Revista Montagem - 2009
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Revista Montagem - 2009
Oitenta e Seis Anos de compromissos Sempre Renovados com a Educação. REVISTA MONTAGEM Ano 11 / N. 11 – 2009 1 CENTRO UNIVERSITÁRIO MOURA LACERDA REITOR Glauco Eduardo Pereira Cortez PRÓ-REITORIA DE ASSUNTOS ACADÊMICOS Lidia Terêsa de Abreu Pires COOR DENADORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇ ÃO Carmen Rita Cardoso Junqueira COOR DENADORIA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS Fernando Antônio de Mello COOR DENADOR IA DE CUR SOS DE GR ADUAÇ ÃO Maria de Fátima da Silva Costa Garcia de Mattos COORDENADORIA DE CURSOS SEQUENCIAIS Adriano Marcelo Litcanov COORDENADORIA DE CURSOS DE TECNOLOGIA Marcelo Villela INSTITUIÇÃO MOURA LACERDA DIR ETOR EXECUTIVO Oscar Luiz de Moura Lacerda DIRETORIA ADMINISTRATIVA Denis Marcelo Lacerda dos Santos DIRETORIA FINANCEIRA Lis de Moura Lacerda Cochoni 2 EDITO RA Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta COMISSÃ O DE PUBLIC AÇ ÕES Fabiano Gonçalves dos Santos Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta Maria de Fátima S. C. G. de Mattos Naiá Carla Marchi Lago CONSELHO ED ITOR IA L Cláudio Pereira Bidurin Carlos Alberto Simeão Junior Darclet Terezinha Malerbo Souza Edivaldo Aparecido Nunes Martins Ericson Dias Mello Fernando Antônio de Mello José Antonio Lanchoti Lúcia Ferreira da Rosa Sobreira Luis Gonzaga Meziara Júnior Paulo Alencar Lapini Renata Maria Soares Dutra CONSELHO CON SU LTIVO An el Pérez - UNAM - Méxi co Eliane Terezinha Per es – UFPe – Pelotas – RS Elizete da Silva – UEFS – Feira de Santana- BA Ernesto Candeias Martins – Universidade Castelo Branco – Portugal Fernando Antonio Freitas Senna - Centro Universitário - Vila Velha -ES Flávia Silveira - Faculdade SENAC - Brasília- DF José Rubens Jardilino – UNINOVE – São Paulo – SP Maria Elena Pinheiro Maia - FACITA - Itápolis – SP Maria Helena Câmara Bastos – PUCRS – Porto Alegre – RS Maria Teresa Santos Cunha – UDESC – Florianópolis – SC Regina Helena Lima Caldana – USP – Ribeirão Preto – SP Renato Leite Marcondes – USP – Ribeirão Preto – SP Wenceslau Gonçalves Neto -UFU – Uberlândia - MG 3 Catalogação na fonte elaborada pela Bibliotecária Gina Botta Corrêa de Souza - CRB 8/7006 Montagem / Centro Universitário Moura Lacerda. – v.11, n.11 (2009) Ribeirão Preto: Centro Universitário Moura Lacerda, 2009. Anual ISSN 0104-4826 1. Conhecimentos gerais – Periódicos. I. Centro Universitário Moura Lacerda. CDD – 000 PUBLIC AÇ ÃO ANUAL / AN NU AL PUBLICATION Solicit a-se Per mut a/Exch ange D esired IND EXAÇÃO Revista indexada em Bases de Dados de abrangência Nacional e Internacional: BBE – Bibliografia Brasileira de Educação (Instituto Nacional de Estudos Educacionais Anísio Teixeira INEP/ Ministério da Educação). Abrangência nacional, acesso: http://inep.gov.br/pesquisa,bbe; GeoDados. Abrangência nacional, acesso: http://geodados.pg.utfpr.edu.br. CLASE – Base de Dados Bibliográficos de Revistas de Ciências Sociais e Humanas (Universidad Nacional Autónoma de México). Abrangência internacional, acesso: www.dgb.unam.mx/clase CAPA Flores, cores e aromas: natureza, sensibilidades e cultura. Autoria: Odila Martineli. Óleo sobre tela. Autorização em 13/01/2009 Direção de Arte: Con Vieira. Publicitária. Centro Universitário Moura Lacerda Orientação: Fernando Antônio de Mello Coordenadoria do Curso de Comunicação Social do Centro Universitário Moura Lacerda Núcleo de Publicidade e Propaganda do Curso de Comunicação Social 4 REV ISÃO DE PORTUG UÊS Rit a d e C á ssi a d o C a rm o G arc i a REV ISÃ O DE IN GLÊS Nata sha Vicente da Silveira Costa EQU IPE D E PR ODU ÇÃ O Amadeu Boldrin Neto Ana Carolina Picoli Souza Cruz Frederico Fábio Magosso Gabriela Frizzo Trevisan AGRADECIMENTO ESPECIAL Ama rílis Ga rb elini Vessi Odila Ma rtineli EN DEREÇO/ AD RES S Ru a Padr e Eu clid es, 9 95 - Campo s Elíseo s Ribeir ão Pr eto - S P - Brasil - CEP 14.0 85-4 20 Tel.: ( 16) 2101 1010 SETOR DE PUBLICAÇÕES Tel.: ( 16) 21011086 E-mail: publi ca cao@mourala cerda.ed u.br REV ISTA DISPON ÍV EL NO FORMATO ELETRÔN ICO Home p age: www.mo urala cerda.edu.b r Link: Publi caçõ es Os artigo s aqui p ublicado s são de inteir a r esponsabilidad e do s autore s e n ão expressam a opini ão d a Institui ção Univer sitári a Mour a Lacerd a . 5 SUMÁRIO / CONTENTS Editorial..................................................................................................................... 7 ARTIGOS/ARTICL ES LITERATURA E SOCIEDADE Aprendendo a enxergar com Saramago Learning how to see with Saramago Natasha Vicente da Silveira COSTA Elisabete Kefálas TRONCON.........................................................................................10 “Ao verme que primeiro roeu as frias carne do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas”. – uma estética da desesperança em Machado de Assis. “To the worm who first gnawed on the cold flesh of my corpse, i dedicate with fond remembrance these posthumous memoirs.” – an aesthetic of hopelessness in Machado de Assis. Paulo César CEDRAN.....................................................................................................20 A Autobiografia às avessas. Walsh: O “autor de novelas policiais” que virou “Detetive”. The Autobiography upside down. Walsh: the “author of detective stories” who became a “Detective”. Silvia Beatriz ADOUE................................................................................................... 28 ESTUDOS DE SEM IOLOGIA O Campo léxico-semântico do amor na Sitcom Friends. The Lexical-semantic field of love in the Sitcom Friends. Maira Coutinho FERREIRA...........................................................................................38 Leitura de imagem: a semiótica na sala de aula. The Reading of image: semiotics in the classroom. Patrícia Kiss SPINELI..................................................................................................43 REFLEXÕES SOBRE O EDUCADOR E EDUCAÇÃO NO SÉCULO XXI Contribuições da teoria literária para as novas metodologias de ensino da Literatura Contributions from literary theory to new methodologies of Literature teaching Adriana Juliano Mendes de CAMPOS............................................................................52 6 Tecnologias da informação e comunicação: da ambivalência de um conceito multifacetado às suas potencialidades e desafios no campo educacional. Information and communication technologies: from ambivalence of a multifaceted concept to its potentialities and challenges in the education field. Luciene Aparecida da SILVA.........................................................................................65 A Complexidade do objeto trabalho docente: algumas reflexões e indagações. The Complexity of the teaching occupation: some considerations and inquiry. Maria Cristina Ravaneli de Barros O’REILLY Maria Silvia Azarite SALOMÃO....................................................................................78 A Formação de professores de inglês numa perspectiva crítico-reflexivo: comentários e possibilidade. Teacher training analysis in a critical-reflexive perspective: comments and possibilities. Patrícia Dias Reis FRISENE...........................................................................................84 LINGUAGENS MIDIÁTICAS Poder Midiático e Política Internacional Communication Power and International Politic Carla Aparecida Arena VENTURA Jailane LEAL...................................................................................................................90 Consumo sustentável e mudança de postura dos cidadãos: reflexão sobre as campanhas publicitárias do Instituto Akatu. Sustainable consumption and change in citizens attitude: considerations about the Akatu Institute advertisements. Daniela VIEGAS Dilma Dutra Borges de CASTRO.................................................................................. 99 7 Editorial A Revista Montagem, em seu décimo primeiro número, mantém seu estatuto multidisciplinar que permite olhar por diversas formas e perspectivas os problemas e as possíveis reflexões que os artigos acadêmicos, nela constantes, possam propiciar para o conhecimento da realidade. A expressão última flor do Lácio ganha, neste número, especial relevo. Por meio de seis artigos evidencia-se, sob diversos aspectos, a multiplicidade que a língua e a literatura portuguesa e brasileira podem proporcionar. Minha pátria é minha língua, afirma Caetano Veloso em uma música. Que nossa pátria seja a língua vivenciada e discutida nos artigos ora apresentados. Um conjunto de textos inscritos no campo da Literatura e Sociedade apresenta ao leitor diferentes faces e diferentes olhares que permeiam essas complexas interlocuções. No artigo Aprendendo a enxergar com Saramago são discutidos alguns aspectos da obra E nsaio sobre a cegueira, do escritor português José Saramago, na qual se volta à exploração de vários elementos da narrativa, tais como: a linguagem, as técnicas do narrador, o tempo e foco narrativo, de maneira que os provérbios, os sintagmas congelados e os discursos se encontrem a serviço do rompimento com os padrões e formas como foram catalogados, sugerindo que nos despojemos do pré-concebido para compreender as técnicas do narrador. No artigo: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas” – uma estética da desesperança de Machado de Assis, discutem-se os aspectos socioculturais que influenciaram Machado de Assis na construção da estética da (des)esperança, a partir da obra Mem órias Póstum as de Brás Cubas. O autor, ao introduzir o personagem morto, Brás Cubas, produz uma análise em relação à sociedade e à própria vida, feita com crueldade e pessimismo, análise esta que se apresenta como uma alternativa crítica à sociedade brasileira. 8 Autobiografia às avessas. Walsh: o autor de novelas policiais que virou “detetive”. Esse instigante artigo apresenta um estudo sobre o argentino Rodolfo Walsh, leitor, tradutor e autor de novelas policiais de enigma e que foi compelido pelas circunstâncias a investigar um crime. Para isto, assumiu o papel do detetive dos relatos que escrevia. O modelo do policial de enigma resultava insuficiente. Walsh, aguçando sua perspicácia, publicou mais do que os resultados da investigação: elaborou um diário da própria investigação, ou uma autobiografia do cidadão/detetive e que, em conseqüência deste questionamento, acabou por abandonar a literatura ficcional e policial, dedicando-se à ação de uma literatura militante que combatia o regime ditatorial vigente na Argentina. No campo de estudos de Semiologia temos dois artigos que contemplam essa área. Em O campo léxico-semântico do amor na Sitcom Friends, a autora propõe construir um campo léxico-semântico do amor da língua inglesa a partir das lexias encontradas nas legendas em inglês dos primeiros e últimos episódios das cinco primeiras temporadas da sitcom norte-americana Friends produzida pela Warner Brothers, cujo tema central é a vida amorosa de seus personagens. Falase em um campo léxico-semântico porque não se trata do campo que abrange todas as lexias e expressões de língua inglesa relacionadas ao tema amor, e sim apenas daquelas encontradas no corpus escolhido. O conceito de lexia adotado é o de Pottier (1978). Em Leitura de imagem: a semiótica na sala de aula, a autora discute o uso das categorias de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade do filósofo C harles Sanders Pierce, na análise de imagens, e sugere seu uso em exercícios educacionais para alunos do ensino superior.Entende que esse procedimento contribuirá para a melhor compreensão que envolve o ensino da semiótica junto a esse nível educacional. A autora exemplifica sua proposta com a análise de duas imagens fotográficas de Luiz Eduardo R. Achutti, que fazem parte da coleção Pirelli, do Museu de Arte de São Paulo. 9 Reflexões sobre práticas educativas constituem-se na temática desenvolvida em dois textos. No eixo da metodologia para o ensino da literatura, o artigo Contribuições da teoria literária para as novas metodologias de ensino da Literatura apresenta uma forma de reflexão sobre formas de tratamento no âmbito escolar, bem como sobre resultados educacionais recentes relativos à formação leitora. O estudo problematiza, a partir da LDB/71, a oposição central entre o conhecimento formal, linear e fragmentado e os desafios para superação desse modelo pela práxis dialética e interdisciplinar. Informação e comunicação constituem o princípio pelo qual a autora de Tecnologias da informação e comunicação: da ambivalência de um conceito multifacetado às s uas potencialidades e desafios no campo educacional procura pontos de convergência entre o paradigma educacional emergente e a informática educacional, desenvolvendo uma interlocução entre os aspectos multidimensionais inerentes à pedagogia dos meios tecnológicos. As relações entre o educador e educação no século XXI são debatidas no texto: A complexidade do objeto trabalho docente: algumas reflexões e indagações, em que as autoras buscam compreender os elementos constituintes da carreira docente que ultrapassam as questões de ensino em sala de aula e adentram pelos saberes práticos específicos aos lugares de trabalho, com suas rotinas, valores e regras. São discutidas as condições de trabalho, apontando problemas e encaminhamentos. A formação de professores de inglês numa perspectiva críticoreflexiva: comentários e possibilidades traz uma reflexão sobre a relação entre a análise do habitus e a formação de professores, tendo como metodologia o estudo das biografias de alunos ingressantes no curso de Letras O artigo constitui-se em importante referência de pesquisa para profes sores em geral, especialmente de Língua Inglesa e Prática de Ensino. 10 As Linguagens Midiáticas constituem-se no campo de análise de dois artigos. O texto Poder Midiático e Política Internacional discute a relação entre a mídia e a política, enfatizando a centralidade dos meios de comunicação e sua atuação em discursos políticos, na sociedade contemporânea. Aponta que, ao lado de grupos políticos aparentando se utilizam de mensagens subliminares, os ideologias um caráter lógico, visando em seus discursos, convencer o receptor da mensagem de que seus discursos são condizentes com a realidade. O atual padrão de consumo constitui-se no epicentro do artigo Consumo sustentável e mudança de postura dos cidadãos: reflexão sobre as campanhas publicitárias do Instituto Akatu, em que as autoras tratam o consumo sustentável, a questão ética na utilização de ferramentas como a educação, a lei e o marketing, caracterizados nas campanhas do Instituto Akatu, identificando suas contribuições para o processo de mobilização social, de modo a promover a conscientização e fazer frente aos efeitos negativos relativos ao padrão de consumo e meio ambiente, com seus reflexos à sociedade e aos indivíduos. A Revista, como se denota, traz temas atuais e polêmicos que, com certeza, instigarão os leitores a ampliar sua maneira de refletir e compreender os desafios apresentados na atualidade. Ana Carolina Picoli Souza Cruz Paulo César Cedran 11 LITERATURA E SOCIEDADE 12 APRENDENDO A ENXE RGAR COM SARAMAGO N at a s h a V ic e nt e d a Si lv ei r a CO S TA * E li sa be te K e f á l as TR O N CO N * * Resumo: Neste artigo, serão discutidos alguns aspectos da obra Ensaio sobre a cegueira do escritor português José Saramago. Este trabalho se volta à exploração de vários elementos da narrativa, tais como: a linguagem, as técnicas do narrador, o tempo e foco narrativo. Obsevarse-á também de que maneira os provérbios, os sintagmas congelados e os discursos se encontram a serviço do rompimento com os padrões e com o catalogado e sugere, finalmente, que nos despojemos do pré-concebido. Palavras-chave: Saramago; Sintagma; Provérbio; Literatura portuguesa. Técnicas do narrador; LEARNING HOW TO SEE WITH SARAMAGO Abstract Abstract: This article discusses some aspects of the novel Ensaio sobre a cegueira, by the portuguese writer José Saramago. This paper brings together several elements of the narrative, such as the language, the techniques of the narrator, time and the narrative point of view. We also analyse how the proverbs, the immutable syntagmas and the speech take part in the rupture with patterns and with what is catalogued and finally suggest that we dispose of preconceptions. Keywords: Saramago; Syntagmas;Techniques of the narrato; Proverbs; portuguese literature. Introdução Ao ler o título da obra, Ensaio sobre a cegueira, é possível verificar que a etimologia de ensaio, de acordo com Angélica Soares, indica “tentativa”, “experiência” e “inacabamento”. Contudo, ao longo do tempo, já foram produzidos trabalhos conclusivos que também levavam o título de “ensaio”. Vê-se, então, que ensaio não é somente uma tentativa do autor de interpretar a realidade por suas exposições inacabadas. * Me str a n d a e m p e la U N ESP e m E st u d os Li t e rá r i os. Gra d u a da e m Le tr a s pe l o C e ntr o U ni v er sitá r i o M ou r a Lac e rd a : E - ma il : n at a sh a v sc @ y a h o o.c o m. b r * * P r of e ss or a d o C ur so d e Le tr a s d o Ce n tr o U ni ve r sit á ri o M ou r a Lace r d a: E - ma i l: b e t et r o nc o n@ u o l.c o m. br 13 Ensaio revela um tom crítico e, muitas vezes, uma feição didática. Não é situado, predominantemente, dentro do narrativo, lírico, épico ou dramático. Considerando, então, as características acima e dado que a obra é surpreendentemente um romance, faz-se necessário outra significação para ensaio. O autor, portanto, mostra-nos uma experiência, um treinamento de seus personagens. Eles experimentam a cegueira e, consequentemente, ensaiam-na com a finalidade oposta, a de enxergarem. Saramago é conhecido por seu modo diferente na construção da narrativa. Por isso, o narrador será classificado como narrador-autor neste trabalho, já que Saramago assume total res ponsabilidade pelo que escreve em suas obras e questiona a separação de ambos. Aceita, contudo, as variantes de um narrador central e seus textos apresentam polifonia. A epígrafe indica o conteúdo do texto e resume o pensamento do autor. É o lema da construção da obra: Se p od e s ol h a r , vê. Se p od e s ve r , re p ar a. Li vr o d os C on sel h os A obra é uma metáfora, uma alegoria finissecular. A situação vivida pelas personagens significa algo para, além disso. Há a exposição de um pensamento sob a forma figurada ou sob a forma de metáfora. A obra trata, então, não somente de pessoas cegas, mas de relações humanas, do individualismo egoísta que, freqüentemente, impede as pessoas de perceber o que está ao seu redor. É necessário ver o inteiro, e não o mutilado. Parte I - Nível da enunciação Foco narrativo O narrador-autor é onisciente. Benjamin Abdala Júnior comenta, em Introdução à análise da narrativa, a tipologia de Norman Friedman. Este último diz que onisciência é quando se “conhece o que há dentro das personagens (seu mundo interior)”, há “a máxima liberdade possível 14 para escolher como contar os fatos” e “esse narrador ainda interfere na história, com comentários”. Se n ti u u ma t on t u r a, u m tr e m or ir re p ri mí ve l a t r a ves sou lh e o c or p o, o f r i o e a f ebr e fi z er a m- l he e nt r ec h oc ar os de n te s. ( p . 7 7) ... n u m s al ve - s e q ue m p u der me r e ce d or de se ve ra cr ít ica , p oi s nã o é a ssi m q ue se tr at a m pe ssoa s c e ga s, p a ra a in f el ic i da de já l he s b a st a . ( p. 2 2 5) ...t e n h a m de c i di d o, e n f i m, a e nt e r ra r os s e u s m or t os , pe l o me n os de st e c he ir o f i cá m os n ó s li vr e s, a o c h eir o d os vi v os , me s mo f é t i d o, ser á mai s f ác il h a bi t uar - n o s. ( p. 1 1 8) Nota-se, pela primeira citação, que o narrador-autor tem conhecimento sobre o que a personagem sente. Já na segunda, é perceptível que o mesmo é intruso, pois faz comentários e se “intromete” na história de forma marcante. O último excerto mostra que o narradorautor, que narra em terceira pessoa, dirige-se ao leitor e utiliza o pronome pessoal reto “nós”. A função de narrar é delegada, freqüentemente, a outras personagens. É a polifonia, ou seja, várias vozes dentro de um mesmo texto: En tr e os c e g os h a vi a u ma m u l her q ue d a va a i mpr e ssã o de e sta r a o me sm o te m p o e m t od a a p ar te , a ju da n d o a ca rr e g a r , f a ze n d o c o m o se gu ia s se os h om e n s, c oi s a e vi de n te me n te i m p oss í v el p ar a u ma c e ga , e , se f os se p or ac a so ou de pr op ó si t o , p or ma i s de u ma vez vi r o u a car a p ar a o l a d o da a l a d os c on t a g ia d os, c om o se os p u de s se ver ou lh e s pe rc e be s se a pr e se n ç a. ( p. 9 1 ) O v e l h o da ve n d a pr et a f o i n ar ra n d o est e s tr em e n d os ac on te ci m e nt os d e ba n ca e f i n a nç a e n q ua n t o atr a ve ss a va m va ga r os a me n te a c i da de. .. ( p. 2 5 5) Desde o início da obra e, principalmente, dentro do manicômio, são mostradas as atividades que a mulher do médico realiza em prol da comunidade. No primeiro excerto, contudo, isso é mostrado com se fosse uma novidade, como se alguém, que não fosse o narrador que já havia descrito tais atividades, estivesse percebendo naquele momento. No segundo excerto, é perceptível que o narrador-autor deixou com que o cego narrasse tudo o que se passava fora do manicômio, concedendo a função de narrar a ele. 15 Técnicas narrativas Uma das técnicas utilizadas é o uso do pronome pessoal “nós”: ...a q ue la q u e es tá c a sa d a c om o of ta l m ol o gi s ta , ta nt o e la te m c a n sa d o de di z er - n o s. .. ( p. 1 1 9) ... h ou ve q ue m t i ve sse fi ca d o ca la d o, sa be r e m os se f oi par a nã o m e nt ir . ( p. 1 4 3) a se u te m p o Isso é uma técnica que faz com que nos aproximemos da história lida. É como se estivéssemos junto do narrador-autor no momento em que escreve. Outra técnica largamente explorada na obra é a utilização de ditos populares da cultura portuguesa, parábolas e provérbios: Pl e bei a me n t e c on c l u i n d o, c om o nã o se ca n sa d e en s i nar n os o p r o vé r b i o a n ti g o, o c e g o, ju l ga n d o q ue se b e nzi a , par ti u o nar iz. ( p . 2 6) O ou tr o t a mbé m d i zi a q u e q u e m par t e e r e p ar te e nã o f ic a c om a m el h or pa r t e, ou é t ol o, ou n o p ar tir nã o te m a r te .. ( p. . 1 0 3) É u m d it o, e star à es pe r a de sa pa t os de def u n t o si gn i f i ca va e star à e sp e r a d e c oi s a ne n h u m a. ( p. . 1 9 8) ... f el iz me nt e , o d ia b o ne m se m p r e e st á at r á s da p o r ta , es te d i ta d o ve i o mu i t o a p r op ó s i t o. ( p . . 1 9 3) “É m ui t o si mpl e s, se n t i c om o se o i nt er i or d a ór b i t a va z ia e st i ve sse i nf la ma d o e tir ei a ve n d a p ar a ce rt i fi car - me , f oi n es se mo m e nt o q ue ce gu ei, P ar e ce u ma p a rá b ol a, d i sse u ma v oz de sc on h e c i da, o ol h o q ue se r e c u sa a r ec on h e c er a s ua pr ó pr ia a u sê n c ia.. . ” ( p. 1 2 9 ) Só u m de r r a de i r o c ui da d o, u m a ú lt i ma pr u dê n c ia o i m pe di r a m d e r e m at ar o a pel o c i ta n d o o c on h e c id o p r o vér b i o Q ue m c or r e p o r g ost o, n ã o c a n sa . ( pá g. 1 6 5) Ao utilizar tal técnica, é conferida uma feição portuguesa à obra e, assim, é-nos revelada a cultura desse país. É interessante observar que, em vários trechos da obra, o narradorautor desmonta tais ditados populares e os reconstrói de acordo com a situação de suas personagens: ... já se sa b e á gu a m ol e em br a sa vi va ta nt o d á a té q ue ap a ga a r i m a q ue a p on h a ou tr o. ( p. 2 1 3) 16 O tr a ba l h o d o ve l h o é p ou c o, m as q u e m o d e s pr e za é l ou c o, E sse d it a d o n ã o é a ssi m , Be m se i, on d e e u di sse ve l h o, é m e ni n o, on d e e u d isse de spr e z a, é de sde n h a , ma s os d it a d os se q ui ser e m ir diz e n d o o me s mo p or ser pr e ci so c on t i n uar a di zê - l o, tê m d e a da p ta r - se a os te m p o s. . . ( p. 2 6 9) A modificação dos ditados populares é um exemplo de que a cegueira existente no plano de conteúdo da obra é demonstrada, assim, no plano da expressão. Vejamos outra citação: A q ui n ã o me saf o, pe n s ou , u sa n d o u m a p ala vr a q ue nã o f azi a p ar t e d o se u v oc ab u lár i o c or r e n te, u m a vez m ai s s e de m on st r a n d o q u e a f o rç a e a n at ur e za da s ci rc u n st â nc ia s in f l ue m m ui t o n o lé x ic o .. . ( p. 2 2 0) Como se pode ver é também a circunstância que influencia o vocabulário utilizado. É permitido, portanto, adaptar ditados populares ao contexto da obra. Os provérbios e os ditos populares são clichês, ou seja, são a cristalização do velho. É preciso, finalmente, desmontar as frases feitas para que a novidade descondicione nosso ouvido e o novo discurso traga revolução, ou seja, um novo modo de enxergar o mundo. Outra técnica é o uso de sintagmas congelados. A ideia mostrada na epígrafe de que é necessário ver o inteiro, e não o mutilado é refletida no modo de construção da obra e os sintagmas são exemplo disso, já que têm que ser entendidos no contexto geral da obra, na novidade estilística de que o narrador-autor se utiliza: Eu é q u e e st ou ce g o, n ã o t u, t u n ã o p od e s sa b e r o q ue me s u ce de u , O m é di c o v a i p ôr - te b om , ver á s, Ve r ei. ( p. 1 9) Ve jo t u d o br a nc o, se n h o r d ou t or. N ã o f al ou d o r ou b o d o au t om ó ve l. ( p. 2 2) Ver á s c om o t u d o s e i r á r es ol ver . ( p . 2 3) P or e n q u a nt o n ã o l he r ece it ar e i na da , ser ia e sta r a r ece i tar à s ce ga s, Aí e st á u ma e x pr essã o a pr op r i a d a, ob s er v ou o c e g o. ( p. 2 4) ... di z e le q u e vê t u d o b r an c o, u m a e sp éc ie d e br a n c ur a lei t os a. .. ( p. 2 8) Nã o c h or e s, va i s ver q u e a tu a mãe nã o se d e m or a. ( p . 4 9) 17 O n de é q u e e stá f er i d o, A q ui, A q ui, on d e , N a pe r na , nã o es tá a ver , a ga ja e s p et o u- m e c om u m s al t o d o sap a t o.. . ( p. 5 7) E ac r e sc e nt ou , c h o ca r r e ir o, A té à vi st a , me n i na s, vã o- se pr e p ar a n d o p ar a a pr ó xi ma se ss ã o. ( p. 1 7 8) Q ue m e stá dec i di d o a i r , p on h a a m ã o n o a r , é o q u e ac on t e ce a q ue m nã o p en sa d ua s ve z e s a nt e s d e a br ir a b oc a par a f a lar . .. ( p. 1 9 7) O uso de sintagmas congelados indica a utilização de frases concretizadas no léxico que, no contexto da obra, causa estranhamento e soa como gracejo para os cegos. São expressões que já estão irremediavelmente alojadas nas mentes e que continuam a ser utilizadas na obra mesmo quando sua aplicação seja impossível na prática, já que a visão não é mais um sentido válido. Há outros tipos de sintagmas congelados na obra, que aparecem menos freqüentemente: Be m , per gu n t ar a, q ua n d o n ã o es tá va m os a m u it o ob r i ga d o , se m d ú vi da a t e l ef on i sta C om o e st á , s e n h or d ou t or , é o q u e d ize mos q uer e m os da r p ar t e de fr a c o, di s se mos , Be m, e m or r e r ... ( p . 4 1) Gra ç as a De u s, e s ta e vi de n te m ost r a d e f ra q u e za m or a l de i x ou de ter q ua l q u er i m p or tâ nc i a. .. ( p. 1 6 2) As expres sões “Graças a Deus” e a reposta “bem” à pergunta “Como está?” mostram, também, a automatização da língua, que muitas vezes expressa o que, de fato, não caberia em determinado ponto. No primeiro excerto, o doutor oftalmologista liga para seu consultório para avisar outro médico sobre s ua repentina cegueira. Não estava tudo bem, então. Com relação ao segundo trecho, é fato conhecido que o narradorautor da obra é ateu; logo, a expressão “graças a Deus” se mostra deslocada, é a força do hábito. A pontuação utilizada, visivelmente dif erente nessa obra, não é a acadêmica, tradicional: Dei ta da a o l a d o d o ma r i d o, o ma i s j u nt os q u e p od ia m es tar , p or ca u sa da e str e ite za d a ca ma , mas t a m b ém p or g os t o, q ua n t o l h e s h a v i a c u s ta d o, n o m ei o d a n oi te, gu ar d ar o 18 de c or o, nã o f a ze r c om o a q u ele s a q u e m a l gu é m ti n ha c h a ma d o p or c os , a m u l he r d o mé d ic o ol h o u o r e l ó gi o. ” ( p. 1 0 0) O u vir a m- s e ti r os na r u a . Vê m- n os m at ar , gr i t ou a l gu é m, Ca l ma, di sse o mé di c o, de ve m os ser l ó g ic os . .. ( p. 1 1 0 ) Vê-se que há uma quebra na linguagem: são abolidos os sinais convencionais de expressão de fala das personagens, como dois-pontos e travessão. É empregada a vírgula para separar a narração do narradorautor da fala das personagens, assim como seus diálogos. São utilizadas tanto a linguagem informal, popular, quanto a linguagem culta: Ra p az e s, e sta s ga ja s s ã o me sm o b oa s ( . ..) C ale m- se , sua s p u ta s, e sta s ga j a s s ã o t od a s i gu a is, se m pr e tê m d e p ôr - se a os b e rr os (. ..) De s pa c ha -te d a í, n ã o a gu e n t o u m mi n ut o. .. ( p. 1 7 6) Q ua nt o a n ós , pe r mi tir - n os- e m os p e n sar q ue se o c e g o ti ve s se a c ei ta d o o s e gu n d o of er e ci m e nt o d o af i n al f al s o sa ma ri t a n o, n a q ue le d e r r a de ir o i n s ta nt e e m q ue a b on d a d e ai n da p o d er ia ter pr e va l eci d o , r ef er i m o- n os o of er ec i me n t o d e lh e f i car a f az e r c o mp a n hi a e n q u a nt o a mu l he r nã o c he ga s se , q ue m sa b e se o ef e it o d a r esp on s a b il i da d e m or a l r es u lt a nt e d a c onf ia n ç a... ( p. 2 6) Nota-se a contribuição que cada tipo de linguagem e de discurso traz para o texto. A linguagem dos cegos malvados é dotada de palavras ofensivas e vocabulário de baixo calão. O segundo discurso, contudo, é elaborado, tecido e enriquecido de provérbios e ditos populares, o que mostra a contribuição da cultura portuguesa. Ao utilizar esses dois tipos de linguagem, o narrador-autor mostra que não despreza quem os produz, pois esboça, sobretudo, um retrato de sua cultura. É exposto, também, que a cegueira que atinge as personagens é um mar de leite, é branca. Isso é usado justamente como um meio de diferenciação da cegueira física comum e indica, novamente, o rompimento com o sintagma congelado. É preciso cegar para começar a enxergar; saber, aprender a ver. O “cegar” representa, simbolicamente, o aprendizado, que proporcionará a “visão” aos atingidos, ou seja, um novo meio de ver o mundo. Outra técnica que permeia o texto é o suspense: 19 A m ul her d o mé dic o l e va nt ou os ol h os par a on de a te s ou r a e st a va . E s tr a n h o u vê- la t ã o al t o, de p e n d ura d a p or u ma da s ar g ol a s ou o l h ai s, c om o se nã o t i ve s se si d o el a p r ó pr ia q ue m a ti n ha p os t o l á, de p oi s , de s i par a c on s i g o, c on s i der ou q ue ha vi a si d o u m a e x ce le nt e i d é ia tr a z ê- la. . .” ( p. 1 4 4 ) Ele interrompe a narração temporariamente e deixa pontos abertos que serão retomados mais tarde. Isso faz com que o leitor se envolva com a obra e se interesse pela leitura. Além disso, há prolepse na narração: Ai n da s e r e c o r da de c o m o d e ve r á r e gu l a r o i sq ue i r o p ar a pr od u z ir u m a c h a ma c o m pr i da, já aí a te m, u m pe q u e no p u n h a l de l u me , vi br a nt e c om o a p on t a d u m a te sou r a. ( p . 2 0 6) A prolepse é a antecipação de um acontecimento que ocorrerá posteriormente no discurso narrativo. Tem-se prolepse no excerto quando a chama do isqueiro é comparada à tesoura. Iss o indica que ela servirá para matar, da mesma forma que o objeto metálico foi utilizado. Nota-se o aspecto sensorial da obra: O m a u c he ir o d e sp r e n de -se da i m e n sa l i xei r a c o mo u ma n u ve m de g á s t ó xi c o.. . ( p. 2 9 4) ... o c he i r o d o vó m i t o só se n ot a q u a n d o o a r e o r e s t o nã o c he ir a m a o me s m o. . . (p . 1 7 6) ...a o p on t o d e c e gar o o l fa ct o, q u e é o m ai s de l i ca d o d os se n ti d os. .. ( p. 1 7 4) O asp e c t o d a s r ua s p i or a va a c a ca h or a q u e ia pa s sa n d o. O li x o pa r ec ia mu l ti p li c a r- s e d ur a nt e a s h or a s n oc t ur na s.. . ( p . 2 9 4) Os códigos sociais começam a se perder em um ambiente governado pelos sentidos. É interessante notar que os cinco s entidos são afetados. Ao longo da obra, trabalha-se, em primeiro lugar, a questão do ver, do enxergar, que é concedido somente à personagem feminina; há, também, o olfato, sentido mais delicado na opinião do narrador-autor, que é contaminado pelo aspecto de podridão do manicômio; tem-se o tato desordenado quando os cegos se esbarram atrapalhadamente; o paladar, sentido pouco privilegiado devido à escassez de alimento e, finalmente, a 20 audição, sentido que resta para contribuir com a organização das camaradas e a comunicação dos cegos. Ideologia do narrador-autor O narrador-autor mostra-se adepto dos ideais comunistas e há vários pontos que demonstram sua ideologia. Um deles é a divisão que existe entre os cegos das camaratas. Tal divisão também existe na sociedade, de acordo com o Manifesto do Partido Comunista: Tod a soc ie da d e até a q ui e x i ste n te r e p ou s o u, c om o vi m o s, n o a nt a g on i s m o en tr e c la s se s d e op r e s sor e s e c la sse s de op r i m i d os . ( p. 5 6) São expostas, então, duas citações: a primeira da obra estudada; a segunda, do Manifesto acima, para que a comparação seja facilitada: ...f i q ue i c om a i mpr e s sã o de ser e m u m gr u p o gr a n d e, e o pi or é q u e e st ã o ar ma d o s.. .( p . 1 3 8) A s oc ie da d e i nt eir a va i - se di vi d i n d o c a da vez ma i s e m d oi s gr a n de s c a m p os in i m i g os , e m d u as gr a n d es c l ass es di r et a me n te op os t a s e n tr e s i: b u r gu e sia e pr ol e t a r ia d o. ( p . 4 6) Vê-se, nas citações, a divisão dos internos em dois grupos. A burguesia seria então, na obra, os cegos malvados que têm arma de fogo e outros instrumentos usados para coação, que representariam o capital: A c on d i ç ã o ma i s e sse n cia l par a a e x is tê n ci a e a d omi n aç ã o d a cl a sse b u r gue s a é a ac u m u laç ã o da r i q u ez a n as mã os d e p ar t ic u lar e s, a f or m açã o e o a u m e nt o d o ca p it a l. ( p . 5 7) Tal citação extraída do Manifesto do Partido Comunista reforça a clara divisão de burguesia e do proletariado, que seriam os outros cegos, ou seja, aqueles que pagam por um bem, no caso a comida, com sua força de trabalho ou com trocas: Ele s diz e m q ue i s s o ac a b ou , a par ti r d e h o j e q ue m q ui s er c om er ter á d e pa ga r . ( p. 1 3 8) 21 ... os m ei os de pr od u ç ã o e d e tr oc a à ba se d os q u a i s ve i o se c on s ti t ui n d o a b ur gu e si a.. .( p. 5 0) ...a p r ó p ria b ur g u e sia é o pr od u t o de u m l on g o pr oc e ss o de de se n v ol v i me n t o, d e u ma sér ie de r e v ol uç õ e s n os m od os de pr od u ç ã o de tr oc a . ( p. 4 7) Primeiramente, a troca se realizava pelos bens materiais que cada cego de cada camarata devia entregar aos cegos malvados. Depois, por serviço sexual das mulheres em troca de comida. Essa mudança é um exemplo da revolução no modo de troca citada no último excerto. Há, posteriormente, a crescente insatisfação que gera as manifestações: Há se mpr e al gu é m q u e pr op õ e u ma a cçã o c olec t i va or ga n iz a d ora , u ma ma n if e st a çã o ma c iç a, a pr e se n ta n d o c om o ar gu m e nt o va le d or a ta nt a s v eze s v er if i ca da f o r ça e x pr e s si va ex p a ns i va d o n ú me r o. ..( p. 1 6 1) ... os c h oq u e s e ntr e o op er ár i o e o b u r gu ê s si n gu l ar as su me m c a da ve z ma i s o c ar át er de c on f li t os e n tr e d ua s cla s se s. O s op e rá r i os c o me ç a m a f or ma r c oal iza çõ es c on t r a os b ur gu e se s. .. ( p. 5 4 ) E, finalmente, o narrador-autor reafirma seu modo de vista: ...e c air - l he s e m c i ma , pa r a q ue a pr e n d e ss e m a re sp e i tar o sa gr a d o pr i n c í p i o da p r opr ie da d e c ol ec ti va . ( p. 1 0 8) Vê-se que o percurso realizado pelas personagens e suas ações ligam-se à descrição histórica dada no Manifesto do Partido Comunista. É mostrada, então, a falência do capitalismo, ou seja, de um sistema opressor que privilegia poucos. Além dis so, é notável que o narrador-autor aproxima sua narração à ideia de inconsciente coletivo: C om o a n d ar d os t e mp os , ma i s a s a c t i vi da d e s d a c on vi vê n c ia e a s tr oc a s ge né tic a s, aca b á mos p or met e r a c on sc iê n c ia na c or d o sa n gu e e n o s al da s lá gr i ma s, e, c om o se t a nt o f os s e p ou c o, f ize m os d os ol h os u ma e sp é ci e d e es pe l h os vi r a d os p ar a d en tr o, c om o r es u lt a d o, mu i ta s ve ze s, de m os tr ar e m ele s se m r es er va o q u e est á va m os tr at a n d o de ne ga r c om a b oc a . ( p. 2 6 ) 22 Identifica-se, então, a ideia de inconsciente coletivo, que é “um reservatório de imagens latentes, chamadas de arquétipos ou imagens primordiais, que cada pessoa herda de s eus ancestrais. A pessoa não se lembra das imagens de forma consciente, porém, herda uma predisposição para reagir ao mundo da forma que seus ancestrais faziam. Sendo assim, a teoria estabelece que o ser humano nasce com muitas predisposições para pensar, entender e agir de certas formas.” 1 Há também a zoomorfização: Ti n ha a i m pr e ssã o d e h a v er pi sa d o u ma pa st a mol e , os ex cr e n t os d e a l gu é m q u e n ã o a c er t ar a c om o b u r a c o da r etr e te ou q ue r e s ol ve r a a li vi ar - se se m q uer er sa b er mai s de r esp e it os . ( p. 9 6) ...e r a d e m orr er , u n s q ua n t os c e g os a a va n ç ar e m de ga ta s, d e ca r a r e n te a o c hã o c om o s uí n os . .. ( p. 1 0 5) ... u ma f i la g r ot e sc a de f êm ea s ma lc h e ir osa s, c om a s r ou pa s i mu n d a s e a n d ra josa s, par e ce i m p oss í ve l q u e a f or ç a an i ma l d o se x o se ja a s si m tã o p od e r os a, a o p o nt o d e ce ga r o ol f ac t o, q ue é o m ai s de l i ca d o d os se n ti d os .. . ( p. 1 7 4) Os c e g os r e li n c ha r a m, d er a m pa t a d as n o c hã o. .. ( p. 1 7 6 ) ... q ui nz e m u l her e s e spar r a ma da s na s c a ma s e n o c h ã o, os h ome n s a i r d e u ma s p a r a ou t ra s, r e sf ol e ga n d o c omo p o r c os.. . ( p. 1 8 4 ) Os homens são nivelados aos animais, o que indica uma visão naturalista, pois ressalta fatores biológicos como o sexo, o instinto, a violência e as mazelas humanas. Com isso, o us o que se faz da razão é questionado, assim como a dignidade humana. É possível identificar o rompimento de preconceitos: ...f ic a n d o p or vi a de m on s tr a d o, ma i s u ma ve z, q ue a s ap ar ê n c ia s sã o e n ga na d or a s, e q ue nã o é p e l o a s pec t o da c ar a e pel a pr e s tez a d o c or p o q u e se c on h e c e a f or ça d o c or aç ã o. ( p. 1 7 0 ) A mulher, a quem o trecho faz referência, é a rapariga dos óculos, uma prostituta. Vê-se, então, que ela não é condenada nem criticada pelo narrador-autor, o que freqüentemente ocorre na sociedade. Esse valor 1 Disponível em: http://www.10emtudo.com.br/artigos_1.asp?CodigoArtigo=53&Pagina=6 23 social negativo é alterado. Isso se dá também quando as mulheres precisam prestar serviços sexuais aos cegos malvados para receberem alimento. Não haveria outra saída para se alimentarem e, finalmente, o rotulado e o pré-concebido são rompidos. É possível identificar outra mudança de valor referente à igreja e aos dogmas religiosos: Pe n se i q ue par a t er m os c h e ga d o a o q ue al gu é m m ai s te r i a d e e st a r ce g o. .. ( p. 3 0 2) c he g á m os Tal fala da mulher do médico é proferida quando, na igreja, vê que os santos têm seus olhos vendados. A religião, meio de obter conforto espiritual se mostra anulada. Isso significa que a religião não será uma salvação para a cegueira. O narrador-autor, finalmente, se mostra adepto ao ateísmo, incrédulo, não acredita na religião como forma de salvação e, então, nega a existência do divino. Além disso, não há denominação de personagens, locais ou qualquer referência a tempo histórico. Isso ocorre porque: Nã o há di f e r e nç a e n tr e o f or a e o de n tr o, e n tr e o cá e lá , en tr e os p ou c os e os m u it os, e n tr e o q ue vi ve m os e o q ue ter e m os d e vi ve r ... ( p . 2 3 3) O mu n d o e s tá t od o a q u i de n t r o. ( p . 1 0 2) Com isso, a obra ganha o caráter de universalidade e é mostrado, finalmente, o universal pelo particular. Faz parte da ideologia, da mesma forma, não enquadrar o discurso totalmente no discurso direto ou indireto livre, os mais explorados na obra. Assim, o rompimento com o catalogado e pré-concebido é refletido na novidade da construção da linguagem e é sugerido, então, um meio diferente de enxergarmos o mundo. Tal tópico, contudo, será melhor explorado no tópico “Tipos de discursos”. Finalmente, o uso de sintagma congelado é um modo de propor algo novo, um novo sentido para a vida. Usa o solidificado, o velho para desformatar, quebrar estruturas já conhecidas. Trabalha o novo na 24 linguagem já pronta e repete para conservar o que já existe. Através da linguagem, então, o narrador-autor já expõe seu conjunto de ideias. Parte II - Nível do enunciado Tema O tema de Ensaio sobre a cegueira é o não saber reparar. Ação A obra mostra uma linearidade dos acontecimentos. Conta-se uma história que já aconteceu cujos fatos são mostrados sequencialmente. Personagem A mulher do médico é a personagem que sobressai na obra. Tanto por ter conservado sua visão, seus valores humanos de solidariedade e compaixão e por ser altruísta. O narrador-autor trabalha a expressão “Em terra de cegos quem tem um olho é rei”, pois, assim como um rei é soberano, a mulher também apresenta soberania de caráter ao ajudar os outros: ... de vi a ser d ot a da d e u m s e xt o s e nt i d o, u m a es pé ci e de vi sã o se m ol h os, gr aç as a iss o é q ue os p ob r e s i n f eli z e s n ã o s e f icar a m a li a c oz er a o s o l... ( p. 1 9 6) Nã o m a n d o, or ga n iz o o q u e p os s o, s ou , u n ica me n te , os ol h os q u e v oc ê s de i x a r a m de te r , U ma e s pé cie d e c h e f e na t ur a l, u m r ei c om ol h o s n u ma t er r a de ce g os .. . (p . 2 4 5 ) Contudo, seu privilégio de conservar a visão acarreta a responsabilidade de coordenar e ajudar seu grupo, o que implica, conseqüentemente, um fardo físico e mental, pois registra as cenas que vê. Tal personagem se vê obrigada a testemunhar as misérias dos enclausurados no manicômio e sua degradação humana: Pe la pr i m eir a ve z, d e sde a q u i e ntr ar a, mé d ic o se nt i u- se c om o se e s ti ve s se p or mi cr osc ó p i o a ob s er va r o c o m p or ta m e nt o d e u n s p od i a m ne m s e q ue r s u spe it ar d a s ua pr e se n ça, e lh e s u bi ta m e nt e i n d i gn o, ob sc e n o... ( p . 7 1) a mu l h er d o t rá s de u m ser es q u e nã o i st o p ar e c e u- 25 E t u, c om o q uer es t u q ue c on t i n u e a ol h a r p ar a e sta s mi sér i a s, t ê- la s p er ma n e nt e me n te d ia n te d os ol h os ... Se t u p u de sse s ver o q u e e u sou ob r i ga da a ver , q uer er i as e sta r ce g o. . . ( p. 1 3 5 ) Uma possibilidade, finalmente, para o fato de que mulher do médico não tenha ficado cega, pode ser seu altruísmo, caridade e filantropia, explícitas desde o início até o final da obra. Espaços Ambiente físico O espaço físico descrito na obra, primeiramente, é a cidade: Al gu n s c on d u t or e s já s alt ar a m p a ra a r ua, d isp os t os a em p u r ra r o a ut om ó ve l e mp a n a d o.. . ( p. 1 2) As ruas da cidade, espaço onde a cegueira é iniciada, apresenta o maior fluxo de carros e há a caracterís tica de movimento frenético. É interessante notar que foi nesse ambiente conturbado que a cegueira se iniciou: Os a u t om ob i l i sta s, i mp a cie n te s, c om o p é n o pe d al da em b r ai a ge m, ma nt i n ha m e m t e ns ã o os c ar r os, a va n ça n d o, r ec ua n d o , c om o ca va l os ner v os os q ue se n t i sse m vir n o a r a ch i ba t a. ( p . 1 1) Esse é o período de maior agitação veicular e de menor paciência e respeito entre os motoristas, o que indica um dos possíveis f rutos para a cegueira metafórica: a corrupção das relações humanas. O segundo espaço físico encontrado é o manicômio, para onde os cegos são levados: ... há tr ê s ca ma r a t as à d i re i ta e tr ê s à e s q uer da, ca d a ca mar at a te m q ua re n ta c ama s. .. ( p . 1 1 2) A os p ou c os, sob a l uz amar e l a da e su ja da s lâ m pa d as dé b ei s, a ca ma ra ta f oi e nt r a n d o n u m s on o pr of u n d o.. . ( p. 1 5 1) O ambiente desse espaço é caracterizado pela degradação humana lá sofrida. Não há condições para se manterem higienizados e há excremento humano por toda parte. Primeiramente, a ala esquerda do hospício é destinada àqueles que ainda não cegaram, os infectados. 26 Posteriormente à chegada de mais cegos, elas são habitadas por eles, que se tornam dominadores da comida e portam arma de fogo. Do lado direito há a camarata da mulher do médico, que poss ui uma vantagem: Na ca ma ra ta já t od a a gen te e st a va ac or d a da , pr on t a p ar a r ece b er o se u q ui n h ã o, c om a e x per iê n c ia h a v ia m est a be le ci d o ali u m m od o ba sta n te c ó mod o d e f az er a d ist r i b uiç ã o.. . ( p. 1 3 7) Por estarem ali há mais tempo que os demais, organizavam-se melhor. Apresentavam, também, solidariedade com outros membros da camarata. Um símbolo relevante que aparece em tal espaço é o fogo, ateado por uma mulher à camarata dos malvados: C om e ça pe la c a ma d e ci m a, a la bar e da la m be tr a ba l h os a me n te a su ji d a d e d os t e ci d os , e nfi m pe ga , a g or a a ca ma d o me i o, a g or a a c am a de b ai x o. . . ( p. 2 0 6) O fogo é uma imagem que se relaciona ao renascimento, à ressurreição. Além disso, uma mesma palavra em sânscrito designava “puro” e “fogo”. De acordo com o Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant, o fogo é “sobretudo o motor da regeneração periódica” (1993, p. 441). Tal simbologia está, então, em equilíbrio com a obra, já que depois do fogo os cegos saem do espaço fétido e degradante do manicômio para as ruas e um novo tipo de organização surge. Andam em grupos agora e há mais tolerância quanto às esbarradas dos outros cegos. Quando saem do manicômio, habitam as ruas por um período: O asp e c t o d a s r ua s p i or a va a c a ca h or a q u e ia pa s sa n d o. O li x o par e ci a mu l t i pl i ca r- se d ur a nt e a s h or as n oct u r na s, er a c om o s e d o e x ter i or , d e al gu m p a ís de sc on h e c i d o on d e a i n da h ou ve s se u ma vi d a n or ma l, vie sse m pe la ca l a d a de spe ja r a q ui os c on t e n t or e s.. . ( p. 2 9 4 ) O valor do espaço aberto das ruas é invertido. Um espaço destinado à circulação de pedestres e automóveis possuía antes a 27 característica de circulação de veículos de trânsito. No momento de saída dos cegos, contudo, o mesmo se torna moradia fixa de alguns. O penúltimo espaço relevante é a casa do médico e de sua mulher. Tal espaço fechado não se assemelha nem ao manicômio nem às ruas. É um lugar de descanso, de limpeza, de respeito e solidariedade do grupo e de quietação do estômago, já que ela saía frequentemente em busca de alimento. É interessante perceber o símbolo da água em tal espaço: O cé u e r a , t od o e le , u m a ú n ic a n u ve m , a c h u va de sa b a va em t or r e nt e s. N o c hã o d a var a n d a , a mon t oa d as, e sta va a s r ou pa s su ja s q ue ha vi a m de spi d o, es ta va o sa c o de pl á st i c o c om os sa pa t os q u e e r a m pr e c is o la va r. La var . ( p. 2 6 5 ) ... b us ca va na c oz i n h a t u d o o q u e p u d esse ser vi r p ar a li m pa r u m p ou c o, a o m e n os u m p ou c o, e sta su ji da d e in su p o r tá ve l da al m a. ( p . 2 6 5) A água, de acordo com o já citado Dicionário dos Símbolos, possui três significações simbólicas: fonte de vida, meio de purificação e centro de regenerescência. Vê-se sua característica purificadora, assim como o fogo. A água é “fonte de vida e fonte de morte, criadora e destruidora”. A morte, na obra, representa o fim à imundície tanto espiritual quanto física que ainda emanava do manicômio e a vida é a renovação ambiental derivada da fuga do antigo espaço. É pos sível perceber um contraste: a água que vem do alto, de cima e que representa pureza é contrastada com a imundície em que se encontra, no baixo. Finalmente, o último espaço é a Igreja. Quando o médico e sua mulher lá chegaram, havia pessoas que buscavam compaixão das entidades espirituais e têm sua crença abalada ao saber que os olhos das estátuas dos santos estavam vendadas: ... o ma u f oi h a ve r n o a j u nt a me n t o u m as q u a nt a s p ess oa s su pe r st ic i osa s e i ma gi na ti va s, a i de ia de q u e a s s a gr a d as i ma ge n s e st a va m c e ga s , de q ue os se u s m i se r ic or di os os ou sof r e d or es ol h ar e s nã o c on t e mp l a va m m ai s q u e a su a pr ó pr i a ce gu e i r a, t or n ou - s e s u b i ta me n te i nsu p or tá ve l, ( . . . ) l o g o o me d o f ez l e va n ta r t od a a ge nt e . .. ( p. 3 0 3) 28 Ao constatarem que não estavam sendo amparadas pelos santos, as pessoas fogem. Não buscam mais o conforto espiritual ao verem que se encontram ao redor de estátuas cegas como eles. É mostrada a fragilidade de uma crença. Ambiente social O ambiente social que predomina na obra é o conflito e a fragilidade das relações humanas. Tempo Tempo cronológico O tempo predominante na história é o cronológico, pois as ações são desenvolvidas sequencialmente: Pa ss ou u ma h or a , su b i u a lu a, a f om e e o te mor af as ta m o s on o... ( p. 2 0 5) Os r el ó gi os d e t od os e le s e sta va m par a d os , t i n ha m- s e es q ue ci d o d e l h es dar c or d a ou a c har a m q ue já n ã o va l ia a pe n a, só o da m ul h er d o mé d ic o c on t i n ua va a tr a ba l har . ( p 7 6 ) Há, como se nota nos excertos, uma ordenação cronológica dos fatos marcada pelo relógio da mulher do médico e a temporalidade dia/tarde/noite. Tempo psicológico Segundo o livro Introdução à análise da narrativa, Benjamin Abdala Júnior diz que, além da marcação cronológica, ocorre com frequencia o tempo psicológico. Esse é o “tempo cronológico distorcido em função das vivências subjetivas das personagens”: C on t e- me lá e nt ã o o q ue se pa s sa c on s i g o. O c e g o ex p li c ou q u e e st a n d o de nt r o d o car r o, à e spe ra de q u e o si n al ver m el h o m u d a s se. .. ( p. 2 2) O v e l h o da ve n d a pr et a f o i n ar ra n d o est e s tr em e n d os ac on t e ci m e nt os d e ba n ca e f i n a nça e n q ua n t o atr a ve ss a va m va ga r os a me n te a c i da de. . . ( p. 2 5 5) O narrador-autor paralisa momentaneamente sua narração cronológica para dar lugar à explanação que o primeiro cego faz sobre 29 como perdeu a vista e ao velho da venda, que explica o que acontecia fora do manicômio. Há, também, tempo psicológico quando cada um dos cegos da camarata diz aos demais como foi que cegaram, o que remete, finalmente, às vivências subjetivas das personagens. Tempo da narração e tempo da narrativa O tempo da narração é o século XX, no ano de 1995. Com relação ao tempo da narrativa, é possível afirmar que não há dados na obra que nos permita encaixá-la em determinado período histórico especificamente. Pode-se, contudo, dizer que pertence ao século XX, pois há vários elementos que comprovam sua modernidade, tais como: carros, avenidas, prédios, freezers e supermercados. Parte III - Recursos de estilo Tipos de discursos Quanto ao uso do discurso direto, indireto e indireto livre, é necessário lembrar seus conceitos. O discurso indireto é caracterizado pela utilização das próprias palavras do narrador para reproduzir a fala das personagens; pela introdução da fala no texto por um verbo declarativo (dizer, afirmar, ponderar, confessar, responder, etc) e, finalmente, a existência de uma oração subordinada substantiva: ...e di sse- o a os s e us, q ue ser ia me l h or e spe r ar q ue a n oi te ac a b a sse ... ( p . 2 1 2 ) O efeito de sentido causado é a subordinação da personagem ao narrador-autor, que produz somente a essência da fala daquela. Tal forma de discurso é menos explorada na obra. O discurso direto é caracterizado pela reprodução fiel da fala das personagens; pela naturalidade e vivacidade; pelo avivamento da personagem para o ouvinte; pela emotividade na expressão oral e, finalmente, pelos sinais de interjeições, exclamações, interrogações, vocativos: 30 Re s sur gir á, p er gu n t ou a ra p ar i ga d os ó c ul os e sc ur os , Ela , n ã o, r e s p on d e u a mul h e r d o m é di c o. .. ( p. 2 8 8) Nota-se que o discurso direto do narrador-autor não apresenta alguns pontos explicitados na definição acima. Não contém, por exemplo, os sinais de pontuação exclamação, interrogação e interjeições. Apresenta, contudo, a reprodução fiel da fala da personagem, naturalidade e vivacidade. No discurso indireto livre, as falas não são introduzidas por verbos como responder, dizer, afirmar, etc. e não são separadas da fala do narrador por conjunções (como no indireto) ou sinais de pontuação (como no direto). C ontém, contudo, orações interrogativas, imperativas, exclamativas, interjeições e outros elementos expressivos: O a ju d a n te d e f ar mác i a p e di u l ic e n ça p ar a f al ar c om o se n h or d ou t or , g os t ar ia q u e o se n h or d ou t or l he di s se ss e se ti n ha, sob r e a d oe nç a, u ma op i n iã o f or m a da, N ã o c re i o q u e l he p oss a c ha m ar , e m se n ti d o pr ó pr i o, u ma d oe nç a , c om eç ou p or pr e ci sar o mé dic o, e d e p oi s, s i mpl ifi ca n d o mui t o, r e s u mi u o q ue i n ve sti g ar a n os l i vr os a n te s de ter c e ga d o. ( p . 7 0) Vê-se que o narrador-autor não utiliza algumas características do discurso indireto livre, como os elementos expressivos ponto de interrogação e de exclamação. Finalmente, é possível afirmar que o discurso do narrador-autor não se encaixa completamente nos principais discursos mostrados na obra: o direto e o indireto livre. Com iss o, ele procura romper o que já está catalogado, cristalizado e pré-concebido. Finalmente, sua meta de renovação de conceitos e conteúdo se mostra também no plano na expressão com a inovação linguística. Classificação do gênero O gênero da obra Ensaio sobre a cegueira é romance, apesar de denominado ensaio. O romance é uma forma narrativa que se volta ao homem como indivíduo e, de acordo com Angélica Soares, “... as narrativas que, nos moldes impressionistas, são calcadas no fluxo de consciência e nas análises psicológicas, ou as que optam por uma forma de realismo maravilhoso ou de ficção-ensaio”. 31 Além das características acima, podemos encontrar os componentes básicos de um romance: o enredo, as personagens, o espaço, o tempo e o ponto de vista da narrativa, como expostos no trabalho. Finalmente, esse ensaio que é um romance reflete a quebra com o rotulado que o narrador-autor busca. Intertextualidade Há várias intertextualidades na obra. Uma delas é com Ilíada: ...a i n d a f oi ca pa z d e re c or da r o q ue H om e r o es c r e ve u n a I lía d a, p oe ma da m or te e d o so fr i me n t o, ma i s d o q ue t od os.. . ( p. 3 6 ) Há intertextualidade com o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: Fe z c o m o e u, pe n s ou a mu l he r d o mé d ic o , d eu- l he o lu ga r m ai s p r ote gi d o, b em f r a ca mu r al h a s ser í a mos , s ó u ma pe dr a n o me i o d o c a mi n h o .. . ( p. 6 3) De u ma da s ca i x a s de rr am a va - se u m l í q u i d o b r a n c o q ue le nt a me n t e se ia a pr ox i ma n d o d a t oa l ha d e sa n gu e , p or t od os os vi st os de v i a ser le i te , é u ma c oi sa q u e nã o e n ga n a. ( p.. 9 1 ) O primeiro excerto se relaciona com o poema “No meio do caminho”, publicado no livro Alguma Poesia, de 1930: “N o m ei o d o ca m i n h o t i n h a u ma pe d ra Ti n ha u m a pe dr a n o me i o d o c a m i n h o Ti n ha u m a pe dr a N o me i o d o c a mi n h o ti n ha u ma pe d r a N u nca me e sq u e cer e i de s se a c on te ci m e nt o Na vi d a de m i n ha s r et i n as tã o f at i ga da s. N u nca me e sq u e cer e i q u e n o me i o d o c a mi n h o Ti n ha u m a pe dr a Ti n ha u m a pe dr a n o me i o d o c a m i n h o N o me i o d o c a mi n h o ti n ha u ma pe d r a. ” Já a segunda citação mostra intertextualidade com o poema do mesmo autor chamado “Morte do leiteiro”, publicado no livro A Rosa do Povo, de 1945. Aqui está um trecho: 32 “Da ga r ra f a e st il h a ça d a, n o la dr il h o já ser e n o esc or r e u m a c oi sa e s pe ssa q ue é l ei t e, s a n gu e. .. nã o se i. P or e n tr e ob j e t os c on f u sos , ma l r e di m i d os da n oi t e , d ua s c or e s se pr oc u r a m, sua ve m e nt e se t oca m , am or o sa me n te se e nl a ça m, f or m a n d o u m t er c eir o t o m a q u e c h a ma m os a ur or a. ” Isso mostra a força da poesia modernista no Brasil, reconhecida no exterior. Há, finalmente, intertextualidade com a Bíblia: ...i ma g i n e- se a s or te q u e s er i a sa ber al gu é m a Bí b li a de c or , r e pe tí a m os t u d o d e s de a cr ia ç ã o d o mu n d o. . . ( p. 1 1 0) Fato que revela que o narrador-autor conhece o que é exposto em tal livro, apesar de ser ateu. Considerações Finais Aprendemos que a história da humanidade e o universal são mostrados por meio do particular da cultura portuguesa em Ensaio sobre a cegueira. Foi possível experimentar o modo inteligente e criativo pelo qual a obra é construída, algo nada visto na história da literatura anteriormente. Verifica-se, então, que Saramago é um gênio admirável da cultura portuguesa e sua obra deve ser amplamente explorada e lida. É necessário abolir o individualismo exacerbado e considerar a sociedade como um todo, passar a ver o inteiro, e não o incompleto. Aprendemos, finalmente, a deixar de ver o mundo de uma maneira préconcebida. REFERÊNCIAS SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SOARES, Angélica. Gêneros Literários. Ed. Ática. Série Princípios. 1989. 33 PLATÃO, Francisco e FIORIN, José L. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Editora Ática, 1997. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. ABDALA JÚNIOR, Benjamim. Introdução à análise da narrativa. São Paulo: Scipione, 1995. ANDRADE, Carlos D de. A Rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2006. MARX, Karl e ENGELS, Friederich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Martin Claret, 2003 34 “AO VERME QUE PRIMEIRO ROER AS FRIAS CARNE S DO MEU CADÁVER, DEDICO, COM SAUDOSA LEMBRANÇA, ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS.” - UMA ESTÉTICA DA (DE S)E SPERANÇA EM MACHADO DE ASSIS. Pa u l o C é sa r CE DRA N * Resumo: O objetivo desta comunicação é discutir os aspectos socioculturais que influenciaram Machado de As sis ao trabalhar na construção da estética da desesperança, a partir da obra “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O autor, ao introduzir o personagem morto, Brás Cubas, apresenta a possibilidade de produzir uma crítica fora de alguma relação com a sociedade e para a própria vida, feita a partir da crueldade do pessimismo; uma alternativa crítica à sociedade brasileira, no final do século XIX, por meio do desenvolvimento da teoria do Humanismo pelo personagem, o filósofo Quincas Borba. Existe uma visão caricaturada de um propósito positivista que inspirou o nascimento da República Brasileira. Um paralelo entre os personagens do livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” pode ser traçado com a condição de um extremo individualismo e falta das utopias da sociedade pós-moderna. Palavras-chave: C ríticos literários ; Estética da (dês)esperança; Sociedade e economia no final do século XIX; Crítica machadiana; estética e literatura em Machado de Assis. "TO THE WORM WHO FIRST GNAWED ON THE COLD FLESH OF MY CORPSE, I DEDICATE WITH FOND REMEMBRANCE THESE POSTHUMOUS MEMOIRS." – AN AESTHETIC OF HOPELESSNESS IN MACHADO DE ASSIS. Abstract: The aim of this communication is to discuss the socio-cultural aspects that influenced Machado de Assis’ work in the creation of a hopelessness aesthetic from the work The Posthumous Memoirs of Bras Cubas. The author, by introducing the dead character Bras Cubas, presents the possibility of producing a criticism regardless of any relation with the society and life based on the cruelty of pessimism, an alternative critic to the Brazilian society at the end of the nineteenth century and develops the theory of Humanism by the philosopher character Quincas Borba. There is a caricatural view of a positivist purpose that inspired the birth of Brazilian Republic. A parallel between the characters in The Posthumous Memoirs of Bras Cubas may be traced with the condition of extreme individualism and absence of utopias in the post-modern society. * Mestre em Sociologia. Doutor em Educação Escolar pela UNESP/Araraquara, Supervisor de Ensino da Diretoria de Ensino – Região de Taquaritinga, Docente do Centro Universitário Moura Lacerda de Jaboticabal e da UNESP de Taquaritinga. E-mail: [email protected] 35 Keywords: Literary critic; Hopelessness aesthetic; Society and economy at the end of the nineteenth century; Machadian criticism; Aesthetic and literature in Machado de Assis. Introdução: Bem ao estilo machadiano, a comemoração de seu centenário de morte deveria suscitar em seus críticos e analistas uma preocupação não somente com os aspectos apenas estéticos de sua obra ou a corrente literária que o autor transitou, mas, aos exemplos de sua ácida crítica à sociedade do século XIX, que se esforçava para alçar patamares de uma civilização alter ego da Europa industrial, que da fachada apenas retomaria uma pres ença modernizadora, marcada por um processo de modernização conservadora na definição dada ao tema por Simon Schwartzman. A pretensão um tanto audaciosa deste artigo é procurar identificar os principais aspectos presentes na obra de Machado de Assis, no sentido de construir o que chamamos de uma estética da desesperança, que a nosso ver marcou profundamente sua concepção criadora, principalmente a partir da publicação de sua obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, extensamente analisada por Roberto Schwarz. Assim, nossa preocupação será traçar um paralelo entre os aspectos de sua crítica social na correlação com os personagens presentes em sua obra literária. Essa atualidade da desesperança, presente na obra de Machado, não nos permite furtar suas observações de uma sociedade brasileira arcaica, que se traveste de moderna mas, profeticamente, permanece, na essência, inalterada, para infelicidade de Machado e da maioria, se assim podemos dizer de seus membros. Vivenciando as mudanças na sociedade brasileira Situando Machado de Assis em seu período histórico, poderemos traçar as características de sua época e verificar que o Brasil, sob o aspecto sociopolítico-econômico, não era o mesmo que o viu morrer. A queda do império, o surgimento da república, o fim do tráfico negreiro e depois da própria escravidão marcarão um período de transição econômica que culminará com a revolução de 30 e passagem de 36 um Brasil agrário, centrado na produção exportadora, para um B rasil prestes a começar um ciclo econômico baseado na industrialização (1930 -1945), sem, contudo, resolver os graves problemas de desigualdade cultural e política do país. Assim afirma Lajolo, lembrando o grande processo de transição, que mesmo tendo garantido a queda do império e o início da República, pouco representou sobre o aspecto sociopolítico do país. Ma s, a té oc or r er a A b ol içã o, f or ta le c e u- se o ca f é, ou tr o ca pí t ul o d e n oss a ec on o mia , q u e c o m eç a va a da r l ucr os al t os , ma i or e s d o q u e os da ca na . E o c af é nã o e r a mo vi d o pe l o br a ç o esc r a v o: era p l a n ta d o e c om er cia li za d o em b a se s di f er e n te s, ma is m od er n as, de per f il ca p it a li s ta . Nã o b a sta va ter ter r as par a pla n ta r : e ra pre ci s o t a mb é m d i n he iro , d i n he ir o par a c omp r ar m ai s te r r a s e má q ui n a s, p ar a a gü e nt a r os a n os de cr e sci m e nt o d a p la n t a, p ar a e st oc a r . Pa r a p od er l e var o pr od u t o a os p or t os . Foi q ua n d o a I n gl a ter r a f i n a nc i ou o ca f é br a s ile ir o. E até h o je n ã o pa ga m os a dí vi d a, a f a m osa dí vi d a ex ter n a ... De p oi s ve i o a Re p ú b lic a e t u d o f i c ou c om o d a n te s. O Br a s il c on t i n ua va s e m i n d ú str ia , i mp or ta n d o o q ue c on s u mi a . E c on ti n u a va ta m b é m de pe n d e nt e , copiando as m od a s eur op é i a s, m od a s à s v ez e s l i be r a i s e s u b ver si v a s, c om o a s id éi a s da Re p ú b l i ca. O Im p ér i o, n o se u i níc i o , se r vi a a os i n te re sse s d o aç ú c ar – i n ter es se s c o n se r va d o r e s, q u e f a v ore cia m os q ue j á e s ta va m n o p od e r . Já os f a ze n d e ir os d e ca fé p r ec i sa va m d ef e n der os se u s i n te r e sse s, pr ec i sa v a m d e n o va s l ei s, de u m n o v o m o d el o p ol ít ic o. P r ec i sa va m, e nf i m, d a s r é de a s d o p o der . ( LA JO LO , 1 9 8 1, p p . 1 0- 1 1) E como reafirma Alfredo Bosi: D oi s e x e mpl os f or te s b as ta m : Ma c ha d o d e A s sis e Cr uz e So u sa, o ma i or r om a n c i sta e o ma i or p o e ta d o sé c ul o X I X br a si le ir o, pr o va ra m, n os se u s a n os de i n fâ n cia e ad ol e sc ê nci a, os a l t os e b ai x os de ssa c on d i çã o de af i l ha d os 37 se m a q ual , d e r est o , d i f ic i l me n te t er ia m va r a d o a s b ar r e ir a s da p e l e e d a c la sse. ( B O SI, 1 9 9 2, p . 2 6 6) . Essas “novas” leis ou novos modelos serão alvos importantes de Machado de Assis nos agitados anos 80 do século XIX, sob os quais o autor escrevera as célebres críticas em jornais e revistas cariocas a partir de 1858, publicando contos, críticas literárias e teatrais. A Familiaridade com os livros A peculiaridade desse mulato de nascimento pobre seria marcada por uma característica que o mesmo em sua obra criticará como um dos sinais de atraso presentes na sociedade brasileira do século XIX, ou seja, a característica do apadrinhamento, lembrando a crítica de Raimundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, como referência ao patrimonialismo lusitano reforçado em nossas terras. Além de seus esforços e inteligência, seus padrinhos ricos e influentes, do batismo, aproximaram-no de intelectuais jornalistas que lhe deram as primeiras oportunidades. Assim diz Lajolo: A pr ot e çã o de u m pa dr i n h o q u e e l e nã o t i ve r a na in f â nc ia a par ec e u a os de ze ssei s a n os : Pa u la Br i t o, d on o de u ma ti p o gr af i a e l i vr a r ia , que p u bl ic ou na Mar mo t a Fl u mi ne n se o p oe m a “ E la” . Do i s a n os de p oi s , o me s m o Pa u l a Br i t o c on t r a t ou se u pr ot e gi d o p ar a t ra b al har e m s ua l o j a : Mac ha d o c orr i gi a or i gi na i s, f az i a r e vi sã o d e te xt os e, n as h or a s va ga s, tr a ba l ha va c om o ca i xe ir o, ve n d e n d o li vr os . A pr e se n ça c o n st a nt e d e Ma c h a d o n o a mbi e nt e da li vr ar ia f a ci l i t ou - l he os c ont a t os úte i s c om ge n te i m p or ta nt e . E f oi e st a ge n te, p or sua ve z, q u e l he a br i u n o va s p or ta s, da n d o- l he op or t u ni da d e de c on t i n ua r a p u b lic a çã o de se u s esc r it os e m vár i os jor n a is e r e vi s ta s. Ma c ha d o v ai t e mp e r a n d o a m ã o e ac er ta n d o o pa s so. C ome ç a a ger m i nar o f ut ur o a u t or de Me mó r ia s P ó st u ma s. ( LOJO LO , 1 9 8 1, p. 1 5) . A objetividade presente na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas marcará uma das principais formas de expressar o mundo: o 38 realismo-materialismo, fundamentado na reprodução objetiva das características observadas na realidade, tentando eliminar a s ubjetividade do autor, que atuaria como dissimulador da realidade. Como afirma Faraco e Moura: Foi u m a é p oca m ar ca d a pe la c r e nç a n o pr o g r ess o da ci vi li zaç ã o i n d us tr i al e me câ n ic a. Se gu n d o o e s cr it or f r a n cê s Fla u b er t ‘ de p oi s da f al ê n cia de t o d o s os i de a i s, d e t od a s a s ut o p ia s, a t e n dê nc ia a g or a é ma n t er - se d e ntr o d o c a m p o d os f at os e d e n a da ma i s d o q ue d os f at os . ( FA R AC O; MO U RA, 1 9 8 6, p . 1 6 1) A Estética da desesperança A crença na civilização e no progresso industrial, sob clara influência do positivismo comtiano, será interpretada de forma peculiar por Machado de Assis, sob o aspecto que denominamos estética da desesperança. Ao mesmo tempo em que seus romances da segunda fase marcam sua principal incursão no mundo literário, que mesmo sob a influência do realismo-naturalismo não deixa de fazer dessa percepção realista e crua das principais contradições da sociedade brasileira a referência, via ironia, de sua estética da desesperança, ou seja, ao desvincular os personagens presentes na obra Memórias Póstumas, por exemplo, em especial o próprio morto-narrador, Machado de Assis descreve a descrença como o elemento ao mesmo tempo desarticulador de um processo que pretensamente nenhuma mudança substancial atrairá a condição social e econômica que ao mesmo tempo poderia, dialeticamente falando, servir como principal referência de uma reflexão aguda a uma sociedade que precisava mudar. Assim, Raymundo Faoro lembra que a obra de Machado de Assis desfaz uma ilusão secularmente repetida: que o Brasil, no século XIX, seria a aristocracia rural, dona do açúcar e depois do café, senhor de terras e escravos, formando os polos dinâmicos da sociedade, e complementa: 39 Ao l a d o da “ n ob r ez a r u r al” , de sde a pr i me ir a f or m aç ã o br a si le ir a , na sc e u e cr esc e u u m a ou t r a c la s se , de c ome r c ia n te s e d on os de c a pi ta is . C la sse a q u is it i va ou e spe c u la d or a , q u e s e ex p a n di u e m c orr e la çã o c om a cl a ss e p r op r ie tá r ia, vi nc u la d a ao m er ca d o , h er de i r a dos c a pit al i sta s p or t u gu e s e s, r esp o n sá ve i s p e l os f or ne c i me n t os d e es cr a v os , e q u i p a me n t os e ca pi t ai s p a r a i nst i t uir os e st a be lec i me n t o s r ur ai s e a d q u ir ilh e s os pr od u t o s. V e n d ia a os pr op r ie tá r i os , os be n s ne ce ssár i os p a r a a pr o d uç ã o, a cr é di t os lar g o s, a d q uir i n d olh e s o a ç úca r, de p oi s o caf é , ba se d e gra n de s f or t u na s ur ba n a s. D es sa cl a sse de c om er c ia n te s, tr af i ca n t es de e scr a v os e ba n q u eir os é q ue sae m os C o t ri n s ( Me m ó r i as p ó st u ma s) , (. ..) ( FA O RO, 1 9 7 6, p. 2 3) . É essa classe aquisitiva ou especuladora, sobre a qual Machado direcionará sua crítica, que leva Faoro a afirmar que em muitos casos o domínio rural se converte em domínio urbano, sem alteração de classe. Assim Faoro resume a contradição do Segundo Reinado, quando afirma: Est e é o q u a dr o d o i de a li s m o d o Se gu n d o R e i na d o, c om s ua s fe i ç õe s s oc ia i s e p si c ol ó gi ca s. Mu it o a mo r ve r b al a os pr i ncí p i os , l ou v or es à s c ou sa s a b st r a t as q ue , tr a d uz i da s na r eal i da de d o d ia, r e vel a m- s e i nc a pa z es d e aç ã o. ( FAO R O, 1 9 7 6. p . 1 6 9) . Esse recurso, portanto, pode ter confundido muitos de seus leitores a ponto de não conseguir identificar em sua obra esses aspectos dialéticos que o tornaram referência crítica quanto às questões de ordem social. Assim como afirma José Veríssimo: só a incompletude de compreender a natureza, tão firmemente articulada, como a nobreza desses sentimentos, poderia reprová-los. Veríssimo identifica que a esquisita nobreza desses sentimentos torna-se referência essencial da crítica que Machado construirá e demonstrará em seus romances, e complementa: 40 O e sse nc ia l é a al m a d o h o m e m. E ste f i n al c om pe n d ia a es tét ic a de Ma c ha d o d e Ass i s. P oe ta ou p r os a d or , el e se nã o pr e oc u p a se n ã o da a l ma h u ma na. E n tr e os n oss os e scr it or es , t od os ma i s ou me n os a te nt os a o pi t or e sc o, a os a s pec t os ex te r i or e s da s c oi sa s, t od os pr i n ci p al m e nte d esc r it i v os ou em ot i v os , e m u it os re su m i n d o n a d e scr i ç ã o t od a a su a ar t e, s ó p or i ss o se c u n dár ia, a pe n as e le v a i alé m e ma is f u n d o, pr oc u r a n d o, sob as a par ê nc i a s de f ác il c o nt e mpl açã o e i gu al m e nt e f ác il r el at o, d e sc ob r ir a me sm a es sê n cia da s c oi sa s. ( VE RÍ SS I MO, 1 9 6 3, p p . 3 1 0- 3 1 1) . Essa alma dos homens, que Machado buscará em seus personagens, critica, a nosso ver, carregada pela influência constante das condições socioeconômicas de sua época, a gestação da oposição dialética assumida por Marx na obra Manuscritos Econômicos e Filosóficos. A s oc ie d a de nã o tr a n sc e n de a e x pr e ssã o c ol e ti va d os in d i ví d u os . Or ga n iza - se c omo u ni ve r s o f ei t o d e cer t e za da s c oi sa s q ue d e se ja, de op ç õ es r ea li za da s – q u e t u d o já est á as se n t a d o su s té m a f ac e de i m u ta b i l i da d e - , d e ca mi n h os e pr e te n s õe s a b sol u t a me nt e d ef i n i d os . De s sa ma ne ir a , a c ole t i vi d a de de f i ne- se p or me i o de u m p e n sa me n t o t ot al it á r i o, am eaç a d or a m e nte c o e r cit i v o an i q ui li a n d o d e sf ib r a n d o ou p ar a e ve n t ua i s ve l ei d a de s di s si de n te s, ma i s f u n da s. ( SA N CHE Z, 1 9 8 2, p . 4 3 ). O que na verdade José Veríssimo perceberá é que Machado apontou com segurança pontos fracos e deslocados das correntes literárias vigentes no país; entretanto, sem ter feito o ofício da crítica, lastimou essa falta como um dos maiores males da nossa literatura. Aceitando o desafio proposto por José Veríssimo, ao final de sua obra Roberto Schwarz propôs em seus ensaios Ao vencedor as batatas e Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, publicados pela livraria Duas Cidades, uma das mais profundas análises da relação literatura e sociedade presentes na obra de Machado de Assis. Essa densa leitura de Schwarz nos apresenta como principal referência o conceito de ideias fora do lugar. Sem entrar na polêmica de que se essas ideias que 41 fundamentavam a ordem política e social do país estavam ou não fora do lugar e sobre qual contexto, procuraremos identificar nesse processo como a chamada estética da desesperança aí se constitui e como s ua influência marca a cultura política de nossa sociedade. Assim Schwarz situa a singularidade de Machado de Assis na definição de nosso contexto sociopolítico e econômico, citando: La s tr e a d o pel o i nf i ni t o d e d ur ez a e de g r a da çã o q ue esc on ju r a va – ou s e ja a e scr a vi d ã o, de q u e a s d ua s par te s be n ef i c ia m a t i m br a m e m se d if er e n ç ar – e st e r ec on he c i me n t o é de u ma c o n v i vê n c ia se m f u n d o, m u lti p li c a d a, a i n d a, pe la ad oç ã o d o v oc a b ul ár i o b ur gu ê s d a i gu a l da d e, d o mé ri t o, d o tr a ba l h o, da r a zã o. M ac ha d o de A ssi s s er á me s tr e ne s te s me a n dr os. C on t u d o, ve j a - se ta m b é m ou tr o l a d o . Im er s os q ue es ta m os, ai n d a h o j e, n o u n i ver so d o Ca p ita l, q ue n ã o c he g o u a t om ar f or ma c om b i na çã o c lá ss ic a c om o no Br a s il, i nt eir a m e nt e t e n de mo s de sva n t a jos a a ve r est a p ar a n ó s, c om p ost a s ó d e d ef e it o s. V a nta ge n s nã o h á d e te r ti d o; ma s par a a pr e c iar de vi d a me nt e a s u a c om p l e xi da d e c on s i der e- se q ue a s i déi a s da b u r g ue sia , a pr i nc í pi o v ol t a d as c on t r a o pr i vi lé gi o, a p a rt ir de 1 8 4 8 se ha vi a m t o r na d o a p ol o gé tic a: a va ga d as l u ta s s oc i ai s na E ur op a mos t r ar a que a u ni ver sal i da d e d i sfa r ç a a n ta g on i s m os de c la s se . P or t a nt o, p ar a be m l h e r e t er o ti m br e id e ol ó gi c o é pr ec i so c o n si d er ar q ue o n oss o di sc u rs o i m pr ó p r i o er a oc o t a mb é m q ua n d o u s a d o pr op r i a me n te. N ot e- se , de p as sa ge m, q ue e ste pa dr ã o ir i a r ep et ir - se n o s éc. XX, q ua n d o p o r v ár ia s v eze s jur a m os , cr e nt e s de n oss a m od e r n i da de, s e gu n d o a s i d e ol o gi as ma is r ota s d a ce na mu n d i al . P ar a a lite r a t ur a, c om o ver e m os , r esu l ta d aí u m la bir i nt o si n gu l a r , u ma es p éc ie de oc o de n tr o de oc o. A i n da a q u i, Ma c h a d o se r á me str e . (S C H WA R Z, 1 9 8 8 , p. 1 9) . Esse momento que caracterizava o contexto brasileiro, de que nossas ideias estão fora de seu lugar, ou seja, esse condicionamento da vida social, política e espiritual é que alimentará em Machado de Assis essa estética da desesperança, a ponto de nos dar a impres são de que 42 pouca ou nenhuma alternativa de transformação estaria presente quando desvinculada da crueldade e sordidez de muitos de seus personagens. Faoro complementa: Mu n d o d e br i nca d eir a, sá tir a se m c o m p r omi ss o c o m a r eal i da de , me r o e s pe tá cu l o l ú d ic o d o a b s ur d o? A r et ór ic a , car ne da op i n iã o – da o pi n iã o q u e c o ma n da os h om e n s – te m u m p a pe l ma i s pr of u n d o n es se m u n d o d e r ef le x os e de ap ar ê n c ia s. E la e s tá e m l u gar da s e st r ut ur a s s oci a i s e da s f or ç a s q u e c on st r oe m a hi s t ór i a. A i m a ge m de sf i gu r a o f a t o e o ac on t e c i me n t o; o t e ci d o da s p al a vr a s s u b st it u i as i d e ol o gi a s e as i dé ia s q ue tr a d u ze m ou e v oc a m a s c or re n t es d os s uce s sos h u ma n os. N u m di a d e n o ve mbr o n ã o r u i u o I mpé r i o ne m na sc e u u ma R e p ú bl ic a . ( FA O RO, 1 9 7 6, p. 1 7 7) . Esse conceito de Faoro, de que a imagem desfigura o fato, refletese no próprio processo de desagregação do Império e formação de nossa República, numa estética da desesperança que Machado cita em Esaú e Jacó apud Faoro: De se jo de m u d a nça , ha b i l i da d e par a su b j u ga r os ac on t e ci m e nt os , t u d o s o b a i n s p ir aç ã o da so rte . A d a nç a d os mot i v os e d a s pa i x õe s se e x pr e s sa c om a pa la vr a t or nea d a , som b r a d o f a t o a b sur d o, de u m mu n d o e m q ue a f r ase r e ve la a au sê n ci a de se n ti d o. ( FAO RO , 1 9 7 6, p. 1 7 8) A nosso ver, seria essa desesperança que deveria provocar no leitor uma sensação de enfrentamento com a própria obra, a ponto de gerar uma sensação de aguda crítica à sociedade aristocrática e burguesa e seus desmandos no país e no mundo. Esse espírito mais crítico, citado por Jos é Veríssimo ao analisar a obra de Machado de Assis, é identificado também no romance Ressurreição, onde Veríssimo lembra: Ao i n vé s, de c lar a da me n te, a p on t a va a ou t r a c oi sa q ue o r oma n ce de c os t u m es. O i nt er e sse do li vr o er a de li b e ra da m e nt e p r oc ur ad o n o “ e sb oç o d e u ma si t uaç ã o e n o 43 c on tr a st e de d oi s c a ra c t er e s”. A le n car , c o m C i n c o m i n ut os , A Vi u vi n h a ( 1 8 5 6) , a l iá s si mple s n o ve la s, Lu c í ola ( 1 8 6 2) e D i va ( 1 8 6 4) , e me sm o Ma n oe l de A l me i da , c o m o Sa r ge n t o de Mil íc i a s ( 1 8 5 7) , p od e m em ri g or cr on ol ó gi c o se r c on s i der a d os os pr ec ur sor es d o n oss o r oma n c e da vi d a ur ba n a o u m u n da n a , da p i nt ura de c ar a cte r es e si t uaç õ e s em q ue e s te s se en c on t r a m e d ef i n e m, ou me sm o d o r oma n ce q ue a o t e m p o ai n da se c ha m a va de f i s i ol ó gi c o e q u e de p oi s se c h a ma r ia d e p si c ol ó gi c o. ( VE RÍ SSI MO, 1 9 6 3, p p. 3 1 2- 3 1 3) . Essa situação de contraste de dois caracteres seria em essência a influência da própria concepção dialética presente em sua obra. Assim: [ . ..] C om o o q ue o s ob r et u d o l he i nt er e ssa é a al ma da s c oi sa s e d os h ome n s, é ela q u e el e pr oc ur a e x pr i mir e q ue ger al m e nt e e x pr i me c o m i n si gn e e n ge n h o e a r te . Ai n d a e m al gu m ti p o, e pi só di o , ou ce na de p ur a f a n t a sia , n u nc a a f icç ã o de Mac h a d o de A s si s a f r on t a o n os s o se n so da í n ti m a r eal i da de . A s si m , p or e xe mp l o, ne sse c on t o ma gn íf ic o O Ali e ni s ta ou ne s sa ou t r a jói a C on t o Al e xa n d r i n o, c om o n a ad m ir á ve l i n v e n çã o de Br á s C u ba s, e t od a s a s ve z e s q u e a s u a r ica i ma gi n a çã o se d e u la r g a s par a f or a d a r e ali d a de vu l gar , sob os a rt if í ci os e os me sm os de s ma n d os da f a nt as ia, se n ti mos a ve r da de e sse nc ia l e pr of u n d a d as c oi sa s, p od e r ía mos ch a mar - l he u m r ea li st a su pe r i or , se e m l i ter a t u r a o r ea li sm o nã o ti ve ss e se nt i d o def i ni d o. (V E RÍ S SI MO, 1 9 6 3, p . 3 1 3 ). José Veríssimo observa : As Me m ó r ia s P ó s t u ma s de Br á s C u ba s s ã o a e p op é i a d a ir r e me d iá ve l t ol i ce h u ma n a, a s át ir a da n oss a i n cur á ve l il u sã o, f eit a p or u m def u n t o c om p le ta m e nte d e se n ga na d o d e t u d o. [ ...] Mas a h u ma n i da d e, a soc i e da de, é a ssi m f eit a e n ã o há r e vol t ar - n os c on t r a e la e me n os q u er ê- la ou t r a . A vi d a é b oa , ma s c om a c on d iç ã o d e nã o a t om ar m os m u i t o a sé r i o. T al f il os of i a d e B r á s C u b a s, de c i di d a me n te h ome m de m u it ís si m o es p ír i t o. E l e vi ve u q ua n d o p ô de , se gu n d o e st e s eu pe n sa r , e se c om se u p es si mi s mo c o nf o r m a d o e i n d u l ge nt e nã o s e a c h ou l ogr a d o ‘ a o c h e ga r a o ou tr o la d o d o mi st ér i o’ , f oi p or q u e 44 ver if i c ou um p e q ue n o sa l d o no b a la n ç o f in al da s ua ex p er i ê nci a. ‘ N ã o t i ve f i lh os’ , - e sc r e ve u na úl ti ma p á g i n a da s sua s Me m ór ia s, - ‘ n ã o t r an s mit i a n e n h u ma cr i a tu r a o l e ga d o da n os sa mi sé r i a. ( VE R Í SS I MO , 1 9 6 3, p. 3 1 4 ) . Schwarz lembra que: Ao l on g o d e sua r e pr o d uç ã o soc i a l, i nca n sa ve l me nt e o Br a s il p õe e r e p õe i dé ia s e ur op é ia s, se mp r e e m se nt i d o i mp r ó pr i o. É n es ta q u a li d a de que e la s ser ã o ma tér ia e pr ob l e ma p ar a a l e it u r a. O e scr it or p od e nã o sa ber d i ss o, ne m pr e ci sa, par a us á- l as. ( S CH W A R Z, 1 9 8 8 , p. 2 4) . Serão esses as pectos que Schwarz procurará identificar na análise de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Amauri M. Tonucci Sanchez nos lembra, em Panorama da Literatura no personagens desesperança, Brasil, que ou ao compõem seja, apresentar, o que personagens resumidamente, chamamos de de pouca uma traços estética grandeza, dos da egoístas, incrédulos e céticos, cuja figura maior seria representada pelo próprio Brás Cubas, quando Sanchez diz: A ex i st ê nci a , p ar a a ma i or par te da s p er son a ge n s, ja m ai s i mp l icar á i n ve nç ã o n e m me s m o sol i c i tar á q ua l q uer t raç o de gr a n d ez a , q ua l q ue r a n se i o q ue se te n h a cr ia d o d a ne c e ssi da de de tr a n s ce n dê n cia . O de sti n o d e ss as cr i at ur a s se r á q ua se f ata l me n te o me s mo, ma nt i da s a s dif er e nç as de c la ss e, a ma i or ou me n or e x t e n sã o d as am bi ç õ e s d e c a da u m, a int e l i gê nc ia ma i s ou m e n os a c ur a d a de q u e se ja m d ot a d a s. Ca rr e ga r ã o c om o um fato ur di d o ale g r e me n t e s u p or t a m se pe la s te n dê n ci as soc i ai s, q ue sã o a t e n di d a s s u as s ol ic it a ç õe s ma ter ia is , a s q ue su sc ita m u m g oz o e pi dér m ic o. E a i ss o r ed u z- se su a e sfe r a d e vi da. A i n da a s si m , e m Me m ór ia s Pó st u ma s d e B r á s C u b as, sa b e m os q ue a ú n i c a c oi s a a q ue as p ir a m, nã o ob st a nt e t od a a me d i ocr i da de e a me sm ic e, é vi ve r ma i s “ al gu n s a n o s”, c o n f or m e su p li c a o pr ot a g on i s ta à Nat ur ez a . ( SA N C HE Z , 1 9 8 2, p . 4 4) . 45 Essa visão confusa da natureza, que a nosso ver poderia representar uma conformidade com a mediocridade da condição humana diante da condição social nascente de base capitalista, representava, também, a possibilidade de se desenvolver, por meio dessa mesma estética da desesperança, a crítica possível para uma sociedade centrada em ideias descentradas, ou seja, fora do lugar. Assim, se as ideias estão “fora do lugar”, os próprios personagens estariam, esteticamente, fora do lugar, se nos referenciarmos a uma ética ou moral, fundamentada no conceito de civilização e progresso da moderna sociedade capitalista. Assim identifica Schwarz: Ao tr a n s p or pa r a o es ti l o as r ela ç õe s s oc iai s q ue ob se r v a r a, ou se ja , a o in te r i ori zar o paí s e t e mp o, Mac ha d o c om p u n h a u ma e x pr e ssã o da s oc ie d a de r e al, s oc ie da d e h or r e n da me n te di vi d i d a , em sit ua çã o mui t o par ti c ul a r , e m par te i n c on f e ssá ve l, n os a n tí p od a s da p á tr i a r om â nt ica . ( SC HW A R Z, 1 9 9 0, p. 1 1) . A essa figura do problema inconfessável, a desesperança como ponto de referência, recorre Machado de Assis, ao traçar a realidade da sociedade de seu tempo. As s i m o es câ n da l o da s Me m ór ia s e s tá e m su j ei tar a ci vi li zaç ã o mod e r n a à v ol u b il i da d e. O s as su n t os p od e m se r os ma i s di ve r sos , ma s o e f e it o d a pr osa é e st e. I n si sti m os na osc ila çã o va l o r a t i va q u e r e s ul ta d aí, sob r e t u d o n a c on ve r s ã o da s u pr e mac ia e m d i mi n ui çã o . ( S C H WA R Z , 1 9 9 0, p . 5 4) . Essa volubilidade aparecerá em Brás Cubas e, segundo Schwarz, estará na base de um de seus principais pontos para rir do leitor. Como princípio formal, caracterizará a volubilidade brasileira, ou seja, o antagonismo de classe presente em nossa sociedade como chave para compreender como Machado de Assis constrói seu estilo. 46 Ass i m à c on d e n a ç ã o l ib e r a l da s oci e da de br as ile i ra , es tr i de n te e i n óc ua, so ma - se a su a ju st i fi c açã o pe la pie d a de d o ví nc u l o f a m il iar , c u ja h i p ocr i sia é ou tr a e spec ia li da d e ma c ha d ia na. C on d e na çã o e j u stif ic açã o c on t r i b u em i gu a l me n te par a o c on c er t o d e v oz es i na c e itá ve i s e m q u e c on s i st e e st e r oma n ce. (S C H WA R Z, 1 9 9 0, p . 6 8) . Dessa forma, veremos que Machado de Assis apresentou o que fora o liberalismo brasileiro, ou seja: A c on t i n ui da d e d o e scr a vi s mo n a t ur a l me n te l he s an u l a o cr é di t o, ca u sa n d o car a c ter í st ica do a c o n h ec i da Li b e r ali s mo i m pr e s sã o do S e gu n d o de f ar sa , Re i na d o. No en ta n t o, a ir on i a da s Mem ó r ia s nã o se l i mit a a de n u n c ia r es te as pe ct o d a q ue st ã o. ( SC HWA R Z, 1 9 9 0, p. 1 1 6) . Diante desse quadro de falência das ideias, Machado de Assis posicionou-se. Assim Schwarz descreve: Tr a ve st i d o de f i gu r ã o, ma s r a d ica l me n te c o mp en e tr a do se ja d a p er s p ec ti v a d os de p e n de nt e s, se ja da n o r m a b ur gu e s ia eur op é i a , Ma c h a d o se a pl ica va a ob s er va r e i n ve n tar de se m p e n h os c ar ac te r i stic a me n te la me n t á ve i s à l uz de st es p on t os de vi sta . Os r e s ul ta d o s sã o ver d a de i r os e xer c íc i os na ar te da t r ai çã o de c l as se. Com as d if er e n ç as do c as o, le m br e m o s a f ór mu l a d e Wa lte r Be n ja m i m, se gu n d o a qu al Ba u d e la ir e s er ia “um a ge nt e s ec r e t o – um a ge nt e da in sa t isf a çã o se cr eta de s ua cl as se c om a p r ó pr i a d omi n açã o” . Re t om a n d o u m a r gu me nt o a n ter i or , di ga m os q ue pel a s ua c om p le iç ã o f or ma l o B r á s C u b a s nã o a c om od a va a o p ar c o hi st óri c o de na ci on a l i sm o, il u str aç ã o e e li te , e m ai s, l he ex p u n h a a d i me n sã o i de ol ó gi c a e os f u nc i on a me nt os c la s si s ta s ( ai n da q ue s e m de n o m in á -l os, i st o é, se m o br i gar a o se u r ec on h e c i me n t o) . ( S CH W AR Z, 1 9 9 0, p p . 1 7 8- 1 7 9) . Essa insatisfação presente na estética da desesperança será o eixo condutor de sua procura pela ruptura que se dará pelas negativas presentes no final da obra, como um protesto quase que solitário de 47 Machado de Assis, alter ego de Brás Cubas, quando diz: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.” (SCHWARZ, 1990, p.191). P or t a nt o, a o e sc re ver u m r oma n ce d o se u t e mp o e d o se u pa í s, c om r ec ur s os d o s éc ul o a nt er i or , Mac h a d o b l oq u e a va a f u sã o r omâ n t ica d o i n di ví d u o n o c ol e ti v o e na te n dê n c i a hi st óri ca, bar b ar i d a de m od e r na e r e gr es si va e x p li ci ta me n t e vi sa da na cr ít ic a a o H u ma n it i sm o, pa r a o q ua l a d or i n d i vi d u a l nã o e xi ste . Ap e sa r d o g o st o pe l a p e r f í dia , p e l o e st a paf úr d i o ou p el a ch ar a d a , os e n c a de a me n t os q u e oc u p a m o pr i m e ir o pl a n o d a pr osa sã o f á c ei s de se gu ir e e x pl ic ita r . P ar a e n t en d ê- l os ba st a nã o l h es per d er d e vi sta a c ha ve u ni ve r sal , a vol u b il i da d e d o nar r a d or e a s s ua s de m an d as , a nt i rr a z oá vei s e a nt ir r e al i sta s p or n at ur e z a. ( S C H WA R Z, 1 9 9 0, p. 1 9 5). Diante desse percurso, procuramos apresentar algumas características do que se denomina, em Machado de Assis, volatilidade de nossas instituições políticas e sociais, bem como a ausência quase que completa de uma cultura política pautada numa concepção dialética e histórico-crítica. Ass i m se m i n o va ç õe s se n s aci on a i s, a nt es r e c or r e n d o c on sc ie n te me nte a va l or e s e sté ti c os e a t éc n ic as d o p a s sa d o e p on d o d e par te c om a l g u ma ir on i a a s n o vi d a de s d o m o me nt o, a vu lt a e ntr e t od os , n e s se per í od o, a m ai or f i gu r a q ue a lit er a t ur a br a si le i ra c on h e cer a a té e n tã o, J oa q u i m Ma r ia Mac ha d o de As s is ( 1 8 3 9- 1 9 0 8) . ( I G LÉ S IA S e t. a l ., 1 9 9 7 , p. 3 5 4) . Sua estética da desesperança estaria, a nosso ver, presente e complementada com a afirmação de Afrânio Coutinho: Mac ha d o d e sc ob r i u e n f i m a su a v oca çã o ve r da d e ir a : c on ta r a e ssê nc i a d o h o me m, e m s ua pr ec ar i e da de e xi st e nc ia l . As s ua s per s on a ge n s n ã o a pr ese nta m mai s u ma es tr ut ur a m or al u ni f ic a da e t í pi ca . S ã o an te s s er e s di v i d i d os c o n si g o me sm os , 48 em b or a se m l ut a s vi ole n t a s, já na q ue le e st a d o e m q ue a ci s ã o in ter n a e n t ra n o de c l i ve d os c om p r o mi ss os e da i ns ta b il i da de de car áte r . O h om e m n ã o é ma i s a q u ele s er r e s p on sá ve l d os r oma n ce s a nt er i or es ; é u m jo gu e te de f or ç a s de s c on h e ci d a s. O se u l i vr e ar bí tr i o est á li mi ta d o n ã o só p el os ob st ác ul os q ue a na t ur e z a i n di f er e n te of e r ec e , mas pe l a s c on t ra di ç õe s e per p le x i da de s i n t er na s. A d u pl ic i da de da c on s ci ê n cia m ora l é r e vel a da a c a da pa s so , e e nc on t r a u ma es p lê n d id a e xpr e ssã o n o e p i só d i o d e B r á s C u ba s c om V ir gí li a, a nt i g o a mor da ad ol e sc ê nci a, q u e e le v em e nc on t r ar c a sa da, n u ma n oi te d e ba il e . ( CO U TI N H O, 1 9 9 7, p . 1 5 9) . Portanto, segundo Coutinho: As re laç õ e s h u m a na s ob e d ece m a e s sa l ó gi ca . D om i n a d os e op r i mi d o s p el os q ue e st ã o e m c i ma , os h om e n s se c omp e n sa m op r i mi n d o e d o m i na n d o os q ue e st ã o e m si t ua ç ã o i nf er i or . A açã o op r e ss or a, u ma da s ma n if e st aç õe s d o ma l n o u ni ve r s o, se pr op a ga re gu l ar me n te e m se nt i d o ve r t ic al, se m outr o m ot i v o q ue o da c omp e n sa çã o d o m al s of r i d o. [ ... ] I n ve st i ga n d o es sas ca ma da s d e c ar á ter , q u e a vi d a a l ter a, c on s er v a ou di s sol ve , c onf or me a r es i st ê nci a de l a s, o se u h u m a ni s mo m or a l ist a v a i de s tar t e a p on t a n d o a f r a gil i da d e d os pr op ó s i t os , as ve le i da de s, a s a c om od aç õe s e a e s tr a n ha c o m p lac ê n ci a da c on sc iê n c ia h u ma n a e m f a ce d o m al. ( CO U T IN H O, 1 9 9 7, p. 1 6 0) . Essa investigação que Machado nos leva a fazer, quando o leitor entra em contato com Brás C ubas, provocaria uma reação ao mesmo tempo de letargia e de euforia dessa visível condição humana que assim se concebia, mas que, reflexivamente, poderia transformar-se: Br á s C u ba s, n a s s ua s m em ó r ia s, r e vê e r e c omp õe a v i d a c om o u m i n s ól it o p e sa de l o, o t r â n si t o e n tr e d oi s mi s tér i os, d ur a n te o q ua l o h ome m se a gi ta , se de b a t e à pr oc u r a d o pr a ze r d os se n t i d os e d a ve n t ur a d o c or açã o, m as só e n c on tr a n o f u n d o da s c o i sa s a m isé r ia mor a l, n o ma l f í sic o e a mor te , p oi s a q ui l o q ue par e c e u m m om e n t o a p oe s ia e a ve r d a de da vi d a, a s e m oç õe s d a i n f ân ci a ou a b ele z a de Mar ce la q u e o 49 le va r a à i nc on s e q ü ê nc ia e ao de sa t i n o, pa s sa m ou se c on ve r t e m n os c on t r ár i o s. ( C OU TI N HO, 1 9 9 7 , p . 1 6 1) . Ao se converter nos contrários, dialeticamente falando, não poderíamos pensar em uma conversão no plano conceitual, estético e político do próprio indivíduo? Acredito, sim, que poderíamos pensar em uma conversão nos três planos citados, como afirma Faoro: O h ome m n ã o g o ver n a ma i s o se u d es ti n o – só os de svi os da s oc ie d a de, c om os ca mi n h os c a lça d o s de ce n sur a e esc ár ni o, l he pe r m it e m c on s t r uir a ve r d a d eir a vi d a, se m def or ma ç õ es e se m má sca r a s. N es se de s vã o, nã o há gl or ia e ne m p od e r, op u l ê nci a n em n om e a d a, pã o n e m t et o. ( FA O R O, 1 9 7 6, p . 3 5 0). Essa verdadeira vida, permeada pelas interdições de censura, bem como pelos rompantes de escárnio, é que permite a Machado traduzir no personagem de Brás Cubas os elementos do que seria essa construção da verdadeira vida, sem máscaras ou deformações, sem glórias nem poder, quando levados, em última instância, à condição de miserabilidade do humano. Josué Montello, diante da identificação de Machado a essa condição de miserabilidade humana, lembra que: An te s da s Me mór ia s P ó st u m a s, o r om a nc i st a tir a r a da vi d a c i rc u n da n te os se u s r om a n ce s, c op i a n d o a o vi v o, à ma n eir a de A le n c ar , as fi gu ra s f e m i ni n as q u e n ele s oc u p a m o pr i me ir o p la n o, c o m o p er s on a ge n s c e nt r a i s. C o m a s Me mór ia s Pó st u ma s, o r o ma n c i sta pa ssa a ti ra r d e si m es mo os se u s r oma n ce s. Pe la p ri m ei r a ve z , é el e pr ó pr i o q ue m oc up a o ce nt r o d a c e na , val e n d o- se d a pr i me ir a p es so a , n a c on d i çã o d e nar r a d or .( MO N TE LLO , 1 9 9 6, p . 3 7 5) Ao ocupar o centro da cena, Machado envolve nessa curiosa trama o recurso à memória como substância romanesca que, nas palavras de 50 Josué Montello, correspondem a uma identificação profunda do romancista como tema de seu romance. Também Agrippino Grieco, na obra Viagem em Torno a Machado de Assis, reafirma seu sarcasmo que será reiterado também por Merquior, quando afirma: Mai s d o q ue e m ou t r os e scr it os se u s, se n te - se , n as Me m ór i a s P ó st u m as au t om a ti s mo d os de Br á s pr oc es sos C u ba s, de a me ca n ic i da d e Mac ha d o de A ssi s. ou S ua s per so n a ge n s a q u i sã o aq u êle s te or e m a s e m ma r c ha d o q ue f al ou e m f r a ncê s e a s su a s r e t i cê nc i a s a c a ba m m ai s i mp lí c it as d o q ue ti p o gr á f ic as. N ê l e, o s ti p os de r e q ui n ta d os c om o q ue se r ec u sa m a vi ve r , c oi sa que q u al q ue r c ar p i nt e ir o ou q ui ta n d e ir o f a z c om a ma i or s i mp li c i da d e. Se gu n d o Sa n t a Te re sa , a mai or de sgr aç a d o Di a b o é nã o p od e r am ar ; i sso é ex te n si v o a c i da d ã os d a ca te g or ia de Br á s C u b a s. Em b or a s e ja per i g os o me ter - se c om a f a míl i a ma c ha d ia na, c om os q ue en xe r ga m na s Me mó r ia s P ó st u ma s u m li vr o sa n t o, c o n sta t o, r el e n d o- o, que todo f abr ica n te de ch ar a d a s ac a b a ta mbé m c har a d a. Ai n da q ue n ã o l he f a lte m ár ia s d e b r a vu ra , t a i s o De l ír i o e o H u ma n i t ism o, é Ma c ha d o o me n os l ír i c o e m e n os é p ic o d os sêr e s : o sar c as m o c on su m i u- o t od o e n ot a - se a l g o d o i n ver n o e u r op e u ne sse me stiç o na sc i d o em r e g iã o on d e ma l e xi ste i n ve r n o. Tô da s a s al ma s, n êle , par ec e m e xa mi na da s a o m icr osc ó p i o. ( GR IE C O , 1 9 6 9, p p. 5 65 7) . Essa essência filosófica presente na obra foi também caracterizada por José Guilherme Merquior em De Anchieta a Euclides, quando diz: Br á s C u ba s é u m c a so de n o ve lí s tic a e m u m t om b uf o, u m ma n ua l d e mor a l i st a e m r i t mo f ol i ô nic o. E m l u ga r d o h u mor i s mo de i d e nt if i caç ã o se nt i me n ta l d e Ste r ne, o q ue pr e d o m i na ne s sa s p se u d om e m ó ri as é o â ni m o d e par ó d ia , o r íct u s s at ír i c o, a de ssacr a v i liz aç ã o c ar na v a le sc a. Q ua se ne n h u m se nt i me n t o, n e n h u m va l or de c on d u ta e sca p a m a e s sa ch ac ot a c orr os i va. ( ME RQ U I OR , 1 9 9 6, p. 2 2 7) . 51 Esse mote do descaramento, de que nos fala Merquior, não impediu de chamar pessimismo machadiano a concepção de que o mundo não lhe parece menos cruel, mas como um caos que: Mac h a d o n ã o e mpr e ga va o h u m or p ar a “ il u str a r ” u m a f il os of i a : a o c on t rá r i o, o s e u h u m or – fa z e n d o à s vez e s d e in e xi s tê nc ia me taf ís ic a – é fi l os of ia ; e e s se f e n ô me n o c on f er e u ma n ot á ve l m o d er ni d ad e à s ua ob r a, p or q u e na d a é tã o mod e r n o quanto o ecl i pse das f i l os of ia s af ir ma t i va s. ( ME RQ U IO R, 1 9 9 6, p. 2 3 3) . Esse humor com filosofia fez com que Machado procurasse: A val ia r l u di ca m e nte a r e al i da de , se m sa cr a l iz ar ne nh u m as pe ct o d a i n ju s tiç a d o u n i ver so; de sc on f i ar d as ut op i a s, de s ma sca r ar a s i d e ol o g ia s s u bl i me s, r e la ti va r os a b sol u t os alt i ss on a n te s e, a o me sm o te m p o, c on s er var o g ost o pe l o tea t r o d a v i da sor r i s o li ber ta d or : e i s u ma t on a l i da d e tí p ic a d o h u mor de Mac h a d o , me n os s i ni s tr a d o q u e a c on te m pl a da p e l o mod e r n i sm o. ( ME R QU IOR , 1 9 9 6, p p . 2 5 1- 2 5 2 ). Considerações Finais Podemos concluir lembrando que Lajolo afirma que Machado de Assis foi o escritor que melhor conseguiu fazer uma radiografia da sociedade brasileira, desvelando suas falsas ideias e interesses excusos, ou seja, o avesso de uma vida socialmente digna e representável que, a nosso ver, o próprio autor procurou viver, mesmo que oculto do parente mais ou menos longínquo da desfaçatez que Machado, segundo Schwarz, assim imitava. REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Global Editora, 1997. FAORO, Raymundo. Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio. São Paulo: Editora Nacional, 1976. 52 GRIECO, Agrippino. Viagem em Torno a Machado de Assis. São Paulo: Livraria Martins Editora S.A., 1969. IGLÉSIAS, Francisco... [et. al.] – História geral da civilização brasileira: II O Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. LAJOLO, Marisa. Machado de Assis In.____.Literatura comentada. São Paulo: Nova Cultural, 1988. MERQUIOR, José G. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira I. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. MONTELLO, Josué. O Presidente Machado de Assis nos Papeis e Relíquias da Academia Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. MOURA, Francisco M. de; FARACO, Carlos E . Língua e Literatura. São Paulo: Ática, 1986. SANCHEZ, Amauri M. T. Panorama da Literatura no Brasil. São Paulo: Abril Educação, 1982. SCHWARTZMAN, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1982. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades. 1988. ________________. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades. 1990. VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira(1601) a Machado de Assis(1908). Brasília: Universidade de Brasília, 1963. 53 A AUTOBIOGRAFIA ÀS AVESSAS. WAL SH: O “AUTOR DE NOVEL AS POLICIAIS” QUE VIROU “DETETI VE”. Si l v i a B e at ri z A D O UE * Resumo: O argentino Rodolf o Walsh, leitor, tradutor e “autor de novelas policiais” de enigma foi compelido pelas circunstâncias a investigar um crime. Para isto, assumiu o papel do detetive dos relatos que escrevia. Tratava-se, porém, de um crime de Estado: o fuzilamento ilegal de civis durante um levantamento cívico-militar. O modelo do policial de enigma resultava insuficiente. Walsh publicou mais do que os resultados da investigação: um diário da mesma, ou uma autobiografia do cidadão/detetive. Es se processo o levou primeiro, a questionar seu próprio papel enquanto detetive romântico e, como consequência desse questionamento, a modificar sua literatura ficcional, que se deslizou para o hardboiled. Depois de se bater com as instituições do Estado em sucessivas edições que denunciavam os responsáveis pelo massacre, percebeu seu fracasso como detetive, que era também, dentro da sua escrita, o fracasso do herói individual. Terminou abandonando a literatura policial e passando à ação e à literatura militante. Esta investigação procura na sua obra daquele período, assim como faz o detetive, as marcas autobiográficas que registram essa mudança. Palavras-chave: Autobiografia; Ficção; Jornalismo de investigação; Rodolfo Walsh; Literatura Argentina. THE AUTOBIOGRAPHY UPSIDE DOWN. WALSH: THE “AUTHOR OF DETECTIVE STORIES” WHO BECAME A “DETECTIVE”. Abstract: Rodolfo Walsh, reader, translator and “author” of detective stories was compelled by circumstances to investigate a crime. For this, he assumed the role of the detective of the stories he wrote. But, in this case, the criminal was the State. There was an illegal execution by a firing-squad during a civic-military revolt. The traditional model of detective stories resulted insufficient. Walsh published more than the results of the inquiry: a log book of the investigation, or an autobiography of the citizen/detective. This process made him question his role as a romantic detective and the consequence was the alteration of his fiction. It resulted in a work-in-progress in successive editions and he began denouncing the responsible ones for the slaughter. Years later, he realized his failure as detective, which meant, in his writing, the failure of the individual hero. He ended up abandoning detective * D ou t o ra e m Le t ra s F F LC H /U SP / SP. D oc e nt e de Li ter a t ur a Hi s pa n o A mer ica n a U ni v er si da de E s ta d ua l P aul i sta UN E SP/ Ar ar aq u a r a- SP e na E sc o la N aci on a l Fl or es ta n Fe r n a n de s. E - ma il : sb a d o ue @ h o tm a il. co m 54 stories and engaging in action and militant literature. This paper explores in the autobiography of that time the registers of this change. Keywords: Autobiography; Fiction; New journalism; Rodolfo Walsh; Argentine literature. Durante um estudo comparativo, realizado em 2003, entre o Nunca Más (C ONADEP, 1984), de cuja produção participou o escritor argentino Ernesto Sábato, e Operación Masacre (2000a), escrito em 1957 por Rodolfo Walsh, desaparecido em 1977, lembrei de uma passagem de El Túnel (1951), romance de Sábato publicado por primeira vez em 1948. Nessa passagem, um aspirante a escritor, Hunter, imagina um personagem que, como um Quixote do século XX, vê a realidade como é descrita na literatura policial e age dentro dela como um detetive de novela. Imediatamente, procurei um trecho que tinha lido num artigo de Jorge Lafforgue: Al gu i e n q ue n o l o q u e r ía m u c h o s u p o c om e n t a r q ue Wa l s h se pa r e c ía al Q ui jot e : d e ta n t o lee r n o ve la s p ol ic ial es cr e yó se r u n o d e s us hér oe s de pa p e l ( m ás: su pa r a n o i a par ó d ic a l e hi z o a c om p a ñar la e v ol u ci ó n de l gé n er o, de sde el f air - p la y h a sta el h ar d b oi l e d) . P ue s sí. De se sti m e m os e l sar ca s mo y d e mos vu e l t a e l c o m e nt ar i o: c on tr a u n a r eal i da d me n ti r osa se a pe l ar á a u na e scr it ur a q u e la re ve la ; y si e l p od er de la f i c c i ó n par e c ier a n o al ca nz ar , se ec har á ma n o de la de n u nc ia p ol í tic a h a sta s us ú lt i ma s c on se c u e nci a s. ( I n: LA F FO R G UE, 2 0 0 0 : p. 3 3 4.) Um serviço internacional de auxílio à lista permitiu-me entrar em contato desde São Paulo com o professor Lafforgue e perguntar se aquele que não queria muito a Walsh era Ernesto Sábato. O professor Lafforgue negou. Não perguntei então de quem se tratava: meu foco estava naquele momento no autor de El Túnel. Em 2004, o jornalista Enrique Arrosagaray publicou Rodolfo Walsh em Cuba. Agencia Prensa Latina, militância, ron y criptografia. E é pela entrevista que Arrosagaray faz a Juan Fresán que suspeito ter descoberto aquele alguém que não queria muito a Walsh. Fresán lembra Walsh como o detetive Erik Lönnrot de La 55 muerte y la brújula (in: BOR GES, 1998), de Jorge Luis Borges, conto escrito em 1942. Diz Fresán: [ . ..] emp ie z a c on l a l it e r a t ur a p ol ic i al, de sp ué s p a sa a l per i od i s mo p ol ic ial f i c ci on a d o y c om o e l Q u i jot e , qu e de ta nt o l e er li br os d e ca b a ll er í a ve m ol i n os de vi en t o – y c re e q ue s on gi ga n te s e n e mi go s - , se vu e l ve l oc o y p a sa de l a f icc i ó n a l a r ea li da d p er o ju ga n d o a la f i cc i ó n, c om o u n a es pe ci e de She r l o k H ol me s q u e se p on í a n a ri ce s p os t iz a s. É l m ism o se di sf r aza b a cu a n d o e st a ba p e r se g ui d o . (Apud: AR R O SA GAR AY, 2 0 0 4 : p. 5 0.) Erik Lönnrot, detetive aficionado de B orges, peca por exces so de literatura. Diz para o delegado Treviranus: Us te d re p li car á q ue la r e al i da d n o ti e ne l a me n or ob l i ga c i ó n de s er i n ter e sa n te. Yo le re pl ica ré q ue la r eal i da d p ue d e p r e sci n d ir d e esa ob l i ga ci ó n, per o n o la s hi p ó te s is. E n la q u e u st e d ha i mpr o vi s ad o, i n ter vi e ne c op i os a me n te e l a za r . He a q uí u n r a b i n o m u er t o; yo p r ef er ir ía u na e x pl ica ci ó n p ur a m e nt e r a b í ni ca, n o l o s i m a gi n ar i os p er ca n ce s d e u n i ma gi n ar i o la dr ó n . ( p. 1 5 5. ) Esse excesso de literatura, que estaria presente também nos primeiros relatos policiais de Walsh, foi a perdição de Lönnrot. Red Scarlach, um improvável ladrão de safiras judeu, a quem um irlandês (como Wals h) tentou converter à fé dos góim, preparou para o detetive uma cilada literária que lhe permitiu acertar velhas contas pendentes: o mata numa casa solitária, um labirinto simétrico, para onde Lönnrot chega com as suas próprias pernas. Para Fresán, provavelmente, Walsh, como Lönnrot, caiu na cilada de pensar a realidade como ficção policial e foi isso o que o levou à morte. La muerte y la brújula é um jogo paródico de Borges: parte da beleza geométrica do policial de enigma e a ambienta numa cidade irreal, na qual todos reconhecemos Buenos Aires da primeira metade do século XX. A sua irrealidade, a sua literariedade intencional, sublinha a 56 impossibilidade do subgênero nestas latitudes. Este conto é uma influência fundamental das primeiras ficções policiais de Walsh, a quem essa impossibilidade não escapava. Por muito tempo, ele fez um esforço para acriollar o gênero. Não apenas torná-lo verossímil, mas, no limite, fazer dele um modelo explicativo da realidade em que vivia mergulhado. Foram esses esforços que o levariam do fair-play do policial de enigma ao hardboiled e da investigação jornalística para a militância política. O conhecimento do gênero é resultado do seu ofício de compilador e tradutor 2 que o colocaram em contato com a melhor literatura policial. O seu primeiro relato publicado, Las tres noches de Isaías Bloom (1999c), na revista Vea y Lea em 1950, havia sido apresentado em 1946 para um concurso organizado pela revista e pela editora Emecé e havia recebido uma das menções. O júri estava composto por Borges, Bioy Casares e Barletta. Eduardo Romano, no seu artigo Modelos, géneros y medios en la iniciación literaria de Rodolfo J. Walsh (in: LAFFORGUE, 2000: p.73), chama a atenção para a filiação borgeana deste conto e para o tributo a Leónidas Barletta presente na linguagem lunfarda, própria do relato de costumes deste membro do júri. Se a primeira paternidade é evidente, considerando La muerte y la brújula, proponho não aceitar tão rapidamente a segunda 3. A distância entre a fala capturada e o discurso do narrador em Las tres noches de Isaías Bloom é bem maior que nos contos de Barletta. Ver, por exemplo, Tango (in: ETCHENIQUE e DE LELLIS, 1961), onde o narrador partilha do gesto um tanto melodramático dos personagens. Em troca, a tensão entre os diálogos e a voz do narrador do conto de Walsh não está longe do Roberto Arlt de muitas das passagens de Los siete locos (1997). A filiação arltiana desse tratamento da fala dos não letrados parece-me mais forte, mas seria apenas uma hipótese se não tivéssemos uma pista deixada pelo próprio Walsh. Em diálogo com Francisco Urondo, Mario Benedetti e Juan 2 Primeiro, para a Série Naranja e para a coleção Evasión da editora Hachette, para El Séptimo Círculo da editora Emecé e de tradutor e adaptador, depois, para a revista Leoplán e para a Serie Negra da editora Tiempo Contemporáneo. 3 Sem dúvida, esse tratamento da voz dos não letrados não poderia ser atribuído a Borges e Bioy Casares, que recorreriam ao estilo direto para capturar a fala dos não letrados apenas um ano depois, com La fiesta del monstruo (in: OLGUÍN, 2000), conto escrito em 1947. Nesse conto, a fala dos peronistas aproxima-se da fala-ação, convocação à violência, procedimento que inaugura a literatura argentina, no século XIX, com El matadero (2003). 57 Carlos Portantiero, em 1969 (in: BASCHETTI, 1994: p. 45) o autor de Las tres noches de Isaías Bloom, mapeia a literatura Argentina como um campo de forças onde os pólos são, justamente, Arlt e Borges. Esse naturalismo na apresentação da voz dos marginais “prefigura” o Walsh de La máquina del bien y del mal(1966), Fotos (2000d) ou Corso (2000f), por exemplo. Naturalis mo, como registrei acima, de filiação arltiana. Fora a principal testemunha, Isaías Bloom, todos os personagens apresentam características canalhas, como acontecerá com os personagens de Corso e os de La máquina del bien y del mal. Nem a dupla delegado/detetive aficionado fogem dessas características, o que afasta o conto dos policiais de enigma clássicos, nos quais os investigadores costumam ser modelos de virtude, referencial do bem. O cenário dos acontecimentos é o da pensão, assim como no posterior Nota al pie (WALSH in: WALSH, 1997a). A pensão é um dos cenários preferidos de Roberto Arlt. Moradia de seres solitários e marginais diferencia-se do cortiço, onde autores do primeiro período peronista davam vida a personagens que lutavam pela ascensão social coletiva. A pensão, em troca, é o lugar da desagregação, da solidão. Em todo caso, essa dupla genealogia poderia ser pensada como uma primeira volta de parafuso no esforço de Walsh por acriollar a ficção policial. A dupla que desvenda o enigma, assim como em La muerte y la brújula, de Borges, está formada por um delegado de polícia e um jornalista da seção policial, Suárez, um rascunho um tanto malandro de Daniel Hernández, alter ego de Walsh, que assinará alguns dos seus trabalhos com esse pseudônimo e aparecerá nos relatos policiais posteriores. Diferentemente do relato de Borges, a decifração será simultânea para os dois personagens, como se eles fossem desdobramentos de uma única mente, duplicada para justificar o diálogo. O leitor precisa esperar por uma explicação. Se em La muerte y la brújula o criminoso Red Scarlach trama sua vingança na semi-vigília de nove dias e nove noites de febre, alimentando o delírio com as metáforas de um irlandês que tentava convertê-lo ao catolicismo, em Las tres noches de Isaías Bloom o mistério é des vendado pela interpretação dos sonhos de Isaías Bloom, colega de quarto da vítima. O assassino faz duas 58 tentativas e apenas consegue consumar o crime na terceira noite. Se o recurso à revelação pelos sonhos lembra o bíblico José, a dupla interpreta os sonhos de maneira bastante materialista e racional, caracterizando os sonhos como uma tentativa psíquica de contornar os estímulos exteriores e evitar interrupções do sono. Os estímulos exteriores seriam incorporados à narrativa onírica de maneira a se ajustar à sua lógica própria. A referência ao sonho aparecerá depois em El soñador (2000c) e na Carta a Vicky (in: BASCHETTI, 1994). Em ambos os casos, revelando uma verdade profunda e refulgente que a vigília torna opaca, o sonho será apresentado como uma forma de conhecimento. No caso da Carta a Vicky, a alegoria bíblica sonhada e a necessidade reclamada de dormir um ano inteiro parecem apontar para a dificuldade para compreender a experiência traumática da perda da filha. A testemunha, Isaías Bloom, o único personagem não malandro, com nome de profeta e sobrenome irlandês (como Walsh) é aquele que percebe os sinais, ainda que não seja ele quem os interpreta. Seguí soñando, pibe, recomenda-lhe o delegado, com inconfundível sotaque portenho, no final do relato. É bom anotar a posição do autor em relação à violência policial em 1946. Ela dista muito da que terá depois, durante a escrita de Operación Masacre e La secta del gatillo alegre (in: LINK, 1998b). Neste conto, faz o delegado comentar, em relação a dois estudantes da pens ão: Pero si usted los mira fijo, le dicen torturador (p.79). Os estudantes são cordobeses e fazem um comentário macabramente racista em relação à vítima e ao que depois se revelará assassino: Un boliviano menos. [...] Ahora falta el otro (p.79). Em 1953, Walsh publica uma coletânea com três novelas policiais: La aventura de las pruebas de imprenta, Variaciones en rojo (que empresta o título à edição) e Asesinato a distancia (1985). No mesmo ano, escreve uma nota sobre Conan Doyle publicada na revista Leoplán, traduz La aventura de los jugadores de cera (1954) e há razões para acreditar que traduz para o Castelhano La aventura de los siete relojes(1953) e outros contos de Adrian C onan Doyle e Dickson Carr entre 1953 e 1954. A coletânea de Walsh é uma homenagem explícita à literatura dos Conan Doyle. Não apenas pelas 59 referências a Um estudo em vermelho (2001). La aventura de las pruebas de imprenta tem pontos em comum com A aventura dos três estudantes. No centro de ambos os relatos, o de Conan Doyle e o de Rodolfo Walsh, estão as provas de gráfica: as de um exame (“prova”) de Grego Antigo e as da tradução de um livro de Oliver W endell Holmes, respectivamente. Mas, se no relato do autor inglês as provas de gráfica são uma prova (um indício) entre outras, no relato de Walsh elas se constituem em chave para desvendar o enigma. Em ambos os casos, fala-se em tradução: do Grego e do Inglês. Em La aventura de las pr uebas de imprenta, um expoente da “polícia científica”, o “comisario Jiménez”, discute com Daniel Hernández, que consegue desvendar o caso graças ao seu ofício de corretor de provas de gráfica. Já neste relato, um dos primeiros de Walsh, aparece essa constante do autor: os saberes de pobre. E é esse conhecimento próprio do ofício de corretor que, neste caso, permite a Daniel Hernández decifrar uma escrita, a das provas de gráfica, que carregam uma informação encriptada, cujo sentido s ó não escapará a um corretor de ofício: aquele que sabe ler com “lentidão”: [ . ..] E nt on ce s, ¿ par a q ué si r ve l a e x p er i e nc i a? P ar a l eer d e sp a ci o – r e sp on d i ó Da ni el [ ...] (W A LSH, 1 9 8 5: p. 5 5. ) A perseguição da capacidade para decifrar o que permanece oculto acompanhará Walsh até o final. Sua “vocação”, seu ofício de criptógrafo estará presente na sua trilogia de investigação e em todo seu trabalho jornalístico. Será obsessivamente tema da sua ficção. A epígrafe extraída do Livro de Daniel, homônimo do nosso corretor/detetive, oferece, logo de cara, essa chave. Estamos lidando com um “Daniel” criollo. “Hernández”, como o autor do Martín Fierro. Aquele que pode declarar las dudas y desatar dificultades [...] leer [la] escritura y mostrar [...] su explicación [...] (Bíblia apud: WALSH,1985:p.11). Eduardo Romano propõe comparar as duplas Treviranus/Lönnrot e Jiménez/Hernández, reconhecendo variantes sutis: o rotineiro e 60 profissional Treviranus vira um Jiménez científico e profissional, o imaginativo Lönnrot vira um Hernández que questiona o saber literário como algo que embota a capacidade de captar a realidade (in: LAFFORGUE, 2000: p.82-83). Em 1957, Walsh escreverá, com o pseudônimo de Daniel Hernández, uma nota na revista Leoplán, Los métodos del FBI (in: LINK, 1998a), promovendo o livro por ele traduzido La his toria del FBI 4 (WHITEHEAD, 1958). Na nota, o autor exalta o caráter científico, profissional e em absoluto truculento da agência dos Estados Unidos. Esta nota coincidirá com a primeira publicação de Operación Masacre, e é evidente a comparação que o autor faz entre os métodos científicos do FBI e os métodos truculentos da polícia argentina. A exaltação das técnicas de investigação coincide com a admiração de Walsh pelos métodos de Sherlok Holmes. E há intertextualidade explícita em relação a toda a obra de Conan Doyle: a referência ao uso de um colega como “Watson”, isto é, como interlocutor para testar as hipóteses (p.15). Mas também pela referência a Holmes: H ol me s – m u si t ó D a ni e l c om e x pr e s i ó n e x t r a via da – Oli ver We n de ll H ol me s. S her l o k H ol m es. E x t ra ña c oi nc i de nc ia .. . ¿ R ec ue r da us te d el c ur i os o i nc i de n t e d el per r o? R od r í gu e z l o m i ró c o m o s i e m p eza r a a cr eer q u e s e ha b ía vu e l t o l oc o. ¿Ha ol vi da d o l os cl ási c os? I n si sti ó Da ni e l – E l cur i os o in ci d e nte de l per r o e ra q ue n o ha bí a l a dr a d o d e n oc h e. ( p. 3 5) O dado que não fecha o relato, o que não se encaixa: o cachorro não latiu, as correções indicam uma improvável “bebedeira intermitente”. Mas também há uma intertextualidade quase que oculta com a literatura Argentina, que funciona como uma piscadela de cumplicidade para o leitor avisado. Este procedimento tão típico de Jorge Luis Borges aparece em La aventura de las pruebas de imprenta com uma referência a La invención de Morel, de Bioy Casares, autor amigo de Borges. O Morel de Bioy, assim como o personagem do 4 A editora do livro, Sopena, também é dona da revista Leoplán. 61 romance Museo de la novela de la Eterna (1993), de Macedônio Fernández, pretendia criar um dispositivo tecnológico-literário, uma máquina de narrar. Mas Raimundo Morel, preocupado apenas com a literatura, não consegue enxergar a realidade próxima: sua mulher e seu amigo o enganam e vão matá-lo. Pode parecer forçada essa interpretação, que anteciparia em alguns anos o distanciamento de Walsh da tradição do grupo da revista Sur, do qual Bioy Casares fazia parte, se não houvesse outras marcas que questionam o valor da literatura pela literatura (um dos pontos do projeto de Sur), em contraste com a honestidade dos leitores e a prevenção contra os escritores (p.11). A respeito da tensão entre escritores e trabalhadores da indústria cultural na época da publicação da novela La aventura de las pruebas de imprenta, Eduardo Romano escreve: [ . ..] sint om a t iza cie r t a s c on t r a d icc i on e s que W al s h tr at a ba e nt on c e s de a su mi r e n tr e s u p ar t ic i pa ci ó n e n l a in d u s tr i a c u lt ur a l de la é p oc a y l os ju i c i os d e spe ct i v os a l r es p ect o que pr e d om i na b a n e n tr e i nt e le ct u a le s. No es cie r t a me nte c a sua l q ue ha ya r ef er e nc ia s de es e c ar á ct e r e n l os tr e s r el a t os d e “Va r iac i on e s e n r o j o. ( I n: LA FFO R GU E , 2 0 0 0 : p. 8 5.) Há, porém, na novela que me ocupa, traços da herança que deve ser creditada às vanguardas que se nuclearam na revista Sur. Uma das marcas dessa herança é o procedimento de carregar de significado ficcional as notas de rodapé, procedimento este que Borges costumava usar. Ver, por exemplo, La casa de Asterión (in: BORGES, 1957), recurso que depois Walsh levará ao extremo no conto Nota al pie. Mas, em La aventura de las pruebas de imprenta, as notas de rodapé tendem a reforçar a verossimilhança do relato. O cenário da editora, mais do que conhecido pelo autor, é apresentado com pequenos cortes à maneira dos filmes americanos dos anos 40, 50. Essa primeira parte é facilmente roteirizável. Aqui vemos a presença de outra herança, associada aos filmes e às descrições do policial hardboiled, mas passados pelo filtro da ironia portenha. 62 Traduzidos. Um exemplo é a referência ao ventilador cumprimentador no início da exposição da hipótese de trabalho de Daniel Hernández (p.48). O ritmo cinematográfico, os cortes e montagem significativa se mantêm. Exemplo: cinco horas mais tarde, Morel estaba muerto. Fue su esposa, Alberta, quien encontró el cadáver (p.15). Esta novela é, porém, mais próxima à estirpe dos relatos policiais de enigma, de tradição inglesa, mais fiel, inclusive, que no conto Las tres noches de Isaías Bloom, pois, além do narrador em terceira pessoa, há uma clara separação entre a dupla delegado/detetive e os criminosos. Há também, em La aventura de las pruebas de imprenta, uma característica da literatura policial de Simenon, autor que Walsh havia traduzido: certa indulgência do detetive para com as fraquezas humanas, como aquela com que beneficia a Alberta, cúmplice do crime (p.65). Por último, há nesta coletânea outras características que serão depois uma constante no Walsh jornalista, aquele da trilogia de investigação. Em primeiro lugar, a enumeração de provas, a consolidação de hipóteses como num teorema. Depois, a utilização de facsímiles, a inclusão de tabelas e, no caso das outras duas novelas da coletânea, Variaciones en rojo e Asesinato a distancia, o recurso ao croquis. As três novelas da coletânea, a novela La sombra de un pájaro (1999a), publicada pela primeira vez na revista Leoplán em 1954 e os contos Tres portugueses bajo um paraguas (Sin contar el muerto) (1999b) e Las tres noches de Isaías Bloom enquadram-se no subgênero de enigma. Ainda que, em Asesinato a distancia, o detetive/aficionado Daniel Hernández se exponha a correr riscos. Talvez uma antecipação dos que seu doublé real estaria disposto a correr durante as investigações do massacre de José León Suárez. Em junho de 1956, Walsh está traduzindo e condensando para a revista Leoplán um romance de Duff Cooper, chamado Operation Heartbreak (in: C OOPER e MONTAGU, 2003). Trata-se do relato romanceado na forma de novela de espionagem de uma operação da inteligência militar britânica durante a guerra, que foi chamada Operation Mincemeat e que consistiu no lançamento de um cadáver no mar Cantábrico, em águas territoriais da Espanha, cujo governo era 63 amigo das potências do Eixo, fingindo um acidente de aviação. O cadáver carregava cartas e documentos pessoais que induziam a pensar que se tratasse de um espião britânico. A ficção de Estado foi construída na procura do máximo de verossimilhança e pretendia “plantar” a informação de um desembarco aliado na Grécia, para distrair as tropas do Eixo do verdadeiro local do desembarco: Sicília. Sir Duff Cooper, militar e diplomata, deu forma de novela à história como relato emoldurado dentro do trajeto dos diplomatas britânicos até o lugar onde o cidadão britânico havia sido enterrado, para prestar as honrarias. A ficção de Cooper se demora na história pregres sa do soldado que fracassa em todas suas tentativas de entrar no campo de batalha e nas de obter o amor de uma mulher, amiga da infância e funcionária do departamento de inteligência britânico. Morre de morte natural e, como cadáver, consegue modificar a história de Europa e carrega nas roupas uma carta escrita pela amiga, na qual ela se arrepende de tê-lo rejeitado. O nome que Walsh dá a sua condensação é Operación Desengaño. La novela basada en el golpe más audaz del servicio de inteligencia británico durante a última guerra mundial: el muerto que engañó a Hitler. Na noite de nove de junho de 1956, desencadeia-se um putch cívico-militar para restituir Perón, presidente deposto por um golpe de Estado no ano anterior. Um tiroteio toma Walsh de surpresa enquanto joga xadrez no clube. Abandona o tabuleiro e volta para casa, no quarteirão onde se desenvolve uma das escaramuças. Um soldado que faz o serviço militar obrigatório morre junto à sua janela. O levantamento é sufocado. Depois, Walsh lembrará: De sp ué s n o q u ier o r ec or da r m ás , n i la v oz de l l o c u t or e n la ma d r u ga d a a n u n c i a n d o q ue d ie ci oc h o ci vi l es ha n s i d o e je c u ta d os e n La n ú s, ni la ol a d e sa n gr e q u e an e ga a l pa ís ha s ta l a m u er t e d e Va l le. Te n g o de m a si a d o p ar a u na s ol a n oc h e . Va lle n o me i nt er e sa. Pe r ó n n o m e in ter e sa, l a r e vol u c i ó n n o me i n ter e sa. ¿ Pu e d o v ol v e r a l a je dr e z ? Pue d o. Al a je dr ez y a la lit e r a t ur a f a nt ás ti ca q ue le o , a l os c ue n t os p ol ic i a le s q ue e scr i b o, a la n o ve la ‘ s er i a’ q ue p la ne o p ar a de n tr o de a l gu n os a ñ o s, y a otr a s c os a s q u e h a g o p a r a 64 ga n a r me l a vi da y q u e l la mo p e ri od i sm o, a u n q u e n o e s per i od i s mo . ( WA LS H, 2 0 0 0a : p. 1 8.) Seis meses depois, toma conhecimento de fuzilamentos de civis naquela mesma noite, antes da promulgação da lei Marcial. Entra em contato com um sobrevivente: “o fuzilado que vive”. E a partir de então começa a procurar mais informação sobre o massacre, um crime de Estado. Para isso, abandona sua vida tranqüila: deixa a casa familiar, usa nome falso, passa a andar armado. Ele e a jornalista Enriqueta Muñiz incorporam a personagem do detetive para investigar o acontecido naquela noite de nove de junho em José León Suárez, no subúrbio de Buenos Aires. O resultado dessa investigação aparece em forma de reportagens em várias publicações sindicais da época para ser editado na forma de livro por primeira vez em 1957 com o título de Operación masacre (2000a) e reescrito em três oportunidades mais (em 1962, 1969 e 1972). Pela reescrita, os inocentes mortos convertem-se em heróis e o seu fuzilamento em episódio fundacional de uma épica que depois será chamada de “Resistência Peronista”. Walsh havia apoiado o golpe contra Perón no ano anterior. Confiava no novo governo e nas instituições. O bem e o mal estavam, para o escritor, claramente definidos. Mas aquela ocorrência abala suas certezas. O modelo do policial de enigma não mais explica o que acontece. Antes de iniciar as investigações, em novembro de 1956, publica o conto Simbiosis (1999d). Há uma série de mudanças nos relatos policiais de Walsh. No já citado Simbiosis, em Zugzwang (in: LAFFORGUE, 2000), em Transposición de jugadas (1999e) e em En defensa Laurenzi, propia um (1999f) delegado o “comisario aposentado Jiménez” que joga é substituído xadrez com por Daniel Hernández num café. A narração já não é em terceira pes soa. O próprio Daniel Hernández é quem narra e fica completamente fora da elucidação do crime. Em Zugz wang, conto de 1957, Hernández registra: Él solo habla, yo escribo (2000b: p.250). Walsh, o dublé de Hernández, recorre a esse gesto quando registra os depoimentos das testemunhas nas suas reportagens de investigação. Mais uma vez, o autor se sente um tradutor. 65 Fora Zugzw ang, todos começam com uma fala do delegado. Nos quatro contos citados neste parágrafo, é Laurenzi que conta ao narrador histórias de quando estava na ativa. Típicos relatos emoldurados num diálogo de café. Laurenzi é um policial do interior, talvez o modelo seja o próprio pai de Walsh. Há na fala de Laurenzi dúvidas sobre a condição de policial. Sobre a possibilidade de fazer justiça. Sem deixar o suspense e nem o jogo lógico, destrói a segurança, as certezas dos policiais de enigma para introduzir a reflexão moral. Em Simbiosis, Laurenzi diz: Lo q u e pa sa e s q ue u n o t a mb i é n es u n se r h u m an o [ . ..] c on tr e s o c ua tr o p a l a b r as e x p li ca m os t od o: u n cr i me n, u na vi ol a c i ó n o u n sui c i d i o. V ea, q uer e m os q u e n os de j e n tr a n q ui l os . ¡P ob r e d e u st e d si m e tr ae u n pr o bl e ma q u e n o p ue d a r e s ol ve r se e n tér m i n os se nci ll os : di ner o, od i o, mi e d o! Y o n o p ue d o t ol er a r, p or e je m pl o, q u e u s te d me sa l ga ma ta n d o a al gu i e n s i n u n m ot i v o r az on a b l e y c on cr e t o. ( p. 1 0 3. ) Isto, Walsh escreve pouco depois dos fuzilamentos de José León Suárez, da morte do recruta Rodríguez junto à persiana da sua casa, que deslancharão a reportagem de investigação Operación masacre. E onze anos antes da publicação de Nota al pie, que não explica o suicídio de um tradutor. El gir o q u e r e p re se n t a l a a p ar ic i ó n d e La ur e n zi só l o es p os i b le d e sp u és de “O per ac i ó n... ” : Her ná n d e z p a sa a se r in te r l oc u t or , es c on f i na d o al r ol de e sc u ch a/ me di a d or , nar r a d or q ue a n ot a l os r ela t os d e La u r e nz i. Y L aur e nz i, p ar a r es ol ver sus mu e r t es, p o ne e n ju e g o ot r a ser ie d e sa b er e s, ya no t é c ni c os , sino “ pr e m od e r n o s” : olf a te o , in t ui c i ó n, se mb l a n te o. La c ul t ur a q ue H er ná n de z r e pr e se n ta só l o p ue d e esc u c ha r : sól o p u e de ap r e n der . Ha y una i n ver si ó n de p u n t uac i ó n: el ac e nt o d e sc a n sa s ob r e l o q u e La u re n zi e v oc a . En a l gu n os m ome n t os, i nc l u so, la sa p i e n cia de He r ná n d ez es r i dic u la r iza d a p or Laur e nz i [ . ..] ( A LA B AR C ES i n: LA F FO R G UE, 2 0 0 0 : p. 3 1.) A referência à posição de “zugzwang” no conto homônimo também 66 fala da impossibilidade de achar saída para um problema. Apesar da insistência no xadrez, jogo que o apaixona, a vida já não é uma quadricula, como a do tabuleiro. Do xadrez foi arrancado na noite de 9 de junho de 1956, quando a história entrou pelas frestas da persiana da sua casa. No dia 13 de junho de 1957, um ano após esse massacre de José León Suárez, três pistoleiros haviam assassinado Marcos Satanowsky, advogado de renome, no seu escritório, em pleno centro de Buenos Aires. Uma operação de prensa é montada para jogar uma cortina de fumaça sobre os mandantes, membros de instituições de inteligência das forças armadas. Walsh investiga. Reúne material que começa a publicar em 9 de junho de 1958. Um mês após a posse de um governo civil, eleito em meio à proscrição do peronismo. A morte do advogado Satanowsky é um episódio numa longa briga pelo controle de um grande jornal diário. É um crime de Estado para cuja execução foram utilizados delinqüentes conhecidos. Para sua elucidação, Walsh não descarta depoimentos desses e de outros marginais. O detetive/Walsh, assim como o delegado de Las tres noches de Isaías Bloom, fala a sua linguagem e se dirige a um deles numa carta aberta em que lhe apresenta suas pequenas possibilidades de sobrevivência se não entrega os verdadeiros mandantes. Quando o escândalo se instala, Walsh é convidado a participar de uma comissão parlamentar de inquérito e é na condição de membro dessa comissão que continua as investigações. Então é obrigado a guardar sigilo sobre as informações levantadas, mas não deixa de utilizar a imprensa como (mandantes, recurso executores, no jogo de testemunhas). inteligência Quando o com poder os atores executivo, pressionado pelos militares, força o arquivamento das investigações, Walsh reúne os resultados e os publica na forma de relato, de reportagem de investigação, O caso Satanowsky (1997c), em 1959. Em parte, o faz para forçar a continuidade da comissão, para denunciar a cobardia do governo civil, a sua cumplicidade, e obrigá-lo a se pronunciar. Em 1961 publica o conto Transposición de jugadas. Nele refere-se ao problema lógico conhecido do lobo, a cabra e a couve-flor. Mas: ¿Cómo saber que 67 una cabra no se portará como un lobo, o inclusive como una cabra? (p.98). É provável que estivesse pensando na dificuldade de estimar a validade dos depoimentos das partes envolvidas no caso Satanowsky, incluindo os testemunhos dos marginais, no meio do esforço desqualificador do poder judiciário e da grande imprensa em relação a estes depoimentos. Onde está a verdade? Em En defensa propia, Laurenzi começa comentando: [ . ..] n o se r v ía par a c o m is ar i o [ ...] . E st a ba vi en d o l as c osa s y n o q u er í a v e r la s. L os p r ob l e ma s e n q u e se m et e la ge n te , y l a m a ner a q u e t ie ne de r e sol ve rl o s, y l a f or ma e n q ue yo l os ha bí a r e suel t o [ .. .] y a sí hi c e d os o tre s ma c a na s ha st a q ue me ju b i lé. ( p . 1 4 7.) Este último conto desliza-se para o policial hardboiled que já se anunciava em Zugzwang. Laurenzi contorna suas obrigações profissionais, seja apelando a razões de jurisdição ou ocultando um par de provas que incriminariam o responsável por uma morte. Manipulação de regras e procedimentos que aparecerá depois na trama de Imaginaria (2000e). Em Transposición de jugadas, o método lógico demonstra sua ineficácia, exigindo um olhar que considere as paixões dos homens e mulheres reais. Mas o delegado de polícia é, também ele, um ser humano com medos e ambições. Há nele uma sabedoria fruto da experiência, assim como a do homem de campo. O cenário onde transcorre o crime é Lamarque, muito perto de Choele-Choel, localidade onde nasceu Rodolfo Walsh. A descrição do local o situa também historicamente em relação à conquista de terra indígena pelas armas de fogo. Este conto é, de alguma maneira, o relato do fracasso do delegado. Ele não apenas não diagnostica corretamente o crime, como também, com sua avaliação torpe, o facilita. É colocado depois perante os fatos consumados que, com um pouco de sagacidade, poderia ter evitado. Mas é também um acerto de contas do autor com o gênero. Walsh diagnostica o fracasso dos códigos do gênero para tornar 68 um relato verossímil na Argentina. Não é o único arrependimento. Despede-se da ficção policial em 1961, antes da segunda edição de Operación Masacre, em 1964. Se em 1957 se auto define como “autor de novelas policiais” (LINK, 1998: p. 72), em contraposição a “escritor” (como Borges), uns poucos anos depois deplorará esses relatos. Porém, em 1969, quando a publicação em forma de livro de ¿Quién mató a Rosendo? (1997b), a investigação jornalística que encerra a trilogia do autor, registra na nota preliminar: Si alguien quiere leer este libro como una simple novela policial, es cosa suya. Para o autor não é uma “simples novela policial”, mas ele autoriza a algum leitor desavisado. A propósito dessa ambigüidade, Alabarces aponta: Es uma resolución paradójica: si por un lado la hibridación genérica de Walsh está afirmada en una tradición argentina, constituye al mismo tiempo un gesto de vanguardia. (in: LAFFOR GUE, 2000: p. 36). O título dessa reportagem, que investiga o assassinato de um dirigente sindical pelego, aponta para uma constante do gênero, a pergunta clássica: whodunit (FEINMANN, 1997). Mas Walsh já não é o detetive romântico que trabalha sozinho. A investigação é um trabalho da equipe de jornalistas do periódico C GT, da central dos trabalhadores, que Walsh dirige. É publicado como uma seqüência de artigos que o jornalista Rogelio García Lupo, também colaborador do periódico, qualificava como folletín de la clase obrera. Entre as novelas de enigma com a dupla Hernández/Jiménez e os da dupla Laurenzi/Hernández aconteceram as duas primeiras experiências do detetive/jornalista romântico, que produz reportagens de investigação, abalando as certezas e a beleza geométrica, de tabuleiro, do policial de enigma. Walsh/detetive está mais próximo do personagem de novela hardboiled. Mas há depois outra volta de parafuso que o fará abandonar o gênero. A passagem para a ação o levará a procedimentos próprios do testemunho e da literatura militante, num permanente diálogo entre escrita (incluindo a sua literatura ficcional) e ação política. E, nessa passagem, há um primeiro momento em que ele se lança como um romântico, um homem que se atreve junto a outros que também se atrevem, estimulados por seu gesto: Cuando en uma comunidad 69 basicamente sana fallan determinadas instituciones, otras las reemplazan, o las reemplazan simples particulares. Ése es um índice de salud y de vigor. (WALSH, 1997c: p.211). Walsh não é apenas um detetive que usa disfarces e nomes falsos. Para além dessa exterioridade estão presentes nas suas reportagens de investigação: o rigor, as anotações até dos mínimos detalhes, os registros da data e até da hora em que obteve cada informação, o cotejo de indícios. Depois passa a por a informação em circulação. Ao fazer isso, dirige-se a diferentes destinatários: hostiliza uns, como o policial de Las tres noches de Isaías Bloom, estimula outros. Desenvolve assim um trabalho de inteligência. Nisso, ele também é um tradutor: Su ge st o de tr a d uc t or se af ir ma e n u n a d ob le c o n vi cc i ó n: p or u na p a rt e , la esc r i t ur a de be a lca n z ar s u ma yo r gr a d o d e ef ec ti vi d a d e n la dif u s i ó n de l os su c e sos s oc ial e s y, p o r ot r a , s u d e st i n o se e n la za s ol i dar ia me n t e c on l a m ir a da de l os lec t or e s q ue r e vi sa n e sa c ar t o gr af ía par a pe rf ec c i on ar la . ( FE R RO i n : WA LS H , 1 9 9 7: p . 1 3- 1 4.) Diferentemente de Borges, Walsh, o escritor, exigia uma homologia entre realidade e literatura. E apesar de, como Lönnrot, o detetive de La muerte y la brújula, Walsh, o investigador, também levantar hipóteses “interessantes”, soube desestimá-las quando estas se demostravam insuficientes para dar conta da realidade. O abandono do gênero policial é resultante do abandono da crença no herói individual. “Operación Masacre” cambió mi vida. Haciéndola, comprendí que además de mis perplejidades íntimas, existía un amenazante mundo exterior, escribe Walsh em 1966 (in: LUGONES). Ele deixa de se ver como um herói para olhar para si mesmo como um homem que se atreve a dizer “não” e confia que outros homens e mulheres atrever-se-ão também, junto com ele, a se opor ao crime de Estado. 70 REFERÊNCIAS ALABARCES, Pablo. Dialogismos y géneros populares. In: LAFFORGUE, Jorge e outros. Textos de y sobre Rodolfo Walsh. Buenos Aires: Alianza, 2000. 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Fala-se em “um” campo léxico-semântico porque não se trata do campo que abrange todas as lexias e expressões de língua inglesa relacionadas ao tema amor, e sim apenas daquelas encontradas no corpus escolhido. O conceito de lexia adotado é o de Pottier (1978). Palavras-chaves: Friends. Campo léxico-semântico; Inglês; Amor; Sitcom; THE LEXICAL SE MANTI C FIELD OF LOVE IN THE SITCOM FRIE NDS Abstract: The purpose of this work is to create a lexical-semantic field of love of English from lexical units found in the subtitles of the first and last episodes of the first five seasons of the North-American sitcom Friends produced by Warner Brothers, whose main subject is the lovelife of its characters. It is “a” lexical-semantic field because it is does not contains all the English lexical units related to the love subject, but only those found in the chosen corpus. The theoretical concept of lexias (lexical units) adopted is Pottier´s (1978). Keywords: Lexical-semantic field; English;Love; Sitcom; Friends. Introdução O enredo da sitcom Friends inclui temas como à procura de emprego e conflitos familiares dos personagens, mas o tema mais freqüente são as diversas relações amorosas em que eles se envolvem. Supomos, portanto, que as falas dos personagens constituam um corpus rico em itens lexicais do campo conceitual do amor da língua inglesa. A proposta deste trabalho foi demonstrar como exatamente esse campo é * Do u t ora n d a e m Li n gü í s tic a e Lí n gu a P or t u gu e s a – UNE SP/Ar ar a q u a r a- SP . E - m ai l: m ai r ac fe r re i ra @ g m ai l. c o m 75 constituído. Por iss o, as perguntas de pesquisa foram: (1) quais lexias compõem o campo léxico-semântico do amor? (2) quais subcampos léxico-semânticos podem ser formados a partir da identificação de traços de significação comuns entre grupos de lexias? Acreditamos que a sitcom Friends nos permite visualizar a língua inglesa em uso no universo das relações amorosas no contexto de Nova York entre 1994 e 2004, e que o campo léxico-semântico do amor (love) pode oferecer subsídios para professores, aprendizes, tradutores e dicionaristas que lidam com essa língua. A sitcom Friends A sitcom, abreviação da expressão situation comedy (comédia de situação), caracteriza-se por histórias curtas centradas na vida e nas ações de uma determinada família ou grupo de pessoas que agem como uma família. A sitcom é um estilo dramático tipicamente norte-americano no qual a exposição, o conflito, o clímax e o desfecho acontecem todos em um episódio de aproximadamente trinta minutos. Geralmente cada episódio retrata uma situação cômica específica nas vidas dos personagens principais, e os episódios subsequentes estruturam-se s obre os anteriores, dando aos telespectadores uma ideia geral dos personagens e das relações entre eles (GRIMM, 1997, p. 380). Friends foi exibida pelo canal Warner Channel da Warner Bros de 1994 a 2004, e a história se passa no centro da cidade de Nova York, no bairro Greenwich Village. Os personagens são os irmãos Ross Geller (David Schwimmer ) e Monica Geller (Courteney C ox Arquette), o amigo de faculdade de R oss, Chandler Bing (Mathew Perry), a amiga de infância de Monica, Rachel Greene (Jennifer Aniston), e outros dois amigos: Joey Tribbiani (Matt LeBlanc) e Phoebe Bufay (Lisa Kudrow), todos com mais ou menos a mesma idade. A maior parte das cenas acontece no apartamento de Monica e no café Central Perk. Segundo os co-criadores e produtores executivos do programa, Kevin S. Bright, Marta Kauffman e David Crane, a ideia surgiu do interesse de Crane e Kauffman de escrever sobre os dez anos em que moraram em Nova York após saírem da faculdade. Durante as dez 76 temporadas, os seis amigos têm vários relacionamentos amorosos com diferentes graus de envolvimento emocional e físico, permeados de questões como diferença de idade ou de situação econômica. O relacionamento de Ross e Rachel pode ser considerado o tema central, a unidade dramática maior da sitcom Friends, seguido pelo relacionamento de Chandler e Monica. No entanto, cada episódio tem começo meio e fim e dentro deles a atuação de cada personagem é equilibrada a ponto de não se poder afirmar que Ross e Rachel são personagens centrais. Pelo contrário, o enredo de cada episódio é subdivido em duas ou três tramas que envolvem cada uma, três ou dois dos seis amigos, numa divisão quase sempre equivalente em relação ao tempo. Lexias e campos léxico-semânticos Diante da falta de consenso quanto ao conceito de palavra, muitos linguistas passaram a cunhar diferentes termos numa tentativa de resolver esse problema terminológico. Um dos termos mais largamente utilizados é o termo lexema que, segundo Biderman (2001, p.169), designa a unidade léxica abstrata em língua, que se manifesta, no discurso, em formas fixas ou variáveis denominadas lexias. Para Pottier (1978, p.269), lexia é uma unidade lexical memorizada, que nasce de um hábito associativo e, em geral, de um processo lento de lexicalização de uma sequência. Quanto aos tipos de lexias, ele equipara a lexia simples à palavra em sua concepção tradicional, como cadeira e comia. Já a lexia composta resulta de uma integração semântica que se manifesta formalmente, como em s acarolha, e a sequência em vias de lexicalização é chamada lexia complexa, exemplificada por guerra fria, complexo industrial, sinal vermelho etc, e pelas siglas. Por fim, as lexias complexas que alcançam o nível de um enunciado ou texto, como nos casos de provérbios e preces, são chamadas lexias textuais. Lexias com um traço de significação comum, como aquelas relacionadas a cores, ou a atividades esportivas, por exemplo, formam os chamados campos léxico-semânticos. Observamos que não há consenso 77 entre os autores acerca das noções de campo semântico e de campo léxico. O campo semântico é definido como o conjunto de possíveis significações de uma palavra (BIDERMAN, 2001) e como uma divisão do espaço semântico (LEHRER, 1974), que são formulações muito diferentes, pois estaríamos chamando de campo semântico tanto os vários significados da palavra sorte, por exemplo, quanto uma área conceitual, como cores ou máquinas. Outra evidência dess a falta de consenso está na semelhança entre a definição de campo semântico de Mounin (1979) e a definição de campo léxico de Genouvrier e Peytard (1974): unidades léxicas que representam conceitos incluídos dentro de uma etiqueta e palavras que designam diferentes aspectos de uma noção. Essas duas definições se aproximam muito da afirmação de Coseriu (1980) de que campos lexicais podem ser definidos como paradigmas lexicais, isto é, como estruturas lexemáticas opositivas: “um campo lexical caracteriza-se pelo fato de que resulta da repartição de um conteúdo lexical contínuo entre vários lexemas que se opõem de maneira imediata uns aos outros, por meio de traços [de conteúdo] distintivos mínimos” (1980, p.199). Diante desse impasse terminológico, optamos pelo nome campo léxico-semântico, por duas razões: primeiro, porque consideramos o léxico a materialidade do domínio semântico e, de fato, não é possível pensar e conceber um campo semântico sem o suporte do léxico, tanto que todas as definições de campo semântico que consultamos contêm termos como palavra, léxico, unidades léxicas etc; e, segundo, porque entendemos o amor tanto como um fragmento do espaço semântico, uma área conceitual, quanto como uma etiqueta, ou um conteúdo lexical contínuo, composto por um conjunto de lexemas. O campo léxico-semântico construído neste trabalho pode ser considerado uma hierarquia do tipo taxonomia (CRUSE, 1986, p.137), caracterizada, primeiramente, pela relação de sentido chamada taxonímia: o elemento inferior na relação vertical de dominância é um tipo, uma das configurações do elemento superior, portanto este está contido naquele. 78 Outra característica de uma taxonomia é a relação horizontal entre elementos chamada co-taxonímia, que se refere à conexão entre eles. No exemplo a seguir (figura 1), a relação entre “frutas” e “maçã” e entre “frutas” e “banana” é a relação de taxonímia, ou seja, “maçã” e “banana” são tipos de frutas e estão inseridas na classe “fruta”. Já a relação entre “maçã” e “banana” é a relação de co-taxonímia: a conexão entre as duas está no fato de ambas serem tipos de frutas. Fi gu r a 1 O campo conceitual do amor neste trabalho é o que compreende o universo das relações amorosas entre casais (incluindo os casais de homossexuais), ou seja, as de natureza romântica e/ou sexual, que começam geralmente com a paquera, podem passar por vários níveis de comprometimento (namoro, noivado, casamento) e terminar de várias formas (rompimento de namoro ou de noivado, divórcio). Durante esse tipo de relação, são manifestações físicas típicas o beijo na boca e todas as ações de natureza sexual, e há diferentes espécies e graus de sentimentos, desde um interesse ou atração física até o amor, considerado o mais intenso deles. Portanto, as lexias que compõem o campo léxico-semântico love são aquelas que se referem a algum desses sentimentos, tipos de relacionamento ou manifestações físicas. Metodologia O primeiro passo para a realização desta pesquisa foi assistir aos primeiros e últimos episódios das cinco primeiras temporadas da sitcom Friends e mapear todas as lexias relacionadas ao tema amor presentes nas legendas em inglês, registrando seus contextos extra-linguísticos, porque, no contexto das sitcoms, “a relação entre o diálogo e a situação extra-lingüística é intensa e recíproca (…). O real sentido das unidades individuais de significado depende tanto da situação extra-ligüística 79 quanto do contexto linguístico” (VELTRUSKY apud BASSNETT- McGUIRE, 1988, p. 121). O segundo pass o foi a identificação do traço de significação comum entre as lexias encontradas e das relações de conteúdo mais específicas que permitiram distribuí-las em sub-campos. Para isso, analisamos suas definições em quatro dicionários : Random House Webster’s Unabridged Dictionary (2001), Longman Dictionary of Contemporary English (1995), Collins Cobuild Advanced Learner’s English Dictionary (2003) e Novo Dicionário Folha Webster’s (1997). As lexias não encontradas nos dicionários tiveram seus significados depreendidos dos contextos em que ocorreram para que fossem agrupadas nos subcampos léxico-semânticos. Por fim, compusemos o campo léxico-semântico love por meio da união dos subcampos em estrutura arbórea (taxonômica). Análise dos dados: a formação do campo léxico-semântico love Após o mapeamento e análise das lexias, traçamos dez sub-campos léxico-semânticos. O sub-campo flirt (figura 2) reúne as lexias que se referem a ações e acontecimentos típicos da fase da paquera; os traços de significação comuns entre as lexias que o compõem são os termos attractive e attracted. No sub-campo date (figura 3) estão às lexias relacionadas aos primeiros encontros amorosos entre pessoas e aos relacionamentos com menor grau de comprometimento. Os traços de significação comuns entre as lexias desse campo são os termos go out, spend time/evening, social appointment/activity. Já o sub-campo relationship (figura 4) refere-se aos relacionamentos amorosos com maior grau de comprometimento, que, em geral, antecedem o pedido de casamento. Os traços de significação comum entre as lexias neste caso são os termos relationship e love. O sub-campo feeling (figura 5) reúne lexias que exprimem sentimentos, cujos traços comuns de significação são os termos feel/feeling, love e affection. A lexia simples appreciate, cuja definição não traz algum desses termos, foi incluída nes se campo porque foi 80 utilizada por Ross para explicar a Rachel como um homem deveria se sentir em relação a ela. O sub-campo physical contact (figura 6), por sua vez, traz as lexias relacionadas aos contatos físicos com conotação romântica que os casais podem realizar. O traço de significação comum entre elas é o termo love, e é importante observar que ele aparece na definição da lexia simples kiss que expressa a ação de beijar, mas não é encontrado nas definições dos substantivos kiss e kisser; esses foram inseridos neste sub-campo porque em todas as suas ocorrências no corpus referiam-se a beijos e pessoas em contextos amorosos. A cerimônia de cas amento é retratada pelo sub-campo wedding (figura 7), cujas lexias têm como traços de significação comuns os termos wedding e get married. Incluimos neste sub-campo as lexias reception e rehearsal dinner, por fazerem parte das tradições do casamento. Já o casamento como espécie de relacionamento entre duas pessoas, considerado a partir da cerimônia, está representado no subcampo marriage (figura 8). Os traços de significação comuns entre as lexias que o compõem são os termos marriage e married. A lexia simples anniversary foi incluída neste sub-campo, apesar da possibilidade de ser incluída no sub-campo relationship, já que há aniversários tanto de casamento, quanto de namoro. O sub-campo sex (figura 9) reúne as lexias relacionadas aos atos de caráter sexual, cujos traços de significação comuns são os termos sex, sexual e sexually. Acrescentamos neste sub-campo também as lexias girth, stamina, sexually, do it, do somebody e fantasy, porque são todas relacionadas a sexo. O sub-campo breakup (figura 10) abrange as lexias relacionadas aos rompimentos das várias espécies de relações amorosas, e o principal traço de significação comum entre elas é o termo end. Por fim, o sub-campo people (figura 11) é formado por lexias que representam tipos de pessoas consideradas em relação a seu comportamento ou status no âmbito dos relacionamentos amorosos. Os traços de significação comuns entre essas lexias são os termos someone, woman/man e attractive. 81 Fi gu r a 2 Fi gu r a 3 Fi gu r a 4 Fi gu r a 5 Fi gu r a 6 Fi gu r a 7 Fi gu r a 8 82 Fi gu r a 9 Fi gu r a 1 0 Fi gu r a 1 1 A partir da união desses sub-campos léxicos, foi possível compor o seguinte campo léxico-semântico do amor: Fi gu r a 1 2 Considerações finais Percebemos que várias formas de relacionamento amoroso são abordadas pela sitcom Friends, já que foram encontradas desde lexias relacionadas à paquera e ao sexo a lexias relacionadas ao casamento como instituição e como espécie de relação. Substantivos que variam quanto ao gênero foram encontrados em suas duas formas, masculina e feminina, como é o caso de boyfriend e girlfriend e de husband e wife. A identificação dos traços de significação comuns entre lexias, para sua inclusão nos sub-campos, foi muito facilitada pela utilização dos dicionários Longman Dictionary of Contemporary English (1995) e Collins Cobuild Advanced Learner’s English Dictionary (2003), porque eles trazem definições e explicações mais detalhadas; enquanto o 83 dicionário unabridged, direcionado para falantes nativos da língua, tem definições mais concisas e de vocabulário mais específico. A primeira pergunta da pesquisa – quais lexias compõem o campo léxico? – foi respondida satisfatoriamente pela identificação e pela análise das 121 lexias relacionadas ao amor. A segunda pergunta – quais sub-campos léxicos podem ser formados a partir da identificação de traços de significação comuns entre grupos de lexias? – também foi respondida, com a definição dos dez sub-campos que organizam as lexias que formam o campo léxico-semântico do amor. Acreditamos que este estudo contribua para o conhecimento do léxico da língua inglesa e esperamos que tenha também despertado ou fomentado o interesse pelo estudo dos campos léxicos. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Thiago; MAYOR, Andréa S. O Amar, o Amor: uma perspectiva contemporâneo-ocidental da dinâmica amorosa para os relacionamentos. In: STARLING, Roosevelt; CARVALHO, Kellen. Ciência do Comportamento Humano: conhecer e avançar. v. 5. São Paulo: ESETec, 2006. p. 99-105. BASSNETT-McGUIRE, Susan. Translation Studies. Londres: Routledge, 1988. 192p. BIDERMAN, Maria T C. Teoria Linguística: teoria lexical e linguística computacional. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 356 p. CARDOSO, Elis de Almeida. O léxico de Drummond na caracterização do amor. Estudos Linguísticos XXXVI(1). Janeiro-abril. São Paulo, 2007. p. 77-86. Collins Cobuild Advanced Learner’s English Dictionary. Glasgow: HarperCollins Publishers, 2004. 1712 p. CRUSE, D. A. Lexical semantics. 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THE READING OF IMAGE: SEMIOTICS IN THE CLASSROOM Abstract: The paper discusses the use of the philosopher Charles Sanders Pierce’s categories for image analysis and suggests their application in educational exercises for undergraduate students. Besides, the paper comments on how the support and place in which the images are presented affect the signal interpretation. As an example, we analyse two photographs by Luiz Eduardo R. Achutti, which are part of the Pirelli collection of the Museu de Arte de São Paulo, are analyzed. Keywords: Education; Semiotics; Image analysis; Photography; Support. Introdução O mundo contemporâneo está permeado de imagem e o ser humano comunica-se e tenta organizar-se por meio dela. Mesmo apreendendo o mundo visualmente, antes mesmo do uso da palavra, ainda é pouco consolidada no sis tema educacional uma pedagogia que efetivamente considere a importância da leitura visual e de seu universo estético e simbólico. Nas palavras de Caleb Gattegno (apud DONDIS, 2000, p. 60), ∗ Espe cia li sta e m Fot o gr af ia p el a U n i ve r si d a de E st a d u al de Lon d r i na – D oc e nte d os c ur sos de Pu b li c i da d e e P r opa ga n d a e M od a d a I n st it u iç ã o M ou r a Lac er d a. E - ma i l: p a t ri ci ak i ss@ y m ai l.c o m 86 “embora usada por nós com tanta naturalidade, a visão ainda não produziu sua civilização”. Na sociedade contemporânea, discute-se a necessidade de uma alfabetização visual que possa expressar-se na leitura de imagens e compreensão crítica da cultura visual, considerando cultura visual como diversidade do mundo das imagens, das representações visuais, dos processos de visualização e de modelos de visualidade (KNAUSS, 2006). Além dis so, os estudos em cultura visual mostram que “(...) interrogam o papel de todas as imagens na cultura que podem ser comparadas como representações vis uais produzidas no âmbito da produção cultural, não deixando espaço para antigas categorias do campo das artes, como obraprima, criação do gênio ou arte menor” (KNAUSS, 2006). Desde as vitrinas das cidades aos anúncios para web, presencia-se a construção da mensagem por meio de imagens na sociedade contemporânea, imersa na cultura visual. Com isso, faz-se necessário formar cidadãos que possam compreender e interpretar o mundo em que vivem, em outro sentido, não apenas no âmbito da palavra escrita e, com isso, agregar valor a essa sociedade. O crescente interesse pelo visual tem levado historiadores, antropólogos, sociólogos e educadores a discutirem as imagens e a necessidade de uma alfabetização visual (SAR DELICH, 2006). A cada dia as pessoas são bombardeadas com informações verbais e não verbais que chegam principalmente por intermédio das novas tecnologias de informação (computadores, internet, celular). Além disso, vive-se numa sociedade em bit, onde a digitalização social faz com que signos sejam processados pela lógica binária do computador. Serviços são codificados e manipulados no 0/1 – essa desmaterialização da economia proporciona aumento na rapidez e produção. As sociedades pós-industriais são programadas e performatizadas pela tecnociência para produzir cada vez mais e mais rápido (SANTOS, 1995). Uma das características dessa informação em bit é sua difusão em blip, ou seja, o sujeito recebe pontos, fragmentos aleatórios de informações, que não formam um todo, mas têm importantes efeitos culturais, sociais e políticos. Surgem algumas questões prementes: o que fazer com toda essa informação? 87 Como estabelecer relações? Como interpretá-las? Com isso, surge a importância de uma alfabetização visual para a aprendizagem, identificação, criação e compreensão de mensagens visuais acessíveis a todas as pessoas, já proposta por Donis Dondis. (DONDIS, 2000). A semiótica, como ciência geral de todas as linguagens (SANTAELLA, 1992), discute, principalmente, a construção do signo 5 e a relação entre esses signos. É uma forma de ler e compreender o verbal e o não verbal. Com isso, é cabível seu uso para o exercício de análise de imagens, já que investiga todas as linguagens possíveis, objetivando examinar qualquer fenômeno de produção de significado e sentido. Dentre os vários autores, formulações e estudos da semiótica, foi escolhida a Semiótica Peirciana, que aborda a fenomenologia e a teoria geral dos signos. Análise das categorias fenomenológicas A Fenomenologia é a ciência que estuda os elementos universalmente presentes em todos os fenômenos e se preocupa com as aparências no universo da experiência. Para Peirce (2003), fenômeno é tudo aquilo que se apresenta à mente sem considerar a realidade. Os fenômenos podem ser categorizados a partir do modo como se apresentam à mente. Sendo classificados em Primeiridade, Secundidade e Terceiridade: As c ate g o r i as pe c ul i are s com que ( ...) os di ze m re s pe it o p e nsa me n t os às são m o d al i d a de s i n f o rm a d o s e en t ret e c i d os. E nf im: c a m a d as i nt er p e net r á vei s e, n a m ai o r p a rt e d a s v ez es , si m ul tâ n e a s, se b em q u e q u a l it a ti v am e n te di s ti n t as ( SAN TAE LLA , 1 9 8 3, p g. 4 2) . Primeiridade é o estado de contemplação sem qualquer referência, sem fazer conexão com mais nada; é um estado de consciência que ainda 5 Para Peirce, signo é uma coisa que representa outra coisa: seu objeto. Ele só funciona como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. O signo não é o objeto. Está apenas em seu lugar. Assim, a palavra casa, a fotografia de uma casa, a maquete de uma casa, são todos signos do objeto casa. (SANTAELLA, 1992) 88 não foi pensado. É a primeira apreensão das coisas, que para nós aparecem (PEIRCE, 2003). Secundidade é o choque, é o estado de experiência; é a reação em relação ao mundo, “a consciência de um certo sentimento sendo rompido por um outro (...). Um acontecimento que se força contra o pensamento, levando a uma mudança na consciência” (CONTANI; PIRES, 2005, p.3). É o reconhecimento dos elementos contemplados. Terceiridade aprendizagem, é o despertar aproximando o para o primeiro do conhecimento, segundo para numa a síntese intelectual, que corresponde à camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos, pelo qual o mundo pode ser representado e interpretado (PEIRCE, 2003). Em suma, por Primeiridade, entende-se aquilo que é, sem referência a nada mais, uma impressão não analisável, pura qualidade de ser e sentir. Secundidade é aquilo que é em relação ao outro, mas não se referindo a um terceiro – é a consciência reagindo em relação ao mundo. E Terceiridade é aquilo que mantém uma relação triádica, colocando-se em relação mútua tanto a um segundo quanto a um terceiro (PEIRCE, 2003), a camada do pensamento em signos por meio do qual representamos e interpretamos o mundo, em que se produz um signo pela consciência. É o pensamento que faz a mediação entre a pessoa e o fenômeno. Nas palavras de Contani & Pires (2005): Pa r ece ( . ..) q ue a s ver da d e ir a s ca te g or i a s d a c on sc iê nc ia sã o: pr i me ir o, se nt i me n t o, a c o n sc iê nc ia q ue p o de ser i n cl u í da c o m u m i n sta n te d e te mp o, c o n sci ê nc ia p as si va d e q ua li d a de , se m r ec on h e ci m e nt o ou a ná li se ; em se gu n d o l u gar , c o n sc iê n cia de i n ter r u p çã o n o c a m p o d a c on s c iê nc ia, se nt i d o de r e si s tê nc i a, d e u m fa t o e x ter n o, d e a l gu m a o ut r a c oi sa ; e m te rc eir o l u ga r , c on s c iê nc ia si n t é tic a , l i gaç ã o c om o te m p o, se n ti d o de a pr e n d iza ge m, p e nsa me n t o. ( CO N TAN I ; PI R E S, 2 0 0 5, p . 1 7 1) O uso das categorias fenomenológicas para o inicio de exercícios de leitura de imagens é fundamental para que o aluno compreenda o 89 processo de construção da linguagem e, posteriormente, consiga compreender a relação entre signos, já que por meio da aparência dos fenômenos pode-se descrever o contato com a imagem. Após a explanação das categorias segue-se a análise da imagem para a lógica triádica interna ao signo, na qual as categorias, também operam. Nessa relação triádica, faz-se o exame do signo em si mesmo, o signo com o objeto – estudo da relação do signo com aquilo que ele representa e relação do signo com seu interpretante – e o estudo da relação do signo com todos os tipos interpretativos por ele produzidos. O artigo não aborda a relação entre os signos, mas sugere que o assunto seja estudado e aplicado posteriormente à análise fenomenológica. O uso da semiótica para a análise da imagem A discussão em voga na sociedade contemporânea se dá em torno da alfabetização visual. O século XX (como provavelmente também será o século XXI) é reconhecido como o da sociedade da imagem dentro de uma cultura visual. No entanto, falta ainda às pessoas argumentos teóricos para compreensão e interpretação dessas imagens. Kellner (apud SAR DELICH, 2006) argumenta que ler imagens criticamente implica aprender a apreciar, decodificar e interpretar essas imagens, analisando tanto a forma como são construídas e como operam em nossas vidas, quanto o conteúdo que comunica em situações concretas. Para Kleiman e Moraes (1999), o desenvolvimento do letramento requer a exposição do aluno a vários tipos de texto em eventos variados, pois quando o aluno interage com diversas fontes de informação é encaminhado a se engajar em variadas práticas sociais de leitura: aprende a observar, perceber, relacionar, comparar, abstrair, criticar, construir generalizações e a falar sobre um determinado ass unto. Esse mesmo raciocínio pode ser utilizado no tratamento da linguagem não verbal, por meio do uso de vários tipos de imagens oriundas de diversas fontes de informação para despertar a capacidade crítica do aluno na sua leitura. Devido a um déficit na educação fundamental, em que a maioria das instituições de ensino dá ênfase ao ensino da linguagem verbal e 90 dificilmente aborda o ensino do não-verbal, parte dos estudantes universitários apresenta dificuldades para ler e interpretar uma imagem, ou o faz apenas superficialmente. A expressão leitura de imagens começou a ser utilizada na área de comunicação e artes no final da década de 1970 (SARDELICH, 2006), com a explosão do audiovisual, baseado principalmente na noção de que uma imagem incorpora códigos e, para lê-la, é necessário o conhecimento e compreensão desses códigos. A Semiótica foi uma das teorias que influenciou essa tendência de leitura de imagens. No entanto, William Mitchell (apud SARDELIC H, 2006) adverte que apesar de a noção do visual constituir uma dimensão diferente da linguagem verbal, isso não significa que as duas sejam antagônicas ou que a cultura visual isole a verbal e não verbal; ao contrário, a cultura visual inclui a relação entre todos os signos. O estudo da imagem é algo móvel, pois a cada momento são incorporados novos aspectos relacionados às representações, e a cada instante há mudanças e acréscimo de repertório individual, assim como as alterações do repertório consolidado. Nesse contexto, não há como manter um ensino cartesiano para a análise de imagem, já que não existem apenas receptores e leitores, mas sim construtores e intérpretes, na medida em que a aproximação com a obra é interativa e não passiva, já que “as representações que as pessoas constroem da realidade derivam das suas características sociais, culturais e históricas do indivíduo. È necessário compreender o que se representa para compreender as próprias representações” (SAR DELICH, 2006). Uma construção eficiente do ensino de análise da imagem deve averiguar como é possível ampliar as conexões do aluno para que todo o grupo possa organizar desligando-os discursos da com os dualidade saberes que todos educador/educando possuem, e de ensino/aprendizagem. Ou seja, em uma concepção pós-moderna de ensino se valoriza a troca de experiências, o aluno participa ativamente da aula, construindo juntamente com o educador a informação. A semiótica, como uma ciência formal e abstrata, preocupa-se com o estudo da linguagem e dos signos, agindo de forma 91 interdisciplinar, não se limitando às disciplinas que explícita ou implicitamente estudam processos sígnicos, já que adota a posição de metadisciplinar “toma todas as outras disciplinas sob seu domínio, independentemente de elas estudarem processos sígnicos (humanidades, ciências sociais) ou não (física, química) (SANTAELLA, 1992, pg.45). Apesar de a preocupação com o estudo dos signos remeterem ao clássico grego, somente a partir da metade do século XX a Semiótica ganhou destaque como uma nova área do saber. Desde então, ela assumiu uma tendência propagadora, sendo responsável por introduzir no modelo de leitura da imagem as noções do significado entendido objetivamente – a descrição de situações, figuras, pessoas em um espaço e tempo – e do entendido subjetivamente, que se refere àquilo sugerido pela imagem e à mercê do julgamento do intérprete. Sendo assim, a abordagem semiótica enfatiza a leitura da imagem a partir dos seguintes códigos (SAR DELIC H, 2006): • Espacial: ponto de vista (acima/abaixo; esquerda/direita); • Gestual e Cenográfico: sensações que os gestos produzem no leitor (tranquilidade, nervosismo); • Lumínico: fonte de luz (cima/baixo; frente/lado); • Simbólico: convenções (pomba simbolizando paz, caveira simbolizando a morte); • Gráfico: imagens tomadas de perto, de longe; • Relacional: relações espaciais que criam um direcionamento do olhar no jogo de tensões, equilíbrio, antagonismos. A fotografia como imagem para análise A mensagem fotográfica não é estruturada em códigos formais como a escrita (BONI, 2005). Por não necessitar de uma estrutura formal de leitura, a maioria das pessoas, mesmo as não alfabetizadas, pode ler e interpretar uma imagem. No entanto, o grau de leitura depende do repertório visual e cultural de cada um, não sendo necessário o uso de um código formal, mas há a necessidade de uma sistematização da 92 leitura, para que não sejam imputadas interpretações não sugeridas pela imagem, ou seja, interpretações além do que a imagem de fato oferece ao leitor. Assim, essa condução da leitura poderá fazer com que o leitor aumente o seu leque de interpretação em relação àquela imagem. Devido ao caráter indicial, a imagem fotográfica, nesse ponto, poderá ser de utilidade para uma introdução ao exercício de leitura não verbal. A fotografia é uma manifestação de linguagem e sempre permite algum tipo de leitura, (...) por mais simples e ingênua que seja (BONI, 2005). Dessa forma, é por meio da linguagem fotográfica que se pode codificar sua “escrita”. Como a linguagem visual é acessível à quase todo ser humano, infere-se que ela facilite a aplicação dos exercícios de leitura de imagem. A fotografia é percebida como um bem cultural, um patrimônio para ser reconhecido, conservado e divulgado. Para Santaella (2005), podem ser identificados três paradigmas na história da produção de imagens pelo homem: o pré-histórico, que se refere a imagens com produção manual (desenho, pintura, escultura); as imagens com conexão dinâmica e física com algo que existe no mundo, classificadas como segundo paradigma (fotografias, filmes, vídeo); e, o terceiro paradigma, que seriam as imagens sintéticas ou infográficas (computacionais). Segundo essa classificação, a imagem fotográfica pode ser incluída no segundo paradigma, já que ela se baseia na captura da luz, por um equipamento fotográfico, emanada de algum objeto existente, estabelecendo uma conexão física com algo que existe no mundo. Essa classificação cabe apenas para a captura convencional da imagem fotográfica, visto que atualmente é possível e praticado o uso da fotografia virtual, em que toda a imagem é modelada via computação gráfica, nesse caso enquadra-se no terceiro paradigma. Ainda em sua classificação, Santaella (2005) identifica os paradigmas por intermédio dos meios de produção, papel do agente, natureza da imagem, meios de armazenamento, imagem e mundo, meios de transmissão e papel do receptor. Quanto à fotografia, os meios de produção seriam processos automáticos de captação da imagem. Os meios de armazenamento seriam o negativo, algo reprodutível. O papel 93 do agente, a captura do real, o ponto de vista do sujeito. Em natureza da imagem, a captura do visível. Imagem-mundo a metonímia, o modelo fixo. Por último, o papel do receptor que seria a observação, reconhecimento e identificação. A fotografia é vista pela semiótica como um signo, uma coisa que representa outra: seu objeto. O signo não é o objeto, está apenas no lugar dele, portanto, somente poderá representá-lo de certo modo e em certa capacidade. A fotografia de Achutti (2007), analisada neste artigo, por exemplo, é um signo da composição de um acontecimento ocorrido em 1980 na Casa do Estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFR S). Ao entrar em contato com esse signo, que representa algo ocorrido há 28 anos, o receptor passará pelas três categorias fenomenológicas de Pierce: primeiridade, secundidade e terceiridade. No entanto, as categorias fenomenológicas não precisam ser abordadas racionalmente, ao se fazer a análise da imagem, mas esse exercício, em um primeiro instante, oferece ao aluno a dimensão do processo de compreensão de uma imagem. Fotografias, assim como a televisão e o cinema, são hipoícones, signos que representam seus objetos por semelhança e índices, pois são signos híbridos produzidos por máquina. Sã o, c on t u d o t a mbé m í n d i ce s p or q ue e ssa s m á q ui n a s sã o ca pa z es de r e gi s tr ar o ob je t o d o si gn o p or c on ex ã o f ís ica . A r es p eit o da f ot o gra f ia, P eir ce e sc la r e ce : “O f a t o de sa ber mos q ue a f ot o gr af ia é o e f e it o d e ra di aç õe s p ar ti da s d o ob je t o, t or na- a u m í n d ic e e a l ta me n te i nf or ma t i v o. ( SA N TAE LLA , 1 9 8 3, p . 6 9) Análise da fotografia de Achutti Fotógrafo formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul , em 1985, e mestre em Antropologia Social pela mesma Instituição, Luiz Eduardo R obinson Achutti, sempre participou do cenário fotográfico brasileiro. Atua em Antropologia Social e em Psicologia Social, conduzindo pesquis a na área de documentação e antropologia visual. 94 As fotografias de Achutti proporcionam a discussão da análise fotográfica em sala de aula, uma vez que resgatam a discussão teórica do fazer etnográfico e do trabalho de campo em antropologia, já que o autor tem como ponto central as possibilidades de articular a construção de imagens fotográficas com a perspectiva do pensamento antropológico (AC HUTTI, 1997). Essa perspectiva é válida, principalmente, para cursos de ciências humanas em que esse olhar sobre o homem é fundamental para o desenvolvimento pessoal e profissional do aluno. Achutti prima por temas marcados pela dinâmica do movimento. O fotógrafo sintetiza em um único momento a essência do acontecimento, sem deixar de capturar detalhes em imagens que pulsam na imaginação do espectador e se contrapõem à condição estática do suporte. Duas fotografias de Achutti “Invasão de Mulheres na Casa do Estudante da UFR GS, Porto Alegre, RS, 1980” e “Mecânicos da Oficina da Rede Ferroviária, Porto Alegre, RS, 1996” foram expostas na 15ª edição da Coleção Pirelli/Masp no Museu de Arte de São Paulo em 2007 e anexadas ao livro da coleção (Figuras 1 e 2). O projeto da Coleção Pirelli/Masp de São Paulo objetiva rastrear a produção fotográfica de modo a estabelecer parâmetros efetivos para análise das diferentes correntes estéticas e tendências que permeiam a expressão fotográfica no Brasil, assim como divulgar essas obras, visando fixar sua memória. Essas foram as metas propostas para a formação de uma coleção centrada na fotografia contemporânea. O acervo dos quinze anos da Coleção conta com novecentas e duas fotografias, produzidas por duzentos e quarenta e cinco autores de todo o país. É uma contribuição estética e social e serve como referência para estudos ao ser exibida e compartilhada. A fotografia “Invasão de Mulheres na Casa do Estudante” (Figura 1) é utilizada neste artigo como exemplo do pensamento em primeiridade, secundidade e terceiridade, proporcionando ao leitor da imagem uma visão sobre as três categorias da fenomenologia. Em um primeiro momento, ao olhar a imagem, o receptor desenvolve com ela uma relação de contemplação sem referências, absorção. É um instante de fruição em que a imagem diante dos olhos não faz conexão com qualquer outro signo. O sujeito que a contempla absorve sensações. Essa 95 primeira apreensão da imagem, que aparece ao olhar é uma impregnação de texturas, tonalidades de cinza, linhas retas. Há apenas a contemplação dos elementos plásticos sem determiná-los. È evidente que os elementos citados acima durante a manifestação da primeiridade não são reconhecidos nestes termos pela mente do observador, já que: C on sc iê nc i a e m pr i m eir id a de é q ual i da d e d e se nt i me nt o e, p or i s so m esm o, é pr i mei r a, ou se ja, a p ri m e ir a a pr ee n s ã o da s c oi s a s q u e pa ra n ó s a par ec e m , já é tr a d uç ã o m e di a da en tr e n ós e o s f e n ô m e n o s. Q ua li da d e d e se n tir é o mod o m ai s i me di at o , ma s já i m per ce pt i vel m e nt e me d i a li z a d o d e n oss o es tar n o mu n d o. ( SA N TAE LLA , 1 9 8 3, p g. 4 6 ) Logo após a ruptura, há a identificação. Reconhecimento do prédio, pessoas, papel: esse é o momento da secundidade. A partir do ponto em que o observador reage à imagem, ou seja, percebe os elementos que compõem o signo, deixa a primeiridade e passa a secundidade. Há uma ação–reação. Essa reação causará o rompimento do estado inicial, ou seja, produzirá conflito entre esforço e resistência: é uma experiência anterior ao pensamento articulado e subsequente ao puro sentir. Nesse momento, o leitor percebe alguns elementos já vistos: figuras humanas, papel picado, fios elétricos e aquilo que se assemelha a uma construção vertical, um edifício. Nesse estágio, ocorre a percepção desses elementos, mas nesse reconhecimento ainda não há reflexão ou ação do pensamento. No momento em que o leitor da imagem pontua e lê a legenda, terá a consciência de que se trata de um prédio em que pessoas estão jogando papel picado pela janela. Com a percepção dos elementos, o observador ativará o terceiridade pensamento aproxima em um signo 2 . primeiro Segundo e um Santaella segundo (1983), numa a síntese intelectual. É por meio do terceiro que representamos e interpretamos o mundo. Ao fazer essa reflexão, o receptor poderá inferir que se trata de uma fotografia de um prédio, registrada de baixo para cima em que há 2 O si gn o c om e ç a n o p e n sa m e nt o e m u m pr oc e sso d e diá l o g o i nte r i or . De p oi s é u m a f or m a de se c om u n i ca r c om o m u n d o. C om u n i ca m o- n os p or si g n o . 96 pessoas picando e jogando papéis. Poderá chegar a essa conclusão ao notar que os fios próximos a um prédio são elétricos, que aparecem várias figuras humanas e que o efeito visual que preenche toda a fotografia é o de papéis picados; logo, pessoas em um prédio picam papéis e jogam pela janela. Além disso, a legenda da foto acelera a cognição do leitor ao fornecer essa informação sobre a fotografia. Assim, diagramaticamente pode-se dizer que: Pri me ir o M o me nt o Se g und o M o me nt o Te rce i r o M o me nt o O f e n ô m e n o n o se u es ta d o p ur o se a pr e se n ta à c o n sc iê n cia . C on t e mpl açã o A bs or çã o P l ás ti c a Re c on h ec i me n t o C on f lit o d a c on sc i ê n ci a c o m o fe n ô me n o P r oce s so Me di açã o I n ter pr e t a çã o Ge ne r al iza çã o d o f e n ô me n o Se m r ef er ê nci a Pr é d i o, pe ss oa s, pa p el Pe ss oa s e m u m pr é d i o j o ga n d o pa p el p ica d o Na outra fotografia de Achutti, “Mecânicos da Oficina da Rede Ferroviária, Porto primeiridade há Alegre, RS, 1996” a absorção dos tons (Figura 2), em preto com relação à e branco, da retangularidade e do contraste entre os tons. Na secundidade, o leitor identifica humanos do sexo masculino vestidos casualmente com casacos, dispostos em três níveis: alguns sentados, outros em pé no que parece ser um vagão de trem f erroviário. Em um terceiro momento, há o processo de interpretação: são aparentemente homens trabalhadores de uma empresa ferroviária que estão se movimentando ao redor desse trem, talvez em um momento de pausa para descanso, posaram para ser registrada a fotografia. Essa interpretação é pessoal e depende do repertório de quem lê a imagem (no caso, a autora deste artigo), com a referência da legenda da imagem fotográfica, pontuando a terceiridade. Assim, pode-se propor ao aluno que descreva em palavras a primeiridade, a secundidade e a terceiridade, observando na discussão dos resultados que os mesmos não anotarão nada na primeiridade, já que ao se expressar verbalmente já entrariam na secundidade, e que a 97 interpretação dos fatos somente seria efetivada na terceiridade. Além disso, é preciso reforçar que o repertório visual de cada indivíduo influencia na apreensão e interpretação da imagem proposta. Ao olhar para a imagem fotográfica em um primeiro instante, o leitor não identifica seus elementos constitutivos. A abundância de formas horizontais, verticais e dos planos não o situa. Nesse momento contemplativo, o leitor apenas absorve a plasticidade da imagem. Podese dizer que a imagem tem alto poder icônico, isto é, qualidade em que imperam as sensações. Há uma pluralidade que proporciona ao leitor trazer outras referências e fazer analogias. Isso enriquece seu repertório e, por estarem no univers o da qualidade, as semelhanças proliferam e produzem na mente do leitor relações de comparação. O exercício apresentado prepara o aluno para o pensamento em signo, propondo uma reflexão e fazendo com que perceba as três categorias fenomenológicas. Com isso, espera-se que ele compreenda a construção do pensamento por imagem. Fi g u r a 1 – I nv a sã o d e M ul h e re s n a C a sa d o E s t u d a n te d a UFR GS, P o r t o Al e g re , R S, 1 9 8 0. Fo n te : C a t ál o g o C o l eç ã o P i rel li / M asp S ã o P a u l o 2 0 6 / 2 0 0 7 . 98 Fi g u r a 2- M ec â n ic o s d a Of i ci n a d a Re d e Fe rr ov i á ri a, P o rt o Ale g re , R S, 1 9 9 6. Fo n t e: C a t ál o g o C o leç ã o P i rel li / M asp , S ã o P a u lo , 2 0 0 6/ 2 0 0 7 . A influência do suporte na análise fenomenológica A fotografia observada na exposição C oleção Pirelli no Masp, em 2006/2007, estava exposta na vertical, fixada em um mural e tinha três vezes mais o tamanho em que está impressa no livro da Coleção Pirelli/Masp, que registra toda a exposição. Nessa situação, o leitor imerge na imagem e a sensação de primeiridade se prolonga mais que se observada pelo livro, uma vez que esse momento de impressão, dependendo do estado em que a consciência se encontra pode ser prolongado (SANTAELLA, 1983). A plasticidade da foto é realçada e a contemplação perdura mais que na foto impressa no livro. Assim, demora-se mais para se adentrar na categoria de secundidade, pois a ruptura e a percepção dos elementos da fotografia demoram em favor da imersão da primeiridade. Da mesma forma, o efeito de mediação da terceiridade também demora mais a acontecer uma vez que o sujeito demora a sair da primeiridade e entrar na secundidade. Em b or a q ua li da d e de se n t i me nt o s ó p os sa s e d a r n o in s ta n te me s mo de u ma i mp re ssã o nã o ana l i sá v e l e in ca p t ur á ve l, ou se ja , n u m si m p le s át i m o, e ss e m ome n t o de i m pr e ssã o, d e pe n de n d o d o e st a d o e m q ue se e n c on t r a a c on sc iê n c ia s e e n c on tr a pr ol on ga d o. ( SA N TAE LLA , 1 9 8 3, p g. 4 6) . 99 Em contraponto, dependendo do leitor, poderá haver uma reação inversa se o mesmo, logo que se posicionar em frente à imagem, obtiver primeiro a informação da legenda. Dessa forma, o leitor passará rapidamente pela primeiridade, já adentrará na secundidade e, a partir da informação da legenda, ativará mais rapidamente o pensamento, conectando a fotografia a outros parâmetros. A mesma fotografia impressa no livro da Coleção Pirelli provoca uma reação diferente na apresentação das três categorias fenomenológicas. Por ser menor e estar em um suporte maleável, o receptor não demora no estado de contemplação, pois não existe a imersão como na visualização na exposição. A postura do receptor frente ao livro é diferente da postura do mesmo frente ao painel no qual a fotografia estava exposta no museu. A foto exposta em formato maior e pendurada na vertical proporciona ao leitor ficar no mesmo nível da imagem. Isso facilita a imersão e consequentemente, o poder contemplativo, já que o receptor está fisicamente próximo à obra; apesar de não tocá-la com as mãos, toca-a com os olhos. Daí podemos perceber a importância de se pensar na apresentação de determinadas imagens, já que o suporte influencia na recepção e leitura da imagem. A impressão em um formato menor, como o publicado no livro, com a possibilidade de manuseio pelo leitor, faz com que esse se afaste do objeto e não o contemple tanto quanto na exposição. Um processo parecido acontece com o expectador de cinema. Esse, por estar diante de uma tela grande, em um ambiente escuro que respeita a proporção da imagem, entra na obra em um estado de imersão. Já os filmes vistos em telas menores, como as das televisões domésticas, não proporcionam a mesma imersão que os assistidos no cinema. É importante esclarecer ao aluno que todo processo de análise e interpretação de imagem, seja ela fotográfica ou pictórica, depende dos meios e suportes em que esta obra é apresentada. Ambos influenciam diretamente na leitura e contextualização da obra, podendo alterar, inclusive, a passagem pelas três categorias fenomenológicas. 100 Considerações finais O exercício de análise de imagem é de extrema importância dentro da cultura contemporânea, uma vez que o ato de ler imagens influenciará diretamente na formação do indivíduo e ampliará suas conexões, permitindo que o mesmo possa organizar discursos e relacionar ideias. Reconhecendo o déficit de educação não verbal na formação básica do indivíduo, os exercícios de análise de imagem na universidade poderão suprir algumas das dificuldades para ler e interpretar uma imagem que o aluno apresenta. Entende-se aqui que o uso da Semiótica Peirciana, como introdução à análise da imagem, ajuda o indivíduo a compreender como se dá a formação da linguagem. Vivenciando os três processos fenomenológicos no ato da leitura, o aluno poderá perceber que as três categorias não delimitam os estados de consciência em relação aos fenômenos. O leitor transita entre a primeiridade, secundidade e terceiridade. Nesse sentido, a fotografia pode ser utilizada como objeto de estudo da leitura de imagem, já que ela opera no campo do índice e mantém uma relação próxima com o objeto representado, possibilitando claramente a percepção da passagem pelas três categorias. Todos os fenômenos que se apresentam ao ser humano possuem as três categorias da Fenomenologia, diferindo apenas pelo grau de pertinência de cada uma delas num determinado fenômeno. A fotografia pode ter qualquer uma das características dominante (CONTANI;JORGE, 2005). Além disso, “como” e “onde” essas imagens são apresentadas influenciam na consciência em relação aos fenômenos, podendo prolongar ou encurtar alguma das categorias, dependendo do contexto. Assim, é importante que o fotógrafo e/ou editores e expositores fiquem atentos ao que querem provocar no leitor da imagem. Conscientemente, devem saber que o suporte e lugar influenciam na percepção; da mesma forma, o leitor deverá perceber o quanto de influência o suporte e meio de apresentação provoca na leitura. 101 REFERÊNCIAS ACHUTTI, Luiz E. R. Fotoetnografia.1997. Disponível em: http://www.achutti.com.br/fotoetnografiaprincipal. Acesso em 15 de abril de 2009 BONI, Paulo C. Fotografia e mídia: da construção da imagem à veiculação de ideologias. Formas & Linguagens. Ijuí, RS, ano 4, n.9, p. 73-89, jan/jun. 2005. CONTANI, Miguel L e PIRES, Jorge B. Imagem Física e qualidade mental: a fotografia vista pela semiótica. Discursos fotográficos, Londrina, PR, v.1, n.1, p.167182, jan./dez.2005. DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. KLEIMAM, Angela B. e MORAES, Sílvia E. Leitura e interdisciplinaridade: tecendo redes nos projetos da escola. 1. ed. Campinas: Mercado de Letras, 1999. KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura, Uberlândia, MG, v.8, n.12, p. 97-115, 2006. MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO COLEÇÃO PIRELLI. São Paulo, SP ,15 ed., p. 15 e 19, 2006/2007. PEIRCE, Charles S. Semiótica. 3 ed. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 2003. SANTAELLA, Lúcia. Os três paradigmas da imagem. In: SAMAN, Etienne (org). O Fotográfico. 2 ed. São Paulo, SP: Editora SENAC, 2005, p. 295-307. _________________. A assinatura das coisas. 1 ed. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1992. _________________. O que é semiótica. 1 ed. São Paulo, SP: Brasiliense, 1983. (Coleção: Primeiros Passos). SANTOS, Jair F dos. O que é Pós-modernismo. 1 ed. São Paulo, SP: Editora Brasiliense, 1995.(Coleção: Primeiros Passos). SARDELICH, Maria E. Leitura de imagens, cultura visual e prática educativa. Caderno de Pesquisa, São Paulo, SP, v.36, n.128, p. 451-472, 2006. 102 REFLEXÕES E PRÁTICAS EDUCATIVAS 103 CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA LITE RÁRIA PARA AS NOVAS METODOLOGIAS DE ENSINO DE LITERAT URA Ad r i a n a J u l i a n o Me n d es de CA MP OS * Ao s p r of e sso re s d e Li n g u a ge n s, a l u n o s de Le t r a s e e d uc a d o re s e m ge ra l , q u e tr a b a l h am d i a- a- d i a ac re d it a n d o n u m am a n h ã m ai s p oé ti c o, n uma e d uc aç ã o m a is a rt ic u l a d a e n u m a ge raç ã o m ai s c rí t ic a. Resumo: O artigo tem como objetivo refletir sobre formas de tratamento da Literatura na escola bem como sobre resultados educacionais recentes relativos à formação leitora. O estudo problematiza, a partir da LDB/71, a oposição central entre o conhecimento formal, linear e fragmentado e os desafios para superação deste modelo pela práxis dialética e interdisciplinar. Analisa o paradigma da transição que a LDBEN/96 estruturou para a esfera escolar, no século XXI, explicitando pressupostos teóricos da semiótica, implícitos na versão original dos PCNEM/99 e textos complementares. Palavras-chave: Dialética; Educação; Intersemiótica; Literatura; Metodologia; Teoria. Interdisciplinaridade; CONTRIBUTIONS FROM LITERARY THEORY TO NEW METHODOLOGIES OF LITERATURE TEACHING Abstract: This paper summarizes to study the treatment of Literature in schools as well as the results of the reader formation process. Based on “Lei de Diretrizes e Bases” (LDB/71), this s tudy analyzes the central opposition between formal, linear and fragmented knowledge and the challenges to overcome s uch a model by the dialectic and interdisciplinary praxis. We discuss the paradigm of the transition which “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional” (LDBEN/96) established for schools in the course of the twenty-first century by showing the theoretical purposes of semiotics implied in the original version of “Parâmetros C urriculares Nacionais para o Ensino Médio” (PCNEM/99), including complementary texts. Keywords: Dialectics; Education; Interdisciplinarity; intersemiotics; Literature; Methodology; Theory. Introdução: Existe um longo histórico de pensadores, filósofos, teóricos da literatura e críticos consagrados que s ugeriram diferentes formas de * D ou t or a e m Te or i a d a Li t er a t ur a pe la UN ESP / IB I LC E - SP . Doc e nt e d os c ur s os de Gr a d u a çã o e P ó s- gr a d ua çã o d o UN IJ A LE S. E- m ail : a d ri a n a. c am p o s@ ite cn et. c om. b r 104 abordagem da arte e da Literatura desde a Antigüidade grega, tecendo considerações até mesmo antagônicas sobre as possibilidades de apreensão do objeto estético. Com o decorrer do tempo, ora aceitaram que a Literatura abriga conhecimentos históricos, sociológicos, psicológicos, ora incidiram s obre seu poder de imanência, oscilando pela análise intra ou extraliterária, fator que explica a amplitude de concepções na área. Tal heterogeneidade desencadeou a situação atual de incongruência por que passam os saberes escolares relativos ao componente estético, cujo foco historicamente recaiu sobre caracteres externos. Seria redundante descrever o percurso de produção da Teoria da Literatura com bibliografia importada e traduzida, extensa e acessível para explicar essa incongruência. Optamos, então, por observar o movimento das formulações teórico-metodológicas que a Literatura assumiu na sistematização do currículo da Educação Básica, a partir das linhas que explicam a evolução das linguagens nas últimas décadas. Cientes de que a plurissignificação da literatura recusa uma teoria específica, determinante da prática, consideramos a faixa etária a que interessa o res ultado desta pesquisa para definir a perspectiva intersemiótica como expressão da concepção dialética de ensino que, aceitando a diversidade, incentiva a superação do estado inicial de isolamento e fragmentação do conhecimento literário, conforme foi abordado até o presente e o amplia, compara, relaciona a outros códigos estéticos, em busca de unidade, por meio do tratamento sincrônico das linguagens. Evidenciamos, assim: a) preocupação com o ensino; b) especialmente de literatura; c) defesa do componente estético no currículo; d) proposição de abordagem intersemiótica; em virtude de considerá-la adequada e produtiva para a faixa etária da EB; e) preocupação em operacionalizar uma metodologia de ensino interdisciplinar que utilize, para a escola real com a qual convivemos, linguagens e ferramentas síncronas consonantes com o dinamismo do jovem. 105 Trabalhamos com duas hipóteses: uma, a evidência clara da dificuldade de acesso do alunado brasileiro a leituras originais, complexas e canônicas; e outra a de que o universo da linguagem gráfica não se mostra mais tão atrativo e transponível para o aprendiz como já fôra para as elites, na era da explosão editorial gráfica. Além de considerar que a clientela anterior à LDBEN 1 passava pelo filtro rígido da reprovação acentuada, os dados nos permitem inferir que o avanço tecnológico é uma realidade nas práticas sociais e que a escola precisa se apropriar de tais recursos que, por si, solicitam novas linguagens. Inúmeros fatores sócio-históricos, implicam, metodologicamente, na necessidade de sistematização de procedimentos e estratégias síncronas que subsidiem a inserção do alunado no mundo dos códigos que permitem exercer a cidadania, ampliando a assimilação e transposição das relações essenciais de produção para a capacidade de apropriação da cultura formal, na dimensão da apreciação estética, função, também, da escola. Se existe dificuldade na intelecção de textos denotativos, detectada nos sistemas atuais de avaliação externa 2, estimese a dificuldade de compreensão dos procedimentos realizados por autores consagrados da literatura, criadores da palavra-arte. Se os códigos oferecem dificuldade de atribuição de sentido, especialmente a linguagem literária, que pertence ao sistema modelizante secundário, segundo Lotman (1978), constituído a partir do sistema lingüístico e sobre ele, requerem habilidades complexas de interpretação, não só de sistemas arbitrários, mas também de sistemas motivados de representação, demandando princípios de abordagem numa nova perspectiva, mais ampla e menos previsível. Grandes correntes se perfilaram e se sucederam partindo, especialmente, do contexto ao texto, exemplo da História Literária e do método sociológico, focalizando sucessivamente, autor, biografia, tema e contexto, compreendendo o tipo de análise denominada extrínseca, que parte de elementos externos para justificar o conteúdo. No entanto, a partir do formalismo russo, a forma recebeu tratamento diferenciado. O 1 2 1 9 9 6, I n: B R A S I L, 1 9 9 9. SA E B, SAR E SP, E N E M, P I SA. 106 foco extrínseco submeteu-se ao intrínseco, do texto enquanto objeto de análise, estimulando o reconhecimento do procedimento estético realizado pelo autor, sua poiésis. Neste sentido, o desenvolvimento do pensamento linguísticoestrutural muito se debruçou sobre questões da linguagem e da forma enquanto expressão do conteúdo, detendo-se nos estudos de Narratologia, Poética da prosa e da poesia, Estilística e Semiótica Literária. Estudos lingUísticos e literários se vincularam. Nas últimas três décadas, a TL abrigou diversas correntes do conhecimento constituindo os métodos de abordagem sócio-histórica, psicanalítica, genética, pragmática, cultural, pós-estruturalista, feminista e colonialista, por força do contexto globalizado e plural que dominou nosso tempo, entretanto, a prática pedagógica não assimilou essa expansão de possibilidades. Se, por um lado, a abordagem extrínseca negou ao texto a evidência de seu valor estético, a abordagem intrínseca formalista; estruturalista foi acusada de negar-lhe seu fundamento histórico. A tarefa que se nos impõe, na transição, é a de equilibrar os extremos, as oposições e buscar coesão produtiva, a partir da contribuição cultural que esse complexo teórico nos legou enquanto expressão do pensamento científico- literário. E tal coesão só pode vir por complementaridade e referenciação a uma e outra forças, destacando princípios fundadores da teoria, que permaneceram estáveis, mas que no desafio do presente, requerem superação e redefinição. Temos como hipótese que o problema da aprendizagem e assimilação do saber literário não é de conteúdo, mas de método pelo qual foi abordado até o presente. Os índices revelados nos sistemas de avaliação interna e externa denunciam o caráter arbitrário das práticas executadas. Por isso, o desafio que se nos apresenta é orientar procedimentos que permitam comparações nas diferentes linguagens ou semióticas, por meio do exercício sincrônico de leitura e apropriação de nossa herança estética, relegada ao segundo plano durante a vigência da concepção tecnicista e instrumental de ensino. Sabendo que a literatura tem existência objetiva e que o ato de apropriação do saber literário requer especificidade diversa dos atos de 107 apropriação dos outros conhecimentos e instituições, a metodologia de ensino deve absorver os princípios abstratos da TL, conhecimento com status científico assimilação e a ser dialetizado, interpretação do orientando patrimônio procedimentos literário inserido de no patrimônio cultural mais amplo. A literatura nunca foi objeto de sistematização didática como o foram outros conteúdos analisados em Propostas estaduais e nacionais anteriores, a exemplo das Propostas Curriculares Estaduais e dos PCN, provavelmente pelo paradoxo de sistematizar uma criação tão avessa à disciplina e à anatomia. Nesse sentido, o conteúdo deve ser estruturante do método. Por esta razão, é tempo de as ins tâncias acadêmicas formularem e divulgarem formas mais dinâmicas de abordagem para a escola, já que, diante do signo estético, o leitor aprendiz deve percorrer dois caminhos: o da investigação e o da sistematização, descobrindo, mediado pelo professor, por ação da leitura: as estruturas, suas relações internas e externas próprias, comparadas com outras produções; funções, regras e procedimentos composicionais de conjunto, que conduzem à exegese da obra literária, em diálogo com outras produções de época e com o próprio contexto de sua produção. A opção pelo encaminhamento próprio do método indutivo, na concepção dialética, apresenta como procedimento a comparação: a) por meio do levantamento de traços distintivos formais; b) da percepção da isotopia temática e c) do conector fundamental, princípios que permitem apreciar composições de modalidades distintas, na perspectiva sistêmica de consideração do componente estético. Esta forma de abordagem se caracteriza como modus reflexivo questionador e comparativo e exige o reexame da teoria e a crítica da prática. Por ter como fundamento o movimento, a relação entre os sistemas é objeto de estudo deste modelo dialético, oposto ao modelo positivista, informativo, que analisa os conhecimentos como se fossem estáticos, recortados, lineares, pontuais, na concepção formal, fragmentada e conservadora do ensino de literatura. Desta forma, uma questão a ser explicada é de que forma as mudanças de paradigma sóciocultural se processaram no final do século XX, qual sua essência e quais 108 procedimentos a esfera didática deve incorporar das novas teorias, com a finalidade de reverter os resultados obtidos, especialmente pela faixa etária que frequenta a Educação Básica. Sabendo que a aula não se concretiza sem o trabalho docente que, necessariamente, se vale do material para mediação na práxis e que sua ação se efetiva por meio do método didático, além de formação e conhecimento acadêmicos formais, o processo de ensino requer adequação de recursos e linguagem em nível da compreensão do aluno, habilidades imperativas da ação que prioriza a apropriação do saber como proposta de desenvolvimento cognitivo, perceptivo e de formação do indivíduo. Quanto acadêmica à como histórica polêmica produção nova sobre e da a natureza atividade da da pesquisa escola como reprodutora do conhecimento produzido, consideramos que parte do problema da aprendizagem situa-se nesta oposição de contrários, pois apenas reproduzir o conhecimento formal, legitimado pela academia, tornou-se ineficaz, s obretudo porque há transição teórica e diversidade nas concepções estabelecidas, crítica que os PCNEM receberam. O ensino, entendido como mediação, trabalho que se realiza por meio do método didático e das metodologias de ensino, deve primar pela criação de novas formas de divulgação e apropriação do conhecimento formal e acadêmico existente, socializando o produto desse conhecimento. A tarefa do presente estudo se define, então, no limite, enquanto análise das diferentes produções, buscando a síntese entre os contrários, não se tratando de reducionismo da pesquisa acadêmica, mas de legitimação da necessidade de intermediação e operacionalização de formulações sincrônicas, de modo a orientar a transposição didática, que toma o saber do aluno como prioridade. Assim considerando, o objeto de estudo Literatura assume caráter determinante do método que, por seus procedimentos, deve superar o formalismo excessivo e a fragmentação histórica da abordagem unilateral. Porém, ao considerar que a velocidade das tecnologias midiáticas contemporâneas exige mais que a dimensão do raciocínio 109 lógico, torna-se necessário associar diferentes sentidos e capacidades na depreensão dos sistemas múltiplos de linguagem criados pelo homem. Em consequência, os novos paradigmas requerem novas estruturas e métodos de estudo. Daí a necessidade de o professor se apropriar deles para que sua mediação continue garantida como condição sine qua non da aprendizagem crítica, afastando os efeitos alienantes que a manipulação das mídias pode gerar sobre o aprendiz. A mudança de paradigma: sistemas sígnicos em relação O novo paradigma requer necessidade de alteração da abordagem epistemológica, centrada na cognição, para uma abordagem ontológica, associando percepção e intelecto, atribuindo ao jovem papel de sujeito ativo, crítico, de protagonista, não apenas receptor, mas emissor de sentidos. A torre de babel, simbolizada pela rede do saber tecido na Web, tem a possibilidade de veicular todos os códigos a um só tempo: lingüísticos, matemáticos, científicos, biogenéticos, antropológicos, psicanalíticos e históricos, derivados do conhecimento integrado no campo semiótico da cultura, conforme definiram semioticistas contemporâneos como Umberto Eco, filósofos e psicanalistas como Lacan, Foucault e Derrida. A proposição de integração dos conhecimentos estéticos por meio da abordagem intersemiótica pretende exemplificar e sistematizar parâmetros para a área de LCT, divulgando princípios que materializam relações entre sistemas sígnicos constituintes da cultura. Explicitar sistema literário teórica em e metodologicamente comparação com alguns os determinantes sistemas e do códigos estéticos, orientando a percepção dos elementos e estruturas próprias de cada uma dessas múltiplas linguagens constitui nossa tese de mudança de paradigma, pois possibilita a aplicação de pressupostos que representam a transposição didática, o “concreto pensado”, ao interpretar diferentes sistemas semióticos em relação. Não há meios novos de aprender na metodologia já automatizada. O contexto é outro, as linguagens são outras, os canais e meios de 110 comunicação são distintos dos da cultura gráfica tradicional, portanto, é necessário modernizar o sistema e atualizar os métodos, sem deixar de enfatizar a corrente ético-humanista que volta a permear noss o contexto sócio-histórico. A motivação contemporânea suscitou outro tipo de organização do saber: a comparação de linguagens mediatizadas, pois o processo de aprendizagem se alterou conforme o desenvolvimento das tecnologias modernas, partindo de parcialidades e especificidades concretas em busca da compreensão da totalidade, por superação de etapas progressivas da disposição de elementos diversos que compõem os sistemas e códigos culturais. Somente quando se atingem determinantes fundamentais dos diferentes sistemas em comparação poder-se-á explicitar, na especificidade de cada linguagem, os topoi, por apreensão de relações. Para que o alunado se torne sujeito, é necessário possibilitar o exercício das capacidades por excelência humanas de criação, de raciocínio, de análise, comparação e potencialização dos sentidos, por meio da associação das percepções sens oriais. As obras de arte, canções, filmes bem como a palavra com função estética tornam-se, em nossa proposição, sistemas sígnicos em relação, recursos da metodologia que ativam o raciocínio em detrimento da memória, a compreensão global em detrimento das lembranças exatas. A semiótica tem se mostrado uma teoria que abriga os fragmentos dispersos do conhecimento. Buscar correspondências interdisciplinares nos fragmentos dispersos que compõem o sentido plural e amplo que o desenvolvimento sóciocultural possibilitou passa a ser uma competência nesta proposição, mediante a qual pretendemos sistematizar elementos formais, potencializando a capacidade de leitura por meio das percepções visuais, auditivas e intelectuais, a partir da categoria estética, operacionalizando sua complexa natureza paradigmática. Não intencionamos levantar aproximações ou divergências entre poesia e pintura procurando um poema que corresponda à imagem de uma obra de arte com mensagem pictórica semelhante. O objetivo primordial da proposição é operacionalizar instrumentos para análise comparativa de sistemas semióticos distintos, mobilizando capacidades de ampliação 111 da competência compreensiva e de interpretabilidade do jovem. Procuraremos evidenciar os elementos de organização dos diferentes sistemas, por meio da relação dialética entre a singularidade de cada sistema semiótico e a generalidade, tomando a particularidade como movimento que estabelece a relação entre eles. A literatura contém a imagem; a poesia contém a musicalidade; a música popular, em primeira instância, se mostra enquanto produção híbrida, abrigando a linguagem verbal harmonizada ao ritmo e à melodia e, enfim, as artes, em geral, contêm em si mesmas o fenômeno comum da representação estética, desrealização simbólica, indicial ou icônica. As relações possíveis bem como a reflexão estética em torno das correspondências entre forma verbal e forma visual das várias linguagens tornaram-se evidentes e devem ser estabelecidas como metodologia da leitura e de depreensão de singularidades, em direção à particularidade de cada sistema. A perspectiva intersemiótica pretende possibilitar a visão por mecanismos próprios de cada linguagem, comparando-os e particularizando seus atributos. O modelo descodifica o sistema Literatura por meio do trabalho intersemiótico do signo estético comparado, procurando, por meio da tradução intersemiótica, manifestar verbalmente o não verbal. A intersecção entre os signos deverá partir da concepção estrutural, em direção à relativização do sentido. As estruturas e categorias explicitadas nos quadros servirão de base para que os docentes possam dinamizar o processo metodológico, tendo como ferramentas de análise categorias e elementos subsidiários da práxis. À guisa de conclusão da análise dos documentos oficiais que nortearam o trabalho com a Literatura na escola, ao longo dessas três décadas, consideramos que as mídias audiovisuais têm sequestrado o tempo e o hábito de leitura dos adolescentes; por isso tornou-s e inadiável solicitar dos sistemas de governo e setores responsáveis pela organização educacional a modernização dos suportes de codificação da linguagem e da arte, que se configura em recursos para a dinamização da práxis como: a) coleções e gravações das grandes obras literárias narrativas em fitas de vídeo, DVDs ou softwares para acervo da escola, associadas ; b) 112 projeções de obras de arte em filmes ou softwares e músicas, em coleções de CDs, executadas nas diferentes épocas; c) filmes e gravações de declamações de poemas sedimentais do cânone nacional, por artistas jovens das redes de TV, enquanto diferente linguagem ou modalidade que estimulará o estudo da linguagem verbal escrita; d) CDteca, filmoteca; enfim, recursos das tecnologias da informação e comunicação que subsidiem proposições teórico- metodológicas nas diferentes linguagens ou semióticas, em decorrência da imposição sócio-histórica da pós-modernidade. As instituições oficiais devem se encarregar de encomendar e distribuir tal material, que muito signif icará em termos de melhoria da qualidade da aprendizagem. A percepção dos jovens precisa ser aguçada para ativar a inteligência. E o arsenal de apoio ao professor, enquanto ferramenta de trabalho não deve se constituir apenas de Parâmetros teóricos e livros didáticos, mas também de recursos tecnológicos das tendências contemporâneas, em quantidade suficiente. A mediação do trabalho fica a cargo do professor, que deverá fazer cumprir o desenvolvimento das competências de representação e comunicação; de investigação e compreensão e de contextualização sóciocultural. Tornar as relações intersemióticas didaticamente assimiláveis Com a intersemióticas proposição intenção algo de contribuir didaticamente teórico-metodológica para assimilável com vistas tornar as relações apresentamos à aplicação uma dos procedimentos de abordagem dos sistemas estéticos em comparação, expondo os elementos centrais passíveis de análise em cada semiótica, procurando aplicar um conjunto de habilidades relacionadas ao domínio das artes, mediadas pelas diferentes linguagens. O sentido de semiótica que imprimiremos à presente proposição é prático, destinado aos fins didáticos: semiótica aplicada à literatura, à pintura, à música e ao cinema. Sem a pretensão de esgotar o assunto, detemo-nos especificamente na operacionalização de procedimentos comparativos entre a Literatura e outras artes, constituindo o elo 113 motivador da compreensão e busca dos sentidos culturais e estéticos pelos jovens. Assim considerando, não só a internet servirá como ferramenta síncrona que possibilita atualizar diferentes linguagens a um só tempo, mas também os sistemas de comunicação das diferentes mídias serão utilizados para tornar presente a possibilidade de contemplação analítica e de fruição compreensiva dos sentidos que se interseccionam nos diferentes sistemas sígnicos. As artes do espaço (pintura e cinema) e do tempo (literatura e música) se entrecruzam num projeto de ampliação da capacidade de interpretabilidade das manifestações da arte enquanto representação ou extensão da realidade, a partir do estabelecimento de relações entre elementos constituintes, em busca do ponto energético de cada sistema, dos topos/topoi em que eles se questionam em nossa redefinição. A presente proposição busca orientar o processo de depreensão de isotopias temáticas ou pluriisotopias entre elementos de sistemas de códigos estéticos distintos. Pretendemos explicar a possibilidade de interdisciplinaridade, latente nos PCNEM/99, para a área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, prática que toma aspecto concreto por meio da semiótica, resgatando vínculos entre conhecimentos. Os códigos, nesta perspectiva, oferecem possibilidade de correspondência e interrelação pela mediação sígnica. E, além da mediação sígnica, evidenciamos a importância da mediação didática do professor na práxis cotidiana. Entender o currículo escolar torná-lo real e assimilável, conhecer a Literatura, a arte, a música significa criar projetos e dinamizá-los de tal forma que, por meio de vivências 3 e representações nas diferentes linguagens, os jovens possam perceber tanto o procedimento estético que subjaz às expressões dramática, musical, plástica, visual e linguística quanto compreender, analisar e assimilar o arcabouço teórico-conceitual. A práxis do estudante é, em primeira instância, de natureza performática, de vivência, de representação, de simulação, de atuação em 3 Su ge stã o d e I la r i n os GC ( SÃ O P A U LO , 1 9 7 5) . 114 festivais de canções populares e execução ou audição de músicas eruditas e instrumentais, saraus de declamação e sessões de fruição compartilhada da cultura estética: poemas, narrativas , dramatizações, reprodução de obras de arte. Porém, a segunda fase do projeto de ampliação do repertório cultural dos jovens requer a metarreflexão compreensiva s obre o processo vivenciado. Metodologicamente, o segundo passo é a análise do primeiro; e o terceiro, a teorização, o registro, é a assimilação dos conceitos e aplicação dos fundamentos percebidos anteriormente, na fase performática. O professor, enquanto mediador, dialetiza o formal e o aluno adolescente, sujeito, protagonista do saber, dá caráter real e de concretude ao saber. No segundo ato de análise, pesquisa e observação, formaliza o dialético, plural. Assim, a concepção dialética de ação/reflexão/ação se realiza na práxis, que não deve ser entendida como improviso, mas constituída de etapas cientificamente organizadas de vivência dos conteúdos: A) Vivência Dinâmica, performativa - realiza-se por meio da leitura e da produção sócio-interativa, oral, de comunicação e divulgação; etapa que nos PCNEM corres ponde ao eixo de Representação e Comunicação. B) Vivência Perceptiva, analítica, reflexiva - etapa de sistematização, de integração dos elementos perceptivos, em favor de uma operação cognitiva de interpretabilidade; etapa que nos PCNEM corresponde ao eixo de Investigação e Compreensão. C) Vivência Formal, de síntese - caráter de registro das percepções dos sentidos e cognitivas, realização sistemática dedutiva, etapa que nos PCNEM corresponde ao eixo de Contextualização Sociocultural. As sínteses de cada etapa constituirão a base para a construção de novas hipóteses inter-relacionais. A manipulação dos recursos tecnológicos, o domínio dos procedimentos de participação na rede de sentidos é, também, fundamental para a formação do leitor, que deve 115 articular competências de análise de diferentes sistemas, procurando integrar primeiro o sentido e, posteriormente, os próprios sistemas enquanto representações da cultura e do currículo. Seguindo a acepção da linguagem como constituinte da cultura, funcionando como subestrutura, base e meio universal, Jakobson 4, fundador da abordagem funcionalista da linguagem, sugeriu a investigação paralela das artes verbal, musical, figurativa, coreográfica, teatral e fílmica, na metade do século XX: “quanto ao estudo comparativo da poesia e outras artes, trabalhos de equipe entre linguistas e especialistas nestes campos acham-se na ordem do dia”. O linguista afirmou: ...e m ger al t od os os si st e ma s de s i gn os i n de pe n de n te s, e m s ua e str u t ur a , da li n gu a ge m e t a mbé m e xe q üí ve i s f or a d e c on ta t o c om me i os ve r ba i s, de ve m s er s u b me t id os à a ná li se c omp a r a ti va c o m vi st a e spe c ia l às sua s c o n ve r gê n c ia s e d i ve r gê n cia s c o m q u a l q uer es tr u t u ra se m i ót i ca da da e a l i n gu a ge . (J AK OB SON , 1 9 7 0, p . 1 9) . Segundo Koch 5, Jakobson foi um espírito de síntese. Trazia em si o germe da interdisciplinaridade em seus estudos e pesquisas que circulavam da teoria da informação e da comunicação à matemática, à neurolinguística, à biologia até a física. Opôs-se à natureza antinômica das dicotomias estruturalistas, tentando superá-las por meio de princípios como o de pertinência, binarismo e análise de traço distintivo; eixos de seleção e combinação; dicotomia entre metáfora/metonímia e oposição entre similaridade/contiguidade. Seu modelo funcional da linguagem foi reconhecido e embasa muitos dilemas entre a análise literária e a linguagem pragmática. Sua teoria da autonomia poética recebeu críticas por ser esteticis ta e negligenciar a dimensão social do poético, assim como foram acusados os formalistas de separatismo da arte, ao que o teórico argumentou em favor da função estética. Jakobson (1971), desde as pesquisas f ormalistas, estabeleceu a função nítida da linguagem em cada manifestação específica, apresentando as seis funções que possibilitaram avanços posteriores nos 4 5 Ve r Li n gü í st ic a, P oét i c a, Ci ne m a, R o m a n J a k o b so n n o B r a si l , 1 9 7 0, p . 2 0 K oc h a p u d N ö t h, 1 9 9 6 . 116 estudos de linguagem, permitindo até mesmo um paralelo com a teoria bakthiniana dos gêneros discursivos, que evidencia funções, origem, situações e esferas que solicitam tipos específicos de produção linguística. O mesmo Jakobson funcionalista introduziu uma perspectiva comunicativa moderna à tradução intersemiótica. Com a publicação de Linguística, Poética e Cinema (1970), ele retoma, no panorama atual, a polêmica lançada antes de Cristo, na esfera da arte, por Horácio. Percebemos que houve avanço na teoria da linguagem: do modelo estruturalista, estático, passou-se a considerar toda estrutura dinâmica, constituída de elementos funcionais que alteram o sistema de acordo com seus fins. Saussure já considerava a semiologia indispensável à interpretação da linguagem e de todos os outros sistemas de signos em inter-relação. A partir daí vão tomando consistência teorias comparativas da linguagem verbal com outros sistemas semióticos, substitutos da linguagem falada. Tornou-se essencial definir traços específicos da linguagem verbal e, posteriormente, de cada linguagem, como forma de representação verbalizável, projeto modelar da práxis literária, em nossa concepção. Prioridade da exegese verbal nas diferentes semióticas O sentido da interpretação diante de qualquer manifestação de linguagem seja pictórica, musical, corporal, ou fílmica, constitui-se pela exegese verbal, principalmente na escola, instituição que privilegiamos para análise da abordagem da literatura. A iconicidade literária concebida pela teoria clássica era exofórica, pois entendia como externa e mimética a relação entre signo e mundo. O iluminismo de Lessing seguiu este mesmo modelo estético, porém, deveremos buscar a iconicidade endofórica em primeira instância. Se o sistema linguístico é constituído por elementos relativamente estáveis, os demais sistemas semióticos como a pintura, a música e o cinema têm, também, suas categorias passíveis de análise e observação, constituindo uma constância. 117 Gonçalves (1994) aborda em Laokoon Revisitado relações homológicas entre texto e imagem, resgatando desde a Arte Poética de Horácio o ut pictura poésis que, a partir da releitura do alemão Lessing (1766) e do americano Irving Babitt (1911), estabelecem o fio do debate sobre os limites entre a pintura e a poesia. Nova concepção surge com Joseph Frank, que retoma esse debate em 1945, potencializando os signos. João Alexandre Barbosa, ao prefaciar a citada obra de Gonçalves (1994) afirma que pintores e poetas “percebem aspectos da realidade que, transformados por suas linguagens ou transformando s uas linguagens, se traduzem em textos e imagens cujos dispersos resíduos, fragmentos de uma expressividade, são recuperados pela leitura comparativa”. Tal possibilidade também fora observada tradicionalmente entre música e poesia, que caminharam juntas até que no Renascimento, momento em que a melodia se apartou da letra. Contudo o termo poesia “lírica” guarda resquícios dessa tradição que concebia a poesia sendo recitada ao som da lira. A verdade é que o conjunto que compõe o corpus da literatura assumiu novas versões: a versão cinematográfica, teatral ou televisiva e a versão tecnológica dos softwares e da internet. Comparar esses sistemas tornou-se necessário e possível. Por esta razão, a busca de invariantes possibilita analisar o fenômeno semiótico como sistema; um sistema, porém, dinâmico, submetido à liberdade criativa, constituído de elementos formais relativamente fixos que integram a natureza dos códigos de cada semiótica. Procuraremos explicitar na proposição de abordagem intersemiótica os elementos constituintes de cada sistema e suas possíveis relações. Sabendo que Eco (1971b) defendeu um estruturalismo metodológico constituído de modelos e procedimentos operacionais renováveis, na medida das evidências que exigissem explicações, entendemos que diante da realidade na qual vivemos, que pede renovação e se mostra marcada pelo signo da modernidade tecnológica, com a presença de multilinguagens, não há como permanecer no porto seguro dos modelos consagrados pelo pensamento verbal, unilateral. Tornou-se necessário ampliar o domínio perceptivo visual e auditivo interpretando 118 códigos não verbais e estabelecendo suas conexões com a escrita e a oralidade. O professor, na mediação da práxis enquanto embasamento teórico para a ação deve analisar comparativamente os sistemas artísticos e de utilização de mídias como concretização das obras. A tecnologia: suporte das linguagens e divulgação da cultura A tecnologia tornou possível atualizar a um só tempo a literatura, a pintura, a música e o filme no mesmo suporte. Não nos interessa explicitamente analisar a linguagem da mídia, mas as linguagens que ela suporta e atualiza. Refletindo Tecnologias, sobre a área compreendemos sua de Linguagens, produção como Códigos e suas manifestação da cultura, pois possibilita a expressão dos fenômenos sócio-históricos e a criação dos fenômenos estéticos, modelizando sistemas primários, que têm como função a comunicação usual, e sistemas secundários, que têm como função a expressão estética da sensibilidade criadora. A escola deve potencializar a capacidade sensitiva, modelizando procedimentos operacionais de semios e (interpretação dos processos significativos) auditiva, visual, verbal e verbi-visual e, evidentemente, cognitiva, relativizando estruturas espaciais, como é o caso da pintura, e também temporais, como é o caso da língua e da música. O movimento interpretativo nas diferentes semióticas é, portanto, oposto. O código verbal, por sua natureza extensiva, requer síntese, ao passo que o código visual, por s ua natureza intensiva, requer análise. Porém, não se pode negar que a imagem simule um tempo e que a palavra simule uma imagem. É possível distinguir mais de um signo auditivo, ao mesmo tempo, na harmonização da música, pela consonância de instrumentos melódicos sincrônicos; porém, o ouvido não treinado não consegue operacionalizar a distinção imediata. Estimular essa capacidade perceptiva pode contribuir no sentido de aguçar a concentração e atenção do adolescente para a percepção seletiva. Quanto à visão, esta propriedade dos sentidos, tem caráter espacial, síncrono, recebendo os signos em sua totalidade, sendo passível de apreensão global dos f enômenos complexos, porém, a 119 educação do olhar deve aprimorar a interpretabilidade focalizando cenas, detendo-se em episódios ou elementos, de modo profundo, vertical. A sincronicidade é inerente ao ato de observação, entretanto, a capacidade de análise exige decomposição, fragmentação dos elementos para compreensão de sua estrutura e de seu procedimento de codificação. Considerando a Literatura um signo produzido sobre o sistema modelizante primário, a língua, a interpretação literária enquanto semiose, não tem um interpretante final único, como a linguagem cotidiana, uma verdade absoluta, mas, aceita validades interpretativas que devem ser estimuladas, conforme teorizou Barthes 6. Problematização dos resultados em leitura e escrita 7 É consenso tanto para os órgãos federais quanto estaduais e municipais que novas políticas de ensino e novas formas de abordagem dos conteúdos configuram uma urgência no cenário da Educação. Os Guias Curriculares SEE/SP (1975) sistematizaram conteúdos básicos progressivos para o EF; a PCLP-1º grau- SEE/SP (1986) introduziu, na mesma linha, fundamentação para o trabalho na perspectiva linguística, em detrimento do estudo descontextualizado de Gramática, graduando em níveis as atividades interpretativas, de operação sobre a linguagem e metalinguísticas, respectivamente, do mais simples ao mais complexo; do concreto ao abstrato, numa concepção espiral de currículo. Leitura, análise lingüística e produção escrita passaram a ser etapas de execução metodológica do estudo descritivo do funcionamento da linguagem verbal, focalizando a língua materna. A PC LP- sistematização 2º da grau SEE/SP Literatura como (1987, item conteúdo 3.4.3) curricular focalizou de a Língua Portuguesa, introduzindo os princípios da Estética da Recepção e do dialogismo bakhtiniano aplicado ao estudo da linguagem, assimilados na dimensão da intertextualidade. Passado e presente, autores de mesma época e de época distinta, obras literárias e não-literárias foram submetidos à análise comparativa evocando do leitor as conexões 6 7 Ver C r ít ica e Ver da d e ( 1 9 7 0) . cf da d os SAE B . 120 implícitas, o preenchimento dos vazios interpretativos, temporais ou de estilo, tornando concreta a possibilidade latente de percepção de fontes e influências das estéticas anteriores nas obras atuais, ou mesmo oposição evidenciada na relação dialógica. O acesso à escolarização foi uma imposição no país após a LDBEN/ 96. O contingente de jovens e adultos que chegou à escola com defasagem idade/série foi alto. Os desafios atribuídos ao professor bem como às equipes técnicas não foram só de acolhimento a esta população heterogênea que reivindicou o direito de escolarização e cidadania, mas também os desafios do domínio teórico-metodológico do paradigma que elegeu a abordagem linguístico-comparativa que atribui ao leitor papel atuante.Os PCNs surgiram neste contexto, apresentando as particularidades. O PCNEF (1998) evidenciou abordagem textual dos gêneros e os PCNEM (1999) fundamentação enunciativa, na perspectiva implícita da intersemiótica, de um currículo em rede. A focalização dos gêneros tomou acepção discursiva e a Literatura integrou as atividades de leitura. Os desafios de execução de uma proposta dinâmica e significativa de estudo tanto da linguagem quanto da literatura se juntaram aos desafios educacionais da transição finissecular e da transição de paradigma educacional e sócio-histórico. A perspectiva sígnica de estudo foi contemplada na proposição dos PCNEM (1999), a partir da concepção das Linguagens, Códigos e s uas Tecnologias, em consonância com o desenvolvimento social. O século que privilegiou a comunicação desenvolveu tecnologias que alteraram de maneira profunda a recepção dos artefatos culturais e os modos de interação humana. Desta maneira, novas linguagens foram estabelecendo intercâmbio com as já existentes, ampliando as poss ibilidades de fruição, contemplação e conhecimento da produção cultural. Foi assim que o cinema e a música se popularizaram num ritmo acelerado. O desenvolvimento de novas mídias, sobretudo a mídia digital, possibilitou a simultaneidade idealizada pelo homem moderno. Esses recursos em Educação têm papel fundamental na dinamização da metodologia de ensino. O domínio teórico reclama aparato tecnológico para execução 121 prática. A possibilidade de inovação didática aberta pelos PCNEM, porém não operacionalizada, concretiza-se metodologicamente na proposição que modelizaremos. Foi necessário explicitar o marco teórico que autoriza esta adaptação para fins didáticos. Para que exista literatura, é preciso que haja uma língua. E o que diferencia o uso particular da língua, em sentido literário, do uso coletivo, próprio da comunicação diária, da interação natural do homem com seu semelhante é a função estética, o priom. O sistema modelizante secundário, alvo da presente proposição servi-se-á de outras semióticas incorporadas pelas mídias tecnológicas contemporâneas para potencializar o efeito da Literatura. Nova acepção de isotopia Na acepção que assumimos, com diversas modalidades de representação, é necessário determinar não só um desencadeador de leituras, mas relacionadores as palavras, sons ou traços que desencadeiam um plano de leitura intersemiótica, não evidente na superficialidade compositiva das obras. À guisa de investigar nas diferentes semióticas a reiteração dos topos/topoi de uma época numa nova acepção de isotopia, essa proposição examina os traços distintivos nas diferentes formas de representação, procurando estabelecer uma série de capacidades não apreendidas espontaneamente, mas que requerem especificação de critérios e exposição da metodologia, partindo, como base, da isotopia semiológica segundo Greimas 8. Natureza do material A. Tipologia dentro do gênero (Estético) Canção - semiótica áudio-verbal Poema – semiótica verbal Pintura – semiótica visual Filme – semiótica audio-verbi-visual 8 Cf Greimas, 1976, p. 128. 122 A seleção procura possibilitar a diversidade de gênero/tipo; diversidade de contextos sociais de uso (TV, rádio, literatura, artes plásticas, cinema) bem como diversidade do contexto cultural nacional e internacional. B. Suportes originais Canção – disco ou CD (Compact Disc) (natureza auditiva) Poema – livro (natureza verbal) Filme – DVD (Digital Video Disc) ou VHS (Video Home System) (natureza visual com fundo auditivo, imagem em movimento) Obra de arte em pintura – tela (natureza visual, imagem sem movimento) C. Temática Segundo Platão; Fiorin (1998) os textos admitem vários planos de leitura, porém o leitor não lhes pode atribuir sentido livremente; deve buscar elementos que possibilitem novos planos de significação. A presente proposição, superando o modelo verbal, orienta a projeção do plano de um sistema semiótico no outro, por meio da busca de um conector semiósico, revelando traços de unidade. Enfoque metodológico: etapas de execução da intersemiose A seleção de obras para análise intersemiótica deve sempre possibilitar orientação para a construção de conceitos e regras de operacionalização investigativa da semiótica, contribuindo para o desenvolvimento das habilidades de: a) Observação; b) Análise; c) Comparação e estabelecimento de relações entre as diferentes semióticas (linguagens); d) Generalização (estabelecimento de regras gerais de funcionamento do fenômeno estético) a partir do levantamento de traços que permitem formar um topos; 123 e) Particularização (explicitação de elementos específicos de cada semiótica) no estabelecimento do topos); f) Assimilação dos topois (relacionadores de leitura no procedimento comparativo). Princípios teórico-metodológicos da proposição de abordagem intersemiótica da literatura A metodologia de abordagem intersemiótica consiste em captar significados dispersos em múltiplos códigos, verbais e não verbais: visuais, auditivos, audio-visuais, verbi-visuais, plásticos, cênicos, estáticos ou em movimento e integrá-los, produzindo o sentido que se estabelece por superação de significados parciais e compõe uma síntese ulterior, integradora. O procedimento é indutivo, parte da análise de fragmentos estilhaçados, em potencial, que aguardam, em suspenso, seu momento de ativação e realização intersemiótica. A interpretação se consuma, portanto, pela consolidação de etapas graduais e subsequentes de recolher estilhaços de sentido presentes nas diversas semióticas, compondo uma estrutura semiótica, lógica, que capta signos plurais e realiza uma ação, um movimento de mediação sígnica que se cumpre na transcodif icação verbal. 9 Para efeito educativo, partir de múltiplos estímulos aguça os sentidos e orienta a captação de elementos distintivos e específicos de cada semiótica, revelando, por meio do próximo o distante; por meio do presente o ausente. Os campos auditivo, visual e cognitivo são ativados a um só tempo exigindo sincronia ao mobilizar a capacidade perceptiva de atualização do sentido adiado, em potencial, nos textos dos diversos gêneros estéticos, produzindo o conhecimento a partir da mobilização da inteligência interpretante. Realizar uma ação intersemiótica signif ica buscar o significado latente no pretérito, em estado disperso na cultura, neste caso, nas obras de arte que esperam a participação do leitor, sua realização como coautor na atualização do sentido, descodificando os signos por meio da ativação 9 Tr a nsc od if ica ç ã o ve r ba l - Cf te or i z ou J a k ob so n ( 1 9 7 0). 124 semiósica. Esta é a primeira etapa parcial, de ações de leitura. A indução interpretativa exige a comparação, o estabelecimento de distinções, a desarticulação e reconhecimento articulação dos traços dos códigos característicos multifacetados, de cada o semiótica, identificando o efeito estético das diversas produções a partir da seleção de um topos. A primeira leitura é de captação, de observação. A segunda é mais complexa, exige disciplina de reconhecimento, pelo procedimento comparativo. A terceira é de síntese, integração das interpretações parciais, dedutiva e, ao mesmo tempo mais complexa, pois além de Leitura requer Escrita, exige superação da percepção, movimento e ação cognitiva autoral. A metodologia orienta a análise, comparação e síntese integradora dos processos lógico-perceptivos reconhecidos. Posteriormente, centraliza o procedimento de transcodificação verbal que se realiza por meio do registro escrito. Nos processos escolares, as primeiras execuções devem seguir esta orientação, diversificando as etapas e os tipos de transcodificação com o tempo, em função dos objetivos a alcançar. Se houver dificuldade de escrita, de registro verbal, é aconselhável transcodificar na linguagem da dança, na linguagem visual, por meio do desenho ou de colagens. Porém, o nível de complexidade das exigências interpretativas e de regis tro deve ser intensificado para que gere autonomia e satisfação de manifestar-se em diferentes linguagens. Entender as expressões e manifestar o pensamento por meio de possibilidades diversas dinamiza os processos unilaterais e repetitivos que a escola consagrou. Assim, no novo século será possível confrontar manifestações diversas, dinâmicas e plurais. Buscar as pistas, sinais, marcas implícitas bem como o desvelamento das categorias de análise comparativa é o princípio da semiótica, que, por ação de investigação, estimula a elaboração do raciocínio lógico. É preciso, assim, que os professores obtenham autonomia na execução metodológica adolescentes, e estabelecendo proporcionem a conexão leituras entre a múltiplas produção aos estética, mediada signicamente, e a habilidade de contextualização das obras de 125 arte, contemplando a história e inter-relacionando disciplinas, desfragmentando o conhecimento mediante a busca dos vestígios de significado para (re)compor o sentido global que se pode depreender da relação entre os diferentes sistemas semióticos. Considerações Finais No esforço de retorno à formulação do problema de pesquisa, apresentaremos as conclusões obtidas como forma de respostas ainda que parciais e transitórias aos desafios encontrados. No monitoramento do roteiro de interrogações investigamos: A) se a ausência de compreensão docente do referencial teórico incidiu negativamente sobre o desempenho dos alunos. Pela entrevista inicial percebemos que sim, devido à escolha do material que subsidia 90% do conjunto que executa a ação didática. As profundas alterações conceituais e praxiológicas que os PCN solicitaram, fruto de contribuições acadêmicas de um complexo conjunto de impregnações científicas associadas às mudanças sócio-históricas nos perfis e padrões de performance pessoal e profissional, demandam atuações e compreensões completamente distintas das de três décadas atrás, num imperativo de foro irretornável. Além disso, a concepção de literatura, deficiente e secundária nos PCNEM não articulou a perspectiva intersemiótica em potencial e manteve o critério estético negligenciado. Portanto, a teoria não foi incorporada à prática devido ao grau de formalidade e hermetismo, não se constituindo em práxis, motivo pelo qual recuperamos, no segundo capítulo, origens e conceitos da Semiótica, de forma breve e concisa, para elucidação e superação do modelo verbal. O preceito horaciano do ut pictura poésis foi sequencialmente retomado à guisa de discutir desafios e fixar bases teóricas com vistas a operacionalizar a perspectiva lançada por Jakobson (1970) em Lingüística, Poética e Cinema, buscando aplicabilidade em sala-de-aula, visto que a consolidação científica da tendência intersemiótica ainda não alcançou grau de reflexão madura que se efetivasse em práticas. B) A segunda questão colocada se relacionava à concepção de Literatura presente nos documentos oficiais como 126 fenômeno social, histórico ou estético e ainda, se seu conceito é discutível. Percebemos que as diretrizes das formulações oficiais a registraram como fenômeno social, ponto do qual não discordamos; porém, segundo nossa concepção, tal aspecto gerou toda a problemática em torno de sua abordagem que, por ser um fenômeno estético foi tangenciado historicamente, com lugar secundário no currículo, em favor da sistematização da língua. Priorizamos, por isso, no quadro metodológico apresentado como tese o efeito estético enquanto fundamento da caracterização da singularidade da Literatura, sustentando seu conceito como indiscutível, apontando competências e habilidades a operacionalizar na práxis da abordagem intersemiótica, que ressalta o caráter de sistema não apenas arbitrário, mas, sobretudo, motivado da arte. C) Na problematização conceitual exposta, argumentamos estabelecendo a fronteira entre música popular e poesia literária para efeito de resposta da TL aos PCNEM/99 quanto à ausência de critérios revelada pelo aluno que perfila Drummond e “Zé” Ramalho, pautando-se pelo senso comum e gosto individual. Quanto à análise dos documentos não-oficiais, D) verificamos que a maioria dos LD conserva disposição sequencial e diacrônica da literatura, mas o manual Literatura Brasileira, pioneiro no tratamento comparativo das artes, introduziu o procedimento dialógico, conforme teorizou a PC LP 2º grau (1987). E) Quanto à polêmica questão tratada nas OCEM (2004) acerca do privilégio aos textos literários e simbólicos no EM, defendemos. No tocante à mediação do processo de leitura, F) pensamos que as estratégias comparativas e a atitude crítica próprias do movimento dialético constituem as diretrizes e princípios de abordagem dos textos estéticos, que devem relativizar os sentidos em suspenso, comparando sistemas semióticos verbais e não-verbais, para possibilitar a compreensão aguda das linguagens contemporâneas, não descuidando de contemplar o uso da tecnologia e de seus diferentes suportes de materialização disponíveis, com suas características e especificidades. Procuramos demonstrar no recorte histórico de três décadas que não é fácil e nem simples reconhecer avanços teóricos, compreendê-los, aceitar suas etapas de assimilação e acomodação, identificar estágios, 127 mediar aspectos quantitativos e qualitativos, pois tal análise constitui o processo de metarreflexão pedagógica e, por que não, de análise da evolução da intelectualidade, da civilização e do ethos. Haja vista a costura dialética que se alinhavou desde os gregos até a contemporaneidade, no tocante ao paradigma semiótico. Quanto tempo foi preciso para solidificar nossa relativa democracia? Quanto tempo levamos para minimizar preconceitos raciais, ainda existentes na cultura do século XXI? Quanto tempo modelos políticoeconômicos e religiosos como o capitalismo ou regimes extremos demandaram para ser implantados e derrubados? Quanto tempo consumimos para cumprir legislações trabalhistas, para que ideologias e preconceitos contra a mulher, os índios, judeus, gays e outros grupos fossem abrandados? Décadas ou talvez séculos. Mas avançamos. Reconhecendo conflituoso tal ocorreu avanço, também no argumentamos processo que educativo. o desenrolar Semelhantes dificuldades históricas de assimilação, acomodação e de aceitação de novos modelos se projetaram na esfera de socialização dos conhecimentos e da cultura, especialmente do patrimônio estético. Porém, o germe da mudança está sempre projetando forças para que a evolução se processe, para que a criação se renove, num moto contínuo, atestando que a linearidade conservadora não é marca das transformações dialéticas. Se as contribuições da Linguística geraram evidente revolução pedagógica para que o ensino de Língua passasse a ter novo formato, e continuam efervescendo desde a década de 70, abalando a práxis cristalizada no modelo gramatical, procuramos, com o presente trabalho, sistematizar procedimentos didáticos inovadores que orientem o ensino da literatura, assunto que foi sempre tangenciado. E, no conjunto das alterações interdisciplinares a iniciar, inscreve-se a aplicação da abordagem intersemiótica dos textos literários enquanto metodologia adequada e produtiva para a Educação Básica. Entendendo que o conhecimento científico não pode se eximir de propiciar meios para que o saber estético seja redimensionado, explicitamos categorias e conceitos da Teoria da Literatura, procurando 128 teorizar sobre a proposição relacional de estudo comparado inter- artes, concretizando parâmetros de reconhecimento da poiésis, na perspectiva intersemiótica, mediante a sistematização de critérios e princípios metodológicos de análise de diferentes sistemas semióticos em relação, como a pintura, o cinema, a música e a Literatura, com a finalidade de fundamentar a mediação docente. A compreensão dos eixos norteadores da tese, expostos nos quadros, subsídios e roteiros constitui o modus reflexivo dialético, que aceita a pluralidade e focaliza as particularidades, garantindo eficiência didática e domínio conceitual das competências meta-reflexivas e praxiológicas, com vistas a ações metodológicas, congregando dimensões inimagináveis de exploração das capacidades perceptiva e compreensiva bem como de interpretação lógica da produção estética enquanto extensão material e simbólica da arte. A título de adequação da teoria intersemiótica ao contexto escolar da EB, estabelecemos um termo conector e desencadeador relacional das linguagens, redefinido como isotopia, conceito de base teórica greimasiana que, em nossa concepção, permite examinar temas ou topos/topoi que se manifestam e reiteram num dado momento, em diversas semióticas, constituindo um zeitgeist. Operacionalizamos tal conceito, estabelecendo, também, relações com as tricotomias formuladas por Peirce, que, em nossa acepção, localizam a ação de percepção do topos na primeiridade competência de representação e comunicação; a reflexão sobre a relação intersemiótica na secundidade _ momento de investigação e compreensão, conforme estabeleceram os eixos dos PCNEM e, por fim, na terceiridade, última instância, se processa a ação de integração do interpretante final, constituído a partir da exegese verbal dos diferentes sistemas sígnicos contextualizados socioculturalmente. Este o ponto de coesão que a tese visou a apresentar aos desafios encontrados pelos professores para mediar às diretrizes indicadas nos mais recentes documentos oficiais. Esperamos, com este trabalho, agregar ao estudo da Literatura e das artes em geral caráter de vivência e de fruição compreensiva não só do código estético, mas da cultura acumulada pelas gerações anteriores. 129 Esperamos ainda, que a proposição de abordagem intersemiótica possa suscitar novas reflexões e dimensão significativa e inovadora à práxis na Educação Básica, possibilitando resultados satisfatórios e mais amplos, relativos ao saber estético de uma dada época, sedimentado, vertical e menos pautado pelo nível da necessidade. E, por fim, não poderíamos deixar de reconhecer a importância dos PCN como marco de vanguarda educacional para o século XXI, no Brasil. As críticas recebidas e a produção complementar justificam tanto o trabalho científico quanto o metodológico que se tem realizado e a ralizar, pois quando se trata de mudança, diferentes perspectivas evidenciam o erro, mas ampliam e fomentam a possibilidade de acerto. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Aula.Tradução Leyla Perrone Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978. BOLLE, Adélia B. M. Chico Buarque de Hollanda. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1980. Seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios.(Coleção Literatura Comentada). __________. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. FREDERICO, E.Y.; OSAKABE, H. Literatura. In: Orientações Curriculares do Ensino Médio: Brasília: MEC/ SEMTEC, 2004. versão eletrônica. __________. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC/ SEMTEC, 1999. __________. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. PCN+ Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC/ SEMTEC, 2002. CAMPOS, Adriana J.M. de. A Literatura no ensino médio: uma proposta de leitura fenômeno-semiótica. 2000. 145 f. 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Lu c ie n e Ap a r ec i da d a S I LV A * Resumo: Esta produção compreende uma breve análise conceitual da polissêmica, e por vezes, personificada expressão - “Tecnologias de Informação e Comunicação - TICs”. Seguida por uma problematização teórica dos pontos de convergência entre o paradigma educacional emergente e a informática educacional, desenvolve-se uma ligeira interlocução entre os aspectos multidimensionais inerentes à pedagogia dos meios tecnológicos. Objetiva-se, então, promover uma discussão em torno das possíveis potencialidades e desafios postos como tônica e atributo da incorporação das TICs ao mundo do trabalho e ao campo educacional. Palavras-chave: Tecnologias da Informação e Comunicação;Informática educativa; Contexto educacional; Desafios e potencialidades. INFORMATION AND COMMUNICATION TECHNOLOGIES: FROM AMBIVALENCE OF A MULTIFACETED CONCEPT TO ITS POTENTIALITIES AND CHALLENGES IN THE EDUCATION FIELD Abstract: This paper includes a brief conceptual analysis of polysemy and the personified term – “Information and Communication Technologies ICTs". Followed by a theoretical problem of the points of convergence between the emerging educational paradigm and educational informatics, this paper develops a brief interaction between the multidimensional aspects related to the pedagogy of technological means. The aim is then to promote a discuss ion about the possible potentialities and challenges considered as the highlight and attribute of the incorporation of ICTs to the world of work and educational field. Keywords: Information and Communication Technologies; Educative informatics; Educational context; Challenges; Potentialities. * Mes tra n d a e m Ge stã o So c ia l, E d u ca ç ã o e De se n v ol vi me n t o Loc a l pe l o C en tr o U ni v er sitá r i o U MA- MG. Gr a d ua d a e m P e da g o gi a pe la EU MG, Ana li st a E d uc aci on a l d a S u p er i n te n dê n cia R e gi o n al d e E n si n o – SR E. E- mai l: l uc ie@ u a i. c o m. b r 132 Introdução O avanço tecnológico experimentado pela humanidade, sobretudo nas últimas décadas do século XX, tem proporcionado mudanças radicais nos modos de vida de cada sociedade. No atual cenário global, denominado “era da informação”, em que o “novo” paradigma das tecnologias da informação e comunicação (TICs) afeta, embora em diferentes níveis de intensidade e velocidade, todos os segmentos e atividades da economia mundial, essas passam a figurar como peças fundamentais e indispensáveis aos processos de gestão em âmbito público, privado, coletivo e individual. Então, em decorrência da maximização do fenômeno da globalização, a informação, o conhecimento e o aprendizado têm se apresentado como elementos centrais, “um composto padrão de óleo combustível” ou ainda “moedas de peso” de um amplo processo de profundas e significativas transformações instaurado em acentuada pungência no cenário mundial. Nesse contexto, em que a travessia do milênio além de caracterizar-se pela intensa imprevisibilidade de mudanças provocadas e provocadoras de impactos econômicos, políticos e sociais, também representou paradoxa e contraditoriamente, oportunidades e ameaças a organismos e instituições governamentais e privadas, enfim, aos cidadãos do mundo inteiro, haja vista o acirramento do desequilíbrio estrutural no campo da educação e no mundo do trabalho, o paradigma “tecno-econômico” das TIC s é concebido como fator – chave e retro alimentador de um fenômeno global cíclico: a incerteza. Diante do panorama ilustrado, este artigo, organizado em três seções, propõe-se a promover uma discussão em torno das possíveis potencialidades e desafios postos como tônica e atributo da incorporação das TICs ao mundo do trabalho e ao campo educacional. A seção inicial compreende uma breve análise conceitual da polissêmica, e por vezes, personificada expressão - “Tecnologias de Informação e Comunicação - TIC s”. Seguida, nas seções subsequentes, 133 por uma problematização teórica dos pontos de convergência entre o paradigma educacional emergente e a informática educativa, desenvolvendo-se, finalmente, uma ligeira interlocução entre os aspectos multidimensionais inerentes à pedagogia dos meios tecnológicos. Tecnologias da informação e comunicação: a polissemia e a personificação de um conceito Composto por um trinômio em que cada terminologia traz por si mesma uma vigorosa significação, a expressão “novas tecnologias da informação e comunicação” reforça a evidente e complexa polissemia presente em cada um de seus componentes conceituais. Antes, porém de se tomar a expressão como um todo, proceder-se-á uma sucinta definição conceitual de cada terminologia. Em Belloni (2001, p. 53), encontram-se as seguintes definições para o termo tecnologia: Tec n ol o gi a é u ma f or ma d e c on h e ci m e nt o. “C oi s a s” tec n o l ó gic a s nã o f a ze m s e nt i d o se m o “ s a ber - c om o” ( K n owh ow ) u sá - la s, c on s er tá- l as, f az ê- l as ( a p u d E VAN S E N A TI O N , 1 9 9 3 : p . 1 9 9 ); T ec n o l ogi a é u m c on ju n t o de d i sc ur sos , pr á ti ca s, va l or e s e ef e i t os s oc ia i s li ga d os a u ma téc n ic a par ti c ul ar n u m c a m p o pa r ti c u lar ( a p u d LI N A R D, 1 9 9 6 : p. 9 1) . Para Pinto (2002), o termo tecnologia remete-nos, na contemporaneidade, à observância da correlação entre os domínios científico e técnico desencadeadores de uma ação de interdependência entre os conhecimentos teóricos e práticos, ou seja, entre o saber e o fazer, o conhecimento e a ação. Neste sentido, o termo tecnologia pode ser concebido como um conceito bidimensional que comporta em seu núcleo uma dimensão instrumental e outra substantiva. E, em decorrência dessa fusão indispensável entre a utilidade do fazer e do saber, como elementos provocadores da inovação, provém a possibilidade de um indivíduo, em seu processo particular de interação com as inúmeras tecnologias colocadas à sua disposição, romper com o excessivamente usual, rotineiro. 134 A efetivação dessa ruptura desencadeia profundas transformações no contexto social em que seu agente provocador está inserido e em si próprio, conformando assim, concomitantes mudanças nos ideários coletivo e individual. Lastres e Ferraz (1999, pp.29, 30) destacam que “informação, conhecimento e aprendizado constituem fenômenos relevantes e conceitos fundamentais para o entendimento adequado desta realidade econômica em trans formação”, apresentando estreita correlação, sem, contudo, serem termos sinônimos. Os autores salientam que informação e conhecimento sempre tiveram sua importância reconhecida nas análises econômicas mais cuidadosas feitas, até já tradicionalmente, aos pioneiros trabalhos dos economistas - Machlup, Simon, Richardson e ainda Porat, Bouding e Lamberton, apontando-se para o res gate das contribuições de autores como Adam Smith, Friedrick List, Joseph Schumpeter, dentre vários outros, os quais implícita ou explicitamente abordam tais temas em suas análises. Na sequência, Lastres e Ferraz (1999, p. 32) salientam que nas concepções dos es tudiosos correlacionados, o termo Tecnologias da Informação no que se convencionou denominar paradigma técnicoeconômico das tecnologias da informação “engloba várias áreas como informática, telecomunicações, comunicações, ciências da computação, engenharia de sistemas e software”. Castells (2000) considera que o paradigma da tecnologia da informação tem como a primeira de suas características fundamentais, a informação, sua matéria-prima. O que implica que, neste contexto, essa tem se desenvolvido justamente para permitir o domínio humano sobre a informação ao contrário do passado, quando predominantemente, a informação era utilizada com o intuito de se assegurar maior poder de ação humana sobre as tecnologias. Concluindo sua argumentação, Lastres e Ferraz (1999) esclarecem que este processo de “Revolução Informacional” tem apontado para um processo de transferência adverso ao ocorrido durante a Revolução Industrial, no qual a força humana era transferida para as máquinas. Na Revolução Informacional, a transferência prioriza as experiências e 135 capacitações humanas, fator responsável pela radicalidade das transformações que vêm se processando nos modos de vida de cada sociedade, noutras palavras, no modo como o ser humano aprende, exerce sua cidadania, participa, realiza pesquisas, propõe soluções para as demandas emergentes etc. Em decorrência, autores como Freeman, Foray, Soete e Lundvall vêm reafirmando em suas produções que o acesso à informação se difere do acesso ao conhecimento, destacando que a difusão das tecnologias da informação eleva as possibilidades de codificação e disseminação ou transferência de conhecimentos codificáveis, o que não é possível quando se trata de conhecimentos tácitos; em vista disso, a sociedade tem assistido ao enraizamento de uma forma de economia cujos pilares são a produção e o uso de conhecimentos. Quanto ao conceito de comunicação 10, dispõe-se de uma vasta produção e / ou discussão teórica acerca do mesmo, que apesar de toda a sua relevância e pertinência para a discussão em tela, aqui não será tratada em profundidade, dada a limitação desta abordagem. Etimologicamente, conforme se lê a seguir, o termo é originário D o la t i m " c om mu n ic ar e " , c omu n i c açã o si gn i f i c a p ôr e m c om u m, c on vi ve r . E st e " p ôr e m c om u m " i mp li c a q ue tr a n s mi s sor e r ece p t or est e ja m d e ntr o da me sma li n gu a ge m , cas o c on t r ár i o n ã o se e nt e n der ã o e n ã o ha ve r á c omp r e e n sã o. Ass i m, c o mu n i c açã o d e ve l e va r c on s i g o a i d éi a de c om p r ee n sã o. ( MODE R N O, s / d, s/ p.) . Em Sampaio (2001, s/p.), 11 são tematizados conceitos e modelos inerentes ao termo, a saber - comunicação como transmissão de sinais, comunicação como diálogo, comunicação como disputa e comunicação como seleção. Segundo a autora, a comunicação como transmissão de sinais constitui um dos “modelos de comunicação mais influentes nas últimas décadas”, com ênfase no “modelo criado em 1949 por C.E.Shannon e 10 O r es ga te d a s di ve r sa s de f i ni ç õe s c on c ei t uai s s ob r e o te r m o c omu n i c aç ã o mos t r a- se e x tr e m a me n te p r e ci os o e op or t u n o. E ntr e ta n t o, aq u i nã o se di s p õe d e es p aç o p ar a r e p r od u z i- l o de f or ma m ai s a b ra n ge n t e e a pr of u n da d a . 11 Os i n t er e s sa d os p od e r ã o e n c on tr ar r ef er ê nc i a s e m Kr i p pe n d or f ( 1 9 9 4) ; Si e gf ri e d Sc h m i dt ( 1 9 9 6) ; N i kl a s Lu h m a n n ( 1 9 9 5) e tc , r ec o me n d a - se, pr i nc i pa l me n te , a c on su lt a à pr od u çã o d e Sa m pa i o ( 2 0 0 1) c o m o f i o c on d u t or à s f on t e s pr i má r ia s de st es c on cei t os. 136 W.Weaver”, que concebe a comunicação como uma transmissão de sinais, salientando ainda que “Schmidt ressalta o predomínio dos modelos da comunicação baseados numa visão técnica da informação nos campos da sociologia, da psicologia e da linguística nos últimos 50 anos”. No modelo de comunicação como diálogo, esta é “concebida como um processo dialógico, por meio do qual, sujeitos capazes de linguagem e ação interagem com fins de obter um entendimento“, sendo também destacado como “um dos modelos mais influentes da comunicação, que remonta à filosofia grega de Platão e Sócrates“. Sampaio centra sua análise na concepção da comunicação do filósofo alemão Jürgen Habermas, o qual, conforme afirma, “é um dos autores contemporâneos mais expressivos que opera com esse modelo“ de comunicação “como parte integrante do seu projeto de renovação da teoria social fundada no interesse emancipatório“ e para o qual, o advento da modernidade passa a revelar as condições apropriadas para o desenvolvimento de uma “racionalidade comunicativa“ desencadeada proporcinonalmente à progressiva emancipação humana do jugo da tradição e da autoridade, conferindo-lhe a possibilidade de estar sujeito apenas à força da argumentação. Apres entando, então, como postulado a tese de que “todo conhecimento é posto em movimento por interes ses que o orientam, dirigem-no, comandam-no“ (apud Heck, 1987:7). Nessa concepção, compõem a tríade de interesses constitutivos do conhecimento, os interesses técnico, prático e emancipatório . Ao discorrer sobre um terceiro modelo em que a comunicação é concebida como disputa, Sampaio esclarece que um dos eixos dos estudos realizados pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu é a investigação de questões relacionadas ao poder dos bens simbólicos, “onde o processo de comunicação é compreendido como uma disputa simbólica pelas nomeações legítimas“, denotando assim, uma compreeensão da comunicação contrária a de Habermas. “Enquanto para o filós ofo alemão a comunicação é considerada sinônimo da busca de entendimento, para Bourdieu ela é sinônimo de disputa“. 137 A autora prossegue em sua análise, afirmando que, na concepção do sociólogo francês, a Sociologia deveria concentrar sua atenção no desvendamento das questões relativas ao poder simbólico em que [ ... ] O es paç o d a s i nt er a ç õe s, se gu n d o B o u r d ie u, f u nc i on a c om o u ma e spéc ie d e me r ca d o li n gu í s ti c o pr éc on s ti t uí d o, de f i ni d or d o q ue p od e s er d it o e d o q ue nã o p od e ou nã o de ve se r pr on u nc ia d o, de q u e m é e xc lu í d o e ou s e ex cl u i ( 1 9 8 9, 5 5) . E m o ut r a s pa la vr as, os a ge nt e s soc ia i s, n a lu ta per ma n e nt e pe l o es ta be le ci m e nt o d e ´ d ef i n iç õe s` le gí ti ma s, d i s p õe m de f or ça s q ue e st ã o r ef er e nc ia da s a os ca m p os hi er ar q u iz a d os e às p os i ç õe s q u e ne le s o c u p a m. ” [ ... ] O p oder d e n o me ar é a f i na l, t a mb é m par a B ou r d ie u, o p od e r d e f az er c oi sa s, da í u m c er t o ca r á ter ´ má g ic o` es tar pr e s e nt e na d e f i n içã o d o s s i gn i f ic a d os, n a me d i da e m q ue al te r ar r e pr e se n taç õ es i mp li c a, n u m c er t o se n ti d o, m u dar a s c oi sa s. O a ge nt e q ue f a la n ã o b u sc a a p e na s se r c omp r ee n di d o, ma s ser ob e de ci d o, a cr e di ta d o, r ec on h e c i d o. Da í a s ua af ir m aç ã o de q ue : “a lí n gu a n ã o é som e n te u m i n s tr u me n t o d e c omu n i c a çã o o u me s mo de c on h ec i me nt o, ma s u m i n str u m e nt o d e p od e r ( 1 9 8 7: 1 6 1) . Neste sentido, Sampaio afirma que B ordieu atesta a existência social de um mercado de bens simbólicos tão forte e ostensivo quanto o é o de bens materiais. Noutras palavras: prevalece e se aplica aos bens simbólicos o mesmo ciclo de produção, circulação e consumo inerente aos bens materiais, haja vista que em suas relações sociais cotidianas, os seres humanos realizam inúmeras trocas que extrapolam ao material, ao concreto, abarcando também amplamente o imaterial, o simbólico. A autora conclui sua análise, afirmando que em Bourdieu, a comunicação é concebida “como um processo de disputa permanente”, sendo explicitamente negada nesta perspectiva, “a concepção da comunicação pautada na idéia ingênua do transporte de informação”. Em conformidade com o pensamento de B ourdieu, em (THOMPSON, 2001, p. 19), obtém-se a seguinte afirmação: Em t od a s a s soc i e da d e s, os se re s h u m a n os se o c u pa m da pr od u ç ã o e d o i nt er câ mb i o de i nf or m aç õ es e d e c o n t e ú d o si m b ó li c o. De s de a s ma i s a n ti ga s f or ma s d e c om u n i ca ç ã o ge s t ual e de u so d a li n g u a ge m a té os ma i s r e c e nt e s de se n v ol vi m e nt os na t ec n o l o gia c o m p u ta ci on a l, a pr od u ç ã o, o ar maz e na me n t o e a ci r c u la çã o de i nf or maç ã o e c o n t e úd o si m b ó li c o t ê m s i d o a s pe ct o s ce n t ra is d a vi d a so c ia l. Ma s c om o d e se n v ol vi me n t o d e u m a va r i e da de de i n st it u iç õe s de c om u n ic aç ã o a p ar t ir d o sé c u l o X V at é os n o ss os d ia s, os pr oc e ssos de pr od u çã o , ar ma ze n a me n t o e c i r cu l a çã o tê m pa s sa d o p or si g n if i c at i v a s t ra n sf or ma ç õe s. 138 [ ... ] o de s e n v ol vi m e nt o d os me i os de c om u n i c a çã o é , em s e nt i d o f u n da me n t al, u ma r eel a b ora ç ã o d o ca rá ter si m b ó li c o da vi da s oc ia l, u ma r e or ga n iz aç ã o d o s me i os pe l os q ua i s a i nf or m açã o e o c on te ú d o si m b ó lic o sã o pr od u z i d o s e in ter ca mb ia d os n o m u n d o s oci a l e u ma r ee st r u t ur aç ã o d os me i os pe l os q uai s os i n d i ví d u os se r ela ci on a m e nt r e si . Formas de poder Poder econômico Poder político Poder coercitivo (especialmente poder militar) Poder simbólico T a bel a 1. 1 F or ma s d e p o der 12 Recursos Instituições paradigmáticas Materiais e Instituições econômicas (p.ex. empresas financeiros comerciais) Autoridade Instituições políticas (p.ex. estados) Instituições coercitivas (especialmente militares, Força física e mas também a polícia, instituições carcerárias, armada etc.) Meios de Instituições culturais (p.ex. Igreja, escolas e informação e universidades, as indústrias da mídia, etc.) comunicação Portanto, segundo o autor, os meios técnicos pos suem alta capacidade de armazenagem de conteúdo simbólico ou informações, justamente por serem providos de mecanismos de fixação e preservação destes, possibilitando seus usos subsequentes em diferentes situações, podendo assim, servir então “de fonte para o exercício de diferentes formas de poder” como acima descrito. Antes, porém, de se concluir esta abordagem e, situando enfim, a última concepção conceitual de comunicação que aqui se propõe sinalizar, há que se destacar ainda que, ao discorrer sobre comunicação e contexto social, Thompson chama a atenção para os equívocos que ocorrem no emprego do termo “comunicação de massa 13, ressaltando que o que é realmente importante nesta modalidade de comunicação é a disponibilidade de produtos diversificados, em princípio, a uma enorme pluralidade de destinatários e não a quantidade de indivíduos que recebe estes produtos, recomendando o abandono à ideia de que os destinatários dos produtos da mídia são meros espectadores passivos e acríticos. Segundo o autor, há uma razão ulterior que torna a expressão “comunicação de massa um tanto imprópria hoje, a saber, como descrição 12 A ta be la 1. 1 r es u me a s q u ar t o f or ma s de p od e r e m r el aç ã o a os r e c ur so s d os q u ai s d e p e n de m t i pi ca me n te e as i n st it u iç õe s pa r a di g má ti ca s e m q ue e le s se c o nc e ntr a m ( T HO MP S ON , 2 0 0 1, p. 2 5) . 13 Re c on h e c e- s e a q u i a a b s ol u ta i mp or t â nc i a d a a b or d a ge m c on c e it ua l e m t or n o d a e x pr e ss ã o c om u n i ca ç ã o de ma ssa. N a ob r a r e f er e n c ia da ne s ta pr od u çã o, o l e it or i n ter es sa d o de ver á c on s u l tar o c a p ít u l o 1 . 139 das formas mais tradicionais de transmissão da mídia, em especial para os novos tipos de informação e comunicação em rede que têm se tornado cada vez mais comum na atualidade. Finalmente, ao tratar do modelo conceitual que define a comunicação como seleção, Sampaio situa o termo como um conceito central na teoria sistêmica do sociólogo alemão Niklas Luhmann, para o qual, a c om u n i caç ã o e nã o a aç ã o, c om o p ost u la d o e m m u i ta s te or i a s, é a u n i da de e le me n t ar q ue c on sti t ui os si ste m a s s oc iai s. A a çã o é, na ve r da d e, a u n i da de el e me n ta r q ue f a z o si ste ma ob se r vá ve l. [ . ..] a c omu n ic a çã o é c om p r ee n di da c o m o u m pr oc es s o de tr ê s dif er e n te s se le ç õe s: a se le ç ã o d a in f or ma ç ã o, a se le ç ã o da p ar t ic i p açã o ( ´ Mi tt e i l u n g`) de s sa in f or ma ç ã o e a c omp r ee nsã o se let i va ou nã o - c om p r ee n sã o de s sa p ar t ic i paç ã o e s ua i nf or ma çã o. ( 1 9 9 5 b : 1 1 5) . Portanto, como se pôde verificar, supostamente, tratados e tomados isolada e indissociadamente, os conceitos de tecnologia, informação e comunicação abarcam em suas diferentes e, por vezes, divergentes concepções, uma intensa polissemia. Em decorrência, tem-se, nas palavras de (ALVES, 2004, pp. 1, 2) que a dificuldade primária na descrição do processo de mudança estrutural que as sociedades pósmodernas vivenciam é resultante “da aparente irreversibilidade do trajeto para uma “sociedade da informação e do conhecimento, expressão carregada de sentido cuja polissemia se traduz numa relação inversa relativamente a seu potencial explicativo”. Tendo ainda em vista que, segundo o autor, tal expressão denota, fundamentalmente, que “informação” e “conhecimento” constituem-se, indiscutivelmente, como a matéria-prima essencial dos processos produtivos, indispensáveis à elevação e aceleração da produtividade, do emprego e do desenvolvimento econômico. Nesse ponto, Alves discorda, afirmando que externamente ao cenário estritamente econômico, o referido nível de desenvolvimento societal pressupõe uma quantidade “muito maior de distribuição e acesso dos cidadãos à informação oriunda de uma pluralidade de fontes e de formatos e disponível s ob múltiplas plataformas, contributo inequivocamente para a formulação de escolhas e expressão de vontades”. 140 Assim, ao serem reunidos sob o trinômio de “Tecnologias de Informação e Comunicação”, além da polissemia inerente a cada um de seus componentes, esses conceitos, conforme problematiza Dieuzeide (1994), passam a incorporar a ambivalência do qualificativo “novo”. O autor adverte que há tecnologias antigas que se renovam a partir de novos modos ou critérios de uso, como se tem verificado com o emprego do telefone, do rádio, do carro etc, ao passo que, contrariamente, existem muitas novas tecnologias que, obsoletas se tornam, antes mesmo que seu uso esteja totalmente disseminado socialmente. No que tange ao explícito processo de personificação que este quadrinômio conceitual tem sofrido, já não tão recentemente, comungase aqui com o argumento apresentado por (LÉVY, 2000, p. 26) que a tecnologia não é boa nem má, estando ou encontrando-se subordinadas às situações, usos e pontos de vista, e “tampouco neutra, já que é condicionante ou restritiva, já que de um lado abre e de outro fecha o espectro de possibilidades”. Não se tratando meramente de avaliar seus impactos e sim de situar pos sibilidades de uso, embora, enquanto se discute “possíveis usos de uma dada tecnologia, algumas formas de usar já se impuseram”, tal a velocidade e renovação com que se apresentam. Mediante as proposições de Levy, ter-se-ia como um clássico exemplo de personificação da tecnologia a partir da seguinte análise apresentada por Albornoz (2000), ao afirmar que o século XX deixa como legado uma colossal contradição na sequência caracterizada. De um lado, uma sociedade deslumbrada com as imensas possibilidades de avanços nunca antes experimentados nos mais vastos campos do concretizadas conhecimento. Possibilidades por muito meio de trabalho passíveis humano de serem despendido, especialmente, mas não somente na construção do “fantástico cérebro eletrônico”. Vê-se que até aqui o homem é sujeito, autor, criador (da ideia) e construtor (do instrumento). Saberes e ações em sintonia e a serviço da concretização das ideias e desejos humanos. De outro lado, porém, as tais imensas possibilidades de progresso do conhecimento humano, acabam por serem frustradas numa “tecnologia 141 destrutiva da natureza e distanciada da felicidade dos homens”. O que segundo a autora, o filósofo marxista judeu – alemão, Ernst Bloch, convencionou denominar de moratória da técnica no capitalismo, concepção na e pela qual os resultados provenientes da técnica se contrapõem às expectativas de abundância e felicidade e se revertem ou se aplicam, sobretudo, à indústria da devastação planetária. É, como se, de repente, a máquina deixasse de ser mera criação da mente humana e passasse a dominar as ações desta. Entretanto, acredita-se, em explícita concordância com os pensamentos de Lévy, não ser prudente atribuir à tecnologia as adjetivações ou atributos de destrutiva e avassaladora dos ideais humanos. Assim, devem ou deveriam ser, porém e, sobretudo, caracterizados “os usos” circunstanciais da técnica pela própria mente humana que a concebeu. Informática educativa – um paradigma? Nesta sociedade global “futurista”, inaugurada com a travessia do milênio, o maquinário “inteligente” tem marcado cotidianamente sua presença em todos os espaços – do local ao global, do material ao virtual. Em decorrência, o mundo do trabalho e o campo educacional têm sofrido mais ocasionadas direta por e este intensamente fenômeno que os hoje impactos tem se das mudanças convencionado 14 denominar de neomodernidade . Por conseguinte, segundo afirma Belloni (2001, p. 68), “a generalização da informática no mundo econômico e do trabalho já é uma realidade incontornável, e sua penetração nas outras esferas da vida social – lazer, cultura, educação – é uma tendência quase inexorável.” A autora argumenta que “as TICs terão provavelmente no século XXI uma significação cultural e social mais profunda do que o cinema e a televisão no século XX”. Contudo, apoiada nas argumentações de Dieuzeide, Belloni salienta que para se compreender efetivamente o papel das TICs no 14 Ver H a be r m as , 1 9 9 0, 1 9 9 2. 142 campo educacional ferramentas é preciso antes de tudo, desconsiderando pedagógicas, considerá-las nesta como análise “a problemática das relações entre a escola e as mídias, bem como a educação para a comunicação e suas implicações éticas e “cívicas”, muito embora se reconheça sua importância. A abordagem “pela ferramenta” nos levará a examinar essencialmente como estas técnicas são suscetíveis de serem postas a serviço dos objetivos maiores estabelecidos pela instituição educativa (BELLONI, 2001, p. 60 apud DIEUZEIDE, 1994, p. 15). Cabe ressaltar que tais aspectos apenas serão desconsiderados nesta seção, sendo oportunamente tratados na seção subsequente. Dessa forma, retomando as ideias explanadas no preâmbulo desta seção, tem-se a informática inserida transversalmente no contexto social, penetrando sobretudo, cotidianamente o espaço o universo educacional das atividades institucionalizado, e humanas, em estrita convergência com o atual quadro de acirramento da mercantilização, descentralização produtiva e recentralização do controle sobre os fluxos econômicos, num concentrado esforço de reestruturação econômica global da força produtiva. Situação esta que ganha status de oportunidade, mas também de ameaça, uma vez que acarreta riscos não somente e, sobretudo, aos países em desenvolvimento, como afeta diretamente as condição de vida da população mundial. As si m, a e sc o l a d ef r on ta- se c om o d es af i o de tr a zer par a se u c on t e x t o a s i nf o r m aç õ e s pr e s e nte s n as te c n ol o gia s e as pr ó pr i a s f e rr a me n ta s te c n ol ó gic a s, ar tic u la n d o- a s c om os c on h ec i me nt os e sc ol ar e s e pr op i ci a n d o a i nt er l o cu çã o e ntr e os in d i ví d u os . C om o c on s eq ü ê nc i a, di s p on i b il i za a os s u jei t os esc ol ar es u m a m p l o le q ue d e s a ber e s q u e, se t r ab a l h a d os e m per sp e ct i va c om u n i c ac i on a l, gar a nte m t ra n sf or ma ç õe s na s r ela ç õe s vi ve n c ia da s n o c ot i dia n o e sc ol ar . ( PO R T O, s/ d , s/ p. ap u d P O R TO, 2 0 0 3; MA R C O L LA , 2 0 0 4) . Portanto, informática o cenário educacional então ilustrado, constitui-se numa deixa entrever ramificação ou que a mesmo exigência da permeável trans versalidade das TICs em todos os campos e segmentos da arena social neomoderna. Enquadrando-se então não como um novo paradigma em emergência e sim como uma exigência ou 143 demanda daquilo que alguns estudiosos contemporâneos tendem a denominar de “paradigma educacional neomodermo” 15 Finalmente, ao considerar-se que as TICs constituem produto resultante da aproximação de três domínios (PINTO, CABRITA s/d, p. 497apud DIEUZEIDE; 1994; NUSSO, 1994; C ASTELLS, 1995): o da informática, o das telecomunicações e o do audiovisual, cuja combinação tem viabilizado e fomentado o desenvolvimento de novas e múltiplas relações entre as várias fontes, favorecendo a interatividade, a circulação de dados, informações, conhecimentos que, podem ou não resultar em aprendizagem colaborativa, formação permanente ao longo da vida etc, superando enfim as fronteiras espaciais territoriais em direção ao “ciberespaço” da informação, comunicação e interação virtuais, eis então por consequência, apontados na próxima seção, alguns dos desafios que se revestem como grandes possibilidades de incorporação, aplicação e contribuição das TIC s ao contexto social e, em particular, ao educacional na sua estreita relação com o mundo do trabalho, hoje em permanente instabilidade e mutação, revelando mais explicitamente a “crise estrutural” em que ambos estão mergulhados na neomodernidade como muitos preferem denominar o atual estágio histórico - social em que caminha a humanidade. As TICS no cenário educacional: os múltiplos desafios em educar com os meios e para os meios A e d u ca ç ã o é e s e mpr e f oi u m pr oce ss o c om p l e x o q u e ut il iz a a me di açã o d e al gu m ti p o d e me i o d e c om u n i caç ã o c om o c o m p le m e nt o ou a p oi o à a çã o d o p r o f es so r e m s ua in ter aç ã o p e ss oa l e dir e ta c om os e st u da n te s. A sa l a de a u la p od e ser c on s i de r a da u ma “ tec n ol o g i a” da me s ma f or ma q u e o q ua dr o ne gr o, o gi z, o li vr o e ou tr os ma t er iai s s ã o f er r a me n ta s ( tec n ol o gi as) p e da gó gi c as q ue r eal i z a m a me d iaçã o e ntr e o c on h ec i me nt o e o a pr e n d e nte . [ . ..] Em b or a a e x per iê nc i a h u ma n a te n ha si d o se m p re me d i a da a tr a v é s d o pr oc e ss o de soc ial iz açã o e d a l i n gu a ge m , é a p a rt i r d a m od e r ni da de, c om o sur gi m e nt o d e s ua s mí di a s t í pic a s d e ma ssa ( o i mpr e ss o, de p oi s os si n ai s e le t r ô n i c os) q ue se ob s er v a u m e n or me cr e sci m e nt o d a me d iaç ã o da e x pe r i ê n cia de c or r e nt e de st a s 15 E m vir t u d e da l i m ita ç ã o d e sta pr od u çã o , a pe sa r de re le va n te , a q ui nã o se r á a b or d a d o c om a de vi d a pr o f u n d i da de te óri ca q u e a e xpr e ss ã o e m d e sta q ue r e q u e r. E m d e c or r ê nc ia , r ec om e n d a -s e a o l e it or i nter e s sa d o u ma vi sit a ou c on s u lta às p u b l ic aç õe s d e J osé Car l os Li b â ne o n o per í od o c om p r ee n di d o e ntr e 1 9 9 5 e 2 0 0 5. 144 f or m as d e c om u n i ca çã o . E st a s mí d ia s sã o a o me sm o te m p o ma n if e st aç õ es da s te n dê nc ia s gl ob ali z a d or a s e de sc on t e x t ua liz a d o ra s ( de “ d es e nca i xe ”) d a m od e r ni da d e e in st r u me n t os d e sta s me sma s t e n dê nc ia s”. “ Ta n t o o i m pr e ss o q ua n t o a s mí di as e l etr ô ni ca s f u nc i on a m c om o mod a l i da de s de r e or ga ni za ç ã o d o te m p o e d o es p aç o e nã o a pe n as r ef l et e m a s r eal i da de s, c om o e m c e r ta me d i da a s f or ma m. ( BE L LO N I , 2 0 0 1, p . 5 4, a p u d G I DD E N S, 1 9 9 7: p . 2 2) . A definição acima apresentada conduz à recuperação e introdução de novas contribuições prestadas por Thompson à seção primeira deste artigo. Recorrendo-se a este autor, tem-se que a maior parte da história humana, especialmente a que antecede ao advento da invenção da escrita e da imprensa, foi marcada pela interação face a face, num contexto em que predominavam as tradições orais. Com o acelerado desenvolvimento dos meios de comunicação são criadas novas formas de interação e novos tipos de relacionamentos sociais desvinculados do ambiente físico. Thompson destaca três formas básicas ou situações de interatividade – interação face a face, interação mediada e quase interação mediada. Contudo, ao distinguir esses três tipos de interação, o autor salienta que, muitas interações que se desenvolvem cotidianamente podem envolver uma mistura de diferentes formas de interação, de modo que os tipos acima enunciados não esgotam os possíveis cenários de interação. As interações face a face ocorrem num contexto em que os interlocutores estão imediatamente presentes, compartilhando um mesmo sistema referencial de tempo e espaço. E, ao contrário, os participantes de uma interação mediada e quase interação mediada podem estar em contextos espaciais ou temporais distintos. Considerando a interação mediada, pode-se afirmar que este tipo contrasta com as interações face a face, entretanto, implica numa certa limitação na possibilidade de deixas simbólicas disponíveis aos participantes, uma vez em que há a predominância do uso de um meio técnico (papel, ondas eletromagnéticas, fios elétricos etc.). Neste sentido, Belloni (2001) esclarece que: [ ... ] Me dia ti zar si gn i f ic a es c ol he r, par a u m d a d o c on te x t o e si t ua ç ã o de c om u n ic a çã o, o m od o ma i s ef ic a z de 145 as se g u r á -l a ; s ele ci on a r o m e di u m m ai s a de q ua d o a es se f i m; em f u n çã o d e ste , c on c e be r e e la b or ar o di sc u r so q ue c on st it u i a f or ma d e r e ve st ir a su b s tâ nc ia d o te m a ou ma tér i a a tr a n s mi ti r ( p. 6 3, a p u d RO C HA- TR I N DA DE, 1 9 9 8) . Em decorrência, observa-se que as interações mediadas ou quase mediadas são revestidas de um caráter mais aberto que as interações face a face, onde os participantes têm que lançar mão de seus próprios recursos para compreender as mensagens transmitidas. A interação quase mediada se expande através do tempo e do espaço, implicando numa ampla disponibilidade de informação e conteúdo simbólico no tempo e no espaço, envolvendo, contudo, muitas vezes, certa limitação da gama de deixas simbólicas quando comparada à interação face a face. Em suma, um aspecto fundamental que distingue sobremaneira esta última forma de interação das demais, refere-se ao fluxo de comunicação, predominantemente de sentido único, monológico, enquanto as duas primeiras revestem-se de caráter dialógico. Cabe ressaltar que a origem histórica da interação mediada quanto à quase interação mediada não se deu em detrimento da interação face a face e sim em virtude da crescente imprevisibilidade e complexidade das demandas do mundo globalizado como agente impulsionador do crescimento da mídia e de seus múltiplos canais de comunicação e informação que possibilitaram a criação de uma diversidade de formas de ação à distância, proporcionando às pessoas a habilidade de responder e se apropriar de ações e eventos, ocasionando, por conseguinte, novas formas de inter – relacionamento e de indeterminação no cenário global atual. Holmberg (1990) afirma que visões pós-fordistas do futuro apostam numa revolução da Pedagogia no século XXI ocasionada e impulsionada pelo progresso das TICs em analogia à forma como a inovação de Gutemberg revolucionou a educação a partir do século XV. O que não significa, contudo, que estas tecnologias substituirão o discurso escrito na educação, mas que seu uso intensivo e integrado certamente implicará em profundas modificações nas formas de ensinar, de produzir e partilhar conhecimentos e aprendizagens, de trabalhar 146 colaborativamente etc., mudanças estas que já estão paulatinamente se processando face à evidente e frequente adaptação dos espaços de convivência e/ou de passagem social ao surpreendentemente moderno maquinário informatizado. “A escola e os meios tecnológicos de comunicação assemelham-se porque tratam da realidade e ambos são locais de aquisição de saberes; assim, educar com os meios e educar para os meios é imprescindível à educação escolar por possibilitar um ambiente favorável à cotidianidade” (POR TO, s/d, s/p). Há ainda que ressaltar a importância de se problematizar mais profundamente, conforme lembra Lévy, as definições de interatividade e interação, mediatização e ciberespaço, haja vista alguns equívocos conceituais que, volta e meia, assombram uma compreensão acertada do emprego desses termos, hoje tão “em moda” no mundo virtual. Belloni (2001, pp. 55, 56 apud KOECHLIN, 1995; STIEGLER, 1995) esclarece que cr iar um pr od u t o in t er at i v o, p or e xe m p l o, é ex tr e m a me n te d if í c i l, c ol oc a n d o i n ú mer os p r ob le ma s, d e sd e a se leç ã o de c on t e ú d os ( q ue e m ge r a l sã o f or m u la d o s, m ol da d os em di sc ur s o e scr i t o) a té as p rá t ic as d e “ n a ve ga çã o”, q u e sã o in ter at i va s e t o t al m e n te ( ou q u as e) n o va s. E st ã o se n d o pr o va ve l m e nt e ge r a da s, na cr i aç ã o de s te s pr od u t os, n o va s f or m as s e mâ n ti c a s, si n t áti c a s e e st il ís ti ca s de in te r a t i vi d a de , q ue t e n d er á a s e e x pa n di r e pe n et r a r e mod i f i ca r os a nt i g os di sc ur sos es c ol ar e s. Na sequência, a autora faz distinção entre os vários conceitos nos quais Lévy chama a atenção para uma perspicaz definição e compreensão. Salientando ainda que diante de todas as praticidades comunicacionais proporcionadas pela presença cada vez mais extensiva e intensiva das TIC s nos diversos s egmentos do cenário social, possibilitando assim, novas formas de se conceber os usos do tempo e do espaço no campo educacional e no mundo do trabalho e, alterando, sobretudo, as formas como se estabelecem as relações sociais entre os seres humanos, a mediatização das mensagens pedagógicas encontra-se arraigada no cerne dos processos educacionais em geral , identificando-se como característica principal destas tecnologias: 147 a int er at i v i d ad e, car a c ter í s tic a té c ni c a q u e si gn i f ic a a p oss i b ili d a de d e o u su ár i o i nter a gi r c om u m a má q ui n a . É f u n da m e nt al e scl ar ec er c om pr e c i sã o a di f er e n ç a s oc i ol ó gi c a en tr e o c on ce it o de int er aç ã o – a çã o r e cí pr oc a e nt r e d oi s ou ma i s a t or e s on d e oc or r e a i nte r s ubj et i v i d ad e, I st oé e nc on t r o de d oi s s u je it os – q ue p od e ser dir eta ou i n dir et a ( me d i a ti za da p or a l gu m ve íc u l o t éc ni c o d e c om u n i ca ç ã o, p or e x e m pl o, ca r ta ou te lef on e ) ; e a int er a t i vi d ad e, te r m o q u e ve m se n d o u sa d o in d i st i nt a me n te c om d oi s si gn i f ic a d os dif er e nt e s e m ge r al c onf u n d i d os : de u m l a d o a p ot e nci a l i da de téc ni c a ofer ec i d a p or de te r m i na d o me i o ( p or e x e mpl o, C D- RO M s de c on su l ta , hi p er t e xt os e m ge r a l, ou jo g o s i nf or ma ti za d os ) , e, d e o u tr o , a ati vi d a de h u ma n a , d o u s uár i o, de a gir s ob r e a má q u i na, e de r ece b er e m tr oc a u ma “ re tr oa çã o” da má q ui n a s ob r e e le. ( p. 5 8) . Neste vasto contexto de desafios e possibilidades, em que as TICs emergem como um conjunto de tecnologias que viabilizam numa velocidade inédita a produção, o registro, a produção, a aquisição, a armazenagem e o tratamento de informações das mais diversas formas possíveis – ótica, acústica, eletromagnética – destaca-se a incidência de seus impactos, em maior profundidade, sobre os processos do que sobre os produtos, permitindo maior flexibilidade e voracidade da ação humana sobre o conteúdo das informações, revelando-se então um cenário em que a comunicação pode assumir a conformação de “poder”, tal como descrevem e analisam Sampaio e Thompson em suas respectivas produções. Nesta direção, a Internet tem se apresentado como uma das mais atrativas ferramentas da atualidade, pois além de possibilitar ações que, simultaneamente, combinem a interação e a interatividade, a rede tem incorporado dia-a-dia todos os outros grandes atrativos ou atributos das mídias “de comunicação mediada”, tal como sugere Thompson - além dos chats, blogs, editores coletivos de textos, sites de busca, comunidades virtuais; dispõe-se, hoje, de revistas eletrônicas, jornal, canais de rádio, televisão, websites governamentais, serviços bancários etc, noutras palavras, “um dilúvio de informações”, serviços, facilidades e praticidades ao alcance de quem dispõe do acesso sócio-contextual digital e informacional, alterando substancialmente a relação humana com os fatores tempo e espaço. Pretto e Pinto (2006, p.20) defendem que 148 Q ua n d o a I n ter ne t a la str ou - s e n o mu n d o c o mo u m am b ie n te de c o m u n ic a çã o c o n f iá ve l, p on t o a p on t o, bi l at er a l e ace ssí ve l até me s mo par a i n di ví d u os , a pa rt ir da s sua s r esi dê nc ia s, e s ta be lec e u - se u m a m b ie n t e gl ob a l mu i t o m ai s f a vor á ve l à s o r ga n iz aç õe s e m r e de d o q ue p ar a às or ga n iz a ç õe s ve r ti ca is de c om a n d o, i mp l ic a n d o, c lar o e stá , q ue , par a sua vi a bi liz a çã o, pr e ci sa m os c on s i der ar a de m oc r a ti z açã o d o ac e s so à I n ter ne t c om o pe ç a- c ha ve pa r a q ue a p op u l a çã o p os sa te r a p os si b il i da de de o r ga n iz ar - s e d e mod o h or i z o n t al. N e s se s e nt i d o , sã o d e f u n da m e nt a l i mp o rt â nci a p ol í t ic as p ú b lic as q ue ga r a n ta m es s e a ce ss o, en te n d e n d o- o c om o u r ge n te , o q ue i m pl ic a pe n sa r m os e m sol u ç õe s c ol e ti va s e p ú b lic as , e nã o a pe n a s n o a c e ss o in d i vi d u al iza d o n a s re si dê n cia s. Como um dos mais notáveis atributos da criação e proliferação da Internet, situa-se o conceito de ciberespaço que, na ótica de Alava (2002, p. 14) é: c on ce bi d o e est r ut u r a d o d e m od o a ser , a nt es de t u d o, u m e spaç o s oc i al de c om u n i ca çã o e d e t ra ba l h o e m gr u p o. P ort a nt o, o sa be r já nã o é ma i s o pr od u t o pr é- c on st r u í d o e “m i di at ic a m e nt e” d if u n di d o, ma s o r e s u lt a d o d e u m tr a b a l h o de c on s tr u ç ã o i n di vi d u al ou c ol et i v o a par tir d e si t u aç õ e s mi d ia ti ca me nte c on c e b i da s p ar a of er ec e r a o a l u n o ou a o es t u da nt e op or t u n i da d es de me d iaç ã o . Uma breve análise das citações suprarrelacionadas permite entrever uma pluralidade de possibilidades, não mágicas, mas passíveis de serem concretizadas tanto na arena social, quanto especificamente no campo educacional como se anuncia a seguir em apologia ao pensamento de Moran (2002), que esclarece que as redes eletrônicas não constituem de modo algum, por si mesmas, solução absoluta para promoção de mudanças pedagógicas substanciais nos estabelecidas. processos No entanto, educacionais podem e prestar relações grandes contribuições às mudanças que poderão se instaurar na forma do professor, do aluno, do colega de trabalho e também de outros atores sociais conceberem a comunicação e a aprendizagem compartilhada durante o processo educacional e atuarem de maneira diferenciada das até então dominantes ou predominantes durante seus respectivos processos produtivos. “Neste sentido, Moran atribui especial ênfase à Internet, haja vista o universo de informações e formas de comunicação que esta coloca a 149 disposição de todos quantos a ela têm acesso: alunos, professores, coordenadores, gestores dos processos pedagógicos intra e extra- escolares etc. Podendo quiçá culminar na efetivação de uma das “novas educações” pelas quais a sociedade global tem aspirado em consonância com a lógica do “reaprender a aprender” – reaprender a trabalhar colaborativamente, usando os “meios tecnológicos” para a mediação de consulta a colegas próximos ou geograficamente distantes, com vistas à troca de experiências, esclarecimento de dúvidas, compartilhamento de aprendizagens, processos, materiais, dificuldades, resultados etc. Ações estas que, certamente, passarão a exercer forte impacto, em especial, nos modos dos sujeitos planejarem, executarem, avaliarem e se autoavaliarem no processo educativo. Por conseguinte, promovendo, grosso modo, uma ruptura com o saber disciplinar, num mundo em que, segundo Hernandez e Ventura (1998), faz-se primordial o aprendizado da utilização de estratégias e metodologias potencializadoras de novas relações, haja vista as necessidades emergentes de um mundo educacional e do trabalho em permanente mutação, em que, geralmente, as habilidades requeridas e adquiridas por um profissional no princípio de sua carreira, em qualquer campo do saber, rapidamente, com o decorrer do tempo e o acirramento do avanço tecnológico, tornam-se obsoletas. Exigindo, enfim, das pessoas a habilidade de aprendizagem permanente, ou como se tem convencionado denominar, “aprendizagem ao longo da vida 16”, em face de “uma sociedade informatizada na qual as pessoas terão que saber como agir para extrair e elaborar conhecimentos a partir do fluxo enorme de informação disponível” (Idem, p. 50). Contudo, não se pode perder de vista o alerta de Pretto e Pinto quando chamam a atenção para a verticalização, na arena social ampla, do acesso pela população à Internet, com ênfase para o âmbito coletivo e não meramente para o acesso residencial individualizado. Desta forma, reforçando o pensamento deste autor e comungando com os argumentos lançados por Pinto e Cabrita, há que se enfatizar que 16 C on s u l tar Be ll on i , c a pí t ul o 3 da ob r a a q u i r e f e r e n cia d a . 150 “as TICs convocam novas medidas de política educativa” num contexto cada vez mais anunciador de um grande, por vezes, cruel paradoxo instaurado. Onde se tem, de um lado, parte restrita da humanidade experimentando avanços inumeráveis em relação tecnológico intensificado nas três últimas décadas. ao progresso E noutro extremo, este mesmo “progresso tecnológico” exerce sua hegemonia revelado ao mundo inteiro que o campo da educação e o mundo do trabalho estão mergulhados numa profunda crise, cujo produto final tem se apresentado sob a forma de submissão de uma maioria da população planetária, exposta a um processo sem precedentes de violência e exclusão social. E, ao convocar as novas medidas de política educativa, parafraseando Pretto e Pinto (2006), as TICs aspiram por “novas educações”. Educações capazes de incorporar a ambivalência e polissemia do “supostamente novo”, mas sem renegar o “qualificado como velho”, submetendo na maioria das vezes, o saber e o ser profissional e a identidade cultural das populações a um perverso processo de desqualificação e descaracterização. Neste sentido, evocar “novas educações” implica num convite a resignificação pela escola e pela sociedade, como um todo, dos tempos e espaços democráticos de aprendizagem, rompendo com a pres unçosa hierarquização dos saberes escolares em detrimento dos saberes socialmente constituídos e construídos, com o enrijecimento disciplinar dos currículos escolares que, a despeito de todo o discurso atual em torno da inter, multi e transdisciplinaridade, concretamente ainda se apresenta como um dos grandes desafios quando se pensa numa sociedade global em que a vastidão de conhecimentos produzidos ao longo da trajetória humana planetária parecer sofrer ou transmutar-se também num processo globalizante dos saberes humanos. Portanto, fomentar a concretização de “novas educações” requer, sobretudo e não somente, uma urgente ruptura 17 com o modelo verticalizado, racional-burocrático das instituições escolares e com a gestão e organização curricular amestradas. Reivindicam uma articulação 17 An ál is e de ta l ha da e a pr of u n da d a e m P i nt o e Ca br i ta c on f or m e r ef er e nc i ad o a o f i nal d e sta pr od u ç ã o. 151 e atuação realmente eficaz dos órgãos técnico-pedagógicos escolares e extraescolares, outros modelos didáticos que rompam com a dicotomia tempo – espaço escolar e social, de forma tal que todos os espaços sociais, gradativamente, convertam-se em salas de aula, sem imposição de fronteiras espaços-temporais e limitação quantitativa e qualitativa de aprendentes, uma vez que instauradas relações horizontalizadas de trocas, impera o trabalho colaborativo num permanente processo de aprendizagem que se estende para além dos muros da escola e alcança a todos os sujeitos sociais de dever e de direito, predominando enfim, a co-responsabilidade pela aprendizagem de si e de outrem. Requerem enfim, conforme anuncia Porto, a superação do desafio de educar com os meios e para os meios. Considerações finais Diante da brevidade das discussões aqui incitadas e em face de um quadro de “pres unçosa” obsolescência das competências pessoais e profissionais maximizadas pelo avanço na automação da produção; crescente aspiração à concretização de novas relações sociais com o saber; com as tecnologias da inteligência e a inteligência coletiva (Lévy, 2000); com as novas formas de organização do trabalho e da produção (Drucker, 1999) e, por fim, com as competências estratégicas da era da informação (Castells, 2000), necessário se faz difundir e intensificar o debate ora proposto. Sendo transversais a toda sociedade e, portanto, de igual modo ao campo educacional e do trabalho, as TICs não são em tempo algum neutras. Ao contrário, são produzidas e, concomitantemente são produtoras de mudanças cada vez mais profundas no bojo das sociedades “neomodernas”. Entretanto, não podem ser concebidas como as protagonistas centrais desse processo, em detrimento da atuação humana. De fato, não se vislumbram outras alternativas, senão pelo viés de “novas educações” por meio das quais aprender-se-á ou incorporar-se-á ao cotidiano da humanidade, a cultura de trabalho colaborativo, de permanente formação , trocas de experiências e aprendizagens em 152 serviço que, converter-se-ão em conhecimento coletivo, de domínio público. Há que se reconhecer que todas estas aspirações revelam-se um tanto como utópicas mediante a ordem social vigente. Mas, são, contudo, passíveis de concretização, se inseridas e concebidas no mesmo contexto social amplo em que está instaurada a “crise” estrutural ou “existencial” em que estão mergulhados os principais vetores da inclusão social e da qualidade de vida – a educação e o trabalho. Em suma e para concluir, apresenta-se aqui mais uma das valiosas contribuições de Moran (s/d, s/p.) que converge intimamente com todo o discurso produzido ao longo deste breve estudo e anseios e crenças de sua autora: E d u car c om n o va s t ec n ol o gi a s é u m de saf i o q ue a té a gor a nã o f oi e nf re n t ad o c om p r of u n di d a de. Te m os f e i t o ap e na s a da pt aç õe s, pe q ue n a s mu da n ça s. A g ora , n a esc ola , n o tr a ba l h o e e m ca sa , p od e m os a pr e n der c on t i n ua me nt e, de f or m a f le xí ve l, r e u ni d os n u ma sa la ou d i sta n te s ge o gr af i ca me n te, m as c on e cta d o s a tr a vé s de r e de s de tel e vi sã o e da I n ter ne t. O pr e se nc i a l se t or n a ma i s vir t ua l e a ed u ca ç ã o a d is tâ n ci a se t or n a m ai s pr e se nc ia l . Os e nc on t r os em u m m e sm o e sp a ç o f ís ic o s e c omb i n a m c om os e nc on t r os vi r t ua i s, à d i st â nci a , a tr a vés da I n ter ne t e da tel e vi sã o. REFERÊNCIAS ALBORNOZ, Suzana. O que é trabalho. São Paulo: Brasiliense, 2000. (Coleção Primeiros Passos). ALAVA, Séraphin (org.). Ciberespaço e formações abertas: rumo a novas práticas educacionais? Porto Alegre: Artmed, 2002. ALVES, Nuno de A. Planos de ação para a sociedade da informação e do conhecimento: mudança tecnológica e ajustamento estrutural. 2004. Disponível em: http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/spp/n44/n44a06.pdf. Acesso em 04/10/2008. BELLONI, Maria L. Mediatização – Os Desafios das Novas tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC). Educação a Distância. Campinas, SP: Autores Associados, 2ª ed., 2001. (Coleção Educação Contemporânea). Cap. 4, pp. 53 a 77. CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. In: A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000, v. 1. 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O estudo buscou compreender os elementos constituintes da carreira docente que ultrapassam as questões de ensino em sala de aula e adentram pelos saberes práticos específicos aos lugares de trabalho, com suas rotinas, valores e regras. Nesta perspectiva, foram discutidos os aspectos da relação entre formação e trabalho docente com repercussões nas instituições escolares; mais es pecificamente as condições de trabalho e a condição de ser docente na sala de aula. Palavras-chave: Trabalho Políticas públicas. docente; Tempo; Profissão; Formação; THE COMPLEXITY OF THE TEACHING OCCUPATION: SOME CONSIDERATIONS AND INQUIRY. Abstract: This article aims at approaching the complexity of the teaching occupation concerning the educational policies implemented in Brazil since the 1990s in order to point out their problems and guidelines. This study attempts to understand the constituents of the teaching career which exceed the limits of the classroom and penetrates the practical knowledge specific to the working place and its routine, values and rules. From this perspective, we discuss the as pects involved in the relation between training and teaching occupation as well as its reflection on educational institutions, more s pecifically the working conditions and the condition of being a teacher in the classroom. Keywords: Teaching occupation; Working life; Profession; Teacher Training; Public politics. Introdução: A preocupação com as questões relacionadas à formação docente tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores, especialmente no que * D ou t or a n da e m E d uca çã o E sc ol ar – Fa c u l da d e de C i ê nc ia s e Le tr a s – U N E SP – Ar a ra q u ar a – SP . E- ma i l : or ei ll y @ p u c pc a l d as . br ** D ou t o ra n d a e m E d uca ç ã o E sc ol ar – Fa c ul d a de de Ciê n c i as e Le tr a s – UN E SP Ar a ra q u ar a – SP . E- ma i l : m a ri a sil vi a@ f a fi c a. b r 156 tange a “eficácia” da formação inicial e continuada dos professores. Percebe-se que tal preocupação aparece, na maioria das vezes, atrelada às questões dos modelos e estratégias a serem utilizados, das possíveis adaptações e inovações frente à diversidade de contextos e às novas demandas da sociedade. Esta temática tem resultado em estudos realizados nos últimos vinte anos sobre a formação de professores, tratando dos saberes que servem de base para o ensino. Para Tardif e Raymond (2000) estes: [ ...] nã o se l i mi t a m a c on t e ú d os be m cir c u n scr it os q ue d e pe n de r ia m d e u m c on h e c i me n t o espe ci al i za d o. El es a br a n g e m u ma gr a n de d i ver s id a de d e ob je t os , de q u e st õe s, d e pr ob l e ma s q u e e st ã o t od os re la ci o n a d os c om s e u tr ab a l h o. Al é m di ss o, n ã o c or r e sp on d e m, ou pe l o me n os m ui t o p ou c o, a os c on h eci me nt os t e ór i c o s ob t i d os na u ni ve r sid a de e pr od u z i d os pe la pe s q u isa na ár ea da e d u ca çã o [ . ..] (p. 2 1 3) Deste modo, pensar o trabalho docente significa trazer novos olhares para a questão do aprendizado do próprio ofício, trazendo à tona as seguintes indagações: se a formação inicial não garante na totalidade os saberes necessários à prática docente, quais os elementos que permeiam esta prática e que possibilitam ao docente o aprendizado da profissão? Também Esteves (2002) defende que pensar esta formação representa estabelecer um plano que permita refletir sobre as concepções de TRAB ALHO – PROFISSÃO – PESSOA, abordando, no primeiro, as condições postas em confronto com as necessárias, no segundo, o grau de envolvimento destes profissionais, ou seja, de afiliação na categoria e, por último, sua corporificação diante das diversas mudanças que interferem no trabalho do professor. Com o advento da participação, essas mudanças geraram um possível fortalecimento da autonomia docente, bem como das relações com a comunidade, o que suscitou a reinterpretação deste profissionalismo docente. Esta profissionalização, surgida no momento de crise e carregada de imensos problemas e estímulos, sinaliza para a possibilidade de uma 157 ação profissional mais aberta que, de certa forma, choca-se com o que se instituiu sobre o professor. Nos dias de hoje nossa sociedade espera que o bom professor seja aquele capaz de promover a aprendizagem dos alunos desmotivados, aquele que evita os conflitos geradores da indisciplina; que usa a autonomia para programar novos mecanismos de avaliação; proporciona ambientes esteticamente diferentes mesmo com a escassez dos meios necessários, e que eleva a sua auto-estima e a dos estudantes. Assim, este trabalho está dividido em quatro partes: inicialmente, trataremos do aprendizado do ofício docente. Em seguida, será abordado o início da profissão: a carreira e a construção dos saberes profissionais. A questão do tempo e sua relação com os saberes profissionais, a identidade profissional e trabalho docente serão tratados na seqüência. Na parte final, serão colocadas algumas considerações e indagações sobre o trabalho docente, a aprendizagem dos saberes e a formação docente. O aprendizado do ofício docente: No que se refere ao aprendizado do ofício docente parece consenso que este não se limita à formação inicial, ou seja, aos conhecimentos teóricos e técnicos que são adquiridos nas instituições formadoras, sejam as universidades ou as faculdades específicas para este fim. Entretanto, um impasse se estabelece entre ambas (formação inicial e continuada), supondo certa acomodação por parte das instituições e políticas da área quanto à definição de critérios e conteúdos a destacar, em cada etapa, o que privilegia, por um lado, ações de cunho conservador que priorizam a atividade prática e, por outro, mudanças de ordem progressistas que vislumbram uma pedagogia crítica. (ESTEVES, 2002). Percebe-se também que o tempo da formação instituído tem carregado, nestes nossos tempos, as marcas das novas exigências da sociedade global que segue as orientações dos organismos financeiros internacionais para os países em desenvolvimento, como o caso do Brasil. Essas recomendações apontam para a racionalização e eficiência 158 dos cursos, no sentido de promover a adequação do sistema educacional ao processo de reestruturação produtiva e aos novos rumos do Estado. (TORRES, 1996). Tornar-se professor requer saberes ligados às situações próprias do trabalho docente e que, de certa forma, exigem deste profissional conhecimentos, competências e atitudes que dependem de seu contato com essas mesmas situações. Além disso, pode-se dizer que esses saberes requerem tempo, prática e experiência. O processo de aprendizagem desses saberes depende de outros aspectos, oriundos das mais variadas fontes: “[...] formação inicial e contínua dos professores, currículo e socialização escolar, conhecimento das disciplinas a serem ensinadas, experiência na profissão, cultura pessoal e profissional, aprendizagem com os pares etc.” (TARDIF; RAYMOND, 2000, p.212). Uma vez que os saberes dos profess ores são construídos no exercício da própria profissão docente e, ao mesmo tempo, também se constituem de conhecimentos e manifestações provenientes de fontes das mais variadas, uma questão que se torna relevante diz respeito aos elementos que permeiam esta prática e que possibilitam ao docente o aprendizado do ofício, bem como a construção de uma identidade profissional. A esse respeito, Tardif e Raymond (2000) colocam a importância da inserção da dimensão temporal para melhor compreensão, destacando dois aspectos importantes: a trajetória pré-profissional e a trajetória profissional dos professores. No que se refere à trajetória pré-profissional apontam que os professores, de modo geral, aprendem o ofício e as questões a ele inerentes, tais como: o que é ensinar, o que é ser professor e como se deve ensinar, a partir de s ua própria trajetória de vida e, principalmente de sua s ocialização 18 enquanto alunos. Quanto à trajetória profissional, Tardif e Raymond (2000) colocam que os saberes dos professores são temporais, na medida em que são utilizados e desenvolvidos no decorrer de uma carreira, isto é, “[...] de um processo temporal de vida 18 Tar di f e R a ym on d ( 2 0 0 0) e nt e n de m a s oc ial i za çã o c om o u m pr oc e ss o d e f or ma ç ã o d o i n d i v í d u o q ue s e e st e n de p or t od a a hi st ór ia de vi da e c omp or ta r u pt ur a s e c on ti n u i da de s. A s oc ia l iz aç ã o pr é- pr of i ssi on a l a qu e se r ef er e m c o m pr ee n de a s e x p er i ê nc i as f a mi l iar e s e e sc ol ar e s d os pr of e ss o r es. 159 profissional de longa duração no qual intervêm dimensões identitárias, dimensões de socialização pr ofissional e também fases de mudanças”. (p.217) Desse modo, ao longo da carreira, o professor incorpora, por meio de processos de socialização, determinadas práticas e rotinas institucionalizadas, as quais estão inseridas no cotidiano escolar e nas equipes de trabalho. Tornar-se professor e construir uma carreira docente requer saberes que ultrapassam as questões de ensino em sala de aula e adentram pelos saberes práticos específicos aos lugares de trabalho, com suas rotinas, valores e regras (TARDIF; RAYMOND; 2000 p.217). O aprendizado do ofício docente, bem como a construção da prática profissional, pressupõe saberes que decorrem das experiências e vivências anteriores à formação profissional deste professor, as quais trazem marcas profundas dos saberes aprendidos ao longo de processos de socialização primária (família e o ambiente de vida), como também escolar (aluno). O início da profissão: a carreira e a construção dos saberes profissionais: A história de vida pessoal e escolar do professor adquire um significado especialmente importante no processo de aprendizagem do ofício, imprimindo no futuro profissional algumas marcas, conhecimentos, competências, crenças e valores que, de alguma forma, delineiam traços a sua personalidade e as suas relações com os outros e, especialmente, com os alunos. No decorrer da profissão e, principalmente no seu início, essas marcas acabam sendo utilizadas em sua a prática. Não obstante, Tardif e Raymond (2000) indicam que o aprendizado dos saberes docentes, embora fortemente vinculados ao tempo de vida anterior a sua formação profissional, como também a aprendizagem do próprio ofício, não pode abarcar, em sua totalidade, a complexidade do saber profissional e do trabalho docente. No que diz respeito à construção dos saberes necessários e a sua profissionalização, aspectos inerentes à carreira permitem melhor 160 compreender o exercício da docência a partir de sua trajetória profissional. Para Tardif e Raymond (2000, p.225): [ .. .] ab or da r a c ar r eir a , sit u a n d o- a na i nt er f ac e e ntr e os a t or e s e a s oc u p a ç õe s e c on s i d er a n d o- a, a o me sm o t e m p o, c om o u m c on s tr uc t o p si c os soc ial m od e l a d o p el a i nt er a ç ã o d os in d i ví d u os e d os c ol et i vos oc u p ac i o n ai s, pe r m ite p er c e b er me l h or o l u gar q ue o sa ber p r of i ssi on a l oc u p a n as tr a n saç õ e s en tr e o tr a b a l h a d or e se u tr a ba l h o. Em busca da profissionalização, outras perspectivas merecem ser analisadas. Comecemos pela relação qualidade e excelência procurando desfazer o equivoco instalado nesta relação, para então compreender que excelência exige qualidade e esta significa critérios de bom desempenho. Daí a expressão de Roldão (2007 p. 21): O p on t o d e q ue p a rt o é as su nç ã o da ne ce s si da d e de u m “r ef or ç o d a q u al i da de ” e de “ pr o m oçã o d a e xc e lê nc ia” n o q u e se r ef er e a os pr of e s so re s e mu i t o par ti c ul a r me n t e a os pr of ess or e s d os n í ve is i ni c i ai s de d oc ê n cia . Também pelas experiências acumuladas da autora, de pesquisadores e educadores em atuação, percebe-se uma outra questão, embora haja um número bastante grande de professores com trabalhos de qualidade, ainda não há uma qualidade global de desempenho profissional satisfatória. Para eles isto se dá por diversas razões, dentre essas a credibilidade profissional que se instala entre o primeiro e os demais ciclos de ensino fundamental, os níveis iniciais e os subsequentes, quando se fala de educador da infância e de professores de níveis mais avançados. Outro aspecto é o que se refere à relação entre qualidade do desempenho de professores e a própria noção de profissionalidade. Segundo Roldão (2007) a falta de clareza acerca da função e a associação desta a um saber específico, fizeram com que a lógica da formação se limitasse ao exercício de preparação do docente para passar o saber definido pelas sequências curriculares, sem muitas vezes considerar a mobilidade desta ação integradora. Por essas razões é importante pensar na mobilidade da ação docente no sentido de contribuir para a formação do profissional de qualidade, que permite a construção de um saber 161 rigoroso, ativo e de significado. Deste modo, o exercício da função de ensinar poderá se efetivar com autonomia, análise e iniciativas de melhoria do próprio desenvolvimento profissional do docente. Deve-se ainda considerar questões referentes às instituições formadoras e às práticas de formação de professores e educadores, como cumpridores da exigência de qualidade científica da formação (intelectual público), que foca a ação profissional de forma organizada e promove o desenvolvimento da capacidade de conhecer, de pensar sobre, e de agir fundamentadamente, imerso no contexto de trabalho. Assim explicita Roldão (2007 p. 39-40): E u d ir i a q u e o pr of e ss or t e m q ue ser t a m b ém u m in te l ec t ua l, pr ofi ssi on a l de c ul t ur a , e ne s te m o me nt o nã o o é – n e m os p r of e s s ore s d e pr i m eir o c i cl o o u se c u n dár i o. N ã o te m os si d o a m e u ve r , pr of i s si on a i s de c u lt ur a ou d e c on h e ci m e nt os . Q ua n d o m ui t o, s om os es p ec i al i sta s n u m a ár ea , o q u e n ã o é eq u i va l e nt e a ser pr of is si on a l de c on h e ci m e nt o e de c ul t u r a. Pensando nesta perspectiva é relevante discutir alguns aspectos da relação entre formação e trabalho docente com suas repercussões nas instituições escolares; mais na sala de aula. Na visão de Pereira (2007), há, nestes tempos, uma tendência recorrente em vários países, inclusive no B rasil, de que os professores são os principais responsáveis pelas mazelas da educação escolar e que para melhorá-la é necessário investir unicamente na sua formação. Assim percebe: [ .. .] Po u c o se f a la a re sp e i t o da ne c e ss i da d e da me l h or ia da s c on d i ç õe s de tr a b al h o d os pr of e s sor e s, d es d e o sa lár i o, a jor na da de t r ab al h o, a a u t on om i a p r of is si on a l , o n ú me r o d e a l u n os p or s ala de a u la, até a s it ua ç ã o f í si ca d os pr é d i os e sc ol ar es on d e tr a ba l h a m. (P E R E I R A, 2 0 0 7 p . 8 38 4) . Esta ideologia, atrelada a outras, também presentes em nossa sociedade, tende a responsabilizar a educação (ou a falta dela) por todas as desigualdades nos países em desenvolvimento. Afirmam os economistas que para melhorar os índices de distribuição de renda e 162 promover a justiça social, racial e econômica é necessário investir na educação, especialmente na formação dos professores. Sabendo que não serão nem a educação e nem a formação dos professores as únicas condições para transformar a sociedade, é de todo modo indispensável considerar que sem elas também não acontecerão mudanças significativas, pois esses aspectos são relevantes em nossa realidade. A definição do papel de professor possibilita, ao longo do tempo de construção da profissão, adquirir conhecimentos que acabam por permitir que os professores se distanciem de suas primeiras impressões e experiências, como também dos programas, das diretrizes e das rotinas escolares, embora continuem respeitando-os em termos gerais. Tal distanciamento sinaliza para um caminho de domínio progressivo do trabalho docente, o qual [...] leva a uma abertura em relação à construção de suas próprias aprendizagens, de suas próprias experiências, abertura essa ligada a uma maior segurança e ao sentimento de estar dominando bem suas funções. (TARDIF; RAYMOND, p.231). Para os autores, a constatação de que a evolução da carreira é acompanhada, geralmente, de um domínio maior do trabalho e do bemestar pessoal do prof essor no que diz respeito aos alunos e às exigências da profissão, demonstra claramente a relação entre os saberes profissionais e a carreira a partir de sua relação intrínseca com o tempo. Um outro elemento fortemente atrelado à dimensão temporal e sua relação com os saberes e o trabalho docente se refere a rotinização, entendida como fenômeno em que [...] os atores agem através do tempo, fazendo de suas próprias atividades recursos para reproduzir (e ás vezes modificar) essas mesmas atividades. (TARDIF; RAYMOND, 2000, p.234). A estabilização e regulação, como características inerentes à rotinização, possibilitam sua divisão e sua reprodução no tempo, permitindo um controle da ação por parte do professor, baseado na aprendizagem e na aquisição temporal das competências práticas. A força e a estabilidade dess e controle não dependem de decis ões voluntárias, de 163 escolhas, de projetos, mas sim da interiorização das regras implícitas de ação adquiridas com a experiência. As rotinas, assim, ao tornarem-se parte constitutiva da atividade profissional, trazem ao professor modos diversos de ser e de construir sua personalidade profissional. É a partir daí, segundo Tardif e Raymond (2000, p.234) que: [ .. .] os s a ber e s tr a ba l h o c on s tr uí d os pr of iss i on a l a ssu m e m ju s ta m e nte o a li c er c e me sm o t e m p o, os tr a ba l ha d or . da h i st ór ia d e vi da e o s sa be r es d o n os pr i m eir os a n o s d a pr át ic a t od o o se u se nti d o, p o i s f or m a m da s r ot i na s de aç ã o, p or q ue sã o, a o f u n da m e nt os da pe r so na l i d a de d o O contexto das políticas implementadas no Brasil: Com o aumento dos programas que vêm promovendo a aquisição da formação mínima exigida pela legislação educacional 2 para o exercício da profissão, muito se tem criticado sobre os cursos de “formação inicial” 3 . Apesar de serem destinados à preparação para a docência, muitos destes têm demonstrado poucos impactos na mudança da prática dos professores, uma vez que, a maioria deles, fundamenta-se em modelos tradicionais, que concebem a educação escolar e o ensino enquanto “transmissão de conhecimentos”, o que impede a transposição para outras práticas. Como já mencionamos, tais modelos se identificam com as exigências decorrentes das políticas econômicas que orientam a racionalização de tempo e custos, apelando para a necessidade de oferecê-los por meio de programas aligeirados, semi-presencias ou à distância, em instituições que não são Universidades. Surge assim, a partir da década de 1990, uma forte tendência de priorizar a formação continuada, também denominada “em serviço”, cujo objetivo está no oferecimento de cursos de atualização e “reciclagem”. Analisamos esta política em relação às condições de trabalho dos docentes nas escolas públicas, conclui-se que é praticamente impossível conceber a escola como espaço de produção de conhecimentos e saberes. 2 Cf Dir etr ize s C urr ic u la r es Na ci o n a i s par a os C ur s os de P e d a g o gia Se gu n d o P er e ir a ( 2 0 0 7 ) a c on t ec e m ui t o a n te s d a e ntr a da d os d oc e nt es e m c ur s os o u p r o gr a ma s de e n si n o su p e r i or . 3 164 O professor passa, na verdade, a exercer o papel de mero “dador” de aulas. (PEREIRA, 2007). Pensando nas suas condições de profissional, percebe-se que, apesar das várias modalidades de formação hoje postas enquanto políticas públicas, sua identidade ainda é obscura e complexa: Normal Superior? Pedagogia (licenciatura)? Especialização? Tentando compreender tal complexidade, o autor refere-se a um estudo realizado nos EUA, onde três agendas 4 disputam a hegemonia da formação docente, duas baseadas na preparação técnica e uma terceira concentrada nos valores coletivos, de solidariedade e de transformação da sociedade também a partir da sala de aula. Por isso ele clama por políticas de formação que, em parceria com as universidades possam contemplar: [ . ..] a esc ol a e n q ua nt o e s pa ç o d e pr od uç ã o de c on h e ci m e nt os e q ue c on ce ba m os e d uc a d or es e n q u a nt o in ve s t i ga d or e s de su as pr ó pr ia s pr á tic a s, an a l isa n d o, c ole ti va m e nt e o u i n di vi d ua l me n te , e de u ma ma ne ir a ba st a nt e cr ít ic a, o q u e ac on t e c e n o c ot i di a n o da e sc ol a e da sa la de au la . ( P ER E I RA, 2 0 0 7 p . 8 9) . Ainda discutindo a busca da qualidade e excelência o que temos assistido, atualmente, é uma banalização desta formação s ob vistas da qualificação e da aquisição de competências. Inspirada na reestruturação industrial, a qualificação previa organizar e disciplinar o mercado de trabalho para interpretar e guiar as evoluções dos sistemas de produção e dos empregos. Assim, a certificação para legitimar a inserção no mercado de trabalho se dava a partir da apresentação do diploma que deveria ratificar as competências apreendidas. Atualmente, o ensino por competências não profissionalização se deduz automaticamente dos exige mais, consequentemente a saberes. A construção de competências coloca em xeque os conteúdos da formação, os métodos de transmissão e a certificação pelo diploma. Identificado com o regime taylorista, fordista, o sistema de competências tende a imprimir uma visão estatística ao trabalho, a partir da produção em série e do estabelecimento 4 de hierarquias. Em decorrência, a definição de O aut or r ec or r e a os es t u d os de Z ei c h ne r ( 2 0 0 3 ) . 165 competências na educação passou a representar os novos modos de produção que visam dinamizar e transformar a prática docente. Há, entretanto, outras concepções para este sistema que, segundo Hernandez (2000), devem ser pensadas de forma mais ampla, no âmbito de um projeto social. Assim, ele concebe as competências como: [ . ..] um c on ju n t o de sa be r e s e ca pa ci d a de s q u e os pr of iss i on a is i n c or p or a m p or mei o da f or ma ç ã o e da ex p e ri ê nci a, som a d os à c a pac i da de de i nt e gr á- l os, u t i liz á- l os e tr a n sfe r i- l os e m di f er e n t e s s it u aç õe s pr o f is s i on a is. ( HE RN AN DE Z, 2 0 0 0 c it ad o e m R A MOS, 2 0 0 1 p . 7 9) . Esta concepção permite-nos evidenciar uma dimensão atribuída ao sujeito que se confronta com as ocupações para as quais ele mesmo deverá desempenhar. A partir daí, o Estado e as organizações poderão promover processos de formação capazes de oferecer tais competências, tanto quanto avaliá-las e certificá-las. Assim concebida, a normalização de competências passa a representar o processo de definição de um conjunto de padrões ou normas válidas em diferentes ambientes produtivos. Os currículos de formação poderão estabelecer as estratégias para a construção dessas capacidades, focados em atividades que se realizam nos contextos ou situações reais de trabalho. Considerações finais Considerando que estamos diante de um contexto de políticas públicas para a formação de professores, e condições de trabalho que apresentam indagações e incoerências, concluímos que é necessário buscar o fortalecimento das propos tas de formação defendidas pelos educadores, tentando estabelecer um programa de formação presencial que não reduza a carga horária nas Universidades e Faculdades de Educação. A sólida formação teórica e interdisciplinar, de unidade entre teoria e prática fortalece o compromisso social, ético e o trabalho coletivo na interligação entre formação inicial e continuada de todos os educadores. A nosso ver, direcionar o olhar para a temática do trabalho docente e da aprendizagem de seus saberes a partir de sua inserção no tempo, 166 significa a possibilidade de desvelar aspectos significativos da profissão, uma vez que se tornar profess or decorre de um longo processo de socialização que envolve experiências e vivências inseridas nas trajetórias pré-profissional e profissional do indivíduo. Estas trajetórias de vida constituem-se, de alguma forma, em percursos formadores dos próprios docentes, contribuindo fortemente, para a construção de sua identidade profissional, pois, como muito bem colocam Tardif e Raymond (2000, p.239) [...] é apenas ao cabo de certo tempo – tempo da vida profissional, tempo de carreira – que o eu pessoal, em contato com o universo do trabalho, vai pouco a pouco se transformando e torna-se um eu profissional. REFERÊNCIAS ESTEVES, Maria M. A Investigação enquanto estratégia de formação de professores. In: ESTEVES, M.M. Contexto Geral da Formação de Professores. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 2002. PEREIRA, Júlio E D. Formação de Professores, trabalho docente e suas repercussões na escola e na sala de aula. Educação e Linguagem. Ano 10. jan/jun 2007. São Bernardo do Campo – SP. RAMOS, Marise N. A institucionalização de sistemas de competência: materialidade do deslocamento conceitual. In: RAMOS, M N. A Pedagogia das Competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2001. ROLDÃO, Maria do C. Formar para a excelência profissional – pressupostos e rupturas nos níveis iniciais da docência. Educação e Linguagem. Ano 10. jan/jun 2007. São Bernardo do Campo – SP. TARDIF, Maurice; RAYMOND, Danielle. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação e Sociedade: revista quadrimestral de ciência da educação. Campinas: SP: CEDES, n. 73, p. 209-244, dez. 2000. TORRES, Rosa Maria. Melhorará a qualidade da Educação Básica? As estratégias do Banco Mundial. In TOMMASI, L: WARDE, M J. & HADDAD, S. (org) O Banco Mundial e as Políticas Educacionais. São Paulo: Cortez, 2000. 167 A FORMAÇÃO DE PROFE SSORES DE INGLÊS NUMA PERSPE CTIVA CRÍTICO-REFLE XIVA: COMENTÁRIOS E POSSIBILIDADES P atr íc ia Di as Re i s FR I S EN I * Resumo: Este artigo discorre sobre a relação entre a análise do habitus e a formação de professores numa perspectiva crítico-reflexiva e apresenta uma análise das biografias de alunos ingressantes no curso de Letras como um importante instrumento de pesquisa para professores em geral, especialmente de Língua Inglesa e Prática de Ensino. Palavras-chave: Habitus ; For mação Crítico-Reflexivo; Biogr afia. TEACHER TRAINING ANALYSIS IN A CRITICAL-REFLEXIVE PERSPECTIVE: COMMENTS AND POSSIBILITIES. Abstract: This article deals with the relation between the analysis of the habitus and teacher training in a critical-reflexive perspective and explores the biographies of Language Arts freshmen students as an important research tool for teachers in general, mainly English and Teaching Practice teachers. Keywords: Habitus; Critical-reflexive training; Biography. Introdução A formação básica do professor de línguas no Brasil ocorre fundamentalmente nos cursos de Letras-Licenciatura, por meio das disciplinas ao longo dos semestres e, especificamente, das disciplinas que enfocam a relação teoria e prática como as Práticas de Ensino e o Estágio Supervisionado. Geralmente, a conclusão da graduação é vista como uma suposta “comprovação” de que o aluno possui as exigências mínimas para o exercício da profissão, ou seja, a competência inicial (Wallace, 1991). Contudo, sabe-se que a obtenção do diploma de graduação, como aponta Almeida Filho (2005), deve representar “apenas o início de um esforço perene”, que pros segue na atuação dentro de sala de aula, nos cursos de extensão, nas leituras, na freqüência a eventos profissionais, na especialização, ou seja, no curso de toda uma vida * Mes tre e m E st u d os Li n gu í sti c os pel a UN E SP / S P e D oc e nte de Lí n gu a I n gl e sa e de P r áti c a de E ns i n o d o c ur so de Le t r a s d o Ce n t r o Uni ver sit á r i o M ou r a Lac e r d a - SP . 168 profissional. Dessa forma, consideramos que essa constante busca de aprimoramento e crescimento teórico-prático seja necessária para o desenvolvimento da chamada proficiência profissional (Wallace, op. cit.), considerada um processo contínuo e inesgotável na formação do professor. Por fornecer os subsídios básicos que possibilitarão o desenvolvimento do profissional pré e em serviço, a graduação, contudo, deve ser tomada como um dos assuntos primordiais em pesquisas e debates da área. No que tange sua grade curricular, as disciplinas pedagógicas, isto é, Didática, Psicologia da Educação e Metodologia do Ensino podem ser entendidas como espaços de articulação entre teoria e prática docente e o Estágio Supervisionado como responsável pela inserção do aluno-professor no mercado de trabalho. A Prática de Ensino, por sua vez, tem passado por uma constante revisão de conteúdos desde o surgimento da Lei 9394/96 (LDB), que determinava o mínimo de 300 horas para a disciplina 19, e por isso, é comum encontrarmos propostas significativamente diferentes de uma instituição para outra. Xavier e Gil (2004, p. 155), por exemplo, relatam recentes propostas de reorganização curricular para o curso de Letras na UFSC que propõem práticas de ensino distribuídas ao longo do curso, configuradas num trabalho coletivo, supervisionadas e articuladas por meio de três modalidades: como instrumento de integração do aluno com a realidade social, econômica e o trabalho na sua área/curso, como instrumento de iniciação a pesquisa educacional e ao ensino, e como instrumento de iniciação profissional, junto às escolas ou outros ambientes educacionais (Resolução nº. 001/CUN/2000 – UFSC). Nessa proposta, as disciplinas de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado passam a adquirir objetivos semelhantes e complementares. Ao mesmo tempo, é visível a necessidade de uma organização e infra-estrutura adequadas, por parte da ISE, para possibilitar a chamada “prática de ensino” e “inserção” do alunoprofessor no mercado de trabalho, o que inclui convênios com outras 19 A c on f i gu r aç ã o at u al é de 4 0 0 h o ra s. 169 instituições de ensino, propostas inter-disciplinares e de iniciação científica, planejamento de cursos a serem ministrados pelos alunosprofessores, dentre outras atividades. Esses projetos, contudo, são de difícil viabilização devido à carga horária cada vez mais reduzida dos cursos de Letras no Brasil e à pouca disponibilidade de tempo por parte do aluno-professor para a realização de atividades de campo. Diante dessa situação, é importante que os professores-formadores busquem maneiras de viabilizar da melhor forma possível, de acordo com seu contexto, a verdadeira “prática de ensino” e “inserção” do aluno no mercado de trabalho, uma vez que esses seriam um dos principais instrumentos para o desenvolvimento das competências 20 no contexto da formação pré-serviço e para a iniciação do aluno-professor no paradigma reflexivo. Da mesma forma, todos os esforços que visem a melhorar o aproveitamento do aluno-professor em sala de aula devem ser realizados para que os alunos tenham cada vez mais condições de compreender as origens e as conseqüências de sua ação pedagógica e, assim, estarem mais preparados para enfrentar os desafios da profissão na atualidade. O ensino de línguas no Brasil Em meados de 1970, o ensino de línguas no Brasil sof re uma série de reformulações quanto à sua metodologia e filosofia de ensino em resposta ao crescente número de pesquisas ocorridas em lingüística, pedagogia, antropologia, psicologia, dentre outras áreas. Nessa perspectiva, o foco de observação deixou de ser o “ensino”, que visava a internalização de formas linguísticas, para a “aprendizagem”, tendo a observação do contexto de ensino como fator norteador das estratégias pedagógicas em sala de aula. Seguindo esses pressupostos, a chamada abordagem comunicativa de línguas se estabeleceu como um dos principais paradigmas para o ensino de línguas no Brasil. Embora o nome “comunicativa” traga associações como a teoria da comunicação, Almeida Filho (2002, p.42) define que, no contexto de ensino de línguas, ser comunicativo significa “preocupar-se mais com o próprio aluno 20 Al me i da Fi l h o, J. C . P. ( 2 0 0 2). 170 enquanto sujeito e agente no processo de formação através de LE”, ou seja, dar menor ênfase ao ensinar e mais força para aquilo que abre o aluno a possibilidade de reconhecer nas práticas o que faz sentido para sua vida. A questão da significação e relevância dos temas a serem trabalhados em sala de aula também é bastante enfatizada nos PCNs de Língua Estrangeira que preconizam o trabalho por situações temáticas e áreas de conhecimento que, além de favorecerem a interdisciplinaridade, propiciam uma prática contextualiza, mais interessante e motivadora para o aluno. No início dos anos oitenta, é possível encontrar alguns pressupostos de uma Abordagem Comunicativa de Tendência Crítica (Clark, 1987; Almeida Filho, 1993, 1999, 2005) que tem como um de seus princípios o aluno como sujeito histórico cujos interesses e necessidades constituem o ponto de partida para a orientação da prática pedagógica. Ao mesmo tempo, assume-se que todo professor de línguas age a partir de uma filosofia de ensino ou abordagem de ensinar que abrange noções de língua e linguagem, língua estrangeira, ensinar e aprender língua estrangeira. Embora saibamos que a abordagem de ensinar do professor seja construída ao longo de toda sua vida profissional, acreditamos que na graduação, especificamente nas disciplinas de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado, é que são desenvolvidos os saberes teóricopráticos e as competências que podem transformar sua identidade e sua relação com a prática. Dessa maneira, o professor-formador que compartilha de pressupostos comunicativos para o ensino de línguas precisa desenvolver habilidades que lhe permitam maior controle s obre sua prática e, consequentemente, melhor capacidade para se autoavaliar profissionalmente. O ensino de línguas em uma pers pectiva crítico - reflexiva A maioria dos educadores sabe que a dis cussão sobre a formação do profissional reflexivo não é um assunto recente nas pesquisas e artigos da área. Contudo, há ainda uma variedade de opiniões a respeito 171 do que seria uma prática reflexiva. De acordo com Perrenoud (2002, p.13) u ma prá tic a r ef le x i va pr e ss u p õe u m a p os t ur a, u ma f or ma de i d e nt i da de , u m ha b i t u s. Sua r e al i da de nã o é me d i d a p or di s c ur sos ou p or i nt e n ç õe s, ma s pe l o l u gar , pe la n at u r e za e pe la s c on s e q ü ê nc i as d a re f le x ã o n o e xer c íc i o c oti d ia n o da pr of iss ã o, se ja e m si t ua çã o d e cr i se ou de f r a c ass o s e ja e m ve l oc i da de d e cr u z e ir o. Na visão do autor, a prática reflexiva é uma “relação com o mundo”, que deve ser, de alguma forma, ativa, crítica e autônoma e, para isso, o professor deve buscar, dentre outras coisas, uma reflexão na ação e sobre a ação. Refletir na ação seria o mesmo que refletir durante o processo, o que pressupõe um olhar atento para a situação, seus objetivos, meios, contexto de atuação e possíveis consequências de suas ações. A reflexão sobre a ação, por sua vez, reflete o momento póstumo à aula em si, no qual o professor busca compreender melhor o que aconteceu por meio uma análise crítica de suas ações. Uma postura semelhante leva-nos a buscar sentidos globais do próprio ensino, assim como desenvolver uma sensibilidade e uma noção de responsabilidade para discernir em que momentos e com quais de seus alunos poderão trabalhar uma ou outra estratégia, dentro do vasto campo de propostas metodológicas que constituem as abordagens. O professor reflexivo também necessita estar sempre em contato com leituras, buscando compreensões novas acerca da complexidade dos processos de ensinar e aprender línguas. Autores como Barlet (1998 apud Almeida Filho, 2005) sugerem etapas para reflexão, propondo cinco fases nãolineares: Mapear (o que faço como professor? ), Informar (qual o significado do meu ensino? ), Contestar (como emergiu este fazer?), Avaliar (como ser diferente do que sou? ) e o Agir (como posso atuar na prática?). Essas tentativas de sistematizar o processo reflexivo, embora sejam válidas, são questionáveis por apresentarem um caráter condutor e reducionista. É preciso entender que a capacidade de avaliação crítico reflexiva da ação pedagógica não é facilmente desenvolvida por exigir movimentos introspectivos, proativos e retroativos que se caracterizam 172 de forma diferente e particular de acordo com a formação e a história de vida do indivíduo. Na opinião de Almeida Filho (2005, p. 73), “nem sempre o professor tem os pré-requisitos atitudinais e afetivos que lhe permitam esse auto-olhar examinador” e, por isso, pode se enganar pensando ter chegado ao ápice de sua formação, protegendo-se da “ameaça” que uma postura mais aberta representa. Além disso, como aponta Perrenoud (p. 142-3), devemos considerar que qualquer ação complexa, embora aparentemente lógica ou técnica, só é possível à custa de mecanismos inconscientes aos quais nunca poderemos ser acesso total. Um dos caminhos para esse dilema, como sugerem autores como Moita Lopes (1996) e Vieira-Abrahão (1999), seria a proposição de pesquisa-ação com o objetivo de incentivar o professor como investigador de sua prática ou trabalhar com a prática reflexiva envolvendo professores em formação. Toda propos ta que vise ao desenvolvimento de uma prática reflexiva durante a graduação, contudo, deve propor formas de análise do habitus que, de acordo com Bourdieu (1972, p. 209), representa “um pequeno grupo de esquemas que permitem gerar uma infinidade de práticas adaptadas a situações que sempre se renovam sem nunca se constituir em princípios ativos (op. cit. Perrenoud, 2002). Esses tipos de exercícios podem levar à tomada de consciência pelas partes envolvidas, ou seja, o reconhecimento de alguns desses esquemas (muitos deles inconscientes) que subjazem as ações pedagógicas de alunos-professores e profissionais em serviço no exercício da profissão. O reconhecimento desses esquemas, contudo, não implica no apagamento imediato das rotinas antigas, porém possibilita uma melhor transformações compreensão no s obre indivíduo, si e por isso consequentemente, pode em sua encadear prática pedagógica. Algumas atividades que podem desempenhar um papel importante no desenvolvimento e na análise do habitus são os estudos de caso, as microaulas e a observação de aulas reais seguida de avaliação e debate, atividades muito comuns em Universidades brasileiras. O habitus, embora esteja perpassado pelo inconsciente, também pode ser melhor compreendido se buscarmos formas de explorar o que Almeida Filho (2002) chama de competência implícita, ou seja, as 173 experiências pessoais, crenças e pressupostos que o aluno-professor traz sobre o processo de ensino/aprendizagem de línguas no período inicial de sua formação. Para ilustrar essa afirmação, apresento, a seguir, algumas representações de um grupo de alunos ingressantes em um curso de Letras de um Centro Universitário do interior paulista, identificadas a partir de textos biográficos desenvolvidos com a orientação do professor de Prática de Ensino. A análise das biografias desses alunos revelou informações importantes para a prática docente, por parte do professor e para o processo de formação do aluno em uma perspectiva crítico reflexiva. Análise das biografias dos alunos Perfil do aluno A análise das biografias dos alunos revelou o que não é novidade, ou seja, o aluno que ingressa no ensino superior em instituições particulares é, em geral, proveniente de escolas da rede pública e municipal e teve contato com a língua inglesa predominantemente nesses contextos (Quadro 1). Qu a dr o 1 C ont e xt o E n si n o f u n d a me nta l e m éd i o da r e de p ú b l i ca e m u ni ci p al. E n si n o f u n d a me nta l e m éd i o pa r ti c ul ar Al un o s 90% 10% Dos alunos provenientes de escolas da rede pública e municipal, constatou-se que apenas 2% tiveram oportunidade de frequentar algum curso de inglês em escolas de língua e o mesmo número foi obtido no grupo de alunos que freqüentaram escolas particulares de ensino fundamental e/ou médio. Esses dados são importantíssimos não só para o professor de Prática de Ensino como para o professor de Língua Estrangeira que, conhecedor desses dados e dos problemas decorrentes e políticas sociais e educativas equivocadas 21, pode ter um parâmetro para orientar suas ações dentro e fora da sala de aula. 21 P ar a u ma vi s ã o a t u a li za da d os p r i nc i pa is pr ob le ma s vi v e n cia d o s p e l o pr of e ss or n o E n si n o f u n da m e nta l e Méd i o n o Br a s il, ler Za gu r y, T . ( 2 0 0 6) 174 Uma constatação interessante foi o fato de que grande parte dos alunos iniciantes, embora tenha relatado experiências negativas com a língua estrangeira no ensino fundamental e médio (item 2.3) e assumido seu conhecimento da língua inglesa como “fraco” (100%), 91% desses alunos se apresentam motivados no primeiro ano de faculdade, como podemos observar nos seguintes extratos: “tenho muita vontade de aprender” (2); “sei que não é fácil, mas tenho força de vontade” (3); “tornar-me uma professora bilíngüe é objetivo da minha vida, meu ideal” (4); “sempre me interessei pela língua” (5, 8, 9, 10); “me acho preparada para as novas oportunidades de aprendizagem que vêm por aí” (6); “aprender inglês para mim é um sonho” (3, 8); “falar inglês me faria uma pessoa importante” (8); “disposto e ansioso para aprender” (11). Essa motivação, como já foi observada em pesquisas anteriores, 4 pode surgir de diferentes maneiras como, por exemplo, do “glamour” que o falante de língua inglesa possui na sociedade atual e da sensação de poder que o “domínio” da língua pode trazer ao indivíduo (3, 8) e, talvez, por motivos s emelhantes possamos entender porque alguns alunos chegam a colocar a proficiência como “o objetivo de suas vidas”. De qualquer forma, independente das origens dessa motivação, os dados mostram um elevado potencial de comprometimento desses alunos na aprendizagem da Língua Inglesa no estágio inicial de um Curso de Letras e esse potencial precisa ser aproveitado da melhor forma possível pelos professores. 4 C or a ci n i, M. J . I de n ti d a de e D i sc u rs o. C a mp i n as: E di t or a da U nic a mp , 2 0 0 3. 175 Expectativas para o curso O aluno iniciante, em geral, tende a enxergar a faculdade como sua “tábua de salvação”, ou seja, o único responsável pelo seu sucesso ou insucesso profissional. Essa constatação pode ser comprovada nos seguintes extratos: Frequento a faculdade para... “me tornar um bom professor” (11); “fazer um papel bonito como professora, saber ensinar, saber aprender”: (1); “aprender a falar (dominar) o inglês”: (2, 7, 3); “que no final do curso eu saiba como conversar, ler e escrever e até entender a pronúncia de outras pessoas” (5); “poder morar no exterior” (9). Essa visão equivocada da faculdade como a única responsável pela “boa” formação do aluno no Curso de Letras pode ser um problema se não for desconstruída nos estágios iniciais do curso, pois sabe-se que essa crença também é responsável pela desmotivação dos alunos nos estágios finais do curso, uma vez que constatam que essa “formação ideal” não ocorreu da forma que previam. Cabe a todos os professores e, principalmente, ao professor de Prática de Ensino, mostrar o papel do aluno no processo de formação, o qual não termina com a graduação, mas a tem como ponto de partida para o crescimento profissional fundamentado teoricamente. Descrição da experiência As experiências relatadas pelos alunos na aprendizagem da língua inglesa nos ensinos fundamental e médio seriam preocupantes para os professores da IES em questão se não fosse a motivação dos alunos já relatada anteriormente. Os relatos des creveram um ensino de língua fundamentado na leitura e descrição gramatical e professores desmotivados, como mostram os extratos seguintes: 176 “só estudei tabelas de verbos, tradução e interpretação de textos” 1, 9; “falta de interesse por parte dos professores” 2, 11; “a pior pessoa que eu poderia encontrar (...) minha primeira professora de inglês” (5); a professora era péssima, mal humorada e sem paciência de ensinar” (10). Muitos alunos relatam esse contexto como o responsável pela desmotivação dos mesmos com relação ao aprendizado da língua nessas instituições: “com o passar do tempo tudo (a língua inglesa) foi se tornando cada vez mais sem importância (...) (4,5,9); “perdi totalmente o interesse de aprender (inglês)” 8. Os únicos alunos que relataram experiências positivas com a língua as atribuíram aos professores: “ótima professora que me fez apaixonar pela língua” (3); “nunca esquecerei dessa professora que fazia brincadeiras” (7). È interessante observar nos relatos que os professores que marcaram esses alunos tinham uma ótima capacidade de manter um “bom relacionamento” em sala de aula com os alunos, o que reforça a importância da manutenção do filtro afetivo 5 como uma variável importante no ensino da linha estrangeira. Ações valorizadas pelos alunos Os textos dos alunos revelaram informações coerentes com relação aos “atributos” do bom professor de inglês. As práticas mais valorizadas pelos alunos que participaram deste estudo foram: 5 Kr a she n, S. D. ( 1 9 8 7) . 177 “trabalhar conversação”, “o que o aluno realmente necessita para o mercado”: (1, 8); “ensinar a ler, ouvir, falar e escrever em inglês”: (5, 9); “abordar assuntos do dia a dia” (9); “ter dedicação, amor e paciência”: (3); “o bom professor auxilia o aluno e acaba se tornando um grande amigo” (10, 11); “ter dinamismo e empatia” (1); “trabalhar música”: (5, 6); “fazer brincadeiras, teatros”: (6). Foi surpreendente observar que o aluno ingressante já poss ui conhecimento das quatro habilidades necessárias ao ensino da língua inglesa, ou seja, a produção oral e escrita, a leitura e a compreensão auditiva, embora ainda não esteja muito claro como se deve trabalhá-las em sala de aula. Embora todos os alunos participantes dessa pesquisa tenham mencionado a importância de um professor carismático e capaz de motivar o aluno com atividades interessantes e atreladas a situações reais, nada foi dito sobre as responsabilidades dos mesmos (alunos) para a manutenção do “bom relacionamento” e da “motivação” em sala de aula. Esses dados revelam que os alunos ingressantes no Curso de Letras que participaram deste estudo, mesmo não tendo acesso às melhores condições de ensino/aprendizagem de língua estrangeira nos ensinos fundamental e médio, já apresentam uma opinião consistente com relação ao processo de ensino/aprendizagem de língua estrangeira e, por esse motivo, talvez, se mostram exigentes na avaliação dos professores. Falta, porém, maior conscientização do aluno sobre o seu papel nesse processo. Considerações Finais Informações sobre o perfil do aluno, suas expectativas com relação ao curso e à atuação do professor, assim como suas experiências em outras instituições são dados importantes para todos os professores em um curso de Letras, em especial para os professores de Língua Inglesa, Prática de Ensino e Estágio Supervisionado porque nos ajudam a 178 compreender muitas das posturas e atitudes dos alunos em sala-de-aula, servem de ponto de partida para observações e análises das práticas pedagógicas dos mesmos e assim nos ajudam a construir, mais facilmente, experiências que levem o aluno à chamada “formação critico - reflexiva” em um contexto pré-serviço. REFERÊNCIAS ABRAHÃO, Maria. H. Prática de ensino de língua estrangeira: experiências e reflexões. Campinas: Pontes e ArteLíngua, 2004, p. 153169. ALMEIDA FILHO, José. C. P. Dimensões comunicativas no ensino de línguas. Campinas: Pontes, 1993. ________________. (Org.) O professor de língua estrangeira em formação. 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No que se refere à influência midiática na política, nota-s e que ademais das mensagens subliminares, os políticos adotam a presença de ideologias em seus discursos, para que esses tenham um caráter lógico, de forma a convencer o receptor da mensagem de que o exposto é condizente com a realidade. Palavras-chave: subliminar Mídia; Política; Discurso; Ideologia; Mensagem COMMUNICATION POWER AND INTERNATIONAL POLITIC Abstract: The relations hip between media and politics is already consolidated in actual society, and the mass communication is very much utilized to express politics’ speech. The media influences the politics, and besides the subliminal messages, the politicians use ideologies in their speech in order to be logical and convince the listener that the message is tuned into the reality. Keywords: Media, Politics, Speech, Ideology; Subliminal message A mídia se firmou em nossa sociedade como um mecanismo mediador entre os cidadãos e os fatos. A cada dia as pessoas sentem maior necessidade de se manterem informadas, como se desta maneira acreditassem ser parte ativa dos acontecimentos transmitidos pela mídia, por intermédio dos meios de comunicação em massa. Desta forma, compreende-se como mídia o conjunto de meios de comunicação em massa que possuem como função básica informar a sociedade a respeito dos mais diversos assuntos, e dentre eles encontra-se a política. * Pr of e s sor a d os C ur sos de R el aç õe s In t er na ci on a i s e Dir ei t o d o Ce n t r o Uni ver sit á r i o M ou r a La cer d a. ** B a c ha re l e m Re l aç õe s I n te r na ci on a i s pe l o Ce n tr o Un i ver si t ár i o Mou r a La ce r d a . 181 No entanto, as informações transmitidas pela mídia não são apenas descrições de manipuladas, acontecimentos, de f orma visto intencional que ou essas não, informações pelos jornalistas são e comunicadores de uma maneira geral. Assim, ao alcançarem o público, elas já estão descontextualizadas, na medida em que trazem consigo as ideias e a subjetividade de um determinado indivíduo ou organização, pois muitas vezes es tes indivíduos ou organizações usam da mídia para persuadir o público em função de uma causa ou de interesses particulares. No que concerne à política, observa-se que os meios de comunicação em massa podem influenciar de maneira extremamente perspicaz a sociedade no tocante ao cenário político de um Estado, visto que são os responsáveis pela transmissão dos discursos políticos. Nas palavras de Bittar (2000, p.54), “a política está, cada vez mais, dependente da propaganda. Essa constatação é cara à teoria política à medida que se instaura um vírus no elo entre eleitores e eleitos: a comunicação de massa”. Entretanto, a influência da mídia na política não se limita ao território dos Estados Nacionais, pois as relações entre os países estão em um constante processo de estreitamento, devido, principalmente, ao estabelecimento do capitalismo como modelo de produção, praticamente mundial. Assim, a difusão do capitalismo não transformou apenas o campo econômico dos países, como também modificou o alcance de suas ações políticas. Na atualidade, uma certa decisão de um Estado pode não interferir somente dentro de suas fronteiras, mas pode atingir também, de forma direta ou não, outros países, como se as relações entre os Estados sofressem um movimento em cadeia. Já os discursos políticos, por sua vez, usam de algumas estratégias para poderem conf erir um caráter de realidade ao que está sendo expresso, e é neste aspecto que consiste a importância de um estudo sobre a influência da mídia na política, ou seja, um estudo como este faz-se importante para tornar mais claro aos cidadãos os elementos de persuasão contidos nos discursos políticos. Mais alerta sobre este fato, os cidadãos, diante de um assunto pertinente a questões políticas, podem 182 manifestar sua opinião da maneira mais consciente possível, reduzindo o poder de manipulação midiático. É importante salientar que, apesar de a mídia haver ser firmado de forma definitiva primeiramente em países ocidentais, hoje ela é um fenômeno presente também nos países orientais, e os acontecimentos das últimas décadas envolvendo países ocidentais e orientais foram largamente explorados por meios de comunicação em mass a. No dia 10 de maio de 2006, o jornal “Folha de São Paulo” publicou uma carta enviada pelo presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, ao presidente americano George W. Bush, na qual o presidente iraniano questiona o governo dos Estados Unidos da América a respeito de diversas questões relativas a conflitos entre o ocidente e o oriente e, em um determinado trecho da carta, também faz menção ao procedimento da mídia internacional na ocasião da Guerra do Iraque, bem como ao papel fundamental que a mídia desempenhou para que a opinião pública internacional fosse, a princípio, favorável à guerra. Este fato confirma tanto a ideia de a mídia ser um veículo pelo qual a sociedade toma conhecimento do que ocorre no cenário internacional, visto que a “Folha de São Paulo” é um periódico nacional brasileiro, quanto a ideia, enfatizada por Ahmadinejad, de que a mídia possui grande poder de influenciar a opinião pública internacional. Com a finalidade de melhor compreender a influência da mídia na política, este estudo qualitativo, de tipo estudo de caso, conta com dados secundários obtidos por meio de revisão de literatura sobre o tema, e é dividido em quatro tópicos. O primeiro refere-se a uma análise da relação entre a mídia e o imaginário popular, visto que a influência mídiática se dá muitas vezes de forma subliminar, o que a faz possuir grande participação na formação do que a sociedade considera como “realidade”, sem que esta influência seja percebida conscientemente. O segundo é uma descrição histórica do termo “ideologia”, necessária para embasar a discussão pertinente ao tópico três, no qual é realizado um paralelo com o primeiro tópico, onde é exposta a relação entre a manipulação inconsciente exercida pela mídia e os process os ideológicos contidos nos discursos políticos. No quarto tópico, com o intuito de 183 exemplificar a maneira pela qual a mídia pode manifestar grande influência na política de um Estado, são relatadas duas situações da História nas quais governantes utilizaram incisivamente esta influência em prol de suas causas, fazendo uso massivo da presença de ideologias em seus discursos. A Mídia como Formadora do Imaginário Popular A mídia possui a capacidade de interferir sobremaneira na sociedade, porém constantemente esta interferência não se manifesta apenas na esfera racional, por meio dos discursos ou debates apresentados nos meios de comunicação em massa, mas na maioria das vezes ocorre em nível subliminar, ou inconsciente, em uma linguagem psicanalítica. Ferrés (1998) analisa como os meios de comunicação em massa conseguem sobrepor-se à capacidade racional do homem, a partir do momento em que usam de apelos emocionais para incutir-lhe determinada ideia, fazendo assim com que a liberdade de escolha do indivíduo na esfera racional seja debilitada. Neste contexto, o mencionado autor (1998, p. 23) afirma que “(...) do ponto de vis ta das comunicações persuasivas, é no âmbito das emoções onde entram em crise os mitos da liberdade e da racionalidade”. Dentre os meios de comunicação em massa, pode-se considerar que a televisão é o que mais diretamente atinge a sociedade, tanto pela quantidade de aparelhos de televisão hoje disseminados, quanto pela facilidade com que o público acompanha o que é transmitido, devido ao tipo de linguagem utilizada neste meio de comunicação, muitas vezes superficial. Além disso, as imagens televisivas exercem notável fascínio nos indivíduos, fazendo-os crer que aquilo que observam é exatamente uma transcrição do mundo real. U m d os ma i or e s i m pe d i me n t os pa r a a lc a n çar a l u ci d ez na a ná li se d os ef ei t os d a t ele vi sã o é p re ci sa me nt e a c on vic çã o a b sol u t a na r a ci on a l i d a d e h u ma n a e, e m c on s e q üê n c ia, o d e sc on h e ci m e nt o d os me c a n is m os e m oc i on a is, c om f r e q ü ê nci a i r r ac i on a i s, ou p e l o me n os n ã o r a c i on a i s, m e dia n te os q u ai s a p es soa é a f et a da pe l os me i os de c omu n i c a çã o ( FE R RÉ S, 1 9 9 8, p . 1 7) . 184 No atual momento da sociedade ocidental, em que se prezam os regimes democráticos e a liberdade individual, há uma hipotética livre escolha dos cidadãos em relação ao que apreendem do que é transmitido nos meios de comunicação em massa. Isso se deve ao fato de que a livre escolha dos cidadãos é subjugada por artifícios de persuasão que não são facilmente percebidos no ato da recepção da mensagem. Sobre o apelo emocional e consequente poder de influência sutil que a mídia exerce sobre os cidadãos, Ferrés (1998, p.15) afirma que: Nas de m oc r a ci a s oc id e nt a i s, há esc a ssa s l i mit a ç õe s f í s ica s à s li be r d a de s i n d i vi d u a i s, ma s sã o s u b st it uí d a s p or pr e s s õe s s u ti s, ma i s so fi s tic a da s, me n os c on sc ie n te s. N ã o c ost u m a m ser l i mit a ç õe s f ís ica s, ma s si m p sí q ui c as. N ã o at ua m s ob r e a d e c is ã o d e ma n eir a dir et a , m e di an te a ob r i ga çã o ou a p r oi b iç ã o, ma s de m a nei r a i n di r et a , p re ssi on a n d o c om pr o me ssa s e a me aç a s vel a da s. A s l i mi ta ç õ es à li b e r da d e pr o vê m se gu i d a me n te da i n d uç ã o ma is ou me n os i na d ve r ti da de d e se j os e te m or e s. U ma c oi sa é i m p e dir o i n d i ví d u o d e a gir c on f or me s ua v on t a d e e ou tr a é c on d i c i o nar s ua v o n t a de p a r a q u e a ja c o nf or me se de s e ja. Neste sentido, o processo persuasivo dos meios de comunicação em massa não se manifesta apenas quando relacionado às transmissões jornalísticas, aos debates pertinentes a assuntos de essencial interesse da sociedade ou mesmo aos discursos políticos, mas sim manifesta-se, diversas vezes, desde os relatos, que são narrativas nas quais não se observa a intenção clara de dissuadir a opinião pública. Ferrés (1998, p.13) refere-se a este fato ressaltando que, “tende-se a considerar que o que mais influi da televisão são os discurs os, enquanto que a televisão influi principalmente desde os relatos”. Ainda sobre este aspecto do poder de influência dos meios de comunicação em massa, Peterson e Rivers (1966, p.235) afirmam que: O c on te ú d o i nf or m ati v o d os me i os de c omu n i c açã o é, pr o va ve l me n te, ma i s i nf l u e nt e d o q ue os r e c on h ec i da me nt e p er s u as i v os. E m ou tr a s pa la vr a s, a s r e p or t a ge n s n ot ic i o sa s p od e m te r u ma f or ça de f or m aç ã o d a s at i t u d e s p ú b lic as m ai or d o q ue a d os e d it o r iai s e a d a s c ol u na s p ol í ti ca s. 185 Alguns autores, a exemplo de Sodré (1987), Calazans (1992) e Ferrés (1998), analisam este poder de persuasão midiático por uma perspectiva da psicologia. Para Calazans (1992), o processo que a mídia desempenha no sentido de persuadir a sociedade assemelha-se ao que ele chama de “guerra psicológica”, que se relaciona a uma tentativa, por parte de exércitos inimigos, de afetar a saúde mental dos oponentes, abalando de maneira subliminar o moral das tropas e deixando os inimigos mais vulneráveis emocionalmente, de forma a ficarem mais facilmente manipuláveis. Sobre a “guerra psicológica” travada pela mídia em relação ao público: ... p od e- se a p l icar al gu n s c on c ei t o s da gu e r r a p si c ol ó gi ca à s ar ma s s u bl i mi n ar e s h o je di s p on í vei s. M a ni p u la n d o cr e n ç as , est a f or m a de e n ge n h a ri a d e e moç õ e s or i gi n a l me n t e v i sa va a br e via r os c onf li t os f ís ic os . At u al m e nte , t r a va- se u m a c on s t a nte gue r r a p e la s i d é ia s ( . . .) . Lu t a m p or p re va le c er m od os de vi da , i d e ol o gi a s, re li gi õ e s, pa r ti d os p ol ít ic os e m ar ca s c ome r c ia is e m u ma me n t e n a q ua l h á p ou c o e s p aç o p ar a t a nt os si gn os c on c or r e nt es ( C A LA Z A N S, 1 9 9 2, p. 8 1 Ferrés (1998) constata que os meios de comunicação em massa, principalmente a televisão, conseguem inclusive modificar o que ele chama de “esquemas mentais” dos cidadãos, que dizem respeito à forma como os indivíduos pensam a realidade. Sobre este tópico, Ferrés (1998, p.32) explica que: A i nf l uê nc ia d a t el e vi sã o se ma nif e sta p or s ua a çã o n o pr oc e s so de c on str u çã o da r ea li d a de e d a r e el a b or aç ã o d os e s q ue ma s d e s de os q ua i s s e i n t er pr e ta a r ea l i d a de. Se é n o t á ve l a i m p or tâ n cia da t el e vi s ã o q u a n d o r ef or ç a ou q ua n d o m od i f i ca es q u e ma s me nt ai s p ré vi os, se r á m ui t o ma i s q u a n d o pr op or c i on a a p r i me ir a i n f or maç ã o so b re r ea li d a d es , pe s so a s, i ns ti t ui ç õ es ou v a l or e s. No entanto, Sodré (1987) adverte que não se deve adotar uma postura de exacerbada relutância ante o fenômeno da influência subliminar exercida pelos meios de comunicação em massa, aos quais ele denomina mas s-media 1, principalmente a influência desempenhada pela televisão, pois acredita que este process o representa uma manifestação social. Assim, a própria sociedade seria a geradora do espaço necessário 1 De a c or d o c om S od r é ( 1 9 8 7) , M a ss é u m a pa la vr a de or i ge m la ti n a , q ue si gn if ic a “ ma ss a”, e m e di a é o pl ur a l da pal a v ra la ti n a m ed i um , “ me i o”. 186 para a mídia manifestar sua influência. A este poder de manipulação da realidade elaborado pela televisão, o autor confere a denominação de “telerrealidade ” : A ela b or aç ã o d a ca te g or ia te l e rre a li d a d e n ã o d e c or r e de n e n h u ma p os iç ã o pa r a n ói d e q ua n t o à i n fl uê n ci a d os m ei os d e i nf or ma çã o n a s oc ie da d e c on te m p or â nea , p or q ue nã o se tr ata de c ol oc a r de u m l a d o o m e di u m ( tel e vi sã o, jor n a l e tc. ) c om o u m p ól o ma n i p u l at i v o, e d o ou t r o a soc i e da d e c o m o l u gar d o a c on te c i me nt o e f et i va men t e h ist ór i c o. Tr a ta - se , si m, d e a val ia r a i nt e gr aç ã o, u ni f ic a çã o e vi nc u l aç ã o da s o r ga n iz aç õe s i nf or ma t i va s ( da s te lec omu n i c a çõ es a o m as s- me di a ), a ssi m c om o a pe r m ea b il i da de da s var ia d as i n sti t u i ç õe s so c ia i s às f or ma s g er a da s p el a m od e r na i n f or maç ã o ( SOD RÉ , 1 9 8 7, p . 4 1) . No caso específico da influência midiática na política, nota-se que a manifestação de ideologias é uma constante nos discursos políticos transmitidos pelos meios de comunicação em massa, sendo que essa presença pode se dar de forma inconsciente, tanto para os receptores da mensagem quanto para seus transmiss ores. Entretanto, antes que se faça uma análise das razões para este fenômeno, é necessário uma maior compreensão do histórico do termo “ideologia”, o que é relatado na sequência. Histórico do Termo “Ideologia” Em síntese, a ideologia possui como f unção caracterizar como natural o que é produzido social e historicamente por um grupo específico de cidadãos, para justificar uma dada realidade social. Porém, a princípio, este termo era compreendido de uma maneira totalmente contrária ao sentido que hoje possui. O termo “ideologia” surgiu em 1801, na França, criado por Destutt de Tracy, juntamente com os pensadores De Gérando, Volney, Garat, Daunou e o médico Cabanis, e apareceu relatado pela primeira vez em um livro de autoria de Tracy chamado Eléments d’Idéologie. Inicialmente, o termo referia-se à tentativa de sistematizar uma ciência da origem das ideias, partindo da hipótese de que eram fenômenos naturais, e que nasciam da interação entre as sensações e a percepção humana em relação ao Meio Ambiente. 187 Estes pensadores passaram a ser conhecidos como “ideólogos” a partir de 1796 e eram antiteológicos, antimetafísicos e antimonárquicos, ou seja, repudiavam qualquer explicação sobre a origem dos acontecimentos que não fosse explicável a partir de fenômenos naturais e observáveis pelo próprio ser humano. Em realidade, os ideólogos eram materialistas, o que significa que apenas aceitavam conhecimentos científicos experimentais, baseados na observação, análise e síntese de um determinado fato. O c on ce it o de i de ol o gi a f oi c r ia d o p or De st t ut de Tr ac y, f i l ó sof o f r a ncê s, n o f i nal d o s éc u l o X V I I I. T ra c y t i n ha c om o p r e ss u p ost o q u e a s i d é ia s n ã o p od e ri a m se r c omp r e e n d i da s c o m o se p oss u í sse m vi da pr ó pr ia . Se g u n d o e le, a i de ol o gi a de ve ri a se r c o mp r ee n d i da c omo “ c i ê nci a d as i d é i a s”, a s se mel ha n d o- se à s ciê nc ia s n a t ur a is ( TO MA Z I e t a l , 2 0 0 0, p. 1 8 0) . Durante o “Golpe de 18 Brumário” 2, os ideólogos franceses aliaram-se a Napoleão Bonaparte, pois julgaram que Bonaparte manterse-ia adepto ao liberalismo 3, e que daria prosseguimento à modificação social que vinha sendo instaurada desde a Revolução Francesa 4. No entanto, ao alcançar o poder, Bonaparte governou de forma muito semelhante à antiga monarquia, o que os ideólogos não aceitaram. Desta forma, os ideólogos franceses voltaram-se contra Bonaparte e passaram a pertencer ao partido da oposição. O sentido negativo do termo “ideologia” data desta época, pois Bonaparte, em um discurso ao Congresso de Estado em 1812, rechaçou a ideologia como ciência. Chauí (2001, p.27) transcreve o discurso de Bonaparte: “ T od a s a s d esgr a ça s q ue a fl i ge m n os sa be la Fr a nç a d e ve m ser a tr i b u íd a s à i de ol o gi a , es sa te ne br os a 2 Pa r a Ga x ot t e ( 1 9 6 2), de n omi n a - se “G ol p e d e 1 8 B r u m ár i o” o g ol p e d e E st a d o r e al iza d o p or N a p ol eã o B on a p ar te , c om o ob je t i v o d e t or n ar - se o di ri g e n te da Fr a nç a, e m 0 9 de n o ve m br o d e 1 7 9 9. 3 Se gu n d o Al v i m ( 1 9 5 5) , o “ l i b er al i s mo” é u m a c on c e pçã o ec on ô m i ca q u e d e ri va d a “ Es c ola Fi si oc r á t ic a” , de 1 7 5 0. A E sc ol a Fi si oc r át ic a se op u n h a a o e xce ssi v o p r ot e c i on i s mo d os pa í se s e m r e l açã o à ec on o mia , p oi s ac r e di ta va q u e i s t o oc a si on a va u m e ntr a ve a o f u nc i on a me n t o n at ur al d o c om é r ci o. O li be r a l i sm o sur g e a ssi m c om o o p o si çã o a o pr ote ci o n i sm o e c on ô mi c o, o n d e o Est a d o i nt er f er e d e ma si a d a me n te na e c on om i a. 4 De a c or d o c om Le f e b vr e ( 1 9 6 6 ) , a “ R e v ol u ç ã o Fr a nc e sa” , oc or r i d a e m 1 7 8 9, f oi u m c onf li t o e n tr e a ar i st oc r aci a e a mon a r q u ia , n o q ua l a ar i s t ocr a c i a a s su me o p od e r n a Fr a nç a. E s se f a t o i n ici o u u ma n o va e r a n o p aí s, o f e u d al is m o, q ua n d o a ar i st ocr ac ia se tr a n sf or ma e m b ur g ue si a e o p od e r t or n a- se de sc e ntr al i za d o, se n d o o s e n h or f e u d al a f i gu r a m ai s i n f l ue n te d o p er í od o, ju n ta me n te c om a Igr e j a. 188 me t af í sic a q u e, b usc a n d o c om s uti le za s as ca u sa s p r i me ir a s, q u e r f u n d ar sob r e sua s b as es a l e gi sl a çã o d os p o v o s, e m ve z d e a d a p t ar as l ei s a o c on h e c i m e n t o d o c or açã o h u ma n o e à s l iç õe s d a hi st ór ia ”. Assim sendo, foi a partir deste discurso de Bonaparte que o termo “ideologia” adquiriu um aspecto pejorativo, pois Bonaparte sugeriu que a ideologia se manifestava por meio da metafísica, doutrina filosófica que buscava a causa dos acontecimentos a partir de princípios não observáveis na natureza e não comprováveis cientificamente, o que na verdade era diametralmente oposto ao sentido primeiro do termo “ideologia”, cuja intenção era tornar-se um estudo sistemático e científico da gênese das ideias. A ideologia apenas voltou a possuir um sentido semelhante ao apresentado pelos ideólogos franceses com o filósofo, também francês, Auguste Comte, em seu livro Cours de Philos ophie Positive. Neste livro, porém, além do significado científico do termo, a ideologia também passa a ser vista como o conjunto de idéias de um determinado período histórico, e é nesta fase que se realiza a associação entre ideologia e história. Desta forma, nota-se que os processos ideológicos transformamse concomitantemente com as mudanças da sociedade, ou seja, ademais de ser um processo natural de interação entre o ser humano e seu meio, a ideologia é um processo mutável, dado que a sociedade se modifica ao longo do tempo. U ma t e ori a e x pr i me, p or mei o de i dé ia s, u m a r e al i da de s oc ia l e h i st ó r ica d ete r mi n a da , e o p en sa d or p o d e ou nã o e sta r c on s c ie n te d iss o. Q ua n d o s ab e q ue s ua s i de ia s e stã o e nr a i za da s na hi s t ór i a, p od e e s per ar q u e el a s a ju d e m a c om p r ee n der a r e a l i da d e on d e s ur gir a m. Q ua n d o, p or é m, nã o p e r ce b e a r a iz hi st ór i c a d e su a s i dé ia s e i ma gi n a q ue e la s se rã o ver da d e i ra s p ar a t od os os te m p os e t od os o s l u ga r e s, c or re o r isc o de e sta r , si mp l e sme n te , pr od u z i n d o u ma id e ol o gi a ( C HA UÍ , 2 0 0 1 , p . 1 3) Para o positivismo de Comte, a humanidade sofreria evoluções com o decorrer da história, e passaria por três fases distintas para alcançar a evolução máxima, a saber: a fase fetichista ou teológica, na qual os homens explicam o mundo através de ações divinas; a fase metafísica, na qual as explicações se dão por meio des ta doutrina 189 filosófica; e a fase positiva ou científica, em que a realidade é observada de forma imparcial e pelo prisma científico. Desta maneira, mesmo nas fases em que as explicações para os fenômenos não eram dadas pela ciência, havia a presença de ideologias, entendidas assim como teorias criadas por pensadores de determinadas épocas para justificar a realidade, sendo que estas explicações não poderiam ser consideradas falsas, pois eram pensadas de acordo com os conhecimentos da época, os quais evoluíram juntamente com as transformações pelas quais passou a humanidade. Em relação ao termo “ideologia” empregado por Comte e pelo positivismo, Chauí (2001, p.28) assim o define: O t er mo , a g or a , p os su i d oi s si gn i fi c a d os : p or u m l a d o, a i d e ol o gi a c on ti n ua s e n d o a q u ela at i vi da d e f il osó f i c o- c i e nt íf ica q ue est u d a a f or ma ç ã o da s i d éi as a p ar tir da ob se r v a çã o d a s r el a ç õe s e ntr e o c or p o h u ma n o e o me i o a mb ie nt e, t om a n d o c o m o p on t o de pa r ti da a s se n sa ç õe s; p or ou tr o la d o, i d e ol o g i a pa ssa a s si gn i f i car t a mb é m o c on j u n t o de i dé ia s de u ma é p oc a , ta n t o c om o “ op i ni ã o ge ra l” q ua nt o n o s e nt i d o d e el a b or aç ã o t e ór ic a d o s pe n sa d or e s da é p oca . Já outro francês, o sociólogo Émile Durkheim, em seu livro Les Règles de la Méthode Sociologique, afirmou que também a sociologia deveria ser estudada como um processo científico, ou seja, que o fato social deveria ser estudado com um fato natural. Para que isso fosse possível, o sociólogo deveria observar um fato social de forma objetiva, sem se deixar influenciar por quaisquer estigmas pré-concebidos da realidade social, e deveria analisá-lo de uma maneira imparcial, como se ele próprio não estivesse inserido naquele contexto. Assim, como a ideologia tinha a pretensão de ser uma ciência que buscava identificar a gênese das idéias através da observação das sensações do homem em relação ao seu meio ambiente, Durkheim não acreditava que a ideologia seguisse o que ele próprio achava necessário para que uma análise científica fosse realizada, ou seja, a completa imparcialidade e total falta de subjetividade do pesquisador diante do seu objeto de estudo. P ar a o s oci ó l o g o c ie n t i sta , o i de ol ó gi c o é u m r e st o, u ma sob r a d e id e i as a nt i ga s, pr é- ci e nt í f i ca s. D ur kh e i m as c on si d e r a pr e c on ce i t os e pr é - n oç õ e s i n te ir a m e nt e s u b je ti va s , i n di vi d u a is, “ n oç õ e s v u l ga r e s” o u f a n ta sma s q ue o pe n sa d or a c ol he p or q u e f az em p a r te 190 d e t od a a tr a di çã o so c ia l e m q ue e s tá i n ser i d o ( CH AU Í , 2 0 0 1 , p . 3 2) . No entanto, a utilização do termo “ideologia” em um contexto político deve-se aos alemães Karl Marx e Friedrich Engels, autores do livro “A Ideologia Alemã”. Para estes pensadores, a sociedade era dividida em dois grupos muito distintos: a burguesia, detentora da riqueza e dos meios de produção, e o proletariado, classe trabalhadora que naquela época, fins do século XIX, limitava-se às condições precárias de trabalho e de subsistência. Assim, estes pensadores passaram a lutar pela causa operária, o que resultou na criação do “marxismo”, corrente filosófica que posteriormente serviu como base teórica do “socialismo” 5. Para alcançar o socialismo, o proletariado deveria promover um golpe de Estado, assumindo temporariamente o poder. Durante este regime político, a nova sociedade deveria buscar o esfacelamento do Estado e de todas as instituições que, acreditavam Marx e Engels, apenas existem pela presença do Estado, como por exemplo, a Igreja e o Direito. Os meios de produção passariam a pertencer à coletividade, e a sociedade viveria, assim, em uma espécie de fraternidade. Depois de firmadas estas transformações de maneira plena, não haveria mais a necessidade da presença do Estado, e seria instaurado, então, o “comunismo” 6. As i d é ia s de Ma r x e E n ge l s r e p er c u tir a m d e u m a ma n e ir a mui t o f or t e, a p on t o d e o Mo vi m e n t o Op er ár i o n o f i nal d o s éc u l o pa s sad o ter - se dif u n d i d o ba st a nte e e x i gi d o t ra n sf or ma ç õe s m u it o r a d ic a i s na s oci e da d e. A t ra n sf or ma çã o mai s si gn if ic a t i va f oi a R e v ol u ç ã o R u s sa , o c or ri da e m 1 9 1 7 e l i der a da p or Lê n i n. Lê n in sa b i a c lar a me n te q ue, ta nt o os t ra b al h a d or e s, q u an t o os p a tr õe s, p os su í a m i dé i a s pr ó pr i as , e sp ec íf ica s ( MA R C ON D E S FI LH O, 1 9 9 7, p . 1 7) . Desta forma, para Marx e Engels, o confronto entre as duas classes sociais, burguesia e proletariado, ocorria principalmente no 5 P ar a S pi n de l ( 1 9 8 3) , o “ soc i al i s mo” é u m si st e ma p ol ít ic o e e c on ô m ic o q ue se p r op õ e a t or nar a soc i ed a de i gu a l i tá r ia, c om a e li mi na çã o de c la ss es s oc iai s e c ole ti vi za çã o d os me i os d e p r od u çã o. 6 Se gu n d o Sp i n d el ( 1 9 5 3) , o “c om u n i s m o” se r ia o ú lt i mo e s tá gi o d o de se n v ol vi me n t o d a soc i e da de , alc a nça d o a p ó s a c om p le ta m od if i ca çã o s oci al pr op os ta pe l o m ar xi sm o e r ea l i za da p el o r e gi me soc ial i sta . 191 campo das ideias. Neste sentido, estas classes sociais justificavam seu ponto de vista sobre a realidade social na intenção de fazer prevalecer seus interesses particulares e, devido a isto, o faziam de forma parcial. Como exemplo desta parcialidade, pode-se citar o fato de que o comunismo nunca foi realmente instaurado, pois quando o proletariado alcançou o poder, seus interesses transformaram-se, ou seja, já não era mais interessante para o proletariado deixar este estágio de poder no qual se encontrava, e consequentemente, seu discurso ideológico também se transformou. A Mídia como Manifestação de Ideologias O motivo pelo qual a manifestação de ideologias em um discurso político não é facilmente observável pelo expositor da mensagem e, ainda menos, por seus receptores, relaciona-se à característica central da ideologia, já mencionada anteriormente: tornar natural o que, na verdade, é produzido social e historicamente por um grupo específico de cidadãos, para justificar uma dada realidade social. Ou seja, partindo-se deste pressuposto, uma ideologia dificilmente é contestada, já que, ao menos a princípio, o “natural” não pode ser modificado pelo homem. Assim, a ideologia pode ser resumida como um conjunto de ideias que justificam, de maneira parcial, uma realidade produzida por um grupo que se utiliza dela para manter ou instaurar seus interesses particulares, sem que este processo seja, necessariamente, consciente. Em t od o di sc ur so há u ma li ga çã o e ntr e lí n gu a , h i st ór i a e i d e ol o gi a. A n ec e ssi da d e de se c om p r e en d e r a l i n gu a ge m c o m o u ma f or m aç ã o so c i oi d e ol ó gi c a i n d ic a q u e o di sc ur so é c o n str u í d o soc ia l me n te e q ue a i d e ol o gi a, f u nç ã o n ec e s sár ia e n t re l i n gu a ge m e m u n d o, n a t ur a li z a o q ue é pr o d uz i d o pe la hi s t ór i a a t r a vé s d e e f ei t os d e e vi d ê nci a q ue a p a ga m a m at er ia li da d e d o d i sc ur s o e c o nst r óe m t ra ns p a rê n ci a s, c om o se a l i n g u a ge m e a hi st ór i a n ã o tiv es sem s u a e s pe s sur a ( C E SÁ R I O ; N O LLI , 2 0 0 4, p . 3) . Desta forma, é importante compreender os conceitos de linguagem, discurso e, principalmente, de ideologia. Linguagem, em um sentido amplo, significa todo o sistema de símbolos que os indivíduos 192 utilizam para manter contato com “o outro”, ou seja, é tudo que se utiliza para que haja um entendimento do que se quer exprimir. Costuma-se dar um caráter de naturalidade também à linguagem, como se tudo o que existe já possuís se uma denominação inerente desde o início dos tempos. Contudo, a linguagem é uma criação social, ou seja, é uma convenção humana para dar sentido ao mundo. Pode ser verbal ou não verbal, e estas duas facetas da linguagem costumam se manifestar em unicidade, para que a linguagem não verbal auxilie a linguagem verbal a ser mais bem compreendida. O c on t at o c o m a l i n gu a ge m é tã o a nt i g o q ua nt o o t e mp o de u ma vi da . E , de sd e ce d o, ve m so b t a nt as f or m as q ue f r e q ü e nt e men t e acr e d i ta m os t om a r c ont a t o c om a s c oi sa s q ua n d o, d e f at o, t o ma m os c on t a t o c om os sí m b ol os. Mu it os e st u di os os já a ler tar a m p ar a e s sa i n cl i naç ã o a o se a tr i b u ir u m car á te r na t ur a l à r elaç ã o l i n gu a ge m / m u n d o. A i n d a q u e e ss e a l er t a n os su gi r a ( . .. ) q u e a c om p r e e ns ã o e n tr e a s pe s soa s n ã o se d á d e u m a ma n e ir a a u t om á ti c a, f r e q üe nt e me n t e pr a t ica mos a l i n gu a ge m c o m o se e la e st i ve ss e s u jei ta a u m a u t om a ti s mo de n at ur e z a bi ol ó gic a ( C OR RÊ A, 2 0 0 2, p . 1 4) . Já o discurso é um produto da linguagem, cuja principal característica é uma tendência a fazer com que o ouvinte se convença de que aquilo possui um sentido lógico. Um discurso possui uma grande carga de ideologia, seja a manifestação desta ideologia intencional ou não. A li n gu a ge m, e n q u a nt o di sc ur s o, nã o c on st i t u i u m u n i ver so de si gn os q ue se r v e a pe na s c om o i n str u me n t o de c om u n i c a çã o ou su p o r te d e p e n sa me nt o; a l i n gu a ge m e n q ua nt o d is c ur so é i n ter a çã o, é u m m od o d e pr od u çã o s oci a l ; e l a nã o é ne u tr a, i n oc e nt e ( n a me d i d a e m q u e e st á e n ga ja da n u ma i nt e nc i on a li da d e) e n e m n a t ur a l, p o r i ss o é o l u ga r pri vi le g ia d o da ma n i fe sta ç ã o da i de ol o g ia ( B RA N D Ã O, 1 9 9 7, p. 1 2) . Para um comunicador, e aqui se entende por “comunicador” também o político, é demasiado importante a utilização adequada da linguagem num dis curso, para que este possa alcançar seu objetivo último: a convicção, por parte dos receptores do que está sendo expresso, de que aquilo é condizente com a realidade. Em relação ao poder manipulador do discurso, Fiorin (1997, p.18) faz a seguinte análise: 193 Há n o di sc u r so, e nt ã o, o c a m p o da m a ni p u laç ã o c on sc ie n te e o da d et e r m i na ç ã o i n c on s ci e nt e . A si nt a xe d i sc ur s i va é o ca m p o d a m a ni p u la ç ã o c on sc i e n te . N e st e , o f a la nt e la n ça mã o de est ra t é gi as ar gu me nt at i v as e de o u t r os pr oc e di m e nt o s d a si n ta xe d i sc ur si va pa r a cr iar e f ei t os de se n ti d o de ve r d a de. O c a mp o da s d e ter m i na ç õe s i nc on sci e n te s é a se m â nti c a di sc ur si va , p o i s o c on ju n t o de e l e me n t os se m â nt ic os ha b it u a l me n te u sa d o n os di sc ur s os d e u ma da da é p oc a c o n st it u i a ma n e ir a de ve r o m u n d o de u ma da d a f o r m aç ã o s oc ia l. A manifestação implícita de ideologias é um fator determinante em um discurso político, pois transfere ao discurso um caráter verossímil, assim propiciando que a sociedade se sinta em uma posição de confiança em relação ao que está sendo exposto. Segundo Souza (1978, p.83), “(...) o termo “ideologia” é tomado por muitos filósofos e sociólogos no sentido comum de generalização, de simples persuasão, de ideal, de orientação de valores e até de poder, de domínio”. Nota-se, assim, a estreita afinidade entre a intenção dos discursos políticos e a capacidade da manifestação ideológica em auxiliar que esta intenção se torne realidade, já que a ideologia pode ser usada como um fator de manipulação e de manutenção do status quo. Em concordância com esta constatação, Ungaretti (2005, p.22) acredita que “a propaganda ideológica se caracteriza pela difusão de ideologias, ou conjunto de ideias, propagadas a fim de manipular o receptor do modo que interessa para a sociedade ou para determinado grupo”. Favaretto (2003) enfatiza também um outro tipo de discurso político, a propaganda política, no qual a figura do político não está necessariamente presente, porém a ideologia política é ressaltada de forma incisiva. A p r op a ga n da p ol í ti ca, q ue é b a sic a me n te u ma p r op a ga n d a de na t ur e z a i de ol ó gic a, é o ti p o de p r op a ga n d a e n c ar r e ga d a d e d ef i n ir u ma d et e r mi na d a i d e ol o gi a p o l í tic a, c om o i nt u it o de ma ni p u lar a opi ni ã o p ú b l ic a e a a t i t u de d e se u p ú b l ic o- al v o. Me c an i s mos p si c ol ó gi c os de f or m aç ã o d a op i n iã o sã o ut il i za d os d e m od o i n te n si v o pe la pr op a ga n d a p ol ít ic a . ( FA VA RE T TO , 2 0 0 3, p. 1 4) . Favaretto (2003) classifica ainda cinco tipos de propagandas políticas: 194 - A propaganda de doutrinação: nesta fase o político, ou partido, conquista a opinião pública por meio da difusão de sua ideologia. - A propaganda de agitação: explora as aspirações e reivindicações frustradas de um grupo social e se desenvolve de acordo com os interesses deste grupo. - A propaganda de integração: tem como finalidade unificar o comportamento da população, tentando criar uma identidade ideológica que garanta a legitimidade das ações do governo. - A propaganda de subversão: é realizada pela oposição, porém desprovida de argumentação séria, com a intenção apenas de destruir o político ou partido do governo atual. - A contrapropaganda: possui como função equilibrar, ou mesmo anular, os efeitos persuasivos de uma determinada propaganda política. Como forma de exemplificar a estreita relação entre mídia, discurso político e ideologia, no próximo tópico são relatadas duas situações da História onde esta relação foi amplamente ressaltada. Discursos Políticos e Ideologias Transmitidos pela Mídia O Nazismo e a Propaganda Política Subliminar: Para Ferrés (1998), o cinema foi o instrumento de manifestação ideológica predileto de Adolf Hitler. O autor transcreve um trecho do livro do Führer, Mein Kampff,no qual Hitler explicita sua opinião a respeito do assunto: “Aqui (referindo-se ao cinema) um homem precisa, inclusive, usar menos o seu cérebro (...). Aceitará a imagem com maior intensidade do que um artigo publicado pela imprensa”. Desta forma, pode-se observar que Hitler notou que o cinema, assim como a televisão, possui um fator muito importante no sentido de influenciar a opinião pública, que é o uso da imagem. Para Ferrés (1998, p.173), se em todos os âmbitos são evidentes conexões entre a informação e o poder, isso é ainda maior no caso da informação através da imagem. No dia 11 de março de 1933, criou-se na Alemanha o Ministério de Propaganda e Cultura Popular. O filósofo Joseph Goebbels , que desde a infância se interessava pela psicologia das massas, foi nomeado 195 ministro. Goebbels acreditava que não se devia fazer propaganda política explícita, mas sim que a propaganda política devia ser s ubliminar e por meio do entretenimento e, assim, iniciou-se a relação entre o nazismo 7 e o cinema. O principal filme em honra ao nazismo foi Triumph des Willens, “O Triunfo da Vontade”, criado para a comemoração do “Sexto Congresso do Partido Nacional-socialista”, ocorrido de 05 a 10 de setembro de 1934. O f i l me , c o n si d er a d o u m d oc u m e nt ár i o, p od e s er c on s i der a d o a pe na s par cia l me n t e c om o tal . A pr e p a r aç ã o d o c on gr e sso f oi f ei ta pe n s an d o e m q u e d e ver i a s e r fi l ma d o, de ma n eir a q u e a si m p le s re p r od u ç ã o d a r eal i da de se tr a n sf or ma s se e m u m es pe ta c u lar f i l me d e p r op a ga n da. Nã o é q ue a i ma ge m r e pr od u zi ss e f ie l me n te a r e al i da d e, é q ue a r eal i da de e ra ge r a da e m f u n ç ã o d o f at o d e q ue de ve r i a tr a n sf or mar - s e em i ma ge m, em f u nç ã o da s ua in te n c i on a li d a de pr op a g a n d í st ic a ( FE R R É S, 1 9 9 8, p . 1 9 3) . Observa-se, desta forma, uma característica intrinsecamente ideológica na preparação deste filme, o fato de se tentar manipular a realidade em benefício de uma causa, fazendo com que a suposta realidade justificasse esta causa. No ano de 1940, no intuito de ampliar o sentimento antissemita no povo alemão, Hitler ordenou a realização de um documentário cujo título era “O Judeu Eterno”, no qual eram mostrados judeus no gueto de Varsóvia. O documentário referia-se aos judeus de forma altamente pejorativa e os considerava como uma “raça parasitária” que deveria ser eliminada. Du ra nt e u m p e r í od o d e 1 3 me se s, o f i l me f oi mo n t a d o ma i s d e u ma d ú zia d e v eze s. F or a m f e it os c or te s, r e a l izar a mse mú lt i pl as ver sõe s d o te xt o . Ca da ve z ma i s e r a sa n gu i nár i o e a gr e ss i v o. O pr ó pr i o Hi t ler i n si sti u e m q ue o f i l me d e ve r ia ser a p a v or a n te, a t é o p on t o d e i nc l uir r at os. H a v ia tel e sp e c ta d or e s que de s m aia va m d ur a nt e a pr oje ç ã o ( FE R RÉ S, 1 9 9 8. p . 1 9 1) . O filme foi um fracasso total de público, pois a intenção de Hitler, que era tornar mais acirrado o ódio dos arianos contra os judeus, alcançou um fim completamente contrário ao intuído na criação do documentário, pois os alemães passaram até mesmo a se penalizarem da 7 De a c or d o c om Lu ka c s ( 1 9 8 0) , o ter m o “ n azi sm o” r ef er e- se à p ol ít ic a d ita t ori a l d o T er ce ir o Re ic h d a Ale m a n h a, ou Ter c e ir o I mp é r i o, i ns ta ur a d a p or Hi tl er , q u e pr e ga va o e x ter mí ni o d e ju de u s, ci ga n os e h om o ss e x ua i s, c om o f o r m a de m a nt e r p ur a a r aç a a r ia n a. 196 situação dos judeus. Favaretto (2003, p. 24) analisa o motivo de um fato como este haver ocorrido: O i n s ti nt o d e l ut a , e s ti mu l a d o p ela pr op a ga n d a , p od e se ma n if e s tar na s pe ss oa s de f o r m a n e ga ti va , e x te r i or iz a da pe l o me d o, de pr e ssã o, i ni b i ç ã o, ou d e f or ma p os i t i va , p or mei o da ex a l taç ã o e a gr ess i vi da de, o q u e p od e l e va r a o ê xt as e e t ir ar a pe ss oa de s i me sm a. E sse er a e e st a d o a m b í gu o q u e o p o v o ale mã o er a s u b me ti d o c om a pr op a ga n d a h it ler i st a: e xal ta d o e a o me s m o te m p o a n gu s ti ad o . Goebbels, para amenizar o efeito do referido documentário, no mesmo ano encomendou um outro filme anti-semita. Este não era um documentário, mas sim um filme de ficção, que foi desenvolvido de acordo com a idéia de Goebbels sobre propaganda política através de mensagens subliminares. A pr o t a g on i s ta se r ia Kr i st i na S od e r ba u m, o s í m b ol o se x ua l da é p oc a n a A le ma n h a . G oe b b el s or d en ou - l he q ue in ter pr et a sse o p a pe l d a her oí n a . O f i l me te v e o tí t u l o d e Ju d e S ü s s. Er a u m dr a ma a m bi e nt a d o n o séc ul o XVI I I . A es t ór ia gir a va e m t or n o d e u m ju d e u q ue se i nf i ltr a v a n a ar i st oc r át ic a s oc ie d a d e ale m ã de Wü rt t e mb e r g. Me di a nte u m a sér ie de a r t i ma n h as , o ju de u c on s e gu i a f a ze r c om q u e pr e n d e sse m o ma ri d o da m ul h er ar ia na , a q ue m pr e te n d i a se d uz ir . N o f i n al da es t ór ia, o ju d e u e ra e xe c ut a d o e m pr aç a p ú b lic a ( FE R RÉ S, 1 9 9 8, p . 1 9 1) . Este filme foi um sucesso de público, pois a sociedade alemã da época fez um paralelo entre Württemberg do século XVIII e a Alemanha nazista, e o sentimento antissemita aflorou-se ainda mais no povo ariano nesta ocasião. Esta experiência tornou evidente que as mensagens subliminares são mais bem assimiladas que as mensagens explícitas, como previa Goebbels. No final da Segunda Guerra Mundial 8, próximo da derrota nazista, Goebbels se dedicou à criação de outro filme, em 1944. Era um drama histórico que reproduzia a heroica resistência alemã à invasão de tropas napoleônicas, muito superiores numericamente. Go e b be ls t i n ha t a nt o i n t er e sse pe l o f i l me q u e or de n ou o r et or n o de 1 0 0. 0 0 0 s ol d ad os d o f r o n t par a q u e a tu a ss e m c om o ex tr a s. Se gu n d o Wi lf r e d V on O ve n, a ju d a n te de G oe b be l s, es te c on f ess ou q ue e r a m ai s i m p or ta n te q ue os s ol d a d os at ua sse m n a q uel e fi l me d o q u e l uta s se m n o fr o n t. U ma de m on st ra ç ã o a ma i s da ef ic ác i a d a est ra té gi a da pr op a ga n d a . 8 P ar a Is r ae lia n e N i k ol a e v ( 1 9 6 5) , a “ Se gu n d a G uer r a Mu n d ia l ”, oc or r i da de 1 9 3 9 a 1 9 4 4 , f oi u m c on f l i t o e nt r e paí se s c om pr e te n s õe s i m p er i al ista s, se n d o est es pa í se s d i vi d i d os e m d oi s bl oc o s: os p aí se s ca pi ta li st as e os p aí se s s oc ia l i st a s. 197 Ma s nã o de u ma pr o p a ga n d a r ac i on a l , as soc iat i va ( FE R R É S, 1 9 9 8, p . 1 9 2) . m as e m oc i on a l, A partir desta síntese da relação entre o nazismo e o cinema, torna-se clara a influência dos meios de comunicação em mass a perante a sociedade ao manifestarem ideologias, sobretudo se este processo for realizado de maneira subliminar. Esse tipo de mensagem chega aos cidadãos de maneira inconsciente, o que faz com que assimilem com mais facilidade o seu conteúdo, pois são atingidos por elas sem que anteriormente possam ter sustentado algum tipo de argumento contrário à ideologia transmitida. Nicolau Ceaucescu e o Discurso Ideológico Explícito: Um outro exemplo muito significativo de como os meios de comunicação em mas sa podem interferir no futuro político de um Estado, é o caso da trajetória do ditador socialista romeno Nicolau Ceaucescu, que assumiu o governo da Romênia entre 1967 e 1989. Durante os anos de 1970, os romenos encantavam-se com as séries e filmes americanos, que lhes mostravam uma realidade paradoxal ao que presenciavam na Romênia. A liberdade e o consumo eram os principais expoentes da diferença entre a sociedade capitalista, representada pelos Estados Unidos através dos programas televisivos, e a ditadura socialista na qual viviam os romenos. Segundo Ferrés (1998, p.195): P or me i o de s ta s sér i es, os r om e n os a pr e n de r a m a r ec on h e c er e a a mar u m es ti l o de vi d a mui t o dif e r ente d o se u. Q ua n d o P e ter Gi l m or e , o at or q ue pr ot a g on i z ou “ The On e d i n Li n e” e n tr e 1 9 7 1 e 1 9 8 0 , vi si t ou a R om ê n ia , f oi r ece b i d o c o m u m gr a n de f e r v or p o p u l a r . Em 1983, Ceaucescu decidiu quitar toda a dívida externa da Romênia e, por consequência deste fato, o país atravessou um período de dificuldades econômicas. Houve racionamentos de alimentos e de vestuário e a televisão reduziu sua emiss ão à apenas duas horas diárias. Os programas ocidentais foram eliminados da programação da televisão romena, e em subs tituição intensificou-se a propaganda política, os cantos de glória e poemas para Ceaucescu e sua ideologia. Ao visitar a Coréia do Norte, também sob a ditadura socialista, Ceaucescu aderiu ao 198 exemplo daquele país e transformou as duas horas diárias de emissão televisiva da Romênia num período de transmissão de discurso ideológico explícito. Nota-se, assim, a semelhança entre a crença de Ceaucescu e a de Hitler, no sentido de que ambos acreditavam que o discurso político, ou mesmo a propaganda política, deveriam ser explícitos e, algumas vezes, até agressivos. Entretanto Hitler, ao contrário de Ceaucescu, mudou de opinião ao ser convencido por Goebbels que as mensagens implícitas eram muito mais influentes sobre os cidadãos que as mensagens explícitas que, por vezes, até exerciam resultado inverso, como foi o caso do efeito que o documentário nazista “O Judeu Eterno” causou na população ariana na ocasião do seu período de exibição. Ce a uc e sc u t e nt ou a pe ne tr a çã o a tr a vé s d a p r o pa ga n d a , d o di sc ur so e x pl í c it o. E f r ac as sou . E n q u a nt o a s n ot íci as e a s sér ie s e str a n ge ir as l i ga v am - se a os i nt er e sse s d a p op u l açã o , a pr op a ga n d a de C ea u c e sc u pr o v oc ou r e jei ç ã o . Tu d o i ss o c on d ic i on a d o, é cla r o , pe la si t uaç ã o soc ia l, e c on ô m i ca e p ol ít ic a d o pa í s ( FE R RÉ S, 1 9 9 8, p . 1 9 6) . Os romenos começaram a instalar antenas parabólicas clandestinas em suas residências, que captavam programas de televisão búlgaros e, por meio destes programas, tomaram conhecimento da queda do “Muro de Berlim” 9, fato não revelado pelo governo romeno, pois representava o início do deterioramento do regime socialista. A queda do muro era almejada, principalmente, pelos habitantes da parte oriental de Berlim, que assim como os romenos, viviam sob a ditadura s ocialista. O povo romeno, após esse episódio, iniciou sua própria revolução, o que levou ao fuzilamento de Ceaucescu. A responsabilidade pela trajetória política de Ceaucesco ter sido ceifada da forma como foi relatada, deve-se, em grande parte, ao uso que o ditador tentou fazer do meio de comunicação em massa mais importante da contemporaneidade, a televisão, pois da mesma forma que este meio pode influenciar os cidadãos de maneira positiva diante de uma determinada situação, também pode causar o efeito contrário. 9 Se gu n d o Gr e gh i ( 2 0 0 2) , o “ Mu r o de B er l i m” f o i c on s tr u í d o pa r a q ue h o u ve sse u m a se pa ra çã o e nt r e a A le ma n ha Oc i de n ta l , ca p it al i st a, e a A le ma n h a Or ie n ta l, soc i al is ta. 199 Após esses dois relatos, torna-se clara a capacidade de influência que a mídia possui sobre a política, principalmente por ser a principal detentora das transmissões dos discursos políticos, o que significa que a mídia vem se firmando como um elemento de poder na sociedade. Considerações Finais Em suma, observa-se que a mídia age como um elemento fortemente massificador da população, principalmente no que concerne à política, visto que os políticos utilizam os meios de comunicação em massa para alcançar o maior número de indivíduos possível. Apesar de, a exemplo do que ocorre no B rasil, os meios de comunicação em massa freqüentemente pertencerem a instituições privadas, os políticos e a classe dominadora em geral usam estes canais para trans mitirem sua ideologia, na intenção de que, por meio de seu discurso, o status quo possa ser mantido. Desta maneira, o papel da mídia e dos meios de comunicação em massa não se constitui apenas como o de transmissores de informações, papel este que lhes é inerente, mas atuam também como potenciais agentes influenciadores no cenário político da atualidade. REFERÊNCIAS ALVIM, Décio F. História das Doutrinas Econômicas. São Paulo: Saraiva, 1955. BITTAR, Eduardo C. B. Doutrinas e Filosofias Políticas. 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Trabalho de Conclusão de Curso. Ribeirão Preto: Centro Universitário Moura Lacerda, 2005. 201 CONSUMO SUSTE NTÁVEL E MUDANÇA DE POST URA DOS CIDADÃOS. REFLE XÃO SOBRE AS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS DO INSTITUTO AKATU D a nie l a VI E GA S * D il m a D ut r a B o r ge s d e CA S TR O * * Resumo: O artigo objetiva incorporar na reflexão do consumo sustentável a questão ética na utilização de ferramentas como a educação, a lei e o marketing. Para tanto, leva-se em consideração o contexto histórico da questão ambiental, agravada pelo excesso de consumo, elevada a padrões insustentáveis à vida no planeta. Com base na retrospectiva histórica e na conceituação do consumo sustentável, procura-se compreender a mudança de comportamento em sua complexidade. A metodologia utilizada, além de fazer uma revisão da literatura sobre o tema, procura caracterizar nas campanhas do Instituto AKATU, suas contribuições para o processo de mobilização social, de modo a promover a conscientização e fazer frente aos efeitos negativos que o atual padrão de cons umo impõe ao Meio Ambiente, a sociedade e aos indivíduos. Palavras-chave: Consumo; Consumo sustentável; Problemas ambientais; postura ambiental; Instituto AKATU. SUSTAINABLE CONSUMPTION AND CHANGE IN CITIZENS’ ATTITUDE: CONSIDERATIONS ABOUT THE AKATU INSTITUTE ADVERTISEMENTS. Abstract: This paper aims to incorporate into the reflection about sustainable consumption the ethical issue regarding the use of tools such as education, law and marketing. To achieve this goal, the historical context of the environmental issue is considered, which is aggravated by over-consumption increased to unsustainable patterns of life on the planet. Based on historical retrospective and on conceptualization of sustainable consumption, this paper attempts to understand the change of behavior in its complexity. The methodology used in the campaigns of the AKATU Institute, besides reviewing the literature on the subject, characterizes the contributions to the process of social mobilization in order to promote awareness and tackles the negative effects that the current pattern of consumption imposes on the environment, society and individuals. Keywords: Consumption; Sustainable consumption; problems; Environmental attitude; AKATU Institute. Environmental * Me st r a n da e m Ge stã o S oci al, E d uc aç ã o e D ese n v ol vi m e nt o Loc al pe l o C e ntr o U ni v er sitá r i o U MA. E - ma i l : d a n iel a d v c@ y a h o o .c o m. b r ** Me str a n da e m Ge s tã o S oc ia l , E d uca çã o e De se n v ol vi m e n t o L oca l p e l o C e n tr o U ni v er sitá r i o U MA. E - ma i l : d il m a d u@ b ol. c om. b r 202 Introdução: O padrão de desenvolvimento da sociedade contemporânea caracteriza-se centralmente pela exploração excessiva e constante dos recursos naturais, pela geração maciça de resíduos e pela crescente exclusão social. Constata-se um impasse entre Meio Ambiente e desenvolvimento, ao não se estabelecerem patamares sustentáveis de produção e consumo. Somam-se a esses fatores o desperdício de energia e as agressões ao Meio Ambiente. Essa lógica da sociedade é insustentável devido aos próprios limites ambientais. De acordo com Mattar numa entrevista a André Trigueiro (2005, p. 26) “estamos consumindo 20% a mais do que a Terra consegue sustentar”. As consequências envolvem exaustão da capacidade de regeneração ambiental, diminuição da biodiversidade, problemas na saúde pública e um esgotamento natural de difícil reversão. Catástrofes ambientais podem ser observadas em todos os lugares do planeta, impactando a vida das pessoas da flora e da fauna. Algumas florestas cederam espaço para a criação de gado e para a agricultura; a exploração do petróleo contaminou terras, rios e mares e a extração de minério afetou, de forma irreversível, paisagens e espaços de sobrevivência. Os problemas relacionados com o aumento da população mundial envolvem discussões sobre a poluição e, até mesmo, debates sobre a falta de alimento no planeta. Outro agravante são os milhões de toneladas de lixo produzidos diariamente pelas cidades brasileiras. De acordo com dados do Compromisso Empresarial para Reciclagem (CEMPRE, 2008), associação sem fins lucrativos dedicada à promoção da reciclagem, a geração de lixo urbano no Brasil está em torno de 140,000 t/dia. Os aterros já não conseguem absorver tamanho volume de dejetos, fato que se agrava, sobretudo, pelo crescimento do consumo no Brasil. O manejo inadequado de resíduos sólidos gera desperdícios, constitui ameaça à saúde pública e agrava a degradação ambiental, comprometendo a qualidade de vida da sociedade. Pesquisa nacional do Instituto de Estudo da Religião (ISER) de 2008 revela que, embora as lideranças brasileiras entendam a relevância da temática ambiental, elas admitem que conhecem pouco sobre o 203 assunto, apesar da quantidade de informações que têm acesso. A pesquisa, que entrevistou 210 lideranças de setores da sociedade – mídia, Congresso Nacional, sociedade civil, organizações não governamentais, meio científico, setor privado e agências governamentais – também mostrou que, ao mesmo tempo em que essas lideranças consideram o problema muito importante para o seu s etor de atuação, podendo afetar políticas, consumo e negócios, não indica quem irá assumir os custos da sustentabilidade. A maioria absoluta dos entrevistados remete ao governo a responsabilidade de iniciar um processo de engajamento dos demais setores, com definição de políticas públicas e, desta forma, assumir metas de redução de emissão de carbono, estabelecer uma política nacional do clima, agenda de preservação e prevenção da destruição da Amazônia, transição nas formas de produção e de consumo e política energética. Uma análise da questão no Brasil indica que um dos impasses existentes está no campo da conscientização e mobilização da sociedade em torno de soluções para minimizar os impactos ambientais. A solução terá que vir por ruptura e não por melhorias contínuas. O planeta está chegando aos seus limites e apresenta sinais diários de colapso. A reflexão sobre os problemas ambientais deve ampliar o enfoque para demostrar que a abrangência é mais ampla do que economizar energia elétrica, diminuir o consumo de água ou de combustível ou reciclar lixo. O conceito da sustentabilidade deve equilibrar, em igual importância, o economicamente viável, o socialmente justo e o ecologicamente correto. Os caminhos da s olução passam por inovações tecnológicas, transformação do processo de produção, reformulação educacional, mudanças de atitude, informação e comunicação, planejamento e ações que visem a melhorias tanto para o ambiente atual, quanto para as gerações futuras. Neste sentido, são objetivos deste trabalho: compreender o consumo sustentável no contexto da discussão atual, enfatizando a utilização da lei, da educação e do marketing como ferramentas que contribuem para a mudança de atitude dos cidadãos; contribuir para uma 204 reflexão a respeito do consumo, a partir da sua relação histórica com as questões ambientais. Metodologicamente, a apresentação deste trabalho foi equacionada em quatro momentos de abordagem: no primeiro, faz-se uma retrospectiva histórica para relacionar o excesso de consumo e as questões ambientais e, em seguida, conceituar consumo sustentável. No terceiro momento, enfatiza-se a questão da consciência ambiental e a mudança de postura e, por último, apresenta-se o estudo de caso o Instituto AKATU, especialmente suas campanhas publicitárias informativas e motivacionais, nas quais são tecidas as considerações finais sobre o tema proposto. Excesso de consumo, grave problema ambiental As décadas de 50 e 60 se caracterizaram por um impulso produtivo, estimulado pelos avanços tecnológicos. A agricultura e a extração de matérias-primas se transformam em atividades de escala industrial. Nessa época, os efeitos do processo produtivo sobre o Meio Ambiente e a saúde humana começam a se tornar evidentes. Salientaram-se os crescentes problemas atmosféricos dos grandes centros urbanos mundiais; a poluição dos rios pelos dejetos industriais, as manifestações de erosão e da perda de fertilidade do solo, o assoreamento dos rios, o comprometimento dos recursos hídricos, dentre outros, que representam uma variedade de indícios, consequências do modelo de desenvolvimento econômico adotado. Estes efeitos nocivos começaram a ser debatidos em fóruns mundiais e a se constituir em denúncias de pessoas e de organizações. Raquel Carson (1965), jornalista americana, descreve em seu livro Primavera Silencios a, o descuido e a irresponsabilidade do setor produtivo, levando a público o problema dos pesticidas na agricultura e chamando a atenção para o desaparecimento de espécies. Este livro tornou-se um clássico do ambientalismo, pois provou cientificamente, pela primeira vez, os efeitos negativos da ação desordenada do homem sobre o Meio Ambiente. 205 A década de 70 é marcada também por avanços na conceituação de Educação Ambiental (EA), inicialmente definida pela International Union for the Conservation of Nature (IUCN), citada por Dias (2004, p. 98) como processo de reconhecimento de valores e “desenvolvimento de habilidades e atitudes necessárias à compreensão e apreciação das interrelações entre o homem, a cultura e o seu entorno biofísico”. Em seguida, a Conferência de Tbilisi, em 1977, incorpora uma nova dimensão do conceito de EA, associando-o à prática, enfatizando o enfoque interdisciplinar, a participação ativa e a responsabilidade de cada indivíduo e da coletividade. Essas preocupações desencadearam a realização de dois eventos de repercussão mundial na década de 70: o Relatório do Clube de Roma e a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente em Estocolmo, Suécia. Este último, em 1972, foi de larga importância para o surgimento das políticas de gerenciamento ambiental no mundo todo, no sentido de amenizar o impacto da industrialização sobre o ambiente natural. “A Conferência reconheceu o desenvolvimento da educação ambiental como elemento crítico no combate à crise ambiental que se descortinava, recomendando a discussão pública, o treinamento de professores e o desenvolvimento de novos recursos e métodos.” (INSTITUTO AKATU, 2002). Este encontro gerou controvérsias, uma vez que os países industrializados foram acusados de querer limitar os programas dos países em desenvolvimento, usando como desculpa a poluição. Logo em seguida, a discussão se realiza em Belgrado, sobre as disparidades entre os países do Norte e do Sul e sua crescente perda da qualidade de vida. Manifestaram, por meio de uma carta, “a necessidade do exercício de uma nova ética global, que se preocupas se com a erradicação da pobreza, da fome, do analfabetismo, da poluição e da dominação e exploração humana.” (Dias, 2004, p. 80) Após alcançar o campo político, o discurso ecológico atingiu o meio empresarial, cujo impulso foi o processo de reestruturação do capitalismo, que se renovou com a globalização. A crítica ao 206 consumismo cresceu e tornou-se urgente a preservação para o atendimento das necessidades humanas. Em 1972, o Clube de Roma divulgou o relatório “Os Limites do Crescimento” apontando a limitação dos padrões de desenvolvimento econômico, partindo de cinco fatores: o alto crescimento demográfico, a mecanização da agricultura, a finitude dos recursos da natureza, o aumento da produção industrial e a poluição gerada por cada um desses processos. A racionalidade ecológica, todavia, negava a racionalidade econômica do capitalismo. Desta forma, evidenciava-se a denúncia ao crescimento material da sociedade, que se tornava mais rica e poderosa, sem levar em conta o custo final desse crescimento. Como consequência desses fatos, iniciou-se a mudança no padrão de produção com o investimento em tecnologias limpas – substituição de sistemas de energia e de matérias-primas, reduzir o desperdício da produção. Mas era necessário incentivar a demanda pelas tecnologias ecológicas, o que se traduziu no chamado “consumo verde”, ou seja, valorização, por parte do consumidor, de produtos e serviços cuja produção e distribuição não afetam o Meio Ambiente. A questão principal, a finitude dos recursos naturais, não tinha a devida consideração: houve apenas um adiamento das consequências dos excessos de produção e consumo. Diante desse cenário, na década de 90, várias discussões internacionais foram propostas em busca de uma solução para resolver os constrangimentos ambientais. A Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, ficou conhecida pos seus objetivos de promoção do desenvolvimento sustentável e da eliminação da pobreza nos países em desenvolvimento. Reforçou a necessidade de concentração de esforços para erradicar o analfabetismo ambiental e melhorar a capacitação de recursos humanos para a área. Com a participação de lideranças empresariais e religiosas, movimentos sociais e organizações não governamentais para discutirem alternativas para a questão ambiental, a Rio-92 teve o mérito de gerar a Agenda 21, um documento contendo os compromissos para mudança do padrão de desenvolvimento. 207 Ao considerar o processo de globalização, duas questões passaram a merecer a preocupação dos cientistas mundiais: uma está direcionada à capacidade de suporte da terra e, a outra, à viabilidade biológica da espécie humana. Os padrões de consumo socializaram-se no mundo todo, de modo que as mesmas categorias de recursos são exploradas, sem observância da sua capacidade de regeneração. De outro lado, é crescente a perda da diversidade cultural, pois se diluem as fronteiras, encurtam-se as distâncias, disseminam-se conteúdos, modos de vida, formas de lazer originariamente da cultura americana, que é projetada no mundo todo. Estabelecida essa condição na forma de pensar e agir das pess oas, firmase o poder de pressão de consumo sobre os recursos naturais, causando estresse no planeta. Contra essa realidade, a sensibilização das pessoas ainda é incipiente e a emergência é um fato. Na previsão de Kennedy (1993) apud Dias (2004) estas mudanças são tão complexas que exigirão reeducação da humanidade, o que significa desenvolver uma sociedade humana sustentada com novos valores. A partir de 1995, a ONU passou a defender oficialmente a ideia do Consumo Sustentável, determinando mudanças no sistema produtivo. O conceito de “consumo verde” é substituído por uma definição do consumo orientada pelos eixos: social, ambiental e ético. Na primeira perspectiva, questionam-se as desigualdades sociais, defendendo um padrão de consumo que atenda às necessidades básicas de todos, sem causar dano ecológico. Na esfera ambiental, o ciclo de vida do produto é repensado, desde a definição das matérias-primas até o processo do descarte. A questão ética vislumbra a preocupação com as gerações futuras. Consumo sustentável A demanda global por recursos naturais se origina de uma estrutura econômica cuja base é a produção e o consumo em largas escalas. Essa lógica da sociedade de consumo, criada a partir da Revolução subsistência, Industrial, centrada substitui no a organização atendimento das da sociedade necessidades vitais. de O 208 produtivismo e o consumismo desenfreados, porém, são insustentáveis devido aos próprios limites ambientais. De acordo com Dias (2008), foi a partir da década de 90 que a percepção do impacto ambiental dos altos padrões de consumo se intensificou, gerando um realinhamento do pensamento ambientalista. Segundo Fátima Portillo (2005, p. 26), a redefinição se deu “através de um segundo deslocamento, desta vez de uma preocupação com os “problemas ambientais relacionados à produção” para uma preocupação com os “problemas ambientais relacionados ao consumo”. No entanto, para se obter o desenvolvimento sustentável do planeta é preciso introduzir mudanças nos padrões de produção e também de consumo. O consumo sustentável identifica soluções possíveis para desequilíbrios sociais e ambientais por meio de uma postura mais consciente e responsável dos indivíduos. Ele está relacionado à produção e distribuição, utilização e rejeição de produtos e serviços, e apresenta uma nova forma de pensar a vida. Seu objetivo é garantir que as necessidades da sociedade sejam atingidas, evitando o consumo perdulário e contribuindo para a proteção do Meio Ambiente. O conceito de consumo sustentável deriva do termo desenvolvimento sustentável, construído a partir da Agenda 21, na Rio92 (DIAS, 2008). Esse documento contempla um capítulo inteiro sobre as “Mudanças dos padrões de consumo”, definindo as bases para a construção de padrões mais sustentáveis de consumo, propondo como objetivo: a) P r omo ve r pa dr õe s de c on su m o e pr od uç ã o q ue r ed u za m as p re ss õ es a mb ie nt ai s e at e n de m à s nec e ss i da de s bá s ica s da h u ma n i da de ; b) De se n v ol ver u ma me l h or c om p r ee n sã o d o pa p el d o c on su m o e da f or ma de s e i mp le m e nt ar pa dr õe s d e c on s u mo ma i s sus te nt á ve is . ( O N U 2 0 0 3 i n D I A S, 2 0 0 8, p . 3 7) De acordo com o Guia de Formação para o Consumo Sustentável elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), o conceito de consumo sustentável é complexo, mas a maior parte das definições apresenta características comuns como: 209 sa t i sf a z er as ne c e ssi da d es d o H o m e m ; f o r ne cer u ma b oa q ua li d a de d e v i d a at r a vé s d e n í vei s de vi d a de c e nt e s; pa rt il h ar os r ec ur s os e ntr e ri c os e p ob r e s; a t uar c om r esp e it o pe la s ger aç õ e s f ut ur as; c on s u m ir d e f or ma a te n ta, r e s pei ta n d o o i mp ac t o par a t od a a vi d a; m i ni miz a r a u ti liz açã o, de sp e r dí ci o e p ol ui çã o d os r ec ur s os . (UN ESCO, 2002). Para a ONU, “o consumo sustentável significa que as necessidades de bens e serviços das gerações presentes e futuras se satisfazem de tal modo que possam sustentar-se desde o ponto de vista econômico, social e ambiental” (ONU, 2003 in DIAS, 2008). Neste estudo, foi abordado o conceito de consumo sustentável, em detrimento de outros, como cons umo verde, ético ou consciente, por considerá-lo um termo mais amplo, que engloba inovações tecnológicas e mudanças nas opções individuais, enfatizando ações coletivas e mudanças políticas, econômicas e institucionais para contribuir com padrões de consumo mais sustentáveis. Consciência ambiental e mudança de postura Certos de que os atuais padrões de consumo representam um dos principais motivos da crise ambiental, os consumidores são os atores fundamentais para sua superação (DIAS, 2008). As sim, algumas reflexões em torno do tema se tornam oportunas. Antes de sair às compras, o consumidor deveria se perguntar: esse produto ou serviço é realmente necessário? É um produto econômico? Polui? É reciclável? Suas matérias-primas são retiradas do Meio-Ambiente sem agredi-lo? Ele é seguro? O produtor respeita os direitos dos trabalhadores? A empresa respeita os direitos do consumidor? A promoção do consumo com consciência de seu impacto e voltado à sustentabilidade não trata apenas da forma como se produz e consome, mas também de como os custos humanos e sociais são considerados. Consumir conscientemente engloba a promoção da justiça social, o respeito aos direitos humanos, sociais e econômicos. De acordo com o Instituto AKATU, 210 o c on s u m i d or c on s cie n t e b usc a o e q ui lí br i o e n t r e a s ua sa ti sf a çã o p es so a l e a su st e nta b il i da d e d o p la ne ta , le m br a n d o q ue a s ust e n ta b il i d a de i m p lic a e m u m mo d e l o a m b ie nt a l me n t e c or r et o, soc ia l me nt e ju st o e ec on om i c am e nt e vi á ve l. ( IN S T IT U TO AK A TU, 2 0 0 8) A prática do consumo consciente é uma escolha pelo protagonismo da própria existência. No Brasil, vários estudos indicam mudanças de atitude da população em torno das questões ambientais. Pesquisa divulgada em março de 2006 pelo Ministério do Meio Ambiente, em parceria com o Instituto de Estudos da Religião (ISER ) aponta que a conscientização do brasileiro em relação ao meio ambiente aumentou 30% nos últimos 15 anos (MENDES, 2006). De acordo com o estudo, o aumento da consciência, no entanto, não é acompanhado de um crescimento significativo das atitudes em prol do Meio Ambiente, sendo que o perfil do cidadão mais preocupado é ainda o de alta escolaridade e renda e morador de centros urbanos. O princípio utilizado para a questão do volume e descarte dos resíduos sólidos, os três Rs – reduzir (a quantidade de lixo), reutilizar (o produto, para não precisar descartá-lo) e reciclar (processar novamente o produto, após sua utilização) – passam por uma ampliação a partir da necessidade da conscientização ambiental. A discussão evoluiu para o estabelecimento dos 5Rs: repensar, recusar, reduzir, reutilizar e reciclar. A inserção do conceito “repensar” em primeiro lugar na cadeia eleva a conscientização a um novo patamar. É preciso repensar os modos de produção e as reais necessidades de consumo. Em segundo lugar, introduz-se o conceito de “recusar”, ou seja, antes de consumir, é necessário adotar uma postura diferenciada, recusando produtos descartáveis, optando por produtos reciclados. A partir dessas reflexões, é possível perceber que o alcance do consumo sus tentável está diretamente relacionado com uma mudança de postura na sociedade, com a adoção de atitudes ambientalmente éticas, que podem ser obtidas por meio da educação, do marketing ou por instrumentos legais. Segundo Rothschild (2002, p.42) , “A educação é o conjunto das mensagens que tentam informar e/ou persuadir um público-alvo a se 211 comportar voluntariamente de determinada maneira. Essas mensagens não fornecem, por si só, recompensa ou punição de forma imediata e/ou direta”. Para o autor, conscientizar por meio da educação é admissível, quando as externalidades são baixas. P ode m s er vi st as c o m o a tit u d e s an ti é t ica s e i nef i ca ze s s e as e x ter n al i da de s r e s u l ta nt e s f or e m a lt a s. E m úl ti m o ca s o, u ma a d m i ni s tr aç ã o m a i s r í gi d a p od e se r exi gi d a. Se as su m ir mos q u e a ma i o r ia da s pe s s oa s é r aci o na l e a ge e m be n ef í c i o p r ó pr i o e m r ela ç ã o à ma i or p ar t e d as q ue st õe s na ma i or pa r te d o te m p o, a í p od e se r di f íc il mod i f ic ar a ma i or i a d os c om p or t a me n t os e x i ste nt es , uma ve z q ue t ai s c om p or ta m e nt os re f l e te m e sc ol h a s e m b e ne f íc i o pr ó pr i o f e it as an te r i or me n te e de ma ne ir a r ac i on a l . ( R ot h sc hi l d, 2 0 0 2 , p. 4 2) . Como resultado, a educação pode não ser totalmente capaz de conduzir uma mudança de postura significativa. Nesses casos, segundo o autor, a gestão comportamental pode necessitar mais da lei e do marketing. A lei “refere-se à utilização da coerção para forçar o comportamento desejado (...) ou à ameaça da utilização de uma punição para desencorajar comportamentos inadequados (por exemplo, multas pelo despejo de lixo em local indevido)” (ROTHSCHILD, 2002, p. 35). De outro modo, a lei favorece, ainda, soluções de marketing para aumento ou diminuição de transações comerciais, utilizando-se, respectivamente, os subsídios de preços ou os impostos. Entretanto, a lei é oportuna, quando os efeitos das externalidades forem altos. Do contrário, pode ser considerado antiético suprimir as liberdades e direitos dos indivíduos. “Se o livre-arbítrio estiver conjugado com um mínimo de coerção, então devemos resistir à utilização da lei, uma vez que ela restringe a liberdade. (ROTHSCHILD, 2002, p. 43). Como resultado, a administração da conduta vai depender do marketing e da educação. O marketing “diz respeito ao conjunto de tentativas de administrar o comportamento humano mediante a oferta de incentivos de reforço positivos e/ou consequências para o Meio Ambiente” (DIAS, 2007). A relação entre ambiente favorável e postura adequada pode ser 212 desenvolvida explorando-se as vantagens comparativas de: produtos e serviços, custo-benefício e canais de distribuição (disponibilidade do produto ou serviço em cada lugar). Em m ui ta s c on d i ç õ es , o ma r ke ti n g of er e c e a m el h or c om b i na çã o d e e fi c ác i a , ef ic iê nc ia e ét i ca . O ma r ke ti n g ac om od a o u ti li tar is m o. De a c or d o c om os e c on o m ist a s, o b e m ma i or ac on t ec e q u a n d o t od os e sc ol h e m e m be n ef íc i o pr ó pr i o u m mer ca d o l i vr e f u n d a me nt a d o e m tr oca s. A som a d a s de ci s õe s i n di vi d u a i s p od e ger ar o b e m ma i or . ( R O TH SC HI LD, 2 0 0 2, p . 5 2) O marketing pode criar um ambiente de escolha que equilibre o interesse particular do indivíduo e as metas das empresas. Desta forma, ele não restringe o livre-arbítrio. Para Dias (2007), pode ser uma opção eticamente válida para induzir mudanças de atitude e adoção de novos valores para o cenário de sustentabilidade. Nesta concepção pode ser um aliado importante, desde que leve em consideração não apenas o ciclo de vida do produto, mas também as consequências de sua utilização para o meio ambiente. Assim, as campanhas de incentivo ao consumo devem pautar-se numa ética que considere um futuro sustentável. E, nesse sentido, os aspectos da comunicação ganham relevância, na consideração do seu poder de mobilização social que constitui a possibilidade de indução a novas condutas. Regina César citada por Kunsch (2007, p.36) confirma que a comunicação “problematiza a realidade dos movimentos sociais e da comunidade, a fim de torná-los partícipes de sua transformação”. Uma das múltiplas instâncias pelas quais o homem pode exercer o direito e o dever de participar da vida comunitária é a comunicação social (PERUZZO, 1998). Segundo a autora (1998, p.276), “dentro de toda uma dinâmica histórica, instituições, grupos e movimentos sociais das classes subalternas vêm constituindo um processo de auto- organização e de comunicação. (...) Sua meta é, em última instância, contribuir para a transformação da sociedade.” Para que a mobilização aconteça, são necessárias ações comunicacionais para sustentar e dar visibilidade aos movimentos sociais. 213 A m ob i l iz a çã o c on st i t ui - se a tr a vé s de u ma c on t í n ua f or m u laç ã o es tr a té gi c a de aç õ es de c om u n i ca ç ã o q ue s e ja m c a paz es de s u ste nt ar u ma l e gi ti mi da d e p ú bl ic a ( a tr a vé s da v i si bi l i d a de) , c om o t a mb é m de su st e nt a r ví nc u l os d e c onf ia n ça q ue m a nt ê m a c o op er aç ã o, q u e de pe n d e de um a c a pac i da de de r e a li m e n tar c on t i n ua me n te o de ba te p úbl ic o e r e f or ç ar os l a ç os de i de n t if i c açã o e d e per t en c i me nt o d os s u jei t os m ob i liz a d os . ( H EN R IQ UE S, 2 0 0 5, p . 1 2 ) O processo de mobilização social requer o compartilhamento de visões e informações, “o que envolve ações de comunicação em sentido amplo e é por intermédio do discurso que se veiculam os projetos políticos e as visões de futuro capazes de amalgamar uma pluralidade de indivíduos em uma vontade coletiva” (KUNSCH, 2007, p. 96). A motivação de uma conduta leva em consideração o desejo de se atingir um objetivo, desde que ele atenda aos interesses pessoais próprios e apresente um cenário favorável à mudança. Por fim, a atitude considera a capacitação de um indivíduo para resolução de problemas, para que ele esteja apto a romper com um hábito culturalmente arraigado ou contrapor-se aos argumentos da sua comunidade. Neste contexto, insere-se o exercício da cidadania, garantido pelo direito à informação e acesso às tecnologias de forma a viabilizar o desenvolvimento sustentável. Tornam-se estes os pilares de formação da nova consciência em nível planetário com vistas a uma visão multiescalar. A partir deste ponto, firma-se o propósito de uma relação sustentada entre ambiente e sociedade, cada vez mais focada na disseminação de conhecimentos e desenvolvimento de habilidades para mudar comportamentos e estilos de vida na busca pela sustentabilidade. A noção de cidadania contemporânea significa um processo de aprendizado social e de construção de novas formas de relações sociais e práticas políticas concretas. Canclini (1996) sugere um encontro consolidado do consumo e da cidadania, percebendo-os como práticas sociais que geram sentido de pertencimento. O mercado seria não somente um espaço de troca de mercadorias, mas parte de interações socioculturais mais complexas, pois o consumo não significaria apenas posse individual de objetos, mas apropriação coletiva. O autor estuda os impactos do aumento da participação popular por meio do consumo para 214 a cidadania, apontando para a possibilidade de formação de ‘consumidores-sujeitos-cidadãos’, vivificando as oportunidades para a cidadania se fortalecer nas ações cotidianas, como as práticas de consumo (PORTILHO, 2005). Dessa questão surge a necessidade de se pensar nos instrumentos de comunicação como elementos para contribuir com a produção de novos fazeres e sentidos, entendendo sentido como uma construção social, um empreendimento coletivo e interativo, para promover a mobilização e a participação popular. Como afirmam Henriques e Braga (2000), a mobilização social é um processo que se constrói por meio da intervenção da comunicação, que estabelece fluxos para criação da coresponsabilidade dos cidadãos com as causas sociais. Nesse contexto, a comunicação social não buscaria somente convocar os indivíduos e despertar a adesão, mas suscitar ações que se desdobrariam em outras, mais participativas, solidárias e políticas. O desafio, portanto, não é apenas comunicar para espectadores passivos, mas educá-los para a construção de novos sentidos, transformando os indivíduos em atores, sujeitos e cidadãos. Cenário de análise: campanhas publicitárias do Instituto Akatu O Instituto AKATU é uma organização não governamental que foi criada com a finalidade de educar e mobilizar a sociedade para o consumo consciente. A palavra AKATU vem do tupi e significa ao mesmo tempo, ‘semente boa’ e ‘mundo melhor’, traduzindo a ideia de que o mundo melhor está contido nas ações de cada indivíduo. No intuito de conscientizar e mobilizar o cidadão brasileiro para o seu papel protagonista, enquanto consumidor, na sustentabilidade da vida no planeta, o Instituto utiliza de várias ferramentas. Uma delas, presente em seu site, são as campanhas publicitárias. O conjunto de peças publicitárias, veiculadas na TV, rádio, internet, outdoor, jornais e revistas, identificado como “Movimento CUIDE”, objetiva disseminar o conceito e estimular a prática do consumidor consciente, mostrando o ato do consumo como um ato de cidadania. O seu lançamento na edição de verão 2004/2005 no evento 215 São Paulo Fashion Week, teve a venda de sacolas (“ecobags”) como peças-símbolo do movimento. A campanha desenvolve vários temas como: uso racional da água e dos alimentos, maneira correta de descartar o lixo, responsabilidade social empresarial, a ilegalidade da pirataria, atitudes responsáveis e valores que transformam o mundo. Foram selecionados para estudo e reflexão aqueles anúncios que se diferenciam dos temas das campanhas mais comuns como uso da água e do lixo, presentes em outras produções midiáticas e que apresentam um apelo especial à dimensão afetiva e emocional, além da racional. O anúncio “FAVELA” desperta a consciência para o que está errado na sociedade, mas que comumente se acostuma a ver e a compreender no campo das coisas certas. Traz a foto de uma favela em posição invertida acompanhada do texto: “A falta de consciência não deixa você perceber que o mundo está de cabeça para baixo. Como essa foto.” Induz a repensar o olhar sobre a realidade, senti-la, no sentido de perceber além do óbvio. Ou seja, quantas coisas erradas fazem os consumidores e, de tanto fazê-las, não as percebem criticamente. A necessidade de mudança evidencia-se de modo provocante. Deste modo, faz-se mídia inteligente, que ensina a pensar. Outra peça, com o texto “Palavras ao vento”, utiliza os recursos das tecnologias digitais para dizer que o consumidor consciente, ao realizar uma compra, tem o poder de melhorar o mundo. A produção das imagens sensibiliza ao mostrar o nascimento de uma flor, de solo árido, cujas pétalas soltas codificam as palavras: mundo melhor, respeito, semente boa, equilíbrio, compartilhar, planeta, compra, vida, recursos naturais, consciente, consumo. Uma construção sensível de conceitos que relacionam a busca do equilíbrio entre a satisfação pessoal, a preservação do meio-ambiente e o bem-estar social. Ao anunciar “Cons uma sem limites o que vem do coração”, a mensagem transmitida vai além da consciência de comprar um produto ou serviço, escolher que tipo de empresa se quer na sociedade, assumir a responsabilidade de um consumidor cidadão, atento às ações e valores que preza. Mostra que há outra consciência: aquela que diz respeito a coisas boas, que tornam as pessoas felizes e melhores. Elas não são bens 216 que podem ser comprados e vendidos, relacionam-se a valores, atitudes, sensibilidades e emoções que não têm preço, mas valem muito. Estas podem ser consumidas exageradamente: o amor, a amizade, o carinho, a sensibilidade, a compaixão, a responsabilidade, a justiça e outras, pois têm um estoque inesgotável. Enquanto hoje a maior parte das campanhas apresenta uma inversão completa de valores que bombardeia o consumidor, com promessas de um futuro cheio de ‘sucesso e prazer’ de possuir bens materiais, trabalhos dessa natureza primam por estimular educativamente novas relações do homem com a natureza, o meio ambiente e a sociedade. É de fundamental importância reconhecer o valor educativo desta estratégia de grande alcance utilizada pelo Instituto, pois os diversos ambientes, informais e formais podem utilizar as peças pedagogicamente para sensibilização das pessoas. As campanhas são instrumentos dos quais o marketing se utiliza para informar, mobilizar e motivar as pessoas em torno de uma causa, a educação integra-se a ela com o objetivo de desenvolver a capacidade de raciocinar e argumentar sobre os valores, considerando sua dimensão afetiva e emocional, pois é por esta via que se alcança o sentimento de responsabilidade diante de situações que não afetam somente a pessoa, mas também os outros. Enfim, esse é o percurso capaz de mobilizar os recursos pessoais que dão sentido aos problemas, para que as pessoas sintam-se envolvidas neles. Este é o caminho da aprendizagem na construção de valores. Não basta defender no discurso alguns princípios do que é ser bom consumidor nos tempos atuais, é necessário que haja envolvimento afetivo e emocional para que as pessoas ajam de maneira coerente com o que pensam, e sejam, realmente, consumidores conscientes. A influência das campanhas poderia ser potencializada pela ação educativa nos espaços escolares, desenvolver uma visão crítica das mensagens e, por meio delas, aprender a identificar os problemas ambientais, perceber a interdependência dos fenômenos, eventos e ações mundiais, acreditar na força das ações cotidianas e no poder que cada um 217 tem para fazer mudanças e finalmente, empreender atos de cidadania, mobilizando a coletividade para fazer a diferença. Assim, o compromisso ético do marketing e da educação estaria se cumprindo. juntos para despertar nos cidadãos a consciência Caminhariam do seu poder transformador e da convivência harmônica na construção de uma cultura da sustentabilidade. REFERÊNCIAS CANC LINI, Nestor. G. Consumidores e cidadãos : conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. CAR SON, Rachel. Primavera Silenciosa. São Paulo: Melhoramentos, 1965. CAVALC ANTI, Marly (org. ). Gestão Social, Estratégias e Parcerias. 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