uploads/uploadsFCkEditor/File/Mercedes Sosa
Transcrição
uploads/uploadsFCkEditor/File/Mercedes Sosa
Um canto, uma voz que vive Por Raquel Moysés - jornalista 20.10.2009 - São poucos dias, mas já parece ter passado uma infinidade de tempo. Em qualquer lugar do mundo, em qualquer ângulo de terra Pachamama em que alguém a ama, continua viva uma voz e uns versos na memória:“Gracias a la vida, que me ha dado tanto ...” Frases escritas em textos de amor e dor celebram sua vida em páginas de jornais, muitos deles acompanhados de poemas saídos do peito em um repente. Humanos seres cantam a saudade inseparável daquela que reviverá a cada dia no canto poderoso, caudaloso e infinitamente belo que dela permanece como legado à humanidade. Mercedes Sosa era uma senhora, como afirmam na sua página oficial na internet a família e os amigos, ao anunciaram que ela “nos deixou a todos”. A grande artista da música popular latino-americana em 74 anos de existência percorreu o mundo com sua voz e inumeráveis duetos com amigos músicos, com os quais compartilhou uma generosa vida de arte e militância pela vida. Seu canto, como dizem seus amados mais íntimos em nota pública, levou sempre uma profunda mensagem de compromisso com o humano através da música de raiz nativa, sem qualquer preconceito de somar outras vertentes e expressões do universo musical. Por essa generosidade sem fronteiras, deixa ao mundo uma herança de beleza, registrada em um imenso patrimônio de gravações. “A vida me escolheu para cantar”, ela se definia. E o que fazia Mercedes feliz era próprio viver a cantar. E, com certeza, como lembram familiares e amigos, ela queria ainda oferecer seu coração a todos, num derradeiro acalanto para ninar aqueles que dela ficaram em terra orfã. Uma história de plenitude Haydé Mercedes Sosa, nascida dia 9 de Julio de 1935 na cidade de San Miguel de Tucumán, despontou para o mundo da música oculta pelo pseudônimo de Gladys Osorio, ao participar, em outubro de 1950, menina de 15 anos, de um concurso de rádio de sua província natal. Foi se apresentar ali, na rádio LV12 de Tucumán, graças ao estímulo de amigas inseparáveis. A beleza de sua voz se sobressaiu e o prêmio veio como um contrato de dois meses para cantar na emissora. É o princípio de uma vida artística feita de plenitude... Uma década mais tarde, quando ganhava espaço um certo tipo de música folclórica de extrato consumista, a voz de Mercedes se erguia comprometida com o canto popular dentro do “Movimiento del Nuevo Cancionero”, uma corrente surgida na província de Mendoza que propunha deixar de lado modas passageiras e trazer ao cenário a vida cotidiana do povo argentino. O primeiro disco, “Canciones com fundamento”, saiu com selo independente. Por escolher essa estrada secundária, o reconhecimento só veio no Festival Nacional de Folclore de Cosquín, em 1965, ano em que também grava "Romance de la muerte de Juan Lavalle", de Ernesto Sábato e Eduardo Falú. Em março de 1966 vem a público "Yo no canto por cantar", com uma dúzia de canções hoje antológicas. Tal foi a aceitação que, no mesmo ano, é convidada a gravar “Hermano". “La Negra” canta sua gente Em 1967, "La Negra", como passa a ser chamada Mercedes, graças à tez morena e longos negros cabelos, dá a conhecer "Para cantarle a mi gente", importante caudal de poesia argentina e latino-americana. Nesse mesmo ano, sua voz extravasa fronteiras de sua terra, sendo acolhida por um público apaixonado em diversos países. Quando grava "Mujeres Argentinas", o país já vive o horror do regime militar e Mercedes, como muitos outros artistas, tem suas canções censuradas, não podem ser tocadas na Rádio Nacional. Mesmo assim em 1971 aparece "Homenaje a Violeta Parra", um disco que carrega a beleza dos versos da grande protagonista do Canto Popular Chileno. Seguem-se anos de vitalidade e expressão dos grandes temas da vida do povo, mas a o clima político assola cada vez mais em opressão, silenciando e desaparecendo militantes de todos os extratos e fazeres. “Mercedes Sosa" e "Traigo un pueblo en mi voz", aparecem em 1973, prenúncio de uma época difícil e violenta. Mas ela não renuncia aos temas de sua América e continua desvelando a dura realidade dos povos. Em 1975 edita "A que florezca mi pueblo" e, no ano seguinte, crucial para seu país, sai “Mercedes Sosa", trabalho em que recupera a voz de poetas argentinos e latino-americanos como os chilenos Víctor Jara e Pablo Neruda, a peruana Alicia Maguiña e o cubano Ignacio Villa, "Bola de Nieve". Ano seguinte, 1977, em que o país vive um clima político cada vez mais opressivo, "La Negra" interpreta Atahualpa Yupanqui, grande compositor e cantor popular argentino. Exilada pela violência Em 1979, a violência sacode o país, mas Mercedes segue cantando a vida e grava "Serenata para la tierra de uno". Nesse mesmo ano, é detida na cidade de La Plata junto com todo o público que assistia seu concerto. Hostilizada e perseguida em meio ao cerco de terror que se fecha, “La Negra” se vê obrigada a exilar-se. Ainda nesse ano parte para Paris e, em 1980, passa a viver em Madrid. Em tese, Mercedes Sosa podia entrar e sair do país, pois não respondia a processo judicial algum. O que era proibido era seu canto. Era impedida de cantar, e isso era uma punição insuportável para aquela que nascera para cantar. Na página de sua vida na internet, assim é narrado esse período de terror: “Foi um castigo duplo: para ela e para todos os argentinos. Em um país em que a vida humana não tinha valor algum, e centenas delas se perdiam na obscuridade das masmorras, os usurpadores do poder pensavam que a canção com conteúdo era perigosa. Por isso havia que calar os cantores, como uma maneira de silenciar a toda a gente.” Em fevereiro de 1982 “La Negra" regressa a uma Argentina em que o regime militar agoniza, mas ainda faz seu povo embarcar na desastrosa aventura da Guerra das Malvinas. Mercedes reencontra seu público de sempre, mas, pela primeira vez, é acolhida no palco por milhares de jovens. De 13 épicos recitais no Teatro Opera de Buenos Aires, sai o LP duplo "Mercedes Sosa en Argentina", ao lado de companheiros daquelas noites memoráveis: León Gieco, Charly García, Antonio Tarragó Ros, Rodolfo Mederos y Ariel Ramírez. Como um pássaro livre Ao final deste ciclo de concertos, retorna à Espanha, onde se radicara, voltando porém à sua América para apresentar o disco "Gente humilde" e para realizar una série de concertos no Brasil. Passado pouco tempo regressa definitivamente à Argentina e dá a conhecer ao mundo mais um de seus discos, "Como un pájaro libre". Continua então seus giros pelo planeta, canta em palcos de lugares prestigiosos, mas sempre retorna a seu ângulo de mundo, continuando a gravar alguns de seus grandes êxitos: "Un son para Portinari", "Maria Maria", “Inconciente colectivo", de Charly García, "La maza" e "Unicornio", de Silvio Rodríguez, "Corazón maldito", de Violeta Parra e "Me voy pa'l mollar", com Margarita Palacios. Em 1984, quando se vivia a euforia do dito regresso à democracia, Mercedes aparece com "¿Será posible el sur?", um misto de canções esperançosas, ritmos folclóricos e canto latino-americano. Naquele ano, em 21 de dezembro, junto con Milton Nascimento e León Gieco, protagoniza, em meio a uma multidão, o concerto "Corazón americano”. Ano seguinte, 1985, mais uma vez oferece seu braço a compositores argentinos com "Vengo a ofrecer mi corazón", em que grava canções transcendentais como a de Fito Paez, que da título ao trabalho, mas também "Razón de vivir" e "Madre de madres", de Víctor Heredia, "Entre a mi pago sin golpear", de Carlos Carabajal e Pablo Raúl Trullenque, "Canción para Carito", de Antonio Tarragó Ros e León Gieco. Em 1986 gira pela Alemanha e Europa Central, Estados Unidos, Brasil, Holanda, Grécia. Nesse ano se edita "Mercedes Sosa '86”, com convidados como o bandoneonista Leopoldo Federico e o grupo Markama. No ano seguinte sai "Mercedes Sosa '87" e em 1988 segue o ciclo "Los grandes en vivo", saindo "Amigos míos", un disco de Mercedes Sosa cantando com Milton Nascimento, Pablo Milanés, Teresa Parodi, Charly García, Fito Páez e Raimundo Fagner, entre outros. Sem fronteiras Como produtora, organiza um dos concertos mais importantes já apresentados na Argentina. "Sin Fronteras", que reúne no estádio Luna Park de Buenos Aires sete cantoras latino-americanas: as argentinas Teresa Parodi e Silvina Garré, a colombiana Leonor González Mina, aa venezuelana Lilia Vera, a brasileira Beth Carvalho e a mexicana Amparo Ochoa, além da própria Mercedes. De 1990 segue-se um período de intensa atividade entre aparições discográficas e atuações sozinha e acompanhada de músicos convidados, culminando, em 1991, com um grande concerto em estádio aberto em Ferro Carril Oeste, onde se encontra com companheiros inolvidáveis e uma multidão de 15 mil pessoas. Ano seguinte é declarada “Ciudadana Ilustre” da cidade de Buenos Aires. Em princípios de 1993 atravessa de novo os Andes para participar do Festival Internacional de Viña del Mar, publicando, ao fim deste ano, a compilação "Mercedes Sosa, 30 anos", com duas dezenas de temas gravados ao longo de anos. Em 1994 vem a público "Gestos de amor", que lhe traz o Disco de Platino. Nesse ano representa as vozes da Argentina e América no Concerto de Natal realizado no Vaticano, depois de ter sido solista, dias antes, da "Misa Criolla", em que se apresentou, com um coro grandioso de 600 almas, no imponente Anfiteatro Frank Romero Day, da cidade de Mendoza, com a presença de 30 mil espectadores. Seguem-se turnês, em países latino-americanos em 1995, e nesse mesmo ano é homenageada do ciclo "Maestros del Alma", um testemunho do afeto de músicos e de seu público. Canto generoso Em dezembro sai "Mercedes Sosa - Oro", que reúne 17 temas gravados entre 1969 e 1994. Em meio à imensa atividade, preconiza a união entre os do mundo da música e encontra tempo para gravar com companheiros como María Graña, Peteco Carabajal, Los Trovadores, Alejandro Dolina, Lito Vitale, Víctor Heredia y Eduardo Lagos. Dona de uma das vozes mais importantes do mundo, "La Negra” segue sua vida de dedicação total à música, gravando e girando as Américas e o mundo, sempre oferecendo o canto generoso em nome da vida e do companheirismo. Em 1996, de novo no Teatro Opera de Buenos Aires, canta temas de seu disco "Escondido en mi país", cinco concertos com casa cheia. Novo marco em 1977, depois de participar do XXXVII Festival Nacional de Folclore de Cosquín, levando como convidado a Charly García, e, depois de ir de novo ao Paraguai e ao Festival Nacional de Tonada, de Tunuyán, Mendoza, Mercedes fecha na capital argentina o ciclo "Buenos Aires Vivo", que contou com a presença de 120 mil espectadores. Em março de 1997 oferece sua voz ao "Rio + 5”, na condição de vicepresidente do Conselho da Terra com papel de contribuir para a redação da "Carta da Terra", um documento equivalente à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Defensora da vida Em meio a um mar de música, ao longo dos anos é agraciada com uma penca de distinções e premiações, entre elas a de “embaixadora da boa vontade”, representando a América Latina e o Caribe. Além de sua carreira plena de dignidade, lhe são também reconhecidos os grandes valores éticos e morais e o empenho em defender o valor da vida e dos direitos humanos. Depois de se recuperar de uma enfermidade, em 1998 apresenta o novo disco, "Al despertar”, um reencontro com canções de sua própria raiz folclórica. Retoma, em 1999, os intensos giros pelo mundo, alternados com apresentações na sua Argentina. No ano 2000, Mercedes finaliza um projeto que há muito acalentara: a interpretação e gravação da "Misa Criolla", obra máxima do folclore argentino, à qual oferece tudo de si mesma, numa versão de grande profundidade. Em 2001, depois de uma série de novos recitais no teatro Gran Rex, em Buenos Aires, grava novo disco duplo, que leva o mesmo nome do concerto "Acústico". São novas versões de canções inolvidáveis e clássicas de seu repertório, com o acompanhamento de sua banda. No final de 2002 acontece um dos encontros mais esperados, Mercedes Sosa, Víctor Heredia e León Gieco. Juntos eles iniciam o projeto artístico "Argentina quiere cantar", interrompido por causa de problemas de saúde de “La Negra”, mas reiniciado em 2003, com grandes expectativas. Seguem-se dois anos de afastamento por causa de adversidades médicas, mas em setembro de 2005, ei-la novamente nos palco para um ciclo de concertos na Casa de Gobierno da Argentina, diante de uma platéia de 150 pessoas, mas com uma audiência televisiva de um milhão de espectadores. Esse mesmo concerto abre o “Encuentro de Música de Províncias”, uma apresentação ao ar livre para um público de 8 mil pessoas. Coração livre Ainda em setembro Mercedes lança “Corazon Libre”, gravado pela Deutsche Grammophon, e apresentado simultaneamente em todo o mundo, com enfáticos comentários da crítica. Com esse trabalho chega pela primeira vez na sua carreira à China. Em meio a uma série de concertos, na cidade de Rosario participa da celebração do Dia do Trabalhador diante de 50 mil espectadores, além de se apresentar no 3° Encontro de Músicos Populares. Ainda em maio de 2006, canta durante ato nacional na Plaza de Mayo. E assim segue, com interpretações celebradas e com recordes de público de 500 mil espectadores em concertos ao vivo. Depois, em 2007, cumpre novamente larga caminhada em toda a América. A mesma energia a conduz em 2008, quando empreende nova trajetória pela Europa. Gracias a la vida E veio 2009... Dia 4 de outubro, mesmo data em que, no ano de 1917, nascera Violeta Parra, fundadora da música popular chilena, e cuja canção resta para sempre amalgamada à voz de “La Negra” e sua interpretação magistral desse universal poema cantado: “Gracias a la vida”... Por um átimo, muitos dos que se despediram de Mercedes no Salón de los Pasos Perdidos, no Congresso da nação argentina, sentiram-se desamparados, esmagados por uma orfandade recente. Suas cinzas foram espargidas nas cidades de Tucumán, Mendoza e Buenos Aires, mas o canto da mulher que nasceu para cantar, vive, e se levanta num acalanto de consolação para os que com ela viveram e sonharam. Para as gerações que virão, permanece o seu legado. Um legado que a amiga cantora Teresa Parodi proclama, em versos que respiram o sentimento de uma nação e de uma humanidade: “…Mercedes, salmo en los labios amorosa madre amada mujer de América herida tu canción nos pone alas y hace que la patria toda menudita y desolada no se muera todavía, no se muera porque siempre cantarás en nuestras almas…”
Documentos relacionados
Olhar sobre as metáforas cantadas por Mercedes Sosa e outros
de estudo em torno de letras de músicas e cantores censurados nas várias ditaduras ocorridas em meados e fins do século XX em países como Argentina, Brasil, Chile e Cuba, dentre outros. A riqueza d...
Leia mais