalho. Em primeiro lugar, cumpre destacar que a sentença, conquanto proferida apenas entre as partes às quais é dada, tem eficácia em relação a todos (eficácia erga omnes). O comando contido na sentença, por se tratar de ato de império do Estado (LIEBMAN, 1984), atinge indistintamente todas as pessoas, partes ou não, o que justifica que, muitas vezes, terceiros alheios à relação jurídico-processual estabelecida sejam atingidos pelos efeitos da sentença. 356 De Jure 9 prova 2.indd S1:356 11/3/2008 16:22:13 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Por outro lado, a autoridade da coisa julgada, em regra, estende-se somente às partes entre as quais a sentença é proferida, não alcançando, seja para beneficiar ou prejudicar, terceiros alheios à relação jurídico-processual estabelecida (art. 472 do CPC). Desse modo, qualquer pessoa que não participou do processo pode, desde que possua interesse jurídico, discutir novamente a questão e inclusive obter solução diversa, de forma a não se ver impingido, injustamente, pela imutabilidade da decisão proferida em processo no qual não teve a oportunidade de se defender. No entanto, essa regra geral não pode ser vista como dogma irrefutável, na medida em que, em determinadas situações, apresenta-se cabível e razoável a extensão da autoridade da coisa julgada a terceiros que não participaram no processo. Nas palavras de Liebman (1984, p. 13): A diferente sistematização do conceito de coisa julgada leva logicamente a outro resultado, cujas conseqüências práticas são relevantes: refiro-me à posição dos terceiros. Este é um problema que, em todos os tempos, tem proporcionado grandes dificuldades quanto à prática, porque a grande variedade de relações que os terceiros podem ter com o objeto do litígio torna impossível a fixação de uma regra satisfatória em todas as suas aplicações. Assim, o princípio que limita às partes a autoridade da coisa julgada sempre comportou exceções, que a doutrina procurou justificar com maior ou menor acerto. Nestes últimos tempos, importantes correntes da doutrina esforçaramse por alargar o âmbito de extensão da coisa julgada e, em alguns casos, até por quebrar o clássico princípio, invalidando praticamente os seus efeitos. Não estaria talvez errado quem visse, nessas correntes, um reflexo, provavelmente inconsciente, da tendência socializadora e antiindividualista do direito, que vem abrindo caminho em toda parte. O homem já não vive isolado na sociedade. A atividade do indivíduo é de maneira crescente condicionada pelas atividades dos seus semelhantes; aumenta a solidariedade e a responsabilidade de cada um e seus atos se projetam em esfera sempre maior. Ora, uma das peculiaridades do processo coletivo é exatamente essa necessidade de alargar o âmbito de extensão da coisa julgada, como forma de permitir que a prestação jurisdicional seja adequada ao direito coletivo posto em discussão. Assim, no que concerne ao tratamento dado à coisa julgada pelas leis que disciplinam as ações coletivas, o que se observa é que não prevalece a concepção ortodoxa de que a sentença faz coisa julgada apenas entre as partes para as quais é dada. 357 De Jure 9 prova 2.indd S1:357 11/3/2008 16:22:13 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Nesse sentido, verifica-se que o Código de Defesa do Consumidor – CDC deu o devido tratamento à matéria, adaptando de forma satisfatória o instituto da coisa julgada à sistemática específica do processo coletivo, e possibilitando, dessa forma, a concretização da tutela jurisdicional diferenciada no âmbito das ações coletivas. Antes, porém, de se passar ao tratamento dado pelo CDC à matéria, necessário se faz tecer alguns comentários sobre a ação coletiva e os direitos coletivos em sentido lato, o que será realizado no tópico seguinte. 3. A ação coletiva e seus elementos Conquanto a doutrina divirja a respeito da utilização dos termos ação ou demanda2 com relação à proteção dos direitos coletivos, o que se observa é que pouco importa a denominação adotada, desde que se defina precisamente quais os elementos que permitem distinguir as ações coletivas das individuais. Isso porque, dentro da acepção abstrata de que a ação consiste no direito público subjetivo a uma prestação jurisdicional, o que permite falar na existência de uma ação coletiva é exatamente a presença de elementos diferenciadores em relação à ação individual. Destarte, são elementos que permitem identificar a ação coletiva: a legitimação ativa para o feito, o objeto da ação e, finalmente, a forma de extensão da autoridade da coisa julgada (GIDI, 1995, p. 16). Parte da doutrina menciona, ainda, a natureza do interesse processual dos entes legitimados para agir nas ações coletivas, salientando que, no caso do Ministério Público, tal interesse seria presumido (MAZZILLI, 2002, p. 180). De acordo com aqueles que defendem o interesse processual presumido do Ministério Público, o legislador, ao prever legitimação para essa instituição postular direitos coletivos em juízo, teria conferido simultaneamente o interesse de agir. Ocorre que não se pode dizer que o Ministério Público, simplesmente por se tratar de ente legitimado à proteção de direitos de natureza metaindividual terá sempre interesse para agir no feito (LEONEL, 2002, p. 207). Se assim fosse, também no caso das ações penais propostas por esse órgão haveria de se dizer que o interesse de agir é presumido, o que, evidentemente, não ocorre. Desse modo, entende-se que o interesse processual não é tratado de forma diversa nas ações coletivas, haja vista que, tal como se observa nas ações individuais, deverá o ente legitimado deduzir pretensão que traga, ao final, alguma utilidade pela prestação jurisdicional efetivada. Pois bem. Passando ao exame dos elementos diferenciadores da ação coletiva, verifica-se, inicialmente, que a legitimidade ativa ad causam representa tema muito controvertido na doutrina e jurisprudência. Por se tratar de tema que não é, 2 Gidi (1995, p. 16) utiliza o termo ação coletiva; em sentido contrário, Braga (2000, p. 42). 358 De Jure 9 prova 2.indd S1:358 11/3/2008 16:22:14 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS especificamente, objeto deste estudo, cumpre apenas mencionar, em breves linhas, que a legitimidade para propositura de ações coletivas não é ordinária ou extraordinária, mas sim autônoma. Isso porque, ao contrário do que ocorre na legitimação ordinária, o titular do direito coletivo (comunidade, coletividade ou grupo de indivíduos homogeneamente considerados) não é o legitimado processual a defendê-lo (entidades previstas em lei). Por outro lado, essa legitimação também não pode ser chamada de extraordinária, uma vez que o conceito de legitimação extraordinária é relacional, ou seja, depende da existência de um legitimado ordinário (titular do direito) para defesa de seu direito, o que não existe nas ações coletivas. Assim, conclui-se que há uma espécie de legitimação denominada autônoma para se conduzir as ações coletivas, que parte de premissas específicas do processo coletivo, decorrentes da própria natureza dos direitos em jogo. Ainda a respeito da legitimação ativa para o feito nas ações coletivas, assevera-se que a defesa dos direitos de caráter coletivo é realizada de forma concorrente e disjuntiva: concorrente porque há legitimação autônoma de uma ou mais entidades para ajuizar a demanda coletiva; e, disjuntiva, porque tais entidades podem atuar em conjunto ou não para proteger o interesse de uma coletividade, determinada ou não, em juízo. O objeto da ação coletiva, por sua vez, identifica-se com o direito coletivamente considerado sobre o qual versa a ação. Assim, trataram a doutrina e o próprio legislador, conforme se observa no artigo 81 do CDC, de distinguir três espécies de direitos coletivos3, quais sejam: difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. Os direitos difusos são aqueles oriundos de mesma situação de fato, em razão da qual determinada comunidade, composta por indivíduos indeterminados e indetermináveis, torna-se titular de um direito indivisível. Os direitos coletivos em sentido estrito, a seu turno, não decorrem de situação de fato, mas sim de uma mesma relação jurídica base, em virtude da qual certa coletividade torna-se titular de um direito também indivisível. No entanto, ao contrário do que ocorre nos direitos difusos, as pessoas que compõem a coletividade titular do direito coletivo em sentido estrito, embora sejam indeterminadas em um primeiro momento, podem ser determinadas posteriormente. Por fim, os direitos individuais homogêneos correspondem àqueles direitos que, embora individuais, são tratados coletivamente, em razão da sua origem comum (mesma causa de pedir). Assim, em função da conveniência de se conferir proteção coletiva a uma gama de direitos decorrentes de uma mesma origem, tratou a lei de, artificialmente, criar a espécie direito individual homogêneo, cuja titularidade é 3 Conforme se percebe, optou-se por utilizar, neste trabalho, a expressão direito coletivo, em detrimento de interesse coletivo. Isso porque, a partir do momento em que se confere proteção aos interesses de caráter coletivo, mais preciso é denominá-los direitos coletivos, visto que o direito nada mais é que, na lição de Jhering, “[...] o interesse juridicamente protegido”. 359 De Jure 9 prova 2.indd S1:359 11/3/2008 16:22:14 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS atribuída a um conjunto de pessoas indivisivelmente consideradas. A respeito de tal espécie de direito coletivo, é a lição de Gidi (1995, p. 30): A homogeneidade decorre da circunstância de serem os direitos individuais provenientes de uma origem comum. Isso possibilita, na prática, a defesa coletiva de direitos individuais, porque as peculiaridades inerentes a cada caso concreto são irrelevantes juridicamente, já que as lides individuais, no que diz respeito às questões de direito, são muito semelhantes e, em tese, a decisão deveria ser a mesma em todos e em cada um dos casos. Quanto à forma de extensão da autoridade da coisa julgada na ação coletiva, passa-se a uma análise mais detalhada nos tópicos seguintes. 4. A coisa julgada nas ações coletivas 4.1 Tratamento dado à matéria pelo direito brasileiro O primeiro passo para se compreender a ampla problemática a respeito das peculiaridades do instituto da coisa julgada no processo coletivo é conhecer o atual tratamento dado à matéria no ordenamento jurídico brasileiro. Como correntio, existem diversas leis no direito brasileiro tratando a respeito das ações coletivas e suas particularidades, devendo-se registrar, inclusive, entendimento doutrinário no sentido de que tais leis formam novo ramo do direito processual.4 Entre as leis que versam sobre ações coletivas, destacam-se o CDC e a Lei da Ação Civil Pública como as principais fontes normativas do processo coletivo, contendo princípios e regras que, em razão da sua amplitude e finalidade, aplicam-se a todas as espécies de ações coletivas. É o que se depreende da leitura do art. 21 da Lei nº 7.347/855, acrescentado pela Lei nº 8.078/90, segundo o qual as disposições do CDC a respeito do processo coletivo aplicam-se à ação civil pública e também às diversas ações coletivas propostas em defesa de direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, constituindo, assim, um microssistema processual coletivo. 4 Nesse sentido, Almeida (2003, p. 17) defende a existência do direito processual coletivo como novo ramo do direito processual. De acordo o ilustre jurista, “[...] o que se verifica é que hoje já se tornou quase pacífico, na doutrina de vanguarda nacional e estrangeira, que é impossível tutelar os direitos coletivos por intermédio das regras do direito processual civil clássico, as quais foram concebidas por uma filosofia liberal-individualista arraigada, ainda, no século XIX”. 5 “Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuas, no que for cabível, os dispositivos do Título III da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.” 360 De Jure 9 prova 2.indd S1:360 11/3/2008 16:22:14 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS No que tange à coisa julgada, a matéria está regulada nos artigos 103 e 104 do CDC, os quais, para melhor compreensão dos próximos tópicos, transcreve-se a seguir: Art. 103. Nas ações coletivas de que trata esse Código, a sentença fará coisa julgada: I – erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendose de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81; II – ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81; III – erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81. § 1º. Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. § 2º. Na hipótese do inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual. § 3º. Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei 7.437, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste Código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99. § 4º. Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória. Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ulta partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva. Percebe-se, de imediato, uma impropriedade nas disposições dos artigos 103 e 104 do CDC, haja vista que o legislador misturou, inadvertidamente, os conceitos de efeitos da sentença e de autoridade da coisa julgada. Os efeitos da sentença referem-se ao comando nela contido (condenatório, constitutivo ou meramente declaratório), e não 361 De Jure 9 prova 2.indd S1:361 11/3/2008 16:22:14 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS à produção de coisa julgada. Ademais, por constituir a sentença, segundo Liebman (1984), uma formulação autoritativa duma vontade de conteúdo imperativo do Estado em um caso concreto, os seus efeitos são sempre produzidos erga omnes, ou seja, para todos aqueles sujeitos ao império do Estado. A coisa julgada, a seu turno, constitui qualidade acidental que adere à sentença, motivo pelo qual não se pode falar que a sentença faz coisa julgada. Disso se conclui que o que variará caso a caso, de acordo com o direito coletivo posto em discussão, não serão os efeitos da sentença, mas sim a extensão subjetiva da imutabilidade que incide sobre o comando nela contido. Desse modo, acredita-se que o mais correto seria dizer, no art. 103 do CDC, que “[...] a extensão da imutabilidade do comando contido na sentença será erga omnes ou ultra partes”, ao invés de falar que “[...] a sentença fará coisa julgada erga omnes ou ultra partes”. Feitas essas considerações, denota-se, também, que o legislador previu forma diferente de extensão da autoridade da coisa julgada para cada espécie de direito coletivo. Analise-se, então, cada uma dessas formas de extensão dos limites subjetivos da autoridade da coisa julgada. 4.2 A coisa julgada nos direitos difusos Em primeiro lugar, deve-se lembrar que a ação coletiva é aquela na qual um ente legitimado (o Ministério Público, por exemplo) atua em defesa de direito coletivo pertencente a uma comunidade, coletividade ou grupo de indivíduos indivisivelmente considerados. No caso dos direitos difusos, há legitimação autônoma de um ente para atuar em nome de direito indivisível, pertencente a determinada comunidade e oriundo de mesma situação de fato. Por se tratar de direitos cuja titularidade é atribuída a determinada comunidade, composta por indivíduos indeterminados e indetermináveis, estabeleceu o art. 103, I, do CDC que a imutabilidade da coisa julgada eventualmente formada na ação coletiva em defesa de direitos difusos irá se estender, em regra, erga omnes. A expressão erga omnes leva à falsa impressão de que a extensão da autoridade da coisa julgada irá atingir inúmeras pessoas indistintamente, quando, na verdade, significa apenas que a comunidade titular do direito lesado é que será afetada pela coisa julgada formada na ação em que foram partes o ente legitimado autonomamente para defesa de tal direito e o réu (GIDI, 1995, p. 110). No caso de procedência do pedido formulado na ação coletiva, não há maiores dúvidas: a autoridade da coisa julgada estender-se-á à comunidade titular do direito lesado e permitirá que as vítimas (ou seus sucessores) integrantes dessa comunidade procedam à liquidação e execução dos danos individualmente sofridos (art. 103, § 3º, do CDC). 362 De Jure 9 prova 2.indd S1:362 11/3/2008 16:22:14 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Por outro lado, se julgado improcedente o pedido formulado na ação coletiva, não só a extensão, como a própria formação da autoridade da coisa julgada far-se-ão de acordo com o fundamento probatório da decisão transitada em julgada (coisa julgada secundum eventum probationis). Explica-se: se o pedido for julgado improcedente e, posteriormente, verificar-se que o julgamento só foi desfavorável ao autor por insuficiência de provas, dispõe o art. 103, I, do CDC que “[...] qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”. Nessa hipótese, não só a autoridade da coisa julgada formada na primeira ação não se estenderá erga omnes, como a própria formação da coisa julgada ficará limitada à prova até então produzida. Assim, poderá qualquer ente legitimado, inclusive aquele que propôs a ação6, ajuizar nova demanda pleiteando o mesmo direito, porém com novo fundamento probatório7, sem que isso implique ofensa à coisa julgada formada na primeira ação coletiva. Essa coisa julgada de acordo com a prova produzida na ação – ou seja, secundum eventum probationis – é comumente fundamentada na necessidade de se evitar que possível colusão entre autor e réu (ou até mesmo do juiz com esses) na ação coletiva prejudique toda a comunidade titular do direito difuso. Naturalmente, se o direito discutido em juízo atinge toda uma comunidade, é imprescindível que se tomem todos os cuidados possíveis para que essa comunidade não seja prejudicada por erros ou falhas processuais, ainda que despropositados. Assim sendo, denota-se que o próprio legislador, por meio de juízo prévio de valoração, preteriu o princípio da verdade formal no caso da extensão da autoridade da coisa julgada secundum eventum probationis, dando maior ênfase, por conseqüência, à verdade real. Finalmente, é preciso ressaltar que, em qualquer dessas duas hipóteses de improcedência, jamais o indivíduo pertencente à comunidade titular de determinado direito difuso será prejudicado, na esfera individual, pela coisa julgada formada na ação coletiva (art. 103, § 1º, do CDC). Logo, se o pedido formulado na ação coletiva for julgado improcedente, impede-se, em razão dos efeitos negativos da coisa julgada, o ajuizamento de nova ação coletiva. Não há preclusão, porém, acerca da possibilidade de se propor ação individual com o mesmo fundamento, haja vista que o objeto desta ação é diverso do daquela. 6 Não há dúvidas de que, se a comunidade titular do direito não é afetada pela coisa julgada, também o ente legitimado a propor a ação não será. Assim, resta óbvio que o ente legitimado que propôs a primeira ação poderá propor a segunda, se diante de novas provas. Ademais, se o legislador quisesse impedir que o mesmo autor da primeira ação coletiva propusesse outra ação com nova prova (o que seria esdrúxulo), teria dito qualquer outro legitimado, ao invés de qualquer legitimado. 7 Assiste razão a Grinover ao afirmar que se deve restringir “[...] a possibilidade de reabertura do novo processo à hipótese de provas que não existiam à época do primeiro processo, e que, portanto, não poderiam ter sido produzidas”. Do contrário, estar-se-ia infringindo o “[...] princípio da eficácia preclusiva da coisa julgada, pela qual se consideram cobertas pela imutabilidade não só as questões levantadas, mas também aquelas que poderiam ter sido levantadas no processo (art. 474 do CPC)” (GRINOVER, 2004, p. 930). 363 De Jure 9 prova 2.indd S1:363 11/3/2008 16:22:14 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 4.3 A coisa julgada nos direitos coletivos em sentido estrito Como mencionado, os direitos coletivos em sentido estrito, ao contrário dos direitos difusos, não se originam de situação de fato, mas sim de uma mesma relação jurídica base, em virtude da qual uma coletividade torna-se titular de direito também indivisível. Contudo, diversamente do que ocorre nos direitos difusos, as pessoas que compõem a coletividade titular do direito coletivo em sentido estrito, conquanto sejam indeterminadas em um primeiro momento, podem ser determinadas posteriormente. Apesar de apresentarem algumas diferenças, os direitos difusos e os direitos coletivos em sentido estrito possuem núcleo em comum, qual seja, a indivisibilidade, que permite classificá-los como essencialmente coletivos (GIDI, 1995, p. 25). Em razão desse núcleo em comum, o tratamento dado à extensão da autoridade da coisa julgada nos direitos coletivos em sentido estrito em muito se assemelha ao dos direitos difusos. Dessa maneira, aplica-se aos direitos coletivos em sentido estrito tudo aquilo que se disse a respeito da extensão da coisa julgada secundum eventum probationis nos direitos difusos, salientando-se que, ao invés da titularidade do direito pertencer a uma comunidade, ela pertence a uma coletividade (grupo, categoria ou classe), unida em virtude da existência de uma mesma relação jurídica base entre seus integrantes. Observa-se que, ao contrário do que se dispôs em relação aos direitos difusos, o legislador foi mais preciso ao estabelecer que a extensão da autoridade da coisa julgada nos direitos coletivos em sentido estrito se faz “[...] ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe” (art. 103, II, do CDC). Isso porque, conforme já observado, a expressão erga omnes dá lugar a interpretações equivocadas, uma vez que a extensão da coisa julgada, tanto no caso dos direitos difusos como nos coletivos em sentido estrito, não se faz a todas as pessoas indistintamente, mas apenas à comunidade ou à coletividade titular de tais direitos. Nesse sentido, transcreve-se trecho da lição de Gidi (1995, p. 111), ao comentar os incisos do art. 103 do CDC: A imutabilidade do comando (coisa julgada) nas ações coletivas não atinge a todos os seres humanos existentes no planeta, mas tão só e exclusivamente a comunidade lesada (inc. I), o grupo, a categoria ou classe lesados (inc. II) e as vítimas lesadas e seus sucessores (inc. III). Enfim, em uma palavra, da imutabilidade do comando da sentença coletiva favorável só se beneficiam os titulares do direito lesado (ação repressiva) ou possivelmente lesado (ação preventiva). Ninguém mais. Afinal, a estes pertence a titularidade do direito material invocado na ação coletiva, como prevê o art. 81 do CDC. 364 De Jure 9 prova 2.indd S1:364 11/3/2008 16:22:15 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Por fim, cumpre frisar que, tal como ocorre nos direitos difusos, jamais se admite que a extensão da coisa julgada prejudique os indivíduos integrantes da coletividade (caso de improcedência do pedido), permitindo, por conseguinte, que aqueles ajuízem ação individual em defesa de seus direitos. 4.4. A coisa julgada nos direitos individuais homogêneos Talvez pelo fato de os direitos individuais homogêneos não serem essencialmente coletivos, muita polêmica tem sido feita em relação ao tratamento coletivo dado a essa espécie de direitos. No entanto, a disciplina da extensão da coisa julgada nas ações coletivas propostas em defesa de tais direitos não oferece maiores dificuldades, como se demonstrará adiante. Conforme já observado, os direitos individuais homogêneos não são transindividuais em sua essência, mas sim por ficção jurídica, em função da utilidade prática de se conferir proteção coletiva a uma gama de direitos decorrentes de uma mesma origem (mesma causa de pedir). Buscando dar ampla efetividade a essa tutela coletiva de direitos individuais, o art. 103 do CDC, no seu inciso III, estabeleceu que a extensão da autoridade da coisa julgada nas ações coletivas em defesa de direitos individuais homogêneos far-se-á erga omnes, porém apenas no caso de procedência do pedido (extensão da coisa julgada secundum eventum litis). Da mesma forma que nos direitos difusos, a expressão erga omnes leva à equivocada impressão de que todos serão afetados pela extensão da coisa julgada, quando, na realidade, apenas os indivíduos (vítimas e seus sucessores) lesados por determinada conduta é que serão. Assim, se julgado procedente o pedido formulado na ação coletiva, todos os indivíduos (ou seus sucessores) lesados por determinado fato8, serão beneficiados pela extensão da coisa julgada formada em tal ação, podendo partir diretamente para a fase de liquidação da sentença e execução dos correlatos direitos individuais. Por outro lado, se improcedente o pedido, apenas a via coletiva de defesa dos direitos individuais fica trancada (coisa julgada inter partes), podendo cada indivíduo ajuizar ação (individual) em defesa de seus direitos. No entanto, o CDC cuidou de prever que, se o pedido for julgado improcedente na ação coletiva em que os indivíduos interessados intervirem como litisconsortes, também eles serão atingidos pela coisa julgada formada nessa ação (art. 103, § 2º, do CDC). Isso decorre do fato de que, ao contrário do que ocorre nos outros direitos 8 De acordo com Gidi (1995, p. 32), “[...] na caracterização de ‘origem comum’, apenas o aspecto fático é enfrentado pela doutrina (‘mesma questão de fato’). No entanto, uma mesma questão de direito também pode ser considerada ‘origem comum’, apta, portanto, para gerar direitos individuais considerados homogêneos”. 365 De Jure 9 prova 2.indd S1:365 11/3/2008 16:22:15 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS transindividuais (difusos e coletivos em sentido estrito), o objeto da ação coletiva aqui examinada são direitos individuais, apenas coletivamente considerados, o que permite que os interessados, titulares desses mesmos direitos individuais, sejam afetados pela coisa julgada formada na ação coletiva se nela intervirem como assistentes litisconsorciais (coisa julgada inter partes). Apesar de precisa, a previsão do art. 103, § 2º, do CDC é de pouca utilidade prática, uma vez que mais cômodo para o indivíduo interessado na ação coletiva será aguardar o julgamento dessa ação para, em caso de improcedência, tentar obter sucesso pela via individual. Destarte, ainda que se afigure a ratio da disposição, qual seja, permitir que o indivíduo interessado fiscalize a instrução da ação coletiva, dificilmente esse indivíduo assumirá o risco de ter uma coisa julgada contra si apenas para fiscalizar tal ação. Ademais, não se pode olvidar que, apesar de o direito brasileiro ser um dos mais amplamente equipados em matéria legislativa para proteção dos direitos metaindividuais, a cultura coletiva ainda está pouco difundida entre os cidadãos brasileiros. Em virtude disso, entende-se como mais satisfatório o tratamento dado pelo CDC à extensão da coisa julgada quanto aos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, segundo o qual, nos casos de improcedência por insuficiência de provas, não há extensão erga omnes ou ultra partes. 4.5. Fundamentos da extensão da coisa julgada secundum eventum probationis e secundum eventum litis e controvérsias a respeito do tema Já se destacou, no tópico 4.3, os argumentos comumente aduzidos pela doutrina como fundamento da extensão da autoridade da coisa julgada secundum eventum probationis. Analise-se, agora, a questão de forma mais detalhada, também no que tange à extensão secundum eventum litis. De acordo com Grinover (2004, p. 906): O legislador poderia ter legitimamente determinado a extensão subjetiva do julgado, ultra partes ou erga omnes, sem qualquer exceção, desde que se tratasse de ações coletivas em que a adequação da representatividade fosse criteriosamente aferida. Lembre-se, a esse propósito, de que na common law a existência da adequacy of representation é analisada caso a caso pelo juiz, para verificação da fair notice do processo e do desenvolvimento da defesa da categoria com os necessários cuidados; além disso, o sistema norte-americano possibilita a exclusão do processo de quem não deseja submeter-se à coisa julgada. No entanto, continua, desaconselhou-se a transposição pura e simples do esquema norte-americano da coisa julgada à realidade brasileira, em virtude das diferentes características e condições da sociedade brasileira: 366 De Jure 9 prova 2.indd S1:366 11/3/2008 16:22:15 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS [...] a deficiência de informação completa e correta, a ausência de conscientização de enorme parcela da sociedade, o desconhecimento dos canais de acesso à justiça, a distância existente entre o povo e o Poder Judiciário, tudo a constituir gravíssimos entraves para a intervenção de terceiros, individualmente interessados, nos processos coletivos, e mais ainda para seu comparecimento a juízo visando à exclusão da futura coisa julgada (GRINOVER, 2004, p. 907). Realmente, em um país onde se faz cada vez mais crescente a preocupação em garantir o efetivo acesso à Justiça, em razão da tímida procura do Judiciário pela população, desarrazoado seria exigir que aqueles que não queiram submeter-se à autoridade da coisa julgada no processo coletivo tenham que procurar o Judiciário para manifestarem tal vontade. Dentro do contexto brasileiro de baixo conhecimento da sociedade como um todo a respeito de seus direitos e garantias, mais lógico se fez adotar um sistema segundo o qual a autoridade da coisa julgada na ação coletiva só se estenda à esfera individual para beneficiar. Todavia, a adoção de tal sistema no Brasil não é pacífica, argumentando muitos que essa forma de extensão da autoridade da coisa julgada impõe ônus excessivo ao réu e possibilita a existência de coisas julgadas contraditórias9. Pois bem. Com relação à primeira alegação, observa-se que não há, na verdade, ônus excessivo ao réu, porquanto o objeto da ação coletiva é diverso do da individual. A defesa do réu na ação coletiva é feita em razão do direito coletivo posto em discussão, e não dos direitos individuais daqueles que compõem a coletividade, tanto que, se julgada procedente a demanda, ainda restará aos indivíduos beneficiados pela extensão da coisa julgada a necessidade de ajuizar processo de liquidação. É a lição irretocável de Grinover (2004, p. 909): [...] na técnica do Código do Consumidor, a sentença da ação coletiva, que beneficiará as pretensões individuais, só reconhece o dever genérico de indenizar, dependendo ainda cada litigante de um processo de liquidação, e portanto de conhecimento, em que haverá ampla cognição e completa defesa do réu não só sobre o quantum debeatur, mas também quanto à própria existência do dano individual e do nexo etiológico com o prejuízo globalmente causado (an debeatur). Percebe-se, portanto, que a imputação de suposto ônus excessivo ao réu, em razão da necessidade de apresentar defesa na ação coletiva e nas ações individuais, parte da falsa premissa de que o objeto de tais ações coincide. Ocorre que, como mencionado, 9 Nesse sentido, é o posicionamento de Barbosa Moreira, Vigoriti, Schwab, entre outros. 367 De Jure 9 prova 2.indd S1:367 11/3/2008 16:22:15 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS os direitos individuais, conquanto relacionados com os direitos coletivos, deles se diferenciam. É por tal razão que a extensão da autoridade da coisa julgada às ações individuais só se justifica se for para beneficiar, de forma a não manietar, no caso de improcedência da demanda coletiva, o direito de cada indivíduo de levar sua pretensão à apreciação do Judiciário (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 198810). Ademais, há de se reconhecer que apenas em casos excepcionais as demandas a título individual teriam alguma chance de êxito se propostas depois de ação coletiva que foi julgada improcedente, mormente, se for considerado que, pela magnitude da lide envolvendo o direito coletivo, o réu deve ter concentrado todos os seus esforços na defesa, o que poderá ser aproveitado nas lides individuais (GRINOVER, 2004, p. 908). Além disso: “Em caso [...] da excepcional possibilidade de haver ações individuais procedentes, fica definitivamente comprovada a necessidade de adoção da extensão a terceiros da coisa julgada secundum eventum litis, apenas in utilibus, da disciplina jurídica das ações coletivas” (GIDI, 1995, p. 67). Quanto à possibilidade de existência de coisas julgadas contraditórias, deve-se ressaltar, em primeiro lugar, que tal possibilidade não se verifica, de forma alguma, na hipótese de duas ações coletivas, porquanto, julgado improcedente o pedido formulado em uma ação coletiva, essa via resta preclusa. Observe-se que apenas em caso de improcedência por insuficiência de provas é que se poderá ajuizar nova ação coletiva, todavia, nesse caso, já se demonstrou que a possibilidade de reabertura do novo processo fica restrita à hipótese de provas que não existiam à época do primeiro processo, de modo a não infringir o princípio da eficácia preclusiva da coisa julgada. Por se tratar do confronto entre ação coletiva e ação individual, discute exaustivamente a doutrina a respeito da possibilidade de existência de comandos contraditórios. No entanto, é impossível que haja contradição entre tais comandos, uma vez que, conforme salientado diversas vezes, o direito material discutido em cada uma dessas ações é diverso. Dessa maneira, a coisa julgada formada na ação coletiva refere-se apenas à comunidade, coletividade ou grupo de indivíduos homogeneamente considerados cujo direito coletivo tenha sido pleiteado. As pessoas individualmente lesadas, por sua vez, não são, na verdade, atingidas pela simples formação da coisa julgada na ação coletiva, porquanto não são partes nessa demanda, salvo se intervierem como litisconsortes (art. 103, § 2º, do CDC). O que prevê o CDC, e com toda a razão, é a extensão da coisa julgada na ação coletiva para beneficiar os indivíduos da coletividade, de forma a evitar que o Judiciário se abarrote com inúmeras ações individuais com o mesmo objeto. Nesse sentido, repare-se que o artigo 104 do CDC não afasta a possibilidade de uma 10 “Art. 5º. [...] XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. 368 De Jure 9 prova 2.indd S1:368 11/3/2008 16:22:15 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ação coletiva ter julgamento diverso do de uma ação individual. O que estabelece referido artigo é que a extensão da coisa julgada na ação coletiva somente far-seá em benefício dos autores da ação individual se for requerida a suspensão desta ação no prazo de 30 (trinta) dias. Caso contrário, prosseguirão normalmente ambas as ações, ou seja, com a possibilidade de julgamentos em sentidos opostos, sem que isso implique, em razão da distinção entre direito individual e coletivo, existência de conflito de coisa julgada. Assim, o artigo 104 do CDC arremata, com toda precisão, que a autoridade da coisa julgada na ação coletiva não se estende em benefício do autor da ação individual que não requereu a suspensão do seu processo no prazo legal, evitando, por conseguinte, que haja confronto entre a coisa julgada de cada uma dessas ações. Gonçalves (1995, p. 73), em estudo sobre o tema, defende que o CDC adotou posição peculiar a respeito do conceito de parte, uma vez que, segundo o doutrinador, os destinatários da prestação jurisdicional, na ação coletiva, não são aqueles que nela participam, mas sim os indivíduos beneficiados pelo julgamento. Trazendo tal entendimento para a análise da possibilidade de conflito de coisa julgada nas ações coletiva e individual, assevera o renomado processualista que: O conflito entre a coisa julgada na ação coletiva e na ação individual foi afastado pela própria lei, que deu às expressões erga omnes e ultra partes, conotação peculiar, porque peculiar foi a concepção de parte que acolheu. Como, na ação coletiva, a lei considerou como ‘partes’ o legitimado e o réu, os destinatários do provimento apareceram como meros beneficiados, aos quais se alongavam os efeitos da sentença. Contudo, em que pesem os argumentos acima expostos, o que se observa é que eles se baseiam no equivocado pressuposto de que, na ação coletiva, o ente legitimado para atuar em juízo defende direito individual, quando, na verdade, o que tal ente se propõe a defender é o direito de uma comunidade, coletividade ou grupo de indivíduos homogeneamente considerados. É por tal razão que se faz necessário estender a coisa julgada erga omnes ou ultra partes, ou seja, exatamente para atingir os indivíduos que não foram partes na ação coletiva. Por esse motivo, entende-se que a tese anteriormente defendida, de que não há conflito entre coisa julgada na ação coletiva e na ação individual por se tratar de ações com objetos diversos (e não por o CDC ter acolhido posição peculiar sobre o conceito de parte), é mais consentânea com a posição adotada pela lei brasileira e, conseqüentemente, com toda a sistemática do processo coletivo. Finalmente, cumpre responder à crítica realizada por Leal (1998, p. 210). De acordo com o mestre, o 369 De Jure 9 prova 2.indd S1:369 11/3/2008 16:22:16 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS argumento da doutrina para fundamentar a extensão da coisa julgada secundum eventum litis é paradoxal, visto que: Por um lado, faz-se um libelo contra o processo individual, com argumento de acesso à Justiça e pregando-se a necessidade de se superarem as barreiras tradicionais impostas pela cláusula do devido processo legal, com o princípio do contraditório incluído. Quando se percebe que o pedido na ação coletiva pode ser improcedente, recorre-se aos mesmos argumentos que no primeiro momento rechaçaram: os princípios do processo civil clássico (contraditório, ampla defesa, etc). Ora, ou se permite a extensão da coisa julgada, em função da adequada representatividade, ou se procuram outros argumentos para justificar o regime secundum eventum litis, pois na forma em que está a doutrina, há uma evidente antinomia teórica Conquanto a crítica aparente, em um primeiro momento, ser irrespondível, basta refletir para concluir que se partiu de uma falsa premissa, ou seja, de que no regime adotado pelo CDC há escolha de um ente legitimado para representar adequadamente a comunidade, coletividade ou grupo de indivíduos homogeneamente considerados. Ocorre que não há, em momento algum, no sistema brasileiro, a emissão de juízo de valor, seja pelo juiz ou pelo legislador, a respeito do fato de o ente legitimado ser ou não adequado representante da coletividade titular do direito transindividual. O que a lei fez, de fato, foi arrolar quais entidades estão legitimadas, em tese, a propor ação coletiva, em virtude da inexistência de legitimado ordinário ou extraordinário para postular direitos coletivos em juízo. Assim, impediu-se que a defesa em juízo de direitos coletivos se transformasse em verdadeira chicana, na qual qualquer um poderia demandar em nome de um direito transindividual qualquer. No entanto, não houve, como ocorre no direito norte-americano, a atribuição, ao juiz ou a qualquer órgão, do dever de verificar, caso a caso, se tais entidades legitimadas pela lei representam ou não a coletividade titular do direito de forma adequada. Destarte, em face da inexistência, no direito brasileiro, de controle por parte do Judiciário da adequada representatividade, imperioso se fez considerar que a extensão da coisa julgada formada na ação coletiva não deve ser realizada nos casos de improcedência do pedido, de forma a impedir que uma má-representação prejudique centenas, milhares ou até milhões de indivíduos. A opção do legislador brasileiro, na verdade, foi a mais precisa possível, visto que levou em consideração todas as características peculiares da sociedade brasileira e não incorreu naquele erro tão freqüente na nossa história, de simples transposição de um sistema adotado em outro país para o nosso, acreditando piamente que a solução adotada em outro lugar possa servir aqui sem qualquer modificação. É verdade que 370 De Jure 9 prova 2.indd S1:370 11/3/2008 16:22:16 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS o direito comparado tem sua razão de ser, e, muitas vezes, é possível adaptar ou até mesmo utilizar regime legal adotado em outro país como exemplo. Todavia, parece que o legislador brasileiro agiu com inegável acerto ao não transpor a disciplina de extensão da coisa julgada nas ações coletivas do direito norte-americano para o nosso, pois, afinal: [...] não se nos afigura adequada à nossa realidade a disciplina norte-americana. Tanto cultural como economicamente vulnerável, a situação do nosso país não seria um terreno propício para essa disciplina. Também não parece ser superior à nossa, tal solução. Poder-se-ia mesmo afirmar que a solução adotada pelo Código pátrio servirá de parâmetro para todas as nações que se preocupam com o tema (GIDI, 1995, p. 72). Em síntese, entende-se como justificável e acertado o modelo adotado pelo CDC referente à extensão da autoridade da coisa julgada nas ações coletivas às ações individuais, concluindo-se que as críticas comumente realizadas a tal sistema decorrem de errônea interpretação e percepção das regras elaboradas pelo legislador brasileiro. 5. Conclusão De tudo quanto foi exposto, parece inarredável a observação de que a coisa julgada é vista sob nova ótica no processo coletivo, adaptada à necessidade de se conferir adequado e específico tratamento aos direitos de natureza metaindividual. Conforme se pôde perceber ao longo deste trabalho, o instituto da coisa julgada, principalmente no que tange aos seus limites subjetivos, foi modificado para melhor eficácia da tutela dos direitos coletivos. Embora tal adaptação seja pacífica, o que se verifica é que a maioria dos equívocos daqueles que estudam o tema decorre exatamente do indevido vínculo com a sistemática adotada pelo processo civil no tratamento dos direitos individuais. Ocorre que a extensão da autoridade da coisa julgada nas ações coletivas é, senão o mais importante, um dos mais fundamentais institutos para que ocorra a pacificação social de forma potencializada ou coletiva, o que não permite que ocorram os tão freqüentes equívocos aqui apontados. Acredita-se, assim, que, ao se colocar corretamente as premissas e os pressupostos necessários para melhor análise do instituto, possível será que não se realizem os erros comumente cometidos pelos doutrinadores e aplicadores do direito em geral. Somente assim é que se possibilitará que a aplicação das regras de extensão da coisa julgada erga omnes e ultra partes concretize a finalidade perseguida pela lei, qual seja, a efetivação dos direitos coletivos. 371 De Jure 9 prova 2.indd S1:371 11/3/2008 16:22:16 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 6. Referências bibliográficas ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. ALVES, Elaine Cristina Bueno. Delineamentos da coisa julgada e sua garantia constitucional. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 93, v. 827, set. 2004. BRAGA, Renato Rocha. A coisa julgada nas demandas coletivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. GIDI, Antônio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995. GONÇALVES, Aroldo Plínio. A coisa julgada no CDC e o conceito de parte. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 331, p. 65-73, jul./set. 2004. GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo: de acordo com a Lei 10.444/02. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. LIEBMAN, Enrico Túlio. Eficácia e autoridade da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 1984. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. São Paulo: Saraiva, 2002. SILVA, Antônio Álvares da. Reforma do Judiciário. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 372 De Jure 9 prova 2.indd S1:372 11/3/2008 16:22:16 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2. JURISPRUDÊNCIA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL 1o Acórdão. EMENTA: I. Recurso extraordinário: descabimento: controvérsia sobre validade de cláusula de acordo coletivo de trabalho decidida à luz de legislação infraconstitucional pertinente, de reexame inviável no RE. II. Acordo coletivo de trabalho: o artigo 7º, XXVI, da Constituição Federal, não elide a declaração de nulidade de cláusula de acordo coletivo de trabalho à luz da legislação ordinária. III. Recurso extraordinário: inadmissibilidade: alegações improcedentes de negativa de prestação jurisdicional de violação dos princípios compreendidos no artigo 5º, incisos XXXV, XXXVI e LIV, da Constituição Federal. IV. Agravo regimental manifestamente infundado: condenação da agravante ao pagamento de multa, nos termos do art. 557, § 2º, C.Pr.Civil. (STF, 1a Turma, AI-AGR 617006/MG, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Julgamento 02/03/2007, DJ 23/03/2007). 2o Acórdão. EMENTAS: 1. CRIME. Genocídio. Definição legal. Bem jurídico protegido. Tutela penal da existência do grupo racial, étnico, nacional ou religioso, a que pertence a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Delito de caráter coletivo ou transindividual. Crime contra a diversidade humana como tal. Consumação mediante ações que, lesivas à vida, integridade física, liberdade de locomoção e a outros bens jurídicos individuais, constituem modalidade executórias. Inteligência do art. 1º da Lei nº 2.889/56, e do art. 2º da Convenção contra o Genocídio, ratificada pelo Decreto nº 30.822/52. O tipo penal do delito de genocídio protege, em todas as suas modalidades, bem jurídico coletivo ou transindividual, figurado na existência do grupo racial, étnico ou religioso, a qual é posta em risco por ações que podem também ser ofensivas a bens jurídicos individuais, como o direito à vida, a integridade física ou mental, a liberdade de locomoção etc.. 2. CONCURSO DE CRIMES. Genocídio. Crime unitário. Delito praticado mediante execução de doze homicídios como crime continuado. Concurso aparente de normas. Não caracterização. Caso de concurso formal. Penas cumulativas. Ações criminosas resultantes de desígnios autônomos. Submissão teórica ao art. 70, caput, segunda parte, do Código Penal. Condenação dos réus apenas pelo delito de genocídio. Recurso exclusivo da defesa. Impossibilidade de reformatio in peius. Não podem os réus, que cometeram, em concurso formal, na execução do delito de genocídio, doze homicídios, receber a pena destes além da pena daquele, no âmbito de recurso exclusivo da defesa. 3. COMPETÊNCIA CRIMINAL. Ação penal. Conexão. Concurso formal entre genocídio e homicídios dolosos agravados. Feito da 373 De Jure 9 prova 2.indd S1:373 11/3/2008 16:22:16 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS competência da Justiça Federal. Julgamento cometido, em tese, ao tribunal do júri. Inteligência do art. 5º, XXXVIII, da CF, e art. 78, I, cc. art. 74, § 1º, do Código de Processo Penal. Condenação exclusiva pelo delito de genocídio, no juízo federal monocrático. Recurso exclusivo da defesa. Improvimento. Compete ao tribunal do júri da Justiça Federal julgar os delitos de genocídio e de homicídio ou homicídios dolosos que constituíram modalidade de sua execução. (STF, Tribunal Pleno, RE 351487/RR, Rel. Min. Cezar Peluso, Julgamento 03/08/2006, DJ 10/11/2006). JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1o Acórdão. EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESSARCIMENTO À UNIÃO DE VALORES INDEVIDAMENTE RECEBIDOS DO FUNDO DE INDENIZAÇÃO DO TRABALHADOR PORTUÁRIO AVULSO (FITP). REPETIÇÃO DO INDÉBITO. CONFLITO DE CARÁTER TRIBUTÁRIO. INTERESSE SECUNDÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIVERGÊNCIA NÃO DEMONSTRADA. 1. O Ministério Público Federal não ostenta legitimidade ativa ad causam para ajuizar ação civil pública objetivando o ressarcimento, em favor da União, de valor indevidamente recebido por trabalhador portuário avulso, oriunda do Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - FITP, porquanto a sua atuação, in casu, não denota defesa do erário, ao revés, revela repetição do indébito, ora rotulada de ação civil pública, em nome da União, que, inclusive, dispõe de Procuradoria para fazê-lo.Precedente desta Corte: Resp 799.883/RS, desta relatoria, DJ de 04.06.2007. 2. Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em face de trabalhador portuário, objetivando o ressarcimento, em favor da União, de valores indevidamente recebidos pelo réu, a título de indenização pelo cancelamento de registro de trabalhador portuário avulso, ao fundamento de que a Lei nº 8.630/93, concretizando projeto de modernização dos portos, estabeleceu a obrigatoriedade de os trabalhadores portuários avulsos estarem registrados junto ao Órgão Gestor de Mão-de-Obra-OGMO, constituído pelos operadores portuários, mediante o cumprimento de determinadas condições, que o réu, por já gozar do benefício da aposentadoria, não preenchia e, via de conseqüência, não fazia jus à referida indenização. 3. Deveras, mercê de o Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - AITP configurar receita da União, resta equivocada, com a devida vênia, a sua inserção na categoria de patrimônio público federal, utilizada pelo Parquet como fator legitimador para o aforamento da ação civil pública em baila. É que o patrimônio público se perfaz de bens que pertencem a toda coletividade, não individualizáveis, e que não sofrem distinção pertinente a eventuais direitos subjetivos, como por exemplo, imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico-Cultural. Daí, inviável se considerar receita da União como patrimônio público federal, na medida em que o seu 374 De Jure 9 prova 2.indd S1:374 11/3/2008 16:22:17 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ressarcimento não denota interesse metaindividual relevante, mas sim do próprio ente público. Nesse sentido é doutrina pátria: “(...)A ação civil pública é instrumento de defesa dos interesses sociais, categoria que compreende o interesse de preservação do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, expressões que, na lição de Miguel Reale (Questões de Direito Público, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 132). “compõem uma díade incindível”, enquanto bens pertencentes a toda a comunidade, “a todos e a cada um, como um bem comum, não individualizável, isto é, sem haver possibilidade de distinção formal individualizadora em termos de direitos subjetivos ou situações jurídicas subjetivas”. (Ilmar Galvão, A ação civil pública e o Ministério Público, in Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública, São Paulo, Arnoldo Wald, 2003, p. 2002.) 4. Consectariamente, a rubrica receita da União caracteriza-se como interesse secundário da Administração, o qual não gravita na órbita dos interesses públicos (interesse primário da Administração), e, por isso, não guarnecido pela via da ação civil pública, consoante assente em sede doutrinária: “(...)Um segundo limite é o que se estabelece a partir da distinção entre interesse social (ou interesse público) e interesse da Administração Pública. Embora a atividade administrativa tenha como objetivo próprio o de concretizar o interesse público, é certo que não se pode confundir tal interesse com o de eventuais interesses próprios das entidades públicas. Daí a classificação doutrinária que distingue os interesses primários da Administração (que são os interesses públicos, sociais, da coletividade) e os seus interesses secundários (que se limitam à esfera interna do ente estatal). “Assim”, escreveu Celso Antônio Bandeira de Mello, “independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhes são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoas. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer sujeito”. Nessa linha distintiva, fica claro que a Administração, nas suas funções institucionais, atua em representação de interesses sociais e, eventualmente, de interesses exclusivamente seus. Portanto, embora com vasto campo de identificação, não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse da Administração. Pode-se afirmar, utilizando a classificação de Engisch, que interesse social encerra conceito jurídico indeterminado (porque o seu “conteúdo e extensão são em larga medida incertos”) e normativo (porque “carecido de um preenchimento valorativo”), e sua função “em boa parte é justamente permanecerem abertos às mudanças das valorações”. Conforme observou o Ministro Sepúlveda Pertence, em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, “é preciso ter em conta que o interesse social não é um conceito axiologicamente neutro, mas, ao contrário - e dado o permanente conflito de interesses parciais inerente à vida em sociedade - é idéia carregada de ideologia e valor, por isso, relativa e condicionada ao tempo e ao espaço em que se deva afirmar”. É natural, portanto, que os interesses sociais não comportem definições de caráter genérico com significação unívoca. Como demonstrou J. J. Calmon de Passos, “a 375 De Jure 9 prova 2.indd S1:375 11/3/2008 16:22:17 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS individualização do interesse público não ocorre, de uma vez por todas, em um só momento, mas deriva da constante combinação de diversas influências, algumas das quais provêm da experiência passada, enquanto outras nascem da escolha que cada operador jurídico singular cumpre, hic et nunc, no exercício da função que lhe foi atribuída. Assim, a atividade para individualização dos interesses públicos é uma atividade de interpretação de atos e fatos e normas jurídicas (recepção dos interesses públicos fixados no curso da experiência jurídica anterior) e em parte é uma valoração direta da realidade pelo operador jurídico, atendidos os pressupostos ideológicos e sociais que o informam e à sociedade em que vive, submetidos à ação dos fatos novos, capazes de modificar juízos anteriormente irreversíveis” . Genericamente, como Calmon de Passos, pode-se definir interesse público ou interesse social o “interesse cuja tutela, no âmbito de um determinado ordenamento jurídico, é julgada como oportuna para o progresso material e moral da sociedade a cujo ordenamento jurídico corresponde”. A Constituição identifica claramente vários exemplares dessa categoria de interesses, como, por exemplo, a preservação do patrimônio público e da moral idade administrativa, cuja defesa pode ser exercida inclusive pelos próprios cidadãos, mediante ação popular (CF, art. 5.°, LXXIII), o exercício probo da administração pública, que sujeita seus infratores a sanções de variada natureza, penal, civil, e política (CF, art. 37, § 4.º), e a manutenção da ordem econômica, que “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (CF, art. 170). São interesses, não apenas das pessoas de direito público, mas de todo o corpo social, de toda a comunidade, da própria sociedade como ente coletivo. (ZAVASKI, Teori Albino, Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 52-54.) 5. A Procuradoria da Fazenda Nacional, no seu mister, detém atribuições legalmente instituídas que, acaso não observadas, importa em procedimento administrativo na órbita funcional, e até criminal. Descabida, portanto, a atuação do Ministério Público Federal, in casu, na defesa de interesse da União, juridicamente acautelado por órgão próprio. 6. Gravitando a demanda em torno de tema de natureza tributária, há que se aplicar o art. 1º, parágrafo único, da Lei da Lei 7.347/85, com redação conferida pela Lei 8.884/94, consoante os precedentes da Suprema Corte e deste STJ (AgRg no RExt 248.191 - 2 - SP, Relator Ministro CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, DJ de 25 de outubro de 2.002 e REsp 845.034 - DF, Relator Ministro José Delgado, Primeira Seção Seção, julgado em 14 de fevereiro de 2.007), os quais assentam a ilegitimidade ativa ad causam do Ministério Público para impugnar a cobrança de tributos ou pleitear a sua restituição. 7. A admissão do Recurso Especial pela alínea “c” exige a demonstração do dissídio na forma prevista pelo RISTJ, com a demonstração das circunstâncias que assemelham os casos confrontados, não bastando, para tanto, a simples transcrição das ementas dos paradigmas. 8. In casu, o acórdão recorrido cingiu-se à ilegitimidade ativa ad causam do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública, objetivando o ressarcimento, em favor da União, de valor indevidamente recebido por trabalhador portuário avulso, oriunda do Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - FITP e os paradigmas colacionados, ao revés, tratam de forma ampla e genérica o 376 De Jure 9 prova 2.indd S1:376 11/3/2008 16:22:17 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS cabimento de ação civil pública objetivando a defesa do patrimônio público. 9. Recurso especial desprovido. (STJ, RESP 799841/RS, 1a Turma, Rel. Min. Luiz Fux, Julgamento 18/10/2007, DJ 08/11/2007, p. 169). 2o Acórdão. EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. INTERESSE HOMOGÊNEO. PRECEDENTES. ESTUDANTES DE ESCOLAS TÉCNICAS E DA ZONA RURAL. TRANSPORTE. DESCONTO. RESPONSABILIDADE FINANCEIRA DO DISTRITO FEDERAL. LITISCONSÓRCIO. NECESSIDADE. ANULAÇÃO. DEVOLUÇÃO À ORIGEM. PROVIDÊNCIA DO ARTIGO 47 DO CPC. I - Ação civil pública movida pelo Ministério Público, na qual se pretende assegurar a isenção ou redução de tarifas no transporte coletivo para os alunos matriculados nas escolas técnicas e profissionalizantes, bem como aos residentes no meio rural, cuja legitimidade ativa se verifica, tendo em conta a atribuição constitucional do Parquet na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Precedentes: REsp nº 610.235/DF, Rel. Min. DENISE ARRUDA, DJ de 23/04/07, REsp nº 684.712/DF, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, DJ de 23/11/06, REsp nº 851.174/RS, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ de 20/11/06. II - O benefício pretendido pela demanda principal está diretamente relacionado ao repasse de verbas, conforme legislação de regência, questão de encargo do Poder Público, no que o Distrito Federal deve integrar a lide na qualidade de litisconsórcio passivo necessário, em razão de sua responsabilidade financeira especificada pelo próprio decisum. Afronta ao artigo 47 do CPC, com a anulação do processo a partir do momento em que a citação do litisconsorte passivo deveria ter sido feita, e o retorno dos autos à origem para que seja sanado o vício. III - Recurso parcialmente provido. (STJ, RESP 926161/DF, 1a Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, Julgamento 04/10/2007, DJ 12/11/2007, p. 183). JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS 1o Acórdão. EMENTA: AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS - ACIDENTE DE TRÂNSITO TRANSPORTE COLETIVO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - REDUÇÃO DA CAPACIDADE LABORATIVA- PENSÃO MENSAL - DANO MORALARBITRADO EM REAIS - VERBA HONORÁRIA CALCULADA SOBRE PARCELAS VENCIDAS E VINCENDAS - TERMO INICIAL DO PENSIONAMENTO A PARTIR DA CITAÇÃO INICIAL DA CONCESSIONÁRIA DE TRANSPORTE COLETIVO - SEGURADORA DESOBRIGADA DO REEMBOLSO - SEGURADO TEM OBRIGAÇÃO DE IDENTIFICAR VEÍCULO ACOBERTADO POR SEGURO E CAUSADOR DE ACIDENTE. O transporte coletivo municipal há de ser prestado com segurança plena, de forma a evitar a queda de pessoas ou lesões 377 De Jure 9 prova 2.indd S1:377 11/3/2008 16:22:17 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS que decorram da má condução do veículo. Pelo princípio da teoria objetiva da culpa, aplicável ao transporte de pessoas, ocorrendo acidente em ônibus, presume-se a culpa do transportador e a este compete comprovar a inocorrência de culpa de sua parte. Aquele que sofre lesão em sua integridade física capaz de reduzir o valor de seu trabalho, faz jus ao recebimento de pensão vitalícia. A moderação nos critérios, a justa compensação e o caráter pedagógico constituem pilares para estabelecimento do quantum indenizatório a título de danos morais. A lesão à integridade física configura o dano moral indenizável. As balizas para arbitramento do dano moral devem levar em conta a dor da vítima, a possibilidade de restabelecimento e o resultado pós-acidente para fins profissionais e sociais. A indenização por dano moral deve ser arbitrada em quantia certa e que compense a dor sofrida em razão da invalidez experimentada pela pessoa natural. O termo inicial para a indenização é a data de citação da concessionária de transporte coletivo. A verba honorária há de ser calculada sobre parcelas vencidas e vincendas. É obrigação do segurado identificar, na listagem fornecida ao tempo da contratação do seguro,o veículo causador de acidente. A não indicação expressa do ônibus em que viajava a passageira acidentada desonera a seguradora da cobertura securitária.. (TJMG, Processo 1.0702.99.020170-0/001, Relator José Antônio Braga, Julgamento 14/03/2006, Publicação 29/04/2006). 2o Acórdão. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - PLANO DE SAÚDE DE AUTO GESTÃO CONTRATO COLETIVO - DESCONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO TRABALHISTA COM A EMPRESA CONTRATANTE - MANUTENÇÃO DA CONDIÇÃO DE SEGURADO - PERÍODO - INELIGÊNCIA DO ART 30 CAPUT E § 1º. DA Lei 9.656/98. O vínculo do usuário e de seus dependentes com a operadora ou seguradora subsiste ao desfazimento da relação de emprego entre o segurado e a empresa contratante do seguro coletivo de saúde, com a manutenção da condição de beneficiário pelo período previsto no § 1º, art. 30, da Lei 9.656/98. Após o período de manutenção do empregado demitido por justa causa como usuário de plano de saúde coletivo, nas mesmas condições de que gozava, quando da vigência do contrato de trabalho, o usuário que pretender continuar no plano deverá negociar novas condições, inclusive de preço, tendo em vista que passará à qualidade de contratante individual. Cabe à pessoa jurídica que requer os benefícios da Assistência Judiciária a prova robusta e efetiva de sua hipossuficiência, que demonstre a atual situação e a impossibilidade da empresa, ainda que sem fins lucrativos, de arcar com os encargos decorrentes da demanda. V.v. Consoante a estrutura já formada no País, com a instituição da justiça paga, considerando que esta remunera também verba honorária sucumbencial, há que se deferir justiça gratuita à pessoa jurídica via de simples declaração lançada no corpo da inicial, prerrogativa que não outorgada unicamente à pessoa física. (TJMG, Processo 1.0713.05.055446-6/002, Relatora Hilda Teixeira Da Costa, Julgamento 01/02/2007, Publicação 23/03/2007). 378 De Jure 9 prova 2.indd S1:378 11/3/2008 16:22:17 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA 3.1. INCONSTITUCIONALIDADE DE GRATIFICAÇÃO A PRESIDENTE DE CÂMARA DE VEREADORES MARCUS PAULO QUEIROZ MACÊDO Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais Relator do Acórdão: ERNANE FIDÉLIS Data do Julgamento: 12.09.2006 Data da Publicação: 29.09.2006 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0040.05.029471-5/001 EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. GRATIFICAÇÃO INDEVIDA DE PRESIDENTE DA CÂMARA. FALTA DE CAPACIDADE PROCESSUAL DO ÓRGÃO LEGISLATIVO. LEGITIMIDADE DO MP. PROPRIEDADE DA AÇÃO. ILEGALIDADE E NÃO INCONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO QUE CRIOU A GRATIFICAÇÃO INDEVIDA. - Se institui gratificação a presidente de câmara, além dos limites permitidos na lei, a resolução respectiva é ilegal, sendo nulo o ato legislativo que assim o prevê. A ação civil pública é meio hábil a coibir o abuso e o MP é parte legítima para a proposição, bem como a pleitear o ressarcimento dos danos. Se não há expressa negativa da norma constitucional, mas, simplesmente, sua desobediência, há ilegalidade e não inconstitucionalidade de ato legislativo. É ilegal todo e qualquer aumento para vereadores que ultrapasse o mínimo permitido pela lei, nos parâmetros estabelecidos conforme os vencimentos do deputado estadual. A Câmara de Vereadores não tem capacidade processual para representação do Município e dele fazendo parte, seus atos são da própria entidade municipal que se representa pelo Prefeito, tão somente. APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0040.05.029471-5/001 - COMARCA DE ARAXÁ - APELANTE(S): CÂMARA MUNICIPAL DE TAPIRA E OUTRO(A)(S) APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS - RELATOR: EXMO. SR. DES. ERNANE FIDÉLIS ACÓRDÃO Vistos etc., acorda, em Turma, a 6ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM NEGAR PROVIMENTO. 379 De Jure 9 prova 2.indd S1:379 11/3/2008 16:22:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Belo Horizonte, 12 de setembro de 2006. DES. ERNANE FIDÉLIS - Relator NOTAS TAQUIGRÁFICAS: O SR. DES. ERNANE FIDÉLIS: VOTO REEXAME NECESSÁRIO A hipótese reclama reexame necessário, porque, de qualquer forma, houve decisão contra o Município. Neste caso, como não há restrição por valor certo, reclama-se o pronunciamento da segunda instância, para nova análise das questões. De qualquer forma, deve-se observar que não apenas o Autor, como também o d. Sentenciante se equivocaram em aceitar a legitimidade da Câmara de Vereadores, pois, mormente quando não se trata de julgamento de pretensão de um órgão contra o outro, apenas o Município é que a pessoa jurídica apta a responder por qualquer pedido que se faça contra ele, ainda que diga respeito ao Poder Legislativo. Neste caso, respondendo o Município, a representação passiva, na hipótese, é apenas do Prefeito Municipal (art.12, II, do CPC). Não há dúvida de que completamente absurda foi a integração da Câmara Municipal no processo, o que, por si só, obrigaria ao não reconhecimento do recurso interposto, sendo de se considerar até herética a preliminar levantada, de que todos os vereadores deveriam ser citados. Quanto à legitimidade do MP, para promover a ação civil pública, não há a menor dúvida de que vencimentos a maior pagos a representantes de poderes se constituem em danos patrimoniais de interesse coletivo (art. 1º, c.c. inc. IV, da Lei 7.347/85), pois, toda a coletividade é afetada pela infração legal. Daí ser própria a ação civil pública, para impedir efeitos de resoluções que venham a afetar a própria legislação, causando prejuízo ao Erário, bem como, se, em razão da execução da lei, já ocorreu algum dano patrimonial, justo que haja o respectivo ressarcimento por quem dele se beneficiou. Os pedidos da ação pública estão corretos e sem nenhuma incompatibilidade, já que a devolução do recebido indevidamente conjuga-se perfeitamente com a proibição de continuação da prática da ilegalidade. Falou-se, nestes autos, em declaração incidental de inconstitucionalidade, o que, em verdade, peca contra a própria natureza da questão. Inconstitucional seria a disposição 380 De Jure 9 prova 2.indd S1:380 11/3/2008 16:22:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS legislativa que viesse de encontro direto contra norma constitucional, ou seu princípio básico, não a que deixasse de atender, na execução de qualquer ato legislativo ou administrativo mesmo, o disposto na Constituição. Em outras palavras, a Resolução atacada não está, em suma, afrontando o dispositivo constitucional, de forma até a têlo por ineficaz, mas está, simplesmente, não atendendo o disposto na lei. A questão é de ilegalidade não de inconstitucionalidade. Se a lei, claramente, seja norma constitucional ou não, estabelece a proporção dos vencimentos do vereador, tendo como parâmetro os do deputado, qualquer gratificação extra, inclusive para os membros da Mesa Diretora, é ilegal, não podendo prevalecer a hipótese legislativa que preveja. Não restando, pois, dúvidas sobre a ilegalidade da Resolução municipal que não atende o determinado na lei, sem negar-lhe, porém, a vigência, NEGO PROVIMENTO ao recurso, julgando prejudicado o voluntário, não apenas pela confirmação da sentença, mas também por completa falta de capacidade processual da Recorrente. Custas pelo Município de Tapira. É o meu voto. Votaram de acordo com o(a) Relator(a) os Desembargador(es): EDILSON FERNANDES e MAURÍCIO BARROS. SÚMULA : NEGARAM PROVIMENTO. Comentários 1. Introdução Trata-se de acórdão proferido em virtude da apelação interposta contra a sentença que acolheu integralmente os pedidos constantes em ação civil pública proposta pela Curadoria de Defesa do Patrimônio Público da Comarca de Araxá, em face do Município de Tapira, da Câmara de Vereadores de Tapira e de ex-presidentes daquela Casa Legislativa, na qual se pleiteou a constituição de obrigação de não fazer a essa Edilidade, consistente em determinar à mesma que não pagasse acréscimos aos seus presidentes em virtude do exercício de tal função de direção, no que ultrapassasse os limites previstos no artigo 29, inciso VI, da Constituição da República, cumulandose, na referida ação coletiva, pedido de reparação de danos, com a determinação de ressarcimento ao erário tapirense dos valores a maior, indevidamente amealhados pelos agentes públicos em questão. Está-se diante de precedente jurisdicional de suma importância, pelos aspectos que se verá a seguir, tanto no tangente às preliminares analisadas, quanto à questão de mérito, que tem uma dimensão bem maior do que se pode imaginar numa análise superficial. 381 De Jure 9 prova 2.indd S1:381 11/3/2008 16:22:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS 2. Das preliminares O acórdão retrotranscrito reafirma, uma vez mais, a legitimidade do Ministério Público para a defesa do Patrimônio Público, inclusive no tocante à possibilidade de intentar ações reparatórias. Com efeito, dúvida não há acerca de ser uma das atribuições do Parquet a de proteger o Patrimônio Público, até por expressa dicção do artigo 129, inciso III, da Constituição da República. Contudo, há certa restrição doutrinária, também encontrada em alguns julgados, quanto à possibilidade dessa instituição promover ações ressarcitórias, as quais seriam de iniciativa exclusiva do ente público lesado. Porém, o que ocorreria quando ele se omitisse ou na hipótese em que o próprio ente tivesse emitido o ato questionado? Evidentemente, nesses casos que tais e em inúmeros outros, é necessária a atuação diligente do Ministério Público, decorrendo daí a necessidade de se reafirmar a ampla legitimidade do Parquet para a defesa do Erário, como foi feito no acórdão sob comento. Contrariando a jurisprudência majoritária do E. TJMG, além de doutrinadores do porte de Meirelles (2003, p. 592)1, por exemplo, o Relator, o Desembargador Ernani Fidélis, ele mesmo também um renomado jurista, asseverou, de ofício, sendo seguido por seus pares, que Câmaras de Vereadores não têm capacidade processual, tanto passiva, quanto ativa. Não se sabe se o posicionamento exarado nesses termos será um julgado isolado ou se será seguido pelas demais Câmaras do E. TJMG. De um ponto de vista estritamente prático, creio que, enquanto essa posição não for assentada no TJMG e, mais, nos Tribunais Superiores, as ações civis públicas, quando se dirigirem às Casas Legislativas mineiras, deverão continuar a incluí-las no pólo passivo. É melhor pecar pelo excesso, sendo eventualmente decotada uma das partes da ação, do que ter o processo completamente anulado em Instância Superior, por ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário, às vezes após muitos anos de trâmite. De qualquer modo, considerando-se ou não a capacidade processual dos entes legislativos, o certo é que, necessariamente, deverá ser incluído no pólo passivo da ação civil pública o Município ou o Estado de Minas Gerais, conforme a hipótese. Outra questão jurídica levantada de plano pelo ilustre relator é a adução de que, in casu, não deveria ter sido declarada incidentalmente a inconstitucionalidade da Resolução Legislativa atacada por meio da ação civil pública consectária desse 1 Ele afirma: “A capacidade processual da Câmara para a defesa de suas prerrogativas funcionais é hoje pacificamente reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência. Certo é que a Câmara não tem personalidade jurídica, mas tem personalidade judiciária. Pessoa jurídica é o Município. Mas nem por isso se há de negar a capacidade processual, ativa e passiva, à Edilidade para ingressar em juízo quando tenha prerrogativas ou direitos próprios a defender”. 382 De Jure 9 prova 2.indd S1:382 11/3/2008 16:22:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS acórdão, mas sim declarada a sua ilegalidade. Apesar dessa distinção ter sido feita no acórdão já transitado em julgado, ela não teve qualquer repercussão prática. Além do mais, reputo que, se a intenção era esmiuçar aspectos doutrinários, a decisão em epígrafe pecou nesse quesito, visto que não foi suficientemente clara em distinguir declaração incidental de inconstitucionalidade, conforme se requereu no corpo da ação civil pública que deu origem ao recurso julgado em superior instância, de declaração judicial de ilegalidade. Com efeito, a causa de pedir jurídica da referida ação é o descompasso entre o que dispunha uma Resolução da Câmara de Vereadores de Tapira e um comando auto-aplicável da Constituição da República. Ou seja, um caso claro de inconstitucionalidade e não de simples ilegalidade stricto sensu2’, considerando-se o conceito de inconstitucionalidade por ação, dado por Silva (2004, p. 47), in verbis: “[A inconstitucionalidade por ação] Ocorre com a produção de atos legislativos ou administrativos que contrariem normas ou princípios da constituição.” Logo, o que se espera é que o insigne Relator destrinche mais a problemática por ele mesmo levantada, fazendo-o em outro julgamento ou mesmo em obra jurídica. 3. Da questão de fundo A questão posta sob apreciação do Poder Judiciário já foi objeto de teses por mim defendidas (e aprovadas) em Congressos Estadual e Nacional do Ministério Público, além de artigo publicado nesse mesmo periódico (2005). Refere-se a uma prática corriqueira, ao menos nas Câmaras Municipais do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, caracterizada pela percepção, por parte dos presidentes das respectivas Casas, de subsídios flagrantemente superiores ao teto fixado pelo artigo 29, inciso VI, da Constituição da República, o que também pode estar ocorrendo em inúmeros dos 853 municípios do Estado de Minas Gerais e em muitos outros do Brasil. O art. 29, inciso VI, da Constituição da República (grifo nosso), assim dispõe: Art. 29. O Município reger-se-á por Lei Orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...] VI- o subsídio do vereador será fixado pelas respectivas Câmaras Municipais em cada legislatura para a subseqüente, 2 A inconstitucionalidade é uma ilegalidade qualificada, se considerada esta em seu sentido amplo. Basicamente, ilegalidade, em sentido estrito, é qualquer afronta à lei, enquanto inconstitucionalidade, ofensa à Constituição. 383 De Jure 9 prova 2.indd S1:383 11/3/2008 16:22:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS observado o que dispõe esta Constituição, observados os critérios estabelecidos na respectiva Lei Orgânica e os seguintes limites máximos: A continuação desse dispositivo constitucional é um escalonamento, fixando-se os subsídios dos vereadores a uma dada proporção dos subsídios dos deputados estaduais, dependendo do tamanho da cidade (por exemplo, o inciso “c” determina que em municípios com população entre cinqüenta e cem mil habitantes, como é o caso de Araxá, os subsídios devem ser fixados, no máximo, até 40% do subsídio do deputado estadual). Trata-se de um dispositivo de redação cristalina, claramente auto-aplicável, pois é muito nítida a não-dependência de regulamentação posterior. Da sua simples leitura, conclui-se: a) trata-se do máximo, podendo o subsídio ser fixado em limite inferior; b) em tese, o Presidente da Câmara poderia, como medida de isonomia, ter um subsídio maior do que o dos demais vereadores, caso estes considerem que, pelo cargo que o Presidente ocupa, ele realmente tem um gasto superior aos dos demais vereadores. Todavia, é por demais evidente que o subsídio do Presidente da Câmara de Vereadores, ainda que superior aos dos demais vereadores, não poderá ultrapassar o limite constitucional. Mesmo assim, não foi o que se operou na cidade de Tapira, integrante da comarca de Araxá, na qual se utilizou o máximo permitido constitucionalmente e, sobre esse subsídio, fixou-se um acréscimo de 50% para o Presidente da sua Câmara de Vereadores, que passou, assim, a ganhar mais do que o limite previsto na Constituição da República. Nem é possível justificar tal acréscimo como sendo a malsinada verba de representação, que foi expressamente vedada pelo art. 39, § 4º, da Constituição da República, a qual determina a fixação dos subsídios em parcela única. Neste sentido e especificamente com relação aos subsídios dos vereadores e ao acréscimo concedido aos Presidentes das Câmaras, assim expõe o mesmo Meirelles (p. 675): Quanto à verba de representação, em bases razoáveis, ao presidente da Cãmara, sempre foi admitida e se justificava pela sua natureza indenizatória dos gastos inerentes e específicos da função representativa da chefia da Edilidade. Mas a Constituição Federal, após a EC 19, de 1998, passou a exigir que o subsídio dos vereadores nunca ultrapasse 75% daquele estabelecido, em espécie, para os deputados estaduais. Com o advento da EC 25, de 2000, foi adotada uma relação de proporcionalidade entre a população do município e o percentual máximo dos subsídio dos vereadores em relação ao subsídios dos deputados estaduais, oscilando entre os limites de 20 a 75%, de conformidade com o número de habitantes. 384 De Jure 9 prova 2.indd S1:384 11/3/2008 16:22:18 DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS De qualquer forma, está expressamente vedado o acréscimo da verba de representação ou de qualquer outra remuneração além daquele teto, exigindo-se a remuneração dos vereadores exclusivamente por subsídio fixado em parcela única (CF, art. 39, § 4º). (itálicos no original) Logo, é nítida a inconstitucionalidade de normas que redundem num subsídio maior que o teto constitucional. Em razão disso, foi interposta a respectiva ação civil pública, totalmente procedente em primeira instância e em segunda, inclusive no tocante à fixação da obrigação de devolução aos cofres públicos municipais dos valores recebidos indevidamente por agentes públicos. Está-se diante de uma decisão que, além de gerar economia aos cofres públicos, restabelece o necessário respeito à Supremacia da Constituição da República Federativa do Brasil. Mas não só: é um importante precedente que se aplica a todas as esferas de Poder, um raciocínio que deve ser empregado na análise dos vencimentos de todos os agentes públicos que estão sob o regime constitucional de subsídios. Este é o principal aspecto e importância do aresto sob comento: deixar corporificado que qualquer subsídio, seja de um vereador, de um Prefeito, do Presidente da Câmara de Vereadores, do Presidente da Assembléia Legislativa, do Presidente do Tribunal de Justiça, do ProcuradorGeral de Justiça ou do Governador do Estado, deve respeitar o teto constitucional, a despeito de eventuais gastos extras que a função de direção enseje, pois os princípios da Supremacia da Constituição, da Legalidade e da Moralidade Administrativa estão muito além dos interesses dos Chefes dos Poderes e devem ser velados pelo Ministério Público e, em última instância, pelo Poder Judiciário. Referências bibliográficas MEIRELES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. MACÊDO, Marcus Paulo Queiroz. Da vedação constitucional do acréscimo concedido aos presidentes das Câmaras Municipais. MPMG Jurídico, Bel