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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL
ISSN: 1809-8487
DE JURE
Número 9
REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Julho/Dezembro de 2007
CIRCULAÇÃO NACIONAL
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De Jure - Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais / Ministério
Público do Estado de Minas Gerais.
n. 9 (jul./dez. 2007). Belo Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2007.
v.
Semestral.
ISSN: 1809-8487
Continuação de : Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
O novo título mantém a seqüência numérica do título anterior.
1. Direito – Periódicos. I. Minas Gerais. Ministério Público.
CDU. 34
CDD. 342
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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL
DE JURE
Número 9
REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Julho/Dezembro de 2007
SEMESTRAL
De Jure
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Belo Horizonte
n. 9
jul./dez. 2007
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DE JURE - Número 9
REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA
Procurador de Justiça Jarbas Soares Júnior
DIRETOR DO CENTRO DE ESTUDOS E APERFEIÇOAMENTO FUNCIONAL
Procurador de Justiça Gregório Assagra de Almeida
CONSELHO EDITORIAL
CONSELHEIROS Promotor de Justiça Adilson de Oliveira Nascimento
Promotor de Justiça Carlos Alberto da Silveira Isoldi Filho
Promotor de Justiça Cleverson Raymundo Sbarzi Guedes
Procurador de Justiça João Cancio de Mello Junior
Promotor de Justiça Lélio Braga Calhau
Promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo
Promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda
Promotor de Justiça Renato Franco de Almeida
EDITORAÇÃO Alessandra de Souza Santos
REVISÃO
Fernando Soares Miranda
Luciano José Alvarenga
Alessandra de Souza Santos
Dalvanôra Noronha Silva
CAPA Alex Lanza (FOTO DA CAPA)
Bernardo José Gomes Silveira (ARTE)
Foto capa: escultura barroca em pedra-sabão representando a Justiça, cuja autoria é atribuída ao
português Antônio José da Silva Guimarães e datada como anterior a 1840. Faz parte da obra
que representa as quatro virtudes cardeais – Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza – que
se encontram na antiga Câmara e Cadeia de Vila Rica, atual Museu da Inconfidência de Ouro
Preto.
A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores.
PEDE-SE PERMUTA
WE ASK FOR EXCHANGE
ON DEMANDE L’ÉCHANGE
MANN BITTET UM AUSTAUSCH
SI RIQUIERE LO SCAMBIO
PIDEJE CANJE
Av. Álvares Cabral, 1690, 10º andar, Santo Agostinho, Belo Horizonte, MG, cep. 30.170-001
www.mp.mg.gov.br
[email protected]
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SUMÁRIO
PREFÁCIO...............................................................................................................11
APRESENTAÇÃO..................................................................................................12
SEÇÃO I – ASSUNTOS GERAIS..........................................................................13
1. DOUTRINA INTERNACIONAL.....................................................................13
1.1 Politica Criminal del Estado en Colombia –
HERNANDO LEÓN LONDOÑO BERRÍO.......................................................13
2. DOUTRINA NACIONAL..................................................................................50
2.1 Ação Monitória: Primeiras Impressões –
RODRIGO MAZZEI E HERMES ZANETI JÚNIOR.......................................50
2.2 Agências Reguladoras Independentes e Legitimidade Democrática –
RICARLOS ALMAGRO....................................................................................67
3. PALESTRA.........................................................................................................85
3.1 O Poder Judiciário e o Ministério Público: Uma Visão Crítica –
HÉLIO PEREIRA BICUDO...............................................................................85
4. DIÁLOGO MULTIDISCIPLINAR................................................................... 92
4.1 Agências Reguladoras –
ELIANA OLIVEIRA COSTA TAFURI.............................................................. 92
4.2 Reflexões para o Século XXI sobre o Pensamento Marxista –
RIANY ALVES DE FREITAS.......................................................................... 102
SEÇÃO II – DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL...............................109
SUBSEÇÃO I – DIREITO PENAL......................................................................109
1. ARTIGOS..........................................................................................................109
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1.1 A Metapsicologia Freudiana da Vingança e o Direito Penal: uma Interseção
Reveladora dos Fundamentos Necessários de uma Teoria do Crime Adequada –
ANA CECÍLIA CARVALHO; MARCELO CUNHA DE ARAÚJO; MARIA
JOSEFINA MEDEIROS SANTOS; NAYANA FINHOLDT HIMARU;
LUCIANA ANDRADE MARINHO E CLÁUDIO JÚNIO PATRÍCIO........109
2. JURISPRUDÊNCIA........................................................................................ 143
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA.....................................................146
3.1 Inviolabilidade Noturna de Domicílio e Inexigibilidade de Conduta Diversa
KARINA SILVA DE ARAÚJO .........................................................................146
SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL PENAL..................................150
1. ARTIGOS......................................................................................................150
1.1 O Princípio da Presunção de Inocência e a Exploração Midiática –
MICHELLE KALIL FERREIRA.......................................................................150
1.2 Comentários à Lei de Violência Doméstica –
ÂNGELO ANSANELLI JÚNIOR.....................................................................182
2. JURISPRUDÊNCIA........................................................................................ 205
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA.....................................................209
3.1 Limites Constitucionais à Competência por Prerrogativa de Função:
Análise Crítica da Súmula 721 do Supremo Tribunal Federal –
MAÍRA CARVALHO LUZ...............................................................................209
4. TÉCNICAS.......................................................................................................215
4.1 Recurso Especial Criminal –
JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO..........................................215
SEÇÃO III – DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.................................220
SUBSEÇÃO I – DIREITO CIVIL........................................................................220
1. ARTIGOS..........................................................................................................220
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1.1 Uniões Homoafetivas: uma Nova Modalidade de Família? –
LIDIANE DUARTE HORSTH..........................................................................220
2. JURISPRUDÊNCIA.........................................................................................243
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA......................................................248
3.1 Duplicatas APARECIDO JOSÉ DOS SANTOS FERREIRA.............................................248
SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL CIVIL...........................................266
1. ARTIGOS...........................................................................................................266
1.1 Interceptação Telefônica em Ação de Execução de Alimentos –
LEONARDO BARRETO MOREIRA ALVES..................................................266
2. JURISPRUDÊNCIA..........................................................................................278
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA......................................................283
3.1 Capítulos da Sentença e Formação da Chamada Coisa Julgada Progressiva:
início do prazo para o ajuizamento da Ação Rescisória SAMUEL ALVARENGA GONÇALVES..........................................................283
4. TÉCNICAS........................................................................................................293
4.1 Formulação de Requerimento de Antecipação dos Efeitos da Tutela: Análise e
Compreensão do Requisito da Irreversibilidade no Plano das Conseqüências ao
Direito do Requerido e também do Requerente. Irreversibilidade Fática e Jurídica
GREGÓRIO ASSAGRA DE ALMEIDA E SAMUEL ALVARENGA
GONÇALVES....................................................................................................293
SEÇÃO IV – DIREITO COLETIVO E PROCESSUAL COLETIVO.............299
SUBSEÇÃO I – DIREITO COLETIVO..............................................................299
1. ARTIGOS............................................................................................................299
1.1 O Meio Ambiente na Perspectiva Cultural Contemporânea do Direito no Brasil –
FRANCISCO DE ASSIS BRAGA E LUCIANA IMACULADA DE
PAULA...............................................................................................................299
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2. JURISPRUDÊNCIA........................................................................................313
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA....................................................320
3.1 Um Novo Olhar par a o Cerrado: Ensaio Interdisciplinar para o
(Re) Conhecimento da Dignidade Florística e Jurídica do Bioma –
LUCIANO JOSÉ ALVARENGA......................................................................320
SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL COLETIVO................................337
1. ARTIGOS..........................................................................................................337
1.1 Class Action –
RENATO BRETZ PEREIRA.............................................................................337
1.2 Comentários sobre a Coisa Julgada e a sua Sistemática nas Ações Coletivas –
MARCELO MALHEIROS CERQUEIRA.........................................................353
2. JURISPRUDÊNCIA........................................................................................373
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA.....................................................379
3.1 Inconstitucionalidade de Gratificação a Presidente de Câmara de Vereadores MARCUS PAULO QUEIROZ MACÊDO........................................................379
4. TÉCNICAS.......................................................................................................386
4.1 Valoração Econômica de Danos Ambientais SHIRLEY FENZI BERTÃO..............................................................................386
SEÇÃO V – DIREITO PÚBLICO........................................................................394
SUBSEÇÃO I – DIREITO CONSTITUCIONAL...............................................394
1. ARTIGOS..........................................................................................................394
1.1 A Inconstitucionalidade do Sistema de Quotas: Estudo Comparado entre o
Direito Brasileiro e o Norte Americano –
CARLOS FREDERICO BRAGA DA SILVA..................................................394
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2. JURISPRUDÊNCIA........................................................................................ 407
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA.....................................................412
3.1 A Desnecessidade do Ato de Tombamento para a Preservação de Bem
Dotado de Valor Cultural MARCOS PAULO DE SOUZA MIRANDA.................................................... 412
4. TÉCNICAS...................................................................................................... 417
4.1 Recurso Extraordinário: ADI n.º 1.0000.05.429012-7/000 –
ELAINE MARTINS PARISE; RENATO FRANCO DE ALMEIDA................417
SUBSEÇÃO II – DIREITO INSTITUCIONAL..................................................450
1. ARTIGOS...........................................................................................................450
1.1 Uma Nova Perspectiva na Atuação Criminal por parte do Ministério Público
– Sugestão de Um Novo Perfil –
WILSON PAULA MENDONÇA NETO...........................................................450
2. JURISPRUDÊNCIA.........................................................................................458
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA.....................................................465
3.1 Atuação do Ministério Público em Defesa da Saúde LUCIANO MOREIRA DE OLIVEIRA.............................................................465
4 . TÉCNICAS........................................................................................................475
4.1 Parecer em Procedimento da Lei Maria da Penha: da competência do Juízo de
Família para conhecer das causas de separação judicial que noticiam casos de
violência doméstica e familiar contra a mulher ÂNGELO ALEXANDRE MARZANO............................................................ 475
SUBSEÇÃO III – DIREITO ADMINISTRATIVO ...........................................483
1. ARTIGOS............................................................................................................483
1.1 Procedimento Administrativo de Defesa da Concorrência –
ANDRÉ GONÇALVES GODINHO FRÓES....................................................483
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2. JURISPRUDÊNCIA.........................................................................................496
3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA......................................................502
3.1 Exame Psicotécnico em Sede de Concurso Público: Aspectos Pontuais SAMUEL ALVARENGA GONÇALVES..........................................................502
4. TÉCNICAS.........................................................................................................502
4.1 Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta LUANA CIMETTA...........................................................................................509
SEÇÃO VI – INFORMAÇÕES VARIADAS
1. Normas de Publicação da Revista Jurídica De Jure.......................................512
ERRATA DE JURE Nº 8, JAN./JUN. 2007
1. Na pág. 249: Onde lê-se “LUCIANA PERPÉTUA CORRÊA, Promotora de
Justiça do Estado de Minas Gerais leia-se LUCIANA PERPÉTUA CORRÊA,
Técnica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais”.
2.
Na pág. 326: Onde se lê “COM”, leia-se “CPM”.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
PREFÁCIO
Com grande satisfação, atingimos a edição nº 9 da Revista De Jure - Revista Jurídica
do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, reconhecido instrumento dialógico
entre práxis e teoria. A realidade cambiante do Direito e a efetiva defesa da ordem
jurídica, do Estado democrático de direito e dos interesses metaindividuais pressupõem
o permanente compromisso e adequação das instituições, sendo inquestionável a
importância transformadora do Ministério Público nesse processo de aprimoramento
da Ciência Jurídica.
Progressivamente, a publicação consolida-se como um expressivo instrumento de
divulgação não só do pensamento jurídico, mas da produção científica brasileira de
modo geral. Com efeito, o perfil da revista é o da diversidade dos assuntos. Seu caráter
pluralista e democrático no acesso às informações tem a grande missão de estimular e
divulgar reflexões acadêmicas no âmbito da Instituição.
Nesta 9ª edição, contamos com os preciosos trabalhos do jurista colombiano
Hernando Leon Londoño Berrío, que trata do assunto da política criminal naquele
país; de Rodrigo Mazzei e Hermes Zaneti Júnior, que nos brindaram com brilhante
artigo sobre a ação monitória, de Emerson Garcia, que discorre sobre o princípio da
separação dos poderes; de Hélio Pereira Bicudo, cuja palestra nos traz uma visão
crítica sobre o Poder Judiciário e o Ministério Público – ficamos por aqui, pois são
muitos os colaboradores de todo o país a firmar o perfil pluralista da Revista. A eles
nossos agradecimentos, certos de que continuamos contando com o contínuo apoio
para as futuras edições.
Esperamos que a revista seja de extrema valia para todos os leitores e que se apresente
como instrumento de mudança e de promoção do debate jurídico. Boa leitura!
GREGÓRIO ASSAGRA DE ALMEIDA
Promotor de Justiça
Presidente do Conselho Editorial da Revista De Jure – Revista Jurídica do Ministério
Público do Estado de Minas Gerais.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
APRESENTAÇÃO
Na eterna lição de Norberto Bobbio, os direitos fundamentais são reconhecidos
historicamente. O conjunto amplo de prerrogativas jurídicas existentes atualmente é
único no processo histórico civilizatório. Os direitos de hoje transcendem os de ontem
e, certamente, serão superados em número e complexidade por novos direitos, a serem
declarados pelo ordenamento jurídico no futuro, num movimento em que o homem,
conhecendo a si próprio, reconhece suas necessidades básicas enquanto ser individual
e social.
Tanto é assim que a Constituição de 1988 apresenta uma redação “aberta” e declara
que os direitos e garantias nela referidos “não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte” (art. 5º, § 2º).
Assim, novas demandas surgirão; com elas, novos direitos e, em seguida, a concepção
e o desenvolvimento de novos instrumentos para atendê-los e torná-los efetivos.
Esse aspecto dinâmico da realidade exige do profissional jurídico uma contínua
atualização e, por outro lado, um diálogo aberto com outras ciências, indispensável
para o conhecimento adequado de alguns dos mais significativos institutos jurídicos
da modernidade (p.ex.: direito à preservação do patrimônio cultural, à defesa de um
meio ambiente ecologicamente equilibrado, direitos dos portadores de deficiência
física, etc.).
A Revista De Jure, além de trazer artigos científicos destinados à necessária atualização
teórica no âmbito da Ciência Jurídica, oferece ao leitor trabalhos acadêmicos
interdisciplinares, que bem demonstram a abertura do Direito às contribuições de
outros setores do saber. Ademais, seguindo a linha das edições anteriores, publica
acórdãos relevantes das mais altas Cortes de Justiça brasileira, bem como reflexões
teórico-críticas sobre a prática jurisdicional.
E é com grande alegria, mais uma vez, que publicamos o presente volume da De
Jure, informativo jurídico-científico que se consolida, a cada nova edição, como um
expressivo canal de propagação de textos técnicos e teóricos para auxílio à atuação
dos membros do Ministério Público, como também de todos aqueles que têm a nobre
missão de lutar pela efetividade dos direitos.
JARBAS SOARES JÚNIOR
Procurador-Geral de Justiça
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SEÇÃO I – ASSUNTOS GERAIS
1. DOUTRINA INTERNACIONAL
1.1 POLITICA CRIMINAL DEL ESTADO EN COLOMBIA
HERNANDO LEÓN LONDOÑO BERRÍO
Profesor de Criminología y de Derechos Humanos - Universidad de Antioquia, MedellínColombia
Master en Ciencia Política del Instituto de Estudios Políticos de la U. de A
Doctorando en “Derechos Humanos y Desarrollo”, en la Universidad Pablo de Olavide,
Sevilla- España
Aclaraciones necesarias
Son dos los ejes que he escogido para explicar y comprender las tendencias de la
política criminal del Estado colombiano: el conflicto político armado, o en otras
palabras, la guerra; y el conflicto entre la seguridad y las libertades, esto es, entre el
eficientismo y el garantismo. Naturalmente, pueden ser muchos más los ejes a partir
de los cuales abordar el tema que nos convoca, entre ellos, la globalización, pero la
brevedad del tiempo destinado para nuestra exposición, nos obliga a privilegiar los
escogidos por su especial relevancia en el caso colombiano.
Y existe otra razón para la selección de los mismos: dan cuenta de fenómenos que
están incidiendo en las discusiones científicas y en las políticas públicas de los países
latinoamericanos. De esta forma espero que la ponencia les sirva de referencia y de
motivación para hacer un análisis de la política criminal del Estado Brasilero, en
cuyo contexto se desenvuelve su trabajo académico, investigativo, profesional y
jurisdiccional, en muchos de los casos.
Y una aclaración final: dado que la política criminal, en el caso del Estado, se expresa,
se manifiesta en los procesos de criminalización, vamos a procurar determinar las notas
características de la misma, en el proceso legislativo, en el ámbito de intervención
judicial, y en la ejecución de la pena.
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1. El contrato social o la guerra: marco sociopolítico de integibilidad de la política
criminal
1.1 El Contrato social y dogmática jurídico penal
Los discursos contractualistas, que son hegemónicos en la explicación y legitimación
del Estado Moderno, parten del presupuesto de que la soberanía radica en el Estadonación, consecuente con lo cual, éste también es el titular monopólico de los poderes
que la caracterizan: La configuración del orden y la seguridad; el recaudo de los
impuestos; la coerción y la violencia “legítimas”; la producción del derecho, y
obviamente, el monopolio del ius puniendi.
De conformidad con el paradigma teórico del Contrato Social y de la soberanía Estatal,
éste es quien representa los intereses públicos y por ello es el único con poder y con
legitimidad suficiente y exclusiva para formular y ejecutar las políticas públicas en
relación con la cuestión criminal, esto es, definir tanto los delitos y las penas -en su
calidad y cantidad-, los procesos de adjudicación, como la forma de ejecución de las
sanciones.
De otro lado, la dogmática jurídico penal, tributaria de dicho paradigma de la
política, define el sistema penal como el conjunto de normas, instituciones, agentes y
procedimientos que el Estado ha dispuesto para el control de las conductas definidas
por él mismo como delictivas o criminales; y el castigo o la pena, como la sanción
que se encuentra prescrita por la ley penal para el delito, impuesta por un funcionario
judicial imparcial e independiente, cumpliendo los cauces constitucional y legalmente
dispuestos para ello. En otras palabras: el poder legitimado para la creación del delito y
de la pena debe describirlos de manera expresa y clara en la ley –principio de legalidad,
en su versión formal y sustancial-, y que la adjudicación, esto es, la determinación de
la imputación y de la responsabilidad, sea el resultado de un proceso de construcción
de la “verdad procesal” respetuoso de los derechos y las garantías previstos por la
misma ley (presunción de inocencia, contradicción, publicidad, defensa, etc.), como
condición de su validez y legitimidad.
1.2 Soberanía en vilo y pluralidad jurídica y/o de prácticas punitivas
La representación de la soberanía, con titularidad exclusiva del Estado, ha sido
relativizada, puesta en entredicho o claramente confrontada por politólogos,
violentólogos, sociólogos e investigadores de otras disciplinas, a partir de la
constatación de que en algunos territorios de los estados nacionales la confrontación
bélica llega a tal intensidad, que cabe aseverar la fragmentación de la soberanía estatal,
su puesta en vilo, configurándose en algunos casos soberanías simultaneas, paralelas
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o superpuestas al Estado, ejercidas por poderes que no necesariamente se expresan
directamente a través de él, o que son antagónicos al mismo.
Colombia, con un conflicto político armado próximo a cumplir 5 décadas, que
se caracteriza por la presencia permanente de ejércitos rebeldes o de grupos de
paramilitares, con unidad de mando y que han logrado dominio permanente e incluso,
exclusivo, en parcelas territoriales importantes del país, es un escenario en el cual
es posible hallar plurales órdenes normativos y fácticos, con cierto grado de eficacia
y en algunos casos con consenso y apoyo social. Consecuente con ello, cabe hablar
de sistemas punitivos insurgentes, rebeldes o guerrilleros y paramilitares, que se
expresan en unos casos como paralelos, complementarios o superpuestos al sistema
punitivo Estatal –tal puede ser el caso del sistema punitivo paramilitar-, o excluyentes
del mismo –como predominantemente lo son los sistemas punitivos guerrilleros-.
Todos ellos con la particular condición que regulan un vasto universo de relaciones
sociales, comprendiendo las que existen entre quienes configuran el grupo armado,
las de éstos con los integrantes de la sociedad civil o con sus contradictores armados,
hasta los conflictos que se suscitan entre los propios miembros de la sociedad ajenos
a su grupo, para lo cual establecen leyes, códigos, jurisdicciones, procedimientos y
sanciones. Todos también, buscan legitimarse en “razones de Estado”, como que es
un “derecho natural” de la guerra, o la necesidad de salvaguardad el statu quo o la de
construir un “orden” alternativo al existente, etc.
Las territorialidades bélicas no se circunscriben a un espacio para
las operaciones militares de insurgentes o contrainsurgentes, a
una geografía de la violencia o a una geopolítica del conflicto
armado. Son algo más, pues en arcos de tiempo prolongado se
van configurando en órdenes alternativos de hecho en tanto que
reclaman para sí el monopolio de los impuestos, proveen orden
y organización en sus ámbitos territoriales, configuran ejércitos
capaces de defender fronteras y disputar nuevos espacios y
construyen algún consenso así como formas embrionarias de
representación1.
Si conforme a este enfoque teórico es posible aseverar la existencia de soberanías
simultáneas, consecuente con ello no hay tampoco dificultad para afirmar la pluralidad
de sistemas punitivos, y el estudioso de la criminología y de la política criminal, debe
comprenderlos en su análisis2. Y debe hacerlo porque el sistema punitivo es uno de
1
María Teresa Uribe. “Las soberanías en disputa: ¿conflicto de identidades o de derechos?” En: Estudios
Políticos Nº 15. Medellín: Instituto de Estudios Políticos, Universidad de Antioquia, julio-diciembre de
1999, pp. 35.
2
Cfr. Mario Aguilera P. “Justicia guerrillera y población civil, 1964-1999. En: El Caleidoscopio de las
justicias en Colombia. Tomo II, Siglo del Hombre, Bogotá, 2001, pp. 389-422; Alfredo Molano. “La jus-
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los dispositivos dispuestos por el poder político para garantizar un “orden predecible”,
el cual constituye un elemento de la soberanía y del actor investido con tales poderes
cabe afirmar su condición de soberano, como lo expresa URIBE DE HINCAPIÉ:
Estos poderes alternativos van configurándose soberanías en
tanto que proveen un orden predecible, formado por normas
explícitas e implícitas que los pobladores conocen, aceptan o le
son impuestas y que son percibidas por ello como una ley con
capacidad de sanción y de castigo, pero que regulan y dirigen
la vida en común. Se trata de una autoridad que pretende ser
absoluta, suprema y universal en el territorio y que exige lealtad
y obediencia, sirviendo como principio inteligible del universo
social y como guía para las acciones y los comportamientos de
los pobladores 3
Y aunque que la situación de Brasil difiere del caso colombiano, al no registrar la
presencia de grupos insurgentes o rebeldes, este enfoque político criminal puede tener
un valor heurístico, porque permite preguntarse si los poderes armados definidos
como “criminalidad organizada”, generalmente ligados al tráfico de drogas y/o a
otros tráficos ilegales, que ejercen amplio dominio en fabelas de algunas ciudades del
país, han puesto en vilo la soberanía estatal, la misma se halla en disputa o ha sido
desplazada en gran parte por dichos poderes. En tal caso, cabe asimismo preguntarse
por el tipo de conflictos que regulan y controlan, la relación que con ello guarda
la coerción y la violencia, el grado de articulación que han logrado con los grupos
sociales más vulnerables, si se han erigido en custodios del “orden” y la “seguridad”,
y si ello ha contribuido a su legitimación entre la población que habita los territorios
bajo su dominio.
ticia guerrillera”. En: El Caleidoscopio de la justicias en Colombia, Tomo II, Siglo del Hombre, Bogotá,
2001, pp. 331-388. William Fredy Pérez Toro. “Lícito e ilícito en territorios de conflicto armado”. En: Análida Rincón Patiño (Editora- compiladora): Espacios urbanos no con-sentidos. Legalidad e ilegalidad en la
producción de ciudad Colombia- Brasil, Medellín, Universidad Nacional de Colombia – Alcaldía de Medellín
– Área Metropolitana del Valle de Aburrá, 2005, pp. 75- 105.
3
María Teresa Uribe de Hincapié. “Las soberanías en disputa: ¿conflicto de identidades o de derechos?”,
Op.cit., pp. 37. Cfr. También, De la misma, “Las soberanías en vilo en un contexto de guerra y paz”. En:
Estudios Políticos No. 13, Instituto de Estudios Políticos, Universidad de Antioquia. Medellín, julio-diciembre 1998. pp. 11-37. De la misma, La política en escenario bélico. Complejidad y fragmentación
en Colombia. Legado del Saber No. 11, Universidad de Antioquia – Icfes – UNESCO. Medellín, 2003.
Manuel Alberto Alonso Espinal y Juan Carlos Vélez Rendón. “Guerra, soberanía y órdenes alternos”. En:
Estudios Políticos, No. 13, Medellín, Instituto de Estudios Políticos, Universidad de Antioquia, 1998, pp.
41-71. Gloria Naranjo Giraldo. “Ciudadanía y desplazamiento forzado en Colombia: una relación conflictiva
interpretada desde la teoría del reconocimiento”. En: Estudios Políticos, No. 25, Medellín, Instituto de Estudios Políticos, Universidad de Antioquia, julio-diciembre de 2004, pp. 137-160. Mauricio García Villegas.
“Estado, derecho y crisis en Colombia”. En: Estudios Políticos, No. 17, Instituto de Estudios Políticos, Universidad de Antioquia, Medellín, 2000.
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Respecto a conflictos de este orden, por las experiencias que he podido indagar en mi
país, no se trata de militarizar, de llenar de fuerza pública los territorios, criminalizar
la población en general, o más grave aún, delegar en poderes ilegales – v.gr. el
paramilitarismo en Colombia- el trabajo “sucio” para el control de los contradictores
legales del Estado, que son las políticas más hegemónicas. Soy del criterio de que
es preciso acometer programas de inclusión social y política de la población, de
reconocimiento de derechos (laborales, sociales, educativos, culturales, etc); proscribir
los estigmas que como mancha de aceite se esparcen y terminan comprendiendo a
toda la población; generar confianza en las autoridades, lo cual supone un control de
sus ilegalidades, de sus abusos y que la dimensión social del Estado también se haga
presente y de manera relevante, para pagar en parte la inmensa “deuda social” que
generalmente se tiene con estos grupos poblacionales. Esta es la mejor forma para
fracturar los vínculos que la comunidad ha construido con dichos poderes armados,
producto tanto de la coerción, el miedo, la vulnerabilidad, el pragmatismo o la
necesidad de “seguridad”, y condición sine qua non para una solución democrática y
eficaz al conflicto.
En conclusión, respecto de macroconflictos, como lo son aquellos en los que la soberanía
está fragmentada, la política criminal circunscrita a una huida hacia el derecho penal,
constituye una cortina de humo, un desplazamiento de las responsabilidades, porque
se pretende que el sistema penal, y manera especial la jurisdicción, resuelva problemas
que conciernen fundamentalmente a la política.
Y cuando afirmamos que conciernen a la política, para el caso colombiano significa
que respecto del conflicto armado con las diversas expresiones armadas insurgentes
o rebeldes, debe privilegiarse una solución negociada del conflicto, simultánea
con políticas públicas que vayan a la raíz de los factores objetivos que están en la
génesis de las expresiones rebeldes, esto es, una radicalización de la democracia, una
distribución equitativa del ingreso, una política efectiva de inclusión, ataque frontal
a la pobreza y la miseria, etc.
1.3 El derecho penal subterráneo
La observación atenta de los acontecimientos políticos de Latinoamérica en las décadas
de los 70s y 80s, permitió conocer que el sistema penal estatal positivo (el regulado
por las normas constitucionales y los códigos penal, procesal penal y carcelario y
penitenciario), era utilizado en la práctica, tanto durante los Estados de Excepción
(Estado de sitio, hoy de conmoción interior) como en épocas de “normalidad”, de
manera complementaria a otras prácticas de control social punitivo, según variables
que cambiaban de acuerdo a correlaciones de fuerzas del poder. Para ser más precisos,
en determinadas coyunturas y según fueran los actores, se utilizaba el sistema penal
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positivo, y cuando el mismo no soportaba un juicio de legitimidad o devenía inocuo
para garantizar la exclusión social de determinados actores, se utilizaban otras formas
de control social, de contenido manifiestamente punitivo.
Esto se pudo verificar respecto de activistas y dirigentes políticos, indígenas,
universitarios, sindicales, campesinos, populares y defensores de derechos humanos,
que confrontaron con sus ideas y sus luchas la legitimidad los sistemas y regímenes
políticos antidemocráticos, adalides de modelos económicos generadores de
explotación, exclusión, pobreza y miseria. La judicialización a cargo del sistema penal
positivo de estos actores políticos resultaba absolutamente ilegítima, dada la jerarquía
de las personas, el conocimiento público de su conducta cotidiana, los vínculos
sociales nacionales e internacionales tanto personales como de las organizaciones y
movimientos de los cuales hacían parte. Dada esta circunstancia, los regímenes ya
descritos, optaron por implementar políticas públicas caracterizadas por el homicidio
selectivo, la amenaza, la detención desaparición, la tortura, el desplazamiento forzado,
etc.
En otras ocasiones, por la ineficacia del sistema penal para contener el conflicto
suscitado por grupos sociales ubicados en la marginalidad del sistema productivo,
porque la pena privativa de la libertad se reputaba ineficiente para su contención o
inocuización, conjuntamente con el estatus de “desechables” se institucionalizaron
prácticas punitivas subterráneas a cargo de “escuadrones de la muerte” responsables
de la “limpieza social”, o formas de “justicia privada”, que han contado con el aval, el
apoyo y las aquiescencia del poder estatal e incluso, de grupos sociales y económicos
con poder político.
Esta realidad dio pábulo a los investigadores sociales, en especial a los dogmáticos
y criminólogos críticos, a hablar de un sistema penal subterráneo, enfoque que tuvo
como presupuesto una redefinición del sistema punitivo. ZAFFARONI, al referirse al
mismo, expresa que se encuentra presente en todos los sistemas penales, aunque
de manera diferente, lo cual permite concluir el carácter universal y estructural del
fenómeno:
Todas alas agencias ejecutivas ejercen poder punitivo al margen
de cualquier legalidad o con marcos legales muy cuestionables,
pero siempre fuera del poder jurídico. Esto proota que el
poder punitivo se comporte fomentando empresas ilícitas, lo
que es una paradoja en el ámbito del saber jurídico, pero no
lo es para las ciencias políticas ni sociales, donde es claro que
cualquier agencia con poder discrecional termina abusando del
mismo. Este abuso configura el sistema penal subterráneo que
institucionaliza la pena de muerte (ejecuciones sin proceso),
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desapariciones, torturas, secuestros, robos, botines, tráfico
de tóxicos, armas y personas, explotación del juego, de la
prostitución, etc. La magnitud y modalidades del sistema penal
subterráneo depende de las características de cada sociedad y
de cada sistema penal, de la fortaleza de las agencias judiciales,
del equilibrio de poder entre sus agencias, de los controles
efectivos entre los poderes, etc. Pero en ningún caso esto
significa que se reduzca a países latinoamericanos o periféricos
del poder mundial, sino que se reconoce su existencia en todos
los sistemas penales, aunque en medida a veces muy diferente.
Los campos de concentración, los grupos paraoficiales (Ku Flux
Kan y parapoliciales), la expulsiones fácticas de extranjeros,
las extradiciones mediante secuestros [...] etc., muestran la
universalidad y estructuralidad del fenómeno. En la medida
que el discurso legitima el poder punitivo discrecional y, por
ende, renuncia a realizar cualquier esfuerzo por limitarlo, está
ampliando el espacio para el ejercicio del poder punitivo por los
sistemas penales subterráneos4.
De conformidad con el enfoque que venimos describiendo, podemos aseverar que
el sistema punitivo estatal comprende todo ejercicio del poder con las siguientes
características: i) que el actor sea un agente estatal o alguien que actúa por anuencia o
aquiescencia de éste; b) se ejerza con pretexto o con motivo de hechos punibles (delitos
y contravenciones); c) tenga un carácter coactivo, porque el dolor que se inflige se
hace sin la anuencia o concurso de la persona afectada; d) que dicha intervención
afecte derechos fundamentales de la persona humana (la vida, la libertad, la dignidad
humana, etc.). La vigencia del sistema punitivo subterráneo en el caso colombiano
es palmaria. A guisa de ejemplo, describimos la situación de los últimos años de los
dirigentes y activistas sindicales en Colombia, según el informe de uno de los centros
de investigación que lo representan:
La mayoría de las violaciones a los derechos humanos de los
sindicalistas en Colombia se encuentran ligadas a conflictos
laborales (paros, huelgas, negociaciones colectivas y creación
de sindicatos). Aunque ellas ocurran en el contexto de la guerra
y sean cometidas, en la mayoría de los casos, por alguno de los
actores de la guerra, es necesario considerar que en Colombia,
la guerra y los actores armados funcionan como procesos o
instituciones paralelas e ilegales de regulación del conflicto
laboral colombiano.
4
Eugenio Raúl Zaffaroni, et. al.,. Derecho Penal. Parte General, Buenos Aires, Ediar, 2000, pp. 24. En el
mismo sentido, cfr. Lola Aniyar de Castro. “Los Derechos Humanos, modelo integral de la ciencia penal, y
sistema penal subterráneo”, en: Revista del Colegio de Abogados Penalistas del Valle, No. 13, Cali, 1985,
pp. 301 y ss.
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Por ello, la violencia contra los sindicalistas se inscribe como
una acción deliberada, estratégica y sistemática que obedece a
un interés específico que busca anular las acciones sindicales
de reivindicación y defensa de los derechos laborales. Estas
consideraciones evidencian que las violaciones se han realizado
en momentos marcados por el aumento de las reivindicaciones
laborales y no como razón o consecuencia del conflicto armado,
de ahí que los y las sindicalistas no aparecen como víctimas
casuales o colaterales del conflicto armado.
Entre el 1 de enero de 1991 y el 31 de diciembre de 2006,
según datos del Banco de Datos de la ENS (Escuela Nacional
Sindical) se han registrado 8.105 casos de violaciones a la
vida, integridad física y la libertad personal de trabajadores
afiliados a sindicatos en Colombia, discriminadas así: 2.245
homicidios, 3.400 amenazas, 1.292 casos de desplazamiento,
399 detenciones arbitrarias, 206 hostigamientos,192 atentados,
159 secuestros, 138 desapariciones, 37 casos de tortura y 34
allanamientos ilegales.
Lo que nos daría una cifra de 2.515 sindicalistas asesinados
desde 1986, año de fundación de la CUT. En términos
generales, el promedio anual de se asesinatos de sindicalistas
en los últimos 21 años ha sido de 120 5.
Esta violencia punitiva guarda estrecha relación con la conflictividad creciente
liderada por las organizaciones sindicales, surgida con motivo de la implementación
del modelo económico neoliberal6, y las nefastas consecuencias derivadas del mismo
5
Escuela Nacional Sindical. “La coyuntura laboral y sindical 2006- 2007 en cifras”. En: Caja Virtual de
Herramientas, No. 061, Bogotá. Véase también, Guillermo Correa. “Una historia tejida de olvidos, protestas y balas”. En: Controversia, Nº 188, Bogotá, Cinep, junio de 2007, p. 13, donde se expresa: “…la violencia antisindical en Colombia, en tiempo pasado y presente, ha sido una violencia de orden sistemático, intencionada y selectiva, que opera bajo una lógica de exterminio y neutralización de la acción sindical en un
juego encubierto de victimarios y responsabilidades y provisto de una retórica dispersa en su explicación,
como una especie de violencia disciplinante que enmascara a sus principales verdugos. En esta dirección se
hace necesario revisar el pasado para corroborar con contundencia, que pese a los innumerables conflictos
bélicos que han tenido lugar en nuestra historia nacional y a las complejas realidades sociales y políticas, el
aniquilamiento de la acción sindical es un propósito que muchas de las veces cabalga independiente de la
guerra misma, un propósito que se ha materializado en innumerables figuras de muerte”.
6
El cual es posible caracterizar, entre otras cosas, por: la liberalización de los mercados, incluyendo el
relativo al trabajo; la desregulación económica; la privatización de los bienes y servicios públicos;
el recorte del gasto social y el subsecuente incremento de los gastos para la guerra y la “defensa”; la
tutela especial al capital multinacional y transnacional, y la subordinación del Estado a las agencias
multilaterales (Banco Mundial, Fondo Monetario Internacional y Organización Mundial del Comercio). Cfr. Boaventura de Sousa Santos. La caída del Angelus Novus: Ensayos para una nueva teoría social
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para la libertad sindical, los ingresos laborales, la estabilidad del trabajo, la seguridad
social y otros derechos de la clase trabajadora.
Los indígenas son otro actor que en Colombia sufre actualmente los rigores del sistema
punitivo subterráneo, tal como se describe a continuación:
[…] durante el gobierno de Uribe Vélez la situación humanitaria
de los indígenas se ha agravado por acciones de las Fuerzas
Armadas del Estado y los paramilitares, quienes supuestamente
se encuentran en cese al fuego desde diciembre de 2002 [...]. En
su administración han sido asesinados 576 indígenas, es decir,
cerca de la tercera parte de todas las víctimas de los últimos
32 años; han sido desaparecidos otros 100, cifra que representa
el 37% de todos los desaparecidos en ese mismo lapso; 244
indígenas fueron heridos, el 30,9 % de todos los casos ocurridos
desde 1974. Y cada vez más, los responsables son miembros de
la Fuerza Pública” 7.
Pero respecto de este actor, el sistema penal conjuga todas las formas de lucha, porque
también acude a la criminalización a través de capturas masivas y/o selectivas y la judicialización amparada en delatores e informantes profesionales8. Todo lo cual es conuna nueva práctica política. Introducción y notas de César A. Rodríguez. Bogotá, Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos - ILSA- /Universidad Nacional de Colombia- Facultad de Derecho,
Ciencias Políticas y Sociales, enero de 2003, pp. 281-282. Del mismo, Crítica de la Razón Indolente. Contra el desperdicio de la experiencia. Vol I. Traducido por Joaquin Herrera Flores (Coordinador – Editor),
Fernando António de Carvalho Dantas, Manues Jeús Sabariego Gómez, Juan Antonio Senent de Frutos y
Alejandro Marcelo Médici. Bilbao. Editorial Desclée de Brouwer, S.A., 2003, pp. 234 y ss.
7
Centro de Cooperación al Indígena – Cecoin. “Pueblos Indígenas. Resistencia en medio de la violencia”·.
En: AA.VV. Deshacer el Embrujo. Alternativas a las políticas del Gobierno de Álvaro Uribe Vélez. Plataforma Colombiana de Derechos Humanos, Democracia y Desarrollo. Bogotá, noviembre de 2006, pp. 240.
Véase también, Héctor Mondragón. “Estatuto Rural hijo de la parapolítica”, Caja Virtual de Herramientas,
No. 069, Viva la Ciudadanía, Bogotá; El Tiempo, “Indígenas colombianos están en medio del fuego cruzado: 357 han sido asesinados en cuatro años”, Bogotá, diciembre 2 de 2004.
8
“Durante todo el período de Uribe, uno de los departamentos indígenas más victimizados fue el Cauca,
donde han tenido lugar 212 detenciones arbitrarias, 61 asesinatos políticos, 114 heridos, 30 amenazas individualizadas y reiteradas amenazas colectivas, especialmente contra indígenas Nasas, Kokonucos y Yanaconas. A esto debe sumarse la orden de captura contra más de 200 líderes indígenas de Caldoso, Jambaló y
Toribío, tras operativos de la insurgencia en la zona, con el argumento de ser colaboradores de la guerrilla.
Paradójicamente, la orden afectó a los líderes más caracterizados en la defensa de la autonomía indígena
frente a los actores armados [...]. Algunos de los más destacados líderes de los Consejos Regionales Indígenas de Risaralda y Caldas han sido detenidos en dos y tres oportunidades.
“Tales detenciones arbitrarias, señalamientos y heridos fueron preludio inmediato o fruto de acciones represivas oficiales simultáneas a las movilizaciones indígenas contra Uribe, realizadas en septiembre de 2004,
octubre de 2005 y mayo de 2006, ocasionados en su mayoría por la Fuerza Pública en uso del llamado
presidencia y ministerial a atacar a los terroristas infiltrados en dichas acciones pacíficas”. Centro de Cooperación al Indígena – Cecoin. “Pueblos Indígenas. Resistencia en medio de la violencia”· En: AA.VV.
Deshacer el Embrujo. Op.cit., p. 239.
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secuencia de que las comunidades y las organizaciones indígenas son actores políticos
que confrontan la legitimidad de diversas políticas públicas del programa de gobierno
del presidente Álvaro Uribe Vélez9, lo que han hecho a través de mingas, marchas,
toma de instalaciones públicas, denuncias ante organismos y ONGs internacionales
protectoras de los derechos humanos. La pluralidad de estas expresiones de resistencia y de lucha, han contado muchas veces con la participación de toda la comunidad
y con el liderazgo y/o el aval de sus autoridades, lo cual hace que por razones obvias
no sean reprochadas y mucho menos castigadas por la jurisdicción indígena, la que
constitucionalmente es la competente para conocer de dichos conflictos.
1.4 La colonización del sistema jurídico por el Derecho penal del enemigo.
El poder punitivo a lo largo de la historia, siempre ha sido proclive a institucionalizar
tratos diferenciados para quienes el mismo define como “enemigos”. Los antecedentes
más remotos cabe situarlos en el pensamiento griego10, pero es quizá en el derecho
romano, donde se desarrolla una primera concepción de “enemigo político”, al
distinguir entre éste (hostil) del enemigo personal (inimicus). Al enemigo político
(hostis), reputado el verdadero enemigo, siempre le es posible plantearle la guerra
como la negación absoluta de su condición de persona, con lo cual también se le
despojaba por completo de derechos. Así mismo, el ciudadano romano, que a través
de la traición o la conspiración amenazaba la seguridad de la república, podía ser
también declarado enemigo por el Senado (hostis judicatus)11.
Luego de esta breve referencia histórica, cabe decir con Zaffaroni que si algo le es
consustancial a todo poder punitivo, es su carácter selectivo y discriminatorio, o lo
que es lo mismo, “siempre se reprimió y controló de modo diferente a los iguales
9
Véase: Organización Nacional Indígena de Colombia “Violencia política, exclusión y etnicidad en Colombia”, Bogotá, 14 de enero de 2007, en: www.onic.org./documentos. Entre las políticas pública que aquí
se destacan, encontramos: la restricción creciente de las libertades y derechos de la población civil, con pretexto del control del orden público; el Incremento de operaciones militares en el marco del Plan Colombia;
restricciones del mecanismo de Tutela para proteger los Derechos colectivos y especialmente los derechos
sociales y económicos; el aumento de bases militares, especialmente en territorios indígenas; la creación
de nuevas estrategias de cooptación y reclutamiento (Soldados Campesinos, Soldados por un Día, Etc.) y
el reforzamiento de las estructuras de delación (Red de Informantes, Recompensas, rebaja de penas, etc.);
la criminalización de la protesta social; “paramilitarización del Estado y Estatalización del paramilitarismo
a través de la Ley de Justicia y Paz”.
10
“La consideración del delincuente como un enemigo se puede entender presente ya en la teoría del pacto
social de la sofística griega del siglo V a. C. En el mito de Prometeo, Zeus ordena “que al incapaz de participar del honor y la justicia lo eliminen como a una enfermedad de la ciudad”. Luis Gracia Martín. “Consideraciones críticas sobre el actualmente denominado “derecho penal del enemigo”. En: Revista Electrónica
de Ciencia Penal y Criminológica. 2005 Nº 07-02. http://www.criminet.ugr.es.
11
Cfr. Eugenio Raúl Zaffaroni. El enemigo en el derecho penal. Bogotá, Grupo Editorial Ibáñez, 1ª edición, 2006, pp. 32 y 33.
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y a los extraños, a los amigos y a los enemigos”12. La veracidad de este aserto lo
demuestra el mismo autor con la descripción de los sistemas punitivos imperantes
en diversos períodos históricos, que se han inspirado en diversos referentes políticojurídicos, desde la inquisición, el poder colonialista y neocolonialista, el liberalismo,
el positivismo criminológico, el Nacionalsocialismo, la Doctrina de la seguridad
nacional, la teoría de la emergencia o la excepción en las democracias constitucionales,
los nuevos autoritarismos y de más reciente fecha, en la “guerra contra el terrorismo”,
que tiene como pretexto los hechos del 11 de septiembre de 2001 en los Estados
Unidos de Norteamérica.
Sea el caso referirnos, así brevemente, a la nueva “guerra contra el terrorismo”
liderada por los Estados Unidos, la cual es paradigmática en la construcción de un
modelo punitivo en materia sustantiva y procesal para “enemigos”, con las correlativas
presiones de todo orden para que el mismo se instaure en todos los países del orbe, lo
cual en parte se ha logrado a través de las resoluciones emitidas contra el “terrorismo”
por el Consejo de Seguridad de la ONU, después del 11 de septiembre de 200113.
Las particularidades más relevantes de este modelo, es que pretende legitimar, entre
otras cosas: la guerra preventiva contra pueblos, obviando la intermediación de la
ONU; el estatus de “enemigos combatientes”, para los sospechosos de agredir la
seguridad de los Estados Unidos, despojados tanto de su condición de prisioneros de
guerra y de ciudadanos, y correlativamente, sin amparo en el Derecho Internacional
Humanitario y en la Constitución Americana; tribunales, acusadores y defensores
militares; detención preventiva ilimitada, sin mediación judicial, acompañada de una
incomunicación absoluta, sin formulación de cargos y sin oportunidad de contradecir
acusación; la tortura, “flexibilizando” la reinterpretación de normas internacionales y
los tipos penales que la definen; la posibilidad de ser capturado en cualquier lugar del
mundo, y hacer uso de secuestros institucionales sin que se conozca siquiera el país
en donde el retenido se encuentra.
Esa despersonalización de los contradictores operada en la dinámica de los conflictos
bélicos después de la guerra fría, bajo la hegemonía de los Estados Unidos, encuentra
respaldo en los nuevos desarrollos de la “ciencia jurídica”. Y tal vez sea el profesor
alemán Günther Jakobs, quien para finales del siglo anterior y comienzos del presente,
12
“El poder punitivo siempre discriminó a seres humanos y les deparó un trato punitivo que no correspondía a la condición de personas, dado que sólo los consideraba como entes peligrosos y dañinos. Se trata de
seres humanos a los que señala como enemigos de la sociedad y, por ende, se les niega el derecho a que sus
infracciones sean sancionadas dentro de los límites del derecho penal liberal, esto es, de las garantías que
establece –universal y regionalmente- el derecho internacional de los Derechos Humanos”. Eugenio Raúl
Zaffaroni, El Enemigo en el Derecho Penal. Op.cit., p. 19.
13
Cfr. Sobre dichas resoluciones, Kai Ambos. La lucha antiterrorista tras el 11 de septiembre de 2001.
Traducción de Ana María Garrrocho Salcedo, Bogotá, Universidad Externado de Colombia – Centro de
Investigación en Filosofía y Derecho, 2007, pp. 17 y ss.
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ha presentado la tesis que mayor controversia ha suscitado14, la cual normativiza el
concepto de persona humana, reservando tal condición para quienes por su conducta
y forma de vida le generan confianza de obediencia al poder político, y a contrario
sensu, califica como “enemigos”, y los despoja de los derechos y garantías universales
en las constituciones de los Estados de Derecho, a quienes por la “peligrosidad”
de su conducta, o el haberse articulado a una organización de manera permanente
o por ocupación profesional (delincuencia económica, delincuencia organizada),
supuestamente han abandonado de manera duradera y permanente el derecho,
Quien no presta una seguridad cognitiva suficiente de un
comportamiento personal, no sólo no puede esperar ser tratado
aún como persona, sino que el Estado no debe tratarlo ya como
persona, ya que de lo contrario vulneraría el derecho a la
seguridad de las personas. Por lo tanto sería completamente
erróneo demonizar aquello que aquí se ha denominado Derecho
penal del enemigo; con ello no se puede resolver el problema
de cómo tratar a los individuos que no permiten su inclusión en
una constitución ciudadana”15 (cursivas no originales).
Más que inventariar los desarrollos doctrinarios que inspirados en tales presupuestos,
avalan, con diversos matices, la tesis del autor citado, creo más oportuno referirme, así
sea brevemente, a las transformaciones político-criminales que se vienen legitimando,
en los diversos campos de expresión que integran el sistema punitivo:
En el ámbito del derecho penal sustantivo, el discurso del derecho penal del enemigo
viene avalando reformas del siguiente tenor: el regreso a la hegemonía del derecho
penal de autor,
al sancionar no los actos sino los modos de vida de las personas
o su “peligrosidad”; la erosión del principio de lesividad, al criminalizar los peligros
presuntos o abstractos (v.gr. los tipos penales de sospecha y la sanción para los actos
preparatorios); el soslayamiento de la garantía del principio de legalidad, tanto por
los tipos penales vagos y equívocos, como por la delegación de la función legislativa
penal en autoridades del poder ejecutivo, con el pretexto de las denominadas leyes
penales en blanco.
En el ámbito del derecho procesal penal, bajo el amparo del derecho penal del
enemigo, se está reinstitucionalizando el procedimiento inquisitivo, no solo por el
aniquilamiento para los “enemigos” de los derechos y sus garantías que el liberalismo
político construyó como condición de legitimación del proceso (defensa, publicidad,
14
Sobre la controversia suscitada por las tesis de este autor, véase: Cancio Melía y Gómez –Jara Díez (Coordinadores). Derecho Penal del Enemigo. El discurso penal de la exclusión. 2 volúmenes, Buenos Aires,
Edisofer S.L – Editorial IB de F, 2006.
15
Günter Jakobs y Manuel Cancio Meliá. Derecho Penal del Enemigo, Madrid, Civitas, 2003, p. 47-48.
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contradictorio, juez natural, etc.), sino también, por erigir en columnas vertebrales del
mismo instituciones de inequívoco y claro origen inquisitorial, como la negociación
del proceso y de la pena entre el Estado y el imputado o procesado, en supuestos como
la autoincriminación, la delación o el “sapeo”. Así mismo, la instrumentalización de
la detención o prisión preventiva como pena anticipada. Y en materia probatoria, el
erigir al espía, al agente provocador o al el informante profesional, como columnas
vertebrales de la prueba incriminativa; igualmente, abre paso a la legitimación de la
tortura, y la flexibilización de los criterios sobre admisibilidad de la prueba ilegal.
Y en el ámbito de la pena, la misma termina legitimándose en criterios de prevención
especial negativa (inocuización, exclusión) o de prevención general positiva, ambos
lesivos de la dignidad humana16. Correlativo a ello se relegitima la pena de muerte y
las cárceles de máxima seguridad.
De las observaciones de contenido crítico que cabe formularle a esa nueva
relegitimación del sistema punitivo, vamos a hacer eco de las que consideramos más
relevantes:
La primera, que no obstante reclamarse como excepcional, circunscrita a ámbitos
conflictivos muy concretos, termina contagiando toda la legislación, por serle
consustancial la proclividad a colonizar todos los espacios del sistema penal.
La segunda, de la mano de Muñoz Conde, cabe afirmar que no es lo mismo Estado con
Derecho que Estado de derecho, dado que este último tiene un compromiso real, con
la vigencia de los derechos humanos, sin discriminación alguna (igualdad), que es su
elemento sine que non de existencia.
El Estado de derecho, ‘por definición no admite que se pueda
distinguir entre “ciudadanos” y “enemigos”, como sujetos con
distintos niveles de respeto y protección jurídicas. Los derechos
y garantías fundamentales propia del Estado de derecho, sobre
todo las de carácter penal material (principios de legalidad,
intervención mínima y culpabilidad) y procesal penal (derecho
16
Para una crítica de la prevención especial negativa, véase Alessandro Baratta. “Viejas y nuevas estrategias
de legitimación del sistema penal”, en: Poder y Control, Nº O, PPU, Barcelona, pp. 87-88; del mismo, “Funciones instrumentales y simbólicas del Derecho Penal: una discusión en la perspectiva de la criminología
crítica”. En: Pena y Estado, No. 1, Trad. de Mauricio Martínez Sánchez, Barcelona, PPU, 1991, pp. 37-55.
Y sobre la prevención general positiva, en sentido crítico, véase Alessandro Baratta. “Funciones instrumentales y simbólicas…”, Op. cit., pp. 53 y 54; Luigi Ferrajoli. “El Derecho Penal Mínimo”. En: Poder y
Control, No. 0. Barcelona, PPU, 1986, pp. 25 – 48; del mismo, Derecho y Razón: teoría del garantismo
penal. Trad. de Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino, Juan Terradillos Basoco y Rocío Cantarero Bandrés, 2ª ed. Madrid, Trotta, parágrafo 22.1, pp. 274-275; Eugenio Raúl
Zaffaroni, et. al., Derecho Penal. Parte General, Buenos Aires, Ediar, 2000, §6 III,4.
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a la presunción de inocencia, a la tutela judicial, a no declarar
contra sí mismo, etc.), son presupuestos irrenunciables de
la propia esencia del Estado de Derecho. Si se admite su
derogación, aunque sea en casos puntuales extremos y muy
graves, se tiene que admitir también el desmantelamiento del
Estado de derecho, cuyo Ordenamiento jurídico se convierte
en un ordenamiento puramente tecnocrático o funcional, sin
ninguna referencia a un sistema de valores, o, lo que es peor,
referido a cualquier sistema, aunque sea injusto, cuyos valedores
tengan el poder o la fuerza suficiente para imponerlo (…). El
Derecho es entonces simplemente lo que en cada momento
conviene al Estado, que es, al mismo tiempo, lo que perjudica y
hace el mayor daño posible a sus enemigos’17
Finalmente, prevalencia de la “seguridad” como valor fundamental.
El ceder en derechos y garantías, con el pretexto eficientista
de seguridad contra el “enemigo”, es una bola de nieve, un
alud, un hueco negro, insaciable, que tiene la potencialidad de
aniquilar todo vestigio de derechos y garantías, incluso, es de
la esencia de la lógica en la cual se haya inscrito (más de lo
mismo): cuando el derecho penal del enemigo, sea realidad
habitual y corriente, y sigan “terrorismos”, incluso del Estado
para contener dichas acciones: regresará la tortura, campos
de concentración, detención policial, tribunales militares de
excepción, la presunción de culpabilidad?18
1.5 Derecho penal del amigo: tratamiento institucional al paramilitarismo
El paramilitarismo es un proyecto que se autoproclama como contrainsurgente, con
vigencia en Colombia durante muchos años, responsable de millones de desplazados
forzados internos19, el exilio de miles, de masacres, genocidios, etnocidios, secuestros,
17
Francisco Muñoz Conde. “El nuevo Derecho penal autoritario”. En: Nuevo Foro Penal, No. 66, Medellín, Universidad Eafit, tercera época, año I, septiembre-diciembre de 2003, p. 29. Del mismo, Edmundo
Mezguer y el Derecho penal de su tiempo. Estudios sobre el Derecho penal en el nacionalsocialismo, 3ª
edición, Valencia, Tirant lo Blanch, 2003.
18
Francisco Muñoz Conde. “El nuevo Derecho penal autoritario”, Op. cit., p. 33.
19
Según el Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Refugiados- ACNUR-, 3 de los 13 millones
de desarraigados internos a los que atendió el año pasado en todo el mundo son colombianos. Esta cifra,
que equivale al 23 por ciento del total, “elevó al país al indeseable primer lugar en número de desplazados
atendidos por esa agencia de la ONU”. Lo peor es que Colombia también está cerca de los primeros lugares
en este campo en materia de refugiados: Si se suman los refugiados colombianos en Ecuador (250.000), Venezuela (20.000), Costa Rica (20.000) y Panamá (12.500), pasan de 300 mil. El Tiempo, “Colombia tiene
tres millones de desplazados, un millón más que hace un año, dice ACNUR”, junio 19 de 2007.
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desapareciones, asesinatos selectivos, violencias sexuales, torturas20, etc.
Los investigadores nacionales discuten el grado de compromiso del Estado
Colombiano en el surgimiento, expansión y consolidación del paramilitarismo,
asunto que no vamos a profundizar aquí21. Lo cierto es que la Corte Interamericana
de Derechos Humanos, en plurales ocasiones, con motivo de diversas masacres que
han contado con la participación de los paramilitares, ha fallado condenando al Estado
Colombiano, aduciendo que tal fenómeno llegó a ser una política de Estado, fuera de
que agentes del mismo participaron en dichos hechos. A manera de ilustración, en el
caso de “La Rochela”, en la que se produjo una masacre de funcionarios judiciales que
investigaban la desaparición y el asesinato de personas tanto por paramilitares como
miembros de la fuerza pública, la Corte expresó:
70. …Colombia sostuvo que “no puede ser más objeto de
reproche jurídico alguno por [el] hecho” de haber creado “una
situación de riesgo especial (pero tolerado jurídicamente)”
al haber expedido el Decreto 3398 de 1965 y la Ley 48 de
1968, normas a través de las cuales se crearon los grupos de
autodefensa, ya que ha venido adoptando las “medidas […]
conducentes a mitigar las nefastas consecuencias de su actuar
especialmente riesgoso”.
20
Cfr. Hollman Morris. “En las entrañas de una verdad inconclusa. El regreso de los muertos Dolorosa
crónica sobre macabros hallazgos en las fosas comunes que los paramilitares dejaron a su paso por el Putumayo”, El Espectador, 13 mayo de 2007, crónica en la cual se recoge la versión del paramilitar Francisco
Enrique Villalba, quien se refiere al proceso al cual eran sometidos, para el aprendizaje del descuartizamiento de personas: “Advirtió que sabía mucho del tema porque había sido entrenado para descuartizar
-con campesinos vivos que le llevaban para practicar- y porque ingresó a la organización paramilitar a los
16 años. “No es bueno dedicarse a picar gente por mucho tiempo. Uno empieza a secarse, a ponerse flaco,
porque todas las personas tienen un calor y al rajarles la barriga eso sale y uno se lo traga”, afirmó. “Me
llamo Róbinson y llegué al Putumayo reclutado en Buenaventura. Me prometieron sueldo de $700.000 y
me dijeron que no tenía que matar sino cuidar laboratorios, pero todo fue engaño. Lo descubrí rápidamente
(…). Un día los comandantes llegaron al pueblo con varios civiles amarrados y, de repente, uno de ellos
dio una orden perentoria: Los nuevos salgan de la fila y fórmense. Y delante de ellos, el comandante alias
Maluco agarró del cabello a uno de los civiles y delante de todos le clavó el cuchillo en la garganta. Luego
dijo sonriente: ‘Esto se hace para que no puedan gritar’. Y luego explicó sin inmutarse que había que tener
cuidado con no cortar la yugular, porque la idea era que sufrieran (…). Algunos paracos alcanzaron a desmayarse, pero durante los cuatro años que estuve con los paramilitares, descuarticé a nueve personas”. Una
de ellas fue a su propio “lanza”, es decir, a su mejor amigo. El muchacho contó que tuvo que hacerlo porque
quiso desertar del grupo. Entonces lo obligaron a descuartizarlo vivo. El espontáneo narrador hizo silencio,
clavó su mirada en el piso, y confesó con amargura: “Me dieron ganas de vomitar, pero tuve que sacarle los
órganos, porque si no, me mataban” (…)“Yo lo que quiero es estudiar criminalística y ciencias forenses”.
21
Sobre esta discusión, véase: Edwin Cruz Rodríguez. “Los estudios sorbe el paramilitarismo en Colombia”. En: Análisis Político, Nº 60, Instituto de Estudios Políticos y Relaciones Internacionales – Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 2007, pp. 117-134; Mauricio Romero (Editor). Parapolítica. La ruta
de la expansión paramilitar y los acuerdos políticos. Bogotá, Corporación Arco Iris, 2007.
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71.
Por su parte, la Comisión considera que la masacre
“no se produjo en el vacío” y ocurrió “como consecuencia
de una serie de acciones y omisiones que tuvieron lugar
desde días antes, y en un contexto social y normativo
determinado”. Además, la Comisión indicó que la creación
de los grupos paramilitares fue propiciada por el Estado
como una herramienta de lucha contrainsurgente al amparo
de normas legales que se encontraban vigentes al momento
de perpetrarse la masacre de La Rochela. Asimismo, señaló
que “en los casos en los cuales paramilitares y miembros del
Ejército llevan a cabo operaciones conjuntas o cuando los
paramilitares actúan gracias a la aquiescencia [o] colaboración
de la Fuerza Pública, debe considerarse que los miembros de
los grupos paramilitares actúan como agentes estatales”. Según
la Comisión, en el presente caso “existen elementos de prueba
que demuestran la comisión de actos de agentes del Estado con
grupos paramilitares en la ejecución de la masacre perpetrada
en La Rochela” y, por lo tanto, “son imputables al Estado tanto
las violaciones a la Convención Americana cometidas como
resultado de los actos y omisiones de sus propios agentes como
aquellas cometidas por los miembros del grupo de autodefensa
que operaba en la región con su apoyo y que, a tales efectos,
éstos deben ser considerados como agentes del Estado”.
74. En el presente caso, el Estado confesó que el 18 de enero de
1989, por lo menos cuarenta miembros del grupo paramilitar
“Los Masetos”, contando con la cooperación y aquiescencia
de agentes estatales, inicialmente retuvieron a las 15 víctimas
de este caso, quienes conformaban una Comisión Judicial
(Unidad Móvil de Investigación) compuesta por dos jueces
de Instrucción Criminal, dos secretarios de juzgado y once
miembros del Cuerpo Técnico de la Policía Judicial (CTPJ) y
posteriormente perpetró una masacre en su contra, en la cual
fueron ejecutados doce de ellos y sobrevivieron tres.
Ese factor no se produjo como un caso aislado en Colombia.
Por el contrario, se enmarca dentro de un contexto de violencia
contra funcionarios judiciales. ..”22.
Le asiste razón a esta corporación, en el sentido de que durante la década del 60,
en el contexto de la guerra fría, e inspirada en la doctrina de la seguridad nacional,
se expidieron normas que favorecían la configuración de ejércitos privados con
22
Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso de la Masacre de La Rochela Vs. Colombia, Sentencia de 11 de Mayo de 2007. En: http://www.corteidh.or.cr/pais.cfm?id_Pais=9
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función contrainsurgente23. Más tarde, mediante el Decreto 356 de 1994, se autorizó
a los grupos especialmente afectados por el accionar de la guerrilla, a conformar
cooperativas privadas de vigilancia (Convivir), con derecho a portar armas de uso
privativo de la fuerza pública, a ejercer funciones de control social complementario
al Estado, etc., con el pretexto fue que de el Estado no podía estar presente en todo el
territorio y que las víctimas tenían derecho de defenderse. El tiempo le daría razón a
quienes afirmaron que esta era una forma de legalizar el paramilitarismo24.
En este mismo orden de ideas, versiones libres de los jefes paramilitares, como la
de “Mancuso”, que se han venido realizando como parte de sus compromisos con la
“Verdad, la Justicia y la Reparación”, derivados de la “Ley de Justicia y Paz”, afirman
que el paramilitarismo es política de Estado, esto es, que altos miembros del ejército
y de policía fueron sus gestores e impulsadores, parte importante de la clase política
fueron sus aliados y los ganaderos, empresarios y multinacionales, sus financiadores.
Entre la dirigencia política menciona a los hermanos Juan Manuel y Francisco Santos,
actuales ministro de defensa y vicepresidente de la república, respectivamente25.
23
Se trata del Decreto Legislativo 3398 de 1965, el cual fue adoptado como legislación permanente mediante la Ley 48 de 1968, emitidos en el marco de la lucha contra grupos guerrilleros, por cuya actividad
el Estado declaró “turbado el orden público y en estado de sitio el territorio nacional”. Los artículos 25 y
33 del Decreto Legislativo 3398 dieron fundamento legal para la creación de “grupos de autodefensa”.
El referido artículo 25 estipuló que “[t]odos los colombianos, hombres y mujeres, no comprendidos en el
llamamiento al servicio militar obligatorio, pod[í]an ser utilizados por el Gobierno en actividades y trabajos con los cuales contribuy[eran] al restablecimiento de la normalidad”. Asimismo, en el parágrafo 3 del
mencionado artículo 33 se dispuso que “[e]l Ministerio de Defensa Nacional, por conducto de los comandos
autorizados, podrá amparar, cuando lo estime conveniente, como de propiedad particular, armas que estén
consideradas como de uso privativo de las Fuerzas Armadas”. Véase, Corte interamericana, Caso 19 Comerciantes, supra nota 33, párr. 84.a).
24
“Las Convivir estaban plenamente articuladas al proyecto de las autodefensas desde su fundación. Es
decir, no sólo fueron la cantera de la cual los paramilitares reclutaron una parte de sus integrantes para su
gran expansión, una vez les quitaron el respaldo legal, sino que, en el tiempo en el que contaron con la
anuencia de las instituciones del Estado, también hacía parte de la estrategia paramilitar. Mancuso le cuenta
a Glenda Martínez que, por los días en que estaba tramitando la posibilidad de un marco legal para desarrollar las cooperativas de seguridad, se encontró con Vicente Castaño en la finca Las Tangas, y en esa tarde
“se crearon las bases de lo que serían las Autodefensas Campesinas de Córdoba y Uraba”. La reflexión de
Castaño era que la guerra había entrado en una nueva etapa y que esto exigía una coordinación y concentración de fuerzas, hombres, armas y municiones. Los Castaño se encargarían de la parte ilegal y Mancuso,
por un tiempo, se dedicaría a utilizar las cooperativas amparadas legalmente. Es decir, las denuncias de
las organizaciones de derechos humanos estaban bien encaminadas”. León Valencia y Observatorio del
Conflicto Armado. “Los caminos de la alianza entre los paramilitares y los políticos”, en: Mauricio Romero
(Editor). Parapolítica. La ruta de la expansión paramilitar y los acuerdos políticos. Bogotá, Corporación
Nuevo Arco Iris, 2007.
25
Informe de la campaña “Memorias Contra el Silencio y la Impunidad. Nunca Más Crímenes de Estado”, del 18 de mayo de 2007.
29
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Lo cierto es que a esta estrategia o proyecto de “guerra sucia”, se articularon en
calidad de instigadores, organizadores, financiadores o promotores, diversos actores
económicos y sociales legales e ilegales del país; entre los primeros, los terratenientes,
los comerciantes, algunos empresarios de la minería, de la agroindustria, y algunas
multinacionales (dedicadas a la explotación del petróleo, la minería y el banano)26;
y entre los ilegales, sobresale el narcotráfico, en función de la seguridad para sus
cultivos ilegales, y de las actividades económicas antes descritas, en las cuales en los
últimos años han invertido sus ganancias.
Para la consolidación de su poder militar, político y social a nivel tanto local, regional
como nacional, el paramilitarismo configuró alianzas con la clase política, con el fin
de garantizarse inmunidad, representación en los cuerpos colegiados, rentas de los
recursos públicos, reconocimiento social y facilitar el proceso de negociación para
lograr impunidad de sus actos y legalización del botín adquirido de la guerra. Pero las
elites políticas regionales, para resistir los cambios democráticos promovidos a nivel
nacional, los procesos de negociación del Estado con la insurgencia, e impedir su
desplazamiento electoral por movimientos y partidos cuyos programas y propuestas
erosionaban sus privilegios, encontraron ventajas estratégicas en aliarse con este
actor armado ilegal27. Este fenómeno, que se ha venido a descubrir recientemente, es
conocido con el nombre de la “Parapolítica”.
Y para dar cuenta de la magnitud del mismo, algunos de los jefes paramilitares, con
motivo del proceso de desmovilización, fueron invitados por los congresistas amigos
a hacerse presentes en el Congreso de la República, donde luego su intervención, fue
objeto de vítores y ovaciones. Luego le expresaron a los medios de comunicación
que el 35% de los Congresistas eran simpatizantes de su movimiento o llevaban su
representación28. Tal afirmación, que fue recibida inicialmente con cierta incredulidad,
26
La multinacional Chiquita Brands, que tuvo grandes inversiones en la explotación y exportación del
banano, ha sido condenada por la justicia de Estados Unidos a pagar una multa de 25 millones de dólares
por haber aceptado la entrega entre 1997 y el 2004, de fondos a los paramilitares, por valor de 1,7 millones
de dólares, y la importación y entrega de 3.000 fusiles AK 47 para este mismo grupo. Vésase: El Tiempo,
Septiembre 18 de 2007, “Multa contra Chiquita Brands por pagos a ‘paras’ es cuatro veces menor a la de
McLaren en Fórmula 1”; El Tiempo, Septiembre 12 de 2007, “Justicia de E. U. no presentará cargos contra
ex directivos Chiquita Brands por pagos a Autodefensas”.
27
Véase, León Valencia. Prólogo, en: Mauricio Romero (Editor). Parapolítica. La ruta de la expansión
paramilitar y los acuerdos políticos. Bogotá, Corporación Nuevo Arco Iris, 2007.
28
“Las elecciones del 2002 cambian la historia política del país El punto de llegada de la investigación
arrojó esta realidad: en las elecciones del 2006, 33 senadores y 50 representantes a la Cámara resultaron
elegidos en zonas de control paramilitar. Estos senadores obtuvieron 1.845.773 votos que representan una
tercera parte de la votación para Congreso y un punto muy alto de la votación para presidente. La gran
mayoría de estos senadores habían sido elegidos en los nuevos grupos que aparecieron en el 2002. Hay allí
una continuidad de lo ocurrido entre las anteriores y estas elecciones”. León Valencia y Observatorio del
Conflicto Armado. “Los caminos de la alianza entre los paramilitares y los políticos”, en: Mauricio Romero
(Editor). Parapolítica…, Op. cit.,,
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con las investigaciones que adelantaran tanto la Sala Penal de la Corte Suprema de
Justicia como la Fiscalía, fue corroborada, al ser judicializados más de 40 congresistas,
y existir además un grupo igualmente de investigados, respecto de los cuales están
pendientes de decisiones judiciales. Estas investigaciones permitieron descubrir que
en muchos territorios, bajo amenaza o mediante el asesinato de candidatos, aseguraron
que los de su movimiento no tuviesen contradictores al configurarse como candidaturas
únicas (municipios y gobernaciones).
Las investigaciones judiciales de la parapolítica, también han permitido aproximarse
al grado de penetración del paramilitarismo ha hecho de instituciones importantes del
Estado, como es el caso de su máximo organismo de inteligencia, el DAS29, y de la
misma Fiscalía General de la Nación, durante la dirección del Exfiscal Luis Camilo
Osorio, a quien le atribuyen haber precluido y archivado importantes investigaciones
contra paramilitares, parapolíticos y la misma fuerza pública.
Inmediatamente que el presidente Alvaro Uribe Vélez toma posesión para ejercer su
primer período (2002-2006), propone una negociación con el paramilitarismo, lo cual
es recibido con beneplácito por los comandantes del grupo ilegal. Se dispone entonces
la concentración en un territorio bajo el dominio paramilitar (Santafe de Ralito) de sus
máximos líderes para adelantar las negociaciones, producto de las cuales el gobierno
propone a cambio de la desmovilización, una ley de Perdón y Olvido, en el que
les da el estatus de delincuentes políticos (sediciosos), y por lo tanto, beneficiarios
de indultos y amnistías, y además, no extraditables. En este mismo contexto, los
paramilitares reclaman ser reconocidos como “héroes”, por cuanto han sido hijos del
Estado, fuerza contrainsurgente, y han garantizado la seguridad a importantes grupos
sociales, económicos y políticos del país.
No obstante los serios reparos a la propuesta gubernamental, por parte de organizaciones
del orden nacional e internacional defensoras de los derechos humanos (v.gr. Amnistía
Internacional, Human Rights), de organismos internacionales (ONU, OEA), de
organizaciones de víctimas, de los partidos de oposición, y hasta del Departamento
de Estado Americano, se aprueba la Ley de Justicia y Paz, producto de las mayorías
parlamentarias que hacen parte del bloque del gobierno, entre los cuales se encontraban
un gran número de congresistas que hoy están siendo investigados por parapolítica.
Y aunque la ley consagra penas mínimas para los crímenes de lesa humanidad y
crímenes de guerra de los cuales son responsables sus beneficiarios, ello se hizo de
manera explícita para garantizar que la Corte Penal Internacional no adquiera luego
competencia para juzgar esas mismas conductas.
29
Departamento Administrativo de Seguridad. El Exdirector del Das (Jorge Noguera), actualmente es
acusado de suministrar listas de dirigentes sindicales, profesores y líderes que deberían ser asesinados por
los paramilitares y de la organización del fraude electoral para las elecciones del 2002 al Congreso y a la
Presidencia.
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La ley, entre otros asuntos, prescribe: Estatus de delincuentes políticos a los
paramilitares que se sometieran al proceso, y a los reacios a ello, serán tratados como
“narcoterroristas”; una pena de prisión de 5 a 8 años; centros especiales de reclusión;
no pierden derechos políticos, por lo tanto, podrán ser elegidos; no extradición; el
narcotráfico, se reputa delito conexo con la sedición; para obtener dichos beneficios,
no hay obligación de confesar, ni de indemnizar a las víctimas; compromiso de no
volver a delinquir.
La Corte Constitucional, en el control de constitucionalidad de la ley30, declaró la
inexequibles, por vicios de forma, las normas que asimilaban el paramilitarismo al
delito político, y concluyó además que para acceder a los beneficios de la ley, era
necesario que los procesados confesaran toda la verdad e indemnizaran cabalmente a
las víctimas. La Corte Suprema de Justicia, en un fallo ulterior, negó al paramilitarismo
la condición de delito político31.
El gobierno, en cabeza del presidente, luego de acusar a la Corte Suprema de Justicia
de tener un “sesgo ideológico” al no reconocerle a los paramilitares la condición de
delincuentes políticos, y de entorpecer indebidamente con ello el proceso de paz32,
procede a expedir algunos decretos, en los cuales todos los beneficios consagrados
en la ley, por el principio de favorabilidad, comprende a los paramilitares que se
encontraban vinculados al proceso al momento de la misma expedirse33.
30
Corte Constitucional, sentencia C-370 de 2006, magistrados ponentes: Manuel José Cepeda Espinosa,
Jaime Córdoba Treviño, Rodrigo Escobar Gil, Marco Gerardo Monroy Cabra, Álvaro Tafur Galvis, Clara
Inés Vargas Hernández.
31
Corte Suprema de Justicia. Sala de Casación Penal, magistrados ponentes: Dres. Yesis Ramírez Bastidas
y Julio Enrique Socha Salamanca, acta N° 117, Bogotá, D. C., Julio once (11) de dos mil siete (2007).
Entre los considerandos relevantes, se dice que es “una norma contraria a la Constitución Política, que
desconoce la jurisprudencia y contradice la totalidad de doctrina nacional y extranjera (…). Aceptar que
en lugar de concierto para delinquir el delito ejecutado por los paramilitares constituye sedición, no sólo
equivale a suponer que los mismos actuaron con fines altruistas sino burlar el derecho de las víctimas y de
la sociedad a que se haga justicia”. Los magistrados, además, criticaron al Gobierno y al Congreso por lo
que llamaron una “política criminal inexistente”: Hay “razones superiores para cuestionar la legitimidad de
las decisiones legislativas que soterradamente pretenden introducir beneficios a determinada clase de delincuentes (...) Estas no sólo resultan político-criminalmente precarias sino también jurídicamente incorrectas
y moralmente injustas”.
32
El Tiempo, Julio 27 de 2007, “Como ‘censura grave y peligrosa’ califica Corte Suprema declaraciones
del presidente Álvaro Uribe”; Ramiro Bejarano Guzmán, Abusos de un presidente en apuros, en: El Espectador, 28 de julio de 2007.
33
Cfr. Iris Marín Ortiz. “Grupos paramilitares y delito político en Colombia”. En: Semanario Virtual Caja
de Herramientas, Nº 79.
32
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Para cerrar el tema es preciso señalar que muchos narcotraficantes, pedidos en
extradición por los Estados Unidos, compraron franquicias a los paramilitares, y se
presentan en las negociaciones como jefes de dicha organización. Incluso, según los
mismos extraditables, muchos de ellos se refugian en Santa Fe de Ralito, para evitar su
captura y extradición, lo cual comporta obviamente, una contraprestación. Adicional
a ello, el Comisionado de Paz expresó en una reunión con los paramilitares, que las
posibilidades del triunfo de la negociación con el Estado, estaba condicionada a la
reelección presidencial, con lo cual se les invitaba a trabajar en tal sentido.
Con lo expuesto podemos concluir que el paramilitarismo le hizo el trabajo sucio a
los poderes económicos y políticos en Colombia. El poder emergente (económico
y político) que lograron, quisieron verlo traducir en un trato como “héroes” en lo
jurídico, en lo político y en lo social; consecuente con ello, también, inmunidad
para sus rapiñas, su botín de la guerra - v.gr. millones de hectáreas producto de los
desplazamientos forzosos- y trato privilegiado de la ley. Y como tienen capacidad
de denunciar complicidades, someten a chantaje a los poderes institucionales del
Estado. Consecuente, una ley, producto de la negociación. La guerra define entonces
los contenidos del derecho: el trato privilegiado, de “amigo” para los aliados y el trato
de “enemigos”, para los contradictores, incluyendo los que ejercen sus luchas en el
terreno de la legalidad.
2. Orden y Seguridad Vs Libertades públicas y derechos fundamentales y
garantías
Toda política criminal está atravesada por la tensión entre la salvaguarda del orden,
del statu quo, y la protección de las libertades públicas, de los derechos fundamentales
y de sus técnicas jurídicas de salvaguarda (garantías). La forma como se resuelva
dicho conflicto, es testimonio del grado de democracia que ha alcanzado un régimen
político.
Para aproximarnos a la solución de dicho conflicto en el paradigma del Estado
constitucional de derecho, es preciso referirnos a los elementos que lo caracterizan:
a) El titular de los derechos es la persona humana; b) la legitimación del Estado y
del Derecho es heteropoyética, esto es, en un enfoque teleológico, su legitimación
deviene por salvaguarda real y eficaz de las libertades y de todos los derechos de todos
los seres humanos34; c) la legitimación de la jurisdicción y de los operadores jurídicos,
34
“El Estado se sólo una institución derivada de los derechos de los ciudadanos, de ellos recibe su legitimación, y ellos son, al mismo tiempo, los límites de su poder. El contrato social no permite ningún
poder autónomo, ni usurpador (….) el derecho penal es ciertamente un medio violento de represión, pero
también un instrumento de garantía de la libertad ciudadana, y como tal es indispensable para asegurar la
convivencia; lo que no quiere decir que sea autónomo, sino un eslabón de una cadena; la ultima ratio para
la solución de los problemas sociales, y no una panacea de los mismos”. Winfried Hassemer. Persona,
33
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también la define su compromiso auténtico con la eficacia de los derechos humanos y
sus técnicas de garantía35.
Frente a este escenario, cabe prohijar una propuesta magistralmente expuesta por el
desaparecido criminólogo Alessandro Baratta36, quien afirma que es perentorio, y ya,
despojar a la seguridad del carácter sustantivo con el cual las razones de Estado la
han querido investir; además, develar que cuando se le presenta acompañada con
nombres sugestivos y rimbombantes como “democrática”, “nacional”, “ciudadana”,
etc., las más de las veces lo que se pretende es mimetizar adefesios e iniquidades, si
nos atenemos a las infamias que han posibilitado, y las justificaciones y legitimaciones
que han impartido a prácticas nugatorias de los derechos más caros y sentidos por la
humanidad.
En conclusión, no hay alternativa diversa en el terreno de la cultura política y jurídica
democrática que insistir que cuando se habla de seguridad, es perentorio entender que
no se trata de crear indemnidades y salvaguardas para entelequias, sistemas, órdenes
normativos, instituciones, incluso así lleven, hasta de forma merecida, nombres
como “Estado”, “sistema democrático”, “instituciones legítimamente constituidas”,
etc. Por seguridad, habrá sólo de entenderse “la seguridad de los derechos” de todas
las personas, sin exclusión alguna, incluyendo obviamente, los “no honorables”, los
“molestos”, los “desviados”.
La política criminal del Estado colombiano, contrasta con esta indicación, porque con
el pretexto de la seguridad de las instituciones, entre ellas, el Estado, ha terminado
sacrificando la seguridad de los derechos de las personas y la indemnidad de las
garantías para su tutela. Y ello acontece en todos los ámbitos que integran el sistema
penal, como procedemos a documentarlo.
Mundo y responsabilidad. Bases para una teoría de la imputación en derecho penal. Santa Fe de Bogotá,
Temis, 1999, pp. 18-19.
35
“En esta sujeción del juez a la constitución y, en consecuencia, en su papel de garante de los derechos
fundamentales constitucionalmente establecidos, está el principal fundamento actual de la legitimidad de
la jurisdicción y de la independencia del poder judicial de los demás poderes…(….) no es otra cosa que
el valor de la igualdad como igualdad en drotis (…) esta legitimación no tiene nada que ver con la de la
democracia política ligada a la representación (…) su fundamento es únicamente la intangibilidad de los
derechos fundamentales. Y, sin embargo, es una legitimación democrática de los jueces, derivada de su
función de garantía de los derechos fundamentales, sobre la que se basa la que he llamado “democracia sustancial…”. Luigi Ferrajoli. Derechos y garantías. La ley del más débil. Madrid, Trotta, 1999, pp. 27-28
36
Alessandro Baratta. “Seguridad”. En: Alessandro Baratta. Criminología y sistema penal (Compilación
in memoriam), Colección Memoria Criminológica, No. 1, Montevideo – Buenos Aires, Editorial IB de F,
2004, pp. 199-220.
34
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2.1 En el proceso de criminalización primaria o creación de la ley
2.1.1 A través del referendo, mecanismo de democracia directa, el gobierno de Alvaro
Uribe Vélez quiso reformar la constitución para criminalizar la tenencia o porte de
droga para el consumo personal (Dosis personal)37. Ante el fracaso rotundo de esta
iniciativa, el mismo gobierno, promueve la reforma a través del Congreso, presentando
una iniciativa de Acto Legislativo en los mismos términos38. Se vio obligado a
acudir a tales procedimientos, por cuanto la Corte Constitucional colombiana había
declarado la inexequibilidad de las normas que criminalizaban dicha conducta, por
cuanto comportaba, entre otras cosas, una violación al derecho constitucional del libre
desarrollo de la personalidad39.
2.1.2 Con el pretexto de la eficacia en la lucha contra el “terrorismo” se produjo
una reforma constitucional para otorgarle competencia a la fuerza pública (ejército y
policía), para practicar allanamientos (registros domiciliarios), o la interceptación de
comunicaciones (teléfono, correo, etc.), sin previa orden judicial.
2.1.3 La política de “seguridad democrática” del actual gobierno, tiene como eje
la creación institucional de una “red de informantes” entre la población civil - que
asciende al millón de personas-, y retribuciones económicas y beneficios judiciales
para quienes se conviertan en “colaboradores de la justicia”, entre los cuales tienen un
papel protagónico los “reinsertados” y/o “desmovilizados” de los grupos paramilitares
y de la insurgencia40.
37
Ley 796 de 2003, art. 16.
38 Entre los argumentos que se aducen, es que ello es necesario para ponerle límites al narcotráfico; es un
“clamor de las madres de familia” la aprobación de la reforma, ante “la angustia que está viviendo la familia
colombiana, viendo como sus niños y adolescentes se van por el camino de la droga”; la mayoría de los
crímenes se cometen en Colombia bajo la influencia de estupefacientes. Cfr. El Tiempo, Mayo 3 de 2007,
“Por aprobación de la penalización de la dosis personal de drogas, uribistas se dividieron”.
39
Sentencia C-221 de 1994, magistrado ponente, Dr. Carlos Gaviria Díaz, sentencia que declaró la inexequibilidad del literal j) del artículo 2o. y artículo 51 de la ley 30 de 1986. El argumento es el siguiente:
“..los asuntos que sólo a la persona atañen, sólo por ella deben ser decididos. Decidir por ella es arrebatarle
brutalmente su condición ética, reducirla a la condición de objeto, cosificarla, convertirla en medio para los fines
que por fuera de ella se eligen (…). Reconocer y garantizar el libre desarrollo de la personalidad, pero fijándole
como límites el capricho del legislador, es un truco ilusorio para negar lo que se afirma. Equivale a esto: “Usted
es libre para elegir, pero sólo para elegir lo bueno y qué es lo bueno, se lo dice el Estado”. En la providencia, se
aducen otras razones: el derecho no puede inmiscuirse en asunto de la moral; la protección de la salud individual no es deber jurídico; el castigo del drogadicto es contraproducente; el individuo no es instrumento
de la comunidad; no puede haber discriminación a favor de otras sustancias con efectos similares; ante
la ineficacia e inconveniencia del castigo es mejor la educación. Consúltese la sentencia en: http://www.
constitucional.gov.co/corte
40
El régimen de desmovilización individual esta contenido en la Ley 418 de 1997, la cual fue reglamentada por el Decreto 128 de 2003, cuyo artículo 9º establece que “el desmovilizado que voluntariamente
35
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En un escenario de conflicto armado, la instrumentalización de estos dispositivos,
genera inseguridad para todos, incluyendo los funcionarios de organismos estatales,
que como las Procuradurías Locales, tienen que velar por los derechos ciudadanos.
Con motivo de una marcha en la ciudad de Medellín, organizada por el sindicato de
educadores, con la participación de las universidades públicas, en la que se denunciaba
la política pública del gobierno nacional de reducir de manera ostensible los recursos
para la educación - siguiendo directrices del FMI -, para dedicarlos a la guerra y a
la amortización de la deuda externa, un paramilitar, supuestamente desmovilizado,
tomaba fotos a la marcha, lo cual obligó a una intervención de funcionarios de la
Procuraduría local, que lograron que dicha persona se identifira. La noticia es dada en
los siguientes términos:
Fuertes señalamientos contra la Unidad Permanente de Derechos
Humanos (UPDH) de la Personería de Medellín hizo este martes
Guillermo González, alias Memin, un reinsertado del bloque
Cacique Nutibara de las Autodefensas Unidas de Colombia,
momentos después de ser descubierto tomando fotografías
a los participantes de la marcha de protesta programada por
la Asociación de Institutores de Antioquia (Adida). A voz en
cuello y frente a transeúntes y policías, alias Memín aseveró
repetidamente que en esa Unidad “había una célula guerrillera”
y que había que acabar con “todos esos terroristas guerrilleros”
Las imputaciones del reinsertado, quien es un reconocido líder
de la Comuna 8 e integrante de la Corporación Democracia, que
aglutina a por lo menos 3.000 desmovilizados de los bloques
Cacique Nutibara y Héroes de Granada de las Auc, fueron
literalmente “gritadas” luego de ser requisado por una agente
de Policía y por un funcionario de derechos humanos de la
Personería, tras ser descubierto mientras tomaba fotografías a
los marchantes de manera furtiva”41.
desee hacer un aporte eficaz a la justicia entregando información conducente a evitar atentados terroristas,
secuestros o que suministre información que permita liberar secuestrados, encontrar caletas de armamento,
equipos de comunicación, dinero producto del narcotráfico o de cualquier otra actividad ilícita realizada
por organizaciones armadas al margen de la ley, de conformidad con las disposiciones legales vigentes o
la captura de cabecillas, recibirá del Ministerio de Defensa Nacional una bonificación económica acorde al
resultado, conforme al reglamento que expida este Ministerio”. Cfr. El Tiempo. “Delación por recompensas, 1.136 Ex ‘Paras’ y Exguerilleros han suministrado información. El ‘negocio’ de los desmovilizados”,
Bogotá, 10 abril de 2005. Aquí se recoge la valoración positiva del gobierno sobre esta política: “En la
desmovilización un elemento muy importante es ayudarnos a restablecer el imperio de la ley; es así como
ofrecemos unas bonificaciones a los desmovilizados que se entreguen con material de guerra; también hay
bonificaciones para aquellos que con su información nos ayuden a rescatar secuestrados, a localizar caletas,
etcétera”, explica el viceministro de Defensa, Andrés Peñate.
41
Véase: www.ipc.org.co. “Reinsertado sindicó a Unidad de la Personería de «célula guerrillera». Consultada el 06/13/07.
36
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2.1.4 En cuanto al diseño de modalidades punitivas, la seguridad es un recurrente
pretexto, para promover la instauración de la pena de muerte, la prisión perpetua o la
fijación de máximos de la pena privativa de la libertad que la hacen perpetua. Todo ello
con el fin de responder al clamor de la indignación pública cuando acontecen hechos
graves que tienen amplio despliegue mediático (v.gr. agresión y muerte de niños), o
para responder a reclamos de grupos sociales especialmente victimizados y con poder
político y económico (v.gr. secuestro). Es importante reparar en los argumentos: La
eficacia de la pena, que da seguridad de la no repetición del hecho; la irrecuperabilidad
del sujeto delincuente, convierte en contraproducente una intervención de contenido
“resocializador”; el delincuente no merece consideración alguna, porque quien viola
los derechos humanos, no tiene derecho a que se le respeten.
Es obvio que en todas esas iniciativas, y con mayor razón los argumentos, comportan
una transgresión a la dignidad humana, esto es, a la concepción de la persona como
fin en sí mismo, no instrumentalizable por razones de interés general, no erigible
en simple medio para fines institucionales, por muy loables que sean42. La dignidad
humana es un valor, columna vertebral del Estado Constitucional de Derecho, y por
tal motivo, es una talanquera, un límite infranqueable para cualquier poder político.
En razón de la expresa prohibición constitucional de ambas modalidades punitivas,
y el hecho de que el DIDH es parte del bloque constitucional, esto es, incorporado al
derecho interno, todas esas iniciativas no han logrado materializarse.
Pero lo anterior, no ha sido suficiente para que en Colombia, a la pena privativa de
libertad se le hayan impuesto topes máximos, que la equiparan a una pena perpetua.
En esta materia hay que recuperar a Beccaria, quien desde hace 200 años expresaba
que la eficacia disuasoria de la pena no la determina la severidad sino la certeza de su
imposición.
2.2 En el proceso de adjudicación judicial
2.2.1 Con el pretexto de la seguridad, la detención preventiva (medida cautelar de
carácter personal), se convierte en la regla en vez de tener un carácter excepcional;
42
“La protección de la persona y sus derechos básicos no es, se repite, cuestión de interés individual (o
individualista), sino también de preponderante interés social en una comunidad democrática. Es claro que
al enfatizar este interés bifronte del Derecho penal, lo que se hace es señalar el primado de los derechos
individuales sobre cualquier otra pretensión comunitaria (…) Un buen derecho penal debe hallar siempre
equilibrio –históricamente variable, pero inclinado siempre a la tutela preponderante de la persona –entre
intereses antagónicos pero esenciales concomitantes de la defensa social (…) y de la protección de la persona en su dignidad y en el ámbito de sus derechos fundamentales, también y en primer lugar contra las
intervenciones arbitrarias o irracionales del poder institucional (protección de la persona frente al poder
punitivo del Estado, que desde luego es también un interés social de primer plano”. Juan Fernández Carrasquilla. Derecho Penal Liberal de Hoy. Introducción a la dogmática axiológica jurídico penal, Ediciones
Jurídicas Gustavo Ibañez, Bogotá, 2002, pp. 256-258.
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y tan grave como esto, se le convierte en pena anticipada, con las mismas funciones
que hoy son hegemónicas, esto es, la inocuización y la prevención general positiva y
negativa.
Es recurrente que a través de informantes, sujetos que “profesionalmente” sirven
a los organismos de seguridad y a la misma fiscalía, que derivan su sustento de
señalamientos, se acuse a personas respecto de las cuales el poder tiene interés de
inocuizar (v.gr. defensores de derechos humanos, dirigentes políticos, populares,
sindicales, indígenas, estudiantiles, etc), de tener militancia en organizaciones rebeldes
o insurgentes.
De esta forma la acusación y/o la detención preventiva subsecuente, cumple
las siguientes funciones: Se estigmatiza al acusado o detenido y a las entidades u
organizaciones a las cuales éstos pertenecen; los acusados pierden la confianza de la
comunidad, que los mira con recelo, con prevención, y se deslegitiman sus luchas y
reinvidicaciones; se rompe el tejido social de la organización y de la misma comunidad
en la cual operan, por el temor de las bases a ser judicializadas; en momentos
coyunturales - v.gr. negociación colectiva, o un reclamo de una política pública-, se
pierde la fuerza, se merma eficacia por el cercenamiento de los liderazgos. Y como
todo estigma tiene la tendencia a perpetuarse, no obstante que la decisión judicial
posterior declare la inocencia del acusado, siempre queda la duda, con lo cual se hace
víctima del sistema, vulnerable a prácticas punitivas de escuadrones de la muerte, de
los paramilitares, o fuerzas institucionales encubiertas (derecho penal subterráneo).
No queda otro camino que el exilio o el desplazamiento forzado interno, con bajo
perfil. Esta tesis tiene corroboración en lo denunciado por investigadores que se han
ocupado de manera específica del tema:
Es de público conocimiento que la mayor parte de estas
detenciones son arbitrarias, pues se realizan con base en
procedimientos de justicia autoritaria intrínsecamente ajenos a
las garantías procesales de un Estado democrático, y en muchos
casos ha generado nuevas situaciones de desplazamiento
forzado, ya que muchas de las personas detenidas han recuperado
la libertad por falta de pruebas, pero son estigmatizadas
públicamente, por lo cual carecen de garantías mínimas para
regresar a sus regiones, donde son señaladas y perseguidas por
los grupos armados, especialmente por los paramilitares.43
43
Codees. “Profundización de la guerra”. En AA.VV. Reelección: El embrujo continúa, Plataforma Co-
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2.2.2 Las Capturas masivas: un dispositivo bélico, que cumple funciones no declaradas
como pena anticipada.
El fenómeno de la captura y la detención preventiva, pueden ser abordadas desde dos
enfoques: El primero, es el dogmático jurídico, hegemónico en los estudios de derecho,
conforme al cual estas instituciones deben leerse, interpretarse o comprenderse a
partir de las justificaciones que la constitución y/o la ley procesal prescriben para
su existencia. La captura, por ejemplo, se asume como medida preventiva, para
personas aprehendidas en flagrancia de un delito, o respecto de las cuales existe cierta
probabilidad de haber participado en el mismo, con el fin de lograr su identidad,
darle oportunidad de defenderse a través de su versión sobre los hechos imputados,
precaver que siga delinquiendo o evitar respuestas informales arbitrarias, abusivas y
desproporcionadas (justicia por la propia mano, v.gr. linchamientos), previa valoración
que realiza un juez sobre su conveniencia y necesidad.
El segundo, es el enfoque sociopolítico, que en escenarios de guerra como la que vive
Colombia, permite comprender la captura y la detención preventiva como dispositivos
de guerra, es decir, armas o instrumentos bélicos para combatir a los enemigos o
facilitar los triunfos. Obviamente, desde este punto de vista, la investigación científica
trata de conocer las funciones latentes de los dispositivos, las cuales, por razones
obvias, no son las declaradas por la ley o por el discurso oficial.
En Colombia, el gobierno del presidente Uribe Vélez, recientemente reelegido, impuso
como principal tema de su plan de gobierno derrotar a la insurgencia, representada
por las Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC-EP) y el Ejército
de Liberación Nacional (ELN). Para ello implementó el programa de “Seguridad
democrática”, que comporta un significativo incremento del presupuesto estatal para
lombiana, Derechos Humanos y Desarrollo, Bogotá, D.C., 2004, pp. 178-179. De otra parte, “13 Organizaciones No Gubernamentales (ONG) de Estados Unidos, envían una carta al presidente Alvaro Uribe, en la
cual expresan su preocupación “por la tendencia de individuos que luego de ser detenidos por las Fuerzas
de Seguridad y liberados posteriormente ante la falta de evidencia, son asesinados por miembros de grupos
ilegales posiblemente como consecuencia de falsas acusaciones”. “Organizaciones de E.U. critican política
de detenciones del gobierno de Álvaro Uribe”, El Tiempo, noviembre 3 de 2004. El Colectivo
de Abogados José Alvear Restrepo, agregaría: “(....) las consecuencias se extienden de forma alarmante a
otras expresiones de violaciones de los derechos humanos como lo son el estado de inseguridad jurídica
y zozobra; la tortura, el desplazamiento forzado; los asesinatos, desapariciones, etc (…), desmembración
del tejido social, puesto que las personas que han vivido la experiencia de una detención, ya sea de manera
directa (detenido) o indirecta (familiares, amigos), suelen alejarse de las diversas organizaciones sociales
por temor a ser procesados, perseguidos, amenazados, desaparecidos y/o asesinados”. Corporación Colectivo de Abogados “José Alvear Restrepo” y Fundación Comité de Solidaridad con los Presos Políticos.
“¿Cacería de brujas? Detenciones masivas y seguridad democrática”. En: AA.VV. Reelección: El embrujo
continúa, Plataforma Colombiana, Derechos Humanos y Desarrollo, Bogotá, D.C., 2004, p. 189. Véase
también: “Con la lápida en la espalda”. Revista Semana, 25 septiembre de 2004.
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la guerra, la ampliación del número de efectivos del ejército, la modernización del
equipo militar, la especialización de contingentes, el comprometer a la población civil
en el conflicto armado, con el argumento que nadie puede ser neutral en su lucha
contra el “terrorismo”, etc.
Dentro de este orden de ideas, uno de los problemas que el gobierno colombiano ha
pretendido confrontar, son las territorialidades bélicas, esto es, parcelas concretas del
territorio nacional en las que no solo hace mucho tiempo hay carencia de presencia
estatal, sino que las autoridades reales, el Leviatán, lo han sido las organizaciones
guerrilleras. En este contexto es en el que se han producido las capturas masivas, que
han tenido como afectadas, personas residentes en dichos territorios, cuya recuperación
pretende lograr el gobierno nacional.
Una de las funciones de dichas capturas, es “privar” a los insurgentes del apoyo de
la población civil, bien sea que este se les brinde por simpatía, temor o coacción,
obligando a los pobladores a sopesar los nuevos costos que representa su posible
judicialización frente a los que pueden tener origen en los grupos insurgentes, y
también como forma de quebrar la confianza en la seguridad brindada por el actor
armado ilegal
La estrategia de contrainsurgencia de las fuerzas armadas ha
consistido desde hace tiempo en minar lo que consideran que
es un apoyo constante de la población civil a la guerrilla. Esta
estrategia, basada en el concepto de “quitar el agua al pez”,
considera a las víctimas civiles del conflicto armado, incluidas
las que entran inadvertidamente en contacto con los grupos
armados de oposición, no como víctimas inocentes sino como
parte del enemigo.44
De otra parte, las capturas masivas, con la violencia que implican y la estigmatización
de la que parten y la que recrean45, pueden llegar a ser vistas –por gobernantes,
44
Amnistía Internacional. ¿Seguridad a qué precio? La falta de voluntad del gobierno para hacer frente a
la crisis de derechos humanos, diciembre de 2002. “La estrategia del Ejército de tratar de cortar el abastecimiento de la guerrilla ha afectado en algunos casos a la población civil, por la estigmatización de que fue
objeto, así como por acciones de atropellos, saqueos y amenazas”. Comisión Interamericana de Derechos
Humanos. Informe anual 2003, diciembre 29 de 2003, cap. IV, párrafo 62.
45
“En Colombia, las detenciones arbitrarias se han convertido en una práctica generalizada, masiva y
sistemática. Durante el período comprendido entre el 7 de agosto de 2002 y el 30 de junio de 2006, por lo
menos 6.912 personas fueron detenidas arbitrariamente. Eso significa que cada día, en promedio, fueron
detenidas arbitrariamente casi cinco (4,7) personas. En relación con las cifras correspondientes a los seis
años precedentes, durante la administración del presidente Álvaro Uribe Vélez las detenciones arbitrarias
se incrementaron en un 240,9%”. Gabriel Bustamante Peña. “Los falsos positivos: ni falsos ni positivos”.
En: Caja de Herramientas. Semanario Virtual, 0041. Bogotá, 1º de diciembre de 2006.
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políticos y la ciudadanía- como una manera de satisfacer demandas de “seguridad”.
La judicialización de personas –a la postre liberadas en su gran mayoría-, la
espectacularidad de los operativos, la presentación pública a través de los medios
masivos de comunicación “de milicianos y subversivos”, que han sembrado el
terror, logra en algunos auditorios –locales y nacionales- los siguientes efectos: a)
aceptar plenamente las declaraciones gubernamentales según las cuales el estado
ha venido obrando con absoluta eficacia y exterminó el mal de raíz; b) generar una
sensación de seguridad, en cuanto ese “foco” de criminalidad ha sido definitivamente
exterminado; c) aceptar finalmente que para enfrentar la “inseguridad” y la impunidad
se justifica cualesquier restricción, flexibilización o neutralización de los derechos y de
sus garantías46.
En este sentido las capturas masivas serían una típica expresión de populismo punitivo y
darían cuenta, en una versión muy colombiana, de esas transformaciones de la penalidad
y las formas de control acaecidas en las últimas décadas del siglo veinte.
Proteger al público se ha convertido en el tema dominante de la
política penal [...]. En estas cuestiones el público parece estar
(o se lo presenta como que está) decididamente en contra de
correr riesgos e intensamente preocupado por el peligro de ser
dañado por delincuentes descontrolados. Ya no parecen tener
un lugar tan destacado en la preocupación del público el riesgo
de que representaban las autoridades estatales sin control, el
poder arbitrario y la violación de las libertades civiles 47.
2.3 En el proceso de ejecución penal y en la política pospenitenciaria
2.3.1 Con el pretexto de salvaguardar el orden y la seguridad, en el ámbito de la
ejecución penal, la pena privativa de la libertad se está legitimando en la prevención
especial negativa (inocuización), testimonio de lo cual son las cárceles de máxima
seguridad.
Y si ayer, en el marco de la ideología resocializadora, las políticas públicas en materia
46
“(…) es el viejo argumento republicano según el cual para preservar las libertades hay que restringirlas, y
para garantizar la estabilidad democrática se deben suspender, neutralizar, minimizar o ignorar los derechos
humanos y ciudadanos”. María Teresa Uribe. “El Republicanismo patriótico”, Introducción al libro Reelección: El embrujo continúa. Segundo año del gobierno de Alvaro Uribe Vélez, Plataforma Colombiana
Derechos Humanos y Desarrollo. Bogotá, D.C. 2004, p. 15. Véase también: Perfecto Andrés Ibáñez. “Viaje
a la prehistoria de las garantías: la ‘modernización’ de la ley Corcuera”. En:Jueces para la Democracia, Nº
13, Madrid, 1991, pp. 4-6.
47
David Garland. La cultura del control. Trad. Máximo Sozzo. Barcelona, Gedisa, 2005, p. 47-48. Véase
también: Elena Larrauri. “Populismo punitivo… y cómo resistirlo”. En: Jueces para la Democracia, Nº
55. Madrid, marzo de 2006, pp. 15-22; Cristina De la Torre. Álvaro Uribe o el Neopopulismo en Colombia.
Medellín, La Carreta, 2005.
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pospenitenciaria, privilegiaban estrategias reintegradoras48, ahora las políticas públicas
tienen un contenido manifiestamente de control social, e incluso, no se descartan
medidas de naturaleza punitiva. De manera paradigmática, en lo relacionado con la
delincuencia sexual o la que tiene como víctimas a los niños, el Concejo Municipal
de la capital del país – Bogotá-, legisló obligando al gobierno municipal a construir
“Muros de la infamia”, en la que en diversos lugares de las ciudades, se publican
vallas grandes, con los nombres y fotografías de las personas condenadas por abuso
contra niños.
Para iniciativas de este orden, también se aducen razones de seguridad, que terminan
aniquilando derechos fundamentales de las personas, que no obstante haber ya
cumplido con la pena impuesta judicialmente, se les irroga esta nueva pena de carácter
infamante.
Según la concejal Gilma Jiménez, una de las impulsoras del
proyecto, “no solo para darles un escarnio público, sino para
que los habitantes de las distintas localidades sepan quiénes son
estos delincuentes y tengan cuidado con sus hijos cuando estos
salgan de la cárcel”. Jiménez agrega que con este proyecto se le
daría cumplimiento al Código de la Infancia y la Adolescencia,
que estará en plena vigencia en mayo, y que le da vía libre a
la publicación de las fotos y los datos de los condenados por
delitos sexuales contra menores de edad, como una forma
48
V.gr., con vinculación laboral o la capacitación para que el ex -condenado tuviere una fuente autónoma
de ingresos, su articulación a su grupo familiar y social, y el trabajo con la comunidad más cercana para
contrastar el estigma y el sentimiento de desconfianza de ésta respecto aquél, etc.
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de reparación. Jiménez agrega que “el proyecto de acuerdo
también incluye que se pongan los datos de estas personas en
volantes, que se repartirán cada tres meses en centros de alta
afluencia masiva de público. Y dos veces al año se incluirá la
información en los recibos públicos domiciliarios”49.
Dentro de muy poco es probable que se implementen estrategias actualmente vigentes
en los Estados Unidos, consistentes en la disponibilidad de una base de datos,
asequible para todos a través de Internet, en la cual están relacionados los nombres
y las direcciones actuales (Estado, ciudad, barrio), de las personas que han sido
condenadas por delitos, de manera particular, de contenido sexual.
Pero a estas hay sumar otras iniciativas, como los controles permanentes sobre
personas, gracias a los avances técnicos, como la instalación de dispositivos
electrónicos (microchips, collares, pulseras, etc.), que transfieren información
satelital y que permiten un registro de donde se encuentra la persona en cada
momento. Ello se ha prohijado de manera expresa por el Código de Procedimiento
Penal en el caso colombiano, para el control de personas con detención domiciliaria,
prisión domiciliaria (casa por cárcel), libertad condicional. Y para los trabajadores
colombianos que ingresan legalmente a los Estados Unidos, para cumplir actividades
laborales de manera temporal.
Estas son también iniciativas, inspiradas en el populismo punitivo, esto es, hacer
proselitismo o marketing político, con políticas de claro contenido punitivo, aduciendo
la salvaguarda de la “seguridad” colectiva, y con desprecio absoluto de derechos
fundamentales de las personas objeto de las mismas.
Entre las observaciones de contenido crítico que cabe formularle a los “muros de
la infamia”, podemos aducir las siguientes: a) la picota pública, es un trato cruel
e inhumano; b) la vindicta, la venganza, está adquiriendo de esta forma carta de
ciudadanía; c) el INRI, el estigma, en sociedades proclives a “justicia por mano
propia”, propicia formas punitivas informales, complementarias a la pena legalmente
dispuesta; d) si la resocialización es un fin legítimo de la pena, que condiciona su
calidad y cantidad, resulta inadmisible esta política, porque el estigma que se impone,
el cual pretende perpetuarse más allá de la pena, limita seriamente e incluso aniquila,
oportunidades de reintegración social; e) hay otros hechos delictivos tanto o más
49
El Tiempo, Bogotá, abril 11 de 2007, “Piden publicar fotos y nombres de condenados por abuso sexual
a menores en muros y vallas, en Bogotá”. La norma fue aprobada en los siguientes términos: “La norma
aprobada por el Concejo en abril pasado ordenaba a las autoridades locales a publicar cada seis meses en los
medios de comunicación las fotos de los violadores condenados por la justicia. Asimismo, cada tres meses
los recibos de los servicios públicos deberán ir acompañados de las fotos de los violadores, mientras las
carteleras estarían ubicadas en zonas de alto flujo de personas”. El Tiempo, Junio 20 de 2007 “Fallan tutela
contra acuerdo que busca publicar en muros fotos de violadores de niños en Bogotá”.
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graves que los que dieron lugar a los muros de la infamia, - v.gr genocidio, homicidio,
tortura, desaparición forzada, corrupción, etc -, que si van a ser también comprendidos
por la política de colocarlos en la picota pública, los espacios públicos de las ciudades,
localidades, y poblados, no darían abasto; f) es una falacia que ello contribuya a
resarcir a la víctima.
2.3.2 Finalmente, en el ámbito carcelario, en virtud de la hegemonía del mercado lo
cual es propio del modelo económico neoliberal, se viene produciendo la privatización
del sistema, como parte, de lo que denominara Nils Christie, “la industria del control
del delito”. Ello agudiza el conflicto entre los derechos y las garantías de los detenidos
y condenados, con los intereses de lucro propio de los operadores del sistema.
“Controlar a partes de la población ociosa en forma directa y crea nuevas tareas para la
industria y sus propietarios. Desde este último punto de vista, los reclusos adquieren un
papel nuevo e importante: se convierten en la materia prima de la industria del control
del delito “50.
La privatización también se manifiesta en la financiación, construcción y administración
de las unidades carcelarias, en el equipamiento (v.gr sistemas de vigilancia electrónica, la
pulsera carcelaria), y en el caciquismo, esto es, el poder delegado por la administración
carcelaria en personas reclusas, con la responsabilidad de garantizar la “disciplina”
carcelaria, recibiendo como contraprestación el monopolio del mercado de algunas
ilegalidades (v.gr. prostitución, la droga, el alcohol, etc.)51.
2.4 ¿Un nuevo protagonismo de la víctima o su instrumentalización?
La víctima paulatinamente ha venido ganando protagonismo en el escenario del
proceso penal, de tal modo que del reconocimiento de su derecho a la indemnización
económica por los daños52, se ha pasado a reconocerle de manera explícita los
derechos a la verdad y la justicia53. De esta tendencia, la mayor observación crítica se
50
Nils Christie. La Industria del control del delito. ¿La nueva Forma del holocausto? Buenos Aires, Editores del Puerto s.r.l.,1993, p. 123.
51
La privatización de la seguridad, es un tema muy vasto, que se corresponde con la representación del
ciudadano como garante de su seguridad, dado que ésta es una mercancía más, asequible sólo para quienes
disponen de recursos para adquirirla. Manifestaciones de este enfoque teórico, son: la policía privada, los
paramilitares, los escuadrones de la muerte, las milicias y el mercenarismo en las guerras actuales.
52
Cfr. En tal sentido limitativo, Corte Constitucional, sentencias C-293 de 1995 y SU-717 de 1998.
53
“la víctima o perjudicado por un delito no sólo tiene derecho a la reparación económica de los perjuicios que se le hayan causado, trátese de delitos consumados o tentados, sino que además tiene derecho a
que a través del proceso penal se establezca la verdad y se haga justicia”. Corte Constitucional, sentencia
C-228 de 2002. Sobre los derechos de la víctima, en el sistema penal en conjunto, siguiendo este enfoque,
cfr. Corte Constitucional, sentencias C-277 de 1998, C-1149 de 2001, C-740 de 2001, C-1149 de 2001, T-
44
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encuentra en que la víctima se ha instrumentalizado político criminalmente ― tanto
en la creación de la ley, como en el juzgamiento y en la ejecución de la pena―, en un
juego de suma cero, para negar o limitar derechos fundamentales de los procesados
y de los condenados.
El nuevo imperativo político es que las víctimas deben ser
protegidas, se deben escuchar sus voces, honrar su memoria,
deben poder expresar su ira y debe haber respuestas s sus
temores. La retórica del debate penal frecuentemente invoca
la figura de la víctima [...] como alguien que tiene derechos,
que debe poder expresar su sufrimiento y cuya seguridad en
el futuro debe ser garantizada. Toda atención inapropiada
de los derechos o del bienestar del delincuente se considera
como algo que va en contra de la justa media de respeto por
las víctimas. Se asume un juego político de suma cero, en el
que lo que el delincuente gana lo pierde la víctima y estar «de
parte» de las víctimas automáticamente significa ser duro con
los delincuentes 54.
En el Estado constitucional de derecho, obviamente, la víctima es titular derechos
de diverso orden, y el reconocimiento y tutela de los mismos, es baremo para medir
la autenticidad de tal régimen político. Pero lo que sí rechazamos, es que éstos se
instrumentalicen para torpedear los derechos de los procesados y de los condenados.
La referencia a los muros de la infamia, es una muestra de dicho procedimiento. Los
ejemplos, para el caso colombiano, podrían ser muchos más, pero el escaso tiempo
disponible, no me permite abordarlos.
Finalmente, como advertí al comienzo, esta conferencia es apenas una referencia
muy breve al sistema penal colombiano. Procuré dar cuenta de algunas tendencias
político-criminales, que pretenden hegemonizarse en diversas latitudes. Espero que su
abordaje les sirva para encontrar un registro de las mismas en su país, y la valoración
crítica que apenas he bosquejado, sea un faro que los incentive a su profundización y
análisis, no olvidando la especificidad de su contexto.
622 de 2002, C-805 de 2002, C-916 de 2002 , C-570 de 2003, SU-1184 de 2001 y C-899 de 2003.
54
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2. DOUTRINA NACIONAL
2.1. AÇÃO MONITÓRIA – PRIMEIRAS IMPRESSÕES
APÓS A LEI Nº 11.232/05 *
RODRIGO MAZZEI
Professor da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES
Professor do Instituto Capixaba de Estudos – ICE
Vice-Presidente do Instituto dos Advogados do Estado do Espírito Santo – IAEES
Mestrando pela PUC – SP
Advogado em Vitória-ES e Brasília-DF
HERMES ZANETI JÚNIOR
Professor de Processo Civil (graduação e pós-graduação) da UFES
Mestre e Doutor pela UFRGS
Membro do Ministério Público-ES
SUMÁRIO: 1. O perfil da ação monitória com base na Lei nº 9.079/95. 2. Breve
comparativo. 3. Alteração centrada no art. 1.102-C. 4. Novo trânsito executório (Livro
I, Título VIII, Capítulo X, do reformado Código de Processo Civil). 5. Impugnação na
fase propriamente executiva: novo perfil (art. 475-L). 6. Execução contra a Fazenda
Pública. Título executivo obtido em ação monitória (cabimento dos embargos à
execução: art. 741 do CPC). 7. Ação Monitória e a formação de título para entrega
de coisa fungível ou de determinado bem móvel (parte final do art. 1.102-C). 8.
Referências bibliográficas.
1. O perfil da ação monitória com base na Lei nº 9.079/95
Durante quase dez anos de vigência da Lei nº 9.079, de 14.07.1995, que introduziu os
arts. 1.102-A, 1.102-B e 1.102-C no Código de Processo Civil, houve intensa discussão
no âmbito da ação monitória, sendo o debate doutrinário, diante da economia do
legislador na disposição da matéria, relevante para a fixação dos contornos da figura
jurídica em comento.
____________________________
* Os autores do presente texto são responsáveis pelos comentários ao art. 1.102-c do CPC, em obra coletiva.
(OLIVEIRA, 2006), cujo foco é a Lei nº 11.232/05.
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Em resenha, com o advento da ação monitória, o credor munido de prova escrita
– mas sem eficácia executiva – tem a possibilidade de ajuizar demanda de rito bem
singular, visando obter, de forma abreviada, bilhete de trânsito para adentrar na fase
executiva, daí a doutrina, a exemplo de Dinamarco (2003, p. 740), incluí-la entre os
chamados processos diferenciados (tutela diferenciada em busca da maior efetividade
processual).1 Para tanto, na parte inicial da ação monitória, o ato judicante liminar
possui natureza ímpar em nosso sistema processual. Com efeito, a decisão judicial
liminar2, ao determinar a expedição de mandado injuntivo3, fica, em parte, como se
em condição suspensiva, na medida em que seu efeito total (e final) depende de ato
futuro do réu da ação monitória4, que poderá: reconhecer o direito do credor (ficando
1
Vale lembrar que ação monitória está em total sintonia com as recentes reformas constitucionais da EC
45/05, principalmente a busca pela duração razoável do processo (art. 5º, LXXXVIII, CF/88).
2
O conceito de decisão liminar que utilizamos é puramente topológico, isto é, no início do processo, no seu
limiar. No sentido, com boa pesquisa doutrinária, confira-se Neto (2002, p. 7-16). Assim, a expressão não
pode ser utilizada como sinônimo de tutela de urgência, até porque a última é gênero da tutela de urgência
liminar, isto é deferida no ‘início do processo. Segundo Lamy (2004, p. 39): “A tutela jurisdicional terá
natureza urgente quando cuidar de situações em que determinado pronunciamento jurisdicional necessitar
ser proferido em curto período de tempo, através de cognição sumária, por meio de técnicas antecipatórias
ou assecuratórias, dada a possibilidade de dano ao direito material envolvido”.
3
A decisão que determina a expedição do mandado injuntivo, pela sua natureza muito própria, não se
encaixa com exatidão em nenhum dos conceitos do art. 162 do Código de Processo Civil (que também foi
alterado pela Lei nº 11.232/05, em seu § 1º, confira-se: “Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sentenças,
decisões interlocutórias e despachos. § 1º. Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei. § 2º. Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo,
resolve questão incidente. § 3o. São despachos todos os demais atos do juiz praticados no processo, de
ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma. § 4º. Os atos meramente
ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de
ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessários). Há grande discussão sobre a natureza jurídica
da decisão liminar que agasalha a ação monitória brasileira. Entendendo se tratar de sentença,Cruz e Tucci
(2001, p. 47) afirma que a positiva decisão liminar em sede de ação monitória tem “[...] natureza de um
accertamento com attitudine al giudicato, em tudo idêntico àquele contido em uma sentença definitiva de
condenação emitida ao final de um processo comum de cognição” (vide ainda, na mesma obra, p. 91, em
que o autor ratifica a fala inicial). Com posição assemelhada, Bermudes (1996, p. 214) entende que se cuida
de “[...] sentença condenatória condicional (ainda que com a forma de despacho ou decisão interlocutória)”
e Nery Jr. (1996, p. 229-230). Com outro raciocínio, repudiando a idéia de equiparação da decisão liminar
monitória às sentenças condenatórias, Talamini (2001, p. 94) leciona: “Todos os provimentos emitidos no
curso do processo e que não afastam sua continuidade excluem-se da categoria de ‘sentença’- e isso por força do único critério classificatório existente. A definição da ‘essência’ (da ‘ontologia’) da sentença, enfim,
se dá exclusivamente através do parâmetro estabelecido em lei. É com base nele que se pode afirmar que a
decisão concessiva do mandado não é sentença”. Colhe-se posição, ainda, no sentido de que não se trata de
nenhum tipo de ato judicial decisório, identificando o ato judicial que determina a expedição do mandado
injuntivo com simples despacho. Nessa linha, Santos (2000, p. 51): “O juiz não sentencia, nada decide, no
sentido estrito do termo, porque a transformação do mandado em título executivo, que, na verdade, nada
mais é do que o próprio título injuncional, vazado em prova escrita, adquirindo executividade, fica restrita
a atividade processual das partes.
4
Bem fundamentado, confira-se Macedo (1999, p. 119).
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isento do pagamento de custas e honorários em caso de pronto pagamento – § 2º do
art. 1.102-C do Código de Processo Civil); não apresentar defesa (embargos), não se
opondo ao mandado monitório; apresentar defesa (embargos).
A decisão (de recepção da ação monitória) não resultará em mandado executivo,
obviamente, se houver o adimplemento judicial pelo réu da obrigação reclamada
que, inclusive, recebe o prêmio da isenção do pagamento de custas e honorários. De
outro giro, a oposição vencedora dos embargos à monitória terá o condão de tornar
sem efeito a decisão primitiva (que determinou a expedição do mandado injuntivo),
o que, em conseqüência, neutraliza a conversão em mandado executivo. De forma
diversa, caso não haja pelo réu o reconhecimento do direito do credor ou não se
obtenha resultado favorável ao requerido na apresentação dos embargos, segundo os
regramentos da Lei nº 9.079/95, a decisão inicial se aperfeiçoaria, com a constituição,
de pleno direito, de título executivo, através da conversão do mandado injuntivo em
executivo, prosseguindo-se os atos processuais no desenho contido no Livro II, Título
II, Capítulos II e IV, do Código de Processo Civil (caput e parágrafo terceiro do art.
1.102-C).
Com outras palavras, se o devedor não apresentar embargos ou, o fazendo, venha
ocorrer a rejeição judicial da sua defesa, a pretérita decisão que aceitou a ação
monitória, determinando a expedição de mandado injuntivo, consolida-se no plano
da formação de um título executivo judicial – deixando para trás qualquer condição
–, seguindo-se (na formatação anterior ao texto da Lei nº11.232/05) ao rumo picado
do Livro II, Título II, Capítulos II e IV, do Código de Processo Civil. Sem dúvida,
como se pode perceber, ação monitória encarta-se no sistema processual como tutela
diferenciada, sendo importante observar que existem particularidades que não podem
ser renegadas, sob pena de se vulgarizar a dita válvula legal5.
2. Breve comparativo
Antes de qualquer aferição mais aguda, faz-se prudente o confronto analítico entre o
quadro legal anterior e o posterior à Lei nº 11.232/05, que, como é curial, imprimiu
nova redação ao art. 1.102-C. Vejamos:
5
Infelizmente não foi absorvida pela jurisprudência a arquitetura ímpar da ação monitória como tutela diferenciada, o que conspirou, ainda que involuntariamente, para resultado muito aquém do esperado no uso da
figura. Próximo, com visão na problemática, Paulo Hoffman (Monitória efetiva ou cobrança especial? Uma
proposta para que o processo monitório atinja seus objetivos), afirma que pontos capitais da ação monitória
merecem ser revisitados (Repro n. 117, p. 176 et. seq.).
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Redação anterior do art. 1.102-C do CPC
(Lei nº 9.079/95)
Art. 1.102.c - No prazo previsto no artigo
anterior, poderá o réu oferecer embargos, que
suspenderão a eficácia do mandado inicial. Se
os embargos não forem opostos, constituirse-á, de pleno direito, o título executivo
judicial, convertendo-se o mandado inicial
em mandado executivo e prosseguindo-se na
forma prevista no Livro II, Título II, Capítulos
II e IV.
§ 1o Cumprindo o réu o mandado, ficará isento
de custas e honorários advocatícios.
§ 2o Os embargos independem de prévia
segurança do juízo e serão processados nos
próprios autos, pelo procedimento ordinário.
§ 3o Rejeitados os embargos, constituir-se-á,
de pleno direito, o título executivo judicial,
intimando-se o devedor e prosseguindo-se na
forma prevista no Livro II, Título II, Capítulos
II e IV.
Nova redação do art. 1.102-C
do CPC (Lei nº 11.232/05)
Art. 1.102-C. No prazo
previsto no art. 1.102B, poderá o réu oferecer
embargos, que suspenderão a
eficácia do mandado inicial.
Se os embargos não forem
opostos, constituir-se-á, de
pleno direito, o título executivo
judicial, convertendo-se o
mandado inicial em mandado
executivo e prosseguindo-se
na forma do Livro I, Título
VIII, Capítulo X, desta Lei.
§ 1o - sem alteração.
§ 2o – sem alteração
§ 3o Rejeitados os embargos,
constituir-se-á, de pleno
direito, o título executivo
judicial,
intimando-se
o
devedor e prosseguindo-se
na forma prevista no Livro I,
Título VIII, Capítulo X, desta
Lei.
3. Alteração centrada no art. 1.102-C
Pela manutenção intacta dos arts. 1.102-A e 1.102-B, a reforma legislativa deflagrada
pela Lei nº 11.232/05 não alterou a ação monitória na sua parte inicial, mantendo-se
as mesmas regulações para fins de obtenção do título executivo judicial.6 Como a
6
Em cochilo do legislador, já que poderia ter resolvido discussões doutrinária, não houve a inclusão do
título obtido na ação monitória no rol dos títulos executivos judiciais. A leitura do art. 465-N (que revogou
o art. 584 do CPC), segundo perfil impostos pela Lei nº 11.232/05, demonstra tal ‘esquecimento’, confirase: “Art. 475-N. São títulos executivos judiciais: I – a sentença proferida no processo civil que reconheça
a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia; II – a sentença penal con-
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reforma atingiu apenas parte do art. 1.102-C, vê-se que a empreitada do legislador
se voltou à parte executiva, ou seja, para relação processual posterior à conversão do
mandado monitório em executivo, uma vez que, com a Lei nº 11.232/05, permutou-se
o caminho executório do Livro II, Título II, Capítulos II e IV do Código de Processo
Civil (previsto na Lei nº 9.079/95), pela trilha do Livro I, Título VIII, Capítulo X,
introduzida pelo novel legislativo.
4. Novo trânsito executório (Livro I, Título VIII, Capítulo X, do reformado
Código de Processo Civil)
Nos termos da parte final do caput do art. 1.102-C e do seu § 3º, qualquer que seja
o motivo, ocorrendo a conversão do mandado monitório em executivo, deverão ser
seguidas na execução com título obtido em ação monitória as mesmas regras atinentes
ao cumprimento da sentença, na conformidade do Livro I, Título VIII, Capítulo X do
Código de Processo Civil alterado pela Lei nº 11.232/05.
5. Impugnação na fase propriamente executiva: novo perfil (art. 475-L)
No sistema anterior, havia grande discussão se a parte passiva da ação monitória
poderia opor embargos à execução. Em síntese, fixaram-se duas indagações:
a) O réu regularmente citado da ação monitória que, deixando passar o prazo in
albis, não apresentou embargos monitórios, teria a possibilidade de opor embargos à
execução?
b) O requerido da ação monitória que fez resistência ao mandado injuntivo, através da
defesa do caput do art. 1.102-C, poderia opor embargos à execução?
Não suficiente o debate sobre a viabilidade dos embargos com ação de defesa
incidental à execução iniciada na ação monitória, mesmo para aqueles que respondiam
positivamente as questões acima, não havia posição uniforme quanto ao âmbito das
matérias que poderiam ser suscitadas no corpo dos embargos à execução. Seria
hipótese de cognição plena (art. 745, CPC) ou de cognição limitada (art. 741, CPC)?7
denatória transitada em julgado; III – a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que
inclua matéria não posta em juízo; IV – a sentença arbitral; V – o acordo extrajudicial, de qualquer natureza,
homologado judicialmente; VI – a sentença estrangeira, homologada pelo Superior Tribunal de Justiça; VII
– o formal e a certidão de partilha, exclusivamente em relação ao inventariante, aos herdeiros e aos sucessores a título singular ou universal. Parágrafo único. Nos casos dos incisos II, IV e VI, o mandado inicial
(art. 475-J) incluirá a ordem de citação do devedor, no juízo cível, para liquidação ou execução, conforme o
caso”. A omissão ora denunciada já foi motivo de crítica anterior, ainda sobre a égide do art. 584 do CPC,
consoante reclame de Macedo (1999, p.115-116).
7 A questão, bem intrincada, desafiava discussões de grande profundidade nos Tribunais. Em exemplificação, pode-se tirar o recente julgamento (10/01/2006) da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, na apelação nº 70013641477, em que a Desembargadora Elaine Harzheim Macedo
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funcionou como relatora. Da transcrição de parte do voto condutor, extraem-se os fundamentos que dão as
fronteiras da discussão: “Cuida-se de embargos à execução baseada em título executivo judicial obtido com
fundamento no art. 1.102b do CPC. Vale dizer, o título judicial que ampara a execução não é revestido das
mesmas características daqueles arrolados no art. 584 do estatuto processual, pois foi alcançado a partir de
duas premissas básicas: a verossimilhança de crédito documentado (no caso, cheque prescrito), conforme
art. 1.102a, à qual soma-se o silêncio da parte demandada, conforme art. 1.102c, caput, 2ª parte, ambos
do CPC. É da natureza da ação monitória a obtenção de título executivo judicial, absolutamente apto para
autorizar a expropriação patrimonial, independentemente da ação sumária que o instrumentaliza. Até aí,
nenhuma discussão surge, especialmente nos limites do caso concreto, mostrando-se claro e objetivo o
sistema processual no sentido de tutelar créditos verossímeis, aos quais o devedor não se opõe na forma da
lei, situação essa que se ajusta à hipótese dos autos relativamente à ação monitória, autos em apenso. Apenas com uma advertência: o título executivo é o mandado judicial de fl. 9 dos autos, pois a ação monitória
não se reveste de sentença. O que o estatuto processual não responde com precisão, permitindo, portanto,
a maior e mais ampla intervenção do intérprete, é se essa forma sumária de obtenção do título executivo,
já esgotada a pretensão monitória (que é meramente a formação do título), autoriza, em sede de execução,
a discussão plenária ou a discussão sumária da dívida (conceito de direito material e não processual). A
distinção bipartida, assim, reconhecida desde o nascedouro de nosso código, através de embargos sumários (art. 741 do CPC) e embargos plenários (art. 745 do CPC), veio contemplada para atender a taxativa
previsão dos títulos judiciais (formados em ações de cognição plenária) arrolados no art. 584 e dos títulos
extrajudiciais (formados sem participação da atuação jurisdicional) do art. 585 do codex procedimental,
tendo, portanto, inspiração e previsão casuística divorciada da hipótese contemplada pelo art. 1.102b, absolutamente inovadora no ordenamento jurídico pátrio. A questão, por natureza controvertida, por certo
não encontra unanimidade nos respectivos enfrentamentos, seja na doutrina, seja na jurisprudência. A
exemplo, o 9° Grupo Cível deste Tribunal decidiu em maioria simples, situação análoga para permitir o
amplo debate nos embargos à execução, autorizando a discussão de causas extintivas da obrigação anteriores à formação do título mesmo o devedor não tendo se valido dos embargos à monitória do art. 1.102c,
caput, 1ª parte, a saber: EMBARGOS INFRINGENTES. EXECUCAO. TITULO DECORRENTE DE
MONITORIA ONDE NAO OFERTADA OPOSICAO PRELIMINAR. EMBARGOS. LIMITES. ART.
745, DO CPC. 1. EM EXECUCAO DECORRENTE DE DEMANDA MONITORIA ONDE, NA PRIMEIRO FASE, INERTE O DEVEDOR, ADMITEM-SE EMBARGOS COM DISCUSSAO PLENARIA
(ART. 745, CPC). 2. INEXISTENCIA DE COISA JULGADA MATERIAL. 3. SE PARA A RELACAO
A MONITORIA, ADMITE-SE QUESTIONAMENTO POSTERIOR ACERCA DA CLDD E EFICACIA
DO TITULO QUE A APARELHA, COM MAIS RAZAO PARA COM RELACAO A ESTA, QUE E
MINUS, DIVERSO NAO SE HA DE CONSIDERAR. 4. CONCILIACAO DE CERTEZA JURIDICA E
ATE MESMO DE CELERIDADE E EFETIVIDADE DA JURISDICAO, INFORMAM O CABIMENTO
DE EMBARGOS PLENARIOS NA EXECUCAO DA MONITORIA CONTRA A QUAL NAO OFERTADA OPOSICAO PRELIMINAR. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS, POR MAIORIA”.
(Embargos Infringentes Nº 598306942, Nono Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Demétrio Xavier Lopes Neto, Julgado em 20/11/1998). Embora as respeitáveis posições em contrário,
tem-se que, entre uma solução alimentada por princípios processuais de natureza formal, onde prevaleçam
as regras procedimentais, e um processo que atenda princípios de ampla defesa e contraditório, sem que
com isso a parte adversa se veja prejudicada (o debate, mesmo plenário, em sede de embargos, igualmente
carece de garantia de juízo e se serve do mesmo procedimento dos embargos sumários), opta-se por essa
segunda corrente, admitindo-se, quando o título executivo judicial tiver por amparo o art. 1.102b do CPC
agregado pelo silêncio do demandado (art. 1.102c caput, 2ª parte), agora em sede de embargos à execução,
a discussão mais ampla, de modo que se atenda, tanto quanto possível, a justiça material do caso concreto,
aplicando-se analogicamente não o art. 741, mas o art. 745 do CPC, até porque nenhum deles veio formado para regular esse tipo de título executivo, irrelevante a adoção do procedimento executório que o art.
1.102c, caput, na sua parte final determina (aliás, ao determinar a aplicação dos capítulos II e IV do Título
II do Livro II, o texto legal está apenas referindo a aplicação dos arts. 621 a 631, tratando-se de entrega de
coisa certa, e dos arts. 646 a 731, se for obrigação de pagar quantia certa, nada referindo sobre o Título III,
esse sim destinado aos embargos)”.
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Pois bem, pensamos agora, como pensávamos antes, que não estará vedado ao réu da
ação monitória apresentar resistência no âmbito da execução do título judicial.
Contudo, a discussão acerca dos limites da cognição parece se esvaziar, diante do novo
panorama legal, trazido pela aplicação na ação monitória das regras do Livro I, Título
VIII, Capítulo X, pois, ao contrário do regramento anterior, não terá o suposto devedor
a possibilidade de opor embargos à execução, devendo apresentar a nova impugnação
prevista no art. 475-L, que prevê rol taxativo das matérias a serem argüidas pela parte
passiva do título executivo, a saber:
Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre:
I – falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia;
II – inexigibilidade do título;
III – penhora incorreta ou avaliação errônea;
IV – ilegitimidade das partes;
V – excesso de execução;
VI – qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da
obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação
ou prescrição, desde que superveniente à sentença.
§ 1º. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo,
considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei
ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo
Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da
lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como
incompatíveis com a Constituição Federal.
§ 2º. Quando o executado alegar que o exeqüente, em excesso
de execução, pleiteia quantia superior à resultante da sentença,
cumprir-lhe-á declarar de imediato o valor que entende correto,
sob pena de rejeição liminar dessa impugnação.
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Ademais, pelo disposto no caput do art. 475-M, ao contrário dos embargos à
execução, o instituto traçado no art. 475-L não possui efeito suspensivo automático8-9,
devendo a suspensão ser pleiteada pelo interessado (leia-se: executado) no bojo de
sua impugnação, apontando, nessa peça, que há fundamentação relevante e que, em
adição fática, existe risco de intenso dano, com difícil (senão impossível) reparação,
caso a execução prossiga. São dois, portanto, requisitos independentes, sendo obtido o
efeito suspensivo apenas se houver a soma de ambos no caso concreto. Vale, às claras,
a transcrição da norma em tela:
Art. 475-M. A impugnação não terá efeito suspensivo,
podendo o juiz atribuir-lhe tal efeito desde que relevantes
seus fundamentos e o prosseguimento da execução seja
manifestamente suscetível de causar ao executado grave dano
de difícil ou incerta reparação.
§ 1º. Ainda que atribuído efeito suspensivo à impugnação, é
lícito ao exeqüente requerer o prosseguimento da execução,
oferecendo e prestando caução suficiente e idônea, arbitrada
pelo juiz e prestada nos próprios autos.
§ 2º. Deferido efeito suspensivo, a impugnação será instruída
8
Segue-se aqui uma tendência já presente, em certa medida, no âmbito dos recursos, em que o efeito suspensivo pode ser automático ou provocado. No efeito suspensivo automático (também chamado de legal
– por decorrer simplesmente da lei), os critérios objetivos são fechados, estando estes previamente traçados
a exaustão pelo legislador, sem a necessidade de integração (e aferição) de outros dados que não a apresentação sadia do recurso. Assim, o efeito suspensivo será automaticamente alcançado se a interposição recursal estiver hígida e moldada ao desenho previsto na legislação processual (por exemplo, haverá efeito suspensivo legal nas apelações que não são abrangidas pelo rol do art. 520 do CPC, situação não afetada pela
Lei nº 11.276/06 que, alterando o art. 518, dispõe sobre a admissibilidade do recurso, e não sobre os efeitos,
propriamente dito, do apelo). No efeito suspensivo provocado, diferentemente, não basta apenas a robusta
interposição do recurso para se alcançar o efeito suspensivo. Com efeito, além do aviamento do recurso, o
interessado é compelido a fazer o requerimento no sentido e ainda demonstrar que estão satisfeitos - no caso
concreto - os critérios para a suspensão dos atos de execução (sentido amplo da expressão) desencadeados
pela decisão judicial. No caso dos recursos, o efeito suspensivo provocado se justifica pela demonstração do
recorrente de bom grau de probabilidade no êxito da sua postulação recursal, sendo necessária a suspensão
do ato decisório recorrido pelos efeitos danosos (de difícil reparação) que podem advir da dicção judicante
guerreada (basta lembrar do disposto no art. 558 do CPC e no art. 43 da Lei 9.099/95). Trabalha-se no
efeito suspensivo provocado com critérios objetivos abertos, sendo necessário o preenchimento destes para
a respectiva concessão. Sobre o tema, entre vários, confira-se: Mazzei (2001, p. 128-134); Bermudes (In:
MAZZEI 2001, p. 169-73) e Ferreira (2000). Em adaptação, para o efeito suspensivo provocado no espectro
da impugnação do art. 475-L, deverá aquele indicado como devedor, em razão do art. 475-M, apresentar
pedido expresso ao magistrado, apontando de forma clara os motivos que sustentam sua impugnação detém
alto grau de probabilidade vencedora no julgamento do incidente, sendo fundamental a suspensão imediata
(ainda que parcial) do prosseguimento da execução, diante da possibilidade de se causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação. A não concessão do efeito suspensivo provocado, previsto no art.
475-M, desafia, a nosso sentir, agravo de instrumento, podendo, em casos extremados, a parte executada se
valer de mandado de segurança.
9
Contra, Assis (2006, p. 348-349) sustenta que como não há exigência de pedido no art. 475-M, poderá o
juiz conceder efeito suspensivo ex offício.
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e decidida nos próprios autos e, caso contrário, em autos
apartados.
§ 3º. A decisão que resolver a impugnação é recorrível mediante
agravo de instrumento, salvo quando importar extinção da
execução, caso em que caberá apelação.
Saliente-se que, preenchidos todos os requisitos para que a impugnação
carregue o predicado da suspensividade, não há para o julgador liberdade para negar
o pedido porque, ainda que o art. 475-M traga conceitos objetivos abertos (isto é,
conceitos jurídicos indeterminados), representados pela vagueza proposital das
expressões relevantes fundamentos e grave dano de difícil ou incerta reparação, a
conduta legislativa não outorgou poder discricionário ao julgador. No mesmo sentido,
com propriedade, Assis (2006, p. 349) pontifica acerca do art. 475-M:
Nenhum dos requisitos mencionados, isoladamente, autoriza
a medida excepcional da suspensão. Impõe-se a conjugação
de ambos no caso concreto. No entanto, uma vez atendidos
tais pressupostos, nenhuma discrição é dada ao juiz, devendo
suspender a execução. O inverso também se mostra verdadeiro.
Não se caracterizando os pressupostos, ou existindo tão-só um
deles, deverá o juiz negar efeito suspensivo à impugnação.
Costuma-se dizer que o ato judicial, nesses caso, é e pode ser
discricionário. Perante os conceitos jurídicos indeterminados, na
verdade, a atividade do juiz não se afigura como discricionária
no sentido e exata e preciso do termo, mas vinculada à única
resolução correta que lhe cabe tomar em razão do seu ofício:
ou bem se verificam os elementos de incidência, hipóteses em
que se suspenderá a execução; ou se não se verificarem tais
elementos, caso em que a lei proíbe suspender a marcha da
execução.10
Da exposição, conclui-se que:
a)não se cogita mais em manejo de embargos à execução quando houver título
executivo proveniente de ação monitória11, sendo caso de utilização da figura prevista
no art. 475-L (impugnação), que possui rol blindado de matérias que podem ser
argüidas (com cognição horizontal limitada);
10
O autor faz referência, em nota de rodapé, ao seguinte trabalho da professora Wambier (2000, p.
239.263). Sobre correção no preenchimento de conceitos indeterminados e cláusulas gerais, (inclusive em
sede de recurso de índole especial), confira-se Mazzei (DIDIER JUNIOR; MAZZEI, 2006, p. 39-57).
11
Haverá apenas, em exceção, os casos de execução com título obtido no ventre de ação monitória contra
a Fazenda Pública, uma vez que, nessa situação especial, o art. 741 do CPC poderá ser invocado pela devedora (adiante examinaremos a questão).
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b) sendo assim, não subsiste frente ao rigor da lógica, a defesa doutrinária de que
essa impugnação, como meio de defesa, tenha cognição irrestrita como nos embargos
de título executivo extrajudicial;
c) a impugnação não possui efeito suspensivo automático, cabendo ao devedor
provocar a sua concessão, através de requerimento expresso, em modulação ao
disposto no art. 475-M .
6. A execução contra a Fazenda Pública. Título executivo obtido em ação
monitória (cabimento dos embargos à execução: art. 741 do CPC)
O caput do art. 1.102-C e o seu § 3º não indicam para o credor da ação monitória,
depois de constituído o título judicial, a possibilidade de caminho executivo diverso
ao traçado no Livro I, Título VIII, Capítulo X, do Código de Processo Civil, criando
a (falsa) impressão de que não há qualquer tipo de exceção. No entanto, exame
mais detido da Lei nº 11.232/05 informa que os dispositivos constantes na alteração
legislativa merecem ser interpretados dentro da totalidade do contexto sistemático da
reforma processual.
Com o alerta acima lançado, tem-se que apesar da regra geral do art. 475-L, na situação
especialíssima de ação monitória contra a Fazenda Pública12, persistirá no sistema
12
Parte-se aqui, bem é verdade, do entendimento que se consolidou do cabimento da ação monitória contra
a Fazenda Pública, conforme precedentes múltiplos do Superior Tribunal de Justiça. No sentido, colocando
uma pá de cal na discussão, ao final de 2005, decidiu-se em sede de embargos de divergência (EREsp.
345752/MG):” PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. CABIMENTO. 1. No procedimento monitório distinguem-se três espécies de atividades, distribuídas em fases
distintas: uma, a expedição de mandado para pagamento (ou, se for o caso, para entrega da coisa) no prazo
de quinze dias (art. 1.102b). Cumprindo a obrigação nesse prazo, o demandado ficará isento de qualquer
ônus processual (art. 1.102c, § 1º). Nessa fase, a atividade jurisdicional não tem propriamente natureza contenciosa, consistindo, na prática, numa espécie de convocação para que o devedor cumpra sua prestação.
Nada impede que tal convocação possa ser feita à Fazenda, que, como todos os demais devedores, tem o
dever de cumprir suas obrigações espontaneamente, no prazo e na forma devidos, independentemente de
execução forçada. Não será a eventual intervenção judicial que eliminará, por si só, a faculdade – que, em
verdade, é um dever – da Administração de cumprir suas obrigações espontaneamente, independentemente
de precatório. Se o raciocínio contrário fosse levado em conta, a Fazenda Pública estaria também impedida
de ajuizar ação de consignação em pagamento. 2. A segunda fase, ou atividade, é a cognitiva, que se instala
caso o demandado ofereça embargos, como prevê o art. 1.102c do CPC. Se isso ocorrer, estar-se-á praticando atividade própria de qualquer processo de conhecimento, que redundará numa sentença, acolhendo
ou rejeitando os embargos, confirmando ou não a existência da relação creditícia. Também aqui não há
qualquer peculiaridade que incompatibilize a adoção do procedimento contra a Fazenda, inclusive porque,
se for o caso, poderá haver reexame necessário. 3. E a terceira fase é a executiva propriamente dita, que
segue o procedimento padrão do Código, que, em se tratando da Fazenda e não sendo o caso de dispensa
de precatório (CF, art. 100, § 3º), é o dos artigos 730 e 731, sem qualquer dificuldade. 4. Não procedem
as objeções segundo as quais, não havendo embargos, constituir-se-ia título executivo judicial contra a
Fazenda Pública, (a) consagrando contra ela efeitos da revelia a que não se sujeita, e (b) eliminando reexame necessário, a que tem direito. Com efeito, (a) também na ação cognitiva comum (de rito ordinário
ou sumário) a Fazenda pode ser revel e nem por isso há impedimento à constituição do título, ainda mais
quando, como ocorre na ação monitória, a obrigação tem suporte em documento escrito; e (b) o reexame
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processual a possibilidade de oposição de embargos à execução para atacar execução
e/ou título executivo judicial, em atendimento à redação conferida pela própria Lei
nº 11.232/05 para o art. 741 do Código de Processo Civil. A posição vencedora do
cabimento da ação monitória contra a Fazenda Pública, à luz da Lei nº 9.079/95,
sustentou – para a admissão da tutela diferenciada – que não há embaraço que
prejudique a Fazenda, como ré de demanda monitória, pois, nos termos do (revogado)
art. 1.102-C, tão logo convertido o mandado injuntivo em executivo, o credor estaria
jungido a observar a “[...] forma do Livro II, Título II, Capítulo II e IV (execução
stricto sensu)”.
Essa justificativa encontra-se (ao menos formalmente) abalada, haja vista que sua
motivação estava encartada no art. 1.102-C e seu respectivo § 3º que, justamente,
foram modificados no detalhe pela Lei nº 11.232/05. No novo panorama legal, a
execução do título obtido na ação monitória segue a via traçada pelo novo capítulo
(cumprimento da sentença), conforme Livro I, Título VIII, Capítulo X, do Código de
Processo Civil. Ocorre que, mesmo com a alteração do art. 1.102-C, e, via de talante,
a ação monitória não seguir mais o gabarito do Livro II, Título II, Capítulo II e IV,
é perfeitamente possível interpretarem-se as nuances da Lei nº 11.232/05 para, com
base na posição favorável da Fazenda Pública, afirmar que é viável o ajuizamento
da ação monitória no particular, desde que se unifique a interpretação do sistema e
se apliquem os novos regramentos frente às exigências constitucionais. No mister, é
essencial transcrever a redação do art. 741 do Código de Processo Civil, deflagrada
pela Lei nº 11.232/05:
Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos
só poderão versar sobre:
I – falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia;
II – inexigibilidade do título;
III – ilegitimidade das partes;
IV - cumulação indevida de execuções;
V – excesso de execução;
VI – qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da
obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação
ou prescrição, desde que superveniente à sentença;
VII - incompetência do juízo da execução, bem como suspeição
necessário não é exigência constitucional e nem constitui prerrogativa de caráter absoluto em favor da
Fazenda, nada impedindo que a lei o dispense, como aliás o faz em várias situações. 5. Registre-se que os
óbices colocados à adoção da ação monitória contra a Fazenda poderiam, com muito maior razão, ser opostos em relação à execução, contra ela, de título extrajudicial. E o STJ consagrou em súmula que ‘é cabível
execução por título extrajudicial contra a Fazenda Pública’ (Súmula 279). Precedente da 1ª Seção: RESP
434571/SP, relator p/acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 08.06.2005. 6. Embargos de divergência a que
se dá provimento.” (STJ, Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, 1ª Seção, j. 09/11/2005, DJ 05.12.2005,
p. 207). Confira, também, fundamentado: (STJ, REsp. 603.859/RJ, 1ª Turma, Rel. Ministro LUIZ FUX, j.
01.06.2004, DJ 28.06.2004, p. 205).
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ou impedimento do juiz.
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput
deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial
fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais
pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação
ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo
Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição
Federal.
A alteração legislativa não implicou a mudança apenas de um dispositivo (art. 741),
tendo efeito mais amplo, haja vista que ocorreu a reformulação do Livro II, Título
III, Capítulo II, do Código de Processo Civil, fixando-se os embargos à execução
do art. 741 (e disposições seguintes) como ferramental do microssistema do Poder
Público em juízo. Com efeito, não se pode negar que o art. 741, nada obstante sua
posição geográfica estar centrada no Código de Processo Civil, é norma que compõe
o chamado micromodelo processual do Estado, consoante a locução de Silva (2004,
p. 79), em que há a amplificação dos meios de defesa para a Fazenda Pública, sob a
justificativa da necessidade de proteção do patrimônio e interesse público13, quebrando
a isonomia processual, ainda que no seu aspecto ideológico.
O art. 475-L é absolutamente incompatível com o micromodelo processual do Estado,
pois sua concepção está firmada em várias normas, que aduzem medidas de apoio em
prol do credor, que não se coadunam com a execução contra a Fazenda Pública. Basta
13
Quer dizer, em pontuação mais precisa, interesse público secundário, conforme classificação de Renato
Alessi, que será coincidente ou não com o interesse público primário, do povo. A distinção é oportuna,
consoante versa a doutrina italiana os interesses públicos primários são os interesses da coletividade como
um todo, do povo compreendido como ente filosófico e último depositário dos poderes estatais (“todo poder
emana do povo”, na dicção do art. 1º, parágrafo único da CF/88). Secundários, por outro lado, seriam os
interesses em que o Estado, em razão de sua configuração como pessoa jurídica, se apresenta em relação aos
outros sujeitos de direito, independente da condição de zelador de direitos de terceiros, da coletividade. Os
interesses secundários são – resguardada a sua legítima função - a atuação pela administração dos interesses
públicos primários. Contudo, como no caso em tela, a identificação entre uns e outros nem sempre é direta.
Seguindo a linha do pensamento de Alessi, expõe Mello (2005, p. 57) essa diferença, afirmando-a sobre a
doutrina de Picardi e Carnelutti, hoje moeda corrente na Itália: “Esta distinção a que se acaba de aludir, entre interesses públicos propriamente ditos – isto é, interesses primários do Estado – e interesses secundários
(que são os últimos a que se aludiu) é de trânsito corrente e moente da doutrina italiana, e a um ponto tal
que, hoje, poucos doutrinadores daquele país se ocupam em explicá-los, limitando-se a fazer-lhe menção,
como referência a algo óbvio, de conhecimento geral. Este discrímen, contudo, é exposto com exemplar
clareza por Renato Alessi (1960, p. 197 e notas de rodapé 3 e 4), colacionando lições de Carnelutti e Picardi,
ao elucidar que os interesses secundários do Estado só podem ser por ele buscados quando coincidentes
com os interesses primários, isto é, com os interesses públicos propriamente ditos”. Justamente por isso,
os interesses secundários não são atendíveis a não ser quando coincidem, se identificam no mínimo teleologicamente, com os interesses primários, estes sim, únicos que devem ser perseguidos por aqueles que os
encarnam e representam. Como foi dito: “Percebe-se, pois, que a Administração não pode proceder com a
mesma desenvoltura e liberdade com que agem os particulares, ocupados na defesa das próprias conveniências, sob pena de trair sua missão própria e sua própria razão de existir.” (MELLO, 2005, p. 57).
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lembrar que o art. 475-J fala sobre constrição de bens, possibilidade inadmissível
em execuções contra a Fazenda Pública, e o art. 475-M fixa, como regra, a falta de
suspensividade da impugnação do devedor (o que não ocorre com os embargos à
execução, sendo inconcebível tal posição absolutamente favorável ao credor nas
execuções contra o Poder Público). Dessa forma, tratando-se de execução contra a
Fazenda Pública, tendo como vetor título executivo resultante de ação monitória,
utilizam-se – pela natureza especial da relação – os embargos do art. 741 do Código
de Processo Civil, como instrumento processual adequado para a defesa dos interesses
do executado, dada a falta de simetria estrutural do art. 485-L para a situação, e
como perfeita possibilidade de adaptabilidade da primeira norma (art. 741) para a
missão.14
Caso a execução decorrente da ação monitória seja de valor inferior, para efeito do §
3º do art. 100 da Carta Constitucional, não vislumbramos óbice intransponível para
que credor legitimado venha a se valer da via extraordinária da Lei 10.259/01 (que
dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal),
fazendo-se a requisição judicial do montante devido, nos termos do art. 17, § 1º, do
diploma em referência. O mais importante é, pois, perceber que a execução do título
monitório (aperfeiçoado em executivo) deve respeitar os meandros do micromodelo
processual do Estado, não sendo praticável o uso de normas gerais, como é o caso,
especificamente, do art. 475-L.
7. Ação Monitória e a formação de título para entrega de coisa fungível ou de
determinado bem móvel (parte final do art. 1.102-C)
Em arremate final, deve-se anotar que a nova redação do art. 1.102-C acabou por
afastar os arts. 621 a 628 (execução para entrega de coisa certa) e os arts. 629 a
621 (execução para entrega de coisa incerta) no que tange às duas últimas hipóteses
de cabimento da ação monitória, segundo a estampa da parte final do art. 1.102-A
(entrega de coisa fungível ou entrega de determinado bem móvel).15 O art. 1.102-C,
ao eliminar do espectro da ação monitória o tecido do Livro II, Título II, Capítulos II
e IV do Código de Processo Civil, rejeitou, no seu traçado, a formação de processo
executivo previsto nos ditos compartimentos, a saber: execução para entrega de coisa
14
Sobre o princípio da adaptabilidade, pouco conhecido, mas essencial à instrumentalidade processual e à
operabilidade material, confira-se: Oliveira (1999) e Didier Júnior (2001), para quem: “Em síntese: adaptase o processo ao seu objeto, tanto no plano pré-jurídico, legislativo, abstrato, com a construção de procedimentos compatíveis com o direito material, como no plano do caso concreto, processual, permitindo-se
ao magistrado, desde que previamente (em homenagem ao princípio da tipicidade), alterar o procedimento
conforme às exigências”.
15
“Art. 1.102-A - A ação monitória compete a quem pretender, com base em prova escrita sem eficácia
de título executivo, pagamento de soma em dinheiro, entrega de coisa fungível ou de determinado bem
móvel” (grifo nosso).
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(Capítulo II); execução por quantia certa contra devedor solvente (Capítulo IV).
Desse modo, os arts. 621 a 628 (execução para entrega de coisa certa) e os arts. 629
a 621 (execução para entrega de coisa incerta) perderam o vínculo com a redação do
art. 1.102-A, razão pela qual, tratando-se de ação monitória, a projeção para a entrega
de coisa fungível ou entrega de determinado bem móvel, após a Lei nº 11.232/05,
deverá observar os ditames dos arts. 461 e 461-A do Código de Processo Civil.
A conclusão intuitiva é reforçada pela letra legal do caput do art. 475-I, que
justamente se localiza no novo ambiente legal vinculado à ação monitória (Livro I,
Título VIII, Capítulo X – Cumprimento da sentença). Senão vejamos: “Art. 475-I.
O cumprimento da sentença far-se-á conforme os arts. 461 e 461-A desta Lei ou,
tratando-se de obrigação por quantia certa, por execução, nos termos dos demais
artigos deste Capítulo” (grifo nosso)16. Desse modo, o art. 475-I faz a devida recepção
do art. 1.102-A em toda sua completude.
De toda sorte, a alteração em tela demonstra que não houve qualquer intenção do
legislador em permitir que a parte passiva da ação monitória venha a se utilizar dos
embargos à execução, em oposição executiva, às hipóteses do leque legal do art. 1.102A do Código de Processo Civil: (a) pagamento em soma em dinheiro, (b) entrega de
coisa fungível, e (c) entrega de determinado bem móvel.
16 Dispositivo na íntegra: Art. 475-I. O cumprimento da sentença far-se-á conforme os arts. 461 e 461-A
desta lei ou, tratando-se de obrigação por quantia certa, por execução, nos termos dos demais artigos deste
Capítulo.
§ 1º. É definitiva a execução da sentença transitada em julgado e provisória quando se tratar de sentença
impugnada mediante recurso ao qual não foi atribuído efeito suspensivo.
§ 2º. Quando na sentença houver uma parte líquida e outra ilíquida, ao credor é lícito promover simultaneamente a execução daquela e, em autos apartados, a liquidação desta.
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2.2 AGÊNCIAS REGULADORAS INDEPENDENTES
E LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA1
RICARLOS ALMAGRO
Juiz Federal
Doutorando em Direito Público - PUC-Minas
Mestre em Direito – UGF/RJ
Especialista em Direito Processual Público – UFF/RJ
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Do liberalismo ao estado social. 3. As agências
reguladoras. 3.1 A autonomia das agências reguladoras independentes. 3.2 Da
democracia liberal à visão dialógica. 3.3 A autonomia das agências reguladoras
independentes sob o viés democrático-dialógico. 4. Conclusão. 5. Bibliografia.
1. Introdução
De um panorama de afirmação absoluta das liberdades, própria do liberalismo,
migra-se para um novo papel do Estado, em que as demandas por igualdade social
se apresentam. O advento do Estado social agiganta as tarefas administrativas e a
insustentabilidade desse quadro clama por novos paradigmas administrativos que irão
culminar no novo papel do Estado, situado no âmbito de formação de parcerias entre
o público e o privado, diminuindo a tensão entre os dois conceitos, a par de outros
câmbios, como aquele indicado por Bresser Pereira2:
1
O presente texto foi produzido ao longo dos estudos desenvolvidos no âmbito da disciplina “Tendências
do Direito Administrativo: Adm. Pública Dialógica”, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Marinella Machado Araújo, no Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Faculdade Mineira de Direito (PUC-Minas).
2
Bresser Pereira esclarece que “Desde meados dos anos 80, os países altamente endividados têm-se dedicado a promover o ajuste fiscal, a liberalizar o comércio, a privatizar, a desregulamentar”. A par dos avanços
que daí advieram, complementa o autor (PEREIRA, 1999, 22-23):
A premissa neoliberal que estava por trás das reformas – de que o ideal era um Estado mínimo, ao qual caberia apenas garantir os direitos de propriedade, deixando ao mercado a total coordenação da economia – provou ser irrealista (...) Por outro lado, tornou-se cada vez mais claro que a causa básica da grande crise dos anos 80
– uma crise que só os países do Leste e do Sudeste asiático conseguiram evitar – foi o Estado: uma crise fiscal
do Estado, uma crise do tipo de intervenção estatal e uma crise da forma burocrática de administração do Estado.
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Paralelamente a tudo isso, a crise dos anos 80, que assolou
sobretudo os países sul-americanos, recomendou a flexibilização
do arquétipo administrativo de outrora, afirmando a luta pela
quebra dos parâmetros da administração burocrática e pela
adoção de um modelo gerencial de administração, voltado
sobretudo à concretização do princípio da eficiência (PEREIRA
in PEREIRA; SPINK, 1999, p. 22).
Nesse contexto surgem as agências reguladoras, só tardiamente ingressando em
nosso sistema jurídico (por volta dos anos 90), com a criação da ANATEL pela Lei nº
9.472/97. O presente trabalho visa a dar notícia desse panorama histórico e perfilhar
um quadro estrutural dessas entidades, bem como do seu regime jurídico, para, afinal,
mudando o enfoque mais tradicional, voltado ao estudo do campo de autonomia
dessas agências, situar a questão da sua legitimidade democrática, com a análise da
possibilidade de introdução de mecanismos dialógicos de participação popular na sua
atuação e controle.
2. Do liberalismo ao estado social
A idealização de um modelo estatal que atenda aos ditames de um sistema justo
não é preocupação recente. A derrocada do feudalismo revela a insurreição contra
os privilégios feudais. A sociedade atomizada foi substituída pela idéia de unidade
nacional, que convergiu no surgimento dos Estados-Nação, fundados na construção
de um conceito de soberania que serviu de instrumento de concentração de poderes
na pessoa do príncipe.
Assim, tais estados nacionais revelaram, no regime monárquico absolutista, a opressão
esmagadora dos direitos individuais, favorecendo o lançamento do manifesto liberal,
propelido pelo ideal de liberdade frente ao Estado.
Inaugurou-se a dicotomia do poder. A soberania implícita na idéia de Estado
representava afronta ao mais caro ideal humano – a liberdade.
Como bem assevera Paulo Bonavides (1996, p. 40), na doutrina do liberalismo, o
Estado foi sempre o fantasma que atemorizou o indivíduo. O poder, de que não pode
prescindir o ordenamento estatal, aparece, de início, na moderna teoria constitucional
como o maior inimigo da liberdade.
Paralelamente, o comércio medieval, sustentado em bases de produção corporativas,
expande-se pelo mar e a economia de urbana passa a ser nacional. Esse crescimento
econômico, embora ainda incipiente, frente à revolução que iria ocorrer no século
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seguinte, lançou o manifesto burguês, modelado sob um arquétipo de representação
de todo o corpo social, viabilizando a instalação do Terceiro Estado no poder,
historicamente atrelada ao movimento revolucionário de 1789. Para tal desiderato,
carecia a burguesia de legitimação, conquistada ao arvorar-se defensora das liberdades
ou, nas palavras de Paulo Bonavides (1996, p. 44), “[...] fez, pretensiosamente, da
doutrina de uma classe a doutrina de todas as classes”. A sua instalação no poder não
veio acompanhada da concretização dos caros ideais revolucionários, sufocados por
desigualdades sociais que se instalaram.
A mão invisível do mercado levou o primado da liberdade à esfera econômica,
projetando desigualdades sociais que asfixiavam as próprias liberdades individuais.
Assim, as antíteses verificadas entre o modelo proposto pela burguesia e a realidade
social e política emergente conduziram à corrosão da expressão liberal.
As novas tecnologias que, incipientes, introduziam novos modos de produção,
provocaram uma silenciosa renovação nas relações de trabalho, onde a usurpação
do ideal de vida boa levou a uma verdadeira revolução. Constatava-se a formação de
castas privilegiadas economicamente e, de outro lado, uma sociedade escravizada, a
qual retoma a luta pela afirmação das liberdades, agora pautada no viés da igualdade.
O Estado, até então liberal e não interventor, tornar-se-ia o garante do reequilíbrio das
forças econômicas e o provedor das necessidades básicas dos cidadãos. Já não basta
aquela liberdade negativa frente ao Estado, impõe-se a atuação desse na realização de
prestações efetivas que garantam o bem-estar social.
O Estado de bem-estar social (welfare state) se compromete com um novo plexo de
atribuições que somente aumentam com o tempo, o que levaria à falência do modelo
providencial. A ineficiência e os insuportáveis custos estatais conduziram à busca de
novos modelos de gestão, sobretudo pela descentralização da prestação dos serviços
públicos, a retirada parcial do Estado do âmbito econômico, como explorador direto
dessa classe de atividade, firmando o seu papel na regulação desse mercado e no
incentivo à formação de parcerias entre o público e o privado, sobretudo mediante a
técnica de fomento.
É como resumidamente esclarece Luiz Roberto Barroso (2005, p. 2):
A quadra final do século XX corresponde à terceira e última fase ,
a pós-modernidade, que encontra o Estado sob crítica cerrada,
densamente identificado com a idéia de ineficiência, desperdício
de recursos, morosidade, burocracia e corrupção. Mesmo junto
a setores que o vislumbravam outrora como protagonista do
processo econômico, político e social, o Estado perdeu o charme
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redentor, passando-se a encarar com ceticismo o seu potencial
como instrumento do progresso e da transformação. O discurso
deste novo tempo é o da desregulamentação, da privatização e
das organizações não-governamentais.
Tal é a noção de subsidiariedade, em cujas idéias centrais sobressai a de que devem
ser respeitadas as liberdades individuais, contendo-se a intervenção estatal, de forma
a permitir ao particular que detenha condições de exercer atividades, que o faça por
sua própria iniciativa e recursos. Por outro lado, a participação do Estado deve voltarse à garantia de sucesso do empreendimento particular, mediante o fornecimento de
incentivos, a coordenação, a fiscalização e o fomento. Finalmente, propõe-se, através
dele, uma parceria entre o poder público e particulares (parceria público-privado).
De notar-se que o perfil que ora é descrito não se adequa ao ideal de Estado mínimo. Ao
contrário, a perspectiva não é a de supressão do papel estatal, mas da sua redefinição,
sob novos moldes de gestão e organização, como já se adiantou acima. Essa distinção
é bem colocada por Di Pietro (1997, p. 25):
Como se vê, não se confunde o Estado Subsidiário com o Estado
Mínimo; neste, o Estado só exercia as atividades essenciais,
deixando tudo o mais para a iniciativa privada, dentro da idéia
de liberdade individual que era inerente ao período do Estado
Liberal; naquele, o Estado exerce as atividades essenciais, típicas
do Poder Público, e também as atividades sociais e econômicas
que o particular não consiga desempenhar a contento no regime
da livre iniciativa e livre competição. Além disso, com relação
a estas últimas, o Estado deve incentivar a iniciativa privada,
auxiliando-a pela atividade de fomento.
Portanto, a falência do Estado providencial impôs um processo amplo de privatização3,
efetivado em âmbito global, caracterizando um verdadeiro giro histórico, para
utilizarmos uma expressão de Gaspar Ariño Ortiz (CASAGNE; ORTIZ, 2005, p. 9).
Confira:
3
Na lição de Di Pietro (1997, p. 13-15), o termo assume, de um lado, conotação ampla, abarcando a desregulação (diminuição da intervenção do Estado no domínio econômico), a desmonopolização de atividades
econômicas, a venda de ações de empresas estatais ao setor privado (desnacionalização ou desestatização),
a concessão de serviços públicos e os contracting out (“Fórmula pela qual a Administração Pública celebra acordos de variados tipos para buscar a colaboração do setor privado, podendo-se mencionar, como
exemplos, os convênios e os contratos de obras e prestação de serviços”), aqui entrando a terceirização;
e, de outro lado, tem uma conotação restrita, que “abrange apenas a transferência de ativos ou de ações de
empresas estatais para o setor privado” (disciplinada no direito brasileiro pela Lei n.º 8.031/95). No texto,
empregamos a expressão no primeiro sentido.
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El término ‘privatización’ ha sido en estos anos una palabra
mágica que encarnaba en si misma una transformación
profunda en el modelo de Estado. Ha significado un verdadero
‘tournant de l’historie’, como una nueva encrucijada histórica,
caracterizada por la liberalización de actividades, la apertura
de fronteras, la supresión de monopolios y la privatización de
tareas y empresas públicas. Después de más de medio siglo de
expansión del Estado, este ha empezado a retirarse de la actividad
económica, para concentrarse en lo que son sus funciones
soberanas. Este cambio de modelo, que se inicia a finales de
los ochenta en el Reino Unido, no es propio de un país o de
un gobierno concreto. Es universal, es un proceso de biología
histórica que está teniendo importantes manifestaciones tanto
en Europa como en Iberoamérica, e implica esencialmente un
cambio de tareas - de roles - entre el Estado y la Sociedad.
Nesse novo modelo de atuação do Estado, revela-se importante o papel das agências
reguladoras.
3. As agências reguladoras
Como vimos, a idéia de um Estado subsidiário se reflete, dentre outros, na diminuição
do seu papel como agente econômico e prestador direto dos serviços públicos; no
incremento da atividade de fomento, em decorrência da visão de parceria entre o
público e o privado, cuja separação estanque é diluída em processos de simbiose
na formação do espaço público, como adiante se verá; e no repúdio aos modelos
burocráticos de organização, que, auto-referenciais, centram-se em procedimentos
formalistas e, descurando-se dos resultados, obnubilam o princípio da eficiência.
Há uma evidente interpenetrabilidade entre os sistemas econômico e jurídico, a
reclamar um reajuste dos modelos estruturais e de atuação da Administração Pública.
Nesse contexto, a idéia de descentralização vai assumir relevância crescente. Em
uma visão tradicional, costuma-se diferenciá-la da noção de desconcentração, própria
de qualquer atividade administrativa, em que se constata, em um quadro de unidade
subjetiva, divisão orgânica de competências, mantendo-se o controle hierárquico. Por
sua vez, na descentralização, são criados novos entes, dotados de autonomia funcional
para a persecução dos seus objetivos institucionais com maior eficiência. Assim, ela é
marcada pela pluralidade de sujeitos e pela ausência de subordinação hierárquica.
Em que pese tal nota, a realidade institucional brasileira foi marcada pelo apego a
processos burocráticos de administração, que acabaram por resistir a essa flexibilização
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do controle ministerial, asfixiando a autonomia das autarquias criadas por tal processo
de descentralização. A tal ponto isso ocorreu, que se chega a afirmar a existência de
um quadro de “desautarquização das autarquias” (VENÂNCIO FILHO, 1998 apud
ARAGÃO, 2002, p. 273), daí gerando a formação das denominadas autarquias de
regime especial, exatamente para conferir-lhes maior autonomia.
Com isso, queremos afirmar que a mera criação de uma pessoa jurídica, destacada do
Poder Central e voltada à perseguição de fins específicos, não lhes dá a nota típica de
entidade descentralizada, senão formalmente. O que nos interessa essencialmente é o
regime de autonomia reforçada, próprio de uma descentralização material4.
A interpenetrabilidade entre os sistemas jurídico e econômico, tal como anotado
acima, reivindica novos mecanismos de gestão do interesse público. Nesse contexto,
sem totalizar o fenômeno, são criadas entidades, como fruto de uma efetiva
descentralização administrativa, marcando o surgimento das agências reguladoras
independentes, onde a nota da autonomia é essencial à maleabilidade necessária ao
enfrentamento das oscilações do sistema econômico.
3.1 A autonomia das agências reguladoras independentes
As agências reguladoras têm na autonomia a sua marca típica, sendo exatamente ela
que permitirá o seu caráter dinâmico, associado à blindagem contra oscilações políticas
que poderiam comprometer a sua eficiência. Efetivamente, não se trata de uma total
independência, como à primeira vista poderia sugerir o seu nome; ao contrário, como
bem salienta Alexandre Aragão (2002), trata-se apenas de uma autonomia reforçada,
pois estão submetidas aos objetivos demarcados em lei e às políticas públicas fixadas
para o setor em que atuam.
No Direito Francês, as agências reguladoras têm a sua autonomia marcada pelo que é
denominado estatuto da independência. As autoridades administrativas independentes
(como lá são denominadas as agências reguladoras), diferentemente do que ocorre no
direito brasileiro, não são dotadas de personalidade jurídica, sendo órgãos integrantes
da estrutura administrativa do Poder Central. Por isso mesmo, a sua independência
assume ainda maior importância. Como bem observa Olivier Dugrip (1988, p. 3):
4
De notar-se ainda o fato de que, no direito francês, as autoridades administrativas independentes (paralelo
das agências estudadas) não são dotadas de personalidade jurídica, mas, a despeito de tal nota, além de
poderem perseguir seus interesses em juízo, são brindadas com uma autonomia reforçada, típica de um
quadro de descentralização material.
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A independência de tais autoridades administrativas em face do
Governo é sua razão de ser. Ela lhes dá a sua originalidade e
as distingue de outras estruturas administrativas integrantes da
hierarquia administrativa. Ela exclui toda noção de dependência,
tutela ou controle; os poderes públicos não lhes podem dirigir
nem ordens nem instruções. Dispondo de um poder próprio, elas
definem, elas mesmas, sua ação e exercem suas atribuições de
maneira totalmente autônoma [...]. Para que esta independência
seja realmente assegurada, elas se beneficiam de garantias de
independência orgânica e funcional próprias a protegê-las de
pressões exteriores.
Esse estatuto da independência se reflete na existência de garantias estatutárias e
independência orgânica e funcional. Quanto à independência orgânica, ela se faz
presente na composição colegiada daqueles órgãos, definida no texto constitucional,
sendo a indicação dos seus membros dirigentes feita por assembléias das mais altas
cortes jurisdicionais, tais como a Corte de Contas, o Conselho de Estado e a Corte
de Cassação, ou por altas autoridades políticas, como o Presidente da República e o
Presidente do Senado (ou ainda por uma e outra). A par dessa forma de designação,
há garantias estatutárias, como a existência de um mandato de duração fixa e
relativamente longa, o qual não é renovável, tampouco revogável; e a garantia da
inamovibilidade dos seus membros. Completando o quadro sucintamente delineado,
destaca-se ainda a independência funcional, marcada pela autonomia de gestão
material e financeira; pelo quadro próprio de pessoal, subordinado à autoridade do seu
presidente, que também é ordenador de despesas; pela competência normativa para a
elaboração do seu próprio regulamento interno; dentre outras.
No Brasil, o surgimento das agências reguladoras tem a sua marca na década de
noventa, com a criação da ANATEL pela Lei nº 9.472/97. Considerando que nos
Estados Unidos da América, a primeira agência surgiu em 1887 (ICC – Interstate
Commerce Comission), pode-se afirmar que por aqui houve uma eclosão retardada
do fenômeno.
Não sendo a análise da sua causa objeto do presente trabalho, podemos apenas
resumidamente sinalizar para possíveis influências no retardamento do surgimento das
agências. Uma delas, a tardia retirada do Estado do mercado, como agente econômico,
de forma que a sua presença como agente prestador direto tornava, ao menos em tese,
menos relevante o papel da regulação independente5.
5
Reforçando a idéia, a nota de Armínio Fraga, quando na Presidência do Banco Central do Brasil (Jornal do Comércio, 20/21 de agosto de 2000): “Com a redução das estatais, o Governo teme que haja uma
concorrência predatória, repasses indiscriminados de custos e acordos de cartelização. Por isso, o governo
pretende criar imediatamente as superagências reguladoras”.
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Por outro lado, a abertura dos mercados ao capital internacional, ocorrida no âmbito
do Governo Fernando Henrique Cardoso, gerava a necessidade de segurança para os
investidores estrangeiros contra oscilações nas políticas governamentais, exigindose um compromisso regulatório, viabilizado pela criação de agências independentes
que pudessem manter a estabilidade dos acordos, a justificar os elevados ingressos de
capital no País. Nesse sentido, o magistério de Gustavo Binenbojm (2005, p. 6):
O contexto político, ideológico e econômico em que se deu
a implantação das agências reguladoras no Brasil, durante os
anos 1990, foi diametralmente oposto ao norte-americano. Com
efeito, o modelo regulatório brasileiro foi adotado no bojo de
um amplo processo de privatizações e desestatizações, para o
qual a chamada reforma do Estado se constituía em requisite
essencial. É que a atração do setor privado, notadamente o capital
internacional, para o investimento nas atividades econômicas
de interesse coletivo e serviços públicos objeto do programa de
privatizações e desestatizações estava condicionada à garantia
de estabilidade e previsibilidade das regras do jogo nas relações
dos investidores com o Poder Público.
Na verdade. mais do que um requisito, o chamado compromisso
regulatório (regulatory commitment) era, na prática, verdadeira
exigência do mercado para a captação de investimentos. Em
países cuja história recente foi marcada por movimentos
nacionalistas autoritários (de esquerda e de direita), o risco de
expropriação e de ruptura dos contratos é sempre um fantasma
que assusta ou espanta os investidores estrangeiros. Assim, a
implantação de um modelo que subtraísse o marco regulatório
do processo político-eleitoral se erigiu em verdadeira tour
de force da reforma do Estado. Dai a idéia da blindagem
institucional de um modelo, que resistisse até a uma vitória da
esquerda em eleição futura.
Se, de uma parte, a criação de agências reguladoras dotadas
de acentuado grau de autonomia servia ao bom propósito de
desestruturar os chamados “anéis burocráticos” existentes
nos Ministérios, de outra parte, o mandato fixo de seus
dirigentes e seu compromisso técnico sinalizavam ao mercado
o compromisso do próprio país de proteger o direito de
propriedade dos investidores e garantir o cumprimento fiel dos
contratos celebrados ao cabo dos processos de privatização e
desestatização.
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Sob o aspecto jurídico, destaca-se a resistência do Supremo Tribunal Federal em
aceitar a autonomia dessas entidades, tal como nos dá mostra o verbete nº 25 da sua
súmula jurisprudencial, verbis: “a nomeação a termo não impede a livre demissão,
pelo Presidente da República, de ocupante de cargo de dirigente de Autarquia”. Essa
posição somente tardiamente foi alterada, como registra a decisão proferida na Ação
direta de Inconstitucionalidade n.º 1.949-0:
[...] é inquestionável a relevância da alegação de
incompatibilidade com o princípio fundamental da separação
e independência dos poderes, sob o regime presidencialista do
art. 8.º das leis locais, que outorga à Assembléia Legislativa
o poder de destituição dos conselheiros da agência reguladora
autárquica, antes do final do período da sua nomeação a termo. A
investidura a termo – não impugnada e plenamente compatível
com a natureza das funções das agências reguladoras – é, porém,
incompatível com a demissão ad nutum pelo Poder Executivo:
por isso, para conciliá-la com a suspensão cautelar da única
forma de demissão prevista na lei – ou seja, a destituição por
decisão da Assembléia Legislativa -, impõe-se explicitar que se
suspende a eficácia do art. 8.º dos diplomas estaduais referidos,
sem prejuízo das restrições à demissibilidade dos conselheiros
da agência sem justo motivo, pelo Governador do Estado, ou da
superveniência de diferente legislação válida.
Portanto, podemos destacar que as agências reguladoras se inserem em um quadro
de redefinição do papel do Estado, orientado para mudanças operadas pelo sistema
econômico sobre o jurídico, que se reflete no modus operandi da Administração
Pública. Há um processo de descentralização determinante no marco do surgimento
dessas agências, que lhes dá a nota típica da autonomia reforçada de que acima
falamos.
Contrariamente aos móveis que orientaram o surgimento dessas agências no direito
norte-americano6, no Brasil, diversos fatores concorreram para a sua formação tardia,
como vimos. A sua autonomia, como nota típica, desde cedo proporcionou conflitos
6
Os móveis que impulsionam o desenvolvimento do direito regulatório nos EUA são bem diversos daqueles presentes no direito brasileiro. Como bem afirma Binenbojm (2005, p. 3): “As agências reguladoras
se afirmam, portanto, no cenário político norte-americano, como entidades propulsoras da publicização
de determinados setores da atividade econômica, mitigando as garantias liberais clássicas da propriedade
privada e da autonomia da vontade”. E conclui (BINENBOJM, 2005, p. 6): “De fato, enquanto nos Estados
Unidos as agências foram concebidas para propulsionar a mudança, aqui foram elas criadas para garantir
a preservação do status quo; enquanto lá buscavam elas a relativização das liberdades econômicas básicas,
como o direito de propriedade e a autonomia da vontade, aqui sua missão era a de assegurá-las em sua
plenitude contra eventuais tentativas de mitigação por governos futuros”.
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estruturais, sobretudo no campo do apego à doutrina da separação de poderes, já que
tais agências são dotadas de competências normativas próprias, além da possibilidade
de dirimirem conflito de interesses no âmbito do seu campo regulatório, sem prejuízo
ainda da nítida competência administrativa. Entretanto, a par dessas questões
históricas, que também passamos a enfrentar7, certo é que o paradigma do Estado
Democrático de Direito revela o vértice de um ângulo, a partir do qual se projetam
novos questionamentos, que tocam a legitimidade política dessas entidades e de sua
atuação sob um viés democrático-participativo, inclusive no âmbito do seu controle.
3.2 Da democracia liberal à visão dialógica
Como esclarecemos acima, a tradição liberal tem seu substrato na idéia de liberdade
individual. Assim, se as suas bases estão nas liberdades humanas, como arcabouço
indispensável à realização das suas capacidades, então devem estar ao abrigo de
interferências estatais ou mesmo das massas, daí resultando a idéia de liberdade
negativa.
O Estado é programado para o interesse da sociedade. Esse modelo reflete conseqüências
sobre a própria concepção de cidadão, cujo status é determinado pela medida dos
direitos subjetivos que detém frente aos concidadãos e ao próprio Estado. Como
afirma Jürgen Habermas, “Direitos subjetivos são direitos negativos que garantem
um espaço de ação alternativo, em cujos limites as pessoas do direito se vêem livres
de coação externas” (2002, p. 277-292). Por sua vez, o problema fundamental, no
viés político, reside em equacionar o respeito a tais liberdades no governar, i.e.,
“como ser governado sem ser oprimido?” (VILANI, 2002, p. 40). Em função disso,
certas estruturas de garantia e participação estarão presentes nos modelos liberais,
tais como a representação política, a separação de poderes, o pluripartidarismo e a
constitucionalidade.
Portanto, os direitos políticos conferem aos cidadãos a possibilidade de validar os
seus interesses particulares, agregando-os a outros interesses privados e, afinal,
transformados em uma vontade política que exerça influência sobre a Administração.
Daí porque “segundo a concepção liberal, a formação democrática da vontade tem
exclusivamente a função de legitimar o exercício do poder político. Resultados de
eleições equivalem a uma licença para a tomada do poder governamental, ao passo
que o governo tem de justificar o uso desse poder perante a opinião pública e o
parlamento” (VILANI, 2002, p. 289).
7
Esse foco de tensão decorrente da autonomia das agências deu mostra na manifestação irresignada do
Presidente Lula, por ocasião do seu primeiro mandato, no sentido de que “as agências mandam no país”,
criticando o seu desconhecimento acerca das decisões que mais afetavam a população, porquanto não partiam do governo (Folha de São Paulo, 20.02.2003).
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Em um balanço positivo, Maria Vilani (2002, p. 43) assevera:
O liberalismo, quando visto não somente como mero produto
de interesses burgueses, pode ser reconhecido por seus grandes
legados à modernidade. Ao enfatizar o direito à individualidade,
ao proclamar a fecundidade das diferenças e da pluralidade de
pontos de vista, forneceu as bases para os “direitos fundamentais
do homem.
Ao contrário do liberalismo, na visão Republicana, a noção de liberdade assume
conotação bem diversa, não estando posta como poder dos cidadãos de autorizar
governos, mas de participar dos assuntos públicos, no sentido de autodeterminação
de um povo, de escolher o seu próprio destino. Essa idéia de participação política
repercute na noção de virtude cívica, a qual, juntamente com o valor atribuído à idéia
de bem comum, tem servido à manifestação de novas classes de direitos, realçando
também a idéia de participação popular nos assuntos do Governo, bem como a
valorização da solidariedade e dos interesses coletivos (VILANI, 2002, p. 44).
Portanto, aqui, ao contrário do que ocorre na visão liberal, a política não é o elemento
de intermediação entre o Estado e o cidadão; ela é constitutiva do processo de
coletivização social como um todo. Enquanto na concepção liberal, o Estado se
justifica pela sua função de proteção a direitos metapositivos, pré-existentes, naturais
do homem; na concepção republicana ele existe para permitir a inclusão da vontade
do cidadão na construção dos objetivos e normas que se voltem ao interesse comum.
Resumindo com Habermas (2002, p. 290):
Segundo a concepção republicana, a formação democrática da
vontade tem a função essencialmente mais forte de constituir
a sociedade como uma coletividade política e de manter viva
a cada eleição a lembrança desse ato fundador. O governo não
é apenas investido de poder para o exercício de um mandato
sem maiores vínculos, por meio de uma eleição entre grupos
de lideranças concorrentes; ao contrário, ele está comprometido
também programaticamente com a execução de determinadas
políticas. Sendo mais uma comissão do que um órgão estatal,
ele é parte de uma comunidade política que se administra a si
própria, e não o topo de um poder estatal separado.
No modelo democrático procedimental (ou dialógico), busca-se superar o excessivo
peso ético que a visão republicana atribui ao cidadão. Aqui, busca-se a integração de
elementos dos dois modelos anteriores, através de um procedimento de aconselhamento
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para a tomada de decisões. “Procedimento e pressupostos comunicacionais da formação
democrática da opinião e da vontade funcionam como importantes escoadouros da
racionalização discursiva das decisões de um governo e administração vinculados ao
direito e à lei” (HABERMAS, 2002, p. 290).
Aqui, o conceito de público não é dado a priori. O cidadão é pró-ativo, dividindo com
o Estado a responsabilidade pela sua definição. Rompe-se com essa dicotomia brutal
entre o público e o privado. O Estado deixa de assumir uma posição distanciada da
sociedade para construir com ela. A estrutura proposta é procedimental, dinâmica.
Está ausente uma primazia vigorosa. Não se tome, com isso, uma aproximação
com o modelo republicano, pois nesse último há um novo significado atribuído ao
interesse público, mais independente do interesse privado e construído com base em
uma vontade geral. Ao contrário, no modelo dialógico, reconhece-se uma sociedade
pluralista, a qual, dada essa heterogeneidade, multiplica o plexo de valores que a
permeia. Então, a virtude predominante não é aquela cívica, de orientação republicana,
mas a de aprender a conviver em meio a essa diversidade, o que somente será possível
através de um ambiente discursivo, em que se permita a ampla participação dos
interessados.
Daí porque Habermas (1997, p. 142) afirmará que “São válidas as normas de ação às
quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento na qualidade de
participantes de discursos racionais”. Se essa percepção provoca críticas contra uma
possível ingenuidade quanto à existência de situações ideais de fala, sobretudo nos
países subdesenvolvidos, que permitam aquela participação, Alexandre Travessoni
(GOMES in GOMES; MERLE, 2007, p. 69) replica:
[...] a situação ideal do discurso possui a força de uma idéia
reguladora: além de servir como guia para discursos empíricos,
ela torna possível criticar os resultados neles obtidos. Só
podemos buscar, seja no Brasil, seja em qualquer outro lugar,
um discurso empírico mais próximo das condições ideais
justamente porque pressupomos as condições ideais.
E onde estaria a pertinência desse processo dialógico no âmbito da atuação das
agências reguladoras independentes?
3.3 A autonomia das agências reguladoras independentes sob o viés
democratico-dialógico
Como acentua Alexandre Aragão, a maior vantagem das agências reguladoras
(distanciamento dos centros político-pártidários de decisão) é também o seu maior
risco. De fato:
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[...] A insurgência de espaços administrativos efetivamente
autônomos frente ao Poder Executivo central, do que as
agências reguladoras independentes constituem o exemplo
mais relevante em nosso Direito Positivo, é uma exigência da
eficaz regulação estatal de uma sociedade também diferenciada
e complexa. Todavia, a adoção de um modelo multiorganizativo
de Administração Pública traz riscos à legitimidade democrática
da sua atuação. Em outras palavras, uma das suas maiores
vantagens – a distância dos critérios político-partidários de
decisão, assegurada, sobretudo, pela impossibilidade do Chefe
do Poder Executivo (eleito) exonerar livremente os seus
dirigentes (nomeados) – é também um dos seus maiores riscos.
(ARAGÃO, 2002, p. 219)
E o problema não se resolve com a afirmação de que, exatamente em razão dessa
deficiência de legitimidade, a sua atuação seria meramente técnica, sob pena de, com
isso, encobrirmos o problema.
José Luiz Quadros assevera que os mecanismos tradicionais de participação popular,
centrados no modelo de eleições periódicas e de consultas esporádicas (plebiscito e
referendo), não dão conta em uma sociedade permeada por processos tecnológicos de
comunicação de massa, em tempo real e em âmbito global, que viabilizam a abertura
de novos mecanismos de diálogo.
A manter-se aquele modelo, o que se constata é um jogo de forças para a conquista
e manutenção do poder, que acaba por asfixiar o diálogo, sobretudo na ausência de
participação no processo de representação democrática, em face da inexistência de
efetiva representatividade e ineficácia da atuação do Poder Público.
Configura-se um quadro de inação participativa que, dentre outras origens, tem a
sua fonte na supressão de espaço democrático no âmbito da definição das políticas
pertinentes aos serviços públicos, usurpada sob o fundamento de tratar-se de
âmbito de atuação técnico-administrativo, acobertando um discurso sintaticamente
excludente, por, em tese, desautorizar a opinião popular. Daí o lançamento da seguinte
questão pelo citado autor: seria possível estabelecer uma dicotomia forte entre gestão
administrativa e funções de governo, a justificar a centralização dessas últimas no
âmbito político e as primeiras em instâncias técnicas independentes?
Para ele, a definição das linhas mestras das políticas públicas de investimento,
econômicas, de saúde e de educação, próprias da função de governo não poderiam ser
usurpadas pelas denominadas agências reguladoras, de inspiração norte-americana,
que, sob a justificativa da administração técnica, acabam por definir políticas públicas,
sob o manto excludente da tecnicidade de suas funções. Confira:
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A questão que nos interessa é que, para regular estes serviços
públicos privatizados, e, portanto, sujeitos aos interesses
privados que se impõem na prática aos interesses do público,
criou-se agências reguladoras, que passaram a assumir
competências de escolhas e definições de políticas públicas
destes setores, claramente usurpando funções de governo,
e portanto, usurpando funções democráticas, o que não tem
amparo constitucional. (MAGALHÃES, 2004, p. 5)
Já se disse acima que, a despeito da denominada independência das agências, o
que se verifica é uma autonomia reforçada, exatamente porque, mesmo diante da
impossibilidade de demissão ad nutum dos seus dirigentes, assegurando-lhe amplo
espectro de liberdade na persecução dos fins regulatórios da agência, ela deve
obediência às linhas mestras traçadas pelas políticas governamentais, ao que essa
dicotomia maniqueísta entre administração técnica e governo democrático se dissolve.
Além disso, “nem toda atividade dos reguladores é ditada apenas por sua expertise,
algum canal de comunicação entre os agentes políticos eleitos e as agências deve
existir, como exigência mínima de um /estado democrático” (BINENBOJM, 2005, p. 12).
Concordamos com Fátima Anastásia (2002), quando salienta que o grande desafio
da democracia contemporânea é a institucionalização de mecanismos contínuos de
participação política que viabilizem o controle dos governantes pelos governados,
que não se limitem a um processo de accountability vertical somente presente
nos momentos eleitorais. Ademais, é preciso reforçar a idéia de que o mecanismo
participativo de decisão por maioria pode não refletir adequadamente esse processo
participativo, daí porque o status representativo deve vir acompanhado de um crescente
nível participativo, que suprima o oligopólio da participação política pelos partidos.
A soberania popular não pode prestar-se a fundamentar ideologias dominantes e
oligopólios, como se tudo pudesse ser feito em nome daquele povo icônico a que se
referia Friedrich Müller, descontextualizado das nervuras do real. Ainda atual aquela
advertência formulada pelo autor mencionado, no sentido de devermos “Compreender
a soberania popular não como fórmula gasta de legitimação, mas como a ferida aberta
do estado constitucional moderno” (MÜLLER, 2000, p. 36).
Assim, é mister reconhecer que as democracias contemporâneas enfrentam ainda o
desafio da sua efetiva implementação como um processo contínuo de participação e
de controle dos governantes pelos governados8. Embora esses traços já se mostrem
8
Aqui novamente realçamos a inexistência de uma distinção forte entre a função de governo e a atuação das
agências reguladoras, aplicando-se o desafio mencionado tanto no contexto da atuação dessas entidades,
como no seu controle.
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desde a instituição do mecanismo de freios e contrapesos, aí se vêem limitados por
restringirem-se ao plano horizontal. Nas democracias contemporâneas, a verticalidade
desse processo (accountability) somente se constata nas eleições, sendo, portanto,
descontínua. Por isso, impõe-se a criação de instituições que viabilizem o exercício
do controle público dos governantes pelos governados nos interstícios eleitorais. No
âmbito do Brasil, constituições e leis orgânicas dão mostra dessas instituições quando
prevêem a participação popular na elaboração dos orçamentos públicos – orçamento
participativo, audiências públicas, iniciativa popular, seminários legislativos e fóruns
técnicos.
Esses mecanismos dão mostra da necessidade e da possibilidade de, servindo
ao propósito da participação democrática na atuação e no controle das agências
reguladoras independentes, criarmos espaços dialógicos de acompanhamento da sua
ação.
Já não podemos mais contentarmo-nos com um programa liberal, tampouco
sobrecarregar aquele ideal de virtude cívica republicana, sendo importante a abertura
de canais de participação dialógica entre o cidadão, o governo e o administrador
público, a fim de que aquela dimensão plural da sociedade seja conciliada com o
exercício de uma democracia efetivamente participativa e construtora de um ideal
dinâmico de vida comum.
E de que forma poderíamos efetivar esse caro ideal, no âmbito das agências reguladoras
independentes? Que alternativas seriam palpáveis á consolidação desse objetivo?
Como bem ressalta Gustavo Binenbojm (2005, p. 15), “[...] de parte os mecanismos de
controle exercidos pelos poderes instituídos, a participação dos cidadãos se apresenta
como a mais alentada forma de suprimento do problema do déficit de legitimação
democrática das agências independentes”.
Assim, a participação dialógica, como modelo habermasiano de superação do
monopólio da gestão administrativa, mesmo quando fundado no argumento da
discricionariedade técnica, bem poderia ser introduzida por mecanismos tais como
audiências públicas de instâncias sociais técnicas, como as universidades, para a
definição das denominadas “políticas técnicas”. Também a maior democratização
dos previstos conselhos consultivos, que se abririam a uma composição plural,
integrados por representantes das operadoras dos serviços regulados, dos poderes
Legislativo e Executivo, usuários e partidos políticos, fixando a sua competência para
a análise e fiscalização9 da atuação das agências, inclusive no que tange ao seu poder
normativo.
9
Aliás, como determina a Constituição, em seu art. 37, § 3.º, introduzido pela EC 19/98.
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A realização de consultas públicas prévias e a posteriori, referentes aos projetos de
relevância das agências também se enquadra entre os mecanismos participativos.
Há que se destacar ainda a necessidade de ampla publicidade dos mecanismos de
possível participação popular na atuação das agências, a qual contribuiria sobremaneira
no papel educativo, no contexto da cidadania e da democracia participativa, em
uma sociedade ainda sem expressão nessa seara, como bem dão conta as pesquisas
envolvendo os conselhos gestores municipais.
4. Conclusão
1. No marco do Estado Contemporâneo, já não se tem espaço para a atuação estatal
burocrática, auto-referente, fragilizada pelo predomínio da corrupção e da ineficiência.
O Estado, assoberbado pelas demandas sociais, revê o seu papel como agente
econômico e passa a prestigiar o fomento e a regulação, em detrimento da atuação
direta na economia.
2. A interação entre os sistemas jurídico e econômico estabelece a exigência de uma
nova estrutura de atuação estatal, mais ágil para enfrentar as nuances desse mercado
altamente cambiante, além de exigir um estreito compromisso com o princípio da
eficiência.
3. Os novos tempos reclamam ainda atenção ao pluralismo de valores co-existentes
na sociedade, a exigir um modelo já não mais centrado no ideal liberal de proteção de
liberdades pré-existentes à comunidade jurídica e que devem estar ao abrigo de toda e
qualquer influência estatal. Tampouco o avanço do modelo republicano pode dar conta
dessas transformações. Buscando a superação do excessivo peso ético que atribui ao
cidadão, instaura-se a idéia de um perfil procedimental, de inspiração habermasiana,
em que se rompe com uma posição distanciada entre o público e o privado, havendo
um novo significado atribuído ao interesse público, já não mais como expressão de
uma simples vontade geral, mas, pautando-se no reconhecimento de uma sociedade
plural, incita a convivência em meio à diversidade, através de um ambiente dialógico,
em que se permita a ampla participação de todos os interessados.
4. As agências reguladoras, fruto desse novo tempo, são portadoras apenas de uma
autonomia reforçada, porque, conquanto submetidas a um estatuto de independência,
que lhes assegura um amplo aspecto de liberdade na persecução dos seus fins, estão
vinculadas às linhas mestras traçadas pelas políticas governamentais, o que acaba
por fazer ceder a dicotomia maniqueísta entre administração técnica e governo
democrático.
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5. O distanciamento das agências dos centros políticos, de grande vantagem do
modelo, acaba por representar também o seu maior perigo, a saber, a delimitação de um
quadro deficitário no campo da legitimidade democrática, sobretudo se constatarmos
o plexo de competências que lhes são atribuídas, as quais se enquadram no âmbito
administrativo, normativo e da pacificação de conflitos de interesses.
6. O resgate dessa legitimidade pode ser viabilizado por meio da introdução de
mecanismos de participação dialógica, próprios a uma atuação administratviogovernamental procedimental, tais como: a instauração de procedimentos de consulta
popular sobre ações de ampla repercussão social, a previsão de um colegiado de
participação permanente, com formação plural, a ampla publicidade da sua atuação,
dentre outros.
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3. PALESTRA
3.1 O PODER JUDICIÁRIO E O MINISTÉRIO PÚBLICO
- UMA VISÃO CRÍTICA1
HÉLIO PEREIRA BICUDO
Procurador de Justiça aposentado do Estado de São Paulo
Gostaria de fazer um pequeno preâmbulo sobre o que representam os três poderes de
Estado desde suas origens. Codificou-se o poder judiciário como um dos três poderes
que, ao lado do executivo e do parlamento, constituem-se em um dos fundamentos
do estado de direito democrático imaginado, nem sempre superando os parâmetros
teóricos conseguidos pelo grande pensador e filósofo que foi Montesquieu no seu
espírito das leis.
Enquanto, a magistratura se aperfeiçoava, impondo ao Estado a vigilância sempre
exigida para a construção da democracia, o Ministério Público fazia as vezes de
representante do rei e como tal atuava. Era o acusador que falava em nome do rei,
na pretensão de alcançar um ideal de Justiça que se configurava distante da realidade
exatamente pela subordinação jurídica do promotor ao rei. Principalmente na terceira
década do século passado é que se deu início a um movimento que crescia dentro do
próprio Ministério Publico para a construção de uma instituição nova, autônoma, que
viesse a opor aos interesses da coroa os reais interesses da sociedade.
O promotor público não deveria ser o inquisidor na figura de um personagem, como
no romance dos Miseráveis de Victor Hugo e, muito menos, o acusador sistemático
em matéria penal. Nesta luta, cujos resultados estão escritos na Constituição Federal
de 1946 e da qual participaram insígnes membros do Ministério Público de São Paulo,
como Antonio Queiroz Filho, João Batista de Arruda e Sampaio, Mário de Moura
e Albuquerque, Odilon da Costa Manso, Cezar Salgado, Márcio Martins Ferreira e
tantos outros, que do meu Estado e de outras unidades da Federação se juntaram para
se conseguir as primeiras vitórias no sentido de dar real autonomia à instituição: a
proibição da advocacia, a imposição do tempo integral no exercício das funções. E
com a nova organização vieram, evidentemente, novas atribuições. Uma delas que
não parece implícita agora na Constituição de 1988 é a investigação do crime pelo
Ministério Público. É parte, sem dúvida, da própria dinâmica do exercício de suas
atividades e tem amparo nos dispositivos legais que dão ao Ministério Público a
competência para propor a ação penal pública e acompanhá-la, intervindo, se for o
caso, no andamento do processo que lhe é conseqüente.
A problemática da ação investigativa do Parquet não é tão simples como possa parecer,
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Palestra proferida na Semana do Ministério Público, em 14 de setembro de 2007.
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não bastando as cinco leituras do artigo 144, parágrafo segundo da Constituição Federal,
para chegar-se a conclusões pelo afastamento do Ministério Público da investigação
criminal. A lei, segundo Francisco Ferrara, citado por Alípio Silveira, não se identifica
com a letra da lei, “essa é apenas um meio de comunicação, as palavras são símbolos e
portadoras de pensamentos, mas podem ser defeituosas”. A interpretação de uma nova
norma constitucional não pode se ater, portanto, exclusivamente ao que nela está escrito,
a norma deve estar conforme o sistema e com os princípios gerais íncitos no conjunto
do texto constitucional, com os costumes e a realidade sócio-política. Eles estão
indicados em Maximiliano: a tarefa primordial do executor das normas estabelecidas
é descobrir a relação entre o texto abstrato e o texto concreto. Isto é, entre a norma
jurídica e o fato social, aplicando dessa maneira o direito. Para consegui-lo, explica o
autor, será iniciado um trabalho preliminar. Descobrir e fixar um sentido verdadeiro
da regra positiva e logo depois, o respectivo alcance de sua extensão. Vejamos, como
escreve Gomes Canotilho, o sentido da norma constitucional desvenda-se através da
utilização como elementos interpretativos do elemento filológico: literal, gramatical,
textual; do elemento lógico: elemento sistemático; do elemento histórico; do elemento
teológico: elemento racional. Segundo o constitucionalista português, a articulação
desses vários fatores hermenêuticos irá apontar para uma interpretação jurídica da
Constituição e o princípio da legalidade, diríamos normatividade constitucional, é
fundamentalmente salvaguardado pela ampla relevância atribuída ao texto. Ponto de
partida para tarefa de mediação ou captação do sentido por parte dos concretizadores
das normas constitucionais, limite da tarefa de interpretação, pois a função de intérprete
será a de desvendar o sentido do texto sem ir para lei, muito menos centrar sobre o teor
literal do preceito. Na hipótese, com base na lição do eminente constitucionalista, do
ponto de vista racional do dispositivo ora em discussão, vamos encontrar no artigo 127
da Constituição Federal, que o Ministério Público, instituição permanente, essencial à
função jurisdicional do Estado, e ao qual incube a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Por aí já se vê a
relevância das atribuições do Ministério Público, que lhe são assinadas, tendo até mais
em vista, que é fundamento do Estado da cidadania, a dignidade da pessoa humana,
como está escrito no artigo primeiro da Constituição. Tudo em consonância com os
objetivos fundamentais da República, como a construção de uma sociedade livre,
justa, solidária. A erradicação da pobreza, da marginalização, a promoção do bem
de todos sem quaisquer preconceitos. Pois bem, se ao Ministério Publico incube a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis, essas atribuições objetivam a concretude daquilo que é fundamento
do Estado, tendo em vista as metas assinaladas indispensáveis para a construção de
uma sociedade democrática. Quando a Constituição confere poder geral ou prescreve
dever, franqueia também implicitamente todos os poderes particulares necessários
para o exercício de um, ou o cumprimento do outro. Isto me parece muito claro se
nos detivermos à leitura do art. 139 da Constituição Federal, que estabelece quais
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são as funções institucionais do Ministério Público. O dispositivo em questão não
fala da função de investigar, mas ele impõe ao Ministério Público o zelo pelo efetivo
respeito aos poderes públicos e aos serviços de relevância pública, promovendo as
medidas necessárias a sua garantia, entregando-lhe depois a inquisição de diligências
investigatórias. Bem, como o dever de exercer outras funções, desde que compatíveis
com a sua finalidade, portanto, como concluir que não pode o Ministério Público
investigar de um modo próprio? E acrescentar-se que não se pode ignorar na
interpretação da lei a realidade da sociedade brasileira, onde a polícia não conseguiu,
como atestam os inúmeros procedimentos abertos pelo Ministério Público, sair do
atoleiro em que se afunda pela corrupção e pela prática da violência.
A esse propósito, os seus órgãos corregedores não têm correspondido às imposições
de transparência e de probidade administrativa impostas pela Constituição , renegando
a um segundo plano as recomendações das suas ouvidorias de polícia, deixando
de proceder quando averiguações esclarecem autorias dos ilícitos funcionais. Aí o
corporativismo fala mais alto, permitindo a mais deslavada imunidade. A constituição,
como assinala Jorge Miranda, deve ser apreendida a qualquer instante, como um
todo, na busca de uma unidade harmonia de sentido. Assim, o apelo ao elemento
sistemático, que consiste aqui em procurar as recíprocas implicações de preceitos e
princípios em que aqueles fins se traduzem, em situá-los e defini-los na sua interrelação
e em tentar chegar assim em uma idônea síntese globalizante crível e adotada de
energia normativa. Na hipótese, argumenta-se de uma contradição de princípios, tal
contradição há de ser superada mediante a preferência ou a prioridade na efetivação
de certos princípios frente aos restantes. É o que diz Jorge Miranda. Realmente, se a
interpretação sistemática dos textos constitucionais leva à convicção da preeminência
da ação do Ministério Público ante a atividade policial, a qual não têm os seus titulares
as incumbências e atribuições do Ministério Público, ao autor da ação penal não se
pode negar a capacidade de reunir provas para indiciá-la. Ao elemento sistemático
junta-se o fato de que em um número tão expressivo de casos, a investigação do
Ministério Público se sobrepôs à intervenção policial, seja para completá-la, seja para
aperfeiçoá-la, ou até mesmo para substituí-la.
Os grandes e emblemáticos procedimentos penais foram sempre sustentados pelo
Ministério Público que tem, a propósito, uma história de coerência e de independência
relativa aos poderes do Estado. Como pondera o filósofo Luis Recaséns Siches, em
sua Nueva Filosofia de la Interpretácion del Derecho, o direito não é um sistema
constante, uniforme, igual, se não, pelo contrário é mutável, e tem uma dimensão
essencialmente plástica de adaptação a novas situações e circunstâncias , tem sempre
esse caráter em medida maior ou menor, mas em nossa época o tem em uma enorme
proporção. Recorda-se que as investigações sobre as atividades do esquadrão da
morte foram efetuadas pelo Ministério Público e desvendaram violência, corrupção,
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favorecimento ao tráfico de drogas e outras violações de nosso ordenamento jurídicopenal por reagentes policias. Essas investigações foram questionadas, já naquele
tempo, na década de 70, perante o Supremo Tribunal Federal, que, entretanto,
considerou-as legais e necessárias a esse propósito, com voto do Ministro Octavio
Gallotti que elucida bem essa questão da atuação investigativa do MP.
Como controlar, pois, a atividade policial, senão entrando na sua área de competência.
Essas investigações não poderiam prosperar dentro da própria polícia. E somente a
ação do Ministério Público é que as pode desvendar. A proibição pretendida busca
embasamento em atitudes isoladas de membros do Ministério Público, que não
tem levado em conta a unidade funcional do Ministério Público, uno e indivisível.
Distorções na sua atuação que podem ser facilmente corrigíveis decorrem da concepção
já ultrapassada, que entregavam ao chefe da instituição, então demissível pelos
governadores do Estado ou pelo presidente da República, o monopólio do exercício
da atribuição do País. A figura do chamado promotor natural surgiu exatamente
para impedir a filiação política da instituição, quando, para atender a reclamos da
chefia do poder executivo, destituíam-se promotores que não se alinhavam a uma
determinada linha política. Nos dias atuais, nomeado dentro da classe por mandato
certo que somente será revogado segundo as dificuldades impostas pelo procedimento
instituído, o Procurador Geral de Justiça dos Estados ou da República não tem a temer
sua destituição se sua atuação não se conforma à vontade da política dominante. Ele
passa a agir segundo os princípios que formam a pureza procedimental do Ministério
Público na forma do quanto dispõe a constituição com o que tivemos a oportunidade
de assinalar. Vejam bem, hoje é muito difícil passarmos além da figura do promotor
natural. E isso, na minha visão é uma distorção no que diz respeito ao princípio da
unidade funcional do Ministério Público. O Procurador-Geral de Justiça é autônomo,
independente, então ele não está sujeito às questões políticas que podem surgir durante
a sua atuação. Se um promotor público desvia-se na sua atuação, porque o ProcuradorGeral de Justiça não pode avocar esse procedimento? Ele é o chefe da instituição e
depois evidentemente submete a sua decisão ao Conselho Superior da classe.
Assim, a avocação do procedimento se torna diante da unicidade da instituição
uma atitude normal com qualificativos da coerência de ação do Ministério Público.
Mas isto, embora tenha contornos constitucionais, é matéria prevalentemente de lei
ordinária, de organização do Ministério Público, que deve tê-la com vistas ao princípio
de unidade fundamental na atuação do Parquet. Como se vê, não existem argumentos
que possam permitir a redução das atribuições do Ministério Público, reduzi-las seria
premiar os chamados delinqüentes de colarinho branco e o próprio crime organizado.
Em remate, na decisão a ser tomada, essa matéria está sujeita a decisão do Supremo
Tribunal Federal, que deverá fazer profunda reflexão sobre a questão constitucional
e infra-constitucional, sem esquecer do seu papel de árbitro maior, não só da Lei
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Magna, mas da própria realidade brasileira, pois interpretar é descobrir tudo aquilo
que a norma dispõe, para que ela seja instrumento de paz social. Nesse caso especial,
não importa que se tenha editado ou não a lei complementar prevista no parágrafo
segundo do seu artigo 127, pois como ensina Clémerson Merlin Cléve: “No Brasil
tem-se como certo que todas as disposições, ainda que adjetivas da constituição são
essenciais, imperativas e então, mandatórias, como já teve a oportunidade de asseverar
o velho Francisco Campos. Muito pelo contrário. Como na sociedade atual, onde
a criminalidade viceja e se desenvolve, impedir-se a ampla atuação do Ministério
Público será acoroçoar-se a ilicitude daqueles que se situam em patamares superiores
da sociedade e que por isso mesmo se sentem imunes. A lei penal, segundo se pensa,
não é para eles, mas para aqueles que o sistema político econômico marginalizou ou
excluiu das classes sociais”.
Como se vê, a combinação de critérios interpretativos de início mencionados só podem
levar a uma conclusão, não se pode retirar meios, quaisquer que sejam, que impeçam
ou dificultem a propositura da ação penal pelo MP. Se a tanto chegarmos, estaremos
decretando a própria falência do atual ordenamento jurídico que o constituinte de
86 e 88 buscou normatizar, tendo em vista a contribuição do Ministério Público na
construção do estado democrático.
De outra parte, é preciso assinalar que necessária, segundo o pensamento jurídico
nacional, a reforma do poder judiciário de 2004 não passou de uma simples maquiagem.
Na prática, manteve-se a mesma situação que antes vigia, assim não se pôs termo
ao foro privilegiado, não se tocou na estrutura da Justiça Eleitoral e acrescentou
dispositivos inócuos, que, passado mais de ano, não disseram a que vieram. Quero a
respeito lembrar que a federalização das violações graves de direitos humanos sob o
fito do Procurador Geral da República ainda não aconteceu, muito embora solicitações
que se enquadram na qualificação legal não tenham sido atendidas, frustrando-se as
expectativas sobre o novo dispositivo. Nós mesmos em São Paulo, a propósito vocês
devem ter notícias de um chacina de moradores de rua, diante da morosidade, já faz
três, quatro anos e não se toma nenhuma medida, solicitou-se a federalização não só
das investigações, mas, do julgamento subseqüente e não se obteve. No outro caso
em que a polícia armou um esquema para eliminar supostos delinqüentes, que foram
chacinados dentro de um ônibus por policiais em uma estrada próxima a São Paulo,
que vai da capital a Sorocaba, chamada Castelinho, e quando se pediu primeiro que
a Polícia Federal fizesse as investigações, porque a polícia investigar a si própria não
dá nenhum resultado. Em São Paulo está o maior contingente de policiais militares
de todo o Brasil, nós temos uma Polícia Militar com cerca de 150 mil de pessoas,
com grande ingerência na política e na atuação de governança do Estado. Solicitamos
então a federalização e não obtivemos.
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Eu me lembro de que, há dois anos, quando o comitê de defesa dos direitos humanos das
Nações Unidas discutiu o relatório oferecido pelo Brasil, a respeito do cumprimento
dos tratados sobre direitos civis e políticos e que se perguntou durante esse colóquio
entre Nações Unidas e o Governo brasileiro a respeito da federalização dos crimes
praticados contra os direitos humanos. E, a procuradora da república, encarregada do
setor, afirmou na ocasião, e depois disso não houve nenhuma alteração, que nenhum
dos oito casos apresentados na Procuradoria Geral da República foram admitidos
para que fossem ao Superior Tribunal de Justiça e se obtivesse a federalização no
procedimento desses crimes. Portanto, um dispositivo absolutamente inócuo e que
consta da reforma do Poder Judiciário.
Quanto à Justiça Eleitoral, nós vimos com surpresa que pessoas denunciadas pelo
Procurador Geral da República como incursos em vários artigos das leis penais puderam
ter seus nomes registrados como candidatos e receber cadeiras no parlamento como
se tivessem uma vida pregressa isenta de qualquer deslize, na forma do disposto do
artigo 14, parágrafo 9º da Constituição, que considera para o registro de candidaturas
o exame prévio da vida pregressa do candidato e a normalidade e legitimidade das
eleições contra a influência do poder econômico ou abuso do exercício da função,
cargo ou emprego. O que quer dizer tudo isso?
A meu ver não se exige uma decisão transitada em julgado, reconhecendo o crime e
seu autor para varrer pretensões políticas ilegítimas. A vida pregressa do candidato é
que vai permitir a presunção de que sua candidatura e eventual eleição não vão se opor
à normalidade e legitimidade das eleições, sem interferência do poder econômico ou
do abuso do exercício da função, cargo ou emprego .
Ora, tem-se interpretado, provavelmente sopraram nos ouvidos do chefe da nação
que tudo se resume a uma sentença transitada em julgado, condenando o candidato a
registro, na forma do disposto no artigo 5º inciso 57 da Constituição, quando dispõe
que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória. Considere-se que se trata de uma interpretação pelo menos equivocada.
O inciso 57 citado, do artigo 5º do texto constitucional está entre os direitos e garantias
fundamentais, no caso, o direito à liberdade, quer dizer, ninguém pode ser preso sem
uma sentença transitada em julgado. Mas isso não quer dizer que um candidato que
queira obter o registro deva ter uma sentença transitada em julgado para que haja
então a presunção de que ele não voltará a delinqüir. Segundo penso, isso não tem
nada a ver com o registro do candidato, mesmo porque uma sentença transitada em
julgado não pode ser considerada como passaporte para corrupção ou para o exercício
indevido do poder. E vocês sabem tanto quanto eu quanto custa, quanto tempo demora
uma sentença para transitar em julgado, quanta chicanas podem ser postas no meio
do caminho para se evitar o trânsito em julgado de uma sentença penal. Aliás, os
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juízes penais nas suas decisões não consideram na aplicação da pena apenas o fato,
mas o autor e sua vida pregressa, o que em uma palavra significa que não basta a
reincidência reconhecida judicialmente para dosagem da pena, pois outros fatores são
imprescindíveis, dentre eles, o exame da vida pregressa do acusado.
Não é por outro motivo que pessoas com passado criminal ainda que não condenadas
por decisões transitadas em julgado exercem mandato no executivo e no legislativo,
desfigurando o interesse público que busca o desenvolvimento do Brasil, para que ele
não seja o País do futuro, mas que seja o País do presente, onde os direitos humanos
sejam realmente o fundamento do Estado.
Se de um lado o Ministério Público, como verdadeira magistratura que tem, precisa
atuar sem acepção de pessoas, de correntes sociais e de cargos para conduzir na Justiça
a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais
indisponíveis e outro contra o poder judiciário, mediante as demandas que chegam à
sua apreciação, sobretudo a guarda da Constituição, não se podendo esquecer nessa
atuação a relevância dos direitos fundamentais, preservando o Estado de Direito , que
em última análise é o Estado democrático.
Em último, é elementar o episódio, que não poderia deixar de fazer menção, macula
esse sonhado estado democrático em especial, augures de que se tratava de matéria de
competência exclusiva de uma das casas do Parlamento.
Na democracia não há exclusividade. Todos os representantes do povo devem ao povo
os seus mandatos. E se deles se divorciam, não mais o representam. Num escândalo,
num dos poderes não atingem tão-somente a esse poder, mas ao Estado como um
todo, cabendo uma reação conjunta, que sempre se busca tardiamente, para que se
possa caminhar na construção do Estado de direito. Portanto, Judiciário e Ministério
Público devem sempre atuar lado a lado em busca da Justiça.
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4. DIÁLOGO MULTIDISCIPLINAR
4.1 AGÊNCIAS REGULADORAS
ELIANA OLIVEIRA COSTA TAFURI
Analista do Tribunal Regional Eleitoral/ MG
SUMÁRIO: 1. Contexto histórico. 2. Natureza jurídica. 3. Aspectos do regime especial
das agências reguladoras. 4. Poder normativo. 5. Independência política dos gestores.
6. Independência técnica decisional. 7. Estabilidade dos dirigentes. 8. Conclusão. 9.
Referências bibliográficas.
1. Contexto histórico
Só é possível entender o instituto das agências reguladoras se considerarmos o
contexto político-econômico e social do mundo moderno que, num salto, viu-se
imerso em mudanças estruturais de monta, tais como o desenvolvimento tecnológico
dos meios de comunicação; o processo de globalização, que fez surgirem poderosas
organizações econômicas transnacionais (capital apátrida); o enfraquecimento do
setor primário de produção e a valorização dos setores que dominam a tecnologia de
ponta. Essas transformações forçaram o Estado a alterar sua linha de atuação. É neste
cenário que acontece o movimento de intervencionismo direto para a descentralização
administrativa, visando à celeridade e à eficiência reivindicadas pela sociedade
– atualizada na Era do Conhecimento –, que não mais aceita a inábil onipotência
estatal.
É nessa tentativa de ajustamento que, hodiernamente, o ponto central da discussão
que se trava é o tamanho ideal que deve ter o Estado em sua esfera de atuação,
notadamente em questões econômicas. Sabe-se que o Estado em versão hiper, nos
moldes dominantes do século passado, não atende aos anseios da população, visto
que, ineficiente e paquidérmico, é fonte de corrupção e perpetua desigualdades. É essa
a opinião de Barroso (2006), para quem:
O modelo dos últimos vinte e cinco anos se exaurira. O Estado
brasileiro chegou ao fim do século XX grande, ineficiente,
com bolsões endêmicos de corrupção e sem conseguir vencer
a luta contra a pobreza. Um Estado da direita, do atraso social,
da concentração de renda. Um Estado que tomava dinheiro
emprestado no exterior para emprestar internamente, a juros
baixos, para a burguesia industrial e financeira brasileira.
Esse Estado, portanto, que a classe dominante brasileira agora
abandona e do qual quer se livrar, foi aquele que a serviu
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durante toda a sua existência. Parece, então, equivocada a
suposição de que a defesa desse Estado perverso, injusto e que
não conseguiu elevar o patamar social no Brasil seja uma opção
avançada, progressiva, e que o alinhamento com o discurso por
sua desconstrução seja a postura reacionária.
Nesse contexto, buscando o tamanho adequado do Estado, bem como sua ingerência
em medidas precisas, é que se descortina a perspectiva das agências reguladoras,
agências executivas, organizações da sociedade civil de interesse público, enfim,
parcerias público-privadas dos mais diferentes matizes. A preparação do terreno
para a descentralização administrativa ocorreu com a reforma do aparelho do Estado
implementada por alterações paulatinas nos textos normativos, na lúcida lição
de Barroso, que destacou três transformações estruturais, a saber: 1ª) as Emendas
Constitucionais nos 6 e 7, que suprimiram restrições ao capital estrangeiro; 2ª) as
Emendas Constitucionais nos 05, 08 e 09, que proporcionaram a flexibilização dos
monopólios estatais, e a 3ª) privatização, levada a efeito mediante a edição de
legislação infraconstitucional, notadamente a Lei n° 8.031, de 12.04.90, substituída
pela Lei n° 9.491, de 09.09.97. Este trabalho objetiva traçar as linhas principais das
agências reguladoras, sem a pretensão de esgotar o novel e instigante tema.
2. Natureza jurídica
As agências reguladoras possuem natureza de autarquias em regime especial. E, como
tal, não podemos deixar de trazer a lume a natureza jurídica das autarquias. O DecretoLei nº 200, de 25.02.1967, estabelece que a “Administração indireta é integrada por
autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações públicas”.
No que toca às autarquias, prescreve o Decreto-Lei nº 200 que se trata de “[...] serviço
autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios,
para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu
melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada”. Assim,
as autarquias possuem natureza administrativa e personalidade jurídica de Direito
Público. Executam atividades estatais, atuando em nome próprio, sendo criadas por
lei específica (CF, art. 37, XIX), de iniciativa do Chefe do Executivo, sendo que a
sua organização é imposta por decreto, regulamento ou estatuto. Leciona Meirelles
(2000, p. 208) que:
A autarquia não age por delegação, age por direito próprio e
com autoridade pública, na medida do jus imperii que lhe foi
outorgado pela lei que a criou. Como pessoa jurídica de direito
público interno, a autarquia traz ínsita, para a consecução
de seus fins, uma parcela do poder estatal que lhe deu vida.
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Sendo um ente autônomo, não há subordinação hierárquica da
autarquia para com a entidade estatal a que pertence, porque,
se isto ocorresse, anularia seu caráter autárquico. Há mera
vinculação à entidade-matriz, que, por isso, passa a exercer
um controle legal, expresso no poder de correção finalística do
serviço autárquico.
3. Aspectos do regime especial das agências reguladoras
O objetivo último da criação das agências reguladoras é, como já acima exposto,
carrear eficiência à máquina estatal. A justificativa é de que quem tem especialidade
técnica será, por conseqüência, mais competente e célere – como exige o mercado
– na regulação da atividade que se propõe a tutelar, uma vez que exerce poder de
polícia sobre o prestador de serviço público concedido/permitido.
Os doutrinadores são assentes no fato de que são antigas, no ordenamento brasileiro,
instituições com funções reguladoras. Fato é que o vocábulo agência é recente. Na
Constituição vigente, no seu texto original, o constituinte não fez previsão de agências.
Ocorre que a Emenda Constitucional n° 8, de 15.08.95, em nova redação ao art. 21,
XI, traz órgão regulador referindo-se a serviços de telecomunicações, fato sobre o
qual a Prof.ª Di Pietro (2004) fez a seguinte observação: “Note-se que a Constituição,
apegada à tradição do direito brasileiro, empregou o vocábulo órgão, a legislação
ordinária é que copiou o vocábulo de origem norte-americana”. O Prof. Floriano (p.
23) menciona sua opção pelo termo Autoridades Reguladoras Independentes, e o faz
assim dispondo:
Menos por razões de purismo conceitual e mais por uma questão
didática e metodológica, de nossa parte preferimos utilizar o
termo Autoridades Reguladoras Independentes para designar
estes entes reguladores de nova geração. E isso por um singelo
motivo. Essa designação (constante na doutrina européia,
portuguesa em particular) tem o mérito de nela embutir os
três aspectos centrais para caracterização das Agências: serem
elas I) órgãos públicos dotados de autoridade; II) voltados
para exercício da função de regulação III) caracterizados pela
independência. Se bem entendidos estes três aspectos, estarão
expostos os pressupostos das agências no direito brasileiro.
São nomeados para dirigentes das agências os experts nas suas respectivas áreas de
atuação, o que acarreta implicações, visto que tais profissionais são vindos, no mais
das vezes – devido à especialização técnica de seus conhecimentos –, do próprio
setor a ser regulado. Tal fato desperta dúvidas sobre a necessária isenção para gerir os
interesses dos usuários dos serviços prestados. Noutro vértice, para neutralizar essa
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possibilidade, tem-se que as agências são dirigidas em regime de Colegiado, o que por
certo dificulta possível influência das empresas reguladas.
A gestão de recursos humanos das agências reguladoras está disposta na Lei nº 9.986,
de 18.07.2000, sendo estabelecido que as relações de trabalho serão de emprego
público. É de ver que, embora recente, referida lei teve seu texto modificado por
várias legislações posteriores (MP 0002143-035-2001, MP 000155.000-2003, L
010.871-2004, L 011-292-2006) dando mostras de que a questão de pessoal nas
agências reguladoras está em franco processo de adequação. Certo é que atualmente,
enquanto não se sedimenta a questão, as agências improvisam valendo-se de servidores
requisitados de outros Órgãos da Administração, contratações temporárias, e, ainda,
de cargos de livre provimento.
Há, ainda, a questão atinente à criação, por alguns Estados-membros, de agências
reguladoras abrangendo uma pluralidade de áreas de atuação. Essa opção, sem
dúvida, descaracteriza a especialização que é da essência das agências. Vê-se que é
inviável reunir em uma única agência técnicos-especialistas nos mais diversos setores
de atuação, o que implica reconhecer a impossibilidade de uma regulação efetiva,
pois ressentir-se-ão os dirigentes de referidas agências da falta de domínio técnico em
todas as matérias objeto de regulação. Como aponta Menezes (2002, p. 57): “Acredito
que tais casos denotam a avidez pelo empréstimo de modelos alienígenas, a intenção
de ‘modernidade’, sem que tenha havido, contudo, o acurado estudo prévio relativo
aos institutos em debate, além de, é claro, flexibilizar as normas relativas ao regime
de pessoal, licitação, controle externo”.
4. Poder normativo
O poder normativo das agências reguladoras é ponto nevrálgico, haja vista a
dificuldade de se estabelecer um equilíbrio entre a concessão de uma confortável
margem de atuação com a finalidade de conferir celeridade à normatização de cunho
eminentemente técnico e, de outro lado, preservar as funções do Poder Legislativo,
que, em última análise, foi quem recebeu poderes para desempenhar tal função. Travase acalorada discussão na doutrina sobre ofensa à tão cultuada separação dos poderes,
bem como ao princípio da legalidade. Contudo, ponto comum entre os doutos é que
a separação dos poderes com o rigor da disposição feita por Montesquieu – embora
se reconheça a sua importância, e ainda, o princípio da legalidade –, hodiernamente,
comporta adequações. Nesse sentido, esclarece Menezes (2002, p. 60): “A moderna
doutrina propaga que as técnicas de controle do constitucionalismo representam
corretivos eficazes ao rigorismo da separação de poderes, sendo suficiente a separação
das funções estatais, atuando em cooperação, de forma harmônica e equilibrada”.
Quanto à questão atinente ao princípio da legalidade, não afastando sua importância
no texto constitucional em vigor, Barroso (2006, p. 2) esclarece:
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É verdade que a doutrina tem construído em torno do tradicional
princípio da legalidade uma teorização mais sofisticada, capaz
de adaptá-lo à nova distribuição de espaços de atuação entre os
três Poderes. Com efeito, o crescimento do papel do Executivo,
alimentado pela necessidade moderna de agilidade nas ações
estatais e pela relação cada vez mais próxima entre ação estatal
e conhecimentos técnicos especializados, acabou por exigir
uma nova leitura do princípio, e nessa linha é que se admite
hoje a distinção entre reserva absoluta e reserva relativa de lei,
de um lado, e de outro, entre reserva de lei formal ou material.
Ainda com relação à separação de poderes e sua nova feição, vale destacar a lição de
Clève (2000, p. 57):
Está agonizando um conceito de lei, um tipo de parlamento
e uma determinada concepção do direito. O parlamento
monopolizador da atividade legiferante do Estado sofreu abalos.
Deve continuar legislando, é certo. Porém, a função legislativa
será, no Estado contemporâneo, dividida com o Executivo. O
parlamento não deve deixar de reforçar o seu poder de controle
sobre os atos, inclusive normativos, do Executivo. A crise do
parlamento burguês conduz ao nascimento do parlamento
ajustado às profundas alterações pelas quais passaram a
sociedade e o Estado.
Há quem sustente que as agências reguladoras não podem inovar na ordem jurídica,
uma vez que apenas a lei, em sentido formal, pode impor obrigações e restringir
direitos. Tal argumentação não pode vingar, se posta em termos absolutos, sem
evidente prejuízo da almejada finalidade de celeridade e do cunho eminentemente
técnico na solução das questões específicas, que justificam a criação das agências. É
que necessária a mitigação, como acima mencionado, dos princípios da separação dos
poderes e da legalidade dispostos nos artigos 2° e 5°, II, da Constituição da República,
respectivamente.
Assim, as normas expedidas pelas agências devem cingir-se apenas ao conteúdo
técnico afeto à sua área de atuação, cujo domínio o legislador ordinário não possui. As
agências reguladoras, a fim de atingir seus objetivos institucionais, deverão receber
delegação com parâmetros previamente fixados, nos moldes dos standards das agências
norte-americanas. Só assim estarão aptas a desenvolver a regulação e fiscalização que
se propõem a implementar de forma exclusiva. As agências não poderão extrapolar,
no exercício de seu poder normativo, os parâmetros fixados na delegação, sob pena de
usurpação do poder que, por certo, não lhes foi conferido.
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5. Independência política dos gestores
As agências reguladoras adotaram o modelo de formação de conselhos compostos por
profissionais altamente especializados em suas áreas, com independência em relação
ao Estado e com poderes de mediação, arbitragem e capacidade para traçar diretrizes e
normas, com o objetivo de solucionar eventuais acontecimentos imprevisíveis no ato de
lavratura dos contratos de longo prazo realizados entre as empresas concessionárias e
o Estado. A independência política dos gestores das agências decorre, principalmente,
da investidura em mandatos com prazo certo e com restrições quanto à demissão,
circunstância que, por certo, visa ao fornecimento de condições para se estabelecer a
imparcialidade e, conseqüentemente, a confiança da população em suas decisões, haja
vista a capacidade de resistir às pressões políticas e econômicas das partes envolvidas,
o que confere credibilidade à sua atuação.
A ausência de vínculo hierárquico formal dos gestores das agências reguladoras fornecelhes a autonomia não existente na maior parte dos administradores das entidades da
administração indireta, que, por ocuparem cargos de confiança do Chefe do Poder
Executivo, acabam por curvar-se a interferências, mesmo que à margem da legalidade
e/ou moralidade. São as conhecidas contraprestações, tão comuns daqueles que, de
uma forma ou de outra, possuem dependência funcional. Como já dito, o processo
de nomeação e demissão dos dirigentes, bem como a fixação de mandatos longos,
não coincidentes com o mandato eleitoral, são providências que buscam blindar os
gestores dos favores políticos, que, certamente, não atendem ao interesse público.
6. Independência técnica decisional
Deseja-se que, quando da composição e julgamento de litígios entre particulares em
questões controvertidas, as agências reguladoras emitam decisões valendo-se de seu
conhecimento técnico, sem, contudo, descuidar-se de, na sua apreciação, considerar
com sensatez os interesse das partes envolvidas nas pretensões contrapostas. Não se
pode perder de vista que, em tais questões, haverá sempre três tipos de interesses a
tutelar. O interesse do Estado, o interesse das empresas concessionárias/permissionárias
e o interesse do usuário, sendo o grande desafio saber sopesar e conferir legitimidade
democrática a tão díspares forças, uma vez que sabemos agir o primeiro notadamente
com visão política; as concessionárias/permissionárias, com profundo conhecimento
técnico, visando ao capital; e, por fim, o usuário, que, neste jogo de forças, é,
incontestavelmente, a parte hipossuficiente. Isso porque em que pese o instrumento
da audiência pública, em que se privilegia a participação popular, sabe-se que esta é
incipiente no nosso ordenamento jurídico, notadamente em questões como tais, em
que a exigida capacitação técnica afasta qualquer tentativa incalculada de participação.
Ademais, é necessário um amadurecimento social que ainda não possuímos.
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É por empecilhos dessa ordem que se corre o risco de ser a participação popular apenas
um artificialismo sem implementação fática, sendo esta uma questão que também
deverá ser considerada pelas decisões proferidas nas agências. Vê-se que a pedra de
toque para conferir legitimidade às decisões das agências passa, necessariamente,
pela capacidade de resistir a pressões de poderosas forças econômicas e de grupos
com ascendência no jogo político do momento. Para tanto, deverão as agências
reguladoras atuar com a firmeza e o equilíbrio necessários, sem distar da razoabilidade,
assegurando a adequada remuneração do concessionário e a satisfação dos usuários,
o que, por certo, não é tarefa fácil de ser equacionada. Portanto, deverá sempre ser
preservado o objetivo de harmonizar os interesses do usuário do serviço concedido,
como preço e qualidade, com os do fornecedor – a viabilidade econômica de sua
atividade comercial –, como forma de perpetuar o atendimento aos interesses de todos
os envolvidos.
7. Estabilidade dos dirigentes
Entre as questões polêmicas envolvendo as agências, merece menção a questão da
demissão dos seus dirigentes. É que as leis instituidoras de referidas agências apontam
basicamente as seguintes características próprias das agências: estabilidade dos
dirigentes (impossibilidade de demissão ad nutum pelo Chefe do Poder Executivo,
salvo por faltas graves apuradas mediante devido processo legal, tais como crimes de
improbidade administrativa, violação grave dos deveres funcionais, descumprimento
do contrato de gestão); mandato certo, sendo, na sua maioria, de quatro anos;
nomeação de diretores com lastro político; impossibilidade de recurso hierárquico,
que normalmente seria ao Ministro a que estivesse vinculado o órgão; inexistência de
instância revisora hierárquica dos seus atos, ressalvada a revisão judicial; autonomia de
gestão; não-vinculação hierárquica a qualquer instância de governo; estabelecimento
de fontes próprias de recursos financeiros advindos de dotações orçamentárias gerais
e arrecadação de receitas próprias, provenientes, dentre outras fontes, de taxas de
fiscalização ou de participações nos contratos, como ocorre nos setores do petróleo e
energia elétrica.
Certo é que as duas principais características dos dirigentes das agências reguladoras,
quais sejam independência e especialidade, assemelham-se, de perto, com as
características de um Juiz integrante do Poder Judiciário. É necessário destacar como
ponto polêmico o fato de não ser possível a demissão ad nutum dos dirigentes. Ou seja,
o Chefe do Executivo tem competência para nomeá-los, porém uma vez nomeados,
não pode demiti-los, o que foge do lugar comum dos casos de cargos em comissão ou
funções de confiança. A razão de ser vedação é simples. É induvidoso que se tenciona
conferir ao dirigente liberdade para tomar qualquer decisão ainda que contrária aos
interesses do Chefe do Executivo, sem que isso implique a sua destituição de forma
imotivada.
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Percebe-se, portanto, uma diferenciação substancial entre os dirigentes das agências
e os dirigentes das demais autarquias, pois nestas o Chefe do Executivo tem a
possibilidade de demitir de forma imotivada, haja vista a Súmula 25 do STF: “A
nomeação a termo não impede a livre demissão, pelo Presidente da República, de
ocupante de cargo dirigente de autarquia”. Esse diferencial tem uma relevante razão,
uma vez que, para assegurar imparcialidade e isenção nos julgamentos, torna-se
imperioso que os dirigentes das agências contem com essa garantia. Nesse ponto,
merece trazer o destaque feito por Morais (2002, p. 27):
Observe-se ainda que o próprio STF, reconhecendo o novo
estágio do Direito Administrativo, com base no binômio
privatização/eficiência, permitiu à lei estadual a fixação de
mandato certo e impossibilidade de destituição ad nutum dos
dirigentes das agências, na Adin 1.949. Observe-se que o STF
excepcionou a regra geral da impossibilidade de a lei criar
outras formas de acesso à Administração Pública que não sejam
o concurso público ou os cargos em comissão ou funções de
confiança de livre escolha do Chefe do Executivo.
Assim é que, no meu entender, não assiste razão àqueles que dizem revestir-se de
inconstitucionalidade a estabilidade dos dirigentes das agências reguladoras, prevista
em vários dispositivos legais, notadamente no art. 9° da Lei n° 9.986/2000, que dispõe
sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras. No caso específico das
agências, a nomeação para direção não tem o mesmo perfil das nomeações feitas quanto
aos demais cargos de confiança, pois a escolha levará em conta, prioritariamente, a
especialização na área da respectiva atuação, conforme dispõe o art. 5° da Lei n°
9.986/2000:
Art. 5º. O Presidente ou o Diretor-Geral ou o Diretor-Presidente
(CD I) e os demais membros do Conselho Diretor ou da Diretoria
(CD II) serão brasileiros, de reputação ilibada, formação
universitária e elevado conceito no campo de especialidade dos
cargos para os quais serão nomeados, devendo ser escolhidos
pelo Presidente da República e por ele nomeados, após
aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea f do inciso
III do art. 52 da Constituição Federal.
Nesses termos, entendo que a crítica feita ao referido instituto é fruto de uma
visão conservadora desafinada com os modernos posicionamentos que as agências
reguladoras requerem. É relevante, também, a previsão contida no art. 8° da Lei n°
9.986/2000 de quarentena, por quatro meses, para os ex-dirigentes das agências,
consubstanciada naquele período em que, após o término do mandato, ficarão estes
vinculados à agência, auferindo remuneração equivalente à do cargo que exerciam.
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A norma visa a impedir que o ex-dirigente seja imediatamente absorvido pelo setor
regulado e que, nesta continuidade, possa valer-se de informações privilegiadas que
adquiriu na recente gestão. O tempo nos dirá se, na prática, esse afastamento da direção
por quatro meses, persistindo, contudo, o vínculo com a agência, será suficiente para
distar o ex-dirigente do uso de informações privilegiadas.
8. Conclusão
O estágio atual de desenvolvimento social e econômico exigiu alterações de
rota na administração do Estado, sendo certo que, atualmente, o Estado brasileiro
implementou reformas no ordenamento jurídico para possibilitar a transição na sua
atuação na economia. O Estado, reconhecendo-se lento e ineficiente, valeu-se das
agências reguladoras para verificar se as atividades desenvolvidas pelas empresas
concessionárias são desempenhadas com a competência existente no mercado. Para
assimilação das agências reguladoras, tornam-se imperiosas adequações normativas,
além das já efetuadas, no sentido de compatibilizar a nova estrutura de Estado com
as normas ainda conflitantes, tais como os princípios da separação dos poderes e da
reserva legal.
Não se pode olvidar que, para obterem êxito nas suas atribuições, as agências
reguladoras hão de ser dotadas de autonomia técnica, decisional, normativa, financeira,
administrativa e política. Esses instrumentos deverão ser sopesados para que não se
façam dessas autarquias especiais entes com superpoderes. As agências reguladoras
requerem uma sociedade mais estruturada. Assim, vivemos um momento de transição,
em que, para fazer vitorioso o projeto nacional, serão necessários empenho e ética de
todos os envolvidos, a saber: máquina estatal, empresas concessionárias e usuários
dos serviços. É esse o grande desafio que se apresenta.
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9. Referências bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras: constituição, transformações do
Estado e legitimidade democrática. Disponível em: http://www.jusnavegandi. Acesso
em: 16 maio 2006.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas,
2004.
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras: instrumentos do
fortalecimento do Estado. São Paulo: ABAR, 2003.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros,
2000.
MENEZES, Roberta Fragoso de Medeiros. As agências reguladoras no direito
brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 227, jan./mar. 2002.
MORAIS, Alexandre de. (Org). Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002.
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4.2 REFLEXÕES PARA O SÉCULO XXI SOBRE O PENSAMENTO
MARXISTA
RIANY ALVES DE FREITAS
Técnica do Ministério Público de Minas Gerais
Pós-Graduada em Gestão Estratégica da Informação
pela Universidade Federal de Minas Gerais
Acadêmica em Direito pela PUC-Minas
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Período revolucionário. 3. A liberdade. 4. A igualdade.
4.1. Igualdade formal e substancial. 5. A democracia liberal. 6. O coletivismo.
7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Este trabalho tem como objetivo mostrar os aspectos envolvidos no contexto histórico
revolucionário, no qual Marx estava inserido, bem como mostrar as críticas marxistas
ao sistema capitalista, que gera a expansão econômica, constante busca de riquezas, mas
em contrapartida, o desequilíbrio social. Além disso, visa explicar as fases concebidas
por Marx – Capitalismo, Socialismo e Comunismo – e esclarecer sua visão no que se
refere à liberdade, à igualdade, sua crítica à democracia liberal e sua percepção de que
o Estado Liberal, ou Liberal-Democrata contraria os ideais de igualdade e liberdade
concebidos por ele. Visa também demonstrar que o indivíduo é uma parcela de um
corpo sistemático em que as partes não podem funcionar sozinhas.
A teoria marxista, apesar de ter sido escrita no século XVIII, sempre nos fará refletir
sobre como o Capitalismo é o centro de todo o planeta e engole qualquer forma de vida
que o contrarie. Por isso, a visão de Marx e de seu companheiro Engels é semelhante
à de muitos que se preocupam com problemas dos dias atuais, no tocante à defesa da
diminuição da exploração humana e das desigualdades sociais.
2. Período revolucionário
Marx viveu entre os anos de 1818 e 1883, período em que afloravam grandes
conseqüências da Revolução Industrial: produção em larga escala, exploração do
homem pelo homem e altas jornadas de trabalho. Viveu em uma Europa revolucionária,
pouco depois da Revolução Francesa e da era Napoleônica, quando os interesses da
burguesia se transformavam em leis, o que facilitava a exploração dos trabalhadores.
Nesse contexto, começaram a surgir muitos protestos e lutas pela redução da jornada de
trabalho. Por outro lado, emergia a resistência daqueles que concebiam o Capitalismo
como sistema ideal de liberdades econômicas. Uns defendiam as diferenças, cada qual
com seu mérito e sorte, outros, a igualdade de oportunidades e modos de vida.
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Os episódios mais importantes que Marx pôde presenciar foram as Revoluções de
1830 e 1848 – Revoluções da Burguesia – e a Comuna de Paris (1871), primeira
direção coletiva representada pelo proletariado em que predominavam os interesses
das classes trabalhadoras e que simbolizava um pouco o início da concretização do
ideal comunista de Marx. De acordo com Weffort (1990), o ano de 1848 marca a
diminuição das perspectivas revolucionárias nos países mais modernos da Europa,
mas elas são transferidas para os países mais atrasados da periferia, como Irlanda e
Rússia. “Marx escreve em uma época de revoluções na perspectiva de quem busca as
diretrizes para as revoluções de seu tempo e dos tempos futuros” (WEFFORT, 1990,
p. 234).
3. A liberdade
A concepção de liberdade marxista é diferente da concepção de liberalismo. Marx
considerava que a liberdade é o autogoverno, que seria possível através da transição
ao Comunismo. A liberdade para Marx só é conseguida com a abolição de classes,
da exploração das capacidades que ameaçam a vida do ser humano, da propriedade
privada e da liberdade econômica. No liberalismo, porém, liberdade significa a baixa
intervenção do Estado nas relações de produção entre os indivíduos, a defesa da
propriedade privada, da liberdade econômica e da liberdade de comércio. Pode-se
também diferenciar aqui o conceito de ditadura na visão marxista e na atual. Ditadura
para Marx era a ditadura da burguesia, uma concepção classista, na qual as liberdades
econômicas são mero interesse burguês, que aliena os trabalhadores e que não permite
que tenham consciência de sua própria vida. Essa visão classista de ditadura não
passou dos anos 20. Após esse período, passou a ser considerada como o domínio de
uma ou algumas pessoas através da coerção, podendo melhor ser entendida na fase
do Socialismo.
Entre as fases analisadas por Marx, o Capitalismo é amplamente criticado, no qual
a liberdade é relativa, pois a alta produção transforma os indivíduos em alienados e
coagidos ao consumo exacerbado. Não possuem liberdade de escolha e são obrigados
a vender sua força de trabalho ao capitalista para garantir a sua sobrevivência. Nessa
fase, então, existe a ditadura da burguesia, que detém os meios de produção e comanda
a economia, limitando as liberdades da classe oprimida. Para o teórico, o Capitalismo
é incapaz de permitir a distribuição eqüitativa das mercadorias produzidas em uma
era tecnológica avançada, dominada pela burguesia. Para os marxistas, como lembra
Held (1987), a liberdade no Capitalismo é meramente formal, porque a desigualdade
corrói fundamentalmente a liberdade e deixa a maioria dos cidadãos livres apenas
nominalmente. O povo é governado pelo capital e a liberdade é impossível de ser
conquistada enquanto durar a exploração dos seres humanos. Surge a necessidade
do Socialismo, com a nacionalização dos meios de produção de forma a atender os
objetivos sociais.
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No Socialismo, a ditadura do proletariado impede as liberdades de propriedade e dos
meios de produção. Esses setores seriam comandados pelo Estado, na intenção de
formar um ideal igualitário, futuramente chamado de Comunismo. Nessa ditadura, o
proletariado exerce seu poder a fim de controlar os meios de produção e acabar com
a divisão de classes. É nessa fase que a ditadura é considerada como nos dias atuais,
pois expressa a coerção do Estado através da força, caso ela se torne necessária.
Sartori (1994) enfatiza que na ditadura do proletariado, a vasta maioria tem o poder
de liberdade. É aqui que a livre iniciativa é combatida, ao se fazer através do Estado
o controle da economia, em que o operário se torna apenas uma peça do sistema
econômico. Dessa forma, a liberdade requer (de acordo com a dialética marxista) sua
negação, ou seja, para se conseguir chegar à liberdade no autogoverno, seria necessária
a negação da liberdade através da ditadura do proletariado.
No Comunismo idealizado por Marx, o povo se auto-governa. Todos os meios de
produção tornam-se comunitários. Lênin, ditador russo, principal dirigente do partido
Bolchevique, em 1917, e seguidor das idéias marxistas defende que somente no
Comunismo a liberdade poderia ser estabelecida, porém nunca permitiu que isso
acontecesse. A liberdade para Marx, portanto, está condicionada à abolição das classes
e da exploração da vida humana. A liberdade só existe enquanto a igualdade for o
carro chefe. Podemos perceber, então, que tanto o Socialismo quanto o Comunismo
das idéias marxistas pregam o ideal igualitário, e a liberdade torna-se conseqüência
dessa igualdade.
4. A igualdade
Para Marx, a igualdade só seria possível de ser alcançada quando fosse alcançado
o estágio do Comunismo, após a revolução. “Falar em revolucionar uma sociedade
significa que, no bojo mesmo da velha sociedade, formaram-se elementos da nova
sociedade e que a queda de velhos conceitos acompanham a queda das antigas
condições de vida.” (MARX, 1983, p. 34). Nessa fase, não haveria mais classes
dominantes. Toda a sociedade trabalharia em prol de um bem comum de acordo com
as capacidades de cada indivíduo. O Capitalismo seria totalmente abolido, porque só
faz com que os trabalhadores não tenham controle dos bens que produzem, ou seja,
trabalham alienados. O trabalhador, assim, não pode se reconhecer no produto do
seu trabalho, não pode encarar aquilo que ele criou como fruto de sua livre atividade
criadora, pois trata-se de uma coisa que para ele não terá utilidade alguma. A criação
(o produto), na medida em que não pertence ao criador (ao operário), apresenta-se
diante dele como um ser estranho, uma coisa hostil, e não como resultado normal da
sua atividade e do seu poder de modificar livremente a natureza (KONDER,
1983, p. 45).
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E isso, definitivamente, não é a igualdade que Marx almejava. Para ele, somente
quando a igualdade fosse alcançada, a liberdade seria possível. Outros autores, porém,
discordam de que a liberdade depende da igualdade. Para Bobbio (1998), liberdade
e igualdade são conceitos antitéticos, no que diz respeito à esfera econômica. Não se
pode realizar um sem limitar o outro. Para Sartori (1994), liberdade e igualdade são
ideais independentes. Para ele, não somos livres por sermos iguais e vice-versa. “Se
o Estado se torna todo-poderoso, não há qualquer garantia de que venha a ser um
Estado benevolente, um Estado que gera igualdade; ao contrário, é extremamente
provável que não venha a sê-lo. Nesse caso, nossas igualdades desaparecerão com
nossas liberdades. (SARTORI, 1994, p.137). O autor ainda defende que a igualdade
é o mais insaciável de nossos ideais e lança o homem numa disputa interminável.
Defende também que a igualdade, enquanto apresentação de propostas ou como
ideal construtivo, é algo complicado de se desenvolver. Só é fácil como expressão de
protesto. Para Marx, porém, não era bem assim. A disputa pela igualdade terminaria
com a conquista do Comunismo, período de efetiva justiça social e fim da alienação
provocada pelo Capitalismo.
4.1. Igualdade formal e substancial
Marx mantinha sua preocupação na igualdade substancial, ou seja, a igualdade de
fato, na qual os homens teriam as mesmas condições e os bens seriam distribuídos
igualitariamente. Marx sabia que somente com a distribuição de riquezas em busca
de um bem comum e com a abolição das classes, seria possível impedir a exploração
dos homens pela classe dominante. Assim, a igualdade formal, aquela que é definida
na Constituição, ou seja, igualdade perante as leis, tornar-se-ia também igualdade
real e sensível entre os homens. É nessa igualdade substancial que temos muito que
evoluir.
De acordo com Sartori (1994, p. 127), “O terreno é movediço, claro está, não com
respeito às igualdades que temos (como a igualdade política e a jurídica), mas com
respeito às igualdades que não temos, ou que temos minimamente”. Weffort (1994,
p. 239) considera que as constituições burguesas prejudicam o estabelecimento da
igualdade substancial: “Nas constituições burguesas, os ‘direitos do homem’,[...]
acabam, na realidade, sendo definidos pelo molde dos direitos do burguês. Deste
ponto de vista, os ‘direitos do homem’ – ou os direitos gerais assegurados pelo Estado
– não definem uma igualdade que se deva realizar na sociedade”. De acordo com
Duguit (2006, p. 13), a doutrina individualista encontrou sua forma precisa e acabada
na “Declaração dos Direitos do Homem” de 1789. Esta define em seu artigo 4º: “O
exercício dos direitos naturais do homem só tem por limites os que asseguram aos
outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos”.
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Assim, percebe-se que igualdade formal e substancial são complementares e ambas
necessárias na efetivação de uma justiça social, baseada no bem comum. Porém, são
independentes, porque a existência de uma não implica a existência da outra. Marx,
portanto, era adepto da igualdade substancial e acreditava que só ela seria capaz de
acabar com a diferença de classes e a exploração do homem.
5. A democracia liberal
Os conceitos como liberdade e democracia, para Marx, são sempre vinculados à
igualdade, que era o fim pretendido. Para ele, a democracia era a liberdade para a grande
maioria e seria conseguida através da ditadura do proletariado. Esse era o significado
da palavra democracia em sua concepção. Sartori (1994), porém, menciona que Marx
foi a favor de uma organização democrática, aberta, baseada no voto majoritário
em sua participação na Primeira Internacional, entre 1864 e 1873. Marx, sendo um
igualitário, criticava o sistema liberal no que diz respeito às liberdades econômicas.
Bobbio (1988, p. 39) deixa claro que o objetivo do liberalismo não é o ideal igualitário
que Marx almejava. “Para o liberal, o fim principal é a expansão da personalidade
individual, mesmo se o desenvolvimento da personalidade mais rica e dotada puder
se afirmar em detrimento do desenvolvimento da personalidade mais pobre e menos
dotada; para o igualitário, o fim principal é o desenvolvimento da comunidade em
seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera das liberdades singulares.”
Bobbio (1988) escreve que a única forma de igualdade aceita na doutrina liberal é a
igualdade na liberdade, ou seja, cada qual com sua liberdade desde que não interfira
na liberdade do outro.
O significado de igualdade para Marx não significava exatamente isso, e sim a
igualdade econômica, na qual os indivíduos abrem mão de suas individualidades em
benefício da sociedade como um todo. Portanto, a democracia marxista estava sempre
vinculada à igualdade, mas o liberalismo econômico, não. Ele era considerado um
entrave aos anseios revolucionários e igualitários dos ideais marxistas, pois contribuía
com o crescimento da complexidade dos problemas a serem enfrentados.
6. Coletivismo
Marx foi um teórico extremamente coletivista e abominava a concepção individualista
constante do Capitalismo, em que os trabalhadores eram explorados pela burguesia
e não obtinham sucesso nas suas lutas revolucionárias. Percebe, então, que os
trabalhadores necessitavam de ações coletivistas, nas quais os interesses individuais
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seriam combatidos e somente os interesses gerais seriam atendidos. Held (1987)
enfatiza que a natureza humana é, acima de tudo, social. Nesse contexto de lutas
de classes, entre as disputas de interesses individuais e coletivos, surge a figura do
Estado, com a função de dirimir esses conflitos. Assim, Marx expõe que “[...] a luta
prática desses interesses particulares, que constantemente e de modo real chocam-se
com os interesses coletivos e ilusoriamente tidos como coletivos, torna necessário o
controle e a intervenção do Estado.” (MARX,1983 p. 49).
O individualismo, para Marx, era um tipo de alienação que deixava o homem
dominado completamente pelos modos de produção capitalista. O coletivismo de
Marx pressupõe que a personalidade do indivíduo se dissolve na totalidade e que o
indivíduo aparece como uma peça para a engrenagem do organismo coletivo. Marx é,
portanto, um defensor de um ideal coletivista, pois, em sua ideologia comunista, a base
de sustentação é o coletivismo sem divisão de classes, que agiria conforme o ideal de
bem comum. De acordo com Przeworski: “O interesse de classe é algo vinculado aos
operários como coletividade e não como um amontoado de indivíduos, a seu interesse
‘grupal’ e não a seu interesse ‘seriado’” (PRZEWORSKI , ano, p. 34).
7. Conclusão
A Revolução Industrial representou grandes mudanças sociais, porque fez firmar o
sistema capitalista no mundo, provocando a constante busca de riquezas. No século
XXI, muito do que Marx percebeu ainda persiste, como o aumento das desigualdades
sociais e a baixa qualidade de vida da maioria da população.
Apesar disso, amplas críticas são feitas ao sistema capitalista e o governo tem
aumentado a fiscalização, de forma a minimizar os impactos que este sistema provoca
sobre a sociedade. Na tentativa de aliviar estes impactos, citamos como exemplo a Lei
14.223 de 26 de setembro de 2006, que dispõe sobre a ordenação dos elementos que
compõem a paisagem urbana do Município de São Paulo, de forma a regulamentar
os anúncios e a diminuir a poluição visual para quem esteja na cidade. Consideramos
grandes conquistas as ações que buscam maior rigor ético nas propagandas publicitárias,
e conseqüentemente que propiciam maior discernimento e controle na aplicação da
estrutura capitalista a qual vivemos.
Pode-se concluir que Marx concebia a liberdade e a ditadura de forma diferente do
que é concebido hoje: ditadura era o que a burguesia exercia sobre o proletariado;
liberdade era a abolição de classes, da opressão e a conquista da igualdade social.
Para Marx, a democracia era conciliável com o Socialismo, mas os ideais liberais
não. Assim, Marx pregava profundas críticas ao liberalismo. Para ele, a propriedade
privada deveria ser abolida, assim como a liberdade econômica. Conclui-se que o
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pensamento de Marx era coletivista, pois se preocupava com o bem-estar de todos,
não apenas de um grupo pequeno de indivíduos, fazendo-nos sempre refletir até que
ponto o liberalismo e o Capitalismo influenciam negativamente nas desigualdades
sociais tão presentes no mundo contemporâneo.
8. Referências bibliográficas
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crianças. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/internet/homeagencia/materias.
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NOVAIS, João. Câmara aprova proibição de outdoors em SP a partir de 2007. Última
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SEÇÃO II – DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL
SUBSEÇÃO I – DIREITO PENAL
1. ARTIGOS
1.1 A METAPSICOLOGIA FREUDIANA DA VINGANÇA E O DIREITO
PENAL – UMA INTERSEÇÃO REVELADORA DOS FUNDAMENTOS
NECESSÁRIOS DE UMA TEORIA DO CRIME ADEQUADA
ANA CECÍLIA CARVALHO
Psicóloga e Psicanalista
Mestra em Psicologia, Doutora em Literatura Comparada
Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da UFMG
MARCELO CUNHA DE ARAÚJO
Promotor de Justiça em Minas Gerais
Mestre e Doutor em Direito
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da PUC-MG
MARIA JOSEFINA MEDEIROS SANTOS
Acadêmica de Psicologia, Bolsista PIBIC-CNPq
NAYANA FINHOLDT SHIMARU
Acadêmica de Psicologia, Bolsista Probic-FAPEMIG
LUCIANA ANDRADE MARINHO
Acadêmica de Psicologia
CLÁUDIO JÚNIO PATRÍCIO
Acadêmico de Psicologia
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A tratativa da vingança na obra de Sigmund Freud.
3. Conclusões.
1. Introdução
Os profissionais que têm experiência na seara criminal, independentemente do
campo de formação (juristas, psicólogos, assistentes sociais etc.), percebem que o
crime constitui, freqüentemente, um evento divisor de águas na vida dos envolvidos
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no fato. A partir do momento em que ocorre, independentemente de efetiva atuação
estatal, tanto o criminoso como todos aqueles que, de uma forma ou de outra,
foram afetados referem-se ao evento como algo particular em sua existência.
Esse círculo de afetação do evento criminoso, que, a priori, parece refletir apenas
no autor e na vítima, quando se verifica com maior vagar, percebe se tratar de um
evento propagador, como uma pedra atirada em um lago, que se estende a partir dos
maiores atingidos pela conduta criminosa. Nessa linha, a família do agente, a família
da vítima, os operadores do sistema criminal e, de forma geral, toda população que
toma conhecimento do fato, todos, dependendo do nível de reflexos reais sentidos a
partir da ocorrência do fato proibido, acabam por ter sua esfera particular modificada e
passam a ter expectativas que atribuem às mais diferentes searas de convivência social.
Torna-se, por conseguinte, comum, após a ocorrência de um delito, o surgimento
de diversas expectativas, como as religiosas (espera-se que o criminoso se sinta
arrependido), morais (que reconheça seu erro), éticas (que reconheça o valor do bem
jurídico protegido pela norma – como, por exemplo, a vida ou o respeito à esfera
jurídica patrimonial de terceiros), econômicas (que se disponha a ressarcir o prejuízo
causado), entre outras. Associado às expectativas citadas, uma esperança presente,
via de regra, é a da atuação do Direito, mais especificamente do direito penal.
Nesse diapasão, uma vez que os sistemas sociais humanos devem servir aos próprios
homens, passou a ser interessante se perquirir a respeito das finalidades do direito penal
que deveriam ser condizentes ao que se espera dele, tanto numa visão micro, como macro.
Dessa feita, percebe-se que uma teoria dos fundamentos do direito penal deve abarcar,
a um só tempo, tanto a teoria do crime como a da pena, o que constitui, justamente,
a noção do funcionalismo em contraposição ao ontologismo restritivo finalista.
Nesse passo, explicita Greco (2000, p. 42) que “[...] a teoria dos fins da pena adquire
portanto valor basilar no sistema funcionalista. Se o delito é o conjunto de pressupostos
da pena, devem ser estes constituídos tendo em vista sua conseqüência, e os fins
desta”. Isso significa, portanto, claras modificações na forma de interpretação do tipo
penal, da ação, do nexo causal, da ilicitude e da culpabilidade, o que se reflete, por
exemplo, na adoção do princípio da insignificância; na ilicitude material consolidada
(pelo princípio da lesividade ou da ofensividade – que já vinham propostos antes no
finalismo); na imputação objetiva; nos fins da pena; na culpabilidade, entre outros.
Dessa forma, pode-se dizer que, nas duas visões mais difundidas do funcionalismo,
que tomamos, simplificadamente, como o funcionalismo sistêmico de Jakobs (2003)1
1
V., para uma introdução à teoria dos sistemas, Araújo (2007; 2004); além, é claro, da obra de Luhmann e
De Georgi (1993) e do próprio Jakobs (2003).
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e o funcionalismo teleológico de Roxin2 e, de forma geral, em todas as correntes
do direito penal voltado às conseqüências, houve uma fusão conciliadora das
teorias da pena na teoria do delito, passando ambas a se constituírem como a teoria
dos fundamentos do direito penal. Nesse sentido assinala Hassemer (1994, p. 26)
que, “[...] alterava-se a reflexão penal de uma ênfase no ‘input’ para uma ênfase no
‘output’ de uma justificação do Direito Penal fundada em abstração e sistema para
uma justificação pelos efeitos que possa produzir”. Continua, ainda, dizendo que
“[...] sanções e execução penal convertem-se em objetos centrais de reflexão penal”.
Com efeito, apenas a título de explanação, pode-se dizer que temos basicamente três
abordagens que se prestam à fundamentação da pena: a absoluta, a relativa e a eclética
ou unificadora. Todas as teorias possuem aspectos que podem ser vislumbrados
mais prementemente até hoje em determinadas normas de execução penal. Dessa
feita, não podemos identificar que o sistema brasileiro adotou explicitamente e
exclusivamente uma teoria apenas, sendo proeminente, em determinados momentos,
uma ou outra abordagem e, analisado o sistema como um todo, a teoria eclética. A
idéia primordial e absoluta, inicialmente trazida dos cânones religiosos, indicava
que o pecado deveria ser expiado com determinado castigo. Da mesma forma que
a penitência no descumprimento das normas religiosas, a ofensa à ordem jurídica
exigia uma retribuição em pena, como forma de restauração e manutenção do Direito.
Ressalte-se que essa primeira teoria revela os iniciais laços intrincados entre o
Direito e a religião, que se perpetuam hodiernamente, o que é facilmente visualizado
pela conotação geral em que se verifica a proximidade entre termos como pecado e
crime; criminoso e pecador; padre e juiz; pena, castigo e penitência; ressocialização
e arrependimento; culpa e tentação, entre muitos outros que podem ser citados.
Por conseguinte, o mal da conduta do criminoso deve ser compensado com a
imposição de outro mal: a pena. Para Kant, o fundamento da pena seria de ordem
ética pelo imperativo categórico de que a justiça será realizada pela restauração
retributiva do direito. Hegel, por sua vez, vê na necessidade de restabelecer a
vigência da vontade geral como o fundamento da pena. Pode-se dizer, então, que
enquanto Kant fundamenta a pena na ordem ética, Hegel o faz na ordem jurídica.
Uma vez que o direito (tese) é negado pelo crime (antítese); a negação da negação,
que geraria uma reafirmação da tese, seria alcançada pela síntese (pena). Nessa
esteira, verifica-se que as teorias absolutas possuem como ponto de referência a
culpabilidade e a reprovabilidade do agente e sua conduta, ao passo que as teorias
relativas se embasam na periculosidade, conforme lição de Bitencourt (2006,
p. 71). Interessante consignar, seguindo as lições de Hassemer (1994, p. 35) que:
2
V. a excelente tradução de Luís Greco da obra de Roxin (2000). Sobre o funcionalismo e o finalismo,
recomenda-se a obra de Chamon Júnior (2004).
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[...] é fora de dúvida que mesmo as teorias ‘sem fins’ da
pena, no fundo perseguiam fins, e as teorias ‘clássicas’, ao
invocarem em seu favor a busca da justiça e da compensação
pela infração, atribuíam tais efeitos a certa conotação empírica.
Todas elas podem ser agrupadas sob o rótulo ‘persecução de
fins através da negação de fins’.
As teorias relativas, por sua vez, saem do paradigma da retribuição do castigo reafirmador
do direito, para se focalizarem na função preventiva, voltada ao futuro, do direito
penal. Essa prevenção pode ser visualizada de forma geral ou especial e nos aspectos
positivos e negativos. A prevenção geral, inicialmente apontada por Feuerbach, visa à
criminalidade como fenômeno social.Acominação abstrata de penalidade a determinadas
condutas e a aplicação efetiva da pena quando elas ocorrem deveriam gerar uma coação
psicológica, uma intimidação social, desestimuladora da prática em todas as pessoas.
Haveria, assim, uma intimidação dos cidadãos de forma a se alcançar a prevenção da
prática delituosa. Verifica-se que as teorias relativas, em sua prevenção geral, baseiamse num suposto conhecimento generalizado das normas penais em toda sociedade.
A prevenção geral positiva seria, então, a finalidade da solidificação da crença na
operosidade e confiabilidade do direito em punir condutas nocivas à sociedade. O cidadão,
ao verificar a previsão abstrata das penas e sua aplicação a criminosos, pensa que deve
seguir as normas e que o Direito efetivamente é um sistema que funciona adequadamente.
A prevenção geral negativa, a seu turno, implica numa intimidação do cidadão em
não praticar delitos, ainda que, em determinadas circunstâncias, sinta-se tentado a tal.
A prevenção especial, por outro lado, trazida por von Liszt, dirige-se exclusivamente
àquele que praticou o delito com o objetivo de que ele não volte a delinqüir no futuro.
O delito seria um dano social e o criminoso um perigo à convivência em sociedade.
Dessa feita, o agente deve ser tratado de acordo com sua periculosidade. A prevenção
especial negativa significa que o sujeito deve ser apartado do convívio social enquanto
perdurar o risco, que pode ser inferido pelo passado do cidadão associado à gravidade da
conduta perpetrada. A prevenção especial positiva, por sua vez, implica a finalidade de
se buscarem os meios para se alcançar, durante o afastamento do convívio com o corpo
social, o aprendizado de como a pessoa deve se portar em comunidade (ressocialização).
As teorias mistas ou unificadoras, por fim, entendem que a retribuição, a prevenção
(geral ou especial; positiva ou negativa) são apenas diferentes aspectos de um mesmo
fenômeno complexo: a pena3. As idéias funcionalistas, de certa forma, implicam que:
3
Saliente-se que diversos autores verificam nos próprios fins apontados uma contradição impossibilitadora
das penas (em especial, a privativa de liberdade) atingirem todas as finalidades propostas a um só tempo.
Nesse sentido, citamos Thompson (1991, p. 3): “Propõe-se, oficialmente, como finalidade da pena de prisão, a obtenção não de um, mas de vários objetivos concomitantes: punição retributiva do mal causado
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A pena retributiva é rechaçada, em nome de uma pena
puramente preventiva, que visa a proteger bens jurídicos ou
operando efeitos sobre a generalidade da população (prevenção
geral), ou sobre o autor do delito (prevenção especial). Mas
enquanto as concepções tradicionais de prevenção geral
visavam, primeiramente, a intimidar potenciais criminosos
(prevenção geral de intimidação, ou prevenção geral negativa),
hoje ressaltam-se, em primeiro lugar, os efeitos da pena sobre
a população respeitadora do direito, que tem sua confiança
na vigência fática das normas dos bens jurídicos reafirmada
(prevenção geral de integração, ou prevenção geral positiva).
Ao lado dessa finalidade, principal legitimadora da pena, surge
também a prevenção especial, que é aquela que atua sobre a
pessoa do delinqüente, para ressocializá-lo (prevenção especial
positiva), ou, pelo menos, impedir que cometa novos delitos
enquanto segregado (prevenção especial negativa). (GRECO,
2000, p. 43).
Concluindo, verifica-se que, após as doutrinas funcionalistas, não há como se falar
em uma filosofia do direito penal, sem se levar em consideração, a um só tempo,
a teoria do delito e a teoria da pena que, apesar de terem nascido separadamente,
se unem necessariamente para a explicação funcional desse ramo do Direito4.
pelo delinqüente; prevenção da prática de novas infrações, através da intimidação do condenado e das
pessoas potencialmente criminosas; regeneração do preso, no sentido de transforma-lo de criminoso em
não criminoso”. Continua, ainda, o autor, “[...] a maioria das pessoas recuse reconhecer uma verdade que
está entrando pelos olhos: reformar criminosos pela prisão traduz uma falácia e o aumento de recursos,
destinados ao sistema prisional, seja razoável, médio grande ou imenso, não vai modificar a assertiva.
Atentemos para o seguinte: até hoje, em nenhum lugar, em nenhum tempo, nem nos países mais ricos e nos
momentos de maior fastígio, sistema penitenciário algum exibiu um conjunto de recursos que tivesse sido
considerado como, pelo menos, satisfatório. O que parece algo inviável, mesmo porque jamais foram estabelecidos precisamente e especificamente, quais seriam, em qualidade e quantidade, tais recursos ideais.
Essa indefinição garante a perpetuidade à justificativa mencionada, pois permite seja aplicada ad eternum”
(THOMPSON, 1991, p. 16-17).
4
Reveladora a lição crítica de Batista (1995, p. 111-116), que, por sua precisão e pertinência, merece ser
trazida na totalidade de seu argumento: “Por isso, a missão do direito penal defende (a sociedade), protegendo (bens, ou valores, ou interesses), garantindo (a segurança jurídica, ou a confiabilidade nela) ou confirmando (a validade das normas). [...]. Observe-se que os fins assinalados se projetam predominantemente
na relação pena-sociedade. [...]. Um iniciante estaria tentado a considerar até que os fins do direito penal
e os fins da pena habitam a mesma casa, porém os primeiros na sala de visitas e os segundos na cozinha.
Essa descrição comparativa, algo caricata, das mais usuais respostas oferecidas às perguntas sobre a missão
do direito penal e os objetivos da pena, põe de manifesto que, se os penalistas não sucumbem à tentação
de substituir a missão do direito penal que devem descrever pelo direito penal de seus sonhos, ou existem
diferenças entre aquilo que pretende o direito penal e aquilo que pretende seu instrumento essencial e característico – a pena –, ou este é o ponto mais densamente turvo, do ponto de vista ideológico, do discurso
jurídico-penal. Mais do que em qualquer outra passagem, a ideologia transforma aqui fins particulares em
fins universais, encobre as tarefas que o direito penal desempenha para a classe dominante, transvestindo-as
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A par de tais considerações, importante que se anote que, em nenhum momento,
nem nas teorias absolutas, nem nas relativas ou mistas, existe qualquer finalidade
do direito penal que leva em consideração qualquer tipo de resposta do sistema
voltada às vítimas. Pode-se dizer, atualmente, que os sistemas penais, de forma
geral, são fulcrados numa criticável “[...] neutralização da vítima, a fim de que se
possa serenamente aplicar a sanção penal ao infrator” (CALHAU, 2003, p. 25).
Percebe-se que, ao argumento de se impedir uma modificação da rechaçada
vingança privada por uma indesejável vingança pública, instituiu-se, de forma
geral, o direito de ação, e mais especificamente, para o processo criminal, o ius
puniendi de titularidade exclusiva estatal. Nesse sentido, percebe-se a correta
lição de Cintra, Dinamarco e Grinover (1997, p. 249): “[...] vedada em princípio
a autodefesa e limitadas a autocomposição e a arbitragem, o Estado moderno
reservou para si o exercício da função jurisdicional, como uma de suas tarefas
fundamentais”. Ainda, na mesma trilha, Tornaghi (1987, p. 100) esclarece que:
Já vimos que, primitivamente, quando alguém via insatisfeita
sua pretensão, agia diretamente contra o adversário para
compeli-lo fisicamente à prestação. Um dia, porém, o Estado
proibiu fazer justiça pelas próprias mãos, chamou a si a tarefa
de resolver os conflitos de interesses e disse aos particulares:
de ora em diante só quem tem o poder de fazer justiça
(jurisdição) sou eu; não há mais ação de um particular contra
o outro; a única maneira de agir permitida é esta: vir a mim;
de um interesse social geral, e empreende a mais essencial inversão, ao colocar o homem na linha de fins
da lei: o homem existindo para a lei, e não a lei existindo para o homem. [...]
Por isso mesmo, ao lado das funções aparentes da pena, [...] o eterno esquema das teorias absolutas, relativas e mistas, fala-se hoje nas funções ocultas ou não declaradas da pena. [...] Sandoval Huertas organizou
as funções não declaradas da pena privativa de liberdade em três níveis: a) o nível psicossocial (funções
vindicativa e de cobertura ideológica); b) o nível econômico social (funções de reprodução de criminalidade, controle coadjuvante do mercado de trabalho, e reforço protetivo à propriedade privada); c) o nível
político (funções de manutenção do status quo, controle sobre as classes sociais dominadas e controle de
opositores políticos).
Pensamos que numa sociedade verdadeiramente justa e democratizada os fins do direito penal e da pena
constituirão, transparentemente expostos e debatidos, um só e indivisível projeto. Entrementes, cabe um
esforço, a exemplo do que ocorreu na área das funções da pena, no sentido de desmistificar os fins do direito
penal, questionando as respostas usuais. [...]
Definitivamente é inegável que numa sociedade dividida, o bem jurídico, que opera nos lindes entre a
política criminal e o direito penal, tem caráter de classe. Tal constatação permite o aproveitamento crítico
do conceito de bem jurídico, no amplo espectro de funções que, como vimos, lhe corresponde. Podemos,
assim, dizer que a missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos, através da cominação, aplicação e
execução da pena. Numa sociedade dividida em classes, o direito penal estará protegendo relações sociais
(ou ‘interesses’, ou ‘estados sociais’, ou ‘valores’) escolhidos pela classe dominante, ainda que aparentem
certa universalidade, e contribuindo para a reprodução dessas relações. Efeitos sociais não declarados da
pena também configuram, nessas sociedades, uma espécie de ‘missão secreta’ do direito penal”.
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de mim é que o particular poderá exigir justiça. Eu a farei
usando do poder que tenho sobre todos e, portanto, sobre o
adversário de quem a pede. Dessa forma aquele (que podemos
chamar autor) nada pode exigir desse (a quem podemos
chamar réu), mas esse não se poderá furtar ao meu poder.
A esses fatores, acrescentem-se as problematizações de que, no processo penal, a
maioria dos delitos se procedem mediante as ações penais públicas incondicionadas
(relegando a vítima à atuação dependente da interpretação do Ministério Público) e
da inoperosidade total do sistema. Esclarecedora a lição de Calhau (2003, p. 26-27):
Ao contrário do aspecto racional, que seria o fim do sofrimento
ou o abrandamento da situação em face da ação do sistema
repressivo estatal, a vítima sofre danos psíquicos, físicos,
sociais e econômicos adicionais, em conseqüência da reação
formal e informal derivada do fato. Não poucos os autores a
afirmarem que essa reação traz mais danos efetivos à vítima
do que o prejuízo derivado do crime praticado anteriormente.
Essa situação é chamada de sobrevitimização do processo
penal ou vitimização secundária, quer dizer o dano adicional
que causa a própria mecânica da justiça penal formal em seu
funcionamento. No processo penal ordinário e na fase de
investigação policial, a vítima é tratada com descaso e, muitas
vezes, com desconfiança pelas agências de controle estatal da
criminalidade. A própria sociedade também não se preocupa
em ampará-la, chegando, muitas vezes, a incentivá-la a manterse no anonimato, contribuindo para a formação da malsinada
cifra negra, o grupo formado pela quantidade considerável de
crimes que não chegam ao conhecimento do sistema penal.
Torna-se claro que, num direito penal que se proponha moderno, respeitador, a um só
tempo, dos avanços das teorias do delito e dos fins da pena; da noção de funcionalidade
do sistema baseada em seus objetivos e outputs e dos direitos fundamentais, o estudo da
vítima não seja relegado a segundo plano. Faz-se primordial, por conseguinte, estudar as
repercussões do crime na vítima para que o sistema social não se desvincule da realidade
do dia-a-dia; não num ontologismo aprisionador do finalismo, mas num empirismo
político-criminal, embasado no dualismo de compromisso entre a realidade social e
o normativismo cunhado na resistência da coisa (Widerstand der Sache) de Roxin.
O estudo que se propõe no presente artigo parte da premissa de que há algo de
inerente ao aparelho psíquico que tornam próximas não apenas todas as vítimas,
mas, na verdade, todos os homens. Nesse sentido, a partir de entrevista informal
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com a mãe de uma vítima de um homicídio culposo no trânsito, que se demonstrava
nitidamente frustrada com a resposta estatal e clamava por um significado para o que
ocorreu, ou do pai de uma vítima de homicídio que sempre repetia sua intenção de
ceifar a vida do assassino, caso o direito penal não atuasse adequadamente, surgiu
uma interrogação, dessas que nos incomodam, porém permanecem sem resposta:
qual seria o papel que deveria ser ocupado pelo sistema penal na vida das vítimas?
Interessante notar que, no discurso das vítimas, sempre alguma faceta da vingança, de
forma direta ou velada, surge como tema. Pode a mesma se explicitar numa expectativa
de vingança pública ou privada. Pode a vítima afirmar que efetuará a vingança apenas
no caso de ineficiência do Estado. O discurso de justiça com as próprias mãos, por
sua vez, também é claramente vingativo. Ainda podem ser reconhecidos traços de
vingança, muitas vezes, no próprio clamor de justiça, porém com uma conotação
evidentemente sádica. Esse tema recorrente da vingança, que sempre aparece nos
discursos não apenas policiais mas também em nosso cotidiano, sendo, inclusive,
tema central de inúmeras obras literárias, musicais ou cinematográficas, deve, por
hipótese, revelar alguma faceta inerente à condição humana que precisa, sob pena
de total inadequação e, portanto, perda de sentido, ser respeitada pelo direito penal.
Neste sentido, pesquisa realizada no período de 2003 a 2005 revelou que 18,61%
dos 462 homicídios registrados em Belo Horizonte foram motivados por vingança.
Outros 5,19% foram efetuados a partir de conflitos amorosos que também
culminaram na retaliação homicida. Ou seja, aproximadamente 110 dos 462
assassinatos analisados apenas por essa pesquisa, nesse curto intervalo de tempo,
estão, de alguma forma, associados à vingança (SILVA, 2006). É bem provável
que esses números se repitam em muitos outros lugares, naqueles casos em que a
vingança comparece em destaque na enumeração dos motivos de um crime ou de
um ato infracional. Assim, resguardadas as diferenças porventura existentes entre os
vários contextos socioeconômicos e culturais que se relacionam a esses crimes, tais
dados apenas reforçam a importância de um estudo sistemático sobre esse assunto.
Cabe, então, um primeiro pedido ao leitor: o de que se coloque, durante o estudo
do texto, de forma neutra e imparcial, refletindo os questionamentos puramente
humanos que possua, sem a tentativa de enquadramento em tal ou qual teoria. Isso
se dá, uma vez que se percebe que o tema da vingança é um assunto claramente
envolvido por um certo tabu na seara jurídica, já que, conforme citado supra, podese dizer que a criação de todo ordenamento jurídico envolve a idéia de repúdio à
vingança, devendo os homens resolver seus problemas de forma digna e racional,
preterindo maneiras bestiais de solução de conflitos. Já fica uma observação no
sentido de que, em momento algum, os autores pretendem uma volta à violência
privada por uma defesa insana da vingança. O que se propõe é, simplesmente, olhar
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de forma desarmada para algo tão natural ao ser humano que, por isso mesmo,
causa tanto espanto ao nos sentirmos tentados a agir de forma vingativa, o que
demonstra nossa inescapável humanidade, apesar de todo e qualquer tampão racional.
Nessa trilha, apesar de não sermos afetos às afirmações categóricas, podemos dizer que
todas as pessoas, freqüentemente, possuem ímpetos vingativos como respostas a ações
que nos atingem de uma maneira determinada. Esses freqüentes ímpetos vingativos
ocorrem, por exemplo, quando dirigimos um veículo no trânsito congestionado
e somos fechados por outra pessoa; quando alguém fura a fila do supermercado,
demonstrando total descaso aos demais; quando somos traídos por nossas esposas e
maridos, além de uma infinidade de outras situações. Nessas hipóteses, dependendo,
entre outros fatores, da gravidade do evento, surge uma verdadeira ferida em nosso
mais profundo interior. Essa ferida, às vezes, é tão dolorida e pulsa de uma forma
tão latejante que choramos, perdemos noites de sono e, até mesmo, passamos a atos
vingativos, que podem configurar pequeninas retaliações ou mesmo grandes crimes.
Essa vontade de se vingar, presente em todos os homens e mulheres, em
maior ou menor grau, com maior ou menor possibilidade de se efetivar em
ações vingativas, é, usualmente, percebida em casos de vítimas de crimes.
Tanto é assim, que, conforme exposto alhures, autores justificam o direito de
ação e o ius puniendi, por uma exigência em se coibir a vingança privada.
Sem falsos moralismos ou discursos politicamente corretos, o que se propõe é a
abordagem séria do tema da vingança como algo natural de todo ser humano e, mais
importante, que possui uma função específica na organização da economia psíquica
do aparelho mental, o que pode ser verificado através do olhar psicanalítico na obra
freudiana. Com isso, como se verá no decorrer da exposição, não se pretende, de
forma alguma, implicar o direito penal com uma necessidade de vingança5 (pública
ou privada) ou mesmo afirmar que a vingança seja uma saída apropriada a ofensas.
Busca-se, tão-somente, estudar o fenômeno da vingança do ponto de vista freudiano
no sentido de se explicitar seu papel e, com isso, revelar a importância do direito
penal na recomposição dos aparelhos psíquicos afetados pelo crime (incluindose, aí, o agente, a vítima e todos os círculos de afetação oriundos do delito).
5
O perigo da associação da pena à vingança é bem exposto por Batista (2004, p. 134): “Nos tempos que
correm, em nosso país, as velhas senhoras bondosas são freqüentemente instigadas a reencarnar-se nas deusas do ódio e da vingança. Para as necessidades de controle penal do capitalismo sem trabalho, para ajudar
na neutralização dos inúteis da nova economia, nada mais oportuno. A vingança, que Nietzsche localizou na
alma das tarântulas, é um velho produto que os publicitários-criminólogos brasileiros estão relançando no
mercado, com novos rótulos, para ajudar a vender sua irmã mais nova ‘chapa branca’, a pena”.
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2. A tratativa da vingança na obra de Sigmund Freud
Apesar das muitas menções à vingança, nos volumes que compõem a Edição
standard das obras completas de Sigmund Freud, nem uma vez o assunto é
ali abordado de maneira sistemática e, do mesmo modo, tampouco por seus
seguidores, embora a teoria psicanalítica tenha se consolidado para fornecer
os operadores necessários para um exame minucioso desse fenômeno.
Torna-se necessário, por conseguinte, focalizar metapsicologicamente o fenômeno
da vingança, isto é, examiná-lo em seus aspectos dinâmicos (isto é, relativos
ao conflito psíquico que a anima), em relação aos seus aspectos econômicos
(isto é, relativos à sua função no meio dos outros processos psíquicos) e em
relação à sua determinação inconsciente. Portanto, o que aqui se descreve como
a metapsicologia da vingança é o que nos permitirá articular esse fenômeno
aos conceitos centrais da psicanálise, tais como o inconsciente, a sexualidade,
os mecanismos de defesa, o narcisismo e as pulsões de morte, dentre outros.
Inicialmente, nos socorremos dos primórdios da psicanálise, que remontam ao texto
de Freud e Breuer (1976, v. 2, p. 29-296), intitulado Sobre o mecanismo psíquico dos
fenômenos histéricos: comunicação preliminar, que oferece considerações que podem
contribuir na sistematização do fenômeno da vingança. Nesse trabalho, Freud e Breuer
discorrem acerca dos fenômenos histéricos. A afirmação de que “[...] os histéricos
sofrem principalmente de reminiscências” faz alusão a algumas observações relatadas
por Freud sobre a histeria cujos sintomas estariam ligados às cenas de um passado
doloroso em que a emoção não pôde ser exteriorizada. Essa emoção fica, em parte,
retida na vida psíquica e, outra parte, é liberada para inervações e inibições sintomáticas.
Tal emoção é provocada por um trauma psíquico caracterizado por qualquer
experiência que possa provocar afetos aflitivos (susto, angústia, vergonha, dor física).
É nesse contexto que Freud e Breuer introduzem o termo vingança, que é considerado
como uma reação, ou seja, um meio de descarregar o afeto. Para os autores,
quando a reação ocorre em grau suficiente, grande parte do afeto desaparece.
Quando a reação é reprimida, o afeto permanece vinculado à lembrança. Com
isso, pode-se ter uma elucidação acerca do ressentimento, tal como se segue:
O que acontece no ressentimento é que o ofendido não
se atreve, ou não se permite, responder à altura da ofensa
recebida. O envenenamento psicológico produz-se a
partir da reorientação para o eu dos impulsos agressivos
impedidos de descarga, gerando uma disposição passiva
para a queixa e a acusação, assim como a impossibilidade
de esquecer o agravo passado. (KEHL, 2005, p.13).
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Freud e Breuer (1976, v. 2, p. 49) ainda consideram que:
[...] uma ofensa revidada, mesmo que apenas com palavras,
é recordada de modo bem diferente de outra que teve que ser
aceita. A linguagem também reconhece essa distinção, em suas
conseqüências mentais e físicas; de maneira bem característica,
ela descreve uma ofensa sofrida em silêncio como ‘uma
mortificação’ [‘Kränkung’, literalmente, um ‘fazer adoecer’].
- A reação da pessoa insultada em relação ao trauma só exerce
um efeito inteiramente ‘catártico’ se for uma reação adequada
- como, por exemplo, a vingança. Mas a linguagem serve
de substituta para a ação; com sua ajuda, um afeto pode ser
‘ab-reagido’ quase com a mesma eficácia. Em outros casos,
o próprio falar é o reflexo adequado: quando, por exemplo,
essa fala corresponde a um lamento ou é a enunciação de
um segredo torturante, por exemplo, uma confissão. Quando
não há uma reação desse tipo, seja em ações ou palavras, ou,
nos casos mais benignos, por meio de lágrimas, qualquer
lembrança do fato preserva sua tonalidade afetiva do início.
Entretanto, os autores abordam que uma pessoa normal que tenha passado
por um trauma psíquico pode se utilizar do processo de associação para lidar
com a situação, provocando o desaparecimento do afeto concomitante. Um
exemplo citado foi o de que a lembrança de uma humilhação corrige-se quando
a pessoa normal situa os fatos nos devidos lugares, considerando o seu próprio
valor. Em outro capítulo, há menção de uma pulsão de vingança – mas pulsão
no sentido de impulso – encontrada em uma nota de rodapé que se segue:
A pulsão de vingança que é tão poderosa no homem primitivo
e que é mais disfarçada do que recalcada pela civilização,
nada mais é do que a excitação de um reflexo não liberado.
Defender-se de uma agressão numa luta e assim agredir o
adversário é o reflexo psíquico adequado e pré-formado.
Quando não é levado a efeito ou o é de maneira insuficiente, o
reflexo é constantemente liberado pela lembrança, e a pulsão
de vingança surge como um impulso volitivo irracional,
do mesmo modo que todas as outras ‘pulsões’. A prova
disso está precisamente na irracionalidade do impulso, em
seu descompromisso com qualquer questão de utilidade
ou conveniência e, a rigor, no seu desprezo por todas as
considerações relativas à própria segurança do indivíduo. Tão
logo o reflexo é liberado, a natureza irracional do impulso pode
tornar-se consciente (FREUD; BREUER, 1976, v. 2, p. 212).
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Posteriormente, após o desenvolvimento de um arcabouço inicial da teoria psicanalítica
(principalmente na obra A Interpretação dos Sonhos, de 1900-1901 – inclusive com
menção expressa a sonhos vingativos de realização de desejos), Freud (1976, v. 4 e 5, p.
157-317) expõe uma análise terapêutica efetivamente por ele realizada, que acabou por
se constituir em marco na consolidação do arcabouço da teoria e da práxis da psicanálise.
Ao caso Dora (1976, v. 7) Freud confere uma importância singular, uma vez que
o concebe como um complemento daquela que é considerada a obra fundadora da
psicanálise – A Interpretação dos Sonhos. O caso Dora trata-se de um fragmento
de uma análise que durou cerca de três meses. Apesar de Freud ter condensado o
referido caso a fim de vislumbrá-lo no tocante aos sintomas histéricos e suas
interpretações, o caso Dora é um dos mais extensos da obra freudiana. Nesse
sentido, procurar-se-á colocar, aqui, apenas aqueles elementos indispensáveis
para a elucidação do caso e suas vinculações com o fenômeno vingativo.
Dora é o pseudônimo de uma jovem histérica chamada Ida Bauer (1882-1945).
Ela foi encaminhada por seu pai, Philipp Bauer, ao Dr. Freud quando tinha dezoito
anos de idade em decorrência de uma série de sintomas – enxaqueca, tosse, afonia
e outros – que não eram apaziguados por tratamentos médicos convencionais.
A palavra histeria, morfologicamente, vem do grego hystera e significa útero. Os
gregos a consideravam uma afecção restrita às mulheres, surgindo em função de
uma movimentação uterina anômala na cavidade abdominal. Freud, a partir de
seus estudos com Charcot no Hospital de Salpêtrière (1885), atribui à histeria uma
nova etiologia. Diante de sintomas que não encontravam quaisquer determinantes
anatômicos e fisiológicos, Freud se lança em uma empresa que buscou conferir à
histeria um estatuto plenamente diferenciado. Freud (1976, v. 4, p. 16) relaciona a
etiologia dessa doença às “[...] intimidades da vida psicossexual dos pacientes, e que
os sintomas histéricos são a expressão de seus mais secretos desejos recalcados”.
Dora era a filha mais nova de uma família composta pelo pai, pela mãe, Katharinna
Gerber-Bauer, e pelo irmão, Otto Bauer. O pai era um industrial abastado e de notável
inteligência. No entanto, Phillip Bauer tinha uma saúde frágil, fato que levava
Dora a dispensar-lhe cuidados freqüentes. A mãe era uma figura menosprezada
por Dora, sendo esta descrita por Freud como vítima de um quadro denominado
de psicose da dona-de-casa, ou seja, uma mãe sem a menor compreensão acerca
dos interesses dos filhos e que se volta exclusivamente a ocupações domésticas,
como faxinas com nuances obsessivas. O irmão de Dora era um ano e meio
mais velho e, durante a infância da paciente, constituiu-se como um modelo a
seguir. Contudo, anos mais tarde, o irmão distanciou-se dela, uma vez que ele
sempre apoiava a mãe em quaisquer discussões que surgiam no seio familiar.
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O pai era o membro central nesse núcleo, erigindo-se também como a figura à qual Dora
dirigia grande afeto. O pai, após ser acometido por uma tuberculose, passa uma temporada
em uma cidade denominada no caso, em razão do sigilo que se fazia necessário na
época, como B----. Foi nessa viagem que a família de Dora conheceu e desenvolveu uma
cara amizade com o Sr. e a Sra. K, casal de significativa influência no quadro histérico
da jovem. O pai de Dora e a Sra. K tornaram-se muito próximos, pois ela cuidou dele
com muito zelo durante suas enfermidades. A estreita amizade cultivada pelos dois
suscitou rumores de que esse vínculo não se sustentava apenas em função da gratidão
do pai de Dora pela Sra. K, mas sim em razão de uma relação amorosa entre os dois.
Foi também na cidade B----, local em que o Sr. e Sra. K haviam se radicado há muitos
anos, que transcorreu a cena creditada por ser a deflagradora (trauma psíquico) do
quadro histérico da paciente. Dora estava caminhando com o Sr. K ao redor de um lago
nos Alpes quando ele lhe fez uma audaciosa proposta amorosa, informando-lhe que
seu casamento já estava arruinado (“Eu não tenho nada com a minha mulher”). Dora
sentiu-se ultrajada e esbofeteou a face de K, decidindo retornar subitamente com seu
pai para Viena. Quatorze dias após o ocorrido no lago, Dora resolve contar aos seus
pais sobre a investida do Sr. K. O pai já havia observado alterações no comportamento
de Dora, notando-a abatida e irritável. No entanto, o que mais preocupou o pai
foi encontrar uma carta suicida deixada por Dora em uma cômoda no seu quarto.
Philipp Bauer estava certo de que tais condutas deviam-se, então, ao que havia
ocorrido entre sua filha e o Sr. K. Assim, o pai decide confrontá-lo, exigindolhe explicações acerca do que realmente havia sucedido. O Sr. K nega a acusação
que lhe fora desferida, dizendo ao pai de Dora que o depoimento de sua filha
era calunioso, fato que não lhe surpreendia, uma vez que Dora, de acordo
com K, lhe parecia uma menina com fortes interesses e imaginações de cunho
sexual. A Sra. K havia dito ao seu marido sobre os livros a que Dora dedicava
uma atenção especial – leituras como Fisiologia do Amor, de Mantegazza.
Diante das circunstâncias, aparece, então, uma das primeiras menções à vingança
no caso Dora. A garota tenta se vingar do Sr. K, ao contar a seus pais sobre a cena
do lago. Ela esperava que, ao falar do ocorrido, o Sr. K. seria desmoralizado,
enquanto ela se sairia vitoriosa. Dora busca restituir-se moralmente através desse
ato, restabelecendo uma virtude que ela dera por maculada na cena do lago. No
entanto, essa vingança acabou sendo malograda, uma vez que o Sr. K desacreditou
e desmoralizou Dora diante de seus pais. A cena do lago, como já foi explicitado,
constitui-se como o trauma psíquico, ou seja, um acontecimento que, em função de
sua intensidade, não é passível de ser elaborado de forma adequada pelo sujeito e
acaba por ocasionar um quadro patogênico. Alguns eventos, então, possuem tamanha
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carga de energia que acabam por ser demasiados ao controle do aparelho psíquico que
acabam por transbordar as possibilidades do sujeito, sendo chamados de traumáticos.
Freud explica que o aparelho psíquico é regulado pelo princípio do prazer que se
esforça por manter uma harmonia de excitações. Um aumento de tensões é sentido
como desprazeroso, enquanto sua diminuição é prazerosa. A cena do lago possui
um forte caráter sexual que resgata em Dora lembranças recalcadas de sua infância,
período no qual a paciente se entregou a satisfações auto-eróticas. Materiais como
esse, cujo teor está embebido de significações sexuais, são comumente sentidos como
excessivos e, como conseqüência, geradores de ansiedade e desprazer. A masturbação
infantil emerge como um elemento salutar no quadro histérico da jovem – Dora
não permite se entregar a K. em função da enorme culpa inconsciente que sentia
em decorrência desse período remoto de sua infância. Nesse sentido, a vingança está
estreitamente ligada a um dos três pontos norteadores da metapsicologia – o ponto
de vista econômico. Ao vingar-se, ou pelo menos tentar fazê-lo, o aparelho psíquico
de Dora trabalha por uma descarga de tensões. A vingança, portanto, não deve ser
encarada como uma atividade essencialmente destrutiva; pelo contrário, ela é o meio
encontrado para se obter um alívio absolutamente necessário para um equilíbrio
mental. Não seria arriscado dizer que Dora adoece por não ser capaz de vingar-se.
Outra vingança que Dora tenta infligir, mas que novamente cai no insucesso diz
respeito ao desejo de vingar-se de seu pai através de seus sintomas – e também da carta
suicida. Dora sempre caía enferma quando seu progenitor viajava ao encontro da Sra.
K. A jovem paciente sentia um ciúme exacerbado pelo pai, fato que evidenciava um
reavivamento de uma paixão com raízes edipianas. Essa regressão a um passado infantil
revela uma solução encontrada inconscientemente por Dora para suprimir algo que lhe
era extremamente forte e também inaceitável – o seu amor pelo Sr. K. Dora tentava
dissuadir o pai com reiteradas súplicas e argumentos de que não deveria ir ao encontro
da Sra. K, mas os desejos da jovem permaneciam inauditos. Embora Dora exigisse
de seu pai um afastamento das Sra. K., os seus rogos eram pouco firmes. A jovem,
ao mesmo tempo em que demandava um distanciamento de seu pai em relação a Sra.
K, era também bastante permissiva diante da união infiel. Freud acreditava que Dora
procedia com tal ambigüidade para não ter de dizer de seu próprio relacionamento com
o Sr. K, e também por desejar afastar a Sra. K do homem com quem ansiava desposar-se.
Vale complementar que K havia investido sexualmente na jovem em outra
circunstância que não a do lago, mas quando Dora tinha apenas 14 anos. Nessa
ocasião, o Sr. K arquitetou uma forma de ficar a sós com a garota e roubar-lhe um
beijo, que, por sinal, suscitou em Dora uma intensa repugnância (já nessa época,
de acordo com as exposições de Freud, Dora exibia atitudes histéricas, pois diante
de uma oportunidade de excitação sexual, sentimentos desprazerosos de ojeriza são
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despertos). Novamente, a via sintomática encontrada por Dora é usada como um
instrumento para impossibilitar o adultério do pai. A paciente demonstra-se mais uma
vez inábil no sentido de encontrar caminhos mais sãos de alívio tensional, recorrendo
à somatização que, embora fosse imobilizante, era a única saída que lhe surgia.
Torna-se imprescindível dizer que o próprio sintoma também possui aspectos
econômicos, já que a somatização possibilita a vazão de excitação. O sintoma também
traz à baila outro elemento norteador da metapsicologia – o ponto de vista dinâmico.
Esse aspecto da metapsicologia revela a existência de um conflito psíquico, ou seja,
de exigências internas contrárias que se opõem. Essas forças conflitantes podem
se dar entre desejos e uma exigência moral que os tolhe, fato que pode traduzir-se
na formação de sintomas. No caso Dora, o ponto de vista dinâmico é facilmente
contemplado, uma vez que a histeria da paciente decorre de um choque entre o seu
desejo inconsciente (entregar-se ao Sr. K) e sua própria exigência moral, acompanhada
por um sentimento inconsciente de culpa que impossibilitava sua satisfação pulsional.
O caso Dora foi, para Freud, um estudo muito caro e de enorme valia no sentido
de auxiliá-lo a melhor compreender os sonhos na histeria. Freud publicou em
1900 A Interpretação dos Sonhos, trabalho que contém indispensáveis teorizações
no tocante à metapsicologia. É nesse estudo que Freud faz uma estruturação
sistemática da noção do inconsciente e formula as relações desse sistema com
a formação onírica. Freud irá dizer que os sonhos são a via de realização de um
desejo inconsciente. Até mesmo aqueles sonhos que parecem estar completamente
apartados dessa formulação, devido ao seu conteúdo angustiante, são também
realizações de desejos. No caso Dora, Freud faz uma análise pormenorizada de dois
sonhos da paciente, o Sonho I e o II. A fim de não tornar esta exposição ainda mais
extensa, será tratado aqui apenas o Sonho II em função de seu conteúdo vingativo.
Nesse sonho, Dora se vê passeando por uma cidade desconhecida. Na sua caminhada, ela
se depara com uma casa onde estava morando sozinha e é levada a subir até o seu quarto
onde encontra uma carta de sua mãe que lhe comunica que seu pai havia morrido. Dora
então parte para a estação e dirige-se até a casa de sua família, onde é informada pela
criada que sua mãe e os outros já estavam no cemitério. Após uma análise minuciosa de
cada elemento de tal elaboração onírica, Freud conclui que o teor do sonho correspondia
a uma fantasia de vingança contra o pai. Dora deseja se vingar de sua figura paterna, que
a abandonou duas vezes: primeiro deixando-a nas mãos do Sr. K, como uma espécie
de prêmio, devido à sua relação infiel com a Sra. K e, segundo, ao não lhe dar crédito
quando confessa que havia sido importunada com uma investida amorosa do Sr. K.
No sonho, portanto, as relações se invertem. Dora não mais se sujeita aos abandonos
do pai, pelo contrário, ela o sujeita ao abandono no momento de seu falecimento. Ela
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também se vinga da coerção que lhe fora imposta por seu pai durante toda sua vida, se
ele morresse, ela poderia ler e amar o que melhor lhe aprazesse. Assim, o sonho surge
como um caminho que não o sintomático, no sentido de lidar com fantasias de vingança.
Entretanto, o sonho por si só não é capaz de extinguir em Dora o seu anseio por
vingança. A jovem desejava ser levada a sério, ser livre e poder se entregar ao homem
que tanto amava. Mas, diante da interdição dessas aspirações, seja pela incredulidade
do pai, seja pelas limitações impostas por uma sociedade vitoriana que tolhia qualquer
manifestação sexual feminina, ou por um sentimento inconsciente de culpa que
impossibilitava a jovem de amar o Sr. K, Dora se sentia no direito de vingar-se, de
encontrar um modo de ser restituída de tudo que lha fora subtraído. Um mero sonho
vingativo, por sua vez, não seria efetivo no sentido de realizar todas essas pretensões.
Uma nova tentativa de vingança surge no momento em que Dora esbofeteia o Sr. K
quando ele faz a investida no lago. Dora procede de tal maneira, pois se lembra de uma
conversa que havia tido com uma jovem governanta que trabalhara no domicílio do
casal K. A governanta confessou-lhe que o Sr. K tinha agido de modo assaz atrevido,
propondo a ela um romance e afirmando-lhe não ter mais nada com sua esposa. O Sr.
K usou da mesma aproximação com Dora, fato que a irritou profundamente e a levou
a agredir o Sr. K. A vingança de Dora novamente foi manejada com incongruência, já
que ao Sr. K não foi dito o porquê do bofetão. Dora ataca K. por achar que a ela não
poderia ser dirigida uma investida idêntica à que outrora fora usada com uma serviçal. A
paciente pertencia a uma argentária família e por isso merecia tratamento diferenciado.
O Sr. K., portanto, feriu a sua condição narcísica, já tão alquebrada em função das
inúmeras interdições que eram impostas à jovem. Mas Dora, ao esbofetear K, não achou
que ele não voltaria a lhe procurar. A jovem cria que o Sr. K lhe procuraria arrependido e
clamando por perdão, no entanto, K. não o fez. A vingança novamente voltou à garota,
fato que agravou enormemente o seu quadro histérico. De fato, quem se vingou ao
banir de suas aspirações amorosas foi o Sr. K. Ele é quem, em função de um agravo,
restitui-se narcisicamente, dando a Dora o troco por não ceder com aceite a sua sedução.
Por fim, Freud expõe uma forma singular de vingança com enorme relevância na
prática psicanalítica – a vingança transferencial. A transferência, sucintamente,
diz respeito ao “[...] processo pelo qual desejos inconscientes se atualizam sobre
determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles
e, eminentemente, no quadro da relação analítica” (Laplanche; Pontalis, 2004, p.
514). Dora abandonou o tratamento analítico de forma abrupta, impossibilitando
que Freud completasse as suas interpretações acerca do quadro histérico da
paciente. Dora, ao abandonar Freud, vingou-se do analista, impossibilitando o seu
trabalho, mas também se vingou dos papéis que o doutor acabou representando
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no inconsciente da paciente, papéis que o aproximavam tanto de seu progenitor
como do Sr. K. Freud possuía determinados traços de caráter que o assemelhavam
ora ao pai de Dora, ora o Sr. K. Assim, a paciente acabou reatualizando desejos
inconscientes de vingança referentes aos dois no setting psicanalítico, vingando-se
do analista que os suscitou. Essa talvez tenha sido a vingança mais efetiva de Dora,
uma vez que de fato frustrou as expectativas de Freud em relação ao tratamento.
Por outro lado, Dora não se satisfez ao vingar-se do representante daqueles que
lhe feriram. A afecção histérica continuou lhe torturando, já que a paciente não
elaborou o material inconsciente determinante de sua doença. Freud cometeu
um erro no que concerne ao manejo da transferência de Dora – ele, no curto
período em que se deu a análise da jovem, não foi capaz de perceber os papéis
que representava no inconsciente da analisando. Se Freud houvesse notado isso
durante o tratamento, poderia ter evitado a vingança transferencial e prolongado
a análise até o seu desfecho apropriado, ou seja, o desfecho da elaboração.
A última e mais eficaz vingança executada por Dora ocorreu quando houve a morte
de um dos filhos do casal K. A jovem retornou à cidade B---- e confrontou os dois,
forçando-os a admitir sobre a investida amorosa no lago e sobre a relação infiel que
a Sra. K mantivera por longos anos com seu pai. Interessante notar que essa empresa
parece ter repercutido muito positivamente no quadro da paciente. Os padecimentos
histéricos rarearam e Dora finalmente se casou com um rapaz que vinha lhe cortejando.
Nesse sentido pode-se observar a relevância do dizer. A articulação de um afeto
a uma rede de significantes que o nomeiam e o exteriorizam parece ter uma forte
implicação no apaziguamento de um ressentimento. Dora deixa de se envenenar
com fantasias de vingança que nunca alcançavam a concretude e parte para outra
via muita mais harmoniosa – a da palavra. O aspecto econômico do vingar-se, ou
seja, a possibilidade de descarregar tensões por demais excessivas no aparelho
psíquico por meio da retaliação, pode se dar não só pelo viés destrutivo do ataque
físico, mas por outro mais sereno representado pela linguagem. É importante
salientar que incentivar um paciente a relatar sobre os afetos que animam
suas fantasias de vingança traz benefícios, mas não é um manejo suficiente.
Noutra linha de raciocínio, impende sublinhar que a psicanálise é uma prática
sustentada pelo infantil. É durante o período da infância que se instaura o
aparelho psíquico e que se configura a formação do eu. É também na vida
infantil que se erigem importantes fenômenos que são salutares na formação
do sujeito. Dentre eles, o estádio do espelho e o complexo de Édipo emergem
como acontecimentos essencialmente estruturantes para o psiquismo da criança.
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O estádio do espelho é um conceito lacaniano, conforme descrito por Dor (1992)
e pelo próprio Lacan (1998, p. 96-103), que visa elucidar a forma como se dá
a compreensão por parte da criança de que é um corpo inteiriço. A experiência
da criança de aproximadamente seis meses a dois anos e meio de se olhar no
espelho e perceber-se uma, propicia-lhe uma experiência assaz jubilatória, pois
lhe garante a apreensão de sua imagem corpórea. O complexo de Édipo, por sua
vez, não deve ser entendido apenas como aquela experiência na qual a criança se
vê enamorada pelo progenitor do sexo oposto e rivalizando com o progenitor
do mesmo sexo. A passagem pelo complexo de Édipo e sua posterior dissolução
inserem a criança em um jogo identificatório em que se prefiguram a estruturação
da personalidade e a orientação do desejo humano. A maneira como a criança
enfrenta esses momentos repercute diretamente em sua estruturação psíquica.
Se o aparelho psíquico já se encontra formado durante a infância e conseqüentemente
apto a receber as mais variadas inscrições, pode-se, também, compreender a vingança
infantil pelos pressupostos metapsicológicos. Para a psicanálise, toda vingança é infantil,
uma vez que, como já foi exposto, a prática se ampara em fenômenos que datam desse
período. Contudo, vale fazer uma diferenciação entre a vingança que ocorre no período
adulto, mas que contém elementos infantis, e aquela vingança que se dá durante a
infância. Freud tratou em sua obra de várias formas de vingança efetuadas por crianças,
sendo o Caso Hans (1909) a teorização em que mais surgem menções à vingança.
Freud, para explanar o Caso Hans, lançou mão de textos como: Três ensaios sobre
a teoria da sexualidade (1976, v. 7, p. 119-230), O esclarecimento sexual das
crianças (1976, v. 9, p. 135-144), Sobre as teorias sexuais das crianças (1976, v.
9, p. 211-228) e Algumas conseqüências da diferença anatômica entre os sexos
(1976, v. 19, p. 303-320). Esses textos são utilizados como base para compreender
as descobertas de Hans sobre a origem dos bebês. As crianças, antes de adquirirem
uma noção condizente acerca da procedência dos nenéns, se apóiam em uma série de
teorias. A mais comum entre elas, e que terá significativa relevância na elucidação
do Caso Hans, é a atribuição de pênis a todos os indivíduos, seja do sexo masculino
ou feminino (Hans arquitetou uma hipótese que estendeu a atribuição de pênis até
mesmo a objetos inanimados). Também é comum que o infante acredite que os
bebês apareçam após a ingestão por parte da mãe de pequenas sementinhas, que
acabam por se desenvolver em sua barriga. Outra conjectura infantil envolve a
teoria cloacal, ou seja, a de que os bebês não nascem pela vagina materna, órgão
ainda desconhecido ou denegado pela criança, mas sim de seu ânus, tal como ocorre
em aves. A emersão dessas teorias sexuais infantis no seio teórico da psicanálise
foi possibilitada após diversas observações de crianças efetuadas por Freud.
A análise de Hans foi efetuada a duas mãos, havendo contribuições do próprio
Freud como também do pai do garoto, figura que vinha se dedicando aos
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estudos da psicanálise. O trabalho com Hans se iniciou quando ele tinha
apenas cinco anos, em razão de uma fobia por cavalos. O medo e a angústia
exacerbada que o garoto possuía de eqüinos tinha implicações agudas na época,
uma vez que esses animais representavam o principal meio de transporte.
Um aspecto central na análise de Hans diz respeito às teorias sexuais ideadas pelo
garoto. Em um primeiro momento, o garoto acreditava na concepção anedótica
referente à entrega de bebês pela cegonha. No entanto, a partir da gravidez de sua mãe,
Hans se envolveu com novas investigações, percebendo que as mudanças ocorridas
no corpo materno se relacionavam com a presença de outro bebê (sua irmã Hanna).
Hans, durante suas averiguações, conseguiu estabelecer algumas analogias entre
a fábula das cegonhas e a origem dos bebês. O garoto possuía um livro de figuras
no qual se ilustrava um ninho de cegonhas em uma chaminé vermelha que, após
minuciosa análise, pôde ser identificada como um útero. Curiosamente, na mesma
página em que há o desenho das cegonhas, também se exibe o esboço de um cavalo.
Durante o trabalho analítico com Hans, seu pai o questionou acerca da possível analogia
existente entre os cavalos da fazenda de sua família saindo pelo portão da estrebaria
e o processo de defecação que, por sua vez, também possuía parecenças com o parto.
Hans assente à análise efetuada pelo pai e realiza a seguinte dedução: cavalo igual à
lumf (fezes) que também seria correlativo a bebês (cavalo=fezes=bebês). O pai de Hans
então o argüiu sobre a agressividade que ele sentia pelos cavalos. Houve o seguinte
diálogo entre o pai e o garoto: “Pai: Você gostaria de bater nos cavalos assim como
mamãe bate em Hanna? Você gosta disso também, você sabe. Hans: Não se acontece
nada de mal aos cavalos quando se bate neles” (reproduzindo a fala do pai). Pai: Em
quem é que você realmente gostaria de bater? Mamãe, Hanna ou em mim? Hans: Na
mamãe!”. A despeito do que foi revelado por Hans nessa inquirição, investigações
ulteriores não confirmam sua reposta. Na verdade, o desejo do garoto era que seu pai se
ferisse contra uma pedra e sangrasse (Fritz, um companheiro de brincadeira de Hans,
havia se ferido de tal forma) para que ele pudesse então ficar sozinho com sua mãe.
A fobia de Hans em relação a cavalos somava-se ao desejo de maltratá-los. O anseio
do garoto de achacar os eqüinos possuía duas determinantes: a primeira se referia ao
desejo sádico de ferir a mãe e a segunda se configurava como um impulso de vingança
contra o pai. Assim, através de sua fobia, Hans encontrou uma via para vingar-se de
seu pai por ele se interpor na relação com sua mãe. O pai representava os cavalos na
fantasia da criança, sendo o elemento que ameaça o menino com o temor da castração.
A vingança de Hans, tal como no Caso Dora, processou-se pela mediação sintomática.
Em um plano inconsciente, Hans transpôs a sua agressividade perante o pai para
os cavalos, garantindo, assim, sua integridade narcísica. Caso Hans efetuasse sua
vingança diretamente em sua figura paterna, sem a interposição de um representante
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(cavalos) no qual pôde depositar sua destrutividade, ele colocaria em risco seu
narcisismo, uma vez que estaria se sujeitando à possibilidade de seu pai intervir com
a castração. A vingança de Hans, portanto, obedeceu à lógica da autopreservação.
No processo relativo à formação de uma fobia, dois mecanismos essenciais
dos processos inconscientes se destacam – a condensação e o deslocamento. A
condensação é uma noção que foi bastante contemplada na Interpretação dos
Sonhos, trabalho no qual foi tratada de forma bastante sistemática. A condensação:
[...] traduz-se no sonho pelo fato de o relato manifesto,
comparado com o conteúdo latente, ser lacônico: constitui
uma tradução resumida. A condensação nem por isso
deve ser assimilada a um resumo: se cada elemento
manifesto é determinado por várias significações latentes,
inversamente, cada uma destas pode encontrar-se em vários
elementos. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004, p. 87).
A partir disso, pode-se dizer que o fenômeno da vingança possui afinidades
com a elaboração onírica, uma vez que no vingar-se ocorrem construções
semelhantes à condensação. No desejo de vingança de Hans em relação ao pai,
o elemento manifesto representado pela fobia é determinado por significações
latentes referentes ao ódio edipiano do garoto perante sua figura paterna.
O deslocamento, por sua vez, caracteriza-se pelo fato de “[...] a importância, o interesse
a intensidade de uma representação ser suscetível de se destacar dela para passar a
outras representações originariamente pouco intensas, ligadas à primeira por uma
cadeia associativa” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004, p. 116). No caso Hans, nota-se
que a vingança se desloca do pai para os cavalos – o deslocamento é justificável, pois
seu pai freqüentemente brincava de cavalo com seu filho. Embora a fobia do garoto
comprometesse severamente sua qualidade de vida, essa via seria menos intensa do
que se ele transpusesse diretamente seu desejo vingativo à sua figura paterna, uma
vez que, como já foi dito, isso poderia comprometer a sua integridade narcísica.
O Homem dos Lobos (1918) é outro caso clínico freudiano de alta relevância para a
psicanálise. Nele, também se expõe um caso de fobia que, embora tenha se desdobrado
até a fase adulta, possuía determinações infantis. O paciente padecia de um temor
exagerado pela figura de lobos que, assim como ocorreu no caso Hans, representavam
a figura paterna. O impulso hostil contra o pai foi reprimido e transformado em quadro
fóbico. No caso Homem dos Lobos, observa-se uma interessante faceta do fenômeno
vingativo referente à projeção. Durante a infância do paciente, ele projetou ao pai
impulsos hostis. Por meio de tal operação, o Homem dos Lobos expulsou de si e
localizou no pai a agressividade que ele mesmo possuía (assim como no Caso Hans, a
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hostilidade perante o pai se baseava no conflito edipiano). O Homem dos Lobos, por meio
da projeção, alocou inconscientemente o seu desejo vingativo no pai, fato que levou o
paciente a temê-lo. Nesse caso, o jovem Homem dos Lobos era atormentado pela fantasia
de que seu pai iria lhe devorar, temor que se encontra enraizado na fase oral da libido.
Outro caso em que se exibem diversas alusões ao vingar-se infantil diz respeito
ao Homem dos Ratos (1909), trabalho em que se efetua a mais sistemática
construção acerca da neurose obsessiva na obra freudiana. O Homem dos Ratos
foi o codinome encontrado por Freud para sigilosamente relatar o caso de seu
paciente Ernest Lanzer, que procurou o Dr. Freud em função de obsessões que
datavam desde sua infância, mas que haviam se intensificado nos últimos anos. O
paciente contava que sentia um medo intenso de que algo ruim pudesse acontecer
com o seu pai e com uma dama que lhe era muito estimada. Além disso, ele se
queixava de impulsos compulsivos, como o ímpeto de cortar sua própria garganta
com uma lâmina. Posteriormente, ele criou uma série de proibições que foram
estabelecidas com o intuito de afastar de sua mente pensamentos desprazerosos.
Freud denominou o caso como Homem dos Ratos em decorrência do grande medo
obsessivo que assolava o seu paciente. A experiência que precipitou o primeiro
encontro de Lanzer com Freud ocorreu em função de um relato que o paciente
ouvira de um capitão durante o tempo em que serviu ao Exército. Em uma parada
para descanso durante uma manobra militar, o Homem dos Ratos sentou-se com dois
oficiais e o capitão, figura que lhe atemorizava, pois sabia que ele defendia castigos
corporais no meio militar. Com o transcorrer da conversa, o capitão relatou acerca de
um castigo que estava sendo aplicado por oficiais no Leste. A punição era efetuada
de modo que o prisioneiro era despido e amarrado, e sobre suas nádegas era virado
um vaso com ratos que tentavam cavar um caminho de saída no ânus do torturado.
Logo após esse relato, atravessou na mente do paciente, como um relâmpago, a idéia de
que aquele castigo estava ocorrendo com uma pessoa que lhe era muito cara. A princípio, o
analisando acreditava que a dama a qual tanto admirava estava sofrendo tal tortura. Logo
depois, essa idéia estendeu-se ao seu pai, fato que levou o paciente a crer que ele, mesmo
estando morto há nove anos, podia estar padecendo com o mesmo castigo no além-mundo.
Embora o Homem dos Ratos só tenha procurado o Dr.Freud na idade adulta, ele já
vinha sofrendo de um quadro neurótico desde sua infância. A primeira menção ao
fenômeno vingativo no caso contextualiza-se durante a meninice do paciente. Com
o transcurso da análise, Lanzer contou a Freud sobre o intenso ciúme que sentia de
seu irmão mais novo. Ele era considerado por todos como o filho mais forte e bonito,
sendo eleito o favorito da família. Um dia, durante uma brincadeira envolvendo
espingardinhas, o Homem dos Ratos convenceu seu irmão para que olhasse dentro
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do cilindro sob a alegação de que veria algo interessante. O caçula é persuadido
e é atingido na testa, não se ferindo gravemente. O paciente então confessa que
havia tido a real intenção de feri-lo, mas que logo após o ocorrido, sentiu-se
extremamente culpado, questionando-se sobre como havia tido a coragem de fazê-lo.
A rivalidade entre irmãos não raro atua como um propulsor de atos vingativos.
Inúmeros casos de agressões e outras formas de violência permeiam essa
modalidade relacional. O nascimento de um filho freqüentemente ocasiona
modificações no seio familiar, alterando fortemente a relação entre os pais e seus
outros filhos. A criança que até então era a caçula e se vê destituída de tal posição,
amiúde torna-se agressiva, desafiadora e rebelde. Embora essas atitudes sejam
um tanto equivocadas na tentativa de restituir à criança aquele zelo que lhe foi
subtraído em função da chegada de um bebê, essas são as vias encontradas por
ela para voltar a atenção de seus cuidadores a si mesmo. Para a criança, qualquer
forma de atenção, até mesmo a punitiva diante de suas traquinagens, é melhor
do que sua ausência. Nesse sentido, a vingança infantil pode ser vislumbrada
por meios diversos, seja através de rusgas incessantes, de agressões físicas e
verbais, ou por caminhos mais sutis, em que a retaliação é endereçada aos pais.
Nessa trilha, Winnicott (1995) foi um pediatra e psicanalista britânico que agregou
relevantes contribuições ao campo da psicanálise com crianças. Esse teórico trouxe
uma nova luz ao fenômeno da delinqüência, encarando-o como uma busca de solução
da privação emocional. Ele acreditava que atos delinqüentes cometidos na infância e
adolescência são formas encontradas pelos jovens de alcançar continência e limites.
Crianças que sofreram severas privações emocionais se enveredariam por caminhos
escusos, efetuando furtos, agressões, e outros delitos com o intuito de se restituírem
emocionalmente em decorrência das privações e frustrações que lhe foram impostas por
suas figuras parentais. Além disso, comportamentos anti-sociais permitiriam também
a descarga de tensões acumuladas, restaurando o equilíbrio no aparelho psíquico.
Assim, percebe-se que determinados atos agressivos e hostis têm determinantes
estritamente emocionais, configurando-se como uma espécie de vingança infantil
em relação aos pais negligentes. Contudo, essa vingança freqüentemente se volta
não aos relapsos cuidadores, mas à sociedade que serve como um representante
parental. Ao efetuarem delitos, os jovens delinqüentes esperam encontrar a
contenção e o equilíbrio social que se fizeram ausentes em suas vidas familiares.
Freud, em seu texto Romances familiares (1976, v. 11, p. 243-247), elucida uma
outra forma de vingança infantil dirigida aos pais. Nesse ensaio, Freud fala a
respeito de crianças neuróticas e sobre a tendência à fantasia que elas exibem.
A criança, à medida que vai crescendo, tem a oportunidade de conhecer e se
relacionar com pais que não os seus. Assim que a criança expande suas relações
interpessoais, ela se engaja em um exercício comparativo, buscando confrontar o
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modo como é tratada com o modo como percebe que outras são. Essas comparações
subsidiam fantasias por parte da criança de que não está sendo alimentada ou
cuidada com o devido zelo, ou seja, de que está sendo vítima de negligência.
A partir disso, ela cria uma fantasia vingativa em que imagina que seu pai é alguém
rico e de muito melhor linhagem que seu pai verdadeiro. Essa forma de vingança
dirige-se unicamente à figura paterna, a partir do momento que a criança percebe
que os bebês só podem nascer de mulheres. Quando a criança alcança essa
compreensão, ela apreende que a mãe é sempre certíssima, enquanto a paternidade
é sempre duvidosa. Embora pareça que a fantasia vingativa infantil de se imaginar
fruto de um pai mais poderoso que seu verdadeiro seja uma atitude ingrata ou infiel,
ela, na verdade, enaltece seu progenitor. Esses romances familiares expressam
a saudade que a criança possui de tempos do passado, em que ela era feliz por
ter um pai que lhe parecia ser o mais nobre e forte dos homens. Freud concebia
o fantasiar como uma via de realização de desejo, assim, a criança neurótica,
por intermédio de suas fantasias, busca concretizar seus anseios vingativos.
Ainda em relação ao Homem dos Ratos, pode-se dizer acerca de um formato do
fenômeno vingativo que se faz especialmente presente em quadros de neurose obsessiva.
Nesse transtorno observam-se conflitos psíquicos que se expressam em sintomas como
idéias obsedantes, dúvida, efetuação de ritos, ambivalência de afetos (amor e ódio, por
exemplo, se debatem com particular violência causando grande angústia para o paciente)
e autopunição decorrente de uma forte tensão entre o ego e um superego especialmente
feroz. Além disso, nota-se outro aspecto nessa afecção relacionado com a equivalência
entre pensar e acontecer. O Homem dos Ratos cria que o simples fato de desejar algo,
podia levar a sua real concretização. Assim, apenas por fantasiar uma vingança, ele se
sentia deveras culpado, uma vez que sua distinção entre o plano real e ideativo estava
comprometida. Em função disso, se o Homem dos Ratos fantasiasse uma vingança
contra a dama por ela não ter aceitado o seu pedido de casamento, ele se envergonhava
muitíssimo, acusando-se impiedosamente por possuir pensamento de tal sorte.
Pode-se fazer uma relação entre esse aspecto (desejar = acontecer) da neurose
obsessiva com outro texto freudiano – Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho
psicanalítico (1976, v. 14, p. 350-377). Nele, Freud expõe achados clínicos referentes
à existência de um certo tipo de caráter que efetua atos criminosos em função de um
sentimento de culpa – “[...] criminosos devido ao sentimento de culpa”. Freud confere
a atos criminosos um olhar analítico, tratando-os como uma forma do delinqüente, a
partir da punição devida, localizar um sentimento inconsciente de culpa. O criminoso
executaria o delito por sentir uma culpa da qual desconhece sua origem, mas que o
angustia severamente no plano da não-consciência. Realizado o crime, o delinqüente
anseia por uma punição que contemple não só o delito pelo qual foi incriminado, mas
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que o puna especialmente pelo crime-mor que cometera quando criança – o desejo do
parricídio e do incesto. O sentimento inconsciente de culpa, que mobiliza o criminoso,
tem para Freud raízes edipianas. O grande desejo que aplaca a criança durante o
complexo de Édipo de tomar a figura do sexo oposto do genitor do mesmo sexo pode
gerar uma culpa feroz, a depender da forma como o superego se estrutura no infante.
A analogia entre esse texto e o Homem dos Ratos se alinhava com o fato de Lanzer
se sentir, por grande parte de sua existência, como um grande criminoso. Ele não
precisou executar nenhum crime concreto no mundo externo, mas ele o fazia a
todo o momento em seus pensamentos. Como para ele havia uma equivalência
entre pensar e acontecer, suas fantasias vingativas dirigidas seja para a dama, para
seu pai ou para Freud localizavam a sua culpa da mesma forma que se houvesse
de fato cometido um crime. A recriminação que vinha da ferocidade de seu
superego já era suficiente para fazê-lo sentir punido por seus desejos edípicos.
A neurose obsessiva possui nuances que determinam uma relação diferenciada
com o fenômeno vingativo. A partir do que foi exposto referente ao
Homem dos Ratos, nota-se que o neurótico obsessivo não raro padece
de uma culpa rigorosa em razão de um superego particularmente cruel.
No texto intitulado Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens
(contribuições à psicologia do amor) (1976, v. 11, p. 148-157), Freud disserta acerca
de duas possíveis escolhas objetais de um homem neurótico: ou ele opta por investir
libidinalmente em uma mulher comprometida, alimentando assim os seus impulsos
de rivalidade e hostilidade; ou, então, ele elege uma mulher que se assemelhe a uma
prostituta, podendo assim vivenciar uma experiência de ciúme. Ambas as escolhas
estão diretamente relacionadas com o complexo de Édipo. O desejo de vingança
relatado por Freud nesse texto é novamente infantil e se dirige à figura materna,
uma vez que ela concede o privilégio da relação sexual ao pai, e não à criança.
Em outro texto denominado O tabu da virgindade (contribuição à psicologia do amor II)
(1976, v. 11, p. 179-182), Freud diz acerca do tabu da virgindade em povos primitivos.
O teórico afirma que o desvirginar feminino não tem apenas conseqüências relativas
ao estreitamento de vínculos entre a mulher deflorada e seu parceiro; em alguns casos
ele pode também desencadear uma reação arcaica de hostilidade das mulheres para
com seus defloradores. Nesse caso, o sentimento de vingança feminino nasceria
quando os homens que lhe tiraram a virgindade não são mais os seus companheiros.
Entretanto, elas não conseguiriam dirigir sua libido para um outro objeto pelo fato de
ainda se sentirem ligadas, por sujeição e não por afeição, àqueles que as desvirginaram.
Em Luto e Melancolia (1976, v. 14, p. 271-291), a vingança aparece relacionada
ao processo melancólico. A melancolia caracteriza-se por ser um transtorno no
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qual o sujeito se identifica com um objeto perdido. Esse processo identificatório,
todavia, ocorre com a incorporação de traços ruins do objeto que não mais se faz
presente. Em razão disso, o melancólico se auto-recrimina, considerando-se uma
figura absolutamente execrável. A autopunição efetuada pelo sujeito melancólico
é endereçada não propriamente a si, mas àquele objeto mau que o abandonou. A
vingança do melancólico efetua-se por meios específicos, em que a retaliação se
dirige ao próprio sujeito. Embora a vingança do melancólico pareça malograda,
ela constitui-se como uma via autêntica de retaliar um objeto que lhe rejeitou. Em
função de sua ausência, o melancólico descobre nos caminhos identificatórios um
modo de se vingar. “Via de regra, [...] os pacientes ainda conseguem pelo caminho
indireto da autopunição, vingar-se do objeto original” (FREUD, 1976, v. 14, p. 284).
A vingança também é recorrente nos escritos de Freud relacionados aos sonhos.
No texto A censura dos sonhos (FREUD, 1976, v. 15, p. 165-178), a vingança
aparece como um dos desejos censurados que têm sua realização através dos
sonhos: “Desejos de vingança e de morte, dirigidos contra aqueles que nos são mais
próximos e mais caros na vida desperta, contra os pais, irmãos e irmãs, maridos ou
esposa, e contra os próprios filhos, não são nada raros” (FREUD, 1976, p. 173).
Em O Ego e o Id (1976, v. 14, p. 13-83), texto metapsicológico que inaugura
explicitamente a segunda tópica da teoria psicanalítica, Freud cita conto de Otto
Rank, que exemplifica alguns atos neuróticos de vingança dirigidos a pessoas
erradas (pelos mecanismos explicitados supra), o que remete à tétrica história
dos três alfaiates de uma aldeia, em que um deles deveria ser enforcado porque o
único ferreiro do povoado havia cometido um grave delito. A punição aparece
dessa forma como uma medida retaliativa dirigida à pessoa errada, entretanto,
possuindo um mecanismo reparador da ordem. A vingança opera semelhantemente
ao trabalho do sonho no qual aparece primeiramente esse tipo de frouxidão de
deslocamento resultante do processo primário. No entanto, seria característico do ego
ser mais seletivo sobre a escolha tanto de objeto, quanto de um meio de descarga
libidinal. Caso essa energia deslocável seja libido dessexualizada, também pode ser
denominada como energia sublimada, pois ainda conservaria a finalidade primordial
de Eros que seria a de unir, ligar e de estabelecer unidade ou ao menos tentar fazê-lo.
Em trabalhos posteriores como O futuro de uma ilusão e O mal estar na civilização
(1976, v. 21, p. 13-71; p. 75-171), Freud explana acerca da gênese da consciência.
Para isso utiliza como base o instinto agressivo e a renúncia dele. Quando o indivíduo
abdica da satisfação de um instinto hostil, o superego encarrega-se de aumentar
sua ferocidade contra o ego. A psicanálise atribui uma importância sublinhada
à agressividade, destacando como essa tendência que visa ao prejuízo do outro se
encontra presente desde muito cedo na infância. A moção hostil faz-se premente na
relação que a criança desenvolve com a autoridade dos pais que tolhem determinados
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comportamentos infantis, impedindo com que se satisfaçam plenamente. A
criança, aos poucos, introjeta a autoridade paterna, identificando-se com ela.
A internalização dos pressupostos morais providos pela cultura e cuidadores
resultará na formação do superego da criança. Contudo, essa sujeição aos ditames
morais que impedem, em especial, o incesto e o parricídio, animam na criança uma
agressividade vingativa. A criança sadia encontra formas para sair dessa submissão
garantida pela lei paterna principalmente pela via lúdica. Através da brincadeira, a
criança pode inverter situações reais, abandonando a condição passiva e assumindo
certa atividade. No jogo simbólico, a criança pode tratar mal o seu pai e mãe,
manipulando a brincadeira a fim de infligir-lhes a dor que ela sentiu ao ver-se obrigada
a se sujeitar aos seus desmandos. Assim, a brincadeira pode ser encarada como um
recurso pelo qual o desejo de vingança perante os pais é passível de ser apaziguado.
Por fim, interessante citar que Freud, a fim de elucidar o fenômeno vingativo, utiliza
algumas contribuições do campo literário, como é o caso de Hamlet, de William
Shakespeare. A história que subjaz a essa tragédia possui uma temática semelhante
à do Édipo Rei, de Sófocles. Em Hamlet, contudo, a fantasia infantil edipiana não
se configura tão explicitamente quanto em Édipo Rei. “O que impede Hamlet de
executar sua vingança está na natureza peculiar da tarefa. Hamlet é incapaz de se
vingar do homem que eliminou seu pai e tomou o lugar deste junto a sua mãe. O
homem que lhe mostra os desejos recalcados de sua própria infância realizados”
(FREUD, 1976). Hamlet defrontando-se com a tarefa de vingar a morte do pai,
no entanto, vê-se paralisado diante da incumbência. O príncipe da Dinamarca
não consegue fazê-lo, pois está identificado com o assassino de seu pai, Cláudio,
vendo nele a concretização do desejo universal que assola toda criança do sexo
masculino – o anseio de tomar o lugar do pai junto à mãe pela via do parricídio.
O retorno desse conteúdo recalcado é sentido como um tormento para Hamlet,
que é incapaz de entender por que, a despeito de seu ódio por Cláudio, é incapaz
de matá-lo. Shakespeare, sem o aparato teórico da psicanálise, montou uma peça
que diz de nossas primárias fantasias infantis. Esse conhecimento endopsíquico
do sujeito humano, ou seja, essa habilidade que alguns autores têm em desnudar
nossos desejos reprimidos, enriquece imensamente a tragédia shakespeariana.
O autor constrói a trama de modo que Hamlet enfrente inquietações morais e
auto-recriminações diante da incapacidade de vingar a morte do pai. Hamlet não
conseguia eliminar Cláudio, pois, ao fazê-lo, estaria eliminando uma parte de si.
Quando o príncipe, ao término da peça, é finalmente capaz de assassiná-lo, ele acaba
morrendo; fato que insinua que a identificação de Hamlet com o assassino de seu
pai estava tão fortemente instalada, que a morte de Cláudio significou a sua própria.
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3. Conclusões
Após toda a exposição dos momentos em que Sigmund Freud utilizou o termo vingança
em sua obra, podemos intentar realizar uma sistematização inicial e superficial, apenas
para os fins do presente artigo. Da análise supra procedida, podemos elencar alguns
pontos primordiais em que o conceito psicanalítico do fenômeno vingativo se apresenta.
Primeiramente, seguindo os estudos sintomáticos de Freud e Breuer (1893) do
nascimento da psicanálise, podemos apontar o aspecto econômico da vingança que
se revela no fato do sintoma surgir, quando em decorrência de uma não-resposta
adequada a uma ofensa sofrida. A lembrança da ofensa permaneceria ligada a um
afeto, caso não fosse atuada numa ab-reação adequada pela pessoa que a sofreu.
No mesmo sentido econômico, vemos, no caso Dora (1905), a importância do
conceito de trauma psíquico, gerador do impulso vingativo, considerado como
um evento que é percebido pelo sujeito como excessivo. Seu aparelho psíquico
não consegue trabalhar adequadamente o evento traumático, o que provocaria
um transbordamento da energia que permanece incontrolada e pulsante, até ser
canalizada de uma determinada forma apropriada (como, por exemplo, na vingança).
Ainda, nesse mesmo caso, nota-se que existem diversas formas, além da vingança,
pelas quais o aparelho psíquico tentar trabalhar o trauma, como num sonho, no
surgimento de um sintoma somático, ou até mesmo pela elaboração pela palavra.
Assim como na Interpretação dos Sonhos (1900-1901) e no texto A censura dos
sonhos (1915), o caso Hans (1909) nos ensina que a elaboração do material pulsante
oriundo do trauma psíquico original do ímpeto vingativo passa pelos processos de
deslocamento, condensação e mesmo de projeção (esse último explicitado no caso
do Homem dos Lobos – 1918). Tal importa em perceber e reafirmar que a vingança
é, como já dito, apenas uma das formas de manifestação do latente, seguindo
os mesmos processos já verificados de afloramento do material inconsciente.
No Homem dos Ratos, com o auxílio dos textos sobre os Romances Familiares,
Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico, Um tipo especial de
escolha de objeto feita pelos homens (contribuições à psicologia do amor) e O tabu
da virgindade (contribuições à psicologia do amor II), verificamos a importância dos
movimentos de formação da estrutura psíquica do sujeito no reflexo da atualização
do movimento vingativo. Dessa feita, momentos psíquicos como o do conflito de
Édipo, o complexo de castração, a identificação com os cuidadores, as fases infantis
do desenvolvimento, o momento de igualdade entre o desejar e o acontecer, a
consolidação das estruturas do aparelho psíquico, entre outras, possuem influência
direta sobre a vingança ou os impulsos vingativos da atualidade do sujeito. Verifica-
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se, então, que assim como se pode dizer que toda psicanálise é infantil, toda vingança
também o será, pois será referida à atualização de moldes infantis há muito forjados.
Posteriormente, na trilha que culminou na segunda tópica freudiana, temos a implicação
da formação do ego narcísico e suas conseqüências no fenômeno vingativo. Logo, em
Luto e Melancolia já existe a explicitação do processo de identificação de uma parte
do eu com certas características do objeto amado e perdido, para posterior acusação do
próprio eu pela perda. Nesse caminho, o texto inaugural da segunda tópica freudiana
(O Ego e o Id – 1923) elabora a idéia de constituição narcísica do ego de qualquer
indivíduo a partir da identificação e perdimento de objetos amados, formando uma
representação razoavelmente coerente do corpo físico, em associação a aspectos
psicológicos daqueles objetos. No texto, há a indicação do caminho que aponta para
a função específica da vingança: a de reparadora da ordem anteriormente afetada.
Nas obras O futuro de uma ilusão e O mal estar na civilização, Freud explicita
implicações de uma noção já trazida desde Além do Princípio do Prazer e O Ego e
o Id: o de haver uma pulsão, autônoma e diversa da pulsão sexual (libidinal – pulsão
de vida), que visa à desobjetificação dos vínculos e à manutenção do mesmo. Essa
pulsão, chamada de pulsão de morte, pulsão de agressão ou pulsão de dominação6,
refletir-se-ia nos fenômenos vingativos, associada à libido como força motriz.
Esse lineamento geral da exposição faz-se necessário na medida em que, para
explicitar uma primeira abordagem à metapsicologia da vingança, tomaremos o
fenômeno sob a ótica já traçada por Freud e repetida nas diversas manifestações
concretas ao nosso redor. Num tangenciamento inaugural, pode-se dizer que, ao tomar
contato com um fato que seja interpretado pelo aparelho psíquico como excessivo,
há um abalo das estruturas relativamente coesas do ego narcísico do indivíduo.
Logo, o trauma psíquico, por definição, acaba por gerar uma verdadeira lesão, não física,
porém real, na medida em que o ressentido7 pode efetivamente sentir essa ferida de uma
forma tão real quanto a tangível folha de papel onde se encontra impressa essa idéia (afinal,
seria essa idéia menos real que a folha de papel?). Essa lesão, como qualquer ferida física
em nosso corpo, não deixa de doer enquanto não suficientemente tratada e reabilitada.
Por conseguinte, enquanto aberta, exposta e não tratada, permanece pulsando numa dor
característica da amargura dos ressentidos. A própria palavra re-sentido já indica esse
latejar constante de dor (re - sentire), num sentimento que não se dá apenas uma vez,
6
Sobre a interseção dos conceitos de narcisismo, libido e pulsão de morte, essenciais à plena compreensão
do fenômeno vingativo, vide obra de Green (1988).
7
V. Khel (2005).
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pois se repete em re-sentimentos da mesma dor. Essa repetição da volta ao sentimento
de dor se dará, como dito, até que a ferida tenha sido tratada e efetivamente curada.
Para tanto, existem diversos tipos de tratamento, sendo que, um deles, com certeza,
é a passagem ao ato vingativo. Assim, explicam-se os impulsos vingativos que
possuem, na verdade, uma característica de serem uma resposta natural do aparelho
psíquico com vistas à cura, como uma ferida que tende a se curar por si mesma. A
vingança, sob essa ótica, possui uma função terapêutica evidente, e verdadeiramente
pode ser assim manejada, como vimos no caso Dora e em diversos casos do
cotidiano ou mesmo no exemplo de obras literárias, musicais ou cinematográficas.
Insta salientar, outrossim, o papel do tempo. Assim como não se espera que as feridas
somáticas se curem instantaneamente, também as da mente precisam de um período
de cura apropriado. Como resultado direto disso, é fácil se notar que os impulsos
vingativos serão mais fortes quanto mais próximos do trauma. Além disso, o aspecto
convalescente em que se quedam os doentes, que se desinteressam de tudo aquilo que
não seja a sua doença, é verificado nos ressentidos, que passam a viver em função da dor.
Mais uma vez na analogia da ferida em carne viva, cabe frisar que, da mesma forma que
algumas lesões não podem ser plenamente reparadas, também os traumas psíquicos, caso
muito intensos, acabam por deixar verdadeiras cicatrizes e mutilações egóicas. Essas
mutilações, na hipótese de serem trabalhadas com sucesso após muito tempo, acabarão
por amargurarem em nível mais reduzido – e somente de tempos em tempos –, embora
ainda persista, sempre, a clara sensação de que se perdeu um pedaço relevante do eu.
Aqui já se percebe que a ferida do ego narcísico oriunda de um trauma psíquico, conforme
já dito alhures, pode ser trabalhada pelo sujeito de diversas maneiras, como pela
vingança, pelo desenvolvimento de uma doença sintomática somatizada, pelos sonhos
de fixação em traumas, pela palavra, entre outras formas. O que importa é que a repetição
do ressentido (re – sentire) no impulso da cura visa à recomposição do ego através da
atribuição de um sentido adequado (ou, ao menos, razoável) ao evento traumático.
Essa atribuição de significado pode se dar, conforme já dito, pelas vias elencadas, a
depender de diversos fatores próprios de cada sujeito e de cada sociedade (por exemplo,
a par da vingança, a manifestação de sintomas, os sonhos, a palavra, etc. – pode o
sujeito buscar o caminho da recomposição egóica por formas sociais como a religião,
a psicanálise terapêutica, a expressão artística, entre outros). A grande pergunta que
se propôs no presente artigo e que aqui se conclui é de se estipular se o Direito Penal
possui um papel para auxiliar o sujeito na recomposição de sua integridade psíquica.
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Obviamente, não se espera que o direito penal tenha um papel terapêutico nos
moldes de uma análise, da religião ou de expressão artística, mas é de se perquirir
qual a verdadeira obrigação de um ramo do Direito que trata dos fatos que atingem
mais gravemente aos bens jurídicos mais importantes em determinada sociedade.
Levando-se em consideração as lições de Freud, deve o Direito punitivo se tornar
ciente de mais uma função a ele afeta: a de auxiliar na recomposição das estruturas
egóicas abaladas pelo delito por uma atribuição de sentido por meio de uma resposta
estatal razoável e coerente ao fato praticado e às suas conseqüências, de maneira a
evitar outros caminhos não adequados socialmente de ab-reação, como a vingança.
Em primeiro plano, bom que se diga que, com isso, não se pretende o
reconhecimento desta como a função única do direito penal. Continuam intactas,
embora possam ser reanalisadas à luz da psicanálise, as funções funcionalistas de
prevenção geral e especial, positiva e negativa. A função retributiva-absoluta da
pena, por sua vez, pode ser revista por essa necessidade do sistema em auxiliar
na atribuição de um significado coerente e responsável ao fato criminoso, tanto
para o agente8 (que deve ter a possibilidade de se auto-implicar no ocorrido),
quanto para a vítima (e seus respectivos círculos concêntricos de afetação).
Como já dito na introdução do presente artigo, apesar da função político-criminal
proposta aqui se destinar a todos envolvidos no delito, não se nega que sua
origem e aplicação terão como baluarte a vítima. Tal visão privilegiada visa,
a um só tempo, atuar em duas distorções: a de não haver qualquer abordagem
no âmbito vitimológico no presente estado de coisas do Direito Penal e o fato da
vítima ser a principal abalada, do ponto de vista do aparelho psíquico, pelo delito.
Por fim, cabe o convite a outros autores aprimorarem e expandirem o que foi aqui
proposto, na medida em que diversas implicações poderiam ser retiradas desse
compromisso a ser assumido pelo Direito Penal. Por fugir aos breves objetivos
do presente artigo, apenas enumeramos alguns possíveis campos de estudo que
necessitam ser revisitados sob a ótica psicanalítica, tais como: o princípio da
insignificância; o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade; o princípio
da adequação das penas; o princípio da individualização das penas; entre outros.
8
Ressalte-se que já no início do século XX, von Liszt (2005, p. 26-27) asseverava, embora não no sentido
psicanalítico, da importância da pena para o agente: “Basta colocarmos em evidência este conceito de pena
objetiva – quer dizer, o fato de a desenfreada força punitiva que, autolimitando-se, se transforma em pena
juridicamente regulada – aparece claro o valor que a ‘objetivação’ se reveste propriamente, e especialmente, para o autor do crime. Ser punido é um importante direito do cidadão (Flichte); na pena, o malfeitor
vem honrado como ser racional (Hegel). Estas e similares proposições, só à primeira vista paradoxais, são
expressões do núcleo mais profundo, da mais genuína essência, não da pena genericamente considerada,
mas da pena objetivada”.
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2. JURISPRUDÊNCIA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1o Acórdão.
EMENTA: DIREITO PENAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. CONCURSO
DE AGENTES. UTILIZAÇÃO DE ARMA DE FOGO. AFASTAMENTO, PELO
TRIBUNAL A QUO, DA CAUSA DE AUMENTO PELA UTILIZAÇÃO DA ARMA
DE FOGO POR AUSÊNCIA DE APREENSÃO E PERÍCIA, BEM COMO DA
AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA. PENA-BASE: 4 ANOS E DOIS MESES DE
RECLUSÃO E MULTA. PENA CONCRETIZADA: 5 ANOS, 6 MESES E 20 DIAS DE
RECLUSÃO E MULTA PARA AMBOS OS RECORRIDOS. DESNECESSIDADE
DA PERÍCIA PARA A APLICAÇÃO DA CAUSA ESPECIAL DE AUMENTO DE
PENA. ARMAS DISPARADAS DURANTE O ASSALTO. POTENCIALIDADE
LESIVA DEMONSTRADA. IMPRESCINDIBILIDADE DA CONSIDERAÇÃO DA
AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA NO MOMENTO DA INDIVIDUALIZAÇÃO
DA PENA. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1.
A apreensão e a perícia da arma de fogo utilizada no roubo são desnecessárias para
configurar a causa especial de aumento de pena, mormente quando as demais provas
são firmes sobre sua efetiva utilização na prática da conduta criminosa. In casu, foram
disparados tiros para o alto, com o objetivo de intimidar as vítimas, durante o assalto,
fato que, por si só, demonstra a real potencialidade lesiva das armas. Precedentes desta
Corte. 2. Comprovada a reincidência, a circunstância legal deve ser obrigatoriamente
considerada como agravante no momento da individualização da pena. Precedentes
do STJ. 3. Parecer do MPF pelo conhecimento e provimento do recurso. 4. Recurso
conhecido e provido, para restabelecer a sentença condenatória, em todos os seus
termos. (STJ, 5a Turma, RESP 965998/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j.
25/09/2007, DJ 22/10/2007, p. 368).
2o Acórdão.
EMENTA: PETIÇÃO. ESTELIONATO. PLEITO DE ABRANDAMENTO
DO REGIME PRISIONAL IMPOSTO NO ÉDITO CONDENATÓRIO.
SUPERVENIÊNCIA DO JULGAMENTO DO RECURSO DE APELAÇÃO
ORIGINARIAMENTE INTERPOSTO. PENA REDUZIDA E EXPEDIÇÃO DE
ALVARÁ DE SOLTURA DETERMINADA EM RAZÃO DO CUMPRIMENTO
INTEGRAL DA PENA. RÉU BENEFICIADO COM LIVRAMENTO
CONDICIONAL. PEDIDO PREJUDICADO. 1. Hipótese na qual o peticionário,
condenado pela prática de estelionato, requer o estabelecimento de regime prisional
mais brando do que o imposto no édito condenatório. 2. Evidenciada a superveniência
do julgamento do apelo defensivo, tendo sido reduzida a pena, e, conseqüentemente,
determinada a expedição de alvará de soltura em virtude do cumprimento integral da
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pena, bem como a concessão do benefício do livramento condicional na execução penal
anteriormente instaurada em seu desfavor, restam superados os argumentos expendidos
na petição, pois o direito ambulatorial do peticionário restou restabelecido. 3. Pedido
prejudicado. (STJ, 5a Turma, PET 5066/SP, Rel. Min. Jane Silva – Desembargadora
convocada do TJ/MG, j. 25/09/2007, DJ 15/10/2007, p. 294).
3o Acórdão.
EMENTA: RECURSO EM HABEAS CORPUS. ROUBO. PROGRESSÃO PARA
O REGIME ABERTO. FALTA GRAVE. NECESSIDADE DE EXAME PELO
JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL. DUPLA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA.
EVASÃO OCORRIDA APÓS O CUMPRIMENTO DE UM SEXTO DA PENA.
DIREITO ADQUIRIDO À PROGRESSÃO. INEXISTÊNCIA. BENEFÍCIO QUE
TAMBÉM PRESSUPÕE O PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS SUBJETIVOS
PREVISTOS EM LEI. NECESSIDADE DE EXAME PELO MAGISTRADO.
NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. I. Um dos efeitos da prática de falta grave
pelo apenado é a regressão para regime mais gravoso, o que obsta a concessão da
almejada progressão. II. A estreita via do habeas corpus, por ser desprovida de dilação
probatória, não comporta o profundo revolvimento do conteúdo fático-probatório
colhido no processo de execução penal do recorrente. III. Por essa razão, inviável o
reconhecimento de que sua fuga teria sido motivada em ameaças sofridas e, portanto,
incapaz de constituir falta grave, situação que ainda configuraria dupla supressão de
instância. IV. O cumprimento de um sexto da pena pelo condenado não lhe gera direito
adquirido à progressão, que também depende do exame, pelo Juiz, do cumprimento
dos requisitos subjetivos previstos na Lei de Execução Penal. V. Negado provimento
ao recurso. (STJ, 5a Turma, RHC 20851/SP, Rel. Min. Jane Silva – Desembargadora
convocada do TJ/MG, j. 25/09/2007, DJ 15/10/2007, p. 297).
4o Acórdão.
EMENTA: PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ECA. ATO
INFRACIONAL EQUIPARADO A HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO.
EMPREGO DE VIOLÊNCIA. MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE INTERNAÇÃO.
PRETENSÃO DE NOVA DILAÇÃO PROBATÓRIA. INADMISSIBILIDADE NA
VIA ELEITA. DECISÃO AMPARADA PELAS TESTEMUNHAS OUVIDAS EM
JUÍZO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. AUSÊNCIA DO EXAME
DE CORPO DE DELITO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA.RECURSO IMPROVIDO.
1. A medida de internação por prazo indeterminado é de aplicação excepcional, de
modo que somente pode ser imposta ou mantida nos casos taxativamente previstos no
art. 122 do ECA, e quando evidenciada sua real necessidade. 2. No caso em apreço,
a aplicação da medida encontra fundamentos sólidos, providos de suporte fático e
aliados aos requisitos legalmente previstos, o que demonstra idoneidade suficiente
para respaldar a medida constritiva. A pretensão de exame de matéria probatória é
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inviável na via eleita. 3. Não se pronunciando o Tribunal a quo sobre a ausência dos
laudos de necropsia das vítimas, fica esta Corte impedida de enfrentar tal questão,
sob pena de supressão de instância. 4. Recurso improvido, em conformidade com o
parecer ministerial. (STJ, 5a Turma, RHC 21668/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia
Filho, j. 25/09/2007, DJ 22/10/2007, p. 316).
5o Acórdão.
EMENTA: RECURSO ESPECIAL. PENAL. ESTUPRO. CRIME HEDIONDO.
PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. MAJORANTE PREVISTA NO ART. 9.º DA LEI
N.º 8.072/90. INAPLICABILIDADE. BIS IN IDEM. 1. O crime de estupro, ainda que
de sua prática não resulte violência real, está inserido no rol dos crimes considerados
hediondos, consoante estabelece o art. 1º, inciso V, da Lei n.º 8.072/90. 2. Embora
possa haver violência real contra vítima que esteja entre as indicadas no art. 224 de
Código Penal, a ensejar a aplicação do aumento previsto no art. 4º da Lei nº 8.072/90,
na hipótese não houve a efetiva violência real já que a própria sentença condenatória
considerou ter sido a mesma presumida. 3. Mostra-se incabível o aumento de pena
previsto pelo art. 9.º da Lei n.º 8.072/90 nos crimes de estupro ou atentado violento
ao pudor, quando cometidos com violência presumida, se não sobrevier o resultado
lesão corporal de natureza grave ou morte, pois sua ocorrência implicaria violação ao
princípio do non bis in idem. 4. Recurso parcialmente conhecido e, nessa extensão,
provido para caracterizar a hediondez do crime de estupro. (STJ, 5a Turma, RESP
954897/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 29/08/2007, DJ 15/10/2007, p. 353).
6o Acórdão.
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE
ESTUPRO. VÍTIMA MENOR
DE 14 ANOS. PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE VIOLÊNCIA. AGRAVO
IMPROVIDO. 1. A presunção de violência prevista no art. 224, a, do Código Penal,
tem natureza absoluta, entendendo-se, por conseguinte, que o consentimento da vítima
é irrelevante para a caracterização do delito, tendo em conta a incapacidade volitiva
da pessoa menor de catorze anos de consentir na prática do ato sexual. Precedentes
do STJ e do STF.
2. Agravo regimental improvido. (STJ, 5a Turma, AGRG no RESP 857550/RS, Rel.
Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 14/08/2007, DJ 24/09/2007, p. 362).
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3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA
3.1 INVIOLABILIDADE NOTURNA DE DOMICÍLIO E INEXIGIBILIDADE
DE CONDUTA DIVERSA
KARINA SILVA DE ARAÚJO
Advogada – Pós-graduada em Direito Constitucional
1. Acórdão
Por entender caracterizada a ofensa ao art. 5°, XI, da CF (“a casa é asilo inviolável
do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo
em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia,
por determinação judicial;”), a Turma deu provimento a recurso extraordinário
para, reformando acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,
restabelecer a sentença que absolvera o recorrente por inexigibilidade de conduta
diversa. No caso, a Corte a quo reputara configurado o crime de resistência, uma vez
que o recorrente, desprezando a existência de mandado judicial expedido nos moldes
do § 2º do art. 172 do CPC — que permite, em situações excepcionais e mediante
autorização expressa do juiz, a citação, em domingos e feriados, ou nos dias úteis,
em horário diverso daquele estabelecido no caput —, desacatara, mediante violência,
oficial de justiça que pretendia, num sábado à noite, ingressar no domicílio daquele
para intimar o seu cônjuge. Aduziu-se que o acórdão impugnado colocara em plano
secundário a defesa do próprio domicílio e, portanto, o esforço a evidenciar, conforme
registrado na sentença, a inexigibilidade de conduta diversa. Ademais, asseverou-se
que a Constituição preconiza a inviolabilidade noturna do domicílio, pouco importando
a existência de ordem judicial, pois em relação a esta última mesmo que ocorre a
limitação constitucional. (RESP 460880/RS, Relator Ministro. Marco Aurélio, Data
do Julgamento 25.9.2007. (RE-460880)
2. Razões
Os presentes comentários visam analisar a interpretação e aplicação dos elementos
do delito, examinados no caso concreto, em julgado do STF, em que se investiga a
suposta configuração do crime de resistência, pelo fato do Acusado não permitir a
entrada do oficial de justiça em seu domicílio, na noite de sábado, para intimar seu
cônjuge. Na hipótese, a turma absolveu o Acusado por exclusão da culpabilidade,
ante a inexigibilidade de conduta diversa. Todavia, o caso era de absolvição pela não
configuração do próprio tipo penal, conforme abordaremos a seguir.
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3. Inviolabilidade noturna do domicílio e o cumprimento de ordens judiciais
A Constituição da República declara a inviolabilidade de domicílio em seu art. 5º,
inciso XI, no Título dos direitos e garantias fundamentais1. Nos termos do dispositivo
constitucional retro, resta claro que, para cumprimento de ordem judicial, o oficial
de justiça somente poderia adentrar domicílio alheio, durante o dia, ou com o
consentimento do morador. O que não ocorreu no caso em tela, já que o próprio
morador foi até mesmo denunciado pelo delito de resistência, quando se opôs ao
cumprimento da diligência judicial, no sábado à noite2.
Cumpre destacar que, o Código de Processo Civil, quando dispõe sobre o tempo e lugar
para a prática dos atos processuais, art. 172, prevê uma exceção no §2º, para situações
excepcionais, desde que sejam observados os requisitos constitucionais do art. 5º, inciso
XI3. Tal dispositivo foi desprezado pela Corte recorrida e considerado, sabiamente,
pela Corte Suprema, tendo em vista o necessário cotejo da lei infraconstitucional com
a Constituição da República. Interpretação essencial na análise do caso concreto, para
garantia da inviolabilidade de domicílio ao Acusado.
4. Da atipicidade do delito de resistência (art. 329 do Código Penal)
O crime de resistência4 está inserido no título dos crimes contra a administração
pública, no capítulo dos crimes praticados por particular contra a administração
em geral. O bem jurídico tutelado por esse tipo penal é o regular andamento da
1
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes:
XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador,
salvo, em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou durante o dia, por determinação
judicial;
2
Em que pese não restar dúvidas no caso em tela sobre o cumprimento da ordem em horário noturno, cabe
destacar que a doutrina tem entendido que o melhor critério seria considerar horário noturno de 6 às 18
horas (Alexandre de Morais), nesse diapasão, também é a posição Celso Mello, que trabalha com critério
físico-astronômico, dividido entre a aurora e o crepúsculo. (Lenza. 11ª ed. p. 709)
3
Art. 172 – Os atos processuais realizar-se-ão em dias úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas.
§ 2º A citação e a penhora poderão, em casos excepcionais, e mediante autorização expressa do juiz, realizar-se em domingos e feriados, ou nos dias úteis, fora do horário estabelecido neste artigo, observado o
disposto no art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal.
4
Art. 329 - Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para
executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio:
Pena - detenção, de dois meses a dois anos.
§ 1º - Se o ato, em razão da resistência, não se executa:
Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 2º - As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.
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administração pública e a autoridade de seus atos. Ocorre que, o tipo legal do delito
de resistência configura-se quando o agente se opõe a execução de ato legal, e, no caso
em epígrafe, o ato resistido era ilegal, contrário aos ditames constitucionais, conforme
demonstrado no tópico acima. É o que esclarece Luiz Regis Prado:
Importa assinalar que a ilegalidade pode ser substancial ou
formal. A primeira sedimenta-se na ausência de fundamento ou
razão de ser para a concretização do ato, enquanto a segunda
está relacionada à forma ou à execução do ato. Assim, v.g., não
basta que a autoridade seja competente para a realização do ato
e que este encontre fundamento no ordenamento que circunda a
Administração pública, sendo imprescindível que se utilize dos
meios legais para a sua execução. Frise-se, ainda, que, mesmo
diante de um ato injusto, mas desde que esteja autorizado por
lei, não manifestamente inconstitucional, a resistência não é
admitida. (g.n) (Prado. 2ª ed. p. 493).
Assim, a absolvição do Acusado por exclusão da culpabilidade ante a inexigibilidade
de conduta diversa poderia ter sido configurada, se o caso não fosse hipótese de
exclusão do próprio tipo penal5.
Ora, sendo o ato ilegal, ocorre a atipicidade da conduta, obstando até mesmo a análise
dos demais elementos do delito, quais sejam: ilicitude ou antijurididade e culpabilidade.
Desse modo, a controvérsia deveria ter sido exaurida no âmbito estrutural do próprio
tipo e não da culpabilidade, afastando a inexigibilidade de conduta diversa.
5. Conclusão
A Constituição da República declara a inviolabilidade noturna do domicílio como
garantia fundamental, portanto, a oposição do Acusando ao cumprimento da ordem é
legitima, pois se trata de ordem manifestamente ilegal.
Ante o exposto, em que pese louvável a decisão da Suprema Corte absolvendo o
Acusado pelo delito de resistência, tal provimento deveria ter sido prolatado
com fundamento na atipicidade do fato e não na exclusão da culpabilidade ante a
inexigibilidade de conduta diversa, já que a caracterização do fato atípico inviabiliza
a própria análise e configuração dos demais elementos do crime.
5
Em sentido diverso, Guilherme de Souza Nucci enquadra tal situação em uma causa de exclusão da ilicitude, veja-se seu comentário sobre a configuração do delito de resistência: “é preciso que o funcionário esteja
fazendo cumprir um ato lícito. Caso pretenda concretizar algo ilegítimo, é natural que o particular possa
resistir, pois está no exercício regular de direito (ou em legitima de defesa, se houver agressão), já que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.” (Nucci. 5º ed. p. 1011)
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6. Referências Bibliográficas
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 11. ed. ver., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Método, mar./2007.
NUCCI, Guilherme de Souza, Código penal comentado. 5 ed. ver., atual. e ampli. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
PRADO, Regis Luiz. Curso de direito penal brasileiro, volume 4: parte especial : arts.
289 a 359-H. 2. ed. ver., atual. e ampl. 2002.
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SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL PENAL
1. ARTIGOS
1.1 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A EXPLORAÇÃO
MIDIÁTICA
MICHELLE KALIL
FERREIRA
Acadêmica do curso de
Direito
Estagiária do Ministério Público do Estado de
Minas Gerais
SUMÁRIO: 1. Direito Penal e política criminal. 2. O sistema acusatório brasileiro
e suas garantias: a mitigação pela mídia. 3. Os juízos paralelos da imprensa. 4. A
construção do transgressor pela mídia. 5. A exploração midiática apontada em caso
real. 6. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
1. Direito Penal e política criminal
Referir-se ao Direito Penal de alguma forma é falar de violência. No entanto,
modernamente, sustenta-se que a criminalidade é um fenômeno social normal.
Durkhein afirma que o delito não ocorre somente na maioria das sociedades de uma ou
outra espécie, mas sim em todas as sociedades constituídas pelo ser humano. Assim,
para ele, o delito não só é um fenômeno social normal, como também cumpre outra
função importante, qual seja, a de manter aberto o canal de transformações de que a
sociedade precisa. Sob um outro prisma, pode-se concordar, pelo menos em parte,
com Durkhein: as relações humanas são contaminadas pela violência, necessitando de
normas que as regulem. E o fato social que contrariar o ordenamento jurídico constitui
ilícito jurídico, cuja modalidade mais grave é o ilícito penal, que lesa os bens mais
importantes dos membros da sociedade.
Quando as infrações aos direitos e interesses do indivíduo assumem determinadas
proporções e os demais meios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes
para harmonizar o convívio social, surge o Direito Penal com sua natureza peculiar
de meio de controle social formalizado, procurando resolver conflitos e suturando
eventuais rupturas produzidas pela desinteligência dos homens. O Direito Penal
apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que têm por objeto a determinação
de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de
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segurança. Esse conjunto de normas e princípios, devidamente sistematizados, tem
por finalidade tornar possível a convivência humana, ganhando aplicação prática nos
casos ocorrentes, observando rigorosos princípios de justiça.
A expressão direito penal traduz duas entidades distintas, como esclarece Zaffaroni
(2004). A primeira é o conjunto de leis penais que traduzem normas que visam tutelar
bens jurídicos e que determinam o alcance de sua tutela. A violação dessas normas se
chama delito, e aspira como conseqüência uma coerção jurídica particularmente grave.
Essa força coercitiva do Direito Penal visa evitar o cometimento de novos delitos
por parte do autor. No segundo sentido, direito penal é o sistema de interpretação e
compreensão dessa legislação, ou seja, o saber do direito penal. Com esse sentido,
recebe também a denominação de Ciência Penal, desempenhando igualmente uma
função criadora, libertando-se das amarras do texto legal ou da dita vontade estática
do legislador, assumindo seu papel valorativo e essencialmente crítico, no contexto da
modernidade jurídica.
Acontece que, diante do referido conjunto de normas que formam o Direito Penal,
pode-se afirmar que o indivíduo autuado, até que seja submetido ao cumprimento de
uma sanção criminal, percorre as seguintes etapas: policial, judiciária e penitenciária.
Atribui-se a denominação de Sistema Penal ao conjunto dessas instituições que têm
por finalidade a efetivação do Direito Penal. Torna-se, portanto, a forma de atuação
do Direito Penal responsável por determinar qual a estratégia de política criminal será
adotada. São três os ideais de políticas criminais compreendidos pelo Abolicionismo,
Direito Penal Mínimo e Direito Penal Máximo. Ao tratar de maneira pormenorizada
dessas políticas sobressalta-se a necessidade de buscar um Direito Penal do Equilíbrio
(Direito Penal Mínimo), onde não predomine o pensamento de erradicar o Direito
Penal (Abolicionismo), nem o uso intensificado do mesmo aplicado-o de forma
indiscriminada em situações passíveis de serem resolvidas por outros ramos do Direito
(Direito Penal Máximo). A intensificação da atuação penal tem como grande aliada
nos dias atuais à mídia, que através dos meios de comunicação de massa, divulga a
todo instante à criminalidade.
A mídia exerce poderosa influência em nosso meio social, encarregando-se de
convencer a sociedade da necessidade da cominação de penas mais gravosas. Ao
mostrar casos atrozes, terríveis sequer de serem imaginados, e, como resposta, clamar
por um Direito Penal mais severo, mais radical em suas punições, a mídia caracterizase como a principal difusora do Direito Penal Máximo no Brasil. Considera-se mídia
todo suporte de difusão da informação que constitui um meio intermediário de
expressão capaz de transmitir mensagens. Abrangem esses meios o rádio, o cinema,
a televisão, a escrita impressa em livros, revistas, boletins, jornais, o computador, os
satélites de comunicações e, de um modo geral, os meios eletrônicos e telemáticos de
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comunicação em que se incluem também as diversas telefonias. Essa pesquisa tratará
da influência da mídia por meio dos veículos de comunicação de massa, considerados
aqueles capazes de serem usufruídos pela maioria da população, dessa forma são eles:
televisão, rádio, jornal.
Como primeira análise ao que tange às políticas criminais, tomemos o movimento
abolicionista, que, segundo Greco (2005), teve sua origem atribuída a Fillipo
Gramatica, ao final da Segunda Guerra Mundial. Para Gramatica, a defesa social
consistia na ação do Estado destinada a garantir a ordem social, mediante meios que
importassem a própria abolição do Direito Penal e dos sistemas penitenciários vigentes.
O movimento partiu da deslegitimação do poder punitivo e de sua incapacidade para
resolver conflitos, postula o desaparecimento do sistema penal e sua substituição por
modelos de solução de conflitos alternativos preferentemente informais.
Os mentores do movimento abolicionista partem de diversas bases ideológicas,
podendo ser assinalada de modo prevalentemente a fenomenológica, de Louk Hulsman,
a marxista, da primeira fase de Thomas Mathiesen, a fenomenológico-histórica, de
Nils Christie e, embora não tenha formalmente integrado o movimento, não parece
temerário incluir nele a estruturalista, de Michel Foucault. Comprometidos com o
princípio da dignidade da pessoa humana, esses autores chegaram às suas conclusões
diante da irracionalidade e injustiça do nosso sistema penal, que é capaz de punir
delitos de bagatela, enquanto deixa impunes crimes de colarinho branco. E ainda, o
que faz permitir a transformação de um fato que, até então, era plenamente tolerado
em uma conduta proibida pelo Direito. Louk Hulsman (apud GRECO, 2005, p. 12),
um dos precursores do movimento abolicionista, assevera:
Não se costuma perder tempo com manifestações de simpatia
pela sorte do homem que vai para a prisão, porque se acredita
que ele fez por merecer. ‘Este homem cometeu um crime’pensamos; ou, em termos mais jurídicos, ‘foi julgado culpável
por um fato punível com pena de prisão e, portanto, se fez
justiça ao encarcerá-lo’. Bem, mas o que é um crime? O que
é um ‘fato punível?’ Como diferenciar um fato punível de um
fato não-punível?
Por que ser homossexual, se drogar ou ser bígamo são fatos
puníveis em alguns países e não em outros? Por que condutas
que antigamente eram puníveis, como a blasfêmia, a bruxaria,
a tentativa de suicídio, etc, hoje não são mais? As ciências
criminais puseram em evidência a relatividade do conceito de
infração, que varia no tempo e no espaço, de tal modo que
o que é ‘delituoso’ em um contexto é aceitável em outro.
Conforme você tenha nascido num lugar ao invés de outro, ou
numa determinada época e não em outra, você é passível – ou
não – de ser encarado pelo que fez, ou pelo que é.
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A crítica abolicionista é construída desde o momento em que surge a lei penal, proibindo
ou impondo determinado comportamento sob a ameaça de sanção, questionando
os critérios, bem como a necessidade do tipo penal incriminador, passando pela
escolha das pessoas que, efetivamente, sofrerão a aplicação da lei penal. Analisando
os critérios da lei penal é muito fácil perceber quem deveras é ameaçado por suas
sanções, sofrendo os rigores dessa legislação:
[...] a ‘clientela’ do Direito penal é constituída pelos pobres,
miseráveis, desempregados, estigmatizados por questões
raciais, relegados em segundo plano pelo Estado, que deles
somente se lembra no momento crucial de exercitar a sua força
como forma de contenção das massas, em benefício de uma
outra classe, considerada superior, que necessita desse ‘muro
divisório’ para que tenha paz e tranqüilidade, a fim de que
possa ‘produzir e fazer prosperar a nação’ (GRECO, 2005,
p. 13).
Mesmo tendo conhecimento de seu público-alvo, o Direito Penal esbarra ainda na
conhecida cifra negra, parcela de infrações penais que não chegam ao conhecimento
dos órgãos formais de repressão. E ainda assim quando faz valer o seu ius puniendi,
com a aplicação da pena previamente cominada pela lei penal, não cumpre com a
função que lhe é conferida, reprovar e prevenir o delito. Na visão dos abolicionistas,
as condutas selecionadas pelo Estado de acordo com um critério político, para
fazerem parte do âmbito de aplicação do Direito Penal, poderiam merecer a atenção
tão-somente dos demais ramos do ordenamento jurídico, principalmente do Direito
Civil e do Direito Administrativo, preservando-se, dessa forma, a dignidade da pessoa
humana, que não se encontraria na estigmatizante condição de condenada pela Justiça
Criminal.
O ideal abolicionista considera a prisão um instrumento irracional incapaz de ser
utilizado sem desrespeitar a dignidade do ser humano. Porém, torna-se utópico outro
ramo do direito atuando em situações mais gravosas, como latrocínios, estupros ou
homicídios, onde só o Direito Penal é capaz de punir com medidas proporcionais ao
crime praticado. Destarte, o ideal abolicionista é de fato louvável, mas insustentável na
sociedade atual que sofre danos irreparáveis a todo instante. Infelizmente, determinadas
práticas criminais só são acalentadas pelo sistema penal, que apesar de cruel ainda é
o remédio mais eficaz para nossa sociedade. Marchi Júnior (apud GRECO, 2005, p.
15), dissertando sobre a impossibilidade atual de se afastar completamente o sistema
penal, erigiu a alternativa do Direito Penal Mínimo como a que melhor se adapta às
necessidades sociais:
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O abolicionismo surgiu a partir da percepção de que o sistema
penal, que havia significado um enorme avanço da humanidade
contra a ignomínia das torturas e contra a pena de morte, cujos
rituais macabros encontram-se retratados na insuperável obra
de Michel Foucault, perdeu sua legitimidade como instrumento
de controle social.
Todavia, o movimento abolicionista, ao denunciar essa perda
de legitimidade, não conseguiu propor um método seguro para
possibilitar a abolição imediata do sistema penal. Diante de
tal impasse, o princípio da intervenção mínima conquistou
rapidamente ampla adesão da maioria da doutrina, inclusive
de alguns abolicionistas que passaram a enxergar nele um
estágio em direção à abolição da pena.
De fato, a opção pela construção de sociedades melhores, mais
justas e mais racionais, impõe a reafirmação da necessidade
imediata de redução do sistema penal enquanto não se alcança
a abolição, de forma a manter as garantias conquistadas
em favor do cidadão e, ao mesmo tempo, abrir espaço para
progressiva aplicação de mecanismos não penais de controle,
além de privilegiar medidas preventivas de autuação sobre
as causas e as origens estruturais de conflitos e situações
socialmente negativas.
Ressaltando o pensamento de Marchi Júnior, este estudo terá continuidade tratando do
Princípio da intervenção mínima, adotado pelo Movimento do Direito Penal Mínimo,
que, apresenta-se com um ideal equilibrado, diferentemente das demais concepções
político criminais. Seu discurso é mais coerente com a realidade social, tratando como
finalidade do Direito Penal a proteção tão somente dos bens necessários e vitais ao
convívio em sociedade. Aqueles bens que, em razão de sua importância, não poderão
ser somente protegidos pelos demais ramos do ordenamento jurídico. Seu raciocínio é
baseado em vários princípios, que orientam o legislador na criação e na revogação dos
tipos penais, servindo de norte, ainda, aos aplicadores da lei penal, a fim de que seja
produzida uma correta interpretação. São princípios indispensáveis à essa concepção
minimalista o da intervenção mínima, lesividade, adequação social, insignificância,
individualização da pena, proporcionalidade, responsabilidade pessoal, limitação das
penas, culpabilidade e da legalidade, sendo estes explicados a seguir.
Vital ao Direito Penal Mínimo, o princípio da intervenção mínima tem por sua primeira
missão orientar o legislador quando da criação ou revogação dos tipos penais. Ele gira
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em torno da proteção dos bens mais importantes existentes na sociedade, bem como
da natureza subsidiária do Direito Penal. O primeiro passo para a criação do tipo
penal incriminador é, efetivamente, a valoração do bem. Se for concebido como bem
de relevo, passaremos ao segundo raciocínio, ainda no mesmo princípio, vale dizer,
o da subsidiariedade. Embora importante o bem, se os outros ramos do ordenamento
jurídico forem fortes e capazes o suficiente para levar a efeito a sua proteção, não
haverá necessidade da intervenção drástica do Direito Penal. Sua importância deverá
também ser aferida para fins de revogação dos tipos. Se um bem que era importante
no passado, mas, atualmente, já não goza desse prestígio, não poderá mais merecer a
tutela do Direito Penal, servindo o princípio da intervenção mínima de fundamento
para a sua revogação.
Em seguida ao princípio da intervenção mínima, tomado apenas como um primeiro
passo, a análise deve continuar para fins de criação típica. Na seqüência deve se
averiguar se aquele bem, considerado como importante e incapaz de ser protegido
pelos outros ramos do ordenamento jurídico, é atacado por uma conduta não tolerada
socialmente. Este raciocínio é primordial porque, mesmo sendo o bem importante, se
a conduta que o atinge for socialmente tolerada, não poderá haver a criminalização,
pois, se assim o fizéssemos, estaríamos, na verdade, convocando a sociedade a praticar
infrações penais, pois que ela não deixaria de praticar os comportamentos a que estava
acostumada.
Serve o princípio da adequação social na orientação do legislador tanto na criação
quanto na revogação dos tipos. Condutas que já foram consideradas socialmente
inadequadas, se na atualidade forem aceitas pela sociedade, deverá o legislador afastar
a criminalização. Tal como se exige, hoje, com a prática do jogo do bicho, conduta
perfeitamente assimilada pela sociedade, que, inclusive, pratica jogos semelhantes,
e que não mereceram a repressão oficial do Estado. Este princípio deverá, também,
orientar a interpretação dos tipos penais, a fim de adaptá-los à realidade, tal como se
exige com relação à interpretação da expressão ato obsceno, constante do art. 233 do
Código Penal. O que era obsceno em 1950 pode não ser hoje. Enfim, é um princípio
de verificação obrigatória tanto pelo legislador como pelo aplicador da lei.
O terceiro passo para a criação dos tipos penais seria o princípio da lesividade, por
intermédio do qual proíbe-se a incriminação de pensamentos, de modos ou formas
de ser e de se comportar, bem como de ações que não atinjam bens de terceiros.
Seria vetar as punições pela cogitação, pelo fato de ser homossexual, suicida ou
simplesmente por não tomar banho. Apto estaria o legislador a criar a figura típica
tão logo ultrapassado os princípios anteriores. Escolhido o bem, após concluir que o
comportamento que o ataca é inadequado e lesivo socialmente, abre-se a possibilidade
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de na conduta haver a criminalização. Criada a infração penal, passará a fazer parte do
acervo que pertence ao Direito Penal, mostrando assim sua natureza fragmentária, em
sentido que o Direito Penal não interessa a proteção de todos os bens, mais daqueles
de maior relevância para o meio social.
Devemos trabalhar com princípios instrumentais com capacidade de nos levar a uma
interpretação garantista e correta após criada a infração penal. Dentre esses princípios
podemos destacar o da insignificância. O princípio da insignificância, cuja aplicação
conduz à atipicidade do fato praticado, merecerá análise em sede de tipicidade
globante, especificamente na vertente correspondente à tipicidade material, que é o
critério pelo qual o Direito Penal afere a importância do bem no caso concreto. Se
concluirmos pelos princípios anteriores em análise que o patrimônio, por exemplo, é
um bem de relevância a ponto de ser protegido pelo Direito Penal, que socialmente a
conduta que o ataca é lesiva e inadequada, obteremos razões para criarmos os crimes
patrimoniais. Greco (2005, p. 33) coloca-nos a par da seguinte indagação e bem nos
ensina que:
Se é certo que o patrimônio abstratamente considerado, é
um bem importante a ponto de receber a proteção do Direito
Penal, o bem em análise, isto é, que fora objeto de subtração
pelo agente, goza desse status? Foi pensando nesse bem que
o legislador criou a figura do delito contra o patrimônio? Se
a resposta for positiva, concluiremos que a conduta é típica
e passaremos à aferição das outras características da infração
penal (ilicitude e culpabilidade). Se a resposta for negativa, o
estudo da infração penal estará interrompido por ausência de
tipicidade material, conduzindo-nos em último caso à completa
atipicidade do fato.
Previsto no inciso XLVI do art. 5° de nossa Constituição Federal, o princípio
da individualização da pena obriga-nos a pensarmos da seguinte forma: o Direito
Penal pela finalização de exercer sua proteção, somente faz a opção pelos bens mais
importantes ao convívio da sociedade. Feita essa opção, presume-se, que o bem é
relevante. No entanto os bens selecionados gozam da mesma relevância, ou cada
um deles possui importância maior sobre os outros? Sem muito esforço podemos
perceber que cada bem escolhido possui uma importância distinta dos outros, daí
decorre a necessidade de se individualizar a pena, que é justamente o critério de que
se vale o Direito Penal a fim de atribuir a importância merecida a cada bem. A pena
nada mais é que o pagamento por cada infração penal cometida, correspondente à
gravidade do delito consumado e ligada à importância do bem. A individualização da
pena pode ocorrer em três fases diferentes: a) cominação: que é a que ocorre no plano
abstrato, de competência do legislador; b) aplicação: que ocorre no plano concreto,
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sendo atribuída ao julgador; e por fim c) execução: que ocorre durante a execução da
pena.
Intimamente ligado ao da individualização da pena, o princípio da proporcionalidade
teve sua origem no período iluminista. Segundo ele, a pena deverá ser proporcional
ao mal praticado pelo agente e o pensamento da proporcionalidade deverá ser levado
em conta tanto num plano abstrato como num plano concreto. É adotado por nossa
Constituição Federal ainda o princípio da responsabilidade pessoal, através do qual
podemos concluir que a pena não deverá ultrapassar a pessoa do condenado. Embora
isso não ocorra na realidade como já colocamos anteriormente em nosso estudo, uma
vez que a punição atinge, ainda que indiretamente, às pessoas próximas ao agente.
Nossa Carta Constitucional expressa também o princípio da limitação da pena em
seu art. 5°, inciso XLVII, tendo verificado que todas as escritas usadas para definir
este princípio atende ao amplo fluido do princípio da dignidade humana. Tendo a
natureza de princípio intimamente ligado ao próprio agente, deve-se obrigatoriamente
analisar o princípio da culpabilidade que prega que se torna impossível a intervenção
do Direito Penal quando a conduta do agente não for passível de censuras, sendo que
não poderia ter agido de outra forma na situação em que se encontrava.
O princípio da legalidade, considerado a coluna de todos os outros princípios, será
observado para fins de aferição tanto material quanto formal, sendo que o interprete
não poderá somente avaliar a legalidade formal, mas, principalmente sua legalidade
material. Deverá não somente evidenciar se o procedimento legislativo de criação
típica foi devidamente observado, como também pesquisar se o conteúdo da lei
penal não contraria os princípios expressos e implícitos contidos em nossa Lei
Maior, norteadores de todo o sistema. Diferentemente dos movimentos antagônicos
– abolicionista e lei e ordem – o Direito Penal mínimo se encontra em equilíbrio,
sendo na opinião de Greco “[...] a única via de acesso razoável para que o estado possa
fazer valer o seu ius puniend, sem agir como tirano, ofendendo a dignidade de seus
cidadãos”. Cabe transcrever as palavras de Paulo de Souza Queiroz (apud GRECO,
2005, p. 35):
Reduzir,pois, tanto quanto seja possível, o marco de intervenção
do sistema penal, é uma exigência de racionalidade. Mas
é também [...] um imperativo de justiça social. Sim, porque
um Estado que se define Democrático de Direito (CF, art. 1°),
que declara, como seus fundamentos, a ‘dignidade da pessoa
humana’, a ‘cidadania’, ‘os valores sociais da trabalho’, e
proclama, como seus objetivos fundamentais, ‘construir
uma sociedade livre, justa, solidária’,que promete erradicar a
pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais
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e regionais’, ‘promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação’(art. 3°), e assume, assim declaradamente,
missão superior em que lhe agigantam as responsabilidades, não
pode, nem deve, pretender lançar sobre seus jurisdicionados,
prematuramente, esse sistema institucional de violência
seletiva, que é o sistema penal, máxime quando é esse Estado,
sabidamente, por ação e/ou omissão, em grande parte coresponsável pelas gravíssimas disfunções sociais que sob seu
cetro vicejam e pelos dramáticos conflitos que daí derivam.
Isso posto, cabe ressaltar conforme as palavras de Queiroz a existência de um movimento
de Direito Penal Máximo, que idealiza punições mais severas e que abranjam um maior
número de atos ilícitos. O Direito Penal Máximo é a contraposição do Abolicionismo.
Desde o final do século passado, grande responsável pela propagação e divulgação
dessa corrente, vem sendo a mídia. Através de profissionais não habilitados (jornalistas,
repórteres, apresentadores de programas de entretenimento, etc.) que chamaram para
si a responsabilidade de criticar as leis penais, fazendo a sociedade acreditar que,
mediante o recrudescimento das penas, a criação de novos tipos penais incriminadores
e o afastamento de determinadas garantias processuais, a sociedade ficaria livre
daquela parcela de indivíduos não adaptados.
O sensacionalismo é a arma utilizada pela mídia para esse convencimento da sociedade,
transmitindo imagens chocantes, em rede nacional, que causam revolta e repulsa no
meio social. Homicídios cruéis, estupros de crianças, presos que, durante rebeliões,
torturam suas vítimas, corrupções, enfim, situações que deixam a sociedade acuada
mediante assustadora violência, fazendo com que ela acredite ser o Direito Penal a
solução de todos os seus problemas. Com isso, o Estado social saiu de cena para que
estrelasse um Estado Penal. Investimentos em ensino fundamental, médio e superior,
lazer, cultura, saúde, habilitação são relegados a segundo plano, priorizando-se o setor
repressivo. O Congresso fecha seus olhos para uma melhoria nas condições sociais da
população, o que deveras ajudaria na diminuição da criminalidade, preocupa-se em
anunciar a todo instante novas medidas de combate ao crime.
A violência deve ser combatida não de forma ainda mais violenta do que a dos crimes
praticados. Não é punindo com crueldade que se obtêm êxito. Pelo contrário, dessa
forma só se incentiva a criminalidade. A invasão de favelas não deveria ser feita por
policiais excessivamente armados e dispostos a exterminar vidas, mas sim por um
exército de sabedoria com disposição para educar e assassinar a ignorância desses
marginalizados que muitas vezes enveredam no caminho do crime por questão de
sobrevivência.
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O Movimento de Lei e Ordem e o Direito Penal do Inimigo são dois movimentos que
aderiram ao ideal do Direito Penal Máximo, logo, este estudo terá seqüência acerca dos
mesmos. O movimento denominado Lei e Ordem, integrante do ideal do Direito Penal
Máximo, tem por adeptos ao seu pensamento os que acreditam ser o Direito Penal a
solução de todos os males que afligem a sociedade. Não importando a dimensão do
crime para que optem pela intervenção do ramo penal do direito, julgando o uso desse
necessário não só em casos extremos. Quando se busca caracterizar o Movimento de
Lei e Ordem é inevitável citar o exemplo norte-americano, do movimento denominado
Tolerância Zero, uma de suas vertentes, criado no começo da década de 90, na cidade
de Nova York, e iniciado pelo então prefeito, Rudolph Giuliani, juntamente com o
chefe de polícia William Bratton. Com essa teoria pretendiam reorganizar o trabalho
da polícia local, objetivando refrear o medo das classes médias e superiores por meio
da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações
ferroviárias, ônibus, metrô, etc.):
Usam para isso três meio: aumento em 10 vezes dos
efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das
responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com
obrigação quantitativa de resultados, e um sistema de radar
informatizado (com arquivo central sinalético e cartográfico
consultável em microcomputadores a bordo dos carros de
patrulha) que permite a redistribuição contínua a intervenção
quase instantânea das forças da ordem, desembocando em
uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais
como embriaguez, a jogatina, a mendicância, os atentados aos
costumes, simples ameaças e outros comportamentos antisociais associados aos sem-teto (WACQUANT apud GRECO,
2005, p. 17).
A política desse movimento era tornar o Direito Penal o protetor de, basicamente,
todos os bens existentes na sociedade, não se devendo perquirir a respeito de sua
importância. Se um bem jurídico é atingido por um comportamento anti-social, tal
conduta poderá transformar-se em infração penal, bastando, para tanto, a vontade
do legislador. Por essa teoria educar a população virou função do direito penal, fazendo
com que comportamentos de pouca monta, irrelevantes, sofram as conseqüências
graves desse ramo do ordenamento jurídico. O que descaracteriza a real função do
direito penal que, utilizado levianamente, induz à criminalidade ao invés de detê-la.
Não se educa a sociedade por intermédio de leis e sanções. O raciocínio da Direito
Penal Máximo nos conduz, obrigatoriamente, à sua falta de credibilidade. Quanto
mais infrações penais, menores são as possibilidades de serem efetivamente punidas
as condutas infratoras, tornando-se ainda mais seletivo e maior a cifra negra. Afinal,
a certeza de um castigo brando, causa mais impacto do que o temor de uma punição
severa.
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O pensamento do movimento Lei e Ordem, de forma resumida, entende que deve ser
utilizado o Direito Penal como prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção do
Estado perante os cidadãos, cumprindo um papel de cunho eminentemente educador
e repressor, não permitindo que as condutas socialmente intoleráveis, por menor
que sejam, deixem de ser reprimidas. O falacioso conforto trazido à sociedade pelo
raciocínio maximalista dessa corrente não pode prosperar. Nem a própria sociedade
toleraria a punição de todos os seus comportamentos anti-sociais, os quais já está
acostumada a praticar cotidianamente. Afinal, severas sanções são bem vindas aos
outros, mas quando nos atingem, ou a amigos e familiares, julgamos as mesmas
absurdas.
Já o Direito Penal do Inimigo é tido como um dos membros mais agressivos do
Direito Penal Máximo. Destacaremos em nosso estudo o Direito Penal do Inimigo
desenvolvido pelo professor alemão Günter Jakobs, na segunda metade da década de
90. Ele procurou traçar uma distinção entre um Direito Penal do Cidadão, garantista,
com observância de todos os princípios fundamentais que lhe são pertinentes, e um
Direito Penal do Inimigo, despreocupado com seus princípios fundamentais, pois que
não estaríamos diante de cidadãos., mas sim de inimigos do Estado:
Um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode
participar dos benefícios do conceito de pessoa. E é que o estado natural é um estado de ausência
de norma, quer dizer, a liberdade excessiva tanto como de luta excessiva. Quem ganha a guerra
determina o que é norma, e quem perde há de submeter-se a essa determinação (JAKOBS apud
GRECO, 2005, p. 23).
No Direito Penal do inimigo são evidentes três elementos: amplo adiantamento
da punibilidade, penas desproporcionalmente altas, relativização ou até mesmo a
supressão de determinadas garantias processuais. Segundo Jakobs, esse direito estaria
presente no Brasil na lei que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a
prevenção de ações praticadas por organizações criminosas (Lei n° 9.034, de 3 de maio
de 1995). Atualmente pode ser enquadrado naquilo que se reconhece como a terceira
velocidade do Direito Penal, dentre as três velocidades possivelmente visualizadas.
A primeira velocidade seria a que tem por fim último a aplicação da pena privativa de
liberdade, onde são mantidos rigidamente os princípios político-criminais clássicos,
as regras de imputação e os princípios processuais. Na segunda velocidade, temos
o Direito Penal à aplicação de penas não privativas de liberdade, a exemplo do que
ocorre no Brasil com os Juizados Especiais Criminais, cuja finalidade de acordo
com o art. 62 da Lei n° 9.099/95, é, precipuamente, a aplicação de penas que não
importem na privação de liberdade do cidadão, devendo, pois, ser priorizadas as penas
restritivas de direitos e a pena de multa. Nessa segunda velocidade do Direito Penal,
poderiam ser afastadas algumas garantias, com o escopo de agilizar a aplicação da lei
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penal. Apesar da resistência, tem-se procurado estender o Direito Penal do Inimigo
a uma terceira velocidade, com a finalidade de aplicar penas privativas de liberdade
(primeira velocidade), com uma minimização das garantias necessárias a esse fim
(segunda velocidade).
A dificuldade da aplicação dessa teoria se dá principalmente em como caracterizar
quem é considerado inimigo, tendo suprimidas suas garantias penais e processuais
penais. Para Jakobs eles seriam os terroristas. Mas no Brasil, seriam eles os traficantes
das grandes cidades? Não seria extremamente perigoso ao sistema um Direito Penal,
baseado no perigo e sem nenhum tipo de limitações ao poder punitivo do Estado, em
face do delinqüente perigoso e especialmente para o delinqüente habitual? Ainda que,
considerado por essa corrente, um inimigo do Estado não deveria de acordo com o
princípio da dignidade humana ser levado em conta o fato de ser um cidadão?
Enfim, taxar de irrecuperável qualquer ser humano, ainda que pertencente a facções
organizadas (terroristas ou traficantes), é o auge da insensatez. Desistir de recuperar
alguém sob o rótulo de possuir um defeito de caráter, que o impede de agir como
os demais cidadãos, é caminhar para trás abrindo mão dos direitos e garantias que
conquistamos vagarosamente a duras penas até então. Nesse sentido, a mídia se mostra
um importante instrumento de difusão do ideal maximalista, quando utiliza seu poder
de formadora de opinião pública para inserir na consciência dos espectadores repudia
com relação a determinado infrator. Toma para si o posto de justiceira e condena um
cidadão antes mesmo de ser indiciado, através de programas sensacionalistas como
o do Ratinho, transmitido pelo SBT. Provoca tamanho desprezo da sociedade com
relação ao criminoso (ou possível criminoso em determinados casos), fomentando
o ódio e o desejo de puni-lo da forma mais severa possível, muitas vezes violando
garantias de qualquer cidadão brasileiro. Essa mitigação pela mídia das garantias
do sistema acusatório brasileiro ensejará o prosseguimento desse estudo acerca da
influência midiática no âmbito judiciário.
2. O sistema acusatório brasileiro e suas garantias: a mitigação pela mídia
Sistema processual penal é o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo
com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas
para a aplicação do direito penal a cada caso concreto. O Estado deve tornar efetiva
a ordem normativa penal, assegurando a aplicação de suas regras e de seus preceitos
básicos, e esta aplicação somente poderá ser feita através do processo, que deve se
revestir, em princípio, de duas formas: a inquisitiva e a acusatória. Em um Estado
Democrático de Direito, o sistema acusatório é a garantia do cidadão contra qualquer
arbítrio do Estado. A contrario sensu,no Estado totalitário, em que a repressão é a
mola mestra e há supressão dos direitos e garantias individuais, o sistema inquisitivo
encontra sua guarida.
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O sistema inquisitivo surgiu nos regimes monárquicos e se aperfeiçoou durante o
direito canônico, passando a ser adotado em quase todas as legislações européias
dos séculos XVI, XVII e XVIII. Este sistema surgiu após o acusatório privado, com
sustento na afirmativa de que não se poderia deixar que a defesa social dependesse da
boa vontade dos particulares, já que eram estes que iniciavam a persecução penal. O
cerne de tal sistema era a reivindicação que o Estado fazia para si do poder de reprimir
a prática dos delitos, não sendo mais admissível que tal repressão fosse encomendada
ou delegada aos particulares. O Estado-juiz passou a concentrar em suas mãos as
funções de acusar e julgar, comprometendo sua imparcialidade.
Caracterizado por não haver nele separação de funções, no processo inquisitivo,
o próprio órgão que investiga é o que pune. O juiz inicia a ação, defende o réu e
julga-o, acumulando todas as funções em suas mãos. No sistema inquisitivo, o juiz
não forma seu convencimento diante das provas dos autos que lhe foram trazidas
pelas partes, mas visa convencer as partes de sua íntima convicção, pois já emitiu,
previamente, um juízo de valor ao iniciar a ação. O processo inquisitivo é regido pelo
sigilo, de forma secreta, longe dos olhos do povo. Não há contraditório nem ampla
defesa, pois o acusado é mero objeto do processo e não sujeito de direitos, não sendo
a ele conferida nenhuma garantia. O sistema de provas é o da prova tarifada ou prova
legal, o que conseqüentemente torna a confissão a rainha das provas. Considerando
as características peculiares ao sistema inquisitivo a fala de Rangel (2002, p. 45) deve
ser destacada:
O sistema inquisitivo, assim, demonstra total incompatibilidade
com as garantias constitucionais que devem existir dentro de
um Estado Democrático de Direito e, portanto, deve ser banido
das legislações modernas que visem assegurar ao cidadão as
mínimas garantias de respeito à dignidade da pessoa humana.
No entanto, não adianta o direito brasileiro adotar o sistema acusatório teoricamente,
e permitir que na prática seu processo judicial tenha violado as garantias inerentes a
qualquer cidadão. O sistema misto tem fortes influências do sistema acusatório privado
de Roma e do posterior sistema inquisitivo desenvolvido a partir do Direito canônico e
da formação dos Estados nacionais sob o regime da monarquia absolutista. Procurouse com ele temperar a impunidade que estava reinando no sistema acusatório, em que
nem sempre o cidadão levava ao conhecimento do Estado a prática da infração penal,
fosse por desinteresse ou por falta de estrutura mínima e necessária para suportar
as despesas inerentes àquela atividade; ou, quando levava, em alguns casos, fazia-o
movido por um espírito de vingança. Neste caso, continuava nas mãos do Estado
a persecução penal, porém feita na fase anterior à ação penal e levada a cabo pelo
Estado-juiz. As investigações criminais eram feitas pelo magistrado com sérios
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comprometimentos de sua imparcialidade, porém a acusação passava a ser feita,
agora, pelo Estado-administração: o Ministério Público. Segundo Rangel (2002, p.
48), duas fases procedimentais distintas dividem o sistema misto:
1ª) instrução preliminar: nesta fase, inspirada no sistema
inquisitivo, o procedimento é levado a cabo pelo juiz, que
procede às investigações, colhendo as informações necessárias
a fim de que se possa, posteriormente, realizar a acusação
perante o tribunal competente;
2ª) judicial: nesta fase, nasce a acusação propriamente dita,
onde as partes iniciam um debate oral e público, com a
acusação sendo feita por um órgão distinto do que irá julgar,
em regra, o Ministério Público.
No sistema misto, a fase preliminar de investigação é levada a cabo, em regra, por um
magistrado que, com o auxílio da polícia judiciária, pratica todos os atos inerentes à
formação de um juízo prévio que autorize a acusação. Há nítida separação entre as
funções de acusar e julgar, não havendo processo sem acusação. Na fase preliminar,
o procedimento é secreto, escrito e o autor do fato é mero objeto de investigação,
não havendo contraditório nem ampla defesa, face à influência do procedimento
inquisitivo. Já a fase judicial é inaugurada com acusação penal feita, em regra, pelo
Ministério Público, onde haverá um debate oral, público e contraditório, estabelecendo
plena igualdade de direitos entre a acusação e a defesa.
O acusado, na fase judicial, é sujeito de direitos e detentor de uma posição jurídica que
lhe assegura o estado de inocência, devendo o órgão acusador demonstrar a sua culpa,
através do devido processo legal, e destruir este estado. O ônus é todo e exclusivo do
Ministério Público. O procedimento na fase judicial é contraditório, sendo assegurada
ao acusado a ampla defesa, garantida a publicidade dos atos processuais e regido
pelo princípio da concentração, em que todos os atos são praticados em audiência.
O sistema misto, não obstante ser um avanço frente ao sistema inquisitivo, não é
considerado o melhor sistema, pois ainda mantém o juiz na colheita de provas, mesmo
que na fase preliminar da acusação.
A função jurisdicional deve ser ao máximo preservada, reiterando-se, nos Estados
democráticos de direito, o juiz da fase persecutória e entregando-se a mesma
ao Ministério Público, que é quem deve controlar as diligências investigatórias
realizadas pela polícia judiciária, ou, se necessário for, realizá-las pessoalmente,
formando sua opinio delicti e iniciando a ação penal. Logo, os sistemas processuais
já vistos, inquisitivo e misto, são frutos do período político de cada época, pois, à
medida que o estado se aproxima do autoritarismo, diminuem as garantias do acusado.
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Porém, à medida que se aproxima do Estado Democrático de Direito, as garantias
constitucionais são-lhe entregues. Portanto, levando em conta o atual período político
brasileiro, este estudo terá seqüência analisando o sistema processual atualmente por
ele adotado, o sistema acusatório.
O sistema acusatório tem nítida separação de funções, ou seja, o juiz é órgão imparcial
de aplicação da lei, que somente se manifesta quando devidamente provocado; o
autor é quem faz a acusação (imputação penal + pedido), assumindo todo o ônus da
acusação, e o réu exerce todos os direitos inerentes à personalidade, devendo defenderse utilizando todos os meios e recursos inerentes à sua defesa. Assim, no sistema
acusatório, cria-se o actum trium personarum, ou seja, o ato de três personagens:
juiz, autor e réu. Neste sistema, o juiz não mais inicia, ex officio, a persecução penal
in iudicium. Há um órgão próprio, criado pelo Estado, para propositura da ação. Na
França, em fins do século XIV, surgiram os les procureurs du roi (os procuradores
do rei), dando origem ao Ministério Público. Assim, o titular da ação penal pública
passou a ser o Ministério Público, afastando o juiz da persecução penal. O processo
acusatório visa preservar a imparcialidade do juiz, para que seja um autêntico julgador
supra partes. Evidente é a imparcialidade do órgão julgador, pois o juiz está distante
do conflito de interesses instaurado entre as partes, mantendo seu equilíbrio, porém
dirigindo o processo adotando as providências necessárias à instrução do feito,
indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
O sistema acusatório caracteriza-se pela separação entre as funções de acusar, julgar
e defender, com três personagens distintos: autor, juiz e réu. Seu processo é regido
pelo princípio da publicidade dos atos processuais, admitindo-se, como exceção, o
sigilo na pratica de determinados atos. Os princípios do contraditório e da ampla
defesa informam todo o processo. O réu é sujeito de direitos, gozando de todas as
garantias constitucionais que lhe são outorgadas. O meio de provas adotado é o do
livre convencimento, ou seja, a sentença deve ser motivada com base nas provas
carreadas para os autos. O juiz está livre na sua apreciação, porém não pode se afastar
do que consta no processo.
Hodiernamente, no direito brasileiro, vige o sistema acusatório, pois, a função de
acusar foi entregue, privativamente, a um órgão distinto: o Ministério Público, e,
em casos excepcionais, ao particular. Não existindo a figura do juiz instrutor, pois
a fase preliminar e informativa que temos antes da propositura da ação penal é a do
inquérito policial e este é presidido pela autoridade policial. Mas ao analisar o sistema
acusatório adotado pelo Brasil atualmente muitos doutrinadores não o consideram
um sistema puro em sua essência, pois o inquérito policial regido pelo sigilo, pela
inquisitoriedade, tratando o indiciado como objeto de investigação, integra os autos
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do processo, e o juiz, muitas vezes, pergunta, em audiência, se os fatos que constam do
inquérito policial são verdadeiros. Inclusive, ao tomar depoimento de uma testemunha,
primeiro lê seu depoimento prestado, sem o crivo do contraditório, durante a fase do
inquérito, para saber se confirma ou não, e, depois, passa a fazer as perguntas que
entende necessárias. Nesse caso, o procedimento meramente informativo, inquisitivo
e sigiloso dá o pontapé inicial na atividade jurisdicional à procura da verdade real.
Dessa forma, como afirmar que o sistema acusatório adotado pelo Brasil é puro?
Pode se dizer que avançou, porém, não há que se negarem os resquícios do sistema
inquisitivo.
Exordial do processo acusatório o inquérito policial assume grande responsabilidade,
pois ameaça garantias inerentes ao cidadão. Ao refletir sobre esta etapa da persecução
penal percebe-se o quanto torna-se prejudicial ao processo a influência que a mídia
exerce sob o inquérito policial. A Constituição Federal brasileira traz uma série
de princípios que deveriam servir de norte ao legislador e aos aplicadores da lei.
Ocorre, que tais princípios ainda que não possam ser deixados de lado formalmente,
são constantemente ignorados informalmente. Assegurados por nossa lei maior os
princípios constitucionais garantidores são um direito inerente a qualquer cidadão,
porém vêm sendo mitigados pelo poder da mídia. É o caso do Princípio da Presunção
da Inocência, o da Ampla Defesa, do Contraditório e o da Publicidade.
O Princípio da Presunção de Inocência expresso no artigo 5°, inciso LVII da
Constituição Federal, consiste no fato que, “[...] ninguém será considerado culpado até
o transito em julgado de sentença penal condenatória”. Seu marco principal ocorreu
no final do século XVIII, em pleno iluminismo, quando, na Europa Continental,
surgiu a necessidade de se insurgir contra o sistema processual penal inquisitório,
de base romano-canônica, que vigia desde o século XII. Nesse período e sistema o
acusado era desprovido de toda e qualquer garantia. Surgiu, daí, a necessidade de se
proteger o cidadão do arbítrio do Estado que, a qualquer preço, queria sua condenação,
presumindo-o, como regra, culpado. Com a eclosão da Revolução Francesa, nasce o
diploma marco dos direitos e garantias fundamentais do homem: a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Nela fica consignado, em seu art. 9º, que
“Todo o homem é considerado inocente, até o momento em que, reconhecido como
culpado, se julgar indispensável a sua prisão: todo o rigor desnecessário empregado
para a efetuar deve ser severamente reprimido pela lei”.
Foi exatamente quando o processo penal europeu passou a se deixar influenciar
pelo sistema acusatório que surgiu uma maior proteção da inocência do acusado.
A Constituição da República Federativa do Brasil, pela primeira vez, consagrou o
chamado princípio da presunção de inocência, proclamado, em 1948, na Declaração
Universal dos Direitos do Homem, da ONU. Assim, para parte da doutrina, qualquer
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medida de coerção pessoal contra o acusado somente deve ser adotada se revestida de
caráter cautelar e, portanto, se extremamente necessária. Enquanto não definitivamente
condenado, presume-se o réu inocente. Sendo este presumidamente inocente, sua
prisão, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, somente poderá ser
admitida a título de cautela.
Alguns doutrinadores, como Rangel (2002), questionam a terminologia presunção de
inocência, pois, se o réu não pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado
da sentença penal condenatória, também não pode ser presumidamente inocente. A
Constituição não presume a inocência, mas declara que ninguém será considerado
culpado até o transito em julgado da sentença penal condenatória. Em outras palavras,
uma coisa é a certeza da culpa, outra, bem diferente, é a presunção da culpa. Ou, se
preferirem, a certeza da inocência ou a presunção da inocência.
A atuação da mídia é questionável justamente neste ponto, pois, não apenas
noticia o fato e o provável suspeito de forma imparcial, mantendo-se no campo da
presunção. Ocorre que, a maneira sensacionalista como ataca o suspeito, em rede
nacional, o apontando como culpado, ultrapassa o campo da presunção. Dessa forma,
a mídia considera culpado até que se prove o contrário, desrespeitando o princípio
constitucional da presunção de inocência.
O magistrado, ao condenar, presume a culpa; ao absolver, presume a inocência,
presunção júris tantum, pois o recurso interposto dessa decisão fica sujeito a uma
condição (evento futuro e incerto), qual seja a reforma (ou não) da sentença pelo
tribunal. Desta forma, o réu tanto pode ser presumido culpado como presumido
inocente e isto em nada fere a Constituição Federal. Seria ilógico imaginarmos
que o juiz ao condenar, presume o réu inocente. Não. Neste momento, a presunção
é de culpa e, óbvio, ao absolver, a presunção é de inocência. Destarte, nem o juiz
de primeira instância ao condenar o réu excede a etapa da presunção, até que sua
sentença transite em julgado. E se até mesmo para presumir alguém culpado fazse necessário um processo guardado pelas garantias e direitos inerentes ao cidadão.
Como pode o judiciário permitir que a mídia considere alguém culpado e condenável
sem qualquer tramitação jurisdicional prévia? Não estaria sendo desconsiderado o
Princípio da Presunção de Inocência?
A Constituição da República Federativa do Brasil consagra mais dois princípios
importantes para essa pesquisa, ainda em seu art. 5º, porém inciso LV, “[...] aos litigantes,
em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. A instrução
contraditória é inerente ao próprio direito de defesa, pois não se concebe um processo
legal, buscando a verdade dos fatos, sem que se dê ao acusado a oportunidade de
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desdizer as afirmações contra ele feitas na peça exordial. O ato jurídico que garante
o direito do réu de ser ouvido sobre as acusações que pesam sobre ele é a citação.
No processo penal, o respeito a este chamado vai tão longe que, uma vez citado e
não comparecendo o réu, o Estado-juiz nomeia-lhe defensor para que faça sua defesa
técnica, para garantir o equilíbrio na relação jurídico-processual, onde as partes (autor
e réu) ficam no mesmo pé de igualdade, mantendo uma perfeita harmonia entre os
bens jurídicos que irão se contrastar: pretensão punitiva x pretensão de liberdade.
O dispositivo constitucional acima citado (art. 5º, LV) não pode levar o intérprete a
pensar que a expressão processo administrativo compreende a fase inquisitorial ou
uma colocação mais precisa no procedimento administrativo instaurado na delegacia
de polícia. O conceito de processo administrativo é diferente do de procedimento
administrativo. O primeiro é gênero, do qual surgem várias espécies, sendo a mais
freqüente o processo disciplinar, onde se busca uma sanção de caráter administrativo
ao administrado. É a este que a Constituição Federal refere-se, dando o direito de defesa
e assegurando o contraditório a quem resiste administrativamente a esta pretensão
punitiva disciplinar. O segundo é o meio e modo pelo qual os atos administrativos
serão praticados. O rito, a forma de proceder e o conjunto de formalidades que serão
adotadas.
O inquérito policial, assim, não passa de mero expediente administrativo, que visa
apurar a prática de uma infração penal coma delimitação da autoria e as circunstancias
em que a mesma ocorrera, sem o escopo de infligir pena a quem seja objeto desta
investigação. Assim, o caráter inquisitorial afasta, do inquérito policial, o princípio do
contraditório. O princípio do contraditório traz, como conseqüência lógica, a igualdade
das partes, possibilitando a ambas a produção, em idênticas condições, das provas de
suas pretensões. Através da definição do princípio do contraditório fica perceptível
seu desencontro com a maneira de agir da mídia. Afinal, alguém já foi citado para
aparecer em horário nobre da programação jornalística para ter a oportunidade de
desdizer as afirmações contra ele feitas?
Quando, nas Constituições, se assegura à ampla defesa, entende-se que, para
observância desse comando, deve a proteção derivada da cláusula constitucional
abranger o direito à defesa técnica durante todo o processo e o direito de autodefesa.
Colocam-se ambos em relação de diversidade e complementariedade. A defesa técnica,
para ser ampla como exige o texto constitucional, apresenta-se no processo como
defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva. Por outro lado, além de ser garantia,
a defesa técnica é também direito e assim, pode o acusado escolher defensor de sua
confiança. Não se pode imaginar defesa ampla sem defesa técnica, essencial para se
garantir a paridade de armas. De um lado, tem-se, em regra, o Ministério Público
composto de membros altamente qualificados e que conta, para auxiliá-lo, com a
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polícia Judiciária, especializada na investigação criminal. Deve, assim, na outra face
da relação processual, estar o acusado amparado também por profissional habilitado,
ou seja, por advogado ou defensor público.
Além de a defesa ser necessária, é indeclinável, não podendo o acusado a ela renunciar.
O direito de defesa é ao mesmo tempo garantia da própria justiça, havendo interesse
público em que todos os acusados sejam defendidos, pois só assim será assegurado
efetivo contraditório, sem o qual não se pode atingir uma solução justa. Sendo a
defesa necessária e indeclinável, deve ela se manifestar durante todo o iter processual.
Não basta, como sucede com a ação civil, o poder de reação inicial, sendo mister
que se assegure ao acusado a garantia de que, no correr do processo, terá efetiva
contraposição à acusação: garantia de contraditório, garantia do direito à prova,
garantia ao duplo grau de jurisdição.
Além de necessária, indeclinável, plena, a defesa deve ser efetiva, não sendo
suficiente a aparência de defesa. O fato de ter o réu defensor constituído, ou de ter
sido nomeado advogado para sua defesa, não é suficiente. É preciso que se perceba,
no processo, atividade efetiva do advogado no sentido de assistir o acusado. De que
adiantaria defensor designado que não arrolasse testemunhas, não reperguntasse,
oferecesse alegações finais exageradamente sucintas, sem análise da prova, e que,
por exemplo, culminassem com pedido de justiça? Haveria, aí, alguém designado
para defender o acusado, mas a sua atuação seria tão deficiente que é como se não
houvesse defensor.
É importante assegurar ao acusado, como derivação do direito à defesa técnica, a
possibilidade de escolher defensor, porque a relação que se deve estabelecer entre os
dois é de recíproca confiança, sendo assegurada ao acusado pobre assistência judiciária
gratuita. A mídia, por sua vez, além de não assegurar ao acusado defesa, muitas vezes
entrevista o promotor criminal responsável pelo caso sem ceder o mesmo espaço ao
defensor do réu. Inibe os princípios do contraditório e da ampla defesa, ao negar que
o acusado disserte sobre sua versão dos fatos. A garantia da publicidade dos atos
processuais está expressa no art. 5º, “LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos
atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.
No inciso IX do art. 93 ficou ainda estabelecido que “[...] todos os julgamentos dos
órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob
pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em
determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.
Foi a atual Carta Magna, de 5 de outubro de 1988, que elevou à eminência constitucional
a garantia da publicidade dos atos processuais. O tema, antes, era cuidado apenas pelo
Código de Processo Penal, no art. 792. Assim, apesar de não estar antes na Carta
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Constitucional, a garantia “[...] já estava incorporada à cultura do processo brasileiro”,
encontrada nos Códigos. A inserção da garantia na Constituição alterou situações em
que a regra era o julgamento em sigilo, como sucedia, por exemplo, nos julgamentos
militares, os quais, depois, passaram a ser feitos com maior publicidade, assegurando-se
a participação das partes. Trata-se de garantia relevante e que assegura a transparência
da atividade jurisdicional, permitindo ser fiscalizada pelas partes própria comunidade.
Com ela são evitados excessos ou arbitrariedades no desenrolar da causa, surgindo,
por isso, a garantia como reação aos processos secretos, proporcionando aos cidadãos
a oportunidade de fiscalizar a distribuição da justiça.
Há publicidade plena, popular ou geral, quando os atos do processo estão abertos
a todo o público. Com pequenas variações de conteúdo, a doutrina refere-se à
publicidade restrita, especial, mediata, interna, para as partes, quando há limitação à
publicidade dos atos do processo. Mas a regra, no sistema constitucional e processual,
é a publicidade plena, ficando expressas as hipóteses em que se permite a publicidade
restrita: defesa da intimidade e interesse social (art. 5º., LX, da CF) e escândalo,
inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem (art. 792, § 1º, do CPP).
Os atos processuais devem ser transparentes, o que deve ser evitado é a publicidade
desnecessária e sensacionalista, como as transmissões de julgamentos por rádio ou
televisão. Expõe demasiadamente os protagonistas da cena processual ao público em
geral e causa constrangimento ao acusado, à vítima e às testemunhas. Na fase do
inquérito policial, deve a autoridade policial assegurar o sigilo necessário à elucidação
do fato ou exigido pelo interesse da sociedade. O que não ocorre na atualidade com os
casos de grande repercussão nacional. É necessário cuidado nas divulgações de fatos
e dados relativos à vítima na fase de investigação policial. Muito comumente acontece
que, instaurado o inquérito, iniciada a investigação, os meios de comunicação passem a
veicular fatos graves, sem a mínima preocupação com a vítima: seu nome é noticiado,
é ela qualificada, seu endereço é mencionado, são relatados fatos desagradáveis de
intensa repercussão na sua vida pessoal, familiar, social.
Exemplo gritante é o dos crimes sexuais violentos em que a divulgação expõe a
mulher ofendida à curiosidade pública, impondo-lhe, após o sofrimento do crime,
novos dissabores e impedindo que possa logo retornar a sua vida particular, com
a sua privacidade resguardada, protegida, amparada. Em certos crimes, cometidos
por grupos organizados ou pessoas perigosas, a divulgação do nome da vítima, de
seu endereço residencial, de seu local de trabalho, de seus hábitos, só contribui
para aumentar o risco de ser novamente atingida e atrapalhar a investigação. Nestes
crimes, norma relevante para acautelar os interesses da vítima seria a de não constar
seu endereço nos autos quando houver perigo de vingança ou, por outro motivo, não
for conveniente, sendo o endereço fornecido diretamente ao Ministério Público ou ao
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Poder Judiciário em folha avulsa, a fim de poder a pessoa ser chamada para prestar
declarações na fase processual.
Também a Lei Antitóxicos preocupou-se com o sigilo, ao prescrever que os “[...]
registros, documentos ou peças de informação, bem como os autos de prisão em
flagrante e os de inquérito policial para apuração do crimes definidos nesta Lei serão
mantidos sob sigilo, ressalvadas, para efeito exclusivo de atuação profissional, as
prerrogativas do juiz, do Ministério Público, da autoridade policial e do advogado na
forma da legislação específica”, pune como crime a violação desse sigilo no art. 17.
No caso de julgamento por Tribunal de Júri, a votação na sala secreta foi preservada
quando a Constituição Federal (art. 5º, XXXVIII, b) previu o sigilo das votações.
Trata-se de hipótese de publicidade restrita justificável pela necessidade de preservar
os jurados, que podem, com a presença do réu e de populares, sentirem-se intimidados,
afetando-se a imparcialidade do julgamento. Mas a colheita da prova, os debates e a
leitura da sentença são públicos. O legislador preocupou-se, ainda, com o sigilo das
diligencias, gravações e transcrições obtidas com base em interceptações telefônica
(art. 8º, caput, da Lei nº 9.296/96).
3. Dos Juízos Paralelos da Imprensa
Nos dias atuais, a nota de democracia referida ao moderno processo penal há que
propor nova reflexão no tocante à publicidade por conta da modificação, tanto na esfera
pública, que não mais se restringe ao Estatal ou não se confunde com ele, como em
virtude da verdadeira revolução proporcionada pelo desenvolvimento das tecnologias
de comunicação e sua forma de penetração e influência na complexa sociedade de
massas. Traçar a trajetória liberal do princípio da publicidade, focalizando o fato de,
nos tempos das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, na Europa Ocidental, a
publicidade procurar submeter a pessoa ou a questão ao julgamento público, tornando
as decisões políticas sujeitas à revisão perante a opinião pública, mostra sua mudança
com relação ao momento atual.
O controle empresarial dos meios de comunicação de massa, a lógica da competitividade
e do mercado que orienta a atuação deles e a distorção da própria noção de publicidade,
que, antes de incentivarem a participação democrática da maioria das pessoas
relativamente aos negócios da sua cidade e de seu país anulam essa participação,
constroem uma nova realidade, paradoxalmente virtual ou espetacular:
Na mudança de função do Parlamento, torna-se evidente a
natureza problemática da ‘publicidade’ enquanto princípio
de organização da ordem estatal: de um princípio de crítica
(exercida pelo público), a ‘publicidade’ teve redefinida
a sua função, tornando-se princípio de uma integração
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forçada (por parte das instancias demonstrativas – da
administração e das associações, sobretudo dos partidos).
Ao deslocamento plebiscitário da esfera pública parlamentar
corresponde uma deformação no consumismo cultural da
esfera pública jurídica. Com efeito, os processos penais que
são suficientemente interessantes para serem documentados e
badalados pelos meios de comunicação de massa, invertem, de
modo análogo, o princípio crítico da ‘publicidade’, do tornar
público; ao invés de controlar o exercício da justiça por meio
dos cidadãos reunidos, serve cada vez mais para preparar
processos trabalhados judicialmente para a cultura de massas
dos consumidores arrebanhados (HABERMAS apud PRADO,
2005, p. 162).
O poder (contrapoder) da mídia é empregado especialmente nos casos penais. É grande
a influência da sociedade espetacular, da ansiedade midiática e da informação como
mercadoria de consumo, destacando negativamente seja o acusado ou os próprios
juristas. Na década de 90, já chamava atenção à nova postura do fenômeno mídia e
das suas relações com o processo penal. A exploração das causas penais como casos
jornalísticos, com intensa cobertura por todos os meios, leva à constatação de que,
ao contrário do processo penal tradicional, no qual o réu e a defesa poderão dispor
de recursos para tentar resistir à pretensão de acusação em igualdade de posições e
paridade de armas com o acusador formal, o processo paralelo difundido na mídia é
superficial, emocional e muito raramente oferece a todos os envolvidos igualdade de
oportunidade para expor seus pontos de vista.
A disparidade de tratamento que, em muitas ocasiões, é tratada como cobertura isenta
e lisa do meio de comunicação, que procura acentuar sua liberdade em face dos
investigados quando porventura estes integram ou são vistos como parte das elites
políticas, econômicas ou intelectuais, na verdade está a descobrir um fato e produzir
algumas danosas conseqüências. A presunção de inocência sofre drástica violação, pois
a imagem do investigado é difundida como da pessoa responsável pela infração penal,
e em vista disso, o desequilíbrio de posições que os sujeitos têm de suportar durante
o período de exposição do caso pela mídia transfigura os procedimentos seculares de
apuração e punição, passando subliminarmente a idéia do caráter obsoleto e ineficiente
das garantias processuais, a que se soma a percepção do processo penal como meio
demorado de se fazer justiça em comparação com a célere e perfeita investigação da
mídia.
Semelhante situação sofre o devido processo legal e a liberdade de imprensa, sendo
esta última apresentada como direito civil elementar em uma sociedade democrática,
mas que geralmente acaba produzindo em seu extremo um modelo autoritário
de exercício de poder, em virtude do fato de que os procedimentos acabam tendo
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valor exclusivamente formal. Os meios de comunicação socorrem-se em muitas
oportunidades de procedimentos ilegais de apuração dos fatos e transmitem a imagem
do crime flagrado enquanto ocorre (a antiga verdade real, agora com nova roupagem)
amplamente documentado e provado, supostamente, cabendo à Justiça tão-só
sacramentar o veredicto de condenação e punir o culpado.
A organização do sistema de direitos fundamentais em sua etapa inicial considerou a
necessidade histórica de conter o poder do Estado, opondo-lhe barreiras consistentes
nas liberdades públicas. Era e de alguma maneira ainda é assim porque ao Estado são
conferidos poderes cujo exercício implica em virtual interferência na esfera privada
das pessoas, ameaçando o status de dignidade de que devem ser portadores todos
os seres humanos, independentemente de quaisquer outras considerações. No âmbito
do processo penal, a proibição do emprego da tortura, a garantia da inviolabilidade
física, do domicílio, das comunicações e do patrimônio, conjugam-se como regras
destinadas a proteger a honra, a liberdade e a vida dos indivíduos, sendo que a crônica
do exercício arbitrário do poder registra o emprego do processo penal como forma de
exclusão e controle dos grupos sociais indesejáveis, naturalmente ao mesmo tempo
em que se procurava controlar as ações que realmente atentavam contra interesses
expressivos das comunidades.
Ter tudo em um mesmo conjunto sempre facilitou o poder no instante de encontrar
um pretexto para excepcionar o emprego de meios processuais racionais e éticos de
apuração das infrações penais, de sorte que a defesa social fundamentou discurso
de compressão de exercício de direitos fundamentais em condições de justificar o
processo penal dos regimes autoritários de meados do século XX, na Europa Ocidental.
Apesar disso, o movimento de internacionalização dos direitos fundamentais, iniciado
após o fim da Segunda Guerra Mundial, ocupou espaços e detonou irreversível
conscientização do caráter inalienável e irrenunciável destes direitos, obrigando o
Estado a perseguir o delito e punir o delinqüente com as armas dispostas em um
regime de estrita legalidade e eticidade.
Porém, um novo tipo de poder foi edificado, fora do Estado, com o desenvolvimento
da comunicação de massa, em um contexto de sociedade capitalista e com uma forma
cada vez mais acentuada de empresas transnacionais de comunicação (as grandes
corporações, que monopolizam estes meios). A lógica de freios e contrapesos não
funciona em relação a eles, que preconizam auferir legitimidade em virtude do consumo
massivo das informações que veiculam. O emprego da censura não é aceitável, pois
no lugar de eliminar a doença mata o paciente, abrindo caminho para o extermínio da
liberdade de informação e expressão.
Embora se saiba que, no tocante ao funcionamento geral das corporações do ramo, a
liberdade de imprensa é ditada por interesses mercadológicos, sobrevive em importante
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medida a liberdade de informação de que fazem uso os operadores da imprensa e que
tem sido fundamental para esclarecer as pessoas (detentoras do direito à informação) a
respeito de fatos relevantes da vida pública e social. Destarte, o controle das situações
de conflito entre liberdade de imprensa e devido processo legal pode estar em se
proibir à imprensa aquilo que é igualmente proibido ao Estado, isto é, fazer uso de
informações obtidas criminosamente.
A censura prévia é impossível, portanto, duas são as possíveis alternativas, segundo
Geraldo Prado (2005), a primeira seria recorrer aos mecanismos de responsabilidade
tradicional, de natureza reparatória. E a segunda alternativa seria a intransigente
proibição de que as partes do processo lancem mão das provas obtidas dessa maneira,
a qualquer título. A fidelidade ao sistema acusatório implica em estipular que a sede
para a solução dos conflitos de interesse de natureza penal é o processo judicial. Nos
casos de intensa exploração pela mídia, é conveniente que se proceda ao desaforamento
temporal, suspendendo o curso do procedimento enquanto durar o estado de excitação
social.
Visando resguardar a coerência interna entre os diversos elementos constitutivos do
sistema acusatório, quando confrontados com a publicidade pós-moderna, segundo
Prado (2005), convém seguir e ampliar o exemplo espanhol, pelo qual, em virtude da
ordem ministerial de 27 de novembro de 1959, completada pelo ofício circular de 22
de abril de 1985, o Ministério Público está autorizado a emitir comunicados escritos,
destinados à imprensa, a fim de evitar informações errôneas. A propósito destes
comunicados, deve a lei garantir à parte que se sentir prejudicada o direito de fazer uso
de igual expediente, assegurando-se, assim, não só a liberdade de informação como
também o exercício desta liberdade verdadeiramente como função social. O processo
penal democrático necessita da publicidade dos seus procedimentos e assegurá-la
pode impedir que se coloque no seu lugar a publicidade espetacular dos atores que
deles tomam parte, além de facilitar o controle e coibir os excessos.
Para Batista (1993), em seminário realizado no Rio de Janeiro, em 1993, os princípios
que regem hoje no Brasil a cobertura policial jornalística, de modo objetivo e
enxuto, são o princípio da verdade primacial, os princípios da progressividade, o
princípio da mais-valia da violência impune, o princípio da manipulação estatística,
o princípio da ineficiência do Estado, o princípio da credibilidade imediata do terror
e o princípio do estereótipo criminal. É impossível pensar a questão da liberdade de
imprensa hoje ignorando: a) que o modelo idealista-liberal da informação neutra,
objetiva, secundada pela opinião não funciona em sociedades de consumo, nas quais
os proprietários dos meios de comunicação necessitam de uma informação adequada
à subseqüente opinião; b) que a mídia se constitui e opera como poder político, tendo
em vista a formação de opinião pública – potencialmente, formação de opção eleitoral
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e, portanto, de poder; c) que a sobrevivência dos veículos se subordina a relações de
mercado, perante as quais o direito de informar tem como pressuposto a capacidade
competitiva de vender.
É ingênuo e injusto supor que os princípios a seguir enunciados, mais detalhadamente,
são observados em nível de consciência profissional de repórteres e editores, e não
opressivamente imposto por essas e outras circunstâncias de um sistema que tem
nos órgãos de informação precioso instrumento para sua reprodução. Por outro
lado, só um espírito antidemocrático procuraria extrair, da observação específica das
páginas policiais, conclusões e preceitos para uma política geral sobre a liberdade de
manifestação do pensamento.
O princípio da verdade primacial consiste no fato que a primeira notícia veiculada
sobre um fato criminal, que o próprio jornal apurou ou que divulga com exclusividade,
constitui-se em dogma, matriz e fio condutor de todo o noticiário subseqüente. Quando
a notícia se revela incompatível com a realidade posteriormente aflorada, qualquer
versão que proceda a compatibilização é admitida e veiculada. E se em decorrência
de conseqüências jurídicas prováveis ou adotadas, impõe-se retificar a notícia, isso é
feito da forma mais discreta possível, sem contraste algum.
O princípio da progressividade, caracteriza-se pelo fato de a violência progressiva
(continuada, organizada) vender mais que a episódica (individualizada, circunscrita).
Por isso, sempre que possível, casos isolados devem ser articulados e o episódio
individual inserido num contexto de progressividade. Quando for impossível, pelas
características estritamente interindividuais de um caso, inseri-lo num contexto de
progressividade, o noticiário subseqüente pode buscar elementos para uma matéria
com análise extensiva, o que produz efeitos e garante permanências semelhantes às da
violência progressiva ou continuada.
O princípio da mais-valia da violência impune significa dizer que o caso criminal
imediatamente apurado merece menos espaço do que aquele não apurado. A notícia
que contém ao mesmo tempo a ação criminosa e a identificação ou prisão de seus
autores perde pontos na classificação editorial. Salvo casos nos quais peculiaridades
dos protagonistas ou do modo de execução permitem a análise extensiva que faz
perdurar a imagem da violência, do contrário, a punição geralmente encerra o interesse
jornalístico. A violência impune vende mais que a violência punida.
O princípio da manipulação estatística ocorre quando as informações diariamente
divulgadas sobre violência desconsideram por completo as séries estatísticas que
poderiam realmente orientar o público sobre a verdadeira tendência das diversas
incidências criminais. As páginas policiais criam e manipulam suas próprias
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estatísticas, selecionando arbitrariamente períodos e casos. Quando se trata de divulgar
levantamentos estatísticos completos, dedicam espaço diferente para tendências de
ascensão e tendências de rebaixamento da violência.
O princípio da ineficiência do Estado, deve-se ao fato da violência social noticiada
ser sempre atribuída à ineficiência do Estado, e jamais se converter em objeto de
discussão da própria organização social. A crônica policial só excepcionalmente
ultrapassa o horizonte da ineficiência do Estado, mesmo diante de casos nos quais
a transgressão evidentemente implicaria outras considerações. A organização social
inquestionada, a polícia ilesa, o Estado ineficiente, essa é a fórmula. O princípio da
credibilidade imediata do terror implica a cobertura jornalística de um caso policial
conferir espaço aos depoimentos proporcional à mensagem de aterrorização que ele
contenha. A credibilidade da fonte é desconsiderada em favor de uma credibilidade
imediata em seu próprio terror.
O princípio do estereótipo criminal ocorre quando um protagonista do episódio de
violência integra alguma minoria, objeto de preconceito ou marginalização social
(homossexuais, egressos da prisão, drogadictos, dentre outros), sendo tal condição
sempre mencionada e freqüentemente enfatizada, ainda que não se possa relacionála, de qualquer modo, ao episódio em questão. As matérias que abordam, exclusiva
ou acessoriamente, o pânico social relacionado à violência, recrutam os depoimentos
amedrontados de sorte a direcionar o medo para os grupos sociais criminalmente
estereotipados. Dessa forma, aplicando estes princípios próprios, é que a mídia
constrói e molda a violência e o transgressor à maneira que lhe convém, violando
seja a própria ética ou até mesmo o direito.
4. A construção do transgressor pela mídia
A mídia começa a moldar o perfil do transgressor penal no inquérito policial. Momento
esse da persecução penal onde ainda não se pode nem tomar alguém por suspeito e
a mídia já constrói a imagem de culpa sobre quem lhe convém. O inquérito policial
tem por escopo, segundo Paulo Rangel, “[...] apurar a autoria e materialidade de uma
infração penal, dando ao Ministério Público elementos necessários que viabilizem o
exercício da ação penal” (RANGEL, 2002, p. 65). Porém, nosso código não define
claramente esta fase da persecução penal, o que leva a guiarmo-nos pela explicação
do Código de Processo Penal Português (art. 262, item 1): “O Inquérito policial
compreende o conjunto de diligencias que visam investigar a existência de um crime,
determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas,
em ordem à decisão sobre a acusação”.
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Essa definição caracteriza o inquérito policial como processo preliminar ou
preparatório da ação penal, dando a ele grande importância por ser responsável pelas
investigações basilares do fato a ser apurado em sede jurisdicional. Assim, este
conjunto de atos administrativos, visando à elucidação de um fato considerado, em
tese, infração penal, precede a instauração da competente ação penal, ou não quando
através do mesmo percebemos-na desnecessária. Daí ter o inquérito policial, na
verdade, uma função garantidora. Pois, a investigação tem o nítido caráter de evitar
a instauração de uma ação penal infundada por parte do Ministério Público diante do
fundamento do processo penal, que é a instrumentalidade e o garantismo penal. O
garantismo penal busca evitar o custo para o sujeito passivo (e para o Estado) de um
juízo desnecessário.
Através dessa análise rápida do ideal garantista, adotado (ainda que teoricamente)
por nosso direito percebemos o quanto é danosa a intervenção da mídia em sede de
inquérito policial. Essa influência muitas das vezes provoca a instauração de uma
ação penal desnecessária prejudicando garantias do indiciado. Casos em que existe
grande repercussão nacional e a mídia passa a veicular sem qualquer imparcialidade,
influenciam tanto na instauração do processo quanto na motivação do juiz para
sentenciar, pois ele, como qualquer cidadão comum, é convencido pelo apelo
midiático.
Observemos no caso da instauração de uma ação penal derivada de um inquérito
policial influenciado pela mídia. Ainda que no curso do processo o acusado tenha
direito ao devido processo legal e ao contraditório o juiz certamente ao dar sua
sentença já estará influenciado não só pelas provas colhidas nos autos, bem como pelo
sensacionalismo da Mídia. Dessa forma, não estaria a mídia mitigando os princípios
basilares do direito e as garantias do sistema processual acusatório e tornando o
garantismo penal uma falácia?
O Ministério Público tem o dever de exigir que a investigação seja feita pela polícia,
que exerce a atividade de polícia judiciária dentro do devido processo legal, e portanto
com respeito aos direitos e garantias individuais, colhendo as informações necessárias
e verdadeiras, sejam a favor ou não do indiciado. Portanto, a função investigativa de
qualquer fato do qual suspeita-se ser um ato ilícito não é da mídia, que por sua vez tem
função informativa e imparcial. O inquérito não é para apurar culpa, mas sim a verdade
de um fato da vida que tem aparente tipificação penal. Logo, o trabalho sem ética de
alguns profissionais do jornalismo, em que o suspeito já é tratado como condenado é
inaceitável. E deveria ser melhor fiscalizado pelo direito, afinal, “[...] ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art.
5°, LVII, CF/88).
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O suspeito pode prejudicar-se ao ter sua imagem constituída pela exploração midiática
em sede de inquérito policial. A mídia é impiedosa ao caracterizar um transgressor
quando se trata de arrebatar audiência. Essa impiedade destaca-se mediante algumas
celebridades do mundo criminal como, Fernandinho Beira Mar (traficante), Marcola
(líder das rebeliões em cadeia por todo o Brasil em 2006), Suzana Von Richtofen
(assassina dos próprios pais), Guilherme de Pádua (assassino da atriz Daniela Perez),
dentre outros. Será que sentiríamos tanto desprezo por essas pessoas se não fosse a
mídia?
5. A exploração midiática apontada em caso real
Em análise ao processo legislativo da lei de crimes hediondos, percebemos que esta
lei foi, como tantas outras, aprovada às pressas, sem uma análise extensiva por parte
dos legisladores, que o fizeram em um momento de clamor popular pela diminuição
da criminalidade devido a seqüestros de pessoas influentes que vinham acontecendo
e em virtude da pressão da mídia para a criação da mesma. Resultou, de tudo isso,
uma lei que seguiu o clamor por penas mais rígidas para condenados por certos crimes
rotulados pela própria norma. Sob o ponto de vista jurídico, com relação à criação
da lei, evidencia um fracasso, por contrariar, em certos artigos e ou incisos, toda a
história da pena, que se mostra contrária a penas severas como as impostas por esta
lei, além de violar também princípios fundamentais constitucionais relacionados a
pena como a individualização, a proporcionalidade e a humanidade.
Ocorre que a mídia teve grande participação na criação da Lei de Crimes Hediondos
em tão pouco espaço de tempo e com punições tão severas. Pois a repressão aos
crimes hediondos já existia desde a Carta Política de 1988, a qual determinou que
“[...] a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a
prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os
definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores
e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. E após a promulgação dela, tiveram início
no Congresso Nacional inúmeros projetos de lei, que objetivavam regulamentar o
assunto, uma vez que o inciso acima abria caminho para uma lei complementar que
considerasse o assunto. Em 1990 o assunto ainda era persistente no Congresso, com
o projeto de número 5.270, que propunha o aumento das penas para os crimes de
extorsão mediante seqüestro, baseado na justificativa que este crime estava se tornando
uma indústria lucrativa às custas das famílias das vítimas, além do pânico causado na
sociedade.
Logo após, vieram muitos outros projetos. Até que em 25 de junho de 1990, foi
promulgada a lei ordinária, mas com caráter de lei complementar, de número 8.072,
baseada no projeto substitutivo número 5.405, elaborado pelo Deputado Roberto
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Jefferson, então relator de Comissão de Constituição, Justiça e Redação. Esse projeto
teve por base a mensagem presidencial 546/89 (projeto 3.754/89), além dos projetos
anteriores. Na fase de votação houve um acordo entre todos os líderes de partidos
políticos, que, sem nenhuma discussão mais aprofundada, aprovaram-no na Câmara
dos Deputados e em seguida no Senado Federal. Na fase de sanção presidencial,
houve apenas o veto parcial (artigos quatro e onze), por parte do então Presidente
da República Fernando Collor. Em sua redação original, classificava quais eram os
crimes considerados hediondos no artigo primeiro, que possuía apenas o caput, onde
eram elencados todos os referidos delitos:
Art. 1º São considerados hediondos os crimes de latrocínio (art.
157, § 3º, in fine), extorsão qualificada pela morte, (art. 158, §
2º), extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art.
159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º), estupro (art. 213, caput e sua
combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), atentado
violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223,
caput e parágrafo único), epidemia com resultado morte (art.
267, § 1º), envenenamento de água potável ou de substância
alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte (art. 270,
combinado com o art. 285), todos do Código Penal (DecretoLei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), e de genocídio (arts.
1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956), tentados
ou consumados (Lei 8072/90).
Além disso, em consonância com a carta magna, a redação original da referida lei,
em seu artigo segundo, caput, determinou que, além dos crimes hediondos, os crimes
de prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e o terrorismo, se
equiparam aos crimes hediondos nas hipóteses citadas dentre os incisos e parágrafos
do mesmo artigo. O que teria conduzido o legislador constituinte a formular o nº XLIII
do art. 5º da CF, neste momento, depois de exaustivas tentativas anteriores? O que
estaria por trás do posicionamento adotado? Nos últimos anos, a criminalidade violenta
aumentou aparentemente, atingindo até mesmo seguimentos sociais que até então
estavam livres de ataques criminosos, atos de terrorismo político e mesmo de terrorismo
gratuito abalaram diversos países do mundo, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins assumiu gigantismo incomum. Diante desse quadro, os meios de comunicação
de massa começaram a atuar, de forma a exagerar a situação real, formando uma idéia
de que seria mister, contra determinada forma de criminalidade ou determinados tipos
de delinqüentes, uma medida mais severa, mesmo que isso significasse a perda das
tradicionais garantias do Direito Penal e do Direito Processual Penal.
Dessa forma, a lei de crimes hediondos foi uma resposta do direito penal brasileiro
ao apelo midiático e ao clamor popular àquela época. O objetivo, logicamente, seria
diminuir a onda de crimes desta natureza o que infelizmente não se concretizou e, ao
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que se percebe, tomou tamanho muito maior e mais ofensivo à sociedade. O que se
nota com os acontecimentos posteriores que inclusive provocaram mudanças na Lei
de Crimes Hediondos.
Após a ocorrência do polêmico homicídio qualificado em 1992, da atriz Daniela Perez,
filha de Glória Perez (escritora de renome), que teve como autores o ator Guilherme
de Pádua e sua esposa, sendo que Guilherme e a vítima faziam parte do elenco de
uma novela da Rede Globo de televisão, em apresentação na época do homicídio,
a lei 8.930, que entrou em vigor em 07 de outubro de 1994, veio a revogar o artigo
primeiro, supramencionado, substituindo-o. Esta nova redação incluiu o homicídio
praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só
agente e homicídio qualificado e, por outro lado, excluiu o envenenamento de água
potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte. Atualmente
os crimes classificados como hediondos são os enumerados pelo artigo primeiro,
incisos I a VII – B e parágrafo único, da Lei nº 8.702/90:
I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de
grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e
homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V);
II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine); III - extorsão qualificada
pela morte (art. 158, § 2º);
IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art.
159, caput, e §§ lo, 2º e 3º);
V - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e
parágrafo único);
VI - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com
o art. 223, caput e parágrafo único);
VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º).
VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de
produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273,
caput e § 1º, § 1º-A e § 1º-B, com a redação dada pela Lei no
9.677, de 2 de julho de 1998).
Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de
genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei no 2.889, de 1º de
outubro de 1956, tentado ou consumado (Lei 8.702/90, art. 1°,
incisos I a VII-B e parágrafo único).
Não teria a mídia mostrado mais uma vez seu poder de persuasão ao incentivar a
modificação da Lei de Crimes Hediondos? Será que, se Daniela não fosse atriz e
sua mãe reconhecida nacionalmente, a lei teria incluído em seu rol o crime de
homicídio?
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6. Conclusão
Percebi ao término deste estudo acerca do princípio da presunção de inocência e a
exploração midiática, que os objetivos por mim propostos foram atingidos de algum
modo. Foi possível vislumbrar a articulação da teoria das ciências jurídicas com a
prática jornalística almejada por este estudo.
Nos dias atuais a mídia mostrou expandir a teoria maximalista enquanto política
criminal no Brasil. Ocorre que os doutrinadores de forma geral vêm buscando uma
teoria inversa, para propor um direito penal mais equilibrado, ressaltando não ser
a severidade das penas a solução para a criminalidade brasileira. Em um Estado
Democrático de Direito, o sistema acusatório é a garantia do cidadão contra qualquer
arbítrio do Estado. Portanto, a mitigação dos direitos e garantias processuais pela
mídia,mostradas por este estudo, não podem ser admitidas num sistema penal que é
regido pelo princípio da dignidade humana.
Solução aparente para a questão da influência midiática aqui levantada pode ser a lei
garantir à parte que se sentir prejudicada o direito de fazer uso de igual expediente,
assegurando, assim, não só a liberdade de informação como também o exercício
dessa liberdade verdadeiramente como função social. O processo penal democrático
necessita da publicidade dos seus procedimentos e assegurá-la pode impedir que se
coloque no seu lugar a publicidade espetacular dos atores que deles tomam parte, além
de facilitar o controle e coibir os excessos.
Este estudo não se manifesta em favor de calar a imprensa, pois, ela exerce importante
papel em nossa sociedade. A questão é favorecer uma mídia que não ultrapasse o
campo das presunções e invada o campo jurídico exercendo um papel que é exclusivo
do direito. Este trabalho é um começo incipiente em termos de apontar a necessidade
de um jornalismo ético e um direito justo. Sabemos que temos ainda uma longa
caminhada pela frente, acreditando na possibilidade desta pesquisa bibliográfica
servir de alguma forma como contribuição para o meio acadêmico.
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7. Referências bibliográficas
BATISTA, Nilo. Regras do Mercado da Informação sobre violência: seminário
realizado no Hotel Glória. Rio de Janeiro: FAPERJ, 1993.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. São Paulo:
Saraiva, 2003. v. 1 e v. 2.
DEFLEUR, Melvin L. Teorias da comunicação de massa. São Paulo: Zahar, 1993.
FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002.
GRECO, Rogério. Direito Penal do equilíbrio: uma visão minimalista do Direito
Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1.
LOPES JUNIOR, Aury. Sistema de investigação preliminar no Processo Penal. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2005.
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis
processuais penais. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2002.
SILVA, José Maria da; SILVEIRA, Emerson Sena da. Apresentação de trabalhos
acadêmicos: normas e técnicas. Juiz de Fora: Templo, 2004.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito
Penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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1.2. COMENTÁRIOS À LEI DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ÂNGELO ANSANELLI JÚNIOR
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
SUMÁRIO: 1. A violação do princípio da isonomia. 2. A violação do princípio da
proporcionalidade. 3. As medidas a serem adotadas pela autoridade policial. 4. A
competência. 5. A renúncia à representação. 6. A ação penal. 7. A violação do princípio
da individualização da pena. 8. As medidas protetivas. 9. Considerações finais sobre a
Lei de Violência Doméstica. 10. Referências bibliográficas.
Em 7 de agosto de 2006, foi promulgada a Lei nº 11.340, que regulamentou as questões
referentes à violência doméstica contra a mulher, contendo inúmeras disposições
difíceis de compatibilizar com as demais leis.
1. A violação do princípio da isonomia
Primeiramente, é de se ver que o art. 4º coloca a mulher como hipossuficiente,
equiparando-a a crianças e adolescentes, o que se nos mostra inconcebível, ante o
disposto no art. 5º, I, da CF/88, que reza que “[...] homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Ora, ao equiparar homens e
mulheres, tem-se que o legislador constitucional só admite o tratamento diferenciado
entre ambos, em hipóteses restritas, como no caso da aposentadoria, em que o limite
de idade para as mulheres é menor. O artigo 3º preceitua que se devem assegurar às
mulheres condições para o exercício de uma série de direitos e garantias fundamentais.
Sendo assim, Souza (2007), com quem fazemos coro, acertadamente afirma:
[...] que a própria lei, que procura evitar a discriminação, é,
por si, discriminatória, por que afasta a sua incidência protetiva
quando a violência doméstica e familiar tiver como vítima uma
pessoa do sexo masculino, o que, por si só, faz crer que é possível
que se questione a sua constitucionalidade, pois pode afrontar o
disposto no artigo 5º, inciso I, da Constituição Republicana, que
estabelece o princípio da isonomia entre homens e mulheres.
A edição de leis sem a devida reflexão tem levado à confusão para o intérprete, pois várias
disposições são inconciliáveis, incoerentes, e, por vezes, violentadoras de princípios
constitucionais. O 3º Encontro de Juízes de Juizados Especiais Criminais e de Turmas
Recursais Criminais do Estado do Rio de Janeiro teve como discussão principal
referida lei. Segundo os Juízes, é inconstitucional o artigo 41 da nova Lei que diz não
ser aplicável a Lei nº 9.099/95 (dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) aos crimes
praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente
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da pena prevista. Para eles, esse artigo afasta os institutos despenalizadores da Lei nº
9.099/95 para crimes que se enquadram na definição de menor potencial ofensivo, na
forma do artigo 98, I, e 5º, I, da Constituição Federal. No mesmo sentido, posiciona-se
Souza (2007), que ensina:
Entretanto, se for mulher a vítima de lesão corporal leve, ainda
que qualificada (art. 129, § 9º, do CP), nas circunstâncias da
lei em análise (art. 7º), não se aplica a Lei nº 9.099/05, por
força do referido artigo 41 da Lei nº 11.340/2006, o que faz
que, nesta hipótese, a lesão corporal leve, ainda que qualificada,
seja de ação penal pública incondicionada, não se admitindo
suspensão condicional do processo, apesar de a pena mínima
ser de três meses, o que fere o princípio da isonomia, pois a lei
prevê tratamento diferenciado para pessoas em circunstâncias
jurídicas iguais, sendo, portanto, inconstitucional.
Com razão os magistrados fluminenses. O legislador, em razão do princípio da
isonomia, não poderia afastar a incidência dos institutos despenalizadores da transação
penal e da suspensão condicional do processo, somente pelo fato de a mulher ser
vítima de delito perpetrado no seio de sua casa, uma vez que isso cria situação injusta
e violentadora do princípio da igualdade. Imaginemos que a mulher seja vítima de
uma lesão corporal leve praticada pelo seu marido e faça a representação. O suposto
autor, obrigatoriamente, será denunciado, e, ao final, condenado, sem que lhe fosse
concedido o direito à transação penal. No caso da situação inversa, ou seja, se o
homem for vítima de uma lesão leve praticada pela sua esposa, ela será beneficiada
com a transação penal, o que evidencia a violação do princípio da isonomia. Não
poderia o legislador eleger o sexo (no caso a qualidade de vítima, a mulher) e nem
as circunstâncias (violência doméstica) como elemento diferenciador para vedar a
aplicação dos institutos despenalizadores.
O mesmo ocorreria no caso de uma lesão grave. O homem, autor do delito, não poderia
ser beneficiado com a suspensão condicional do processo, devendo o feito tramitar
até o final da sentença. Já a mulher autora do mesmo crime gozaria da suspensão
em flagrante violação do princípio da igualdade. Comungando com nossa opinião,
Santin (2006, grifo nosso) defende que a lei é discriminatória e violadora do princípio
da igualdade, pois impede o homem, quando autor, de se beneficiar de institutos
despenalizadores. Assim ensina:
Em relação à violência doméstica, o constituinte delineou a
garantia de assistência à família a cada um dos integrantes e
mecanismos de coibição da violência doméstica e familiar (art.
226, § 8º, CF). Como se vê, a pretexto de proteger a mulher,
numa pseudopostura ‘politicamente correta’, a nova legislação
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é visivelmente discriminatória no tratamento de homem e
mulher, ao prever sanções a uma das partes do gênero humano,
o homem, pessoa do sexo masculino, e proteção especial à
outra componente humana, a mulher, pessoa do sexo feminino,
sem reciprocidade, transformando o homem num cidadão de
segunda categoria em relação ao sistema de proteção contra a
violência doméstica, ao proteger especialmente a mulher, numa
aparente formação de casta feminina. Pelo texto normativo, a
mulher (sexo feminino) vítima será beneficiada por maiores
mecanismos de proteção e de punição ao homem (sexo
masculino) agressor enquanto o homem vítima será prejudicado
pela ausência de instrumentos de proteção especial e menor
sanção à mulher agressora. Se a mulher for agredida, recebe
proteção policial e medidas protetivas; ao homem agredido,
não há previsão de proteção policial nem medida protetiva. O
homem agressor pode ser preso preventivamente por violência
doméstica e obrigado a freqüentar programas de recuperação
e reeducação; não há previsão legal em relação à mulher
agressora. A sanção deve ser igual ao agressor masculino ou
feminino. A proteção e repressão devem ser dirigidas a todos,
com a utilização de termos como ‘cônjuge’ ou ‘convivente’ ou
‘familiar’ ou equivalentes, observando que são adequados os
termos como ‘criança’, ‘adolescente’ ou ‘idoso’, comuns de
dois gêneros, para expressão legislativa de outros diplomas
legislativos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
8.069/1990), e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003).6
Em sentido contrário, Gomes (2006) ensina:
A Lei 11.340/2006 constitui exemplo de ação afirmativa,
no sentido de buscar uma maior e melhor proteção a um
segmento da população que vem sendo duramente vitimizado
(no caso, mulher que se encontra no âmbito de uma relação
doméstica, familiar ou íntima). O art. 5º, I, da CF diz que
‘homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição’. Mas o tratamento diferenciado em
favor da mulher (tal como o que lhe foi conferido agora com
a Lei 11.340/2006) justifica-se, não é desarrazoado (visto que
a violência doméstica tem como vítima, em regra, a mulher).
Quando se trata de diferenciação justificada, por força do
critério valorativo não há que se falar em violação ao princípio
da igualdade (ou seja: em discriminação, sim, em uma ação
afirmativa que visa a favorecer e conferir equilíbrio existencial,
social, econômico, educacional etc. a um determinado grupo).
6
V. também no sentido da inconstitucionalidade: Sampaio; Fonseca (2006, p. 4).
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Nucci (2006), no mesmo esteio da lição de Gomes (2006), assevera que a Lei nº
9.503/97 (Código de Trânsito) possibilitou, através do parágrafo único, a aplicação
do instituto da transação penal nos crimes de lesão corporal culposa, participação em
competição (racha) e embriaguez ao volante, sendo que este último delito (previsto
no art. 306 da Lei nº 9.503/97) prevê pena máxima de três anos. Argumenta o autor
que a lei pode alterar o conceito de crime de menor potencial ofensivo para situações
específicas, motivo pelo qual a possibilidade de transação penal em face da prática do
delito mencionado seria válida.
Por isso, afirma Nucci (2006, p. 884), “[...] o art. 41 da Lei 11.340/2006 pode estipular
outra exceção, agora para restringir o alcance da lei 9.099/95. Na realidade, com outras
palavras, firmou o entendimento de que os crimes praticados com violência doméstica
e familiar contra a mulher não são de menor potencial ofensivo, pouco importando o
quantum da pena”.
Com o devido respeito, assim não pensamos. O legislador pode estabelecer
diferenciações, desde que elas estejam de acordo com a finalidade da norma. A Lei nº
10.740, por exemplo, como já colocamos, veda a incidência das escusas absolutórias,
quando os idosos forem vítimas dos crimes – nela previstos e nos demais delitos
contra o patrimônio, elencados no Código Penal. Aí sim, entendemos presente a ação
afirmativa, uma vez que os idosos experimentam mais dificuldades para o exercício de
seus direitos, e, sendo a ação penal pública incondicionada, fará com que o Ministério
Público supra tal deficiência. Em relação ao princípio da isonomia, explica Mello
(1999, p. 39, grifo nosso):
A discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que
exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado
construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo.
Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica
com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a
distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia.
No caso presente, elege-se a mulher vítima como elemento discriminador, e a
finalidade da norma seria sua maior proteção. Ora, a mulher que tanto luta para se
igualar ao homem em direitos, que busca maior acesso ao mercado de trabalho, que
deseja remuneração paritária com as pessoas do sexo masculino, ao mesmo tempo,
e de forma paradoxal, é colocada como hipossuficiente. Assim, entendemos que não
há correlação lógica em impedir que o sujeito ativo seja beneficiado com os institutos
despenalizadores – transação penal e suspensão condicional do processo –, única e
simplesmente pelo fato de a mulher ser vítima de violência doméstica.
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Poderia o legislador, sem qualquer problema, vedar a aplicação dos institutos
despenalizadores da transação penal e suspensão condicional do processo nos crimes
de violência doméstica. Contudo, tal deveria se dar em relação a todos os casos, ou
seja, quando o homem também fosse vítima. Aí sim estar-se-ia respeitando o princípio
da isonomia. Além disso, há um grande problema em conciliar o art. 41 da Lei nº
11.340/06 com o art. 94 da Lei nº 10.741, que determina a aplicação da Lei nº 9.099 no
caso da prática dos crimes do Estatuto do Idoso, sendo que aquele veda a incidência
dos institutos despenalizadores nas hipóteses de violência doméstica (art. 5º, I a III,
c/c art. 7º, I a III, da Lei nº 11.340).
Ao que parece, o art. 94 da Lei nº 10.741, que determina a aplicação do rito da Lei
nº 9.099, será afastado quando ocorrer casos de violência doméstica, cuja vítima for
mulher idosa. Imaginemos uma mulher vítima do delito previsto no art. 99 da Lei
nº 10.741, em que o autor seja seu marido, por exemplo. Seria um caso de violência
doméstica, em que seria aplicado o rito dos crimes apenados com detenção, sem a
possibilidade de transação penal. Nogueira (2006, grifo nosso) entende que:
[...] não foi proibida a aplicação do rito sumaríssimo da Lei
9.099/95 aos delitos de menor potencial, ainda que praticados
com violência doméstica e familiar contra a mulher, pois disso
nenhum prejuízo resultará à proteção jurídica da mulher vítima
de violência doméstica ou familiar; pelo contrário, tais lides
penais terão andamento mais célere (artigo 62, Lei 9.099/95);
não pode ser esquecida ainda a garantia do devido processo
legal que a todos deve alcançar (artigo 5º, LIV, CF).
Assim não pensamos. Os ritos são muito diversos, sendo que a adoção do procedimento
da Lei nº 9.099/95 quando deveria ser adotado o dos crimes apenados com reclusão
ou detenção violará a garantia da ampla defesa, já que esses procedimentos são mais
amplos. E, finalmente, se a vítima for homem, sendo o delito apenado com pena
máxima de dois anos, o procedimento será dos juizados especiais, com possibilidade
de transação penal e suspensão condicional do processo.
Com isso, demonstramos a incoerência do legislador: se a mulher é idosa e é vítima
dos delitos do Estatuto do Idoso, cuja pena máxima for de dois anos, em que haja
violência física ou psíquica (consoante art. 7º, I a III, da Lei nº 11.340), sendo tal
delito praticado nas hipóteses dos incisos I a III do art. 5º da Lei nº 11.340, o autor
não será beneficiado com a transação penal e a suspensão condicional do processo, e o
feito deverá seguir o rito dos crimes apenas com detenção ou reclusão, dependendo da
hipótese. Porém, se a vítima for homem idoso, estando nas mesmas situações acima
mencionadas, e a autora for mulher, ela terá direito aos benefícios da Lei dos Juizados
Especiais, e, caso não sejam os institutos aplicados, o feito deverá seguir o rito da Lei
nº 9.099/95, em flagrante violação ao princípio da isonomia.
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Toda essa argumentação serve para evidenciar que, na verdade, o art. 41 da Lei nº
11.340, além de colidir com todo o sistema, é inconstitucional, pois impede que o
autor homem seja beneficiado com os institutos despenalizadores da transação penal e
suspensão condicional do processo; mas permite que seja possibilitada a proposta de
tais institutos quando a mulher for a autora dos delitos de violência doméstica.
2. A violação do princípio da proporcionalidade
A Lei nº 11.340, além de violar o princípio da isonomia, conforme acima exposto,
viola também o princípio da proporcionalidade, ao tornar defesa a aplicação dos
institutos da Lei nº 9.099/95, mormente o da suspensão condicional do processo.
O legislador, no art. 89 da Lei nº 9.099/95, permitiu a apresentação de proposta de
suspensão condicional do processo aos autores de crimes cuja pena mínima seja igual
ou inferior a um ano. Desta forma, é possível a proposta de suspensão condicional do
processo em relação ao sujeito ativo do delito previsto no art. 124 do Código Penal,
que prevê o crime de aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento,
uma vez que as penas vão de 1 a 3 anos de detenção.
Visualiza-se a incoerência do legislador, ao permitir a incidência da proposta de
suspensão condicional do processo no delito mencionado, em que o bem jurídico
vida é violado, e vedá-lo em relação a um delito de lesão corporal leve com violência
doméstica. Essa questão não passou desapercebida ao crivo de Sampaio e Fonseca
(2006, p. 5): “É visivelmente desproporcional que no crime de aborto consentido,
que protege o bem jurídico vida, seja permitido o sursis processual previsto na lei
9.099/95 e na hipótese de ameaça no âmbito familiar contra a mulher não seja possível
a aplicação de qualquer dos institutos despenalizadores da lei 9.099/95”.
Desta forma, entendemos que o art. 41 da lei em comento viola o princípio da
proporcionalidade, uma vez que veda a incidência da suspensão condicional do
processo em relação a crimes mais leves, sendo permitido sursis processual, contudo,
no que tange a delitos mais graves.
3. As medidas a serem adotadas pela autoridade policial
O art. 12 da Lei nº 11.340 determina quais são as medidas a serem adotadas pela
autoridade policial, após a lavratura da ocorrência. Primeiramente, o inciso I reza que
a autoridade policial deverá ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar
a representação a termo, se apresentada. Ora, não haveria necessidade do dispositivo,
uma vez que, conforme pacífico entendimento, a representação não depende de ato
formal, sendo que a simples lavratura do boletim de ocorrência já é suficiente. Além
disso, é curial que a autoridade policial só reduzirá a termo a representação em caso
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de infrações de ação penal condicionada à representação, já que nas de ação penal
privada e incondicionada o ato é desnecessário.
O inciso II determina, de forma despicienda, que a autoridade deverá colher todas as
provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias. A remessa
do expediente em 48 horas é medida constante no inciso III do art. 12. É de se ver
que, em várias delegacias, será impossível que a autoridade policial tome por termo a
representação, colha todas as provas dos fatos e remeta o expediente em 48 horas para
o Juiz, em razão dos inúmeros inquéritos policiais em trâmite. A norma, obviamente,
deverá ser abrandada. O inciso IV reza que deverá ser realizado o exame de corpo de
delito e o inciso V prevê que o delegado ouvirá o agressor e testemunhas. A autoridade
policial deverá ordenar a identificação do agressor (consoante inciso VI do art. 12).
É de se ver que a norma deve ser interpretada de forma sistemática, não sendo crível
que o legislador tenha querido que em todas as hipóteses seja realizada a identificação
criminal. Não se trata, segundo pensamos, de nova hipótese de identificação necessária,
e sim de providência a ser adotada quando o agente estiver nas hipóteses previstas no
art. 3º, incisos I a VI da Lei nº 10.054/00. Nesse sentido é a lição de Gomes (2006):
Leitura rápida desse dispositivo sinalizaria mais uma hipótese
“obrigatória” de identificação criminal (CPP, art. 6º, VIII), na
linha do que já ficou estabelecido no art. 3º da Lei 10.054/2000.
Ocorre que toda interpretação não é só texto, sim contexto.
Justifica-se a identificação criminal (dactiloscópica e fotográfica)
em situações de dúvida ou quando o agente não conta com
identificação civil (não conta com cédula de identidade). Logo,
quando o agente apresenta esta última e não paira nenhuma
dúvida razoável sobre sua individualidade, falta razoabilidade
para a exigência da identificação criminal, que passa a ter
cunho puramente simbólico e punitivo. Pior: punitivismo inútil
(porque, em relação a quem já é civilmente e indiscutivelmente
identificado, absolutamente nada acrescenta a identificação
criminal). Aquilo que nada representa de útil para o Estado e,
ao mesmo tempo, constitui um deplorável constrangimento
para o sujeito, traz em seu bojo o total desequilíbrio exigido
na relação entre custo e benefício: é nisso que reside a falta de
razoabilidade da exigência (abusiva) da identificação criminal.
Assim, entendemos que o agente só poderá ser identificado quando (art. 3º da Lei nº
10.054/00) o agente estiver indicado ou acusado pela prática de homicídio doloso,
crimes contra o patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, crime
de receptação qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação
de documentos públicos (I); houver fundada suspeita de falsificação ou adulteração
do documento de identidade (II); o estado de conservação ou a distância temporal
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da expedição de documento apresentado impossibilite a completa identificação dos
caracteres essenciais (III); constar de registros policiais o uso de outros nomes ou
diferentes qualificações (IV); houver registro de extravio do documento de identidade
(V); o indiciado ou acusado não comprovar, em quarenta e oito horas, sua identificação
civil (VI).
4. A competência
Outra inconstitucionalidade, apontada pelos magistrados do Rio de Janeiro, refere-se
ao artigo 33 da Lei nº 11.340/06, que versa sobre matéria de organização judiciária,
cuja competência legislativa é estadual (art. 125, § 1º, da CF/88). Souza (2007, grifo
nosso), no mesmo esteio, ensina:
Ademais, como fez referência à ‘separação de corpos e
alimentos provisórios e provisionais’, é possível, inclusive,
chegar-se à interpretação de que se a mulher for violentada
nas circunstâncias desta lei (violência doméstica ou familiarart. 7º), poderá pleitear junto ao referido Juizado Especial
separação judicial por culpa, em decorrência da violência
(art. 7º), requerendo cautelarmente a separação de corpos
e cumulativamente alimentos ao ofensor que a violentou,
suprimindo assim a competência, neste caso específico, das
Varas de Família, o que deveria. s.m.j., ter ocorrido através de
Lei estadual de Organização e Divisão Judiciária, podendose questionar, inclusive, a constitucionalidade do referido
dispositivo, qual seja, do artigo 33 da Lei nº 11.340/2006.
Ademais, na esteira deste raciocínio, o próprio legislador
estabeleceu regras de competência para os processos de natureza
não penal, conforme consta no artigo 15.
Santin (2006) entende que o dispositivo viola o princípio do juiz natural, uma vez que
determina a criação de um tribunal especial:
Há previsão até de um tribunal especial para o homem agressor,
o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
com finalidade de julgamento e execução de causas relativas
à violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 14),
indicando que a mulher agressora seria julgada por outro juiz
natural, pela simples condição sexual, em visível afronta ao
princípio de vedação de juízo ou tribunal de exceção (art. 5º,
XXXVII, CF).
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Dias (2006), discordando da tese da inconstitucionalidade, afirma: “Também não há
inconstitucionalidade no fato de lei federal definir competências. Nem é a primeira vez
que o legislador assim age. Como foi afastada a incidência da lei que criou os juizados
especiais, a definição da competência deixa de ser da esfera organizacional privativa
do Poder Judiciário (CF, 125, § 1º)”. A autora exemplifica com a Lei nº 9.278/96, que,
ao regulamentar a união estável, definiu a competência do Juizado da Família.
Com o devido respeito à autora, entendemos que não lhe assiste razão. A Lei nº 9.278/96
disse o óbvio: a competência para o conhecimento das questões de união estável seria
das varas de família. Como a lei, embora federal, tenha fixado a competência das varas
de família, e que isso seria o lógico, não houve qualquer questionamento a respeito. No
caso em tela, a situação é bem diferente: caberia aos Estados, aquilatadas as condições
peculiares de cada região, determinar a competência para as varas criminais, juizados
especiais, ou outras, em observância ao disposto no § 1º do art. 125 da Constituição.
Aliás, o art. 14 da Lei nº 11.340/06 trará inúmeras discussões no que tange à
competência. Reza o dispositivo: “Os juizados de violência doméstica e familiar
contra a mulher, órgãos da Justiça Ordinária, com competência cível e criminal,
poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados,
para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de
violência doméstica e familiar contra a mulher”. De acordo com o artigo, deverão
ser criadas varas especializadas para as questões referentes à violência doméstica,
como já ocorreu no Estado de Santa Catarina. Enquanto não forem criadas as varas
mencionadas, nos termos do art. 33 da mesma lei, as varas criminais acumularão
as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes de
violência doméstica e familiar contra a mulher. Gomes (2006) ensina que a fixação da
competência das varas criminais depende da conjugação de dois critérios:
1º) violência contra mulher e 2º) que ela (mulher) faça parte
do âmbito doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo do
agente do fato. Em outras palavras, a competência será firmada
em razão da pessoa da vítima (“mulher”) assim como em
virtude do seu vínculo pessoal com o agente do fato (ou seja:
é também imprescindível a ambiência doméstica, familiar ou
íntima). Note-se: não importa o local do fato (agressão em casa,
na rua etc.). Não é o local da ofensa que define a competência
(das varas criminais e dos Jufams). Fundamental é que se
constate violência contra mulher e seu vínculo com o agente
do fato. Observe-se que, no futuro, quando criados os Jufams, a
competência deles não terá por base o atual critério dos juizados
(infrações penais até dois anos). Trata-se de competência que
será definida em razão de critérios próprios. Qualquer delito
contra mulher praticado no âmbito das relações domésticas, de
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família ou íntima (não importa a pena nem a natureza do crime:
lesão corporal, ameaça, crime contra a honra, constrangimento
ilegal, contra a liberdade individual, contra a liberdade sexual
etc.) será da competência dos Jufams (e, de imediato, das varas
criminais). Cárcere privado, lesões corporais, tortura, violência
sexual, calúnia, injúria, ameaça etc.: tudo é da competência
imediata das varas criminais (e, no futuro, dos Jufams).
Salienta o autor que:
[...] exceções a essa regra ficam por conta das competências
definidas na Constituição Federal: júri, crimes da competência
da Justiça Federal, crimes da competência da Justiça militar
etc. No caso de homicídio (crime doloso contra a vida) a
competência é do Tribunal do Júri, Diga-se a mesma coisa em
relação à competência da Justiça Federal: agressão do marido
contra a mulher dentro de um avião ou navio (é da competência
da Justiça Federal, CF, art. 109). Note-se que a lei não prevê os
Jufams no âmbito da Justiça Federal.
Pois bem. Imaginemos que uma mulher, com sessenta anos ou mais, seja vítima dos
delitos previstos nos arts. 96 a 99 da Lei nº 10.741 (Estatuto do Idoso), estando a
mesma na situação do art. 5º, I a III, da Lei nº 11.340. Os delitos são de competência
do juizado especial. Os tipos dos arts. 96 a 99 da presente podem configurar hipóteses
de violência física, previsto no inciso I do art. 7º da Lei nº11.340 ou psicológica,
prevista no inciso II do mesmo dispositivo. O art. 5º, por sua vez, estipula que:
Art. 5º. Configura violência doméstica e familiar contra a
mulher, qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e
dano moral ou patrimonial:
I) no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o
espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo
familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II) no âmbito da família, compreendida como a comunidade
formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados,
unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa;
III) em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente
de coabitação.
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O inciso I do art. 5º refere-se ao domicílio da mulher, incluindo as esporadicamente
agregadas, ou seja, uma pessoa do sexo feminino que por qualquer motivo tenha sido
acolhida por uma família (uma mulher que esteja convalescendo, parente ou não, e
que se encontre sob os cuidados daquele núcleo, por exemplo). O inciso II, em franca
redundância, repete, com outra redação, o que já estava disposto no inciso I. Apenas
faz menção a pessoas que se considerem aparentadas, o que causa espécie, pois o
parentesco é estipulado pela lei civil. Finalmente, o inciso III englobaria os casos em
que há uma relação afetiva entre as pessoas, independentemente de coabitação, como
um namoro, um noivado.
Obviamente que, se o marido ou companheiro expõe sua esposa idosa a perigo, sua
integridade e a saúde, física ou psíquica, submetendo-a a condições desumanas ou
degradantes ou privando-a de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado
a fazê-lo, ou sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, faz com que a mesma
sofra a violência física (inciso I do art. 7º da Lei nº 11.340) ou psicológica (inciso II
do art. 7º da Lei nº 11.340), e incide no disposto no art. 99 da Lei nº 10.741/03. E aí
surge a questão: quando a mulher for idosa e vítima dos delitos previstos no Estatuto
do Idoso (art. 96, 97, 98, 99), que constituem formas de violência física ou psíquica
contra a pessoa, praticados nas condições dos arts. 5º, incisos I a III, e 7º, incisos I a
III, da Lei nº 11.340, a competência seria do juizado especial ou da vara de violência
doméstica (ou a criminal, enquanto não criadas estas)?
Segundo pensamos, a competência será da vara de violência doméstica. Primeiramente,
entendemos, juntamente com os Magistrados do Rio de Janeiro, que a estipulação
de competência via norma federal é inconstitucional, nos termos do art. 125, § 1º,
da Constituição, já que se trata de matéria inerente aos Estados. Mas, ainda que se
entenda pela constitucionalidade do art. 33 da Lei nº 11.340, o que fazemos apenas
à guisa de argumentação, entendemos que a competência seria da vara de violência
doméstica. Isso porque a Lei nº 11.340 definiu competência ratione materiae, sendo,
portanto, absoluta. Desta forma, cometido um delito do Estatuto do Idoso, em que a
vítima seja mulher, a competência será da vara de violência doméstica (ou da criminal,
enquanto esta não for criada). Gomes (2006), embora não mencionando ser a lei
inconstitucional, faz críticas à mesma, no que tange à adoção do modelo tradicional
para combater a violência doméstica:
O sistema penal retributivo clássico é gerenciado por uma
máquina policial e judicial totalmente desconexa (seus agentes
não se entendem), morosa e extremamente complexa. Trata-se de
um sistema que não escuta realmente as pessoas, que não registra
tudo que elas falam, que usa e abusa de frases estereotipadas (‘o
depoente nada mais disse nem lhe foi perguntado’ etc.), que só
foca o acontecimento narrado no processo, que não permite o
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diálogo entre os protagonistas do delito (agressor e agredido),
que rouba o conflito da vítima (que tem pouca participação no
processo), que não a vê em sua singularidade, vitimizando-a
pela segunda vez, que canaliza sua energia exclusivamente para
a punição, que se caracteriza pela burocracia e morosidade,
que é discriminatória e impessoal, que é exageradamente
estigmatizante, que não respeita (muitas vezes) a dignidade
das pessoas, que proporciona durante as audiências espetáculos
degradantes, que gera pressões insuportáveis contra a mulher
(vítima de violência doméstica) nas vésperas da audiência
criminal etc. Tudo quanto acaba de ser descrito nos autoriza
concluir que dificilmente se consegue, no modelo clássico de
Justiça penal, condenar o marido agressor. E quando ocorre,
não é incomum alcançar a prescrição. Na prática, a ‘indústria’
das prescrições voltará com toda energia. O sistema penal
clássico, que é fechado e moroso, que gera medo, opressão
etc., com certeza, continuará cumprindo seu papel de fonte de
impunidade e, pior que isso, reconhecidamente não constitui
meio hábil para a solução desse tenebroso conflito humano
que consiste na violência que (vergonhosamente) vitimiza,
no âmbito doméstico e familiar, quase um terço das mulheres
brasileiras.
Batista (2006), no que tange à competência das varas criminais, também critica a
lei: “Neste caso temos um grande perigo, a ser ver obrigado a atender primeiramente
os processos de violência doméstica o Juiz poderá abrir uma grande brecha no que
tange à prescrição dos demais processos”. Com razão os autores. O legislador olvida
que as varas criminais estão abarrotadas de processos e, obviamente, que o Juiz
dará preferência aos processos referentes aos delitos mais graves, como tráfico de
entorpecentes, roubos, furtos, homicídios, deixando para segundo plano as questões
da violência doméstica. Isso acarretará a prescrição das infrações, contribuindo para o
descrédito da lei e do Poder Judiciário.
5. A renúncia à representação
O art. 16 da Lei nº 11.340 reza que “[...] nas ações penais públicas condicionadas
à representação da ofendida de que trata essa lei, só será admitida a renúncia à
representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade,
antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”. A renúncia, causa
extintiva da punibilidade, é tratada no art. 104 do Código de Processo Penal, referente
à ação penal privada, verbis: “O direito de queixa não pode ser exercido quando
renunciado expressa ou tacitamente”. Consoante ensinamento de Tourinho Filho
(1992, p. 515), “[...] pela redação do dispositivo em exame, percebe-se que a renúncia
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antecede à propositura da ação penal, isto é, iniciada a ação penal, já não haverá
lugar para a renúncia”. Desta forma, temos que a renúncia à representação só pode
mesmo ocorrer antes do recebimento da denúncia, motivo pelo qual, Gomes (2006),
acertadamente, afirma:
Nesse ponto, salvo melhor juízo, o legislador escreveu palavras
inúteis. Se a renúncia só pode ocorrer antes do oferecimento
da representação e se o Ministério Público antes dessa
manifestação de vontade da vítima não pode oferecer denúncia,
parece evidente que a lei não poderia ter feito qualquer menção
ao recebimento da denúncia.
O autor entende que não se pode utilizar da analogia para alcançar a retratação, uma
vez que, nessa hipótese, a mesma seria in malan partem. Afirma que:
[...] considerando-se os inequívocos reflexos penais (aliás,
reflexos penais imediatos, não remotos) da retratação da
representação (visto que ela pode conduzir à decadência desse
direito, que é causa extintiva da punibilidade nos termos do
art. 107, IV, do CP), não há como admitir referida analogia.
As normas genuinamente processuais admitem amplamente
analogia (CPP, art. 3º), mas quando possuem reflexos
penais imediatos (ou seja: quando estamos diante de normas
processuais materiais), elas contam com a mesma natureza
jurídica das normas penais. (GOMES, 2006).
Contudo, com propriedade, Souza (2007) defende que o legislador quis se referir
à retratação, uma vez que “[...] se o ‘Parquet’ já ofereceu denúncia é porque teve
a representação, inclusive foi obtida pela autoridade policial (art. 12, inciso I),
conseqüentemente na audiência suso referida, quando muito, poderá a ofendida
desistir ou se retratar da representação oferecida”. No mesmo sentido é a lição de
Cunha e Pinto (2007, p. 75):
Sabendo que renúncia significa abdicação do exercício de um
direito, clara está a impropriedade terminológica utilizada pelo
legislador, quando, na realidade, pretendeu se referir à retratação
da representação, ato da vítima (ou de seu representante legal)
reconsiderando o pedido-autorização antes externado (afinal,
não se renuncia a direito já exercido!).
Assim, em que pese o posicionamento em contrário, entendemos que o legislador se
referiu à retratação, motivo pelo qual não há aplicação da analogia in malam partem
e sim interpretação sistemática, para esclarecer a vontade do próprio legislador. Desta
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forma, em se tratando de retratação da representação é que se necessitará da observância
da formalidade prevista no dispositivo. Outra questão que deve ser analisada concerne
às ações penais privadas. Nelas não há necessidade de representação, e sim de
oferecimento de queixa-crime. Na hipótese de o marido praticar um crime contra a
honra de sua esposa (calúnia, injúria ou difamação), tal conduta se caracterizaria como
violência doméstica, ex vi do disposto no art. 7º., inciso II da Lei 11.340 (violência
psicológica).
Hodiernamente, quando lavrada uma ocorrência em face de crime de ação penal
privada, de competência dos Juizados Especiais, é feito o Termo Circunstanciado,
e, posteriormente, realizada audiência preliminar, em que é tentada a composição
civil, e oferecida proposta de transação penal (se for o caso) 7. Não sendo possíveis a
composição civil e a transação, cabe ao ofendido propor no prazo legal a queixa-crime.
Tratando-se de infração de ação penal privada, é possível que a ofendida renuncie ao
exercício do direito de queixa (arts. 49 e 50 do Código de Processo Penal), ofereça
o perdão (arts. 51 a 56 do Código de Processo Penal), ou deixe ocorrer a perempção
(art. 60, incisos I a IV do Código de Processo Penal), acarretando a extinção da
punibilidade do agente.
Nestes casos, haveria necessidade da designação da audiência especial, exigida pelo
art. 16 da Lei nº 11.340? Entendemos que a resposta negativa se impõe. O art. 16 da
Lei nº 11.340, por ser norma processual com reflexos na esfera penal, que torna mais
dificultosa a extinção da punibilidade, deve ser interpretado restritivamente. Assim
sendo, caso a ofendida deseje renunciar, perdoar, ou deixar a ação perimir, não haverá
necessidade de designação de audiência especial para tais atos.
6. A ação penal
Gomes (2006, grifo nosso) entende que, a partir da entrada em vigor da Lei nº 11.340,
os delitos de lesão corporal (dolosa ou culposa) passaram a ser de ação pública
incondicionada, sendo que os demais (ameaça, crimes contra a honra e costumes)
continuariam a depender de representação. Assim afirma:
Dentre todos os delitos que, no Brasil, admitem representação
acham-se a lesão corporal culposa e a lesão corporal (dolosa)
simples. Nessas duas hipóteses a exigência de representação
(que é condição específica de procedibilidade) vem contemplada
no art. 88 da Lei 9.099/1995 (lei dos juizados especiais). Esse
dispositivo não foi revogado, sim, apenas derrogado (ele não se
7
Já deixamos assentado em outro trabalho (ANSANELLI JUNIOR, 2004, p. 5-7) que entendemos cabível
a transação penal nos crimes de ação penal privada, cabendo ao Juiz o oferecimento da proposta em caso
de negativa da vítima.
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aplicará mais em relação à mulher de que trata a Lei 11.340/2006
- em ambiência doméstica, familiar ou íntima). Note-se que o
referido art. 88 só fala em lesão culposa ou dolosa simples.
Logo, nunca ninguém questionou que a lesão corporal dolosa
grave ou gravíssima (CP, art. 129, § 1º e 2º) sempre integrou
o grupo da ação penal pública incondicionada. Considerandose o disposto no art. 41 da nova lei, que determinou que ‘aos
crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a
mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a
Lei 9.099/1995’, já não se pode falar em representação quando
a lesão corporal culposa ou dolosa simples atinge a mulher
que se encontra na situação da Lei 11.340/2006 (ou seja: numa
ambiência doméstica, familiar ou íntima) (nesse sentido cf.
também: José Luiz Joveli; em sentido contrário: Fernando
Célio de Brito Nogueira). Nesses crimes, portanto, cometidos
pelo marido contra a mulher, pelo filho contra a mãe, pelo
empregador contra a empregada doméstica etc., não se pode
mais falar em representação, isto é, a ação penal transformouse em pública incondicionada (o que conduz à instauração de
inquérito policial, denúncia, devido processo contraditório,
provas, sentença, duplo grau de jurisdição etc.). Esse ponto,
sendo desfavorável ao acusado, não pode retroagir (isto é: não
alcança os crimes ocorridos antes do dia 22.09.06). Não existe
nenhuma incompatibilidade, de outro lado, entre o art. 41 e o
art. 16. O primeiro excluiu a representação nos delitos de lesão
corporal culposo e lesão simples. No segundo existe expressa
referência à representação da mulher. Mas é evidente que esse
ato só tem pertinência em relação a outros crimes (ameaça,
crimes contra a honra da mulher, contra sua liberdade sexual
quando ela for pobre etc.). Aliás, nesses outros crimes, a
autoridade policial vai colher a representação da mulher
(quando ela desejar manifestar sua vontade) logo no limiar do
inquérito policial (art. 12, I, da Lei 11.340/2006).
Em que pese o brilhantismo do autor, assim não pensamos. As hipóteses de violência
doméstica insculpidas nos incisos I a III do art. 7º, da Lei nº 11.340, nas situações do art.
5º, incisos I a III, da mesma lei englobam todos os delitos em que haja violência física
(lesão corporal, dolosa ou culposa, vias de fato), psicológica (ameaça, constrangimento
ilegal) e sexual (assédio sexual). Assim, em todos esses casos, estará sendo o sujeito
passivo (a mulher) vítima de violência doméstica. Portanto, quando o art. 41 afirma
que não será aplicada a Lei nº 9.099/95, significa que deseja que o procedimento dos
delitos mencionados siga os ritos dos crimes apenados com detenção, ou reclusão, mas
não determina que a ação penal seja pública incondicionada nas hipóteses mencionadas
pelo autor (lesão corporal, dolosa e culposa). Do contrário, o art. 16 da mesma lei
estaria em colidência com todo o sistema e com a própria lei. Se o legislador exige
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que a renúncia (leia-se retratação) seja realizada em audiência, é porque continua
a entender que os delitos de lesão corporal, que configuram hipóteses de violência
física, ex vi do inciso I do art. 7º da Lei nº 11.340, dependem de representação. Nesse
sentido é a lição de Nogueira (2006, grifo nosso):
Em princípio, pode parecer que desapareceram também a
representação, como condição de procedibilidade trazida pelo
artigo 88 da Lei 9.099/95 para as hipóteses de lesões corporais
dolosas simples e culposas, bem como a possibilidade de adoção
do rito procedimental previsto nos artigos 77 e seguinte da Lei
9.099/95 para as infrações penais de menor potencial ofensivo,
praticadas em detrimento da mulher na situações tratadas na
Lei 11.340/06. Não é essa, contudo, a interpretação a que nos
filiamos.O que quis a lei vedar foram os benefícios decorrentes
da aplicação da Lei do Juizado Especial Criminal aos crimes
praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher.
Devemos buscar no conjunto das normas trazidas pela nova lei
a vontade e os objetivos do legislador ao editá-la. Para isso, não
podemos interpretar isoladamente determinados preceitos nela
contidos. Devemos conjugar as disposições da lei, sem perder
de vista os valores nela resguardados e as finalidades da lei. É
a interpretação teleológica ou finalística da lei. Desse modo,
segundo nossa interpretação, podem ser extraídas as seguintes
conclusões da conjugação dos artigos 16, 17 e 41 da Lei
11.340/06: b) persiste a exigência de representação nos casos
do artigo 129, § 9º, do CP, e artigo 21, da LCP (por analogia);
no caso do artigo 147 do CP, o parágrafo único exigia e exige tal
condição de procedibilidade; se o legislador pretendesse banir
referida condição da ação penal pública, não teria trazido a
previsão do artigo 16 da lei, que impõe formalidade para a
renúncia à representação.
Destarte, entendemos que os delitos mencionados continuam a ser de ação penal
condicionada à representação.
7. A violação do princípio da individualização da pena
O art. 17 da Lei nº 11.340/06 veda a aplicação de cestas básicas (?) ou outras de
prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento
isolado de multa. O art. 7º, inciso I, da presente lei, conceitua a violência física como
sendo “[...] qualquer conduta que ofenda sua integridade física ou corporal”. E o
inciso II do mesmo dispositivo, a violência psicológica:
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[...] entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique
e perturbe e pleno desenvolvimento e que vise a degradar ou
controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões,
mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do
direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo
à saúde psicológica e à autodeterminação.
Pois bem, estariam incluídos no conceito, obviamente, as vias de fato (art. 21 da
LCP) e a lesão corporal (art. 129 CP). De acordo com o disposto no art. 17 da Lei nº
11.340/06, se o homem pratica a contravenção penal de vias de fato contra a mulher
com quem coabita, em caso de condenação, o juiz não poderia aplicar somente a
pena de multa, sendo obrigado a fixar-lhe pena privativa de liberdade, de 15 dias a 3
meses, e convertê-la (se for o caso) nas penas previstas nos incisos II a VI do art. 43
do CP. Já o inverso, ou seja, se a mulher pratica vias de fato contra seu marido, o juiz
poderá fixar apenas a reprimenda pecuniária, ou converter a privativa de liberdade
em prestação pecuniária (art. 43, I, do CP). Tal dispositivo, além de desrespeitar o
princípio da isonomia, violenta fragrantemente o princípio da individualização da
pena, conferida ao magistrado quando da fixação da reprimenda. Como explica Franco
(1994, p. 141):
[...] embora a Carta Magna afirme que a lei regulará a
individualização da pena, força é convir que a lei poderá dar
parâmetros para atuação judicial, mas não poderá, de modo
algum, obstar que se realize a individualização punitiva. Destarte,
lei ordinária que estabeleça pena fixamente determinada na sua
quantidade, ou que impeça a discricionariedade vinculada do
juiz na sua aplicação ou que não permita, a atividade judicial
concretizadora na sua execução, é lei inaceitável, do ponto de
vista constitucional.
Cabe ao juiz avaliar os requistios dos arts. 59 e 44 do Código Penal para encontrar a
pena mais adequada, sendo defeso ao legislador vedar ao Judiciário a aplicação dessa
ou daquela reprimenda, ainda mais levando-se em consideração apenas a qualidade
da vítima. Pode ser que o juiz, no caso concreto, entenda pela inaplicação da pena de
multa, ou pela conversão em prestação pecuniária; mas tudo depende de uma série
de circunstâncias a serem analisadas pelo magistrado, não sendo lícito ao legislador
obstar a atividade discricionária vinculada do juiz.
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Por fim, necessário se mostra fazer crítica à redação do dispositivo no que tange à pena
de “cesta básica”. Tal pena, com o devido respeito ao legislador, inexiste em nosso
ordenamento. Há a pena de prestação pecuniária, que é revertida para instituições
de caridade ou similares em forma de alimentos. Isso demonstra a ausência de
conhecimento do legislador do sistema penal.
8. As medidas protetivas
O art. 12 da Lei nº 11.340 determina que a autoridade policial reduzir a termo a
representação (inciso I), remeter ao Juiz, em 48 horas expediente apartado para a
concessão de medidas protetivas de urgência (inciso II), e realizar as demais diligências
pertinentes, como requisitar o ACD, colher os depoimentos do agressor e testemunhas,
e, finalmente, remeter o inquérito ao juiz (incisos II a VII). Já o art. 18 da mesma lei
reza que recebido o expediente com pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de
48 horas decidir sobre as medidas protetivas (inciso I), determinar o encaminhamento
da ofendida ao órgão de assistência judiciária (inciso II) e, finalmente, comunicar ao
Ministério Público, para as medidas cabíveis (inciso III).
O art. 19 prevê a possibilidade de que as medidas de urgência sejam concedidas
pelo juiz a requerimento do Ministério Público ou da ofendida (caput), e, inclusive,
ex officio, independentemente de oitiva das partes e de manifestação do Ministério
Público (§ 1º). O § 2º do art. 19 permite a aplicação das medidas de forma isolada
ou cumulada, e alteração da medida a qualquer tempo, para assegurar os direitos da
ofendida. Conforme o art. 22, constatada a prática de violência doméstica e familiar
contra a mulher, o juiz poderá aplicar as seguintes medidas: suspensão da posse ou
restrição do porte de armas (I), afastamento do lar (II), proibição de aproximação da
ofendida (III, a), de contato com a ofendida (III, b), e de frequentação de determinados
lugares (III, c); há ainda a previsão de restrição ao direito de visitas aos dependentes
menores (IV) e prestação de alimentos (V).
Depreende-se pela leitura dos dispositivos que o legislador deseja que o Juiz adote
medidas de caráter cautelar, sem que tenha sido devidamente provocado, com
violação do princípio da inércia da jurisdição. Ora, ao determinar que a autoridade
policial remeta o expediente, em 48 horas, para que o Juiz adote as providências
cabíveis, sendo possível a concessão de medidas sem ajuizamento de ação, através de
profissional habilitado, e, ainda, que tais medidas se consubstanciam em verdadeira
prestação jurisdicional, estamos que o legislador feriu o princípio da inércia. Isso
acarretará enormes riscos aos eventuais agressores. Não que os mesmos não devam
ser punidos; o que se questiona é a forma com que o legislador quer que isso ocorra.
As medidas de afastamento do lar (diversa da cautelar de separação de corpos), fixação
de alimentos, restrição ao direito de visitas, são questões que devem ser discutidas em
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processo de conhecimento próprio, com contraditório (ainda que diferido) e ampla
defesa, produção de provas.
Houve total violação do princípio do devido processo legal, em prol da busca de
proteção da mulher, o que não se nos afigura salutar, uma vez que, à toda evidência,
estará sendo colocado em risco o próprio Estado democrático de direito. A adoção
de medidas desse jaez, como o mandado de afastamento já foi adotado sem sucesso
entre nós. A Lei nº 10.455/02 alterou o parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099/95,
para acrescentar a possibilidade de afastamento do lar do autor do fato: “Em caso
de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu
afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima”.
Tal alteração foi alvo de sérias críticas por parte da doutrina. Primeiramente, diferencia
Rangel (2005, p. 180) a separação cautelar de corpos da medida de afastamento do
lar, enfatizando que “[...] a separação de corpos depende tão somente da simples
constatação da existência do casamento ou da união estável” enquanto que “[...] a
medida de afastamento temporário do lar é mais extrema, de caráter mais enérgico,
mas que tem escopo de preservar a integridade física e/ou psíquica do cônjuge que
sofre agressões, sevícias ou maus tratos na constância da sociedade conjugal ou
estável”.
Firmada a distinção, aplicável no que tange à lei em comento, cabe analisar a
possibilidade de aplicação da medida de afastamento. Em análise ao parágrafo
único do art. 69 da Lei nº 9.099, com a redação conferida pela Lei nº 10.455/02,
Rangel (2005, p. 181) enfatiza que a medida de afastamento do lar é juridicamente
impossível de ser aplicada, já que “[...] afastado do lar, ex officio, pelo juiz, a vítima
(não necessariamente o cônjuge) não necessita, nem pode ser obrigada a promover a
ação”. Além disso, critica o autor a questão do tempo do afastamento, não previsto
pela lei, defendendo que o “[...] juiz do crime não deve adotar, ex officio, tal medida
que, no cível, tem o escopo de preparar uma ação principal, como autoriza o art. 1.562
do CC”. Concluindo, Rangel (2005, p. 182) entende que a Lei nº 10.455/02 viola os
princípios:
a) da estrita legalidade: as normas de restrições e limitações das
liberdades públicas devem ter prazo fixado em lei, sob pena de
se eternizarem e tornarem-se inconstitucionais, pois a regra é
a permanência no lar e nele comportamento compatível com o
ambiente doméstico, e não seu afastamento compulsório; b) da
inércia da jurisdição: o juiz (criminal) não pode obrigar a parte
a demandar no juízo cível ação de separação judicial, divórcio
ou de dissolução da sociedade estável. Razão pela qual não faz
sentido afastar do lar aquele que não deseja ajuizar qualquer ação
no cível, não obstante estar em conflito no âmbito familiar.
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Lima (2005, p. 71, grifo nosso), da mesma forma, entende inconstitucional o dispositivo
do parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099, pois autoriza o juiz a prolatar decisão
sem que tenha sido provocado. Ensina o autor:
Queremos crer que, apesar do dispositivo fazer parecer que
o juiz pode decretar a medida de ofício, tal só será possível
no curso do processo, pois não tendo sido o mesmo ainda
instaurado, o atuar de ofício seria inconstitucional, violando
o princípio acusatório, e o juiz estaria atuando de forma a
promover medida de promoção de ação cautelar, violando o
princípio ne procedat ex officio e o disposto no art. 129, I, da
CF.
Fazendo coro com Rangel (2005), entendemos que o parágrafo único do art. 69 da Lei
nº 9.099, com a redação alterada pela Lei nº 10.455/02, bem como o art. 22, inciso
II, da Lei nº 11.340 violam os princípios da inércia, uma vez que haverá deferimento
de medida sem provocação, não podendo o Juiz obrigar a mulher a intentar ação de
separação, e da legalidade, ante a ausência de prazo fixado pelo legislador. É de se
ver que a Lei nº 11.340/06, da mesma forma que a Lei nº 10.455/02, não fixou prazo
para que o cônjuge seja afastado do lar, com clara violação do princípio da legalidade,
uma vez que, deferida a medida, ela será eternizada, sem que o cônjuge possa voltar
para a casa.
Embora entendamos inaplicável o dispositivo, por questões doutrinárias, passamos
a analisar a questão. Pensamos que deve ser aplicado, por analogia, o disposto no
art. 806 do Código de Processo Civil, no sentido de ser fixado o prazo de trinta dias,
período em que a mulher deve intentar ação de separação, pena de perda de eficácia da
medida. Do contrário, a mulher permanecerá no imóvel, o cônjuge, companheiro ou
companheira afastados, sem que se resolvam questões de partilha de bens, guarda de
filhos, alimentos, o que não se nos afigura aceitável. As alíneas “a” a “c” do inciso III
do art. 22 prevêem a possibilidade de adoção das medidas de proibição de aproximação
da ofendida, de contato com a ofendida e de freqüentação de determinados lugares.
Embora a intenção do legislador tenha sido boa, entendemos que as medidas são
inócuas. Mesmo que o magistrado expeça ordem de proibição de aproximação da
ofendida, é cediço que não haverá quem fiscalize o cumprimento de tal medida. As
polícias civil e militar não terão estrutura suficiente para acompanhar a observância
de tal medida. E, além disso, caso o agente venha a descumpri-la, aproximando-se
da ofendida, temos que o mesmo responderia apenas pelo crime de desobediência,
previsto no art. 330 do Código Penal, em que seria possível a aplicação da transação
penal e suspensão condicional do processo, uma vez que se trata de infração de menor
potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/95), em que não há violência contra a mulher.
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O mesmo ocorrerá no que concerne à medida de proibição de freqüência a locais em
que a ofendida esteja (trabalho, escola). Essas medidas encontram os mesmos óbices
da medida anterior: violação da inércia da jurisdição, vez que haverá medida sem
pedido, sem provocação, e da legalidade, pois o legislador também não fixou prazo de
duração da medida, nem da distância a ser mantida pelo suposto agressor.
Na ausência de critério legal, e apenas à guisa de argumentação, caberá ao Juiz
aquilatar as peculiaridades do local para fixar a que distância deverá o agressor
manter da ofendida. Imaginemos, por hipótese, uma cidade de pequeno porte, em que
o agressor trabalhe em um local próximo ao local de trabalho da ofendida. Expedida
a ordem para que o mesmo permaneça afastado dela por uma distância superior à dos
locais de trabalho dos dois, o agressor teria que sair do emprego para respeitar a ordem
judicial, com prejuízo ao seu próprio sustento. Assim, deverá o magistrado analisar
todas essas questões para, ao mesmo tempo, assegurar os direitos da ofendida, mas
sem sacrifícios de sobrevivência para o agressor.
Na verdade, a falta de critérios e de possibilidade de fiscalização tornará essas medidas
inaplicáveis, sem qualquer resultado prático, fazendo o Poder Judiciário, o Ministério
Público e as polícias caírem em descrédito. A suspensão da posse ou restrição do
porte de armas (inciso I do art. 22) é medida que visa a evitar a prática de crimes
mais graves, como o homicídio. Em relação às carreiras que utilizam armas de fogo,
como os policiais, afirma Nucci (2006, p. 879) que “[...] se o juiz decretar a medida
de restrição do porte, em face da agressão à mulher, deve o superior hierárquico zelar
para o efetivo cumprimento da ordem, sob pena de responsabilização criminal”. O
dispositivo permite que o Juiz restrinja o direito de visitas do agressor aos dependentes
menores (IV) e fixe verba alimentar (V). Tais medidas são eminentemente de natureza
cível, sendo dificultoso ao juiz da vara criminal sopesar todas as circunstâncias para
fixar alimentos, sem qualquer pedido ou o mínimo de cognição. São medidas, com o
devido respeito, teratológicas. A restrição ao direito de visitas aos filhos menores é
medida extrema, dificilmente adotada pelas varas de família, sendo que nessas, há um
processo de cognição.
O que se depreende é que a mulher procurará a autoridade policial, lavrará um simples
boletim de ocorrência, e poderá pedir o afastamento do lar, a fixação de distância do
suposto agressor, proibição de visitas aos filhos e fixação de alimentos, sem que a
jurisdição seja devidamente provocada e sem o mínimo de suporte probatório para
supedanear o juiz em sua decisão. Determinada a restrição ao direito de visitas (sem
provocação da autoridade judiciária), quem teria competência para revogar a medida?
O próprio juiz da vara criminal que deferiu a medida? O juiz da vara de família, em
processo de cognição? E os alimentos, fixados pelo juiz criminal, serão executados
também na vara criminal ou na vara de família?
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Entendemos que, uma vez deferidas as medidas de restrição de direito de visitas
e fixação de alimentos, como as mesmas possuem caráter nitidamente cautelar, as
demais questões devem ser resolvidas na vara cível. Nestas, como haverá a cognição,
o juiz poderá aquilatar os elementos coligidos e, através da persuasão racional, decidir
de forma mais consentânea.
9. Considerações finais sobre a lei de violência doméstica
Depreende-se que a Lei Maria da Penha se trata de mais uma lei simbólica, com o escopo
de fazer crer que, a partir da entrada em vigor do diploma legal, haverá diminuição
dos casos de violência contra a mulher. O que deveria ser feito é a adoção de políticas
públicas que visem a evitar a prática de violência doméstica. Há necessidade de se
investir nas polícias, no Judiciário e no Ministério Público, na Defensoria Pública, na
criação de equipes multidisciplinares, enfim, na criação de uma estrutura para que seja
minimizada a questão da violência doméstica.
Do contrário, a simples edição de uma lei será inócua e fará o Judiciário, o
Ministério Público e a polícia caírem em descrédito perante a sociedade. Finalizando,
concordamos com a Moção aprovada durante o 3º Encontro de Juízes dos Juizados
Especiais Criminais e de Turmas Recursais Criminais do Estado do Rio de Janeiro,
relativa à Lei nº 11.340/06:
Os juízes de Juizados Especiais Criminais e de Turmas
Recursais do Estado do Rio de Janeiro, reunidos entre os
dias 1 e 3 de setembro de 2006, resolvem aprovar a presente
moção de preocupação pela forma assistemática e acientífica
com que têm sido redigidas várias leis penais e processuais
penais nas últimas legislaturas.Entre estas, e motivo principal
desta manifestação, estão as duas últimas leis aprovadas pelo
Congresso Nacional, as Leis nº 11.343/06 - de tóxicos - e
11.340/06 - de violência doméstica, que têm sérias imperfeições
técnicas que comprometem a sua exeqüibilidade. A sucessão
de leis imperfeitas frustra a sociedade e aumenta o sentimento
de desesperança.Urge uma completa revisão das leis penais
e processuais penais e que os projetos de futuras leis destas
naturezas recebam a contribuição das universidades e de órgãos
de classe envolvidos na sua aplicação.
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10. Referências bibliográficas
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www.masterjuris.com.br/ARTIGOview.asp?key=26. Acesso em: 24 set. 2007.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 1992.
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2. JURISPRUDÊNCIA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1o Acórdão.
EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL
PENAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. PODERES DE INVESTIGAÇÃO. BUSCA
DA VERDADE REAL. PRERROGATIVA LIMITADA. PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO EVIDENCIADO.
1. O órgão do Ministério Público, assim como a Autoridade Policial, indubitavelmente,
podem realizar diligências investigatórias a fim de elucidar a materialidade de crime
e indícios de autoria, mediante a colheita de elementos de convicção, na busca da
verdade real, observados os limites legais e constitucionais. 2. Na espécie, conquanto
a escuta ambiental e a filmagem do depoimento da menor sem a sua ciência não
constituam providências vedadas expressamente pela lei, certamente, mostramse desproporcionais, em se considerando não apenas o ferimento aos direitos
constitucionais individuais da menor, como também a existência de medida menos
gravosa para a colheita da prova. Direito líquido e certo não evidenciado. 3. Recurso
desprovido. (STJ, 5a Turma, RMS 22050/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 23/08/2007, DJ
24/09/2007, p. 328).
2o Acórdão.
EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME HEDIONDO
LIVRAMENTO CONDICIONAL. INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO EM EXECUÇÃO
PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. OBTENÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO POR
MEIO MANDADO DE SEGURANÇA. ILEGITIMIDADE. 1. Não é possível, por
meio de mandado de segurança, emprestar efeito suspensivo a recurso de agravo em
execução interposto pelo Ministério Público - em razão de sua ilegitimidade ativa
ad causam, almejando desconstituir a decisão do Juízo das Execuções criminais
que concede a condenado o benefício de livramento condicional. 2. Habeas Corpus
concedido para cassar o acórdão proferido nos autos do MS n.º 841238.3/0-00,
assegurando à ora Paciente o direito de aguardar em livramento condicional a decisão
colegiada a ser tomada
pelo Tribunal de origem no julgamento do agravo em execução ao qual a referida
ação mandamental emprestava efeito suspensivo. (STJ, 5a Turma, RHC 73418/SP,
Rel. Min. Laurita Vaz, j. 14/08/2007, DJ 17/09/2007, p. 317).
3o Acórdão.
EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE EXTORSÃO.
PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO. INCIDENTE DE SANIDADE MENTAL
REQUERIDO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. EXCESSO DE PRAZO
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CONFIGURADO. PROCESSO QUE AGUARDA INDEFINIDAMENTE A
REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS REQUERIDAS PELA ACUSAÇÃO. 1. O
Paciente encontra-se preso cautelarmente por mais de um ano e não foi, sequer,
interrogado, em razão da demora na realização do exame de sanidade mental
requerido pelo Ministério Público, que, por duas vezes marcado, não se realizou pela
ausência de apresentação do Paciente ao Instituto Médico Legal. 2. Uma vez que
não há qualquer previsão para o fim da prestação jurisdicional, sem existir qualquer
incidente relevante, atribuível à Defesa, capaz de afastar o excesso de prazo, o atraso
é completamente desmedido, violando, assim, o princípio da razoabilidade dos prazos
processuais, bem como o direito inerente à dignidade humana, a ponto de ensejar o
relaxamento da custódia cautelar. 3. Ordem concedida para expedir alvará de soltura
em favor do Paciente, se por outro motivo não estiver preso, para que possa aguardar o
seu julgamento em liberdade. (STJ, 5a Turma, RHC 75314/SP, Rel. Min. Laurita Vaz,
j. 14/06/2007, DJ 13/08/2007, p. 398).
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS
GERAIS
1o Acórdão.
EMENTA: ESTUPRO, CORRUPÇÃO DE MENORES E SUBMISSÃO À
PROSTITUIÇÃO OU À EXPLORAÇÃO SEXUAL - PRELIMINARES. 1ª)
DEFENSOR NOMEADO AO RÉU E DEFESA PRÉVIA OPORTUNIZADA CAUSÍDICO QUE OPTOU POR REBATER O MÉRITO DA AÇÃO PENAL POR
OCASIÃO DA INSTRUÇÃO - DEVIDO PROCESSO LEGAL - OBSERVÂNCIA
- PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. A falta de defesa constitui nulidade absoluta,
mas a sua alegada deficiência só anula o processo se houver prova efetiva do prejuízo,
conforme dispõem as Súmulas 523, do STF, e 39, da Jurisprudência Criminal deste
egrégio Tribunal, o que, em absoluto, ficou comprovado no caso dos autos. 2ª)
LAUDOS PERICIAIS SUBSCRITOS POR UM SÓ PERITO - PERITO OFICIAL
- INEXISTÊNCIA DE COMPROMISSO LEGAL - DESNECESSIDADE - ART.
159, §2º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - PARTICIPAÇÃO DO PERITO
MÉDICO DO MINISTÉRIO PÚBLICO - NULIDADE - INOCORRÊNCIA - LAUDO
ASSINADO TAMBÉM POR MÉDICO LEGISTA - AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. A
exigência de dois peritos, nos termos da Súmula 361 do Supremo Tribunal Federal,
refere-se a peritos leigos, sendo este também o entendimento esposado pela Súmula
20, do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. A declaração de
nulidade só pode ser pronunciada quando o defeito jurídico tiver produzido gravame
real e manifesto, ou para a defesa, ou para a acusação, o que não ocorre na hipótese
em questão, em que o Magistrado, que é livre para apreciar as provas e formar seu
convencimento, não está adstrito aos laudos e perícias apresentados no processo,
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firmando a condenação baseado em outras provas. 3ª) MINISTÉRIO PÚBLICO PODER INVESTIGATÓRIO - POSSIBILIDADE. Dentro de uma interpretação
sistemática do sistema processual-PENAL, em sede constitucional, descabido
seria limitar o poder de apuração dos fatos por parte do MINISTÉRIO PÚBLICO,
que é justamente o titular da ‘opinio delicti’, devendo privativamente promover a
ação PENAL pública, como é o caso, nos termos do artigo 129, I, da Constituição
Federal. ESTUPRO - VIOLÊNCIA PRESUMIDA - CONDENAÇÃO - AUTORIA
E MATERIALIDADE COMPROVADAS - PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA
- CONSENTIMENTO DA VÍTIMA - RELACIONAMENTO ANTERIOR DA
VÍTIMA - IRRELEVÂNCIA. Malgrado súmula deste Tribunal no sentido de que a
presunção de violência pela idade da vítima é relativa, podendo ser elidida caso se
demonstre que a mesma possuía pleno discernimento em matéria de relacionamento
sexual e para este consentiu, o critério cronológico deve prevalecer. ARTIGO 244A, DA LEI Nº 8.069/1990 - CASO CONCRETO - PROVAS - ATIPICIDADE DA
CONDUTA - ABSOLVIÇÃO - MANUTENÇÃO - NECESSIDADE. Impõe-se
a absolvição quando não restaram comprovados os elementos necessários para a
configuração do crime, quais sejam, a submissão das menores às ordens do réu e a
habitualidade da conduta, com o objetivo de obter lucro. ART. 218, DO CÓDIGO
PENAL - CRIME MATERIAL - NÃO-CONFIGURAÇÃO - AUSÊNCIA DE PROVA
DA CORRUPÇÃO OU DA FACILITAÇÃO DA CORRUPÇÃO - VÍTIMAS COM
EXPERIÊNCIA SEXUAL PRETÉRITA - MENORES JÁ CORROMPIDAS. Não
se caracteriza o delito de corrupção de menores se as vítimas já eram corrompidas,
possuindo experiência sexual anterior. Não se tratando de crime formal, mas material,
o tipo exige, para sua caracterização, a comprovação de que as menores efetivamente
foram corrompidas ou tiveram facilitada a corrupção, após os fatos. Rejeito as
preliminares e, no mérito, nego provimento a ambos os recursos. (TJMG, Processo
1.0611.04.010264-6/001, Relator Judimar Biber, Julgamento 25/09/2007, Publicação
02/10/2007, por Unanimidade Rejeitaram Preliminares e Negaram Provimento aos
Recursos).
2o Acórdão.
EMENTA: PROCESSO PENAL - AGRAVO EM EXECUÇÃO - PENA DE
MULTA - AÇÃO DE EXECUÇÃO - TITULARIDADE - MINISTÉRIO PÚBLICO
- CONSEQÜÊNCIA DA NATUREZA JURÍDICA DA SANÇÃO PENAL, DO
SISTEMA PÚBLICO ACUSATÓRIO E DOS PRINCÍPIOS DE DIREITO E DE
PROCESSO PENAL. Na medida em que a pena de multa não perde o caráter de
sanção PENAL, cabe ao MINISTÉRIO PÚBLICO, a despeito das alterações operadas
pela Lei 9.298/96, promover a sua execução, por ser o legitimado constitucionalmente
para a persecutio criminis in iudicio, além de ser o único órgão aparelhado, em termos
práticos, para zelar pelo cumprimento das funções da pena e pelos princípios do direito
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PENAL. Recurso provido. (TJMG, Processo 1.0000.07.453802-6/001, Relator Hélcio
Valentim, Julgamento 31/07/2007, Publicação 11/08/2007, Deram Provimento).
3o Acórdão.
EMENTA: “”HABEAS CORPUS”” - “”MÁFIA DO CARVÃO”” - MINISTÉRIO
PÚBLICO - PODER INVESTIGATÓRIO - POSSIBILIDADE. Dentro de uma
interpretação sistemática do sistema processual-PENAL, em sede constitucional,
descabido seria limitar o poder de apuração dos fatos por parte do MINISTÉRIO
PÚBLICO, que é justamente o titular da “”opinio delicti””, devendo privativamente
promover a ação PENAL pública, como é o caso, nos termos do artigo 129, inciso I, da
Carta Magna. PRESENÇA DOS REQUISITOS DA PREVENTIVA - CONDIÇÕES
PESSOAIS - IRRELEVÂNCIA - MATÉRIAS MERITÓRIAS - ANÁLISE VEDADA
- CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE - Se restam evidenciados todos
os elementos para justificar a segregação preventiva, fundados em dados concretos dos
autos, mormente tendo em vista a periculosidade dos agentes, não há dúvida de que
a segregação cautelar não pode ser afastada. As circunstâncias de natureza pessoal,
tais como primariedade, bons antecedentes, serviço lícito, família e residência em
nada se relacionam com os motivos determinantes que levaram à segregação, sendo
irrelevantes para a análise da liberdade, de modo que não impedem a segregação,
mormente em crime onde há enorme clamor PÚBLICO. A avaliação de questões que
envolvam o próprio mérito da ação PENAL não é possível na via estreita do remédio
constitucional, por exigir análise completa das provas. Ordem denegada. (TJMG,
Processo 1.0000.07.449536-7/000, Julgamento 27/03/2007, Publicação 04/04/2007,
por Unanimidade Denegaram a Ordem).
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3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA
3.1 LIMITES CONSTITUCIONAIS À COMPETÊNCIA POR
PRERROGATIVA DE FUNÇÃO: ANÁLISE CRÍTICA DA SÚMULA 721 DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
MAÍRA CARVALHO LUZ
Advogada
Integrante da Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares - RENAP
1. Teor da Súmula a ser comentada
Súmula 721 do STF – (DJU de 9/10/2003, publicada também no DJU de 10 e
13/10/2003): a competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro
por prerrogativa de função estabelecida exclusivamente pela Constituição Estadual.
2. Razões
A repartição de competência jurisdicional no tocante à competência originária para
processo e julgamento de crimes comuns e de responsabilidade pelos tribunais é
fixada na Constituição da República, de forma expressa e exaustiva, vedada qualquer
interpretação extensiva. Da mesma forma, ocorre com os tribunais estaduais, cuja
competência há de ser fixada, em sede constitucional estadual, segundo expresso
mandamento do art. 125, § 1º, da Constituição Federal. Ou seja, os limites da
competência dos tribunais estão no texto constitucional, seja esse tribunal federal ou
estadual, de modo que o legislador ordinário não pode ultrapassá-los, acrescentando
nova competência ao rol exaustivo posto na Constituição, como se constituinte
fosse.
3. Justificativa
Apesar de a Constituição Federal de 1988 delimitar o âmbito dos agentes políticos que
usufruem a garantia do foro por prerrogativa de função, e, conseqüentemente, estender
a referida prerrogativa àqueles agentes públicos que exerçam funções simétricas,
desde que previstas nas respectivas Constituições Estaduais, há controvérsia quanto à
definição de quais funções possuem a referida simetria. Com isso, por vezes, a Súmula
721 do STF vem sendo descumprida, ao ter Tribunais que julgam crimes dolosos
contra a vida, praticado por agente público que não usufruem a aludida prerrogativa
de foro.
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4. Comentários
4.1. Aspectos introdutórios
O agente político que goza de foro especial por prerrogativa de função, estabelecido
pela Constituição Federal, na hipótese de cometer crimes dolosos contra a vida, será
processado e julgado pelo respectivo foro especial e não pelo Tribunal do Júri, tendo
em vista que a própria Carta Magna prevê essa exceção. Isso significa que a regra de
competência do Tribunal Popular não é absoluta, pois sempre que houver instituição
de competência especial por prerrogativa de função na Constituição Federal, haverá
o afastamento da norma geral. É o que acontece nos art. 29, X, da CF, em que o
Prefeito será julgado pelo Tribunal de Justiça; art. 96, III, da CF, que prevê que Juízes
e Promotores também serão julgados pelo Tribunal de Justiça; art. 102, I, b e c , art.
105, I, a, e art. 108, I, da CF/88.
Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2006) esclarecem que, tratando-se de duas
competências constitucionais, deve prevalecer a garantia da prerrogativa de função,
específica, sobre a genérica instituição do Júri para o processo e julgamento dos
crimes dolosos contra a vida cometidos por agentes públicos que gozam do referido
foro especial estabelecido na Constituição Federal, sendo essa a linha adotada pela
jurisprudência brasileira.
Caso o crime doloso contra a vida tenha sido praticado em co-autoria, tendo, um dos
réus, foro por prerrogativa de função e o outro não, haverá separação dos processos,
e aquele que não tem prerrogativa deverá ser julgado pelo Tribunal do Júri, uma vez
que, nesse caso, prepondera a regra constitucional sobre a competência do Tribunal
do Júri em detrimento da norma de lei ordinária (Código de Processo Penal) sobre a
competência por conexão ou continência.
Os Estados membros podem, no exercício de seu poder constituinte decorrente,
estabelecer privilégios de foro para seus agentes políticos em suas Constituições
Estaduais, em correspondência com os casos previstos na Constituição Federal. O
art. 125 da Constituição Federal prescreve que os Estados organizarão sua Justiça,
observados os princípios estabelecidos nessa Constituição, acrescentando, no § 1º,
que a competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a Lei
de Organização Judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça. Compreende-se, assim,
que o foro privativo deferido às autoridades estaduais deverá limitar-se ao julgamento
de crimes estaduais, excluídos os juízos naturais previstos na Constituição Federal, de
modo que, tratando-se de crimes federais ou eleitorais, a competência será a prevista
na Carta Maior. A regra é que haja obediência às normas constitucionais e seja feita
uma interpretação restritiva quanto às normas estaduais.
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4.2. Entendimento jurisprudencial acerca da Súmula 721 do STF
O Supremo Tribunal Federal tem considerado constitucionais os dispositivos estaduais
que atribuem ao Tribunal de Justiça o processo e o julgamento de crimes dolosos
contra a vida praticados por certas autoridades locais, tais como, deputados estaduais
e secretários de Estado. Argumenta-se que, em razão do princípio da simetria com
o centro, os deputados federais serão julgados pelo STF, e os deputados estaduais
deverão ser julgados pelos Tribunais de Justiça dos Estados, com amparo legal no art.
27, §1º, da CF/88, no art. 102, I, b, da CF/88 - simetria com os membros do Congresso
Nacional e no art. 125, caput, da CF/88.
Assim, por se tratar de matéria constitucional, o Supremo Tribunal Federal aponta
para a declaração de inconstitucionalidade ou para a suspensão, em sede de liminares,
da eficácia de dispositivos de Constituições Estaduais que outorgam competência
originária a seus tribunais para processar e julgar ações instauradas contra seus
agentes políticos, cujos símiles, no âmbito federal, não detenham prerrogativas de
foro conferidas pela Carta da República (ADI 2797/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence;
ADI 2860/DF, Rel. Min. Menezes Direito; ADI 2.587/GO, Rel. Min. Maurício Corrêa;
ADI 882-0/MT, Rel. Min. Maurício Corrêa; ADI 2.553-8/MA, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence).
Moraes (2007) defende que os deputados estaduais e secretários de Estado serão
processados e julgados pelo Tribunal de Justiça de seu respectivo Estado, incluindo
os crimes dolosos contra a vida, desde que expressamente previstos na Constituição
Estadual. Argumentam que as respectivas Constituições estaduais, com base no
exercício do poder constituinte derivado decorrente de auto-organização, corolário
da autonomia federal prevista no art. 18 da Carta Federal, poderão atribuir a seus
agentes políticos as mesmas prerrogativas de função de natureza processual penal
que a Constituição Federal concedeu a seus correspondentes. Em Minas Gerais, a
Constituição estadual prevê que o foro privativo do Secretário de Estado e dos
deputados estaduais será perante o Tribunal de Justiça, nos termos do art. 93, § 2º, e
do art. 56, § 1º.
Nessa linha de raciocínio, Oliveira (2007) explica que a competência dos Tribunais
de Justiça para o julgamento dos crimes comuns praticados pelos deputados estaduais
decorre do disposto no art. 27, § 1º, da Constituição Federal, que prevê igual tratamento
aos referidos parlamentares no que diz respeito à inviolabilidade e imunidades, e do
contido na norma geral do art. 25 da Constituição Federal, que explicita o princípio
constitucional federativo, pois não há nenhuma determinação expressa de foro privativo
aos deputados estaduais. Com isso, o campo de exercício dos poderes dos referidos
deputados e, daí, de sua responsabilização penal, deverão limitar-se ao âmbito da
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jurisdição do Poder Público estadual, no que se refere às infrações a bens e valores
cuja proteção não se estenda a interesses federais da União. Assim todos os crimes da
competência da justiça estadual, quando praticados pelos deputados estaduais, serão
julgados pelo Tribunal de Justiça, incluindo os crimes dolosos contra a vida. Esses
parlamentares submetem-se ao critério de competência de regionalização, desde que
não se trate de crime da competência da Justiça Eleitoral ou da Justiça Federal.
No julgamento da ADI 2587/GO, em que foi relator o eminente Min. Maurício
Corrêa, a Suprema Corte, por maioria, reconheceu a constitucionalidade de criação,
na Constituição do Estado de Goiás, de foro privativo por prerrogativa de função
aos Procuradores de Estado e da Assembléia Legislativa e aos Defensores Públicos,
rejeitando-a, porém, em relação aos delegados de polícia. Argumentou-se que as
referidas funções seriam necessárias ao Estado democrático de direito, ao contrário
do que ocorreria com os delegados de polícia, funcionalmente subordinados aos
governadores estaduais e submetidos a controle externo pelo Ministério Público. Há
que se registrar, contudo, que a Suprema Corte já decidiu que o direito constitucional
estadual pode estabelecer casos de competência originária, em razão da pessoa,
atribuindo ao Tribunal de Justiça o julgamento, por exemplo, ao Chefe de Polícia
(Precedente: STF, RT 706/420). Já no HC 78.168/PB, em que foi relator o eminente
Min. Néri da Silveira, o STF decidiu, em sessão plenária, que Procurador de Estado
não tem prerrogativa de função.
A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no HC 40.388/RJ, em que foi relator
o eminente Min. Gilson Dipp, entendeu que a Constituição estadual pode atribuir
competência ao respectivo Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente,
vereador, por ser agente político, ocupante de cargo eletivo, integrante do Legislativo
municipal, o qual encontra simetria com os cargos de deputados estaduais, federais
e senadores, sendo que estes, por força do disposto na própria Constituição Federal
(art. 102, I, alínea b), têm foro por prerrogativa de função perante o Supremo Tribunal
Federal, e aqueles perante os respectivos Tribunais de Justiça, conforme Cartas
estaduais, tendo em vista, inclusive, a regra contida no art. 25, parte final, da Carta
da República. Precedente, em sentido contrário, STJ, HC 11.939/RJ, Rel. Min. Edson
Vidigal.
Posto isso, verifica-se que parte da jurisprudência interpreta a Súmula 721 do STF
no sentido de que o poder constituinte estadual comporta um juízo discricionário,
cuja matéria é infensa a exame pelo Poder Judiciário, de modo que agentes políticos
previstos exclusivamente pela Constituição estadual, que exerçam atribuições em que
haja simetria com os cargos políticos previstos pela Carta Magna, como os vereadores,
por exemplo, poderão gozar do foro especial por prerrogativa de função, ainda que
cometam crimes dolosos contra a vida.
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5. Conclusão
O julgamento dos crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal do Júri é uma garantia
constitucional, que advém da previsão do Título dos Direitos e Garantias Fundamentais,
do Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, da Constituição
Federal. Trata-se de competência em razão da matéria (crimes dolosos contra a vida,
sejam consumados ou tentados) e qualificada pela Constituição Federal. Carneiro
(2007) explica que o Tribunal do Júri é exemplo de competência funcional, pois pode
caber a um juiz de Vara Criminal comum instruir o processo, ao juiz da vara privativa
do Júri proferir a sentença de pronúncia e presidir o Júri, aos jurados responder aos
quesitos, ao juiz fixar a pena e, por fim, ao juiz das execuções criminais apreciar os
incidentes surgidos durante a execução da pena. Trata-se de competência funcional
horizontal, tramitando o processo no mesmo grau de jurisdição. Conclui, referindose a Grinover, que a competência funcional é sempre absoluta, pois é instituída em
razão do interesse público, e não da conveniência das partes. Não comporta, portanto,
modificação, seja legal ou convencional.
A competência por prerrogativa de função concedida às autoridades estaduais, inclusive
com relação aos crimes dolosos contra a vida, decorre do princípio da simetria, do
poder auto-organizatório dos Estados-membros e da autonomia dos entes federativos,
nos termos art. 18 da Constituição Federal. Entretanto, como bem observam
Mirabete (2007), Bulos (2007), Lenza (2004), Grinover; Fernandes; Gomes Filho
(2006), se o foro especial for estabelecido exclusivamente pela Constituição Estadual,
por lei processual ou de organização judiciária, o autor de crime doloso contra a vida
deverá ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, visto que tais preceitos
jurídicos não podem excluir a competência do Juízo instituído pela Carta Magna.
Como bem afirma Bulos (2007), o art. 5º, XXXVII, d, da Constituição Federal, é o
paradigma a ser seguido pelas ordens jurídicas estaduais.
Assim, a instituição de foro especial por prerrogativa de função exclusivamente pela
Constituição Estadual seria uma forma de infirmar a vigência e a eficácia da referida
Carta Magna, tendo em vista que os valores instrumentais da efetivação da justiça, como
a segurança pública e as garantias penais, estariam sendo gravemente transgredidas.
Isto é, priorizar a competência por prerrogativa de função instituída exclusivamente
pela Constituição Estadual em detrimento da competência constitucional do Júri seria
violar os contornos da segurança jurídica da cidadania. Pois, como bem explica Silva
(2005), o princípio constitucional da segurança jurídica, previsto no art. 5º, caput,
da CF/88, visa assegurar o direito à igualdade, de modo que a segurança legítima
do direito é apenas aquela que signifique garantia contra a arbitrariedade e contra as
injustiças.
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Ademais, ressalvadas as hipóteses previstas na Constituição Federal, preterir a
competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida para
Tribunais de segundo grau compostos somente por membros togados, é uma afronta
à vontade do legislador constituinte originário que elegeu o Júri como competente
para julgar crimes de tal gravidade (competência em razão da matéria e qualificada
pela Constituição Federal, art. 5º, XXXVIII) sem distinção das pessoas acusadas, que
devem ser julgadas pelo mesmo procedimento, de modo que a decisão dos jurados na
decisão da causa é soberana, não podendo ser substituída pelo entendimento do juiz
togado, o que desrespeita o direito constitucional da igualdade.
Atribuir o foro por prerrogativa de função para o processamento e julgamento dos
crimes dolosos contra a vida cometidos por agentes políticos, cujos cargos estão
previstos exclusivamente na Constituição Estadual, por conseguinte, é inconstitucional
e afronta a Súmula 721 do Supremo Tribunal Federal. Isso significa que as Constituições
Estaduais podem estabelecer foro privilegiado para outros cargos além daqueles que
tenham simetria com a Constituição Federal, nos termos do art. 125 da Carta Magna,
mas tal prerrogativa não alcançará os crimes dolosos contra a vida.
6. Referências bibliográficas
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 15. ed. São Paulo: Saraiva,
2007.
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; FILHO, Antônio
Magalhães Gomes. As nulidades no processo penal. 9. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Método, 2004.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação
constitucional. 7. ed. atual até a EC 55/07. São Paulo: Atlas, 2007.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. Belo Horizonte: Del Rey,
2007.
SILVA, José Afonso da. Constituição e Segurança Jurídica. In: ROCHA, Cármen
Lúcia Antunes. (Org.). Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato
jurídico perfeito e coisa julgada, estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda
Pertence. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005.
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4. TÉCNICAS
4.1 RECURSO ESPECIAL CRIMINAL
JOSÉ FERNANDO MARREIROS SARABANDO
Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais
FEITO Nº
: XXXXX
COMARCA
: XXXXX
ESPÉCIE
: RECURSO ESPECIAL CRIMINAL
RECORRENTE : XXXXXX
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
INCIDÊNCIA PENAL: ARTIGO 14 DA LEI FEDERAL Nº 10.826/03
Eminente Desembargador XXX
Colendo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais
Eminentes Ministros do Egrégio Superior Tribunal de Justiça
Eminente Subprocurador-Geral da República
Pelo Insigne Ministério Público Federal
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, por um de seus
Procuradores de Justiça, o ora signatário, em face da interposição, pelo réu em
epígrafe, intermédio de combativa defesa constituída, e em face do acórdão de fl. ___
(apelação) do presente RECURSO ESPECIAL, com fulcro nos artigos 105, III, “a”,
da Constituição Federal, e 26 e seguintes da Lei Federal nº 8.038/90, a esse respeito
vem da seguinte forma se posicionar.
O inconformismo em tela, na fase do primitivo juízo prelibador, merece ser admitido,
uma vez que é próprio, mostra-se tempestivo (vide fls. ___ e ___, ambas do
segundo volume dos autos), ostenta regularidade formal, encontra-se regularmente
processado, vêem-se esgotadas as instâncias recursais ordinárias e é detectável, ainda,
o legítimo interesse recursal, este advindo da quase total sucumbência imposta ao ora
recorrente.
No que toca, porém, à satisfação do pressuposto do prequestionamento, há de se levar
em conta algumas considerações não sem alguma complexidade. De fato, tem-se que
a defesa pleiteou a fixação da pena corporal no seu limite mínimo legal por ocasião
das razões de apelação (fls. 313/319-vol.2), fazendo-o, no entanto, sob a roupagem
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de pedido de decote da circunstância agravante da reincidência. Muito embora não
haja o defensor constituído expendido sequer mínimos esforços para justificar o seu
importante posicionamento (vide fl. 319-vol.2), lógica é a conclusão no sentido de que
esperava, com o desaparecimento da agravante na instância recursal, a estipulação da
sanção privativa de liberdade no seu patamar mínimo.
O problema é que o prequestionamento vem sendo erigido, e não é de agora, a um
requisito com características de verdadeira charada, o que acabou por transformá-lo
em um filtro recursal de quase impossível transponibilidade, em prejuízo franco e
claro dos princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal. Não
é por outro motivo que, na abalisada advertência de Pantuzzo1, vem se constituindo
na causa mais freqüente de inadmissão dos recursos excepcionais. No caso em apreço,
infere-se, claramente, que a defesa pretendia a fixação da pena no seu limite mínimo,
embora haja se limitado a propugnar, pura e simplesmente, pelo decote da agravante.
Ora, tendo o acórdão mantido a circunstância (e aqui não se está, embora possa parecer,
adentrando ao mérito da irresignação especial aviada), a uma primeira análise pode
exsurgir a impressão – errônea, registre-se – de que o recurso não se vê devidamente
prequestionado, já que, nas razões, o que se pede é a estipulação da sanção corporal
em seu patamar mínimo legal.
Não obstante a não-exigência do requisito, por parte do constituinte de 88, o que
levaria ao raciocínio lógico de José Afonso da Silva (apud PANTUZZO, 2004, p.
74) no sentido de que “[...] o silêncio constitucional desonera o recorrente da
demonstração do prequestionamento”, compartilhado por outros mestres no assunto2,
o STF vem sistematicamente exigindo o cumprimento, pelo recorrente especial ou
extraordinário, do ultracomplexo pressuposto. Diz-se prequestionada a matéria,
federal ou constitucional, quando ela foi objeto de suscitação, pela parte, e de debate,
pelo tribunal a quo, sendo imprescindível, pois, que o colegiado do Judiciário local
haja emitido, a respeito dela, juízo de valor explícito.
A questão assume complexidade ímpar, no entanto, quando se tenta abstrair a
explicitude, ou mera implicitude, do entendimento estampado na decisão proferida e
que é objeto de impugnação extraordinária (lato sensu). Não satisfaz, para o primeiro
e para o segundo juízos de prelibação, lamentavelmente, que a questão tenha sido
meramente proposta e decidida, tornando-se res controversa, res dubia, mas, sim, que
1
PANTUZZO, Giovanni Mansur Solha. Prática dos recursos especial e extraordinário. 3. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 74.
2
O então Ministro do STF Carlos Mário Velloso, em palestra publicada na RDA 175/9, alertou: “[...]
o prequestionamento, sob o pálio da CF de 1988, não terá vez, ao que penso. É que o constituinte quis
alargar o raio de ação do recurso especial. Isto está evidente no texto constitucional” (apud PANTUZZO,
2004, p. 75, nota de rodapé nº 7).
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ela haja sido expressa e inequivocamente apreciada pelo tribunal local, razão por que
a formulação da questão pela parte, exige-se, haverá de ter apresentado todos os seus
contornos possíveis e imagináveis.
Apesar de a dicção do Enunciado de número 282 da Súmula do STF apenas aludir
à mera ventilação da questão (“[...] é inadmissível o recurso extraordinário quando
não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”), na prática o que
se vem exigindo é muito mais do que isso, já que se deliberou emprestar, ao texto
do enunciado em tela, um rigor formalístico exagerado, logrando-se, com isso, uma
limitação severa das admissões de recursos que tais, em detrimento, data venia, do
ideal de melhor prestação jurisdicional possível. O direito sumular não se compraz,
e nem poderia se comprazer, com as minúcias do direito processual, havendo, ao
contrário, de se caracterizar pela interpretação literal dos enunciados, marcando-se
pela agilidade, pelo repúdio à teleologia.
Ao se erguer às raias da quase impraticabilidade um remédio processual que deveria, ao
contrário, ser marcado por maior liberalidade, dada a importância de sua significação
social, o que se obtém é, na quase totalidade das vezes, que somente sejam objeto
de enfrentamento por parte do STF ou do STJ aquelas irresignações formalmente
perfeitas, produto quase exclusivo apenas dos mais preparados escritórios de advocacia,
longe do alcance da imensa maioria daqueles que batem às portas do Judiciário. É a
consagração do extravasamento dos critérios de razoabilidade, é a prática do capricho,
é o enaltecimento da vaidade pessoal, do poder de se obstaculizar, mediante regras de
difícil observância, o acesso do povo à Justiça.
Para a satisfação do pressuposto do prequestionamento, não se perdendo de vista
jamais a importância fundamental dos princípios da ampla defesa, da legalidade, do
devido processo legal, do contraditório e do acesso ao Judiciário, há de bastar ter-se
em mira a regra genérica da não-supressão de instância, mediante a constatação de
que o tema, federal ou constitucional, haja sido objeto de apreciação e deliberação
pelo tribunal a quo. Assim, forte no que ora se aponta como um inconformismo
devidamente prequestionado, in casu, há de se dar seguimento, de fato, ao especial
aviado. Tratando-se, então, de hipótese de plena viabilidade do remédio eleito, tal
circunstância, evidentemente, dá ensejo ao processamento do recurso em pauta, ou,
se já na fase do segundo juízo de prelibação, propicia o conhecimento do mesmo pela
Corte ad quem, o egrégio Superior Tribunal de Justiça.
Tais argumentos são suficientes, pois, para se concluir que o presente especial
está a merecer seguimento e conhecimento, salvo o muito melhor juízo tanto do
Excelentíssimo Desembargador do colendo Tribunal de Justiça de Minas Gerais,
digna autoridade judiciária incumbida do primeiro juízo prelibador, como dos
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Excelentíssimos Ministros do egrégio Superior Tribunal de Justiça, haja vista o
preenchimento, a contento, de todos os seus pressupostos de admissibilidade.
Já no que toca ao mérito, propriamente dito, do apelo especial interposto, tem-se que
razão assiste ao réu, pois que, com efeito, o que ocorreu foi um equívoco por parte
da douta turma julgadora. Procedente vem a ser, pois, a r. linha de argumentação
da combativa defesa (fls. 367/371-vol. 2 do feito). Com efeito, os desembargadores
acolheram a tese da plena compensação entre as circunstâncias atenuante da confissão
espontânea e agravante da reincidência, como às expressas ficou consignado no corpo
do acórdão, inclusive em sua ementa (vide fls. 354/362-vol. 2).
Na fase do cômputo matemático da questão, todavia, é que o lapso surgiu: o magistrado
monocrático emprestara à circunstância agravante da reincidência peso bem maior
(6 meses) do que à atenuante da confissão espontânea (3 meses), como se deduz,
claramente, da análise do raciocínio do juiz sentenciante, à fl.292-vol. 2 dos autos. Ao
se referir a esse raciocínio, contudo, assim se manifestou a relatora do acórdão:
No entanto, entendo que ambas (as circunstâncias) se
equiparam, a confissão por se ater à personalidade do agente e a
reincidência por expressa disposição legal, nos termos do artigo
67 do Código Penal.
Assim, equiparando tais circunstâncias, sua pena final deverá
ser mantida em dois anos e três meses de reclusão [...] (fl. 359vol. 2).
Ora, deixando claro os sobrejuízes (o voto da relatora foi integralmente acompanhado
pelo revisor e pelo vogal) que ambas as circunstâncias, agravante e atenuante,
equiparavam-se plenamente, o cálculo matemático correto seria o recuo da pena
privativa de liberdade ao seu limite legal mínimo, ou seja, dois anos de reclusão (art.
14 do ED), mas o que aconteceu foi, lamentavelmente, que não atentaram para o fato
de que o juiz sentenciante avaliara diferentemente ambas as circunstâncias, como já
aqui registrado, conferindo peso em dobro superior à reincidência, em comparação
com a confissão espontânea.
Assim, correta a tese de que se vulnerou o dispositivo de número 59 do Código Penal,
havendo injustiça a ser corrigida pelo Judiciário. Viável, portanto, o presente remédio
processual, para se atingir referido objetivo. Dessarte, há de se falar em contrariedade
ou negativa de vigência a texto de lei federal (art. 59, CP), in casu, sendo hipótese,
com redobradas vênias, de provimento do presente apelo especial, para a específica
finalidade de estipulação da pena corporal em seu limite mínimo legal.
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Ex positis, em resumo é esta a manifestação do MPMG: admissão do recurso em tela,
fase do denominado primitivo juízo de prelibação, e, ato contínuo, conhecimento do
mesmo pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça; no mérito, por fim, haverá de ser o
presente Recurso Especial provido, porquanto consistente a sua linha de argumentação,
havendo o decisório colegiado de ser reformado.
Com essas humildes considerações, em conclusão propugna-se ao eminente
Desembargador do colendo Tribunal de Justiça de Minas Gerais seja deferido o
seguimento do presente recurso especial, por se encontrarem integralmente preenchidos
os indispensáveis pressupostos de sua admissibilidade.
Roga-se aos eminentes Ministros do egrégio Superior Tribunal de Justiça, por seu turno,
o conhecimento da censura em foco, e, no mérito, o seu provimento, por consistência
das rr. razões, corrigindo-se, por via conseqüencial, o acórdão vergastado, fixando-se
a apenação mínima em desfavor do réu e ora recorrente, evidentemente para tanto
devendo serem acrescidas as indispensáveis luzes do alumiado Ministério Público
Federal.
Belo Horizonte, 12 de junho de 2007.
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SEÇÃO III – DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
SUBSEÇÃO I – DIREITO CIVIL
1. ARTIGOS
1.1 UNIÕES HOMOAFETIVAS – UMA NOVA MODALIDADE DE FAMÍLIA?
LIDIANE DUARTE HORSTH
Promotora de Justiça no Estado de Minas Gerais
Especialista em Direito Civil pela PUC-Minas
SUMÁRIO: 1. Introdução. 1.1. Origem da família. 1.2. União livre entre homem
e mulher como modalidade de família. 1.3. A família na Constituição Federal de
1988. 2. A relação homoafetiva como entidade familiar. 3. Relacionamentos afetivos
homossexuais e união estável heterossexual: espécies de um mesmo gênero?
4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Antes de adentrar no estudo do tema proposto, mister se impõe salientar, conforme
Thomaz (2003, p. 84), que “[...] não se pode pensar em sociedade sem antes se
pensar na família. A família é a célula mater da sociedade. Forma-a, desenvolve-a e a
consolida”. A idéia de família comporta diversos enfoques. Em sentido amplo, pode
ser entendida como um conjunto de pessoas unidas pelos laços de parentesco e que
descendem de um tronco comum. Dentro desse conceito amplo de família incluirse-iam os ascendentes, descendentes e colaterais de uma mesma linhagem. Em um
sentido mais restrito, poder-se-ia dizer que família é “[...] o núcleo formado por pais
e filhos que vivem sob o poder familiar” (THOMAZ, 2003, p.85). Sob o aspecto
sociológico, por outro lado, a família pode ser vista como sendo o conjunto de pessoas
que vivem em um mesmo lar e cuja autoridade é exercida por um dos integrantes
dessa família.
Há notícia de que nas civilizações primitivas a família era
formada pela mãe e sua prole, por ser desconhecido o pai.
Isso ocorria pelas constantes guerras entre tribos, que faziam
as mulheres serem subjugadas por bravos guerreiros vindos
de outras tribos. Até, talvez por instinto natural (ou animal),
os homens das tribos tinham relações sexuais com diferentes
mulheres, engravidavam-nas e deixavam com elas o produto
de tais relações. Neste contexto fala-se do surgimento da
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poligamia, conduta que seria mais tarde relegada a poucas
tribos, hoje a pouquíssimas civilizações (THOMAZ, 2003, p. 85).
1.1 Origem da família
Com o advento e fortalecimento do cristianismo, o padrão da família passou a ser o
daquela surgida do casamento de um homem e uma mulher, com caráter monogâmico,
patriarcal, sendo que o marido era o chefe daquela célula familiar integrada pela
mulher e pela prole. Os princípios relativos à família do direito romano serviram para
inspirar a família brasileira. A nossa família primitiva, assim como na Roma antiga,
era entendida como o grupo de pessoas formado por um pai, mãe e filhos. Essa família
tinha o caráter monogâmico, patrimonialista, era chefiada pelo homem, que, como
marido e pai, exercia toda a autoridade patriarcal daquele grupo familiar.
O poder do pater familias compreendia: a patria potestas, ou o
poder sobre os filhos e netos dos filhos masculinos; a manus, ou
o poder sobre as mulheres casadas com o mesmo pater familias
ou com um seu descendente; o mancipium, ou o poder de pater
sobre as pessoas a ele vendidas como escravos (in mancipio);
a dominica potestas, ou o poder sobre os escravos (THOMAZ,
2003, p. 85).
A família é um fenômeno natural. Forma-se com ou sem a participação da igreja ou
do Estado. Até há pouco tempo atrás o nosso legislador, notadamente o constitucional,
entendia como família tão-somente aquela formada pelo casamento entre um homem
e uma mulher. No entanto, a evolução dos costumes e a força dos fatos sociais
compeliram o Direito a reconhecer o novo panorama fático daquelas famílias brasileiras
que não se formavam com a chancela estatal. Daí veio a Constituição Federal de 1988
e, consolidando situação há muito já consagrada na doutrina, previu no seu artigo 226,
§ 3º, como entidade familiar a união estável formada por um homem e uma mulher. A
partir de então, dispondo a Magna Carta de 1988 que a família protegida pelo Estado
não mais seria tão-somente aquela formada pelo casamento, mas também outras, como
a oriunda das relações fáticas não oficializadas, entre um homem e uma mulher, desde
que atendidos certos requisitos, o panorama jurídico da família brasileira alterou-se
profundamente.
1.2 União livre entre homem e mulher como modalidade de família
A união heterossexual livre, sem a interferência estatal, apesar de ser fenômeno
freqüente na nossa sociedade, não era reconhecida como entidade familiar até a
promulgação da Constituição de 1988. Para que isso ocorresse, foi necessário que se
percorresse um árduo e longo caminho. Em um primeiro momento, apenas a doutrina
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e a jurisprudência pátria atribuíam efeitos a essas uniões de fato, tratando-as, muitas
vezes, como relações intrinsecamente ligadas ao direito das obrigações. Após um árduo
trabalho, notadamente da jurisprudência pátria, veio o reconhecimento constitucional
e legal, sendo que hoje, a união livre entre um homem e uma mulher, que tenha as
características de estabilidade, publicidade e intuito de formação de uma vida em
comum, é considerada como uma entidade familiar tão importante quanto àquela
formada pelo casamento e que merece, assim como as uniões formais, a proteção
estatal.
Inicialmente, quando ocorria o desfazimento de uma união livre, que tinha
características assemelhadas às da família legítima, originada do casamento, os nossos
Tribunais, com o escopo de evitar o locupletamento de um em detrimento do outro,
o enriquecimento ilícito na maioria das vezes do homem em detrimento da mulher,
passou a reconhecer efeitos patrimoniais a tais relações. Começaram os Tribunais
Superiores e os dos diversos Estados Brasileiros a aplicar a teoria da sociedade de
fato, sendo que todo o patrimônio amealhado pelo esforço comum deveria ser dividido
entre os sócios dessa sociedade de fato. Para se reconhecer a sociedade de fato e
determinar a divisão do patrimônio adquirido durante a convivência, os julgadores
exigiam a prova do esforço comum das partes, sendo que “[...] quando isso não era
possível e para impedir o desamparo da concubina, os tribunais concediam a ela uma
indenização por serviços domésticos” (THOMAZ, 2003, p. 87).
Posteriormente passou-se a se admitir a contribuição indireta da concubina para
caracterização do esforço comum. Os serviços domésticos prestados no lar pela mulher
passaram a ser considerados como esforço tão relevante quanto a contribuição direta,
em pecúnia, para aquisição dos bens do casal. Veio daí a Súmula 380 do Supremo
Tribunal Federal que, ao enunciar: “Comprovada a existência da sociedade de fato
entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio
adquirido pelo esforço comum[...]”, trouxe para o direito das obrigações as relações
afetivas heterossexuais não oficializadas pelo casamento, afastando, nessas hipóteses,
qualquer efeito de direito de família.
A partir de então foram sendo concedidos direitos,
principalmente à concubina, como por exemplo: concedeu-se
o direito de perceber a indenização do companheiro morto por
acidente de trabalho e de trânsito, desde que não estivessem
casados e ela estivesse incluída como beneficiária (Dec.
Lei 703/44; Lei 8.213/91). Foram consolidados os direitos
previdenciários da companheira na legislação respectiva (Leis
4.297/63 e 6.194/74), permitindo que ela fosse designada
beneficiária do contribuinte falecido, tendo a orientação
jurisprudencial se encarregado de alargar o conceito,
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permitindo o mesmo direito também na falta de designação
expressa se provada a convivência ou a existência de filhos
comuns. Deste modo, permitiu-se a divisão da pensão entre
a esposa legítima e a companheira (Súmula 159 do extinto
TRF). A Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), no artigo
57, §§2º e 3º, com redação dada pela Lei 6.216/75, autorizou
a companheira a adotar o sobrenome do companheiro, após
cinco anos de vida em comum ou na existência de prole, desde
que nenhum deles tivesse vínculo matrimonial (THOMAZ,
2003, p.87).
Muito se fez na legislação infraconstitucional pelas uniões livres heterossexuais até
a vinda da norma constitucional que eliminou de vez a controvérsia acerca do caráter
familiar ou não das relações afetivas estáveis entre homem e mulher não oficializadas
pelo casamento. Finalmente, após longa batalha jurisprudencial, discussões
doutrinárias e até mesmo iniciativas legislativas, veio a norma do § 3º do artigo 226
da Constituição Federal que prescreveu que “[...] para efeito de proteção do Estado, é
reconhecida a união estável entre homem e a mulher como entidade familiar, devendo
a lei facilitar a sua conversão em casamento”.
A partir do reconhecimento constitucional, vieram as Leis nº 8.971/94 e nº 9.278/96
e, posteriormente, o novo Código Civil, que trataram expressamente da união estável
heterossexual, agora considerando tal instituto como ele sempre deveria ter sido
tratado, ou seja, dentro das regras do direito de família. Estando sob o manto do
direito de família, os integrantes das uniões livres entre heterossexuais passaram a ter
garantidos direitos sucessórios, direito a alimentos, direitos previdenciários e, ainda,
admitida a aplicação aos companheiros de institutos como o de guarda, tutela, adoção,
curatela, dentre outros, com a mesma preferência de exercício do que a conferida aos
casais casados.
1.3 A Família na Constituição Federal de 1988
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o direito de família sofreu
profundas transformações. Até então, o nosso ordenamento jurídico reconhecia
apenas o casamento como a instituição formadora da família merecedora da proteção
estatal.
Na restrita visão do Código Civil de 1916, a finalidade
essencial da família era a continuidade. Emprestava-se
juridicidade apenas ao relacionamento matrimonial, afastadas
quaisquer outras formas de relações afetivas. Expungia-se
a filiação espúria e proibiam-se doações extraconjugais. A
doutrina ortodoxa apontava entre as finalidades do casamento
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a disciplina do relacionamento sexual entre os cônjuges, a
proteção à prole e a mútua assistência (FUGIE, 2002, p.134).
Com a Constituição Federal de 1988, além da família oriunda do casamento, também
a família monoparental (aquela formada por qualquer dos ascendentes com seus
descendentes) e a família formada pela união estável entre um homem e uma mulher
passaram a ser consideradas como entidades familiares tuteladas pelo Estado. E a partir
daí surgem os inafastáveis questionamentos: Serão só essas as modalidades de família
merecedoras da tutela estatal? A Constituição Federal enumerou de forma taxativa os
tipos de entidades familiares, ou essa enumeração é meramente exemplificativa? E as
uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo? Serão elas uma modalidade de família
merecedora da proteção do Estado?
Pode-se responder aos questionamentos acima levantados de duas formas, a depender
do caminho que se escolhe seguir com o nosso entendimento e interpretação da norma
constitucional. Em primeiro lugar, se se partir da premissa de que a enumeração feita
pelo artigo 226 da Constituição Federal é taxativa, que são modalidades de entidades
familiares tão-somente aquelas constituídas pelo casamento, pela união estável entre
homem e mulher e pelos ascendentes com seus descendentes, a conclusão a que se
chega é a de que a vedação constitucional à inclusão dos relacionamentos homoafetivos
no laço jurídico e social da família é inconstitucional. Por outro lado, se não se aceita a
tese da existência de uma norma constitucional inconstitucional, conforme preleciona
Bachof, essa vedação atenta ao menos contra os princípios da dignidade da pessoa
humana, da liberdade, da igualdade e da proibição de discriminação por motivo de
origem, raça, sexo, cor, idade (art. 3º, IV, CF/88), princípios que são fundantes do
nosso Estado democrático de direito.
Esse é o entendimento hoje predominante entre a grande maioria dos nossos juristas
e pensadores que se dedicam ao tema. Para juristas hodiernos, como Thomaz (2003)
e Azevedo, por exemplo, a norma do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, ao
exigir a diversidade de sexos para a existência da união estável entre homem e mulher,
acabou por impedir e vedar a existência de uniões estáveis entre pessoas do mesmo
sexo. Como não há casamento entre homossexuais previsto no nosso ordenamento
jurídico e a Constituição Federal previu como modalidades de entidades familiares
tão-somente aquelas formadas pelo casamento, pelos ascendentes e seus descendentes
e pela união estável entre homem e mulher, a consideração das uniões homólogas
estáveis como modalidade de família seria vedada em nosso ordenamento jurídico.
Para afastar tal entendimento e buscar um reconhecimento dessas uniões homoafetivas,
os estudiosos e intérpretes do direito têm feito verdadeiros malabarismos jurídicos.
Em primeiro lugar cumpre assinalar que existe um projeto de emenda constitucional,
de autoria da ex-deputada Marta Suplicy, com o escopo de excluir a exigência da
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diversidade de sexos prevista no § 3º do artigo 226 da Constituição Federal para a
configuração da união estável. Como esse projeto de emenda constitucional ainda
não foi apreciado pelo Congresso, os nossos intérpretes do Direito têm que conviver
com a vedação constitucional e encontrar um meio de defender a existência, validade,
geração de efeitos e até mesmo o caráter de família das uniões estáveis homossexuais.
Lado outro, existem os que defendem que a enumeração constitucional não é taxativa
e que, assim não sendo, não haveria nenhum óbice constitucional intransponível à
aceitação dos relacionamentos homossexuais como um tipo de entidade familiar.
Lôbo (2002) defende, em artigo de sua autoria, que, apesar da doutrina dominante
entender que o artigo 226 da Constituição Federal tutela apenas os três tipos de
entidades familiares explicitamente previstos, se se fizer uma adequada interpretação
do texto constitucional perceber-se-á que tal afirmativa não é a mais acertada. Assevera
primeiramente Lôbo (2002) que o caput do artigo 226, ao dizer tão-somente que a
família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado, já faz revolucionária
mudança no conceito de família. Diz o civilista que as constituições brasileiras
anteriores diziam que “[...] a família, constituída pelo casamento, tinha a proteção
do Estado”. Ao suprimir a locução constituída pelo casamento, sem substituí-la por
qualquer outra, o legislador de 1988 pôs sob a tutela constitucional qualquer tipo de
família. Conclui o ilustre civilista, que “[...] o caput do artigo 226 é cláusula geral de
inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos
de afetividade, estabilidade e ostensibilidade” (LÔBO, 2002, p. 95). Diz, por fim,
que “[...] a regra do § 4º do artigo 226 integra-se à cláusula geral de inclusão[...]”, já
que o dispositivo legal, ao dizer que a comunidade formada por qualquer dos pais e
seus descendentes, entende-se, também, como entidade familiar, esse termo também
significa a possibilidade de inclusão, sendo que o termo significaria inclusão da
comunidade monoparental sem a exclusão de outras modalidades de família.
Esse brilhante e genial trabalho de interpretação das normas constitucionais feito por
Lôbo representou a carta de alforria para aqueles que pretendem defender a inclusão
dos relacionamentos afetivos estáveis homossexuais no rol das entidades familiares.
Isso porque, se for adotado tal entendimento, o de que a enumeração das modalidades
de família feita pela Constituição Federal é apenas e tão-somente exemplificativa,
não mais serão necessários os argumentos complexos, como o de afirmar que a
norma do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal é inconstitucional ou o de que
as uniões estáveis podem ser formadas por pares hetero ou homossexuais em razão
dos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade de todos
perante a lei. Basta tão-somente entender que as uniões estáveis homoafetivas são
sim um tipo de família, não previsto expressamente na Constituição Federal, que não
precisam ser, necessariamente, iguais às uniões estáveis entre homem e mulher, já
regulamentadas no nosso Ordenamento Jurídico. E, assim sendo, havendo previsão
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constitucional, ainda que implícita, dessa modalidade de família que merece a
proteção estatal, a ausência de lei formal infraconstitucional não poderá representar
óbice para o julgador deixar de atribuir efeitos, agora de direito de família e não
mais tão-somente de direito obrigacional, aos conviventes homossexuais, podendo,
até mesmo, valer-se da aplicação da analogia para decidir hipóteses concretas em que
haja lacuna na legislação.
2. A Relação homoafetiva como entidade familiar
Hoje, fazendo uma análise literal da Constituição Federal de 1988, pode-se dizer
que se enquadram no conceito de família apenas aquelas hipóteses expressamente
previstas no artigo 226, ou seja, são entidades familiares apenas aquelas formadas
pelo casamento, pela união estável entre homem e mulher e pela família monoparental
entendida como aquela formada por um dos ascendentes com seus descendentes.
Ficaram fora da enumeração constitucional outros tipos de famílias sociais, tais como
as famílias concubinárias, as famílias formadas por pais e filhos adotivos de fato,
as famílias formadas por irmãos que vivem juntos sem a presença de pai ou mãe
e, enfim, as famílias formadas por pessoas do mesmo sexo, com ou sem filhos. E
aí vem o seguinte questionamento: a enumeração das entidades familiares feita pela
Constituição Federal no seu artigo 226 é taxativa? Conforme discutido no item supra
defende-se que não. A enumeração feita pela Constituição Federal das modalidades de
família é apenas exemplificativa, existindo atualmente diversas representações sociais
e antropológicas de famílias que não foram enumeradas pelo legislador, mas que não
podem ficar fora do manto protetor do Direito de Família. Os relacionamentos afetivos
entre pessoas do mesmo sexo é uma dessas modalidades de família não previstas de
forma expressa pela Constituição Federal, mas que deve ser considerada como tal
diante de toda a lógica do nosso ordenamento jurídico.
O mesmo caminho legal e jurisprudencial trilhado pelas uniões livres heterossexuais,
que levou ao reconhecimento constitucional da união estável como entidade familiar,
está hoje sendo percorrido pelos casais formados por pessoas do mesmo sexo que
mantêm relações afetivas estáveis e com as características fundamentais de uma família.
Inicialmente, assim como os casais de sexos opostos que mantinham relacionamentos
não oficiais, as relações homoeróticas começaram a ser caracterizadas como sociedades
de fato. A mesma Súmula nº 380 do Supremo Tribunal Federal que preceitua que “[...]
comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua
dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”, e
as regras do artigo 981 do Código Civil que disciplinam, no direito das obrigações,
as sociedades de fato prevendo que “[...] celebram contrato de sociedade as pessoas
que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício
de atividade econômica e a partilha entre si, dos resultados”, estão sendo aplicadas
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pelos nossos Tribunais nas hipóteses de dissolução de relações homossexuais, seja
pela simples separação do casal, ou no caso de morte de um dos parceiros.
Com a existência cada vez mais crescente dos relacionamentos homoafetivos e com
o início do ingresso na aceitação social e jurídica daqueles que têm orientação sexual
diversa daquela considerada como padrão na sociedade, os aplicadores do direito
sentiram a necessidade de reconhecer algumas conseqüências jurídicas advindas
dessas relações como o direito de herança e de percepção de benefício previdenciário
como dependente do segurado, por exemplo. Daí, novamente veio à tona a teoria da
sociedade de fato do direito das obrigações, em que “[...] é reconhecida a sociedade
de fato quando pessoas mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos
para lograr fim comum”.
Hoje, apesar de alguns avanços, principalmente do Tribunal de Justiça e dos juízes do
Rio Grande do Sul, essa é ainda a orientação predominante ao se falar em conseqüências
jurídicas de relações homossexuais. O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, na
ocasião em que foi instado a se manifestar sobre o tema, entendeu aplicável a teoria
da sociedade de fato do direito das obrigações a uma hipótese de rompimento de
uma relação homossexual, negando, no entanto, qualquer inclusão de tal fenômeno
no âmbito do direito de família.
EMENTA: SOCIEDADE DE FATO. Homossexuais. Partilha
do bem comum. O parceiro tem o direito de receber a metade
do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhecida a
existência de sociedade de fato com os requisitos previstos no
art. 1363 do CCivil. RESPONSABILIDADE CIVIL. Dano
Moral. Assistência do doente com AIDS. Improcedência
da pretensão de receber do pai do parceiro que morreu com
Aids a indenização pelo dano moral de ter suportado sozinho
os encargos que resultaram da doença. Dano que resultou
da opção de vida assumida pelo autor e não da omissão do
parente, faltando o nexo causalidade. Art. 159 do CCivil.
Ação possessória julgada improcedente. Demais questões
prejudicadas. Recurso conhecido em parte e provido (BRASIL,
1998).
Da mesma forma que as uniões livres, no passado, hoje as relações entre homossexuais
também vêm recebendo a tutela específica de algumas normas infraconstitucionais.
O INSS, através de sua Instrução Normativa nº 50, de 8 de maio de 2001, já
possibilitou ao parceiro ou parceira homossexual, pleitear junto à Previdência Social
pensão por morte ou auxílio reclusão do companheiro, ou companheira, segurado.
Assim, observa-se que as uniões homossexuais vêm trilhando o mesmo caminho que
foi percorrido pelas uniões livres heterossexuais em um passado não muito remoto.
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Se hoje ainda existem discussões favoráveis e contrárias à inserção do relacionamento
homoerótico no âmbito do direito de família, certamente amanhã essas discussões
serão, assim como na união estável heterossexual, tão-somente histórias. Alguns
juristas, como Almeida Júnior (2002, p. 3), hodiernamente, entendem que as uniões
de pessoas de sexos semelhantes, mesmo que reúnam as características da afetividade,
respeito mútuo, comunhão de vida e interesses, publicidade e estabilidade, não podem
ser consideradas entidades familiares ante a disposição do artigo 226 da Constituição
Federal, que prevê que as entidades familiares são, além da família monoparental,
aquelas formadas por um homem e uma mulher, através do casamento ou da união
estável:
Em face da atual Constituição Federal, entendemos, sem
embargo das robustas opiniões em contrário, que os avanços
legislativos jamais poderão dar às uniões homossexuais
condição de entidade familiar. [...] somente as uniões
heterossexuais gozam de proteção constitucional, a nível
de entidade familiar. Assim, somente com uma emenda
constitucional apropriada, é que uma união homossexual
poderia ser guindada à nível de entidade familiar. Nunca,
porém, mediante simples Lei Ordinária.
Thomaz (2003, p. 98), em interessante artigo sobre o tema, apesar de concordar e
encontrar fundamentos para a inserção dos relacionamentos homossexuais no rol das
entidades familiares entende, em uma visão equivocada a nosso sentir, que a simples
ausência de previsão constitucional acerca dos relacionamentos homossexuais
ou a previsão do § 3º do artigo 226 da CF de que as uniões estáveis devem se dar
apenas entre um homem e uma mulher, inviabiliza o entendimento de que as uniões
homoafetivas podem ser consideradas como entidades familiares.
Não se nega a existência de tais uniões, o que se nega é a
formação de entidade familiar. A relação entre homossexuais
existe e surte efeitos no mundo jurídico, não efeitos de Direito
de Família, mas de Direito Obrigacional. Nada obsta que no
futuro venha o legislador a admitir essa união como entidade
familiar, mormente se houver o respeito mútuo, a fidelidade,
a convivência pública, contínua e duradoura, e a conjunção
de esforços ou recursos para lograr fins comuns. Quais seriam
esses fins comuns? Seria a formação de uma sociedade, não
mais de fato, mas sim familiar. Destarte, passariam a ser
uma outra espécie de família de fato. Ao lado da família
concubinária, haveria a família homossexual. Se se permite a
união estável entre o homem e a mulher e se ela é reconhecida
como entidade familiar, deve-se considerar como entidade
familiar a união ou parceria homossexual.
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Rainer Czajkowsky, citado por Brito (2000, p. 27), asseverou:
Por mais estável que seja, a união sexual entre pessoas do
mesmo sexo – que morem juntas ou não – jamais se caracteriza
como uma entidade familiar. A não configuração de família,
nestes casos, é resultante não de uma análise sobre a realização
afetiva e psicológica dos parceiros, mas sim da constatação
de que duas pessoas do mesmo sexo não formam um núcleo
de procriação humana e de educação de futuros cidadãos. A
união entre um homem e uma mulher pode ser, pelo menos
potencialmente, uma família, porque o homem assume o papel
de pai e a mulher o de mãe, em face dos filhos. Parceiros do
mesmo sexo, dois homens ou duas mulheres, jamais oferecem
esta conjugação de pai e mãe, em toda a complexidade
psicológica que tais papéis distintos envolvem. [...] Menos por
força de a Constituição expressamente dizê-lo; mais porque a
concepção antropológica de família supõe as figuras de pai e
de mãe, às quais se fez referência linhas acima, o que as uniões
homossexuais não conseguem imitar.
Conforme examinado anteriormente, a enumeração feita pela Constituição Federal,
no seu artigo 226, não é taxativa. A família, conforme dispõe a Carta Magna, se
forma pelo casamento, pela união estável heterossexual e pelo ascendente com seus
descendentes. No entanto, essas não são e nem poderiam ser as únicas formas de
família tuteladas pelo Estado. Se dois homens ou duas mulheres vivem juntos de
forma estável, têm amor um pelo outro, mantêm relacionamento sexual, dividem
receitas, despesas, alegrias, tristezas, ajudam-se mutuamente, têm um projeto de vida
comum que pretende garantir a cada um deles a felicidade e a realização pessoal,
não se pode dizer que essas pessoas não formam uma família pelo simples fato de
serem do mesmo sexo. O conceito atual de família está alargado. Família não é mais
tão-somente um homem e uma mulher unidos pelo casamento com a sua prole. Hoje
família é muito mais que isso.
Tradicionalmente, a família sempre foi entendida como a união de um homem e
uma mulher, inicialmente sacralizada apenas pelo casamento religioso e, mais tarde,
pelo casamento legalizado civilmente perante os homens. A família formada pelo
casamento tinha como objetivos legalizar as relações sexuais existentes entre esse
homem e essa mulher; propiciar a reprodução e perpetuar a transmissão do patrimônio
familiar. Essa família tradicional, refletida no Código Civil de 1916, era patriarcal,
tendo no homem o chefe de todos os seus integrantes. Tinha o caráter monogâmico,
permitia a certeza do homem quanto à paternidade dos filhos nascidos de sua esposa
e tinha, concomitantemente, a responsabilidade integral pelo sustento do lar. Era
necessariamente heterossexual e machista, já que era sempre o homem que tinha
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os poderes de comando da família e que decidia os destinos da esposa e dos filhos.
Por fim, era nítido o seu caráter patrimonialista sendo que diversos casamentos eram
realizados entre pessoas previamente escolhidas pelos seus pais, para que a herança
familiar pudesse ser incrementada, preservada dentro de um determinado núcleo
familiar e transmitida de forma proveitosa entre os descendentes legítimos daquela
família.
Hoje, a família já é vista de uma forma bem diversa. Veio a revolução francesa,
que pregou a liberdade, igualdade e fraternidade. A revolução industrial, por sua
vez, promoveu a divisão do trabalho entre os sexos e acabou por inserir a mulher,
gradativamente, no mercado de trabalho. Os movimentos feministas tentaram
reduzir a condição de submissão na qual as mulheres viviam, notadamente quando
se encontravam como membro de uma família dominada pelo marido. Diante dessas
e de outras diversas realidades sociais, os papéis do homem e da mulher na sociedade
foram mudando gradativamente, sendo que essa mudança refletiu diretamente no
conceito de família.
O Estatuto da Mulher Casada, de 1962, em razão das constantes lutas feministas,
veio para melhorar as condições da mulher dentro do casamento. Note-se que, antes
de tal diploma legal, a mulher, ao se casar, se já fosse civilmente capaz, passava a ser
relativamente capaz, ou seja, dava um passo para trás na sua liberdade e autonomia
para ceder espaço ao homem que, a partir de então, era a pessoa que deveria tomar
as decisões mais relevantes da vida da família e, até mesmo, da vida da mulher
enquanto membro daquela família de caráter patriarcal. A Lei do Divórcio, de 1977,
possibilitou a dissolubilidade do casamento e começou a permitir a mudança daquele
conceito tradicional de família. A partir de tal diploma legal, diversas situações de fato
desfavoráveis legalmente foram legalizadas possibilitando o desfazimento de famílias
que não se adaptaram às características tradicionais e possibilitando a regularização de
famílias que já existiam de fato, mas de forma legalmente clandestina. A Constituição
de 1988 trouxe a grande revolução nas relações familiares. A partir de então, o
casamento deixou de ser a única forma legítima de constituição de uma família.
Os integrantes de uma família, homem e mulher, passaram a ter direitos e deveres
iguais, rompendo com o antigo caráter patriarcal da velha família de origem romana.
Os filhos, fossem eles advindos de qualquer tipo de relacionamento dos seus pais,
passaram a ter os mesmos direitos.
Assim, a partir de então, a família começou a ser entendida com o espaço do amor,
do respeito, da ajuda mútua, da comunhão de interesses, da existência de planos
comuns para o futuro, etc. Diz ainda a moderna doutrina que a família hoje deve ter
as características da estabilidade, ostensibilidade e afetividade. Dessa forma, a família
atual pode ser entendida como o agrupamento de duas ou mais pessoas, em caráter
estável e ostensivo, que tem como motivo principal da sua manutenção a existência
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do amor e do afeto entre os seus membros, sendo que tais membros dessa família se
ajudam mutuamente nas dificuldades cotidianas da vida, respeitam-se como indivíduos
dignos e únicos e têm comunhão de interesses e planos comuns para o futuro. Dentro
desse nosso conceito amplo de família, enquadra-se, sem qualquer sombra de dúvidas,
a família formada pelo casamento, aquela formada pela união estável entre um homem
e uma mulher, a comunidade formada por pai ou mãe e seus descendentes, o grupo
integrado por um conjunto de irmãos que vivem juntos com todas as características
de um ente familiar, a família formada por pessoas do mesmo sexo que tenham como
propósitos algo mais que apenas sexo, o agrupamento familiar composto por avós
viúvos, pais, filhos biológicos, adotivos e/ou de criação, dentre outros.
O que importa, para a definição do que seja a família merecedora da proteção estatal, é
que se esteja dentro de um grupo de duas ou mais pessoas unidas pelo afeto, respeito,
ajuda mútua, e que viva em relativa estabilidade, de forma pública, apresentando-se,
para a sociedade, como um grupo familiar. Hoje, diversos civilistas modernos como
Barros (2001), Dias e Pereira (2003) perceberam toda a revolução da família trazida
pela Constituição Federal de 1988 e também formularam seus novos conceitos de
família. Barros (2001, p. 11) assim define família:
O que define família é o afeto que conjuga intimamente,
enquanto ele existe, da origem ao fim de sua existência, para
uma vida em comum. É o afeto que define a entidade familiar,
mas não um afeto qualquer. Se fosse um afeto qualquer,
uma simples amizade seria família, ainda que sem convívio.
O conceito de família seria estendido com inadmissível
elasticidade. O que identifica a família é um afeto especial.
Com ele se constitui a diferença específica que define a
entidade familiar. É o afeto entre duas ou mais pessoas que
se afeiçoam pelo convívio em virtude de uma origem comum
ou em razão de um destino comum, que conjuga suas vidas
intimamente, tornando-as cônjuges quanto aos meios e aos fins
de sua afeição, até mesmo gerando efeitos patrimoniais, seja
patrimônio moral, seja patrimônio econômico. Este é o afeto
que define a família. O afeto conjugal.
Dias e Pereira (2003, p. 9), prefaciando obra sobre direito de família, disseram que:
A família atual é um mosaico composto de forma
harmoniosa, a retratar a complexidade da realidade
social. Não mais se concebe a família como estrutura
única, engessada pelos sagrados laços do matrimônio.
Também ela não mais se caracteriza pela presença de um
homem, uma mulher e sua prole. Nem sequer necessita
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haver parentesco em linha reta entre seus integrantes, ou
necessita haver parentesco em linha reta entre os seus
integrantes, ou diversidade de sexo entre seus partícipes,
para caracterizar uma entidade familiar. O traço principal
que a identifica é o vínculo de afetividade. Onde houver
envolvimento de vidas com mútuo comprometimento
formando uma estruturação psíquica, isto é, onde houver
afeto é imperioso reconhecer que aí se está no âmbito do
Direito de Família.
Concluindo, após a análise de todos os conceitos vistos até então acerca do que
seria a nova família estruturada a partir da Constituição de 1988 e do Novo Código
Civil, repete-se que a família hoje deve ser entendida como o agrupamento de duas
ou mais pessoas, em caráter estável e ostensivo, que tem como motivo principal da
sua manutenção a existência do amor e do afeto entre os seus membros, sendo que
tais integrantes dessa família se ajudam mutuamente nas dificuldades cotidianas,
respeitam-se como indivíduos dignos e únicos, têm comunhão de interesses e planos
comuns para o futuro. Assim, obviamente, se duas pessoas de mesmo sexo vivem
relação afetiva que reúne esses elementos primordiais de afeto, respeito mútuo,
assistência mútua, projetos de vida comuns e comunhão de interesses, essa relação
não pode ser afastada do conceito e do direito de família pelo simples fato de seus
integrantes serem do mesmo sexo.
3 Relacionamentos afetivos homossexuais e união estável heterossexual: espécies
de um mesmo gênero?
A grande discussão atual acerca das uniões entre pessoas do mesmo sexo envolve o
seguinte questionamento: são as relações estáveis entre homossexuais uma modalidade
de união estável ou não passam tão-somente de sociedades de fato? Doutrinadores
nacionais como Azevedo (2002) e Thomaz (2003) vêm enfrentando o tema, sendo que
além dos dois posicionamentos acima mencionados há, ainda, o entendimento, ao qual
me filio, de que a relação estável entre duas pessoas do mesmo sexo não é sociedade de
fato nem união estável, mas sim uma entidade familiar com características próprias não
expressamente prevista na Constituição Federal. Azevedo (2002, p. 470), ao estudar
o tema, disse que “[...] ainda que se cogite de mera convivência, no plano fático,
entre pessoas do mesmo sexo, não se configura a união estável”. Para o professor
paulista, diante da regra expressa do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal de
1988 o posicionamento de só se reconhecer como união estável o relacionamento
entre um homem e uma mulher é o mais acertado. O relacionamento estável entre
homossexuais, no entendimento de Azevedo poderia, tão-somente, ser considerado
como uma sociedade de fato, isso se ficasse comprovada a aquisição de bens pelo
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esforço comum dos sócios nos termos do artigo 1.363 do Código Civil. Thomaz
(2003, p. 95), da mesma forma que Azevedo, rechaça a possibilidade de reconhecer a
união homossexual como um tipo de união estável. Diz o professor paulista que “[...]
juridicamente, também impossível a união estável entre homossexuais”.
Consigna-se que, neste momento, que a união entre
homossexuais existe, só que o Direito de Família dispensa
o seu regramento e o seu tratamento. O Direito de
Família tutela os direitos, obrigações, relações pessoais,
econômicas e patrimoniais, a relação entre pais e filhos,
o vínculo de parentesco e a dissolução da família, mas
das famílias matrimonial, monoparental e concubinária.
A união entre homossexuais, juridicamente, não constitui
nem tem o objetivo de constituir família, porque não
pode existir pelo casamento, nem pela união estável
(THOMAZ, 2003, p. 95).
O posicionamento defendido por Thomaz (2003, p. 95) é o de que as relações
homossexuais são tuteladas pelo direito das obrigações, não estando nos laços do
direito de família. “Se houver vida em comum, laços afetivos e divisão de despesas,
não há como se negar efeitos jurídicos à união homossexual. Presentes esses elementos,
pode-se configurar uma sociedade de fato, independentemente de casamento ou união
estável”. Entendimento diverso é adotado por juristas como Dias, Fachin, Giorgis,
dentre outros. Giorgis (apud DIAS, 2003, p. 56), em voto proferido no julgamento
de Embargos Infringentes, defendeu a tese de que as uniões homossexuais afetivas
são uniões estáveis. “Mesmo sem lei que as regule, as uniões homoeróticas são
reconhecidas pela Constituição como verdadeiras entidades familiares, para alguns
como entidades distintas, em vista de sua natureza e para outros, onde ainda me filio,
como verdadeiras uniões estáveis”. Dias (2001, p. 96), comungando do entendimento
do colega Giorgis, defende que:
Conferida juridicidade à união estável, a limitação, quer
constitucional, quer legal, não tem o condão de deixar
à margem da proteção do Estado relacionamentos
afetivos outros que geram conseqüências no âmbito do
Direito. Podem e devem ser aplicadas, por analogia, as
leis reguladoras do relacionamento entre um homem e
uma mulher. As relações homossexuais constituem uma
unidade familiar que em nada se diferencia da união
estável.
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O aspecto mais relevante do ponto de vista prático em se considerar a união entre pessoas
do mesmo sexo como sociedade de fato ou união estável reside nas conseqüências
jurídicas, notadamente patrimoniais, daí advindas. Se se considerar que a união entre
homossexuais caracteriza uma sociedade de fato, estão se retirando essas relações do
âmbito do direito de família. Nesse caso, a sociedade entre os dois parceiros, animada
pela affectio societatis, rege-se pelas regras do artigo 1.363 do Código Civil, sendo
indispensável para a sua caracterização a comprovação da contribuição de cada um
dos parceiros para a formação ou preservação do patrimônio.
Se as relações afetivas estáveis entre duas pessoas do mesmo sexo forem tidas
como uma sociedade de fato, não há de se falar em direitos sucessórios, direito real
de habitação ou usufruto aos integrantes dessa sociedade. A única conseqüência
jurídica que poderá ser extraída do relacionamento é a partilha de bens que será
feita em proporção ao esforço empregado por cada um dos parceiros na aquisição do
patrimônio. Por outro lado, caso se entenda que esses relacionamentos configuram
uma união estável, diversas serão as conseqüências jurídicas. A união estável é um
tipo de entidade familiar prevista expressamente na Constituição Federal e recebe,
como modalidade de família que é, especial proteção do Estado.
Por ter natureza familiar, a união estável rege-se pelos
princípios e normas do direito de família, abrindo
mão de qualquer prova de contribuição dos parceiros
para a formação do patrimônio, que é comum a ambos
em razão da simples comprovação da relação, sendo
presumida a contribuição a teor do art. 5º, da Lei n.º
9.278/96. Ademais, há previsão de que, ao companheiro,
integrante de uma união estável, é conferido direito
sucessório, nos termos do art. 2º, da Lei n.º 8.971/94
(DIAS, 2003, p. 80).
A união estável, de modo diverso da sociedade de fato, é inspirada pela affectio
conjugalis. Se o relacionamento homoerótico é visto como uma união estável, aplicase a ele a legislação do companheirismo, sendo conferidos aos parceiros homoafetivos
direitos hereditários, direito real de habitação e usufruto. Assim, verifica-se que a
preponderante razão da atual tentativa dos juristas contemporâneos de enquadrar as
relações afetivas homossexuais como um tipo de união estável é a necessidade de
se assegurar aos conviventes do mesmo sexo direitos de cunho familiar que não são
garantidos a esses parceiros caso a relação deles seja entendida como mera sociedade
de fato regida pelo direito das obrigações.
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Apesar de acreditar ser louvável o esforço de juristas como Dias, Giorgis e outros,
que tentam ultrapassar o preconceito hoje existente e garantir a dignidade daqueles
que têm orientação sexual diversa da tradicionalmente considerada padrão pela
sociedade, não concordamos em que o relacionamento afetivo entre os homossexuais
seja uma união estável. O relacionamento homoafetivo, ao nosso sentir, não é uma
união estável conforme definida pela Constituição Federal e leis ordinárias, mas,
mesmo diante disso, defendemos que seguramente é uma entidade familiar, como as
demais previstas na Constituição Federal, sem maior ou menor valor ou importância.
A união estável heterossexual prevista na Constituição Federal e disciplinada por leis
ordinárias é, realmente, somente aquela existente entre um homem e uma mulher,
conforme restrição do § 3º do artigo 226 da Magna Carta, em que esteja presente o
caráter de estabilidade, publicidade e intenção de constituir família. Isso não implica,
no entanto, que a união homossexual deva ser alijada do conceito de entidade familiar.
É aí que reside toda a problemática da questão.
Para garantir àqueles que mantêm relacionamento afetivo e sexual com pessoas do
mesmo sexo as garantias e efeitos jurídicos de uma entidade familiar não há necessidade
de dizer que o relacionamento entre eles é uma união estável. A união estável
heterossexual prevista constitucionalmente e disciplinada por leis infraconstitucionais
tem suas características próprias. Os casais que viviam um relacionamento não
selado pela oficialidade trilharam todo um caminho legal e jurisprudencial para ver
assegurado, constitucionalmente, o seu reconhecimento como uma entidade familiar
tão importante como aquela formada pelo casamento. As uniões homossexuais não
se equivalem àquelas heterossexuais. Podem, muitas vezes, duas pessoas do mesmo
sexo viverem uma relação afetiva estável, pública, com o intuito de constituir família
e de construir toda uma história de vida comum. A relação pode, às vezes, em muito
se assemelhar à união estável heterossexual sendo a única diferença aparente o fato
dos conviventes serem, em um dos relacionamentos, pessoas de sexos diversos e, em
outros, do mesmo sexo.
No entanto, para garantir aos relacionamentos homossexuais o necessário e devido
reconhecimento como entidade familiar, com todas as conseqüências jurídicas que lhes
é peculiar, não há necessidade de dizer que os relacionamentos afetivos homossexuais
são um tipo de união estável e que a restrição de diversidade de sexos constante do
§ 3º do artigo 226 da Constituição Federal é dispositivo que afronta os princípios
constitucionais maiores em razão de vedar que pessoas do mesmo sexo possam viver
em união estável juridicamente reconhecida. A enumeração constitucional do artigo
226, conforme entendimento já anteriormente explicitado, não é, ao nosso juízo, uma
enumeração hermética, taxativa, mas tão-somente exemplificativa. Assim nada impede
que se afirme que as uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo que preencham
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as características de uma família (convivência duradoura, exclusiva, com o objetivo
de dividir os bons e maus momentos da vida, de partilhar os mesmos objetivos e
propósitos) seja uma entidade familiar, a exemplo daquela formada por um dos pais e
seus descendentes (família monoparental), daquela formada pelo casamento e daquela
formada pelos casais heterosexuais que vivem em união estável.
Amanhã talvez se possa incluir nesse rol até mesmo as uniões oficializadas (como
uma parceria civil registrada, por exemplo) entre pessoas do mesmo sexo como uma
modalidade de família que mais se assemelhará ao casamento do que à união estável
heterossexual em razão da chancela oficial do Estado. Depois de ser afirmado que
as uniões afetivas entre homossexuais, apesar de não estarem previstas de forma
expressa na Constituição, são um tipo de entidade familiar, a garantia dos direitos
desses conviventes do mesmo sexo e a proteção estatal podem ser obtidos mesmo
diante da ausência de regramento legal específico.
Se duas pessoas passam a ter vida em comum,
cumprindo os deveres de assistência mútua, em um
verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor
e pelo respeito, com o objetivo de construir um lar,
tal vínculo, independentemente do sexo do casal, gera
direitos e obrigações que não podem ficar à margem da
lei (DIAS, 2001, p. 92).
Aí entra, então, a aplicação da analogia. “A equiparação das uniões homossexuais
à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um regime normativo
originariamente destinado a situação diversa de tais relações, qual seja, a comunidade
familiar formada pela união estável entre um homem e uma mulher” (DIAS, 2003,
p. 69). Ao juiz não é dada a faculdade de deixar de julgar os casos concretos que
lhe são apresentados sob o argumento de inexistência de lei disciplinando a questão.
Inexistindo lei que discipline determinada questão específica, deve o julgador buscar
nos costumes, nos princípios gerais de direito e na analogia os subsídios para resolver
o impasse levado ao Judiciário.
A analogia consiste na aplicação do regramento legal concernente a uma hipótese
semelhante ao caso não previsto em lei cuja solução se procura. “A analogia ocupa-se
com uma lacuna do Direito Positivo, com hipótese não prevista em dispositivo nenhum,
e resolve esta por meio de soluções estabelecidas para casos afins” (MAXIMILIANO,
1997, p. 215). Ao utilizar a analogia para solucionar o problema da existência de uma
lacuna no Direito Positivo, como é o caso das relações homoafetivas, o julgador não
cria direito novo, não se arvora das funções do legislador. O que ele faz, tão-somente,
é descobrir o direito já existente, integrar o ordenamento jurídico positivo.
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O uso da analogia pressupõe: 1º) uma hipótese não prevista,
senão se trataria apenas de interpretação extensiva; 2º) a
relação contemplada no texto, embora diversa da que se
examina, deve ser semelhante, ter com ela um elemento
de identidade; 3º) este elemento não pode ser qualquer, e
sim, essencial, fundamental, isto é, o fato jurídico que deu
origem ao dispositivo. (MAXIMILIANO, 1997, p. 212).
Diante disso, acredita-se ser equivocada a posição defendida por juristas que, após
enfrentar a enorme dificuldade em contestar a constitucionalidade ou coerência da
regra constitucional do §3º do artigo 226 que exige a diversidade de sexos para a
configuração da união estável, dizem que o relacionamento afetivo homossexual é
uma espécie do gênero união estável. Mais acertado talvez seria se afirmar que a
união homoafetiva é um tipo de entidade familiar peculiar e que diante da ausência
de regramento constitucional deve o julgador, para atribuir efeitos jurídicos a essas
relações, valer-se da analogia e usar o regramento legal da união estável homossexual,
ressalte-se entidade familiar semelhante, mas, distinta, para solucionar os conflitos
advindos desse tipo de união.
Acredita-se que, assim como a união informal entre homem e mulher, a relação afetiva
estável entre homossexuais é uma entidade familiar em construção, sendo que a
jurisprudência, ao fazer esse processo integrativo, irá possibilitar, talvez, que amanhã
esse tipo de família esteja previsto de forma expressa na Constituição e devidamente
regulamentado através de leis ordinárias específicas. Até lá, para que não se cometa
a injustiça de não atribuir direitos a esses relacionamentos, ou de considerar como
sociedade de fato uma sociedade de afeto3 deve o aplicador do Direito socorrer-se da
analogia e aplicar, quando cabível, a legislação infraconstitucional da união estável
aos relacionamentos homoeróticos de modo que seja efetivamente garantida a proteção
estatal a esse tipo de entidade familiar.
4. Conclusão
Após todo o estudo feito, questiona-se: são as relações afetivas homossexuais uma
nova modalidade de família? Acredita-se que, apesar da inexistência de dispositivo
expresso na Constituição Federal prevendo que os relacionamentos homossexuais
são entidades familiares, ainda assim tais relações devem ser tidas como 1família se
atenderem aos requisitos fundamentais dela, que são a ostensibilidade, a publicidade,
a afetividade e o propósito de comunhão de vida. Se duas pessoas vivem juntas, com
propósito de vida comum, dividindo alegrias, preocupações, tempos fáceis e difíceis,
1
Expressão utilizada pela Desembargadora Maria Helena Diniz nos diversos trabalhos publicados a
respeito do tema.
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rendimentos, despesas, amigos, enfim, dividindo a vida, esse relacionamento sem
dúvida alguma deve ser tido como uma família. Não é correto, a nosso ver, limitar o
conceito de família às três hipóteses previstas de forma expressa na Constituição.
Uma correta interpretação da Carta Constitucional, o manejo e entendimento dos seus
princípios norteadores não remetem a esse entendimento limitante. Existem muitos
outros tipos de família diversos daqueles taxativamente previstos na Constituição
Federal de 1988 e a relação afetiva estável entre homossexuais é um deles. Não há
necessidade alguma, permissa venia, de dizer ser inconstitucional a norma que dispõe
que a união estável prevista na Magna Carta somente pode se dar entre homem e
mulher. Entende-se ser desnecessária a tentativa vã de muitos juristas e intérpretes da
lei em buscar proteger os relacionamentos homossexuais, entendendo-os como sendo
uma espécie do gênero união estável, gênero esse que englobaria a união estável
homossexual e a heterossexual. Esse é, com o devido respeito pelos que entendem
de forma diversa, o caminho mais árduo para se buscar a tutela dos relacionamentos
homoeróticos. Para classificar as uniões homoafetivas como entidades familiares e
garantir a essas uniões os direitos e deveres de um grupo familiar, não há qualquer
necessidade de dizer serem elas uniões estáveis iguais às heterossexuais nos moldes
da previsão constitucional.
São esses dois agrupamentos familiares entidades distintas, com características
diversas, assim como também são diferentes a união estável o casamento e as
entidades monoparentais. Cada uma dessas uniões ou agrupamentos familiares tem
suas características próprias, suas peculiaridades, e nem por isso umas são famílias
mais ou menos importantes do que as outras. O que se deve ter em mente é que o
conceito de família hoje está alargado. A família, atualmente, pode ser entendida como
sendo aquele grupo de pessoas que se reúnem de forma relativamente permanente
para prestarem auxílio e assistência mútua em razão de terem comunhão de interesses,
afinidade sexual, laços afetivos ou de parentesco, objetivos de vida comuns, etc. Pode
a família existir com todas essas características ou tão-somente com algumas delas.
A entidade monoparental, a exemplo, entidade familiar expressamente prevista na
Constituição, não tem como característica a existência de afinidade sexual entre os
seus membros.
No entanto, não deixam seus integrantes de perseguirem um objetivo comum, de se
auxiliarem mutuamente, de terem comunhão de interesses e laços afetivos em razão da
relação de parentesco. Um casal unido pelo matrimônio, mesmo sem filhos e mesmo
que não mantenham relacionamento sexual não deixam de formar uma família. Diante
disso, verifica-se que os relacionamentos homossexuais, ao menos diante do princípio
constitucional maior da dignidade da pessoa humana, devem ser protegidos. Se eles
reunirem as características básicas de uma família devem ser entendidos como tal,
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mesmo sem a previsão expressa da Constituição. A Carta Constitucional, repita-se,
apesar de haver previsto expressamente apenas três tipos de entidades familiares não
pretendeu excluir os demais relacionamentos da proteção estatal nem tampouco quis
dizer que só seria família aquele grupo de pessoa reunidos pelo casamento, união
estável heterossexual ou os ascendentes e seus descendentes. Se assim o tivesse feito,
tais normas estariam se contrapondo aos próprios princípios maiores da Constituição
Federal.
Assim, devem-se entender os relacionamentos afetivos homólogos como um novo
tipo familiar. Uma família diferente da união estável heterossexual assim como essa
é diferente daquela constituída pelo casamento. As pessoas são diferentes e, por isso,
escolhem maneiras de viver e de buscar a felicidade e a realização pessoal de formas
diferentes. Alguns preferem viver sob a tutela estatal e formam grupos familiares
constituídos pelo casamento. Outros dispensam ou mesmo repugnam a ingerência
estatal em suas vidas pessoais e afetivas, preferindo viver uniões livres com ou
sem filhos. São os casais heterossexuais que vivem em união estável. Duas pessoas
do mesmo sexo, dessa forma, podem também querer constituir uma família, a seu
modo próprio. Hoje, isso somente é possível de forma livre, sem a chancela estatal.
Amanhã, talvez, as famílias formadas por homossexuais poderão ser famílias formais,
protegidas pela chancela estatal prévia.
Dessa forma, a conclusão a que se chega é que as relações estáveis afetivas entre
homossexuais são, a exemplo de tantas outras, um tipo de família. Uma família não
prevista expressamente na Constituição Federal, diferente daquela formada pelo
casamento, pela união estável heterossexual ou das famílias monoparentais, mas, nem
por isso, entidades familiares de menor ou maior importância do que as outras. A
proteção estatal a esses tipos de famílias deve existir desde já, pois, na hipótese contrária,
não se estará dando efetividade aos princípios maiores da nossa Carta Constitucional,
princípios fundantes do Estado democrático de direito. Até que o legislador pátrio
cumpra o seu papel e inclua no laço jurídico os relacionamentos homoeróticos, deve
o intérprete do Direito, para assegurar os direitos dos membros desse tipo peculiar de
família, socorrer-se de normas aplicáveis a outros tipos de famílias hoje existentes.
A utilização da analogia e a aplicação das regras que disciplinam as uniões estáveis
heterossexuais às uniões homoafetivas deve acontecer, já que o julgador não pode
deixar de decidir em razão da inexistência de lei disciplinando uma hipótese levada
ao Judiciário.
No entanto, o que se deve ter em mente é que as uniões afetivas homossexuais são
famílias com características próprias, próximas, mas diversas das dos outros tipos
de família. Cada tipo de família tem as suas características próprias. A formada pelo
casamento não é de forma alguma igual à família formada por um ascendente e seus
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descendentes nem tampouco igual à entidade familiar formada pela união estável
heterossexual. Isso não quer dizer, porém, que uma família seja superior à outra, já
que, o objetivo final de cada uma dessas famílias, seja ela de que modalidade for, é
incontestavelmente o mesmo, ou seja, a busca da felicidade e realização pessoal de
cada um dos seus integrantes.
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
2. JURISPRUDÊNCIA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL
1o Acórdão.
EMENTA: PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL. RECURSO
ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ART.
668 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. FALTA DE PRONUNCIAMENTO DOS
MINISTROS INTEGRANTES DA TURMA SOBRE MATÉRIA APRECIADA PELO
MINISTRO RELATOR. DESNECESSIDADE. OMISSÃO. INOCORRÊNCIA.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. I - É desnecessária a manifestação
expressa dos membros da Turma julgadora sobre todos os aspectos suscitados pela parte
e apreciados pelo Ministro Relator. II - Embargos de declaração em que se pretende
reapreciação do julgado. III - Embargos de declaração rejeitados. (STF, 1a Turma,
RHC-ED 90759/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgamento 09/10/2007, DJ
26/10/2007).
2o Acórdão.
EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM
HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL.
FURTO DOS BENS PENHORADOS. DEPÓSITO NECESSÁRIO. SÚMULA 619
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. EFICÁCIA DA DECISÃO JUDICIAL.
COAÇÃO ILEGAL. INOCORRÊNCIA. RECURSO IMPROVIDO. I - O depósito
judicial é obrigação legal que estabelece relação de direito público entre o juízo da
execução e o depositário, permitindo a prisão civil no caso de infidelidade. II - A via
eleita necessita de comprovação pré-constituída acerca dos elementos de convicção
que, de forma inequívoca, comprove as alegações apresentadas. III - A substituição
de bens penhorados, nos termos do art. 668 do Código de Processo Civil, depende da
comprovação da impossibilidade de prejuízo para o exeqüente, o que não ocorre no
caso em análise. IV - Recurso improvido. (STF, 1a Turma, RHC 90759/MG, Rel. Min.
Ricardo Lewandowski, Julgamento 15/05/2007, DJ 22/06/2007).
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1o Acórdão.
EMENTA: ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE
CIVIL. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. TRANSPORTE PÚBLICO
COLETIVO. PERMISSÃO. ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 165, 458, II,
E 535, I E II, DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL.
INAPLICABILIDADE. SÚMULA 39/STJ. DESEQUILÍBRIO ECONÔMICOFINANCEIRO. INDENIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. FALTA DE LICITAÇÃO.
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SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO. DISSÍDIO PRETORIANO. SÚMULA
83/STJ. PRECEDENTES. 1. Não viola os arts. 165, 458, II, e 535, I e II, do CPC, nem
importa negativa de prestação jurisdicional, o acórdão que decide, motivadamente,
todas as questões argüidas pela parte, julgando integralmente a lide. 2. A prescrição
qüinqüenal regulada pelo Decreto 20.910/32 e pelo Decreto-Lei 4.597/42 não se
aplica às ações indenizatórias ajuizadas em face da Empresa de Transportes e Trânsito
de Belo Horizonte S/A (BHTRANS), por se tratar de sociedade de economia mista,
sob a forma de sociedade anônima, dotada de personalidade jurídica de direito
privado (Lei Municipal 5.953/91). Aplicação da Súmula 39/STJ. 3. Não é devida
indenização a permissionários de serviço público de transporte coletivo de passageiros
por prejuízos decorrentes de tarifas deficitárias, tendo em vista a inexistência de
licitação e o atendimento ao princípio da supremacia do interesse público. 4. “Não
se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se
firmou no mesmo sentido da decisão recorrida” (Súmula 83/STJ). 5. Recurso especial
parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido, apenas para se afastar a
prescrição qüinqüenal da pretensão condenatória. (STJ, RESP 839111/MG, 1a Turma,
Rel. Min. Denise Arruda, Julgamento 04/09/2007, DJ 11/10/2007, p. 301).
2o Acórdão.
EMENTA: DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ERRO MÉDICO.
OPERAÇÃO GINECOLÓGICA. MORTE DA PACIENTE. VERIFICAÇÃO
DE CONDUTA CULPOSA DO MÉDICO-CIRURGIÃO. NECESSIDADE DE
REEXAME DE PROVA. SUMÚLA 7/STJ. DANOS MORAIS. CRITÉRIOS PARA
FIXAÇÃO. CONTROLE PELO STJ. I – Dos elementos trazidos aos autos, concluiu
o acórdão recorrido pela responsabilidade exclusiva do anestesista, que liberou,
precocemente, a vítima para o quarto, antes de sua total recuperação, vindo ela a
sofrer parada cárdio-respiratória no corredor do hospital, fato que a levou a óbito,
após passar três anos em coma. A pretensão de responsabilizar, solidariamente, o
médico cirurgião pelo ocorrido importa, necessariamente, em reexame do acervo
fático-probatório da causa, o que é vedado em âmbito de especial, a teor do enunciado
7 da Súmula desta Corte. II – O arbitramento do valor indenizatório por dano moral
sujeita-se o controle do Superior Tribunal de Justiça, podendo ser majorado quando
se mostrar incapaz de punir adequadamente o autor do ato ilícito e de indenizar
satisfatoriamente os prejuízos extrapatrimoniais sofridos. Recurso especial provido,
em parte. (STJ, RESP 880349/MG, 3a Turma, Rel. Min. Castro Filho, Julgamento
26/06/2007, DJ 24/09/2007, p. 297).
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JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE
MINAS GERAIS
1o Acórdão.
EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA - INTERESSE INDIVIDUAL INDISPONÍVEL
DE UM ÚNICO MENOR - MINISTÉRIO PÚBLICO - ILEGITIMIDADE ATIVA
- PRECEDENTES DO STJ. - Os “”interesses individuais”” a serem defendidos
pelo MINISTÉRIO PÚBLICO englobam apenas a categoria dos direitos individuais
homogêneos, entendidos como tais, aqueles, cuja titularidade pertença a variados
indivíduos, ajustando-se à noção de DIREITO coletivo em sua acepção ampla. - A
pretensão de que seja reconhecida a legitimidade do Parquet para representar uma
pessoa individualizada, em Ação CIVIL Pública, implica em supressão do requisito
da homogeneidade do DIREITO a ser defendido. V.V.P. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. TUTELA DE INTERESSE
INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DE MÁXIMA PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO
ADOLESCENTE. REQUISITOS LEGAIS PARA DEFERIMENTO DA LIMINAR.
PREVALÊNCIA DO DIREITO À VIDA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
SOBRE AS NORMAS QUE REGEM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. A
interpretação harmônica dos artigos 227 e 129, inciso IX, ambos da Constituição da
República e do artigo 201, inciso V, do Estatuto da Criança e Adolescente, autoriza
a conclusão de que o MINISTÉRIO PÚBLICO possui legitimidade para defender
interesse individual indisponível de criança e adolescente, via ação CIVIL pública.
Entender o contrário significa fragilizar a efetivação dos direitos fundamentais e
dificultar a defesa em juízo de crianças e adolescentes que tenham individualmente
seus direitos fundamentais ameaçados ou lesados, afastando, pois, a essência
protetiva do artigo 227 da Constituição da República. A tutela individual dos direitos
fundamentais de crianças e adolescentes, por envolver bens jurídicos como, dignidade,
respeito, saúde, vida, lazer, alimentação, cultura, profissionalização, liberdade,
educação e convivência familiar e comunitária, é sempre considerada como DIREITO
socialmente relevante, estando permanentemente sujeita à proteção pelo MINISTÉRIO
PÚBLICO. O traço marcante desses direitos fundamentais, que concretizam o
princípio constitucional da proteção integral à criança e ao adolescente, é o de ser
considerado como indisponível, seja no plano individual ou transindividual. Nenhuma
interpretação jurídica ou lei hierarquicamente inferior pode trazer restrições, de modo
a negar efetividade jurídica a direitos afetos às crianças e adolescentes, garantidos
constitucionalmente. O julgador deve observar as normas que regem a Administração
Pública, mas não a ponto de impedir a concretização de direitos fundamentais que
digam respeito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana, sob pena de privilegiar
bem juridicamente inferior a outros. A assertiva de que há formalidades que se opõem
ao pedido de concessão de liminares se afigura desarrazoada e desproprocional, ao se
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
constatar que ela é suficientemente hábil a atingir a vida, a saúde e a dignidade dos
munícipes de Pará de Minas. Há um interesse PÚBLICO maior na defesa intransigente
à vida do que na obediência formal às regras que regem a gestão da Administração
Pública. Sumula: DERAM PROVIMENTO PARCIAL, VENCIDA, EM PARTE,
A RELATORA. (TJMG, Processo 1.0471.05.040104-4/001, Relatora Maria Elza,
Julgamento 02/06/2007, Publicação 24/06/2007).
2o Acórdão.
EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. MINISTÉRIO PÚBLICO.
RESPONSABILIZAÇÃO DA ADMINSITRAÇÃO PÚBLICA. OMISSÃO NO
CUMPRIMENTO DE DEVERES LEGAIS. DANOS DECORRENTES DE
INUNDAÇÃO. DIREITO À REPARAÇÃO. O MINISTÉRIO PÚBLICO possui
legitimidade para propositura de ação CIVIL pública que tutele os interesses difusos,
coletivos e individuais homogêneos, notadamente aqueles correlacionados com a
prestação de serviços públicos, quando a lesão a tais interesses, visualizada em sua
dimensão coletiva, compromete interesses sociais relevantes. Precedente: STJ 417.804
- PR e 610.235 - DF. A responsabilização solidária do Município de Ouro Preto e
do DER/MG deve ser mantida, pois foram omissos no cumprimento dos deveres
legais correlacionados com a prestação dos serviços públicos a que foram atribuídos.
Caracterizada a responsabilização, surge o DIREITO à reparação daqueles que
sofreram prejuízos. Eventual dificuldade na apuração do valor dos prejuízos sofridos
não impede o DIREITO à reparação, sob pena de mácula aos princípios da reparação
integral e ao enriquecimento ilícito. Por fim, o único reparo a ser feito na sentença é em
relação à condenação em honorários favoráveis ao MINISTÉRIO PÚBLICO, o que
não é cabível em sede de ação CIVIL pública. Se os honorários de sucumbência têm
por finalidade remunerar o trabalho do advogado e se eles pertencem, por destinação
legal, ao profissional, não podem ser auferidos pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, seja
por vedação constitucional art. 128, § 5º, II, letra a, seja por simetria, seja porque a
atribuição de recolhimento aos cofres estatais feriria a sua destinação. (Precedente
do STJ: REsp 493.823 - DF). Sumula: REFORMARAM PARCIALMENTE A
SENTENÇA, NO REEXAME NECESSÁRIO, PREJUDICADO O RECURSO
VOLUNTÁRIO. (TJMG, Processo 1.0461.97.000382-2/001, Relatora Maria Elza,
Julgamento 31/05/2007, Publicação 14/06/2007).
3o Acórdão.
EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO. APELAÇÃO CIVEL. ADMINISTRATIVO
E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA.
MINISTÉRIO PÚBLICO. INTERESSE DE MENOR. MUNICÍPIO. COMPETÊNCIA.
PRELIMINARES. REJEIÇÃO. MEDICAMENTO. ESSENCIAL. DIREITO À
VIDA E À SAÚDE. DEVER DE ASSISTÊNCIA CONSTITUCIONALMENTE
ATRIBUÍDO AO PODER PÚBLICO. CONFIRMAR A SENTENÇA. 1. O
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MINISTÉRIO PÚBLICO tem legitimidade para interpor ação CIVIL pública em favor
de interesse individual de menor, por força do que dispõem o art. 196 da Constituição
Federal e art. 201, V, do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. O dever de zelar pela
saúde pública estende-se a todos os entes da federação, os quais devem assegurar às
pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação, além dos serviços
médicos e hospitalares necessários aos tratamentos de doenças e de outras mazelas.
3. A Lei 9.494/97, além de não exigir a prévia audiência do representante legal da
pessoa jurídica de DIREITO PÚBLICO, não impede a concessão da tutela antecipada
contra a Fazenda Pública, sendo vedado seu deferimento apenas nas hipóteses
previstas no art. 1º da referida norma. 4. O DIREITO à saúde - além de qualificar-se
como DIREITO fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência
constitucional indissociável do DIREITO à vida. 5. Rejeitam-se as preliminares e
confirma-se a sentença, prejudicado o recurso voluntário. Súmula: REJEITARAM
PRELIMINARES E CONFIRMARAM A SENTENÇA, PREJUDICADO O
RECURSO VOLUNTÁRIO. (TJMG, Processo 1.0024.05.837294-7/001, Relator
Célio César Paduani, Julgamento 17/05/2007, Publicação 24/05/2007).
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3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA
3.1. DUPLICATAS
APARECIDO JOSÉ DOS SANTOS FERREIRA
Especialista em Direito de Empresa pela UGF/CAD
Mestrando em Direito Empresarial, na Universidade de Itaúna/MG
1. Acórdão
EMENTA: APELAÇÃO - AÇÃO CAUTELAR - EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS
- AUSÊNCIA DA NEGATIVA DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL ILEGITIMIDADE PASSIVA - INOCORRÊNCIA - INOVAÇÃO PROCESSUAL
- NÃO CARACTERIZAÇÃO - DUPLICATA EM MEIO MAGNÉTICO IMPOSSIBILIDADE DE EXIBIÇÃO. Não há que se cogitar negativa de prestação
jurisdicional baseada na ausência de fundamentação quando declinadas as razões
de decidir do magistrado a quo, sendo de se lembrar que ao julgador também não
se impõe a abordagem de todos os argumentos deduzidos pelas partes no curso da
demanda. - Se a parte não comprova que se recusou a proceder à cobrança do título,
é legítima para configurar no pólo passivo da ação. - O magistrado não se encontra
adido à fundamentação jurídica invocada pela parte, bastando para a aplicação correta
do direito a narração dos fatos na contestação - Na cobrança escritural efetuada pelos
meios eletrônicos, in casu, a duplicata virtual, inexiste título de crédito a ser exibido,
donde se conclui pela impossibilidade de sua apresentação.
SÚMULA: Rejeitaram as preliminares e deram provimento. Assistiu ao julgamento,
pelo apelado, o Dr. Vinícius Moreira Mitre
(TJMG - Apelação nº 2.0000.00.438655-4/000(1); Apte.: Banco do Brasil S/A, Apdo.:
Constractor Serviços e Locações Ltda; Rel.: Des. Dídimo Inocêncio de Paula; Data do
acórdão: 11/11/2004; Data da publicação: 26/11/2004)
ACÓRDÃO
“Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N. 438.655-4, da
Comarca de BELO HORIZONTE, sendo Apelante (s): BANCO DO BRASIL S.A. e
Apelado (a) (os) (as): CONSTRACTOR SERVIÇOS E LOCAÇÕES LTDA.,
ACORDA, em Turma, a Sexta Câmara Civil do Tribunal de Alçada do Estado de
Minas Gerais REJEITAR PRELIMINARES E DAR PROVIMENTO.
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Presidiu o julgamento o Juiz VALDEZ LEITE MACHADO e dele participaram os
Juízes DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA (Relator), ELIAS CAMILO (Revisor) e
HELOÍSA COMBAT (Vogal).
O voto proferido pelo Juiz Relator foi acompanhado na íntegra pelos demais
componentes da Turma Julgadora.
Produziram sustentação oral, pelo apelante, o Dr. Luiz Carlos Pereira Rocha e, pelo
apelado, o Dr. Vinícius Moreira Mitre.
Belo Horizonte, 11 de novembro de 2004.
JUIZ DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA
Relator
VOTO
JUIZ DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA:
Trata-se de recurso de apelação manejado por Banco do Brasil S.A. contra sentença
de f. 54/59, proferida pelo MM. Juiz de Direito da 4ª Vara Cível da comarca de
Belo Horizonte/MG, nos autos da ação de exibição de documentos promovida por
Constractor Serviços e Locações Ltda. em face do apelante.
Inconformado com a sentença que julgou parcialmente procedente a exibição de
documentos, aduz o apelante, em sede de preliminares, a ocorrência da negativa de
prestação da tutela jurisdicional em virtude da ausência de fundamentação da sentença
no tocante a multa que lhe foi imposta, bem como a sua ilegitimidade passiva. Quanto
ao mérito, alega tratar-se de cobrança escritural efetuada pelos meios eletrônicos de
responsabilidade da cedente, ao final, insurge contra a multa que lhe foi imposta em
primeiro grau, por violação ao disposto no art. 412 do CC/2002.
Contra-razões às fls. 86/95, alegando a ocorrência de inovação recursal, oportunidade
em que impugna os demais documentos lançados pelo apelante em seu recurso.
Este é o relatório.
Conheço do recurso, porquanto tempestivo e presentes os demais pressupostos de
admissibilidade.
Preambularmente, há que se registrar que retirei os autos da seção de julgamento do
dia 21/10/2004, para o fim de melhor examiná-los, em virtude da sustentação oral do
ilustre procurador do apelado.
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De início, cumpre analisar a preliminar de negativa de prestação da tutela jurisdicional
levantada pelo apelante, em virtude de ser a r. sentença carente de fundamentação, uma
vez que nela inexistem argumentos a justificar o valor da multa que lhe foi imposta.
É de se registrar que, de corrente e pacífica jurisprudência, não se deve confundir
concisão da sentença com falta de fundamentação, ou até mesmo divergência de
entendimento com esta.
Verifico que, da análise dos arrazoados das partes e das provas contidas nos autos,
ficaram bem estabelecidas as primícias da decisão hostilizada, vez que o ilustre
juiz sentenciante fixou a multa em percentual muito inferior ao valor da obrigação
principal, uma vez que a obrigação contida na duplicata de que se pretende a exibição
corresponde a R$ 1.739.402,05 (um milhão, setecentos e trinta e nove mil, quatrocentos
e dois reais e cinco centavos).
Assim, tenho que, ao decidir, o magistrado a quo aplicou a norma e o entendimento
que julgou correto e condizente ao caso examinado, razão pela qual não há o apontado
vício.
Ademais, é sabido que não se pode exigir do juiz a abordagem de todos os argumentos
suscitados pelas partes no curso da demanda, bastando, para a validade de sua decisão,
decida arrimado em bases jurídicas o cerne da quaestio.
Nesta quadra a jurisprudência pacificou: ‘O juiz não está obrigado a examinar, um a
um, os pretensos fundamentos das partes, nem todas as alegações que produzem: o
importante é que indique o fundamento suficiente de sua conclusão, que lhe apoiou
a convicção no decidir’ (Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 172.059-MG, Min.
Fernando Gonçalves, DJU 8.9.1998).
Por estas razões, tenho que não restou caracterizada a nulidade da decisão ora
combatida por negativa da prestação jurisdicional, caracterizada pela ausência de
fundamentação.
No que tange à preliminar de ilegitimidade passiva, aduz o apelante, em suas razões,
que não é parte legítima para figurar no pólo passivo, pois trata-se de cobrança
escritural registrada eletronicamente, em que a cártula não foi emitida, sendo que
o Banco apenas processa os dados impostados pela cedente, qual seja, CNH Latino
Americana Ltda., alegando, ainda, não ser credor do apelado, tendo em vista que
sequer enviou qualquer boleto de cobrança para o mesmo.
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No caso em comento, trata-se de cobrança simples mediante endosso mandato,
conforme f. 37/40, operação em que a cobrança é registrada eletronicamente, não
havendo a emissão do título. Neste tipo de procedimento, a instituição que procederá
à cobrança recebe da empresa cedente todos os dados acerca da operação que deu
origem ao título, inclusive no que toca ao comprovante de entrega de mercadoria.
Assim, não há que se cogitar ilegitimidade passiva do apelante, embora tenha feito
alegações no sentido de que não emitiu boleto de cobrança em razão dos problemas
financeiros da apelada, o apelante participou da formação do título eletrônico de que
ora se pretende a exibição.
No que concerne a preliminar de inovação processual, alega a apelada que o apelante
inova em matéria recursal, ao argumentar que jamais possuiu o título cambial e que o
mesmo se tratava de uma cobrança eletrônica.
Entretanto, entendo que razão não lhe assiste, uma vez que, na própria contestação,
o apelante expressamente afirma que se trata de “cobrança escritural, registrada
eletronicamente, conforme relatórios anexos.” - f. 33.
Demais disso, cediço é que o magistrado não se encontra adido à fundamentação
jurídica invocada pela parte, que no caso remete à existência de cobrança escritural,
registrada eletronicamente, bastando para a aplicação correta do direito a narração dos
fatos na contestação, a teor do aforismo ‘da mihi factum, dabo tibi jus’.
Assim, não há falar em inovação recursal.
Rejeito, pois, as preliminares invocadas e passo ao deslinde do mérito.
Aduz o apelante que inexiste título de crédito a ser exibido, porquanto trata-se de
cobrança escritural efetuada pelos meios eletrônicos, em que o documento não existe
fisicamente, uma vez que os dados são impostados pelo cedente através de uma fita
magnética, não havendo emissão de documento.
Neste tempo, com a evolução do direito comercial e avanço tecnológico, a prática de
emissão de duplicatas formais a partir da década de 80 tornou-se rara, sendo que em
seu lugar surgiu a duplicata eletrônica.
A respeito do tema vale a bem lançada lição de Marcos da Costa:
O mercado financeiro, a partir do início da década de 80,
começou a operar com a duplicata escritural, a duplicata
eletrônica. Hoje, 99% da duplicatas que circulam no mercado
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financeiro são eletrônicas; não existe mais aquela duplicata
formal material. O comerciante saca a duplicata eletronicamente,
desconta eletronicamente essa duplicata no Banco, o Banco
emite o boleto de cobrança dessa duplicata, e então o sacado
paga, ou não, sua dívida. Se não pagar, dependendo do tipo
de desconto (se é um desconto caução ou se é um desconto
mandato, enfim, há uma série de espécies de descontos), o
Banco pode levar a duplicata a protesto. Só que o faz de uma
forma eletrônica, porque a duplicata não existe fisicamente,
desde a origem ela não foi materializada. Isso acontece, reiterese, desde a década de 80, e hoje o desconto de duplicata é a
modalidade mais importante de alavancagem de recursos por
parte do comércio (Donaldo Armelin, João Bosco Lee, Osvaldo
Contreras Strauch, Waldo Augusto Sobrinho, Marcos da Costa,
Arbitragem e Seguro/ Comércio Eletrônico e Seguro, Ed. Max
Limonad, p.160).
Do cotejo dos autos, dúvida não há de se estar diante de duplicata eletrônica, cuja
exibição, ao meu sentir, é de fato impossível, em face da sua inexistência material.
Importante registrar, inclusive, que o direito pátrio abraça a execução da duplicata
virtual, ou seja, admite e legitima sua existência, visto que, para uma satisfativa
prestação jurisdicional, não exige a exibição do título em papel. Neste sentido são os
ensinamentos do ilustre doutrinador Fábio Ulhôa Coelho:
Se a obrigação não é cumprida no vencimento, os dados
pertinentes à duplicata virtual seguem, em meio magnético,
ao cartório de protesto. Assim é, ou poderia ser, nas grandes
comarcas. Trata-se do protesto por indicações, instituto típico
do direito cambiário brasileiro, criado inicialmente para tutelar
os interesses do sacador, na hipótese de retenção indevida da
duplicata pelo sacado. Não há, na lei nenhuma obrigatoriedade
do papel como veículo de transmissão das indicações para
o protesto, de modo que também é plenamente jurídica a
utilização dos meios informáticos para a realizar.
E mais adiante:
‘O instrumento de protesto da duplicata, realizado por indicações, quando acompanhado
do comprovante da entrega das mercadorias, é título executivo extrajudicial. É
inteiramente dispensável a exibição da duplicata, para aparelhar a execução, quando
o protesto é feito por indicações do credor (LD, art.15, §2º)’ (Coelho, Fábio Ulhôa,
Curso de Direito Comercial, v. 1, Saraiva, p. 466).
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Destarte, não há cogitar exibição do documento pretendido, por tratar-se de duplicata
virtual, não existindo fisicamente. Quanto às alegações de fraude ou irregularidades
na emissão do título, tenho que não cabe análise em sede de ação de exibição, tais
questões devem ser discutidas em ação própria.
No que concerne à discussão do quantum da multa diária fixada pelo julgador
monocrático, entendo que sua análise ficou prejudicada em virtude da improcedência
do pedido pórtico, qual seja, a exibição do documento.
Por fim, em sede da alegação de litigância de má-fé, entendo inaplicável o instituto à
hipótese em tela, porquanto não se encaixa a presente situação em nenhuma daquelas
insculpidas no artigo 17 do CPC, estando o recorrente, tão somente, a exercer seu
direito de defesa constitucionalmente consagrado. Em face do exposto, dou provimento
à apelação, para julgar improcedente a demanda, invertendo o ônus sucumbencial
fixado na decisão vergastada.
Custas recursais pela apelada.
JUIZ DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA
2. As duplicatas
2.1. Visão geral das duplicatas
Em que pese a objetividade deste artigo, para o seu perfeito entendimento, necessária
se faz uma visão geral, ainda que rápida, sobre as duplicatas, bem como uma visão
histórica, compreendendo assim todas as vicissitudes deste título de crédito.
2.2. Visão histórica
Sua origem4 remonta ao Código Comercial, de 1850, cujo artigo 219 introduziu o
título no ordenamento jurídico pátrio (BARBI FILHO, 2005),
[...] impondo aos comerciantes atacadistas, na venda aos
retalhistas, a emissão da fatura ou conta – isto é, a relação por
escrito das mercadorias entregues. O instrumento devia ser
emitido em duas vias (‘por duplicado’, dizia a lei), as quais,
assinadas pelas partes ficariam uma em poder do comprador,
4
Há autores (COSTA, 2005), porém, que entendem que o dispositivo do Código Comercial revogado trouxe, somente, a inspiração para a duplicata, que teria surgido mais tarde. Para Borges (1977, p.206) a “[...] a
Duplicata nasceu com o decreto nº 16.041, de 22 de maio de 1923, alterado neste mesmo ano, pelo dec. nº
16.189, de 20 de outubro de 1923”.
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e outra do vendedor. A conta assinada pelo comprador, por sua
vez, era equiparada aos títulos de crédito, inclusive para fins de
cobrança judicial (ULHÔA, 2006, p. 454).
Assim, “[...] não sendo a fatura e a sua duplicata reclamadas por vendedor ou comprador
dentro de dez dias da entrega, presumir-se-iam líqüidas suas contas” (BARBI FILHO,
2005, p. 2). Ainda sob a vigência do revogado Código Comercial, por meio do seu art.
427, a duplicata teve reconhecida a feição de título de crédito, a partir do momento
que ele determinou que as disposições da letra de câmbio se aplicariam aos títulos
mercantis – dentre eles a duplica (BARBI FILHO, 2005).
Mais tarde, com a edição do Decreto nº 2.044/08, que traçava novas nuances dos títulos
de crédito, as determinações do Código Comercial que fossem com ele incompatíveis
foram revogadas, e, dentre elas, as que tratavam da duplicata. Portanto, perdiam
os comerciantes uma importante característica da duplicata, seu efeito cambiário.
Novamente eram exigidas as notas promissórias e as letras de câmbio, prática não
muito aceita pelo mercado (REQUIÃO, 2005). Posteriormente, com nítidos interesses
tributários, o Governo interessado em fazer ressurgirem as duplicatas, visando cobrar
impostos – imposto do selo –, fê-las ressurgir com aspectos cambiários e com fácil
realização de seus créditos (REQUIÃO, 2005), por meio da Lei Orçamentária nº
2.929/14 e o Decreto nº 11.527/15 instituindo o imposto do selo e equiparando as
duplicatas à nota promissória e à letra de câmbio (BARBI FILHO, 2005).
Durante o I Congresso das Associações Comerciais houve uma sugestão –
posteriormente acatada pelo Governo – de criação de um título, a duplicata da fatura,
de modo que pudesse amparar os dois lados da moeda, o Governo com a incidência
do imposto do selo e seu controle e, de outro, os empresários que poderiam ter seus
créditos circulando livremente (COELHO, 2006). A idéia foi aceita e implementada
alguns anos depois com a Lei nº 4.625/22, regulamentada pelo Decreto nº 16.041/23
e pelo Decreto nº 16.275/24, que devidamente combinados sedimentou a duplicata
mercantil no ordenamento jurídico brasileiro (BARBI FILHO, 2005).
Com o apetite tributário voraz do Governo, foi editada a Lei nº 187/36, determinando
que a emissão da duplicata seria obrigatória, por ser o imposto do selo a ela atrelado
(REQUIÃO, 2005; BARBI FILHO, 2005). Em decorrência dessa obrigatoriedade,
surgiu também a obrigatoriedade de seu controle, surgindo então o livro de registro
de duplicatas, em que as irregularidades nele constantes impingiam aos então
comerciantes pesadas multas (COSTA, 2005) e tal obrigação ainda permanece, mas
atualmente caracteriza ilícito penal5.
5
O Código Penal, em seu art. 172, tipifica como crime a emissão de fatura ou duplicata que não corresponda
à mercadoria vendida ou ao serviço prestado. O mesmo vale para a falsificação ou adulteração do livro de
registro de duplicatas, imputando pena de detenção, com prazo de dois a quatro anos e multa.
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Tal panorama, entretanto, não permaneceu durante muito tempo, pois com a mudança
tributária havida no País com a edição do Código Tributário Nacional, em 1966,
a competência para cobrar o tributo incidente sobre a duplicata que era da União6
passou para os Estados – já que incidia sobre as mercadorias vendidas –, o que
alterou substancialmente toda tributação (BARBI FILHO, 2005; REQUIÃO, 2005).
Finalmente, a Lei nº 5.474/68, devidamente complementada pelo Decreto-Lei nº
436/69, veio reger definitivamente a duplicata. Desde então, a duplicata tem caráter
eminentemente cambial e comercial (REQUIÃO, 2005; BARBI FILHO, 2005; ROSA
JÚNIOR, 2006).
2.3. Visão geral
A duplicata mercantil é regida pela Lei nº 5.474/68, que determina a obrigatoriedade
de emissão da fatura nas vendas cujo prazo seja superior a trinta dias, facultando a
emissão da duplicata7. Portanto, a duplicata é na realidade uma cópia fiel do documento
de emissão obrigatória, a fatura8. Salienta-se que, por meio de convênio realizado
ainda na década de setenta entre o Ministério da Fazenda e as Secretarias de Fazenda
Estaduais, foi possível a emissão da nota fiscal como fatura, criando-se, pois, a nota
fiscal-fatura (BARBI FILHO, 2005), sendo comum a emissão atualmente apenas da
nota fiscal-fatura. O mecanismo de funcionamento é simples. Uma vez realizado o
negócio jurídico de compra e venda mercantil, é expedida pelo empresário a nota
fiscal-fatura. Após isso,
Nos 30 dias seguintes à emissão, o sacador deve remeter a
duplicata ao sacado. Se o título é emitido à vista, o comprador, ao
recebê-lo, deve proceder ao pagamento da importância devida;
se a prazo, ele deve assinar a duplicata, no campo próprio para
o aceite, e restituí-lo em 10 dias. Isto, por evidente, se não
existirem motivos para a recusa do aceite, hipótese em que a
duplicata é devolvida ao vendedor acompanhada da exposição
deles. (LD, art. 7º e § 1º) (COELHO, 2006, p. 459).
6
No novo regime tributário foi criado o Imposto sobre Circulação de Mercadorias – ICM, que passou a ser
de competência dos Estados, e que tinha na duplicata uma forma eficaz de fiscalização e arrecadação.
7
Art. 1º e 2º, caput, e requisitos dispostos no § primeiro deste último artigo, todos da Lei nº 5.474/68.
8
Para Requião (2005, p. 546-547), fatura é “[...] uma nota de mercadorias que um comerciante expede a
outro com a menção das qualidades que a caracterizam e de seu preço, com o fim de efetuar um contrato de
compra e venda, entre eles estipulado, ou cuja estipulação é proposta ou oferecida”, cuja natureza “[...] não
é um título representativo da mercadoria ou do crédito a ela relativo. Ela é apenas o documento que identifica o objeto, as condições e características do contrato de compra e venda firmado, provando a operação
sobre a qual incide o tributo” (BARBI FILHO, 2005, p. 10).
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Ocorre, porém, que tal procedimento não é tão comum em virtude da forte característica
deste título funcionar como meio eficaz de financiamento mercantil, fazendo com que
as duplicatas sejam enviadas aos bancos e estes enviem apenas avisos de cobranças
(os chamados boletos) para o que o sacado tome ciência da data do vencimento do
título, do valor a ser pago e do local de pagamento, que hoje pode ser em qualquer
agência bancária (ROSA JÚNIOR, 2006). Impossível se torna evitar a comparação9
entre a duplicata e a letra de câmbio considerando-se as congruências, bem como
suas divergências, principalmente porque nos dois títulos estão presentes todas as
declarações cambiais10, necessárias e eventuais, o que a torna um título de crédito
tão versátil quanto a letra de câmbio. Entretanto, a mais importante das divergências
baseia-se no regime do aceite, pois
[...] enquanto o ato de vinculação do sacado [letra de câmbio] à
cambial é sempre facultativo (quer dizer, mesmo que devedor,
o sacado não se encontra obrigado a documentar sua dívida
pela letra), no título brasileiro [duplicata], a sua vinculação é
obrigatória11 (ou seja, o sacado, quando devedor do sacador,
se obriga ao pagamento da duplicata, ainda que não assine).
(COELHO, 2006, p. 455).
Aliado a essa existe uma outra, não menos importante, que é a relação de causalidade
existente na duplicata e que não há na letra de câmbio, porque “[...] a sua emissão
somente se pode dar para a documentação de crédito nascido de compra e venda
mercantil” (COELHO, 2006, p. 456). Mas considerando as hipóteses existentes, há
três modalidades de aceite, quais sejam, o ordinário, por presunção e por comunicação.
Tratar-se-á, de agora em diante, de cada uma dessas modalidades. O aceite ordinário12,
o mais simples de todos, caracteriza-se pela assinatura hológrafa do sacado no espaço
específico para ela (COELHO, 2006). O aceite por presunção tem sua origem no
9
Rosa Júnior (2006) tece excelente comparação entre os dois títulos, cuja leitura se recomenda para aprofundamento.
10
Declaração necessária é o saque ou emissão, corporificada pela assinatura do sacador ou emitente. A
declaração eventual pode ser o aceite, o endosso e o aval, representadas pelas assinaturas do aceitante, do
endossante e do avalista, respectivamente (COSTA, 2005).
11
De acordo com a Lei nº 5.474/68, nos termos do art. 8º, o sacado somente pode deixar de aceitar a duplicata quando haja avaria ou não recebimento das mercadorias, sob responsabilidade do sacador; por vícios,
defeitos e diferenças na qualidade ou quantidade das mercadorias comprovadamente; e por divergências
nos prazos ou preços ajustados.
12
Coelho (2006, p. 460) assevera que nesta modalidade, atualmente, requer maior atenção do julgador
quanto à sua causa, uma vez que, segundo ele, na modalidade eletrônica, é comum não haver a assinatura
do sacado e, em sede de embargos à execução, podem ser questionados vários argumentos, dentre eles o
fato de ter sido a duplicata simulada, ter havido vício de consentimento no ato do aceite, o que, na opinião
do autor, teria forte possibilidade de acontecer.
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recebimento normal das mercadorias pelo sacado, inexistindo qualquer recusa formal
(COELHO, 2006). Importante observar que o aceite presumido ocorre
[...] quando, cumulativamente, estejam presentes os seguintes
elementos: a) haja sido protestada por falta de pagamento; b)
esteja acompanhada de documento hábil comprobatório da
entrega e recebimento da mercadoria; c) o sacado não tenha,
comprovadamente, recusado o aceite, no prazo, nas condições e
pelos motivos previstos nos arts. 7º e 8º da LD (ROSA JÚNIOR,
2006, p. 704).
E como se verá no item 2.4, o aceite presumido tem sido fortemente utilizado por
instituições bancárias e de crédito, para procederem à criação de títulos executivos,
baseados na supressão documental da duplicata. Por fim, resta o aceite por comunicação.
Trata-se da possibilidade, e também direito do sacador, de reter a duplicata quando
ela lhe for apresentada para aceite e ele deverá comunicar, no prazo de dez dias, ao
remetente, sacador ou instituição bancária, que está retendo o título e que irá pagá-lo
na data do vencimento, oportunidade em que deverá o credor firmar recibo na cártula.
De todas as modalidades, esta é, sem dúvida, a que ocorre com menor incidência,
por dois motivos: primeiro, porque geralmente não há anuência do credor, sacador
ou instituição bancária; e, segundo, porque pela atual prática, a própria duplicata não
mais chega às mãos do sacado.
Demonstradas as principais diferenças, passar-se-á para as congruências. Uma
delas é a incidência de aval, cuja modalidade se dá também nos mesmos moldes da
letra de câmbio e que, por isso, não merece maiores esclarecimentos. Há também a
incidência do endosso que, a exemplo do aval, segue os mesmos ditames da letra
de câmbio. Todavia, há que se fazer aqui uma ressalva importante, pois, quanto ao
endosso póstumo, não ocorre a transferência dos direitos derivados do título, mas sim
originários, pois não há incidência no título do art. 20 da LUG13, por prevalecerem os
dispositivos do art. 25 da Lei nº 5.474/68, determinando que somente se aplica a LUG
subsidiariamente (ROSA JÚNIOR, 2006).
A exemplo da letra de câmbio, a duplicata também pode ser protestada pelos mesmos
motivos, a saber: a) falta de aceite, b) falta de pagamento e c) falta de devolução
(Lei nº 5.474/68). Mas antes de adentrar-se nesta seara, mister saber o que é protesto
e quais documentos são protestáveis. Buscando auxílio na Lei nº 9.492/1997 e nos
ensinamentos de Darold (2005, p. 17), tem-se que “[...] o protesto cambial é ato
formal, requerido ao organismo estatal pelo interessado, à salvaguarda dos seus
direitos expressos em título de crédito e à Constituição em mora do devedor para
todos os efeitos legais”.
13
Em sentido contrário, Borges (1977) assevera que à duplicata se aplicam todas as normas da LUG.
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O mesmo autor (2005) vaticina ainda que, de acordo com art. 202 do Código Civil,
protesto tem ainda função interruptiva da prescrição. E explica que, por se tratar de
severo meio de constrangimento, o protesto deve seguir, rigorosamente, os ditames da
lei, sob risco de transformar-se em ato ilegal. No que tange aos documentos protestáveis,
o documento deve estar revestido das formalidades legais, seguindo os ditames da Lei
nº 9.492/97, art. 9º e seu parágrafo único (DAROLD, 2005). Portanto,
[...] nem de longe, então, se poderá admitir que [...] poderão
ser protocolizados a protesto documentos não revestidos das
formalidades preconizadas por lei aos títulos de crédito, pois que
o ato de constrangimento via organismo estatal, e o protesto o é,
somente se faz admissível contra pessoa que se obrigou dentro
dos requisitos estabelecidos em lei, requisitos estes geradores
da presunção relativa de certeza, liqüidez e exigibilidade do
crédito, só reunidos no título de crédito (DAROLD, 2006, p.
26).
Por se tratar de um documento cujo aceite é obrigatório, caso o sacado se recuse a
aceitar a duplicata, poderá o credor valer-se do protesto para suprir o aceite, que “[...]
obviamente não formará título cambial contra o sacado que não o aceitou, mas criará
um título executivo” (BARBI FILHO, 2005, p. 24). Portanto,
[...] se o credor encaminha a duplicata sem a assinatura do
devedor, antes do vencimento, o protesto será por falta de
aceite. Se encaminha a triplicata não assinada ou as indicações
relativas à duplicata retida, também antes do vencimento,
o protesto será tirado por falta de devolução. Finalmente, se
encaminha a duplicata ou triplicata, assinadas ou não, ou
apresenta as indicações da duplicata, depois de vencido o título,
o protesto será necessariamente por falta de pagamento (Lei nº
9.492/97, art. 21, §§ 1º e 2º). (COELHO, 2006, p. 461).
O que foi notável na Lei de Protestos é o parágrafo único do art. 8º, ao permitir
o protesto de duplicatas mercantis por meio magnético ou por gravação eletrônica
de dados, cuja responsabilidade será do apresentante (ROSA JÚNIOR, 2006).
Tal inovação abriu caminho para implementação da duplicata eletrônica que, no
entendimento de alguns doutrinadores (COELHO, 2006; ROSA JÚNIOR, 2006), o
ordenamento jurídico consegue sustentar tranqüilamente, ao passo que para outros
(COSTA, 2006) ainda são necessárias algumas adaptações, principalmente no que
tange à declaração cambial, tendo em vista a impossibilidade de se apor a assinatura
de próprio punho no título.
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2.4. Duplicata eletrônica x duplicata cartular: ponderação do princípio da
cartularidade
Com as irrefutáveis inovações tecnológicas, a atividade comercial mudou, no que lhe
seguiu a atividade empresarial. E dentre as inovações tecnológicas mais marcantes,
sem dúvida alguma, a que mais afetou foi a tecnologia da informática que possibilitou
dinamizar tarefas. Tudo isso dentro de um relativo curto espaço de tempo. Assim, a
duplicata, como se viu supra, que levou algumas décadas para solidificar-se na prática
comercial e no ordenamento jurídico brasileiro, tomando lugar de destaque em sede de
títulos de crédito, já sofre significativas transformações impingidas pela informática,
cujos reflexos são expressivos como os da Lei nº 9.492/9714, que prevê a possibilidade
de que as informações relativas à duplicata circulem por meio eletrônico, magnético,
enfim, por meio diverso do papel. Isso deu margem para que os empresários,
impulsionados principalmente pela atividade bancária, desmaterializassem a duplicata,
gerando celeuma acerca da cartularidade nesta modalidade de documento.
Diante desse contexto, a doutrina passou a questionar a existência ou não do
princípio da cartularidade na duplicata eletrônica, escritural ou virtual15 como tem
sido chamada na doutrina. E parte dessa mesma doutrina entende não haver na
duplicata eletrônica o princípio da cartularidade, simplesmente pelo fato de que não
há nela papel, transmitindo a mensagem, negócio jurídico, ali corporificado, causando
acirradas discussões acerca de um assunto que poderia ser resolvido com razoável
tranqüilidade16, pois cártula, em si, é um documento e o documento pode assumir
outras formas, até porque não há, na lei, restrição neste sentido, se em papel ou em
meio eletrônico, o que autoriza afirmar que
[...] os documentos gerados no meio eletrônico e que hoje é uma
normalidade nas práticas comerciais não encontram nenhuma
14
“Art. 8º. [...] Parágrafo único. Poderão ser recepcionadas as indicações a protestos das Duplicatas Mercantis e de Prestação de Serviços, por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados, sendo de inteira
responsabilidade do apresentante os dados fornecidos, ficando a cargo dos Tabelionatos a mera instrumentalização das mesmas.”
15
Há autores (Luiz Emygdio, Fábio Ulhôa) a chamam de duplicata virtual, outros (Amador Paes de
Almeida) a trata de duplicata escritural e alguns outros como duplicata eletrônica.
16
Em momento algum se pretende passar ao leitor uma idéia de facilidade na resolução do problema da
cartularidade na duplicata eletrônica, apenas pelo fato de se aceitar que ela pode ter cártula, mesmo em
meio eletrônico, até porque, mesmo que fosse consensual na doutrina tal assertiva, com ela viriam inúmeras
vicissitudes, pois ainda não há tecnologia suficiente para que ela possa funcionar tal como funcionaria, em
termos de cartularidade, em meio papélico. Portanto, alertamos somente para o documento cartular não o
deixa de sê-lo, somente porque está no meio eletrônico. Além disso, o documento eletrônico tem sido aceito
em várias instâncias do judiciário, além de órgãos da receita, estadual ou federal, enfim, tudo isto demonstra
sua factibilidade e possibilita a manutenção das mesmas características que há no meio físico.
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proibição na Lei 5.474/66, motivo pela qual se constata que a
característica da cartularidade esta presente na duplicata virtual
uma vez que o credor pode exercer o seu direito de crédito (sic)
(MOLLETA, 2003, p. 53).
No mesmo sentido, Barbosa (2004, p. 114) explica que “[...] o Direito Cambiário
não está mais preso a um cartão, um documento escrito, um corpo de celulose
industrializado.” Portanto, acertada é a posição do magistrado ao asseverar, citando
Fábio Ulhôa Coelho, que não é obrigatória a apresentação da duplicata em papel, pois
para seu devido processamento (saque, protesto etc.) o suporte físico é dispensável.
Entretanto, vale aqui a ressalva de que, “[...] para que um documento de crédito
possa ser considerado uma duplicata é preciso que atenda todos os requisitos formais
[...]” (BOECHAT, 2004, p. 81). Portanto, seja eletrônico ou em papel, o princípio
da cartularidade prevalece, desde que atendidos os ditames da Lei nº 5.474/68, em
seus arts. 1º e 2º e também da Resolução nº 102/68 do Banco Central, porque se
consegue a “[...] gravação do fato jurídico [...]” (BOECHAT, 2004, p. 86) que, à
exemplo do papel, fornece a autoria e a integridade necessárias, desde que utilizadas
as tecnologias adequadas. Logo, caso opte o sacador pela duplicata eletrônica, ela
deverá ficar adstrita às normas legais, consoante disciplinado acima.
2.5. Análise do instituto
A duplicata despontou como um eficaz meio de financiamento mercantil, tanto que
é o título de crédito mais utilizado no ambiente empresarial, se comparado a outros
títulos. E essa característica se deve ao fato da sua versatilidade e por conter todas
as declarações cambiais existentes. Paradoxalmente, é justamente por esses motivos
também que tem causado tanta discussão, seja em meio acadêmico ou profissional,
pois há alguns aspectos que ainda trazem problemas, de ordem prática, que, por
vezes, inviabiliza, por enquanto, que a duplicata na modalidade virtual possa ser
completamente implementada e que certamente influencia diretamente no exercício
do direito nela representado e, em juízo, pode até dar margem a fraudes, consoante se
verá abaixo.
O primeiro aspecto importante é que, segundo a Lei de Duplicatas, mister seria sua
apresentação ao sacado para que desse o aceite e, caso houvesse algum problema,
pudesse justificar a recusa do aceite pelos motivos17 legalmente elencados, uma vez que
o aceite é obrigatório no título brasileiro. Logo, mister a sua existência, seja em papel
ou em meio eletrônico, diferentemente do que afirma o prolator do aresto sob comento,
pois se ela inexistisse, inexistiria também, baseado do princípio da literalidade, o
17
De acordo com a Lei de Duplicatas somente se pode negar o aceite na duplicata de acordo com o disposto
no art. 8º.
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direito nela incorporado18. Então, percebe-se que, ainda que implicitamente, mesmo
sem sentir, acredita-se que o julgador acredite na sua existência, pois do contrário
certamente a decisão do presente julgado seria outra, bem como os comentários que
ora são feitos.
O problema maior é que ainda não se desenvolveu uma metodologia (tecnologia)
própria, para que se efetivasse o saque da duplicata eletrônica, bem como sua
apresentação, ainda que em meio eletrônico, ao sacador, pois aí sim poderiam se
evitar todos esses problemas. Uma saída apresentada pela doutrina é que se o título
nasce eletrônico deve permanecer neste meio, pois a mudança de meio pode facilitar
as fraudes (ROHRMANN, 2000). E, nesse ponto, concorda-se com o referido
doutrinador, pois a utilização do meio eletrônico não deve restringir direitos e da
forma em que está é inviável que o sacado exerça, regularmente, seu direito de negar
o aceite na duplicata, uma vez que ela sequer é enviada e, quiçá, emitida.
Dessa forma, é impossível a exibição da duplicata em juízo pela falta de tecnologia
e não pela sua inexistência física, como alegou o prolator deste aresto. Se houvesse
a devida preocupação tanto dos empresários quanto do Judiciário, deveria haver
meio tecnológico disponível para a exibição dessa duplicata em juízo, ainda que
eletronicamente. A doutrina tem criticado bastante a prática empresarial no que
tange à negociação com duplicatas e a sua execução, pois há omissão dos cartórios
em conferir os títulos e até mesmo dos sacados em não exigirem os títulos, como
demonstra Barbi Filho (2005, p. 41), pois para ele os
[...] cartórios de protestos, [...] não exigem dos apresentantes
dos títulos a comprovação da remessa e entrega da duplicata ao
sacado para realizarem o protesto por indicações.
E a segunda é dos próprios sacados que, quando intimados do
protesto por indicações ou mesmo citados da execução judicial,
não argúem a falta de emissão, remessa e recebimento da
duplicata original.
Some-se a isto, o fato de que
[...] o sacado tem o direito de examinar a duplicata sacada
contra ele, para conferir o valor, a praça de pagamento e, tendo
recebido as mercadorias ou os serviços com defeitos, avarias,
diferenças no valor e outros defeitos, ele, o sacado, tem o direito
de impugnar a duplicata e não aceitá-la, o que deve fazer por
18
Para compreender essa ilação basta lembrar os ensinamentos de Rosa Júnior (2006, p. 52) ao falar do
conceito de Vivante, pacífico na doutrina, de que “[...] título de crédito é o documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido”.
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escrito e no prazo de devolução da duplicata (10 dias) (COSTA,
2005, p. 420).
Percebe-se, pois, a importância e a urgência de se repensar a prática forense e
empresarial com as duplicatas eletrônicas.
2.6. Supressão documental da duplicata
Esse talvez seja o ponto mais importante, tanto acadêmico quanto pragmático, uma
vez que a duplicata pode fundamentar execução, por ser considerada pelo Código
de Processo Civil, art. 585, I, como título executivo extrajudicial. Necessário então
compreender esse título executivo extrajudicial, pois os títulos de crédito também o
são e mister a distinção entre eles. Por se tratar de duplicata aceita e não paga, haverá
título de crédito19 e título executivo extrajudicial, e a execução será tranqüila, baseada
no título de crédito. O maior problema ocorre nas hipóteses em que não há o aceite na
duplicata. Aí, nesse caso,
[...] segundo já pacificado na doutrina e jurisprudência pátrias,
a duplicata constitui-se em título executivo extrajudicial desde
que: a) esteja aceita pelo sacado; b) embora ausente o aceite,
esteja acompanhada do comprovante de entrega da mercadoria
ou da prestação do serviço e do protesto, bem como não tenha
o sacado, comprovadamente, recusado o aceite nos moldes
previstos em lei (Lei 5.474/68, arts. 15 e 20, com redação que
lhe foi atribuída pela Lei 6.458/77). (DAROLD, 2005,
p. 39/40).
Barbi Filho (2005, p. 48) comunga dessa opinião e ensina que “[...] na realidade, de
acordo com art. 15, inciso II, da Lei de Duplicatas, o que constitui título executivo
é o conjunto formado pela certidão de protesto e pelo comprovante de entrega da
mercadoria ou da prestação de serviço”. Nery Júnior e Nery (2003, p. 973), asseverando
a importância do aceite, diz que “[...] a duplicata só é líqüida, certa e exigível, e, título
de crédito executivo (CPC, 586), se aceita (LDup 15 I; redação da L6458/77) [...]”,
do contrário o procedimento é o mesmo citado por Barbi Filho (2005) e Darold (
2005). Percebe-se que a formação do título de executivo extrajudicial na duplicata é
uma reação em cadeia: saque, apresentação para aceite, título executivo. Deste ponto
há dois caminhos: havendo o aceite, forma-se o título executivo normalmente; em
caso negativo, não sendo hipótese justificada, deverá o credor/portador, proceder ao
protesto e juntar o comprovante da entrega da mercadoria ou prestação de serviço.
19
Por ser o aceite obrigatório na duplicata, o título de crédito somente se aperfeiçoa com o aceite (BARBI FILHO, 2005; ROSA JÚNIOR, 2006; COELHO, 2006).
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Como a duplicata normalmente não é enviada para aceite, os credores/portadores têm
se valido, erroneamente do protesto por indicação. Entretanto, segundo a maioria
da doutrina (COSTA, 2006; DAROLD, 2005, BARBI FILHO, 2005) esse tipo de
protesto somente pode se dar nas hipóteses em que o título é retido, não cabendo aqui
nem mesmo o saque de triplicata, até porque, nessa hipótese, deveria ser remetida para
aceite novamente (BARBI FILHO, 2005).
No caso sob comento, como então haveria título executivo, se, segundo o magistrado
prolator “[...] não há cogitar exibição do documento pretendido [duplicata], por se
tratar de duplicata virtual, não existindo fisicamente”? Ora, se não há documento para
ser apresentado em juízo, certamente ele também não foi enviado ao sacado para
aceite. Portanto, nessa hipótese, injustificável o protesto [por indicações], porque ele
somente é permitido em hipótese de retenção do título. Conclui-se, dessa forma, que o
título executivo extrajudicial necessário a fundamentar a execução, como se viu acima,
ao que parece, inexistiu in casu, logo deveria ter prevalecido a sentença primeva.
3. Conclusão: a duplicata eletrônica em Juízo
São indiscutíveis as facilidades que a duplicata traz, seja ela em meio eletrônico ou
não, contudo os empresários precisam melhorar a prática comercial e não somente
fazer vistas grossas às exigências legais como também o próprio Judiciário precisa
compreender melhor os institutos, pois, se continuar dessa forma, poderá ser
desvirtuado esse instituto utilíssimo, além de, usando os ensinamentos de Rohrmann,
possibilitar margem às fraudes.
É preciso, portanto, desenvolver tecnologia eficiente e eficaz para transações
importantes e vultuosas como a que ocorreu no caso do acórdão sob comento,
aplicando a assinatura digital, bem alicerçada em legislação própria e incrementando
método eficaz de apresentação para aceite on line ao sacado do título, pois aí sim o
procedimento poderá voltar ao procedimento legal, não mais ficando à margem da lei
como está.
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4. Referências bibliográficas
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BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais dos títulos.
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n. 115.
______. A supressão documental da duplicata. Revista Literária de Direito, set./out.,
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______. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
BARBOSA, Lúcio de Oliveira. A duplicata virtual: aspectos controvertidos. São
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de regulamentação. 2004. 140 f. Dissertação (Mestrado em Direito Empresarial)–
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MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de; ALVES, Vilson Rodrigues. Tratado de
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SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL CIVIL
1. ARTIGOS
1.1 INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA EM AÇÃO DE EXECUÇÃO DE
ALIMENTOS
LEONARDO BARRETO MOREIRA ALVES
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)
Pós-Graduando em Direito Civil pela PUC/MG
“O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar tal como está”.
Bertold Brecht
1. Introdução
Em 28 de março de 2007, a 7ª Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul, no bojo dos autos do Agravo de Instrumento nº 70018683508,
exarou acórdão absolutamente inédito no cenário jurídico nacional, permitindo a
interceptação telefônica em sede de ação de execução de alimentos.
Em um primeiro momento, o decisum pretoriano afigura-se como violador do quanto
disposto no art. 5º, XII, da Carta Magna, segundo o qual a interceptação telefônica é
excepcionalmente admitida apenas em investigação criminal e instrução processual
penal. Destarte, uma análise mais acurada desse importante julgado irá evidenciar
que, na verdade, a Corte gaúcha agiu com acerto, deixando de lado, no caso concreto,
o direito à intimidade do devedor dos alimentos com a finalidade de salvaguardar os
direitos à vida e à proteção integral dos credores menores de idade.
É justamente essa análise que nos propomos a fazer no presente trabalho. Antes de
darmos início a ela, recomenda-se a transcrição, na íntegra, do acórdão de lavra do
TJRS.
2. Acórdão
EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA DO DEVEDOR
DE ALIMENTOS. CABIMENTO. Tentada a localização do executado de todas as
formas, residindo este em outro Estado e arrastando-se a execução por quase dois
anos, mostra-se cabível a interceptação telefônica do devedor de alimentos. Se por
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um lado a Carta Magna protege o direito à intimidade, também abarcou o princípio da
proteção integral a crianças e adolescentes. Assim, ponderando-se os dois princípios
sobrepõe-se o direito à vida dos alimentados. A própria possibilidade da prisão civil
no caso de dívida alimentar evidencia tal assertiva. Tal medida dispõe inclusive de
cunho pedagógico para que outros devedores de alimentos não mais se utilizem de
subterfúgios para safarem-se da obrigação. Agravo provido.
Agravo de Instrumento n.º 70018683508
Sétima Câmara Cível da Comarca de Porto Alegre
Agravante: A. S. P.
Agravado: A. P.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal
de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao agravo de instrumento
interposto.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária (Presidente), os eminentes Senhores
Des. Luiz Felipe Brasil Santos e Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.
Porto Alegre, 28 de março de 2007.
DES.ª MARIA BERENICE DIAS,
Presidenta e Relatora.
RELATÓRIO
Des.ª Maria Berenice Dias (presidenta e RELATORA)
Trata-se de agravo de instrumento interposto por A. S. P. e S.J.S.P., representados por
R. S. em face da decisão da fl. 76, que, nos autos da execução de alimentos movida
em face de A. P., indeferiu o pedido de escuta e de quebra do sigilo telefônico do
executado.
Alegam que o agravado após ser citado escondeu-se para impedir o cumprimento do
mandado de prisão. Asseveram que a polícia paulista não tem efetivo suficiente para
ficar em campana na moradia do agravado. Seguindo sugestão dos agentes, realizaram
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pedido de escuta telefônica com a finalidade de localizar o agravado. Salientam que
não se trata de mera prisão administrativa, mas, de prisão judicial. Requerem o
provimento do recurso para a determinação de escuta nos telefones do recorrido (fls.
2-8).
O Desembargador-Plantonista indeferiu o pedido liminar (fl. 79).
A parte agravada deixou de ser intimada para prestar contra-razões, uma vez não
angularizada a relação processual.
A Procuradora de Justiça opinou pelo conhecimento e provimento do recurso (fls.
80-5).
É o relatório.
VOTOS
Des.ª Maria Berenice Dias (presidenta e RELATORA)
Pretendem os recorrentes a reforma da decisão que indeferiu o pedido de escuta e de
quebra do sigilo telefônico do executado.
Justificam que tal medida se faz necessária tão-somente para possibilitar a localização
do foragido a fim de tornar eficaz a ordem de prisão.
A presente execução desenrola-se desde maio de 2005 (fl. 21), ou seja, há mais de 22
meses, tendo os alimentados sido pagos, pela última vez, no longínquo mês de março
de 2004, exclusivamente com o objetivo de afastar o cumprimento de um mandado
de prisão.
O réu foi citado para o pagamento das prestações em atraso em janeiro de 2006 (fl.
31). Não tendo realizado o pagamento, nem justificado a impossibilidade de fazê-lo,
teve sua prisão decretada em abril de 2006 (fl. 38), oportunidade em que a dívida
alimentar já era superior ao montante de R$ 37.000,00 (fl. 67).
Compulsando os autos, verifica-se que a localização do recorrido foi tentada de todas
as formas. Nem mesmo a louvável e diligente disposição da procuradora dos credores,
que em mais de duas oportunidades foi até a Cidade de São Paulo, e, em companhia
dos agentes da Delegacia de Capturas daquele Município, conseguiu obter sucesso
para o cumprimento do mandado (fls. 44-45 e 52-53).
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De acordo com o art. 5°, XII, regulamentado pela Lei n. 9.296/96, a interceptação
telefônica somente pode ocorrer, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a
lei estabelecer para fins de investigação criminal e instrução penal.
Contudo, o presente caso trata de situação excepcional.
Se por um lado a Carta Magna protege o direito à intimidade, também abarcou o
princípio da proteção integral a crianças e adolescentes, conforme tenho manifestado
doutrinariamente:
O princípio não é uma recomendação ética, mas diretriz determinante nas relações
da criança e do adolescente com seus pais, com sua família, com a sociedade e com
o Estado. A maior vulnerabilidade e fragilidade dos cidadãos até os 18 anos, como
pessoas em desenvolvimento, os faz destinatários de um tratamento especial. Daí a
consagração do princípio da prioridade absoluta, de repercussão imediata sobre o
comportamento da administração pública, na entrega, em condições de uso, às crianças
e adolescentes, dos direitos fundamentais específicos que lhes são consagrados
constitucionalmente. (Manual de Direito das Famílias. 3. ed. São Paulo: RT, 2006,
p. 57).
A matéria aqui tratada confronta duas questões de ordem constitucional que merecem
ser sopesadas: de um lado está o direito à intimidade do devedor de alimentos, e, de
outro, o princípio da proteção integral a crianças e adolescentes, a quem é destinada
a verba alimentar.
Ocorrendo choque entre dois princípios constitucionais, é certo que impossível a
aplicabilidade de ambos, um deverá necessariamente ser afastado, a partir de uma
análise e interpretação sistemática do ordenamento jurídico relativamente ao caso
concreto, aplicando-se a este o princípio da proporcionalidade.
A respeito ao princípio supracitados, merecem ser elencados os ensinamentos de
Humberto Bergmann Ávila:
É exatamente do modo de solução da colisão de princípios que se induz o dever de
proporcionalidade. Quando ocorre uma colisão de princípios é preciso verificar qual
deles possui maior peso diante das circunstâncias concretas...
Assim, o dever de proporcionalidade estrutura-se em três elementos: adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Uma medida é adequada se o
meio escolhido está apto para alcançar o resultado pretendido; necessária, se, todas as
disponíveis e igualmente eficazes para atingir um fim, é a menos gravosa em relação
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aos direitos envolvidos; proporcional ou correspondente, se, relativamente ao fim
perseguido, não restringir excessivamente os direitos envolvidos”. (A distinção entre
princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito
Administrativo, n. 215, p. 158/159, jan./mar. 1999).
Conforme bem posto pela Procuradora de Justiça, Drª Ida Sofia da Silveira (fl. 83):
no caso dos autos, por ocorrer a violação do alimentante com relação às suas filhas
menores, o direito à sua intimidade não pode se sobrepor de forma absoluta ao direito
das meninas de receberem a verba alimentar.
Assim, patente a sobreposição do direito à vida dos alimentados em frente à intimidade
do executado. A própria possibilidade da prisão civil no caso de dívida alimentar
evidencia o caráter superior da verba alimentar, devendo sobrepor o direito do devedor
à intimidade.
Oportuno destacar que o deferimento de tal medida possui inclusive cunho pedagógico
para que outros devedores de alimentos não mais se utilizem de subterfúgios para
inadimplirem a obrigação que lhes é imposta.
Por tais fundamentos, o provimento do agravo se impõe.
Des. Luiz Felipe Brasil Santos - De acordo.
Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves - De acordo.
DES.ª MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Agravo de Instrumento nº
70018683508, Comarca de Porto Alegre: “PROVERAM. UNÂNIME.”
Julgador(a) de 1º Grau: NELSON JOSE GONZAGA
3. Comentário
Se fôssemos adotar a linha de pensamento neopositivista apregoada pelo austríaco
Kelsen (2006), a análise de decisões judiciais teria importância mínima na perspectiva
de construção do Direito. Isso porque, nas sendas das concepções kelsenianas,
o Direito não necessitaria ser construído no caso concreto, muito pelo contrário, a
edição de normas jurídicas pelo legislador já implicaria a sua formação, daí porque
um ato de aplicação, de execução do Direito seria entendido como simples concretude
de uma norma hierarquicamente superior que lhe daria legitimidade, mera subsunção
do fato à norma.
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Em outras palavras, o Direito constituiria um sistema convencional, formal,
preconcebido, em que a solução de todos as hipóteses fáticas já estaria fixada
aprioristicamente no ordenamento jurídico. Sendo assim, na resolução do caso
concreto, o jurista não teria o poder de construir o Direito, restringindo-se apenas à
cômoda missão de fazer valer a previsão normativa naquele caso.
Acrescente-se ainda que Kelsen, intentando afastar do Direito qualquer influência
valorativa, procurou atribuir ao mesmo uma perspectiva pura, no sentido de que o
fenômeno jurídico deveria ser sinônimo de norma (conceito mais amplo do que o de
lei), razão pela qual não atribuiu força normativa a um princípio jurídico, dada a sua
carga extremamente valorativa.
No Brasil, essa concepção foi amplamente aplicada durante o processo de interpretação
do Código Civil de 1916, dando azo à (errônea) idéia de que o Codex era um
prontuário completo que, de antemão, previa a solução para todos os problemas da
vida civil, motivo pelo qual os fatos não abarcados por ele não mereciam proteção do
ordenamento – basta relembrar a heróica batalha travada pelos companheiros de união
estável para que a comunidade por eles formada fosse reconhecida como entidade
familiar, o que somente ocorreu quase setenta anos depois da promulgação do Código,
com o advento da Lex Fundamentallis, em 1988 (art. 226, § 3º).
Aliás, não obstante a mudança dos tempos e a evolução da dogmática jurídica, ainda
é muito comum verificar inúmeros (indagação preocupante: a maioria?) aplicadores
do Direito, em plena pós-modernidade, adotando as idéias apregoadas por Kelsen na
metade do século passado, deixando de conceder tutela jurisdicional às situações fáticas
não previstas expressamente pelo ordenamento, a exemplo das uniões homoafetivas1,
que continuam sendo tratadas, em diversos julgados2, como sociedades de fato (Direito
Obrigacional) e não como entidades familiares (Direito de Família).
Voltando-se radicalmente contra o caráter convencional do Direito, o jurisfilósofo
americano Dworkin (2002), em algumas das suas geniais obras, sustentando que não
há como o ordenamento prever todas as hipóteses fáticas da vida humana, aponta para
a necessidade de que o Direito seja construído a partir da resolução do caso concreto.
A solução de litígios, portanto, não deve ser preconcebida, mas sim engendrada caso
a caso.
1
A nosso ver, o reconhecimento da união homoafetiva enquanto entidade familiar ocorreu no plano legislativo com o advento do art. 5º, II e parágrafo único, da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006. A esse
respeito, recomendamos a leitura de ALVES (2003).
2
Destarte, impende registrar que importantes decisões judiciais vêm sendo recentemente proferidas reconhecendo a união homoafetiva como entidade familiar. A título de exemplo, mencionemos o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na Apelação Cível nº 70013801592, brilhantemente
comentado Galvão (2007).
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Para esse fim, o ordenamento deve apenas fornecer as ferramentas, os instrumentos do
trabalho a ser operado pelo jurista. Dentre tais instrumentos, sobreleva destacar que
os princípios, sobretudo os constitucionais (direitos fundamentais), no entender de
Dworkin, possuem força normativa, no que é muito bem acompanhado pelo Professor
português Gomes Canotilho.
Ademais, privilegiar a construção do Direito na prática significa estabelecer que
somente existe uma única solução para a resolução de um dado caso concreto, a
solução ideal. Nesse sentido, sem querer soar repetitivo, esclareça-se que a solução é
ideal apenas e tão-somente para aquele caso concreto, podendo não valer para outros
casos distintos, mesmo que eles guardem enorme semelhança com aquele. A partir
desse raciocínio de Dworkin (ao qual nos filiamos sem restrições), é que consideramos
de incomensurável importância a análise de decisões judiciais, ainda mais quando
se trata de uma decisão judicial de tamanha envergadura como a que está ora em
apreciação.
Feito esse breve intróito, volvemos a mirar nossa atenção ao acórdão de lavra do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. No bojo da ação de execução de alimentos
movida por A. S. P. e S.J.S.P., menores representados por R. S., foi indeferido o pedido
de quebra do sigilo telefônico do executado. Irresignados, os exeqüentes interpuseram
junto ao Tribunal o recurso de agravo de instrumento, o qual foi provido in totum,
possibilitando a interceptação telefônica do devedor de alimentos.
Assim julgando, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, seguindo a sua
tradição sempre de vanguarda em matérias de direito de família, proferiu, com muita
coragem, decisão absolutamente inédita no cenário jurídico nacional, a nosso ver com
todo acerto, já que garantiu efetividade, no caso concreto, ao princípio constitucional
do direito à vida (art. 5º, caput), que, sendo o seu titular criança ou adolescente, deverá
ser assegurado pela família, sociedade e pelo Estado com absoluta prioridade (art.
227, caput).
É bem verdade que uma primeira análise do acórdão sub occulis, feita de forma
perfunctória, deve suscitar uma instigante dúvida: não estaria sendo violado por
ele o quanto disposto no art. 5º, XII, da Carta Magna Federal? Segundo o aludido
dispositivo constitucional, “[...] é inviolável o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último
caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei3 estabelecer para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal”. Com base nesse dispositivo,
3
A lei que disciplina as interceptações telefônicas é a Lei nº 9.296, de 24.07.1996.
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prevalece a regra geral de que a intimidade do cidadão, em suas diversas facetas
(in casu, sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas), é inviolável (princípio constitucional da intimidade),
regra esta que cede espaço excepcionalmente nas hipóteses de investigação criminal
ou instrução processual penal, desde que haja autorização judicial nesse sentido. Ora,
tendo em vista que a ação de execução de alimentos, como é cediço, tem natureza
civil, a decisão do TJRS não afrontaria o mandamento constitucional em destaque?
A resposta, em tese, deve ser positiva. Por conta disso, abalizada doutrina critica
severamente a norma constitucional, sustentando a conveniência de que ela permitisse
a interceptação telefônica em processo não penal (civil). Nesse trilhar, Grinover
(2001, p. 180) leciona que “[...] não se pode apoiar a opção da Constituição, limitando
a possibilidade de interceptações telefônicas ilícitas ao processo penal. Também
no processo não-penal pode haver relações controvertidas de direito material que
envolvam valores relevantes”.
Destarte, a resposta positiva àquela indagação, como já afirmado alhures, é válida
apenas em tese, ou seja, aprioristicamente. A avaliação das circunstâncias fáticas
trazidas pelo presente caso concreto, como registramos no início deste trabalho,
evidenciará que não houve desrespeito a nenhum princípio constitucional, muito
pelo contrário, o decisum pretoriano teve justamente o mérito de resguardar, com
absoluta prioridade, o direito à vida dos menores-agravantes. Nesse sentido, faz-se
indispensável, neste momento, apontar as peculiaridades próprias do caso em testilha.
Nos termos do relatório e do voto de lavra da Desembargadora Presidenta-Relatora, a
brilhante Dra. Maria Berenice Dias, a medida de interceptação telefônica foi requerida
pelos agravantes tão-somente para possibilitar a localização do executado, foragido há
mais de um ano, e tornar eficaz a ordem de prisão expedida em seu desfavor.
Aliás, aqui é importante também destacar que a desídia do executado no pagamento
dos alimentos devidos foi renitente, possuindo um longo histórico, senão vejamos:
a ação de execução foi interposta em maio de 2005, sendo que os alimentos foram
pagos, pela última vez, no distante mês de março de 2004, exclusivamente com o
objetivo de afastar o cumprimento de um mandado de prisão; em seguida, o executado
foi citado para o pagamento das prestações em atraso em janeiro de 2006, sendo que
deixou transcorrer tal prazo in albis, motivo pelo qual sua prisão foi decretada em
abril de 2006, oportunidade em que a dívida alimentar já era superior ao montante de
R$ 37.000,00; visando frustrar o cumprimento do mandado de prisão, o executado
evadiu-se; ainda assim, os agravantes e sua Procuradora intentaram por diversas vezes
encontrá-lo, tendo esta última, inclusive, ido até a cidade de São Paulo, em mais de
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duas oportunidades, e acionado os agentes da Delegacia de Capturas desse município,
sem, contudo, lograrem êxito na localização do devedor; atualmente o executado
continua foragido, tanto assim que não foi intimado para apresentar contra-razões do
agravo de instrumento interposto.
Como se vê, portanto, foi em razão desses insucessos na localização do executado
que os agravantes pleitearam a interceptação telefônica dele. Pode-se afirmar então
que tal medida foi requerida como ultima ou extrema ratio4, já que teve lugar apenas
quando os credores esgotaram todos os meios para encontrar o devedor, em sede da já
extremada ação de execução. Caso assim não fosse procedido, a vida daqueles estaria
em sério risco, afinal de contas, como se sabe, o direito a alimentos tem como função
precípua assegurar a sobrevivência, a vida do seu titular.
Nessa linha de intelecção, impende relembrar que o direito à vida, assim como o
direito à intimidade, também possui status constitucional, estando expressamente
consubstanciado no artigo 5º, caput, do Texto Maior, e igualmente protegido pelo
artigo 60, § 4º, IV, da Constituição, que o define como cláusula pétrea. Nunca é
demais reprisar ainda que a Carta Magna vai além da proteção à vida ao estipular
como princípio vetor da República Federativa do Brasil, no seu artigo 1º, III, o direito
a uma vida digna (princípio da dignidade da pessoa humana).
Noutro giro, sobreleva destacar que, no caso particular das crianças e dos adolescentes,
faixa etária ocupada pelos agravantes, em face da situação peculiar por eles vivenciada
de formação e desenvolvimento da personalidade, há comando constitucional (art.
227, caput) determinando que o direito à vida será garantido pela família, sociedade
e pelo Estado com absoluta prioridade (princípio da proteção integral), o que implica,
em bom português, a supremacia de tal direito sempre que o exercício de um direito
de terceiro (mesmo com foro constitucional) possa prejudicá-lo.
Como se vê, saímos daquela situação inicial em que uma mera atividade de subsunção
do fato à norma constitucional (art. 5º, XII) levaria ao equivocado entendimento de
que o acórdão de lavra do TJRS teria violado a proteção à intimidade ali consagrada e,
após analisar as circunstâncias fáticas do caso concreto, percebemos que, na verdade,
resta desenhado um cenário onde princípios de origem constitucional estão em jogo:
de um lado, o princípio da proteção à intimidade; de outro, os princípios do direito à
vida e da proteção especial conferida às crianças e aos adolescentes. O conflito que se
estabelece, portanto, não é entre uma decisão judicial e um dispositivo constitucional,
mas sim entre princípios com a mesma hierarquia constitucional.
4
A título de curiosidade, registre-se que, mutatis mutandis, a idéia de ultima ou extrema ratio na interceptação telefônica também tem aplicabilidade na seara penal, pois ela somente será admitida se a prova do
crime não puder ser feita por outros meios disponíveis, nos termos do art. 2º, II, da Lei nº 9.296/96.
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Para a resolução desse conflito (que nunca existe em tese, surgindo somente na prática,
pois há a presunção de que as normas constitucionais foram criadas para conviverem
em harmonia), há de se recorrer ao princípio da proporcionalidade (Robert Alexy)
– ou da razoabilidade ou da ponderação dos interesses, conforme o Professor Daniel
Sarmento, ou ainda, como é tratado pela doutrina alemã, da vedação do excesso –
segundo o qual um princípio de menor relevância (aspecto a ser apurado também na
prática) deve ceder espaço temporariamente, naquele caso concreto, a um princípio
de maior estirpe, que, a nosso ver, será sempre aquele garantidor do (super)princípio
da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), razão de ser de todo o ordenamento
jurídico.
Não é preciso muito esforço para identificar que, no caso sub examine, a efetivação
dos princípios do direito à vida e da proteção integral da criança e do adolescente será
a única forma de promover a dignidade da pessoa humana dos agravantes, devendo
então a intimidade do executado ser aqui preterida. Ora, o dano provocado à situação
pessoal do executado por conta da desconsideração do seu direito à intimidade será
muito menor do que aquele causado aos agravantes se a eles não forem disponibilizados
os alimentos devidos, pois, na segunda hipótese, estará em risco a própria vida deles.
Ademais, como muito bem ponderado pela Desembargadora Dra. Maria Berenice
Dias, é noção das mais comezinhas da Teoria Geral do Direito que nenhum direito
é absoluto, mesmo o direito à vida, que pode ser subjugado no caso de guerra
declarada contra agressão estrangeira (art. 5º, XLVII, parte final, e art. 84, XIX,
ambos da Constituição). Por se tratar de ação de execução de alimentos, a própria
ordem jurídica determina de antemão uma hipótese em que os direitos à intimidade e
à liberdade cederão lugar aos direitos à vida e à proteção integral do exeqüente, qual
seja, a possibilidade da prisão civil do executado.
À guisa de tudo quanto expendido, forçoso reconhecer o acerto da decisão proferida
pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em permitir a interceptação telefônica
em sede de ação de execução de alimentos como medida garantidora da verba
alimentar devida, o que, em uma perspectiva de fundo, importa em salvaguarda dos
direitos à vida e à proteção integral dos agravantes, enfim, da dignidade humana de
tais pessoas.
Neste cenário, pode-se afirmar que o direito constitucional à intimidade não foi violado
ou sequer relativizado, mas apenas afastado em um determinado caso concreto.
Em outras palavras, reconhecemos que persiste a regra geral da possibilidade de
interceptação telefônica somente em investigações e processos criminais, como
consta da redação do art. 5º, XII, da Constituição Federal; destarte, tal regra não pode
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ter aplicação na hipótese prática aqui discutida para que não haja prejuízos a direitos
igualmente constitucionais que in casu se mostram superiores, quais sejam, o direito
à vida e o direito à proteção integral dos menores de idade.
De outro lado, deve-se reconhecer que o julgado do TJRS foi a solução única e ideal
para esse caso concreto, diante das circunstâncias fáticas por ele apresentadas, não
sendo certo, porém, que tal decisão poderia ser proferida em outras situações diversas.
Com isso queremos dizer que não passou a estar autorizada a interceptação telefônica
em todo e qualquer processo civil, mesmo de direito de família. Reiteramos novamente
que a regra constitucional da vedação da interceptação telefônica em processos dessa
natureza continua aprioristicamente válida. A exceção a essa regra somente é cabível
quando direitos constitucionais de maior relevância (aspecto a ser também aferido na
casuística) são colocados em conflito com ela, devendo aqueles afastar a incidência
desta, por força do princípio da proporcionalidade.
Como visto ao longo deste trabalho, tal situação efetivamente ocorreu no caso apreciado
pelo Tribunal gaúcho, já que, em virtude da injustificada desídia do executado no
pagamento da pensão alimentícia e do insucesso dos agravantes na incessante procura
daquele, considerando-se ainda que é ínsita ao instituto dos alimentos a proteção à
vida, a qual deve ser garantida com absoluta prioridade aos credores menores de idade,
eles não tiveram outra alternativa a não ser a postulação em juízo da quebra do sigilo
telefônico do devedor, como ultima ratio na tentativa de encontrar o seu paradeiro e,
como finalidade maior, para a obtenção dos alimentos.
4. Considerações finais
Após analisarmos com vagar a inédita decisão proferida pelo TJRS, permitindo a
interceptação telefônica em ação de execução de alimentos, concluímos, em definitivo,
que ela não violou o direito à intimidade do executado previsto no art. 5º, XII, da Carta
Magna, mas sim, com base no princípio da proporcionalidade, deu preponderância
a outros direitos com sede igualmente constitucional, quais sejam, os direitos à vida
e à proteção integral dos exeqüentes menores de idade, por possuírem esses últimos
direitos, no caso concreto, maior relevância.
Sem dúvida alguma, como muito bem destacado pela Desembargadora-Relatora em
seu voto, a louvável decisão da Corte gaúcha cumpre importante função educativa
de evitar que devedores de alimentos voltem a se comportar de forma tão negligente,
como sói ocorrer em ações dessa natureza.
Nessa esteira, encerramos este trabalho manifestando o desejo de que o raciocínio
desenvolvido pelos juristas dos pampas sirva como balizamento em todas as demandas
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de direito de família levadas aos Tribunais deste País, o que certamente assegurará a
materialização do (super)princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Uma salva de palmas ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul!
5. Referências bibliográficas
ALVES, Leonardo Barreto Moreira. A constitucionalização do direito de família.
JusNavigandi, Teresina, a. 6, n. 52, nov. 2001. Disponível em: http://www1.jus.com.
br/doutrina/texto.asp?id=2441 Acesso em: 4 jan. 2003.
______. O reconhecimento legal do conceito moderno de família: o art. 5o, II e
parágrafo único, da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Jus Navigandi, Teresina,
a. 11, n. 1225, 8 nov. 2006. Disponível em: <htt://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.
asp?id=9138>. Acesso em: 12 nov. 2006.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
GALVÃO, Heveraldo Galvão. Revista Brasileira de Direito de Família, v. 8, n. 40, p.
72-99, fev./mar. 2007.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES,
Antônio Scarance. As Nulidades no Processo Penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: RT,
2001.
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 4. ed. São Paulo: RT, 2006.
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2. JURISPRUDÊNCIA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL
o
1 Acórdão.
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL.
MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO IMPETRADO PELA OAB EM
DEFESA DE SEUS MEMBROS. COMPETÊNCIA: JUSTIÇA FEDERAL. ART.
109, I DA CONSTITUIÇÃO. 1. O apelo extremo está bem fundamentado na parte
em que renova a preliminar de incompetência da justiça estadual, pois impugna
todos os argumentos adotados pelo Tribunal a quo em sentido contrário. Não há
falar, portanto, em aplicação da Súmula STF nº 283. 2. O art. 109, I da Constituição
não faz distinção entre as várias espécies de ações e procedimentos, bastando, para
a determinação da competência da Justiça Federal, a presença num dos pólos da
relação processual de qualquer dos entes arrolados na citada norma. Precedente: RE
176.881. 3. Presente a Ordem dos Advogados do Brasil - autarquia federal de regime
especial - no pólo ativo de mandado segurança coletivo impetrado em favor de seus
membros, a competência para julgá-lo é da Justiça Federal, a despeito de a autora não
postular direito próprio. 4. Agravo regimental parcialmente provido, tão-somente para
esclarecer que o acolhimento da preliminar de incompetência acarretou o provimento
do recurso extraordinário. (STF, RE-AGR 266689/MG, 2a Turma, Rel. Min. Ellen
Gracie, Julgamento 17/08/2004, DJ 03/09/2004).
2o Acórdão.
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECURSO TRABALHISTA - TURNOS
ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO - CF/88, ART. 7º, XIV - DIRETRIZ
JURISPRUDENCIAL FIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SÚMULA 675/STF - CÁLCULO DOS ADICIONAIS RELATIVOS ÀS HORAS
SUPLEMENTARES - MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL - PAGAMENTO
DA SÉTIMA E DA OITAVA HORAS TRABALHADAS - REEXAME DE FATOS E
DE PROVAS - IMPOSSIBILIDADE - SÚMULA 279/STF - ABUSO DO DIREITO
DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO IMPROVIDO. MULTA
E EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE RECORRER. - O abuso do direito
de recorrer - por qualificar-se como prática incompatível com o postulado éticojurídico da lealdade processual - constitui ato de litigância maliciosa repelido pelo
ordenamento positivo, especialmente nos casos em que a parte interpõe recurso com
intuito evidentemente protelatório, hipótese em que se legitima a imposição de multa.
A multa a que se refere o art. 557, § 2º, do CPC possui função inibitória, pois visa a
impedir o exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do
processo como instrumento de retardamento da solução jurisdicional do conflito de
interesses. Precedentes. (STF, AI-AGR 656944/MG, 2a Turma, Rel. Min. Celso de
Mello, Julgamento 26/06/2007, DJ 24/08/2007).
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JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1o Acórdão.
EMENTA: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. TURMA RECURSAL DE JUIZADO
ESPECIAL CÍVEL E TRIBUNAL DE JUSTIÇA. COMPETÊNCIA RECURSAL.
SENTENÇA PROFERIDA EM COMARCA DE VARA ÚNICA. REINTEGRAÇÃO
DE POSSE. RITO POSTULADO E, DE FATO, IMPRIMIDO À CAUSA: ARTS.
926 E SS. DO CPC. VALOR DO IMÓVEL SUPERIOR A QUARENTA SALÁRIOS
MÍNIMOS. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1. Tendo sido proposta
a possessória perante a Vara Única da Comarca de Brasília de Minas/MG, em que
o Juiz de Direito exerce também a competência dos Juizados Especiais, uma vez
não instalada vara especializada, discute-se, in casu, a competência recursal para
julgamento da apelação, se da Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis ou do
Tribunal de Justiça. 2. Da interpretação lógico-sistemática da petição inicial, concluise que não objetivava o autor que a ação seguisse o rito célere dos Juizados Especiais,
preferindo fosse observado o procedimento dos arts. 926 e ss. do Código de Processo
Civil. 3. Na espécie houve apreciação do pedido de liminar, realização de audiência
de justificação prévia, apresentação de réplica e memoriais, bem como extensa fase
de instrução probatória. Assim, considerando que “quando processadas as ações
possessórias perante o Juizado Especial Cível, devemos observar o procedimento
especial regulado pela Lei nº 9.099/95, e não o especial regulado no Código de Processo
Civil, em seus arts. 920 e segs.” (SILVA, Luiz Cláudio. “Os Juizados Especiais
Cíveis na Doutrina e na Prática Forense”. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.
19), não há como negar que a demanda foi processada e julgada pela magistrada a
quo no exercício da competência de Juíza de Direito de Vara Cível ordinária. 4. O
valor do imóvel objeto da ação possessória, para que seja cabível seu processamento
e julgamento no âmbito do Juizado Especial Cível, não pode ser superior a quarenta
salários mínimos. Interpretação doutrinária e jurisprudencial do art. 3º, I e IV, da Lei
9.099/95. 5. Cuidando os autos de ação de reintegração de posse de imóvel rural com
área de 275,88 ha (duzentos e setenta e cinco vírgula oitenta e oito hectares), cuja real
expressão econômica é indiscutivelmente superior não apenas ao valor atribuído à
causa (R$ 500,00 – quinhentos reais), mas ainda ao máximo legal, o processamento
e julgamento da demanda cabe à Justiça Comum ordinária. 6. Conflito conhecido
para declarar competente o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o suscitado. (STJ,
CC 62402/MG, 2a Seção, Rel. Min. Fernando Gonçalves, Julgamento 26/09/2007, DJ
11/10/2007, p. 283).
2o Acórdão.
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL – AGRAVO
DE INSTRUMENTO – CF/88, ARTS. 5º, INCISO XXXV, E 93, INCISO IX
– QUESTÕES NÃO DEBATIDAS – PRINCÍPIO DEVOLUTIVO – INOVAÇÃO
DE FUNDAMENTOS – VEDAÇÃO NA VIA RECURSAL ELEITA – SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA – ANÁLISE DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL
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– IMPOSSIBILIDADE – IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO
AGRAVADA – AUSÊNCIA – INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 182/STJ. I – As
recentes alterações introduzidas no Código de Processo Civil autorizam o Relator
a julgar monocraticamente o mérito do recurso especial, mesmo em sede de agravo
de instrumento. Precedentes. II – Não é possível, em sede de agravo interno, analisar
questão não suscitada em sede de recurso especial, nem debatida pelo Tribunal a quo.
Precedentes. III – Em sede de recurso especial, a competência desta Corte Superior se
limita à interpretação e uniformização do direito infraconstitucional federal, a teor do
disposto no art. 105, inciso III, da Constituição Federal. Impossibilitado, portanto, o
exame de eventual violação de dispositivos constitucionais, sob pena de usurpação da
competência atribuída ao augusto Supremo Tribunal Federal. IV – A ora agravante não
demonstrou o desacerto da negativa de provimento. Aplicação da Súmula n. 182/STJ,
uma vez que deixou de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada.
Precedentes. V – AGRAVO REGIMENTAL NÃO CONHECIDO. (STJ, AGRGAG 654960/MG, 4a Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, Julgamento 02/10/2007, DJ
22/10/2007, p. 280).
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS
GERAIS
1o Acórdão.
EMENTA: DIREITO PREVIDENCIÁRIO - DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA - SERVIDOR INATIVO - REPETIÇÃO
DE INDÉBITO - IPSEMG - LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO NULIDADE DO PROCESSO. Em sendo o IPSEMG o destinatário das contribuições
previdenciárias descontadas pelo Município de Cambuí, de seus servidores, e ausente
a demonstração de que o referido município deixou de repassá-las à autarquia
estadual, o pólo passivo, na ação de repetição de indébito tributário, deverá ser
composto pelas duas pessoas jurídicas de DIREITO público, como litisconsortes
necessários. DIREITO PREVIDENCIÁRIO - DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA - SERVIDOR INATIVO - REPETIÇÃO DE
INDÉBITO - JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE - CERCEAMENTO DE
DEFESA - OCORRÊNCIA. Caracteriza-se o cerceamento de defesa, quando o juiz
julga prematuramente o feito, sem a dilação probatória necessária ao esclarecimento
dos fatos alegados pelas partes, violando o comando contido no artigo 5º, inciso LV,
da Constituição Federal. DIREITO PREVIDENCIÁRIO - DIREITO PROCESSUAL
CIVIL - CONEXÃO - DENUNCIAÇÃO DA LIDE - EX-PREFEITO - CONVERSÃO
DE RITO - NÃO CABIMENTO - CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SERVIDOR INATIVO - REPETIÇÃO DE INDÉBITO - AUSÊNCIA DE CONVÊNIO
- EMENDA CONSTITUCIONAL 41/03 - IMPOSSIBILIDADE. Ausentes os
requisitos previstos no artigo 103 do Código de Processo CIVIL, não há como
reconhecer a ocorrência de conexão. Descabe a denunciação da lide do ex-Prefeito,
em ação de repetição de indébito, seja pela ausência de previsão legal, seja por se tratar
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de fundamento novo, que não guarda pertinência com a causa de pedir. O rito sumário
é cabível para as causas de pequena complexidade, cujo valor não ultrapasse o limite
previsto no artigo 275, I, do Código de Processo CIVIL. Inexistindo convênio ou
legislação municipal autorizando o município a descontar contribuição previdenciária,
a restituição dos valores é medida que se impõe, ainda mais quando a maioria dos
descontos foi suportada por servidor inativo, antes do advento da emenda constitucional
41/03. Súmula: REJEITARAM PRELIMINAR DE NULIDADE DO PROCESSO,
VENCIDO O RELATOR. REJEITARAM PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE
DEFESA, VENCIDO O RELATOR. REJEITARAM PRELIMINAR DE CONEXÃO,
À UNANIMIDADE. REJEITARAM PRELIMINAR DE DENUNCIAÇÃO À
LIDE, À UNANIMIDADE. REJEITARAM PRELIMINAR DE IMPROPRIEDADE
DE RITO, À UNANIMIDADE. NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO, À
UNANIMIDADE. (TJMG, Processo 1.0106.06.022396-8/001, Relator Moreira
Diniz, Julgamento 19/04/2007, Publicação 24/05 2007).
2o Acórdão.
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITO PROCESSUAL CIVIL –
AÇÃO CIVIL PÚBLICA – TUTELA JURISDICIONAL VOLTADA A INTERESSES
COLETIVOS – DIREITO INDIVIDUAL – INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA
– ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO – CARÊNCIA DE
AÇÃO – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ATUAÇÃO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO CONDICIONADA À CONDUTA FALTOSA DOS PAIS.
A ação CIVIL pública, uma das espécies da denominada jurisdição coletiva, deve ser
destinada, em virtude da sua essência, à obtenção de provimento judicial que diga com
direitos trans-individuais, que tenda ao favorecimento de uma gama despersonalizada
de interesses. Ante a inexistência de autorização, pela Constituição Federal, ou pela
lei processual, para o MINISTÉRIO PÚBLICO, em nome próprio, ingressar em
juízo em favor de pessoas naturais específicas, impõe-se a extinção do processo, sem
julgamento de mérito, por ilegitimidade ativa, se a ação foi proposta nesses moldes.
Para admitir que o MINISTÉRIO se lance na defesa de direitos individuais de criança,
exige-se a demonstração de que os pais, legítimos representantes do menor, estejam
impossibilitados de fazê-lo ou tenham perdido a qualificação jurídica para tanto.
DIREITO CONSTITUCIONAL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – SISTEMA ÚNICO
DE SAÚDE – ATENDIMENTO INTEGRAL – INTERNAÇÃO EM HOSPITAL
HABILITADO – DIREITO ASSEGURADO - GARANTIA CONSTITUCIONAL. É
assegurado ao cidadão o DIREITO de ter uma prestação integral dos serviços públicos
de saúde, aí incluída a internação em casa de saúde que ofereça suficientes condições
de tratamento dos enfermos, em obediência às garantias fundamentais consagradas
pela Constituição Federal. Súmula: REJEITARAM PRELIMINAR, VENCIDO O
RELATOR. NO MÉRITO, REFORMARAM A SENTENÇA PARCIALMENTE.
(TJMG, Processo 1.0015.03.012410-9/001, Relator Moreira Diniz, Julgamento
04/08/2005, Publicação 02/09/2005).
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3o Acórdão.
EMENTA:APELAÇÃO CÍVELNº 444.452-0 - DIVINÓPOLIS - 13.04.2005 EMENTA:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - INÉPCIA DA INICIAL - INOCORRÊNCIA
- NÃO-INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PRIMEIRO GRAU NULIDADE AFASTADA - SENTENÇA ILÍQÜIDA - NULIDADE INEXISTENTE
- PRESCRIÇÃO - NÃO-OCORRÊNCIA - PREVIDÊNCIA PRIVADA - CESSAÇÃO
DO CONTRATO DE TRABALHO - DEVOLUÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES CORREÇÃO MONETÁRIA - EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. 1- Descrevendo o
autor os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido, bem como formulando o próprio
pedido, não trazendo ao réu a mínima dificuldade para se defender, nem ao Judiciário
para compor a lide, não há que se falar em inépcia da inicial. 2- Não há que se falar
em nulidade do processo, pela não-intervenção do MINISTÉRIO PÚBLICO no Juízo
a quo, se desse fato não resultou prejuízo para as partes, e se, ademais, o representante
do Parquet no segundo grau nada alegou. 3- Não é passível de anulação a sentença
ilíquida se o pedido do autor também não foi certo, e mormente se a questão foi argüida
pelo réu, a quem não se reconhece o interesse jurídico para fazê-lo, uma vez que o
preceito contido no parágrafo único, do art. 459, do CPC, foi instituído em benefício
do primeiro. 4- Segue a regra geral do art. 177 do Código CIVIL de 1916, e não a do §
10, inciso II, do art. 178, do mesmo diploma legal, a prescrição do DIREITO de cobrar
a diferença de correção monetária que supostamente deveria incidir sobre a reserva
de poupança dos associados da REFER, na medida em que a questão não guarda
identidade com quaisquer outras prestações a serem pagas da mesma forma, bem
como pelo fato de se tratar de DIREITO pessoal. 5- O recibo de quitação assinado
pelo associado, ainda que ausente qualquer ressalva, não lhe retira o DIREITO de
discutir em Juízo valor não recebido, uma vez que a quitação é dada somente pelo
que o associado efetivamente recebeu. 6- O associado de fundação de assistência
e previdência privada tem DIREITO, por ocasião do rompimento do contrato de
trabalho, ao recebimento das parcelas que pagou, atualizadas monetariamente pelo
índice que mais fielmente reflita a recomposição da real expressão da moeda, com a
inclusão, na conta de liquidação, dos chamados “expurgos inflacionários” que tenham
sido excluídos a cada plano econômico do Governo Federal. 7- “A restituição das
parcelas pagas a plano de previdência privada deve ser objeto de correção plena, por
índice que recomponha a efetiva desvalorização da moeda” (Súmula 289 do STJ).
8- Os índices integrais a serem aplicados no cálculo de correção monetária, incluídos
os “expurgos inflacionários”, de acordo com a orientação da jurisprudência, são de
26,06% em junho de 1987, 42,72% em janeiro de 1989, 10,14% em fevereiro de
1989, 84,82% em março de 1990, 44,80% em abril de 1990, 7,87% em maio de 1990,
21,87% em fevereiro de 1991 e 11,79% em março de 1991. Rejeitaram as preliminares
e negaram provimento. (TJMG, Processo 2.0000.00.444452-0/000, Relator Maurício
Barros, Julgamento 13/04/2005, Publicação 07/05/2005).
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3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA
3.1 CAPÍTULOS DA SENTENÇA E FORMAÇÃO DA CHAMADA COISA
JULGADA PROGRESSIVA: INÍCIO DO PRAZO PARA O AJUIZAMENTO
DA AÇÃO RESCISÓRIA
SAMUEL ALVARENGA GONÇALVES
Oficial do Ministério Público
Bacharel em Direito
1. Ementa do Acórdão
RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. PRAZO
DECADENCIAL. TERMO A QUO. TRÂNSITO EM JULGADO DA ÚLTIMA
DECISÃO PROFERIDA NA CAUSA. ENTENDIMENTO FIRMADO PELA
CORTE ESPECIAL.
O certo é que, havendo um único processo e uma única sentença, não há cogitar de
coisa julgada material progressiva. A coisa julgada material somente ocorre com o
trânsito em julgado da última decisão proferida na causa.
É impossível dividir uma única ação, que deu origem a um único processo, em tantas
quantas forem as questões submetidas ao Judiciário, sob pena de se provocar um
verdadeiro caos processual, ferindo os princípios que regem a preclusão, a coisa
julgada formal e material, e permitindo, até mesmo, a rescisão de capítulos em relação
aos quais nem sequer se propôs ação rescisória.
A ação rescisória representa a última barreira para a definição permanente dos direitos
discutidos no processo e tem como fundamento rigorosa ponderação entre o princípio
de justiça e o da segurança jurídica. Por esse motivo, no dizer do mestre Pontes de
Miranda, “é processo sobre outro processo”, razão pela qual pressupõe, obviamente,
extinção do processo rescindendo, operada a coisa julgada material.
Dessa forma, a jurisprudência desta Corte Superior se orienta no sentido de que “o
termo inicial para a contagem do prazo do artigo 495 do CPC deve ser o do trânsito em
julgado da última decisão da causa, momento em que ocorre a coisa julgada material”
(AR 846, da relatoria deste Magistrado, DJU 1.8.2000) e, bem assim, de que “o prazo
de decadência para ingresso de ação rescisória conta-se a partir do trânsito em julgado
da decisão rescindenda que ocorre com o término do prazo para interposição do último
recurso, em tese, pela parte, sem se levar em consideração a situação peculiar de cada
parte” (EDAR 1.275/SP, Rel. Min. José Arnaldo, DJU 22.10.01).
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Ainda que se considere ter um determinado tema se tornado absolutamente imutável
durante o caminhar do processo, seria escusado afirmar que o prazo para o ajuizamento
da ação rescisória a seu respeito estaria suspenso, visto que essa ação, como já se
explicitou, pressupõe o encerramento do processo. De acordo com os fundamentos
acima explicitados, portanto, forçoso concluir que a presente ação rescisória foi
proposta dentro do prazo decadencial de 2 anos. O raciocínio acima expendido foi o
que prevaleceu no julgamento, pela colenda Corte Especial, do EREsp 404.777/DF
(Rel. p/acórdão Min. Peçanha Martins, j. em 03.12.2003). Recurso especial improvido.
(BRASIL, 2005).
2. Justificativa
Decidimos comentar o aresto acima citado no intuito de apresentar a polêmica que
se observa acerca do início do prazo para ajuizamento de ação rescisória em face de
sentenças que foram apenas parcialmente impugnadas. Em outros termos, o nosso
trabalho propõe, de forma sucinta, demonstrar como a doutrina e a jurisprudência,
notadamente a do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, visualizam essa matéria.
Como é cediço ocorrer, o magistrado, em sua sentença, pode julgar procedente apenas
parte dos pedidos formulados. Nesse sentido, o autor insurge-se exclusivamente contra
os tópicos da sentença que lhe foram desfavoráveis. Por exemplo, um cidadão ajuíza
uma ação pedindo A, B e C. O juiz de 1ª instância, no ano de 2002, julga procedente
A, rejeitando B e C. O demandante, então, apela para o respectivo Tribunal de Justiça
do seu Estado, pugnando pela reforma em relação aos pedidos B e C, julgados
improcedentes no 1º grau; o Tribunal, no ano de 2004, dá provimento ao recurso
somente em relação a B; por fim, o recorrente apresenta Recurso Especial ao Superior
Tribunal de Justiça impugnando a decisão do 2ª grau sobre o item C do seu pedido
inicial, o que não é acolhido no STJ, conforme decisão proferida em 2006.
Diante do cenário fictício apresentado, indaga-se: quando começa a correr o prazo
decadencial de 2 anos (CPC, art. 495) para o ajuizamento da ação rescisória? Seria
o caso de ajuizamento de uma única rescisória abrangendo todos os pedidos A, B
e C, e cujo prazo começaria a fluir a partir do último julgamento no processo pelo
STJ, em 2006? Ou então, seria a hipótese de ajuizamento de várias ações rescisórias
especificamente em relação a cada pedido não submetido a recurso – assim, o prazo
da rescisória em relação ao pedido A terminaria no ano de 2004; em relação ao pedido
B em 2006 e em relação ao pedido C em 2008?
Ocorre que, de um modo geral, doutrina e jurisprudência não possuem um mesmo
entendimento sobre a matéria, o que faz gerar algumas discussões e mesmo
repercussões significantes na sistemática recursal e no atual esquema de cumprimento
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ou execução de sentença. Por isso, a dúvida: quando a sentença transita em julgado
em relação a vários pedidos formulados no bojo de uma mesma ação, mas que tenham
sido apreciados e recebido julgamento de mérito em momentos diferentes?
O tema, portanto, traz à baila institutos como a chamada coisa julgada progressiva e
os denominados capítulos de sentença. Vejamos, pois, o tratamento da questão pela
doutrina e jurisprudência pátrias.
3. Comentários
3.1 A coisa julgada progressiva na visão do STJ
Como se observa na ementa em destaque, tem prevalecido o entendimento de que o
STJ não aceita essa formação progressiva da coisa julgada. Conforme explicado pelo
Ministro Franciulli Netto no seu excelente voto:
Para contornar o postulado de que, ainda que a lide seja formada
por várias pretensões, a sentença deve ser una, apreciando todas
elas, há quem defenda a possibilidade de existir também várias
decisões dentro da sentença que solucionar o conflito, ou quem
destrince a sentença em capítulos, tantos quantos forem os
pedidos formulados.
Não há, porém, como se escapar da realidade: sempre existirá
uma única ação, ainda que ela contenha, em seu bojo, várias
pretensões, amparadas pela mesma causa de pedir. Capítulos
poderiam existir desde que para cada pedido houvesse uma
correspectiva causa de pedir.
É notória a possibilidade de cumulação. Aliás, preceitua o artigo
292 do Código de Processo Civil a permissão de cumulação num
único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos, ainda
que entre eles não haja conexão. Segundo os desdobramentos
do mesmo artigo, os requisitos de admissibilidade da
cumulação voltam-se para a compatibilidade dos pedidos entre
si, da competência do juízo para deles conhecer e do tipo de
procedimento; se incompatíveis os últimos, ainda assim a
cumulação pode ser admitida desde que o autor escolha o
procedimento ordinário.
Vê-se desde logo que o mencionado artigo de lei não diz que
com a cumulação irão concorrer vários processos, mas sim
que o processo é um só. Dessarte, não se pode falar em uma
sentença com várias decisões, ou capítulos distintos, mas sim
de uma única sentença que, em sua parte dispositiva, define
tantos pedidos quantos foram formulados, não como capítulos
à parte, mas como conseqüência da escolha inicial feita pela
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própria embargante. O certo é que, havendo um único processo
e uma única sentença, não há cogitar de coisa julgada material
progressiva. A coisa julgada material somente ocorre com
o trânsito em julgado da última decisão proferida na causa.
(BRASIL, 2005).
Na visão do relator do acórdão em comento, é perfeitamente admissível que o julgado
rescindendo não seja o último proferido na causa. Em outras palavras: pouco importa
que a matéria discutida na rescisória não tenha sido sequer cogitada no último acórdão
proferido durante o processo. E para ratificar esse seu entendimento, o Ministro
Franciulli Netto anota a lição dos Professores Coqueijo Costa e Calmom de Passos:
De fato, na lição de Coqueijo Costa, ‘a data do trânsito em
julgado da decisão de mérito nada tem a ver com a do termo
inicial do prazo de decadência para a propositura da ação
rescisória. Se esta só cabe quando formada a coisa julgada
material, o que ocorre quando esgotado o último recurso, daí
decorrerá o prazo preclusivo (decadencial de acordo com a
doutrina predominante), que só flui quando pode ser utilizado’
(in ‘Ação Rescisória’, 6ª edição, revista e atualizada por Roberto
Rosas, Editora São Paulo, p. 127).
Em outro passo, lembra o ilustre Professor a lição de Calmon
de Passos, para quem “nem sempre coincide o termo inicial
do prazo de decadência com o momento mesmo em que
transitou em julgado a decisão rescindenda, porque não
se identificam o pressuposto de admissibilidade e o termo
inicial desse prazo preclusivo. É certo – diz o mestre baiano
– que o trânsito em julgado decorre da irrecorribilidade; que
na hipótese de não conhecimento de um recurso, a decisão
recorrida transitou em julgado na própria ocasião em que se
configurou a causa da inadmissibilidade. Mas não é a partir
desse momento em que se inicia a contagem do prazo para
a propositura da ação rescisória, porque ‘nenhum prazo pode
ter curso quando é impossível sua utilização’. É o princípio da
‘utilidade’, indissociável da configuração de qualquer prazo,
e requer: lapso de tempo para recorrer e possibilidade prática
de realização desse ato no curso de sua duração – duração que
não pode ser eliminada nem restringida’ (opus. cit., p. 167).
(BRASIL, 2005).
No mesmo sentido, cita-se:
PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA
NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO RESCISÓRIA - PRAZO
PARA PROPOSITURA - TERMO INICIAL – TRÂNSITO
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EM JULGADO DA ÚLTIMA DECISÃO PROFERIDA NOS
AUTOS - CPC, ARTS. 162, 163, 267, 269 E 495.
- A coisa julgada material é a qualidade conferida por
lei à sentença /acórdão que resolve todas as questões
suscitadas pondo fim ao processo, extinguindo, pois, a
lide.
- Sendo a ação una e indivisível, não há que se falar em
fracionamento da sentença/acórdão, o que afasta a possibilidade
do seu trânsito em julgado parcial.
- Consoante o disposto no art. 495 do CPC, o direito de propor a
ação rescisória se extingue após o decurso de dois anos contados
do trânsito em julgado da última decisão proferida na causa. Embargos de divergência improvidos. (BRASIL, 2003).
Em outro precedente, agora da lavra da Ministra Eliana Calmom, ficou assentado
que deve ser afastada a tese da formação progressiva da coisa julgada em virtude das
dificuldades de ordem prática surgidas com a possibilidade de ajuizamento de mais
de uma ação rescisória, em momentos diversos, oriundas de uma mesma ação, o que
depõe contra o princípio da economia processual, além de ensejar, em tese, decisões
conflitantes. Vejamos a ementa do aresto:
PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AÇÃO
RESCISÓRIA – PRAZO DECADENCIAL - TERMO A
QUO.
1. O termo inicial para o ajuizamento da ação rescisória é
a data do trânsito em julgado da última decisão da causa,
independentemente de o recurso ter sido interposto por apenas
uma das partes ou a questão a ser rescindida não ter sido
devolvida ao Tribunal.
2. O trânsito em julgado material somente ocorre quando
esgotada a possibilidade de interposição de qualquer recurso.
3. Afasta-se tese em contrário, no sentido de que os capítulos da
sentença podem transitar em julgado em momentos diversos.
4. Recurso especial provido. (BRASIL, 2002).
A culta ministra, contudo, fez questão de apresentar que mesmo no STJ a questão já
recebeu tratamento diverso, conforme denota a ementa do julgamento ao REsp nº
212286/RS:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.
AÇÃO RESCISÓRIA. PRAZO PARA O AJUIZAMENTO.
TERMO
INICIAL.
DECADÊNCIA.
QUESTÕES
AUTÔNOMAS EM UMA SÓ DECISÃO. IRRESIGNAÇÃO
PARCIAL. TRÂNSITO EM JULGADO DA MATÉRIA NÃO
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IMPUGNADA. PRAZOS DISTINTOS. RECURSO NÃO
CONHECIDO.
1. O termo inicial do prazo decadencial para a propositura
de ação rescisória não se conta da última decisão proferida no
processo, mas, sim, do trânsito em julgado da que decidiu a
questão que a parte pretende rescindir.
2. Deliberando o magistrado acerca de questões autônomas,
ainda que dentro de uma mesma decisão, e, como na espécie,
inconformando-se a parte tão-somente com ponto específico do
decisum, olvidando-se, é certo, de impugnar, oportunamente, a
matéria remanescente, tem-se-na induvidosamente por trânsita
em julgado.
3. A interposição de recurso especial parcial não obsta o
trânsito em julgado da parte do acórdão federal recorrido que
não foi pela insurgência abrangido.
4. “Se partes distintas da sentença transitaram em julgado
em momentos também distintos, a cada qual corresponderá um
prazo decadencial com seu próprio dies a quo: vide PONTES
DE MIRANDA, Trat. da ação resc., 5ª ed., pág. 353.” (in
Comentários ao Código de Processo Civil, de José Carlos
Barbosa Moreira, volume V, Editora Forense, 7ª Edição, 1998,
página 215, nota de rodapé nº 224).
5. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça.
6. Recurso não conhecido. (BRASIL, 2001).
Vejamos, na seqüência, a opinião da parte da doutrina que esposa orientação contrária
à sustentada pelo Egrégio STJ.
3.2 A coisa julgada progressiva na visão da doutrina
Na fundamentação do julgamento ao REsp nº 415586/DF, a Ministra Eliana Calmom
asseverou não desconhecer a doutrina de Barbosa Moreira e Humberto Theodoro Júnior,
“[...] quanto ao trânsito em julgado, em momentos diversos, de partes (capítulos) da
sentença, reconhecendo a possibilidade de ajuizamento de ações rescisórias diversas
e com termo a quo do prazo decadencial a depender de quando ocorreu o trânsito em
julgado” (BRASIL, 2002). Para melhor compreensão, destaco os seguintes trechos:
Cumpre todavia enfatizar que, se algo da decisão recorrida
transitou em julgado - por ter ficado fora do alcance do recurso,
ou por dele não haver conhecido, no particular, o órgão ad quem
-, e se é esse ponto que se quer impugnar, a ação rescisória deve
ser proposta contra a decisão recorrida. Assim, v.g., quando o
vício alegado, e existir, residiria na parte unânime do acórdão
proferido em grau de apelação, e não naquele que, tomado por
maioria de votos, tenha dado ensejo a embargos infringentes.
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Pode, naturalmente, caber outra ação rescisória contra o
acórdão dos embargos; mas cada qual terá seus fundamentos
próprios e inconfundíveis, e serão diferentes - ponto de enorme
importância prática - os termos iniciais dos respectivos prazos
de decadência. (Barbosa Moreira, Comentários ao CPC, 6ª ed.,
Rio de Janeiro, Forense, n. 195, p. 317/318).
O ato decisório sujeito à rescisão é tanto a sentença do juiz
como o acórdão do Tribunal. No caso de recurso, o julgamento
do tribunal substitui a sentença recorrida (art. 512). Por isso,
a ação rescisória, na espécie, terá como objeto o acórdão e
não a sentença, salvo se o recurso não foi conhecido ou se não
abrangeu o tema da sentença que motiva a rescisão. (Humberto
Theodoro Júnior, CPC Anotado, Rio de Janeiro, Forense, 1995,
p. 202) . (BRASIL, 2002).
Com efeito, o mestre Pontes de Miranda (2003, p. 355) há muito ensinava haver tantas
ações rescisórias quantas decisões transitadas em julgado em diferentes juízos e nas
diferentes jurisdições. Explica o ilustrado jurista:
O prazo preclusivo para a rescisão da sentença que foi proferida,
sem recurso, ou com decisão que dele não conheceu, começa
com o trânsito em julgado da sentença irrecorrida. Se houve
recurso quanto a algum ponto, ou alguns pontos, ou todos,
tem-se de distinguir aquilo de que se conheceu e pó de que
não se conheceu.
Há o prazo preclusivo a contar da coisa julgada naqueles
pontos que foram julgados pelo segundo grau de jurisdição.
A extensão da ação rescisória não é dada pelo pedido. É
dada pela sentença em que se compõe o pressuposto da
rescindibilidade. Se a petição continha 3 pedidos e o trânsito
em julgado, a respeito do julgamento de cada um, foi em três
graus de jurisdição, há tantas ações rescisórias quantos os
graus de jurisdição.
Nessa mesma quadra, Theodoro Júnior (2007, p. 792) também é favorável à tese
da coisa julgada formada progressivamente no curso do processo, em se tratando
de rescisão de sentenças complexas. Segundo o notável processualista mineiro: “É
longa e consolidada a tradição de nosso direito processual civil, segundo a qual as
partes do julgado que resolvam questões autônomas forma de per si sentenças que
ostentam vida própria , podendo cada qual ser mantida ou reformada sem prejuízo
para as demais”.
Essas questões autônomas dentro de um mesmo dispositivo formam o que se
convencionou denominar capítulos da sentença. O capítulo da sentença seria cada
unidade do dispositivo sobre o qual o juiz decidiu um ponto específico na demanda.
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Segundo anotam Didier Jr., Braga e Oliveira (2007, p. 243), essas unidades autônomas
e independentes podem ser capítulos puramente processuais ou capítulos de mérito:
i) capítulos puramente processuais são aqueles que se
pronunciam explicitamente sobre a possibilidade de se examinar
o mérito, isto é, tratam da presença ou ausência dos requisitos
de admissibilidade do julgamento de mérito; ii) capítulos de
mérito são aqueles que se pronunciam sobre o próprio objeto
litigioso do procedimento.
Assim, as decisões homogêneas seriam aquelas que contêm ou apenas capítulos
puramente processuais ou tão-somente capítulos de mérito; já as heterogêneas
conteriam tanto capítulos processuais quanto de mérito (DIDIER JUNIOR; BRAGA;
OLIVEIRA, 2007, p. 243). Seja como for, o certo é que para esse setor da doutrina,
se um capítulo da sentença não for impugnado juntamente com os demais em recurso
próprio à instância superior, haveria coisa julgada para aquele desde logo, a partir de
quando o prazo da rescisória já começaria a fluir. Mas isso somente é possível se entre
os capítulos impugnados e não impugnados houver total independência e autonomia.
É a lição escorreita de Theodoro Júnior (2007, p. 594):
Esse panorama da sentença dividida em capítulos oferecerá
reflexos também no plano da rescisória, que, como dispõe o art.
485, se presta a desconstituir a sentença de mérito transitada
em julgado. Logo, se é possível no mesmo processo formar-se,
por capítulos, a coisa julgada em momentos diferentes, claro é
que se poderá também cogitar de rescisão desses capítulos em
ações rescisórias aforadas separadamente e em tempo diverso.
Isto, porém, pressupõe a autonomia a independência ente os
capítulos, pois só assim se haverá de pensar na possibilidade de
sucessivas coisas julgadas em diferentes momentos.
Barbosa Moreira (2006, p. 62), citado por Theodoro Júnior (2007, p. 795), também se
filia à correntes daqueles que defendem a coisa julgada progressiva. Segundo o ilustre
professor da Faculdade de Direito da UERJ, as resoluções de mérito proferidas em
momentos distintos fazem com que essas decisões transitem em julgado em momentos
distintos, estando aptas a produzir coisa julgada não restrita ao âmbito do feito em que
emitidas. Para cada uma dessas decisões, se houver motivo legalmente previsto de
rescindibilidade, será proponível uma ação rescisória individualizada, cujo prazo de
decadência deverá ser computado caso a caso.
Theodoro Júnior (2007, p. 796) leciona ainda que existem casos em que a própria lei
impõe o julgamento escalonado da lide, desmembrando o procedimento em fases ou
estágios, cada um deles encerrado mediante sentença e trânsito em julgado distintos.
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É o caso da ação de prestação de contas, da ação de divisão e demarcação, da ação de
inventário e partilha, da ação condenatória com uma parte líquida e ilíquida, da ação
de consignação em pagamento em caso de dúvida quanto ao verdadeiro credor etc.
Relembrando o nosso exemplo constante da parte preambular desses comentários, em
que houve decisões de mérito desde o juiz de direito, passando pelo respectivo TJ até
finalmente a última questão ser debatida em sede do STJ, calha trazer mais uma vez a
orientação de Theodoro Júnior (2007, p. 796):
Se foi possível encerrar capítulos da lide antes de chegar a causa
ao STJ, não haverá inconveniente algum em que as rescisórias
tratem separadamente de cada um dos capítulos perante o
tribunal competente para apreciá-los. Não haverá contradição
ou interferência dos julgados de um nos de outros tribunais,
justamente porque a demanda fracionou-se em questões
distintas e autônomas. Nada impedirá que a solução de uma
persista, mesmo sendo rescindida a de outra.
Por fim, conjugando do mesmo entendimento dessa parte doutrina, vale conferir o
item II do Enunciado nº 100 da súmula do Tribunal Superior do Trabalho, in verbis:
TST 100. AÇÃO RESCISÓRIA. DECADÊNCIA (incorporadas
as Orientações Jurisprudenciais nºs 13, 16, 79, 102, 104, 122 e
145 da SBDI-2) - Res. 137/2005, DJ 22, 23 e 24.08.2005.
[...]
II - Havendo recurso parcial no processo principal, o trânsito
em julgado dá-se em momentos e em tribunais diferentes,
contando-se o prazo decadencial para a ação rescisória do
trânsito em julgado de cada decisão, salvo se o recurso tratar
de preliminar ou prejudicial que possa tornar insubsistente a
decisão recorrida, hipótese em que flui a decadência a partir do
trânsito em julgado da decisão que julgar o recurso parcial. (exSúmula nº 100 - alterada pela Res. 109/2001, DJ 20.04.2001)
4. Conclusão
A par do que foi visto, pode-se afirmar que a questão sobre a formação progressiva
da coisa julgada ainda é bastante debatida em sede jurisprudencial e doutrinária. A
divisão da sentença em unidades autônomas ou capítulos traz repercussões nas mais
variadas áreas do processo civil, seja na sistemática recursal, seja na efetivação das
decisões etc. Por um lado, o STJ entende não ser possível esse fracionamento na
formação da coisa julgada, haja vista ser:
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[...] impossível dividir uma única ação, que deu origem a
um único processo, em tantas quantas forem as questões
submetidas ao Judiciário, sob pena de se provocar um
verdadeiro caos processual, ferindo os princípios que regem
a preclusão, a coisa julgada formal e material, e permitindo,
até mesmo, a rescisão de capítulos em relação aos quais nem
sequer se propôs ação rescisória. (BRASIL, 2005).
Em sentido oposto, parte considerável da doutrina de peso considera possível a
chamada cisão em capítulos do dispositivo da sentença. Esses capítulos poderiam ser
puramente processuais ou de mérito, e as decisões seriam homogêneas ou heterogêneas
conforme abrangessem somente uma ou as duas espécies desses capítulos em seu
dispositivo. (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2007, p. 243).
Disso, conclui esse setor da doutrina que julgamentos de mérito, de natureza definitiva,
proferidos por juízos distintos e em momentos diversos, dentro de um só processo,
provocam preclusões e formam coisas julgadas em estágios diferentes da marcha
processual, o que possibilitaria impugnar individualmente cada um desses capítulos
pela via da rescisória. (THEODORO JÚNIOR, 2007, p. 793). Assim, o “[...] termo
inicial do prazo decadencial para a propositura de ação rescisória não se conta da
última decisão proferida no processo, mas, sim, do trânsito em julgado da que decidiu
a questão que a parte pretende rescindir”. (BRASIL, 2001).
5. Referências Bibliográficas
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 212286/RS. Relator: Min.
Hamilton Carvalhido. Brasília, 14 de agosto de 2001.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 212.286/RS. Relatora:
Min. Eliana Calmom. Brasília, 12 de novembro de 2002.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. Embargos de Divergência
no Recurso Especial nº 404777/DF. Relator: Min. Fontes de Alencar. Relator para o
Acórdão: Min. Francisco Peçanha Martins. Brasília, 3 de dezembro de 2003.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 705354 / SP. Relator:
Min. Franciulli Netto. Brasília, 8 de março de 2005.
DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de
direito processual civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação
da sentença e coisa julgada. Salvador: Podivum, 2007, v. 2.
MIRANDA, Pontes de. Tratado da ação rescisória: das sentenças e de outras decisões.
2. ed. atual. por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2003.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: 47. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2007, v. 1.
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4. TÉCNICAS
4.1 FORMULAÇÃO DE REQUERIMENTO DE ANTECIPAÇÃO DOS
EFEITOS DA TUTELA: ANÁLISE E COMPREENSÃO DO REQUISITO DA
IRREVERSIBILIDADE NO PLANO DAS CONSEQÜÊNCIAS AO DIREITO
DO REQUERIDO E TAMBÉM DO REQUERENTE. IRREVERSIBILIDADE
FÁTICA E JURÍDICA
GREGÓRIO ASSAGRA DE ALMEIDA
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Diretor do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional
Mestre em Direito Processual Civil – PUC-SP
Doutor em Direitos Difusos e Coletivos – PUC-SP
Coordenador e membro do corpo docente do Mestrado em Direito da Universidade
de Itaúna (MG)
SAMUEL ALVARENGA GONÇALVES
Oficial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Bacharel em Direito
Um dos temas mais desenvolvidos na processualística atual, sem dúvida, diz respeito
às chamadas tutelas de urgência, das quais é espécie a antecipação dos efeitos da
tutela final pretendida prevista no art. 273 do CPC.
Na verdade, é imperioso ressaltar que a tutela antecipada no ordenamento jurídico
brasileiro pode advir tanto da tutela de urgência quanto da tutela de evidência. A
tutela de evidência diz respeito à probabilidade daquilo que se afirma no processo,
relaciona-se aos fatos alegados pelas partes; por seu turno, a tutela de urgência referese ao perigo ou risco de lesão que os direitos discutidos na lide podem vir a sofrer no
caso concreto, diante da situação fática em si.
As situações de evidência e urgência não se contrapõem; antes, convivem
harmonicamente e podem, inclusive, complementarem-se em alguns casos. A
antecipação de tutela sempre será de evidência, pois um de seus pressupostos é a
prova inequívoca da afirmação; mas também poderá ser baseada na urgência, como na
hipótese do inciso I do art. 273 do CPC, em que o pedido se baseia em fundado receio
de dano irreparável ou de difícil reparação.
Em suma, a tutela antecipada consiste em uma técnica de antecipar aquilo que somente
poderia ser obtido ao final, mediante o preenchimento de alguns pressupostos bem
como a observância de alguns requisitos. Segundo escreveram Marinoni e Arenhart
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(2006, p. 203), a técnica antecipatória visa distribuir o ônus do tempo do processo.
Se antes, somente o autor sofria os efeitos da demora na tramitação do feito, agora, o
demandado também será atingido com a extemporaneidade da entrega da prestação
judicial, especialmente se contra si houver um provimento de caráter antecipatório.
Ao escrever sobre a nova era do processo civil brasileiro, o insigne Dinamarco
(2007, p. 65) asseverou sobre o tempo-inimigo e os males do retardamento da marcha
processual:
A realidade sobre as quais todos esses dispositivos opera é o
tempo como fator de corrosão dos direitos, à qual se associa
o empenho em oferecer meios de combate à força corrosiva
do tempo-inimigo (sic). Quando compreendermos que tanto as
medidas cautelares como as antecipações de tutela se inserem
nesse contexto de neutralização dos males de decurso do tempo
antes que os direitos hajam sido reconhecidos e satisfeitos,
teremos encontrado a chave para nossas dúvidas conceituais e
o caminho que há de conduzir à solução dos problemas práticos
associados a elas.
Pois bem. Em que pese a vasta gama de ponderações que poderiam ser feitas em
relação ao tema, nos presentes comentários iremos abordar exclusivamente o § 2º do
art. 273 do CPC no que diz respeito à não- concessão da tutela antecipada quando
houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. Aliás, precisas são as
lições de Nery Junior e Nery (2007, p. 529) ao comentarem o equívoco técnico da
lei. Segundo explicam, não é o provimento que será irreversível, já que se trata de
um ato revogável e provisório. O que poderão ser irreversíveis são as conseqüências
ocorridas com a antecipação dos efeitos da tutela.
O tema é importante justamente porque o requerimento na tutela antecipada deve
demonstrar de forma clara a reversibilidade da medida; é, portanto, a partir da boa
técnica na formulação do pleito, que o autor poderá ver deferidos a seu favor os efeitos
da tutela final pretendida.
Ocorre que, na maioria das ações, os requerentes se preocupam em demonstrar apenas
que a medida poderá ser reversível sob a ótica do direito do requerido; todavia, não
é essa a melhor interpretação que deve ser feita acerca da matéria. Haverá situações
em que a irreversibilidade da medida poderá ocorrer em prejuízo ao direito do próprio
autor, que, dada as circunstâncias da demanda, poderá estar a merecer proteção com
absoluta prioridade, como no caso de violação ao direito fundamental à vida; pode
ocorrer, também, que a irreversibilidade alcance o direito de ambos os litigantes,
hipótese em que a solução jurídica ao caso concreto deverá passar pelo crivo da
proporcionalidade.
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Em outras palavras, não basta a irreversibilidade de eventual lesão ao direito do
demandado para que seja obstada a concessão de tutela antecipada. Didier Junior,
Braga e Oliveira (2007, p. 543) aduzem que a exigência legal da irreversibilidade
deve ser lida com temperamentos, pois uma interpretação por demais ampliada poderá
conduzir à própria inutilidade da tutela. Nesse sentido, é válido transcrever o seu
entendimento:
Isso porque, em muitos casos, mesmo sendo irreversível a
medida antecipatória – ex.: cirurgia em paciente terminal,
despoluição de águas fluviais, dentre outros - , o seu
deferimento é essencial para que se evite um mal maior
para a parte/requerente. Se o seu deferimento é fadado
à produção de efeitos irreversíveis para o requerido,
o seu indeferimento também implica conseqüências
irreversíveis para o requerente. Nesse contexto, existe,
pois, perigo da irreversibilidade decorrente da nãoconcessão da medida. Não conceder a tutela antecipada
para a efetivação do direito à saúde, pode, por exemplo,
muita vez, implicar a conseqüência irreversível da morte
do demandante.
Nessa seara, o próprio Superior Tribunal de Justiça, em reiteradas decisões, vem
acolhendo a tese de que irreversibilidade da medida não constitui, de per si, óbice
para o deferimento da tutela antecipada. Preconiza-se, dessa maneira, uma mitigação
ao rigorismo do § 2º do art. 273 do CPC:
PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO
ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO.
SÚMULAS N. 282 e 356 do STF. ANTECIPAÇÃO DE
TUTELA. INTELIGÊNCIA DO ART. 273, § 2º, DO CPC. 1. O
prequestionamento dos dispositivos legais tidos como violados
constitui requisito indispensável à admissibilidade do recurso
especial. Incidência das Súmulas n. 282 e 356 do Supremo
Tribunal Federal. 2. O possível risco de irreversibilidade dos
efeitos do provimento da antecipação da tutela contida no art.
273, § 2º, do CPC não pode ser interpretado ao extremo, sob
pena de tornar inviável o direito do reivindicante. 3. Agravo
regimental que se nega provimento. (BRASIL, 2005, grifo
nosso).
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. Tratamento médico.
Atropelamento. Irreversibilidade do provimento. A regra
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do § 2º do art. 273 do CPC não impede o deferimento da
antecipação da tutela quando a falta do imediato atendimento
médico causará ao lesado dano também irreparável, ainda que
exista o perigo da irreversibilidade do provimento antecipado.
Recurso não conhecido. (BRASIL, 2002, grifo nosso).
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. TUTELA
ANTECIPATÓRIA.
DIREITOS
PATRIMONIAIS.
CONCESSÃO: POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART.
273 DO CPC. RECURSO NÃO CONHECIDO.
I - A Tutela Antecipatória prevista no art. 273 do CPC pode ser
concedida em causas envolvendo direitos patrimoniais ou nãopatrimoniais, pois o aludido dispositivo não restringiu o alcance
do novel instituto, pelo que e vedado ao interprete fazê-lo. nada
obsta, por outro lado, que a tutela antecipatória seja concedida
nas ações movidas contra as pessoas jurídicas de direito publico
interno. II - A exigência da irreversibilidade inserta no par.
2. do art. 273 do CPC não pode ser levada ao extremo, sob
pena de o novel instituto da tutela antecipatória não cumprir
a excelsa missão a que se destina. III - Recurso Especial não
conhecido. (BRASIL, 1997, grifo nosso).
De acordo com os arestos citados acima, caberá ao autor, na formulação de seu
requerimento de antecipação de tutela, expor de forma clara que a irreversibilidade da
lesão gerada também poderá ser em relação ao seu direito, justamente diante da nãoconcessão da medida. Por exemplo, ao se pleitear, de forma antecipada, a realização
de um transplante de órgão, caso o autor venha a perder a demanda, certamente a
medida deferida não poderá ser desfeita em relação ao demandado vitorioso; todavia,
no confronto de valores, o não-deferimento da tutela antecipada também seria
irreversível ao próprio demandante, uma vez que fatalmente ele poderia perder a vida
caso a cirurgia não fosse realizada naquele instante.
Em termos mais claros: há situações em que a não-concessão da tutela antecipada é
muito mais prejudicial do que a sua concessão, notadamente porque, como veremos ao
final, quase sempre poderá haver a transmudação da obrigação específica em perdas e
danos, caso o favorecido pela tutela perca a demanda e não seja possível restaurar o
cenário ao seu status quo ante.
Nessa seara, citamos o magistério de Moreira (2007, p. 87), ao justificar a análise da
irreversibilidade na ótica do direito do requerente:
Exclui-se, a princípio, a possibilidade da antecipação
quando houver perigo de mostrar-se irreversível a
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situação resultante da decisão antecipatória; mas é forte a
tendência a atenuar, em casos graves, o rigor da proibição,
sobretudo quando se afigurar também irreversível o dano
a ser sofrido pela parte interessada, se não se antecipar a
tutela.
Logo, apenas uma visão sistêmica e harmônica do caso concreto é que, de fato, irá
determinar a viabilidade ou não da concessão da tutela antecipada. Em um confronto
de interesses igualmente protegidos pela ordem jurídico-constitucional, deverá
prevalecer o de maior relevância, conforme apurado na técnica da ponderação. Nesse
sentido, foi o voto do eminente Ministro Herman Benjamin:
PROCESSUAL
CIVIL.
AGRAVO
REGIMENTAL.
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. INTELIGÊNCIA DO
ART. 273, § 2º, DO CPC. PRECEDENTES. 1. O perigo
de irreversibilidade do provimento adiantado, óbice legal à
concessão da antecipação da tutela, nos termos do artigo 273,
§ 2º, do CPC, deve ser interpretado cum grano salis, sob pena
de se inviabilizar o instituto. 2. Irreversibilidade é um conceito
relativo, que deve ser apreciado ad hoc e de forma contextual,
levando em conta, dentre outros fatores, o valor atribuído
pelo ordenamento constitucional e legal aos bens jurídicos
em confronto e também o caráter irreversível, já não do que o
juiz dá, mas do que se deixa de dar, ou seja, a irreversibilidade
da ofensa que se pretende evitar ou mesmo da ausência de
intervenção judicial de amparo. 3. Agravo Regimental não
provido. (BRASIL, 2006).
Por fim, Nery Junior e Nery (2007, p. 529) trazem também a diferença entre
irreversibilidade de fato e de direito: quando ela for de fato, haverá real perigo de
irreversibilidade ao estado anterior, situação em que a medida não poderá ser deferida.
Mas quando houver irreversibilidade de direito, ou seja, quando a obrigação prestada
antecipada puder resolver-se em perdas e danos, a tutela poderá, em tese, ser deferida,
sem que com isso haja violação ao devido processo legal, seja na sua dimensão formal,
seja na sua dimensão substancial.
Conclusão
Quando da formulação de requerimento de antecipação dos efeitos da tutela final
pretendida, em relação à condição da reversibilidade da medida, o requerente deverá
analisá-la não apenas sob a ótica da situação jurídica do requerido, mas também em
relação à sua própria esfera de direitos, uma vez que existem situações de tamanha
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gravidade em que a não-concessão da antecipação pleiteada tornará inócuos os fins
da jurisdição e poderá produzir um dano bem maior ao requerente do que em relação
ao requerido.
Além disso, havendo confronto de interesses, o juiz deverá analisar criteriosamente
qual dos valores deverá prevalecer no caso concreto: o social em sobreposição ao
meramente privado; o direito fundamental e a dignidade da pessoa humana em relação
ao de expressão meramente econômica etc. E por último, a irreversibilidade jurídica
permite a concessão da tutela antecipada, já que a obrigação prestada em caráter
antecipado poderá resolver-se em perdas e danos.
Referências Bibliográficas
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição
sistemática do procedimento. 25. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 144656/ES. Relator: Min.
Adhemar Maciel. Brasília, 6 de outubro de 1997.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 417005/SP. Relator: Min.
Ruy Rosado de Aguiar. Brasília, 25 de setembro de 2002.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento
nº 502173/RJ. Relator: Min. João Otávio de Noronha. Brasília, 2 de agosto de 2005.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento
nº 736826/RJ. Relator: Min. Herman Benjamin. Brasília, 12 de dezembro de 2006.
DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de
direito processual civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação
da sentença e coisa julgada. Salvador: Podivum, 2007. v. 2.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. 2. ed. rev. atual. e
aument. São Paulo: Malheiros, 2007.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de
conhecimento. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil
comentado e legislação extravagante. 10. ed. rev. ampl. e atual. até 1º.10.2007. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
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SEÇÃO IV – DIREITO COLETIVO E PROCESSUAL COLETIVO
SUBSEÇÃO I – DIREITO COLETIVO
1. ARTIGOS
1.1 O MEIO AMBIENTE NA PERSPECTIVA CULTURAL
CONTEMPORÂNEA DO DIREITO NO BRASIL
FRANCISCO DE ASSIS BRAGA
Engenheiro Florestal D.S.
Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais Campus da Fundação Educacional de Divinópolis
LUCIANA IMACULADA DE PAULA
Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais
Coordenadora das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente das Subbacias dos Rios das Velhas e Paraopeba
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Questão ambiental: origem. 3. Cenário legal. 3.1.
Definição legal. 3.2. Meio ambiente e Constituição. 4. Conclusão. 5. Referências
bibliográficas.
1. Introdução
O século XX caracterizou-se por uma crescente, e sem precedentes, exploração dos
recursos naturais, acarretando alterações significativas nas condições ambientais da
biosfera, notadamente sobre os seus componentes físicos (água, solo e atmosfera),
bióticos (fauna e flora) e socioeconômicos (antrópicos). Isso se deu porque a expansão
econômica, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, acentuou a pressão
sobre os recursos naturais, mas não foi acompanhada de ações compatíveis visando
monitorar, prevenir e minimizar os impactos gerados nos sistemas naturais e artificiais
(construídos).
Vale considerar que os problemas ambientais atingiram níveis transfronteiriços e
globais, destacando-se a destruição da camada de ozônio, o aquecimento global, a
poluição das águas doces (superficiais e subterrâneas) e dos mares, o desmatamento e
a perda de biodiversidade de plantas e animais (UNITED, 2005). Diante desse quadro,
a consciência em relação à questão ambiental ampliou-se desde a década de 1960,
intensificando-se a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
Humano, em Estocolmo, 1972. Em seguida, na década de 1980, com a detecção de
problemas ambientais de efeitos planetários, a questão ambiental ganha espaço na
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pauta da agenda internacional, reconhecendo-se politicamente a biosfera como espaço
comum importante para a vida de todos os seus habitantes. Na seqüência, foi lançado
um novo estilo de desenvolvimento, denominado desenvolvimento sustentável, a
partir do Relatório Brundtland, de 1987, referendado posteriormente na Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, no Rio de
Janeiro (BRÜSEKE, 2003). Paralelamente a todo esse processo de identificação e
conscientização da problemática ambiental, ocorreu a evolução de organizações e
instrumentos legais e normativos, em nível nacional e internacional, tratados, acordos
e convenções multi e bilaterais, buscando-se construir uma governabilidade sobre o
ambiente nacional e planetário.
Os instrumentos legais surgiram para codificar a separação de atribuições no processo
de acomodação cultural de comunidades territorialmente autônomas e soberanas
em estados-nações, após a dissolução da estrutura feudal na Europa. Paralelamente,
surgiu também o direito internacional, para estabelecer as relações entre as nações
(ALBAGLI, 1998). Portanto, a legislação de uma dada nação codifica e expressa,
culturalmente, o modo de ser e de pensar do seu povo, e por isso mesmo, evolui com
o passar do tempo, refletindo a realidade contemporânea. É possível, contudo, que as
regras vigentes reflitam um posicionamento ético ultrapassado, constituído sob visões
cientificamente desmentidas como, por exemplo, a idéia de que os recursos naturais
são inesgotáveis (BENJAMIN, 2001). Posto isto, o presente trabalho tem por objetivo
caracterizar e analisar a perspectiva de meio ambiente no contexto cultural do Direito
no Brasil contemporâneo.
2. Origem da questão ambiental
Modernamente, o despertar para a questão ambiental remonta à década de 60 e
tem como fundamento básico a idéia de que a utilização dos recursos naturais,
visando somente a interesses particulares, num modelo de crescimento desenfreado
e sem observar as conseqüências no sistema natural e social, não conduz à utopia
do crescimento incessante da riqueza nacional, mas sim à catástrofe sem volta da
destruição do Planeta (NOBRE; AMAZONAS, 2002).
Um dos ícones da época foi o polêmico artigo de Hardin (1968), apresentado como
conferência em congresso da Sociedade Americana para o Progresso da Ciência, em
dezembro de 1967. Segundo aquele autor, a tragédia das áreas comuns se desenvolve
como em um pasto aberto a todos. Nesse caso, é de se esperar que todo boiadeiro vá
tentar manter o máximo possível, e sem limite, de animais nesse pasto comum, terreno
esse que tem uma capacidade de suporte de animais limitada. Nesse caso, a liberdade
do pasto comum trará a ruína para todos os seus usuários. Logo, por analogia simples,
a ruína será o destino ao qual se lançam todos os homens, quando cada um persegue o
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seu melhor interesse, em uma sociedade que acredita na liberdade das áreas comuns.
Nesse contexto, importante destacar a idéia inicial de meio ambiente proclamada no
item 1 da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano de 19721:
O homem é ao mesmo tempo obra e construtor do meio
ambiente que o cerca, o qual lhe dá sustento material e lhe
oferece oportunidade para desenvolver-se intelectual, moral,
social e espiritualmente... Os dois aspectos do meio ambiente
humano, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar
do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais,
inclusive o direito à vida mesma.
No item 5 da Declaração de Estocolmo encontra-se a proclamação “[...] de que de todas
as coisas do mundo, os seres humanos são a mais valiosa”. Uma visão extremamente
antropocêntrica da importância da espécie humana, num planeta que surgiu e evoluiu
desde 4,5 bilhões de anos atrás, onde os primeiros mamíferos surgiram apenas nos
últimos 300 milhões de anos (ODUM; BARRETT, 2007). Dentre os princípios
propostos na Declaração de Estocolmo, merece destaque o primeiro:
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao
desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente
de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar
de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o
meio ambiente para as gerações presentes e futuras.
A Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, reafirma
os princípios da Declaração de Estocolmo e apresenta 27 princípios, pautados na
cooperação entre as nações, na proteção integral do sistema global de meio ambiente
e no desenvolvimento sustentável, reconhecendo a terra como nosso lar. Merecem
destaque alguns desses princípios:
1. Os seres humanos estão no centro das preocupações com o
desenvolvimento sustentável. Têm o direito a uma vida saudável
e produtiva, em harmonia com a natureza.
1
O ambiente compõe-se de um conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais, que se constituem
no meio em que habitamos. Com efeito, o meio ambiente, ao contrário do que muita gente pensa, não é
só natureza. Além das árvores, dos rios, das praias, do mar, do ar que a gente respira, o meio ambiente
também é a nossa rua, a nossa casa, o nosso corpo e as relações que temos com as outras pessoas (INSTITUTO..., 1998). Assim, ambiente, por definição, relaciona-se a tudo aquilo que nos circunda. De certa
forma, a palavra ambiente já expressa o sentido da palavra meio. Por isso, é comum haver crítica ao termo
meio ambiente como pleonástico e redundante. Entretanto, segundo observa Silva (2002, p. 20), a palavra
ambiente expressa o conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que nos cercam e o vocábulo
meio representa o resultado da interação desses elementos, razão pela qual a expressão meio ambiente se
manifesta mais rica de sentido (como conexão de valores).
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2. Os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas e com
os princípios do direito internacional, têm o direito soberano de
explorar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas
de meio ambiente e de desenvolvimento, e a responsabilidade
de assegurar que atividades sob a sua jurisdição ou seu controle
não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou de
áreas além dos limites da jurisdição nacional.
[...]
4. Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção
ambiental constituirá parte integrante do processo de
desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente
deste.
[...]
25. A paz, o desenvolvimento e a proteção ambiental são
interdependentes e indivisíveis.
Além de refletirem uma visão utilitarista, compartimentalizada e fragmentada de
meio ambiente, os princípios em destaque exprimem um pensamento antropocêntrico
mais brando, chamado antropocentrismo mitigado ou reformado, que incorpora
a preocupação com o direito das gerações futuras. A concepção mais moderada,
segundo André Chartrand (apud BENJAMIN, 2001, p. 159), situa-se entre o
antropocentrismo radical, que apregoa o homem como centro e senhor do universo,
e o não-antropocentrismo, modelo também conhecido como biocentrismo ou
ecocentrismo. Atualmente, o antropocentrismo reformado é o paradigma dominante
como fundamento para as normas jurídicas de defesa do meio ambiente em todo o
mundo. O princípio 2 da Declaração do Rio reproduz fielmente o princípio 21 da
Declaração de Estocolmo, reafirmando sua proposição e demonstrando a falta de
evolução, em termos conceituais e filosóficos acerca da temática em pauta.
Resta saber como “[...] assegurar que as atividades não causem danos ao meio ambiente
de outros Estados ou áreas além dos limites da jurisdição nacional” (segundo os
princípios da Declaração de Estocolmo e do Rio de Janeiro), diante da impossibilidade
de se confinar e delimitar, num dado espaço geográfico, elementos como a água e o ar
atmosférico. A erradicação da cobertura vegetal nativa de um dado local, por exemplo,
implica a perda direta de biodiversidade e de habitat para fauna, na liberação do
carbono acumulado na biomassa para a atmosfera, em alteração climática (elevação
de temperatura, redução da umidade do ar), em alteração no funcionamento da bacia
hidrográfica (relação entre infiltração, escoamento superficial, evapotranspiração),
dentre outras conseqüências. Os gases de efeito estufa, liberados em diferentes regiões
do planeta, contribuem, indistintamente, para o aquecimento global, ou seja, tudo está
conectado com tudo. Conforme Meadows (1989, p. 46); tem-se:
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A fim de conhecer o mundo, nossa mente o divide em conceitos,
partes, categorias e disciplinas. Mas o mundo é um todo único.
Não há claras linhas divisórias entre química e física, terra e
mar; Irã e Iraque; entre homem e natureza, exceto as linhas
estabelecidas pela mente humana.
Cada vez que você inspira, uma parte do ambiente torna-se parte
de você; cada vez que você expira, uma parte de você torna-se
parte do ambiente. O ciclo das águas flui através de você, como
o fazem os ciclos do carbono, do oxigênio, do nitrogênio e de
outros elementos que formam a sua estrutura.
Embora você não possa ver a conexão entre o escapamento
de um automóvel e seus pulmões; a saúde do solo ou da bacia
hidrográfica e a saúde das pessoas que comem o alimento
produzido nesse solo ou consome a água gerada pela bacia,
essas conexões existem. Mesmo quando as pessoas reconhecem
as interconecções complexas do mundo, ainda assim é freqüente
surpreenderem-se com elas, especialmente quando as causas
estão muito distantes dos efeitos, em lugar ou tempo. Uma
seca em Kansas afeta os preços do trigo em Gana. Poluentes
do ar emitidos na Inglaterra matam árvores na Suécia, devido
à chuva ácida. Agrotóxicos aplicados em campos agrícolas
podem aparecer nas águas subterrâneas dez anos mais tarde,
e causar câncer 30 anos depois. Muitas dessas conecções são
determináveis e reconhecíveis se as estivermos procurando.
Porém, se a nossa mente não estiver acostumada a cruzar
categorias conceituais e perceber inter-relações, não
administraremos muito bem as coisas e nos depararemos com
algumas surpresas.
Ou seja, não basta colocar desenvolvimento, numa perspectiva de crescimento
econômico, e sustentabilidade, como controle ou tecnologia de baixo impacto
ambiental, incorporados a modelos e processos de exploração e de produção – avaliação
de impactos ambientais, medidas de controle ambiental, produção mais limpa etc. É
preciso adotar uma visão mais ampliada, onde desenvolvimento seja igual à eqüidade
social – redução da pobreza e distribuição de renda – e sustentabilidade contemple,
além do processo produtivo em si, a interdependência entre as demais dimensões
ambientais, políticas e socioculturais (BURSZTYN, 1993 e NOBRE; AMAZONAS,
2002).
Vale lembrar que a matéria não pode ser criada ou destruída, ou seja, os materiais
do planeta permanecem nele, passando por transformações contínuas, alimentadas
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pela energia da terra e do sol, os chamados ciclos biogeoquímicos – trocas de
materiais entre os componentes vivos e não-vivos da biosfera, através dos quais os
materiais circulam continuamente pelo planeta, em velocidade determinada por suas
características físicas, químicas e bioquímicas (ODUM; BARRETT, 2007). Assim,
pode se dizer que:
Embora a quantidade total de materiais se mantenha quase
que totalmente fixa, a sua distribuição e mistura no planeta
estão em constante movimento... vastas quantidades de água
evaporam num determinado local e vão cair em forma de chuva
noutro; vulcões entram em erupção e expelem cinzas e rocha
derretida, que podem dar origem a novas ilhas, como também
sepultar cidades. Todos os anos, bilhões de toneladas de metais
e combustíveis são extraídos pelo homem; a cada ano, criam-se,
a partir de matéria-prima básica, milhares de novos produtos
químicos e recombinações moleculares que nunca existiram
antes. Os elementos necessários à vida - água, carbono,
oxigênio, nitrogênio etc. - passam por ciclos biogeoquímicos
que mantêm sua pureza e a capacidade de serem aproveitados
pelas coisas vivas (MEADOWS, 1997. p. 36).
Por exemplo, a liberação de gases na atmosfera provenientes de motores de combustão,
implica a introdução de óxidos de enxofre e nitrogênio no ar. Esses compostos irão
participar e alterar processos físicos, químicos e biológicos na biosfera, podendo
acarretar a precipitação de chuva ácida (pH < 5,6), devido à formação de ácidos de
enxofre (ácido sulfúrico) e de nitrogênio (ácido nítrico). Por sua vez, a chuva ácida
pode provocar a queima de folhas e até a morte de plantas, a acidificação do solo
e das águas, e a mortandade de peixes (BRADY, 1989), podendo acarretar ainda a
deterioração de fachadas de construções, de obras de arte etc. Caso memorável ocorreu
na região de Cubatão, no Estado de São Paulo, onde a poluição atmosférica de origem
industrial acarretou, dentre outros problemas, a morte de árvores da mata atlântica em
encostas íngremes da Serra do Mar, provocando sérios problemas de erosão, devido a
sua exposição direta do solo à ação da chuva (POMPÉIA, 1998).
Uma das possíveis origens da crise ambiental atual pode estar relacionada ao paradigma
dominante a partir do século XIV, calcado no método empírico-dedutivo como
requisito para validação científica da verdade e como forma de apreensão e de controle
dos fenômenos naturais. Assim, o caráter pretensamente neutro da ciência moderna e
a centralidade do conhecimento científico constituiriam o fundamento ontológico para
o abandono de uma atitude ético-normativa, em favor de um racionalismo meramente
instrumental, em relação aos processos naturais e sociais. Assim, em vez de se
questionar o porquê das coisas, passou-se a buscar o como – a ciência passou a ocupar
lugar de destaque na geração de tecnologia para processos produtivos e no aparato
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ideológico hegemônico, centrando-se na livre instrumentalização de uma natureza
dessacralizada. A natureza perdeu a força prescritiva sobre a consciência ética e política
do homem, passando a ser concebida como algo uniforme, quantificável e mecânico.
Na visão de muitos pensadores, esse seria o cerne da crise contemporânea, de cunho
não só ambiental, mas de dimensões mais amplas e mais profundas (ALBAGLI,
1998).
3. Evolução ético-legislativa das normas protetivas do meio ambiente
A história da evolução legislativa demonstra que a influência econômica sempre
dirigiu os maiores ou menores cuidados pelos bens ambientais. Onde escassearam os
bens ambientais, os governos cuidaram de estabelecer normas restritivas ao consumo,
de punir o desperdício e a destruição. Onde era abundante, não havia preocupação em
normatizar o assunto.
Além disso, historicamente, os povos sempre se ocuparam em proteger o meio ambiente
como forma indireta de proteção ao próprio homem. Não é de se estranhar, portanto,
que os primeiros registros legislativos sobre o tema demonstram uma preocupação
com a destruição da natureza pelo fogo. Isto porque a população instalava-se às
margens das florestas, sítio abundante de alimento e lenha, e onde o incêndio poderia
causar danos aos núcleos populacionais.
No direito grego, afirma Hofacher, há registros de que o crime de incêndio era punido
com pena capital. A propósito, é expressiva a alusão contida na oração de Demóstenes
contra Aristócrates, em que o incendiário era punido com pena capital. Outrossim,
no direito romano, punia-se o delito de incêndio com a morte pelo fogo, como uma
espécie de reprodução da Lei de Talião (PEREIRA, 1950). Ao contrário de Roma,
que, por volta do ano 640 a.C – época em que prevaleciam as normas penais na defesa
dos bens ambientais – já possuía uma administração florestal tal como a concebemos
atualmente, as demais nações civilizadas somente em meados do século XIX passaram
a perceber a insuficiência do direito penal para conservar e desenvolver as riquezas
naturais, indispensável à manutenção da vida.
Nessa época, surgiram em vários países leis destinadas a regular o uso racional da
terra, firmando diretrizes de aproveitamento do solo, os chamados Códigos Florestais.
Como era de se esperar, as leis em referência não obedeceram a uma política florestal
uniforme, pois cada Estado dirigiu suas orientações conforme a concepção dominante
em seu território. Porém, um traço seria comum a todas as leis em referência: a visão
puramente antropocêntrica, que sustenta “[...] a crença na existência de uma linha
divisória clara e moralmente relevante, entre a humanidade e o resto da natureza;
que o ser humano é a principal ou única fonte de valor e significado do mundo e
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que a natureza-não-humana aí está com o único propósito de servir aos homens”
(ECKERSLEY, 1992).
Em contraponto ao paradigma antropocêntrico, surgem concepções que afirmam
que o homem é parte integrante da natureza e não um ser destacado dela. Dentre as
correntes não-antropocêntricas, as mais conhecidas são o biocentrismo, que reforça
o pensamento de que o mandamento primordial é não violar a vida em suas várias
manifestações, e o ecocentrismo, ou holismo, para a qual seres vivos e ecossistemas
merecem igual respeito, e só podem ser tratados em conjunto. Manifestação nãoantropocêntrica muito conhecida é a Hipótese Gaia (Gaia, do grego, deusa terra),
proposta pelos cientistas James Lovelock e Lynn Margulis, na década de 1970,
segundo a qual a terra funciona como um único e complexo organismo, capaz de
auto-regulação e auto-organização. Nessa perspectiva, o papel dos organismos vivos
é essencial na manutenção do equilíbrio climático, gerando as condições químicas e
físicas favoráveis para todas as formas de vida do planeta, o chamado controle biológico
do ambiente geoquímico (ODUM; BARRETT, 2007). Nesse caso, todas as demais
espécies, além da humana, desempenhariam papel fundamental na manutenção de
processos vitais, cabendo assim, a preservação de todas elas para a manutenção de um
ambiente equilibrado na biosfera. Mister enfatizar que correntes não-antropocêntricas
não são contrárias ao homem. Elas repudiam – com o aval inequívoco da ciência – a
visão do homem como ente apartado da natureza.
4. O meio ambiente na perspectiva contemporânea legislativa brasileira
No Brasil, as normas que compõem o arcabouço legislativo de proteção ambiental não
possuem bases éticas coincidentes. Além disso, os fundamentos éticos que amparam
os textos normativos não obedecem a uma sucessão histórica conceitual, antes, os
padrões coexistem de forma absolutamente circunstancial.2 Considere-se, a princípio,
a Lei Federal nº 6.938, promulgada em 31 de agosto de 1981, que estabeleceu as
diretrizes básicas da Política Nacional de Meio Ambiente. A referida norma, conhecida
como Lei de Política Nacional de Meio Ambiente, trouxe a definição legal de meio
ambiente no inciso I do art. 3º, prevendo ser meio ambiente o conjunto de condições,
leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga
e rege a vida em todas as suas formas. Como se vê, o texto normativo expressa uma
ampla perspectiva conceitual de meio ambiente e abarca os meios teoricamente
denominados de físico (ar, solo e água), biótico (fauna e flora) e antrópico (cultural,
econômico e político), ou seja, exprime e recepciona o cabedal teórico-conceitual do
termo meio ambiente e acolhe todas as formas e vida. No entanto, quanto à perspectiva
2
Confirma a assertiva de modo irrefutável um paralelo entre o Decreto nº 24.645/1934 e o Decreto nº
23.793/1934, o primeiro Código Florestal Brasileiro, visto que aquele exprime tendência não-antropocêntrica e o segundo registra forte fundamento antropocêntrico.
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filosófica, a Lei em comento expressa um posicionamento antropocêntrico. Veja-se, a
propósito, o disposto no artigo 2º:
Art. 2º. A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo
a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental
propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao
desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança
nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos
os seguintes princípios: [...].
A Lei referida elegeu como objetivos primordiais da Política Nacional de Meio
Ambiente a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à
vida, em todas as suas formas (art. 2º c/c 3º, I). Porém, a tutela da qualidade ambiental,
segundo a Lei, objetiva assegurar condições ao desenvolvimento socioeconômico,
garantir interesses da segurança nacional e proteger a dignidade da vida humana.
Não há, pois, intenção de proteger o meio ambiente se a medida não for condição ao
desenvolvimento do país e à proteção da vida do homem.
Por seu turno, a Constituição da República de 1988, em seu capítulo VI, art. 225,
tratou especificamente do tema do meio ambiente: “Todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O § 1º desse mesmo artigo
propõe, dentre outros:
1. Preservar e restaurar os processos ecológicos;
2. Promover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
3. Preservar a biodiversidade;
4. Proteger a fauna e a flora, vedadas as práticas que coloquem
em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de
espécies ou submetam os animais a crueldade.
Conforme observa Fiorillo (2003), o texto constitucional aporta dispositivos modernos,
contemplando os interesses de caráter difuso, assumindo direitos à vida, saúde,
cidades, função social de propriedades, higiene e segurança do trabalho, educação,
pesquisa, cultura, consumidor, e especificamente, ao meio ambiente, configurando e
disciplinando nova realidade jurídica de um bem, que não é público, nem particular
– todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo, essencial à sadia qualidade de vida. Segundo o mesmo autor, o art. 225
da Carta Magna estabelece quatro concepções fundamentais no âmbito do direito
ambiental brasileiro:
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1. De que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado;
2. De que o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado diz respeito à existência de um bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, criando em nosso
ordenamento o bem ambiental;
3. De que a Carta Maior determina tanto ao Poder Público como
à coletividade o dever de defender o bem ambiental, assim
como o dever de preservá-lo;
4. De que a defesa e a preservação do bem ambiental estão
vinculadas não só às presentes como também às futuras
gerações.
Contudo, cabe uma questão fundamental (FIORILLO, 2003, p. 15), sob o prisma
constitucional: o destinatário do direito ambiental seria o homem ou seria a vida em
todas as suas formas? Considerando-se o texto em destaque, a proteção legal dos
seres vivos não-humanos dependeria da condição de que esses seres vivos sejam
essenciais à sadia qualidade de vida humana. Nessa perspectiva, os demais seres vivos
somente seriam tutelados na medida em que a sua existência implicasse a garantia
da sadia qualidade de vida do homem contemporâneo ou vindouro, numa sociedade
organizada onde o homem é o destinatário de toda e qualquer norma. Evidente, pois, a
opção do constituinte pelo paradigma antropocêntrico intergeracional, considerando a
conservação dos valores ambientais para as gerações vindouras, objetivando assegurar
a continuidade da espécie humana, com a conservação do padrão ambiental hoje
caracterizado – manutenção da diversidade biológica e cultural.
Não obstante, opções não-antropocêntricas também podem ser conferidas no sistema
normativo pátrio. Veja-se, a propósito, o Decreto Federal nº 4.339, de 22 de agosto de
2002, que instituiu princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional
de Biodiversidade e foi editado em consideração aos compromissos assumidos pelo
Brasil ao assinar a Convenção sobre Diversidade Biológica, durante a Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, a qual foi
aprovada pelo Decreto Legislativo nº 2, de 3 de fevereiro de 1994, e promulgada pelo
Decreto no 2.519, de 16 de março de 1998. O decreto sinaliza avanços como:
2.I. A diversidade biológica tem valor intrínseco, merecendo
respeito independentemente de seu valor para o homem ou
potencial para uso humano;
2.XI. O homem faz parte da natureza e está presente nos
diferentes ecossistemas brasileiros há mais de dez mil anos...
2. XIV. O valor de uso da biodiversidade é determinado pelos
valores culturais e inclui valor de uso direto e indireto, de
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opção de uso futuro e, ainda, valor intrínseco, incluindo os
valores ecológicos, genéticos, sociais, econômicos, científicos,
educacionais, culturais, recreativos e estéticos.
Entretanto, já se passaram mais de cinco anos da edição do Decreto, mas a Lei de
Política Nacional de Biodiversidade ainda não foi promulgada. Somente foi editado
mais um decreto, o Decreto nº 4.703, de 21 de maio de 2003, dispondo sobre o
Programa Nacional da Diversidade Biológica - PRONABIO e a Comissão Nacional de
Biodiversidade, visando orientar a elaboração e a implementação da lei, considerando
os princípios elencados no Decreto nº 4.339/2002.
Se o legislador ordinário seguir a tendência não-antropocêntrica esboçada no Decreto
nº 4.339/2002 na vindoura Política Nacional de Biodiversidade, haverá maior
proteção às diversas formas de vida existentes. Assim, alternativamente, à perspectiva
antropocêntrica, segundo Amaral (apud FIORILLO, 2003, p. 18-19) “[...] ter-se-á
proteção à natureza em função dela mesma, como valor em si, e não apenas como um
objeto útil ao homem. [...]”. Por certo, a natureza carece de uma proteção pelos valores
que ela representa em si mesma, proteção que, muitas vezes, poderá ser dirigida contra
o próprio homem. Aliás, propõe-se que:
A natureza tem seu próprio valor, independente do valor que os
homens lhe conferem. As sociedades humanas não poderiam
existir sem os sistemas naturais. O ser humano faz parte da
natureza. Porém, a mente humana dualista, gosta de separar
o seu caráter humano da mera natureza. Feita essa distinção,
caímos então na armadilha de ter que defender a natureza por
causa do seu valor (em geral, econômico) que ela tem para a
humanidade. Se não pudermos ver o imediato valor econômico
de um inseto, de uma floresta, pântano ou pradaria, não vemos
o sentido de sua existência e achamos que podemos interferir
ou destruir tudo isso (MEADOWS, 1997).
Certo é que nossa atitude em relação a qualquer coisa criada neste planeta deve ser, e
é para muitas pessoas, de reverência. Embora possamos não perceber sua finalidade,
não podemos descartá-la como se não existisse. Embora não possamos calcular seu
valor para nós, existe um valor intrínseco. Nada na natureza tem de justificar-se em
relação a nós para ter direito de existir. O ecologista Aldo Leopold (apud ODUM;
BARRETT, 2007) colocou esse princípio numa declaração moral que denominou
de Ética da Terra. Aldo define ética, do ponto de vista ecológico, como “[...] uma
limitação sobre a liberdade de ação na luta pela existência”, e afirma que “[...] a
relação terra-humanos ainda é estritamente econômica, implicando privilégios, mas
não obrigações”. Segundo Odum e Barrett (2007), a manutenção e a melhoria da
qualidade ambiental requerem embasamento ético. Assim, o abuso de sistemas de
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suporte à vida deveria ser considerado ilegal e antiético. Afirmam ainda que os direitos
humanos vêm recebendo crescente atenção ética, legal e política, enquanto os direitos
dos outros organismos e do ambiente não têm merecido o mesmo tratamento
O cientista russo Vernadskij imaginou, em 1945, um sistema dominado ou gerenciado
pela mente humana denominado de noosfera (do grego noos = mente); e sugeriu que
pensemos na noosfera, ou no mundo dominado pela mente humana, gradualmente
substituindo a biosfera, o mundo em evolução, que existiu por bilhões de anos (ODUM;
BARRETT, 2007). No entanto, a adoção de um paradigma não-antropocêntrico
importará no enfrentamento de questões complexas, tais como a posição dos valores
ambientais nas relações jurídicas – a natureza como bem ou como titular de direitos.
Certo é que as respostas a essas indagações acarretarão conseqüências dogmáticas
inevitáveis e profundas. A propósito, pondere-se o seguinte:
O paradigma não-antropocêntrico, ao contrário do que
imaginam alguns, mantém a validade e a plenitude dos
objetivos antropocêntricos do Direito Ambiental: a tutela da
saúde humana, das paisagens com apelo turístico, e do valor
econômico de uso direto dos recursos da natureza. Mas, vai
além disso, aceitando que a natureza é dotada de valor inerente,
que independe de qualquer apreciação utilitarista de caráter
homocêntrico; o reposicionamento, portanto, opera no plano do
balanceamento axiológico dos objetivos ambientais e no seu rol
casuístico (BENJAMIN, 2001, p. 157).
Por derradeiro, importante considerar que os padrões antropocêntricos e nãoantropocêntricos poderão professar escopos comuns de preservar a Natureza em certas
situações, pois a manutenção do equilíbrio do meio ambiente é condição necessária
tanto para a preservação da espécie humana sobre a Terra como para a manutenção
das demais formas de vida.
5. Conclusão
A temática ambiental ganhou expressão a partir dos anos 60, sendo institucionalizada
no direito brasileiro através da Política Nacional de Meio Ambiente, estabelecida pela
Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, e reafirmada, posteriormente, pela Constituição
Federal de 1988, tratando do tema do meio ambiente em capítulo específico.
A visão contemporânea de meio ambiente no Brasil, materializada culturalmente por
esses dois instrumentos legais, denotam uma visão antropocêntrica, fragmentada,
utilitarista, reducionista e compartimentalizada de meio ambiente e colocando o
homem como o ser mais importante da natureza, para o qual as ações ambientais
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devem estar voltadas, visando assegurar-lhe um ambiente saudável e que lhe
proporcione vida com qualidade. Essa mesma perspectiva pode ser captada também
nas declarações internacionais sobre o meio ambiente de Estocolmo (1972) e do Rio
de Janeiro (1992).
Para a Constituição da República e para a Lei de Política Nacional de Meio Ambiente,
a proteção dos seres vivos não-humanos é assegurada somente quando comprovada a
sua importância para resguardar a sadia qualidade de vida dos seres humanos atuais
e futuros.
Entretanto, a vida, em todas as suas formas, tem valor intrínseco e direito de existir,
independentemente do valor que a espécie humana venha a lhe conferir, cabendo ao
homem, enquanto ser racional, a atitude moral e ética de defendê-la e preservá-la.
Talvez seja esse o ponto nevrálgico e fundamental para reflexão dentro do direito
ambiental brasileiro.
O direito ambiental, nacional e internacional, carece de incorporar uma perspectiva
não-antropocêntrica de meio ambiente, recepcionando mais elementos do repertório
de conhecimentos científicos já acumulados acerca da vida e do funcionamento dos
ecossistemas e da biosfera, ressacralizando a natureza. Existem indícios nesse sentido,
mas a evolução, em termos de instrumentos formais legais, tem sido lenta e construída
a partir de acirradas disputas entre aqueles que desejam manter o sistema atual de
valores e de proteção aos interesses particulares e aqueles que buscam introduzir
avanços no sentido de proteção à vida como um todo e aos bens de interesse difuso e
coletivo.
5. Referências bibliográficas
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2. JURISPRUDÊNCIA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL
1o Acórdão.
EMENTA: PROCESSO CIVIL. SINDICATO. ART. 8º, III DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. LEGITIMIDADE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DEFESA
DE DIREITOS E INTERESSES COLETIVOS OU INDIVIDUAIS. RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO. O artigo 8º, III da Constituição Federal estabelece a
legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e
interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam.
Essa legitimidade extraordinária é ampla, abrangendo a liquidação e a execução dos
créditos reconhecidos aos trabalhadores. Por se tratar de típica hipótese de substituição
processual, é desnecessária qualquer autorização dos substituídos. Recurso conhecido
e provido. (STF, Tribunal Pleno, RE 210029/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, Julgamento
12/06/2006, DJ 17/08/2007).
2o Acórdão.
EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE
SEGURANÇA COLETIVO. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DE PARTIDO
POLÍTICO. IMPUGNAÇÃO DE EXIGÊNCIA TRIBUTÁRIA. IPTU. 1. Uma
exigência tributária configura interesse de grupo ou classe de pessoas, só podendo
ser impugnada por eles próprios, de forma individual ou coletiva. Precedente: RE
nº 213.631, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 07/04/2000. 2. O partido político não está,
pois, autorizado a valer-se do mandado de segurança coletivo para, substituindo todos
os cidadãos na defesa de interesses individuais, impugnar majoração de tributo. 3.
Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF, 1a Turma, RE 196184/AM, Rel.
Min. Ellen Gracie, Julgamento 27/10/2004, DJ 18/02/2005).
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1o Acórdão.
EMENTA: TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PAGAMENTO DE
INDENIZAÇÃO. PROGRAMA DE DEMISSÃO VOLUNTÁRIA. PESSOA
JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO. ISENÇÃO PARA PROGRAMAS
INSTITUÍDOS EM CUMPRIMENTO DE CONVENÇÃO OU ACORDO
COLETIVO DE TRABALHO. 1. O imposto sobre renda e proventos de qualquer
natureza tem como fato gerador, nos termos do art. 43 e seus parágrafos do CTN, os
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“acréscimos patrimoniais”, assim entendidos os acréscimos ao patrimônio material do
contribuinte. 2. O pagamento de indenização por rompimento de vínculo funcional ou
trabalhista, embora represente acréscimo patrimonial, está contemplado por isenção
em duas situações: (a) a prevista no art. 6º, V, da Lei 7.713/88 (“Ficam isentos do
imposto de renda (...) a indenização e o aviso prévio pagos por despedida ou rescisão
de contrato de trabalho, até o limite garantido por lei (...)”) e (b) a prevista no art. 14
da Lei 9.468/97 (“Para fins de incidência do imposto de renda na fonte e na declaração
de rendimentos, serão considerados como indenizações isentas os pagamentos
efetuados por pessoas jurídicas de direito público a servidores públicos civis, a título
de incentivo à adesão a programas de desligamento voluntário”). 3. No domínio do
Direito do Trabalho, as fontes normativas não são apenas as leis em sentido estrito,
mas também as convenções e os acordos coletivos, cuja força impositiva está prevista
na própria Constituição (art. 7º, inc. XXVI). Nesse entendimento, não se pode ter
por ilegítima a norma do art. 39, XX, do Decreto 3.000/99, que, ao regulamentar a
hipótese de isenção do art. 6º, V, da Lei 7.713/88, inclui entre as indenizações isentas,
não apenas as decorrentes de ato do poder legislativo propriamente dito, mas também
as previstas em “dissídio coletivo e convenções trabalhistas homologados pela Justiça
do Trabalho (...)”. 4. Pode-se afirmar, conseqüentemente, que estão isentas de imposto
de renda, por força do art. 6º, V da Lei 7.713/88, regulamentado pelo art. 39, XX do
Decreto 3.000/99, as indenizações por rescisão do contrato pagas pelos empregadores
a seus empregados quando previstas em dissídio coletivo ou convenção trabalhista,
inclusive, portanto, as decorrentes de programa de demissão voluntária instituídos
em cumprimento das referidas normas coletivas. 5. Assim, ao estabelecer que “a
indenização recebida pela adesão a programa de incentivo à demissão voluntária não
está sujeita à incidência do imposto de renda”, a súmula 215/STJ se refere não apenas
a “pagamentos efetuados por pessoas jurídicas de direito público a servidores públicos
civis, a título de incentivo à adesão a programas de desligamento voluntário” do serviço
público (isenção prevista no art. 14 da Lei 9.468/97), mas também a indenizações por
adesão de empregados a programas de demissão voluntária instituídos por norma de
caráter coletivo (isenção compreendida no art. 6º, V da Lei 7.713/88). 6. No caso
concreto, não tendo sido demonstrado que a indenização seja decorrente de qualquer
desses programas, não está configurada a liquidez e certeza do direito a isenção, razão
pela qual o recurso merece provimento, para, sem prejuízo das vias ordinárias, denegar
a segurança. 7. Recurso especial provido. (STJ, RESP 876446/RJ, 1a Turma, Rel. Min.
Teori Albino Zavascki, Julgamento 06/11/2007, DJ 26/11/2007, p. 123).
2o Acórdão.
EMENTA: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PAGAMENTO DE
INDENIZAÇÃO SUPOSTAMENTE INDEVIDA ORIUNDA DO FUNDO DE
INDENIZAÇÃO DO TRABALHADOR PORTUÁRIO AVULSO - FITP.
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PRETENSÃO VISANDO A RESTITUIÇÃO DA QUANTIA PAGA. REPETIÇÃO
DO INDÉBITO. CONFLITO LEGAL DE CARÁTER TRIBUTÁRIO. INTERESSE
SECUNDÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM
DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA MOVIDA PELO
MINISTÉRIO PÚBLICO. INTERVENÇÃO DO PARQUET COMO CUSTOS
LEGIS. DESNECESSIDADE. VIOLAÇÃO DOART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA.
1. A ilegitimidade ativa ad causam do MPF para intentar ação civil pública com o
escopo de reaver indenização supostamente indevida, paga a trabalhador portuário
avulso, oriunda do Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - FITP,
ressoa evidente porquanto o mesmo atua, não na defesa do erário, mas sim em nome
de um ente público; no caso a União, que dispõe de sua Procuradoria para intentar
essa ação com espectro de repetição do indébito, ora rotulada de ação civil pública. 2.
Deveras, mercê de o AITP configurar receita da União, resta equivocada, com a devida
vênia, a sua inserção na categoria de patrimônio público federal, utilizada pelo Parquet
como fator legitimador para o aforamento da ação civil pública em baila. É que o
patrimônio público se perfaz de bens que pertencem a toda coletividade, não
individualizáveis, e que não sofrem distinção pertinente a eventuais direitos subjetivos,
como por exemplo, imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico-Cultural. Daí,
inviável se considerar receita da União como patrimônio público federal, na medida
em que o seu ressarcimento não denota interesse metaindividual relevante, mas sim
do próprio ente público. Nesse sentido é doutrina pátria: A ação civil pública é
instrumento de defesa dos interesses sociais, categoria que compreende o interesse de
preservação do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos, expressões que, na lição de Miguel Reale (Questões de Direito
Público, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 132). “compõem uma díade incindível”,
enquanto bens pertencentes a toda a comunidade, “a todos e a cada um, como um bem
comum, não individualizável, isto é, sem haver possibilidade de distinção formal
individualizadora em termos de direitos subjetivos ou situações jurídicas subjetivas”.
(Ilmar Galvão, A ação civil pública e o Ministério Público, in Aspectos Polêmicos da
Ação Civil Pública, São Paulo, Arnoldo Wald, 2003, p. 2002.) 3. Consectariamente, a
rubrica receita da União caracteriza-se como interesse secundário da Administração,
o qual não gravita na órbita dos interesses públicos (interesse primário da
Administração), e, por isso, não guarnecido pela via da ação civil pública, consoante
assente em sede doutrinária: Um segundo limite é o que se estabelece a partir da
distinção entre interesse social (ou interesse público) e interesse da Administração
Pública. Embora a atividade administrativa tenha como objetivo próprio o de
concretizar o interesse público, é certo que não se pode confundir tal interesse com o
de eventuais interesses próprios das entidades públicas. Daí a classificação doutrinária
que distingue os interesses primários da Administração (que são os interesses públicos,
sociais, da coletividade) e os seus interesses secundários (que se limitam à esfera
interna do ente estatal). “Assim”, escreveu Celso Antônio Bandeira de Mello,
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“independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos,
o Estado pode ter, tanto quanto as demais essoas, interesses que lhes são particulares,
individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras
individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoas. Estes últimos não são
interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma
extrajurídico), aos interesses de qualquer sujeito”. Nessa linha distintiva, fica claro
que a Administração, nas suas funções institucionais, atua em representação de
interesses sociais e, eventualmente, de interesses exclusivamente seus. Portanto,
embora com vasto campo de identificação, não se pode estabelecer sinonímia entre
interesse social e interesse da Administração. Pode-se afirmar, utilizando a classificação
de Engisch, que interesse social encerra conceito jurídico indeterminado (porque o
seu “conteúdo e extensão são em larga medida incertos”) e normativo (porque
“carecido de um preenchimento valorativo”), e sua função “em boa parte é justamente
permanecerem abertos às mudanças das valorações”. Conforme observou o Ministro
Sepúlveda Pertence, em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, “é preciso ter
em conta que o interesse social não é um conceito axiologicamente neutro, mas, ao
contrário - e dado o permanente conflito de interesses parciais inerente à vida em
sociedade - é idéia carregada de ideologia e valor, por isso, relativa e condicionada ao
tempo e ao espaço em que se deva afirmar”. É natural, portanto, que os interesses
sociais não comportem definições de caráter genérico com significação unívoca.
Como demonstrou J. J. Calmon de Passos, “a individualização do interesse público
não ocorre, de uma vez por todas, em um só momento, mas deriva da constante
combinação de diversas influências, algumas das quais provêm da experiência passada,
enquanto outras nascem da escolha que cada operador jurídico singular cumpre, hic et
nunc, no exercício da função que lhe foi atribuída. Assim, a atividade para
individualização dos interesses públicos é uma atividade de interpretação de atos e
fatos e normas jurídicas (recepção dos interesses públicos fixados no curso da
experiência jurídica anterior) e em parte é uma valoração direta da realidade pelo
operador jurídico, atendidos os pressupostos ideológicos e sociais que o informam e à
sociedade em que vive, submetidos à ação dos fatos novos, capazes de modificar
juízos anteriormente irreversíveis” . Genericamente, como Calmon de Passos, podese definir interesse público ou interesse social o “interesse cuja tutela, no âmbito de
um determinado ordenamento jurídico, é julgada como oportuna para o progresso
material e moral da sociedade a cujo ordenamento jurídico corresponde”. A
Constituição identifica claramente vários exemplares dessa categoria de interesses,
como, por exemplo, a preservação do patrimônio público e da moral idade
administrativa, cuja defesa pode ser exercida inclusive pelos próprios cidadãos,
mediante ação popular (CF, art. 5.°, LXXIII), o exercício probo da administração
pública, que sujeita seus infratores a sanções de variada natureza, penal, civil, e
política (CF, art. 37, § 4.º), e a manutenção da ordem econômica, que “tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (CF, art.
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170). São interesses, não apenas das pessoas de direito público, mas de todo o corpo
social, de toda a comunidade, da própria sociedade como ente coletivo. (ZAVASKI,
Teori Albino, Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de
Direitos, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 52-54.) 4. Deveras, a
Procuradoria da Fazenda Nacional, no seu mister, detém atribuições legalmente
instituídas, que, acaso não observadas, importam em procedimento administrativo na
órbita funcional, e até criminal. Descabida, portanto, a atuação do MPF na defesa de
interesse da União, juridicamente acautelado por órgão próprio. 5. Gravitando a
demanda em torno de tema de natureza tributária, há que se aplicar o art. 1º, parágrafo
único, da Lei da Lei 7.347/85, com redação conferida pela Lei 8.884/94, consoante os
precedentes da Suprema Corte e deste STJ (AgRg no RExt 248.191 - 2 - SP, Relator
Ministro CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, DJ de 25 de outubro de 2.002 e REsp
845.034 - DF, Relator Ministro José Delgado, Primeira Seção Seção, julgado em 14
de fevereiro de 2.007), os quais assentam a ilegitimidade ativa ad causam do Ministério
Público para impugnar a cobrança de tributos ou pleitear a sua restituição. 7. O § 1º do
art. 5º da Lei 7.347/85, regulamentadora das ações civis públicas e, portanto,
prevalecente sobre a Lei Complementar 75/93 e ao CPC quanto a esse particular,
dispõe que O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará
obrigatoriamente como fiscal da lei, ressoando de forma inequívoca que não se exige
vista dos autos ao Ministério público para que labore na qualidade de custos legis, se
ele é o autor da ação.(Precedentes: REsp 554.906 - DF, Relatora Ministra CALMON,
Segunda Turma, DJ de 28 de maio de 2.007; EDcl no REsp 186.008 - SP, Relator
Ministro SALVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Quarta Turma, DJ de 28 de junho
de 1999; REsp 156.291 - SP, Relator Ministro ADHEMAR MACIEL, Segunda Turma,
DJ de 01º de fevereiro de 1999). 8. Inexiste ofensa do art. 535 do CPC, quando o
Tribunal de origem, embora sucintamente, pronuncia-se de forma clara e suficiente
sobre a questão posta nos autos. Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater,
um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados
tenham sido suficientes para embasar a decisão. (Precedentes: REsp 396.699 - RS,
Relator Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, 4ª Turma, DJ 15 de abril de
2002; AGA 420.383 - PR, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, Primeira Turma, DJ de
29 de abril de 2002; Resp 385.173 - MG, Relator Ministro FELIX FISCHER, Quinta
Turma, DJ 29 de abril de 2002). 9. Recurso especial desprovido. (STJ, RESP 786328/
RS, 1a Turma, Rel. Min. Luiz Fux, Julgamento 18/10/2007, DJ 08/11/2007, p. 168).
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JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS
GERAIS
1o Acórdão.
EMENTA: TRANSPORTE COLETIVO DE PASSAGEIROS - EMPRESA
CONCESSIONÁRIA - LEGITIMIDADE ATIVA - REVELIA - ART. 319, DO
CPC - PROBLEMAS NO TRANSPORTE REGULAMENTADO - MOTIVO
INSUFICIENTE PARA JUSTIFICAR A INFRAÇÃO - AUSÊNCIA DE PROVA
DE TRANSFERÊNCIA DO VEÍCULO - PROCEDÊNCIA - PRETENSÃO DE
CONDENAÇÃO DE PESSOAS INDETERMINADAS - IMPOSSIBILIDADE AÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE. A empresa concessionária de serviço
público de transporte coletivo de passageiros tem legitimidade para propor ação
visando a impedir a ação de “perueiros”, pois, embora não possa substituir o município
na regulamentação e fiscalização do serviço, tem interesse econômico, juridicamente
protegido, de afastar a concorrência ilícita e desleal. O art. 30, V, da CR/88, atribui
ao município competência para “organizar e prestar, diretamente ou sob regime
de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de
transporte coletivo, que tem caráter essencial”. A Lei nº 10.233/2001 veda, em seu art.
13, §2º, “a prestação de serviços de transporte coletivo de passageiros, de qualquer
natureza, que não tenham sido autorizados, concedidos ou permitidos pela autoridade
competente”. Permanecendo revéis seis dos oito réus, deve ser aplicado, quando a
eles, o disposto no art. 319, do CPC. Não pode ser acolhida, como justificativa para
a prestação de serviço clandestino de transporte de passageiros, a argumentação de
que tal serviço encontra-se em estado caótico, no município em questão. A simples
alegação de venda da van, desacompanhada de qualquer prova, não pode conduzir
à improcedência da demanda. Inadmissível a pretensão da autora, de condenação
de todos os prestadores de transporte clandestino em suas linhas, mesmo os não
indicados na exordial, a cessarem sua atividade. O Processo Civil brasileiro não
admite esse tipo de condenação de pessoas indeterminadas, que representaria grave
infração aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da
ampla defesa. (TJMG, Processo 2.0000.00.511013-4/000, Relator Eduardo Mariné da
Cunha, Julgamento 09/06/2005, Publicação 23/06/2005).
2o Acórdão.
EMENTA: PREVIDENCIÁRIO - REVELIA - EFEITOS QUE NÃO PREJUDICA
PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO - SUPREMACIA DO ENTERESSE
PÚBLICO SOBRE O PARTICULAR - ERRO MATERIAL NO “”DECISUM”” QUE
NÃO NULIFICA O JULGADO - PRELIMINARES RECURSAIS REJEITADAS INDENIZAÇÃO DE PECÚLIO E SEGURO COLETIVO - PAGAMENTO FEITO
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NO LIMITE DE 20 VEZES O VENCIMENTO MÍNIMO ESTADUAL - TETO
REVOGADO ANTES DO FALECIMENTO DO SEGURADO - INOBSERVÂNCIA
DE NOVA DISPOSIÇÃO LEGAL - CONSTATAÇÃO DE CONTRIBUIÇÕES
RECOLHIDAS A MENOR - CULPA SOLIDÁRIA DO ESTADO DE MINAS
GERAIS E DO IPSEMG - ART. 28 DA LEI 13.455/2000 - NECESSIDADE DE
LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO RECONHECIDO DE OFÍCIO
- ANULAÇÃO DO PROCESSO - RETORNO DOS AUTOS À COMARCA DE
ORIGEM PARA CUMPRIMENTO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 47 DO
CPC - CITAÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS - MÉRITO DO RECURSO
PREJUDICADO. O direito controvertido, qual seja, diferença de pecúlio e seguro
coletivo, embora propriamente não seja considerado como indisponível, por ser
demandado contra Pessoa Jurídica de Direito Público, atinente à administração
indireta, como é o caso do IPSEMG, adquire uma indisponibilidade relativa, tendo
por justificativa a supremacia do interesse público sobre o particular, razão pela qual
deve-se afastar a aplicação dos efeitos da revelia. Quando o Magistrado, por erro
material, se funda em dispositivo alheio à situação discutida nos autos, tal fato, por si
só, não tem o condão de nulificar a decisão inaugural, mas, quando muito, ocasionar a
reforma do julgado em sede recursal, quando pela análise das outras provas se verificar
o real direito dos autores. Restando constatado que as contribuições destinadas ao
custeio de pecúlio e seguro coletivo foram descontadas em folha do segurado falecido
em desacordo com as disposições legais vigentes, tem-se que os efeitos da decisão
final destes autos afetarão tanto o Estado de Minas Gerais quanto o IPSEMG, ante
a responsabilidade solidária destes Entes, prevista no artigo 28 da Lei 13.455/2000,
devendo-se, assim, reconhecer, de ofício, a necessidade da formação do litisconsórcio
passivo necessário, acarretando, por conseqüência, a anulação do feito, bem como a
prejudicialidade do exame do mérito recursal. (TJMG, Processo 1.0024.03.0101596/001, Relator José Domingues Ferreira Esteves, Julgamento 26/04/2005, Publicação
13/05/2005).
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3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA
3.1 UM NOVO OLHAR PARA O CERRADO: ENSAIO INTERDISCIPLINAR
PARA O (RE)CONHECIMENTO DA DIGNIDADE FLORÍSTICA E
JURÍDICA DO BIOMA
LUCIANO JOSÉ ALVARENGA
Assessor no Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Mestrando em Ciências Naturais (DEGEO-UFOP)
Grupo de Estudos “Direito, Justiça Ambiental e Florestas: Reflexões Interdisciplinares para a
Conservação do Patrimônio Florestal Mineiro” (CEAF/MP-MG)
1. Acórdão
APELAÇÃO CÍVEL N. 1.0000.00.297454-1/000(1)
Relator: Desembargador Carreira Machado
Apelantes: Dinamérico Gomes e Outros
Apelado: Oficial do Cartório de Registro de Imóveis de Ibiraci
EMENTA: A reserva legal será instituída como forma de preservar as florestas e matas
nativas existentes, evitando-se o desmatamento e a degradação do imenso potencial
florístico brasileiro.
Acórdão: Vistos etc., acorda, em Turma, a QUARTA CÂMARA CÍVEL do Tribunal
de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na
conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de
votos, em dar provimento.
Data do julgamento: 28 de novembro de 2002.
2. Razões
Decisões jurisdicionais contrapostas à reserva legal (RL) não têm sido escassas em
Minas Gerais. Um exemplo é encontrado no acórdão em referência, segundo o qual
a obrigatoriedade da averbação da reserva não se aplicaria a glebas desprovidas de
cobertura vegetal ou localizadas em regiões de Cerrado ou de Campos. Segundo o
voto do Desembargador Almeida Melo (MINAS GERAIS, 2002):
A exigência é descabida quando se trate de terras de cultura,
cerrado e campos, por não serem florestas ou vegetações
nativas que tenham preservação amparada pelo citado Código.
A cultura é criada e mantida pelo homem. Não é nativa. O
cerrado é a vegetação composta de arbustos enfezados, de
galhada tortuosa, entre os quais vegetam as gramíneas que
servem de pasto ao gado. O campo é a extensão de terra, arável
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ou arada, que não possui vegetação nativa e importante. Tratase de vegetação herbácea, raras árvores, poucos acidentes, que
o homem aproveita para a plantação.
A noção básica da proteção florestal diz respeito à defesa da
cobertura vegetal necessária à terra que reveste (art. 1º da Lei
n. 4.771, de 15 de setembro de 1965, que contém o Código
Florestal). Somente nesta acepção compreendem-se “outras
formas de vegetação nativa”, acrescidas pela alteração da
Medida Provisória n. 2.166-67, de 24 de agosto de 2001.
Seja supressão, seja exploração, o art. 16 do Código Florestal
sempre relaciona-se com floresta ou área cuja vegetação nativa
seja cobertura da terra que deva ser preservada.
No caso dos autos, não se encontra floresta nem vegetação nativa
que constitua cobertura objeto de exploração ou de supressão.
Simples transmissão da terra no estado em que se encontra.
Alberto Caeiro tinha razão: “Não basta abrir a janela / Para ver os campos e o rio / Não
é bastante não ser cego / Para ver as árvores e as flores” (PESSOA, 2005, p. 157).
3. Justificativa
Em 1711, o jesuíta André João Antonil escrevia em seu tratado descritivo da economia
brasileira, intitulado Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas: “[...]
feita a escolha da melhor terra para a cana, roça-se, queima-se e alimpa-se, tirandolhe tudo o que podia servir de embaraço” (ANTONIL, 1976, p. 112). Hoje, quase
trezentos anos depois, a percepção que orientava esse comportamento, representativo
do padrão colonial de ocupação do território brasileiro, atualiza-se, não raramente,
em práticas sociais e institucionais no País. A paisagem tropical ainda é vista como
um embaraço frente ao progresso e ao desenvolvimento, fortemente calcados no
pressuposto, ecologicamente antinômico, da produtividade crescente e infindável.
“Em poucos países do mundo o peso do passado é tão intenso quanto no Brasil”
(PÁDUA, 2003-2004, p. 7)1. Um passado que deixou suas marcas nas bases da cultura
brasileira e influencia até mesmo decisões de órgãos administrativos e jurisdicionais
que, por princípio, deveriam se comprometer à construção de uma nova realidade, a
partir de um acordo responsável com a natureza (SERRES, 1991) e da promoção de
um meio ambiente dignificante (CF/88: art. 1º, inc. III, e art. 225, caput).
O acórdão em comento traz consigo essas marcas históricas. Ademais, do ponto
de vista jurídico, opõe-se à Constituição da República (1988), ao Código Florestal
1
Pádua (2003-2004, p. 7) observa que o Brasil não nasceu como uma nação, nem mesmo como um país.
“O Brasil nasceu de um macro projeto de exploração ecológica ou, melhor dizendo, de um arquipélago
de projetos de exploração ecológica. Isto está indicado no próprio nome ‘Brasil’, que venceu uma disputa
histórica com o nome ‘Santa Cruz’, apesar da força ideológica do catolicismo”.
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vigente e à Lei nº 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente
– PNMA. Não bastasse isso, funda-se numa imagem distorcida de aspectos biológicos
e fitogeográficos da realidade, patente na desconsideração do Cerrado, a despeito de
toda a riqueza florística e biodiversidade que o caracteriza, como eco-região digna de
proteção legal e jurisdicional.
Este texto promove uma breve análise de conteúdo (GUSTIN; DIAS, 2006) e critica,
sob os olhares do Direito Ambiental e da Fitogeografia, o entendimento subjacente
ao Acórdão 1.0000.00.297454-1/000(1), do TJMG, reiterado em vários julgados
posteriores desse tribunal. Para isso, apresenta argumentos baseados nos textos
normativos acima referidos e em indicadores biogeográficos correlativos ao bioma
Cerrado.
4. Comentários
4.1. Dissociação entre averbação obrigatória da RL e presença de cobertura
arbórea densa na gleba
O direito brasileiro protege parcelas significativas de todos os domínios paisagísticos
e ecológicos existentes no País, com seus variados tipos e fisionomias de vegetação.
Como observam Alvarenga e Vasconcelos (2005, p. 18):
A Constituição da República Federativa do Brasil, ao
estabelecer as hipóteses de configuração da competência
comum (administrativa) da União, dos Estados-membros, do
Distrito Federal e dos Municípios, no que toca à proteção da
vegetação brasileira (art. 23, VII, da CRFB), faz alusão ao
vocábulo ‘flora’, ou seja, a todo o conjunto de espécies vegetais
existentes na extensão territorial brasileira. Por conseguinte,
pode-se afirmar que a CRFB protege todas as formações
vegetais brasileiras, não obstante algumas dessas formações
(caatinga, cerrado etc.) não encontrem referência explícita no
texto constitucional em vigor.
Alguns contra-argumentarão que essa interpretação é demasiadamente extensiva, que
a CF/88 não se reporta a todas as fisionomias da flora brasileira, mas somente aos
espaços densamente ocupados por floresta. Entretanto, regras situadas no patamar
infraconstitucional, ao refletirem as normas de escalão superior, infirmam essa visão
desvirtuada do sistema jurídico e permitem que a imagem constitucional se revele
com nitidez. Assim é que, ao espelhar os contornos principiológicos e detalhar essa
imagem, a legislação brasileira dissocia a averbação da RL da presença de cobertura
arbórea densa na gleba. Primeiro, porque o art. 1º, inc. III, da Lei nº 4.771/1965,
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acrescentado pela MP 2.166-67/2001, ao definir a RL, refere-se à “[...] área localizada
no interior de uma propriedade ou posse rural”, e não apenas à vegetação ali ocorrente.2
Segundo, devido ao art. 16, caput e inc. III, da mesma lei, alusivo a outras formas de
vegetação nativa (arbustivas, herbáceas, rasteiras etc.) típicas do território nacional.
Terceiro, porque o inc. IV do dispositivo em comento exige a conservação de 20%
da composição florística em área de campos gerais (localizada em qualquer região do
País), ambiente natural em que fitofisionomias reconhecidamente florestais não são
comuns.
Em suma, a Lei nº 4.771/1965 contém regras destinadas à conservação de parcelas
significativas de todos os biomas e tipos de vegetação nativa ocorrentes no Brasil,
e não apenas dos espaços densamente ocupados por florestas. As áreas naturalmente
cobertas por vegetação arbustiva, herbácea, rasteira ou rarefeita também compõem o
acervo florístico brasileiro e são dignas, tanto quanto as áreas tipicamente florestais,
de proteção legal, administrativa e jurisdicional. Com efeito, no âmbito do Estado
de Minas Gerais, o art. 14, caput, da Lei nº 14.309/2002 exige que a RL seja “[...]
representativa do meio ambiente natural da região”. Portanto, a proteção legal não
abrange somente as áreas com densa cobertura arbórea, e sim todas as formas de
vegetação nativa ocorrentes no território mineiro.
Como se não bastassem tais argumentos, o art. 44 do Código Florestal, com redação
determinada pela MP 2.166-67/2001, é categórico ao exigir do proprietário ou
possuidor de imóvel rural a recuperação ou compensação da RL, na hipótese em que a
cobertura vegetal apresente, in situ, extensão inferior às posturas normativas mínimas.
Portanto, a averbação obrigatória da RL no registro imobiliário, além da conservação
de parcelas significativas do acervo florístico brasileiro, preconiza o ressurgimento
ou reabilitação de formações vegetais típicas da gleba, representativas desse acervo.
Logicamente, se o próprio legislador previu hipóteses em que o proprietário ou
possuidor do imóvel rural deve recuperar a área de RL, a exigência da averbação
independe da presença de vegetação nativa conservada in loco.
A insistência, ou quiçá renitência, em compreensão oposta, além de desrespeitar a
CF/88 e o Código Florestal, contrapõe-se à Lei nº 6.938/1981, que fixou as normas
gerais da PNMA. Por certo, essa política objetiva “[...] a preservação, melhoria e
recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País,
condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional
2
Pode-se afirmar que o Código Florestal considera as interações sistêmicas entre os diversos tipos de
vegetação e os domínios fitogeográficos em que eles podem ocorrer (AB’SÁBER, 2003). Ou seja, a lei é
compreensiva das relações entre cobertura florística e diferentes feições de relevo, tipos de solo, aspectos
geomorfológicos, condições climático-hidrológicas, etc. Não é à toa, pois, que a Lei nº 4.771/1965 emprega
o termo área ao conceituar a APP e a RL. A lei protege a paisagem como um sistema, e não apenas a flora
nela existente.
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e à proteção da dignidade da vida humana” (art. 2º, caput). Além disso, a PNMA
visa à racionalização do uso do solo, da água e do ar, à proteção dos ecossistemas,
com a preservação das áreas representativas e, em destaque, à recuperação das áreas
degradadas (art. 2º, incisos II, IV e VIII).3
Por outro lado, o fato de o atual proprietário ou possuidor do imóvel tê-lo assumido
com a reserva de vegetação nativa já degradada não o exime de recuperá-la. Como
observam Mantovani e Bechara (1999, p. 148), essa obrigação figura-se como
propter rem. Ou seja, ela “[...] acompanha a coisa independente de quem seja o seu
titular e independente do fato de este titular ter ou não ter contraído, ele próprio, a
obrigação”. Dessa forma, o adquirente de propriedade sem RL, ou cuja RL tenha sido
desmatada, é obrigado a recompô-la (podendo se ressarcir, ulteriormente, com o autor
do desmatamento). Nas palavras de Führer, citado por Paccagnella (1997, p. 12):
As obrigações reais, propter rem (em razão da coisa), ou in rem
scriptae (gravadas na coisa), situam-se numa zona cinzenta,
entre o direito real e o direito obrigacional. Surgem como
obrigações pessoais de um devedor, por ser ele titular de um
direito real. Mas acabam aderindo mais à coisa do que ao seu
eventual titular... Todas essas dívidas, além de não largarem o
devedor originário, sob o aspecto obrigacional, vão também
acompanhando sempre a coisa, sob o aspecto real, até que
sejam satisfeitas, não importando se o devedor originário já foi
substituído. Por isso se diz que são dívidas em razão da coisa
(propter rem).
Seguindo essa linha de pensamento, o STJ, ao julgar o Recurso Especial 195274PR, que versava sobre a RL, expressou a compreensão, legalmente fundada (Lei nº
6.938/1981: art. 14, §1º), de que a responsabilidade por dano ambiental é objetiva,
“[...] devendo o proprietário, ao tempo em que conclamado para cumprir obrigação
de reparação ambiental, responder por ela”. No mesmo acórdão, aquela Corte referiu
que o novo adquirente do imóvel rural “[...] é parte legítima para responder ação civil
pública que impõe obrigação de fazer consistente no reflorestamento da reserva legal,
pois assume a propriedade com ônus restritivo” (BRASIL, 2005a). Mais categórico,
no julgamento do Recurso Especial 217858-PR, o STJ concluiu que: “Aquele que
perpetua a lesão ao meio ambiente cometida por outrem está, ele mesmo, praticando
o ilícito. A obrigação de conservação é automaticamente transferida do alienante
3
Ao pormenorizar princípios da PNMA, o Decreto nº 5.975, de 30 de novembro de 2006, que regulamenta
o art. 16 do Código Florestal, incentiva a reposição florestal da RL, ao preceituar, no texto do art. 19, que:
“O plantio de florestas com espécies nativas em áreas de preservação permanente e de reserva legal degradadas poderá ser utilizado para a geração de crédito de reposição florestal”.
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ao adquirente, independentemente deste último ter responsabilidade pelo dano
ambiental” (BRASIL, 2003). Por se basearem nas mesmas razões, também podem
ser mencionados os acórdãos proferidos nos recursos especiais 343741-PR (BRASIL,
2002), 263383-PR (BRASIL, 2005b) e 927979-MG (BRASIL, 2007).
4.2. Caracterização do cenário fitogeográfico, fitofisionômico e de uso
socioeconômico do Cerrado
Para Walter (2006, p. 57), “[...] a adoção de um termo técnico, na escala de ‘bioma’,
não pode ser considerada rígida e inquestionável, embora tendências certamente
existam – e esta lógica vale para qualquer escala”. A literatura fitogeográfica brasileira,
segundo o ecólogo, aceita como equivalentes, na contemporaneidade, as expressões
bioma, província e domínio. Isso, contudo, sem unanimidade. Quanto ao Cerrado,
ele é referido, neste texto, mediante o emprego dos três verbetes mencionados, bem
assim pela locução forma de vegetação nativa, utilizada no Código Florestal em
vigor (art. 16). Ocasionalmente, empregam-se as expressões “domínio ecológico”,
“domínio paisagístico”, “eco-região” ou similares. Parte-se da definição de província
ou domínio fitogeográfico elaborada por Ab’Sáber (2003, p. 11), para quem os termos
designam “[...] um conjunto espacial de certa ordem de grandeza territorial [...] onde
haja um esquema coerente de feições de relevo, tipos de solo, formas de vegetação e
condições climático-hidrológicas”. Esse conjunto, de feições paisagísticas e ecológicas
integradas, ocorre em uma área principal, contínua e de arranjo normalmente poligonal
(denominada área core ou nuclear), em que as condições fisiográficas e biogeográficas
formam um complexo relativamente homogêneo e extensivo.
As dimensões territoriais atribuídas ao Cerrado variam bastante. Os resultados
dependem do cômputo das áreas de transição (ou tensão) ecológica, situadas nas
bordas da área nuclear do bioma, nas quais há uma mistura com elementos florísticos
de regiões adjacentes.4 Além disso, como anotam Machado e outros (2004, p. 2), “[...]
existem encraves de vegetação de Cerrado em outros domínios de vegetação, como
as áreas de Cerrado no Estado de Roraima, Amapá, Amazonas (Campos de Humaitá),
Rondônia (Serra dos Pacaás Novos), Pará (Serra do Cachimbo), Bahia (Chapada de
Diamantina) e para o sul do Estado de São Paulo e Paraná”. Estima-se que a província
fitogeográfica ocupe aproximadamente 21% do Brasil, o que lhe confere a posição
de segunda maior eco-região do País, superada em extensão apenas pela Amazônia
(CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL, 1999, p. 12; KLINK; MACHADO, 2005,
p. 148). A Fig. 1 representa o Cerrado brasileiro em sua área nuclear, sem considerar
seus encraves noutros domínios fitogeográficos e as áreas de transição ecológica.
4
Ab’Sáber (1977), Witmore e Prance (1987), Prado e Gibbs (1993), Oliveira-Filho e Ratter (1995) e Silva
(1995), citados por Machado e outros (2004, p. 2), explicam que a existência de áreas de tensão ecológica
deriva de “[...] processos históricos de contração e expansão dos ecossistemas brasileiros, dinâmica essa
que foi resultante das mudanças climáticas do passado”.
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Fig. 1: O Cerrado brasileiro, em sua área nuclear. Fonte: <http://www.bdt.org.br>.
Do ponto de vista fitofisionômico, o termo Cerrado possui, de acordo com Walter
(2006, p. 36-37), três acepções técnicas distintas. A primeira, mais geral, concerne ao
domínio fitogeográfico, como um todo, predominante no Brasil Central (Fig. 1). Dessa
perspectiva, o vocábulo designa o conjunto de ecossistemas (savanas, matas, campos
e matas de galeria) que ocorrem nessa grande província (KLINK; MACHADO,
2005, p. 148). A segunda, Cerrado em sentido amplo (lato sensu), reúne as formações
savânicas e campestres do bioma, incluindo desde o Cerradão, de estrutura florística
mais densa, até o Campo Limpo. “Portanto, sob este conceito” – explica Walter
(2006, p. 37) – “há uma única formação florestal incluída, o Cerradão”. A última
acepção, Cerrado em sentido estrito (stricto sensu), é, para o ecólogo, a que melhor
caracteriza o bioma. Aproximando-se da noção usual de savana, ela concerne a uma
“[...] formação tropical com domínio de gramíneas, contendo uma proporção maior
ou menor de vegetação lenhosa aberta e árvores associadas” (COLLINSON apud
WALTER, 2006, p. 37).
Uma típica vegetação de savana ocupa a maior parte da área do bioma. De 80 a 90%
do Brasil Central, segundo Eiten, citado por Walter (2006, p. 37). Esse dado tem
importância diante da constatação de que em muitas partes do globo, notadamente no
Brasil, paisagens sem cobertura arbórea densa não sensibilizam o público leigo tanto
quanto as comumente ditas florestais (WALTER, 2006, p. 33). O fato é que, a despeito
de sua singularidade ecológica, o Cerrado, principalmente em suas feições savânicas,
não ostenta o prestígio social e simbólico de outros domínios fitogeográficos, como o
Tropical Atlântico e o Amazônico. Na observação de Walter (2006, p. 35, grifo nosso):
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[...] embora as savanas sejam a casa de um bilhão de pessoas
(Mistry, 2000), elas têm sido sistematicamente destruídas
para dar lugar a outras formas de uso da terra. Existe uma
preocupação mundial com as florestas, que despertam no grande
público muito mais interesse que qualquer outra vegetação.
Das savanas, erroneamente ainda tidas como vegetações de
importância menor, foi pinçado o termo “savanização” – ainda
ausente na maioria dos dicionários –, que identifica os processos
de transformação de áreas originalmente florestadas. Como o
seu termo irmão “desertificação” – este, há muito dicionarizado
– a savanização é tratada como algo a ser combatido. Para as
florestas como é correto que se combatam esses processos, é
incorreto que a associação ao termo savana impute a este algo
que deve ser igualmente combatido. Isso é um erro! Savanas
naturais são um fato biológico, e são importantes por cobrirem
vastas superfícies do planeta, podendo ser tão ricas quanto
as mais ricas florestas tropicais; como é o caso do Cerrado
brasileiro.
De fato, o Cerrado é um dos dois biomas brasileiros, ao lado da Mata Atlântica,
incluídos entre os Hotspots (regiões biologicamente mais ricas do planeta que se
encontram mais ameaçadas). Focalizando os elementos florísticos do bioma, Klink e
Machado (2005, p. 149) anotam que:
O número de plantas vasculares é superior àquele encontrado
na maioria das regiões do mundo: plantas herbáceas, arbustivas,
arbóreas e cipós somam mais de 7.000 espécies (Mendonça et
al., 1998). Quarenta e quatro por cento da flora é endêmica e,
nesse sentido, o Cerrado é a mais diversificada savana tropical do
mundo. Existe uma grande diversidade de habitats e alternância
de espécies. Por exemplo, um inventário florístico revelou
que das 914 espécies de árvores e arbustos registradas em 315
localidades de Cerrado, somente 300 espécies ocorrem em mais
do que oito localidades, e 614 espécies foram encontradas em
apenas uma localidade (Ratter et al., 2003).
Dados da Conservação Internacional (1999, p. 12) apontam o Cerrado como uma das
mais ricas savanas tropicais (Tabela 1) e sugerem que a quantidade de espécies de
plantas ocorrentes nele seria ainda maior, chegando a 10.000. Número que, associado
ao alto grau de endemismo da província fitogeográfica, evidencia sua singularidade
florística (Tabela 2).5-6
5
Endemismo significa que uma determinada espécie tem distribuição restrita a uma certa unidade de área,
que pode ser um bioma ou um País (MACHADO et al., 2004, p. 3).
6
Muitas espécies de plantas e animais estão fortemente associadas a ecossistemas locais. No âmbito do
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Tabela 1: Número de espécies de plantas e vertebrados endêmicos (E) e ocorrências (O)
(CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL, 2005, p. 11).
Plantas
HOTSPOT
E
Mamíferos
O
Aves
Répteis
Anfíbios
Peixes de
água doce
E
O
E
O
E
O
E
O
E
O
Andes Tropicais
15000 30000
75
569
584
1728
275
610
664
1155
131
380
Tumbes-ChocóMagdalena
2750
11000
10
283
112
892
98
325
29
204
115
251
Mata Atlântica
8000
20000
71
263
148
936
94
306
286
475
133
350
Cerrado
4400
10000
14
195
16
605
33
225
26
251
200
800
Florestas
Valdívias
1957
3892
14
65
12
226
27
41
29
43
24
43
Mesoamérica
2941
17000
66
440
213
1124
240
686
353
575
340
509
Florestas de
Pinho-Encino de
Sierra Madre
3975
5300
6
328
23
525
37
384
50
218
18
84
Ilhas do Caribe
6550
13000
41
89
167
607
468
499
164
165
65
161
Província
Florística da
Califórnia
2124
3488
18
151
8
341
4
69
25
54
15
73
Florestas da
Guiné, África
Ocidental
1800
9000
67
320
75
793
52
206
83
246
143
512
Província
Florística do
Cabo
6210
9000
4
90
6
324
22
100
16
51
14
34
Karoo das
Plantas
Suculentas
2439
6356
2
74
1
227
15
94
1
29
0
28
MaputalandPondolandAlbany
1900
8100
5
193
0
541
36
205
12
80
20
73
Cerrado, aves como o Soldadinho (Antilophia galeata) ou o Pula-Pula de Sobrancelha (Basileuterus leucophrys) são encontradas apenas em matas de galeria (MACHADO, 2000). Mamíferos como o ratinho Kunsia
fronto só ocorrem em áreas de Cerradão (MARINHO-FILHO, RODRIGUES, JUAREZ, 2002). Lagartos
como o Cnemidophorus ocellifer só existem em cerrados de terrenos arenosos. Palmeiras como o buriti
(Mauritia flexuosa) estão associadas a formações de veredas. Orquídeas como a Constancia cipoense são
observadas, tão-somente, em campos rupestres (MACHADO et al., 2004).
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Montanhas do
Arco Oriental
1750
4000
11
198
12
636
54
250
8
102
32
219
Florestas de
Afromontane
2356
7598
104
490
110
1325
93
347
79
285
617
893
Chifre da África
2750
5000
20
219
25
704
93
284
7
53
10
100
Madagascar e
Ilhas do Oceano
Índico
11600
13000
144
155
183
313
367
381
226
228
97
164
Bacia do
Mediterrâneo
11700
22500
25
224
32
497
77
228
27
86
63
216
Cáucaso
1600
6400
18
130
2
381
20
87
4
17
12
127
Região IranoAnatólica
2500
6000
10
141
0
384
13
116
4
21
30
90
Montanhas da
Ásia Central
1500
5500
6
143
0
493
1
59
4
9
5
27
Ghats
Ocidentais, Índia
e Sri Lanka
3049
5916
18
140
35
457
176
265
138
179
139
191
Himalaia
3160
10000
12
300
15
979
4
177
41
124
33
269
Montanhas do
Centro Sul da
China
3500
12000
5
237
1
611
15
94
40
98
23
92
Regiões da
Indo-Birmânia
7000
13500
73
433
73
1277
204
518
139
311
553
1262
Sunda
15000
25000
173
381
146
771
244
449
172
242
350
950
Wallacea
1500
10000
127
222
265
650
99
222
32
58
50
250
Filipinas
6091
9253
102
167
185
535
160
235
74
99
67
281
Japão
1950
5600
46
91
15
368
28
64
44
58
52
214
Sudoeste da
Austrália
2948
5571
12
57
10
285
27
177
19
33
10
20
Ilhas de
Melanésia
Oriental
3000
8000
39
86
154
365
54
114
38
44
3
52
Nova Zelândia
1865
2300
2
4
89
198
37
37
4
4
25
39
Nova Caledônia
2432
3270
6
9
23
105
62
70
0
0
9
85
Ilhas de
Melanésia e
Micronésia
3074
5330
11
15
170
300
31
61
3
3
20
96
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Tabela 2: Número de espécies de vertebrados e plantas que ocorrem no Cerrado, porcentagem
de endemismos do bioma e proporção da riqueza de espécies do bioma em relação à riqueza de
espécies no Brasil (KLINK; MACHADO, 2005, p. 149).
NÚMERO DE
ESPÉCIES
% ENDEMISMOS
DO CERRADO
% ESPÉCIES EM
RELAÇÃO AO
BRASIL
Plantas
7.000
44
12
Mamíferos
199
9,5
37
Aves
837
3,4
49
Répteis
180
17
50
Anfíbios
150
28
20
Peixes
1.200
?
40
Todos esses indicadores biogeográficos atestam as dignidades biológica, fitogeográfica
e florística do Cerrado. Dignidades bastantes para justificar a máxima proteção
possível do bioma (que é absolutamente singular). Dessa perspectiva, remontando à
feição diacrônica do direito fundamental a um meio ambiente dignificante (CF/88:
art. 1º, inc. III, art. 225, caput), a província fitogeográfica em questão devem ser vista
como uma herança7, materializada em conjuntos paisagísticos de longa e complexa
elaboração fisiográfica e ecológica. Como pontifica Ab’Sáber (2003, p. 10):
Mais do que simples espaços territoriais, os povos herdaram
paisagens e ecologias, pelas quais certamente são responsáveis,
ou deveriam ser responsáveis. Desde os mais altos escalões do
governo e da administração até o mais simples cidadão, todos
têm uma parcela de responsabilidade permanente, no sentido da
utilização não-predatória dessa herança única que é a paisagem
terrestre.
Entrementes, um estudo recente, que utilizou imagens de satélite MODIS de 2002,
concluiu que 55% do Cerrado já foram desmatados ou transformados pela ação
humana. O percentual equivale a quase três vezes a cobertura vegetal suprimida
na Amazônia (MACHADO et al., 2004, p. 5). As taxas anuais de desmatamento
também são mais elevadas naquele bioma. De acordo com Klink e Moreira (2002),
entre 1970 e 1975, o desmatamento médio no Cerrado foi de 40.000km2/ano – 1,8
vezes a taxa de desmatamento da Amazônia durante o período de 1978-1988. Os
níveis atuais de desmatamento variam entre 22.000 e 30.000km2/ano (MACHADO
7
Visualizada como herança, a paisagem terrestre e todo o acervo geológico e biológico nela existente
também podem ser reconhecidos como patrimônio cultural (CF/88: art. 216, inc. V).
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DE JURE - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
et al., 2004), superiores aos da Amazônia.8 As transformações no Cerrado são
acompanhadas por grandes danos ambientais, tais como fragmentação de habitats,
extinção da biodiversidade, invasão de espécies exóticas, erosão e compactação dos
solos, poluição de aqüíferos, degradação de ecossistemas, alterações nos regimes de
queimadas, desequilíbrios nos ciclos do carbono, modificações climáticas regionais e
perda de nutrientes (KLINK; MACHADO, 2005, p. 148-149).
Para Klink e Machado (2005, p. 148), esses dados resultam, em certa medida, dos
diferentes modos com que o Código Florestal vigente trata os biomas brasileiros:
“[...] enquanto é exigido que apenas 20% da área dos estabelecimentos agrícolas
sejam preservadas como reserva legal no Cerrado, nas áreas de floresta tropical na
Amazônia esse percentual sobe para 80%”.9 Em função da crescente retirada da
cobertura florística daquele bioma, para o avanço das fronteiras agrícolas, Machado e
outros (2004, p. 7) prevêem que ele pode vir a desaparecer em 2030. Um triste cenário
futuro que pode se concretizar devido, em certa medida, a uma contradição na base
das políticas públicas brasileiras: se, por um lado, o Ministério do Meio Ambiente
postula a ampliação de áreas protegidas no Cerrado, a bancada ruralista e setores do
próprio Governo defendem, por outro, a utilização de centenas de milhões de hectares
adicionais para a expansão da agricultura intensiva.
Diante dessa realidade, Klink e Machado (2005, p. 152) destacam que um dos
principais desafios para a conservação do Cerrado será demonstrar a relevância dos
serviços que a biodiversidade desempenha no funcionamento dos ecossistemas. As
políticas públicas devem considerar o acervo cognitivo “[...] tanto sobre espécies e
habitats quanto sobre funcionamento de ecossistemas, uma vez que as modificações
da paisagem têm implicações sobre o regime de queimadas, a hidrologia, a ciclagem
e os estoques de carbono e possivelmente o clima”. Implicações que órgãos
administrativos e jurisdicionais de alto escalão, na linha do comportamento geral dos
povos que habitam o Cerrado, continuam a desconhecer.
4.3. A decisão do TJMG e suas antinomias jurídicas e biológicas
Uma visão distorcida do Cerrado e de seu significado biológico pode afetar, ou
até mesmo tornar inócuos, os instrumentos legais, administrativos e jurisdicionais
originariamente destinados à sua conservação (WALTER, 2006, p. 5). Greuter, citado
8
Os dados apresentados contrastam com as recomendações de Machado et al. (2004, p. 8-9). Para os
autores, o Governo Federal, em articulação com os governos estaduais e municipais, devem adotar uma
postura de desmatamento zero para o Cerrado, pelo menos até que seja feito um planejamento integrado
para a ocupação do bioma.
9
Com base na Biologia da Conservação e na teoria da percolação, Metzger (2002) sugere que as áreas de
RL devem ocupar 60%, no mínimo, da propriedade rural.
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por Walter (2006, p. 246), tem razão em dizer que: “A nomenclatura biológica é
relevante para todos que necessitem comunicar-se a respeito dos organismos”. Talvez
por ignorar essa assertiva, o TJMG, ao julgar a Apelação 1.0000.00.297454-1/000(1),
reduziu o bioma à condição de “[...] vegetação composta de arbustos enfezados, de
galhada tortuosa, entre os quais vegetam as gramíneas”. Para o órgão jurisdicional, o
domínio fitogeográfico não seria constituído por florestas, que não existem “[...] em
terras de campo, cerrado, e muito menos de cultura” (MINAS GERAIS, 2002).
A visão de que a referida província fitogeográfica não apresentaria feições arbóreas
densas, associada a uma interpretação restritiva das exigências normativas relativas
à RL, segundo a qual ela concerniria apenas a áreas densamente florestadas, conferiu
aparência de sensatez a uma decisão biologicamente antinômica. O falso pressuposto
de que não há florestas no Cerrado, ou (o que é pior) o de que este, para receber
proteção legal, deve ser densamente ocupado por plantas de alto porte, serviu para
motivar a inexigibilidade da averbação da RL por proprietários de glebas localizadas
nesse domínio fitogeográfico.
Entrementes, o Cerrado, como bioma, reúne atributos biogeográficos que o tornam apto
a ser protegido como tal, independentemente da existência de cobertura arbórea densa
em todas as suas áreas de ocorrência. Até mesmo porque, como referido no item 4.2, a
presença difusa de estruturas florísticas densas é própria desse domínio fitogeográfico.
Sem embargo disso, num patamar mais profundo de abordagem, alguns estudiosos
observam que a distribuição esparsa dessas estruturas no Cerrado e a descontinuidade
entre agrupamentos arbóreos nas parcelas savânicas do bioma não o desqualificam
como sistema florestal. Dados extraídos dos estudos de Goodland e Ferri (1979, p.
75) demonstram que a eco-região, em todas as suas feições, apresenta propriedades
fisionômicas, como dossel arbóreo, que a aproximam de paisagens reconhecidamente
florestais (p.ex.: Mata Atlântica, Amazônia).
Importa destacar, de outra perspectiva, a alta incidência florística, com significativa
diversidade, em todas as categorias do domínio fitogeográfico (Tabela 3), lembrando
que, para Goodland e Ferri (1979, p. 75), a diferença entre árvores e arbustos “[...]
é inteiramente arbitrária, baseando-se meramente no porte do vegetal. Muitas das
plantas enquadradas na categoria de porte arbustivo são, efetivamente, espécies de
porte potencialmente arbóreo”. Com relação a esse aspecto, outro dado significativo
é que uma expressiva diversidade de plantas do Cerrado ocorre precisamente em suas
áreas savânicas.
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Tabela 3: Quadro das Características do Cerrado do Triângulo Mineiro (GOODLAND; FERRI,
1979, p. 76).
Categoria
de cerrado
CAMPO SUJO
CAMPO
CERRADO
CERRADO
CERRADÃO
Número
de locais
pesquisados
28
24
30
28
mín.
méd.
máx.
mín
méd.
máx.
mín.
méd.
máx.
mín.
méd.
máx.
Altitute
(metros)
550
713
950
550
742
950
400
692
950
550
752
850
Dossel (%)
0
1
2
0
3
15
1
19
55
15
46
85
Recobrimento
do
solo (%)
30
65
85
45
67
85
10
55
80
2
35
75
Altura das
árvores (m)
1
3
5
3
4
6
4
6
8
6
9
18
Altura dos
arbustos
(m)
0
1
1
0
1
2
0
1
2
0
1
3
Altura das
gramíneas
(m)
0
1
2
0
1
3
0
2
4
0
1
3
Área
Basal total
(cm2x10-3)
1
3
6
2
5
7
3
7
13
4
8
18
No de
árvores/
hectare
266
849
2070
335
1408
2928
836
2253
3976
1631
3215
4925
No de
árvores/
acre
Área Basal/
hectare
(cm2x10-3)
No de
espécies
arbóreas
No de
espécies
arbustivas
No total de
espécies
344
570
912
1300
10
30
60
17
76
142
62
168
253
203
313
513
19
31
43
18
36
52
26
43
60
40
55
72
1
5
9
1
4
6
1
4
6
0
3
7
96
93
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Diante desse fato, afirmar que o direito brasileiro protege apenas as áreas de Cerrado
onde ocorrem formações arbóreas densas e de alto porte significa, concomitantemente,
ignorar a condição biogeográfica própria do bioma. Adicionalmente, é preciso
levar em conta que a composição florística de uma paisagem mantém relações de
interdependência com as condições pedológicas, geomorfológicas, físicas, bióticas
e ecológicas ali ocorrentes. Alterações qualitativas e quantitativas na flora geram
implicações noutros constituintes do sistema, como, por exemplo, no solo, outro
bem protegido pela legislação. Com efeito, as formas de vegetação presentes numa
determinada área não se encontram ali ao acaso. Múltiplos fatores, de diferentes ordens
e com diferentes pesos, mas todos interdependentes, determinam a caracterização
fitofisionômica e florística de um local. Uma caracterização a que o Direito deve,
antes de tudo, compreensão e reverência.
5. Síntese conclusiva e proposições
5.1. A Lei nº 4.771/1965 contém regras destinadas à conservação de parcelas
significativas de todos os biomas e tipos de vegetação nativa ocorrentes no Brasil, e
não apenas dos espaços densamente ocupados por formações arbóreas densas e de alto
porte. As áreas naturalmente cobertas por vegetação arbustiva, herbácea, rasteira ou
rarefeita também compõem o acervo florístico brasileiro e merecem, tanto quanto os
espaços tipicamente florestais, proteção legal, administrativa e jurisdicional.
5.2. A averbação obrigatória da RL no registro imobiliário, além da conservação de
parcelas significativas dos domínios ecológicos brasileiros, preconiza o ressurgimento
ou reabilitação de formações vegetais típicas da gleba, representativas da eco-região
em que ela se insere. Logicamente, se o próprio legislador previu hipóteses em que o
proprietário ou possuidor do imóvel rural deve recuperar a área de RL, a exigência da
averbação independe da presença de vegetação nativa conservada in loco.
5.3. Indicadores biogeográficos atestam as dignidades biológica, fitogeográfica e
florística do Cerrado. Dignidades bastantes para justificar a máxima proteção possível
do bioma. Sob essa perspectiva, remontando à feição diacrônica do direito fundamental
a um meio ambiente dignificante (CF/88: art. 1º, inc. III, art. 225, caput), a província
fitogeográfica em questão deve ser vista como herança, materializada em conjuntos
paisagísticos de longa e complexa elaboração fisiográfica e ecológica.
5.4. O Cerrado apresenta características únicas que o habilitam a ser protegido como
tal, independentemente da existência de cobertura arbórea densa e de alto porte em
todas as suas áreas de ocorrência. Com efeito, a presença difusa de tal fitofisionomia
é própria desse domínio ecológico. Por isso, afirmar que o direito brasileiro protege
apenas as áreas onde ocorrem estruturas florísticas densas significa ignorar e desprezar
a condição biogeográfica própria do bioma.
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SUBSEÇÃO II – DIREITO PROCESSUAL COLETIVO
1. ARTIGOS
1.1 CLASS ACTION
RENATO BRETZ PEREIRA
Promotor de justiça do Estado de Minas Gerais
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Origem. 3. A revisão da rule 23 (1966). 3.1. Requisitos.
3.2. Espécies de Class Action. 3.2.1. Class Action baseada na incompatibilidade de
conduta para a parte contrária (Incompatible standards). 3.2.2. Limited Fund Class
Action. 3.2.3. Rule 23(b)(2). 3.2.4. Class action em virtude de questões comuns. 3.3.
Poderes do Órgão Julgador. 3.4. Right to opt out. 3.5. Renúncia ou transação. 3.6.
Legitimação. 3.7. Limites subjetivos da coisa julgada. 4. Conclusão. 5. Referências
bibliográficas.
1. Introdução
A revolução industrial representa verdadeiro marco de transformação da sociedade.
O principal efeito de tal fenômeno histórico é a criação das classes de trabalhadores e
dos donos do capital. Via de conseqüência, a visão do homem individual passa a ser
cada vez mais rara, sendo substituída aos poucos pela visão do indivíduo como mero
integrante de grandes classes ou categorias. Tal transformação histórica é relatada
com maestria por Mancuso (1997, p. 77):
Nessa sociedade de massa, não há lugar para o homem enquanto
indivíduo isolado; ele é tragado pela roda-viva dos grandes
grupos de que se compõe a sociedade; não há mais preocupação
com as situações jurídicas individuais, o respeito ao indivíduo
enquanto tal, mas, ao contrário, indivíduos são agrupados em
grandes classes ou categorias e, como tais, normatizados.
A nova configuração social acima descrita tem conseqüências no modelo de processo
até então adotado. A visão clássica de Ticio contra Caio (MANCUSO, 1997, p. 76)
torna-se notoriamente insuficiente para resolver as intrincadas questões do processo
coletivo. A premente necessidade de uma tutela coletiva de interesses que transpõem
a esfera individual é devidamente ressaltada por Mendes (2002, p. 29):
Na verdade, a necessidade de processos supra-individuais
não é nova, pois há muito tempo ocorrem lesões a direitos,
que atingem coletividades, grupos, ou certa quantidade de
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indivíduos, que poderiam fazer valer seus direitos de modo
coletivo. A diferença é que, na atualidade, tanto na esfera da
vida pública como privada, as relações de massa expandem-se
continuamente, bem como o alcance dos problemas correlatos,
‘fruto’ do crescimento da produção, dos meios de comunicação
e do consumo bem como do número de funcionários públicos e
de trabalhadores, de aposentados e pensionistas, da abertura de
capital das pessoas jurídicas e conseqüente aumento do número
de acionistas e dos danos ambientais causados. Multiplicam-se,
portanto, as lesões sofridas pelas pessoas, seja na ‘qualidade’ de
consumidores, contribuintes, aposentados, servidores públicos,
trabalhadores, moradores,etc, decorrentes de circunstâncias de
fato ou relações jurídicas comuns.
Desta forma, o surgimento do processo coletivo toma por base não só o crescimento
social desordenado como também algumas dificuldades não superadas pela tutela
individual dos interesses dos jurisdicionados. Com efeito, se percebe a notória
insuficiência do modelo clássico para solucionar questões em que o processo individual
apresenta um custo financeiro injustificável se comparado com o eventual proveito que
a parte vencedora retiraria da demanda. Tais inconveniências do processo individual
para a tutela de interesses coletivos são corriqueiramente apontadas pela doutrina:
Em outras palavras, poderíamos entender a class action como
artifício processual, mediante o qual demandas que não seriam
apresentadas no judiciário, em especial por conter um número
muito grande de titulares, ou ainda pelo inexpressivo valor
econômico que cada demanda individualmente considerada
apresenta, são aforados por um, ou alguns poucos litigantes,
que representará (ão) a todos no processo.
No mesmo sentido, Mendes (2002, p. 30):
A eventual falta ou deficiência dos instrumentos processuais
adequados para os chamados danos de bagatela, que, considerados
globalmente, possuem geralmente enorme relevância social
e econômica, estimula a repetição e perpetuação de práticas
ilegais e lesivas. Por conseguinte, tendem a se beneficiar, ao
invés de serem devidamente sancionados, os fabricantes de
produtos defeituosos de reduzido valor, os entes públicos
que cobram tributos indevidos ou não concedem os direitos
funcionais cabíveis e os consumidores que realizam negócios
abusivamente, apenas ‘para’ citar alguns exemplos.
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Inegável ainda que a ação coletiva, pelo simples fato de versar sobre interesses atinentes
a uma coletividade de sujeitos, é instrumento de economia processual, na medida em
que substitui o ajuizamento de uma série de ações que versam sobre circunstâncias
semelhantes pelo aforamento de uma única ação. Raciocínio análogo é apresentado
por Mendes (2002, p. 33):
A questão não deixa de ser, também, lógica, pois, a priori,
os conflitos eminentemente singulares devem ser resolvidos
individualmente, enquanto os litígios de natureza essencial ou
acidentalmente coletiva precisam contar com a possibilidade
de solução metaindividual. A inexistência ou o funcionamento
deficiente do processo coletivo dentro do ordenamento jurídico,
nos dias de hoje, dá causa à multiplicação desnecessária
do número de ações distribuídas, agravando ainda mais a
sobrecarga do Poder Judiciário.
Nota-se ainda que, muitas vezes, o ajuizamento de uma ação individual causa um certo
temor de represálias junto ao autor, o que não ocorreria caso a ação se instaurasse por
iniciativa de uma coletividade devidamente representada. Outra deficiência do modelo
individual de processo é atribuída à possibilidade de decisões contraditórias em
processos que tratam de situações fáticas praticamente idênticas. Tais inconvenientes
são superados pela adoção do processo coletivo. Desta forma, verifica-se que as ações
coletivas, se bem estruturadas, podem representar não só um verdadeiro instrumento
de acesso do cidadão à Justiça, como também um elemento de aperfeiçoamento do
sistema jurisdicional.
2. Origem
Verifica-se a existência dos primeiros registros de ações coletivas, na Inglaterra, por
volta do ano de 1199, ocasião em que um pároco tentou valer-se da via coletiva para
exigir oferendas dos paroquianos:
O primeiro caso teria ocorrido em torno do ano de 1199,
quando, perante a Corte Eclesiástica de Canterbury, o pároco
Martin, de Barkway, ajuizou ação, versando sobre o direito a
certas oferendas e serviços diários, em face dos paroquianos
de Nuthamstead, uma povoação de Hertfordshire, assim
considerados como um grupo, chamado, no entanto, a juízo
apenas algumas pessoas, para, aparentemente, responder por
todos (MENDES, 2002, p. 44).
Não obstante à existência de casos isolados, doutrina aponta que os traços básicos
da class action surgiram no direito inglês já no final do século XVII. O instituto que
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delimitou algumas das características da class action era denominado Bill of peace e
tomava por base juízos de eqüidade. Neste sentido, Guerra (2000, p. 17):
Assim, as origens da class action remontam ao instituto do
Direito inglês denominado Bill of peace.
Os tribunais da equidade, chancery court, tinham jurisdição
para dirimir as lides processadas através do Bill of peace.
Era esse o instrumento que possibilitava a agregação de várias
pequenas demandas, quando as parte comungassem interesses
comuns relacionados ao objeto da lide. Portanto, o bill of peace
forneceu os lineamamentos da class action.
O caso concreto que alcançou maior notoriedade – Brown x Vermuden – data de 1676
e envolveu um grupo de mineradores que se opuseram aos tributos impostos pela
igreja. Nos Estados Unidos, a primeira regulamentação do instituto se deu pela Equity
Rule 48, de 1842. Mendes (2002, p. 66) aponta tal dispositivo legal como “[...] a
primeira norma escrita relacionada com a class action nos Estados Unidos [...]”. Não
obstante o seu caráter pioneiro, a rule 48 não representava um avanço significativo,
na medida em que não permitia que os efeitos do provimento atingissem terceiros que
não fizessem parte do processo. Dentre as poucas vantagens do instituto, poderíamos
apontar a possibilidade de dispensa do litisconsórcio necessário, quando o mesmo
fosse inconveniente em virtude do número excessivo de demandantes, ocasião em que
tal instituto era substituído pela ação coletiva.
Em 1912, a Suprema Corte Americana editou a regra 38, em substituição à regra 48.
O novo dispositivo corrige a principal falha da regra 48, passando a permitir que os
efeitos da sentença se estendam àqueles que não fizeram parte do processo. Todavia,
as class action adquiriram importância com a regra 23 das Federal Rules of Civil
Procedure, apontadas pela doutrina como o primeiro Código de Processo Civil no
âmbito federal. A regra 23 foi incialmente proposta em 1938 e reformulada com seu
perfil atual em 1966. Neste sentido, o posicionamento de Perin Júnior (1994, p. 49),
em monografia sobre o tema:
A partir de 1938, com a rule 23 das Federal Rules of Civil
Procedure, este instrumento adquire uma função hoje
considerada, conforme já mencionado, central e com contornos
bem definidos no ordenamento dos Estados Unidos da
América.
A rule 23 (a) foi depois completamente reelaborada na emenda
proposta e aprovada em 1966 pelo Advisore Commitee on Civil
Rules.
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Registre-se que a regra 23, com seu perfil inicial de 1938, admitia três espécies de
class action, a saber as autênticas (true class action), híbridas (hibrid) e espúrias
(spurious). A classificação em questão tomava por base a natureza do interesse objeto
da ação. A seguir, passaremos ao estudo da rule 23, já com as modificações de 1966,
que lhe definiram o perfil atual.
3. A revisão da rule 23 (1966)
O diploma legal em questão regulamenta minuciosamente as class actions no direito
americano. Desta forma, a rule 23, já com o perfil alterado pela emenda de 1966,
trata de temas como os pressupostos do instituto em estudo, juízo de admissibilidade
a respeito do processamento de uma ação sob a forma de class action, poderes do
Tribunal na condução do processo, possibilidade de atos dispositivos das partes,
legitimação, representação adequada, direito de exclusão do litigante individual e
coisa julgada. Registre-se que o instituto, por seu aspecto inovador à época em que foi
criado, não se viu livre de críticas contundentes. Neste sentido (DAM apud PERIN
JUNIOR, 1994, p. 48):
Afirma ironicamente Dam que ‘para os defensores dos interesses
dos consumidores, para os ambientalistas, para os maníacos por
liberdade civil e para todos aqueles que gostariam de reformar a
sociedade por meio dos Tribunais, a rule 23 tornou-se uma nova
carta constitucional’.
Passemos agora à análise do dispositivo legal americano.
3.1. Requisitos
O primeiro requisito para o processamento de uma demanda sob a forma de class
action é a existência de uma classe identificável. Com efeito, a doutrina é bastante
flexível no preenchimento de tal requisito. Desta forma, classe poderá ser delineada
tão-somente por um conjunto de pessoas com um interesse comum. Basta pois que
a definição de classe seja clara o bastante para que, ao proferir o provimento final, o
Tribunal possa elencar com precisão os limites subjetivos do julgado. Não se exige a
existência de uma relação jurídica base. Registre-se que o requisito acima transcrito
é considerado como implícito, uma vez que não está contido expressamente no texto
da regra 23.
No entanto, outros requisitos para o processamento de uma demanda sob a forma
de class action são apontados de forma expressa pelo texto normativo. Com efeito,
a regra 23 estabelece que a categoria ou classe deve ser numerosa a ponto de que a
reunião de todos os seus membros torne inviável o litisconsórcio. Observa-se que não
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é necessário que o litisconsórcio seja impossível, bastando que o mesmo apresente
uma considerável dificuldade de processamento.
Justificando a existência do requisito em tela, Guerra (2000, p. 19) fornece exemplos
em que a simples conferência do instrumento do mandato (procuração) torna inviável
o ajuizamento de um litisconsórcio ativo multitudinário em substituição a uma
demanda coletiva:
O litisconsórcio se verifica impraticável nos casos que
envolvem lesões massivas, onde juntar em um único processo
todos os interessados é tarefa bastante complexa. Por exemplo,
cinco mil usuários de um serviço de transporte podem ter
sofrido uma lesão comum e juntá-los no pólo ativo em um
único processo traria dificuldades ao órgão jurisdicional na
operacionalização processual. Uma primeira dificuldade estaria
na simples conferência da procuração outorgada pelas partes a
seus advogados. Ao magistrado cabe averiguar se aqueles que
se encontram em um pólo da relação processual conferiram
poderes específicos aos patronos da causa. Havendo um
grande número de pessoas, só o tempo gasto na conferência
da documentação é suficiente para acarretar a lentidão no
processamento do feito.
Mendes (2002, p. 33) aponta ainda outros fatores diversos do número excessivo de
demandantes que justificam o ajuizamento da class action:
Inúmeros fatores podem influenciar no sentido de tornar
viável a reunião dos interessados. Dentre outros, podem
ser apontados, e.g., a dispersão geográfica dos membros da
classe, pois se estivessem espalhados por diversas regiões, será
mais difícil, onerosa e inconveniente a reunião; o diminuto
valor patrimonial da indenização ou do direito pretendido,
individualmente considerado, tendo em vista que é da natureza
humana confrontar os custos e benefícios para que decisões
sejam tomadas, o que tornará mais improvável o ajuizamento de
ações separadas, quando as pretensões representarem quantias
pequenas ou irrisórias; a natureza e a complexidade das
causas: determinadas lides estão relacionada com intrincadas
questões técnicas, científicas ou jurídicas, desestimulando e
encarecendo o ajuizamento de ações individuais, na medida
em que profissionais qualificados e estudos prévios serão
necessários; ou a própria mutabilidade dos integrantes do grupo.
Portanto, o aspecto quantitativo deverá ser sempre sopesado em
consonância com as demais circunstâncias do caso concreto,
não sendo fundamental, deste modo, a estipulação arbitrária e
isolada de limites numéricos.
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Outro requisito de admissibilidade da class action constante do texto da regra 23 é
a existência de questões de direito e de fato comuns ao grupo de litigantes. O texto
normativo é expresso ao exigir apenas a identidade de uma ou mais questões de direito
e de fato, não sendo obrigatória a coincidência de todas as questões. Ponto relevante
a ser ressaltado diz respeito à circunstância de que a questão de direito ou de fato
comum, chamada de commonality, deve se referir a um ponto relevante da causa.
A regra 23 exige ainda que os pedidos ou defesas dos representantes da classe sejam
idênticos aos pedidos ou defesas das partes representadas pelos mesmos. Tal condição
é conhecida como tipicality. Conforme se infere do próprio nome dado ao instituto,
o mesmo visa a constatar se tanto o pedido quanto a defesa formulados são típicos
da classe representada. Tal ausência de tipicidade poderá redundar tanto na extinção
como na divisão da causa, conforme ressalta Mendes (2002, p. 77), no caso La Mar v.
H & B. Novlety & Loan Co. :
A falta de tipicidade pode ensejar a inadmissibilidade ou a
subdivisão da ação de classe. No caso La Mar v. H&B. Novelty
& Loan Co., por exemplo, numa ação versando sobre agiotagem,
a Corte de Apelação do 9o. Circuito determinou a formação
de subclasses, porque as partes representativas só poderiam
efetuar a defesa das vítimas que tivessem sido enganadas pelo
mesmo agiota.
O quarto e último requisito expresso pelo texto da regra 23 diz respeito à verificação
da proteção adequada pelo representante dos interesses da classe. Desta forma, o risco
de ajuizamento de ações contrárias ao interesse da classe por um membro desta mesma
classe é superado pela regra 23 através de um juízo de adequação da representação
– adequacy of representation – formulado pelo Tribunal. Verificado que o autor da
class action não representa de forma satisfatória os seus pares, o Tribunal poderá
determinar a troca do autor por um outro representante de classe. Nesse sentido, Tucci
(1990, p. 21):
Ora, quando isto não ocorrer, ou seja, quando não se vislumbrar
adequada representação, o tribunal poderá, por certo, à luz da
regra insculpida na alínea c (2), determinar a intervenção de um
outro integrante da classe mais idôneo, e assistido por advogado,
a fim de que o pressuposto da adequacy of representation seja
satisfatoriamente preenchido.
A relevância de um juízo correto de adequacy of representation se deve à circunstância
de que o processo coletivo norte-americano possibilita a defesa de interesses de
terceiros, independentemente de qualquer autorização deles. Destarte, devido à
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própria ausência do titular do direito na demanda coletiva, é de curial importância a
verificação do zelo do representante na proteção de interesses alheios. Gize-se que o
requisito em questão se presta ainda a evitar conluios entre o representante da classe e
a parte contrária. Os critérios a serem utilizados pelo julgador ao apreciar a adequacy
of representation são devidamente elencados pela doutrina abalizada de Mendes
(2002, p. 82):
Na apreciação do requisito, os tribunais costumam aferir vários
fatores. Mais do que a quantidade de litigantes presentes, para
a certificação, importa a qualidade da defesa dos interesses da
classe. Em relação às partes representativas, são considerados
o comprometimento com a causa, a motivação e o vigor na
condução do feito, o interesse em jogo, as disponibilidades de
tempo e a capacidade financeira, o conhecimento do litígio,
honestidade, qualidade de caráter, credibilidade e, com especial
relevo, a ausência de conflito de interesse.
Importante ainda observar que a adequacy of representation abrange não só as partes
como também implica necessariamente verdadeira correição sobre a competência
do advogado e de seu zelo para com a causa. Igual posicionamento é defendido por
Wagner Junior (2003, p. 60):
É inerente à figura da representatividade adequada a competência
dos advogados que conduzirão a ação, mormente aquela da
class. Neste particular, a Corte deverá examinar a sua bone
fides e sua competência técnica, vale dizer, se tem condições
de vencer os desafios que são apresentados no desenvolver das
ações destas espécies.
A ausência de representação adequada pode ainda ser apontada pela própria parte
contrária ao interesse defendido pelo representante. Tal assertiva, a princípio
contraditória, pode ser explicada pelo fato de ter a parte contrária interesse em um
pronunciamento de mérito sobre a improcedência do pedido, que vinculasse toda
a classe. Com efeito, caso a inexistência da adequacy of representation só fosse
verificada em momento posterior à prolação da sentença, esta última seria inócua
em relação àqueles que não se viram representados de forma adequada. Desta
forma, a parte contrária àquela que se viu representada de forma inadequada teria
empreendido tempo e esforços em vão, uma vez que o julgado, mesmo que lhe fosse
favorável, nenhum efeito produziria em relação àquele que foi representado de forma
inadequada.
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3.2. Espécies de Class Action
3.2.1. Class Action baseada na incompatibilidade de conduta para a parte
contrária (Incompatible standards)
Alguns conflitos de interesses necessariamente devem ser julgados pelo mesmo
órgão jurisdicional, sob pena de que as decisões conflitantes se tornem praticamente
impossíveis de serem cumpridas. Com efeito, não se afigura razoável que duas ações
ajuizadas por vizinhos e que versem, v.g., sobre a perturbação da tranqüilidade causada
pela ruidosa atividade de uma fábrica, em área de intensa concentração urbana, sejam
decididas por órgãos jurisdicionais diversos. No caso em tela, há sério risco de que
as sentenças sejam contraditórias a ponto de que uma determine o fechamento do
empreendimento enquanto a outra julgue improcedente o pedido, por entender que a
fábrica em questão não exerce qualquer atividade ruidosa.
3.2.2. Limited Fund Class Action
A segunda espécie de class action diz respeito àquelas ações em que o julgamento
proferido em benefício de determinados membros da classe pode prejudicar os outros
integrantes desta mesma classe que não integrem o processo coletivo. Dentre os
exemplos fornecidos pela doutrina, podemos destacar a hipótese em que a quantia
pretendida por determinados membros da classe pertence a um fundo comum, cujo
montante será exaurido em hipótese de procedência do pedido, circunstância que
prejudicaria os membros da classe que não fazem parte da relação processual, mesmo
porque, o crédito deles não seria viabilizado devido à ausência de recursos do fundo.
3.2.3. Rule 23(b)(2)
A regra 23(b)(2) estabelece uma nova modalidade de class action para os casos em
que a parte contrária à classe pratica atos ou se abstém de praticá-los de forma lesiva à
classe. Ressalta-se, todavia, que a presente modalidade de class action só é aplicável
aos casos em que se pretenda uma condenação de fazer ou não fazer ou uma sentença
declaratória, não se podendo afirmar que a categoria em questão se preste à obtenção
de indenizações exclusivamente pecuniárias. Mendes (2002, p. 88) observa que tal
modalidade de class action se presta, na maioria das vezes, para a defesa de direitos
civis e fundamentais:
A maioria dos processos instaurados nesta categoria refere-se
a litígios relacionados com direitos civis (civil rights) ou com
base em outros direitos fundamentais de natureza constitucional,
embora o tipo não seja cabível apenas nestas hipóteses.
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3.2.4. Class action em virtude de questões comuns
Conforme enuncia o próprio título deste tópico, a presente espécie de ação de classe
será admitida quando as questões de direito e de fato comuns aos integrantes da classe
forem predominantes se comparadas às questões individuais. Trata-se de um juízo de
conveniência que visa a constatar se o ajuizamento da ação coletiva se apresenta como
a forma mais adequada à justa composição do conflito.
A avaliação do cabimento de tal espécie de class action deverá levar em conta os
interesses dos integrantes do grupo em controlar e acompanhar individualmente
o desenrolar do procedimento, a extensão e natureza do litígio, a conveniência da
concentração da demanda em um único órgão jurisdicional e as dificuldades de
processamento da ação de classe.
No que diz respeito aos critérios acima mencionados para a admissibilidade da
espécie de class action em comento, a hipótese mais polêmica é a da possibilidade
de processamento sob a forma de class action nos casos de responsabilidade civil por
danos causados a um número massivo de pessoas. Tais casos são conhecidos como mass
torts. Inicialmente, a jurisprudência norte-americana entendeu pela inadmissibilidade
de tais ações de classe, sob o argumento de que questões significativas como o
montante de cada indenização, responsabilidade no que diz respeito a cada um dos
ofendidos e até mesmo as defesas apresentadas, tendem a ser diversas. No entanto,
a partir da década de 80, tal posicionamento vem se alterando a ponto de Mendes
(2002, p. 93) apontar sucessivas decisões em que houve o julgamento de procedência
do pedido das chamadas mass torts actions, dentre as quais se destaca a ação ajuizada
coletivamente por combatentes atingidos pelo agente orange no Vietnam:
Nos tribunais, podem ser mencionados , como ilustrativos da
nova posição, os casos jenkins v. Raymark Industries, versando
sobre danos pessoais causados pelo amianto (asbesto); In
re ‘Agent Orange’ Product Liabiliy Litigation, no qual excombatentes no Vietnam, bem como suas esposas, pais e
filhos, pediam indenizações pelos prejuízos decorrentes da
exposição ao agente esfoliante, tendo o governo americano
alegado que estaria imune à responsabilidade, na medida em
que a arregimentação ocorrera em razão da atividade militar,
o que acabou sendo uma questão comum central; Biechele v.
Norfolk anda Western Railway Company, por danos causados
pela poluição proveniente d poeira de carvão aos habitantes de
região próxima à mina.
Observa-se que, no caso do agente Orange, embora admitida o processamento inicial
da lide sob a forma de class action, a quantificação do dano causada a cada um dos
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ex-combatentes foi detalhada em ações individuais, respeitando-se as peculiaridades
de cada caso. Para Tucci (1990, p. 30):
A Suprema Corte dos Estados Unidos, a despeito de ter deferido
o processamento da demanda em forma de class no tocante à
existência e à natureza dos danos resultantes daquele elemento
tóxico, que consubstanciava na questão comum, rejeitou o
pedido em relação à quantificação do (eventual) dano, com
base no permissivo da alínea c (4) (A) da Regra 23, entendendo
que essa parte da lide deveria constituir objeto de demandas
individualizadas.
3.3. Poderes do Órgão Julgador
Prevê ainda a regra 23 que, após o ajuizamento, o Tribunal deverá decidir se a demanda
poderá ser processada sob a forma de class action. Igual entendimento é esposado
por Guerra (2000, p. 25): “O magistrado tem o poder legal para verificar, no caso
concreto, se a class action é o instrumento processual mais adequado para viabilizar a
solução da lide coletiva”.
Interessante observar que a decisão que admite o processamento de uma ação sob
a forma de class action é revogável a qualquer tempo, não fornecendo a Regra 23
qualquer critério objetivo para eventual alteração da decisão em questão. Ainda por
ocasião da análise da admissibilidade da class action, o Tribunal poderá não só traçar
os limites da demanda, como também cindi-la. No mesmo sentido Tucci (1990, p. 22):
“Poderá, outrossim, a teor da alínea c (4) (A) e (B), delimitar o objeto da demanda,
ou mesmo cindi-la em mais de uma class action” . De igual forma caberá ao Tribunal
autorizar a prática de atos dispositivos, tais como a transação e renúncia.
Insere-se ainda na esfera de poderes do Tribunal determinar a notificação dos
integrantes da classe que não integrem a demanda. Devido a dificuldades ligadas
ao número excessivo de integrantes da classe, em determinados casos, é dispensada
a exigência de notificação pessoal dos integrantes da classe. A doutrina enumera o
seguinte exemplo, em que a notificação se estendeu apenas a parte dos integrantes
(fair notice):
No precedente Richland v. Cheatham, por outro lado, em razão
do elevadíssimo número de integrantes da categoria, a corte
permitiu que a notificação fosse feita pelo correio, sobretudo
para conceder-lhes uma ‘chance to avoid being bound by the
judgement’.
Já no caso Booth v. General Dynamicas Corp., no qual o
demandante demonstrou a desproporcional despesa que seria
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necessária com as notificações de todos os contribuintes que
estavam na mesma situação, autorizou-se a feitura destas por
edital, uma vez que a corte entendeu constituir mais do que
razoável esforço a identificação pessoal de todos os interessados.
(TUCCI, 1990, p. 25).
Campos (1995, p. 88) manifesta-se não só sobre a sobre a possibilidade de notificação
pessoal de apenas alguns dos integrantes do grupo, como também pela viabilidade de
se determinar o pagamento das custas da notificação em tela pelo demandado:
Diante deste aspecto, ou seja, a citação individual representar
um obstáculo, surgiu a tendência dos Tribunais de, se muito
dispendiosa esta citação, aceitar que a mesma se fizesse
através de jornais, ou ainda determinar que o demandado
pagasse parte destas despesas.
Por fim, segundo a regra 23, caberá ainda ao Tribunal evitar dilações indevidas, tanto
no que diz respeito à produção de provas desnecessárias, como no tocante ao abuso
do direito de defesa. Salienta-se que é justamente com base neste poder/dever do
Tribunal, expressamente previsto na regra 23, que a jurisprudência norte-americana
entende cabível a notificação de alguns integrantes da classe por outras maneiras que
não a pessoal.
3.4. Right to opt out
Uma vez admitido o processamento sob a forma de class action, aqueles integrantes
da classe que não façam parte da ação coletiva deverão ser notificados sobre o
andamento desta última. Tão logo cientificados, os litigantes individuais poderão
optar por requerer a exclusão do processo, exercendo seu right to opt out. Caso não
formulem pedido de exclusão, fica franqueada aos integrantes da classe a possibilidade
de intervirem no processo. Registre-se que aqueles que não exercerem o right to opt
out encontram-se vinculados aos efeitos da sentença, bem como pelos abrangidos
pelos limites subjetivos da coisa julgada. No mesmo sentido o pensamento esposado
por Guerra (2000, p. 18):
A class action é uma ação exercida por um ou mais membros
de um grande grupo. Se a corte admitir a ação de classe, todos
os membros devem ter ciência da ação assim como devem ter
garantida a oportunidade para requerer exclusão do feito, se for
esta a sua vontade. A decisão alcançará todos os membros da
classe que não tiverem requerido a exclusão, mesmo que esta
seja desfavorável.
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Cumpre observar que, de início, parte da doutrina entendeu ter havido ofensa ao
princípio do devido processo legal, com a formação de coisa julgada extensiva
a integrantes da classe que não fizessem parte da relação processual. Todavia, em
uma segunda análise, a doutrina passou a entender que o direito de ser informado
do andamento da demanda propiciava ao integrante da parte um amplo controle da
atuação de seu representante na class action, o que eliminava a possibilidade de ofensa
ao due process of law:
E é bem de ver, ainda, que, por força do disposto na alínea c (2),
os integrantes do grupo têm o direito de ser informados (notice)
do ajuizamento da class action: a notificação poderá ser pessoal
àqueles cuja identificação seja possível com razoável esforço, e
deverá ser a mais eficaz dentro das circunstâncias.
Essa exigência legal, que não vinha prevista na redação original
da Regra 23, foi inserida porque o Comitê Consultivo das
Normas Civis invocou expressamente o precedente Mullane v.
Central Hanover Bank & Trust Co., no qual se decidiu cientificar
todos os integrantes da classe para satisfazer a garantia do due
process.
Propicia-se, então, oportunidade de amplo controle à atuação
dos litigantes-representatives, podendo, inclusive, haver
intervenção de um integrante de classe, desde que o tribunal
entenda que o interveniente possa trazer subsídios para a
perfeita delimitação do interesse do grupo (TUCCI, 1990, p.
24).
Some-se a isso que, não obstante à existência da obrigatoriedade da notificação (não
necessariamente pessoal), restava ainda ao integrante da classe não representado no
processo o exercício do direito em comento (right to opt out), o qual impedia que os
efeitos do julgado o alcançassem. Destarte, não há que se falar em ofensa ao Devido
Processo legal.
3.5. Renúncia ou transação
Devido à natureza dos interesses em conflito, a regra 23 dispõe que qualquer ato
dispositivo só poderá ser realizado com autorização do Tribunal. Determina ainda o
dispositivo legal em questão que, havendo renúncia ou transação, o Tribunal deverá
dispor sobre a notificação dos membros da classe a respeito de tais fatos. Cabe ao
magistrado, ao homologar os acordos, preservar os interesses dos membros de classe
ausentes. Igual posicionamento é sustentado por Leonel (2002, p. 77):
O juiz pode aprovar ou não o acordo, procurando preservar a
melhor solução para a demanda, mais adequada aos interesses
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dos membros da classe. Deverá inclusive assegurar a notice
aos membros ausentes, para que se manifestem a respeito
da transação ou possam exercer o opt out, para não ficarem
vinculados ao acordo (binding efect).
3.6. Legitimação
O direito norte-americano é extremamente flexível no que diz respeito à legitimação
para agir na class action. Ao contrário do ordenamento legal brasileiro a respeito da
ação civil pública, o qual enumera taxativamente quais os legitimados para propositura
da demanda, a regra 23 concede a qualquer membro da classe legitimidade para
propositura da class action. A parte autora sequer necessita da autorização dos demais
membros da classe para ajuizar o pedido.
Gize-se a semelhança da legitimação ativa da class action e da ação popular, uma vez
que, em ambas as hipóteses, o autor defende interesses próprios e alheios, de forma
simultânea. Tal flexibilidade, no que diz respeito à legitimação ativa da class action,
é evidenciada pela doutrina:
Assim, a legitimação ativa ou passiva para defender em juízo
os integrantes da categoria é outorgada a qualquer integrante,
desde que titular de uma posição juridicamente idêntica aos
demais (TUCCI, 1990, p. 21).
3.7. Limites subjetivos da coisa julgada
A sentença proferida em uma class action produzirá efeitos perante todos os integrantes
da classe, à exceção daqueles que fizerem uso de seu direito de exclusão (right to opt
out), instituto já comentado ao longo deste trabalho. Caberá, no entanto, ao Tribunal
declarar, no ato da sentença, quais são os integrantes do grupo abrangidos pelos efeitos
de sua decisão.
Reitera-se a inexistência de qualquer ofensa ao princípio do devido processo legal,
em virtude da formação de coisa julgada perante aqueles integrantes da classe que
não compuseram a lide. Conforme já ressaltado, a notificação do integrante da
classe permite ao mesmo tempo acompanhar a demanda e verificar a adequação da
representação, como também, se preferir, exercer o seu direito de exclusão. Registrese, por fim, que, ao contrário do que dispõe o ordenamento jurídico brasileiro, não
há o fenômeno da coisa julgada secundum eventum litis, de acordo com o qual não
haveria coisa julgada em ações coletivas julgadas improcedentes por insuficiência de
provas.
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4. Conclusão
Percebe-se, pelo exame das disposições supra, que a class action apresenta alguns
traços peculiares que propiciam uma correta definição e compreensão do instituto em
apreço. O primeiro traço distintivo das class actions pode ser representado por sua
legitimidade ativa, a qual é outorgada a qualquer membro da classe, independentemente
da existência de uma relação jurídica base formalizada.
Ainda no que diz respeito à legitimidade, chama atenção a total desnecessidade de
outorga de procuração a esse membro da classe ou grupo para litigar em nome alheio.
Conforme já salientado, tal circunstância não afrontaria o Princípio do Devido Processo
Legal, uma vez que ao integrante da classe é garantido o direito de ser notificado a
respeito do andamento processual, ocasião em que tanto pode requerer sua exclusão,
como acompanhar o patrocínio da causa pelo representante.
Outro tópico a ser ressaltado diz respeito aos amplos poderes conferidos ao órgão
jurisdicional, ao qual compete não só homologar ou não os atos dispositivos,
como também verificar o zelo com que o representante da classe desempenha sua
função, podendo até mesmo substituí-lo, se verificada a inexistência da adequacy of
representation.
Peculiaridade que também merece ser ressaltada diz respeito aos limites subjetivos da
coisa julgada, os quais serão definidos somente por ocasião da prolação de sentença.
Na oportunidade, o Tribunal discriminará quem são os integrantes da classe e, via de
conseqüência, quem será atingido pelos efeitos do julgado.
Por fim, representa ainda traço distintivo do instituto em apreço o chamado right to
opt out, prerrogativa que permite ao integrante devidamente notificado o exercício de
seu direito de não ser atingido pelos efeitos do julgado na ação coletiva.
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5. Referências bibliográficas
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GUERRA, Isabela Franco. Ação Civil Pública e meio ambiente. Rio de Janeiro:
Forense, 2000.
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para
agir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no Direito Comparado e
Nacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
PERIN JUNIOR, Ecio. Aspectos Relevantes da Tutela Coletiva do Consumidor no
Direito Italiano em face do Direito Comunitário Eutorpeu. Class Actions NorteAmericanas e a Experiência Brasileira. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo,
v.10, n. 38. p. 49-50, 1994.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Class Action e mandado de segurança coletivo:
diversificações conceituais. Saraiva: São Paulo, 1990.
WAGNER JUNIOR, Luiz Guilherme da Costa. A Ação Civil Pública como instrumento
de defesa da ordem urbanística. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
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1.2 COMENTÁRIOS SOBRE A COISA JULGADA E SUA SISTEMÁTICA
NAS AÇÕES COLETIVAS
MARCELO MALHEIROS CERQUEIRA
Assessor Judiciário do TJMG
Pós-graduando em Direito Processual
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A concepção de coisa julgada. 2.1. Limites objetivos e
subjetivos. 3. A ação coletiva e seus elementos. 4. A coisa julgada nas ações coletivas.
4.1. Tratamento dado à matéria pelo direito brasileiro. 4.2. A coisa julgada nos direitos
difusos. 4.3. A coisa julgada nos direitos coletivos em sentido estrito. 4.4. A coisa
julgada nos direitos individuais homogêneos. 4.5. Fundamentos da extensão da coisa
julgada secundum eventum probationis e secundum eventum litis e controvérsias a
respeito do tema. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O direito processual pode ser definido como o conjunto de princípios e normas por
meio do qual se procura estabelecer condições para que o direito material possa ser
efetivado. Dentro dessa perspectiva instrumentalista do processo, deve-se salientar
a importância de se garantir a todos os cidadãos o acesso à Justiça1, ou seja, a
possibilidade concreta de utilização do processo para obtenção da tutela jurisdicional.
Para tanto, necessário é propiciar a efetiva tutela jurisdicional, ou seja, colocar à
disposição dos jurisdicionados meios ou procedimentos que possibilitem a adequada
tutela dos seus direitos. Ao se reconhecer a instrumentalidade do direito processual,
deve-se, ao mesmo tempo, conceder tratamento diferenciado aos diferentes, como
forma de aplicação do princípio da igualdade material.
Entretanto, constata-se que, no Brasil, ainda hoje, o acesso à Justiça é precário. Não
obstante as diversas garantias constitucionais e o extenso rol de leis que compõem
o ordenamento jurídico brasileiro, o que se percebe é, além da baixa eficiência de
muitos dos procedimentos previstos em lei, uma tímida procura do Judiciário pela
população. A título de exemplificação, permite-se transcrever informações e dados
coletados por Silva (2004, p. 63):
1
Utiliza-se a expressão acesso à Justiça em detrimento de acesso ao Judiciário propositadamente, uma vez
que o direito não pode se satisfazer com mera garantia de um aparato qualquer para que a tutela seja concedida, ou, em outras palavras, com uma mera neutralidade positivista. É preciso ter em mente, conforme
ressaltado por juristas como Cândido Rangel Dinamarco, Chiovenda e Kazuo Watanabe, que é inerente ao
processo a idéia de servir de instrumento para alcançar a satisfação do direito material, e, por isso, o acesso
ao Judiciário deve implicar a garantia de tudo o que for necessário e exigível para que aquele que tem direito à tutela possa efetivamente obtê-la. Por tais razões, muito mais lógico é se falar em acesso à Justiça.
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[...] numa população de 185.000.000 pessoas, apenas 12.234
[rectius: 12.234.000], isto é, 6,61%, procuram o Judiciário. Este
número é mínimo em relação ao total da população, o que faz
pensar nas causas desta reduzida proporção. Evidentemente,
num país que se coloca como a décima economia do mundo,
é de esperar que a conflitualidade seja intensa, como acontece
em todo o sistema capitalista, em razão da intensidade dos
negócios e da freqüência das transações. Mas não é isso que
acontece.
Diante desse problema, diversas possíveis soluções têm sido debatidas e, por vezes,
positivadas no ordenamento jurídico brasileiro, na tentativa de ampliar o acesso à Justiça
e, por conseguinte, mitigar problemas como a morosidade da prestação jurisdicional,
o custo elevado que muitas vezes lhe é inerente e o desconhecimento por parte dos
jurisdicionados a respeito de seus direitos. Em face de tais circunstâncias jurídicosociais e da constante necessidade de integração entre Direito e sociedade, tem-se
preocupado em tutelar de forma mais eficiente os chamados direitos transindividuais
ou metaindividuais, que são aqueles que transcendem os limites individuais dos
direitos subjetivos e potestativos comuns.
Assim, em razão da massificação dos conflitos sociais iniciada no século XVIII e
atualmente inerente à sociedade, faz-se imprescindível, inclusive sob o ponto de vista
da atuação do Estado democrático de direito, a colocação de um meio ou instrumento
cada vez mais desenvolvido e apto a garantir a efetiva proteção dos direitos de natureza
transindividual. O que se observa, então, é uma constante evolução e crescimento
de novo enfoque do direito processual civil – em relação aos institutos processuais
tradicionais que buscam a proteção dos direitos individuais –, tratando justamente a
respeito dos direitos coletivos em sentido lato.
A razão disso é que se entende que uma das muitas maneiras de se maximizar o
acesso à Justiça no Brasil é tutelando eficazmente os direitos transindividuais, o que
permitirá não só a proteção dos direitos de uma comunidade ou coletividade, bem
como de um grupo de indivíduos homogeneamente considerados. Além disso, a tutela
de tais direitos importa, inevitavelmente, na redução da quantidade de ações ajuizadas
individualmente e, por conseqüência, diminui a quantidade de processos nos tribunais
com a mesma matéria a ser decidida.
Ocorre que, para que se cumpra tal mister, não basta apenas criar diversas espécies
de ações coletivas e disciplinar em quais hipóteses poderão ser ajuizadas. O acesso à
Justiça pressupõe a tutela jurisdicional diferenciada, ou seja, a consideração dos meios
mais amplos e satisfatórios possíveis para que se solucionem os conflitos de interesse
da maneira mais justa e razoável, e, desse modo, em virtude das características e
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dos aspectos peculiares dos direitos metaindividuais, impõe-se a necessidade de reanalisar os institutos jurídico-processuais já existentes. É assim que se verifica que o
avanço na proteção dos direitos metaindividuais propiciou a revisitação e adaptação
de diversos institutos processuais tradicionais, como a litispendência, a legitimação
para a causa, a coisa julgada e a execução. Entre esses diversos institutos processuais
que foram analisados novamente e adaptados para melhor tutelar os direitos coletivos
em sentido lato, merece destaque o instituto da coisa julgada.
A coisa julgada no processo coletivo, talvez pelo excessivo apego às concepções
tradicionais e individualistas quanto aos seus limites subjetivos, enseja diversas
dúvidas e polêmicas por parte daqueles que se destinam a estudar o tema e por aqueles
que, no dia-a-dia, vêem-se obrigados a aplicar normas pertinentes à matéria para
solucionar um caso concreto. Diante da fundamental importância que a coisa julgada
possui como elemento apto a garantir estabilidade e segurança nas relações jurídicas,
imperioso se faz um estudo com o objetivo de contribuir para melhor compreensão da
sua aplicabilidade no âmbito do processo coletivo.
É com base em tais considerações que se propõe, neste trabalho, definir o instituto
da coisa julgada e examinar as principais diferenças do seu tratamento no âmbito
das ações individuais e das ações coletivas, bem como partir para uma discussão a
respeito das qualidades e defeitos do atual sistema brasileiro quanto à extensão dos
limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo.
2. A concepção de coisa julgada
A noção de coisa julgada passa, necessariamente, pela análise da teoria de Liebman,
que foi acatada de forma dominante pela doutrina e pelo direito processual brasileiro,
embora com certa imprecisão pelo Código de Processo Civil. Na lição do renomado
processualista, deve-se diferenciar entre eficácia natural da sentença e autoridade da
coisa julgada, por se tratar de conceitos ontologicamente distintos. A eficácia natural
da sentença refere-se à formulação autoritativa duma vontade de conteúdo imperativo,
denominada de comando. O comando contido na sentença, que tem natureza
declaratória, constitutiva ou condenatória, não é imutável por si só. A imutabilidade
decorre de uma qualidade da sentença, chamada de autoridade da coisa julgada, que
incide, acidentalmente, por razões de utilidade política e social. Assim, define-se a
autoridade da coisa julgada como:
[...] a imutabilidade do comando emergente de uma sentença.
Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e
intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo
contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que
reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis,
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além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que
sejam, do próprio ato (LIEBMAN, 1984, p. 54).
Em sentido diverso, Alves (2004, p. 87) defende que a coisa julgada não pode ser
tida como qualidade da sentença, mas sim como nova situação jurídica, decorrente da
imutabilidade e indiscutibilidade que incidem sobre a sentença depois do seu trânsito
em julgado. Na verdade, não há qualquer problema em se dizer que a coisa julgada
é uma qualidade. Conforme afirma Braga (2000, p. 20): “[...] o único equívoco de
Liebman foi trazê-la [coisa julgada] para junto dos efeitos da sentença, petrificandoos. Qualidade é definida como uma propriedade, atributo ou condição das coisas ou
das pessoas capaz de distingui-las das outras e de lhes determinar a natureza”.
Assim, conclui que “[...] a coisa julgada é uma qualidade que adere ao conteúdo e não
aos efeitos da sentença, à declaração feita pelo juiz na parte dispositiva” (BRAGA,
2000, p. 2, grifo nosso). Definido que a autoridade da coisa julgada consiste em
qualidade acidental que adere ao conteúdo da sentença, deve-se reconhecer que seu
fundamento principal é justamente a manutenção da segurança jurídica, evitando que
o comando contido na sentença possa ser discutido diversas vezes e, assim, acabe por
perpetuar indefinidamente os litígios. Disso ressalta a extrema necessidade social, em
regra, da imposição da autoridade da coisa julgada, haja vista que é fundamental para
garantir a segurança e a certeza necessárias ao convívio social pacífico e à preservação
da ordem jurídica.
2.1 Limites objetivos e subjetivos
Por se tratar de coisa julgada material, deve-se analisar quais seus limites objetivos
e subjetivos, ou seja, aquilo que fica abrangido pela imutabilidade e quem será
afetado por ela. Em relação aos limites objetivos, em razão de não haver alterações
na sistemática do processo coletivo, deve-se apenas mencionar, brevemente, que a
autoridade da coisa julgada material irá incidir sobre a parte dispositiva da sentença
que decide a respeito do pedido (pretensão) formulado no processo, restringindo-se,
assim, aos limites da lide e das questões decididas (art. 468 do CPC).
A identificação dos limites subjetivos da coisa julgada, por outro lado, é o que mais
interessa para o desenvolvimento do presente trabalho. Em primeiro lugar, cumpre
destacar que a sentença, conquanto proferida apenas entre as partes às quais é dada,
tem eficácia em relação a todos (eficácia erga omnes). O comando contido na sentença,
por se tratar de ato de império do Estado (LIEBMAN, 1984), atinge indistintamente
todas as pessoas, partes ou não, o que justifica que, muitas vezes, terceiros alheios à
relação jurídico-processual estabelecida sejam atingidos pelos efeitos da sentença.
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Por outro lado, a autoridade da coisa julgada, em regra, estende-se somente às
partes entre as quais a sentença é proferida, não alcançando, seja para beneficiar ou
prejudicar, terceiros alheios à relação jurídico-processual estabelecida (art. 472 do
CPC). Desse modo, qualquer pessoa que não participou do processo pode, desde
que possua interesse jurídico, discutir novamente a questão e inclusive obter solução
diversa, de forma a não se ver impingido, injustamente, pela imutabilidade da decisão
proferida em processo no qual não teve a oportunidade de se defender.
No entanto, essa regra geral não pode ser vista como dogma irrefutável, na medida
em que, em determinadas situações, apresenta-se cabível e razoável a extensão da
autoridade da coisa julgada a terceiros que não participaram no processo. Nas palavras
de Liebman (1984, p. 13):
A diferente sistematização do conceito de coisa julgada leva
logicamente a outro resultado, cujas conseqüências práticas
são relevantes: refiro-me à posição dos terceiros. Este é um
problema que, em todos os tempos, tem proporcionado grandes
dificuldades quanto à prática, porque a grande variedade de
relações que os terceiros podem ter com o objeto do litígio
torna impossível a fixação de uma regra satisfatória em todas
as suas aplicações. Assim, o princípio que limita às partes a
autoridade da coisa julgada sempre comportou exceções, que a
doutrina procurou justificar com maior ou menor acerto. Nestes
últimos tempos, importantes correntes da doutrina esforçaramse por alargar o âmbito de extensão da coisa julgada e, em
alguns casos, até por quebrar o clássico princípio, invalidando
praticamente os seus efeitos. Não estaria talvez errado
quem visse, nessas correntes, um reflexo, provavelmente
inconsciente, da tendência socializadora e antiindividualista
do direito, que vem abrindo caminho em toda parte. O homem
já não vive isolado na sociedade. A atividade do indivíduo é
de maneira crescente condicionada pelas atividades dos seus
semelhantes; aumenta a solidariedade e a responsabilidade de
cada um e seus atos se projetam em esfera sempre maior.
Ora, uma das peculiaridades do processo coletivo é exatamente essa necessidade
de alargar o âmbito de extensão da coisa julgada, como forma de permitir que a
prestação jurisdicional seja adequada ao direito coletivo posto em discussão. Assim,
no que concerne ao tratamento dado à coisa julgada pelas leis que disciplinam as
ações coletivas, o que se observa é que não prevalece a concepção ortodoxa de que a
sentença faz coisa julgada apenas entre as partes para as quais é dada.
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Nesse sentido, verifica-se que o Código de Defesa do Consumidor – CDC deu o
devido tratamento à matéria, adaptando de forma satisfatória o instituto da coisa
julgada à sistemática específica do processo coletivo, e possibilitando, dessa forma,
a concretização da tutela jurisdicional diferenciada no âmbito das ações coletivas.
Antes, porém, de se passar ao tratamento dado pelo CDC à matéria, necessário se faz
tecer alguns comentários sobre a ação coletiva e os direitos coletivos em sentido lato,
o que será realizado no tópico seguinte.
3. A ação coletiva e seus elementos
Conquanto a doutrina divirja a respeito da utilização dos termos ação ou demanda2
com relação à proteção dos direitos coletivos, o que se observa é que pouco importa
a denominação adotada, desde que se defina precisamente quais os elementos que
permitem distinguir as ações coletivas das individuais. Isso porque, dentro da
acepção abstrata de que a ação consiste no direito público subjetivo a uma prestação
jurisdicional, o que permite falar na existência de uma ação coletiva é exatamente a
presença de elementos diferenciadores em relação à ação individual.
Destarte, são elementos que permitem identificar a ação coletiva: a legitimação ativa
para o feito, o objeto da ação e, finalmente, a forma de extensão da autoridade da
coisa julgada (GIDI, 1995, p. 16). Parte da doutrina menciona, ainda, a natureza do
interesse processual dos entes legitimados para agir nas ações coletivas, salientando
que, no caso do Ministério Público, tal interesse seria presumido (MAZZILLI, 2002,
p. 180).
De acordo com aqueles que defendem o interesse processual presumido do Ministério
Público, o legislador, ao prever legitimação para essa instituição postular direitos
coletivos em juízo, teria conferido simultaneamente o interesse de agir. Ocorre que não
se pode dizer que o Ministério Público, simplesmente por se tratar de ente legitimado
à proteção de direitos de natureza metaindividual terá sempre interesse para agir no
feito (LEONEL, 2002, p. 207). Se assim fosse, também no caso das ações penais
propostas por esse órgão haveria de se dizer que o interesse de agir é presumido, o
que, evidentemente, não ocorre. Desse modo, entende-se que o interesse processual
não é tratado de forma diversa nas ações coletivas, haja vista que, tal como se observa
nas ações individuais, deverá o ente legitimado deduzir pretensão que traga, ao final,
alguma utilidade pela prestação jurisdicional efetivada.
Pois bem. Passando ao exame dos elementos diferenciadores da ação coletiva,
verifica-se, inicialmente, que a legitimidade ativa ad causam representa tema
muito controvertido na doutrina e jurisprudência. Por se tratar de tema que não é,
2
Gidi (1995, p. 16) utiliza o termo ação coletiva; em sentido contrário, Braga (2000, p. 42).
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especificamente, objeto deste estudo, cumpre apenas mencionar, em breves linhas, que
a legitimidade para propositura de ações coletivas não é ordinária ou extraordinária,
mas sim autônoma. Isso porque, ao contrário do que ocorre na legitimação ordinária,
o titular do direito coletivo (comunidade, coletividade ou grupo de indivíduos
homogeneamente considerados) não é o legitimado processual a defendê-lo (entidades
previstas em lei). Por outro lado, essa legitimação também não pode ser chamada de
extraordinária, uma vez que o conceito de legitimação extraordinária é relacional, ou
seja, depende da existência de um legitimado ordinário (titular do direito) para defesa
de seu direito, o que não existe nas ações coletivas. Assim, conclui-se que há uma
espécie de legitimação denominada autônoma para se conduzir as ações coletivas, que
parte de premissas específicas do processo coletivo, decorrentes da própria natureza
dos direitos em jogo.
Ainda a respeito da legitimação ativa para o feito nas ações coletivas, assevera-se que
a defesa dos direitos de caráter coletivo é realizada de forma concorrente e disjuntiva:
concorrente porque há legitimação autônoma de uma ou mais entidades para ajuizar a
demanda coletiva; e, disjuntiva, porque tais entidades podem atuar em conjunto ou não
para proteger o interesse de uma coletividade, determinada ou não, em juízo. O objeto
da ação coletiva, por sua vez, identifica-se com o direito coletivamente considerado
sobre o qual versa a ação. Assim, trataram a doutrina e o próprio legislador, conforme
se observa no artigo 81 do CDC, de distinguir três espécies de direitos coletivos3,
quais sejam: difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos.
Os direitos difusos são aqueles oriundos de mesma situação de fato, em razão da qual
determinada comunidade, composta por indivíduos indeterminados e indetermináveis,
torna-se titular de um direito indivisível. Os direitos coletivos em sentido estrito, a seu
turno, não decorrem de situação de fato, mas sim de uma mesma relação jurídica
base, em virtude da qual certa coletividade torna-se titular de um direito também
indivisível. No entanto, ao contrário do que ocorre nos direitos difusos, as pessoas que
compõem a coletividade titular do direito coletivo em sentido estrito, embora sejam
indeterminadas em um primeiro momento, podem ser determinadas posteriormente.
Por fim, os direitos individuais homogêneos correspondem àqueles direitos que,
embora individuais, são tratados coletivamente, em razão da sua origem comum
(mesma causa de pedir). Assim, em função da conveniência de se conferir proteção
coletiva a uma gama de direitos decorrentes de uma mesma origem, tratou a lei de,
artificialmente, criar a espécie direito individual homogêneo, cuja titularidade é
3
Conforme se percebe, optou-se por utilizar, neste trabalho, a expressão direito coletivo, em detrimento de
interesse coletivo. Isso porque, a partir do momento em que se confere proteção aos interesses de caráter
coletivo, mais preciso é denominá-los direitos coletivos, visto que o direito nada mais é que, na lição de
Jhering, “[...] o interesse juridicamente protegido”.
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atribuída a um conjunto de pessoas indivisivelmente consideradas. A respeito de tal
espécie de direito coletivo, é a lição de Gidi (1995, p. 30):
A homogeneidade decorre da circunstância de serem os
direitos individuais provenientes de uma origem comum. Isso
possibilita, na prática, a defesa coletiva de direitos individuais,
porque as peculiaridades inerentes a cada caso concreto são
irrelevantes juridicamente, já que as lides individuais, no que
diz respeito às questões de direito, são muito semelhantes e,
em tese, a decisão deveria ser a mesma em todos e em cada
um dos casos.
Quanto à forma de extensão da autoridade da coisa julgada na ação coletiva, passa-se
a uma análise mais detalhada nos tópicos seguintes.
4. A coisa julgada nas ações coletivas
4.1 Tratamento dado à matéria pelo direito brasileiro
O primeiro passo para se compreender a ampla problemática a respeito das
peculiaridades do instituto da coisa julgada no processo coletivo é conhecer o atual
tratamento dado à matéria no ordenamento jurídico brasileiro. Como correntio,
existem diversas leis no direito brasileiro tratando a respeito das ações coletivas e suas
particularidades, devendo-se registrar, inclusive, entendimento doutrinário no sentido
de que tais leis formam novo ramo do direito processual.4
Entre as leis que versam sobre ações coletivas, destacam-se o CDC e a Lei da Ação
Civil Pública como as principais fontes normativas do processo coletivo, contendo
princípios e regras que, em razão da sua amplitude e finalidade, aplicam-se a todas
as espécies de ações coletivas. É o que se depreende da leitura do art. 21 da Lei nº
7.347/855, acrescentado pela Lei nº 8.078/90, segundo o qual as disposições do CDC
a respeito do processo coletivo aplicam-se à ação civil pública e também às diversas
ações coletivas propostas em defesa de direitos difusos, coletivos em sentido estrito e
individuais homogêneos, constituindo, assim, um microssistema processual coletivo.
4
Nesse sentido, Almeida (2003, p. 17) defende a existência do direito processual coletivo como novo
ramo do direito processual. De acordo o ilustre jurista, “[...] o que se verifica é que hoje já se tornou quase
pacífico, na doutrina de vanguarda nacional e estrangeira, que é impossível tutelar os direitos coletivos
por intermédio das regras do direito processual civil clássico, as quais foram concebidas por uma filosofia
liberal-individualista arraigada, ainda, no século XIX”.
5
“Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuas, no que for cabível,
os dispositivos do Título III da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de Defesa do
Consumidor.”
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No que tange à coisa julgada, a matéria está regulada nos artigos 103 e 104 do CDC,
os quais, para melhor compreensão dos próximos tópicos, transcreve-se a seguir:
Art. 103. Nas ações coletivas de que trata esse Código, a
sentença fará coisa julgada:
I – erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por
insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado
poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendose de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único
do art. 81;
II – ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou
classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos
termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista
no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III – erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido,
para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese
do inciso III do parágrafo único do art. 81.
§ 1º. Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não
prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da
coletividade, do grupo, categoria ou classe.
§ 2º. Na hipótese do inciso III, em caso de improcedência do
pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo
como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título
individual.
§ 3º. Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16,
combinado com o art. 13 da Lei 7.437, de 24 de julho de
1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos
pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma
prevista neste Código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão
as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação
e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.
§ 4º. Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal
condenatória.
Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II do
parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as
ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes
ou ulta partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior
não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for
requerida sua suspensão no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da
ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
Percebe-se, de imediato, uma impropriedade nas disposições dos artigos 103 e 104 do
CDC, haja vista que o legislador misturou, inadvertidamente, os conceitos de efeitos
da sentença e de autoridade da coisa julgada. Os efeitos da sentença referem-se ao
comando nela contido (condenatório, constitutivo ou meramente declaratório), e não
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à produção de coisa julgada. Ademais, por constituir a sentença, segundo Liebman
(1984), uma formulação autoritativa duma vontade de conteúdo imperativo do Estado
em um caso concreto, os seus efeitos são sempre produzidos erga omnes, ou seja, para
todos aqueles sujeitos ao império do Estado.
A coisa julgada, a seu turno, constitui qualidade acidental que adere à sentença, motivo
pelo qual não se pode falar que a sentença faz coisa julgada. Disso se conclui que o
que variará caso a caso, de acordo com o direito coletivo posto em discussão, não
serão os efeitos da sentença, mas sim a extensão subjetiva da imutabilidade que incide
sobre o comando nela contido.
Desse modo, acredita-se que o mais correto seria dizer, no art. 103 do CDC, que
“[...] a extensão da imutabilidade do comando contido na sentença será erga omnes
ou ultra partes”, ao invés de falar que “[...] a sentença fará coisa julgada erga omnes
ou ultra partes”. Feitas essas considerações, denota-se, também, que o legislador
previu forma diferente de extensão da autoridade da coisa julgada para cada espécie
de direito coletivo. Analise-se, então, cada uma dessas formas de extensão dos limites
subjetivos da autoridade da coisa julgada.
4.2 A coisa julgada nos direitos difusos
Em primeiro lugar, deve-se lembrar que a ação coletiva é aquela na qual um ente
legitimado (o Ministério Público, por exemplo) atua em defesa de direito coletivo
pertencente a uma comunidade, coletividade ou grupo de indivíduos indivisivelmente
considerados. No caso dos direitos difusos, há legitimação autônoma de um ente para
atuar em nome de direito indivisível, pertencente a determinada comunidade e oriundo
de mesma situação de fato. Por se tratar de direitos cuja titularidade é atribuída a
determinada comunidade, composta por indivíduos indeterminados e indetermináveis,
estabeleceu o art. 103, I, do CDC que a imutabilidade da coisa julgada eventualmente
formada na ação coletiva em defesa de direitos difusos irá se estender, em regra, erga
omnes.
A expressão erga omnes leva à falsa impressão de que a extensão da autoridade
da coisa julgada irá atingir inúmeras pessoas indistintamente, quando, na verdade,
significa apenas que a comunidade titular do direito lesado é que será afetada pela
coisa julgada formada na ação em que foram partes o ente legitimado autonomamente
para defesa de tal direito e o réu (GIDI, 1995, p. 110). No caso de procedência do
pedido formulado na ação coletiva, não há maiores dúvidas: a autoridade da coisa
julgada estender-se-á à comunidade titular do direito lesado e permitirá que as vítimas
(ou seus sucessores) integrantes dessa comunidade procedam à liquidação e execução
dos danos individualmente sofridos (art. 103, § 3º, do CDC).
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Por outro lado, se julgado improcedente o pedido formulado na ação coletiva, não
só a extensão, como a própria formação da autoridade da coisa julgada far-se-ão de
acordo com o fundamento probatório da decisão transitada em julgada (coisa julgada
secundum eventum probationis). Explica-se: se o pedido for julgado improcedente
e, posteriormente, verificar-se que o julgamento só foi desfavorável ao autor por
insuficiência de provas, dispõe o art. 103, I, do CDC que “[...] qualquer legitimado
poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.
Nessa hipótese, não só a autoridade da coisa julgada formada na primeira ação não
se estenderá erga omnes, como a própria formação da coisa julgada ficará limitada à
prova até então produzida. Assim, poderá qualquer ente legitimado, inclusive aquele
que propôs a ação6, ajuizar nova demanda pleiteando o mesmo direito, porém com
novo fundamento probatório7, sem que isso implique ofensa à coisa julgada formada
na primeira ação coletiva.
Essa coisa julgada de acordo com a prova produzida na ação – ou seja, secundum
eventum probationis – é comumente fundamentada na necessidade de se evitar que
possível colusão entre autor e réu (ou até mesmo do juiz com esses) na ação coletiva
prejudique toda a comunidade titular do direito difuso. Naturalmente, se o direito
discutido em juízo atinge toda uma comunidade, é imprescindível que se tomem
todos os cuidados possíveis para que essa comunidade não seja prejudicada por
erros ou falhas processuais, ainda que despropositados. Assim sendo, denota-se que
o próprio legislador, por meio de juízo prévio de valoração, preteriu o princípio da
verdade formal no caso da extensão da autoridade da coisa julgada secundum eventum
probationis, dando maior ênfase, por conseqüência, à verdade real.
Finalmente, é preciso ressaltar que, em qualquer dessas duas hipóteses de
improcedência, jamais o indivíduo pertencente à comunidade titular de determinado
direito difuso será prejudicado, na esfera individual, pela coisa julgada formada na
ação coletiva (art. 103, § 1º, do CDC). Logo, se o pedido formulado na ação coletiva
for julgado improcedente, impede-se, em razão dos efeitos negativos da coisa julgada,
o ajuizamento de nova ação coletiva. Não há preclusão, porém, acerca da possibilidade
de se propor ação individual com o mesmo fundamento, haja vista que o objeto desta
ação é diverso do daquela.
6
Não há dúvidas de que, se a comunidade titular do direito não é afetada pela coisa julgada, também o
ente legitimado a propor a ação não será. Assim, resta óbvio que o ente legitimado que propôs a primeira
ação poderá propor a segunda, se diante de novas provas. Ademais, se o legislador quisesse impedir que o
mesmo autor da primeira ação coletiva propusesse outra ação com nova prova (o que seria esdrúxulo), teria
dito qualquer outro legitimado, ao invés de qualquer legitimado.
7
Assiste razão a Grinover ao afirmar que se deve restringir “[...] a possibilidade de reabertura do novo processo à hipótese de provas que não existiam à época do primeiro processo, e que, portanto, não poderiam
ter sido produzidas”. Do contrário, estar-se-ia infringindo o “[...] princípio da eficácia preclusiva da coisa
julgada, pela qual se consideram cobertas pela imutabilidade não só as questões levantadas, mas também
aquelas que poderiam ter sido levantadas no processo (art. 474 do CPC)” (GRINOVER, 2004, p. 930).
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4.3 A coisa julgada nos direitos coletivos em sentido estrito
Como mencionado, os direitos coletivos em sentido estrito, ao contrário dos direitos
difusos, não se originam de situação de fato, mas sim de uma mesma relação
jurídica base, em virtude da qual uma coletividade torna-se titular de direito também
indivisível. Contudo, diversamente do que ocorre nos direitos difusos, as pessoas que
compõem a coletividade titular do direito coletivo em sentido estrito, conquanto sejam
indeterminadas em um primeiro momento, podem ser determinadas posteriormente.
Apesar de apresentarem algumas diferenças, os direitos difusos e os direitos coletivos
em sentido estrito possuem núcleo em comum, qual seja, a indivisibilidade, que
permite classificá-los como essencialmente coletivos (GIDI, 1995, p. 25). Em razão
desse núcleo em comum, o tratamento dado à extensão da autoridade da coisa julgada
nos direitos coletivos em sentido estrito em muito se assemelha ao dos direitos difusos.
Dessa maneira, aplica-se aos direitos coletivos em sentido estrito tudo aquilo que
se disse a respeito da extensão da coisa julgada secundum eventum probationis nos
direitos difusos, salientando-se que, ao invés da titularidade do direito pertencer a uma
comunidade, ela pertence a uma coletividade (grupo, categoria ou classe), unida em
virtude da existência de uma mesma relação jurídica base entre seus integrantes.
Observa-se que, ao contrário do que se dispôs em relação aos direitos difusos, o
legislador foi mais preciso ao estabelecer que a extensão da autoridade da coisa julgada
nos direitos coletivos em sentido estrito se faz “[...] ultra partes, mas limitadamente ao
grupo, categoria ou classe” (art. 103, II, do CDC). Isso porque, conforme já observado,
a expressão erga omnes dá lugar a interpretações equivocadas, uma vez que a extensão
da coisa julgada, tanto no caso dos direitos difusos como nos coletivos em sentido
estrito, não se faz a todas as pessoas indistintamente, mas apenas à comunidade ou
à coletividade titular de tais direitos. Nesse sentido, transcreve-se trecho da lição de
Gidi (1995, p. 111), ao comentar os incisos do art. 103 do CDC:
A imutabilidade do comando (coisa julgada) nas ações coletivas
não atinge a todos os seres humanos existentes no planeta, mas
tão só e exclusivamente a comunidade lesada (inc. I), o grupo,
a categoria ou classe lesados (inc. II) e as vítimas lesadas e seus
sucessores (inc. III). Enfim, em uma palavra, da imutabilidade
do comando da sentença coletiva favorável só se beneficiam os
titulares do direito lesado (ação repressiva) ou possivelmente
lesado (ação preventiva). Ninguém mais. Afinal, a estes
pertence a titularidade do direito material invocado na ação
coletiva, como prevê o art. 81 do CDC.
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Por fim, cumpre frisar que, tal como ocorre nos direitos difusos, jamais se admite que
a extensão da coisa julgada prejudique os indivíduos integrantes da coletividade (caso
de improcedência do pedido), permitindo, por conseguinte, que aqueles ajuízem ação
individual em defesa de seus direitos.
4.4. A coisa julgada nos direitos individuais homogêneos
Talvez pelo fato de os direitos individuais homogêneos não serem essencialmente
coletivos, muita polêmica tem sido feita em relação ao tratamento coletivo dado a essa
espécie de direitos. No entanto, a disciplina da extensão da coisa julgada nas ações
coletivas propostas em defesa de tais direitos não oferece maiores dificuldades, como
se demonstrará adiante. Conforme já observado, os direitos individuais homogêneos
não são transindividuais em sua essência, mas sim por ficção jurídica, em função da
utilidade prática de se conferir proteção coletiva a uma gama de direitos decorrentes
de uma mesma origem (mesma causa de pedir).
Buscando dar ampla efetividade a essa tutela coletiva de direitos individuais, o art. 103
do CDC, no seu inciso III, estabeleceu que a extensão da autoridade da coisa julgada
nas ações coletivas em defesa de direitos individuais homogêneos far-se-á erga omnes,
porém apenas no caso de procedência do pedido (extensão da coisa julgada secundum
eventum litis). Da mesma forma que nos direitos difusos, a expressão erga omnes leva
à equivocada impressão de que todos serão afetados pela extensão da coisa julgada,
quando, na realidade, apenas os indivíduos (vítimas e seus sucessores) lesados por
determinada conduta é que serão.
Assim, se julgado procedente o pedido formulado na ação coletiva, todos os indivíduos
(ou seus sucessores) lesados por determinado fato8, serão beneficiados pela extensão
da coisa julgada formada em tal ação, podendo partir diretamente para a fase de
liquidação da sentença e execução dos correlatos direitos individuais. Por outro lado,
se improcedente o pedido, apenas a via coletiva de defesa dos direitos individuais fica
trancada (coisa julgada inter partes), podendo cada indivíduo ajuizar ação (individual)
em defesa de seus direitos.
No entanto, o CDC cuidou de prever que, se o pedido for julgado improcedente
na ação coletiva em que os indivíduos interessados intervirem como litisconsortes,
também eles serão atingidos pela coisa julgada formada nessa ação (art. 103, § 2º,
do CDC). Isso decorre do fato de que, ao contrário do que ocorre nos outros direitos
8 De acordo com Gidi (1995, p. 32), “[...] na caracterização de ‘origem comum’, apenas o aspecto fático
é enfrentado pela doutrina (‘mesma questão de fato’). No entanto, uma mesma questão de direito também
pode ser considerada ‘origem comum’, apta, portanto, para gerar direitos individuais considerados homogêneos”.
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transindividuais (difusos e coletivos em sentido estrito), o objeto da ação coletiva aqui
examinada são direitos individuais, apenas coletivamente considerados, o que permite
que os interessados, titulares desses mesmos direitos individuais, sejam afetados
pela coisa julgada formada na ação coletiva se nela intervirem como assistentes
litisconsorciais (coisa julgada inter partes). Apesar de precisa, a previsão do art. 103,
§ 2º, do CDC é de pouca utilidade prática, uma vez que mais cômodo para o indivíduo
interessado na ação coletiva será aguardar o julgamento dessa ação para, em caso de
improcedência, tentar obter sucesso pela via individual.
Destarte, ainda que se afigure a ratio da disposição, qual seja, permitir que o indivíduo
interessado fiscalize a instrução da ação coletiva, dificilmente esse indivíduo assumirá
o risco de ter uma coisa julgada contra si apenas para fiscalizar tal ação. Ademais,
não se pode olvidar que, apesar de o direito brasileiro ser um dos mais amplamente
equipados em matéria legislativa para proteção dos direitos metaindividuais, a cultura
coletiva ainda está pouco difundida entre os cidadãos brasileiros. Em virtude disso,
entende-se como mais satisfatório o tratamento dado pelo CDC à extensão da coisa
julgada quanto aos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, segundo o qual, nos
casos de improcedência por insuficiência de provas, não há extensão erga omnes ou
ultra partes.
4.5. Fundamentos da extensão da coisa julgada secundum eventum probationis e
secundum eventum litis e controvérsias a respeito do tema
Já se destacou, no tópico 4.3, os argumentos comumente aduzidos pela doutrina
como fundamento da extensão da autoridade da coisa julgada secundum eventum
probationis. Analise-se, agora, a questão de forma mais detalhada, também no que
tange à extensão secundum eventum litis. De acordo com Grinover (2004, p. 906):
O legislador poderia ter legitimamente determinado a extensão
subjetiva do julgado, ultra partes ou erga omnes, sem
qualquer exceção, desde que se tratasse de ações coletivas em
que a adequação da representatividade fosse criteriosamente
aferida. Lembre-se, a esse propósito, de que na common law
a existência da adequacy of representation é analisada caso a
caso pelo juiz, para verificação da fair notice do processo e do
desenvolvimento da defesa da categoria com os necessários
cuidados; além disso, o sistema norte-americano possibilita a
exclusão do processo de quem não deseja submeter-se à coisa
julgada.
No entanto, continua, desaconselhou-se a transposição pura e simples do esquema
norte-americano da coisa julgada à realidade brasileira, em virtude das diferentes
características e condições da sociedade brasileira:
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[...] a deficiência de informação completa e correta, a
ausência de conscientização de enorme parcela da sociedade,
o desconhecimento dos canais de acesso à justiça, a distância
existente entre o povo e o Poder Judiciário, tudo a constituir
gravíssimos entraves para a intervenção de terceiros,
individualmente interessados, nos processos coletivos, e mais
ainda para seu comparecimento a juízo visando à exclusão da
futura coisa julgada (GRINOVER, 2004, p. 907).
Realmente, em um país onde se faz cada vez mais crescente a preocupação em garantir
o efetivo acesso à Justiça, em razão da tímida procura do Judiciário pela população,
desarrazoado seria exigir que aqueles que não queiram submeter-se à autoridade da
coisa julgada no processo coletivo tenham que procurar o Judiciário para manifestarem
tal vontade. Dentro do contexto brasileiro de baixo conhecimento da sociedade como
um todo a respeito de seus direitos e garantias, mais lógico se fez adotar um sistema
segundo o qual a autoridade da coisa julgada na ação coletiva só se estenda à esfera
individual para beneficiar.
Todavia, a adoção de tal sistema no Brasil não é pacífica, argumentando muitos que
essa forma de extensão da autoridade da coisa julgada impõe ônus excessivo ao réu
e possibilita a existência de coisas julgadas contraditórias9. Pois bem. Com relação à
primeira alegação, observa-se que não há, na verdade, ônus excessivo ao réu, porquanto
o objeto da ação coletiva é diverso do da individual. A defesa do réu na ação coletiva
é feita em razão do direito coletivo posto em discussão, e não dos direitos individuais
daqueles que compõem a coletividade, tanto que, se julgada procedente a demanda,
ainda restará aos indivíduos beneficiados pela extensão da coisa julgada a necessidade
de ajuizar processo de liquidação. É a lição irretocável de Grinover (2004, p. 909):
[...] na técnica do Código do Consumidor, a sentença da ação
coletiva, que beneficiará as pretensões individuais, só reconhece
o dever genérico de indenizar, dependendo ainda cada litigante
de um processo de liquidação, e portanto de conhecimento,
em que haverá ampla cognição e completa defesa do réu não
só sobre o quantum debeatur, mas também quanto à própria
existência do dano individual e do nexo etiológico com o
prejuízo globalmente causado (an debeatur).
Percebe-se, portanto, que a imputação de suposto ônus excessivo ao réu, em razão da
necessidade de apresentar defesa na ação coletiva e nas ações individuais, parte da
falsa premissa de que o objeto de tais ações coincide. Ocorre que, como mencionado,
9
Nesse sentido, é o posicionamento de Barbosa Moreira, Vigoriti, Schwab, entre outros.
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os direitos individuais, conquanto relacionados com os direitos coletivos, deles se
diferenciam. É por tal razão que a extensão da autoridade da coisa julgada às ações
individuais só se justifica se for para beneficiar, de forma a não manietar, no caso de
improcedência da demanda coletiva, o direito de cada indivíduo de levar sua pretensão
à apreciação do Judiciário (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 198810).
Ademais, há de se reconhecer que apenas em casos excepcionais as demandas a título
individual teriam alguma chance de êxito se propostas depois de ação coletiva que
foi julgada improcedente, mormente, se for considerado que, pela magnitude da lide
envolvendo o direito coletivo, o réu deve ter concentrado todos os seus esforços na
defesa, o que poderá ser aproveitado nas lides individuais (GRINOVER, 2004, p. 908).
Além disso: “Em caso [...] da excepcional possibilidade de haver ações individuais
procedentes, fica definitivamente comprovada a necessidade de adoção da extensão
a terceiros da coisa julgada secundum eventum litis, apenas in utilibus, da disciplina
jurídica das ações coletivas” (GIDI, 1995, p. 67).
Quanto à possibilidade de existência de coisas julgadas contraditórias, deve-se
ressaltar, em primeiro lugar, que tal possibilidade não se verifica, de forma alguma,
na hipótese de duas ações coletivas, porquanto, julgado improcedente o pedido
formulado em uma ação coletiva, essa via resta preclusa. Observe-se que apenas em
caso de improcedência por insuficiência de provas é que se poderá ajuizar nova ação
coletiva, todavia, nesse caso, já se demonstrou que a possibilidade de reabertura do
novo processo fica restrita à hipótese de provas que não existiam à época do primeiro
processo, de modo a não infringir o princípio da eficácia preclusiva da coisa julgada.
Por se tratar do confronto entre ação coletiva e ação individual, discute exaustivamente
a doutrina a respeito da possibilidade de existência de comandos contraditórios. No
entanto, é impossível que haja contradição entre tais comandos, uma vez que, conforme
salientado diversas vezes, o direito material discutido em cada uma dessas ações é
diverso. Dessa maneira, a coisa julgada formada na ação coletiva refere-se apenas à
comunidade, coletividade ou grupo de indivíduos homogeneamente considerados cujo
direito coletivo tenha sido pleiteado. As pessoas individualmente lesadas, por sua vez,
não são, na verdade, atingidas pela simples formação da coisa julgada na ação coletiva,
porquanto não são partes nessa demanda, salvo se intervierem como litisconsortes
(art. 103, § 2º, do CDC). O que prevê o CDC, e com toda a razão, é a extensão da
coisa julgada na ação coletiva para beneficiar os indivíduos da coletividade, de forma
a evitar que o Judiciário se abarrote com inúmeras ações individuais com o mesmo
objeto.
Nesse sentido, repare-se que o artigo 104 do CDC não afasta a possibilidade de uma
10
“Art. 5º. [...] XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
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ação coletiva ter julgamento diverso do de uma ação individual. O que estabelece
referido artigo é que a extensão da coisa julgada na ação coletiva somente far-seá em benefício dos autores da ação individual se for requerida a suspensão desta
ação no prazo de 30 (trinta) dias. Caso contrário, prosseguirão normalmente ambas
as ações, ou seja, com a possibilidade de julgamentos em sentidos opostos, sem que
isso implique, em razão da distinção entre direito individual e coletivo, existência de
conflito de coisa julgada. Assim, o artigo 104 do CDC arremata, com toda precisão,
que a autoridade da coisa julgada na ação coletiva não se estende em benefício do
autor da ação individual que não requereu a suspensão do seu processo no prazo
legal, evitando, por conseguinte, que haja confronto entre a coisa julgada de cada uma
dessas ações.
Gonçalves (1995, p. 73), em estudo sobre o tema, defende que o CDC adotou posição
peculiar a respeito do conceito de parte, uma vez que, segundo o doutrinador, os
destinatários da prestação jurisdicional, na ação coletiva, não são aqueles que nela
participam, mas sim os indivíduos beneficiados pelo julgamento. Trazendo tal
entendimento para a análise da possibilidade de conflito de coisa julgada nas ações
coletiva e individual, assevera o renomado processualista que:
O conflito entre a coisa julgada na ação coletiva e na ação
individual foi afastado pela própria lei, que deu às expressões
erga omnes e ultra partes, conotação peculiar, porque peculiar
foi a concepção de parte que acolheu.
Como, na ação coletiva, a lei considerou como ‘partes’ o
legitimado e o réu, os destinatários do provimento apareceram
como meros beneficiados, aos quais se alongavam os efeitos
da sentença.
Contudo, em que pesem os argumentos acima expostos, o que se observa é que eles
se baseiam no equivocado pressuposto de que, na ação coletiva, o ente legitimado
para atuar em juízo defende direito individual, quando, na verdade, o que tal ente se
propõe a defender é o direito de uma comunidade, coletividade ou grupo de indivíduos
homogeneamente considerados. É por tal razão que se faz necessário estender a coisa
julgada erga omnes ou ultra partes, ou seja, exatamente para atingir os indivíduos que
não foram partes na ação coletiva.
Por esse motivo, entende-se que a tese anteriormente defendida, de que não há
conflito entre coisa julgada na ação coletiva e na ação individual por se tratar de
ações com objetos diversos (e não por o CDC ter acolhido posição peculiar sobre o
conceito de parte), é mais consentânea com a posição adotada pela lei brasileira e,
conseqüentemente, com toda a sistemática do processo coletivo. Finalmente, cumpre
responder à crítica realizada por Leal (1998, p. 210). De acordo com o mestre, o
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argumento da doutrina para fundamentar a extensão da coisa julgada secundum
eventum litis é paradoxal, visto que:
Por um lado, faz-se um libelo contra o processo individual, com
argumento de acesso à Justiça e pregando-se a necessidade de
se superarem as barreiras tradicionais impostas pela cláusula
do devido processo legal, com o princípio do contraditório
incluído. Quando se percebe que o pedido na ação coletiva
pode ser improcedente, recorre-se aos mesmos argumentos que
no primeiro momento rechaçaram: os princípios do processo
civil clássico (contraditório, ampla defesa, etc).
Ora, ou se permite a extensão da coisa julgada, em função da
adequada representatividade, ou se procuram outros argumentos
para justificar o regime secundum eventum litis, pois na forma
em que está a doutrina, há uma evidente antinomia teórica
Conquanto a crítica aparente, em um primeiro momento, ser irrespondível, basta
refletir para concluir que se partiu de uma falsa premissa, ou seja, de que no regime
adotado pelo CDC há escolha de um ente legitimado para representar adequadamente
a comunidade, coletividade ou grupo de indivíduos homogeneamente considerados.
Ocorre que não há, em momento algum, no sistema brasileiro, a emissão de juízo
de valor, seja pelo juiz ou pelo legislador, a respeito do fato de o ente legitimado ser
ou não adequado representante da coletividade titular do direito transindividual. O
que a lei fez, de fato, foi arrolar quais entidades estão legitimadas, em tese, a propor
ação coletiva, em virtude da inexistência de legitimado ordinário ou extraordinário
para postular direitos coletivos em juízo. Assim, impediu-se que a defesa em juízo
de direitos coletivos se transformasse em verdadeira chicana, na qual qualquer um
poderia demandar em nome de um direito transindividual qualquer.
No entanto, não houve, como ocorre no direito norte-americano, a atribuição, ao juiz ou
a qualquer órgão, do dever de verificar, caso a caso, se tais entidades legitimadas pela
lei representam ou não a coletividade titular do direito de forma adequada. Destarte,
em face da inexistência, no direito brasileiro, de controle por parte do Judiciário da
adequada representatividade, imperioso se fez considerar que a extensão da coisa
julgada formada na ação coletiva não deve ser realizada nos casos de improcedência
do pedido, de forma a impedir que uma má-representação prejudique centenas,
milhares ou até milhões de indivíduos.
A opção do legislador brasileiro, na verdade, foi a mais precisa possível, visto que
levou em consideração todas as características peculiares da sociedade brasileira e
não incorreu naquele erro tão freqüente na nossa história, de simples transposição de
um sistema adotado em outro país para o nosso, acreditando piamente que a solução
adotada em outro lugar possa servir aqui sem qualquer modificação. É verdade que
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o direito comparado tem sua razão de ser, e, muitas vezes, é possível adaptar ou até
mesmo utilizar regime legal adotado em outro país como exemplo. Todavia, parece
que o legislador brasileiro agiu com inegável acerto ao não transpor a disciplina de
extensão da coisa julgada nas ações coletivas do direito norte-americano para o nosso,
pois, afinal:
[...] não se nos afigura adequada à nossa realidade a disciplina
norte-americana. Tanto cultural como economicamente
vulnerável, a situação do nosso país não seria um terreno
propício para essa disciplina. Também não parece ser superior
à nossa, tal solução. Poder-se-ia mesmo afirmar que a solução
adotada pelo Código pátrio servirá de parâmetro para todas as
nações que se preocupam com o tema (GIDI, 1995, p. 72).
Em síntese, entende-se como justificável e acertado o modelo adotado pelo CDC
referente à extensão da autoridade da coisa julgada nas ações coletivas às ações
individuais, concluindo-se que as críticas comumente realizadas a tal sistema decorrem
de errônea interpretação e percepção das regras elaboradas pelo legislador brasileiro.
5. Conclusão
De tudo quanto foi exposto, parece inarredável a observação de que a coisa julgada
é vista sob nova ótica no processo coletivo, adaptada à necessidade de se conferir
adequado e específico tratamento aos direitos de natureza metaindividual. Conforme
se pôde perceber ao longo deste trabalho, o instituto da coisa julgada, principalmente
no que tange aos seus limites subjetivos, foi modificado para melhor eficácia da tutela
dos direitos coletivos.
Embora tal adaptação seja pacífica, o que se verifica é que a maioria dos equívocos
daqueles que estudam o tema decorre exatamente do indevido vínculo com a
sistemática adotada pelo processo civil no tratamento dos direitos individuais. Ocorre
que a extensão da autoridade da coisa julgada nas ações coletivas é, senão o mais
importante, um dos mais fundamentais institutos para que ocorra a pacificação social
de forma potencializada ou coletiva, o que não permite que ocorram os tão freqüentes
equívocos aqui apontados.
Acredita-se, assim, que, ao se colocar corretamente as premissas e os pressupostos
necessários para melhor análise do instituto, possível será que não se realizem os erros
comumente cometidos pelos doutrinadores e aplicadores do direito em geral. Somente
assim é que se possibilitará que a aplicação das regras de extensão da coisa julgada
erga omnes e ultra partes concretize a finalidade perseguida pela lei, qual seja, a
efetivação dos direitos coletivos.
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2. JURISPRUDÊNCIA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL
1o Acórdão.
EMENTA: I. Recurso extraordinário: descabimento: controvérsia sobre validade de
cláusula de acordo coletivo de trabalho decidida à luz de legislação infraconstitucional
pertinente, de reexame inviável no RE. II. Acordo coletivo de trabalho: o artigo 7º,
XXVI, da Constituição Federal, não elide a declaração de nulidade de cláusula de
acordo coletivo de trabalho à luz da legislação ordinária. III. Recurso extraordinário:
inadmissibilidade: alegações improcedentes de negativa de prestação jurisdicional de
violação dos princípios compreendidos no artigo 5º, incisos XXXV, XXXVI e LIV, da
Constituição Federal. IV. Agravo regimental manifestamente infundado: condenação
da agravante ao pagamento de multa, nos termos do art. 557, § 2º, C.Pr.Civil. (STF, 1a
Turma, AI-AGR 617006/MG, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Julgamento 02/03/2007,
DJ 23/03/2007).
2o Acórdão.
EMENTAS: 1. CRIME. Genocídio. Definição legal. Bem jurídico protegido. Tutela
penal da existência do grupo racial, étnico, nacional ou religioso, a que pertence
a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Delito de caráter coletivo ou
transindividual. Crime contra a diversidade humana como tal. Consumação mediante
ações que, lesivas à vida, integridade física, liberdade de locomoção e a outros bens
jurídicos individuais, constituem modalidade executórias. Inteligência do art. 1º da Lei
nº 2.889/56, e do art. 2º da Convenção contra o Genocídio, ratificada pelo Decreto nº
30.822/52. O tipo penal do delito de genocídio protege, em todas as suas modalidades,
bem jurídico coletivo ou transindividual, figurado na existência do grupo racial, étnico
ou religioso, a qual é posta em risco por ações que podem também ser ofensivas a bens
jurídicos individuais, como o direito à vida, a integridade física ou mental, a liberdade
de locomoção etc.. 2. CONCURSO DE CRIMES. Genocídio. Crime unitário. Delito
praticado mediante execução de doze homicídios como crime continuado. Concurso
aparente de normas. Não caracterização. Caso de concurso formal. Penas cumulativas.
Ações criminosas resultantes de desígnios autônomos. Submissão teórica ao art. 70,
caput, segunda parte, do Código Penal. Condenação dos réus apenas pelo delito de
genocídio. Recurso exclusivo da defesa. Impossibilidade de reformatio in peius.
Não podem os réus, que cometeram, em concurso formal, na execução do delito de
genocídio, doze homicídios, receber a pena destes além da pena daquele, no âmbito
de recurso exclusivo da defesa. 3. COMPETÊNCIA CRIMINAL. Ação penal.
Conexão. Concurso formal entre genocídio e homicídios dolosos agravados. Feito da
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competência da Justiça Federal. Julgamento cometido, em tese, ao tribunal do júri.
Inteligência do art. 5º, XXXVIII, da CF, e art. 78, I, cc. art. 74, § 1º, do Código
de Processo Penal. Condenação exclusiva pelo delito de genocídio, no juízo federal
monocrático. Recurso exclusivo da defesa. Improvimento. Compete ao tribunal do júri
da Justiça Federal julgar os delitos de genocídio e de homicídio ou homicídios dolosos
que constituíram modalidade de sua execução. (STF, Tribunal Pleno, RE 351487/RR,
Rel. Min. Cezar Peluso, Julgamento 03/08/2006, DJ 10/11/2006).
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1o Acórdão.
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
RESSARCIMENTO À UNIÃO DE VALORES INDEVIDAMENTE RECEBIDOS
DO FUNDO DE INDENIZAÇÃO DO TRABALHADOR PORTUÁRIO AVULSO
(FITP). REPETIÇÃO DO INDÉBITO. CONFLITO DE CARÁTER TRIBUTÁRIO.
INTERESSE SECUNDÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO. ILEGITIMIDADE ATIVA
AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIVERGÊNCIA NÃO
DEMONSTRADA. 1. O Ministério Público Federal não ostenta legitimidade ativa ad
causam para ajuizar ação civil pública objetivando o ressarcimento, em favor da
União, de valor indevidamente recebido por trabalhador portuário avulso, oriunda do
Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - FITP, porquanto a sua
atuação, in casu, não denota defesa do erário, ao revés, revela repetição do indébito,
ora rotulada de ação civil pública, em nome da União, que, inclusive, dispõe de
Procuradoria para fazê-lo.Precedente desta Corte: Resp 799.883/RS, desta relatoria,
DJ de 04.06.2007. 2. Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em
face de trabalhador portuário, objetivando o ressarcimento, em favor da União, de
valores indevidamente recebidos pelo réu, a título de indenização pelo cancelamento
de registro de trabalhador portuário avulso, ao fundamento de que a Lei nº 8.630/93,
concretizando projeto de modernização dos portos, estabeleceu a obrigatoriedade de
os trabalhadores portuários avulsos estarem registrados junto ao Órgão Gestor de
Mão-de-Obra-OGMO, constituído pelos operadores portuários, mediante o
cumprimento de determinadas condições, que o réu, por já gozar do benefício da
aposentadoria, não preenchia e, via de conseqüência, não fazia jus à referida
indenização. 3. Deveras, mercê de o Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário
Avulso - AITP configurar receita da União, resta equivocada, com a devida vênia, a
sua inserção na categoria de patrimônio público federal, utilizada pelo Parquet como
fator legitimador para o aforamento da ação civil pública em baila. É que o patrimônio
público se perfaz de bens que pertencem a toda coletividade, não individualizáveis, e
que não sofrem distinção pertinente a eventuais direitos subjetivos, como por exemplo,
imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico-Cultural. Daí, inviável se considerar
receita da União como patrimônio público federal, na medida em que o seu
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ressarcimento não denota interesse metaindividual relevante, mas sim do próprio ente
público. Nesse sentido é doutrina pátria: “(...)A ação civil pública é instrumento de
defesa dos interesses sociais, categoria que compreende o interesse de preservação do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos, expressões que, na lição de Miguel Reale (Questões de Direito Público, São
Paulo: Saraiva, 1997, p. 132). “compõem uma díade incindível”, enquanto bens
pertencentes a toda a comunidade, “a todos e a cada um, como um bem comum, não
individualizável, isto é, sem haver possibilidade de distinção formal individualizadora
em termos de direitos subjetivos ou situações jurídicas subjetivas”. (Ilmar Galvão, A
ação civil pública e o Ministério Público, in Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública,
São Paulo, Arnoldo Wald, 2003, p. 2002.) 4. Consectariamente, a rubrica receita da
União caracteriza-se como interesse secundário da Administração, o qual não gravita
na órbita dos interesses públicos (interesse primário da Administração), e, por isso,
não guarnecido pela via da ação civil pública, consoante assente em sede doutrinária:
“(...)Um segundo limite é o que se estabelece a partir da distinção entre interesse
social (ou interesse público) e interesse da Administração Pública. Embora a atividade
administrativa tenha como objetivo próprio o de concretizar o interesse público, é
certo que não se pode confundir tal interesse com o de eventuais interesses próprios
das entidades públicas. Daí a classificação doutrinária que distingue os interesses
primários da Administração (que são os interesses públicos, sociais, da coletividade)
e os seus interesses secundários (que se limitam à esfera interna do ente estatal).
“Assim”, escreveu Celso Antônio Bandeira de Mello, “independentemente do fato de
ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto
as demais pessoas, interesses que lhes são particulares, individuais, e que, tal como os
interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado
enquanto pessoas. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais
do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer
sujeito”. Nessa linha distintiva, fica claro que a Administração, nas suas funções
institucionais, atua em representação de interesses sociais e, eventualmente, de
interesses exclusivamente seus. Portanto, embora com vasto campo de identificação,
não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse da Administração.
Pode-se afirmar, utilizando a classificação de Engisch, que interesse social encerra
conceito jurídico indeterminado (porque o seu “conteúdo e extensão são em larga
medida incertos”) e normativo (porque “carecido de um preenchimento valorativo”),
e sua função “em boa parte é justamente permanecerem abertos às mudanças das
valorações”. Conforme observou o Ministro Sepúlveda Pertence, em voto proferido
no Supremo Tribunal Federal, “é preciso ter em conta que o interesse social não é um
conceito axiologicamente neutro, mas, ao contrário - e dado o permanente conflito de
interesses parciais inerente à vida em sociedade - é idéia carregada de ideologia e
valor, por isso, relativa e condicionada ao tempo e ao espaço em que se deva afirmar”.
É natural, portanto, que os interesses sociais não comportem definições de caráter
genérico com significação unívoca. Como demonstrou J. J. Calmon de Passos, “a
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individualização do interesse público não ocorre, de uma vez por todas, em um só
momento, mas deriva da constante combinação de diversas influências, algumas das
quais provêm da experiência passada, enquanto outras nascem da escolha que cada
operador jurídico singular cumpre, hic et nunc, no exercício da função que lhe foi
atribuída. Assim, a atividade para individualização dos interesses públicos é uma
atividade de interpretação de atos e fatos e normas jurídicas (recepção dos interesses
públicos fixados no curso da experiência jurídica anterior) e em parte é uma valoração
direta da realidade pelo operador jurídico, atendidos os pressupostos ideológicos e
sociais que o informam e à sociedade em que vive, submetidos à ação dos fatos novos,
capazes de modificar juízos anteriormente irreversíveis” . Genericamente, como
Calmon de Passos, pode-se definir interesse público ou interesse social o “interesse
cuja tutela, no âmbito de um determinado ordenamento jurídico, é julgada como
oportuna para o progresso material e moral da sociedade a cujo ordenamento jurídico
corresponde”. A Constituição identifica claramente vários exemplares dessa categoria
de interesses, como, por exemplo, a preservação do patrimônio público e da moral
idade administrativa, cuja defesa pode ser exercida inclusive pelos próprios cidadãos,
mediante ação popular (CF, art. 5.°, LXXIII), o exercício probo da administração
pública, que sujeita seus infratores a sanções de variada natureza, penal, civil, e
política (CF, art. 37, § 4.º), e a manutenção da ordem econômica, que “tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (CF, art.
170). São interesses, não apenas das pessoas de direito público, mas de todo o corpo
social, de toda a comunidade, da própria sociedade como ente coletivo. (ZAVASKI,
Teori Albino, Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de
Direitos, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 52-54.) 5. A Procuradoria da
Fazenda Nacional, no seu mister, detém atribuições legalmente instituídas que, acaso
não observadas, importa em procedimento administrativo na órbita funcional, e até
criminal. Descabida, portanto, a atuação do Ministério Público Federal, in casu, na
defesa de interesse da União, juridicamente acautelado por órgão próprio. 6. Gravitando
a demanda em torno de tema de natureza tributária, há que se aplicar o art. 1º, parágrafo
único, da Lei da Lei 7.347/85, com redação conferida pela Lei 8.884/94, consoante os
precedentes da Suprema Corte e deste STJ (AgRg no RExt 248.191 - 2 - SP, Relator
Ministro CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, DJ de 25 de outubro de 2.002 e REsp
845.034 - DF, Relator Ministro José Delgado, Primeira Seção Seção, julgado em 14
de fevereiro de 2.007), os quais assentam a ilegitimidade ativa ad causam do Ministério
Público para impugnar a cobrança de tributos ou pleitear a sua restituição. 7. A
admissão do Recurso Especial pela alínea “c” exige a demonstração do dissídio na
forma prevista pelo RISTJ, com a demonstração das circunstâncias que assemelham
os casos confrontados, não bastando, para tanto, a simples transcrição das ementas
dos paradigmas. 8. In casu, o acórdão recorrido cingiu-se à ilegitimidade ativa ad
causam do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública, objetivando o
ressarcimento, em favor da União, de valor indevidamente recebido por trabalhador
portuário avulso, oriunda do Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso
- FITP e os paradigmas colacionados, ao revés, tratam de forma ampla e genérica o
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cabimento de ação civil pública objetivando a defesa do patrimônio público. 9.
Recurso especial desprovido. (STJ, RESP 799841/RS, 1a Turma, Rel. Min. Luiz Fux,
Julgamento 18/10/2007, DJ 08/11/2007, p. 169).
2o Acórdão.
EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE.
INTERESSE
HOMOGÊNEO.
PRECEDENTES.
ESTUDANTES
DE
ESCOLAS TÉCNICAS E DA ZONA RURAL. TRANSPORTE. DESCONTO.
RESPONSABILIDADE
FINANCEIRA
DO
DISTRITO
FEDERAL.
LITISCONSÓRCIO. NECESSIDADE. ANULAÇÃO. DEVOLUÇÃO À ORIGEM.
PROVIDÊNCIA DO ARTIGO 47 DO CPC. I - Ação civil pública movida pelo Ministério
Público, na qual se pretende assegurar a isenção ou redução de tarifas no transporte
coletivo para os alunos matriculados nas escolas técnicas e profissionalizantes, bem
como aos residentes no meio rural, cuja legitimidade ativa se verifica, tendo em conta
a atribuição constitucional do Parquet na defesa dos interesses sociais e individuais
indisponíveis. Precedentes: REsp nº 610.235/DF, Rel. Min. DENISE ARRUDA, DJ
de 23/04/07, REsp nº 684.712/DF, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, DJ de 23/11/06, REsp
nº 851.174/RS, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ de 20/11/06. II - O benefício pretendido
pela demanda principal está diretamente relacionado ao repasse de verbas, conforme
legislação de regência, questão de encargo do Poder Público, no que o Distrito Federal
deve integrar a lide na qualidade de litisconsórcio passivo necessário, em razão de
sua responsabilidade financeira especificada pelo próprio decisum. Afronta ao artigo
47 do CPC, com a anulação do processo a partir do momento em que a citação do
litisconsorte passivo deveria ter sido feita, e o retorno dos autos à origem para que seja
sanado o vício. III - Recurso parcialmente provido. (STJ, RESP 926161/DF, 1a Turma,
Rel. Min. Francisco Falcão, Julgamento 04/10/2007, DJ 12/11/2007, p. 183).
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS
GERAIS
1o Acórdão.
EMENTA: AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS - ACIDENTE DE TRÂNSITO TRANSPORTE COLETIVO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - REDUÇÃO DA
CAPACIDADE LABORATIVA- PENSÃO MENSAL - DANO MORALARBITRADO
EM REAIS - VERBA HONORÁRIA CALCULADA SOBRE PARCELAS
VENCIDAS E VINCENDAS - TERMO INICIAL DO PENSIONAMENTO A
PARTIR DA CITAÇÃO INICIAL DA CONCESSIONÁRIA DE TRANSPORTE
COLETIVO - SEGURADORA DESOBRIGADA DO REEMBOLSO - SEGURADO
TEM OBRIGAÇÃO DE IDENTIFICAR VEÍCULO ACOBERTADO POR
SEGURO E CAUSADOR DE ACIDENTE. O transporte coletivo municipal há de
ser prestado com segurança plena, de forma a evitar a queda de pessoas ou lesões
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que decorram da má condução do veículo. Pelo princípio da teoria objetiva da culpa,
aplicável ao transporte de pessoas, ocorrendo acidente em ônibus, presume-se a culpa
do transportador e a este compete comprovar a inocorrência de culpa de sua parte.
Aquele que sofre lesão em sua integridade física capaz de reduzir o valor de seu
trabalho, faz jus ao recebimento de pensão vitalícia. A moderação nos critérios, a
justa compensação e o caráter pedagógico constituem pilares para estabelecimento do
quantum indenizatório a título de danos morais. A lesão à integridade física configura
o dano moral indenizável. As balizas para arbitramento do dano moral devem levar em
conta a dor da vítima, a possibilidade de restabelecimento e o resultado pós-acidente
para fins profissionais e sociais. A indenização por dano moral deve ser arbitrada em
quantia certa e que compense a dor sofrida em razão da invalidez experimentada pela
pessoa natural. O termo inicial para a indenização é a data de citação da concessionária
de transporte coletivo. A verba honorária há de ser calculada sobre parcelas vencidas
e vincendas. É obrigação do segurado identificar, na listagem fornecida ao tempo da
contratação do seguro,o veículo causador de acidente. A não indicação expressa do
ônibus em que viajava a passageira acidentada desonera a seguradora da cobertura
securitária.. (TJMG, Processo 1.0702.99.020170-0/001, Relator José Antônio Braga,
Julgamento 14/03/2006, Publicação 29/04/2006).
2o Acórdão.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - PLANO DE SAÚDE DE AUTO GESTÃO CONTRATO COLETIVO - DESCONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO TRABALHISTA
COM A EMPRESA CONTRATANTE - MANUTENÇÃO DA CONDIÇÃO DE
SEGURADO - PERÍODO - INELIGÊNCIA DO ART 30 CAPUT E § 1º. DA Lei
9.656/98. O vínculo do usuário e de seus dependentes com a operadora ou seguradora
subsiste ao desfazimento da relação de emprego entre o segurado e a empresa
contratante do seguro coletivo de saúde, com a manutenção da condição de beneficiário
pelo período previsto no § 1º, art. 30, da Lei 9.656/98. Após o período de manutenção
do empregado demitido por justa causa como usuário de plano de saúde coletivo,
nas mesmas condições de que gozava, quando da vigência do contrato de trabalho, o
usuário que pretender continuar no plano deverá negociar novas condições, inclusive
de preço, tendo em vista que passará à qualidade de contratante individual. Cabe à
pessoa jurídica que requer os benefícios da Assistência Judiciária a prova robusta e
efetiva de sua hipossuficiência, que demonstre a atual situação e a impossibilidade
da empresa, ainda que sem fins lucrativos, de arcar com os encargos decorrentes da
demanda. V.v. Consoante a estrutura já formada no País, com a instituição da justiça
paga, considerando que esta remunera também verba honorária sucumbencial, há
que se deferir justiça gratuita à pessoa jurídica via de simples declaração lançada no
corpo da inicial, prerrogativa que não outorgada unicamente à pessoa física. (TJMG,
Processo 1.0713.05.055446-6/002, Relatora Hilda Teixeira Da Costa, Julgamento
01/02/2007, Publicação 23/03/2007).
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3. COMENTÁRIOS À JURISPRUDÊNCIA
3.1. INCONSTITUCIONALIDADE DE GRATIFICAÇÃO A PRESIDENTE
DE CÂMARA DE VEREADORES
MARCUS PAULO QUEIROZ MACÊDO
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais
Relator do Acórdão: ERNANE FIDÉLIS
Data do Julgamento: 12.09.2006
Data da Publicação: 29.09.2006
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS APELAÇÃO
CÍVEL Nº 1.0040.05.029471-5/001
EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. GRATIFICAÇÃO INDEVIDA DE
PRESIDENTE DA CÂMARA. FALTA DE CAPACIDADE PROCESSUAL DO
ÓRGÃO LEGISLATIVO. LEGITIMIDADE DO MP. PROPRIEDADE DA AÇÃO.
ILEGALIDADE E NÃO INCONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO QUE
CRIOU A GRATIFICAÇÃO INDEVIDA. - Se institui gratificação a presidente de
câmara, além dos limites permitidos na lei, a resolução respectiva é ilegal, sendo nulo
o ato legislativo que assim o prevê. A ação civil pública é meio hábil a coibir o abuso
e o MP é parte legítima para a proposição, bem como a pleitear o ressarcimento dos
danos. Se não há expressa negativa da norma constitucional, mas, simplesmente, sua
desobediência, há ilegalidade e não inconstitucionalidade de ato legislativo. É ilegal
todo e qualquer aumento para vereadores que ultrapasse o mínimo permitido pela
lei, nos parâmetros estabelecidos conforme os vencimentos do deputado estadual.
A Câmara de Vereadores não tem capacidade processual para representação do
Município e dele fazendo parte, seus atos são da própria entidade municipal que se
representa pelo Prefeito, tão somente.
APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0040.05.029471-5/001 - COMARCA DE ARAXÁ
- APELANTE(S): CÂMARA MUNICIPAL DE TAPIRA E OUTRO(A)(S) APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
- RELATOR: EXMO. SR. DES. ERNANE FIDÉLIS
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 6ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da
ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM NEGAR
PROVIMENTO.
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Belo Horizonte, 12 de setembro de 2006.
DES. ERNANE FIDÉLIS - Relator
NOTAS TAQUIGRÁFICAS:
O SR. DES. ERNANE FIDÉLIS:
VOTO
REEXAME NECESSÁRIO
A hipótese reclama reexame necessário, porque, de qualquer forma, houve decisão
contra o Município. Neste caso, como não há restrição por valor certo, reclama-se o
pronunciamento da segunda instância, para nova análise das questões.
De qualquer forma, deve-se observar que não apenas o Autor, como também o d.
Sentenciante se equivocaram em aceitar a legitimidade da Câmara de Vereadores,
pois, mormente quando não se trata de julgamento de pretensão de um órgão contra
o outro, apenas o Município é que a pessoa jurídica apta a responder por qualquer
pedido que se faça contra ele, ainda que diga respeito ao Poder Legislativo. Neste
caso, respondendo o Município, a representação passiva, na hipótese, é apenas do
Prefeito Municipal (art.12, II, do CPC).
Não há dúvida de que completamente absurda foi a integração da Câmara Municipal
no processo, o que, por si só, obrigaria ao não reconhecimento do recurso interposto,
sendo de se considerar até herética a preliminar levantada, de que todos os vereadores
deveriam ser citados.
Quanto à legitimidade do MP, para promover a ação civil pública, não há a menor
dúvida de que vencimentos a maior pagos a representantes de poderes se constituem
em danos patrimoniais de interesse coletivo (art. 1º, c.c. inc. IV, da Lei 7.347/85),
pois, toda a coletividade é afetada pela infração legal. Daí ser própria a ação civil
pública, para impedir efeitos de resoluções que venham a afetar a própria legislação,
causando prejuízo ao Erário, bem como, se, em razão da execução da lei, já ocorreu
algum dano patrimonial, justo que haja o respectivo ressarcimento por quem dele se
beneficiou.
Os pedidos da ação pública estão corretos e sem nenhuma incompatibilidade, já que
a devolução do recebido indevidamente conjuga-se perfeitamente com a proibição de
continuação da prática da ilegalidade.
Falou-se, nestes autos, em declaração incidental de inconstitucionalidade, o que, em
verdade, peca contra a própria natureza da questão. Inconstitucional seria a disposição
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legislativa que viesse de encontro direto contra norma constitucional, ou seu princípio
básico, não a que deixasse de atender, na execução de qualquer ato legislativo ou
administrativo mesmo, o disposto na Constituição. Em outras palavras, a Resolução
atacada não está, em suma, afrontando o dispositivo constitucional, de forma até a têlo por ineficaz, mas está, simplesmente, não atendendo o disposto na lei. A questão é
de ilegalidade não de inconstitucionalidade.
Se a lei, claramente, seja norma constitucional ou não, estabelece a proporção dos
vencimentos do vereador, tendo como parâmetro os do deputado, qualquer gratificação
extra, inclusive para os membros da Mesa Diretora, é ilegal, não podendo prevalecer a
hipótese legislativa que preveja.
Não restando, pois, dúvidas sobre a ilegalidade da Resolução municipal que não atende
o determinado na lei, sem negar-lhe, porém, a vigência, NEGO PROVIMENTO ao
recurso, julgando prejudicado o voluntário, não apenas pela confirmação da sentença,
mas também por completa falta de capacidade processual da Recorrente.
Custas pelo Município de Tapira.
É o meu voto.
Votaram de acordo com o(a) Relator(a) os Desembargador(es): EDILSON
FERNANDES e MAURÍCIO BARROS.
SÚMULA : NEGARAM PROVIMENTO.
Comentários
1. Introdução
Trata-se de acórdão proferido em virtude da apelação interposta contra a sentença
que acolheu integralmente os pedidos constantes em ação civil pública proposta
pela Curadoria de Defesa do Patrimônio Público da Comarca de Araxá, em face do
Município de Tapira, da Câmara de Vereadores de Tapira e de ex-presidentes daquela
Casa Legislativa, na qual se pleiteou a constituição de obrigação de não fazer a essa
Edilidade, consistente em determinar à mesma que não pagasse acréscimos aos seus
presidentes em virtude do exercício de tal função de direção, no que ultrapassasse os
limites previstos no artigo 29, inciso VI, da Constituição da República, cumulandose, na referida ação coletiva, pedido de reparação de danos, com a determinação de
ressarcimento ao erário tapirense dos valores a maior, indevidamente amealhados
pelos agentes públicos em questão. Está-se diante de precedente jurisdicional de suma
importância, pelos aspectos que se verá a seguir, tanto no tangente às preliminares
analisadas, quanto à questão de mérito, que tem uma dimensão bem maior do que se
pode imaginar numa análise superficial.
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2. Das preliminares
O acórdão retrotranscrito reafirma, uma vez mais, a legitimidade do Ministério Público
para a defesa do Patrimônio Público, inclusive no tocante à possibilidade de intentar
ações reparatórias. Com efeito, dúvida não há acerca de ser uma das atribuições do
Parquet a de proteger o Patrimônio Público, até por expressa dicção do artigo 129,
inciso III, da Constituição da República.
Contudo, há certa restrição doutrinária, também encontrada em alguns julgados,
quanto à possibilidade dessa instituição promover ações ressarcitórias, as quais seriam
de iniciativa exclusiva do ente público lesado. Porém, o que ocorreria quando ele se
omitisse ou na hipótese em que o próprio ente tivesse emitido o ato questionado?
Evidentemente, nesses casos que tais e em inúmeros outros, é necessária a atuação
diligente do Ministério Público, decorrendo daí a necessidade de se reafirmar a ampla
legitimidade do Parquet para a defesa do Erário, como foi feito no acórdão sob
comento.
Contrariando a jurisprudência majoritária do E. TJMG, além de doutrinadores do
porte de Meirelles (2003, p. 592)1, por exemplo, o Relator, o Desembargador Ernani
Fidélis, ele mesmo também um renomado jurista, asseverou, de ofício, sendo seguido
por seus pares, que Câmaras de Vereadores não têm capacidade processual, tanto
passiva, quanto ativa. Não se sabe se o posicionamento exarado nesses termos será
um julgado isolado ou se será seguido pelas demais Câmaras do E. TJMG.
De um ponto de vista estritamente prático, creio que, enquanto essa posição não for
assentada no TJMG e, mais, nos Tribunais Superiores, as ações civis públicas, quando
se dirigirem às Casas Legislativas mineiras, deverão continuar a incluí-las no pólo
passivo. É melhor pecar pelo excesso, sendo eventualmente decotada uma das partes
da ação, do que ter o processo completamente anulado em Instância Superior, por
ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário, às vezes após muitos anos
de trâmite. De qualquer modo, considerando-se ou não a capacidade processual dos
entes legislativos, o certo é que, necessariamente, deverá ser incluído no pólo passivo
da ação civil pública o Município ou o Estado de Minas Gerais, conforme a hipótese.
Outra questão jurídica levantada de plano pelo ilustre relator é a adução de que,
in casu, não deveria ter sido declarada incidentalmente a inconstitucionalidade da
Resolução Legislativa atacada por meio da ação civil pública consectária desse
1
Ele afirma: “A capacidade processual da Câmara para a defesa de suas prerrogativas funcionais é hoje
pacificamente reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência. Certo é que a Câmara não tem personalidade
jurídica, mas tem personalidade judiciária. Pessoa jurídica é o Município. Mas nem por isso se há de negar
a capacidade processual, ativa e passiva, à Edilidade para ingressar em juízo quando tenha prerrogativas ou
direitos próprios a defender”.
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acórdão, mas sim declarada a sua ilegalidade. Apesar dessa distinção ter sido feita
no acórdão já transitado em julgado, ela não teve qualquer repercussão prática. Além
do mais, reputo que, se a intenção era esmiuçar aspectos doutrinários, a decisão em
epígrafe pecou nesse quesito, visto que não foi suficientemente clara em distinguir
declaração incidental de inconstitucionalidade, conforme se requereu no corpo
da ação civil pública que deu origem ao recurso julgado em superior instância, de
declaração judicial de ilegalidade.
Com efeito, a causa de pedir jurídica da referida ação é o descompasso entre
o que dispunha uma Resolução da Câmara de Vereadores de Tapira e um
comando auto-aplicável da Constituição da República. Ou seja, um caso claro de
inconstitucionalidade e não de simples ilegalidade stricto sensu2’, considerando-se
o conceito de inconstitucionalidade por ação, dado por Silva (2004, p. 47), in verbis:
“[A inconstitucionalidade por ação] Ocorre com a produção de atos legislativos ou
administrativos que contrariem normas ou princípios da constituição.” Logo, o que
se espera é que o insigne Relator destrinche mais a problemática por ele mesmo
levantada, fazendo-o em outro julgamento ou mesmo em obra jurídica.
3. Da questão de fundo
A questão posta sob apreciação do Poder Judiciário já foi objeto de teses por
mim defendidas (e aprovadas) em Congressos Estadual e Nacional do Ministério
Público, além de artigo publicado nesse mesmo periódico (2005). Refere-se a uma
prática corriqueira, ao menos nas Câmaras Municipais do Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba, caracterizada pela percepção, por parte dos presidentes das respectivas
Casas, de subsídios flagrantemente superiores ao teto fixado pelo artigo 29, inciso VI,
da Constituição da República, o que também pode estar ocorrendo em inúmeros dos
853 municípios do Estado de Minas Gerais e em muitos outros do Brasil. O art. 29,
inciso VI, da Constituição da República (grifo nosso), assim dispõe:
Art. 29. O Município reger-se-á por Lei Orgânica, votada em
dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada
por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que
a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta
Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os
seguintes preceitos:
[...]
VI- o subsídio do vereador será fixado pelas respectivas
Câmaras Municipais em cada legislatura para a subseqüente,
2
A inconstitucionalidade é uma ilegalidade qualificada, se considerada esta em seu sentido amplo. Basicamente, ilegalidade, em sentido estrito, é qualquer afronta à lei, enquanto inconstitucionalidade, ofensa à
Constituição.
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observado o que dispõe esta Constituição, observados os
critérios estabelecidos na respectiva Lei Orgânica e os
seguintes limites máximos:
A continuação desse dispositivo constitucional é um escalonamento, fixando-se os
subsídios dos vereadores a uma dada proporção dos subsídios dos deputados estaduais,
dependendo do tamanho da cidade (por exemplo, o inciso “c” determina que em
municípios com população entre cinqüenta e cem mil habitantes, como é o caso de
Araxá, os subsídios devem ser fixados, no máximo, até 40% do subsídio do deputado
estadual). Trata-se de um dispositivo de redação cristalina, claramente auto-aplicável,
pois é muito nítida a não-dependência de regulamentação posterior. Da sua simples
leitura, conclui-se: a) trata-se do máximo, podendo o subsídio ser fixado em limite
inferior; b) em tese, o Presidente da Câmara poderia, como medida de isonomia, ter
um subsídio maior do que o dos demais vereadores, caso estes considerem que, pelo
cargo que o Presidente ocupa, ele realmente tem um gasto superior aos dos demais
vereadores.
Todavia, é por demais evidente que o subsídio do Presidente da Câmara de Vereadores,
ainda que superior aos dos demais vereadores, não poderá ultrapassar o limite
constitucional. Mesmo assim, não foi o que se operou na cidade de Tapira, integrante
da comarca de Araxá, na qual se utilizou o máximo permitido constitucionalmente e,
sobre esse subsídio, fixou-se um acréscimo de 50% para o Presidente da sua Câmara de
Vereadores, que passou, assim, a ganhar mais do que o limite previsto na Constituição
da República.
Nem é possível justificar tal acréscimo como sendo a malsinada verba de representação,
que foi expressamente vedada pelo art. 39, § 4º, da Constituição da República, a qual
determina a fixação dos subsídios em parcela única. Neste sentido e especificamente
com relação aos subsídios dos vereadores e ao acréscimo concedido aos Presidentes
das Câmaras, assim expõe o mesmo Meirelles (p. 675):
Quanto à verba de representação, em bases razoáveis, ao
presidente da Cãmara, sempre foi admitida e se justificava
pela sua natureza indenizatória dos gastos inerentes e
específicos da função representativa da chefia da Edilidade.
Mas a Constituição Federal, após a EC 19, de 1998, passou
a exigir que o subsídio dos vereadores nunca ultrapasse 75%
daquele estabelecido, em espécie, para os deputados estaduais.
Com o advento da EC 25, de 2000, foi adotada uma relação
de proporcionalidade entre a população do município e o
percentual máximo dos subsídio dos vereadores em relação ao
subsídios dos deputados estaduais, oscilando entre os limites
de 20 a 75%, de conformidade com o número de habitantes.
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De qualquer forma, está expressamente vedado o acréscimo
da verba de representação ou de qualquer outra remuneração
além daquele teto, exigindo-se a remuneração dos vereadores
exclusivamente por subsídio fixado em parcela única (CF, art.
39, § 4º). (itálicos no original)
Logo, é nítida a inconstitucionalidade de normas que redundem num subsídio
maior que o teto constitucional. Em razão disso, foi interposta a respectiva ação
civil pública, totalmente procedente em primeira instância e em segunda, inclusive
no tocante à fixação da obrigação de devolução aos cofres públicos municipais dos
valores recebidos indevidamente por agentes públicos. Está-se diante de uma decisão
que, além de gerar economia aos cofres públicos, restabelece o necessário respeito à
Supremacia da Constituição da República Federativa do Brasil.
Mas não só: é um importante precedente que se aplica a todas as esferas de Poder, um
raciocínio que deve ser empregado na análise dos vencimentos de todos os agentes
públicos que estão sob o regime constitucional de subsídios. Este é o principal aspecto
e importância do aresto sob comento: deixar corporificado que qualquer subsídio, seja
de um vereador, de um Prefeito, do Presidente da Câmara de Vereadores, do Presidente
da Assembléia Legislativa, do Presidente do Tribunal de Justiça, do ProcuradorGeral de Justiça ou do Governador do Estado, deve respeitar o teto constitucional, a
despeito de eventuais gastos extras que a função de direção enseje, pois os princípios
da Supremacia da Constituição, da Legalidade e da Moralidade Administrativa estão
muito além dos interesses dos Chefes dos Poderes e devem ser velados pelo Ministério
Público e, em última instância, pelo Poder Judiciário.
Referências bibliográficas
MEIRELES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros,
2003.
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo:
Malheiros, 2004.
MACÊDO, Marcus Paulo Queiroz. Da vedação constitucional do acréscimo concedido
aos presidentes das Câmaras Municipais. MPMG Jurídico, Bel

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