eografia das amizades
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eografia das amizades O hostal de Crescent Head Seguia já desconfiado. Ou a indicação não estava correcta ou o lugar não era o que eu tinha pensado. Procurava um hostal em Crescent Head, mas já tinha deixado a estrada nacional há uns bons quilómetros atrás, e estava no meio da mata costeira. Onde era o hostal? Aliás, onde era Crescent Head? O clima de Crescent Head, diz-se, é o melhor da Austrália. E a cidade a sério mais próxima está longe. As aldeiazinhas à beira-mar desta região da New South Wales, chamada Mid-North Coast, sucedem-se fechadas sobre si próprias, tentando passar despercebidas à atenção dos especuladores imobiliários, sempre à procura de lugares que precisem «de desenvolvimento» e de «progresso». A população aprendeu com o mau exemplo das estâncias balneares da Gold Coast, umas centenas de quilómetros mais a norte: os arranha-céus de Surfer's Paradise são aberrações humanas no país da terra intocada. Pelo contrário, a vibração nestas aldeias da Mid-North é muito «counter-culture», muito «retro» e acima de tudo muito descontraída. Acabei por estacionar para pedir direcções num edifício no meio de uma clareira de eucaliptos centenários, em pleno bosque encantado. Já não prossegui. Viajar serve para encontrar o que não se procura. O que nos surpreende. O Hostal Surfari surpreendeume o suficiente para achar que já não precisava de procurar mais. Tinha encontrado. Perguntei se tinha uma cama livre num dos dormitórios. Tinha. Perguntei também se era preciso pagar. Era. A minha pergunta não é assim tão descabida. Nem sempre é preciso pagar para dormir nos hostals, pelo menos em alguns. Recordo um backpackers que tinha um enorme cartaz na recepção: «Se queres um sítio para dormir sem pagar, já chegaste: é aqui.» O corolário deste anúncio fantástico era já menos luminoso – o hostal estava disposto a dar uma semana de dormida grátis aos hóspedes que estivessem dispostos a trabalhar uma semana grátis na sua limpeza. Desde as ervas daninhas do jardim, ao pó das camaratas, à gordura das cozinhas, ao nojo dos quartos de banho. PENSANDO BEM, PREFIRO PAGAR. Não é só porque o trabalho cansa; é porque já passei pela fase de pagar com o corpo os saldos do sono. Antes, não me importava nada de apanhar os autocarros nocturnos, para poupar o preço de um quarto. Dormia em andamento. Ficava mais barato, mas não nas dores das costas e no atordoamento dos sentidos no 114 v&V visão vida & viagens maio 2010 gonçalo cadilhe dia seguinte. Não importava, porque a idade era outra. Também me parecia ok encostar-me num banco no jardim, na duna da praia, ou na estação ferroviária. Ou limpar os quartos de banho comunais de um hostal. Sim, a idade era outra. Prefiro pagar. No caso do Hostal Surfari o preço da noite incluía também um show nocturno com uma banda de música local. Foi esta a razão que me fez querer ficar aqui: ia ter lugar uma jam session, na sala do convívio. Quase sempre todos os hostals têm uma sala fantástica de convívio, pois ninguém vai para um hostal para se enfiar numa exígua cama de beliche numa camarata sombria e mal ventilada com outras sete camas. O centro de qualquer hostal é a sala de convívio, onde se come, se bebe, se jogam cartas, se planeiam itinerários e se fazem amigos. EU FIZ UM GRANDE AMIGO NESSA NOITE: Ross Kessler, guitarrista, cantor e saxofonista, mais ou menos nesta ordem de importância. Compreendi que o dono do hostal e o Ross eram superamigos, e como ali, longe de tudo, no meio do nada, se podia tocar até tarde, o hostal era lugar habitual de concertos improvisados. O repertório era meu velho conhecido: algumas bossas, alguns standards, um pouco daquele jazz fácil que lembra a Diana Kraal quando consegue ser mesmo pirosa. Enfim, quando dei por mim estava a tocar com o Ross uma versão da Garota de Ipanema. Começou por ser �e Girl from Ipanema mas, como estamos todos já bastante fartos da canção, sobretudo depois da Diana Kraal, precisamente, ter editado, num acesso de kitch, uma versão a que chamou �e Boy From Ipanema, decidimos abandalhar a noite e em homenagem à Diana Kraal, continuámos a jam com a nossa versão a que chamámos �e Girl with the Efisema. Claro que a partir daqui, o hostal encerrou os dormitórios, os hóspedes mudaram-se para a sala de convívio e a festa continuou pela noite fora. Entre mim e o Ross clicou aquela empatia entre músicos que é absolutamente imprevisível, pode ou não acontecer e pode ou não voltar a acontecer numa segunda noitada. Talvez volte a tocar um dia com o Ross, lá na Austrália ou cá por Portugal se ele sempre vier um dia viajar pela Europa, como gostaria de fazer. E só assim poderemos saber se essa empatia tem bases sólidas para acontecer em qualquer lugar do mundo, ou se durou só aquela noite perto de Crescent Head. Por falar nisso, nunca cheguei a Crescent Head. Fui-me embora do Hostal Surfari à procura de mais Austrália, à procura do que quer que fosse que me encontrasse. Fui com uma alegria imensa pela música, uma ressaca notável pelo vinho, e a vaga sensação que afinal até podia ter ficado de graça no hostal. Creio que a animação musical que trouxemos à sala de convívio merecia bem um cachet. Não muito, o equivalente a uma noite grátis numa cama do dormitório. ILUSTRAÇÃO: JOÃO LEMOS G