Revista Montagem - 2009

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Revista Montagem - 2009
Oitenta e Seis Anos de compromissos
Sempre Renovados com a Educação.
REVISTA
MONTAGEM
Ano 11 / N. 11 – 2009
1
CENTRO UNIVERSITÁRIO MOURA LACERDA
REITOR
Glauco Eduardo Pereira Cortez
PRÓ-REITORIA DE ASSUNTOS ACADÊMICOS
Lidia Terêsa de Abreu Pires
COOR DENADORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇ ÃO
Carmen Rita Cardoso Junqueira
COOR DENADORIA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS
Fernando Antônio de Mello
COOR DENADOR IA DE CUR SOS DE GR ADUAÇ ÃO
Maria de Fátima da Silva Costa Garcia de Mattos
COORDENADORIA DE CURSOS SEQUENCIAIS
Adriano Marcelo Litcanov
COORDENADORIA DE CURSOS DE TECNOLOGIA
Marcelo Villela
INSTITUIÇÃO MOURA LACERDA
DIR ETOR EXECUTIVO
Oscar Luiz de Moura Lacerda
DIRETORIA ADMINISTRATIVA
Denis Marcelo Lacerda dos Santos
DIRETORIA FINANCEIRA
Lis de Moura Lacerda Cochoni
2
EDITO RA
Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta
COMISSÃ O DE PUBLIC AÇ ÕES
Fabiano Gonçalves dos Santos
Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta
Maria de Fátima S. C. G. de Mattos
Naiá Carla Marchi Lago
CONSELHO ED ITOR IA L
Cláudio Pereira Bidurin
Carlos Alberto Simeão Junior
Darclet Terezinha Malerbo Souza
Edivaldo Aparecido Nunes Martins
Ericson Dias Mello
Fernando Antônio de Mello
José Antonio Lanchoti
Lúcia Ferreira da Rosa Sobreira
Luis Gonzaga Meziara Júnior
Paulo Alencar Lapini
Renata Maria Soares Dutra
CONSELHO CON SU LTIVO
An el Pérez - UNAM - Méxi co
Eliane Terezinha Per es – UFPe – Pelotas – RS
Elizete da Silva – UEFS – Feira de Santana- BA
Ernesto Candeias Martins – Universidade Castelo Branco – Portugal
Fernando Antonio Freitas Senna - Centro Universitário - Vila Velha -ES
Flávia Silveira - Faculdade SENAC - Brasília- DF
José Rubens Jardilino – UNINOVE – São Paulo – SP
Maria Elena Pinheiro Maia - FACITA - Itápolis – SP
Maria Helena Câmara Bastos – PUCRS – Porto Alegre – RS
Maria Teresa Santos Cunha – UDESC – Florianópolis – SC
Regina Helena Lima Caldana – USP – Ribeirão Preto – SP
Renato Leite Marcondes – USP – Ribeirão Preto – SP
Wenceslau Gonçalves Neto -UFU – Uberlândia - MG
3
Catalogação na fonte elaborada pela Bibliotecária
Gina Botta Corrêa de Souza - CRB 8/7006
Montagem / Centro Universitário Moura Lacerda. – v.11, n.11 (2009)
Ribeirão Preto: Centro Universitário Moura Lacerda, 2009.
Anual
ISSN 0104-4826
1. Conhecimentos gerais – Periódicos. I. Centro Universitário Moura
Lacerda.
CDD – 000
PUBLIC AÇ ÃO ANUAL / AN NU AL PUBLICATION
Solicit a-se Per mut a/Exch ange D esired
IND EXAÇÃO
Revista indexada em Bases de Dados de abrangência Nacional e
Internacional:
BBE – Bibliografia Brasileira de Educação (Instituto Nacional de
Estudos Educacionais Anísio Teixeira INEP/ Ministério da Educação).
Abrangência nacional, acesso: http://inep.gov.br/pesquisa,bbe;
GeoDados. Abrangência nacional, acesso:
http://geodados.pg.utfpr.edu.br.
CLASE – Base de Dados Bibliográficos de Revistas de Ciências
Sociais e Humanas (Universidad Nacional Autónoma de México).
Abrangência internacional, acesso: www.dgb.unam.mx/clase
CAPA
Flores, cores e aromas: natureza, sensibilidades e cultura.
Autoria: Odila Martineli.
Óleo sobre tela. Autorização em 13/01/2009
Direção de Arte: Con Vieira.
Publicitária. Centro Universitário Moura Lacerda
Orientação: Fernando Antônio de Mello
Coordenadoria do Curso de Comunicação Social do Centro Universitário
Moura Lacerda
Núcleo de Publicidade e Propaganda do Curso de Comunicação Social
4
REV ISÃO DE PORTUG UÊS
Rit a d e C á ssi a d o C a rm o G arc i a
REV ISÃ O DE IN GLÊS
Nata sha Vicente da Silveira Costa
EQU IPE D E PR ODU ÇÃ O
Amadeu Boldrin Neto
Ana Carolina Picoli Souza Cruz
Frederico Fábio Magosso
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AGRADECIMENTO ESPECIAL
Ama rílis Ga rb elini Vessi
Odila Ma rtineli
EN DEREÇO/ AD RES S
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Os artigo s aqui p ublicado s são de inteir a r esponsabilidad e do s autore s e n ão
expressam a opini ão d a Institui ção Univer sitári a Mour a Lacerd a .
5
SUMÁRIO / CONTENTS
Editorial..................................................................................................................... 7
ARTIGOS/ARTICL ES
LITERATURA E SOCIEDADE
Aprendendo a enxergar com Saramago
Learning how to see with Saramago
Natasha Vicente da Silveira COSTA
Elisabete Kefálas TRONCON.........................................................................................10
“Ao verme que primeiro roeu as frias carne do meu cadáver dedico com saudosa
lembrança estas memórias póstumas”. – uma estética da desesperança em Machado de
Assis.
“To the worm who first gnawed on the cold flesh of my corpse, i dedicate with fond
remembrance these posthumous memoirs.” – an aesthetic of hopelessness in Machado
de Assis.
Paulo César CEDRAN.....................................................................................................20
A Autobiografia às avessas. Walsh: O “autor de novelas policiais” que virou “Detetive”.
The Autobiography upside down. Walsh: the “author of detective stories” who became
a “Detective”.
Silvia Beatriz ADOUE................................................................................................... 28
ESTUDOS DE SEM IOLOGIA
O Campo léxico-semântico do amor na Sitcom Friends.
The Lexical-semantic field of love in the Sitcom Friends.
Maira Coutinho FERREIRA...........................................................................................38
Leitura de imagem: a semiótica na sala de aula.
The Reading of image: semiotics in the classroom.
Patrícia Kiss SPINELI..................................................................................................43
REFLEXÕES SOBRE O EDUCADOR E EDUCAÇÃO NO SÉCULO XXI
Contribuições da teoria literária para as novas metodologias de ensino da Literatura
Contributions from literary theory to new methodologies of Literature teaching
Adriana Juliano Mendes de CAMPOS............................................................................52
6
Tecnologias da informação e comunicação: da ambivalência de um conceito
multifacetado às suas potencialidades e desafios no campo educacional.
Information and communication technologies: from ambivalence of a multifaceted
concept to its potentialities and challenges in the education field.
Luciene Aparecida da SILVA.........................................................................................65
A Complexidade do objeto trabalho docente: algumas reflexões e indagações.
The Complexity of the teaching occupation: some considerations and inquiry.
Maria Cristina Ravaneli de Barros O’REILLY
Maria Silvia Azarite SALOMÃO....................................................................................78
A Formação de professores de inglês numa perspectiva crítico-reflexivo: comentários e
possibilidade.
Teacher training analysis in a critical-reflexive perspective: comments and possibilities.
Patrícia Dias Reis FRISENE...........................................................................................84
LINGUAGENS MIDIÁTICAS
Poder Midiático e Política Internacional
Communication Power and International Politic
Carla Aparecida Arena VENTURA
Jailane LEAL...................................................................................................................90
Consumo sustentável e mudança de postura dos cidadãos: reflexão sobre as campanhas
publicitárias do Instituto Akatu.
Sustainable consumption and change in citizens attitude: considerations about the Akatu
Institute advertisements.
Daniela VIEGAS
Dilma Dutra Borges de CASTRO.................................................................................. 99
7
Editorial
A Revista Montagem, em seu décimo primeiro número, mantém seu
estatuto multidisciplinar que permite olhar por diversas formas e
perspectivas os problemas e as possíveis reflexões que os artigos
acadêmicos, nela constantes, possam propiciar para o conhecimento da
realidade. A expressão última flor do Lácio ganha, neste número,
especial relevo. Por meio de seis artigos evidencia-se, sob diversos
aspectos, a multiplicidade que a língua e a literatura portuguesa e
brasileira podem proporcionar. Minha pátria é minha língua, afirma
Caetano Veloso em uma música. Que nossa pátria seja a língua
vivenciada e discutida nos artigos ora apresentados.
Um conjunto de textos inscritos no campo da Literatura e
Sociedade apresenta ao leitor diferentes faces e diferentes olhares que
permeiam essas complexas interlocuções.
No artigo Aprendendo a
enxergar com Saramago são discutidos alguns aspectos da obra E nsaio
sobre a cegueira, do escritor português José Saramago, na qual se volta
à exploração de vários elementos da narrativa, tais como: a linguagem,
as técnicas do narrador, o tempo e foco narrativo, de maneira que os
provérbios, os sintagmas congelados e os discursos se encontrem a
serviço
do
rompimento
com
os
padrões
e
formas
como
foram
catalogados, sugerindo que nos despojemos do pré-concebido para
compreender as técnicas do narrador.
No artigo: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu
cadáver, dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas” –
uma estética da desesperança de Machado de Assis, discutem-se os
aspectos
socioculturais
que
influenciaram
Machado
de
Assis
na
construção da estética da (des)esperança, a partir da obra Mem órias
Póstum as de Brás Cubas. O autor, ao introduzir o personagem morto,
Brás Cubas,
produz uma análise em relação
à sociedade e
à própria
vida, feita com crueldade e pessimismo, análise esta que se apresenta
como uma alternativa crítica à sociedade brasileira.
8
Autobiografia às avessas. Walsh: o autor de novelas policiais
que virou “detetive”. Esse instigante artigo apresenta um estudo sobre o
argentino Rodolfo Walsh, leitor, tradutor e autor de novelas policiais de
enigma e que foi compelido pelas circunstâncias a investigar um crime.
Para isto, assumiu o papel do detetive dos relatos que escrevia. O modelo
do policial de enigma resultava insuficiente. Walsh, aguçando sua
perspicácia, publicou mais do que os resultados da investigação:
elaborou um diário da própria investigação, ou uma autobiografia do
cidadão/detetive e que, em conseqüência deste questionamento, acabou
por abandonar a literatura ficcional e policial, dedicando-se à ação de
uma literatura militante que combatia o regime ditatorial vigente na
Argentina.
No campo de estudos de Semiologia temos dois artigos que
contemplam essa área. Em O campo léxico-semântico do amor na
Sitcom Friends, a autora propõe construir um campo léxico-semântico
do amor da língua inglesa a partir das lexias encontradas nas legendas
em inglês dos primeiros e últimos episódios das cinco primeiras
temporadas da sitcom norte-americana Friends produzida pela Warner
Brothers, cujo tema central é a vida amorosa de seus personagens. Falase em um campo léxico-semântico porque não se trata do campo que
abrange todas as lexias e expressões de língua inglesa relacionadas ao
tema amor, e sim apenas daquelas encontradas no corpus escolhido. O
conceito de lexia adotado é o de Pottier (1978).
Em Leitura de imagem: a semiótica na sala de aula, a autora
discute o uso das categorias de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade
do filósofo C harles Sanders Pierce, na análise de imagens, e sugere seu
uso em exercícios educacionais para alunos do ensino superior.Entende
que esse procedimento contribuirá
para a melhor compreensão que
envolve o ensino da semiótica junto a esse nível educacional. A autora
exemplifica sua proposta com a análise de duas imagens fotográficas de
Luiz Eduardo R. Achutti, que fazem parte da coleção Pirelli, do Museu
de Arte de São Paulo.
9
Reflexões sobre práticas educativas constituem-se na temática
desenvolvida em dois textos. No eixo da metodologia para o ensino da
literatura, o artigo Contribuições da teoria literária para as novas
metodologias de ensino da Literatura apresenta uma forma de reflexão
sobre formas de tratamento no âmbito escolar, bem como sobre
resultados educacionais recentes relativos à formação leitora. O estudo
problematiza,
a
partir
da
LDB/71,
a
oposição
central
entre
o
conhecimento formal, linear e fragmentado e os desafios para superação
desse modelo pela práxis dialética e interdisciplinar.
Informação e comunicação constituem o princípio pelo qual a
autora de Tecnologias da informação e comunicação: da ambivalência
de um conceito multifacetado às s uas potencialidades e desafios no
campo educacional procura pontos de convergência entre o paradigma
educacional emergente e a informática educacional, desenvolvendo uma
interlocução entre os aspectos multidimensionais inerentes à pedagogia
dos meios tecnológicos.
As relações entre o educador e educação no século XXI são
debatidas no texto: A complexidade do objeto trabalho docente:
algumas reflexões e indagações, em que as autoras buscam compreender
os elementos constituintes da carreira docente que ultrapassam as
questões de ensino em sala de aula e adentram pelos saberes práticos
específicos aos lugares de trabalho, com suas rotinas, valores e regras.
São
discutidas
as
condições de
trabalho,
apontando
problemas
e
encaminhamentos.
A formação de professores de inglês numa perspectiva críticoreflexiva: comentários e possibilidades traz uma reflexão sobre a
relação entre a análise do habitus e a formação de professores, tendo
como metodologia o estudo das biografias de alunos ingressantes no
curso de Letras O artigo constitui-se em importante referência de
pesquisa para profes sores em geral, especialmente de Língua Inglesa e
Prática de Ensino.
10
As Linguagens Midiáticas constituem-se no campo de análise de
dois artigos.
O texto Poder Midiático e Política Internacional discute
a relação entre a mídia e a política, enfatizando a centralidade dos meios
de comunicação e sua atuação em discursos políticos, na sociedade
contemporânea. Aponta que, ao lado de
grupos
políticos
aparentando
se
utilizam
de
mensagens subliminares, os
ideologias
um caráter lógico, visando
em
seus
discursos,
convencer o receptor da
mensagem de que seus discursos são condizentes com a realidade.
O atual padrão de consumo constitui-se no epicentro do artigo
Consumo sustentável e mudança de postura dos cidadãos: reflexão
sobre as campanhas publicitárias do Instituto Akatu, em que as
autoras tratam o consumo sustentável, a questão ética na utilização de
ferramentas como a educação, a lei e o marketing, caracterizados nas
campanhas do Instituto Akatu, identificando suas contribuições para o
processo de mobilização social, de modo a promover a conscientização e
fazer frente aos efeitos negativos relativos ao padrão de consumo e meio
ambiente, com seus reflexos à sociedade e aos indivíduos.
A Revista, como se denota, traz temas atuais e polêmicos que, com
certeza, instigarão os leitores a ampliar sua maneira de refletir e
compreender os desafios apresentados na atualidade.
Ana Carolina Picoli Souza Cruz
Paulo César Cedran
11
LITERATURA E SOCIEDADE
12
APRENDENDO A ENXE RGAR COM SARAMAGO
N at a s h a V ic e nt e d a Si lv ei r a CO S TA *
E li sa be te K e f á l as TR O N CO N * *
Resumo:
Neste artigo, serão discutidos alguns aspectos da obra Ensaio
sobre a cegueira do escritor português José Saramago. Este trabalho se
volta à exploração de vários elementos da narrativa, tais como: a
linguagem, as técnicas do narrador, o tempo e foco narrativo. Obsevarse-á também de que maneira os provérbios, os sintagmas congelados e os
discursos se encontram a serviço do rompimento com os padrões e com o
catalogado e sugere, finalmente, que nos despojemos do pré-concebido.
Palavras-chave:
Saramago;
Sintagma;
Provérbio; Literatura portuguesa.
Técnicas
do
narrador;
LEARNING HOW TO SEE WITH SARAMAGO
Abstract
Abstract:
This article discusses some aspects of the novel Ensaio sobre a
cegueira, by the portuguese writer José Saramago. This paper brings
together several elements of the narrative, such as the language, the
techniques of the narrator, time and the narrative point of view. We also
analyse how the proverbs, the immutable syntagmas and the speech take
part in the rupture with patterns and with what is catalogued and finally
suggest that we dispose of preconceptions.
Keywords: Saramago; Syntagmas;Techniques of the narrato; Proverbs;
portuguese literature.
Introdução
Ao ler o título da obra, Ensaio sobre a cegueira, é possível
verificar que a etimologia de ensaio, de acordo com Angélica Soares,
indica “tentativa”, “experiência” e “inacabamento”. Contudo, ao longo
do tempo, já foram produzidos trabalhos conclusivos que também
levavam o título de “ensaio”.
Vê-se, então, que ensaio não é somente
uma tentativa do autor de interpretar a realidade por suas exposições
inacabadas.
* Me str a n d a e m p e la U N ESP e m E st u d os Li t e rá r i os. Gra d u a da e m Le tr a s pe l o C e ntr o
U ni v er sitá r i o M ou r a Lac e rd a : E - ma il : n at a sh a v sc @ y a h o o.c o m. b r
* * P r of e ss or a d o C ur so d e Le tr a s d o Ce n tr o U ni ve r sit á ri o M ou r a Lace r d a:
E - ma i l: b e t et r o nc o n@ u o l.c o m. br
13
Ensaio revela um tom crítico e, muitas vezes, uma feição didática.
Não é situado, predominantemente, dentro do narrativo, lírico, épico ou
dramático.
Considerando, então, as características acima e dado que a obra é
surpreendentemente um romance, faz-se necessário outra significação
para
ensaio.
O
autor,
portanto,
mostra-nos
uma
experiência,
um
treinamento de seus personagens. Eles experimentam a cegueira e,
consequentemente, ensaiam-na com a finalidade oposta, a de enxergarem.
Saramago é conhecido por seu modo diferente na construção da
narrativa. Por isso, o narrador será classificado como narrador-autor
neste trabalho, já que Saramago assume total res ponsabilidade pelo que
escreve em suas obras e questiona a separação de ambos. Aceita,
contudo, as variantes de um narrador central e seus textos apresentam
polifonia.
A epígrafe indica o conteúdo do texto e resume o pensamento do
autor. É o lema da construção da obra:
Se p od e s ol h a r , vê. Se p od e s ve r , re p ar a.
Li vr o d os C on sel h os
A obra é uma metáfora, uma alegoria finissecular. A situação
vivida pelas personagens significa algo para, além disso. Há a exposição
de um pensamento sob a forma figurada ou sob a forma de metáfora. A
obra trata, então, não somente de pessoas cegas, mas de relações
humanas, do individualismo egoísta que, freqüentemente, impede as
pessoas de perceber o que está ao seu redor. É necessário ver o inteiro, e
não o mutilado.
Parte I - Nível da enunciação
Foco narrativo
O narrador-autor é onisciente. Benjamin Abdala Júnior comenta,
em Introdução à análise da narrativa, a tipologia de Norman Friedman.
Este último diz que onisciência é quando se “conhece o que há dentro
das personagens (seu mundo interior)”, há “a máxima liberdade possível
14
para escolher como contar os fatos” e “esse narrador ainda interfere na
história, com comentários”.
Se n ti u u ma t on t u r a, u m tr e m or ir re p ri mí ve l a t r a ves sou lh e o c or p o, o f r i o e a f ebr e fi z er a m- l he e nt r ec h oc ar os
de n te s. ( p . 7 7)
... n u m s al ve - s e q ue m p u der me r e ce d or de se ve ra cr ít ica ,
p oi s nã o é a ssi m q ue se tr at a m pe ssoa s c e ga s, p a ra a
in f el ic i da de já l he s b a st a . ( p. 2 2 5)
...t e n h a m de c i di d o, e n f i m, a e nt e r ra r os s e u s m or t os ,
pe l o me n os de st e c he ir o f i cá m os n ó s li vr e s, a o c h eir o d os
vi v os , me s mo f é t i d o, ser á mai s f ác il h a bi t uar - n o s. ( p. 1 1 8)
Nota-se,
pela
primeira
citação,
que
o
narrador-autor
tem
conhecimento sobre o que a personagem sente. Já na segunda, é
perceptível que o mesmo é intruso, pois faz comentários e se “intromete”
na história de forma marcante. O último excerto mostra que o narradorautor, que narra em terceira pessoa, dirige-se ao leitor e utiliza o
pronome pessoal reto “nós”.
A
função
de
narrar
é
delegada,
freqüentemente,
a
outras
personagens. É a polifonia, ou seja, várias vozes dentro de um mesmo
texto:
En tr e os c e g os h a vi a u ma m u l her q ue d a va a i mpr e ssã o
de e sta r a o me sm o te m p o e m t od a a p ar te , a ju da n d o a
ca rr e g a r , f a ze n d o c o m o se gu ia s se os h om e n s, c oi s a
e vi de n te me n te i m p oss í v el p ar a u ma c e ga , e , se f os se p or
ac a so ou de pr op ó si t o , p or ma i s de u ma vez vi r o u a car a p ar a
o l a d o da a l a d os c on t a g ia d os, c om o se os p u de s se ver ou
lh e s pe rc e be s se a pr e se n ç a. ( p. 9 1 )
O v e l h o da ve n d a pr et a f o i n ar ra n d o est e s tr em e n d os
ac on te ci m e nt os d e ba n ca e f i n a nç a e n q ua n t o atr a ve ss a va m
va ga r os a me n te a c i da de. .. ( p. 2 5 5)
Desde o início da obra e, principalmente, dentro do manicômio,
são mostradas as atividades que a mulher do médico realiza em prol da
comunidade. No primeiro excerto, contudo, isso é mostrado com se fosse
uma novidade, como se alguém, que não fosse o narrador que já havia
descrito tais atividades, estivesse percebendo naquele momento. No
segundo excerto, é perceptível que o narrador-autor deixou com que o
cego narrasse tudo o que se passava fora do manicômio, concedendo a
função de narrar a ele.
15
Técnicas narrativas
Uma das técnicas utilizadas é o uso do pronome pessoal “nós”:
...a q ue la q u e es tá c a sa d a c om o of ta l m ol o gi s ta , ta nt o e la
te m c a n sa d o de di z er - n o s. .. ( p. 1 1 9)
... h ou ve q ue m t i ve sse fi ca d o ca la d o,
sa be r e m os se f oi par a nã o m e nt ir . ( p. 1 4 3)
a
se u
te m p o
Isso é uma técnica que faz com que nos aproximemos da história
lida. É como se estivéssemos junto do narrador-autor no momento em
que escreve.
Outra técnica largamente explorada na obra é a utilização de ditos
populares da cultura portuguesa, parábolas e provérbios:
Pl e bei a me n t e c on c l u i n d o, c om o nã o se ca n sa d e en s i nar n os o p r o vé r b i o a n ti g o, o c e g o, ju l ga n d o q ue se b e nzi a ,
par ti u o nar iz. ( p . 2 6)
O ou tr o t a mbé m d i zi a q u e q u e m par t e e r e p ar te e nã o f ic a
c om a m el h or pa r t e, ou é t ol o, ou n o p ar tir nã o te m a r te .. ( p. .
1 0 3)
É u m d it o, e star à es pe r a de sa pa t os de def u n t o
si gn i f i ca va e star à e sp e r a d e c oi s a ne n h u m a. ( p. . 1 9 8)
... f el iz me nt e , o d ia b o ne m se m p r e e st á at r á s da p o r ta ,
es te d i ta d o ve i o mu i t o a p r op ó s i t o. ( p . . 1 9 3)
“É m ui t o si mpl e s, se n t i c om o se o i nt er i or d a ór b i t a
va z ia e st i ve sse i nf la ma d o e tir ei a ve n d a p ar a ce rt i fi car - me ,
f oi n es se mo m e nt o q ue ce gu ei, P ar e ce u ma p a rá b ol a, d i sse
u ma v oz de sc on h e c i da, o ol h o q ue se r e c u sa a r ec on h e c er a
s ua pr ó pr ia a u sê n c ia.. . ” ( p. 1 2 9 )
Só u m de r r a de i r o c ui da d o, u m a ú lt i ma pr u dê n c ia o
i m pe di r a m d e r e m at ar o a pel o c i ta n d o o c on h e c id o p r o vér b i o
Q ue m c or r e p o r g ost o, n ã o c a n sa . ( pá g. 1 6 5)
Ao utilizar tal técnica, é conferida uma feição portuguesa à obra e,
assim, é-nos revelada a cultura desse país.
É interessante observar que, em vários trechos da obra, o narradorautor desmonta tais ditados populares e os reconstrói de acordo com a
situação de suas personagens:
... já se sa b e á gu a m ol e em br a sa vi va ta nt o d á a té q ue
ap a ga a r i m a q ue a p on h a ou tr o. ( p. 2 1 3)
16
O tr a ba l h o d o ve l h o é p ou c o, m as q u e m o d e s pr e za é
l ou c o, E sse d it a d o n ã o é a ssi m , Be m se i, on d e e u di sse ve l h o,
é m e ni n o, on d e e u d isse de spr e z a, é de sde n h a , ma s os d it a d os
se q ui ser e m ir diz e n d o o me s mo p or ser pr e ci so c on t i n uar a
di zê - l o, tê m d e a da p ta r - se a os te m p o s. . . ( p. 2 6 9)
A modificação dos ditados populares é um exemplo de que a
cegueira existente no plano de conteúdo da obra é demonstrada, assim,
no plano da expressão.
Vejamos outra citação:
A q ui n ã o me saf o, pe n s ou , u sa n d o u m a p ala vr a q ue nã o
f azi a p ar t e d o se u v oc ab u lár i o c or r e n te, u m a vez m ai s s e
de m on st r a n d o q u e a f o rç a e a n at ur e za da s ci rc u n st â nc ia s
in f l ue m m ui t o n o lé x ic o .. . ( p. 2 2 0)
Como se pode ver é também a circunstância que influencia o
vocabulário utilizado. É permitido, portanto, adaptar ditados populares
ao contexto da obra.
Os provérbios e os ditos populares são clichês, ou seja, são a
cristalização do velho. É preciso, finalmente, desmontar as frases feitas
para que a novidade descondicione nosso ouvido e o novo discurso traga
revolução, ou seja, um novo modo de enxergar o mundo.
Outra técnica é o uso de sintagmas congelados. A ideia mostrada
na epígrafe de que é necessário ver o inteiro, e não o mutilado é refletida
no modo de construção da obra e os sintagmas são exemplo disso, já que
têm que ser entendidos no contexto geral da obra, na novidade estilística
de que o narrador-autor se utiliza:
Eu é q u e e st ou ce g o, n ã o t u, t u n ã o p od e s sa b e r o q ue
me s u ce de u , O m é di c o v a i p ôr - te b om , ver á s, Ve r ei. ( p. 1 9)
Ve jo t u d o br a nc o, se n h o r d ou t or. N ã o f al ou d o r ou b o d o
au t om ó ve l. ( p. 2 2)
Ver á s c om o t u d o s e i r á r es ol ver . ( p . 2 3)
P or e n q u a nt o n ã o l he r ece it ar e i na da , ser ia e sta r a
r ece i tar à s ce ga s, Aí e st á u ma e x pr essã o a pr op r i a d a, ob s er v ou
o c e g o. ( p. 2 4)
... di z e le q u e vê t u d o b r an c o, u m a e sp éc ie d e br a n c ur a
lei t os a. .. ( p. 2 8)
Nã o c h or e s, va i s ver q u e a tu a mãe nã o se d e m or a. ( p .
4 9)
17
O n de é q u e e stá f er i d o, A q ui, A q ui, on d e , N a pe r na , nã o
es tá a ver , a ga ja e s p et o u- m e c om u m s al t o d o sap a t o.. . ( p. 5 7)
E ac r e sc e nt ou , c h o ca r r e ir o, A té à vi st a , me n i na s, vã o- se
pr e p ar a n d o p ar a a pr ó xi ma se ss ã o. ( p. 1 7 8)
Q ue m e stá dec i di d o a i r , p on h a a m ã o n o a r , é o q u e
ac on t e ce a q ue m nã o p en sa d ua s ve z e s a nt e s d e a br ir a b oc a
par a f a lar . .. ( p. 1 9 7)
O uso de sintagmas congelados indica a utilização de frases
concretizadas no léxico que, no contexto da obra, causa estranhamento e
soa
como
gracejo
para
os
cegos.
São
expressões
que
já
estão
irremediavelmente alojadas nas mentes e que continuam a ser utilizadas
na obra mesmo quando sua aplicação seja impossível na prática, já que a
visão não é mais um sentido válido.
Há outros tipos de sintagmas congelados na obra, que aparecem
menos freqüentemente:
Be m ,
per gu n t ar a,
q ua n d o n ã o
es tá va m os a
m u it o ob r i ga d o , se m d ú vi da a t e l ef on i sta
C om o e st á , s e n h or d ou t or , é o q u e d ize mos
q uer e m os da r p ar t e de fr a c o, di s se mos , Be m, e
m or r e r ... ( p . 4 1)
Gra ç as a De u s, e s ta e vi de n te m ost r a d e f ra q u e za m or a l
de i x ou de ter q ua l q u er i m p or tâ nc i a. .. ( p. 1 6 2)
As expres sões “Graças a Deus” e a reposta “bem” à pergunta
“Como está?” mostram, também, a automatização da língua, que muitas
vezes expressa o que, de fato, não caberia em determinado ponto.
No primeiro excerto, o doutor oftalmologista liga para seu
consultório para avisar outro médico sobre s ua repentina cegueira. Não
estava tudo bem, então.
Com relação ao segundo trecho, é fato conhecido que o narradorautor da obra é ateu; logo, a expressão “graças a Deus” se mostra
deslocada, é a força do hábito.
A pontuação utilizada, visivelmente dif erente nessa obra, não é a
acadêmica, tradicional:
Dei ta da a o l a d o d o ma r i d o, o ma i s j u nt os q u e p od ia m
es tar , p or ca u sa da e str e ite za d a ca ma , mas t a m b ém p or g os t o,
q ua n t o l h e s h a v i a c u s ta d o, n o m ei o d a n oi te, gu ar d ar o
18
de c or o, nã o f a ze r c om o a q u ele s a q u e m a l gu é m ti n ha c h a ma d o
p or c os , a m u l he r d o mé d ic o ol h o u o r e l ó gi o. ” ( p. 1 0 0)
O u vir a m- s e ti r os na r u a . Vê m- n os m at ar , gr i t ou a l gu é m,
Ca l ma, di sse o mé di c o, de ve m os ser l ó g ic os . .. ( p. 1 1 0 )
Vê-se que há uma quebra na linguagem: são abolidos os sinais
convencionais de expressão de fala das personagens, como dois-pontos e
travessão. É empregada a vírgula para separar a narração do narradorautor da fala das personagens, assim como seus diálogos.
São utilizadas tanto a linguagem informal, popular, quanto a
linguagem culta:
Ra p az e s, e sta s ga ja s s ã o me sm o b oa s ( . ..) C ale m- se ,
sua s p u ta s, e sta s ga j a s s ã o t od a s i gu a is, se m pr e tê m d e p ôr - se
a os b e rr os (. ..) De s pa c ha -te d a í, n ã o a gu e n t o u m mi n ut o. .. ( p.
1 7 6)
Q ua nt o a n ós , pe r mi tir - n os- e m os p e n sar q ue se o c e g o
ti ve s se a c ei ta d o o s e gu n d o of er e ci m e nt o d o af i n al f al s o
sa ma ri t a n o, n a q ue le d e r r a de ir o i n s ta nt e e m q ue a b on d a d e
ai n da p o d er ia ter pr e va l eci d o , r ef er i m o- n os o of er ec i me n t o d e
lh e f i car a f az e r c o mp a n hi a e n q u a nt o a mu l he r nã o c he ga s se ,
q ue m sa b e se o ef e it o d a r esp on s a b il i da d e m or a l r es u lt a nt e d a
c onf ia n ç a... ( p. 2 6)
Nota-se a contribuição que cada tipo de linguagem e de discurso
traz para o texto. A linguagem dos cegos malvados é dotada de palavras
ofensivas e vocabulário de baixo calão. O segundo discurso, contudo, é
elaborado, tecido e enriquecido de provérbios e ditos populares, o que
mostra a contribuição da cultura portuguesa. Ao utilizar esses dois tipos
de linguagem, o narrador-autor mostra que não despreza quem os produz,
pois esboça, sobretudo, um retrato de sua cultura.
É exposto, também, que a cegueira que atinge as personagens é um
mar de leite, é branca. Isso é usado justamente como um meio de
diferenciação
da
cegueira
física
comum
e
indica,
novamente,
o
rompimento com o sintagma congelado.
É preciso cegar para começar a enxergar; saber, aprender a ver. O
“cegar” representa, simbolicamente, o aprendizado, que proporcionará a
“visão” aos atingidos, ou seja, um novo meio de ver o mundo.
Outra técnica que permeia o texto é o suspense:
19
A m ul her d o mé dic o l e va nt ou os ol h os par a on de a
te s ou r a e st a va . E s tr a n h o u vê- la t ã o al t o, de p e n d ura d a p or u ma
da s ar g ol a s ou o l h ai s, c om o se nã o t i ve s se si d o el a p r ó pr ia
q ue m a ti n ha p os t o l á, de p oi s , de s i par a c on s i g o, c on s i der ou
q ue ha vi a si d o u m a e x ce le nt e i d é ia tr a z ê- la. . .” ( p. 1 4 4 )
Ele interrompe a narração temporariamente e deixa pontos abertos
que serão retomados mais tarde. Isso faz com que o leitor se envolva
com a obra e se interesse pela leitura.
Além disso, há prolepse na narração:
Ai n da s e r e c o r da de c o m o d e ve r á r e gu l a r o i sq ue i r o p ar a
pr od u z ir u m a c h a ma c o m pr i da, já aí a te m, u m pe q u e no p u n h a l
de l u me , vi br a nt e c om o a p on t a d u m a te sou r a. ( p . 2 0 6)
A prolepse é a antecipação de um acontecimento que ocorrerá
posteriormente no discurso narrativo. Tem-se prolepse no excerto quando
a chama do isqueiro é comparada à tesoura. Iss o indica que ela servirá
para matar, da mesma forma que o objeto metálico foi utilizado.
Nota-se o aspecto sensorial da obra:
O m a u c he ir o d e sp r e n de -se da i m e n sa l i xei r a c o mo u ma
n u ve m de g á s t ó xi c o.. . ( p. 2 9 4)
... o c he i r o d o vó m i t o só se n ot a q u a n d o o a r e o r e s t o
nã o c he ir a m a o me s m o. . . (p . 1 7 6)
...a o p on t o d e c e gar o o l fa ct o, q u e é o m ai s de l i ca d o d os
se n ti d os. .. ( p. 1 7 4)
O asp e c t o d a s r ua s p i or a va a c a ca h or a q u e ia pa s sa n d o.
O li x o pa r ec ia mu l ti p li c a r- s e d ur a nt e a s h or a s n oc t ur na s.. . ( p .
2 9 4)
Os códigos sociais começam a se perder em um ambiente
governado pelos sentidos. É interessante notar que os cinco s entidos são
afetados. Ao longo da obra, trabalha-se, em primeiro lugar, a questão do
ver, do enxergar, que é concedido somente à personagem feminina; há,
também, o olfato, sentido mais delicado na opinião do narrador-autor,
que é contaminado pelo aspecto de podridão do manicômio; tem-se o tato
desordenado quando os cegos se esbarram atrapalhadamente; o paladar,
sentido pouco privilegiado devido à escassez de alimento e, finalmente, a
20
audição, sentido que resta para contribuir com a organização das
camaradas e a comunicação dos cegos.
Ideologia do narrador-autor
O narrador-autor mostra-se adepto dos ideais comunistas e há
vários pontos que demonstram sua ideologia. Um deles é a divisão que
existe entre os cegos das camaratas. Tal divisão também existe na
sociedade, de acordo com o Manifesto do Partido Comunista:
Tod a soc ie da d e até a q ui e x i ste n te r e p ou s o u, c om o
vi m o s, n o a nt a g on i s m o en tr e c la s se s d e op r e s sor e s e c la sse s
de op r i m i d os . ( p. 5 6)
São expostas, então, duas citações: a primeira da obra estudada; a
segunda, do Manifesto acima, para que a comparação seja facilitada:
...f i q ue i c om a i mpr e s sã o de ser e m u m gr u p o gr a n d e, e o
pi or é q u e e st ã o ar ma d o s.. .( p . 1 3 8)
A s oc ie da d e i nt eir a va i - se di vi d i n d o c a da vez ma i s e m
d oi s gr a n de s c a m p os in i m i g os , e m d u as gr a n d es c l ass es
di r et a me n te op os t a s e n tr e s i: b u r gu e sia e pr ol e t a r ia d o. ( p . 4 6)
Vê-se, nas citações, a divisão dos internos em dois grupos. A
burguesia seria então, na obra, os cegos malvados que têm arma de fogo
e outros instrumentos usados para coação, que representariam o capital:
A c on d i ç ã o ma i s e sse n cia l par a a e x is tê n ci a e a
d omi n aç ã o d a cl a sse b u r gue s a é a ac u m u laç ã o da r i q u ez a n as
mã os d e p ar t ic u lar e s, a f or m açã o e o a u m e nt o d o ca p it a l. ( p .
5 7)
Tal citação extraída do Manifesto do Partido Comunista reforça a
clara divisão de burguesia e do proletariado, que seriam os outros cegos,
ou seja, aqueles que pagam por um bem, no caso a comida, com sua força
de trabalho ou com trocas:
Ele s diz e m q ue i s s o ac a b ou , a par ti r d e h o j e q ue m q ui s er
c om er ter á d e pa ga r . ( p. 1 3 8)
21
... os m ei os de pr od u ç ã o e d e tr oc a à ba se d os q u a i s ve i o
se c on s ti t ui n d o a b ur gu e si a.. .( p. 5 0)
...a p r ó p ria b ur g u e sia é o pr od u t o de u m l on g o pr oc e ss o
de de se n v ol v i me n t o, d e u ma sér ie de r e v ol uç õ e s n os m od os de
pr od u ç ã o de tr oc a . ( p. 4 7)
Primeiramente, a troca se realizava pelos bens materiais que cada
cego de cada camarata devia entregar aos cegos malvados. Depois, por
serviço sexual das mulheres em troca de comida. Essa mudança é um
exemplo da revolução no modo de troca citada no último excerto.
Há,
posteriormente,
a
crescente
insatisfação
que
gera
as
manifestações:
Há se mpr e al gu é m q u e pr op õ e u ma a cçã o c olec t i va
or ga n iz a d ora , u ma ma n if e st a çã o ma c iç a, a pr e se n ta n d o c om o
ar gu m e nt o va le d or a ta nt a s v eze s v er if i ca da f o r ça e x pr e s si va
ex p a ns i va d o n ú me r o. ..( p. 1 6 1)
... os c h oq u e s e ntr e o op er ár i o e o b u r gu ê s si n gu l ar
as su me m c a da ve z ma i s o c ar át er de c on f li t os e n tr e d ua s
cla s se s. O s op e rá r i os c o me ç a m a f or ma r c oal iza çõ es c on t r a os
b ur gu e se s. .. ( p. 5 4 )
E, finalmente, o narrador-autor reafirma seu modo de vista:
...e c air - l he s e m c i ma , pa r a q ue a pr e n d e ss e m a re sp e i tar
o sa gr a d o pr i n c í p i o da p r opr ie da d e c ol ec ti va . ( p. 1 0 8)
Vê-se que o percurso realizado pelas personagens e suas ações
ligam-se à descrição histórica dada no Manifesto do Partido Comunista.
É mostrada, então, a falência do capitalismo, ou seja, de um sistema
opressor que privilegia poucos.
Além dis so, é notável que o narrador-autor aproxima sua narração
à ideia de inconsciente coletivo:
C om o a n d ar d os t e mp os , ma i s a s a c t i vi da d e s d a
c on vi vê n c ia e a s tr oc a s ge né tic a s, aca b á mos p or met e r a
c on sc iê n c ia na c or d o sa n gu e e n o s al da s lá gr i ma s, e, c om o
se t a nt o f os s e p ou c o, f ize m os d os ol h os u ma e sp é ci e d e
es pe l h os vi r a d os p ar a d en tr o, c om o r es u lt a d o, mu i ta s ve ze s,
de m os tr ar e m ele s se m r es er va o q u e est á va m os tr at a n d o de
ne ga r c om a b oc a . ( p. 2 6 )
22
Identifica-se, então, a ideia de inconsciente coletivo, que é “um
reservatório de imagens latentes, chamadas de arquétipos ou imagens
primordiais, que cada pessoa herda de s eus ancestrais. A pessoa não se
lembra
das
imagens
de
forma
consciente,
porém,
herda
uma
predisposição para reagir ao mundo da forma que seus ancestrais faziam.
Sendo assim, a teoria estabelece que o ser humano nasce com muitas
predisposições para pensar, entender e agir de certas formas.” 1
Há também a zoomorfização:
Ti n ha a i m pr e ssã o d e h a v er pi sa d o u ma pa st a mol e , os
ex cr e n t os d e a l gu é m q u e n ã o a c er t ar a c om o b u r a c o da r etr e te
ou q ue r e s ol ve r a a li vi ar - se se m q uer er sa b er mai s de
r esp e it os . ( p. 9 6)
...e r a d e m orr er , u n s q ua n t os c e g os a a va n ç ar e m de
ga ta s, d e ca r a r e n te a o c hã o c om o s uí n os . .. ( p. 1 0 5)
... u ma f i la g r ot e sc a de f êm ea s ma lc h e ir osa s, c om a s
r ou pa s i mu n d a s e a n d ra josa s, par e ce i m p oss í ve l q u e a f or ç a
an i ma l d o se x o se ja a s si m tã o p od e r os a, a o p o nt o d e ce ga r o
ol f ac t o, q ue é o m ai s de l i ca d o d os se n ti d os .. . ( p. 1 7 4)
Os c e g os r e li n c ha r a m, d er a m pa t a d as n o c hã o. .. ( p. 1 7 6 )
... q ui nz e m u l her e s e spar r a ma da s na s c a ma s e n o c h ã o, os
h ome n s a i r d e u ma s p a r a ou t ra s, r e sf ol e ga n d o c omo p o r c os.. .
( p. 1 8 4 )
Os homens são nivelados aos animais, o que indica uma visão
naturalista, pois ressalta fatores biológicos como o sexo, o instinto, a
violência e as mazelas humanas. Com isso, o us o que se faz da razão é
questionado, assim como a dignidade humana.
É possível identificar o rompimento de preconceitos:
...f ic a n d o p or vi a de m on s tr a d o, ma i s u ma ve z, q ue a s
ap ar ê n c ia s sã o e n ga na d or a s, e q ue nã o é p e l o a s pec t o da c ar a
e pel a pr e s tez a d o c or p o q u e se c on h e c e a f or ça d o c or aç ã o.
( p. 1 7 0 )
A mulher, a quem o trecho faz referência, é a rapariga dos óculos,
uma prostituta. Vê-se, então, que ela não é condenada nem criticada pelo
narrador-autor, o que freqüentemente ocorre na sociedade. Esse valor
1
Disponível em: http://www.10emtudo.com.br/artigos_1.asp?CodigoArtigo=53&Pagina=6
23
social negativo é alterado. Isso se dá também quando as mulheres
precisam prestar serviços sexuais aos cegos malvados para receberem
alimento. Não haveria outra saída para se alimentarem e, finalmente, o
rotulado e o pré-concebido são rompidos.
É possível identificar outra mudança de valor referente à igreja e
aos dogmas religiosos:
Pe n se i q ue par a t er m os c h e ga d o a o q ue
al gu é m m ai s te r i a d e e st a r ce g o. .. ( p. 3 0 2)
c he g á m os
Tal fala da mulher do médico é proferida quando, na igreja, vê que
os santos têm seus olhos vendados. A religião, meio de obter conforto
espiritual se mostra anulada. Isso significa que a religião não será uma
salvação para a cegueira. O narrador-autor, finalmente, se mostra adepto
ao ateísmo, incrédulo, não acredita na religião como forma de salvação
e, então, nega a existência do divino.
Além disso, não há denominação de personagens, locais ou
qualquer referência a tempo histórico. Isso ocorre porque:
Nã o há di f e r e nç a e n tr e o f or a e o de n tr o, e n tr e o cá e lá ,
en tr e os p ou c os e os m u it os, e n tr e o q ue vi ve m os e o q ue
ter e m os d e vi ve r ... ( p . 2 3 3)
O mu n d o e s tá t od o a q u i de n t r o. ( p . 1 0 2)
Com isso, a obra ganha o caráter de universalidade e é mostrado,
finalmente, o universal pelo particular.
Faz parte da ideologia, da mesma forma, não enquadrar o discurso
totalmente no discurso direto ou indireto livre, os mais explorados na
obra. Assim, o rompimento com o catalogado e pré-concebido é refletido
na novidade da construção da linguagem e é sugerido, então, um meio
diferente de enxergarmos o mundo. Tal tópico, contudo, será melhor
explorado no tópico “Tipos de discursos”.
Finalmente, o uso de sintagma congelado é um modo de propor
algo novo, um novo sentido para a vida. Usa o solidificado, o velho para
desformatar, quebrar estruturas já conhecidas. Trabalha o novo na
24
linguagem já pronta e repete para conservar o que já existe. Através da
linguagem, então, o narrador-autor já expõe seu conjunto de ideias.
Parte II - Nível do enunciado
Tema
O tema de Ensaio sobre a cegueira é o não saber reparar.
Ação
A obra mostra uma linearidade dos acontecimentos. Conta-se uma
história que já aconteceu cujos fatos são mostrados sequencialmente.
Personagem
A mulher do médico é a personagem que sobressai na obra. Tanto
por ter conservado sua visão, seus valores humanos de solidariedade e
compaixão e por ser altruísta.
O narrador-autor trabalha a expressão “Em terra de cegos quem
tem um olho é rei”, pois, assim como um rei é soberano, a mulher
também apresenta soberania de caráter ao ajudar os outros:
... de vi a ser d ot a da d e u m s e xt o s e nt i d o, u m a es pé ci e de
vi sã o se m ol h os, gr aç as a iss o é q ue os p ob r e s i n f eli z e s n ã o s e
f icar a m a li a c oz er a o s o l... ( p. 1 9 6)
Nã o m a n d o, or ga n iz o o q u e p os s o, s ou , u n ica me n te , os
ol h os q u e v oc ê s de i x a r a m de te r , U ma e s pé cie d e c h e f e
na t ur a l, u m r ei c om ol h o s n u ma t er r a de ce g os .. . (p . 2 4 5 )
Contudo,
seu
privilégio
de
conservar
a
visão
acarreta
a
responsabilidade de coordenar e ajudar seu grupo, o que implica,
conseqüentemente, um fardo físico e mental, pois registra as cenas que
vê. Tal personagem se vê obrigada a testemunhar as misérias dos
enclausurados no manicômio e sua degradação humana:
Pe la pr i m eir a ve z, d e sde a q u i e ntr ar a,
mé d ic o se nt i u- se c om o se e s ti ve s se p or
mi cr osc ó p i o a ob s er va r o c o m p or ta m e nt o d e u n s
p od i a m ne m s e q ue r s u spe it ar d a s ua pr e se n ça, e
lh e s u bi ta m e nt e i n d i gn o, ob sc e n o... ( p . 7 1)
a mu l h er d o
t rá s de u m
ser es q u e nã o
i st o p ar e c e u-
25
E t u, c om o q uer es t u q ue c on t i n u e a ol h a r p ar a e sta s
mi sér i a s, t ê- la s p er ma n e nt e me n te d ia n te d os ol h os ...
Se t u p u de sse s ver o q u e e u sou ob r i ga da a ver ,
q uer er i as e sta r ce g o. . . ( p. 1 3 5 )
Uma possibilidade, finalmente, para o fato de que mulher do
médico não tenha ficado cega, pode ser seu altruísmo, caridade e
filantropia, explícitas desde o início até o final da obra.
Espaços
Ambiente físico
O espaço físico descrito na obra, primeiramente, é a cidade:
Al gu n s c on d u t or e s já s alt ar a m p a ra a r ua, d isp os t os a
em p u r ra r o a ut om ó ve l e mp a n a d o.. . ( p. 1 2)
As ruas da cidade, espaço onde a cegueira é iniciada, apresenta o
maior fluxo de carros e há a caracterís tica de movimento frenético. É
interessante notar que foi nesse ambiente conturbado que a cegueira se
iniciou:
Os a u t om ob i l i sta s, i mp a cie n te s, c om o p é n o pe d al da
em b r ai a ge m, ma nt i n ha m e m t e ns ã o os c ar r os, a va n ça n d o,
r ec ua n d o , c om o ca va l os ner v os os q ue se n t i sse m vir n o a r a
ch i ba t a. ( p . 1 1)
Esse é o período de maior agitação veicular e de menor paciência e
respeito entre os motoristas, o que indica um dos possíveis f rutos para a
cegueira metafórica: a corrupção das relações humanas.
O segundo espaço físico encontrado é o manicômio, para onde os
cegos são levados:
... há tr ê s ca ma r a t as à d i re i ta e tr ê s à e s q uer da, ca d a
ca mar at a te m q ua re n ta c ama s. .. ( p . 1 1 2)
A os p ou c os, sob a l uz amar e l a da e su ja da s lâ m pa d as
dé b ei s, a ca ma ra ta f oi e nt r a n d o n u m s on o pr of u n d o.. . ( p. 1 5 1)
O ambiente desse espaço é caracterizado pela degradação humana
lá sofrida. Não há condições para se manterem higienizados e há
excremento humano por toda parte.
Primeiramente, a ala esquerda do
hospício é destinada àqueles que ainda não cegaram, os infectados.
26
Posteriormente à chegada de mais cegos, elas são habitadas por eles, que
se tornam dominadores da comida e portam arma de fogo.
Do lado direito há a camarata da mulher do médico, que poss ui
uma vantagem:
Na ca ma ra ta já t od a a gen te e st a va ac or d a da , pr on t a p ar a
r ece b er o se u q ui n h ã o, c om a e x per iê n c ia h a v ia m est a be le ci d o
ali u m m od o ba sta n te c ó mod o d e f az er a d ist r i b uiç ã o.. . ( p.
1 3 7)
Por estarem ali há mais tempo que os demais, organizavam-se
melhor. Apresentavam, também, solidariedade com outros membros da
camarata.
Um símbolo relevante que aparece em tal espaço é o fogo, ateado
por uma mulher à camarata dos malvados:
C om e ça pe la c a ma d e ci m a, a la bar e da la m be
tr a ba l h os a me n te a su ji d a d e d os t e ci d os , e nfi m pe ga , a g or a a
ca ma d o me i o, a g or a a c am a de b ai x o. . . ( p. 2 0 6)
O fogo é uma imagem que se relaciona ao renascimento, à
ressurreição.
Além disso, uma mesma palavra em sânscrito designava
“puro” e “fogo”.
De
acordo
com
o
Dicionário
de
Símbolos
de
Chevalier
e
Gheerbrant, o fogo é “sobretudo o motor da regeneração periódica”
(1993, p. 441). Tal simbologia está, então, em equilíbrio com a obra, já
que depois do fogo os cegos saem do espaço fétido e degradante do
manicômio para as ruas e um novo tipo de organização surge. Andam em
grupos agora e há mais tolerância quanto às esbarradas dos outros cegos.
Quando saem do manicômio, habitam as ruas por um período:
O asp e c t o d a s r ua s p i or a va a c a ca h or a q u e ia pa s sa n d o.
O li x o par e ci a mu l t i pl i ca r- se d ur a nt e a s h or as n oct u r na s, er a
c om o s e d o e x ter i or , d e al gu m p a ís de sc on h e c i d o on d e a i n da
h ou ve s se u ma vi d a n or ma l, vie sse m pe la ca l a d a de spe ja r a q ui
os c on t e n t or e s.. . ( p. 2 9 4 )
O valor do espaço aberto das ruas é invertido. Um espaço
destinado à circulação de pedestres e automóveis possuía antes a
27
característica de circulação de veículos de trânsito. No momento de saída
dos cegos, contudo, o mesmo se torna moradia fixa de alguns.
O penúltimo espaço relevante é a casa do médico e de sua mulher.
Tal espaço fechado não se assemelha nem ao manicômio nem às ruas. É
um lugar de descanso, de limpeza, de respeito e solidariedade do grupo e
de quietação do estômago, já que ela saía frequentemente em busca de
alimento.
É interessante perceber o símbolo da água em tal espaço:
O cé u e r a , t od o e le , u m a ú n ic a n u ve m , a c h u va de sa b a va
em t or r e nt e s. N o c hã o d a var a n d a , a mon t oa d as, e sta va a s
r ou pa s su ja s q ue ha vi a m de spi d o, es ta va o sa c o de pl á st i c o
c om os sa pa t os q u e e r a m pr e c is o la va r. La var . ( p. 2 6 5 )
... b us ca va na c oz i n h a t u d o o q u e p u d esse ser vi r p ar a
li m pa r u m p ou c o, a o m e n os u m p ou c o, e sta su ji da d e
in su p o r tá ve l da al m a. ( p . 2 6 5)
A água, de acordo com o já citado Dicionário dos Símbolos, possui
três significações simbólicas: fonte de vida, meio de purificação e centro
de regenerescência. Vê-se sua característica purificadora, assim como o
fogo. A água é “fonte de vida e fonte de morte, criadora e destruidora”.
A morte, na obra, representa o fim à imundície tanto espiritual quanto
física que ainda emanava do manicômio e a vida é a renovação ambiental
derivada da fuga do antigo espaço.
É pos sível perceber um contraste: a água que vem do alto, de cima
e que representa pureza é contrastada com a imundície em que se
encontra, no baixo.
Finalmente, o último espaço é a Igreja. Quando o médico e sua
mulher lá chegaram, havia pessoas que buscavam compaixão das
entidades espirituais e têm sua crença abalada ao saber que os olhos das
estátuas dos santos estavam vendadas:
... o ma u f oi h a ve r n o a j u nt a me n t o u m as q u a nt a s p ess oa s
su pe r st ic i osa s e i ma gi na ti va s, a i de ia de q u e a s s a gr a d as
i ma ge n s e st a va m c e ga s , de q ue os se u s m i se r ic or di os os ou
sof r e d or es ol h ar e s nã o c on t e mp l a va m m ai s q u e a su a pr ó pr i a
ce gu e i r a, t or n ou - s e s u b i ta me n te i nsu p or tá ve l, ( . . . ) l o g o o me d o
f ez l e va n ta r t od a a ge nt e . .. ( p. 3 0 3)
28
Ao constatarem que não estavam sendo amparadas pelos santos, as
pessoas fogem. Não buscam mais o conforto espiritual ao verem que se
encontram ao redor de estátuas cegas como eles. É mostrada a fragilidade
de uma crença.
Ambiente social
O ambiente social que predomina na obra é o conflito e a
fragilidade das relações humanas.
Tempo
Tempo cronológico
O tempo predominante na história é o cronológico, pois as ações
são desenvolvidas sequencialmente:
Pa ss ou u ma h or a , su b i u a lu a, a f om e e o te mor af as ta m
o s on o... ( p. 2 0 5)
Os r el ó gi os d e t od os e le s e sta va m par a d os , t i n ha m- s e
es q ue ci d o d e l h es dar c or d a ou a c har a m q ue já n ã o va l ia a
pe n a, só o da m ul h er d o mé d ic o c on t i n ua va a tr a ba l har . ( p 7 6 )
Há, como se nota nos excertos, uma ordenação cronológica dos
fatos marcada pelo relógio da mulher do médico e a temporalidade
dia/tarde/noite.
Tempo psicológico
Segundo o livro Introdução à análise da narrativa, Benjamin
Abdala Júnior diz que, além da marcação cronológica, ocorre com
frequencia o tempo psicológico. Esse é o “tempo cronológico distorcido
em função das vivências subjetivas das personagens”:
C on t e- me lá e nt ã o o q ue se pa s sa c on s i g o. O c e g o
ex p li c ou q u e e st a n d o de nt r o d o car r o, à e spe ra de q u e o si n al
ver m el h o m u d a s se. .. ( p. 2 2)
O v e l h o da ve n d a pr et a f o i n ar ra n d o est e s tr em e n d os
ac on t e ci m e nt os d e ba n ca e f i n a nça e n q ua n t o atr a ve ss a va m
va ga r os a me n te a c i da de. . . ( p. 2 5 5)
O
narrador-autor
paralisa
momentaneamente
sua
narração
cronológica para dar lugar à explanação que o primeiro cego faz sobre
29
como perdeu a vista e ao velho da venda, que explica o que acontecia
fora do manicômio.
Há, também, tempo psicológico quando cada um dos cegos da
camarata diz aos demais como foi que cegaram, o que remete,
finalmente, às vivências subjetivas das personagens.
Tempo da narração e tempo da narrativa
O tempo da narração é o século XX, no ano de 1995.
Com relação ao tempo da narrativa, é possível afirmar que não há
dados na obra que nos permita encaixá-la em determinado período
histórico especificamente. Pode-se, contudo, dizer que pertence ao
século XX, pois há vários elementos que comprovam sua modernidade,
tais como: carros, avenidas, prédios, freezers e supermercados.
Parte III - Recursos de estilo
Tipos de discursos
Quanto ao uso do discurso direto, indireto e indireto livre, é
necessário lembrar seus conceitos.
O discurso indireto é caracterizado pela utilização das próprias
palavras do narrador para reproduzir a fala das personagens; pela
introdução da fala no texto por um verbo declarativo (dizer, afirmar,
ponderar, confessar, responder, etc) e, finalmente, a existência de uma
oração subordinada substantiva:
...e di sse- o a os s e us, q ue ser ia me l h or e spe r ar q ue a
n oi te ac a b a sse ... ( p . 2 1 2 )
O efeito de sentido causado é a subordinação da personagem ao
narrador-autor, que produz somente a essência da fala daquela. Tal forma
de discurso é menos explorada na obra.
O discurso direto é caracterizado pela reprodução fiel da fala das
personagens;
pela
naturalidade
e
vivacidade;
pelo
avivamento
da
personagem para o ouvinte; pela emotividade na expressão oral e,
finalmente, pelos sinais de interjeições, exclamações, interrogações,
vocativos:
30
Re s sur gir á, p er gu n t ou a ra p ar i ga d os ó c ul os e sc ur os ,
Ela , n ã o, r e s p on d e u a mul h e r d o m é di c o. .. ( p. 2 8 8)
Nota-se que o discurso direto do narrador-autor não apresenta
alguns pontos
explicitados na
definição
acima.
Não contém,
por
exemplo, os sinais de pontuação exclamação, interrogação e interjeições.
Apresenta,
contudo,
a
reprodução
fiel
da
fala
da
personagem,
naturalidade e vivacidade.
No discurso indireto livre, as falas não são introduzidas por verbos
como responder, dizer, afirmar, etc. e não são separadas da fala do
narrador por conjunções (como no indireto) ou sinais de pontuação
(como no direto). C ontém, contudo, orações interrogativas, imperativas,
exclamativas, interjeições e outros elementos expressivos:
O a ju d a n te d e f ar mác i a p e di u l ic e n ça p ar a f al ar c om o
se n h or d ou t or , g os t ar ia q u e o se n h or d ou t or l he di s se ss e se
ti n ha, sob r e a d oe nç a, u ma op i n iã o f or m a da, N ã o c re i o q u e l he
p oss a c ha m ar , e m se n ti d o pr ó pr i o, u ma d oe nç a , c om eç ou p or
pr e ci sar o mé dic o, e d e p oi s, s i mpl ifi ca n d o mui t o, r e s u mi u o
q ue i n ve sti g ar a n os l i vr os a n te s de ter c e ga d o. ( p . 7 0)
Vê-se que o narrador-autor não utiliza algumas características do
discurso indireto livre,
como os elementos expressivos
ponto
de
interrogação e de exclamação.
Finalmente, é possível afirmar que o discurso do narrador-autor
não se encaixa completamente nos principais discursos mostrados na
obra: o direto e o indireto livre. Com iss o, ele procura romper o que já
está catalogado, cristalizado e pré-concebido. Finalmente, sua meta de
renovação de conceitos e conteúdo se mostra também no plano na
expressão com a inovação linguística.
Classificação do gênero
O gênero da obra Ensaio sobre a cegueira é romance, apesar de
denominado ensaio. O romance é uma forma narrativa que se volta ao
homem como indivíduo e, de acordo com Angélica Soares, “... as
narrativas que, nos moldes impressionistas, são calcadas no fluxo de
consciência e nas análises psicológicas, ou as que optam por uma forma
de realismo maravilhoso ou de ficção-ensaio”.
31
Além
das
características
acima,
podemos
encontrar
os
componentes básicos de um romance: o enredo, as personagens, o
espaço, o tempo e o ponto de vista da narrativa, como expostos no
trabalho.
Finalmente, esse ensaio que é um romance reflete a quebra com o
rotulado que o narrador-autor busca.
Intertextualidade
Há várias intertextualidades na obra. Uma delas é com Ilíada:
...a i n d a f oi ca pa z d e re c or da r o q ue H om e r o es c r e ve u n a
I lía d a, p oe ma da m or te e d o so fr i me n t o, ma i s d o q ue t od os.. .
( p. 3 6 )
Há intertextualidade com o poeta brasileiro Carlos Drummond de
Andrade:
Fe z c o m o e u, pe n s ou a mu l he r d o mé d ic o , d eu- l he o
lu ga r m ai s p r ote gi d o, b em f r a ca mu r al h a s ser í a mos , s ó u ma
pe dr a n o me i o d o c a mi n h o .. . ( p. 6 3)
De u ma da s ca i x a s de rr am a va - se u m l í q u i d o b r a n c o q ue
le nt a me n t e se ia a pr ox i ma n d o d a t oa l ha d e sa n gu e , p or t od os
os vi st os de v i a ser le i te , é u ma c oi sa q u e nã o e n ga n a. ( p.. 9 1 )
O primeiro excerto se relaciona com o poema “No meio do
caminho”, publicado no livro Alguma Poesia, de 1930:
“N o m ei o d o ca m i n h o t i n h a u ma pe d ra
Ti n ha u m a pe dr a n o me i o d o c a m i n h o
Ti n ha u m a pe dr a
N o me i o d o c a mi n h o ti n ha u ma pe d r a
N u nca me e sq u e cer e i de s se a c on te ci m e nt o
Na vi d a de m i n ha s r et i n as tã o f at i ga da s.
N u nca me e sq u e cer e i q u e n o me i o d o c a mi n h o
Ti n ha u m a pe dr a
Ti n ha u m a pe dr a n o me i o d o c a m i n h o
N o me i o d o c a mi n h o ti n ha u ma pe d r a. ”
Já a segunda citação mostra intertextualidade com o poema do
mesmo autor chamado “Morte do leiteiro”, publicado no livro A Rosa do
Povo, de 1945. Aqui está um trecho:
32
“Da ga r ra f a e st il h a ça d a,
n o la dr il h o já ser e n o
esc or r e u m a c oi sa e s pe ssa
q ue é l ei t e, s a n gu e. .. nã o se i.
P or e n tr e ob j e t os c on f u sos ,
ma l r e di m i d os da n oi t e ,
d ua s c or e s se pr oc u r a m,
sua ve m e nt e se t oca m ,
am or o sa me n te se e nl a ça m,
f or m a n d o u m t er c eir o t o m
a q u e c h a ma m os a ur or a. ”
Isso mostra a força da poesia modernista no Brasil, reconhecida no
exterior.
Há, finalmente, intertextualidade com a Bíblia:
...i ma g i n e- se a s or te q u e s er i a sa ber al gu é m a Bí b li a de
c or , r e pe tí a m os t u d o d e s de a cr ia ç ã o d o mu n d o. . . ( p. 1 1 0)
Fato que revela que o narrador-autor conhece o que é exposto em
tal livro, apesar de ser ateu.
Considerações Finais
Aprendemos que a história da humanidade e o universal são
mostrados por meio do particular da cultura portuguesa em Ensaio sobre
a cegueira.
Foi possível experimentar o modo inteligente e criativo pelo qual a
obra é construída, algo nada visto na história da literatura anteriormente.
Verifica-se, então, que Saramago é um gênio admirável da cultura
portuguesa e sua obra deve ser amplamente explorada e lida.
É necessário abolir o individualismo exacerbado e considerar a
sociedade como um todo, passar a ver o inteiro, e não o incompleto.
Aprendemos, finalmente, a deixar de ver o mundo de uma maneira préconcebida.
REFERÊNCIAS
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SOARES, Angélica. Gêneros Literários. Ed. Ática. Série Princípios. 1989.
33
PLATÃO, Francisco e FIORIN, José L. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo:
Editora Ática, 1997.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1993.
ABDALA JÚNIOR, Benjamim. Introdução à análise da narrativa. São Paulo:
Scipione, 1995.
ANDRADE, Carlos D de. A Rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2006.
MARX, Karl e ENGELS, Friederich. Manifesto do partido comunista. São Paulo:
Martin Claret, 2003
34
“AO VERME QUE PRIMEIRO ROER AS FRIAS CARNE S DO MEU
CADÁVER, DEDICO, COM SAUDOSA LEMBRANÇA, ESTAS
MEMÓRIAS PÓSTUMAS.” - UMA ESTÉTICA DA
(DE S)E SPERANÇA EM MACHADO DE ASSIS.
Pa u l o C é sa r CE DRA N
*
Resumo:
O objetivo desta comunicação é discutir os aspectos socioculturais
que influenciaram Machado de As sis ao trabalhar na construção da
estética da desesperança, a partir da obra “Memórias Póstumas de Brás
Cubas”. O autor, ao introduzir o personagem morto, Brás Cubas,
apresenta a possibilidade de produzir uma crítica fora de alguma relação
com a sociedade e para a própria vida, feita a partir da crueldade do
pessimismo; uma alternativa crítica à sociedade brasileira, no final do
século XIX, por meio do desenvolvimento da teoria do Humanismo pelo
personagem, o filósofo Quincas Borba. Existe uma visão caricaturada de
um propósito positivista que inspirou o nascimento da República
Brasileira. Um paralelo entre os personagens do livro “Memórias
Póstumas de Brás Cubas” pode ser traçado com a condição de um
extremo individualismo e falta das utopias da sociedade pós-moderna.
Palavras-chave: C ríticos literários ; Estética da (dês)esperança;
Sociedade e economia no final do século XIX; Crítica machadiana;
estética e literatura em Machado de Assis.
"TO THE WORM WHO FIRST GNAWED ON THE COLD FLESH OF MY
CORPSE, I DEDICATE WITH FOND REMEMBRANCE THESE
POSTHUMOUS MEMOIRS." – AN AESTHETIC OF HOPELESSNESS IN
MACHADO DE ASSIS.
Abstract:
The aim of this communication is to discuss the socio-cultural
aspects that influenced Machado de Assis’ work in the creation of a
hopelessness aesthetic from the work The Posthumous Memoirs of Bras
Cubas. The author, by introducing the dead character Bras Cubas,
presents the possibility of producing a criticism regardless of any
relation with the society and life based on the cruelty of pessimism, an
alternative critic to the Brazilian society at the end of the nineteenth
century and develops the theory of Humanism by the philosopher
character Quincas Borba. There is a caricatural view of a positivist
purpose that inspired the birth of Brazilian Republic. A parallel between
the characters in The Posthumous Memoirs of Bras Cubas may be traced
with the condition of extreme individualism and absence of utopias in
the post-modern society.
*
Mestre em Sociologia. Doutor em Educação Escolar pela UNESP/Araraquara, Supervisor de Ensino
da Diretoria de Ensino – Região de Taquaritinga, Docente do Centro Universitário Moura Lacerda de
Jaboticabal e da UNESP de Taquaritinga. E-mail: [email protected]
35
Keywords: Literary critic; Hopelessness aesthetic; Society and economy
at the end of the nineteenth century; Machadian criticism; Aesthetic and
literature in Machado de Assis.
Introdução:
Bem ao estilo machadiano, a comemoração de seu centenário de
morte deveria suscitar em seus críticos e analistas uma preocupação não
somente com os aspectos apenas estéticos de sua obra ou a corrente
literária que o autor transitou, mas, aos exemplos de sua ácida crítica à
sociedade do século XIX, que se esforçava para alçar patamares de uma
civilização alter ego da Europa industrial, que da fachada apenas
retomaria uma pres ença modernizadora, marcada por um processo de
modernização conservadora na definição dada ao tema por Simon
Schwartzman.
A pretensão um tanto audaciosa deste artigo é procurar identificar
os principais aspectos presentes na obra de Machado de Assis, no sentido
de construir o que chamamos de uma estética da desesperança, que a
nosso ver marcou profundamente sua concepção criadora, principalmente
a partir da publicação de sua obra Memórias Póstumas de Brás Cubas,
extensamente analisada por Roberto Schwarz. Assim, nossa preocupação
será traçar um paralelo entre os aspectos de sua crítica social na
correlação com os personagens presentes em sua obra literária. Essa
atualidade da desesperança, presente na obra de Machado, não nos
permite furtar suas observações de uma sociedade brasileira arcaica, que
se traveste de moderna mas, profeticamente, permanece, na essência,
inalterada, para infelicidade de Machado e da maioria, se assim podemos
dizer de seus membros.
Vivenciando as mudanças na sociedade brasileira
Situando Machado de Assis em seu período histórico, poderemos
traçar as características de sua época e verificar que o Brasil, sob o
aspecto sociopolítico-econômico, não era o mesmo que o viu morrer.
A queda do império, o surgimento da república, o fim do tráfico
negreiro e depois da própria escravidão marcarão um período de
transição econômica que culminará com a revolução de 30 e passagem de
36
um Brasil agrário, centrado na produção exportadora, para um B rasil
prestes a começar um ciclo econômico baseado na industrialização (1930
-1945), sem, contudo, resolver os graves problemas de desigualdade
cultural e política do país.
Assim afirma Lajolo, lembrando o grande processo de transição,
que mesmo tendo garantido a queda do império e o início da República,
pouco representou sobre o aspecto sociopolítico do país.
Ma s, a té oc or r er a A b ol içã o, f or ta le c e u- se o ca f é, ou tr o
ca pí t ul o d e n oss a ec on o mia , q u e c o m eç a va a da r l ucr os al t os ,
ma i or e s d o q u e os da ca na . E o c af é nã o e r a mo vi d o pe l o
br a ç o
esc r a v o:
era
p l a n ta d o
e
c om er cia li za d o
em
b a se s
di f er e n te s, ma is m od er n as, de per f il ca p it a li s ta . Nã o b a sta va
ter ter r as par a pla n ta r : e ra pre ci s o t a mb é m d i n he iro , d i n he ir o
par a c omp r ar m ai s te r r a s e má q ui n a s, p ar a a gü e nt a r os a n os de
cr e sci m e nt o d a p la n t a, p ar a e st oc a r . Pa r a p od er l e var o
pr od u t o a os p or t os .
Foi q ua n d o a I n gl a ter r a f i n a nc i ou o ca f é br a s ile ir o. E
até h o je n ã o pa ga m os a dí vi d a, a f a m osa dí vi d a ex ter n a ...
De p oi s ve i o a Re p ú b lic a e t u d o f i c ou c om o d a n te s. O
Br a s il c on t i n ua va s e m i n d ú str ia , i mp or ta n d o o q ue c on s u mi a .
E
c on ti n u a va
ta m b é m
de pe n d e nt e ,
copiando
as
m od a s
eur op é i a s, m od a s à s v ez e s l i be r a i s e s u b ver si v a s, c om o a s
id éi a s da Re p ú b l i ca.
O Im p ér i o, n o se u i níc i o , se r vi a a os i n te re sse s d o aç ú c ar
– i n ter es se s c o n se r va d o r e s, q u e f a v ore cia m os q ue j á e s ta va m
n o p od e r . Já os f a ze n d e ir os d e ca fé p r ec i sa va m d ef e n der os
se u s i n te r e sse s, pr ec i sa v a m d e n o va s l ei s, de u m n o v o m o d el o
p ol ít ic o. P r ec i sa va m, e nf i m, d a s r é de a s d o p o der . ( LA JO LO ,
1 9 8 1, p p . 1 0- 1 1)
E como reafirma Alfredo Bosi:
D oi s e x e mpl os f or te s b as ta m : Ma c ha d o d e A s sis e Cr uz e
So u sa, o ma i or r om a n c i sta e o ma i or p o e ta d o sé c ul o X I X
br a si le ir o,
pr o va ra m,
n os
se u s
a n os
de
i n fâ n cia
e
ad ol e sc ê nci a, os a l t os e b ai x os de ssa c on d i çã o de af i l ha d os
37
se m a q ual , d e r est o , d i f ic i l me n te t er ia m va r a d o a s b ar r e ir a s
da p e l e e d a c la sse. ( B O SI, 1 9 9 2, p . 2 6 6) .
Essas “novas” leis ou novos modelos serão alvos importantes de
Machado de Assis nos agitados anos 80 do século XIX, sob os quais o
autor escrevera as célebres críticas em jornais e revistas cariocas a partir
de 1858, publicando contos, críticas literárias e teatrais.
A Familiaridade com os livros
A peculiaridade desse mulato de nascimento pobre seria marcada
por uma característica que o mesmo em sua obra criticará como um dos
sinais de atraso presentes na sociedade brasileira do século XIX, ou seja,
a característica do apadrinhamento, lembrando a crítica de Raimundo
Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, como referência ao patrimonialismo
lusitano reforçado em nossas terras.
Além de seus esforços e inteligência, seus padrinhos ricos e
influentes, do batismo, aproximaram-no de intelectuais jornalistas que
lhe deram as primeiras oportunidades. Assim diz Lajolo:
A pr ot e çã o de u m pa dr i n h o q u e e l e nã o t i ve r a na
in f â nc ia a par ec e u a os de ze ssei s a n os : Pa u la Br i t o, d on o de
u ma
ti p o gr af i a
e
l i vr a r ia ,
que
p u bl ic ou
na
Mar mo t a
Fl u mi ne n se o p oe m a “ E la” . Do i s a n os de p oi s , o me s m o Pa u l a
Br i t o c on t r a t ou se u pr ot e gi d o p ar a t ra b al har e m s ua l o j a :
Mac ha d o c orr i gi a or i gi na i s, f az i a r e vi sã o d e te xt os e, n as
h or a s va ga s, tr a ba l ha va c om o ca i xe ir o, ve n d e n d o li vr os .
A pr e se n ça c o n st a nt e d e Ma c h a d o n o a mbi e nt e da
li vr ar ia f a ci l i t ou - l he os c ont a t os úte i s c om ge n te i m p or ta nt e .
E f oi e st a ge n te, p or sua ve z, q u e l he a br i u n o va s p or ta s,
da n d o- l he op or t u ni da d e de c on t i n ua r a p u b lic a çã o de se u s
esc r it os e m vár i os jor n a is e r e vi s ta s. Ma c ha d o v ai t e mp e r a n d o
a m ã o e ac er ta n d o o pa s so. C ome ç a a ger m i nar o f ut ur o a u t or
de Me mó r ia s P ó st u ma s. ( LOJO LO , 1 9 8 1, p. 1 5) .
A objetividade presente na obra Memórias Póstumas de Brás
Cubas marcará uma das principais formas de expressar o mundo: o
38
realismo-materialismo,
fundamentado
na
reprodução
objetiva
das
características observadas na realidade, tentando eliminar a s ubjetividade
do autor, que atuaria como dissimulador da realidade.
Como afirma Faraco e Moura:
Foi u m a é p oca m ar ca d a pe la c r e nç a n o pr o g r ess o da
ci vi li zaç ã o i n d us tr i al e me câ n ic a. Se gu n d o o e s cr it or f r a n cê s
Fla u b er t ‘ de p oi s da f al ê n cia de t o d o s os i de a i s, d e t od a s a s
ut o p ia s, a t e n dê nc ia a g or a é ma n t er - se d e ntr o d o c a m p o d os
f at os e d e n a da ma i s d o q ue d os f at os . ( FA R AC O; MO U RA,
1 9 8 6, p . 1 6 1)
A Estética da desesperança
A crença na civilização e no progresso industrial, sob clara
influência do positivismo comtiano, será interpretada de forma peculiar
por Machado de Assis, sob o aspecto que denominamos estética da
desesperança. Ao mesmo tempo em que seus romances da segunda fase
marcam sua principal incursão no mundo literário, que mesmo sob a
influência do realismo-naturalismo não deixa de fazer dessa percepção
realista e crua das principais contradições da sociedade brasileira a
referência, via ironia, de sua estética da desesperança, ou seja, ao
desvincular os personagens presentes na obra Memórias Póstumas, por
exemplo, em especial o próprio morto-narrador, Machado de Assis
descreve a descrença como o elemento ao mesmo tempo desarticulador
de um processo que pretensamente nenhuma mudança substancial atrairá
a
condição
social
e
econômica
que
ao
mesmo
tempo
poderia,
dialeticamente falando, servir como principal referência de uma reflexão
aguda a uma sociedade que precisava mudar.
Assim, Raymundo Faoro lembra que a obra de Machado de Assis
desfaz uma ilusão secularmente repetida: que o Brasil, no século XIX,
seria a aristocracia rural, dona do açúcar e depois do café, senhor de
terras e escravos, formando os polos dinâmicos da sociedade, e
complementa:
39
Ao l a d o da “ n ob r ez a r u r al” , de sde a pr i me ir a f or m aç ã o
br a si le ir a , na sc e u e cr esc e u u m a ou t r a c la s se , de c ome r c ia n te s
e d on os de c a pi ta is . C la sse a q u is it i va ou e spe c u la d or a , q u e s e
ex p a n di u e m c orr e la çã o c om a cl a ss e p r op r ie tá r ia, vi nc u la d a
ao
m er ca d o ,
h er de i r a
dos
c a pit al i sta s
p or t u gu e s e s,
r esp o n sá ve i s p e l os f or ne c i me n t os d e es cr a v os , e q u i p a me n t os e
ca pi t ai s p a r a i nst i t uir os e st a be lec i me n t o s r ur ai s e a d q u ir ilh e s
os
pr od u t o s.
V e n d ia
a os
pr op r ie tá r i os ,
os
be n s
ne ce ssár i os p a r a a pr o d uç ã o, a cr é di t os lar g o s, a d q uir i n d olh e s o a ç úca r, de p oi s o caf é , ba se d e gra n de s f or t u na s
ur ba n a s. D es sa cl a sse de c om er c ia n te s, tr af i ca n t es de e scr a v os
e ba n q u eir os é q ue sae m os C o t ri n s ( Me m ó r i as p ó st u ma s) , (. ..)
( FA O RO, 1 9 7 6, p. 2 3) .
É essa classe aquisitiva ou especuladora, sobre a qual Machado
direcionará sua crítica, que leva Faoro a afirmar que em muitos casos o
domínio rural se converte em domínio urbano, sem alteração de classe.
Assim Faoro resume a contradição do Segundo Reinado, quando
afirma:
Est e é o q u a dr o d o i de a li s m o d o Se gu n d o R e i na d o, c om
s ua s fe i ç õe s s oc ia i s e p si c ol ó gi ca s. Mu it o a mo r ve r b al a os
pr i ncí p i os , l ou v or es à s c ou sa s a b st r a t as q ue , tr a d uz i da s na
r eal i da de d o d ia, r e vel a m- s e i nc a pa z es d e aç ã o. ( FAO R O,
1 9 7 6. p . 1 6 9) .
Esse recurso, portanto, pode ter confundido muitos de seus leitores
a ponto de não conseguir identificar em sua obra esses aspectos
dialéticos que o tornaram referência crítica quanto às questões de ordem
social.
Assim
como
afirma
José
Veríssimo:
só
a
incompletude
de
compreender a natureza, tão firmemente articulada, como a nobreza
desses sentimentos, poderia reprová-los.
Veríssimo identifica que a esquisita nobreza desses sentimentos
torna-se referência essencial da crítica que Machado construirá e
demonstrará em seus romances, e complementa:
40
O e sse nc ia l é a al m a d o h o m e m. E ste f i n al c om pe n d ia a
es tét ic a de Ma c ha d o d e Ass i s. P oe ta ou p r os a d or , el e se nã o
pr e oc u p a se n ã o da a l ma h u ma na. E n tr e os n oss os e scr it or es ,
t od os ma i s ou me n os a te nt os a o pi t or e sc o, a os a s pec t os
ex te r i or e s da s c oi sa s, t od os pr i n ci p al m e nte d esc r it i v os ou
em ot i v os , e m u it os re su m i n d o n a d e scr i ç ã o t od a a su a ar t e, s ó
p or i ss o se c u n dár ia, a pe n as e le v a i alé m e ma is f u n d o,
pr oc u r a n d o,
sob
as
a par ê nc i a s
de
f ác il
c o nt e mpl açã o
e
i gu al m e nt e f ác il r el at o, d e sc ob r ir a me sm a es sê n cia da s
c oi sa s. ( VE RÍ SS I MO, 1 9 6 3, p p . 3 1 0- 3 1 1) .
Essa alma dos homens, que Machado buscará em seus personagens,
critica, a nosso ver, carregada pela influência constante das condições
socioeconômicas de sua época, a gestação da oposição dialética assumida
por Marx na obra Manuscritos Econômicos e Filosóficos.
A s oc ie d a de nã o tr a n sc e n de a e x pr e ssã o c ol e ti va d os
in d i ví d u os . Or ga n iza - se c omo u ni ve r s o f ei t o d e cer t e za da s
c oi sa s q ue d e se ja, de op ç õ es r ea li za da s – q u e t u d o já est á
as se n t a d o su s té m a f ac e de i m u ta b i l i da d e - , d e ca mi n h os e
pr e te n s õe s
a b sol u t a me nt e
d ef i n i d os .
De s sa
ma ne ir a ,
a
c ole t i vi d a de de f i ne- se p or me i o de u m p e n sa me n t o t ot al it á r i o,
am eaç a d or a m e nte
c o e r cit i v o
an i q ui li a n d o
d e sf ib r a n d o
ou
p ar a
e ve n t ua i s
ve l ei d a de s
di s si de n te s,
ma i s
f u n da s.
( SA N CHE Z, 1 9 8 2, p . 4 3 ).
O que na verdade José Veríssimo perceberá é que Machado
apontou com segurança pontos fracos e deslocados das correntes
literárias vigentes no país; entretanto, sem ter feito o ofício da crítica,
lastimou essa falta como um dos maiores males da nossa literatura.
Aceitando o desafio proposto por José Veríssimo, ao final de sua
obra Roberto Schwarz propôs em seus ensaios Ao vencedor as batatas e
Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, publicados
pela livraria Duas Cidades, uma das mais profundas análises da relação
literatura e sociedade presentes na obra de Machado de Assis. Essa densa
leitura de Schwarz nos apresenta como principal referência o conceito de
ideias fora do lugar. Sem entrar na polêmica de que se essas ideias que
41
fundamentavam a ordem política e social do país estavam ou não fora do
lugar e sobre qual contexto, procuraremos identificar nesse processo
como a chamada estética da desesperança aí se constitui e como s ua
influência marca a cultura política de nossa sociedade.
Assim Schwarz situa a singularidade de Machado de Assis na
definição de nosso contexto sociopolítico e econômico, citando:
La s tr e a d o pel o i nf i ni t o d e d ur ez a e de g r a da çã o q ue
esc on ju r a va – ou s e ja a e scr a vi d ã o, de q u e a s d ua s par te s
be n ef i c ia m a t i m br a m e m se d if er e n ç ar – e st e r ec on he c i me n t o
é de u ma c o n v i vê n c ia se m f u n d o, m u lti p li c a d a, a i n d a, pe la
ad oç ã o d o v oc a b ul ár i o b ur gu ê s d a i gu a l da d e, d o mé ri t o, d o
tr a ba l h o, da r a zã o. M ac ha d o de A ssi s s er á me s tr e ne s te s
me a n dr os. C on t u d o, ve j a - se ta m b é m ou tr o l a d o . Im er s os q ue
es ta m os, ai n d a h o j e, n o u n i ver so d o Ca p ita l, q ue n ã o c he g o u a
t om ar
f or ma
c om b i na çã o
c lá ss ic a
c om o
no
Br a s il,
i nt eir a m e nt e
t e n de mo s
de sva n t a jos a
a
ve r
est a
p ar a
n ó s,
c om p ost a s ó d e d ef e it o s. V a nta ge n s nã o h á d e te r ti d o; ma s
par a a pr e c iar de vi d a me nt e a s u a c om p l e xi da d e c on s i der e- se
q ue a s i déi a s da b u r g ue sia , a pr i nc í pi o v ol t a d as c on t r a o
pr i vi lé gi o, a p a rt ir de 1 8 4 8 se ha vi a m t o r na d o a p ol o gé tic a: a
va ga
d as
l u ta s
s oc i ai s
na
E ur op a
mos t r ar a
que
a
u ni ver sal i da d e d i sfa r ç a a n ta g on i s m os de c la s se . P or t a nt o, p ar a
be m l h e r e t er o ti m br e id e ol ó gi c o é pr ec i so c o n si d er ar q ue o
n oss o di sc u rs o i m pr ó p r i o er a oc o t a mb é m q ua n d o u s a d o
pr op r i a me n te. N ot e- se , de p as sa ge m, q ue e ste pa dr ã o ir i a
r ep et ir - se n o s éc. XX, q ua n d o p o r v ár ia s v eze s jur a m os ,
cr e nt e s de n oss a m od e r n i da de, s e gu n d o a s i d e ol o gi as ma is
r ota s d a ce na mu n d i al . P ar a a lite r a t ur a, c om o ver e m os ,
r esu l ta d aí u m la bir i nt o si n gu l a r , u ma es p éc ie de oc o de n tr o
de oc o. A i n da a q u i, Ma c h a d o se r á me str e . (S C H WA R Z, 1 9 8 8 ,
p. 1 9) .
Esse momento que caracterizava o contexto brasileiro, de que
nossas ideias estão fora de seu lugar, ou seja, esse condicionamento da
vida social, política e espiritual é que alimentará em Machado de Assis
essa estética da desesperança, a ponto de nos dar a impres são de que
42
pouca ou nenhuma alternativa de transformação estaria presente quando
desvinculada da crueldade e sordidez de muitos de seus personagens.
Faoro complementa:
Mu n d o d e br i nca d eir a, sá tir a se m c o m p r omi ss o c o m a
r eal i da de , me r o e s pe tá cu l o l ú d ic o d o a b s ur d o? A r et ór ic a ,
car ne da op i n iã o – da o pi n iã o q u e c o ma n da os h om e n s – te m
u m p a pe l ma i s pr of u n d o n es se m u n d o d e r ef le x os e de
ap ar ê n c ia s. E la e s tá e m l u gar da s e st r ut ur a s s oci a i s e da s
f or ç a s q u e c on st r oe m a hi s t ór i a. A i m a ge m de sf i gu r a o f a t o e
o ac on t e c i me n t o; o t e ci d o da s p al a vr a s s u b st it u i as i d e ol o gi a s
e as i dé ia s q ue tr a d u ze m ou e v oc a m a s c or re n t es d os s uce s sos
h u ma n os. N u m di a d e n o ve mbr o n ã o r u i u o I mpé r i o ne m
na sc e u u ma R e p ú bl ic a . ( FA O RO, 1 9 7 6, p. 1 7 7) .
Esse conceito de Faoro, de que a imagem desfigura o fato, refletese no próprio processo de desagregação do Império e formação de nossa
República, numa estética da desesperança que Machado cita em Esaú e
Jacó apud Faoro:
De se jo
de
m u d a nça ,
ha b i l i da d e
par a
su b j u ga r
os
ac on t e ci m e nt os , t u d o s o b a i n s p ir aç ã o da so rte . A d a nç a d os
mot i v os e d a s pa i x õe s se e x pr e s sa c om a pa la vr a t or nea d a ,
som b r a d o f a t o a b sur d o, de u m mu n d o e m q ue a f r ase r e ve la a
au sê n ci a de se n ti d o. ( FAO RO , 1 9 7 6, p. 1 7 8)
A nosso ver, seria essa desesperança que deveria provocar no
leitor uma sensação de enfrentamento com a própria obra, a ponto de
gerar uma sensação de aguda crítica à sociedade aristocrática e burguesa
e seus desmandos no país e no mundo.
Esse espírito mais crítico, citado por Jos é Veríssimo ao analisar a
obra
de
Machado
de
Assis,
é
identificado
também
no
romance
Ressurreição, onde Veríssimo lembra:
Ao i n vé s, de c lar a da me n te, a p on t a va a ou t r a c oi sa q ue o
r oma n ce
de
c os t u m es.
O
i nt er e sse
do
li vr o
er a
de li b e ra da m e nt e p r oc ur ad o n o “ e sb oç o d e u ma si t uaç ã o e n o
43
c on tr a st e de d oi s c a ra c t er e s”. A le n car , c o m C i n c o m i n ut os , A
Vi u vi n h a ( 1 8 5 6) , a l iá s si mple s n o ve la s, Lu c í ola ( 1 8 6 2) e D i va
( 1 8 6 4) , e
me sm o Ma n oe l de A l me i da , c o m o Sa r ge n t o de
Mil íc i a s ( 1 8 5 7) , p od e m em ri g or cr on ol ó gi c o se r c on s i der a d os
os pr ec ur sor es d o n oss o r oma n c e da vi d a ur ba n a o u m u n da n a ,
da
p i nt ura
de
c ar a cte r es
e
si t uaç õ e s
em
q ue
e s te s
se
en c on t r a m e d ef i n e m, ou me sm o d o r oma n ce q ue a o t e m p o
ai n da se c ha m a va de f i s i ol ó gi c o e q u e de p oi s se c h a ma r ia d e
p si c ol ó gi c o. ( VE RÍ SSI MO, 1 9 6 3, p p. 3 1 2- 3 1 3) .
Essa situação de contraste de dois caracteres seria em essência a
influência da própria concepção dialética presente em sua obra. Assim:
[ . ..] C om o o q ue o s ob r et u d o l he i nt er e ssa é a al ma da s
c oi sa s e d os h ome n s, é ela q u e el e pr oc ur a e x pr i mir e q ue
ger al m e nt e e x pr i me c o m i n si gn e e n ge n h o e a r te . Ai n d a e m
al gu m ti p o, e pi só di o , ou ce na de p ur a f a n t a sia , n u nc a a f icç ã o
de Mac h a d o de A s si s a f r on t a o n os s o se n so da í n ti m a
r eal i da de . A s si m , p or e xe mp l o, ne sse c on t o ma gn íf ic o O
Ali e ni s ta ou ne s sa ou t r a jói a C on t o Al e xa n d r i n o, c om o n a
ad m ir á ve l i n v e n çã o de Br á s C u ba s, e t od a s a s ve z e s q u e a s u a
r ica i ma gi n a çã o se d e u la r g a s par a f or a d a r e ali d a de vu l gar ,
sob os a rt if í ci os e os me sm os de s ma n d os da f a nt as ia, se n ti mos
a
ve r da de
e sse nc ia l
e
pr of u n d a
d as
c oi sa s,
p od e r ía mos
ch a mar - l he u m r ea li st a su pe r i or , se e m l i ter a t u r a o r ea li sm o
nã o ti ve ss e se nt i d o def i ni d o. (V E RÍ S SI MO, 1 9 6 3, p . 3 1 3 ).
José Veríssimo observa :
As Me m ó r ia s P ó s t u ma s de Br á s C u ba s s ã o a e p op é i a d a
ir r e me d iá ve l t ol i ce h u ma n a, a s át ir a da n oss a i n cur á ve l il u sã o,
f eit a p or u m def u n t o c om p le ta m e nte d e se n ga na d o d e t u d o.
[ ...] Mas a h u ma n i da d e, a soc i e da de, é a ssi m f eit a e n ã o há
r e vol t ar - n os c on t r a e la e me n os q u er ê- la ou t r a . A vi d a é b oa ,
ma s c om a c on d iç ã o d e nã o a t om ar m os m u i t o a sé r i o. T al
f il os of i a d e B r á s C u b a s, de c i di d a me n te h ome m de m u it ís si m o
es p ír i t o. E l e vi ve u q ua n d o p ô de , se gu n d o e st e s eu pe n sa r , e se
c om se u p es si mi s mo c o nf o r m a d o e i n d u l ge nt e nã o s e a c h ou
l ogr a d o ‘ a o c h e ga r a o ou tr o la d o d o mi st ér i o’ , f oi p or q u e
44
ver if i c ou
um
p e q ue n o
sa l d o
no
b a la n ç o
f in al
da
s ua
ex p er i ê nci a. ‘ N ã o t i ve f i lh os’ , - e sc r e ve u na úl ti ma p á g i n a da s
sua s Me m ór ia s, - ‘ n ã o t r an s mit i a n e n h u ma cr i a tu r a o l e ga d o
da n os sa mi sé r i a. ( VE R Í SS I MO , 1 9 6 3, p. 3 1 4 ) .
Schwarz lembra que:
Ao l on g o d e sua r e pr o d uç ã o soc i a l, i nca n sa ve l me nt e o
Br a s il p õe e r e p õe i dé ia s e ur op é ia s, se mp r e e m se nt i d o
i mp r ó pr i o.
É
n es ta
q u a li d a de
que
e la s
ser ã o
ma tér ia
e
pr ob l e ma p ar a a l e it u r a. O e scr it or p od e nã o sa ber d i ss o, ne m
pr e ci sa, par a us á- l as. ( S CH W A R Z, 1 9 8 8 , p. 2 4) .
Serão esses as pectos que Schwarz procurará identificar na análise
de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Amauri M. Tonucci Sanchez nos lembra, em Panorama da
Literatura
no
personagens
desesperança,
Brasil,
que
ou
ao
compõem
seja,
apresentar,
o
que
personagens
resumidamente,
chamamos
de
de
pouca
uma
traços
estética
grandeza,
dos
da
egoístas,
incrédulos e céticos, cuja figura maior seria representada pelo próprio
Brás Cubas, quando Sanchez diz:
A ex i st ê nci a , p ar a a ma i or par te da s p er son a ge n s, ja m ai s
i mp l icar á i n ve nç ã o n e m me s m o sol i c i tar á q ua l q uer t raç o de
gr a n d ez a , q ua l q ue r a n se i o q ue se te n h a cr ia d o d a ne c e ssi da de
de tr a n s ce n dê n cia . O de sti n o d e ss as cr i at ur a s se r á q ua se
f ata l me n te o me s mo, ma nt i da s a s dif er e nç as de c la ss e, a ma i or
ou me n or e x t e n sã o d as am bi ç õ e s d e c a da u m, a int e l i gê nc ia
ma i s ou m e n os a c ur a d a de q u e se ja m d ot a d a s. Ca rr e ga r ã o
c om o
um
fato
ur di d o
ale g r e me n t e s u p or t a m se
pe la s
te n dê n ci as
soc i ai s,
q ue
sã o a t e n di d a s s u as s ol ic it a ç õe s
ma ter ia is , a s q ue su sc ita m u m g oz o e pi dér m ic o. E a i ss o
r ed u z- se su a e sfe r a d e vi da. A i n da a s si m , e m Me m ór ia s
Pó st u ma s d e B r á s C u b as, sa b e m os q ue a ú n i c a c oi s a a q ue
as p ir a m, nã o ob st a nt e t od a a me d i ocr i da de e a me sm ic e, é
vi ve r ma i s “ al gu n s a n o s”, c o n f or m e su p li c a o pr ot a g on i s ta à
Nat ur ez a . ( SA N C HE Z , 1 9 8 2, p . 4 4) .
45
Essa
visão
confusa
da
natureza,
que
a
nosso
ver
poderia
representar uma conformidade com a mediocridade da condição humana
diante da condição social nascente de base capitalista, representava,
também, a possibilidade de se desenvolver, por meio dessa mesma
estética da desesperança, a crítica possível para uma sociedade centrada
em ideias descentradas, ou seja, fora do lugar.
Assim, se as ideias estão “fora do lugar”, os próprios personagens
estariam, esteticamente, fora do lugar, se nos referenciarmos a uma ética
ou moral, fundamentada no conceito de civilização e progresso da
moderna sociedade capitalista.
Assim identifica Schwarz:
Ao tr a n s p or
pa r a
o es ti l o as r ela ç õe s s oc iai s
q ue
ob se r v a r a, ou se ja , a o in te r i ori zar o paí s e t e mp o, Mac ha d o
c om p u n h a
u ma
e x pr e ssã o
da
s oc ie d a de
r e al,
s oc ie da d e
h or r e n da me n te di vi d i d a , em sit ua çã o mui t o par ti c ul a r , e m
par te
i n c on f e ssá ve l,
n os
a n tí p od a s
da
p á tr i a
r om â nt ica .
( SC HW A R Z, 1 9 9 0, p. 1 1) .
A essa figura do problema inconfessável, a desesperança como
ponto de referência, recorre Machado de Assis, ao traçar a realidade da
sociedade de seu tempo.
As s i m o es câ n da l o da s Me m ór ia s e s tá e m su j ei tar a
ci vi li zaç ã o mod e r n a à v ol u b il i da d e. O s as su n t os p od e m se r os
ma i s di ve r sos , ma s o e f e it o d a pr osa é e st e. I n si sti m os na
osc ila çã o va l o r a t i va q u e r e s ul ta d aí, sob r e t u d o n a c on ve r s ã o
da s u pr e mac ia e m d i mi n ui çã o . ( S C H WA R Z , 1 9 9 0, p . 5 4) .
Essa volubilidade aparecerá em Brás Cubas e, segundo Schwarz,
estará na base de um de seus principais pontos para rir do leitor. Como
princípio formal, caracterizará a volubilidade brasileira, ou seja, o
antagonismo de classe presente em nossa sociedade como chave para
compreender como Machado de Assis constrói seu estilo.
46
Ass i m à c on d e n a ç ã o l ib e r a l da s oci e da de br as ile i ra ,
es tr i de n te e i n óc ua, so ma - se a su a ju st i fi c açã o pe la pie d a de
d o ví nc u l o f a m il iar , c u ja h i p ocr i sia é ou tr a e spec ia li da d e
ma c ha d ia na. C on d e na çã o e j u stif ic açã o c on t r i b u em i gu a l me n te
par a o c on c er t o d e v oz es i na c e itá ve i s e m q u e c on s i st e e st e
r oma n ce. (S C H WA R Z, 1 9 9 0, p . 6 8) .
Dessa forma, veremos que Machado de Assis apresentou o que fora
o liberalismo brasileiro, ou seja:
A c on t i n ui da d e d o e scr a vi s mo n a t ur a l me n te l he s an u l a o
cr é di t o,
ca u sa n d o
car a c ter í st ica
do
a
c o n h ec i da
Li b e r ali s mo
i m pr e s sã o
do
S e gu n d o
de
f ar sa ,
Re i na d o.
No
en ta n t o, a ir on i a da s Mem ó r ia s nã o se l i mit a a de n u n c ia r es te
as pe ct o d a q ue st ã o. ( SC HWA R Z, 1 9 9 0, p. 1 1 6) .
Diante desse quadro de falência das ideias, Machado de Assis
posicionou-se. Assim Schwarz descreve:
Tr a ve st i d o de f i gu r ã o, ma s r a d ica l me n te c o mp en e tr a do
se ja d a p er s p ec ti v a d os de p e n de nt e s, se ja da n o r m a b ur gu e s ia
eur op é i a ,
Ma c h a d o
se
a pl ica va
a
ob s er va r
e
i n ve n tar
de se m p e n h os c ar ac te r i stic a me n te la me n t á ve i s à l uz de st es
p on t os de vi sta . Os r e s ul ta d o s sã o ver d a de i r os e xer c íc i os na
ar te
da
t r ai çã o
de
c l as se.
Com
as
d if er e n ç as
do
c as o,
le m br e m o s a f ór mu l a d e Wa lte r Be n ja m i m, se gu n d o a qu al
Ba u d e la ir e
s er ia
“um
a ge nt e
s ec r e t o
–
um
a ge nt e
da
in sa t isf a çã o se cr eta de s ua cl as se c om a p r ó pr i a d omi n açã o” .
Re t om a n d o u m a r gu me nt o a n ter i or , di ga m os q ue pel a s ua
c om p le iç ã o f or ma l o B r á s C u b a s nã o a c om od a va a o p ar c o
hi st óri c o de na ci on a l i sm o, il u str aç ã o e e li te , e m ai s, l he
ex p u n h a a d i me n sã o i de ol ó gi c a e os f u nc i on a me nt os c la s si s ta s
( ai n da q ue s e m de n o m in á -l os, i st o é, se m o br i gar a o se u
r ec on h e c i me n t o) . ( S CH W AR Z, 1 9 9 0, p p . 1 7 8- 1 7 9) .
Essa insatisfação presente na estética da desesperança será o eixo
condutor de sua procura pela ruptura que se dará pelas negativas
presentes no final da obra, como um protesto quase que solitário de
47
Machado de Assis, alter ego de Brás Cubas, quando diz: “Não tive
filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”
(SCHWARZ, 1990, p.191).
P or t a nt o, a o e sc re ver u m r oma n ce d o se u t e mp o e d o se u
pa í s, c om r ec ur s os d o s éc ul o a nt er i or , Mac h a d o b l oq u e a va a
f u sã o r omâ n t ica d o i n di ví d u o n o c ol e ti v o e na te n dê n c i a
hi st óri ca, bar b ar i d a de m od e r na e r e gr es si va e x p li ci ta me n t e
vi sa da na cr ít ic a a o H u ma n it i sm o, pa r a o q ua l a d or i n d i vi d u a l
nã o e xi ste .
Ap e sa r d o g o st o pe l a p e r f í dia , p e l o e st a paf úr d i o ou p el a
ch ar a d a , os e n c a de a me n t os q u e oc u p a m o pr i m e ir o pl a n o d a
pr osa sã o f á c ei s de se gu ir e e x pl ic ita r . P ar a e n t en d ê- l os ba st a
nã o l h es per d er d e vi sta a c ha ve u ni ve r sal , a vol u b il i da d e d o
nar r a d or e a s s ua s de m an d as , a nt i rr a z oá vei s e a nt ir r e al i sta s
p or n at ur e z a. ( S C H WA R Z, 1 9 9 0, p. 1 9 5).
Diante
desse
percurso,
procuramos
apresentar
algumas
características do que se denomina, em Machado de Assis, volatilidade
de nossas instituições políticas e sociais, bem como a ausência quase que
completa de uma cultura política pautada numa concepção dialética e
histórico-crítica.
Ass i m se m i n o va ç õe s se n s aci on a i s, a nt es r e c or r e n d o
c on sc ie n te me nte a va l or e s e sté ti c os e a t éc n ic as d o p a s sa d o e
p on d o d e par te c om a l g u ma ir on i a a s n o vi d a de s d o m o me nt o,
a vu lt a e ntr e t od os , n e s se per í od o, a m ai or f i gu r a q ue a
lit er a t ur a
br a si le i ra
c on h e cer a
a té
e n tã o,
J oa q u i m
Ma r ia
Mac ha d o de As s is ( 1 8 3 9- 1 9 0 8) . ( I G LÉ S IA S e t. a l ., 1 9 9 7 ,
p. 3 5 4) .
Sua estética da desesperança estaria, a nosso ver, presente e
complementada com a afirmação de Afrânio Coutinho:
Mac ha d o d e sc ob r i u e n f i m a su a v oca çã o ve r da d e ir a :
c on ta r a e ssê nc i a d o h o me m, e m s ua pr ec ar i e da de e xi st e nc ia l .
As s ua s per s on a ge n s n ã o a pr ese nta m mai s u ma es tr ut ur a m or al
u ni f ic a da e t í pi ca . S ã o an te s s er e s di v i d i d os c o n si g o me sm os ,
48
em b or a se m l ut a s vi ole n t a s, já na q ue le e st a d o e m q ue a ci s ã o
in ter n a e n t ra n o de c l i ve d os c om p r o mi ss os e da i ns ta b il i da de
de car áte r . O h om e m n ã o é ma i s a q u ele s er r e s p on sá ve l d os
r oma n ce s a nt er i or es ; é u m jo gu e te de f or ç a s de s c on h e ci d a s. O
se u l i vr e ar bí tr i o est á li mi ta d o n ã o só p el os ob st ác ul os q ue a
na t ur e z a
i n di f er e n te
of e r ec e ,
mas
pe l a s
c on t ra di ç õe s
e
per p le x i da de s i n t er na s. A d u pl ic i da de da c on s ci ê n cia m ora l é
r e vel a da a c a da pa s so , e e nc on t r a u ma es p lê n d id a e xpr e ssã o
n o e p i só d i o d e B r á s C u ba s c om V ir gí li a, a nt i g o a mor da
ad ol e sc ê nci a, q u e e le v em e nc on t r ar c a sa da, n u ma n oi te d e
ba il e . ( CO U TI N H O, 1 9 9 7, p . 1 5 9) .
Portanto, segundo Coutinho:
As re laç õ e s h u m a na s ob e d ece m a e s sa l ó gi ca . D om i n a d os e
op r i mi d o s p el os q ue e st ã o e m c i ma , os h om e n s se c omp e n sa m
op r i mi n d o e d o m i na n d o os q ue e st ã o e m si t ua ç ã o i nf er i or . A
açã o op r e ss or a, u ma da s ma n if e st aç õe s d o ma l n o u ni ve r s o, se
pr op a ga re gu l ar me n te e m se nt i d o ve r t ic al, se m outr o m ot i v o
q ue o da c omp e n sa çã o d o m al s of r i d o. [ ... ] I n ve st i ga n d o es sas
ca ma da s d e c ar á ter , q u e a vi d a a l ter a, c on s er v a ou di s sol ve ,
c onf or me a r es i st ê nci a de l a s, o se u h u m a ni s mo m or a l ist a v a i
de s tar t e
a p on t a n d o
a
f r a gil i da d e
d os
pr op ó s i t os ,
as
ve le i da de s, a s a c om od aç õe s e a e s tr a n ha c o m p lac ê n ci a da
c on sc iê n c ia h u ma n a e m f a ce d o m al. ( CO U T IN H O, 1 9 9 7,
p. 1 6 0) .
Essa investigação que Machado nos leva a fazer, quando o leitor
entra em contato com Brás C ubas, provocaria uma reação ao mesmo
tempo de letargia e de euforia dessa visível condição humana que assim
se concebia, mas que, reflexivamente, poderia transformar-se:
Br á s C u ba s, n a s s ua s m em ó r ia s, r e vê e r e c omp õe a v i d a
c om o u m i n s ól it o p e sa de l o, o t r â n si t o e n tr e d oi s mi s tér i os,
d ur a n te o q ua l o h ome m se a gi ta , se de b a t e à pr oc u r a d o
pr a ze r d os se n t i d os e d a ve n t ur a d o c or açã o, m as só e n c on tr a
n o f u n d o da s c o i sa s a m isé r ia mor a l, n o ma l f í sic o e a mor te ,
p oi s a q ui l o q ue par e c e u m m om e n t o a p oe s ia e a ve r d a de da
vi d a, a s e m oç õe s d a i n f ân ci a ou a b ele z a de Mar ce la q u e o
49
le va r a
à
i nc on s e q ü ê nc ia
e
ao
de sa t i n o,
pa s sa m
ou
se
c on ve r t e m n os c on t r ár i o s. ( C OU TI N HO, 1 9 9 7 , p . 1 6 1) .
Ao se converter nos contrários, dialeticamente falando, não
poderíamos pensar em uma conversão no plano conceitual, estético e
político do próprio indivíduo?
Acredito, sim, que poderíamos pensar em uma conversão nos três
planos citados, como afirma Faoro:
O h ome m n ã o g o ver n a ma i s o se u d es ti n o – só os de svi os
da
s oc ie d a de,
c om
os
ca mi n h os
c a lça d o s
de
ce n sur a
e
esc ár ni o, l he pe r m it e m c on s t r uir a ve r d a d eir a vi d a, se m
def or ma ç õ es e se m má sca r a s. N es se de s vã o, nã o há gl or ia e
ne m p od e r, op u l ê nci a n em n om e a d a, pã o n e m t et o. ( FA O R O,
1 9 7 6, p . 3 5 0).
Essa verdadeira vida, permeada pelas interdições de censura, bem
como pelos rompantes de escárnio, é que permite a Machado traduzir no
personagem de Brás Cubas os elementos do que seria essa construção da
verdadeira vida, sem máscaras ou deformações, sem glórias nem poder,
quando levados, em última instância, à condição de miserabilidade do
humano.
Josué Montello, diante da identificação de Machado a essa
condição de miserabilidade humana, lembra que:
An te s da s Me mór ia s P ó st u m a s, o r om a nc i st a tir a r a da
vi d a c i rc u n da n te os se u s r om a n ce s, c op i a n d o a o vi v o, à
ma n eir a de A le n c ar , as fi gu ra s f e m i ni n as q u e n ele s oc u p a m o
pr i me ir o p la n o, c o m o p er s on a ge n s c e nt r a i s. C o m a s Me mór ia s
Pó st u ma s, o r o ma n c i sta pa ssa a ti ra r d e si m es mo os se u s
r oma n ce s. Pe la p ri m ei r a ve z , é el e pr ó pr i o q ue m oc up a o
ce nt r o d a c e na , val e n d o- se d a pr i me ir a p es so a , n a c on d i çã o d e
nar r a d or .( MO N TE LLO , 1 9 9 6, p . 3 7 5)
Ao ocupar o centro da cena, Machado envolve nessa curiosa trama
o recurso à memória como substância romanesca que, nas palavras de
50
Josué
Montello,
correspondem
a
uma
identificação
profunda
do
romancista como tema de seu romance.
Também Agrippino Grieco, na obra Viagem em Torno a Machado
de Assis, reafirma seu sarcasmo que será reiterado também por Merquior,
quando afirma:
Mai s d o q ue e m ou t r os e scr it os se u s, se n te - se , n as
Me m ór i a s
P ó st u m as
au t om a ti s mo
d os
de
Br á s
pr oc es sos
C u ba s,
de
a
me ca n ic i da d e
Mac ha d o
de
A ssi s.
ou
S ua s
per so n a ge n s a q u i sã o aq u êle s te or e m a s e m ma r c ha d o q ue
f al ou e m f r a ncê s e a s su a s r e t i cê nc i a s a c a ba m m ai s i mp lí c it as
d o q ue ti p o gr á f ic as. N ê l e, o s ti p os de r e q ui n ta d os c om o q ue
se
r ec u sa m
a
vi ve r ,
c oi sa
que
q u al q ue r
c ar p i nt e ir o
ou
q ui ta n d e ir o f a z c om a ma i or s i mp li c i da d e. Se gu n d o Sa n t a
Te re sa , a mai or de sgr aç a d o Di a b o é nã o p od e r am ar ; i sso é
ex te n si v o a c i da d ã os d a ca te g or ia de Br á s C u b a s.
Em b or a
s e ja
per i g os o
me ter - se
c om
a
f a míl i a
ma c ha d ia na, c om os q ue en xe r ga m na s Me mó r ia s P ó st u ma s u m
li vr o sa n t o, c o n sta t o, r el e n d o- o,
que todo
f abr ica n te
de
ch ar a d a s ac a b a ta mbé m c har a d a. Ai n da q ue n ã o l he f a lte m
ár ia s d e b r a vu ra , t a i s o De l ír i o e o H u ma n i t ism o, é Ma c ha d o o
me n os l ír i c o e m e n os é p ic o d os sêr e s : o sar c as m o c on su m i u- o
t od o e n ot a - se a l g o d o i n ver n o e u r op e u ne sse me stiç o na sc i d o
em r e g iã o on d e ma l e xi ste i n ve r n o. Tô da s a s al ma s, n êle ,
par ec e m e xa mi na da s a o m icr osc ó p i o. ( GR IE C O , 1 9 6 9, p p. 5 65 7) .
Essa essência filosófica presente na obra foi também caracterizada
por José Guilherme Merquior em De Anchieta a Euclides, quando diz:
Br á s C u ba s é u m c a so de n o ve lí s tic a e m u m t om b uf o,
u m ma n ua l d e mor a l i st a e m r i t mo f ol i ô nic o. E m l u ga r d o
h u mor i s mo de i d e nt if i caç ã o se nt i me n ta l d e Ste r ne, o q ue
pr e d o m i na ne s sa s p se u d om e m ó ri as é o â ni m o d e par ó d ia , o
r íct u s
s at ír i c o,
a
de ssacr a v i liz aç ã o
c ar na v a le sc a.
Q ua se
ne n h u m se nt i me n t o, n e n h u m va l or de c on d u ta e sca p a m a e s sa
ch ac ot a c orr os i va. ( ME RQ U I OR , 1 9 9 6, p. 2 2 7) .
51
Esse mote do descaramento, de que nos fala Merquior, não impediu
de chamar pessimismo machadiano a concepção de que o mundo não lhe
parece menos cruel, mas como um caos que:
Mac h a d o n ã o e mpr e ga va o h u m or p ar a “ il u str a r ” u m a
f il os of i a : a o c on t rá r i o, o s e u h u m or – fa z e n d o à s vez e s d e
in e xi s tê nc ia me taf ís ic a – é fi l os of ia ; e e s se f e n ô me n o c on f er e
u ma n ot á ve l m o d er ni d ad e à s ua ob r a, p or q u e na d a é tã o
mod e r n o
quanto
o
ecl i pse
das
f i l os of ia s
af ir ma t i va s.
( ME RQ U IO R, 1 9 9 6, p. 2 3 3) .
Esse humor com filosofia fez com que Machado procurasse:
A val ia r l u di ca m e nte a r e al i da de , se m sa cr a l iz ar ne nh u m
as pe ct o d a i n ju s tiç a d o u n i ver so; de sc on f i ar d as ut op i a s,
de s ma sca r ar a s i d e ol o g ia s s u bl i me s, r e la ti va r os a b sol u t os
alt i ss on a n te s e, a o me sm o te m p o, c on s er var o g ost o pe l o
tea t r o d a v i da sor r i s o li ber ta d or : e i s u ma t on a l i da d e tí p ic a d o
h u mor de Mac h a d o , me n os s i ni s tr a d o q u e a c on te m pl a da p e l o
mod e r n i sm o. ( ME R QU IOR , 1 9 9 6, p p . 2 5 1- 2 5 2 ).
Considerações Finais
Podemos concluir lembrando que Lajolo afirma que Machado de
Assis foi o escritor que melhor conseguiu fazer uma radiografia da
sociedade brasileira, desvelando suas falsas ideias e interesses excusos,
ou seja, o avesso de uma vida socialmente digna e representável que, a
nosso ver, o próprio autor procurou viver, mesmo que oculto do parente
mais ou menos longínquo da desfaçatez que Machado, segundo Schwarz,
assim imitava.
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Global Editora, 1997.
FAORO, Raymundo. Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio. São Paulo: Editora
Nacional, 1976.
52
GRIECO, Agrippino. Viagem em Torno a Machado de Assis. São Paulo: Livraria
Martins Editora S.A., 1969.
IGLÉSIAS, Francisco... [et. al.] – História geral da civilização brasileira: II O Brasil
monárquico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
LAJOLO, Marisa. Machado de Assis In.____.Literatura comentada. São Paulo: Nova
Cultural, 1988.
MERQUIOR, José G. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira
I. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
MONTELLO, Josué. O Presidente Machado de Assis nos Papeis e Relíquias da
Academia Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
MOURA, Francisco M. de; FARACO, Carlos E . Língua e Literatura. São Paulo:
Ática, 1986.
SANCHEZ, Amauri M. T. Panorama da Literatura no Brasil. São Paulo: Abril
Educação, 1982.
SCHWARTZMAN, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed.
Campus, 1982.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos
inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades. 1988.
________________. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São
Paulo: Duas Cidades. 1990.
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira(1601) a
Machado de Assis(1908). Brasília: Universidade de Brasília, 1963.
53
A AUTOBIOGRAFIA ÀS AVESSAS. WAL SH: O “AUTOR DE
NOVEL AS POLICIAIS” QUE VIROU “DETETI VE”.
Si l v i a B e at ri z A D O UE *
Resumo:
O argentino Rodolf o Walsh, leitor, tradutor e “autor de novelas
policiais” de enigma foi compelido pelas circunstâncias a investigar um
crime. Para isto, assumiu o papel do detetive dos relatos que escrevia.
Tratava-se, porém, de um crime de Estado: o fuzilamento ilegal de civis
durante um levantamento cívico-militar. O modelo do policial de enigma
resultava insuficiente. Walsh publicou mais do que os resultados da
investigação: um diário da mesma, ou uma autobiografia do
cidadão/detetive. Es se processo o levou primeiro, a questionar seu
próprio papel enquanto detetive romântico e, como consequência desse
questionamento, a modificar sua literatura ficcional, que se deslizou para
o hardboiled. Depois de se bater com as instituições do Estado em
sucessivas edições que denunciavam os responsáveis pelo massacre,
percebeu seu fracasso como detetive, que era também, dentro da sua
escrita, o fracasso do herói individual. Terminou abandonando a
literatura policial e passando à ação e à literatura militante. Esta
investigação procura na sua obra daquele período, assim como faz o
detetive, as marcas autobiográficas que registram essa mudança.
Palavras-chave: Autobiografia; Ficção; Jornalismo de investigação;
Rodolfo Walsh; Literatura Argentina.
THE AUTOBIOGRAPHY UPSIDE DOWN. WALSH: THE “AUTHOR OF
DETECTIVE STORIES” WHO BECAME A “DETECTIVE”.
Abstract:
Rodolfo Walsh, reader, translator and “author” of detective stories
was compelled by circumstances to investigate a crime. For this, he
assumed the role of the detective of the stories he wrote. But, in this
case, the criminal was the State. There was an illegal execution by a
firing-squad during a civic-military revolt. The traditional model of
detective stories resulted insufficient. Walsh published more than the
results of the inquiry: a log book of the investigation, or an
autobiography of the citizen/detective. This process made him question
his role as a romantic detective and the consequence was the alteration
of his fiction. It resulted in a work-in-progress in successive editions
and he began denouncing the responsible ones for the slaughter. Years
later, he realized his failure as detective, which meant, in his writing,
the failure of the individual hero. He ended up abandoning detective
*
D ou t o ra e m Le t ra s F F LC H /U SP / SP. D oc e nt e de Li ter a t ur a Hi s pa n o A mer ica n a U ni v er si da de E s ta d ua l P aul i sta UN E SP/ Ar ar aq u a r a- SP e na E sc o la N aci on a l
Fl or es ta n Fe r n a n de s. E - ma il : sb a d o ue @ h o tm a il. co m
54
stories and engaging in action and militant literature. This paper
explores in the autobiography of that time the registers of this change.
Keywords: Autobiography; Fiction; New journalism; Rodolfo Walsh;
Argentine literature.
Durante um estudo comparativo, realizado em 2003, entre o Nunca
Más (C ONADEP, 1984), de cuja produção participou o escritor argentino
Ernesto Sábato, e Operación Masacre (2000a), escrito em 1957 por
Rodolfo Walsh, desaparecido em 1977, lembrei de uma passagem de El
Túnel (1951), romance de Sábato publicado por primeira vez em 1948.
Nessa
passagem,
um
aspirante
a
escritor,
Hunter,
imagina
um
personagem que, como um Quixote do século XX, vê a realidade como é
descrita na literatura policial e age dentro dela como um detetive de
novela. Imediatamente, procurei um trecho que tinha lido num artigo de
Jorge Lafforgue:
Al gu i e n q ue n o l o q u e r ía m u c h o s u p o c om e n t a r q ue
Wa l s h se pa r e c ía al Q ui jot e : d e ta n t o lee r n o ve la s p ol ic ial es
cr e yó se r u n o d e s us hér oe s de pa p e l ( m ás: su pa r a n o i a
par ó d ic a l e hi z o a c om p a ñar la e v ol u ci ó n de l gé n er o, de sde el
f air - p la y h a sta el h ar d b oi l e d) . P ue s sí. De se sti m e m os e l
sar ca s mo y d e mos vu e l t a e l c o m e nt ar i o: c on tr a u n a r eal i da d
me n ti r osa se a pe l ar á a u na e scr it ur a q u e la re ve la ; y si e l
p od er de la f i c c i ó n par e c ier a n o al ca nz ar , se ec har á ma n o de
la de n u nc ia p ol í tic a h a sta s us ú lt i ma s c on se c u e nci a s. ( I n:
LA F FO R G UE, 2 0 0 0 : p. 3 3 4.)
Um serviço internacional de auxílio à lista permitiu-me entrar em
contato desde São Paulo com o professor Lafforgue e perguntar se aquele
que não queria muito a Walsh era Ernesto Sábato. O professor Lafforgue
negou. Não perguntei então de quem se tratava: meu foco estava naquele
momento
no autor de El
Túnel. Em
2004, o jornalista Enrique
Arrosagaray publicou Rodolfo Walsh em Cuba. Agencia Prensa Latina,
militância, ron y criptografia. E é pela entrevista que Arrosagaray faz a
Juan Fresán que suspeito ter descoberto aquele alguém que não queria
muito a Walsh. Fresán lembra Walsh como o detetive Erik Lönnrot de La
55
muerte y la brújula (in: BOR GES, 1998), de Jorge Luis Borges, conto
escrito em 1942. Diz Fresán:
[ . ..] emp ie z a c on l a l it e r a t ur a p ol ic i al, de sp ué s p a sa a l
per i od i s mo p ol ic ial f i c ci on a d o y c om o e l Q u i jot e , qu e de
ta nt o l e er li br os d e ca b a ll er í a ve m ol i n os de vi en t o – y c re e
q ue s on gi ga n te s e n e mi go s - , se vu e l ve l oc o y p a sa de l a
f icc i ó n a l a r ea li da d p er o ju ga n d o a la f i cc i ó n, c om o u n a
es pe ci e de She r l o k H ol me s q u e se p on í a n a ri ce s p os t iz a s. É l
m ism o
se
di sf r aza b a
cu a n d o
e st a ba
p e r se g ui d o .
(Apud:
AR R O SA GAR AY, 2 0 0 4 : p. 5 0.)
Erik Lönnrot, detetive aficionado de B orges, peca por exces so de
literatura. Diz para o delegado Treviranus:
Us te d re p li car á q ue la r e al i da d n o ti e ne l a me n or
ob l i ga c i ó n de s er i n ter e sa n te. Yo le re pl ica ré q ue la r eal i da d
p ue d e p r e sci n d ir d e esa ob l i ga ci ó n, per o n o la s hi p ó te s is. E n
la q u e u st e d ha i mpr o vi s ad o, i n ter vi e ne c op i os a me n te e l a za r .
He a q uí u n r a b i n o m u er t o; yo p r ef er ir ía u na e x pl ica ci ó n
p ur a m e nt e r a b í ni ca, n o l o s i m a gi n ar i os p er ca n ce s d e u n
i ma gi n ar i o la dr ó n . ( p. 1 5 5. )
Esse excesso de literatura, que estaria presente também nos
primeiros relatos policiais de Walsh, foi a perdição de Lönnrot. Red
Scarlach, um improvável ladrão de safiras judeu, a quem um irlandês
(como Wals h) tentou converter à fé dos góim, preparou para o detetive
uma cilada literária que lhe permitiu acertar velhas contas pendentes: o
mata numa casa solitária, um labirinto simétrico, para onde Lönnrot
chega com as suas próprias pernas. Para Fresán, provavelmente, Walsh,
como Lönnrot, caiu na cilada de pensar a realidade como ficção policial
e foi isso o que o levou à morte.
La muerte y la brújula é um jogo paródico de Borges: parte da
beleza geométrica do policial de enigma e a ambienta numa cidade irreal,
na qual todos reconhecemos Buenos Aires da primeira metade do século
XX. A sua irrealidade, a sua literariedade intencional, sublinha a
56
impossibilidade do subgênero nestas latitudes. Este conto é
uma
influência fundamental das primeiras ficções policiais de Walsh, a quem
essa impossibilidade não escapava. Por muito tempo, ele fez um esforço
para acriollar o gênero. Não apenas torná-lo verossímil, mas, no limite,
fazer dele um modelo explicativo da realidade em que vivia mergulhado.
Foram esses esforços que o levariam do fair-play do policial de enigma
ao hardboiled e da investigação jornalística para a militância política.
O conhecimento do gênero é resultado do seu ofício de compilador
e tradutor 2 que o colocaram em contato com a melhor literatura policial.
O seu primeiro relato publicado, Las tres noches de Isaías Bloom
(1999c), na revista Vea y Lea em 1950, havia sido apresentado em 1946
para um concurso organizado pela revista e pela editora Emecé e havia
recebido uma das menções. O júri estava composto por Borges, Bioy
Casares e Barletta. Eduardo Romano, no seu artigo Modelos, géneros y
medios en la iniciación literaria de Rodolfo J. Walsh (in: LAFFORGUE,
2000: p.73), chama a atenção para a filiação borgeana deste conto e para
o tributo a Leónidas Barletta presente na linguagem lunfarda, própria do
relato de costumes deste membro do júri. Se a primeira paternidade é
evidente, considerando La muerte y la brújula, proponho não aceitar tão
rapidamente a segunda 3. A distância entre a fala capturada e o discurso
do narrador em Las tres noches de Isaías Bloom é bem maior que nos
contos de Barletta. Ver, por exemplo, Tango (in: ETCHENIQUE e DE
LELLIS,
1961),
onde
o
narrador
partilha
do
gesto
um
tanto
melodramático dos personagens. Em troca, a tensão entre os diálogos e a
voz do narrador do conto de Walsh não está longe do Roberto Arlt de
muitas das passagens de Los siete locos (1997). A filiação arltiana desse
tratamento da fala dos não letrados parece-me mais forte, mas seria
apenas uma hipótese se não tivéssemos uma pista deixada pelo próprio
Walsh. Em diálogo com Francisco Urondo, Mario Benedetti e Juan
2
Primeiro, para a Série Naranja e para a coleção Evasión da editora Hachette, para El Séptimo Círculo da
editora Emecé e de tradutor e adaptador, depois, para a revista Leoplán e para a Serie Negra da editora
Tiempo Contemporáneo.
3
Sem dúvida, esse tratamento da voz dos não letrados não poderia ser atribuído a Borges e Bioy Casares,
que recorreriam ao estilo direto para capturar a fala dos não letrados apenas um ano depois, com La fiesta
del monstruo (in: OLGUÍN, 2000), conto escrito em 1947. Nesse conto, a fala dos peronistas aproxima-se
da fala-ação, convocação à violência, procedimento que inaugura a literatura argentina, no século XIX,
com El matadero (2003).
57
Carlos Portantiero, em 1969 (in: BASCHETTI, 1994: p. 45) o autor de
Las tres noches de Isaías Bloom, mapeia a literatura Argentina como um
campo de forças onde os pólos são, justamente, Arlt e Borges.
Esse naturalismo na apresentação da voz dos marginais “prefigura”
o Walsh de La máquina del bien y del mal(1966), Fotos (2000d) ou
Corso (2000f), por exemplo. Naturalis mo, como registrei acima, de
filiação arltiana. Fora a principal testemunha, Isaías Bloom, todos os
personagens apresentam características canalhas, como acontecerá com
os personagens de Corso e os de La máquina del bien y del mal. Nem a
dupla delegado/detetive aficionado fogem dessas características, o que
afasta
o
conto
dos policiais
de
enigma
clássicos,
nos
quais os
investigadores costumam ser modelos de virtude, referencial do bem.
O cenário dos acontecimentos é o da pensão, assim como no
posterior Nota al pie (WALSH in: WALSH, 1997a). A pensão é um dos
cenários preferidos de Roberto Arlt. Moradia de seres solitários e
marginais diferencia-se do cortiço, onde autores do primeiro período
peronista davam vida a personagens que lutavam pela ascensão social
coletiva. A pensão, em troca, é o lugar da desagregação, da solidão.
Em todo caso, essa dupla genealogia poderia ser pensada como
uma primeira volta de parafuso no esforço de Walsh por acriollar a
ficção policial. A dupla que desvenda o enigma, assim como em La
muerte y la brújula, de Borges, está formada por um delegado de polícia
e um jornalista da seção policial, Suárez, um rascunho um tanto
malandro de Daniel Hernández, alter ego de Walsh, que assinará alguns
dos seus trabalhos com esse pseudônimo e aparecerá nos relatos policiais
posteriores. Diferentemente do relato de Borges, a decifração será
simultânea
para
os
dois
personagens,
como
se
eles
fossem
desdobramentos de uma única mente, duplicada para justificar o diálogo.
O leitor precisa esperar por uma explicação.
Se em La muerte y la
brújula o criminoso Red Scarlach trama sua vingança na semi-vigília de
nove dias e nove noites de febre, alimentando o delírio com as metáforas
de um irlandês que tentava convertê-lo ao catolicismo, em Las tres
noches de Isaías Bloom o mistério é des vendado pela interpretação dos
sonhos de Isaías Bloom, colega de quarto da vítima. O assassino faz duas
58
tentativas e apenas consegue consumar o crime na terceira noite. Se o
recurso à revelação pelos sonhos lembra o bíblico José, a dupla
interpreta os sonhos de maneira bastante materialista e racional,
caracterizando os sonhos como uma tentativa psíquica de contornar os
estímulos exteriores e
evitar interrupções do sono.
Os estímulos
exteriores seriam incorporados à narrativa onírica de maneira a se ajustar
à sua lógica própria. A referência ao sonho aparecerá depois em El
soñador (2000c) e na Carta a Vicky (in: BASCHETTI, 1994). Em ambos
os casos, revelando uma verdade profunda e refulgente que a vigília
torna opaca, o sonho será apresentado como uma forma de conhecimento.
No caso da Carta a Vicky, a alegoria bíblica sonhada e a necessidade
reclamada de dormir um ano inteiro parecem apontar para a dificuldade
para compreender a experiência traumática da perda da filha. A
testemunha, Isaías Bloom, o único personagem não malandro, com nome
de profeta e sobrenome irlandês (como Walsh) é aquele que percebe os
sinais, ainda que não seja ele quem os interpreta. Seguí soñando, pibe,
recomenda-lhe o delegado, com inconfundível sotaque portenho, no final
do relato.
É bom anotar a posição do autor em relação à violência policial em
1946. Ela dista muito da que terá depois, durante a escrita de Operación
Masacre e La secta del gatillo alegre (in: LINK, 1998b). Neste conto,
faz o delegado comentar, em relação a dois estudantes da pens ão: Pero si
usted los mira fijo, le dicen torturador (p.79). Os estudantes são
cordobeses e fazem um comentário macabramente racista em relação à
vítima e ao que depois se revelará assassino: Un boliviano menos. [...]
Ahora falta el otro (p.79). Em 1953, Walsh publica uma coletânea com
três novelas policiais: La aventura de las pruebas de imprenta,
Variaciones en rojo (que empresta o título à edição) e Asesinato a
distancia (1985). No mesmo ano, escreve uma nota sobre Conan Doyle
publicada na revista Leoplán, traduz La aventura de los jugadores de
cera (1954) e há razões para acreditar que traduz para o Castelhano La
aventura de los siete relojes(1953) e outros contos de Adrian C onan
Doyle e Dickson Carr entre 1953 e 1954. A coletânea de Walsh é uma
homenagem explícita à literatura dos Conan Doyle. Não apenas pelas
59
referências a Um estudo em vermelho (2001). La aventura de las pruebas
de imprenta tem pontos em comum com A aventura dos três estudantes.
No centro de ambos os relatos, o de Conan Doyle e o de Rodolfo Walsh,
estão as provas de gráfica: as de um exame (“prova”) de Grego Antigo e
as da tradução de um livro de Oliver W endell Holmes, respectivamente.
Mas, se no relato do autor inglês as provas de gráfica são uma prova (um
indício) entre outras, no relato de Walsh elas se constituem em chave
para desvendar o enigma. Em ambos os casos, fala-se em tradução: do
Grego e do Inglês.
Em La aventura de las pr uebas de imprenta, um expoente da
“polícia
científica”,
o
“comisario
Jiménez”,
discute
com
Daniel
Hernández, que consegue desvendar o caso graças ao seu ofício de
corretor de provas de gráfica. Já neste relato, um dos primeiros de
Walsh, aparece essa constante do autor: os saberes de pobre. E é esse
conhecimento próprio do ofício de corretor que, neste caso, permite a
Daniel Hernández decifrar uma escrita, a das provas de gráfica, que
carregam uma informação encriptada, cujo sentido s ó não escapará a um
corretor de ofício: aquele que sabe ler com “lentidão”:
[ . ..] E nt on ce s, ¿ par a q ué si r ve l a e x p er i e nc i a?
P ar a l eer d e sp a ci o – r e sp on d i ó Da ni el [ ...] (W A LSH, 1 9 8 5:
p. 5 5. )
A perseguição da capacidade para decifrar o que permanece oculto
acompanhará Walsh até o final. Sua “vocação”, seu ofício de criptógrafo
estará presente na sua trilogia de investigação e em todo seu trabalho
jornalístico. Será obsessivamente tema da sua ficção. A epígrafe extraída
do Livro de Daniel, homônimo do nosso corretor/detetive, oferece, logo
de cara, essa chave. Estamos lidando com um “Daniel” criollo.
“Hernández”, como o autor do Martín Fierro. Aquele que pode declarar
las dudas y desatar dificultades [...] leer [la] escritura y mostrar [...] su
explicación [...] (Bíblia apud: WALSH,1985:p.11).
Eduardo Romano propõe comparar as duplas Treviranus/Lönnrot e
Jiménez/Hernández,
reconhecendo
variantes
sutis:
o
rotineiro
e
60
profissional Treviranus vira um Jiménez científico e profissional, o
imaginativo Lönnrot vira um Hernández que questiona o saber literário
como
algo
que
embota
a
capacidade
de
captar a
realidade
(in:
LAFFORGUE, 2000: p.82-83). Em 1957, Walsh escreverá, com o
pseudônimo de Daniel Hernández, uma nota na revista Leoplán, Los
métodos del FBI (in: LINK, 1998a), promovendo o livro por ele
traduzido La his toria del FBI 4 (WHITEHEAD, 1958). Na nota, o autor
exalta o caráter científico, profissional e em absoluto truculento da
agência dos Estados Unidos. Esta nota coincidirá com a primeira
publicação de Operación Masacre, e é evidente a comparação que o autor
faz entre os métodos científicos do FBI e os métodos truculentos da
polícia argentina.
A exaltação das técnicas de investigação coincide com a admiração
de Walsh pelos métodos de Sherlok Holmes. E há intertextualidade
explícita em relação a toda a obra de Conan Doyle: a referência ao uso
de um colega como “Watson”, isto é, como interlocutor para testar as
hipóteses (p.15). Mas também pela referência a Holmes:
H ol me s – m u si t ó D a ni e l c om e x pr e s i ó n e x t r a via da –
Oli ver
We n de ll
H ol me s.
S her l o k
H ol m es.
E x t ra ña
c oi nc i de nc ia .. . ¿ R ec ue r da us te d el c ur i os o i nc i de n t e d el
per r o? R od r í gu e z l o m i ró c o m o s i e m p eza r a a cr eer q u e s e
ha b ía vu e l t o l oc o.
¿Ha ol vi da d o l os cl ási c os? I n si sti ó Da ni e l – E l cur i os o
in ci d e nte de l per r o e ra q ue n o ha bí a l a dr a d o d e n oc h e. ( p. 3 5)
O dado que não fecha o relato, o que não se encaixa: o cachorro
não
latiu,
as
correções
indicam
uma
improvável
“bebedeira
intermitente”. Mas também há uma intertextualidade quase que oculta
com a literatura Argentina, que funciona como uma piscadela de
cumplicidade para o leitor avisado. Este procedimento tão típico de
Jorge Luis Borges aparece em La aventura de las pruebas de imprenta
com uma referência a La invención de Morel, de Bioy Casares, autor
amigo de Borges. O Morel de Bioy, assim como o personagem do
4
A editora do livro, Sopena, também é dona da revista Leoplán.
61
romance Museo de la novela de la Eterna
(1993), de Macedônio
Fernández, pretendia criar um dispositivo tecnológico-literário, uma
máquina de narrar. Mas Raimundo Morel, preocupado apenas com a
literatura, não consegue enxergar a realidade próxima: sua mulher e seu
amigo o enganam e vão matá-lo.
Pode parecer forçada essa interpretação, que anteciparia em alguns
anos o distanciamento de Walsh da tradição do grupo da revista Sur, do
qual Bioy Casares fazia parte, se não houvesse outras marcas que
questionam o valor da literatura pela literatura (um dos pontos do projeto
de Sur), em contraste com a honestidade dos leitores e a prevenção
contra os escritores (p.11). A respeito da tensão entre escritores e
trabalhadores da indústria cultural na época da publicação da novela La
aventura de las pruebas de imprenta, Eduardo Romano escreve:
[ . ..]
sint om a t iza
cie r t a s
c on t r a d icc i on e s
que
W al s h
tr at a ba e nt on c e s de a su mi r e n tr e s u p ar t ic i pa ci ó n e n l a
in d u s tr i a c u lt ur a l de la é p oc a y l os ju i c i os d e spe ct i v os a l
r es p ect o
que
pr e d om i na b a n
e n tr e
i nt e le ct u a le s.
No
es
cie r t a me nte c a sua l q ue ha ya r ef er e nc ia s de es e c ar á ct e r e n
l os tr e s r el a t os d e “Va r iac i on e s e n r o j o. ( I n: LA FFO R GU E ,
2 0 0 0 : p. 8 5.)
Há, porém, na novela que me ocupa, traços da herança que deve
ser creditada às vanguardas que se nuclearam na revista Sur. Uma das
marcas dessa herança é o procedimento de carregar de significado
ficcional as notas de rodapé, procedimento este que Borges costumava
usar. Ver, por exemplo, La casa de Asterión (in: BORGES, 1957),
recurso que depois Walsh levará ao extremo no conto Nota al pie. Mas,
em La aventura de las pruebas de imprenta, as notas de rodapé tendem a
reforçar a verossimilhança do relato.
O cenário da editora, mais do que conhecido pelo autor, é
apresentado com pequenos cortes à maneira dos filmes americanos dos
anos 40, 50. Essa primeira parte é facilmente roteirizável. Aqui vemos a
presença de outra herança, associada aos filmes e às descrições do
policial hardboiled, mas passados pelo filtro da ironia portenha.
62
Traduzidos. Um exemplo é a referência ao ventilador cumprimentador no
início da exposição da hipótese de trabalho de Daniel Hernández (p.48).
O ritmo cinematográfico, os cortes e montagem significativa se mantêm.
Exemplo: cinco horas mais tarde, Morel estaba muerto. Fue su esposa,
Alberta, quien encontró el cadáver (p.15). Esta novela é, porém, mais
próxima à estirpe dos relatos policiais de enigma, de tradição inglesa,
mais fiel, inclusive, que no conto Las tres noches de Isaías Bloom, pois,
além do narrador em terceira pessoa, há uma clara separação entre a
dupla delegado/detetive e os criminosos. Há também, em La aventura de
las pruebas de imprenta, uma característica da literatura policial de
Simenon, autor que Walsh havia traduzido: certa indulgência do detetive
para com as fraquezas humanas, como aquela com que beneficia a
Alberta, cúmplice do crime (p.65).
Por último, há nesta coletânea outras características que serão
depois uma constante no Walsh jornalista, aquele da trilogia de
investigação. Em primeiro lugar, a enumeração de provas, a consolidação
de hipóteses como num teorema. Depois, a utilização de facsímiles, a
inclusão de tabelas e, no caso das outras duas novelas da coletânea,
Variaciones en rojo e Asesinato a distancia, o recurso ao croquis. As
três novelas da coletânea, a novela La sombra de un pájaro (1999a),
publicada pela primeira vez na revista Leoplán em 1954 e os contos Tres
portugueses bajo um paraguas (Sin contar el muerto) (1999b) e Las tres
noches de Isaías Bloom enquadram-se no subgênero de enigma. Ainda
que, em Asesinato a distancia, o detetive/aficionado Daniel Hernández
se exponha a correr riscos. Talvez uma antecipação dos que seu doublé
real estaria disposto a correr durante as investigações do massacre de
José León Suárez.
Em junho de 1956, Walsh está traduzindo e condensando para a
revista Leoplán um romance de Duff Cooper, chamado Operation
Heartbreak (in: C OOPER e MONTAGU, 2003). Trata-se do relato
romanceado na forma de novela de espionagem de uma operação da
inteligência
militar
britânica
durante
a
guerra,
que
foi
chamada
Operation Mincemeat e que consistiu no lançamento de um cadáver no
mar Cantábrico, em águas territoriais da Espanha, cujo governo era
63
amigo das potências do Eixo, fingindo um acidente de aviação. O
cadáver carregava cartas e documentos pessoais que induziam a pensar
que se tratasse de um espião britânico. A ficção de Estado foi construída
na procura do máximo de verossimilhança e pretendia “plantar” a
informação de um desembarco aliado na Grécia, para distrair as tropas do
Eixo do verdadeiro local do desembarco: Sicília. Sir Duff Cooper,
militar e diplomata, deu forma de novela à história como relato
emoldurado dentro do trajeto dos diplomatas britânicos até o lugar onde
o cidadão britânico havia sido enterrado, para prestar as honrarias. A
ficção de Cooper se demora na história pregres sa do soldado que fracassa
em todas suas tentativas de entrar no campo de batalha e nas de obter o
amor de uma mulher, amiga da infância e funcionária do departamento
de inteligência britânico. Morre de morte natural e, como cadáver,
consegue modificar a história de Europa e carrega nas roupas uma carta
escrita pela amiga, na qual ela se arrepende de tê-lo rejeitado. O nome
que Walsh dá a sua condensação é Operación Desengaño. La novela
basada en el golpe más audaz del servicio de inteligencia británico
durante a última guerra mundial: el muerto que engañó a Hitler. Na
noite de nove de junho de 1956, desencadeia-se um putch cívico-militar
para restituir Perón, presidente deposto por um golpe de Estado no ano
anterior. Um tiroteio toma Walsh de surpresa enquanto joga xadrez no
clube. Abandona o tabuleiro e volta para casa, no quarteirão onde se
desenvolve uma das escaramuças. Um soldado que faz o serviço militar
obrigatório morre junto à sua janela. O levantamento é sufocado. Depois,
Walsh lembrará:
De sp ué s n o q u ier o r ec or da r m ás , n i la v oz de l l o c u t or e n
la ma d r u ga d a a n u n c i a n d o q ue d ie ci oc h o ci vi l es ha n s i d o
e je c u ta d os e n La n ú s, ni la ol a d e sa n gr e q u e an e ga a l pa ís
ha s ta l a m u er t e d e Va l le. Te n g o de m a si a d o p ar a u na s ol a
n oc h e . Va lle n o me i nt er e sa. Pe r ó n n o m e in ter e sa, l a
r e vol u c i ó n n o me i n ter e sa. ¿ Pu e d o v ol v e r a l a je dr e z ? Pue d o.
Al a je dr ez y a la lit e r a t ur a f a nt ás ti ca q ue le o , a l os c ue n t os
p ol ic i a le s q ue e scr i b o, a la n o ve la ‘ s er i a’ q ue p la ne o p ar a
de n tr o de a l gu n os a ñ o s, y a otr a s c os a s q u e h a g o p a r a
64
ga n a r me l a vi da y q u e l la mo p e ri od i sm o, a u n q u e n o e s
per i od i s mo . ( WA LS H, 2 0 0 0a : p. 1 8.)
Seis meses depois, toma conhecimento de fuzilamentos de civis
naquela mesma noite, antes da promulgação da lei Marcial. Entra em
contato com um sobrevivente: “o fuzilado que vive”. E a partir de então
começa a procurar mais informação sobre o massacre, um crime de
Estado. Para isso, abandona sua vida tranqüila: deixa a casa familiar, usa
nome falso, passa a andar armado. Ele e a jornalista Enriqueta Muñiz
incorporam a personagem do detetive para investigar o acontecido
naquela noite de nove de junho em José León Suárez, no subúrbio de
Buenos Aires. O resultado dessa investigação aparece em forma de
reportagens em várias publicações sindicais da época para ser editado na
forma de livro por primeira vez em 1957 com o título de Operación
masacre (2000a) e reescrito em três oportunidades mais (em 1962, 1969
e 1972). Pela reescrita, os inocentes mortos convertem-se em heróis e o
seu fuzilamento em episódio fundacional de uma épica que depois será
chamada de “Resistência Peronista”.
Walsh havia apoiado o golpe contra Perón no ano anterior. Confiava
no novo governo e nas instituições. O bem e o mal estavam, para o
escritor,
claramente
definidos.
Mas
aquela
ocorrência
abala
suas
certezas. O modelo do policial de enigma não mais explica o que
acontece. Antes de iniciar as investigações, em novembro de 1956,
publica o conto Simbiosis (1999d). Há uma série de mudanças nos relatos
policiais
de
Walsh.
No
já
citado
Simbiosis,
em
Zugzwang
(in:
LAFFORGUE, 2000), em Transposición de jugadas (1999e) e em En
defensa
Laurenzi,
propia
um
(1999f)
delegado
o
“comisario
aposentado
Jiménez”
que
joga
é
substituído
xadrez
com
por
Daniel
Hernández num café. A narração já não é em terceira pes soa. O próprio
Daniel Hernández é quem narra e fica completamente fora da elucidação
do crime. Em Zugz wang, conto de 1957, Hernández registra: Él solo
habla, yo escribo (2000b: p.250). Walsh, o dublé de Hernández, recorre
a esse gesto quando registra os depoimentos das testemunhas nas suas
reportagens de investigação. Mais uma vez, o autor se sente um tradutor.
65
Fora Zugzw ang, todos começam com uma fala do delegado. Nos quatro
contos citados neste parágrafo, é Laurenzi que conta ao narrador
histórias de quando estava na ativa. Típicos relatos emoldurados num
diálogo de café. Laurenzi é um policial do interior, talvez o modelo seja
o próprio pai de Walsh. Há na fala de Laurenzi dúvidas sobre a condição
de policial. Sobre a possibilidade de fazer justiça. Sem deixar o suspense
e nem o jogo lógico, destrói a segurança, as certezas dos policiais de
enigma para introduzir a reflexão moral. Em Simbiosis, Laurenzi diz:
Lo q u e pa sa e s q ue u n o t a mb i é n es u n se r h u m an o [ . ..]
c on tr e s o c ua tr o p a l a b r as e x p li ca m os t od o: u n cr i me n, u na
vi ol a c i ó n o u n
sui c i d i o. V ea,
q uer e m os q u e n os de j e n
tr a n q ui l os . ¡P ob r e d e u st e d si m e tr ae u n pr o bl e ma q u e n o
p ue d a r e s ol ve r se e n tér m i n os se nci ll os : di ner o, od i o, mi e d o!
Y o n o p ue d o t ol er a r, p or e je m pl o, q u e u s te d me sa l ga
ma ta n d o a al gu i e n s i n u n m ot i v o r az on a b l e y c on cr e t o.
( p. 1 0 3. )
Isto, Walsh escreve pouco depois dos fuzilamentos de José León
Suárez, da morte do recruta Rodríguez junto à persiana da sua casa, que
deslancharão a reportagem de investigação Operación masacre. E onze
anos antes da publicação de Nota al pie, que não explica o suicídio de
um tradutor.
El gir o q u e r e p re se n t a l a a p ar ic i ó n d e La ur e n zi só l o es
p os i b le d e sp u és de “O per ac i ó n... ” : Her ná n d e z p a sa a se r
in te r l oc u t or ,
es
c on f i na d o
al
r ol
de
e sc u ch a/ me di a d or ,
nar r a d or q ue a n ot a l os r ela t os d e La u r e nz i. Y L aur e nz i, p ar a
r es ol ver sus mu e r t es, p o ne e n ju e g o ot r a ser ie d e sa b er e s, ya
no
t é c ni c os ,
sino
“ pr e m od e r n o s” :
olf a te o ,
in t ui c i ó n,
se mb l a n te o. La c ul t ur a q ue H er ná n de z r e pr e se n ta só l o p ue d e
esc u c ha r :
sól o
p u e de
ap r e n der .
Ha y
una
i n ver si ó n
de
p u n t uac i ó n: el ac e nt o d e sc a n sa s ob r e l o q u e La u re n zi e v oc a .
En a l gu n os m ome n t os, i nc l u so, la sa p i e n cia de He r ná n d ez es
r i dic u la r iza d a
p or
Laur e nz i
[ . ..]
( A LA B AR C ES
i n:
LA F FO R G UE, 2 0 0 0 : p. 3 1.)
A referência à posição de “zugzwang” no conto homônimo também
66
fala da impossibilidade de achar saída para um problema. Apesar da
insistência no xadrez, jogo que o apaixona, a vida já não é uma
quadricula, como a do tabuleiro. Do xadrez foi arrancado na noite de 9
de junho de 1956, quando a história entrou pelas frestas da persiana da
sua casa.
No dia 13 de junho de 1957, um ano após esse massacre de José
León Suárez, três pistoleiros haviam assassinado Marcos Satanowsky,
advogado de renome, no seu escritório, em pleno centro de Buenos Aires.
Uma operação de prensa é montada para jogar uma cortina de fumaça
sobre os mandantes, membros de instituições de inteligência das forças
armadas. Walsh investiga. Reúne material que começa a publicar em 9 de
junho de 1958. Um mês após a posse de um governo civil, eleito em meio
à proscrição do peronismo.
A morte do advogado Satanowsky é um episódio numa longa briga
pelo controle de um grande jornal diário. É um crime de Estado para cuja
execução foram utilizados delinqüentes conhecidos. Para sua elucidação,
Walsh não descarta depoimentos desses e de outros marginais. O
detetive/Walsh, assim como o delegado de Las tres noches de Isaías
Bloom, fala a sua linguagem e se dirige a um deles numa carta aberta em
que lhe apresenta suas pequenas possibilidades de sobrevivência se não
entrega os verdadeiros mandantes.
Quando o escândalo se instala, Walsh é convidado a participar de
uma comissão parlamentar de inquérito e é na condição de membro dessa
comissão que continua as investigações. Então é obrigado a guardar
sigilo sobre as informações levantadas, mas não deixa de utilizar a
imprensa
como
(mandantes,
recurso
executores,
no
jogo
de
testemunhas).
inteligência
Quando
o
com
poder
os
atores
executivo,
pressionado pelos militares, força o arquivamento das investigações,
Walsh reúne os resultados e os publica na forma de relato, de reportagem
de investigação, O caso Satanowsky (1997c), em 1959. Em parte, o faz
para forçar a continuidade da comissão, para denunciar a cobardia do
governo civil, a sua cumplicidade, e obrigá-lo a se pronunciar. Em 1961
publica o conto Transposición de jugadas. Nele refere-se ao problema
lógico conhecido do lobo, a cabra e a couve-flor. Mas: ¿Cómo saber que
67
una cabra no se portará como un lobo, o inclusive como una cabra?
(p.98). É provável que estivesse pensando na dificuldade de estimar a
validade dos depoimentos das partes envolvidas no caso Satanowsky,
incluindo
os
testemunhos
dos
marginais,
no
meio
do
esforço
desqualificador do poder judiciário e da grande imprensa em relação a
estes depoimentos. Onde está a verdade?
Em En defensa propia, Laurenzi começa comentando:
[ . ..] n o se r v ía par a c o m is ar i o [ ...] . E st a ba vi en d o l as
c osa s y n o q u er í a v e r la s. L os p r ob l e ma s e n q u e se m et e la
ge n te , y l a m a ner a q u e t ie ne de r e sol ve rl o s, y l a f or ma e n q ue
yo l os ha bí a r e suel t o [ .. .] y a sí hi c e d os o tre s ma c a na s ha st a
q ue me ju b i lé. ( p . 1 4 7.)
Este último conto desliza-se para o policial hardboiled que já se
anunciava
em
Zugzwang.
Laurenzi
contorna
suas
obrigações
profissionais, seja apelando a razões de jurisdição ou ocultando um par
de provas que incriminariam o responsável por uma morte. Manipulação
de regras e procedimentos que aparecerá depois na trama de Imaginaria
(2000e).
Em Transposición de jugadas, o método lógico demonstra sua
ineficácia, exigindo um olhar que considere as paixões dos homens e
mulheres reais. Mas o delegado de polícia é, também ele, um ser humano
com medos e ambições. Há nele uma sabedoria fruto da experiência,
assim como a do homem de campo.
O cenário onde transcorre o crime é Lamarque, muito perto de
Choele-Choel, localidade onde nasceu Rodolfo Walsh. A descrição do
local o situa também historicamente em relação à conquista de terra
indígena pelas armas de fogo. Este conto é, de alguma maneira, o relato
do fracasso do delegado. Ele não apenas não diagnostica corretamente o
crime, como também, com sua avaliação torpe, o facilita. É colocado
depois perante os fatos consumados que, com um pouco de sagacidade,
poderia ter evitado. Mas é também um acerto de contas do autor com o
gênero. Walsh diagnostica o fracasso dos códigos do gênero para tornar
68
um relato verossímil na Argentina. Não é o único arrependimento.
Despede-se da ficção policial em 1961, antes da segunda edição de
Operación Masacre, em 1964. Se em 1957 se auto define como “autor de
novelas policiais” (LINK, 1998: p. 72), em contraposição a “escritor”
(como Borges), uns poucos anos depois deplorará esses relatos. Porém,
em 1969, quando a publicação em forma de livro de ¿Quién mató a
Rosendo? (1997b), a investigação jornalística que encerra a trilogia do
autor, registra na nota preliminar: Si alguien quiere leer este libro como
una simple novela policial, es cosa suya. Para o autor não é uma
“simples novela policial”, mas ele autoriza a algum leitor desavisado. A
propósito dessa ambigüidade, Alabarces aponta: Es uma resolución
paradójica: si por un lado la hibridación genérica de Walsh está
afirmada en una tradición argentina, constituye al mismo tiempo un
gesto de vanguardia. (in: LAFFOR GUE, 2000: p. 36). O título dessa
reportagem, que investiga o assassinato de um dirigente sindical pelego,
aponta para uma constante do gênero, a pergunta clássica: whodunit
(FEINMANN, 1997). Mas Walsh já não é o detetive romântico que
trabalha sozinho. A investigação é um trabalho da equipe de jornalistas
do periódico C GT, da central dos trabalhadores, que Walsh dirige. É
publicado como uma seqüência de artigos que o jornalista Rogelio García
Lupo, também colaborador do periódico, qualificava como folletín de la
clase obrera.
Entre as novelas de enigma com a dupla Hernández/Jiménez e os
da dupla Laurenzi/Hernández aconteceram as duas primeiras experiências
do detetive/jornalista romântico, que produz reportagens de investigação,
abalando as certezas e a beleza geométrica, de tabuleiro, do policial de
enigma. Walsh/detetive está mais próximo do personagem de novela
hardboiled. Mas há depois outra volta de parafuso que o fará abandonar
o gênero. A passagem para a ação o levará a procedimentos próprios do
testemunho e da literatura militante, num permanente diálogo entre
escrita (incluindo a sua literatura ficcional) e ação política. E, nessa
passagem, há um primeiro momento em que ele se lança como um
romântico, um homem que se atreve junto a outros que também se
atrevem,
estimulados
por
seu
gesto:
Cuando
en
uma
comunidad
69
basicamente
sana
fallan
determinadas
instituciones,
otras
las
reemplazan, o las reemplazan simples particulares. Ése es um índice de
salud y de vigor. (WALSH, 1997c: p.211).
Walsh não é apenas um detetive que usa disfarces e nomes falsos.
Para além dessa exterioridade estão presentes nas suas reportagens de
investigação: o rigor, as anotações até dos mínimos detalhes, os registros
da data e até da hora em que obteve cada informação, o cotejo de
indícios. Depois passa a por a informação em circulação. Ao fazer isso,
dirige-se a diferentes destinatários: hostiliza uns, como o policial de Las
tres noches de Isaías Bloom, estimula outros. Desenvolve assim um
trabalho de inteligência. Nisso, ele também é um tradutor:
Su ge st o de tr a d uc t or se af ir ma e n u n a d ob le c o n vi cc i ó n:
p or u na p a rt e , la esc r i t ur a de be a lca n z ar s u ma yo r gr a d o d e
ef ec ti vi d a d e n la dif u s i ó n de l os su c e sos s oc ial e s y, p o r ot r a ,
s u d e st i n o se e n la za s ol i dar ia me n t e c on l a m ir a da de l os
lec t or e s q ue r e vi sa n e sa c ar t o gr af ía par a pe rf ec c i on ar la .
( FE R RO i n : WA LS H , 1 9 9 7: p . 1 3- 1 4.)
Diferentemente
de
Borges,
Walsh,
o
escritor,
exigia
uma
homologia entre realidade e literatura. E apesar de, como Lönnrot, o
detetive de La muerte y la brújula, Walsh, o investigador, também
levantar hipóteses “interessantes”, soube desestimá-las quando estas se
demostravam insuficientes para dar conta da realidade. O abandono do
gênero policial é resultante do abandono da crença no herói individual.
“Operación Masacre” cambió mi vida. Haciéndola, comprendí que
además de mis perplejidades íntimas, existía un amenazante mundo
exterior, escribe Walsh em 1966 (in: LUGONES). Ele deixa de se ver
como um herói para olhar para si mesmo como um homem que se atreve
a dizer “não” e confia que outros homens e mulheres
atrever-se-ão
também, junto com ele, a se opor ao crime de Estado.
70
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WHITEHEAD, Don. La historia del F.B.I. Buenos Aires: Sopena, 1958. Trad. Rodolfo
Walsh.
73
ESTUDOS DE SEMIOLOGIA
74
O CAMPO LÉXICO SEMÂNTICO DO AMOR NA SITCOM FRIENDS
Maira Coutinho FERREIRA *
Resumo:
Este trabalho se propõe a construir um campo léxico-semântico do
amor da língua inglesa a partir das lexias encontradas nas legendas em
inglês dos primeiros e últimos episódios das cinco primeiras temporadas
da sitcom norte-americana Friends produzida pela Warner B rothers, cujo
tema central é a vida amorosa de seus personagens. Fala-se em “um”
campo léxico-semântico porque não se trata do campo que abrange todas
as lexias e expressões de língua inglesa relacionadas ao tema amor, e sim
apenas daquelas encontradas no corpus escolhido. O conceito de lexia
adotado é o de Pottier (1978).
Palavras-chaves:
Friends.
Campo
léxico-semântico;
Inglês;
Amor;
Sitcom;
THE LEXICAL SE MANTI C FIELD OF LOVE IN THE SITCOM
FRIE NDS
Abstract:
The purpose of this work is to create a lexical-semantic field of
love of English from lexical units found in the subtitles of the first and
last episodes of the first five seasons of the North-American sitcom
Friends produced by Warner Brothers, whose main subject is the lovelife of its characters. It is “a” lexical-semantic field because it is does
not contains all the English lexical units related to the love subject, but
only those found in the chosen corpus. The theoretical concept of lexias
(lexical units) adopted is Pottier´s (1978).
Keywords: Lexical-semantic field; English;Love; Sitcom; Friends.
Introdução
O enredo da sitcom Friends inclui temas como à procura de
emprego e conflitos familiares dos personagens, mas o tema mais
freqüente são as diversas relações amorosas em que eles se envolvem.
Supomos, portanto, que as falas dos personagens constituam um corpus
rico em itens lexicais do campo conceitual do amor da língua inglesa. A
proposta deste trabalho foi demonstrar como exatamente esse campo é
*
Do u t ora n d a e m Li n gü í s tic a e Lí n gu a P or t u gu e s a – UNE SP/Ar ar a q u a r a- SP .
E - m ai l: m ai r ac fe r re i ra @ g m ai l. c o m
75
constituído. Por iss o, as perguntas de pesquisa foram: (1) quais lexias
compõem o campo léxico-semântico do amor? (2) quais subcampos
léxico-semânticos podem ser formados a partir da identificação de traços
de significação comuns entre grupos de lexias?
Acreditamos que a sitcom Friends nos permite visualizar a língua
inglesa em uso no universo das relações amorosas no contexto de Nova
York entre 1994 e 2004, e que o campo léxico-semântico do amor (love)
pode oferecer subsídios para professores, aprendizes, tradutores e
dicionaristas que lidam com essa língua.
A sitcom Friends
A sitcom, abreviação da expressão situation comedy (comédia de
situação), caracteriza-se por histórias curtas centradas na vida e nas
ações de uma determinada família ou grupo de pessoas que agem como
uma família. A sitcom é um estilo dramático tipicamente norte-americano
no qual a exposição, o conflito, o clímax e o desfecho acontecem todos
em um episódio de aproximadamente trinta minutos. Geralmente cada
episódio
retrata
uma
situação
cômica
específica
nas
vidas
dos
personagens principais, e os episódios subsequentes estruturam-se s obre
os anteriores, dando aos telespectadores uma ideia geral dos personagens
e das relações entre eles (GRIMM, 1997, p. 380).
Friends foi exibida pelo canal Warner Channel da Warner Bros de
1994 a 2004, e a história se passa no centro da cidade de Nova York, no
bairro Greenwich Village. Os personagens são os irmãos Ross Geller
(David Schwimmer ) e Monica Geller (Courteney C ox Arquette), o amigo
de faculdade de R oss, Chandler Bing (Mathew Perry), a amiga de
infância de Monica, Rachel Greene (Jennifer Aniston), e outros dois
amigos: Joey Tribbiani (Matt LeBlanc) e Phoebe Bufay (Lisa Kudrow),
todos com mais ou menos a mesma idade.
A maior parte das cenas acontece no apartamento de Monica e no
café Central Perk. Segundo os co-criadores e produtores executivos do
programa, Kevin S. Bright, Marta Kauffman e David Crane, a ideia
surgiu do interesse de Crane e Kauffman de escrever sobre os dez anos
em que moraram em Nova York após saírem da faculdade. Durante as dez
76
temporadas, os seis amigos têm vários relacionamentos amorosos com
diferentes graus de envolvimento emocional e físico, permeados de
questões como diferença de idade ou de situação econômica.
O relacionamento de Ross e Rachel pode ser considerado o tema
central, a unidade dramática maior da sitcom Friends, seguido pelo
relacionamento de Chandler e Monica. No entanto, cada episódio tem
começo meio e fim e dentro deles a atuação de cada personagem é
equilibrada a ponto de não se poder afirmar que Ross e Rachel são
personagens centrais. Pelo contrário, o enredo de cada episódio é
subdivido em duas ou três tramas que envolvem cada uma, três ou dois
dos seis amigos, numa divisão quase sempre equivalente em relação ao
tempo.
Lexias e campos léxico-semânticos
Diante da falta de consenso quanto ao conceito de palavra, muitos
linguistas passaram a cunhar diferentes termos numa tentativa de
resolver esse problema terminológico. Um dos termos mais largamente
utilizados é o termo lexema que, segundo Biderman (2001, p.169),
designa a unidade léxica abstrata em língua, que se manifesta, no
discurso, em formas fixas ou variáveis denominadas lexias.
Para
Pottier
(1978,
p.269),
lexia
é
uma
unidade
lexical
memorizada, que nasce de um hábito associativo e, em geral, de um
processo lento de lexicalização de uma sequência. Quanto aos tipos de
lexias, ele equipara a lexia simples à palavra em sua concepção
tradicional, como cadeira e comia. Já a lexia composta resulta de uma
integração semântica que se manifesta formalmente, como em s acarolha, e a sequência em vias de lexicalização é chamada lexia complexa,
exemplificada por guerra fria, complexo industrial, sinal vermelho etc, e
pelas siglas. Por fim, as lexias complexas que alcançam o nível de um
enunciado ou texto, como nos casos de provérbios e preces, são
chamadas lexias textuais.
Lexias com um traço de significação comum, como aquelas
relacionadas a cores, ou a atividades esportivas, por exemplo, formam os
chamados campos léxico-semânticos. Observamos que não há consenso
77
entre os autores acerca das noções de campo semântico e de campo
léxico. O campo semântico é definido como o conjunto de possíveis
significações de uma palavra (BIDERMAN, 2001) e como uma divisão
do espaço semântico (LEHRER, 1974), que são formulações muito
diferentes, pois estaríamos chamando de campo semântico tanto os vários
significados da palavra sorte, por exemplo, quanto uma área conceitual,
como cores ou máquinas.
Outra evidência dess a falta de consenso está na semelhança entre a
definição de campo semântico de Mounin (1979) e a definição de campo
léxico de Genouvrier e Peytard (1974): unidades léxicas que representam
conceitos incluídos dentro de uma etiqueta e palavras que designam
diferentes aspectos de uma noção. Essas duas definições se aproximam
muito da afirmação de Coseriu (1980) de que campos lexicais podem ser
definidos como paradigmas lexicais, isto é, como estruturas lexemáticas
opositivas: “um campo lexical caracteriza-se pelo fato de que resulta da
repartição de um conteúdo lexical contínuo entre vários lexemas que se
opõem de maneira imediata uns aos outros, por meio de traços [de
conteúdo] distintivos mínimos” (1980, p.199).
Diante desse impasse terminológico, optamos pelo nome campo
léxico-semântico, por duas razões: primeiro, porque consideramos o
léxico a materialidade do domínio semântico e, de fato, não é possível
pensar e conceber um campo semântico sem o suporte do léxico, tanto
que todas as definições de campo semântico que consultamos contêm
termos como palavra, léxico, unidades léxicas etc; e, segundo, porque
entendemos o amor tanto como um fragmento do espaço semântico, uma
área conceitual, quanto como uma etiqueta, ou um conteúdo lexical
contínuo, composto por um conjunto de lexemas.
O campo léxico-semântico construído neste trabalho pode ser
considerado uma hierarquia do tipo taxonomia (CRUSE, 1986, p.137),
caracterizada,
primeiramente,
pela
relação
de
sentido
chamada
taxonímia: o elemento inferior na relação vertical de dominância é um
tipo, uma das configurações do elemento superior, portanto este está
contido naquele.
78
Outra característica de uma taxonomia é a relação horizontal entre
elementos chamada co-taxonímia, que se refere à conexão entre eles. No
exemplo a seguir (figura 1), a relação entre “frutas” e “maçã” e entre
“frutas” e “banana” é a relação de taxonímia, ou seja, “maçã” e “banana”
são tipos de frutas e estão inseridas na classe “fruta”. Já a relação entre
“maçã” e “banana” é a relação de co-taxonímia: a conexão entre as duas
está no fato de ambas serem tipos de frutas.
Fi gu r a 1
O campo conceitual do amor neste trabalho é o que compreende o
universo das relações amorosas entre casais (incluindo os casais de
homossexuais), ou seja, as de natureza romântica e/ou sexual, que
começam geralmente com a paquera, podem passar por vários níveis de
comprometimento (namoro, noivado, casamento) e terminar de várias
formas (rompimento de namoro ou de noivado, divórcio). Durante esse
tipo de relação, são manifestações físicas típicas o beijo na boca e todas
as ações de natureza sexual, e há diferentes espécies e graus de
sentimentos,
desde
um
interesse
ou
atração
física
até
o
amor,
considerado o mais intenso deles. Portanto, as lexias que compõem o
campo léxico-semântico love são aquelas que se referem a algum desses
sentimentos, tipos de relacionamento ou manifestações físicas.
Metodologia
O primeiro passo para a realização desta pesquisa foi assistir aos
primeiros e últimos episódios das cinco primeiras temporadas da sitcom
Friends e mapear todas as lexias relacionadas ao tema amor presentes
nas legendas em inglês, registrando seus contextos extra-linguísticos,
porque, no contexto das sitcoms, “a relação entre o diálogo e a situação
extra-lingüística é intensa e recíproca (…). O real sentido das unidades
individuais de significado depende tanto da situação extra-ligüística
79
quanto
do
contexto
linguístico”
(VELTRUSKY
apud
BASSNETT-
McGUIRE, 1988, p. 121).
O segundo pass o foi a identificação do traço de significação
comum entre as lexias encontradas e das relações de conteúdo mais
específicas que permitiram distribuí-las em sub-campos. Para isso,
analisamos suas definições em quatro dicionários : Random House
Webster’s
Unabridged
Dictionary
(2001),
Longman
Dictionary
of
Contemporary English (1995), Collins Cobuild Advanced Learner’s
English Dictionary (2003) e Novo Dicionário Folha Webster’s (1997).
As
lexias
não
encontradas
nos
dicionários
tiveram
seus
significados depreendidos dos contextos em que ocorreram para que
fossem
agrupadas
nos
subcampos
léxico-semânticos.
Por
fim,
compusemos o campo léxico-semântico love por meio da união dos subcampos em estrutura arbórea (taxonômica).
Análise dos dados: a formação do campo léxico-semântico love
Após o mapeamento e análise das lexias, traçamos dez sub-campos
léxico-semânticos. O sub-campo flirt (figura 2) reúne as lexias que se
referem a ações e acontecimentos típicos da fase da paquera; os traços de
significação comuns entre as lexias que o compõem são os termos
attractive e attracted.
No sub-campo date (figura 3) estão às lexias relacionadas aos
primeiros encontros amorosos entre pessoas e aos relacionamentos com
menor grau de comprometimento. Os traços de significação comuns entre
as lexias desse campo são os termos go out, spend time/evening, social
appointment/activity.
Já
o
sub-campo
relationship
(figura
4)
refere-se
aos
relacionamentos amorosos com maior grau de comprometimento, que, em
geral, antecedem o pedido de casamento. Os traços de significação
comum entre as lexias neste caso são os termos relationship e love.
O sub-campo feeling (figura 5) reúne lexias que exprimem
sentimentos,
cujos
traços
comuns
de
significação
são
os
termos
feel/feeling, love e affection. A lexia simples appreciate, cuja definição
não traz algum desses termos, foi incluída nes se campo porque foi
80
utilizada por Ross para explicar a Rachel como um homem deveria se
sentir em relação a ela.
O sub-campo physical contact (figura 6), por sua vez, traz as
lexias relacionadas aos contatos físicos com conotação romântica que os
casais podem realizar. O traço de significação comum entre elas é o
termo love, e é importante observar que ele aparece na definição da lexia
simples kiss que expressa a ação de beijar, mas não é encontrado nas
definições dos substantivos kiss e kisser; esses foram
inseridos neste
sub-campo porque em todas as suas ocorrências no corpus referiam-se a
beijos e pessoas em contextos amorosos.
A cerimônia de cas amento é retratada pelo sub-campo wedding
(figura 7), cujas lexias têm como traços de significação comuns os
termos wedding e get married. Incluimos neste sub-campo as lexias
reception e rehearsal dinner, por fazerem parte das tradições do
casamento. Já o casamento como espécie de relacionamento entre duas
pessoas, considerado a partir da cerimônia, está representado no subcampo marriage (figura 8). Os traços de significação comuns entre as
lexias que o compõem são os termos marriage e married. A lexia simples
anniversary foi incluída neste sub-campo, apesar da possibilidade de ser
incluída no sub-campo relationship, já que há aniversários tanto de
casamento, quanto de namoro.
O sub-campo sex (figura 9) reúne as lexias relacionadas aos atos
de caráter sexual, cujos traços de significação comuns são os termos sex,
sexual e sexually. Acrescentamos neste sub-campo também as lexias
girth, stamina, sexually, do it, do somebody e fantasy, porque são todas
relacionadas a sexo.
O sub-campo breakup (figura 10) abrange as lexias relacionadas
aos rompimentos das várias espécies de relações amorosas, e o principal
traço de significação comum entre elas é o termo end.
Por fim, o sub-campo people (figura 11) é formado por lexias que
representam
tipos
de
pessoas
consideradas
em
relação
a
seu
comportamento ou status no âmbito dos relacionamentos amorosos. Os
traços de significação comuns entre essas lexias são os termos someone,
woman/man e attractive.
81
Fi gu r a 2
Fi gu r a 3
Fi gu r a 4
Fi gu r a 5
Fi gu r a 6
Fi gu r a 7
Fi gu r a 8
82
Fi gu r a 9
Fi gu r a 1 0
Fi gu r a 1 1
A partir da união desses sub-campos léxicos, foi possível
compor o seguinte campo léxico-semântico do amor:
Fi gu r a 1 2
Considerações finais
Percebemos que várias formas de relacionamento amoroso são
abordadas pela sitcom Friends, já que foram encontradas desde lexias
relacionadas à paquera e ao sexo a lexias relacionadas ao casamento
como instituição e como espécie de relação. Substantivos que variam
quanto ao gênero foram encontrados em suas duas formas, masculina e
feminina, como é o caso de boyfriend e girlfriend e de husband e wife.
A identificação dos traços de significação comuns entre lexias,
para sua inclusão nos sub-campos, foi muito facilitada pela utilização
dos dicionários Longman Dictionary of Contemporary English (1995) e
Collins Cobuild Advanced Learner’s English Dictionary (2003), porque
eles trazem definições e explicações mais detalhadas; enquanto o
83
dicionário unabridged, direcionado para falantes nativos da língua, tem
definições mais concisas e de vocabulário mais específico.
A primeira pergunta da pesquisa – quais lexias compõem o campo
léxico? – foi respondida satisfatoriamente pela identificação e pela
análise das 121 lexias relacionadas ao amor. A segunda pergunta – quais
sub-campos léxicos podem ser formados a partir da identificação de
traços de significação comuns entre grupos de lexias? – também foi
respondida, com a definição dos dez sub-campos que organizam as lexias
que formam o campo léxico-semântico do amor.
Acreditamos que este estudo contribua para o conhecimento do
léxico da língua inglesa e esperamos que tenha também despertado ou
fomentado o interesse pelo estudo dos campos léxicos.
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85
LEITURA DE IMAGEM: A SEMIÓTICA EM SAL A DE AULA.
P a t ri c i a Ki s s S p i nel i
∗
Resumo?
O artigo discute o uso das categorias de Primeiridade, Secundidade
e Terceiridade do filósofo Charles Sanders Pierce na análise de imagens
e sugerir seu uso em exercícios educacionais para alunos do ensino
superior. Além disso, o artigo registra como o suporte e local em que a
imagem é apresentada influenciam na interpretação do signo. Como
exemplo, são analisadas duas imagens fotográficas de Luiz Eduardo R.
Achutti, que fazem parte da coleção Pirelli do Museu de Arte de São
Paulo.
Palavras-chave: Educação; Semiótica; Análise de imagem; Fotografia;
Suporte.
THE READING OF IMAGE: SEMIOTICS IN THE CLASSROOM
Abstract:
The paper discusses the use of the philosopher Charles Sanders
Pierce’s categories for image analysis and suggests their application in
educational exercises for undergraduate students. Besides, the paper
comments on how the support and place in which the images are
presented affect the signal interpretation. As an example, we analyse two
photographs by Luiz Eduardo R. Achutti, which are part of the Pirelli
collection of the Museu de Arte de São Paulo, are analyzed.
Keywords:
Education;
Semiotics;
Image
analysis;
Photography;
Support.
Introdução
O mundo contemporâneo está permeado de imagem e o ser humano
comunica-se e tenta organizar-se por meio dela. Mesmo apreendendo o
mundo visualmente, antes mesmo do uso da palavra, ainda é pouco
consolidada no sis tema educacional uma pedagogia que efetivamente
considere a importância da leitura visual e de seu universo estético e
simbólico. Nas palavras de Caleb Gattegno (apud DONDIS, 2000, p. 60),
∗
Espe cia li sta e m Fot o gr af ia p el a U n i ve r si d a de E st a d u al de Lon d r i na – D oc e nte d os
c ur sos de Pu b li c i da d e e P r opa ga n d a e M od a d a I n st it u iç ã o M ou r a Lac er d a.
E - ma i l: p a t ri ci ak i ss@ y m ai l.c o m
86
“embora usada por nós com tanta naturalidade, a visão ainda não
produziu sua civilização”.
Na sociedade contemporânea, discute-se a necessidade de uma
alfabetização visual que possa expressar-se na leitura de imagens e
compreensão crítica da cultura visual, considerando cultura visual como
diversidade do mundo das imagens, das representações visuais, dos
processos de visualização e de modelos de visualidade (KNAUSS, 2006).
Além dis so, os estudos em cultura visual mostram que “(...) interrogam o
papel de todas as imagens na cultura que podem ser comparadas como
representações vis uais produzidas no âmbito da produção cultural, não
deixando espaço para antigas categorias do campo das artes, como obraprima, criação do gênio ou arte menor” (KNAUSS, 2006). Desde as
vitrinas das cidades aos anúncios para web, presencia-se a construção da
mensagem por meio de imagens na sociedade contemporânea, imersa na
cultura visual. Com isso, faz-se necessário formar cidadãos que possam
compreender e interpretar o mundo em que vivem, em outro sentido, não
apenas no âmbito da palavra escrita e, com isso, agregar valor a essa
sociedade.
O
crescente
interesse
pelo
visual
tem
levado
historiadores,
antropólogos, sociólogos e educadores a discutirem as imagens e a
necessidade de uma alfabetização visual (SAR DELICH, 2006). A cada
dia as pessoas são bombardeadas com informações verbais e não verbais
que chegam principalmente por intermédio das novas tecnologias de
informação (computadores, internet, celular). Além disso, vive-se numa
sociedade em bit, onde a digitalização social faz com que signos sejam
processados pela lógica binária do computador. Serviços são codificados
e manipulados no 0/1 – essa desmaterialização da economia proporciona
aumento na rapidez e produção. As sociedades pós-industriais são
programadas e performatizadas pela tecnociência para produzir cada vez
mais e mais rápido (SANTOS, 1995). Uma das características dessa
informação em bit é sua difusão em blip, ou seja, o sujeito recebe
pontos, fragmentos aleatórios de informações, que não formam um todo,
mas têm importantes efeitos culturais, sociais e políticos. Surgem
algumas questões prementes: o que fazer com toda essa informação?
87
Como estabelecer relações? Como interpretá-las? Com isso, surge a
importância
de
uma
alfabetização
visual
para
a
aprendizagem,
identificação, criação e compreensão de mensagens visuais acessíveis a
todas as pessoas, já proposta por Donis Dondis. (DONDIS, 2000).
A
semiótica,
como
ciência
geral
de
todas
as
linguagens
(SANTAELLA, 1992), discute, principalmente, a construção do signo 5 e
a relação entre esses signos. É uma forma de ler e compreender o verbal
e o não verbal. Com isso, é cabível seu uso para o exercício de análise de
imagens, já que investiga todas as linguagens possíveis, objetivando
examinar qualquer fenômeno de produção de significado e sentido.
Dentre os vários autores, formulações e estudos da semiótica, foi
escolhida a Semiótica Peirciana, que aborda a fenomenologia e a teoria
geral dos signos.
Análise das categorias fenomenológicas
A
Fenomenologia
é
a
ciência
que
estuda
os
elementos
universalmente presentes em todos os fenômenos e se preocupa com as
aparências no universo da experiência. Para Peirce (2003), fenômeno é
tudo aquilo que se apresenta à mente sem considerar a realidade. Os
fenômenos
podem
ser
categorizados
a
partir
do
modo
como
se
apresentam à mente. Sendo classificados em Primeiridade, Secundidade e
Terceiridade:
As
c ate g o r i as
pe c ul i are s
com
que
( ...)
os
di ze m
re s pe it o
p e nsa me n t os
às
são
m o d al i d a de s
i n f o rm a d o s
e
en t ret e c i d os. E nf im: c a m a d as i nt er p e net r á vei s e, n a m ai o r
p a rt e d a s v ez es , si m ul tâ n e a s, se b em q u e q u a l it a ti v am e n te
di s ti n t as ( SAN TAE LLA , 1 9 8 3, p g. 4 2) .
Primeiridade é o estado de contemplação sem qualquer referência,
sem fazer conexão com mais nada; é um estado de consciência que ainda
5
Para Peirce, signo é uma coisa que representa outra coisa: seu objeto. Ele só funciona como signo se
carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. O signo não é o objeto. Está
apenas em seu lugar. Assim, a palavra casa, a fotografia de uma casa, a maquete de uma casa, são todos
signos do objeto casa. (SANTAELLA, 1992)
88
não foi pensado. É a primeira apreensão das coisas, que para nós
aparecem (PEIRCE, 2003).
Secundidade é o choque, é o estado de experiência; é a reação em
relação ao mundo, “a consciência de um certo sentimento sendo rompido
por um outro (...). Um acontecimento que se força contra o pensamento,
levando a uma mudança na consciência” (CONTANI; PIRES, 2005, p.3).
É o reconhecimento dos elementos contemplados.
Terceiridade
aprendizagem,
é
o
despertar
aproximando
o
para
o
primeiro
do
conhecimento,
segundo
para
numa
a
síntese
intelectual, que corresponde à camada de inteligibilidade, ou pensamento
em signos, pelo qual o mundo pode ser representado e interpretado
(PEIRCE, 2003).
Em
suma,
por
Primeiridade,
entende-se
aquilo
que
é,
sem
referência a nada mais, uma impressão não analisável, pura qualidade de
ser e sentir. Secundidade é aquilo que é em relação ao outro, mas não se
referindo a um terceiro – é a consciência reagindo em relação ao mundo.
E Terceiridade é aquilo que mantém uma relação triádica, colocando-se
em relação mútua tanto a um segundo quanto a um terceiro (PEIRCE,
2003),
a
camada
do
pensamento
em
signos
por
meio
do
qual
representamos e interpretamos o mundo, em que se produz um signo pela
consciência. É o pensamento que faz a mediação entre a pessoa e o
fenômeno. Nas palavras de Contani & Pires (2005):
Pa r ece ( . ..) q ue a s ver da d e ir a s ca te g or i a s d a c on sc iê nc ia
sã o: pr i me ir o, se nt i me n t o, a c o n sc iê nc ia q ue p o de ser i n cl u í da
c o m u m i n sta n te d e te mp o, c o n sci ê nc ia p as si va d e q ua li d a de ,
se m
r ec on h e ci m e nt o
ou
a ná li se ;
em
se gu n d o
l u gar ,
c o n sc iê n cia de i n ter r u p çã o n o c a m p o d a c on s c iê nc ia, se nt i d o
de r e si s tê nc i a, d e u m fa t o e x ter n o, d e a l gu m a o ut r a c oi sa ; e m
te rc eir o l u ga r , c on s c iê nc ia si n t é tic a , l i gaç ã o c om o te m p o,
se n ti d o de a pr e n d iza ge m, p e nsa me n t o. ( CO N TAN I ; PI R E S,
2 0 0 5, p . 1 7 1)
O uso das categorias fenomenológicas para o inicio de exercícios
de leitura de imagens é fundamental para que o aluno compreenda o
89
processo
de
construção
da
linguagem
e,
posteriormente,
consiga
compreender a relação entre signos, já que por meio da aparência dos
fenômenos
pode-se
descrever
o
contato
com
a
imagem.
Após
a
explanação das categorias segue-se a análise da imagem para a lógica
triádica interna ao signo, na qual as categorias, também operam. Nessa
relação triádica, faz-se o exame do signo em si mesmo, o signo com o
objeto – estudo da relação do signo com aquilo que ele representa e
relação do signo com seu interpretante – e o estudo da relação do signo
com todos os tipos interpretativos por ele produzidos. O artigo não
aborda a relação entre os signos, mas sugere que o assunto seja estudado
e aplicado posteriormente à análise fenomenológica.
O uso da semiótica para a análise da imagem
A discussão em voga na sociedade contemporânea se dá em torno
da alfabetização visual. O século XX (como provavelmente também será
o século XXI) é reconhecido como o da sociedade da imagem dentro de
uma cultura visual. No entanto, falta ainda às pessoas argumentos
teóricos para compreensão e interpretação dessas imagens.
Kellner (apud SAR DELICH, 2006) argumenta que ler imagens
criticamente implica aprender a apreciar, decodificar e interpretar essas
imagens, analisando tanto a forma como são construídas e como operam
em nossas vidas, quanto o conteúdo que comunica em situações
concretas. Para Kleiman e Moraes (1999), o desenvolvimento do
letramento requer a exposição do aluno a vários tipos de texto em
eventos variados, pois quando o aluno interage com diversas fontes de
informação é encaminhado a se engajar em variadas práticas sociais de
leitura: aprende a observar, perceber, relacionar, comparar, abstrair,
criticar, construir generalizações e a falar sobre um determinado ass unto.
Esse mesmo raciocínio pode ser utilizado no tratamento da linguagem
não verbal, por meio do uso de vários tipos de imagens oriundas de
diversas fontes de informação para despertar a capacidade crítica do
aluno na sua leitura.
Devido a um déficit na educação fundamental, em que a maioria
das instituições de ensino dá ênfase ao ensino da linguagem verbal e
90
dificilmente aborda o ensino do não-verbal, parte dos estudantes
universitários apresenta dificuldades para ler e interpretar uma imagem,
ou o faz apenas superficialmente.
A expressão leitura de imagens começou a ser utilizada na área de
comunicação e artes no final da década de 1970 (SARDELICH, 2006),
com a explosão do audiovisual, baseado principalmente na noção de que
uma
imagem
incorpora
códigos
e,
para
lê-la,
é
necessário
o
conhecimento e compreensão desses códigos. A Semiótica foi uma das
teorias que influenciou essa tendência de leitura de imagens.
No entanto, William Mitchell (apud SARDELIC H, 2006) adverte
que apesar de a noção do visual constituir uma dimensão diferente da
linguagem verbal, isso não significa que as duas sejam antagônicas ou
que a cultura visual isole a verbal e não verbal; ao contrário, a cultura
visual inclui a relação entre todos os signos. O estudo da imagem é algo
móvel,
pois
a
cada
momento
são
incorporados
novos
aspectos
relacionados às representações, e a cada instante há mudanças e
acréscimo de repertório individual, assim
como as alterações do
repertório consolidado.
Nesse contexto, não há como manter um ensino cartesiano para a
análise de imagem, já que não existem apenas receptores e leitores, mas
sim construtores e intérpretes, na medida em que a aproximação com a
obra é interativa e não passiva, já que “as representações que as pessoas
constroem da realidade derivam das suas características sociais, culturais
e históricas do indivíduo. È necessário compreender o que se representa
para compreender as próprias representações” (SAR DELICH, 2006).
Uma construção eficiente do ensino de análise da imagem deve averiguar
como é possível ampliar as conexões do aluno para que todo o grupo
possa
organizar
desligando-os
discursos
da
com
os
dualidade
saberes
que
todos
educador/educando
possuem,
e
de
ensino/aprendizagem. Ou seja, em uma concepção pós-moderna de ensino
se valoriza a troca de experiências, o aluno participa ativamente da aula,
construindo juntamente com o educador a informação.
A semiótica, como uma ciência formal e abstrata, preocupa-se
com
o
estudo
da
linguagem
e
dos
signos,
agindo
de
forma
91
interdisciplinar, não se limitando às disciplinas que explícita ou
implicitamente estudam processos sígnicos, já que adota a posição de
metadisciplinar “toma todas as outras disciplinas sob seu domínio,
independentemente de elas estudarem processos sígnicos (humanidades,
ciências sociais) ou não (física, química) (SANTAELLA, 1992, pg.45).
Apesar de a preocupação com o estudo dos signos remeterem ao
clássico grego, somente a partir da metade do século XX a Semiótica
ganhou destaque como uma nova área do saber. Desde então, ela assumiu
uma tendência propagadora, sendo responsável por introduzir no modelo
de leitura da imagem as noções do significado entendido objetivamente –
a descrição de situações, figuras, pessoas em um espaço e tempo – e do
entendido subjetivamente, que se refere àquilo sugerido pela imagem e à
mercê do julgamento do intérprete. Sendo assim, a abordagem semiótica
enfatiza
a
leitura
da
imagem
a
partir
dos
seguintes
códigos
(SAR DELIC H, 2006):
•
Espacial: ponto de vista (acima/abaixo; esquerda/direita);
•
Gestual e Cenográfico: sensações que os gestos produzem no
leitor (tranquilidade, nervosismo);
•
Lumínico: fonte de luz (cima/baixo; frente/lado);
•
Simbólico:
convenções
(pomba
simbolizando
paz,
caveira
simbolizando a morte);
•
Gráfico: imagens tomadas de perto, de longe;
•
Relacional: relações espaciais que criam um direcionamento do
olhar no jogo de tensões, equilíbrio, antagonismos.
A fotografia como imagem para análise
A mensagem fotográfica não é estruturada em códigos formais
como a escrita (BONI, 2005). Por não necessitar de uma estrutura formal
de leitura, a maioria das pessoas, mesmo as não alfabetizadas, pode ler e
interpretar uma imagem. No entanto, o grau de leitura depende do
repertório visual e cultural de cada um, não sendo necessário o uso de
um código formal, mas há a necessidade de uma sistematização da
92
leitura, para que não sejam imputadas interpretações não sugeridas pela
imagem, ou seja, interpretações além do que a imagem de fato oferece ao
leitor. Assim, essa condução da leitura poderá fazer com que o leitor
aumente o seu leque de interpretação em relação àquela imagem. Devido
ao caráter indicial, a imagem fotográfica, nesse ponto, poderá ser de
utilidade para uma introdução ao exercício de leitura não verbal.
A fotografia é uma manifestação de linguagem e sempre permite
algum tipo de leitura, (...) por mais simples e ingênua que seja (BONI,
2005). Dessa forma, é por meio da linguagem fotográfica que se pode
codificar sua “escrita”. Como a linguagem visual é acessível à quase
todo ser humano, infere-se que ela facilite a aplicação dos exercícios de
leitura de imagem.
A fotografia é percebida como um bem cultural, um patrimônio
para ser reconhecido, conservado e divulgado. Para Santaella (2005),
podem ser identificados três paradigmas na história da produção de
imagens pelo homem: o pré-histórico, que se refere a imagens com
produção manual (desenho, pintura, escultura); as imagens com conexão
dinâmica e física com algo que existe no mundo, classificadas como
segundo paradigma (fotografias, filmes, vídeo); e, o terceiro paradigma,
que seriam as imagens sintéticas ou infográficas (computacionais).
Segundo essa classificação, a imagem fotográfica pode ser incluída no
segundo paradigma, já que ela se baseia na captura da luz, por um
equipamento
fotográfico,
emanada
de
algum
objeto
existente,
estabelecendo uma conexão física com algo que existe no mundo. Essa
classificação cabe apenas para a captura convencional da imagem
fotográfica, visto que atualmente é possível e praticado o uso da
fotografia virtual, em que toda a imagem é modelada via computação
gráfica, nesse caso enquadra-se no terceiro paradigma.
Ainda
em
sua
classificação,
Santaella
(2005)
identifica
os
paradigmas por intermédio dos meios de produção, papel do agente,
natureza da imagem, meios de armazenamento, imagem e mundo, meios
de transmissão e papel do receptor.
Quanto à fotografia, os meios de
produção seriam processos automáticos de captação da imagem. Os
meios de armazenamento seriam o negativo, algo reprodutível. O papel
93
do agente, a captura do real, o ponto de vista do sujeito. Em natureza da
imagem, a captura do visível. Imagem-mundo a metonímia, o modelo
fixo.
Por
último,
o
papel
do
receptor
que
seria
a
observação,
reconhecimento e identificação.
A fotografia é vista pela semiótica como um signo, uma coisa que
representa outra: seu objeto. O signo não é o objeto, está apenas no lugar
dele, portanto, somente poderá representá-lo de certo modo e em certa
capacidade. A fotografia de Achutti (2007), analisada neste artigo, por
exemplo, é um signo da composição de um acontecimento ocorrido em
1980 na Casa do Estudante da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFR S). Ao entrar em contato com esse signo, que representa algo
ocorrido
há
28
anos,
o
receptor
passará
pelas
três
categorias
fenomenológicas de Pierce: primeiridade, secundidade e terceiridade. No
entanto, as categorias fenomenológicas não precisam ser abordadas
racionalmente, ao se fazer a análise da imagem, mas esse exercício, em
um primeiro instante, oferece ao aluno a dimensão do processo de
compreensão de uma imagem.
Fotografias, assim como a televisão e o cinema, são hipoícones,
signos que representam seus objetos por semelhança e índices, pois são
signos híbridos produzidos por máquina.
Sã o, c on t u d o t a mbé m í n d i ce s p or q ue e ssa s m á q ui n a s sã o
ca pa z es de r e gi s tr ar o ob je t o d o si gn o p or c on ex ã o f ís ica . A
r es p eit o da f ot o gra f ia, P eir ce e sc la r e ce : “O f a t o de sa ber mos
q ue a f ot o gr af ia é o e f e it o d e ra di aç õe s p ar ti da s d o ob je t o,
t or na- a u m í n d ic e e a l ta me n te i nf or ma t i v o. ( SA N TAE LLA ,
1 9 8 3, p . 6 9)
Análise da fotografia de Achutti
Fotógrafo formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul , em 1985, e mestre em Antropologia Social pela
mesma Instituição, Luiz Eduardo R obinson Achutti, sempre participou do
cenário fotográfico brasileiro. Atua em Antropologia Social e em
Psicologia Social, conduzindo pesquis a na área de documentação e
antropologia visual.
94
As fotografias de Achutti proporcionam a discussão da análise
fotográfica em sala de aula, uma vez que resgatam a discussão teórica do
fazer etnográfico e do trabalho de campo em antropologia, já que o autor
tem como ponto central as possibilidades de articular a construção de
imagens fotográficas com a perspectiva do pensamento antropológico
(AC HUTTI, 1997). Essa perspectiva é válida, principalmente, para
cursos de ciências humanas em que esse olhar sobre o homem é
fundamental para o desenvolvimento pessoal e profissional do aluno.
Achutti prima por temas marcados pela dinâmica do movimento. O
fotógrafo sintetiza em um único momento a essência do acontecimento,
sem deixar de capturar detalhes em imagens que pulsam na imaginação
do espectador e se contrapõem à condição estática do suporte.
Duas fotografias de Achutti “Invasão de Mulheres na Casa do
Estudante da UFR GS, Porto Alegre, RS, 1980” e “Mecânicos da Oficina
da Rede Ferroviária, Porto Alegre, RS, 1996” foram expostas na 15ª
edição da Coleção Pirelli/Masp no Museu de Arte de São Paulo em 2007
e anexadas ao livro da coleção (Figuras 1 e 2). O projeto da Coleção
Pirelli/Masp de São Paulo objetiva rastrear a produção fotográfica de
modo a estabelecer parâmetros efetivos para análise das diferentes
correntes estéticas e tendências que permeiam a expressão fotográfica no
Brasil, assim como divulgar essas obras,
visando fixar sua memória.
Essas foram as metas propostas para a formação de uma coleção centrada
na fotografia contemporânea. O acervo dos quinze anos da Coleção conta
com novecentas e duas fotografias, produzidas por duzentos e quarenta e
cinco autores de todo o país. É uma contribuição estética e social e serve
como referência para estudos ao ser exibida e compartilhada.
A fotografia “Invasão de Mulheres na Casa do Estudante” (Figura
1)
é
utilizada
neste
artigo
como
exemplo
do
pensamento
em
primeiridade, secundidade e terceiridade, proporcionando ao leitor da
imagem uma visão sobre as três categorias da fenomenologia. Em um
primeiro momento, ao olhar a imagem, o receptor desenvolve com ela
uma relação de contemplação sem referências, absorção. É um instante
de fruição em que a imagem diante dos olhos não faz conexão com
qualquer outro signo. O sujeito que a contempla absorve sensações. Essa
95
primeira apreensão da imagem, que aparece ao olhar é uma impregnação
de texturas, tonalidades de cinza, linhas retas. Há apenas a contemplação
dos elementos plásticos sem determiná-los. È evidente que os elementos
citados
acima
durante
a
manifestação
da
primeiridade
não
são
reconhecidos nestes termos pela mente do observador, já que:
C on sc iê nc i a e m pr i m eir id a de é q ual i da d e d e se nt i me nt o
e, p or i s so m esm o, é pr i mei r a, ou se ja, a p ri m e ir a a pr ee n s ã o
da s c oi s a s q u e pa ra n ó s a par ec e m , já é tr a d uç ã o m e di a da
en tr e n ós e o s f e n ô m e n o s. Q ua li da d e d e se n tir é o mod o m ai s
i me di at o , ma s já i m per ce pt i vel m e nt e me d i a li z a d o d e n oss o
es tar n o mu n d o. ( SA N TAE LLA , 1 9 8 3, p g. 4 6 )
Logo após a ruptura, há a identificação. Reconhecimento do
prédio, pessoas, papel: esse é o momento da secundidade. A partir do
ponto em que o observador reage à imagem, ou seja, percebe os
elementos que compõem o signo, deixa a primeiridade e passa a
secundidade. Há uma ação–reação. Essa reação causará o rompimento do
estado inicial, ou seja, produzirá conflito entre esforço e resistência: é
uma experiência anterior ao pensamento articulado e subsequente ao puro
sentir. Nesse momento, o leitor percebe alguns elementos já vistos:
figuras humanas, papel picado, fios elétricos e aquilo que se assemelha a
uma construção vertical, um edifício. Nesse estágio, ocorre a percepção
desses elementos, mas nesse reconhecimento ainda não há reflexão ou
ação do pensamento.
No momento em que o leitor da imagem pontua e lê a legenda, terá
a consciência de que se trata de um prédio em que pessoas estão jogando
papel picado pela janela. Com a percepção dos elementos, o observador
ativará
o
terceiridade
pensamento
aproxima
em
um
signo 2 .
primeiro
Segundo
e
um
Santaella
segundo
(1983),
numa
a
síntese
intelectual. É por meio do terceiro que representamos e interpretamos o
mundo. Ao fazer essa reflexão, o receptor poderá inferir que se trata de
uma fotografia de um prédio, registrada de baixo para cima em que há
2
O si gn o c om e ç a n o p e n sa m e nt o e m u m pr oc e sso d e diá l o g o i nte r i or . De p oi s é u m a
f or m a de se c om u n i ca r c om o m u n d o. C om u n i ca m o- n os p or si g n o .
96
pessoas picando e jogando papéis. Poderá chegar a essa conclusão ao
notar que os fios próximos a um prédio são elétricos, que aparecem
várias figuras humanas e que o efeito visual que preenche toda a
fotografia é o de papéis picados; logo, pessoas em um prédio picam
papéis e jogam pela janela. Além disso, a legenda da foto acelera a
cognição do leitor ao fornecer essa informação sobre a fotografia.
Assim, diagramaticamente pode-se dizer que:
Pri me ir o
M o me nt o
Se g und o
M o me nt o
Te rce i r o
M o me nt o
O f e n ô m e n o n o se u es ta d o
p ur o se a pr e se n ta à
c o n sc iê n cia .
C on t e mpl açã o
A bs or çã o P l ás ti c a
Re c on h ec i me n t o
C on f lit o d a c on sc i ê n ci a
c o m o fe n ô me n o
P r oce s so
Me di açã o
I n ter pr e t a çã o
Ge ne r al iza çã o d o f e n ô me n o
Se m r ef er ê nci a
Pr é d i o, pe ss oa s,
pa p el
Pe ss oa s e m u m
pr é d i o j o ga n d o
pa p el p ica d o
Na outra fotografia de Achutti, “Mecânicos da Oficina da Rede
Ferroviária,
Porto
primeiridade
há
Alegre, RS, 1996”
a
absorção
dos
tons
(Figura 2),
em
preto
com relação à
e
branco,
da
retangularidade e do contraste entre os tons. Na secundidade, o leitor
identifica humanos do sexo masculino vestidos casualmente com casacos,
dispostos em três níveis: alguns sentados, outros em pé no que parece ser
um vagão de trem f erroviário. Em um terceiro momento, há o processo
de interpretação: são aparentemente homens trabalhadores de uma
empresa ferroviária que estão se movimentando ao redor desse trem,
talvez em um momento de pausa para descanso, posaram para ser
registrada a fotografia. Essa interpretação é pessoal e depende do
repertório de quem lê a imagem (no caso, a autora deste artigo), com a
referência da legenda da imagem fotográfica, pontuando a terceiridade.
Assim, pode-se propor ao aluno que descreva em palavras a
primeiridade, a secundidade e a terceiridade, observando na discussão
dos resultados que os mesmos não anotarão nada na primeiridade, já que
ao se expressar verbalmente já entrariam na secundidade, e que a
97
interpretação dos fatos somente seria efetivada na terceiridade. Além
disso, é preciso reforçar que o repertório visual de cada indivíduo
influencia na apreensão e interpretação da imagem proposta.
Ao olhar para a imagem fotográfica em um primeiro instante, o
leitor não identifica seus elementos constitutivos. A abundância de
formas horizontais, verticais e dos planos não o situa. Nesse momento
contemplativo, o leitor apenas absorve a plasticidade da imagem. Podese dizer que a imagem tem alto poder icônico, isto é, qualidade em que
imperam as sensações. Há uma pluralidade que proporciona ao leitor
trazer outras referências e fazer analogias. Isso enriquece seu repertório
e, por estarem no univers o da qualidade, as semelhanças proliferam e
produzem na mente do leitor relações de comparação.
O exercício apresentado prepara o aluno para o pensamento em
signo, propondo uma reflexão e fazendo com que perceba as três
categorias fenomenológicas. Com isso, espera-se que ele compreenda a
construção do pensamento por imagem.
Fi g u r a 1 – I nv a sã o d e M ul h e re s n a C a sa d o E s t u d a n te d a UFR GS, P o r t o
Al e g re , R S, 1 9 8 0.
Fo n te : C a t ál o g o C o l eç ã o P i rel li / M asp S ã o P a u l o 2 0 6 / 2 0 0 7 .
98
Fi g u r a 2- M ec â n ic o s d a Of i ci n a d a Re d e Fe rr ov i á ri a, P o rt o Ale g re , R S, 1 9 9 6.
Fo n t e: C a t ál o g o C o leç ã o P i rel li / M asp , S ã o P a u lo , 2 0 0 6/ 2 0 0 7 .
A influência do suporte na análise fenomenológica
A fotografia observada na exposição C oleção Pirelli no Masp, em
2006/2007, estava exposta na vertical, fixada em um mural e tinha três
vezes mais o tamanho em que está impressa no livro da Coleção
Pirelli/Masp, que registra toda a exposição. Nessa situação, o leitor
imerge na imagem e a sensação de primeiridade se prolonga mais que se
observada pelo livro, uma vez que esse momento de impressão,
dependendo do estado em que a consciência se encontra pode ser
prolongado (SANTAELLA, 1983).
A plasticidade da foto é realçada e a contemplação perdura mais
que na foto impressa no livro. Assim, demora-se mais para se adentrar na
categoria de secundidade, pois a ruptura e a percepção dos elementos da
fotografia demoram em favor da imersão da primeiridade. Da mesma
forma, o efeito de mediação da terceiridade também demora mais a
acontecer uma vez que o sujeito demora a sair da primeiridade e entrar
na secundidade.
Em b or a q ua li da d e de se n t i me nt o s ó p os sa s e d a r n o
in s ta n te
me s mo
de
u ma
i mp re ssã o
nã o
ana l i sá v e l
e
in ca p t ur á ve l, ou se ja , n u m si m p le s át i m o, e ss e m ome n t o de
i m pr e ssã o, d e pe n de n d o d o e st a d o e m q ue se e n c on t r a a
c on sc iê n c ia s e e n c on tr a pr ol on ga d o. ( SA N TAE LLA , 1 9 8 3,
p g. 4 6) .
99
Em contraponto, dependendo do leitor, poderá haver uma reação
inversa se o mesmo, logo que se posicionar em frente à imagem, obtiver
primeiro a informação da legenda. Dessa forma, o leitor passará
rapidamente pela primeiridade, já adentrará na secundidade e, a partir da
informação
da
legenda,
ativará
mais
rapidamente
o
pensamento,
conectando a fotografia a outros parâmetros.
A mesma fotografia impressa no livro da Coleção Pirelli provoca
uma
reação
diferente
na
apresentação
das
três
categorias
fenomenológicas. Por ser menor e estar em um suporte maleável, o
receptor não demora no estado de contemplação, pois não existe a
imersão como na visualização na exposição. A postura do receptor frente
ao livro é diferente da postura do mesmo frente ao painel no qual a
fotografia estava exposta no museu. A foto exposta em formato maior e
pendurada na vertical proporciona ao leitor ficar no mesmo nível da
imagem.
Isso
facilita
a
imersão
e
consequentemente,
o
poder
contemplativo, já que o receptor está fisicamente próximo à obra; apesar
de não tocá-la com as mãos, toca-a com os olhos. Daí podemos perceber
a importância de se pensar na apresentação de determinadas imagens, já
que o suporte influencia na recepção e leitura da imagem. A impressão
em um formato menor, como o publicado no livro, com a possibilidade
de manuseio pelo leitor, faz com que esse se afaste do objeto e não o
contemple tanto quanto na exposição. Um processo parecido acontece
com o expectador de cinema. Esse, por estar diante de uma tela grande,
em um ambiente escuro que respeita a proporção da imagem, entra na
obra em um estado de imersão. Já os filmes vistos em telas menores,
como as das televisões domésticas, não proporcionam a mesma imersão
que os assistidos no cinema.
É importante esclarecer ao aluno que todo processo de análise e
interpretação de imagem, seja ela fotográfica ou pictórica, depende dos
meios e suportes em que esta obra é apresentada. Ambos influenciam
diretamente na leitura e contextualização da obra, podendo alterar,
inclusive, a passagem pelas três categorias fenomenológicas.
100
Considerações finais
O exercício de análise de imagem é de extrema importância dentro
da cultura contemporânea, uma vez que o ato de ler imagens influenciará
diretamente na formação do indivíduo e ampliará suas conexões,
permitindo que o mesmo possa organizar discursos e relacionar ideias.
Reconhecendo o déficit de educação não verbal na formação básica do
indivíduo, os exercícios de análise de imagem na universidade poderão
suprir algumas das dificuldades para ler e interpretar uma imagem que o
aluno apresenta.
Entende-se
aqui
que
o
uso
da
Semiótica
Peirciana,
como
introdução à análise da imagem, ajuda o indivíduo a compreender como
se
dá
a
formação
da
linguagem.
Vivenciando
os
três
processos
fenomenológicos no ato da leitura, o aluno poderá perceber que as três
categorias não delimitam os estados de consciência em relação aos
fenômenos. O leitor transita entre a primeiridade, secundidade e
terceiridade. Nesse sentido, a fotografia pode ser utilizada como objeto
de estudo da leitura de imagem, já que ela opera no campo do índice e
mantém uma relação próxima com o objeto representado, possibilitando
claramente a percepção da passagem pelas três categorias. Todos os
fenômenos que se apresentam ao ser humano possuem as três categorias
da Fenomenologia, diferindo apenas pelo grau de pertinência de cada
uma delas num determinado fenômeno. A fotografia pode ter qualquer
uma das características dominante (CONTANI;JORGE, 2005).
Além disso, “como” e “onde” essas imagens são apresentadas
influenciam
na
consciência
em
relação
aos
fenômenos,
podendo
prolongar ou encurtar alguma das categorias, dependendo do contexto.
Assim, é importante que o fotógrafo e/ou editores e expositores fiquem
atentos ao que querem provocar no leitor da imagem. Conscientemente,
devem saber que o suporte e lugar influenciam na percepção; da mesma
forma, o leitor deverá perceber o quanto de influência o suporte e meio
de apresentação provoca na leitura.
101
REFERÊNCIAS
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http://www.achutti.com.br/fotoetnografiaprincipal. Acesso em 15 de abril de 2009
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fotografia vista pela semiótica. Discursos fotográficos, Londrina, PR, v.1, n.1, p.167182, jan./dez.2005.
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KLEIMAM, Angela B. e MORAES, Sílvia E. Leitura e interdisciplinaridade:
tecendo redes nos projetos da escola. 1. ed. Campinas: Mercado de Letras, 1999.
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Fotográfico. 2 ed. São Paulo, SP: Editora SENAC, 2005, p. 295-307.
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_________________. O que é semiótica. 1 ed. São Paulo, SP: Brasiliense, 1983.
(Coleção: Primeiros Passos).
SANTOS, Jair F dos. O que é Pós-modernismo. 1 ed. São Paulo, SP: Editora
Brasiliense, 1995.(Coleção: Primeiros Passos).
SARDELICH, Maria E. Leitura de imagens, cultura visual e prática educativa. Caderno
de Pesquisa, São Paulo, SP, v.36, n.128, p. 451-472, 2006.
102
REFLEXÕES E PRÁTICAS EDUCATIVAS
103
CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA LITE RÁRIA PARA AS NOVAS
METODOLOGIAS DE ENSINO DE LITERAT URA
Ad r i a n a J u l i a n o Me n d es de CA MP OS *
Ao s p r of e sso re s d e Li n g u a ge n s, a l u n o s de Le t r a s e e d uc a d o re s e m ge ra l , q u e
tr a b a l h am d i a- a- d i a ac re d it a n d o n u m am a n h ã m ai s p oé ti c o, n uma e d uc aç ã o m a is
a rt ic u l a d a e n u m a ge raç ã o m ai s c rí t ic a.
Resumo:
O artigo tem como objetivo refletir sobre formas de tratamento da
Literatura na escola bem como sobre resultados educacionais recentes
relativos à formação leitora. O estudo problematiza, a partir da LDB/71,
a oposição central entre o conhecimento formal, linear e fragmentado e
os desafios para superação deste modelo pela práxis dialética e
interdisciplinar. Analisa o paradigma da transição que a LDBEN/96
estruturou para a esfera escolar, no século XXI, explicitando
pressupostos teóricos da semiótica, implícitos na versão original dos
PCNEM/99 e textos complementares.
Palavras-chave:
Dialética;
Educação;
Intersemiótica; Literatura; Metodologia; Teoria.
Interdisciplinaridade;
CONTRIBUTIONS FROM LITERARY THEORY TO NEW
METHODOLOGIES OF LITERATURE TEACHING
Abstract:
This paper summarizes to study the treatment of Literature in
schools as well as the results of the reader formation process. Based on
“Lei de Diretrizes e Bases” (LDB/71), this s tudy analyzes the central
opposition between formal, linear and fragmented knowledge and the
challenges to overcome s uch a model by the dialectic and
interdisciplinary praxis. We discuss the paradigm of the transition which
“Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional” (LDBEN/96)
established for schools in the course of the twenty-first century by
showing the theoretical purposes of semiotics implied in the original
version of “Parâmetros C urriculares Nacionais para o Ensino Médio”
(PCNEM/99), including complementary texts.
Keywords: Dialectics; Education; Interdisciplinarity; intersemiotics;
Literature; Methodology; Theory.
Introdução:
Existe um longo histórico de pensadores, filósofos, teóricos da
literatura e críticos consagrados que s ugeriram diferentes formas de
*
D ou t or a e m Te or i a d a Li t er a t ur a pe la UN ESP / IB I LC E - SP . Doc e nt e d os c ur s os de
Gr a d u a çã o e P ó s- gr a d ua çã o d o UN IJ A LE S. E- m ail : a d ri a n a. c am p o s@ ite cn et. c om. b r
104
abordagem da arte e da Literatura desde a Antigüidade grega, tecendo
considerações
até
mesmo
antagônicas
sobre
as
possibilidades
de
apreensão do objeto estético. Com o decorrer do tempo, ora aceitaram
que
a
Literatura
abriga
conhecimentos
históricos,
sociológicos,
psicológicos, ora incidiram s obre seu poder de imanência, oscilando pela
análise
intra ou extraliterária, fator que explica a amplitude
de
concepções na área. Tal heterogeneidade desencadeou a situação atual de
incongruência
por
que
passam
os
saberes
escolares
relativos
ao
componente estético, cujo foco historicamente recaiu sobre caracteres
externos.
Seria redundante descrever o percurso de produção da Teoria da
Literatura com bibliografia importada e traduzida, extensa e acessível
para explicar essa incongruência. Optamos, então, por observar o
movimento das formulações teórico-metodológicas que a Literatura
assumiu na sistematização do currículo da Educação Básica, a partir das
linhas que explicam a evolução das linguagens nas últimas décadas.
Cientes de que a plurissignificação da literatura recusa uma teoria
específica, determinante da prática, consideramos a faixa etária a que
interessa
o
res ultado
desta
pesquisa
para
definir
a
perspectiva
intersemiótica como expressão da concepção dialética de ensino que,
aceitando a diversidade, incentiva a superação do estado inicial de
isolamento e fragmentação do conhecimento literário, conforme foi
abordado até o presente e o amplia, compara, relaciona a outros códigos
estéticos, em busca de unidade, por meio do tratamento sincrônico das
linguagens.
Evidenciamos,
assim:
a)
preocupação
com
o
ensino;
b)
especialmente de literatura; c) defesa do componente estético no
currículo; d) proposição de abordagem intersemiótica; em virtude de
considerá-la adequada e produtiva para a faixa etária da EB; e)
preocupação
em
operacionalizar
uma
metodologia
de
ensino
interdisciplinar que utilize, para a escola real com a qual convivemos,
linguagens e ferramentas síncronas consonantes com o dinamismo do
jovem.
105
Trabalhamos com duas hipóteses: uma, a evidência clara da
dificuldade
de
acesso
do
alunado
brasileiro
a
leituras
originais,
complexas e canônicas; e outra a de que o universo da linguagem gráfica
não se mostra mais tão atrativo e transponível para o aprendiz como já
fôra para as elites, na era da explosão editorial gráfica. Além de
considerar que a clientela anterior à LDBEN 1 passava pelo filtro rígido
da reprovação acentuada, os dados nos permitem inferir que o avanço
tecnológico é uma realidade nas práticas sociais e que a escola precisa se
apropriar de tais recursos que, por si, solicitam novas linguagens.
Inúmeros fatores sócio-históricos, implicam, metodologicamente,
na
necessidade
de
sistematização
de
procedimentos
e
estratégias
síncronas que subsidiem a inserção do alunado no mundo dos códigos
que
permitem
exercer
a
cidadania,
ampliando
a
assimilação
e
transposição das relações essenciais de produção para a capacidade de
apropriação da cultura formal, na dimensão da apreciação estética,
função, também, da escola. Se existe dificuldade na intelecção de textos
denotativos, detectada nos sistemas atuais de avaliação externa 2, estimese a dificuldade de compreensão dos procedimentos realizados por
autores consagrados da literatura, criadores da palavra-arte.
Se os códigos oferecem dificuldade de atribuição de sentido,
especialmente a linguagem literária, que pertence ao sistema modelizante
secundário, segundo Lotman (1978), constituído a partir do sistema
lingüístico e sobre ele, requerem habilidades complexas de interpretação,
não só de sistemas arbitrários, mas também de sistemas motivados de
representação,
demandando
princípios
de
abordagem
numa
nova
perspectiva, mais ampla e menos previsível.
Grandes
correntes
se
perfilaram
e
se
sucederam
partindo,
especialmente, do contexto ao texto, exemplo da História Literária e do
método sociológico, focalizando sucessivamente, autor, biografia, tema e
contexto, compreendendo o tipo de análise denominada extrínseca, que
parte de elementos externos para justificar o conteúdo. No entanto, a
partir do formalismo russo, a forma recebeu tratamento diferenciado. O
1
2
1 9 9 6, I n: B R A S I L, 1 9 9 9.
SA E B, SAR E SP, E N E M, P I SA.
106
foco extrínseco submeteu-se ao intrínseco, do texto enquanto objeto de
análise,
estimulando
o
reconhecimento
do
procedimento
estético
realizado pelo autor, sua poiésis.
Neste sentido, o desenvolvimento do pensamento linguísticoestrutural muito se debruçou sobre questões da linguagem e da forma
enquanto expressão do conteúdo, detendo-se nos estudos de Narratologia,
Poética da prosa e da poesia, Estilística e Semiótica Literária. Estudos
lingUísticos e literários se vincularam. Nas últimas três décadas, a TL
abrigou diversas correntes do conhecimento constituindo os métodos de
abordagem sócio-histórica, psicanalítica, genética, pragmática, cultural,
pós-estruturalista,
feminista
e
colonialista,
por força
do
contexto
globalizado e plural que dominou nosso tempo, entretanto, a prática
pedagógica não assimilou essa expansão de possibilidades.
Se, por um lado, a abordagem extrínseca negou ao texto a
evidência de seu valor estético, a abordagem intrínseca formalista;
estruturalista foi acusada de negar-lhe seu fundamento histórico. A tarefa
que se nos impõe, na transição, é a de equilibrar os extremos, as
oposições e buscar coesão produtiva, a partir da contribuição cultural
que esse complexo teórico nos legou enquanto expressão do pensamento
científico- literário. E tal coesão só pode vir por complementaridade e
referenciação a uma e outra forças, destacando princípios fundadores da
teoria, que permaneceram estáveis, mas que no desafio do presente,
requerem superação e redefinição.
Temos
como
hipótese
que
o
problema
da
aprendizagem
e
assimilação do saber literário não é de conteúdo, mas de método pelo
qual foi abordado até o presente. Os índices revelados nos sistemas de
avaliação interna e externa denunciam o caráter arbitrário das práticas
executadas. Por isso, o desafio que se nos apresenta é orientar
procedimentos que permitam comparações nas diferentes linguagens ou
semióticas, por meio do exercício sincrônico de leitura e apropriação de
nossa herança estética, relegada ao segundo plano durante a vigência da
concepção tecnicista e instrumental de ensino.
Sabendo que a literatura tem existência objetiva e que o ato de
apropriação do saber literário requer especificidade diversa dos atos de
107
apropriação dos outros conhecimentos e instituições, a metodologia de
ensino deve absorver os princípios abstratos da TL, conhecimento com
status
científico
assimilação
e
a
ser
dialetizado,
interpretação
do
orientando
patrimônio
procedimentos
literário
inserido
de
no
patrimônio cultural mais amplo.
A literatura nunca foi objeto de sistematização didática como o
foram outros conteúdos analisados em Propostas estaduais e nacionais
anteriores, a exemplo das Propostas Curriculares Estaduais e dos PCN,
provavelmente pelo paradoxo de sistematizar uma criação tão avessa à
disciplina e à anatomia. Nesse sentido, o conteúdo deve ser estruturante
do método. Por esta razão, é tempo de as ins tâncias acadêmicas
formularem e divulgarem formas mais dinâmicas de abordagem para a
escola, já que, diante do signo estético, o leitor aprendiz deve percorrer
dois caminhos: o da investigação e o da sistematização, descobrindo,
mediado pelo professor, por ação da leitura: as estruturas, suas relações
internas e externas próprias, comparadas com outras produções; funções,
regras e procedimentos composicionais de conjunto, que conduzem à
exegese da obra literária, em diálogo com outras produções de época e
com o próprio contexto de sua produção.
A opção pelo encaminhamento próprio do método indutivo, na
concepção dialética, apresenta como procedimento a comparação: a) por
meio do levantamento de traços distintivos formais; b) da percepção da
isotopia temática e c) do conector fundamental, princípios que permitem
apreciar composições de modalidades distintas, na perspectiva sistêmica
de consideração do componente estético. Esta forma de abordagem se
caracteriza como modus reflexivo questionador e comparativo e exige o
reexame da teoria e a crítica da prática.
Por ter como fundamento o movimento, a relação entre os sistemas
é objeto de estudo deste modelo dialético, oposto ao modelo positivista,
informativo, que analisa os conhecimentos como se fossem estáticos,
recortados, lineares, pontuais, na concepção formal, fragmentada e
conservadora do ensino de literatura. Desta forma, uma questão a ser
explicada é de que forma as mudanças de paradigma sóciocultural se
processaram
no
final do
século
XX,
qual sua
essência
e
quais
108
procedimentos a esfera didática deve incorporar das novas teorias, com a
finalidade de reverter os resultados obtidos, especialmente pela faixa
etária que frequenta a Educação Básica.
Sabendo que a aula não se concretiza sem o trabalho docente que,
necessariamente, se vale do material para mediação na práxis e que sua
ação se efetiva por meio do método didático, além de formação e
conhecimento
acadêmicos
formais,
o
processo
de
ensino
requer
adequação de recursos e linguagem em nível da compreensão do aluno,
habilidades imperativas da ação que prioriza a apropriação do saber
como proposta de desenvolvimento cognitivo, perceptivo e de formação
do indivíduo.
Quanto
acadêmica
à
como
histórica
polêmica
produção
nova
sobre
e
da
a
natureza
atividade
da
da
pesquisa
escola
como
reprodutora do conhecimento produzido, consideramos que parte do
problema da aprendizagem situa-se nesta oposição de contrários, pois
apenas reproduzir o conhecimento formal, legitimado pela academia,
tornou-se ineficaz, s obretudo porque há transição teórica e diversidade
nas concepções estabelecidas, crítica que os PCNEM receberam.
O ensino, entendido como mediação, trabalho que se realiza por
meio do método didático e das metodologias de ensino, deve primar pela
criação de novas formas de divulgação e apropriação do conhecimento
formal
e
acadêmico
existente,
socializando
o
produto
desse
conhecimento.
A tarefa do presente estudo se define, então, no limite, enquanto
análise das diferentes produções, buscando a síntese entre os contrários,
não se tratando de reducionismo da pesquisa acadêmica, mas de
legitimação da necessidade de intermediação e operacionalização de
formulações sincrônicas, de modo a orientar a transposição didática, que
toma o saber do aluno como prioridade.
Assim considerando, o objeto de estudo Literatura assume caráter
determinante do método que, por seus procedimentos, deve superar o
formalismo
excessivo
e
a
fragmentação
histórica
da
abordagem
unilateral. Porém, ao considerar que a velocidade das tecnologias
midiáticas contemporâneas exige mais que a dimensão do raciocínio
109
lógico, torna-se necessário associar diferentes sentidos e capacidades na
depreensão dos sistemas múltiplos de linguagem criados pelo homem.
Em consequência, os novos paradigmas requerem novas estruturas e
métodos de estudo. Daí a necessidade de o professor se apropriar deles
para que sua mediação continue garantida como condição sine qua non
da
aprendizagem
crítica,
afastando
os
efeitos
alienantes
que
a
manipulação das mídias pode gerar sobre o aprendiz.
A mudança de paradigma: sistemas sígnicos em relação
O novo paradigma requer necessidade de alteração da abordagem
epistemológica, centrada na cognição, para uma abordagem ontológica,
associando percepção e intelecto, atribuindo ao jovem papel de sujeito
ativo, crítico, de protagonista, não apenas receptor, mas emissor de
sentidos.
A torre de babel, simbolizada pela rede do saber tecido na Web,
tem a possibilidade de veicular todos os códigos a um só tempo:
lingüísticos,
matemáticos,
científicos,
biogenéticos,
antropológicos,
psicanalíticos e históricos, derivados do conhecimento integrado no
campo
semiótico
da
cultura,
conforme
definiram
semioticistas
contemporâneos como Umberto Eco, filósofos e psicanalistas como
Lacan, Foucault e Derrida.
A proposição de integração dos conhecimentos estéticos por meio
da
abordagem
intersemiótica
pretende
exemplificar
e
sistematizar
parâmetros para a área de LCT, divulgando princípios que materializam
relações entre sistemas sígnicos constituintes da cultura.
Explicitar
sistema
literário
teórica
em
e
metodologicamente
comparação
com
alguns
os
determinantes
sistemas
e
do
códigos
estéticos, orientando a percepção dos elementos e estruturas próprias de
cada uma dessas múltiplas linguagens constitui nossa tese de mudança de
paradigma, pois possibilita a aplicação de pressupostos que representam
a transposição didática, o “concreto pensado”, ao interpretar diferentes
sistemas semióticos em relação.
Não há meios novos de aprender na metodologia já automatizada.
O contexto é outro, as linguagens são outras, os canais e meios de
110
comunicação são distintos dos da cultura gráfica tradicional, portanto, é
necessário modernizar o sistema e atualizar os métodos, sem deixar de
enfatizar a corrente ético-humanista que volta a permear noss o contexto
sócio-histórico. A motivação contemporânea suscitou outro tipo de
organização do saber: a comparação de linguagens mediatizadas, pois o
processo de aprendizagem se alterou conforme o desenvolvimento das
tecnologias
modernas,
partindo
de
parcialidades
e
especificidades
concretas em busca da compreensão da totalidade, por superação de
etapas progressivas da disposição de elementos diversos que compõem os
sistemas e códigos culturais. Somente quando se atingem determinantes
fundamentais
dos
diferentes
sistemas
em
comparação
poder-se-á
explicitar, na especificidade de cada linguagem, os topoi, por apreensão
de relações.
Para que o alunado se torne sujeito, é necessário possibilitar o
exercício das capacidades por excelência humanas de criação, de
raciocínio, de análise, comparação e potencialização dos sentidos, por
meio da associação das percepções sens oriais. As obras de arte, canções,
filmes bem como a palavra com função estética tornam-se, em nossa
proposição, sistemas sígnicos em relação, recursos da metodologia que
ativam o raciocínio em detrimento da memória, a compreensão global em
detrimento das lembranças exatas.
A semiótica tem se mostrado uma teoria que abriga os fragmentos
dispersos do conhecimento. Buscar correspondências interdisciplinares
nos fragmentos dispersos que compõem o sentido plural e amplo que o
desenvolvimento sóciocultural possibilitou passa a ser uma competência
nesta proposição, mediante a qual pretendemos sistematizar elementos
formais, potencializando a capacidade de leitura por meio das percepções
visuais,
auditivas
e
intelectuais,
a
partir
da
categoria
estética,
operacionalizando sua complexa natureza paradigmática.
Não intencionamos levantar aproximações ou divergências entre
poesia e pintura procurando um poema que corresponda à imagem de uma
obra de arte com mensagem pictórica semelhante. O objetivo primordial
da proposição é operacionalizar instrumentos para análise comparativa
de sistemas semióticos distintos, mobilizando capacidades de ampliação
111
da
competência
compreensiva
e
de
interpretabilidade
do
jovem.
Procuraremos evidenciar os elementos de organização dos diferentes
sistemas, por meio da relação dialética entre a singularidade de cada
sistema semiótico e a generalidade, tomando a particularidade como
movimento que estabelece a relação entre eles. A literatura contém a
imagem; a poesia contém a musicalidade; a música popular, em primeira
instância, se mostra enquanto produção híbrida, abrigando a linguagem
verbal harmonizada ao ritmo e à melodia e, enfim, as artes, em geral,
contêm em si mesmas o fenômeno comum da representação estética,
desrealização simbólica, indicial ou icônica.
As relações possíveis bem como a reflexão estética em torno das
correspondências entre forma verbal e forma visual das várias linguagens
tornaram-se evidentes e devem ser estabelecidas como metodologia da
leitura e de depreensão de singularidades, em direção à particularidade
de cada sistema. A perspectiva intersemiótica pretende possibilitar a
visão por mecanismos próprios de cada linguagem, comparando-os e
particularizando seus atributos.
O modelo descodifica o sistema Literatura por meio do trabalho
intersemiótico do signo estético comparado, procurando, por meio da
tradução
intersemiótica,
manifestar
verbalmente
o
não
verbal.
A
intersecção entre os signos deverá partir da concepção estrutural, em
direção à relativização do sentido. As estruturas e categorias explicitadas
nos quadros servirão de base para que os docentes possam dinamizar o
processo metodológico, tendo como ferramentas de análise categorias e
elementos subsidiários da práxis.
À guisa de conclusão da análise dos documentos oficiais que
nortearam o trabalho com a Literatura na escola, ao longo dessas três
décadas, consideramos que as mídias audiovisuais têm sequestrado o
tempo e o hábito de leitura dos adolescentes; por isso tornou-s e inadiável
solicitar dos sistemas de governo e setores responsáveis pela organização
educacional a modernização dos suportes de codificação da linguagem e
da arte, que se configura em recursos para a dinamização da práxis
como: a) coleções e gravações das grandes obras literárias narrativas em
fitas de vídeo, DVDs ou softwares para acervo da escola, associadas ; b)
112
projeções de obras de arte em filmes ou softwares e músicas, em
coleções de CDs, executadas nas diferentes épocas; c) filmes e gravações
de declamações de poemas sedimentais do cânone nacional, por artistas
jovens das redes de TV, enquanto diferente linguagem ou modalidade
que estimulará o estudo da linguagem verbal escrita; d) CDteca,
filmoteca; enfim, recursos das tecnologias da informação e comunicação
que
subsidiem
proposições
teórico-
metodológicas
nas
diferentes
linguagens ou semióticas, em decorrência da imposição sócio-histórica
da pós-modernidade.
As instituições oficiais devem se encarregar de encomendar e
distribuir tal material, que muito signif icará em termos de melhoria da
qualidade da aprendizagem. A percepção dos jovens precisa ser aguçada
para ativar a inteligência. E o arsenal de apoio ao professor, enquanto
ferramenta de trabalho não deve se constituir apenas de Parâmetros
teóricos e livros didáticos, mas também de recursos tecnológicos das
tendências contemporâneas, em quantidade suficiente. A mediação do
trabalho fica a cargo do professor, que deverá fazer cumprir o
desenvolvimento das competências de representação e comunicação; de
investigação e compreensão e de contextualização sóciocultural.
Tornar as relações intersemióticas didaticamente assimiláveis
Com
a
intersemióticas
proposição
intenção
algo
de
contribuir
didaticamente
teórico-metodológica
para
assimilável
com
vistas
tornar
as
relações
apresentamos
à
aplicação
uma
dos
procedimentos de abordagem dos sistemas estéticos em comparação,
expondo os elementos centrais passíveis de análise em cada semiótica,
procurando aplicar um conjunto de habilidades relacionadas ao domínio
das artes, mediadas pelas diferentes linguagens.
O sentido de semiótica que imprimiremos à presente proposição é
prático, destinado aos fins didáticos: semiótica aplicada à literatura, à
pintura, à música e ao cinema. Sem a pretensão de esgotar o assunto,
detemo-nos especificamente na operacionalização de procedimentos
comparativos entre a Literatura e outras artes, constituindo o elo
113
motivador da compreensão e busca dos sentidos culturais e estéticos
pelos jovens.
Assim considerando, não só a internet servirá como ferramenta
síncrona que possibilita atualizar diferentes linguagens a um só tempo,
mas também os sistemas de comunicação das diferentes mídias serão
utilizados para tornar presente a possibilidade de contemplação analítica
e de fruição compreensiva dos sentidos que se interseccionam nos
diferentes sistemas sígnicos.
As artes do espaço (pintura e cinema) e do tempo (literatura e
música) se entrecruzam num projeto de ampliação da capacidade de
interpretabilidade das manifestações da arte enquanto representação ou
extensão da realidade, a partir do estabelecimento de relações entre
elementos constituintes, em busca do ponto energético de cada sistema,
dos topos/topoi em que eles se questionam em nossa redefinição.
A presente proposição busca orientar o processo de depreensão de
isotopias temáticas ou pluriisotopias entre elementos de sistemas de
códigos estéticos distintos. Pretendemos explicar a possibilidade de
interdisciplinaridade, latente nos PCNEM/99, para a área de Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias, prática que toma aspecto concreto por meio
da semiótica, resgatando vínculos entre conhecimentos. Os códigos,
nesta perspectiva, oferecem possibilidade de correspondência e interrelação
pela
mediação
sígnica.
E,
além
da
mediação
sígnica,
evidenciamos a importância da mediação didática do professor na práxis
cotidiana.
Entender o currículo escolar torná-lo real e assimilável, conhecer a
Literatura, a arte, a música significa criar projetos e dinamizá-los de tal
forma que, por meio de vivências 3 e representações nas diferentes
linguagens, os jovens possam perceber tanto o procedimento estético que
subjaz às expressões dramática, musical, plástica, visual e linguística
quanto compreender, analisar e assimilar o arcabouço teórico-conceitual.
A práxis do estudante é, em primeira instância, de natureza
performática, de vivência, de representação, de simulação, de atuação em
3
Su ge stã o d e I la r i n os GC ( SÃ O P A U LO , 1 9 7 5) .
114
festivais de canções populares e execução ou audição de músicas eruditas
e instrumentais, saraus de declamação e sessões de fruição compartilhada
da cultura estética: poemas, narrativas , dramatizações, reprodução de
obras de arte. Porém, a segunda fase do projeto de ampliação do
repertório cultural dos jovens requer a metarreflexão compreensiva s obre
o processo vivenciado. Metodologicamente, o segundo passo é a análise
do primeiro; e o terceiro, a teorização, o registro, é a assimilação dos
conceitos e aplicação dos fundamentos percebidos anteriormente, na fase
performática.
O professor, enquanto mediador, dialetiza o formal e o aluno
adolescente, sujeito, protagonista do saber, dá caráter real e de
concretude ao saber. No segundo ato de análise, pesquisa e observação,
formaliza
o
dialético,
plural.
Assim,
a
concepção
dialética
de
ação/reflexão/ação se realiza na práxis, que não deve ser entendida como
improviso, mas constituída de etapas cientificamente organizadas de
vivência dos conteúdos:
A) Vivência Dinâmica, performativa - realiza-se por meio da
leitura
e
da
produção
sócio-interativa,
oral,
de
comunicação
e
divulgação; etapa que nos PCNEM corres ponde ao eixo de Representação
e Comunicação.
B)
Vivência
Perceptiva,
analítica,
reflexiva
-
etapa
de
sistematização, de integração dos elementos perceptivos, em favor de
uma operação cognitiva de interpretabilidade; etapa que nos PCNEM
corresponde ao eixo de Investigação e Compreensão.
C) Vivência Formal,
de síntese - caráter de registro
das
percepções dos sentidos e cognitivas, realização sistemática dedutiva,
etapa
que
nos
PCNEM
corresponde
ao
eixo
de
Contextualização
Sociocultural.
As sínteses de cada etapa constituirão a base para a construção de
novas
hipóteses
inter-relacionais.
A
manipulação
dos
recursos
tecnológicos, o domínio dos procedimentos de participação na rede de
sentidos é, também, fundamental para a formação do leitor, que deve
115
articular competências de análise de diferentes sistemas, procurando
integrar primeiro o sentido e, posteriormente, os próprios sistemas
enquanto representações da cultura e do currículo.
Seguindo a acepção da linguagem como constituinte da cultura,
funcionando como subestrutura, base e meio universal, Jakobson 4,
fundador
da
abordagem
funcionalista
da
linguagem,
sugeriu
a
investigação paralela das artes verbal, musical, figurativa, coreográfica,
teatral
e
fílmica,
na
metade
do
século
XX:
“quanto
ao
estudo
comparativo da poesia e outras artes, trabalhos de equipe entre linguistas
e especialistas nestes campos acham-se na ordem do dia”. O linguista
afirmou:
...e m ger al t od os os si st e ma s de s i gn os i n de pe n de n te s,
e m s ua e str u t ur a , da li n gu a ge m e t a mbé m e xe q üí ve i s f or a d e
c on ta t o c om me i os ve r ba i s, de ve m s er s u b me t id os à a ná li se
c omp a r a ti va c o m vi st a e spe c ia l às sua s c o n ve r gê n c ia s e
d i ve r gê n cia s c o m q u a l q uer es tr u t u ra se m i ót i ca da da e a
l i n gu a ge . (J AK OB SON , 1 9 7 0, p . 1 9) .
Segundo Koch 5, Jakobson foi um espírito de síntese. Trazia em si o
germe
da
interdisciplinaridade
em
seus
estudos
e
pesquisas
que
circulavam da teoria da informação e da comunicação à matemática, à
neurolinguística, à biologia até a física. Opôs-se à natureza antinômica
das
dicotomias
estruturalistas,
tentando
superá-las
por
meio
de
princípios como o de pertinência, binarismo e análise de traço distintivo;
eixos de seleção e combinação; dicotomia entre metáfora/metonímia e
oposição entre similaridade/contiguidade. Seu modelo funcional da
linguagem foi reconhecido e embasa muitos dilemas entre a análise
literária e a linguagem pragmática. Sua teoria da autonomia poética
recebeu críticas por ser esteticis ta e negligenciar a dimensão social do
poético, assim como foram acusados os formalistas de separatismo da
arte, ao que o teórico argumentou em favor da função estética.
Jakobson (1971), desde as pesquisas f ormalistas, estabeleceu a
função
nítida
da
linguagem
em
cada
manifestação
específica,
apresentando as seis funções que possibilitaram avanços posteriores nos
4
5
Ve r Li n gü í st ic a, P oét i c a, Ci ne m a, R o m a n J a k o b so n n o B r a si l , 1 9 7 0, p . 2 0
K oc h a p u d N ö t h, 1 9 9 6 .
116
estudos de linguagem, permitindo até mesmo um paralelo com a teoria
bakthiniana dos gêneros discursivos, que evidencia funções, origem,
situações
e
esferas
que
solicitam
tipos
específicos
de
produção
linguística. O mesmo Jakobson funcionalista introduziu uma perspectiva
comunicativa moderna à tradução intersemiótica. Com a publicação de
Linguística, Poética e Cinema (1970), ele retoma, no panorama atual, a
polêmica lançada antes de Cristo, na esfera da arte, por Horácio.
Percebemos que houve avanço na teoria da linguagem: do modelo
estruturalista, estático, passou-se a considerar toda estrutura dinâmica,
constituída de elementos funcionais que alteram o sistema de acordo com
seus
fins.
Saussure
já
considerava
a
semiologia
indispensável
à
interpretação da linguagem e de todos os outros sistemas de signos em
inter-relação.
A partir daí vão tomando consistência teorias comparativas da
linguagem
verbal
com
outros
sistemas
semióticos,
substitutos
da
linguagem falada. Tornou-se essencial definir traços específicos da
linguagem verbal e, posteriormente, de cada linguagem, como forma de
representação verbalizável, projeto modelar da práxis literária, em nossa
concepção.
Prioridade da exegese verbal nas diferentes semióticas
O sentido da interpretação diante de qualquer manifestação de
linguagem seja pictórica, musical, corporal, ou fílmica, constitui-se pela
exegese verbal, principalmente na escola, instituição que privilegiamos
para
análise
da
abordagem
da
literatura.
A
iconicidade
literária
concebida pela teoria clássica era exofórica, pois entendia como externa
e mimética a relação entre signo e mundo. O iluminismo de Lessing
seguiu
este
mesmo
modelo
estético,
porém,
deveremos
buscar
a
iconicidade endofórica em primeira instância.
Se o sistema linguístico é constituído por elementos relativamente
estáveis, os demais sistemas semióticos como a pintura, a música e o
cinema têm, também, suas categorias passíveis de análise e observação,
constituindo uma constância.
117
Gonçalves
(1994)
aborda
em
Laokoon
Revisitado
relações
homológicas entre texto e imagem, resgatando desde a Arte Poética de
Horácio o ut pictura poésis que, a partir da releitura do alemão Lessing
(1766) e do americano Irving Babitt (1911), estabelecem o fio do debate
sobre os limites entre a pintura e a poesia.
Nova concepção surge com Joseph Frank, que retoma esse debate
em 1945, potencializando os signos. João Alexandre Barbosa, ao
prefaciar a citada obra de Gonçalves (1994) afirma que pintores e poetas
“percebem aspectos da realidade que, transformados por suas linguagens
ou transformando s uas linguagens, se traduzem em textos e imagens
cujos
dispersos
resíduos,
fragmentos
de
uma
expressividade,
são
recuperados pela leitura comparativa”.
Tal possibilidade também fora observada tradicionalmente entre
música e poesia, que caminharam juntas até que no Renascimento,
momento em que a melodia se apartou da letra. Contudo o termo poesia
“lírica” guarda resquícios dessa tradição que concebia a poesia sendo
recitada ao som da lira. A verdade é que o conjunto que compõe o corpus
da literatura assumiu novas versões: a versão cinematográfica, teatral ou
televisiva e a versão tecnológica dos softwares e da internet. Comparar
esses sistemas tornou-se necessário e possível. Por esta razão, a busca de
invariantes possibilita analisar o fenômeno semiótico como sistema; um
sistema, porém, dinâmico, submetido à liberdade criativa, constituído de
elementos formais relativamente fixos que integram a natureza dos
códigos de cada semiótica.
Procuraremos
explicitar
na
proposição
de
abordagem
intersemiótica os elementos constituintes de cada sistema e suas
possíveis relações. Sabendo que Eco (1971b) defendeu um estruturalismo
metodológico constituído de modelos e procedimentos operacionais
renováveis, na medida
das evidências que exigissem explicações,
entendemos que diante da realidade na qual vivemos, que pede renovação
e se mostra marcada pelo signo da modernidade tecnológica, com a
presença de multilinguagens, não há como permanecer no porto seguro
dos modelos consagrados pelo pensamento verbal, unilateral. Tornou-se
necessário ampliar o domínio perceptivo visual e auditivo interpretando
118
códigos não verbais e estabelecendo suas conexões com a escrita e a
oralidade. O professor, na mediação da práxis enquanto embasamento
teórico para a ação deve analisar comparativamente os sistemas artísticos
e de utilização de mídias como concretização das obras.
A tecnologia: suporte das linguagens e divulgação da cultura
A tecnologia tornou possível atualizar a um só tempo a literatura,
a pintura, a música e o filme no mesmo suporte. Não nos interessa
explicitamente analisar a linguagem da mídia, mas as linguagens que ela
suporta e atualiza.
Refletindo
Tecnologias,
sobre
a
área
compreendemos
sua
de
Linguagens,
produção
como
Códigos
e
suas
manifestação
da
cultura, pois possibilita a expressão dos fenômenos sócio-históricos e a
criação dos fenômenos estéticos, modelizando sistemas primários, que
têm como função a comunicação usual, e sistemas secundários, que têm
como função a expressão estética da sensibilidade criadora.
A escola deve potencializar a capacidade sensitiva, modelizando
procedimentos operacionais de semios e (interpretação dos processos
significativos) auditiva, visual, verbal e verbi-visual e, evidentemente,
cognitiva, relativizando estruturas espaciais, como é o caso da pintura, e
também temporais, como é o caso da língua e da música.
O movimento interpretativo nas diferentes semióticas é, portanto,
oposto. O código verbal, por sua natureza extensiva, requer síntese, ao
passo que o código visual, por s ua natureza intensiva, requer análise.
Porém, não se pode negar que a imagem simule um tempo e que a palavra
simule uma imagem.
É possível distinguir mais de um signo auditivo, ao mesmo tempo,
na harmonização da música, pela consonância de instrumentos melódicos
sincrônicos; porém, o ouvido não treinado não consegue operacionalizar
a
distinção
imediata.
Estimular
essa
capacidade
perceptiva
pode
contribuir no sentido de aguçar a concentração e atenção do adolescente
para a percepção seletiva. Quanto à visão, esta propriedade dos sentidos,
tem caráter espacial, síncrono, recebendo os signos em sua totalidade,
sendo passível de apreensão global dos f enômenos complexos, porém, a
119
educação do olhar deve aprimorar a interpretabilidade focalizando cenas,
detendo-se em episódios ou elementos, de modo profundo, vertical. A
sincronicidade é inerente ao ato de observação, entretanto, a capacidade
de análise
exige
decomposição,
fragmentação dos elementos para
compreensão de sua estrutura e de seu procedimento de codificação.
Considerando a Literatura um signo produzido sobre o sistema
modelizante primário, a língua, a interpretação literária enquanto
semiose, não tem um interpretante final único, como a linguagem
cotidiana, uma verdade absoluta, mas, aceita validades interpretativas
que devem ser estimuladas, conforme teorizou Barthes 6.
Problematização dos resultados em leitura e escrita 7
É consenso tanto para os órgãos federais quanto estaduais e
municipais que novas políticas de ensino e novas formas de abordagem
dos conteúdos configuram uma urgência no cenário da Educação.
Os Guias Curriculares SEE/SP (1975) sistematizaram conteúdos
básicos progressivos para o EF; a PCLP-1º grau- SEE/SP (1986)
introduziu,
na
mesma
linha,
fundamentação
para
o
trabalho
na
perspectiva linguística, em detrimento do estudo descontextualizado de
Gramática,
graduando
em
níveis
as
atividades
interpretativas,
de
operação sobre a linguagem e metalinguísticas, respectivamente, do mais
simples ao mais complexo; do concreto ao abstrato, numa concepção
espiral de currículo. Leitura, análise lingüística e produção escrita
passaram a ser etapas de execução metodológica do estudo descritivo do
funcionamento da linguagem verbal, focalizando a língua materna.
A
PC LP-
sistematização
2º
da
grau
SEE/SP
Literatura
como
(1987,
item
conteúdo
3.4.3)
curricular
focalizou
de
a
Língua
Portuguesa, introduzindo os princípios da Estética da Recepção e do
dialogismo bakhtiniano aplicado ao estudo da linguagem, assimilados na
dimensão da intertextualidade. Passado e presente, autores de mesma
época e de época distinta, obras literárias e não-literárias foram
submetidos à análise comparativa evocando do leitor as conexões
6
7
Ver C r ít ica e Ver da d e ( 1 9 7 0) .
cf da d os SAE B .
120
implícitas, o preenchimento dos vazios interpretativos, temporais ou de
estilo, tornando concreta a possibilidade latente de percepção de fontes e
influências das estéticas anteriores nas obras atuais, ou mesmo oposição
evidenciada na relação dialógica.
O acesso à escolarização foi uma imposição no país após a
LDBEN/ 96. O contingente de jovens e adultos que chegou à escola com
defasagem idade/série foi alto. Os desafios atribuídos ao professor bem
como às equipes técnicas não foram só de acolhimento a esta população
heterogênea que reivindicou o direito de escolarização e cidadania, mas
também os desafios do domínio teórico-metodológico do paradigma que
elegeu a abordagem linguístico-comparativa que atribui ao leitor papel
atuante.Os
PCNs
surgiram
neste
contexto,
apresentando
as
particularidades.
O PCNEF (1998) evidenciou abordagem textual dos gêneros e os
PCNEM (1999) fundamentação enunciativa, na perspectiva implícita da
intersemiótica, de um currículo em rede. A focalização dos gêneros
tomou acepção discursiva e a Literatura integrou as atividades de leitura.
Os desafios de execução de uma proposta dinâmica e significativa
de estudo tanto da linguagem quanto da literatura se juntaram aos
desafios educacionais da transição finissecular e da transição de
paradigma educacional e sócio-histórico. A perspectiva sígnica de estudo
foi contemplada na proposição dos PCNEM (1999), a partir da concepção
das Linguagens, Códigos e s uas Tecnologias, em consonância com o
desenvolvimento
social.
O
século
que
privilegiou
a
comunicação
desenvolveu tecnologias que alteraram de maneira profunda a recepção
dos artefatos culturais e os modos de interação humana.
Desta maneira, novas linguagens foram estabelecendo intercâmbio
com
as
já
existentes,
ampliando
as
poss ibilidades
de
fruição,
contemplação e conhecimento da produção cultural. Foi assim que o
cinema
e
a
música
se
popularizaram
num
ritmo
acelerado.
O
desenvolvimento de novas mídias, sobretudo a mídia digital, possibilitou
a simultaneidade idealizada pelo homem moderno. Esses recursos em
Educação têm papel fundamental na dinamização da metodologia de
ensino. O domínio teórico reclama aparato tecnológico para execução
121
prática. A possibilidade de inovação didática aberta pelos PCNEM,
porém
não
operacionalizada,
concretiza-se
metodologicamente
na
proposição que modelizaremos. Foi necessário explicitar o marco teórico
que autoriza esta adaptação para fins didáticos.
Para que exista literatura, é preciso que haja uma língua. E o que
diferencia o uso particular da língua, em sentido literário, do uso
coletivo, próprio da comunicação diária, da interação natural do homem
com seu semelhante é a função estética, o priom. O sistema modelizante
secundário, alvo da presente proposição servi-se-á de outras semióticas
incorporadas
pelas
mídias
tecnológicas
contemporâneas
para
potencializar o efeito da Literatura.
Nova acepção de isotopia
Na
acepção
que
assumimos,
com
diversas
modalidades
de
representação, é necessário determinar não só um desencadeador de
leituras,
mas
relacionadores
as
palavras,
sons
ou
traços
que
desencadeiam um plano de leitura intersemiótica, não evidente na
superficialidade compositiva das obras.
À guisa de investigar nas diferentes semióticas a reiteração dos
topos/topoi
de
uma
época
numa
nova
acepção
de
isotopia,
essa
proposição examina os traços distintivos nas diferentes formas de
representação, procurando estabelecer uma série de capacidades não
apreendidas
espontaneamente,
mas
que
requerem
especificação
de
critérios e exposição da metodologia, partindo, como base, da isotopia
semiológica segundo Greimas 8.
Natureza do material
A. Tipologia dentro do gênero (Estético)
Canção - semiótica áudio-verbal
Poema – semiótica verbal
Pintura – semiótica visual
Filme – semiótica audio-verbi-visual
8
Cf Greimas, 1976, p. 128.
122
A
seleção
procura
possibilitar
a
diversidade
de
gênero/tipo;
diversidade de contextos sociais de uso (TV, rádio, literatura, artes
plásticas, cinema) bem como diversidade do contexto cultural nacional e
internacional.
B. Suportes originais
Canção – disco ou CD (Compact Disc) (natureza auditiva)
Poema – livro (natureza verbal)
Filme – DVD (Digital Video Disc) ou VHS (Video Home System)
(natureza visual com fundo auditivo, imagem em movimento)
Obra de arte em pintura – tela (natureza visual, imagem sem
movimento)
C. Temática
Segundo Platão; Fiorin (1998) os textos admitem vários planos de
leitura, porém o leitor não lhes pode atribuir sentido livremente; deve
buscar elementos que possibilitem novos planos de significação. A
presente proposição, superando o modelo verbal, orienta a projeção do
plano de um sistema semiótico no outro, por meio da busca de um
conector semiósico, revelando traços de unidade.
Enfoque metodológico: etapas de execução da intersemiose
A seleção de obras para análise intersemiótica deve sempre
possibilitar orientação para a construção de conceitos e regras de
operacionalização
investigativa
da
semiótica,
contribuindo
para
o
desenvolvimento das habilidades de:
a) Observação;
b) Análise;
c) Comparação e estabelecimento de relações entre as diferentes
semióticas (linguagens);
d) Generalização (estabelecimento de regras gerais de funcionamento
do fenômeno estético) a partir do levantamento de traços que
permitem formar um topos;
123
e) Particularização (explicitação de elementos específicos de cada
semiótica) no estabelecimento do topos);
f) Assimilação dos topois (relacionadores de leitura no procedimento
comparativo).
Princípios
teórico-metodológicos
da
proposição
de
abordagem
intersemiótica da literatura
A metodologia de abordagem intersemiótica consiste em captar
significados dispersos em múltiplos códigos, verbais e não verbais:
visuais,
auditivos,
audio-visuais,
verbi-visuais,
plásticos,
cênicos,
estáticos ou em movimento e integrá-los, produzindo o sentido que se
estabelece por superação de significados parciais e compõe uma
síntese ulterior, integradora. O procedimento é indutivo, parte da
análise de fragmentos estilhaçados, em potencial, que aguardam, em
suspenso, seu momento de ativação e realização intersemiótica. A
interpretação se consuma, portanto, pela consolidação de etapas graduais
e subsequentes de recolher estilhaços de sentido presentes nas diversas
semióticas, compondo uma estrutura semiótica, lógica, que capta signos
plurais e realiza uma ação, um movimento de mediação sígnica que se
cumpre na transcodif icação verbal. 9
Para efeito educativo, partir de múltiplos estímulos aguça os
sentidos e orienta a captação de elementos distintivos e específicos de
cada semiótica, revelando, por meio do próximo o distante; por meio do
presente o ausente. Os campos auditivo, visual e cognitivo são ativados a
um só tempo exigindo sincronia ao mobilizar a capacidade perceptiva de
atualização do sentido adiado, em potencial, nos textos dos diversos
gêneros estéticos, produzindo o conhecimento a partir da mobilização da
inteligência interpretante.
Realizar uma ação intersemiótica signif ica buscar o significado
latente no pretérito, em estado disperso na cultura, neste caso, nas obras
de arte que esperam a participação do leitor, sua realização como coautor
na atualização do sentido, descodificando os signos por meio da ativação
9
Tr a nsc od if ica ç ã o ve r ba l - Cf te or i z ou J a k ob so n ( 1 9 7 0).
124
semiósica. Esta é a primeira etapa parcial, de ações de leitura. A indução
interpretativa exige a comparação, o estabelecimento de distinções, a
desarticulação
e
reconhecimento
articulação
dos
traços
dos
códigos
característicos
multifacetados,
de
cada
o
semiótica,
identificando o efeito estético das diversas produções a partir da seleção
de um topos.
A primeira leitura é de captação, de observação. A segunda é mais
complexa,
exige
disciplina
de
reconhecimento,
pelo
procedimento
comparativo. A terceira é de síntese, integração das interpretações
parciais, dedutiva e, ao mesmo tempo mais complexa, pois além de
Leitura requer Escrita, exige superação da percepção, movimento e ação
cognitiva autoral. A metodologia orienta a análise, comparação e síntese
integradora dos processos lógico-perceptivos reconhecidos.
Posteriormente, centraliza o procedimento de transcodificação
verbal que se realiza por meio do registro escrito.
Nos processos escolares, as primeiras execuções devem seguir esta
orientação, diversificando as etapas e os tipos de transcodificação com o
tempo, em função dos objetivos a alcançar. Se houver dificuldade de
escrita, de registro verbal, é aconselhável transcodificar na linguagem da
dança, na linguagem visual, por meio do desenho ou de colagens. Porém,
o nível de complexidade das exigências interpretativas e de regis tro deve
ser intensificado para que gere autonomia e satisfação de manifestar-se
em diferentes linguagens.
Entender as expressões e manifestar o pensamento por meio de
possibilidades diversas dinamiza os processos unilaterais e repetitivos
que a escola consagrou. Assim, no novo século será possível confrontar
manifestações diversas, dinâmicas e plurais. Buscar as pistas, sinais,
marcas implícitas bem como o desvelamento das categorias de análise
comparativa é o princípio da semiótica, que, por ação de investigação,
estimula a elaboração do raciocínio lógico.
É preciso, assim, que os professores obtenham autonomia na
execução
metodológica
adolescentes,
e
estabelecendo
proporcionem
a
conexão
leituras
entre
a
múltiplas
produção
aos
estética,
mediada signicamente, e a habilidade de contextualização das obras de
125
arte,
contemplando
a
história
e
inter-relacionando
disciplinas,
desfragmentando o conhecimento mediante a busca dos vestígios de
significado para (re)compor o sentido global que se pode depreender da
relação entre os diferentes sistemas semióticos.
Considerações Finais
No esforço de retorno à formulação do problema de pesquisa,
apresentaremos as conclusões obtidas como forma de respostas ainda que
parciais e transitórias aos desafios encontrados. No monitoramento do
roteiro de interrogações investigamos: A) se a ausência de compreensão
docente do referencial teórico incidiu negativamente sobre o desempenho
dos alunos. Pela entrevista inicial percebemos que sim, devido à escolha
do material que subsidia 90% do conjunto que executa a ação didática.
As profundas alterações conceituais e praxiológicas que os PCN
solicitaram, fruto de contribuições acadêmicas de um complexo conjunto
de impregnações científicas associadas às mudanças sócio-históricas nos
perfis e padrões de performance pessoal e profissional, demandam
atuações e compreensões completamente distintas das de três décadas
atrás, num imperativo de foro irretornável. Além disso, a concepção de
literatura,
deficiente
e
secundária
nos
PCNEM
não
articulou
a
perspectiva intersemiótica em potencial e manteve o critério estético
negligenciado.
Portanto, a teoria não foi incorporada à prática devido ao grau de
formalidade e hermetismo, não se constituindo em práxis, motivo pelo
qual
recuperamos,
no
segundo
capítulo,
origens
e
conceitos
da
Semiótica, de forma breve e concisa, para elucidação e superação do
modelo
verbal.
O
preceito
horaciano
do
ut
pictura
poésis
foi
sequencialmente retomado à guisa de discutir desafios e fixar bases
teóricas com vistas a operacionalizar a perspectiva lançada por Jakobson
(1970) em Lingüística, Poética e Cinema, buscando aplicabilidade em
sala-de-aula,
visto
que
a
consolidação
científica
da
tendência
intersemiótica ainda não alcançou grau de reflexão madura que se
efetivasse em práticas. B) A segunda questão colocada se relacionava à
concepção
de
Literatura
presente
nos
documentos
oficiais
como
126
fenômeno social, histórico ou estético e ainda, se seu conceito é
discutível. Percebemos que as diretrizes das formulações oficiais a
registraram como fenômeno social, ponto do qual não discordamos;
porém, segundo nossa concepção, tal aspecto gerou toda a problemática
em torno de sua abordagem que, por ser um fenômeno estético foi
tangenciado historicamente, com lugar secundário no currículo, em favor
da sistematização da língua.
Priorizamos, por isso, no quadro metodológico apresentado como
tese
o
efeito
estético
enquanto
fundamento
da
caracterização
da
singularidade da Literatura, sustentando seu conceito como indiscutível,
apontando competências e habilidades a operacionalizar na práxis da
abordagem intersemiótica, que ressalta o caráter de sistema não apenas
arbitrário, mas, sobretudo, motivado da arte. C) Na problematização
conceitual exposta, argumentamos estabelecendo a fronteira entre música
popular e poesia literária para efeito de resposta da TL aos PCNEM/99
quanto à ausência de critérios revelada pelo aluno que perfila Drummond
e “Zé” Ramalho, pautando-se pelo senso comum e gosto individual.
Quanto à análise dos documentos não-oficiais, D) verificamos que
a maioria dos LD conserva disposição sequencial e diacrônica da
literatura, mas o manual Literatura Brasileira, pioneiro no tratamento
comparativo das artes, introduziu o procedimento dialógico, conforme
teorizou a PC LP 2º grau (1987). E) Quanto à polêmica questão tratada
nas OCEM (2004) acerca do privilégio aos textos literários e simbólicos
no EM, defendemos. No tocante à mediação do processo de leitura, F)
pensamos que as estratégias comparativas e a atitude crítica próprias do
movimento dialético constituem as diretrizes e princípios de abordagem
dos textos estéticos, que devem relativizar os sentidos em suspenso,
comparando sistemas semióticos verbais e não-verbais, para possibilitar
a compreensão aguda das linguagens contemporâneas, não descuidando
de contemplar o uso da tecnologia e de seus diferentes suportes de
materialização disponíveis, com suas características e especificidades.
Procuramos demonstrar no recorte histórico de três décadas que
não é fácil e nem simples reconhecer avanços teóricos, compreendê-los,
aceitar suas etapas de assimilação e acomodação, identificar estágios,
127
mediar aspectos quantitativos e qualitativos, pois tal análise constitui o
processo de metarreflexão pedagógica e, por que não, de análise da
evolução da intelectualidade, da civilização e do ethos. Haja vista a
costura
dialética
que
se
alinhavou
desde
os
gregos
até
a
contemporaneidade, no tocante ao paradigma semiótico.
Quanto
tempo
foi
preciso
para
solidificar
nossa
relativa
democracia? Quanto tempo levamos para minimizar preconceitos raciais,
ainda existentes na cultura do século XXI? Quanto tempo modelos
políticoeconômicos e religiosos como o capitalismo ou regimes extremos
demandaram
para
ser
implantados
e
derrubados?
Quanto
tempo
consumimos para cumprir legislações trabalhistas, para que ideologias e
preconceitos contra a mulher, os índios, judeus, gays e outros grupos
fossem abrandados? Décadas ou talvez séculos. Mas avançamos.
Reconhecendo
conflituoso
tal
ocorreu
avanço,
também
no
argumentamos
processo
que
educativo.
o
desenrolar
Semelhantes
dificuldades históricas de assimilação, acomodação e de aceitação de
novos
modelos
se
projetaram
na
esfera
de
socialização
dos
conhecimentos e da cultura, especialmente do patrimônio estético.
Porém, o germe da mudança está sempre projetando forças para que a
evolução se processe, para que a criação se renove, num moto contínuo,
atestando que a linearidade conservadora não é marca das transformações
dialéticas.
Se as contribuições da Linguística geraram evidente revolução
pedagógica para que o ensino de Língua passasse a ter novo formato, e
continuam efervescendo desde a década de 70, abalando a práxis
cristalizada no modelo gramatical, procuramos, com o presente trabalho,
sistematizar procedimentos didáticos inovadores que orientem o ensino
da literatura, assunto que foi sempre tangenciado. E, no conjunto das
alterações
interdisciplinares
a
iniciar,
inscreve-se
a
aplicação
da
abordagem intersemiótica dos textos literários enquanto metodologia
adequada e produtiva para a Educação Básica.
Entendendo que o conhecimento científico não pode se eximir de
propiciar
meios
para
que
o
saber
estético
seja
redimensionado,
explicitamos categorias e conceitos da Teoria da Literatura, procurando
128
teorizar sobre a proposição relacional de estudo comparado inter- artes,
concretizando parâmetros de reconhecimento da poiésis, na perspectiva
intersemiótica, mediante a sistematização de critérios e princípios
metodológicos de análise de diferentes sistemas semióticos em relação,
como a pintura, o cinema, a música e a Literatura, com a finalidade de
fundamentar a mediação docente.
A compreensão dos eixos norteadores da tese, expostos nos
quadros, subsídios e roteiros constitui o modus reflexivo dialético, que
aceita a pluralidade e focaliza as particularidades, garantindo eficiência
didática e domínio conceitual das competências meta-reflexivas e
praxiológicas, com vistas a ações metodológicas, congregando dimensões
inimagináveis de exploração das capacidades perceptiva e compreensiva
bem como de interpretação lógica da produção estética enquanto
extensão material e simbólica da arte.
A título de adequação da teoria intersemiótica ao contexto escolar
da EB, estabelecemos um termo conector e desencadeador relacional das
linguagens,
redefinido
como
isotopia,
conceito
de
base
teórica
greimasiana que, em nossa concepção, permite examinar temas ou
topos/topoi que se manifestam e reiteram num dado momento, em
diversas semióticas, constituindo um zeitgeist. Operacionalizamos tal
conceito,
estabelecendo,
também,
relações
com
as
tricotomias
formuladas por Peirce, que, em nossa acepção, localizam a ação de
percepção do topos na primeiridade competência de representação e
comunicação; a reflexão sobre a relação intersemiótica na secundidade _
momento de investigação e compreensão, conforme estabeleceram os
eixos dos PCNEM e, por fim, na terceiridade, última instância, se
processa a ação de integração do interpretante final, constituído a partir
da exegese verbal dos diferentes sistemas sígnicos contextualizados
socioculturalmente. Este o ponto de coesão que a tese visou a apresentar
aos desafios encontrados pelos professores para mediar às diretrizes
indicadas nos mais recentes documentos oficiais.
Esperamos, com este trabalho, agregar ao estudo da Literatura e
das artes em geral caráter de vivência e de fruição compreensiva não só
do código estético, mas da cultura acumulada pelas gerações anteriores.
129
Esperamos ainda, que a proposição de abordagem intersemiótica possa
suscitar novas reflexões e dimensão significativa e inovadora à práxis na
Educação Básica, possibilitando resultados satisfatórios e mais amplos,
relativos ao saber estético de uma dada época, sedimentado, vertical e
menos pautado pelo nível da necessidade.
E, por fim, não poderíamos deixar de reconhecer a importância dos
PCN como marco de vanguarda educacional para o século XXI, no
Brasil. As críticas recebidas e a produção complementar justificam tanto
o trabalho científico quanto o metodológico que se tem realizado e a
ralizar, pois quando se trata de mudança, diferentes perspectivas
evidenciam o erro, mas ampliam e fomentam a possibilidade de acerto.
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novembros 2005.
131
TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO: DA
AMBIVALÊNCI A DE UM CONCEITO MULTIFACETADO ÀS SUAS
POTENCIALIDADES E DESAFIOS NO CAMPO EDUCACIONAL .
Lu c ie n e Ap a r ec i da d a S I LV A *
Resumo:
Esta produção compreende uma breve análise conceitual da
polissêmica, e por vezes, personificada expressão - “Tecnologias de
Informação e Comunicação - TICs”. Seguida por uma problematização
teórica dos pontos de convergência entre o paradigma educacional
emergente e a informática educacional, desenvolve-se uma ligeira
interlocução entre os aspectos multidimensionais inerentes à pedagogia
dos meios tecnológicos. Objetiva-se, então, promover uma discussão em
torno das possíveis potencialidades e desafios postos como tônica e
atributo da incorporação das TICs ao mundo do trabalho e ao campo
educacional.
Palavras-chave: Tecnologias da Informação e Comunicação;Informática
educativa; Contexto educacional; Desafios e potencialidades.
INFORMATION AND COMMUNICATION TECHNOLOGIES: FROM
AMBIVALENCE OF A MULTIFACETED CONCEPT TO ITS
POTENTIALITIES AND CHALLENGES IN THE EDUCATION FIELD
Abstract:
This paper includes a brief conceptual analysis of polysemy and
the personified term – “Information and Communication Technologies ICTs". Followed by a theoretical problem of the points of convergence
between the emerging educational paradigm and educational informatics,
this paper develops a brief interaction between the multidimensional
aspects related to the pedagogy of technological means. The aim is then
to promote a discuss ion about the possible potentialities and challenges
considered as the highlight and attribute of the incorporation of ICTs to
the world of work and educational field.
Keywords: Information and Communication Technologies; Educative
informatics; Educational context; Challenges; Potentialities.
*
Mes tra n d a e m Ge stã o So c ia l, E d u ca ç ã o e De se n v ol vi me n t o Loc a l pe l o C en tr o
U ni v er sitá r i o U MA- MG. Gr a d ua d a e m P e da g o gi a pe la EU MG, Ana li st a E d uc aci on a l
d a S u p er i n te n dê n cia R e gi o n al d e E n si n o – SR E. E- mai l: l uc ie@ u a i. c o m. b r
132
Introdução
O avanço tecnológico experimentado pela humanidade, sobretudo
nas últimas décadas do século XX, tem proporcionado mudanças radicais
nos modos de vida de cada sociedade.
No atual cenário global, denominado “era da informação”, em que
o “novo” paradigma das tecnologias da informação e comunicação (TICs)
afeta, embora em diferentes níveis de intensidade e velocidade, todos os
segmentos e atividades da economia mundial, essas passam a figurar
como peças fundamentais e indispensáveis aos processos de gestão em
âmbito público, privado, coletivo e individual.
Então,
em
decorrência
da
maximização
do
fenômeno
da
globalização, a informação, o conhecimento e o aprendizado têm se
apresentado como elementos centrais, “um composto padrão de óleo
combustível” ou ainda “moedas de peso” de um amplo processo de
profundas e significativas transformações instaurado em acentuada
pungência no cenário mundial.
Nesse
contexto,
em
que
a
travessia
do
milênio
além
de
caracterizar-se pela intensa imprevisibilidade de mudanças provocadas e
provocadoras de impactos econômicos, políticos e sociais, também
representou paradoxa e contraditoriamente, oportunidades e ameaças a
organismos
e
instituições
governamentais
e
privadas,
enfim,
aos
cidadãos do mundo inteiro, haja vista o acirramento do desequilíbrio
estrutural no campo da educação e no mundo do trabalho, o paradigma
“tecno-econômico” das TIC s é concebido como fator – chave e retro alimentador de um fenômeno global cíclico: a incerteza.
Diante do panorama ilustrado, este artigo, organizado em três
seções, propõe-se a promover uma discussão em torno das possíveis
potencialidades e desafios postos como tônica e atributo da incorporação
das TICs ao mundo do trabalho e ao campo educacional.
A seção inicial compreende uma breve análise conceitual da
polissêmica, e por vezes, personificada expressão - “Tecnologias de
Informação e Comunicação - TIC s”. Seguida, nas seções subsequentes,
133
por uma problematização teórica dos pontos de convergência entre o
paradigma
educacional
emergente
e
a
informática
educativa,
desenvolvendo-se, finalmente, uma ligeira interlocução entre os aspectos
multidimensionais inerentes à pedagogia dos meios tecnológicos.
Tecnologias
da
informação
e
comunicação:
a
polissemia
e
a
personificação de um conceito
Composto por um trinômio em que cada terminologia traz por si
mesma uma vigorosa significação, a expressão “novas tecnologias da
informação e comunicação” reforça a evidente e complexa polissemia
presente em cada um de seus componentes conceituais. Antes, porém de
se tomar a expressão como um todo, proceder-se-á uma sucinta definição
conceitual de cada terminologia.
Em Belloni (2001, p. 53), encontram-se as seguintes definições
para o termo tecnologia:
Tec n ol o gi a é u ma f or ma d e c on h e ci m e nt o. “C oi s a s”
tec n o l ó gic a s nã o f a ze m s e nt i d o se m o “ s a ber - c om o” ( K n owh ow ) u sá - la s, c on s er tá- l as, f az ê- l as ( a p u d E VAN S E N A TI O N ,
1 9 9 3 : p . 1 9 9 ); T ec n o l ogi a é u m c on ju n t o de d i sc ur sos ,
pr á ti ca s, va l or e s e ef e i t os s oc ia i s li ga d os a u ma téc n ic a
par ti c ul ar n u m c a m p o pa r ti c u lar ( a p u d LI N A R D, 1 9 9 6 : p. 9 1) .
Para
Pinto
(2002),
o
termo
tecnologia
remete-nos,
na
contemporaneidade, à observância da correlação entre os domínios
científico e técnico desencadeadores de uma ação de interdependência
entre os conhecimentos teóricos e práticos, ou seja, entre o saber e o
fazer, o conhecimento e a ação.
Neste sentido, o termo tecnologia pode ser concebido como um
conceito bidimensional que comporta em seu núcleo uma dimensão
instrumental
e
outra
substantiva.
E,
em
decorrência
dessa
fusão
indispensável entre a utilidade do fazer e do saber, como elementos
provocadores da inovação, provém a possibilidade de um indivíduo, em
seu processo particular de interação com as inúmeras tecnologias
colocadas à sua disposição, romper com o excessivamente usual,
rotineiro.
134
A efetivação dessa ruptura desencadeia profundas transformações
no contexto social em que seu agente provocador está inserido e em si
próprio, conformando assim, concomitantes mudanças nos ideários
coletivo e individual.
Lastres e Ferraz (1999, pp.29, 30) destacam que “informação,
conhecimento
e
aprendizado
constituem
fenômenos
relevantes
e
conceitos fundamentais para o entendimento adequado desta realidade
econômica em trans formação”, apresentando estreita correlação, sem,
contudo, serem termos sinônimos. Os autores salientam que informação
e conhecimento sempre tiveram sua importância reconhecida nas análises
econômicas mais cuidadosas feitas, até já tradicionalmente, aos pioneiros
trabalhos dos economistas - Machlup, Simon, Richardson e ainda Porat,
Bouding e Lamberton, apontando-se para o res gate das contribuições de
autores como Adam Smith, Friedrick List, Joseph Schumpeter, dentre
vários outros, os quais implícita ou explicitamente abordam tais temas
em suas análises.
Na sequência, Lastres e Ferraz (1999, p. 32) salientam que nas
concepções dos es tudiosos correlacionados, o termo Tecnologias da
Informação
no
que
se
convencionou
denominar
paradigma
técnicoeconômico das tecnologias da informação “engloba várias áreas
como
informática,
telecomunicações,
comunicações,
ciências
da
computação, engenharia de sistemas e software”.
Castells (2000) considera que o paradigma da tecnologia da
informação tem como a primeira de suas características fundamentais, a
informação, sua matéria-prima. O que implica que, neste contexto, essa
tem se desenvolvido justamente para permitir o domínio humano sobre a
informação ao contrário do passado, quando predominantemente, a
informação era utilizada com o intuito de se assegurar maior poder de
ação humana sobre as tecnologias.
Concluindo sua argumentação, Lastres e Ferraz (1999) esclarecem
que este processo de “Revolução Informacional” tem apontado para um
processo de transferência adverso ao ocorrido durante a Revolução
Industrial, no qual a força humana era transferida para as máquinas. Na
Revolução Informacional, a transferência prioriza as experiências e
135
capacitações
humanas,
fator
responsável
pela
radicalidade
das
transformações que vêm se processando nos modos de vida de cada
sociedade, noutras palavras, no modo como o ser humano aprende,
exerce sua cidadania, participa, realiza pesquisas, propõe soluções para
as demandas emergentes etc.
Em decorrência, autores como Freeman, Foray, Soete e Lundvall
vêm reafirmando em suas produções que o acesso à informação se difere
do acesso ao conhecimento, destacando que a difusão das tecnologias da
informação eleva as possibilidades de codificação e disseminação ou
transferência de conhecimentos codificáveis, o que não é possível
quando se trata de conhecimentos tácitos; em vista disso, a sociedade
tem assistido ao enraizamento de uma forma de economia cujos pilares
são a produção e o uso de conhecimentos.
Quanto ao conceito de comunicação 10, dispõe-se de uma vasta
produção e / ou discussão teórica acerca do mesmo, que apesar de toda a
sua relevância e pertinência para a discussão em tela, aqui não será
tratada
em
profundidade,
dada
a
limitação
desta
abordagem.
Etimologicamente, conforme se lê a seguir, o termo é originário
D o la t i m " c om mu n ic ar e " , c omu n i c açã o si gn i f i c a p ôr e m
c om u m, c on vi ve r . E st e " p ôr e m c om u m " i mp li c a q ue
tr a n s mi s sor e r ece p t or est e ja m d e ntr o da me sma li n gu a ge m ,
cas o c on t r ár i o n ã o se e nt e n der ã o e n ã o ha ve r á c omp r e e n sã o.
Ass i m, c o mu n i c açã o d e ve l e va r c on s i g o a i d éi a de
c om p r ee n sã o. ( MODE R N O, s / d, s/ p.) .
Em Sampaio (2001, s/p.), 11 são tematizados conceitos e modelos
inerentes ao termo, a saber - comunicação como transmissão de sinais,
comunicação como diálogo, comunicação como disputa e comunicação
como seleção.
Segundo a autora, a comunicação como transmissão de sinais
constitui um dos “modelos de comunicação mais influentes nas últimas
décadas”, com ênfase no “modelo criado em 1949 por C.E.Shannon e
10
O r es ga te d a s di ve r sa s de f i ni ç õe s c on c ei t uai s s ob r e o te r m o c omu n i c aç ã o mos t r a- se
e x tr e m a me n te p r e ci os o e op or t u n o. E ntr e ta n t o, aq u i nã o se di s p õe d e es p aç o p ar a
r e p r od u z i- l o de f or ma m ai s a b ra n ge n t e e a pr of u n da d a .
11
Os i n t er e s sa d os p od e r ã o e n c on tr ar r ef er ê nc i a s e m Kr i p pe n d or f ( 1 9 9 4) ; Si e gf ri e d
Sc h m i dt ( 1 9 9 6) ; N i kl a s Lu h m a n n ( 1 9 9 5) e tc , r ec o me n d a - se, pr i nc i pa l me n te , a
c on su lt a à pr od u çã o d e Sa m pa i o ( 2 0 0 1) c o m o f i o c on d u t or à s f on t e s pr i má r ia s de st es
c on cei t os.
136
W.Weaver”, que concebe a comunicação como uma transmissão de
sinais, salientando ainda que “Schmidt ressalta o predomínio dos
modelos da comunicação baseados numa visão técnica da informação nos
campos da sociologia, da psicologia e da linguística nos últimos 50
anos”.
No modelo de comunicação como diálogo, esta é “concebida como
um processo dialógico, por meio do qual, sujeitos capazes de linguagem
e ação interagem com fins de obter um entendimento“, sendo também
destacado como “um dos modelos mais influentes da comunicação, que
remonta à filosofia grega de Platão e Sócrates“. Sampaio centra sua
análise na concepção da comunicação do filósofo alemão Jürgen
Habermas, o qual, conforme afirma, “é um dos autores contemporâneos
mais expressivos que opera com esse modelo“ de comunicação “como
parte integrante do seu projeto de renovação da teoria social fundada no
interesse emancipatório“ e para o qual, o advento da modernidade passa
a revelar as condições apropriadas para o desenvolvimento de uma
“racionalidade
comunicativa“
desencadeada
proporcinonalmente
à
progressiva emancipação humana do jugo da tradição e da autoridade,
conferindo-lhe a possibilidade de estar sujeito apenas à força da
argumentação. Apres entando, então, como postulado a tese de que “todo
conhecimento é posto em movimento por interes ses que o orientam,
dirigem-no, comandam-no“ (apud Heck, 1987:7). Nessa concepção,
compõem a tríade de interesses constitutivos do conhecimento, os
interesses técnico, prático e emancipatório .
Ao discorrer sobre um terceiro modelo em que a comunicação é
concebida como disputa, Sampaio esclarece que um dos eixos dos
estudos
realizados
pelo
sociólogo
francês
Pierre
Bourdieu
é
a
investigação de questões relacionadas ao poder dos bens simbólicos,
“onde o processo de comunicação é compreendido como uma disputa
simbólica
pelas
nomeações
legítimas“,
denotando
assim,
uma
compreeensão da comunicação contrária a de Habermas. “Enquanto para
o filós ofo alemão a comunicação é considerada sinônimo da busca de
entendimento, para Bourdieu ela é sinônimo de disputa“.
137
A autora prossegue em sua análise, afirmando que, na concepção
do sociólogo francês, a Sociologia deveria concentrar sua atenção no
desvendamento das questões relativas ao poder simbólico em que
[ ... ] O es paç o d a s i nt er a ç õe s, se gu n d o B o u r d ie u,
f u nc i on a c om o u ma e spéc ie d e me r ca d o li n gu í s ti c o pr éc on s ti t uí d o, de f i ni d or d o q ue p od e s er d it o e d o q ue nã o p od e
ou nã o de ve se r pr on u nc ia d o, de q u e m é e xc lu í d o e ou s e
ex cl u i ( 1 9 8 9, 5 5) . E m o ut r a s pa la vr as, os a ge nt e s soc ia i s, n a
lu ta per ma n e nt e pe l o es ta be le ci m e nt o d e ´ d ef i n iç õe s`
le gí ti ma s, d i s p õe m de f or ça s q ue e st ã o r ef er e nc ia da s a os
ca m p os hi er ar q u iz a d os e às p os i ç õe s q u e ne le s o c u p a m. ”
[ ... ] O p oder d e n o me ar é a f i na l, t a mb é m par a
B ou r d ie u, o p od e r d e f az er c oi sa s, da í u m c er t o ca r á ter
´ má g ic o` es tar pr e s e nt e na d e f i n içã o d o s s i gn i f ic a d os, n a
me d i da e m q ue al te r ar r e pr e se n taç õ es i mp li c a, n u m c er t o
se n ti d o, m u dar a s c oi sa s. O a ge nt e q ue f a la n ã o b u sc a a p e na s
se r
c omp r ee n di d o,
ma s
ser
ob e de ci d o,
a cr e di ta d o,
r ec on h e c i d o. Da í a s ua af ir m aç ã o de q ue : “a lí n gu a n ã o é
som e n te u m i n s tr u me n t o d e c omu n i c a çã o o u me s mo de
c on h ec i me nt o, ma s u m i n str u m e nt o d e p od e r ( 1 9 8 7: 1 6 1) .
Neste sentido, Sampaio afirma que B ordieu atesta a existência
social de um mercado de bens simbólicos tão forte e ostensivo quanto o é
o de bens materiais. Noutras palavras: prevalece e se aplica aos bens
simbólicos o mesmo ciclo de produção, circulação e consumo inerente
aos bens materiais, haja vista que em suas relações sociais cotidianas, os
seres humanos realizam inúmeras trocas que extrapolam ao material, ao
concreto, abarcando também amplamente o imaterial, o simbólico. A
autora conclui sua análise, afirmando que em Bourdieu, a comunicação é
concebida
“como
um
processo
de
disputa
permanente”,
sendo
explicitamente negada nesta perspectiva, “a concepção da comunicação
pautada na idéia ingênua do transporte de informação”.
Em
conformidade
com
o
pensamento
de
B ourdieu,
em
(THOMPSON, 2001, p. 19), obtém-se a seguinte afirmação:
Em t od a s a s soc i e da d e s, os se re s h u m a n os se o c u pa m da
pr od u ç ã o e d o i nt er câ mb i o de i nf or m aç õ es e d e c o n t e ú d o
si m b ó li c o. De s de a s ma i s a n ti ga s f or ma s d e c om u n i ca ç ã o
ge s t ual e de u so d a li n g u a ge m a té os ma i s r e c e nt e s
de se n v ol vi m e nt os na t ec n o l o gia c o m p u ta ci on a l, a pr od u ç ã o, o
ar maz e na me n t o e a ci r c u la çã o de i nf or maç ã o e c o n t e úd o
si m b ó li c o t ê m s i d o a s pe ct o s ce n t ra is d a vi d a so c ia l. Ma s c om
o d e se n v ol vi me n t o d e u m a va r i e da de de i n st it u iç õe s de
c om u n ic aç ã o a p ar t ir d o sé c u l o X V at é os n o ss os d ia s, os
pr oc e ssos de pr od u çã o , ar ma ze n a me n t o e c i r cu l a çã o tê m
pa s sa d o p or si g n if i c at i v a s t ra n sf or ma ç õe s.
138
[ ... ] o de s e n v ol vi m e nt o d os me i os de c om u n i c a çã o é ,
em s e nt i d o f u n da me n t al, u ma r eel a b ora ç ã o d o ca rá ter
si m b ó li c o da vi da s oc ia l, u ma r e or ga n iz aç ã o d o s me i os pe l os
q ua i s a i nf or m açã o e o c on te ú d o si m b ó lic o sã o pr od u z i d o s e
in ter ca mb ia d os n o m u n d o s oci a l e u ma r ee st r u t ur aç ã o d os
me i os pe l os q uai s os i n d i ví d u os se r ela ci on a m e nt r e si .
Formas de poder
Poder econômico
Poder político
Poder coercitivo
(especialmente poder
militar)
Poder simbólico
T a bel a 1. 1 F or ma s d e p o der 12
Recursos
Instituições paradigmáticas
Materiais e
Instituições econômicas (p.ex. empresas
financeiros
comerciais)
Autoridade
Instituições políticas (p.ex. estados)
Instituições coercitivas (especialmente militares,
Força física e
mas também a polícia, instituições carcerárias,
armada
etc.)
Meios de
Instituições culturais (p.ex. Igreja, escolas e
informação e
universidades, as indústrias da mídia, etc.)
comunicação
Portanto, segundo o autor, os meios técnicos pos suem alta
capacidade de armazenagem de conteúdo simbólico ou informações,
justamente por serem providos de mecanismos de fixação e preservação
destes, possibilitando seus usos subsequentes em diferentes situações,
podendo assim, servir então “de fonte para o exercício de diferentes
formas de poder” como acima descrito.
Antes, porém, de se concluir esta abordagem e, situando enfim, a
última concepção conceitual de comunicação que aqui se propõe
sinalizar, há que se destacar ainda que, ao discorrer sobre comunicação e
contexto social, Thompson chama a atenção para os equívocos que
ocorrem no emprego do termo “comunicação de massa 13, ressaltando que
o que é realmente importante nesta modalidade de comunicação é a
disponibilidade de produtos diversificados, em princípio, a uma enorme
pluralidade de destinatários e não a quantidade de indivíduos que recebe
estes produtos, recomendando o abandono à ideia de que os destinatários
dos produtos da mídia são meros espectadores passivos e acríticos.
Segundo
o
autor,
há
uma
razão
ulterior
que
torna
a
expressão
“comunicação de massa um tanto imprópria hoje, a saber, como descrição
12
A ta be la 1. 1 r es u me a s q u ar t o f or ma s de p od e r e m r el aç ã o a os r e c ur so s d os q u ai s
d e p e n de m t i pi ca me n te e as i n st it u iç õe s pa r a di g má ti ca s e m q ue e le s se c o nc e ntr a m
( T HO MP S ON , 2 0 0 1, p. 2 5) .
13
Re c on h e c e- s e a q u i a a b s ol u ta i mp or t â nc i a d a a b or d a ge m c on c e it ua l e m t or n o d a
e x pr e ss ã o c om u n i ca ç ã o de ma ssa. N a ob r a r e f er e n c ia da ne s ta pr od u çã o, o l e it or
i n ter es sa d o de ver á c on s u l tar o c a p ít u l o 1 .
139
das formas mais tradicionais de transmissão da mídia, em especial para
os novos tipos de informação e comunicação em rede que têm se tornado
cada vez mais comum na atualidade.
Finalmente,
ao
tratar
do
modelo
conceitual
que
define
a
comunicação como seleção, Sampaio situa o termo como um conceito
central na teoria sistêmica do sociólogo alemão Niklas Luhmann, para o
qual,
a c om u n i caç ã o e nã o a aç ã o, c om o p ost u la d o e m m u i ta s
te or i a s, é a u n i da de e le me n t ar q ue c on sti t ui os si ste m a s
s oc iai s. A a çã o é, na ve r da d e, a u n i da de el e me n ta r q ue f a z o
si ste ma ob se r vá ve l. [ . ..] a c omu n ic a çã o é c om p r ee n di da c o m o
u m pr oc es s o de tr ê s dif er e n te s se le ç õe s: a se le ç ã o d a
in f or ma ç ã o, a se le ç ã o da p ar t ic i p açã o ( ´ Mi tt e i l u n g`) de s sa
in f or ma ç ã o e a c omp r ee nsã o se let i va ou nã o - c om p r ee n sã o
de s sa p ar t ic i paç ã o e s ua i nf or ma çã o. ( 1 9 9 5 b : 1 1 5) .
Portanto, como se pôde verificar, supostamente, tratados e tomados
isolada e indissociadamente, os conceitos de tecnologia, informação e
comunicação abarcam em suas diferentes e, por vezes, divergentes
concepções, uma intensa polissemia. Em decorrência, tem-se, nas
palavras de (ALVES, 2004, pp. 1, 2) que a dificuldade primária na
descrição do processo de mudança estrutural que as sociedades pósmodernas vivenciam é resultante “da aparente irreversibilidade do trajeto
para uma “sociedade da informação e do conhecimento, expressão
carregada de sentido cuja polissemia se traduz numa relação inversa
relativamente a seu potencial explicativo”.
Tendo ainda em vista que, segundo o autor, tal expressão denota,
fundamentalmente, que “informação” e “conhecimento” constituem-se,
indiscutivelmente,
como
a
matéria-prima
essencial
dos
processos
produtivos, indispensáveis à elevação e aceleração da produtividade, do
emprego e do desenvolvimento econômico. Nesse ponto, Alves discorda,
afirmando que externamente ao cenário estritamente econômico, o
referido nível de desenvolvimento societal pressupõe uma quantidade
“muito maior de distribuição e acesso dos cidadãos à informação oriunda
de uma pluralidade de fontes e de formatos e disponível s ob múltiplas
plataformas, contributo inequivocamente para a formulação de escolhas e
expressão de vontades”.
140
Assim, ao serem reunidos sob o trinômio de “Tecnologias de
Informação e Comunicação”, além da polissemia inerente a cada um de
seus componentes, esses conceitos, conforme problematiza Dieuzeide
(1994), passam a incorporar a ambivalência do qualificativo “novo”. O
autor adverte que há tecnologias antigas que se renovam a partir de
novos modos ou critérios de uso, como se tem verificado com o emprego
do telefone, do rádio, do carro etc, ao passo que, contrariamente, existem
muitas novas tecnologias que, obsoletas se tornam, antes mesmo que seu
uso esteja totalmente disseminado socialmente.
No que tange ao explícito processo de personificação que este
quadrinômio conceitual tem sofrido, já não tão recentemente, comungase aqui com o argumento apresentado por (LÉVY, 2000, p. 26) que a
tecnologia não é boa nem má, estando ou encontrando-se subordinadas às
situações, usos e pontos de vista, e “tampouco neutra, já que é
condicionante ou restritiva, já que de um lado abre e de outro fecha o
espectro de possibilidades”. Não se tratando meramente de avaliar seus
impactos e sim de situar pos sibilidades de uso, embora, enquanto se
discute “possíveis usos de uma dada tecnologia, algumas formas de usar
já se impuseram”, tal a velocidade e renovação com que se apresentam.
Mediante as proposições de Levy, ter-se-ia como um clássico
exemplo de personificação da tecnologia a partir da seguinte análise
apresentada por Albornoz (2000), ao afirmar que o século XX deixa
como legado uma colossal contradição na sequência caracterizada.
De
um
lado,
uma
sociedade
deslumbrada
com
as
imensas
possibilidades de avanços nunca antes experimentados nos mais vastos
campos
do
concretizadas
conhecimento.
Possibilidades
por
muito
meio
de
trabalho
passíveis
humano
de
serem
despendido,
especialmente, mas não somente na construção do “fantástico cérebro
eletrônico”.
Vê-se que até aqui o homem é sujeito, autor, criador (da ideia) e
construtor (do instrumento). Saberes e ações em sintonia e a serviço da
concretização das ideias e desejos humanos.
De outro lado, porém, as tais imensas possibilidades de progresso
do conhecimento humano, acabam por serem frustradas numa “tecnologia
141
destrutiva da natureza e distanciada da felicidade dos homens”.
O que
segundo a autora, o filósofo marxista judeu – alemão, Ernst Bloch,
convencionou denominar de moratória da técnica no capitalismo,
concepção na e pela qual os resultados provenientes da técnica se
contrapõem às expectativas de abundância e felicidade e se revertem ou
se aplicam, sobretudo, à indústria da devastação planetária. É, como se,
de repente, a máquina deixasse de ser mera criação da mente humana e
passasse a dominar as ações desta.
Entretanto,
acredita-se,
em
explícita
concordância
com
os
pensamentos de Lévy, não ser prudente atribuir à tecnologia as
adjetivações ou atributos de destrutiva e avassaladora dos ideais
humanos.
Assim,
devem
ou
deveriam
ser,
porém
e,
sobretudo,
caracterizados “os usos” circunstanciais da técnica pela própria mente
humana que a concebeu.
Informática educativa – um paradigma?
Nesta sociedade global “futurista”, inaugurada com a travessia do
milênio, o maquinário “inteligente” tem marcado cotidianamente sua
presença em todos os espaços – do local ao global, do material ao
virtual. Em decorrência, o mundo do trabalho e o campo educacional têm
sofrido
mais
ocasionadas
direta
por
e
este
intensamente
fenômeno
que
os
hoje
impactos
tem
se
das
mudanças
convencionado
14
denominar de neomodernidade .
Por conseguinte,
segundo
afirma
Belloni (2001, p. 68), “a
generalização da informática no mundo econômico e do trabalho já é uma
realidade incontornável, e sua penetração nas outras esferas da vida
social – lazer, cultura, educação – é uma tendência quase inexorável.” A
autora argumenta que “as TICs terão provavelmente no século XXI uma
significação cultural e social mais profunda do que o cinema e a
televisão no século XX”.
Contudo,
apoiada
nas
argumentações
de
Dieuzeide,
Belloni
salienta que para se compreender efetivamente o papel das TICs no
14
Ver H a be r m as , 1 9 9 0, 1 9 9 2.
142
campo
educacional
ferramentas
é
preciso
antes
de
tudo,
desconsiderando
pedagógicas,
considerá-las
nesta
como
análise
“a
problemática das relações entre a escola e as mídias, bem como a
educação para a comunicação e suas implicações éticas e “cívicas”,
muito embora se reconheça sua importância.
A
abordagem
“pela
ferramenta”
nos
levará
a
examinar
essencialmente como estas técnicas são suscetíveis de serem postas a
serviço dos objetivos maiores estabelecidos pela instituição educativa
(BELLONI, 2001, p. 60 apud DIEUZEIDE, 1994, p. 15).
Cabe ressaltar que tais aspectos apenas serão desconsiderados
nesta seção, sendo oportunamente tratados na seção subsequente.
Dessa forma, retomando as ideias explanadas no preâmbulo desta
seção, tem-se a informática inserida transversalmente no contexto social,
penetrando
sobretudo,
cotidianamente
o
espaço
o
universo
educacional
das
atividades
institucionalizado,
e
humanas,
em
estrita
convergência com o atual quadro de acirramento da mercantilização,
descentralização produtiva e recentralização do controle sobre os fluxos
econômicos, num concentrado esforço de reestruturação econômica
global
da
força
produtiva.
Situação
esta
que
ganha
status
de
oportunidade, mas também de ameaça, uma vez que acarreta riscos não
somente e, sobretudo, aos países em desenvolvimento, como afeta
diretamente as condição de vida da população mundial.
As si m, a e sc o l a d ef r on ta- se c om o d es af i o de tr a zer
par a se u c on t e x t o a s i nf o r m aç õ e s pr e s e nte s n as te c n ol o gia s e
as pr ó pr i a s f e rr a me n ta s te c n ol ó gic a s, ar tic u la n d o- a s c om os
c on h ec i me nt os e sc ol ar e s e pr op i ci a n d o a i nt er l o cu çã o e ntr e os
in d i ví d u os . C om o c on s eq ü ê nc i a, di s p on i b il i za a os s u jei t os
esc ol ar es u m a m p l o le q ue d e s a ber e s q u e, se t r ab a l h a d os e m
per sp e ct i va c om u n i c ac i on a l, gar a nte m t ra n sf or ma ç õe s na s
r ela ç õe s vi ve n c ia da s n o c ot i dia n o e sc ol ar . ( PO R T O, s/ d , s/ p.
ap u d P O R TO, 2 0 0 3; MA R C O L LA , 2 0 0 4) .
Portanto,
informática
o
cenário
educacional
então
ilustrado,
constitui-se
numa
deixa
entrever
ramificação
ou
que
a
mesmo
exigência da permeável trans versalidade das TICs em todos os campos e
segmentos da arena social neomoderna. Enquadrando-se então não como
um novo paradigma em emergência e sim como uma exigência ou
143
demanda daquilo que alguns estudiosos contemporâneos tendem a
denominar de “paradigma educacional neomodermo”
15
Finalmente, ao considerar-se que as TICs constituem produto
resultante da aproximação de três domínios (PINTO, CABRITA s/d, p.
497apud DIEUZEIDE; 1994; NUSSO, 1994; C ASTELLS, 1995): o da
informática, o das telecomunicações e o do audiovisual, cuja combinação
tem viabilizado e fomentado o desenvolvimento de novas e múltiplas
relações entre as várias fontes, favorecendo a interatividade, a circulação
de dados, informações, conhecimentos que, podem ou não resultar em
aprendizagem colaborativa, formação permanente ao longo da vida etc,
superando enfim as fronteiras espaciais territoriais em direção ao
“ciberespaço” da informação, comunicação e interação virtuais, eis então
por consequência, apontados na próxima seção, alguns dos desafios que
se revestem como grandes possibilidades de incorporação, aplicação e
contribuição das TIC s ao contexto social e, em particular, ao educacional
na sua estreita relação com o mundo do trabalho, hoje em permanente
instabilidade
e
mutação,
revelando
mais
explicitamente
a
“crise
estrutural” em que ambos estão mergulhados na neomodernidade como
muitos preferem denominar o atual estágio histórico - social em que
caminha a humanidade.
As TICS no cenário educacional: os múltiplos desafios em educar com
os meios e para os meios
A e d u ca ç ã o é e s e mpr e f oi u m pr oce ss o c om p l e x o q u e
ut il iz a a me di açã o d e al gu m ti p o d e me i o d e c om u n i caç ã o
c om o c o m p le m e nt o ou a p oi o à a çã o d o p r o f es so r e m s ua
in ter aç ã o p e ss oa l e dir e ta c om os e st u da n te s. A sa l a de a u la
p od e ser c on s i de r a da u ma “ tec n ol o g i a” da me s ma f or ma q u e o
q ua dr o ne gr o, o gi z, o li vr o e ou tr os ma t er iai s s ã o f er r a me n ta s
( tec n ol o gi as) p e da gó gi c as q ue r eal i z a m a me d iaçã o e ntr e o
c on h ec i me nt o e o a pr e n d e nte . [ . ..] Em b or a a e x per iê nc i a
h u ma n a te n ha si d o se m p re me d i a da a tr a v é s d o pr oc e ss o de
soc ial iz açã o e d a l i n gu a ge m , é a p a rt i r d a m od e r ni da de, c om o
sur gi m e nt o d e s ua s mí di a s t í pic a s d e ma ssa ( o i mpr e ss o,
de p oi s os si n ai s e le t r ô n i c os) q ue se ob s er v a u m e n or me
cr e sci m e nt o d a me d iaç ã o da e x pe r i ê n cia de c or r e nt e de st a s
15
E m vir t u d e da l i m ita ç ã o d e sta pr od u çã o , a pe sa r de re le va n te , a q ui nã o se r á
a b or d a d o c om a de vi d a pr o f u n d i da de te óri ca q u e a e xpr e ss ã o e m d e sta q ue r e q u e r. E m
d e c or r ê nc ia , r ec om e n d a -s e a o l e it or i nter e s sa d o u ma vi sit a ou c on s u lta às
p u b l ic aç õe s d e J osé Car l os Li b â ne o n o per í od o c om p r ee n di d o e ntr e 1 9 9 5 e 2 0 0 5.
144
f or m as d e c om u n i ca çã o . E st a s mí d ia s sã o a o me sm o te m p o
ma n if e st aç õ es
da s
te n dê nc ia s
gl ob ali z a d or a s
e
de sc on t e x t ua liz a d o ra s ( de “ d es e nca i xe ”) d a m od e r ni da d e e
in st r u me n t os d e sta s me sma s t e n dê nc ia s”. “ Ta n t o o i m pr e ss o
q ua n t o a s mí di as e l etr ô ni ca s f u nc i on a m c om o mod a l i da de s de
r e or ga ni za ç ã o d o te m p o e d o es p aç o e nã o a pe n as r ef l et e m a s
r eal i da de s, c om o e m c e r ta me d i da a s f or ma m. ( BE L LO N I ,
2 0 0 1, p . 5 4, a p u d G I DD E N S, 1 9 9 7: p . 2 2) .
A definição acima apresentada conduz à recuperação e introdução
de novas contribuições prestadas por Thompson à seção primeira deste
artigo.
Recorrendo-se a este autor, tem-se que a maior parte da história
humana, especialmente a que antecede ao advento da invenção da escrita
e da imprensa, foi marcada pela interação face a face, num contexto em
que predominavam as tradições orais. Com o acelerado desenvolvimento
dos meios de comunicação são criadas novas formas de interação e novos
tipos de relacionamentos sociais desvinculados do ambiente físico.
Thompson
destaca
três
formas
básicas
ou
situações
de
interatividade – interação face a face, interação mediada e quase
interação mediada. Contudo, ao distinguir esses três tipos de interação, o
autor salienta que, muitas interações que se desenvolvem cotidianamente
podem envolver uma mistura de diferentes formas de interação, de modo
que os tipos acima enunciados não esgotam os possíveis cenários de
interação.
As interações face a face ocorrem num contexto em que os
interlocutores estão imediatamente presentes, compartilhando um mesmo
sistema referencial de tempo e espaço. E, ao contrário, os participantes
de uma interação mediada e quase interação mediada podem estar em
contextos espaciais ou temporais distintos.
Considerando a interação mediada, pode-se afirmar que este tipo
contrasta com as interações face a face, entretanto, implica numa certa
limitação
na
possibilidade
de
deixas
simbólicas
disponíveis
aos
participantes, uma vez em que há a predominância do uso de um meio
técnico (papel, ondas eletromagnéticas, fios elétricos etc.). Neste
sentido, Belloni (2001) esclarece que:
[ ... ] Me dia ti zar si gn i f ic a es c ol he r, par a u m d a d o
c on te x t o e si t ua ç ã o de c om u n ic a çã o, o m od o ma i s ef ic a z de
145
as se g u r á -l a ; s ele ci on a r o m e di u m m ai s a de q ua d o a es se f i m;
em f u n çã o d e ste , c on c e be r e e la b or ar o di sc u r so q ue c on st it u i
a f or ma d e r e ve st ir a su b s tâ nc ia d o te m a ou ma tér i a a
tr a n s mi ti r ( p. 6 3, a p u d RO C HA- TR I N DA DE, 1 9 9 8) .
Em decorrência, observa-se que as interações mediadas ou quase
mediadas são revestidas de um caráter mais aberto que as interações face
a face, onde os participantes têm que lançar mão de seus próprios
recursos para compreender as mensagens transmitidas.
A interação quase mediada se expande através do tempo e do
espaço,
implicando
numa
ampla
disponibilidade
de
informação
e
conteúdo simbólico no tempo e no espaço, envolvendo, contudo, muitas
vezes, certa limitação da gama de deixas simbólicas quando comparada à
interação face a face. Em suma, um aspecto fundamental que distingue
sobremaneira esta última forma de interação das demais, refere-se ao
fluxo de comunicação, predominantemente de sentido único, monológico,
enquanto as duas primeiras revestem-se de caráter dialógico.
Cabe ressaltar que a origem histórica da interação mediada quanto
à quase interação mediada não se deu em detrimento da interação face a
face e sim em virtude da crescente imprevisibilidade e complexidade das
demandas
do
mundo
globalizado
como
agente
impulsionador
do
crescimento da mídia e de seus múltiplos canais de comunicação e
informação que possibilitaram a criação de uma diversidade de formas de
ação à distância, proporcionando às pessoas a habilidade de responder e
se apropriar de ações e eventos, ocasionando, por conseguinte, novas
formas de inter – relacionamento e de indeterminação no cenário global
atual.
Holmberg
(1990) afirma
que
visões
pós-fordistas
do
futuro
apostam numa revolução da Pedagogia no século XXI ocasionada e
impulsionada pelo progresso das TICs em analogia à forma como a
inovação de Gutemberg revolucionou a educação a partir do século XV.
O que não significa, contudo, que estas tecnologias substituirão o
discurso escrito na educação, mas que seu uso intensivo e integrado
certamente implicará em profundas modificações nas formas de ensinar,
de produzir e partilhar conhecimentos e aprendizagens, de trabalhar
146
colaborativamente etc., mudanças estas que já estão paulatinamente se
processando face à evidente e frequente adaptação dos espaços de
convivência e/ou de passagem social ao surpreendentemente moderno
maquinário informatizado.
“A escola e os meios tecnológicos de comunicação assemelham-se
porque tratam da realidade e ambos são locais de aquisição de saberes;
assim, educar com os meios e educar para os meios é imprescindível à
educação escolar por possibilitar um ambiente favorável à cotidianidade”
(POR TO, s/d, s/p).
Há ainda que ressaltar a importância de se problematizar mais
profundamente, conforme lembra Lévy, as definições de interatividade e
interação, mediatização e ciberespaço, haja vista alguns equívocos
conceituais que, volta e meia, assombram uma compreensão acertada do
emprego desses termos, hoje tão “em moda” no mundo virtual.
Belloni (2001, pp. 55, 56 apud KOECHLIN, 1995; STIEGLER,
1995) esclarece que
cr iar
um
pr od u t o
in t er at i v o,
p or
e xe m p l o,
é
ex tr e m a me n te d if í c i l, c ol oc a n d o i n ú mer os p r ob le ma s, d e sd e a
se leç ã o de c on t e ú d os ( q ue e m ge r a l sã o f or m u la d o s, m ol da d os
em di sc ur s o e scr i t o) a té as p rá t ic as d e “ n a ve ga çã o”, q u e sã o
in ter at i va s e t o t al m e n te ( ou q u as e) n o va s. E st ã o se n d o
pr o va ve l m e nt e ge r a da s, na cr i aç ã o de s te s pr od u t os, n o va s
f or m as s e mâ n ti c a s, si n t áti c a s e e st il ís ti ca s de in te r a t i vi d a de ,
q ue t e n d er á a s e e x pa n di r e pe n et r a r e mod i f i ca r os a nt i g os
di sc ur sos es c ol ar e s.
Na sequência, a autora faz distinção entre os vários conceitos nos
quais
Lévy
chama
a
atenção
para
uma
perspicaz
definição
e
compreensão. Salientando ainda que diante de todas as praticidades
comunicacionais proporcionadas pela presença cada vez mais extensiva e
intensiva
das
TIC s
nos
diversos
s egmentos
do
cenário
social,
possibilitando assim, novas formas de se conceber os usos do tempo e do
espaço no campo educacional e no mundo do trabalho e, alterando,
sobretudo, as formas como se estabelecem as relações sociais entre os
seres humanos, a mediatização das mensagens pedagógicas encontra-se
arraigada no cerne dos processos educacionais em geral , identificando-se
como característica principal destas tecnologias:
147
a int er at i v i d ad e, car a c ter í s tic a té c ni c a q u e si gn i f ic a a
p oss i b ili d a de d e o u su ár i o i nter a gi r c om u m a má q ui n a . É
f u n da m e nt al e scl ar ec er c om pr e c i sã o a di f er e n ç a s oc i ol ó gi c a
en tr e o c on ce it o de int er aç ã o – a çã o r e cí pr oc a e nt r e d oi s ou
ma i s a t or e s on d e oc or r e a i nte r s ubj et i v i d ad e, I st oé e nc on t r o
de d oi s s u je it os – q ue p od e ser dir eta ou i n dir et a ( me d i a ti za da
p or a l gu m ve íc u l o t éc ni c o d e c om u n i ca ç ã o, p or e x e m pl o, ca r ta
ou te lef on e ) ; e a int er a t i vi d ad e, te r m o q u e ve m se n d o u sa d o
in d i st i nt a me n te c om d oi s si gn i f ic a d os dif er e nt e s e m ge r al
c onf u n d i d os : de u m l a d o a p ot e nci a l i da de téc ni c a ofer ec i d a
p or de te r m i na d o me i o ( p or e x e mpl o, C D- RO M s de c on su l ta ,
hi p er t e xt os e m ge r a l, ou jo g o s i nf or ma ti za d os ) , e, d e o u tr o , a
ati vi d a de h u ma n a , d o u s uár i o, de a gir s ob r e a má q u i na, e de
r ece b er e m tr oc a u ma “ re tr oa çã o” da má q ui n a s ob r e e le. ( p.
5 8) .
Neste vasto contexto de desafios e possibilidades, em que as TICs
emergem como um conjunto de tecnologias que viabilizam numa
velocidade inédita a produção, o registro, a produção, a aquisição, a
armazenagem e o tratamento de informações das mais diversas formas
possíveis – ótica, acústica, eletromagnética – destaca-se a incidência de
seus impactos, em maior profundidade, sobre os processos do que sobre
os produtos, permitindo maior flexibilidade e voracidade da ação humana
sobre o conteúdo das informações, revelando-se então um cenário em que
a comunicação pode assumir a conformação de “poder”, tal como
descrevem e analisam Sampaio
e
Thompson em
suas
respectivas
produções.
Nesta direção, a Internet tem se apresentado como uma das mais
atrativas ferramentas da atualidade, pois além de possibilitar ações que,
simultaneamente, combinem a interação e a interatividade, a rede tem
incorporado dia-a-dia todos os outros grandes atrativos ou atributos das
mídias “de comunicação mediada”, tal como sugere Thompson - além dos
chats, blogs, editores coletivos de textos, sites de busca, comunidades
virtuais; dispõe-se, hoje, de revistas eletrônicas, jornal, canais de rádio,
televisão, websites governamentais, serviços bancários etc, noutras
palavras,
“um
dilúvio
de
informações”,
serviços,
facilidades
e
praticidades ao alcance de quem dispõe do acesso sócio-contextual
digital e informacional, alterando substancialmente a relação humana
com os fatores tempo e espaço.
Pretto e Pinto (2006, p.20) defendem que
148
Q ua n d o a I n ter ne t a la str ou - s e n o mu n d o c o mo u m
am b ie n te de c o m u n ic a çã o c o n f iá ve l, p on t o a p on t o, bi l at er a l e
ace ssí ve l até me s mo par a i n di ví d u os , a pa rt ir da s sua s
r esi dê nc ia s, e s ta be lec e u - se u m a m b ie n t e gl ob a l mu i t o m ai s
f a vor á ve l à s o r ga n iz aç õe s e m r e de d o q ue p ar a às
or ga n iz a ç õe s ve r ti ca is de c om a n d o, i mp l ic a n d o, c lar o e stá ,
q ue , par a sua vi a bi liz a çã o, pr e ci sa m os c on s i der ar a
de m oc r a ti z açã o d o ac e s so à I n ter ne t c om o pe ç a- c ha ve pa r a
q ue a p op u l a çã o p os sa te r a p os si b il i da de de o r ga n iz ar - s e d e
mod o h or i z o n t al. N e s se s e nt i d o , sã o d e f u n da m e nt a l
i mp o rt â nci a p ol í t ic as p ú b lic as q ue ga r a n ta m es s e a ce ss o,
en te n d e n d o- o c om o u r ge n te , o q ue i m pl ic a pe n sa r m os e m
sol u ç õe s c ol e ti va s e p ú b lic as , e nã o a pe n a s n o a c e ss o
in d i vi d u al iza d o n a s re si dê n cia s.
Como um dos mais notáveis atributos da criação e proliferação da
Internet, situa-se o conceito de ciberespaço que, na ótica de Alava (2002,
p. 14) é:
c on ce bi d o e est r ut u r a d o d e m od o a ser , a nt es de t u d o,
u m e spaç o s oc i al de c om u n i ca çã o e d e t ra ba l h o e m gr u p o.
P ort a nt o, o sa be r já nã o é ma i s o pr od u t o pr é- c on st r u í d o e
“m i di at ic a m e nt e” d if u n di d o, ma s o r e s u lt a d o d e u m tr a b a l h o
de c on s tr u ç ã o i n di vi d u al ou c ol et i v o a par tir d e si t u aç õ e s
mi d ia ti ca me nte c on c e b i da s p ar a of er ec e r a o a l u n o ou a o
es t u da nt e op or t u n i da d es de me d iaç ã o .
Uma
breve
análise
das
citações
suprarrelacionadas
permite
entrever uma pluralidade de possibilidades, não mágicas, mas passíveis
de serem concretizadas tanto na arena social, quanto especificamente no
campo educacional como se anuncia a seguir em apologia ao pensamento
de Moran (2002), que esclarece que as redes eletrônicas não constituem
de modo algum, por si mesmas, solução absoluta para promoção de
mudanças
pedagógicas
substanciais
nos
estabelecidas.
processos
No
entanto,
educacionais
podem
e
prestar
relações
grandes
contribuições às mudanças que poderão se instaurar na forma do
professor, do aluno, do colega de trabalho e também de outros atores
sociais conceberem a comunicação e a aprendizagem compartilhada
durante o processo educacional e atuarem de maneira diferenciada das
até
então
dominantes
ou
predominantes
durante
seus
respectivos
processos produtivos.
“Neste sentido, Moran atribui especial ênfase à Internet, haja vista
o universo de informações e formas de comunicação que esta coloca a
149
disposição de todos quantos a ela têm acesso: alunos, professores,
coordenadores,
gestores dos
processos
pedagógicos
intra
e
extra-
escolares etc. Podendo quiçá culminar na efetivação de uma das “novas
educações” pelas quais a sociedade global tem aspirado em consonância
com a lógica do “reaprender a aprender” – reaprender a trabalhar
colaborativamente, usando os “meios tecnológicos” para a mediação de
consulta a colegas próximos ou geograficamente distantes, com vistas à
troca de experiências, esclarecimento de dúvidas, compartilhamento de
aprendizagens, processos, materiais, dificuldades, resultados etc. Ações
estas que, certamente, passarão a exercer forte impacto, em especial, nos
modos dos sujeitos planejarem, executarem, avaliarem e se autoavaliarem no processo educativo.
Por conseguinte, promovendo, grosso modo, uma ruptura com o
saber disciplinar, num mundo em que, segundo Hernandez e Ventura
(1998), faz-se primordial o aprendizado da utilização de estratégias e
metodologias
potencializadoras
de
novas
relações,
haja
vista
as
necessidades emergentes de um mundo educacional e do trabalho em
permanente mutação, em que, geralmente, as habilidades requeridas e
adquiridas por um profissional no princípio de sua carreira, em qualquer
campo do saber, rapidamente, com o decorrer do tempo e o acirramento
do avanço tecnológico, tornam-se obsoletas. Exigindo, enfim, das
pessoas a habilidade de aprendizagem permanente, ou como se tem
convencionado denominar, “aprendizagem ao longo da vida 16”, em face
de “uma sociedade informatizada na qual as pessoas terão que saber
como agir para extrair e elaborar conhecimentos a partir do fluxo enorme
de informação disponível” (Idem, p. 50).
Contudo, não se pode perder de vista o alerta de Pretto e Pinto
quando chamam a atenção para a verticalização, na arena social ampla,
do acesso pela população à Internet, com ênfase para o âmbito coletivo e
não meramente para o acesso residencial individualizado.
Desta forma, reforçando o pensamento deste autor e comungando
com os argumentos lançados por Pinto e Cabrita, há que se enfatizar que
16
C on s u l tar Be ll on i , c a pí t ul o 3 da ob r a a q u i r e f e r e n cia d a .
150
“as TICs convocam novas medidas de política educativa” num contexto
cada vez mais anunciador de um grande, por vezes, cruel paradoxo
instaurado. Onde se tem, de um lado, parte restrita da humanidade
experimentando
avanços
inumeráveis
em
relação
tecnológico intensificado nas três últimas décadas.
ao
progresso
E noutro extremo,
este mesmo “progresso tecnológico” exerce sua hegemonia revelado ao
mundo inteiro que o campo da educação e o mundo do trabalho estão
mergulhados numa profunda crise, cujo produto final tem se apresentado
sob a forma de submissão de uma maioria da população planetária,
exposta a um processo sem precedentes de violência e exclusão social.
E,
ao
convocar
as
novas
medidas
de
política
educativa,
parafraseando Pretto e Pinto (2006), as TICs aspiram por “novas
educações”.
Educações
capazes
de
incorporar
a
ambivalência
e
polissemia do “supostamente novo”, mas sem renegar o “qualificado
como velho”, submetendo na maioria das vezes, o saber e o ser
profissional e a identidade cultural das populações a um perverso
processo de desqualificação e descaracterização.
Neste sentido, evocar “novas educações” implica num convite a resignificação pela escola e pela sociedade, como um todo, dos tempos e
espaços democráticos de aprendizagem, rompendo com a pres unçosa
hierarquização
dos
saberes
escolares
em
detrimento
dos
saberes
socialmente constituídos e construídos, com o enrijecimento disciplinar
dos currículos escolares que, a despeito de todo o discurso atual em
torno da inter, multi e transdisciplinaridade, concretamente ainda se
apresenta como um dos grandes desafios quando se pensa numa
sociedade global em que a vastidão de conhecimentos produzidos ao
longo da trajetória humana planetária parecer sofrer ou transmutar-se
também num processo globalizante dos saberes humanos.
Portanto, fomentar a concretização de “novas educações” requer,
sobretudo e não somente, uma urgente ruptura 17 com o modelo
verticalizado, racional-burocrático das instituições escolares e com a
gestão e organização curricular amestradas. Reivindicam uma articulação
17
An ál is e de ta l ha da e a pr of u n da d a e m P i nt o e Ca br i ta c on f or m e r ef er e nc i ad o a o f i nal
d e sta pr od u ç ã o.
151
e atuação realmente eficaz dos órgãos técnico-pedagógicos escolares e
extraescolares, outros modelos didáticos que rompam com a dicotomia
tempo – espaço escolar e social, de forma tal que todos os espaços
sociais, gradativamente, convertam-se em salas de aula, sem imposição
de fronteiras espaços-temporais e limitação quantitativa e qualitativa de
aprendentes, uma vez que instauradas relações horizontalizadas de
trocas, impera o trabalho colaborativo num permanente processo de
aprendizagem que se estende para além dos muros da escola e alcança a
todos os sujeitos sociais de dever e de direito, predominando enfim, a
co-responsabilidade pela aprendizagem de si e de outrem. Requerem
enfim, conforme anuncia Porto, a superação do desafio de educar com os
meios e para os meios.
Considerações finais
Diante da brevidade das discussões aqui incitadas e em face de um
quadro de “pres unçosa” obsolescência das competências pessoais e
profissionais maximizadas pelo avanço na automação da produção;
crescente aspiração à concretização de novas relações sociais com o
saber; com as tecnologias da inteligência e a inteligência coletiva (Lévy,
2000); com as novas formas de organização do trabalho e da produção
(Drucker, 1999) e, por fim, com as competências estratégicas da era da
informação (Castells, 2000), necessário se faz difundir e intensificar o
debate ora proposto.
Sendo transversais a toda sociedade e, portanto, de igual modo ao
campo educacional e do trabalho, as TICs não são em tempo algum
neutras.
Ao
contrário,
são
produzidas
e,
concomitantemente
são
produtoras de mudanças cada vez mais profundas no bojo das sociedades
“neomodernas”.
Entretanto,
não
podem
ser
concebidas
como
as
protagonistas centrais desse processo, em detrimento da atuação humana.
De fato, não se vislumbram outras alternativas, senão pelo viés de
“novas educações” por meio das quais aprender-se-á ou incorporar-se-á
ao cotidiano da humanidade, a cultura de trabalho colaborativo, de
permanente formação , trocas de experiências e aprendizagens em
152
serviço que, converter-se-ão em conhecimento coletivo, de domínio
público.
Há que se reconhecer que todas estas aspirações revelam-se um
tanto como utópicas mediante a ordem social vigente. Mas, são, contudo,
passíveis de concretização, se inseridas e concebidas no mesmo contexto
social amplo em que está instaurada a “crise” estrutural ou “existencial”
em que estão mergulhados os principais vetores da inclusão social e da
qualidade de vida – a educação e o trabalho.
Em suma e para concluir, apresenta-se aqui mais uma das valiosas
contribuições de Moran (s/d, s/p.) que converge intimamente com todo o
discurso produzido ao longo deste breve estudo e anseios e crenças de
sua autora:
E d u car c om n o va s t ec n ol o gi a s é u m de saf i o q ue a té
a gor a nã o f oi e nf re n t ad o c om p r of u n di d a de. Te m os f e i t o
ap e na s a da pt aç õe s, pe q ue n a s mu da n ça s. A g ora , n a esc ola , n o
tr a ba l h o e e m ca sa , p od e m os a pr e n der c on t i n ua me nt e, de
f or m a
f le xí ve l,
r e u ni d os
n u ma
sa la
ou
d i sta n te s
ge o gr af i ca me n te, m as c on e cta d o s a tr a vé s de r e de s de
tel e vi sã o e da I n ter ne t. O pr e se nc i a l se t or n a ma i s vir t ua l e a
ed u ca ç ã o a d is tâ n ci a se t or n a m ai s pr e se nc ia l . Os e nc on t r os
em u m m e sm o e sp a ç o f ís ic o s e c omb i n a m c om os e nc on t r os
vi r t ua i s, à d i st â nci a , a tr a vés da I n ter ne t e da tel e vi sã o.
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THOMPSON, John. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia.
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154
EDUCADOR E EDUCAÇÃO NO SÉCULO XIX
155
A COMPLEXIDADE DO OBJETO TRABALHO DOCENTE:
ALGUMAS REFLEXÕE S E INDAGAÇÕES.
M a ri a C ri s ti n a R a v a ne li de B a rr o s O’ R E I L LY *
M a ri a S il v i a A za ri te S A LO MÃ O * *
Resumo:
Este artigo tem por objetivo abordar a complexidade do objeto
trabalho docente, no contexto das políticas de formação implementadas
no Bras il, a partir da década de 1990, apontando seus problemas e
encaminhamentos. O estudo buscou compreender os elementos
constituintes da carreira docente que ultrapassam as questões de ensino
em sala de aula e adentram pelos saberes práticos específicos aos lugares
de trabalho, com suas rotinas, valores e regras. Nesta perspectiva, foram
discutidos os aspectos da relação entre formação e trabalho docente com
repercussões nas instituições escolares; mais es pecificamente as
condições de trabalho e a condição de ser docente na sala de aula.
Palavras-chave: Trabalho
Políticas públicas.
docente;
Tempo;
Profissão;
Formação;
THE COMPLEXITY OF THE TEACHING OCCUPATION: SOME
CONSIDERATIONS AND INQUIRY.
Abstract:
This article aims at approaching the complexity of the teaching
occupation concerning the educational policies implemented in Brazil
since the 1990s in order to point out their problems and guidelines. This
study attempts to understand the constituents of the teaching career
which exceed the limits of the classroom and penetrates the practical
knowledge specific to the working place and its routine, values and
rules. From this perspective, we discuss the as pects involved in the
relation between training and teaching occupation as well as its
reflection on educational institutions, more s pecifically the working
conditions and the condition of being a teacher in the classroom.
Keywords: Teaching occupation; Working life; Profession; Teacher
Training; Public politics.
Introdução:
A preocupação com as questões relacionadas à formação docente
tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores, especialmente no que
*
D ou t or a n da e m E d uca çã o E sc ol ar – Fa c u l da d e de C i ê nc ia s e Le tr a s – U N E SP –
Ar a ra q u ar a – SP . E- ma i l : or ei ll y @ p u c pc a l d as . br
**
D ou t o ra n d a e m E d uca ç ã o E sc ol ar – Fa c ul d a de de Ciê n c i as e Le tr a s – UN E SP Ar a ra q u ar a – SP . E- ma i l : m a ri a sil vi a@ f a fi c a. b r
156
tange a “eficácia” da formação inicial e continuada dos professores.
Percebe-se que tal preocupação aparece, na maioria das vezes, atrelada
às questões dos modelos e estratégias a serem utilizados, das possíveis
adaptações e inovações frente à diversidade de contextos e às novas
demandas da sociedade.
Esta temática tem resultado em estudos realizados nos últimos
vinte anos sobre a formação de professores, tratando dos saberes que
servem de base para o ensino. Para Tardif e Raymond (2000) estes:
[ ...]
nã o
se
l i mi t a m
a
c on t e ú d os
be m
cir c u n scr it os q ue d e pe n de r ia m d e u m c on h e c i me n t o
espe ci al i za d o. El es a br a n g e m u ma gr a n de d i ver s id a de d e
ob je t os , de q u e st õe s, d e pr ob l e ma s q u e e st ã o t od os
re la ci o n a d os c om s e u tr ab a l h o. Al é m di ss o, n ã o
c or r e sp on d e m, ou pe l o me n os m ui t o p ou c o, a os
c on h eci me nt os t e ór i c o s ob t i d os na u ni ve r sid a de e
pr od u z i d os pe la pe s q u isa na ár ea da e d u ca çã o [ . ..]
(p. 2 1 3)
Deste modo, pensar o trabalho docente significa trazer novos
olhares para a questão do aprendizado do próprio ofício, trazendo à tona
as seguintes indagações: se a formação inicial não garante na totalidade
os saberes necessários à prática docente, quais os elementos que
permeiam esta prática e que possibilitam ao docente o aprendizado da
profissão?
Também
Esteves
(2002)
defende
que
pensar
esta
formação
representa estabelecer um plano que permita refletir sobre as concepções
de TRAB ALHO – PROFISSÃO – PESSOA, abordando, no primeiro, as
condições postas em confronto com as necessárias, no segundo, o grau de
envolvimento destes profissionais, ou seja, de afiliação na categoria e,
por último, sua corporificação diante das diversas mudanças que
interferem no trabalho do professor. Com o advento da participação,
essas mudanças geraram um possível fortalecimento da autonomia
docente, bem como das relações com a comunidade, o que suscitou a
reinterpretação deste profissionalismo docente.
Esta profissionalização, surgida no momento de crise e carregada
de imensos problemas e estímulos, sinaliza para a possibilidade de uma
157
ação profissional mais aberta que, de certa forma, choca-se com o que se
instituiu sobre o professor. Nos dias de hoje nossa sociedade espera que
o bom professor seja aquele capaz de promover a aprendizagem dos
alunos desmotivados,
aquele
que evita
os conflitos
geradores da
indisciplina; que usa a autonomia para programar novos mecanismos de
avaliação; proporciona ambientes esteticamente diferentes mesmo com a
escassez dos meios necessários, e que eleva a sua auto-estima e a dos
estudantes.
Assim, este trabalho está dividido em quatro partes: inicialmente,
trataremos do aprendizado do ofício docente. Em seguida, será abordado
o início da profissão: a carreira e a construção dos saberes profissionais.
A questão do tempo e sua relação com os saberes profissionais, a
identidade profissional e trabalho docente serão tratados na seqüência.
Na parte final, serão colocadas algumas considerações e indagações
sobre o trabalho docente, a aprendizagem dos saberes e a formação
docente.
O aprendizado do ofício docente:
No que se refere ao aprendizado do ofício docente parece consenso
que este não se limita à formação inicial, ou seja, aos conhecimentos
teóricos e técnicos que são adquiridos nas instituições formadoras, sejam
as universidades ou as faculdades específicas para este fim. Entretanto,
um impasse se estabelece entre ambas (formação inicial e continuada),
supondo certa acomodação por parte das instituições e políticas da área
quanto à definição de critérios e conteúdos a destacar, em cada etapa, o
que privilegia, por um lado, ações de cunho conservador que priorizam a
atividade prática e, por outro, mudanças de ordem progressistas que
vislumbram uma pedagogia crítica. (ESTEVES, 2002).
Percebe-se também que o tempo da formação instituído tem
carregado, nestes nossos tempos, as marcas das novas exigências da
sociedade global que segue as orientações dos organismos financeiros
internacionais para os países em desenvolvimento, como o caso do
Brasil. Essas recomendações apontam para a racionalização e eficiência
158
dos cursos, no sentido de promover a adequação do sistema educacional
ao processo de reestruturação produtiva e aos novos rumos do Estado.
(TORRES, 1996).
Tornar-se professor requer saberes ligados às situações próprias do
trabalho docente e que, de certa forma, exigem deste profissional
conhecimentos, competências e atitudes que dependem de seu contato
com essas mesmas situações. Além disso, pode-se dizer que esses saberes
requerem tempo, prática e experiência. O processo de aprendizagem
desses saberes depende de outros aspectos, oriundos das mais variadas
fontes: “[...] formação inicial e contínua dos professores, currículo e
socialização escolar, conhecimento das disciplinas a serem ensinadas,
experiência na profissão, cultura pessoal e profissional, aprendizagem
com os pares etc.” (TARDIF; RAYMOND, 2000, p.212).
Uma vez que os saberes dos profess ores são construídos no
exercício da própria profissão docente e, ao mesmo tempo, também se
constituem de conhecimentos e manifestações provenientes de fontes das
mais variadas, uma questão que se torna relevante diz respeito aos
elementos que permeiam esta prática e que possibilitam ao docente o
aprendizado do ofício, bem como a construção de uma identidade
profissional. A esse respeito, Tardif e Raymond (2000) colocam a
importância da inserção da dimensão temporal para melhor compreensão,
destacando dois aspectos importantes: a trajetória pré-profissional e a
trajetória profissional dos professores.
No que se refere à trajetória pré-profissional apontam que os
professores, de modo geral, aprendem o ofício e as questões a ele
inerentes, tais como: o que é ensinar, o que é ser professor e como se
deve ensinar, a partir de s ua própria trajetória de vida e, principalmente
de sua s ocialização 18 enquanto alunos. Quanto à trajetória profissional,
Tardif e Raymond (2000) colocam que os saberes dos professores são
temporais, na medida em que são utilizados e desenvolvidos no decorrer
de uma carreira, isto é, “[...] de um processo temporal de vida
18
Tar di f e R a ym on d ( 2 0 0 0) e nt e n de m a s oc ial i za çã o c om o u m pr oc e ss o d e f or ma ç ã o
d o i n d i v í d u o q ue s e e st e n de p or t od a a hi st ór ia de vi da e c omp or ta r u pt ur a s e
c on ti n u i da de s. A s oc ia l iz aç ã o pr é- pr of i ssi on a l a qu e se r ef er e m c o m pr ee n de a s
e x p er i ê nc i as f a mi l iar e s e e sc ol ar e s d os pr of e ss o r es.
159
profissional de longa duração no qual intervêm dimensões identitárias,
dimensões de socialização pr ofissional e também fases de mudanças”.
(p.217)
Desse modo, ao longo da carreira, o professor incorpora, por meio
de
processos
de
socialização,
determinadas
práticas
e
rotinas
institucionalizadas, as quais estão inseridas no cotidiano escolar e nas
equipes de trabalho. Tornar-se professor e construir uma carreira docente
requer saberes que ultrapassam as questões de ensino em sala de aula e
adentram pelos saberes práticos específicos aos lugares de trabalho, com
suas rotinas, valores e regras (TARDIF; RAYMOND; 2000 p.217). O
aprendizado do ofício docente, bem como a construção da prática
profissional,
pressupõe
saberes
que
decorrem
das
experiências
e
vivências anteriores à formação profissional deste professor, as quais
trazem marcas profundas dos saberes aprendidos ao longo de processos
de socialização primária (família e o ambiente de vida), como também
escolar (aluno).
O início da profissão: a carreira e a construção dos saberes
profissionais:
A história de vida pessoal e escolar do professor adquire um
significado especialmente importante no processo de aprendizagem do
ofício,
imprimindo
no
futuro
profissional
algumas
marcas,
conhecimentos, competências, crenças e valores que, de alguma forma,
delineiam traços a sua personalidade e as suas relações com os outros e,
especialmente,
com
os
alunos.
No
decorrer
da
profissão
e,
principalmente no seu início, essas marcas acabam sendo utilizadas em
sua a prática.
Não obstante, Tardif e Raymond (2000) indicam que o aprendizado
dos saberes docentes, embora fortemente vinculados ao tempo de vida
anterior a sua formação profissional, como também a aprendizagem do
próprio ofício, não pode abarcar, em sua totalidade, a complexidade do
saber profissional e do trabalho docente.
No que diz respeito à construção dos saberes necessários e a sua
profissionalização,
aspectos
inerentes
à
carreira
permitem
melhor
160
compreender
o
exercício
da
docência
a
partir
de
sua
trajetória
profissional. Para Tardif e Raymond (2000, p.225):
[ .. .] ab or da r a c ar r eir a , sit u a n d o- a na i nt er f ac e e ntr e
os a t or e s e a s oc u p a ç õe s e c on s i d er a n d o- a, a o me sm o t e m p o,
c om o u m c on s tr uc t o p si c os soc ial m od e l a d o p el a i nt er a ç ã o d os
in d i ví d u os e d os c ol et i vos oc u p ac i o n ai s, pe r m ite p er c e b er
me l h or o l u gar q ue o sa ber p r of i ssi on a l oc u p a n as tr a n saç õ e s
en tr e o tr a b a l h a d or e se u tr a ba l h o.
Em busca da profissionalização, outras perspectivas merecem ser
analisadas. Comecemos pela relação qualidade e excelência procurando
desfazer o equivoco instalado nesta relação, para então compreender que
excelência exige qualidade e esta significa critérios de bom desempenho.
Daí a expressão de Roldão (2007 p. 21):
O p on t o d e q ue p a rt o é as su nç ã o da ne ce s si da d e de u m
“r ef or ç o d a q u al i da de ” e de “ pr o m oçã o d a e xc e lê nc ia” n o q u e
se r ef er e a os pr of e s so re s e mu i t o par ti c ul a r me n t e a os
pr of ess or e s d os n í ve is i ni c i ai s de d oc ê n cia .
Também
pelas
experiências
acumuladas
da
autora,
de
pesquisadores e educadores em atuação, percebe-se uma outra questão,
embora haja um número bastante grande de professores com trabalhos de
qualidade,
ainda
não
há
uma
qualidade
global
de
desempenho
profissional satisfatória. Para eles isto se dá por diversas razões, dentre
essas a credibilidade profissional que se instala entre o primeiro e os
demais
ciclos
de
ensino
fundamental,
os
níveis
iniciais
e
os
subsequentes, quando se fala de educador da infância e de professores de
níveis mais avançados.
Outro aspecto é o que se refere à relação entre qualidade do
desempenho de professores e a própria noção de profissionalidade.
Segundo Roldão (2007) a falta de clareza acerca da função e a associação
desta a um saber específico, fizeram com que a lógica da formação se
limitasse ao exercício de preparação do docente para passar o saber
definido pelas sequências curriculares, sem muitas vezes considerar a
mobilidade desta ação integradora. Por essas razões é importante pensar
na mobilidade da ação docente no sentido de contribuir para a formação
do profissional de qualidade, que permite a construção de um saber
161
rigoroso, ativo e de significado. Deste modo, o exercício da função de
ensinar poderá se efetivar com autonomia, análise e iniciativas de
melhoria do próprio desenvolvimento profissional do docente.
Deve-se
ainda
considerar
questões
referentes
às
instituições
formadoras e às práticas de formação de professores e educadores, como
cumpridores
da
exigência
de
qualidade
científica
da
formação
(intelectual público), que foca a ação profissional de forma organizada e
promove o desenvolvimento da capacidade de conhecer, de pensar sobre,
e de agir fundamentadamente, imerso no contexto de trabalho. Assim
explicita Roldão (2007 p. 39-40):
E u d ir i a q u e o pr of e ss or t e m q ue ser t a m b ém u m
in te l ec t ua l, pr ofi ssi on a l de c ul t ur a , e ne s te m o me nt o nã o o é
– n e m os p r of e s s ore s d e pr i m eir o c i cl o o u se c u n dár i o. N ã o
te m os si d o a m e u ve r , pr of i s si on a i s de c u lt ur a ou d e
c on h e ci m e nt os . Q ua n d o m ui t o, s om os es p ec i al i sta s n u m a
ár ea , o q u e n ã o é eq u i va l e nt e a ser pr of is si on a l de
c on h e ci m e nt o e de c ul t u r a.
Pensando nesta perspectiva é relevante discutir alguns aspectos da
relação entre formação e trabalho docente com suas repercussões nas
instituições escolares; mais na sala de aula. Na visão de Pereira (2007),
há, nestes tempos, uma tendência recorrente em vários países, inclusive
no B rasil, de que os professores são os principais responsáveis pelas
mazelas da educação escolar e que para melhorá-la é necessário investir
unicamente na sua formação. Assim percebe:
[ .. .] Po u c o se f a la a re sp e i t o da ne c e ss i da d e da
me l h or ia da s c on d i ç õe s de tr a b al h o d os pr of e s sor e s, d es d e o
sa lár i o, a jor na da de t r ab al h o, a a u t on om i a p r of is si on a l , o
n ú me r o d e a l u n os p or s ala de a u la, até a s it ua ç ã o f í si ca d os
pr é d i os e sc ol ar es on d e tr a ba l h a m. (P E R E I R A, 2 0 0 7 p . 8 38 4) .
Esta ideologia, atrelada a outras, também presentes em nossa
sociedade, tende a responsabilizar a educação (ou a falta dela) por todas
as
desigualdades
nos
países
em
desenvolvimento.
Afirmam
os
economistas que para melhorar os índices de distribuição de renda e
162
promover a justiça social, racial e econômica é necessário investir na
educação, especialmente na formação dos professores.
Sabendo que não serão nem a educação e nem a formação dos
professores as únicas condições para transformar a sociedade, é de todo
modo indispensável considerar que sem elas também não acontecerão
mudanças significativas, pois esses aspectos são relevantes em nossa
realidade.
A definição do papel de professor possibilita, ao longo do tempo
de construção da profissão, adquirir conhecimentos que acabam por
permitir que os professores se distanciem de suas primeiras impressões e
experiências, como também dos programas, das diretrizes e das rotinas
escolares, embora continuem respeitando-os em termos gerais. Tal
distanciamento sinaliza para um caminho de domínio progressivo do
trabalho docente, o qual [...] leva a uma abertura em relação à
construção
de
suas
próprias
aprendizagens,
de
suas
próprias
experiências, abertura essa ligada a uma maior segurança e ao
sentimento
de
estar
dominando
bem
suas
funções.
(TARDIF;
RAYMOND, p.231).
Para os autores, a constatação de que a evolução da carreira é
acompanhada, geralmente, de um domínio maior do trabalho e do bemestar pessoal do prof essor no que diz respeito aos alunos e às exigências
da
profissão,
demonstra
claramente
a
relação
entre
os
saberes
profissionais e a carreira a partir de sua relação intrínseca com o tempo.
Um outro elemento fortemente atrelado à dimensão temporal e sua
relação com os saberes e o trabalho docente se refere a rotinização,
entendida como fenômeno em que [...] os atores agem através do tempo,
fazendo de suas próprias atividades recursos para reproduzir (e ás vezes
modificar) essas mesmas atividades. (TARDIF; RAYMOND, 2000,
p.234).
A estabilização e regulação, como características inerentes à
rotinização, possibilitam sua divisão e sua reprodução no tempo,
permitindo um controle da ação por parte do professor, baseado na
aprendizagem e na aquisição temporal das competências práticas. A força
e a estabilidade dess e controle não dependem de decis ões voluntárias, de
163
escolhas, de projetos, mas sim da interiorização das regras implícitas de
ação adquiridas com a experiência.
As rotinas, assim, ao tornarem-se parte constitutiva da atividade
profissional, trazem ao professor modos diversos de ser e de construir
sua personalidade profissional. É a partir daí, segundo Tardif e
Raymond (2000, p.234) que:
[ .. .] os s a ber e s
tr a ba l h o c on s tr uí d os
pr of iss i on a l a ssu m e m
ju s ta m e nte o a li c er c e
me sm o t e m p o, os
tr a ba l ha d or .
da h i st ór ia d e vi da e o s sa be r es d o
n os pr i m eir os a n o s d a pr át ic a
t od o o se u se nti d o, p o i s f or m a m
da s r ot i na s de aç ã o, p or q ue sã o, a o
f u n da m e nt os da pe r so na l i d a de d o
O contexto das políticas implementadas no Brasil:
Com o aumento dos programas que vêm promovendo a aquisição da
formação mínima exigida pela legislação educacional 2 para o exercício
da profissão, muito se tem criticado sobre os cursos de “formação
inicial” 3 . Apesar de serem destinados à preparação para a docência,
muitos destes têm demonstrado poucos impactos na mudança da prática
dos professores, uma vez que, a maioria deles, fundamenta-se em
modelos tradicionais, que concebem a educação escolar e o ensino
enquanto “transmissão de conhecimentos”, o que impede a transposição
para outras práticas. Como já mencionamos, tais modelos se identificam
com as exigências decorrentes das políticas econômicas que orientam a
racionalização de tempo e custos, apelando para a necessidade de
oferecê-los por meio de programas aligeirados, semi-presencias ou à
distância, em instituições que não são Universidades.
Surge assim, a partir da década de 1990, uma forte tendência de
priorizar a formação continuada, também denominada “em serviço”, cujo
objetivo está no oferecimento de cursos de atualização e “reciclagem”.
Analisamos esta política em relação às condições de trabalho dos
docentes nas escolas públicas, conclui-se que é praticamente impossível
conceber a escola como espaço de produção de conhecimentos e saberes.
2
Cf Dir etr ize s C urr ic u la r es Na ci o n a i s par a os C ur s os de P e d a g o gia
Se gu n d o P er e ir a ( 2 0 0 7 ) a c on t ec e m ui t o a n te s d a e ntr a da d os d oc e nt es e m c ur s os o u
p r o gr a ma s de e n si n o su p e r i or .
3
164
O professor passa, na verdade, a exercer o papel de mero “dador” de
aulas. (PEREIRA, 2007).
Pensando nas suas condições de profissional, percebe-se que,
apesar das várias modalidades de formação hoje postas enquanto
políticas públicas, sua identidade ainda é obscura e complexa: Normal
Superior? Pedagogia (licenciatura)? Especialização?
Tentando compreender tal complexidade, o autor refere-se a um
estudo realizado nos EUA, onde três agendas 4 disputam a hegemonia da
formação docente, duas baseadas na preparação técnica e uma terceira
concentrada nos valores coletivos, de solidariedade e de transformação
da sociedade também a partir da sala de aula. Por isso ele clama por
políticas de formação que, em parceria com as universidades possam
contemplar:
[ . ..] a esc ol a e n q ua nt o e s pa ç o d e pr od uç ã o de
c on h e ci m e nt os e q ue c on ce ba m os e d uc a d or es e n q u a nt o
in ve s t i ga d or e s de su as pr ó pr ia s pr á tic a s, an a l isa n d o,
c ole ti va m e nt e o u i n di vi d ua l me n te , e de u ma ma ne ir a ba st a nt e
cr ít ic a, o q u e ac on t e c e n o c ot i di a n o da e sc ol a e da sa la de
au la . ( P ER E I RA, 2 0 0 7 p . 8 9) .
Ainda discutindo a busca da qualidade e excelência o que temos
assistido, atualmente, é uma banalização desta formação s ob vistas da
qualificação e da aquisição de competências. Inspirada na reestruturação
industrial, a qualificação previa organizar e disciplinar o mercado de
trabalho para interpretar e guiar as evoluções dos sistemas de produção e
dos empregos. Assim, a certificação para legitimar a inserção no
mercado de trabalho se dava a partir da apresentação do diploma que
deveria ratificar as competências apreendidas. Atualmente, o ensino por
competências
não
profissionalização
se
deduz
automaticamente
dos
exige
mais,
consequentemente
a
saberes.
A
construção
de
competências coloca em xeque os conteúdos da formação, os métodos de
transmissão e a certificação pelo diploma. Identificado com o regime
taylorista, fordista, o sistema de competências tende a imprimir uma
visão estatística ao trabalho, a partir da produção em série e do
estabelecimento
4
de
hierarquias.
Em
decorrência,
a
definição
de
O aut or r ec or r e a os es t u d os de Z ei c h ne r ( 2 0 0 3 ) .
165
competências na educação passou a representar os novos modos de
produção que visam dinamizar e transformar a prática docente.
Há, entretanto, outras concepções para este sistema que, segundo
Hernandez (2000), devem ser pensadas de forma mais ampla, no âmbito
de um projeto social. Assim, ele concebe as competências como:
[ . ..] um c on ju n t o de sa be r e s e ca pa ci d a de s q u e os
pr of iss i on a is i n c or p or a m p or mei o da f or ma ç ã o e da
ex p e ri ê nci a, som a d os à c a pac i da de de i nt e gr á- l os, u t i liz á- l os
e tr a n sfe r i- l os e m di f er e n t e s s it u aç õe s pr o f is s i on a is.
( HE RN AN DE Z, 2 0 0 0 c it ad o e m R A MOS, 2 0 0 1 p . 7 9) .
Esta concepção permite-nos evidenciar uma dimensão atribuída ao
sujeito que se confronta com as ocupações para as quais ele mesmo
deverá desempenhar. A partir daí, o Estado e as organizações poderão
promover processos de formação capazes de oferecer tais competências,
tanto quanto avaliá-las e certificá-las. Assim concebida, a normalização
de competências passa a representar o processo de definição de um
conjunto
de
padrões
ou
normas
válidas
em
diferentes
ambientes
produtivos. Os currículos de formação poderão estabelecer as estratégias
para a construção dessas capacidades, focados em atividades que se
realizam nos contextos ou situações reais de trabalho.
Considerações finais
Considerando que estamos diante de um contexto de políticas
públicas para a formação de professores, e condições de trabalho que
apresentam indagações e incoerências, concluímos que é necessário
buscar o fortalecimento das propos tas de formação defendidas pelos
educadores, tentando estabelecer um programa de formação presencial
que não reduza a carga horária nas Universidades e Faculdades de
Educação. A sólida formação teórica e interdisciplinar, de unidade entre
teoria e prática fortalece o compromisso social, ético e o trabalho
coletivo na interligação entre formação inicial e continuada de todos os
educadores.
A nosso ver, direcionar o olhar para a temática do trabalho docente
e da aprendizagem de seus saberes a partir de sua inserção no tempo,
166
significa a possibilidade de desvelar aspectos significativos da profissão,
uma vez que se tornar profess or decorre de um longo processo de
socialização
que
envolve
experiências
e
vivências
inseridas
nas
trajetórias pré-profissional e profissional do indivíduo.
Estas trajetórias de vida constituem-se, de alguma forma, em
percursos formadores dos próprios docentes, contribuindo fortemente,
para a construção de sua identidade profissional, pois, como muito bem
colocam Tardif e Raymond (2000, p.239) [...] é apenas ao cabo de certo
tempo – tempo da vida profissional, tempo de carreira – que o eu
pessoal, em contato com o universo do trabalho, vai pouco a pouco se
transformando e torna-se um eu profissional.
REFERÊNCIAS
ESTEVES, Maria M. A Investigação enquanto estratégia de formação de
professores. In: ESTEVES, M.M. Contexto Geral da Formação de Professores. Lisboa:
Instituto de Inovação Educacional, 2002.
PEREIRA, Júlio E D. Formação de Professores, trabalho docente e suas
repercussões na escola e na sala de aula. Educação e Linguagem. Ano 10. jan/jun
2007. São Bernardo do Campo – SP.
RAMOS, Marise N. A institucionalização de sistemas de competência:
materialidade do deslocamento conceitual. In: RAMOS, M N. A Pedagogia das
Competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2001.
ROLDÃO, Maria do C. Formar para a excelência profissional – pressupostos e
rupturas nos níveis iniciais da docência. Educação e Linguagem. Ano 10. jan/jun
2007. São Bernardo do Campo – SP.
TARDIF, Maurice; RAYMOND, Danielle. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho
no magistério. Educação e Sociedade: revista quadrimestral de ciência da educação.
Campinas: SP: CEDES, n. 73, p. 209-244, dez. 2000.
TORRES, Rosa Maria. Melhorará a qualidade da Educação Básica? As estratégias do
Banco Mundial. In TOMMASI, L: WARDE, M J. & HADDAD, S. (org) O Banco
Mundial e as Políticas Educacionais. São Paulo: Cortez, 2000.
167
A FORMAÇÃO DE PROFE SSORES DE INGLÊS NUMA
PERSPE CTIVA CRÍTICO-REFLE XIVA: COMENTÁRIOS E
POSSIBILIDADES
P atr íc ia Di as Re i s FR I S EN I *
Resumo:
Este artigo discorre sobre a relação entre a análise do habitus e a
formação de professores numa perspectiva crítico-reflexiva e apresenta
uma análise das biografias de alunos ingressantes no curso de Letras
como um importante instrumento de pesquisa para professores em geral,
especialmente de Língua Inglesa e Prática de Ensino.
Palavras-chave: Habitus ; For mação Crítico-Reflexivo; Biogr afia.
TEACHER TRAINING ANALYSIS IN A CRITICAL-REFLEXIVE
PERSPECTIVE: COMMENTS AND POSSIBILITIES.
Abstract:
This article deals with the relation between the analysis of the
habitus and teacher training in a critical-reflexive perspective and
explores the biographies of Language Arts freshmen students as an
important research tool for teachers in general, mainly English and
Teaching Practice teachers.
Keywords: Habitus; Critical-reflexive training; Biography.
Introdução
A formação básica do professor de línguas no Brasil ocorre
fundamentalmente nos cursos de Letras-Licenciatura, por meio das
disciplinas ao longo dos semestres e, especificamente, das disciplinas
que enfocam a relação teoria e prática como as Práticas de Ensino e o
Estágio Supervisionado. Geralmente, a conclusão da graduação é vista
como uma suposta “comprovação” de que o aluno possui as exigências
mínimas para o exercício da profissão, ou seja, a competência inicial
(Wallace, 1991). Contudo, sabe-se que a obtenção do diploma de
graduação, como aponta Almeida Filho (2005), deve representar “apenas
o início de um esforço perene”, que pros segue na atuação dentro de sala
de aula, nos cursos de extensão, nas leituras, na freqüência a eventos
profissionais, na especialização, ou seja, no curso de toda uma vida
*
Mes tre e m E st u d os Li n gu í sti c os pel a UN E SP / S P e D oc e nte de Lí n gu a I n gl e sa e de
P r áti c a de E ns i n o d o c ur so de Le t r a s d o Ce n t r o Uni ver sit á r i o M ou r a Lac e r d a - SP .
168
profissional. Dessa forma, consideramos que essa constante busca de
aprimoramento e crescimento teórico-prático seja necessária para o
desenvolvimento da chamada proficiência profissional (Wallace, op.
cit.), considerada um processo contínuo e inesgotável na formação do
professor.
Por
fornecer
os
subsídios
básicos
que
possibilitarão
o
desenvolvimento do profissional pré e em serviço, a graduação, contudo,
deve ser tomada como um dos assuntos primordiais em pesquisas e
debates da área. No que tange sua grade curricular, as disciplinas
pedagógicas, isto é, Didática, Psicologia da Educação e Metodologia do
Ensino podem ser entendidas como espaços de articulação entre teoria e
prática docente e o Estágio Supervisionado como responsável pela
inserção do aluno-professor no mercado de trabalho. A Prática de
Ensino, por sua vez, tem passado por uma constante revisão de conteúdos
desde o surgimento da Lei 9394/96 (LDB), que determinava o mínimo de
300 horas para a disciplina 19, e por isso, é comum encontrarmos
propostas significativamente diferentes de uma instituição para outra.
Xavier e Gil (2004, p. 155), por exemplo, relatam recentes propostas de
reorganização curricular para o curso de Letras na UFSC que propõem
práticas de ensino distribuídas ao longo do curso, configuradas num
trabalho coletivo, supervisionadas e articuladas por meio de três
modalidades: como instrumento de integração do aluno com a realidade
social, econômica e o trabalho na sua área/curso, como instrumento de
iniciação a pesquisa educacional e ao ensino, e como instrumento de
iniciação profissional, junto às escolas ou outros ambientes educacionais
(Resolução nº. 001/CUN/2000 – UFSC).
Nessa proposta, as disciplinas de Prática de Ensino e Estágio
Supervisionado
passam
a
adquirir
objetivos
semelhantes
e
complementares. Ao mesmo tempo, é visível a necessidade de uma
organização
e
infra-estrutura
adequadas,
por
parte
da
ISE,
para
possibilitar a chamada “prática de ensino” e “inserção” do alunoprofessor no mercado de trabalho, o que inclui convênios com outras
19
A c on f i gu r aç ã o at u al é de 4 0 0 h o ra s.
169
instituições de ensino, propostas inter-disciplinares e de iniciação
científica, planejamento de cursos a serem ministrados pelos alunosprofessores, dentre outras atividades. Esses projetos, contudo, são de
difícil viabilização devido à carga horária cada vez mais reduzida dos
cursos de Letras no Brasil e à pouca disponibilidade de tempo por parte
do aluno-professor para a realização de atividades de campo.
Diante dessa situação, é importante que os professores-formadores
busquem maneiras de viabilizar da melhor forma possível, de acordo com
seu contexto, a verdadeira “prática de ensino” e “inserção” do aluno no
mercado de trabalho, uma vez que esses seriam um dos principais
instrumentos para o desenvolvimento das competências 20 no contexto da
formação pré-serviço e para a iniciação do aluno-professor no paradigma
reflexivo. Da mesma forma, todos os esforços que visem a melhorar o
aproveitamento do aluno-professor em sala de aula devem ser realizados
para que os alunos tenham cada vez mais condições de compreender as
origens e as conseqüências de sua ação pedagógica e, assim, estarem
mais preparados para enfrentar os desafios da profissão na atualidade.
O ensino de línguas no Brasil
Em meados de 1970, o ensino de línguas no Brasil sof re uma série
de reformulações quanto à sua metodologia e filosofia de ensino em
resposta ao crescente número de pesquisas ocorridas em lingüística,
pedagogia,
antropologia,
psicologia,
dentre
outras
áreas.
Nessa
perspectiva, o foco de observação deixou de ser o “ensino”, que visava a
internalização de formas linguísticas, para a “aprendizagem”, tendo a
observação do contexto de ensino como fator norteador das estratégias
pedagógicas em sala de aula. Seguindo esses pressupostos, a chamada
abordagem comunicativa de línguas se estabeleceu como um dos
principais paradigmas para o ensino de línguas no Brasil. Embora o nome
“comunicativa”
traga
associações
como
a
teoria
da
comunicação,
Almeida Filho (2002, p.42) define que, no contexto de ensino de línguas,
ser comunicativo significa “preocupar-se mais com o próprio aluno
20
Al me i da Fi l h o, J. C . P. ( 2 0 0 2).
170
enquanto sujeito e agente no processo de formação através de LE”, ou
seja, dar menor ênfase ao ensinar e mais força para aquilo que abre o
aluno a possibilidade de reconhecer nas práticas o que faz sentido para
sua vida. A questão da significação e relevância dos temas a serem
trabalhados em sala de aula também é bastante enfatizada nos PCNs de
Língua Estrangeira que preconizam o trabalho por situações temáticas e
áreas de conhecimento que, além de favorecerem a interdisciplinaridade,
propiciam uma prática contextualiza, mais interessante e motivadora para
o aluno.
No
início
dos
anos
oitenta,
é
possível
encontrar
alguns
pressupostos de uma Abordagem Comunicativa de Tendência Crítica
(Clark, 1987; Almeida Filho, 1993, 1999, 2005) que tem como um de
seus princípios o aluno como sujeito histórico cujos interesses e
necessidades constituem o ponto de partida para a orientação da prática
pedagógica. Ao mesmo tempo, assume-se que todo professor de línguas
age a partir de uma filosofia de ensino ou abordagem de ensinar que
abrange noções de língua e linguagem, língua estrangeira, ensinar e
aprender língua estrangeira.
Embora saibamos que a abordagem de ensinar do professor seja
construída ao longo de toda sua vida profissional, acreditamos que na
graduação, especificamente nas disciplinas de Prática de Ensino e
Estágio Supervisionado, é que são desenvolvidos os saberes teóricopráticos e as competências que podem transformar sua identidade e sua
relação
com
a
prática.
Dessa
maneira,
o
professor-formador que
compartilha de pressupostos comunicativos para o ensino de línguas
precisa desenvolver habilidades que lhe permitam maior controle s obre
sua prática e, consequentemente, melhor capacidade para se autoavaliar
profissionalmente.
O ensino de línguas em uma pers pectiva crítico - reflexiva
A maioria dos educadores sabe que a dis cussão sobre a formação
do profissional reflexivo não é um assunto recente nas pesquisas e
artigos da área. Contudo, há ainda uma variedade de opiniões a respeito
171
do que seria uma prática reflexiva. De acordo com Perrenoud (2002,
p.13)
u ma prá tic a r ef le x i va pr e ss u p õe u m a p os t ur a, u ma f or ma
de i d e nt i da de , u m ha b i t u s. Sua r e al i da de nã o é me d i d a p or
di s c ur sos ou p or i nt e n ç õe s, ma s pe l o l u gar , pe la n at u r e za e
pe la s c on s e q ü ê nc i as d a re f le x ã o n o e xer c íc i o c oti d ia n o da
pr of iss ã o, se ja e m si t ua çã o d e cr i se ou de f r a c ass o s e ja e m
ve l oc i da de d e cr u z e ir o.
Na visão do autor, a prática reflexiva é uma “relação com o
mundo”, que deve ser, de alguma forma, ativa, crítica e autônoma e, para
isso, o professor deve buscar, dentre outras coisas, uma reflexão na ação
e sobre a ação. Refletir na ação seria o mesmo que refletir durante o
processo, o que pressupõe um olhar atento para a situação, seus
objetivos, meios, contexto de atuação e possíveis consequências de suas
ações. A reflexão sobre a ação, por sua vez, reflete o momento póstumo à
aula em si, no qual o professor busca compreender melhor o que
aconteceu por meio uma análise crítica de suas ações.
Uma postura semelhante leva-nos a buscar sentidos globais do
próprio ensino, assim como desenvolver uma sensibilidade e uma noção
de responsabilidade para discernir em que momentos e com quais de seus
alunos poderão trabalhar uma ou outra estratégia, dentro do vasto campo
de propostas metodológicas que constituem as abordagens. O professor
reflexivo também necessita estar sempre em contato com leituras,
buscando compreensões novas acerca da complexidade dos processos de
ensinar e aprender línguas. Autores como Barlet (1998 apud Almeida
Filho, 2005) sugerem etapas para reflexão, propondo cinco fases nãolineares: Mapear (o que faço como professor? ), Informar (qual o
significado do meu ensino? ), Contestar (como emergiu este fazer?),
Avaliar (como ser diferente do que sou? ) e o Agir (como posso atuar na
prática?). Essas tentativas de sistematizar o processo reflexivo, embora
sejam válidas, são questionáveis por apresentarem um caráter condutor e
reducionista. É preciso entender que a capacidade de avaliação crítico reflexiva da ação pedagógica não é facilmente desenvolvida por exigir
movimentos introspectivos, proativos e retroativos que se caracterizam
172
de forma diferente e particular de acordo com a formação e a história de
vida do indivíduo. Na opinião de Almeida Filho (2005, p. 73), “nem
sempre o professor tem os pré-requisitos atitudinais e afetivos que lhe
permitam esse auto-olhar examinador” e, por isso, pode se enganar
pensando ter chegado ao ápice de sua formação, protegendo-se da
“ameaça” que uma postura mais aberta representa. Além disso, como
aponta Perrenoud (p. 142-3), devemos considerar que qualquer ação
complexa, embora aparentemente lógica ou técnica, só é possível à custa
de mecanismos inconscientes aos quais nunca poderemos ser acesso
total. Um dos caminhos para esse dilema, como sugerem autores como
Moita Lopes (1996) e Vieira-Abrahão (1999), seria a proposição de
pesquisa-ação
com
o
objetivo
de
incentivar
o
professor
como
investigador de sua prática ou trabalhar com a prática reflexiva
envolvendo professores em formação. Toda propos ta que vise ao
desenvolvimento de uma prática reflexiva durante a graduação, contudo,
deve propor formas de análise do habitus que, de acordo com Bourdieu
(1972, p. 209), representa “um pequeno grupo de esquemas que permitem
gerar uma infinidade de práticas adaptadas a situações que sempre se
renovam
sem
nunca
se
constituir
em
princípios
ativos
(op.
cit.
Perrenoud, 2002). Esses tipos de exercícios podem levar à tomada de
consciência pelas partes envolvidas, ou seja, o reconhecimento de alguns
desses esquemas (muitos deles inconscientes) que subjazem as ações
pedagógicas
de
alunos-professores
e
profissionais
em
serviço
no
exercício da profissão. O reconhecimento desses esquemas, contudo, não
implica no apagamento imediato das rotinas antigas, porém possibilita
uma
melhor
transformações
compreensão
no
s obre
indivíduo,
si
e
por
isso
consequentemente,
pode
em
sua
encadear
prática
pedagógica. Algumas atividades que podem desempenhar um papel
importante no desenvolvimento e na análise do habitus são os estudos de
caso, as microaulas e a observação de aulas reais seguida de avaliação e
debate, atividades muito comuns em Universidades brasileiras.
O habitus, embora esteja perpassado pelo inconsciente, também
pode ser melhor compreendido se buscarmos formas de explorar o que
Almeida Filho (2002) chama de competência implícita, ou seja, as
173
experiências pessoais, crenças e pressupostos que o aluno-professor traz
sobre o processo de ensino/aprendizagem de línguas no período inicial
de sua formação. Para ilustrar essa afirmação, apresento, a seguir,
algumas representações de um grupo de alunos ingressantes em um curso
de Letras de um Centro Universitário do interior paulista, identificadas a
partir de textos biográficos desenvolvidos com a orientação do professor
de Prática de Ensino. A análise das biografias desses alunos revelou
informações importantes para a prática docente, por parte do professor e
para o processo de formação do aluno em uma perspectiva crítico reflexiva.
Análise das biografias dos alunos
Perfil do aluno
A análise das biografias dos alunos revelou o que não é novidade,
ou seja, o aluno que ingressa no ensino superior em instituições
particulares é, em geral, proveniente de escolas da rede pública e
municipal e teve contato com a língua inglesa predominantemente nesses
contextos (Quadro 1).
Qu a dr o 1
C ont e xt o
E n si n o f u n d a me nta l e m éd i o da r e de p ú b l i ca e m u ni ci p al.
E n si n o f u n d a me nta l e m éd i o pa r ti c ul ar
Al un o s
90%
10%
Dos alunos provenientes de escolas da rede pública e municipal,
constatou-se que apenas 2% tiveram oportunidade de frequentar algum
curso de inglês em escolas de língua e o mesmo número foi obtido no
grupo de alunos que freqüentaram escolas particulares de ensino
fundamental e/ou médio. Esses dados são importantíssimos não só para o
professor de Prática de Ensino como para o professor de Língua
Estrangeira que, conhecedor desses dados e dos problemas decorrentes e
políticas sociais e educativas equivocadas 21, pode ter um parâmetro para
orientar suas ações dentro e fora da sala de aula.
21
P ar a u ma vi s ã o a t u a li za da d os p r i nc i pa is pr ob le ma s vi v e n cia d o s p e l o pr of e ss or n o
E n si n o f u n da m e nta l e Méd i o n o Br a s il, ler Za gu r y, T . ( 2 0 0 6)
174
Uma constatação interessante foi o fato de que grande parte dos
alunos iniciantes, embora tenha relatado experiências negativas com a
língua estrangeira no ensino fundamental e médio (item 2.3) e assumido
seu conhecimento da língua inglesa como “fraco” (100%), 91% desses
alunos se apresentam motivados no primeiro ano de faculdade, como
podemos observar nos seguintes extratos:
“tenho muita vontade de aprender” (2);
“sei que não é fácil, mas tenho força de vontade” (3);
“tornar-me uma professora bilíngüe é objetivo da minha vida, meu ideal”
(4);
“sempre me interessei pela língua” (5, 8, 9, 10);
“me acho preparada para as novas oportunidades de aprendizagem que
vêm por aí” (6);
“aprender inglês para mim é um sonho” (3, 8);
“falar inglês me faria uma pessoa importante” (8);
“disposto e ansioso para aprender” (11).
Essa motivação, como já foi observada em pesquisas anteriores, 4
pode surgir de diferentes maneiras como, por exemplo, do “glamour” que
o falante de língua inglesa possui na sociedade atual e da sensação de
poder que o “domínio” da língua pode trazer ao indivíduo (3, 8) e,
talvez, por motivos s emelhantes possamos entender porque alguns alunos
chegam a colocar a proficiência como “o objetivo de suas vidas”. De
qualquer forma, independente das origens dessa motivação, os dados
mostram um elevado potencial de comprometimento desses alunos na
aprendizagem da Língua Inglesa no estágio inicial de um Curso de Letras
e esse potencial precisa ser aproveitado da melhor forma possível pelos
professores.
4
C or a ci n i, M. J . I de n ti d a de e D i sc u rs o. C a mp i n as: E di t or a da U nic a mp , 2 0 0 3.
175
Expectativas para o curso
O aluno iniciante, em geral, tende a enxergar a faculdade como sua
“tábua de salvação”, ou seja, o único responsável pelo seu sucesso ou
insucesso profissional. Essa constatação pode ser comprovada nos
seguintes extratos:
Frequento a faculdade para...
“me tornar um bom professor” (11);
“fazer um papel bonito como professora, saber ensinar, saber aprender”:
(1);
“aprender a falar (dominar) o inglês”: (2, 7, 3);
“que no final do curso eu saiba como conversar, ler e escrever e até
entender a pronúncia de outras pessoas” (5);
“poder morar no exterior” (9).
Essa visão equivocada da faculdade como a única responsável pela
“boa” formação do aluno no Curso de Letras pode ser um problema se
não for desconstruída nos estágios iniciais do curso, pois sabe-se que
essa crença também é responsável pela desmotivação dos alunos nos
estágios finais do curso, uma vez que constatam que essa “formação
ideal” não ocorreu da forma que previam. Cabe a todos os professores e,
principalmente, ao professor de Prática de Ensino, mostrar o papel do
aluno no processo de formação, o qual não termina com a graduação, mas
a
tem
como
ponto
de
partida
para
o
crescimento
profissional
fundamentado teoricamente.
Descrição da experiência
As experiências relatadas pelos alunos na aprendizagem da língua
inglesa nos ensinos fundamental e médio seriam preocupantes para os
professores da IES em questão se não fosse a motivação dos alunos já
relatada anteriormente. Os relatos des creveram um ensino de língua
fundamentado
na
leitura
e
descrição
gramatical
e
professores
desmotivados, como mostram os extratos seguintes:
176
“só estudei tabelas de verbos, tradução e interpretação de textos” 1, 9;
“falta de interesse por parte dos professores” 2, 11;
“a pior pessoa que eu poderia encontrar (...) minha primeira professora
de inglês” (5);
a professora era péssima, mal humorada e sem paciência de ensinar”
(10).
Muitos alunos relatam esse contexto como o responsável pela
desmotivação dos mesmos com relação ao aprendizado da língua nessas
instituições:
“com o passar do tempo tudo (a língua inglesa) foi se tornando cada vez
mais sem importância (...) (4,5,9);
“perdi totalmente o interesse de aprender (inglês)” 8.
Os únicos alunos que relataram experiências positivas com a
língua as atribuíram aos professores:
“ótima professora que me fez apaixonar pela língua” (3);
“nunca esquecerei dessa professora que fazia brincadeiras” (7).
È interessante observar nos relatos que os professores que
marcaram esses alunos tinham uma ótima capacidade de manter um “bom
relacionamento” em sala de aula com os alunos, o que reforça a
importância da manutenção do filtro afetivo 5 como uma variável
importante no ensino da linha estrangeira.
Ações valorizadas pelos alunos
Os textos dos alunos revelaram informações coerentes com relação
aos “atributos” do bom professor de inglês. As práticas mais valorizadas
pelos alunos que participaram deste estudo foram:
5
Kr a she n, S. D. ( 1 9 8 7) .
177
“trabalhar conversação”, “o que o aluno realmente necessita para o
mercado”: (1, 8);
“ensinar a ler, ouvir, falar e escrever em inglês”: (5, 9);
“abordar assuntos do dia a dia” (9);
“ter dedicação, amor e paciência”: (3);
“o bom professor auxilia o aluno e acaba se tornando um grande amigo”
(10, 11);
“ter dinamismo e empatia” (1);
“trabalhar música”: (5, 6);
“fazer brincadeiras, teatros”: (6).
Foi surpreendente observar que o aluno ingressante já poss ui
conhecimento das quatro habilidades necessárias ao ensino da língua
inglesa, ou seja, a produção oral e escrita, a leitura e a compreensão
auditiva, embora ainda não esteja muito claro como se deve trabalhá-las
em sala de aula. Embora todos os alunos participantes dessa pesquisa
tenham mencionado a importância de um professor carismático e capaz
de motivar o aluno com atividades interessantes e atreladas a situações
reais, nada foi dito sobre as responsabilidades dos mesmos (alunos) para
a manutenção do “bom relacionamento” e da “motivação” em sala de
aula. Esses dados revelam que os alunos ingressantes no Curso de Letras
que participaram deste estudo, mesmo não tendo acesso às melhores
condições de ensino/aprendizagem de língua estrangeira nos ensinos
fundamental e médio, já apresentam uma opinião consistente com relação
ao processo de ensino/aprendizagem de língua estrangeira e, por esse
motivo, talvez, se mostram exigentes na avaliação dos professores. Falta,
porém, maior conscientização do aluno sobre o seu papel nesse processo.
Considerações Finais
Informações sobre o perfil do aluno, suas expectativas com relação
ao curso e à atuação do professor, assim como suas experiências em
outras instituições são dados importantes para todos os professores em
um curso de Letras, em especial para os professores de Língua Inglesa,
Prática de Ensino e Estágio Supervisionado porque nos ajudam a
178
compreender muitas das posturas e atitudes dos alunos em sala-de-aula,
servem de ponto de partida para observações e análises das práticas
pedagógicas
dos
mesmos
e
assim
nos
ajudam
a
construir,
mais
facilmente, experiências que levem o aluno à chamada “formação critico
- reflexiva” em um contexto pré-serviço.
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180
PODER MIDIÁTICO E POLÍTICA INTERNACIONAL
Carla A. Arena VENTURA*
Jailane LEAL**
Resumo:
A relação entre a mídia e a política é algo já consolidado na
sociedade atual, e os meios de comunicação em massa são amplamente
utilizados para exprimir os discursos políticos. No que se refere à
influência midiática na política, nota-s e que ademais das mensagens
subliminares, os políticos adotam a presença de ideologias em seus
discursos, para que esses tenham um caráter lógico, de forma a
convencer o receptor da mensagem de que o exposto é condizente com a
realidade.
Palavras-chave:
subliminar
Mídia;
Política;
Discurso;
Ideologia;
Mensagem
COMMUNICATION POWER AND INTERNATIONAL POLITIC
Abstract:
The relations hip between media and politics is already
consolidated in actual society, and the mass communication is very much
utilized to express politics’ speech. The media influences the politics,
and besides the subliminal messages, the politicians use ideologies in
their speech in order to be logical and convince the listener that the
message is tuned into the reality.
Keywords: Media, Politics, Speech, Ideology; Subliminal message
A mídia se firmou em nossa sociedade como um mecanismo
mediador entre os cidadãos e os fatos. A cada dia as pessoas sentem
maior necessidade de se manterem informadas, como se desta maneira
acreditassem ser parte ativa dos acontecimentos transmitidos pela mídia,
por intermédio dos meios de comunicação em massa. Desta forma,
compreende-se como mídia o conjunto de meios de comunicação em
massa que possuem como função básica informar a sociedade a respeito
dos mais diversos assuntos, e dentre eles encontra-se a política.
*
Pr of e s sor a d os C ur sos de R el aç õe s In t er na ci on a i s e Dir ei t o d o Ce n t r o Uni ver sit á r i o
M ou r a La cer d a.
**
B a c ha re l e m Re l aç õe s I n te r na ci on a i s pe l o Ce n tr o Un i ver si t ár i o Mou r a La ce r d a .
181
No entanto, as informações transmitidas pela mídia não são apenas
descrições
de
manipuladas,
acontecimentos,
de
f orma
visto
intencional
que
ou
essas
não,
informações
pelos
jornalistas
são
e
comunicadores de uma maneira geral. Assim, ao alcançarem o público,
elas já estão descontextualizadas, na medida em que trazem consigo as
ideias e a subjetividade de um determinado indivíduo ou organização,
pois muitas vezes es tes indivíduos ou organizações usam da mídia para
persuadir
o
público
em
função
de
uma
causa
ou
de
interesses
particulares.
No que concerne à política, observa-se que os meios de
comunicação em massa podem influenciar de maneira extremamente
perspicaz a sociedade no tocante ao cenário político de um Estado, visto
que são os responsáveis pela transmissão dos discursos políticos. Nas
palavras de Bittar (2000, p.54), “a política está, cada vez mais,
dependente da propaganda. Essa constatação é cara à teoria política à
medida que se instaura um vírus no elo entre eleitores e eleitos: a
comunicação de massa”. Entretanto, a influência da mídia na política não
se limita ao território dos Estados Nacionais, pois as relações entre os
países estão em um constante processo de estreitamento, devido,
principalmente, ao estabelecimento do capitalismo como modelo de
produção, praticamente mundial. Assim, a difusão do capitalismo não
transformou apenas o campo econômico dos países, como também
modificou o alcance de suas ações políticas. Na atualidade, uma certa
decisão de um Estado pode não interferir somente dentro de suas
fronteiras, mas pode atingir também, de forma direta ou não, outros
países, como se as relações entre os Estados sofressem um movimento
em cadeia.
Já os discursos políticos, por sua vez, usam de algumas estratégias
para poderem conf erir um caráter de realidade ao que está sendo
expresso, e é neste aspecto que consiste a importância de um estudo
sobre a influência da mídia na política, ou seja, um estudo como este
faz-se importante para tornar mais claro aos cidadãos os elementos de
persuasão contidos nos discursos políticos. Mais alerta sobre este fato,
os cidadãos, diante de um assunto pertinente a questões políticas, podem
182
manifestar sua opinião da maneira mais consciente possível, reduzindo o
poder de manipulação midiático.
É importante salientar que, apesar de a mídia haver ser firmado de
forma definitiva primeiramente em países ocidentais, hoje ela é um
fenômeno presente também nos países orientais, e os acontecimentos das
últimas
décadas
envolvendo
países
ocidentais
e
orientais
foram
largamente explorados por meios de comunicação em mass a. No dia 10
de maio de 2006, o jornal “Folha de São Paulo” publicou uma carta
enviada pelo presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, ao presidente
americano George W. Bush, na qual o presidente iraniano questiona o
governo dos Estados Unidos da América a respeito de diversas questões
relativas a conflitos entre o ocidente e o oriente e, em um determinado
trecho
da
carta,
também
faz
menção
ao
procedimento
da
mídia
internacional na ocasião da Guerra do Iraque, bem como ao papel
fundamental que a mídia desempenhou para que a opinião pública
internacional fosse, a princípio, favorável à guerra. Este fato confirma
tanto a ideia de a mídia ser um veículo pelo qual a sociedade toma
conhecimento do que ocorre no cenário internacional, visto que a “Folha
de São Paulo” é um periódico nacional brasileiro, quanto a ideia,
enfatizada por Ahmadinejad, de que a mídia possui grande poder de
influenciar a opinião pública internacional.
Com a finalidade de melhor compreender a influência da mídia
na política, este estudo qualitativo, de tipo estudo de caso, conta com
dados secundários obtidos por meio de revisão de literatura sobre o tema,
e é dividido em quatro tópicos. O primeiro refere-se a uma análise da
relação entre a mídia e o imaginário popular, visto que a influência
mídiática se dá muitas vezes de forma subliminar, o que a faz possuir
grande participação na formação do que a sociedade considera como
“realidade”, sem que esta influência seja percebida conscientemente. O
segundo é uma descrição histórica do termo “ideologia”, necessária para
embasar a discussão pertinente ao tópico três, no qual é realizado um
paralelo com o primeiro tópico, onde é exposta a relação entre a
manipulação inconsciente exercida pela mídia e os process os ideológicos
contidos nos discursos políticos. No quarto tópico, com o intuito de
183
exemplificar a maneira pela qual a mídia pode manifestar grande
influência na política de um Estado, são relatadas duas situações da
História nas quais governantes utilizaram incisivamente esta influência
em prol de suas causas, fazendo uso massivo da presença de ideologias
em seus discursos.
A Mídia como Formadora do Imaginário Popular
A mídia possui a capacidade de interferir sobremaneira na
sociedade, porém constantemente esta interferência não se manifesta
apenas
na
esfera
racional,
por
meio
dos
discursos
ou
debates
apresentados nos meios de comunicação em massa, mas na maioria das
vezes ocorre em nível subliminar, ou inconsciente, em uma linguagem
psicanalítica.
Ferrés (1998) analisa como os meios de comunicação em massa
conseguem sobrepor-se à capacidade racional do homem, a partir do
momento
em
que
usam
de
apelos
emocionais
para
incutir-lhe
determinada ideia, fazendo assim com que a liberdade de escolha do
indivíduo
na
esfera
racional
seja
debilitada.
Neste
contexto,
o
mencionado autor (1998, p. 23) afirma que “(...) do ponto de vis ta das
comunicações persuasivas, é no âmbito das emoções onde entram em
crise os mitos da liberdade e da racionalidade”.
Dentre os meios de comunicação em massa, pode-se considerar
que a televisão é o que mais diretamente atinge a sociedade, tanto pela
quantidade de aparelhos de televisão hoje disseminados, quanto pela
facilidade com que o público acompanha o que é transmitido, devido ao
tipo de linguagem utilizada neste meio de comunicação, muitas vezes
superficial. Além disso, as imagens televisivas exercem notável fascínio
nos indivíduos, fazendo-os crer que aquilo que observam é exatamente
uma transcrição do mundo real.
U m d os ma i or e s i m pe d i me n t os pa r a a lc a n çar a
l u ci d ez na a ná li se d os ef ei t os d a t ele vi sã o é
p re ci sa me nt e a c on vic çã o a b sol u t a na r a ci on a l i d a d e
h u ma n a e, e m c on s e q üê n c ia, o d e sc on h e ci m e nt o d os
me c a n is m os e m oc i on a is, c om f r e q ü ê nci a i r r ac i on a i s, ou
p e l o me n os n ã o r a c i on a i s, m e dia n te os q u ai s a p es soa é
a f et a da pe l os me i os de c omu n i c a çã o ( FE R RÉ S, 1 9 9 8,
p . 1 7) .
184
No atual momento da sociedade ocidental, em que se prezam os
regimes democráticos e a liberdade individual, há uma hipotética livre
escolha dos cidadãos em relação ao que apreendem do que é transmitido
nos meios de comunicação em massa. Isso se deve ao fato de que a livre
escolha dos cidadãos é subjugada por artifícios de persuasão que não são
facilmente percebidos no ato da recepção da mensagem. Sobre o apelo
emocional e consequente poder de influência sutil que a mídia exerce
sobre os cidadãos, Ferrés (1998, p.15) afirma que:
Nas
de m oc r a ci a s
oc id e nt a i s,
há
esc a ssa s
l i mit a ç õe s f í s ica s à s li be r d a de s i n d i vi d u a i s, ma s sã o
s u b st it uí d a s p or pr e s s õe s s u ti s, ma i s so fi s tic a da s,
me n os c on sc ie n te s. N ã o c ost u m a m ser l i mit a ç õe s
f ís ica s, ma s si m p sí q ui c as. N ã o at ua m s ob r e a d e c is ã o
d e ma n eir a dir et a , m e di an te a ob r i ga çã o ou a p r oi b iç ã o,
ma s de m a nei r a i n di r et a , p re ssi on a n d o c om pr o me ssa s e
a me aç a s vel a da s. A s l i mi ta ç õ es à li b e r da d e pr o vê m
se gu i d a me n te da i n d uç ã o ma is ou me n os i na d ve r ti da de
d e se j os e te m or e s. U ma c oi sa é i m p e dir o i n d i ví d u o d e
a gir c on f or me s ua v on t a d e e ou tr a é c on d i c i o nar s ua
v o n t a de p a r a q u e a ja c o nf or me se de s e ja.
Neste sentido, o processo persuasivo dos meios de comunicação
em massa não se manifesta apenas quando relacionado às transmissões
jornalísticas, aos debates pertinentes a assuntos de essencial interesse da
sociedade ou mesmo aos discursos políticos, mas sim manifesta-se,
diversas vezes, desde os relatos, que são narrativas nas quais não se
observa a intenção clara de dissuadir a opinião pública. Ferrés (1998,
p.13) refere-se a este fato ressaltando que, “tende-se a considerar que o
que mais influi da televisão são os discurs os, enquanto que a televisão
influi principalmente desde os relatos”. Ainda sobre este aspecto do
poder de influência dos meios de comunicação em massa, Peterson e
Rivers (1966, p.235) afirmam que:
O
c on te ú d o
i nf or m ati v o
d os
me i os
de
c omu n i c açã o é, pr o va ve l me n te, ma i s i nf l u e nt e d o q ue os
r e c on h ec i da me nt e p er s u as i v os. E m ou tr a s pa la vr a s, a s
r e p or t a ge n s n ot ic i o sa s p od e m te r u ma f or ça de f or m aç ã o
d a s at i t u d e s p ú b lic as m ai or d o q ue a d os e d it o r iai s e a
d a s c ol u na s p ol í ti ca s.
185
Alguns autores, a exemplo de Sodré (1987), Calazans (1992) e
Ferrés (1998), analisam este poder de persuasão midiático por uma
perspectiva da psicologia. Para Calazans (1992), o processo que a mídia
desempenha no sentido de persuadir a sociedade assemelha-se ao que ele
chama de “guerra psicológica”, que se relaciona a uma tentativa, por
parte de exércitos inimigos, de afetar a saúde mental dos oponentes,
abalando de maneira subliminar o moral das tropas e deixando os
inimigos mais vulneráveis emocionalmente, de forma a ficarem mais
facilmente manipuláveis. Sobre a “guerra psicológica” travada pela
mídia em relação ao público:
... p od e- se a p l icar al gu n s c on c ei t o s da gu e r r a
p si c ol ó gi ca à s ar ma s s u bl i mi n ar e s h o je di s p on í vei s.
M a ni p u la n d o cr e n ç as , est a f or m a de e n ge n h a ri a d e
e moç õ e s or i gi n a l me n t e v i sa va a br e via r os c onf li t os
f ís ic os . At u al m e nte , t r a va- se u m a c on s t a nte gue r r a
p e la s i d é ia s ( . . .) . Lu t a m p or p re va le c er m od os de vi da ,
i d e ol o gi a s, re li gi õ e s, pa r ti d os p ol ít ic os e m ar ca s
c ome r c ia is e m u ma me n t e n a q ua l h á p ou c o e s p aç o p ar a
t a nt os si gn os c on c or r e nt es ( C A LA Z A N S, 1 9 9 2, p. 8 1
Ferrés (1998) constata que os meios de comunicação em massa,
principalmente a televisão, conseguem inclusive modificar o que ele
chama de “esquemas mentais” dos cidadãos, que dizem respeito à forma
como os indivíduos pensam a realidade. Sobre este tópico, Ferrés (1998,
p.32) explica que:
A i nf l uê nc ia d a t el e vi sã o se ma nif e sta p or s ua
a çã o n o pr oc e s so de c on str u çã o da r ea li d a de e d a
r e el a b or aç ã o d os e s q ue ma s d e s de os q ua i s s e i n t er pr e ta
a r ea l i d a de. Se é n o t á ve l a i m p or tâ n cia da t el e vi s ã o
q u a n d o r ef or ç a ou q ua n d o m od i f i ca es q u e ma s me nt ai s
p ré vi os, se r á m ui t o ma i s q u a n d o pr op or c i on a a p r i me ir a
i n f or maç ã o so b re r ea li d a d es , pe s so a s, i ns ti t ui ç õ es ou
v a l or e s.
No entanto, Sodré (1987) adverte que não se deve adotar uma
postura
de
exacerbada
relutância
ante
o
fenômeno
da
influência
subliminar exercida pelos meios de comunicação em massa, aos quais ele
denomina mas s-media 1, principalmente a influência desempenhada pela
televisão, pois acredita que este process o representa uma manifestação
social. Assim, a própria sociedade seria a geradora do espaço necessário
1
De a c or d o c om S od r é ( 1 9 8 7) , M a ss é u m a pa la vr a de or i ge m la ti n a , q ue si gn if ic a
“ ma ss a”, e m e di a é o pl ur a l da pal a v ra la ti n a m ed i um , “ me i o”.
186
para a mídia manifestar sua influência. A este poder de manipulação da
realidade elaborado pela televisão, o autor confere a denominação de
“telerrealidade ” :
A ela b or aç ã o d a ca te g or ia te l e rre a li d a d e n ã o
d e c or r e de n e n h u ma p os iç ã o pa r a n ói d e q ua n t o à
i n fl uê n ci a d os m ei os d e i nf or ma çã o n a s oc ie da d e
c on te m p or â nea , p or q ue nã o se tr ata de c ol oc a r de u m
l a d o o m e di u m ( tel e vi sã o, jor n a l e tc. ) c om o u m p ól o
ma n i p u l at i v o, e d o ou t r o a soc i e da d e c o m o l u gar d o
a c on te c i me nt o e f et i va men t e h ist ór i c o. Tr a ta - se , si m, d e
a val ia r a i nt e gr aç ã o, u ni f ic a çã o e vi nc u l aç ã o da s
o r ga n iz aç õe s i nf or ma t i va s ( da s te lec omu n i c a çõ es a o
m as s- me di a ), a ssi m c om o a pe r m ea b il i da de da s var ia d as
i n sti t u i ç õe s so c ia i s às f or ma s g er a da s p el a m od e r na
i n f or maç ã o ( SOD RÉ , 1 9 8 7, p . 4 1) .
No caso específico da influência midiática na política, nota-se
que a manifestação de ideologias é uma constante nos discursos políticos
transmitidos pelos meios de comunicação em massa, sendo que essa
presença pode se dar de forma inconsciente, tanto para os receptores da
mensagem quanto para seus transmiss ores. Entretanto, antes que se faça
uma análise das razões para este fenômeno, é necessário uma maior
compreensão do histórico do termo “ideologia”, o que é relatado na
sequência.
Histórico do Termo “Ideologia”
Em síntese, a ideologia possui como f unção caracterizar como
natural o que é produzido social e historicamente por um grupo
específico de cidadãos, para justificar uma dada realidade social. Porém,
a princípio, este termo era compreendido de uma maneira totalmente
contrária ao sentido que hoje possui. O termo “ideologia” surgiu em
1801, na França, criado por Destutt de Tracy, juntamente com os
pensadores De Gérando, Volney, Garat, Daunou e o médico Cabanis, e
apareceu relatado pela primeira vez em um livro de autoria de Tracy
chamado Eléments d’Idéologie. Inicialmente, o termo referia-se à
tentativa de sistematizar uma ciência da origem das ideias, partindo da
hipótese de que eram fenômenos naturais, e que nasciam da interação
entre as sensações e a percepção humana em relação ao Meio Ambiente.
187
Estes pensadores passaram a ser conhecidos como “ideólogos” a
partir de 1796 e eram antiteológicos, antimetafísicos e antimonárquicos,
ou
seja,
repudiavam
qualquer
explicação
sobre
a
origem
dos
acontecimentos que não fosse explicável a partir de fenômenos naturais e
observáveis pelo próprio ser humano. Em realidade, os ideólogos eram
materialistas, o que significa que apenas aceitavam conhecimentos
científicos experimentais, baseados na observação, análise e síntese de
um determinado fato.
O c on ce it o de i de ol o gi a f oi c r ia d o p or De st t ut de
Tr ac y, f i l ó sof o f r a ncê s, n o f i nal d o s éc u l o X V I I I. T ra c y
t i n ha c om o p r e ss u p ost o q u e a s i d é ia s n ã o p od e ri a m se r
c omp r e e n d i da s c o m o se p oss u í sse m vi da pr ó pr ia .
Se g u n d o e le, a i de ol o gi a de ve ri a se r c o mp r ee n d i da
c omo “ c i ê nci a d as i d é i a s”, a s se mel ha n d o- se à s ciê nc ia s
n a t ur a is ( TO MA Z I e t a l , 2 0 0 0, p. 1 8 0) .
Durante o “Golpe de 18 Brumário” 2, os ideólogos franceses
aliaram-se a Napoleão Bonaparte, pois julgaram que Bonaparte manterse-ia adepto ao liberalismo 3, e que daria prosseguimento à modificação
social que vinha sendo instaurada desde a Revolução Francesa 4. No
entanto, ao alcançar o poder, Bonaparte governou de forma muito
semelhante à antiga monarquia, o que os ideólogos não aceitaram. Desta
forma, os ideólogos franceses voltaram-se contra Bonaparte e passaram a
pertencer
ao
partido
da
oposição.
O
sentido
negativo
do
termo
“ideologia” data desta época, pois Bonaparte, em um discurso ao
Congresso de Estado em 1812, rechaçou a ideologia como ciência. Chauí
(2001, p.27) transcreve o discurso de Bonaparte:
“ T od a s a s d esgr a ça s q ue a fl i ge m n os sa be la
Fr a nç a d e ve m ser a tr i b u íd a s à i de ol o gi a , es sa te ne br os a
2
Pa r a Ga x ot t e ( 1 9 6 2), de n omi n a - se “G ol p e d e 1 8 B r u m ár i o” o g ol p e d e E st a d o
r e al iza d o p or N a p ol eã o B on a p ar te , c om o ob je t i v o d e t or n ar - se o di ri g e n te da
Fr a nç a, e m 0 9 de n o ve m br o d e 1 7 9 9.
3
Se gu n d o Al v i m ( 1 9 5 5) , o “ l i b er al i s mo” é u m a c on c e pçã o ec on ô m i ca q u e d e ri va d a
“ Es c ola Fi si oc r á t ic a” , de 1 7 5 0. A E sc ol a Fi si oc r át ic a se op u n h a a o e xce ssi v o
p r ot e c i on i s mo d os pa í se s e m r e l açã o à ec on o mia , p oi s ac r e di ta va q u e i s t o oc a si on a va
u m e ntr a ve a o f u nc i on a me n t o n at ur al d o c om é r ci o. O li be r a l i sm o sur g e a ssi m c om o
o p o si çã o a o pr ote ci o n i sm o e c on ô mi c o, o n d e o Est a d o i nt er f er e d e ma si a d a me n te na
e c on om i a.
4
De a c or d o c om Le f e b vr e ( 1 9 6 6 ) , a “ R e v ol u ç ã o Fr a nc e sa” , oc or r i d a e m 1 7 8 9, f oi u m
c onf li t o e n tr e a ar i st oc r aci a e a mon a r q u ia , n o q ua l a ar i s t ocr a c i a a s su me o p od e r n a
Fr a nç a. E s se f a t o i n ici o u u ma n o va e r a n o p aí s, o f e u d al is m o, q ua n d o a ar i st ocr ac ia
se tr a n sf or ma e m b ur g ue si a e o p od e r t or n a- se de sc e ntr al i za d o, se n d o o s e n h or
f e u d al a f i gu r a m ai s i n f l ue n te d o p er í od o, ju n ta me n te c om a Igr e j a.
188
me t af í sic a q u e, b usc a n d o c om s uti le za s as ca u sa s
p r i me ir a s, q u e r f u n d ar sob r e sua s b as es a l e gi sl a çã o d os
p o v o s, e m ve z d e a d a p t ar as l ei s a o c on h e c i m e n t o d o
c or açã o h u ma n o e à s l iç õe s d a hi st ór ia ”.
Assim sendo, foi a partir deste discurso de Bonaparte que o
termo “ideologia” adquiriu um aspecto pejorativo, pois Bonaparte
sugeriu que a ideologia se manifestava por meio da metafísica, doutrina
filosófica que buscava a causa dos acontecimentos a partir de princípios
não observáveis na natureza e não comprováveis cientificamente, o que
na verdade era diametralmente oposto ao sentido primeiro do termo
“ideologia”,
cuja intenção era tornar-se um estudo sistemático e
científico da gênese das ideias.
A ideologia apenas voltou a possuir um sentido semelhante ao
apresentado pelos ideólogos franceses com o filósofo, também francês,
Auguste Comte, em seu livro Cours de Philos ophie Positive. Neste livro,
porém, além do significado científico do termo, a ideologia também
passa a ser vista como o conjunto de idéias de um determinado período
histórico, e é nesta fase que se realiza a associação entre ideologia e
história. Desta forma, nota-se que os processos ideológicos transformamse concomitantemente com as mudanças da sociedade, ou seja, ademais
de ser um processo natural de interação entre o ser humano e seu meio, a
ideologia é um processo mutável, dado que a sociedade se modifica ao
longo do tempo.
U ma t e ori a e x pr i me, p or mei o de i dé ia s, u m a
r e al i da de s oc ia l e h i st ó r ica d ete r mi n a da , e o p en sa d or
p o d e ou nã o e sta r c on s c ie n te d iss o. Q ua n d o s ab e q ue
s ua s i de ia s e stã o e nr a i za da s na hi s t ór i a, p od e e s per ar
q u e el a s a ju d e m a c om p r ee n der a r e a l i da d e on d e
s ur gir a m. Q ua n d o, p or é m, nã o p e r ce b e a r a iz hi st ór i c a
d e su a s i dé ia s e i ma gi n a q ue e la s se rã o ver da d e i ra s p ar a
t od os os te m p os e t od os o s l u ga r e s, c or re o r isc o de
e sta r ,
si mp l e sme n te ,
pr od u z i n d o
u ma
id e ol o gi a
( C HA UÍ , 2 0 0 1 , p . 1 3)
Para o positivismo de Comte, a humanidade sofreria evoluções
com o decorrer da história, e passaria por três fases distintas para
alcançar a evolução máxima, a saber: a fase fetichista ou teológica, na
qual os homens explicam o mundo através de ações divinas; a fase
metafísica, na qual as explicações se dão por meio des ta doutrina
189
filosófica; e a fase positiva ou científica, em que a realidade é observada
de forma imparcial e pelo prisma científico. Desta maneira, mesmo nas
fases em que as explicações para os fenômenos não eram dadas pela
ciência, havia a presença de ideologias, entendidas assim como teorias
criadas
por
pensadores
de
determinadas
épocas
para
justificar
a
realidade, sendo que estas explicações não poderiam ser consideradas
falsas, pois eram pensadas de acordo com os conhecimentos da época, os
quais evoluíram juntamente com as transformações pelas quais passou a
humanidade. Em relação ao termo “ideologia” empregado por Comte e
pelo positivismo, Chauí (2001, p.28) assim o define:
O t er mo , a g or a , p os su i d oi s si gn i fi c a d os : p or u m
l a d o, a i d e ol o gi a c on ti n ua s e n d o a q u ela at i vi da d e
f il osó f i c o- c i e nt íf ica q ue est u d a a f or ma ç ã o da s i d éi as a
p ar tir da ob se r v a çã o d a s r el a ç õe s e ntr e o c or p o h u ma n o
e o me i o a mb ie nt e, t om a n d o c o m o p on t o de pa r ti da a s
se n sa ç õe s; p or ou tr o la d o, i d e ol o g i a pa ssa a s si gn i f i car
t a mb é m o c on j u n t o de i dé ia s de u ma é p oc a , ta n t o c om o
“ op i ni ã o ge ra l” q ua nt o n o s e nt i d o d e el a b or aç ã o t e ór ic a
d o s pe n sa d or e s da é p oca .
Já outro francês, o sociólogo Émile Durkheim, em seu livro Les
Règles de la Méthode Sociologique, afirmou que também a sociologia
deveria ser estudada como um processo científico, ou seja, que o fato
social deveria ser estudado com um fato natural. Para que isso fosse
possível, o sociólogo deveria observar um fato social de forma objetiva,
sem se deixar influenciar por quaisquer estigmas pré-concebidos da
realidade social, e deveria analisá-lo de uma maneira imparcial, como se
ele próprio não estivesse inserido naquele contexto. Assim, como a
ideologia tinha a pretensão de ser uma ciência que buscava identificar a
gênese das idéias através da observação das sensações do homem em
relação ao seu meio ambiente, Durkheim não acreditava que a ideologia
seguisse o que ele próprio achava necessário para que uma análise
científica fosse realizada, ou seja, a completa imparcialidade e total falta
de subjetividade do pesquisador diante do seu objeto de estudo.
P ar a o s oci ó l o g o c ie n t i sta , o i de ol ó gi c o é u m
r e st o, u ma sob r a d e id e i as a nt i ga s, pr é- ci e nt í f i ca s.
D ur kh e i m as c on si d e r a pr e c on ce i t os e pr é - n oç õ e s
i n te ir a m e nt e s u b je ti va s , i n di vi d u a is, “ n oç õ e s v u l ga r e s”
o u f a n ta sma s q ue o pe n sa d or a c ol he p or q u e f az em p a r te
190
d e t od a a tr a di çã o so c ia l e m q ue e s tá i n ser i d o ( CH AU Í ,
2 0 0 1 , p . 3 2) .
No entanto, a utilização do termo “ideologia” em um contexto
político deve-se aos alemães Karl Marx e Friedrich Engels, autores do
livro “A Ideologia Alemã”. Para estes pensadores, a sociedade era
dividida em dois grupos muito distintos: a burguesia, detentora da
riqueza e dos meios de produção, e o proletariado, classe trabalhadora
que naquela época, fins do século XIX, limitava-se às condições
precárias de
trabalho e de subsistência. Assim, estes pensadores
passaram a lutar pela causa operária, o que resultou na criação do
“marxismo”, corrente filosófica que posteriormente serviu como base
teórica do “socialismo” 5. Para alcançar o socialismo, o proletariado
deveria promover um golpe de Estado, assumindo temporariamente o
poder. Durante este regime político, a nova sociedade deveria buscar o
esfacelamento do Estado e de todas as instituições que, acreditavam
Marx e Engels, apenas existem pela presença do Estado, como por
exemplo, a Igreja e o Direito. Os meios de produção passariam a
pertencer à coletividade, e a sociedade viveria, assim, em uma espécie de
fraternidade. Depois de firmadas estas transformações de maneira plena,
não haveria mais a necessidade da presença do Estado, e seria
instaurado, então, o “comunismo” 6.
As i d é ia s de Ma r x e E n ge l s r e p er c u tir a m d e u m a
ma n e ir a mui t o f or t e, a p on t o d e o Mo vi m e n t o Op er ár i o
n o f i nal d o s éc u l o pa s sad o ter - se dif u n d i d o ba st a nte e
e x i gi d o t ra n sf or ma ç õe s m u it o r a d ic a i s na s oci e da d e. A
t ra n sf or ma çã o mai s si gn if ic a t i va f oi a R e v ol u ç ã o R u s sa ,
o c or ri da e m 1 9 1 7 e l i der a da p or Lê n i n. Lê n in sa b i a
c lar a me n te q ue, ta nt o os t ra b al h a d or e s, q u an t o os
p a tr õe s,
p os su í a m
i dé i a s
pr ó pr i as ,
e sp ec íf ica s
( MA R C ON D E S FI LH O, 1 9 9 7, p . 1 7) .
Desta forma, para Marx e Engels, o confronto entre as duas
classes sociais, burguesia e proletariado, ocorria principalmente no
5
P ar a S pi n de l ( 1 9 8 3) , o “ soc i al i s mo” é u m si st e ma p ol ít ic o e e c on ô m ic o q ue se
p r op õ e a t or nar a soc i ed a de i gu a l i tá r ia, c om a e li mi na çã o de c la ss es s oc iai s e
c ole ti vi za çã o d os me i os d e p r od u çã o.
6
Se gu n d o Sp i n d el ( 1 9 5 3) , o “c om u n i s m o” se r ia o ú lt i mo e s tá gi o d o de se n v ol vi me n t o
d a soc i e da de , alc a nça d o a p ó s a c om p le ta m od if i ca çã o s oci al pr op os ta pe l o m ar xi sm o
e r ea l i za da p el o r e gi me soc ial i sta .
191
campo das ideias. Neste sentido, estas classes sociais justificavam seu
ponto de vista sobre a realidade social na intenção de fazer prevalecer
seus interesses particulares e, devido a isto, o faziam de forma parcial.
Como exemplo desta parcialidade, pode-se citar o fato de que o
comunismo nunca foi realmente instaurado, pois quando o proletariado
alcançou o poder, seus interesses transformaram-se, ou seja, já não era
mais interessante para o proletariado deixar este estágio de poder no qual
se encontrava, e consequentemente, seu discurso ideológico também se
transformou.
A Mídia como Manifestação de Ideologias
O motivo pelo qual a manifestação de ideologias em um discurso
político não é facilmente observável pelo expositor da mensagem e,
ainda menos, por seus receptores, relaciona-se à característica central da
ideologia, já mencionada anteriormente: tornar natural o que, na verdade,
é produzido social e historicamente por um grupo específico de cidadãos,
para justificar uma dada realidade social. Ou seja, partindo-se deste
pressuposto, uma ideologia dificilmente é contestada, já que, ao menos a
princípio, o “natural” não pode ser modificado pelo homem. Assim, a
ideologia pode ser resumida como um conjunto de ideias que justificam,
de maneira parcial, uma realidade produzida por um grupo que se utiliza
dela para manter ou instaurar seus interesses particulares, sem que este
processo seja, necessariamente, consciente.
Em t od o di sc ur so há u ma li ga çã o e ntr e lí n gu a ,
h i st ór i a e i d e ol o gi a. A n ec e ssi da d e de se c om p r e en d e r a
l i n gu a ge m c o m o u ma f or m aç ã o so c i oi d e ol ó gi c a i n d ic a
q u e o di sc ur so é c o n str u í d o soc ia l me n te e q ue a
i d e ol o gi a, f u nç ã o n ec e s sár ia e n t re l i n gu a ge m e m u n d o,
n a t ur a li z a o q ue é pr o d uz i d o pe la hi s t ór i a a t r a vé s d e
e f ei t os d e e vi d ê nci a q ue a p a ga m a m at er ia li da d e d o
d i sc ur s o e c o nst r óe m t ra ns p a rê n ci a s, c om o se a
l i n g u a ge m e a hi st ór i a n ã o tiv es sem s u a e s pe s sur a
( C E SÁ R I O ; N O LLI , 2 0 0 4, p . 3) .
Desta
forma,
é
importante
compreender
os
conceitos
de
linguagem, discurso e, principalmente, de ideologia. Linguagem, em um
sentido amplo, significa todo o sistema de símbolos que os indivíduos
192
utilizam para manter contato com “o outro”, ou seja, é tudo que se utiliza
para que haja um entendimento do que se quer exprimir. Costuma-se dar
um caráter de naturalidade também à linguagem, como se tudo o que
existe já possuís se uma denominação inerente desde o início dos tempos.
Contudo, a linguagem é uma criação social, ou seja, é uma convenção
humana para dar sentido ao mundo. Pode ser verbal ou não verbal, e
estas duas facetas da linguagem costumam se manifestar em unicidade,
para que a linguagem não verbal auxilie a linguagem verbal a ser mais
bem compreendida.
O c on t at o c o m a l i n gu a ge m é tã o a nt i g o q ua nt o o
t e mp o de u ma vi da . E , de sd e ce d o, ve m so b t a nt as
f or m as q ue f r e q ü e nt e men t e acr e d i ta m os t om a r c ont a t o
c om a s c oi sa s q ua n d o, d e f at o, t o ma m os c on t a t o c om os
sí m b ol os. Mu it os e st u di os os já a ler tar a m p ar a e s sa
i n cl i naç ã o a o se a tr i b u ir u m car á te r na t ur a l à r elaç ã o
l i n gu a ge m / m u n d o. A i n d a q u e e ss e a l er t a n os su gi r a ( . .. )
q u e a c om p r e e ns ã o e n tr e a s pe s soa s n ã o se d á d e u m a
ma n e ir a a u t om á ti c a, f r e q üe nt e me n t e pr a t ica mos a
l i n gu a ge m c o m o se e la e st i ve ss e s u jei ta a u m
a u t om a ti s mo de n at ur e z a bi ol ó gic a ( C OR RÊ A, 2 0 0 2,
p . 1 4) .
Já o discurso é um produto da linguagem, cuja principal
característica é uma tendência a fazer com que o ouvinte se convença de
que aquilo possui um sentido lógico. Um discurso possui uma grande
carga de ideologia, seja a manifestação desta ideologia intencional ou
não.
A li n gu a ge m, e n q u a nt o di sc ur s o, nã o c on st i t u i
u m u n i ver so de si gn os q ue se r v e a pe na s c om o
i n str u me n t o de c om u n i c a çã o ou su p o r te d e p e n sa me nt o;
a l i n gu a ge m e n q ua nt o d is c ur so é i n ter a çã o, é u m m od o
d e pr od u çã o s oci a l ; e l a nã o é ne u tr a, i n oc e nt e ( n a
me d i d a e m q u e e st á e n ga ja da n u ma i nt e nc i on a li da d e) e
n e m n a t ur a l, p o r i ss o é o l u ga r pri vi le g ia d o da
ma n i fe sta ç ã o da i de ol o g ia ( B RA N D Ã O, 1 9 9 7, p. 1 2) .
Para um comunicador, e aqui se entende por “comunicador”
também o político, é demasiado importante a utilização adequada da
linguagem num dis curso, para que este possa alcançar seu objetivo
último: a convicção, por parte dos receptores do que está sendo expresso,
de que aquilo é condizente com a realidade.
Em relação ao poder
manipulador do discurso, Fiorin (1997, p.18) faz a seguinte análise:
193
Há n o di sc u r so, e nt ã o, o c a m p o da m a ni p u laç ã o
c on sc ie n te e o da d et e r m i na ç ã o i n c on s ci e nt e . A si nt a xe
d i sc ur s i va é o ca m p o d a m a ni p u la ç ã o c on sc i e n te . N e st e ,
o f a la nt e la n ça mã o de est ra t é gi as ar gu me nt at i v as e de
o u t r os pr oc e di m e nt o s d a si n ta xe d i sc ur si va pa r a cr iar
e f ei t os de se n ti d o de ve r d a de. O c a mp o da s
d e ter m i na ç õe s i nc on sci e n te s é a se m â nti c a di sc ur si va ,
p o i s o c on ju n t o de e l e me n t os se m â nt ic os ha b it u a l me n te
u sa d o n os di sc ur s os d e u ma da da é p oc a c o n st it u i a
ma n e ir a de ve r o m u n d o de u ma da d a f o r m aç ã o s oc ia l.
A manifestação implícita de ideologias é um fator determinante
em
um
discurso
político,
pois
transfere
ao
discurso
um
caráter
verossímil, assim propiciando que a sociedade se sinta em uma posição
de confiança em relação ao que está sendo exposto. Segundo Souza
(1978, p.83), “(...) o termo “ideologia” é tomado por muitos filósofos e
sociólogos no sentido comum de generalização, de simples persuasão, de
ideal, de orientação de valores e até de poder, de domínio”. Nota-se,
assim, a estreita afinidade entre a intenção dos discursos políticos e a
capacidade da manifestação ideológica em auxiliar que esta intenção se
torne realidade, já que a ideologia pode ser usada como um fator de
manipulação e de manutenção do status quo. Em concordância com esta
constatação,
Ungaretti
(2005,
p.22)
acredita
que
“a
propaganda
ideológica se caracteriza pela difusão de ideologias, ou conjunto de
ideias, propagadas a fim de manipular o receptor do modo que interessa
para a sociedade ou para determinado grupo”. Favaretto (2003) enfatiza
também um outro tipo de discurso político, a propaganda política, no
qual a figura do político não está necessariamente presente, porém a
ideologia política é ressaltada de forma incisiva.
A p r op a ga n da p ol í ti ca, q ue é b a sic a me n te u ma
p r op a ga n d a de na t ur e z a i de ol ó gic a, é o ti p o de
p r op a ga n d a e n c ar r e ga d a d e d ef i n ir u ma d et e r mi na d a
i d e ol o gi a p o l í tic a, c om o i nt u it o de ma ni p u lar a opi ni ã o
p ú b l ic a e a a t i t u de d e se u p ú b l ic o- al v o. Me c an i s mos
p si c ol ó gi c os de f or m aç ã o d a op i n iã o sã o ut il i za d os d e
m od o
i n te n si v o
pe la
pr op a ga n d a
p ol ít ic a .
( FA VA RE T TO , 2 0 0 3, p. 1 4) .
Favaretto (2003) classifica ainda cinco tipos de propagandas
políticas:
194
-
A propaganda de doutrinação: nesta fase o político, ou partido, conquista
a opinião pública por meio da difusão de sua ideologia.
-
A propaganda de agitação: explora as aspirações e reivindicações
frustradas de um grupo social e se desenvolve de acordo com os
interesses deste grupo.
-
A
propaganda
de
integração:
tem
como
finalidade
unificar
o
comportamento da população, tentando criar uma identidade ideológica
que garanta a legitimidade das ações do governo.
-
A propaganda de subversão: é realizada pela oposição, porém desprovida
de argumentação séria, com a intenção apenas de destruir o político ou
partido do governo atual.
-
A contrapropaganda: possui como função equilibrar, ou mesmo anular, os
efeitos persuasivos de uma determinada propaganda política.
Como forma de exemplificar a estreita relação entre mídia, discurso
político e ideologia, no próximo tópico são relatadas duas situações da
História onde esta relação foi amplamente ressaltada.
Discursos Políticos e Ideologias Transmitidos pela Mídia
O Nazismo e a Propaganda Política Subliminar:
Para Ferrés (1998), o cinema foi o instrumento de manifestação
ideológica predileto de Adolf Hitler. O autor transcreve um trecho do
livro do Führer, Mein Kampff,no qual Hitler explicita sua opinião a respeito
do
assunto:
“Aqui
(referindo-se
ao
cinema)
um
homem
precisa,
inclusive, usar menos o seu cérebro (...). Aceitará a imagem com maior
intensidade do que um artigo publicado pela imprensa”. Desta forma,
pode-se observar que Hitler notou que o cinema, assim como a televisão,
possui um fator muito importante no sentido de influenciar a opinião
pública, que é o uso da imagem. Para Ferrés (1998, p.173), se em todos
os âmbitos são evidentes conexões entre a informação e o poder, isso é
ainda maior no caso da informação através da imagem.
No dia 11 de março de 1933, criou-se na Alemanha o Ministério
de Propaganda e Cultura Popular. O filósofo Joseph Goebbels , que desde
a infância se interessava pela psicologia das massas, foi nomeado
195
ministro. Goebbels acreditava que não se devia fazer propaganda política
explícita, mas sim que a propaganda política devia ser s ubliminar e por
meio do entretenimento e, assim, iniciou-se a relação entre o nazismo 7 e
o cinema. O principal filme em honra ao nazismo foi Triumph des
Willens, “O Triunfo da Vontade”, criado para a comemoração do “Sexto
Congresso do Partido Nacional-socialista”, ocorrido de 05 a 10 de
setembro de 1934.
O f i l me , c o n si d er a d o u m d oc u m e nt ár i o, p od e s er
c on s i der a d o a pe na s par cia l me n t e c om o tal . A pr e p a r aç ã o d o
c on gr e sso f oi f ei ta pe n s an d o e m q u e d e ver i a s e r fi l ma d o, de
ma n eir a q u e a si m p le s re p r od u ç ã o d a r eal i da de se
tr a n sf or ma s se e m u m es pe ta c u lar f i l me d e p r op a ga n da. Nã o é
q ue a i ma ge m r e pr od u zi ss e f ie l me n te a r e al i da d e, é q ue a
r eal i da de e ra ge r a da e m f u n ç ã o d o f at o d e q ue de ve r i a
tr a n sf or mar - s e
em
i ma ge m,
em
f u nç ã o
da
s ua
in te n c i on a li d a de pr op a g a n d í st ic a ( FE R R É S, 1 9 9 8, p . 1 9 3) .
Observa-se, desta forma, uma característica intrinsecamente
ideológica na preparação deste filme, o fato de se tentar manipular a
realidade em benefício de uma causa, fazendo com que a suposta
realidade justificasse esta causa. No ano de 1940, no intuito de ampliar
o sentimento antissemita no povo alemão, Hitler ordenou a realização
de um documentário cujo título era “O Judeu Eterno”, no qual eram
mostrados judeus no gueto de Varsóvia. O documentário referia-se aos
judeus de forma altamente pejorativa e os considerava como uma “raça
parasitária” que deveria ser eliminada.
Du ra nt e u m p e r í od o d e 1 3 me se s, o f i l me f oi mo n t a d o
ma i s d e u ma d ú zia d e v eze s. F or a m f e it os c or te s, r e a l izar a mse mú lt i pl as ver sõe s d o te xt o . Ca da ve z ma i s e r a sa n gu i nár i o
e a gr e ss i v o. O pr ó pr i o Hi t ler i n si sti u e m q ue o f i l me d e ve r ia
ser a p a v or a n te, a t é o p on t o d e i nc l uir r at os. H a v ia
tel e sp e c ta d or e s
que
de s m aia va m
d ur a nt e
a
pr oje ç ã o
( FE R RÉ S, 1 9 9 8. p . 1 9 1) .
O filme foi um fracasso total de público, pois a intenção de
Hitler, que era tornar mais acirrado o ódio dos arianos contra os judeus,
alcançou um fim completamente contrário ao intuído na criação do
documentário, pois os alemães passaram até mesmo a se penalizarem da
7
De a c or d o c om Lu ka c s ( 1 9 8 0) , o ter m o “ n azi sm o” r ef er e- se à p ol ít ic a d ita t ori a l d o
T er ce ir o Re ic h d a Ale m a n h a, ou Ter c e ir o I mp é r i o, i ns ta ur a d a p or Hi tl er , q u e pr e ga va
o e x ter mí ni o d e ju de u s, ci ga n os e h om o ss e x ua i s, c om o f o r m a de m a nt e r p ur a a r aç a
a r ia n a.
196
situação dos judeus. Favaretto (2003, p. 24) analisa o motivo de um fato
como este haver ocorrido:
O i n s ti nt o d e l ut a , e s ti mu l a d o p ela pr op a ga n d a , p od e se
ma n if e s tar na s pe ss oa s de f o r m a n e ga ti va , e x te r i or iz a da pe l o
me d o, de pr e ssã o, i ni b i ç ã o, ou d e f or ma p os i t i va , p or mei o da
ex a l taç ã o e a gr ess i vi da de, o q u e p od e l e va r a o ê xt as e e t ir ar
a pe ss oa de s i me sm a. E sse er a e e st a d o a m b í gu o q u e o p o v o
ale mã o er a s u b me ti d o c om a pr op a ga n d a h it ler i st a: e xal ta d o e
a o me s m o te m p o a n gu s ti ad o .
Goebbels, para amenizar o efeito do referido documentário, no
mesmo ano encomendou um outro filme anti-semita. Este não era um
documentário, mas sim um filme de ficção, que foi desenvolvido de
acordo com a idéia de Goebbels sobre propaganda política através de
mensagens subliminares.
A pr o t a g on i s ta se r ia Kr i st i na S od e r ba u m, o s í m b ol o
se x ua l da é p oc a n a A le ma n h a . G oe b b el s or d en ou - l he q ue
in ter pr et a sse o p a pe l d a her oí n a . O f i l me te v e o tí t u l o d e
Ju d e S ü s s. Er a u m dr a ma a m bi e nt a d o n o séc ul o XVI I I . A
es t ór ia gir a va e m t or n o d e u m ju d e u q ue se i nf i ltr a v a n a
ar i st oc r át ic a s oc ie d a d e ale m ã de Wü rt t e mb e r g. Me di a nte u m a
sér ie de a r t i ma n h as , o ju de u c on s e gu i a f a ze r c om q u e
pr e n d e sse m o ma ri d o da m ul h er ar ia na , a q ue m pr e te n d i a
se d uz ir . N o f i n al da es t ór ia, o ju d e u e ra e xe c ut a d o e m pr aç a
p ú b lic a ( FE R RÉ S, 1 9 9 8, p . 1 9 1) .
Este filme foi um sucesso de público, pois a sociedade alemã da
época fez um paralelo entre Württemberg do século XVIII e a Alemanha
nazista, e o sentimento antissemita aflorou-se ainda mais no povo ariano
nesta ocasião. Esta experiência tornou evidente que as mensagens
subliminares são mais bem assimiladas que as mensagens explícitas,
como previa Goebbels. No final da Segunda Guerra Mundial 8, próximo
da derrota nazista, Goebbels se dedicou à criação de outro filme, em
1944. Era um drama histórico que reproduzia a heroica resistência alemã
à invasão de tropas napoleônicas, muito superiores numericamente.
Go e b be ls t i n ha t a nt o i n t er e sse pe l o f i l me q u e or de n ou o
r et or n o de 1 0 0. 0 0 0 s ol d ad os d o f r o n t par a q u e a tu a ss e m c om o
ex tr a s. Se gu n d o Wi lf r e d V on O ve n, a ju d a n te de G oe b be l s,
es te c on f ess ou q ue e r a m ai s i m p or ta n te q ue os s ol d a d os
at ua sse m n a q uel e fi l me d o q u e l uta s se m n o fr o n t. U ma
de m on st ra ç ã o a ma i s da ef ic ác i a d a est ra té gi a da pr op a ga n d a .
8
P ar a Is r ae lia n e N i k ol a e v ( 1 9 6 5) , a “ Se gu n d a G uer r a Mu n d ia l ”, oc or r i da de 1 9 3 9 a
1 9 4 4 , f oi u m c on f l i t o e nt r e paí se s c om pr e te n s õe s i m p er i al ista s, se n d o est es pa í se s
d i vi d i d os e m d oi s bl oc o s: os p aí se s ca pi ta li st as e os p aí se s s oc ia l i st a s.
197
Ma s nã o de u ma pr o p a ga n d a r ac i on a l ,
as soc iat i va ( FE R R É S, 1 9 9 8, p . 1 9 2) .
m as
e m oc i on a l,
A partir desta síntese da relação entre o nazismo e o cinema,
torna-se clara a influência dos meios de comunicação em mass a perante a
sociedade ao manifestarem ideologias, sobretudo se este processo for
realizado de maneira subliminar. Esse tipo de mensagem chega aos
cidadãos de maneira inconsciente, o que faz com que assimilem com
mais facilidade o seu conteúdo, pois são atingidos por elas sem que
anteriormente possam ter sustentado algum tipo de argumento contrário à
ideologia transmitida.
Nicolau Ceaucescu e o Discurso Ideológico Explícito:
Um outro exemplo muito significativo de como os meios de
comunicação em mas sa podem interferir no futuro político de um Estado,
é o caso da trajetória do ditador socialista romeno Nicolau Ceaucescu,
que assumiu o governo da Romênia entre 1967 e 1989. Durante os anos
de 1970, os romenos encantavam-se com as séries e filmes americanos,
que lhes mostravam uma realidade paradoxal ao que presenciavam na
Romênia. A liberdade e o consumo eram os principais expoentes da
diferença entre a sociedade capitalista, representada pelos Estados
Unidos através dos programas televisivos, e a ditadura socialista na qual
viviam os romenos. Segundo Ferrés (1998, p.195):
P or me i o de s ta s sér i es, os r om e n os a pr e n de r a m a
r ec on h e c er e a a mar u m es ti l o de vi d a mui t o dif e r ente d o se u.
Q ua n d o P e ter Gi l m or e , o at or q ue pr ot a g on i z ou “ The On e d i n
Li n e” e n tr e 1 9 7 1 e 1 9 8 0 , vi si t ou a R om ê n ia , f oi r ece b i d o c o m
u m gr a n de f e r v or p o p u l a r .
Em 1983, Ceaucescu decidiu quitar toda a dívida externa da
Romênia e, por consequência deste fato, o país atravessou um período de
dificuldades econômicas. Houve racionamentos de alimentos e de
vestuário e a televisão reduziu sua emiss ão à apenas duas horas diárias.
Os programas ocidentais foram eliminados da programação da televisão
romena, e em subs tituição intensificou-se a propaganda política, os
cantos de glória e poemas para Ceaucescu e sua ideologia. Ao visitar a
Coréia do Norte, também sob a ditadura socialista, Ceaucescu aderiu ao
198
exemplo daquele país e transformou as duas horas diárias de emissão
televisiva
da
Romênia
num
período
de
transmissão
de
discurso
ideológico explícito. Nota-se, assim, a semelhança entre a crença de
Ceaucescu e a de Hitler, no sentido de que ambos acreditavam que o
discurso político, ou mesmo a propaganda política, deveriam ser
explícitos e, algumas vezes, até agressivos.
Entretanto Hitler, ao
contrário de Ceaucescu, mudou de opinião ao ser convencido por
Goebbels que as mensagens implícitas eram muito mais influentes sobre
os cidadãos que as mensagens explícitas que, por vezes, até exerciam
resultado inverso, como foi o caso do efeito que o documentário nazista
“O Judeu Eterno” causou na população ariana na ocasião do seu período
de exibição.
Ce a uc e sc u t e nt ou a pe ne tr a çã o a tr a vé s d a p r o pa ga n d a ,
d o di sc ur so e x pl í c it o. E f r ac as sou . E n q u a nt o a s n ot íci as e a s
sér ie s e str a n ge ir as l i ga v am - se a os i nt er e sse s d a p op u l açã o , a
pr op a ga n d a de C ea u c e sc u pr o v oc ou r e jei ç ã o . Tu d o i ss o
c on d ic i on a d o, é cla r o , pe la si t uaç ã o soc ia l, e c on ô m i ca e
p ol ít ic a d o pa í s ( FE R RÉ S, 1 9 9 8, p . 1 9 6) .
Os
romenos
começaram
a
instalar
antenas
parabólicas
clandestinas em suas residências, que captavam programas de televisão
búlgaros e, por meio destes programas, tomaram conhecimento da queda
do “Muro de Berlim” 9, fato não revelado pelo governo romeno, pois
representava o início do deterioramento do regime socialista. A queda do
muro era almejada, principalmente, pelos habitantes da parte oriental de
Berlim, que assim como os romenos, viviam sob a ditadura s ocialista. O
povo romeno, após esse episódio, iniciou sua própria revolução, o que
levou ao fuzilamento de Ceaucescu.
A responsabilidade pela trajetória política de Ceaucesco ter sido
ceifada da forma como foi relatada, deve-se, em grande parte, ao uso que
o ditador tentou fazer do meio de comunicação em massa mais
importante da contemporaneidade, a televisão, pois da mesma forma que
este meio pode influenciar os cidadãos de maneira positiva diante de uma
determinada situação, também pode causar o efeito contrário.
9
Se gu n d o Gr e gh i ( 2 0 0 2) , o “ Mu r o de B er l i m” f o i c on s tr u í d o pa r a q ue h o u ve sse u m a
se pa ra çã o e nt r e a A le ma n ha Oc i de n ta l , ca p it al i st a, e a A le ma n h a Or ie n ta l, soc i al is ta.
199
Após esses dois relatos, torna-se clara a capacidade de influência
que a mídia possui sobre a política, principalmente por ser a principal
detentora das transmissões dos discursos políticos, o que significa que a
mídia vem se firmando como um elemento de poder na sociedade.
Considerações Finais
Em suma,
observa-se
que a
mídia age
como um elemento
fortemente massificador da população, principalmente no que concerne à
política, visto que os políticos utilizam os meios de comunicação em
massa para alcançar o maior número de indivíduos possível. Apesar de, a
exemplo do que ocorre no B rasil, os meios de comunicação em massa
freqüentemente pertencerem a instituições privadas, os políticos e a
classe dominadora em geral usam estes canais para trans mitirem sua
ideologia, na intenção de que, por meio de seu discurso, o status quo
possa ser mantido.
Desta maneira, o papel da mídia e dos meios de comunicação em
massa não se constitui apenas como o de transmissores de informações,
papel este que lhes é inerente, mas atuam também como potenciais
agentes influenciadores no cenário político da atualidade.
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E.U.A. Trabalho de Conclusão de Curso. Ribeirão Preto: Centro
Universitário Moura Lacerda, 2005.
201
CONSUMO SUSTE NTÁVEL E MUDANÇA DE POST URA DOS
CIDADÃOS. REFLE XÃO SOBRE AS CAMPANHAS
PUBLICITÁRIAS DO INSTITUTO AKATU
D a nie l a VI E GA S *
D il m a D ut r a B o r ge s d e CA S TR O * *
Resumo:
O artigo objetiva incorporar na reflexão do consumo sustentável a
questão ética na utilização de ferramentas como a educação, a lei e o
marketing. Para tanto, leva-se em consideração o contexto histórico da
questão ambiental, agravada pelo excesso de consumo, elevada a padrões
insustentáveis à vida no planeta. Com base na retrospectiva histórica e
na conceituação do consumo sustentável, procura-se compreender a
mudança de comportamento em sua complexidade. A metodologia
utilizada, além de fazer uma revisão da literatura sobre o tema, procura
caracterizar nas campanhas do Instituto AKATU, suas contribuições para
o processo de mobilização social, de modo a promover a conscientização
e fazer frente aos efeitos negativos que o atual padrão de cons umo impõe
ao Meio Ambiente, a sociedade e aos indivíduos.
Palavras-chave: Consumo; Consumo sustentável; Problemas ambientais;
postura ambiental; Instituto AKATU.
SUSTAINABLE CONSUMPTION AND CHANGE IN CITIZENS’ ATTITUDE:
CONSIDERATIONS ABOUT THE AKATU INSTITUTE ADVERTISEMENTS.
Abstract:
This paper aims to incorporate into the reflection about sustainable
consumption the ethical issue regarding the use of tools such as
education, law and marketing. To achieve this goal, the historical
context of the environmental issue is considered, which is aggravated by
over-consumption increased to unsustainable patterns of life on the
planet. Based on historical retrospective and on conceptualization of
sustainable consumption, this paper attempts to understand the change of
behavior in its complexity. The methodology used in the campaigns of
the AKATU Institute, besides reviewing the literature on the subject,
characterizes the contributions to the process of social mobilization in
order to promote awareness and tackles the negative effects that the
current pattern of consumption imposes on the environment, society and
individuals.
Keywords: Consumption; Sustainable consumption;
problems; Environmental attitude; AKATU Institute.
Environmental
*
Me st r a n da e m Ge stã o S oci al, E d uc aç ã o e D ese n v ol vi m e nt o Loc al pe l o C e ntr o
U ni v er sitá r i o U MA. E - ma i l : d a n iel a d v c@ y a h o o .c o m. b r
**
Me str a n da e m Ge s tã o S oc ia l , E d uca çã o e De se n v ol vi m e n t o L oca l p e l o C e n tr o
U ni v er sitá r i o U MA. E - ma i l : d il m a d u@ b ol. c om. b r
202
Introdução:
O
padrão
de
desenvolvimento
da
sociedade
contemporânea
caracteriza-se centralmente pela exploração excessiva e constante dos
recursos naturais, pela geração maciça de resíduos e pela crescente
exclusão social.
Constata-se
um
impasse entre Meio Ambiente e
desenvolvimento, ao não se estabelecerem patamares sustentáveis de
produção e consumo. Somam-se a esses fatores o desperdício de energia
e
as
agressões
ao
Meio
Ambiente.
Essa
lógica
da
sociedade
é
insustentável devido aos próprios limites ambientais. De acordo com
Mattar numa entrevista a André Trigueiro (2005, p. 26) “estamos
consumindo 20% a mais do que a Terra consegue sustentar”.
As
consequências
envolvem
exaustão
da
capacidade
de
regeneração ambiental, diminuição da biodiversidade, problemas na
saúde pública e um esgotamento natural de difícil reversão. Catástrofes
ambientais podem ser observadas em todos os lugares do planeta,
impactando a vida das pessoas da flora e da fauna. Algumas florestas
cederam espaço para a criação de gado e para a agricultura; a exploração
do petróleo contaminou terras, rios e mares e a extração de minério
afetou, de forma irreversível, paisagens e espaços de sobrevivência.
Os problemas relacionados com o aumento da população mundial
envolvem discussões sobre a poluição e, até mesmo, debates sobre a falta
de alimento no planeta. Outro agravante são os milhões de toneladas de
lixo produzidos diariamente pelas cidades brasileiras. De acordo com
dados do Compromisso Empresarial para Reciclagem (CEMPRE, 2008),
associação sem fins lucrativos dedicada à promoção da reciclagem, a
geração de lixo urbano no Brasil está em torno de 140,000 t/dia. Os
aterros já não conseguem absorver tamanho volume de dejetos, fato que
se agrava, sobretudo, pelo crescimento do consumo no Brasil. O manejo
inadequado de resíduos sólidos gera desperdícios, constitui ameaça à
saúde pública e agrava a degradação ambiental, comprometendo a
qualidade de vida da sociedade.
Pesquisa nacional do Instituto de Estudo da Religião (ISER) de
2008 revela que, embora as lideranças brasileiras entendam a relevância
da temática ambiental, elas admitem que conhecem pouco sobre o
203
assunto, apesar da quantidade de informações que têm acesso. A
pesquisa, que entrevistou 210 lideranças de setores da sociedade – mídia,
Congresso Nacional, sociedade civil, organizações não governamentais,
meio científico, setor privado e agências governamentais – também
mostrou que, ao mesmo tempo em que essas lideranças consideram o
problema muito importante para o seu s etor de atuação, podendo afetar
políticas, consumo e negócios, não indica quem irá assumir os custos da
sustentabilidade. A maioria absoluta dos entrevistados remete ao governo
a responsabilidade de iniciar um processo de engajamento dos demais
setores, com definição de políticas públicas e, desta forma, assumir
metas de redução de emissão de carbono, estabelecer uma política
nacional do clima, agenda de preservação e prevenção da destruição da
Amazônia, transição nas formas de produção e de consumo e política
energética.
Uma análise da questão no Brasil indica que um dos impasses
existentes está no campo da conscientização e mobilização da sociedade
em torno de soluções para minimizar os impactos ambientais. A solução
terá que vir por ruptura e não por melhorias contínuas. O planeta está
chegando aos seus limites e apresenta sinais diários de colapso. A
reflexão sobre os problemas ambientais deve ampliar o enfoque para
demostrar que a abrangência é mais ampla do que economizar energia
elétrica, diminuir o consumo de água ou de combustível ou reciclar lixo.
O conceito da sustentabilidade deve equilibrar, em igual importância, o
economicamente viável, o socialmente justo e o ecologicamente correto.
Os caminhos da s olução passam por inovações tecnológicas,
transformação do processo de produção, reformulação educacional,
mudanças de atitude, informação e comunicação, planejamento e ações
que visem a melhorias tanto para o ambiente atual, quanto para as
gerações futuras.
Neste
sentido,
são
objetivos
deste
trabalho:
compreender
o
consumo sustentável no contexto da discussão atual, enfatizando a
utilização da lei, da educação e do marketing como ferramentas que
contribuem para a mudança de atitude dos cidadãos; contribuir para uma
204
reflexão a respeito do consumo, a partir da sua relação histórica com as
questões ambientais.
Metodologicamente, a apresentação deste trabalho foi equacionada
em
quatro
momentos
de
abordagem:
no
primeiro,
faz-se
uma
retrospectiva histórica para relacionar o excesso de consumo e as
questões ambientais e, em seguida, conceituar consumo sustentável. No
terceiro momento, enfatiza-se a questão da consciência ambiental e a
mudança de postura e, por último, apresenta-se o estudo de caso o
Instituto
AKATU,
especialmente
suas
campanhas
publicitárias
informativas e motivacionais, nas quais são tecidas as considerações
finais sobre o tema proposto.
Excesso de consumo, grave problema ambiental
As décadas de 50 e 60 se caracterizaram por um impulso
produtivo, estimulado pelos avanços tecnológicos. A agricultura e a
extração de matérias-primas se transformam em atividades de escala
industrial. Nessa época, os efeitos do processo produtivo sobre o Meio
Ambiente e a saúde humana começam a se tornar evidentes.
Salientaram-se os crescentes problemas atmosféricos dos grandes
centros urbanos mundiais; a poluição dos rios pelos dejetos industriais,
as manifestações de erosão e da perda de fertilidade do solo, o
assoreamento dos rios, o comprometimento dos recursos hídricos, dentre
outros, que representam uma variedade de indícios, consequências do
modelo de desenvolvimento econômico adotado. Estes efeitos nocivos
começaram a ser debatidos em fóruns mundiais e a se constituir em
denúncias de pessoas e de organizações.
Raquel Carson (1965), jornalista americana, descreve em seu livro
Primavera Silencios a, o descuido e a irresponsabilidade do setor
produtivo, levando a público o problema dos pesticidas na agricultura e
chamando a atenção para o desaparecimento de espécies. Este livro
tornou-se um clássico do ambientalismo, pois provou cientificamente,
pela primeira vez, os efeitos negativos da ação desordenada do homem
sobre o Meio Ambiente.
205
A década de 70 é marcada também por avanços na conceituação de
Educação Ambiental (EA), inicialmente definida pela International
Union for the Conservation of Nature (IUCN), citada por Dias (2004, p.
98) como processo de reconhecimento de valores e “desenvolvimento de
habilidades e atitudes necessárias à compreensão e apreciação das interrelações entre o homem, a cultura e o seu entorno biofísico”. Em
seguida, a Conferência de Tbilisi, em 1977, incorpora uma nova
dimensão do conceito de EA, associando-o à prática, enfatizando o
enfoque interdisciplinar, a participação ativa e a responsabilidade de
cada indivíduo e da coletividade.
Essas preocupações desencadearam a realização de dois eventos de
repercussão mundial na década de 70: o Relatório do Clube de Roma e a
Conferência Mundial sobre Meio Ambiente em Estocolmo, Suécia. Este
último, em 1972, foi de larga importância para o surgimento das
políticas de gerenciamento ambiental no mundo todo, no sentido de
amenizar o impacto da industrialização sobre o ambiente natural. “A
Conferência reconheceu o desenvolvimento da educação ambiental como
elemento crítico no combate à crise ambiental que se descortinava,
recomendando a discussão pública, o treinamento de professores e o
desenvolvimento de novos recursos e métodos.” (INSTITUTO AKATU,
2002).
Este
encontro
gerou
controvérsias,
uma
vez
que
os
países
industrializados foram acusados de querer limitar os programas dos
países em desenvolvimento, usando como desculpa a poluição. Logo em
seguida, a discussão se realiza em Belgrado, sobre as disparidades entre
os países do Norte e do Sul e sua crescente perda da qualidade de vida.
Manifestaram, por meio de uma carta, “a necessidade do exercício de
uma nova ética global, que se preocupas se com a erradicação da pobreza,
da fome, do analfabetismo, da poluição e da dominação e exploração
humana.” (Dias, 2004, p. 80)
Após alcançar o campo político, o discurso ecológico atingiu o
meio empresarial, cujo impulso foi o processo de reestruturação do
capitalismo,
que se
renovou
com
a
globalização.
A crítica
ao
206
consumismo
cresceu
e
tornou-se
urgente
a
preservação
para
o
atendimento das necessidades humanas.
Em 1972, o Clube de Roma divulgou o relatório “Os Limites do
Crescimento” apontando a limitação dos padrões de desenvolvimento
econômico, partindo de cinco fatores: o alto crescimento demográfico, a
mecanização da agricultura, a finitude dos recursos da natureza, o
aumento da produção industrial e a poluição gerada por cada um desses
processos. A racionalidade ecológica, todavia, negava a racionalidade
econômica do capitalismo. Desta forma, evidenciava-se a denúncia ao
crescimento material da sociedade, que se tornava mais rica e poderosa,
sem levar em conta o custo final desse crescimento.
Como consequência desses fatos, iniciou-se a mudança no padrão
de produção com o investimento em tecnologias limpas – substituição de
sistemas de energia e de matérias-primas, reduzir o desperdício da
produção. Mas era necessário incentivar a demanda pelas tecnologias
ecológicas, o que se traduziu no chamado “consumo verde”, ou seja,
valorização, por parte do consumidor, de produtos e serviços cuja
produção e distribuição não afetam o Meio Ambiente. A questão
principal,
a
finitude
dos
recursos
naturais,
não
tinha
a
devida
consideração: houve apenas um adiamento das consequências dos
excessos de produção e consumo. Diante desse cenário, na década de 90,
várias discussões internacionais foram propostas em busca de uma
solução para resolver os constrangimentos ambientais.
A Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, ficou conhecida
pos seus objetivos de promoção do desenvolvimento sustentável e da
eliminação da pobreza nos países em desenvolvimento. Reforçou a
necessidade de concentração de esforços para erradicar o analfabetismo
ambiental e melhorar a capacitação de recursos humanos para a área.
Com a participação de lideranças empresariais e religiosas, movimentos
sociais e organizações não governamentais para discutirem alternativas
para a questão ambiental, a Rio-92 teve o mérito de gerar a Agenda 21,
um documento contendo os compromissos para mudança do padrão de
desenvolvimento.
207
Ao considerar o processo de globalização, duas questões passaram
a merecer a preocupação dos cientistas mundiais: uma está direcionada à
capacidade de suporte da terra e, a outra, à viabilidade biológica da
espécie humana. Os padrões de consumo socializaram-se no mundo todo,
de modo que as mesmas categorias de recursos são exploradas, sem
observância da sua capacidade de regeneração. De outro lado, é crescente
a perda da diversidade cultural, pois se diluem as fronteiras, encurtam-se
as distâncias, disseminam-se conteúdos, modos de vida, formas de lazer
originariamente da cultura americana, que é projetada no mundo todo.
Estabelecida essa condição na forma de pensar e agir das pess oas, firmase o poder de pressão de consumo sobre os recursos naturais, causando
estresse no planeta. Contra essa realidade, a sensibilização das pessoas
ainda é incipiente e a emergência é um fato.
Na previsão de Kennedy (1993) apud Dias (2004) estas mudanças
são tão complexas que exigirão reeducação da humanidade, o que
significa desenvolver uma sociedade humana sustentada com novos
valores.
A partir de 1995, a ONU passou a defender oficialmente a ideia do
Consumo Sustentável, determinando mudanças no sistema produtivo. O
conceito de “consumo verde” é substituído por uma definição do
consumo orientada pelos eixos: social, ambiental e ético. Na primeira
perspectiva, questionam-se as desigualdades sociais, defendendo um
padrão de consumo que atenda às necessidades básicas de todos, sem
causar dano ecológico. Na esfera ambiental, o ciclo de vida do produto é
repensado, desde a definição das matérias-primas até o processo do
descarte. A questão ética vislumbra a preocupação com as gerações
futuras.
Consumo sustentável
A demanda global por recursos naturais se origina de uma
estrutura econômica cuja base é a produção e o consumo em largas
escalas. Essa lógica da sociedade de consumo, criada a partir da
Revolução
subsistência,
Industrial,
centrada
substitui
no
a
organização
atendimento
das
da
sociedade
necessidades
vitais.
de
O
208
produtivismo e o consumismo desenfreados, porém, são insustentáveis
devido aos próprios limites ambientais.
De acordo com Dias (2008), foi a partir da década de 90 que a
percepção do impacto ambiental dos altos padrões de consumo se
intensificou, gerando um realinhamento do pensamento ambientalista.
Segundo Fátima Portillo (2005, p. 26), a redefinição se deu “através de
um segundo deslocamento, desta vez de uma preocupação com os
“problemas ambientais relacionados à produção” para uma preocupação
com os “problemas ambientais relacionados ao consumo”. No entanto,
para se obter o desenvolvimento sustentável do planeta é preciso
introduzir mudanças nos padrões de produção e também de consumo.
O
consumo
sustentável
identifica
soluções
possíveis
para
desequilíbrios sociais e ambientais por meio de uma postura mais
consciente e responsável dos indivíduos. Ele está relacionado à produção
e distribuição, utilização e rejeição de produtos e serviços, e apresenta
uma nova forma de pensar a vida. Seu objetivo é garantir que as
necessidades
da
sociedade
sejam
atingidas,
evitando
o
consumo
perdulário e contribuindo para a proteção do Meio Ambiente.
O
conceito
de
consumo
sustentável
deriva
do
termo
desenvolvimento sustentável, construído a partir da Agenda 21, na Rio92 (DIAS, 2008). Esse documento contempla um capítulo inteiro sobre as
“Mudanças dos padrões de consumo”, definindo as bases para a
construção de padrões mais sustentáveis de consumo, propondo como
objetivo:
a) P r omo ve r pa dr õe s de c on su m o e pr od uç ã o q ue
r ed u za m as p re ss õ es a mb ie nt ai s e at e n de m à s nec e ss i da de s
bá s ica s da h u ma n i da de ; b) De se n v ol ver u ma me l h or
c om p r ee n sã o d o pa p el d o c on su m o e da f or ma de s e
i mp le m e nt ar pa dr õe s d e c on s u mo ma i s sus te nt á ve is . ( O N U
2 0 0 3 i n D I A S, 2 0 0 8, p . 3 7)
De acordo com o Guia de Formação para o Consumo Sustentável
elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência
e Cultura (UNESCO) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA), o conceito de consumo sustentável é complexo,
mas a maior parte das definições apresenta características comuns como:
209
sa t i sf a z er as ne c e ssi da d es d o H o m e m ; f o r ne cer u ma b oa
q ua li d a de d e v i d a at r a vé s d e n í vei s de vi d a de c e nt e s; pa rt il h ar
os r ec ur s os e ntr e ri c os e p ob r e s; a t uar c om r esp e it o pe la s
ger aç õ e s f ut ur as; c on s u m ir d e f or ma a te n ta, r e s pei ta n d o o
i mp ac t o par a t od a a vi d a; m i ni miz a r a u ti liz açã o, de sp e r dí ci o
e p ol ui çã o d os r ec ur s os . (UN ESCO, 2002).
Para a ONU, “o consumo sustentável significa que as necessidades
de bens e serviços das gerações presentes e futuras se satisfazem de tal
modo que possam sustentar-se desde o ponto de vista econômico, social e
ambiental” (ONU, 2003 in DIAS, 2008).
Neste estudo, foi abordado o conceito de consumo sustentável, em
detrimento de outros, como cons umo verde, ético ou consciente, por
considerá-lo um termo mais amplo, que engloba inovações tecnológicas e
mudanças
nas
opções
individuais,
enfatizando
ações
coletivas
e
mudanças políticas, econômicas e institucionais para contribuir com
padrões de consumo mais sustentáveis.
Consciência ambiental e mudança de postura
Certos de que os atuais padrões de consumo representam um dos
principais motivos da crise ambiental, os consumidores são os atores
fundamentais
para
sua
superação
(DIAS,
2008).
As sim,
algumas
reflexões em torno do tema se tornam oportunas. Antes de sair às
compras, o consumidor deveria se perguntar: esse produto ou serviço é
realmente necessário? É um produto econômico? Polui? É reciclável?
Suas matérias-primas são retiradas do Meio-Ambiente sem agredi-lo? Ele
é seguro? O produtor respeita os direitos dos trabalhadores? A empresa
respeita os direitos do consumidor?
A promoção do consumo com consciência de seu impacto e voltado
à sustentabilidade não trata apenas da forma como se produz e consome,
mas também de como os custos humanos e sociais são considerados.
Consumir conscientemente engloba a promoção da justiça social, o
respeito aos direitos humanos, sociais e econômicos. De acordo com o
Instituto AKATU,
210
o c on s u m i d or c on s cie n t e b usc a o e q ui lí br i o e n t r e a s ua
sa ti sf a çã o p es so a l e a su st e nta b il i da d e d o p la ne ta , le m br a n d o
q ue a s ust e n ta b il i d a de i m p lic a e m u m mo d e l o a m b ie nt a l me n t e
c or r et o,
soc ia l me nt e ju st o e ec on om i c am e nt e vi á ve l.
( IN S T IT U TO AK A TU, 2 0 0 8)
A prática do consumo consciente é uma escolha pelo protagonismo
da própria existência. No Brasil, vários estudos indicam mudanças de
atitude da população em torno das questões ambientais. Pesquisa
divulgada em março de 2006 pelo Ministério do Meio Ambiente, em
parceria com o Instituto de Estudos da Religião (ISER ) aponta que a
conscientização do brasileiro em relação ao meio ambiente aumentou
30% nos últimos 15 anos (MENDES, 2006). De acordo com o estudo, o
aumento da consciência, no entanto, não é acompanhado de um
crescimento significativo das atitudes em prol do Meio Ambiente, sendo
que o perfil do cidadão mais preocupado é ainda o de alta escolaridade e
renda e morador de centros urbanos.
O princípio utilizado para a questão do volume e descarte dos
resíduos sólidos, os três Rs – reduzir (a quantidade de lixo), reutilizar (o
produto, para não precisar descartá-lo) e reciclar (processar novamente o
produto, após sua utilização) – passam por uma ampliação a partir da
necessidade da conscientização ambiental. A discussão evoluiu para o
estabelecimento dos 5Rs: repensar, recusar, reduzir, reutilizar e reciclar.
A inserção do conceito “repensar” em primeiro lugar na cadeia eleva a
conscientização a um novo patamar. É preciso repensar os modos de
produção e as reais necessidades de consumo. Em segundo lugar,
introduz-se o conceito de “recusar”, ou seja, antes de consumir, é
necessário
adotar
uma
postura
diferenciada,
recusando
produtos
descartáveis, optando por produtos reciclados.
A partir dessas reflexões, é possível perceber que o alcance do
consumo sus tentável está diretamente relacionado com uma mudança de
postura na sociedade, com a adoção de atitudes ambientalmente éticas,
que podem ser obtidas por meio da educação, do marketing ou por
instrumentos legais.
Segundo Rothschild (2002, p.42) , “A educação é o conjunto das
mensagens que tentam informar e/ou persuadir um público-alvo a se
211
comportar voluntariamente de determinada maneira. Essas mensagens
não fornecem, por si só, recompensa ou punição de forma imediata e/ou
direta”. Para o autor, conscientizar por meio da educação é admissível,
quando as externalidades são baixas.
P ode m s er vi st as c o m o a tit u d e s an ti é t ica s e i nef i ca ze s s e
as e x ter n al i da de s r e s u l ta nt e s f or e m a lt a s. E m úl ti m o ca s o,
u ma a d m i ni s tr aç ã o m a i s r í gi d a p od e se r exi gi d a. Se
as su m ir mos q u e a ma i o r ia da s pe s s oa s é r aci o na l e a ge e m
be n ef í c i o p r ó pr i o e m r ela ç ã o à ma i or p ar t e d as q ue st õe s na
ma i or pa r te d o te m p o, a í p od e se r di f íc il mod i f ic ar a ma i or i a
d os
c om p or t a me n t os
e x i ste nt es ,
uma
ve z
q ue
t ai s
c om p or ta m e nt os re f l e te m e sc ol h a s e m b e ne f íc i o pr ó pr i o f e it as
an te r i or me n te e de ma ne ir a r ac i on a l . ( R ot h sc hi l d, 2 0 0 2 , p.
4 2) .
Como resultado, a educação pode não ser totalmente capaz de
conduzir uma mudança de postura significativa. Nesses casos, segundo o
autor, a gestão comportamental pode necessitar mais da lei e do
marketing.
A
lei
“refere-se
à
utilização
da
coerção
para
forçar
o
comportamento desejado (...) ou à ameaça da utilização de uma punição
para desencorajar comportamentos inadequados (por exemplo, multas
pelo despejo de lixo em local indevido)” (ROTHSCHILD, 2002, p. 35).
De outro modo, a lei favorece, ainda, soluções de marketing para
aumento
ou
diminuição
de
transações
comerciais,
utilizando-se,
respectivamente, os subsídios de preços ou os impostos. Entretanto, a lei
é oportuna, quando os efeitos das externalidades forem altos. Do
contrário, pode ser considerado antiético suprimir as liberdades e
direitos dos indivíduos. “Se o livre-arbítrio estiver conjugado com um
mínimo de coerção, então devemos resistir à utilização da lei, uma vez
que ela restringe a liberdade. (ROTHSCHILD, 2002, p. 43). Como
resultado, a administração da conduta vai depender do marketing e da
educação.
O marketing “diz respeito ao conjunto de tentativas de administrar
o comportamento humano mediante a oferta de incentivos de reforço
positivos e/ou consequências para o Meio Ambiente” (DIAS, 2007). A
relação
entre
ambiente
favorável
e
postura
adequada
pode
ser
212
desenvolvida explorando-se as vantagens comparativas de: produtos e
serviços, custo-benefício e canais de distribuição (disponibilidade do
produto ou serviço em cada lugar).
Em m ui ta s c on d i ç õ es , o ma r ke ti n g of er e c e a m el h or
c om b i na çã o d e e fi c ác i a , ef ic iê nc ia e ét i ca . O ma r ke ti n g
ac om od a o u ti li tar is m o. De a c or d o c om os e c on o m ist a s, o b e m
ma i or ac on t ec e q u a n d o t od os e sc ol h e m e m be n ef íc i o pr ó pr i o
u m mer ca d o l i vr e f u n d a me nt a d o e m tr oca s. A som a d a s
de ci s õe s i n di vi d u a i s p od e ger ar o b e m ma i or . ( R O TH SC HI LD,
2 0 0 2, p . 5 2)
O marketing pode criar um ambiente de escolha que equilibre o
interesse particular do indivíduo e as metas das empresas. Desta forma,
ele não restringe o livre-arbítrio. Para Dias (2007), pode ser uma opção
eticamente válida para induzir mudanças de atitude e adoção de novos
valores para o cenário de sustentabilidade. Nesta concepção pode ser um
aliado importante, desde que leve em consideração não apenas o ciclo de
vida do produto, mas também as consequências de sua utilização para o
meio ambiente. Assim, as campanhas de incentivo ao consumo devem
pautar-se numa ética que considere um futuro sustentável.
E, nesse sentido, os aspectos da comunicação ganham relevância,
na consideração do seu poder de mobilização social que constitui a
possibilidade de indução a novas condutas.
Regina César citada por Kunsch (2007, p.36) confirma que a
comunicação “problematiza a realidade dos movimentos sociais e da
comunidade, a fim de torná-los partícipes de sua transformação”.
Uma das múltiplas instâncias pelas quais o homem pode exercer o
direito e o dever de participar da vida comunitária é a comunicação
social (PERUZZO, 1998). Segundo a autora (1998, p.276), “dentro de
toda uma dinâmica histórica, instituições, grupos e movimentos sociais
das
classes
subalternas
vêm
constituindo
um
processo
de
auto-
organização e de comunicação. (...) Sua meta é, em última instância,
contribuir para a transformação da sociedade.”
Para
que
a
mobilização
aconteça,
são
necessárias
ações
comunicacionais para sustentar e dar visibilidade aos movimentos
sociais.
213
A m ob i l iz a çã o c on st i t ui - se a tr a vé s de u ma c on t í n ua
f or m u laç ã o es tr a té gi c a de aç õ es de c om u n i ca ç ã o q ue s e ja m
c a paz es de s u ste nt ar u ma l e gi ti mi da d e p ú bl ic a ( a tr a vé s da
v i si bi l i d a de) , c om o t a mb é m de su st e nt a r ví nc u l os d e
c onf ia n ça q ue m a nt ê m a c o op er aç ã o, q u e de pe n d e de um a
c a pac i da de de r e a li m e n tar c on t i n ua me n te o de ba te p úbl ic o e
r e f or ç ar os l a ç os de i de n t if i c açã o e d e per t en c i me nt o d os
s u jei t os m ob i liz a d os . ( H EN R IQ UE S, 2 0 0 5, p . 1 2 )
O processo de mobilização social requer o compartilhamento de
visões e informações, “o que envolve ações de comunicação em sentido
amplo e é por intermédio do discurso que se veiculam os projetos
políticos e as visões de futuro capazes de amalgamar uma pluralidade de
indivíduos em uma vontade coletiva” (KUNSCH, 2007, p. 96).
A motivação de uma conduta leva em consideração o desejo de se
atingir um objetivo, desde que ele atenda aos interesses pessoais
próprios e apresente um cenário favorável à mudança. Por fim, a atitude
considera a capacitação de um indivíduo para resolução de problemas,
para que ele esteja apto a romper com um hábito culturalmente arraigado
ou contrapor-se aos argumentos da sua comunidade.
Neste contexto, insere-se o exercício da cidadania, garantido pelo
direito à informação e acesso às tecnologias de forma a viabilizar o
desenvolvimento sustentável. Tornam-se estes os pilares de formação da
nova
consciência
em
nível
planetário
com
vistas
a
uma
visão
multiescalar. A partir deste ponto, firma-se o propósito de uma relação
sustentada entre ambiente e sociedade, cada vez mais focada na
disseminação de conhecimentos e desenvolvimento de habilidades para
mudar comportamentos e estilos de vida na busca pela sustentabilidade.
A noção de cidadania contemporânea significa um processo de
aprendizado social e de construção de novas formas de relações sociais e
práticas
políticas
concretas.
Canclini
(1996)
sugere
um
encontro
consolidado do consumo e da cidadania, percebendo-os como práticas
sociais que geram sentido de pertencimento. O mercado seria não
somente um espaço de troca de mercadorias, mas parte de interações
socioculturais mais complexas, pois o consumo não significaria apenas
posse individual de objetos, mas apropriação coletiva. O autor estuda os
impactos do aumento da participação popular por meio do consumo para
214
a
cidadania,
apontando
para
a
possibilidade
de
formação
de
‘consumidores-sujeitos-cidadãos’, vivificando as oportunidades para a
cidadania se fortalecer nas ações cotidianas, como as práticas de
consumo (PORTILHO, 2005).
Dessa questão surge a necessidade de se pensar nos instrumentos
de comunicação como elementos para contribuir com a produção de
novos fazeres e sentidos, entendendo sentido como uma construção
social, um empreendimento coletivo e interativo, para promover a
mobilização e a participação popular. Como afirmam Henriques e Braga
(2000), a mobilização social é um processo que se constrói por meio da
intervenção da comunicação, que estabelece fluxos para criação da coresponsabilidade dos cidadãos com as causas sociais. Nesse contexto, a
comunicação social não buscaria somente convocar os indivíduos e
despertar a adesão, mas suscitar ações que se desdobrariam em outras,
mais participativas, solidárias e políticas. O desafio, portanto, não é
apenas comunicar para espectadores passivos, mas educá-los para a
construção de novos sentidos, transformando os indivíduos em atores,
sujeitos e cidadãos.
Cenário de análise: campanhas publicitárias do Instituto Akatu
O Instituto AKATU é uma organização não governamental que foi
criada com a finalidade de educar e mobilizar a sociedade para o
consumo consciente. A palavra AKATU vem do tupi e significa ao
mesmo tempo, ‘semente boa’ e ‘mundo melhor’, traduzindo a ideia de
que o mundo melhor está contido nas ações de cada indivíduo. No intuito
de conscientizar e mobilizar o cidadão brasileiro para o seu papel
protagonista, enquanto consumidor, na sustentabilidade da vida no
planeta, o Instituto utiliza de várias ferramentas. Uma delas, presente em
seu site, são as campanhas publicitárias.
O conjunto de peças publicitárias, veiculadas na TV, rádio,
internet, outdoor, jornais e revistas, identificado como “Movimento
CUIDE”, objetiva disseminar o conceito e estimular a prática do
consumidor consciente, mostrando o ato do consumo como um ato de
cidadania. O seu lançamento na edição de verão 2004/2005 no evento
215
São Paulo Fashion Week, teve a venda de sacolas (“ecobags”) como
peças-símbolo do movimento. A campanha desenvolve vários temas
como: uso racional da água e dos alimentos, maneira correta de descartar
o lixo, responsabilidade social empresarial, a ilegalidade da pirataria,
atitudes responsáveis e valores que transformam o mundo.
Foram selecionados para estudo e reflexão aqueles anúncios que se
diferenciam dos temas das campanhas mais comuns como uso da água e
do lixo, presentes em outras produções midiáticas e que apresentam um
apelo especial à dimensão afetiva e emocional, além da racional.
O anúncio “FAVELA” desperta a consciência para o que está
errado na sociedade, mas que comumente se acostuma a ver e a
compreender no campo das coisas certas. Traz a foto de uma favela em
posição invertida acompanhada do texto: “A falta de consciência não
deixa você perceber que o mundo está de cabeça para baixo. Como essa
foto.” Induz a repensar o olhar sobre a realidade, senti-la, no sentido de
perceber além do óbvio. Ou seja, quantas coisas erradas fazem os
consumidores e, de tanto fazê-las, não as percebem criticamente. A
necessidade de mudança evidencia-se de modo provocante. Deste modo,
faz-se mídia inteligente, que ensina a pensar.
Outra peça, com o texto “Palavras ao vento”, utiliza os recursos
das tecnologias digitais para dizer que o consumidor consciente, ao
realizar uma compra, tem o poder de melhorar o mundo. A produção das
imagens sensibiliza ao mostrar o nascimento de uma flor, de solo árido,
cujas pétalas soltas codificam as palavras: mundo melhor, respeito,
semente boa, equilíbrio, compartilhar, planeta, compra, vida, recursos
naturais, consciente, consumo. Uma construção sensível de conceitos que
relacionam
a
busca
do
equilíbrio
entre
a
satisfação
pessoal,
a
preservação do meio-ambiente e o bem-estar social.
Ao anunciar “Cons uma sem limites o que vem do coração”, a
mensagem transmitida vai além da consciência de comprar um produto
ou serviço, escolher que tipo de empresa se quer na sociedade, assumir a
responsabilidade de um consumidor cidadão, atento às ações e valores
que preza. Mostra que há outra consciência: aquela que diz respeito a
coisas boas, que tornam as pessoas felizes e melhores. Elas não são bens
216
que podem ser comprados e vendidos, relacionam-se a valores, atitudes,
sensibilidades e emoções que não têm preço, mas valem muito. Estas
podem ser consumidas exageradamente: o amor, a amizade, o carinho, a
sensibilidade, a compaixão, a responsabilidade, a justiça e outras, pois
têm um estoque inesgotável.
Enquanto hoje a maior parte das campanhas apresenta uma
inversão completa de valores que bombardeia o consumidor, com
promessas de um futuro cheio de ‘sucesso e prazer’ de possuir bens
materiais, trabalhos dessa natureza primam por estimular educativamente
novas relações do homem com a natureza, o meio ambiente e a
sociedade.
É de fundamental importância reconhecer o valor educativo desta
estratégia de grande alcance utilizada pelo Instituto, pois os diversos
ambientes, informais e formais podem utilizar as peças pedagogicamente
para sensibilização das pessoas.
As campanhas são instrumentos dos quais o marketing se utiliza
para informar, mobilizar e motivar as pessoas em torno de uma causa, a
educação integra-se a ela com o objetivo de desenvolver a capacidade de
raciocinar e argumentar sobre os valores, considerando sua dimensão
afetiva e emocional, pois é por esta via que se alcança o sentimento de
responsabilidade diante de situações que não afetam somente a pessoa,
mas também os outros. Enfim, esse é o percurso capaz de mobilizar os
recursos pessoais que dão sentido aos problemas, para que as pessoas
sintam-se envolvidas neles. Este é o caminho da aprendizagem na
construção de valores. Não basta defender no discurso alguns princípios
do que é ser bom consumidor nos tempos atuais, é necessário que haja
envolvimento afetivo e emocional para que as pessoas ajam de maneira
coerente
com
o
que
pensam,
e
sejam,
realmente,
consumidores
conscientes.
A influência das campanhas poderia ser potencializada pela ação
educativa nos espaços escolares, desenvolver uma visão crítica das
mensagens e, por meio delas, aprender a identificar os problemas
ambientais, perceber a interdependência dos fenômenos, eventos e ações
mundiais, acreditar na força das ações cotidianas e no poder que cada um
217
tem para fazer mudanças e finalmente, empreender atos de cidadania,
mobilizando a coletividade para fazer a diferença. Assim, o compromisso
ético do marketing e da educação estaria se cumprindo.
juntos
para
despertar
nos
cidadãos
a
consciência
Caminhariam
do
seu
poder
transformador e da convivência harmônica na construção de uma cultura
da sustentabilidade.
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