Untitled - Conheça os Nossos Autores

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Untitled - Conheça os Nossos Autores
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO
ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO
ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO
2013 São Paulo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
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São Paulo
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Rubia Carneiro Neves – Coordenadora.
Atuação empresarial no estado democrático de direito.
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ítulo independente.
São Paulo : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013.
ISBN 978-85-99651-79-7
1. Direito.
I. Título.
CDD 342
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Produção Editorial: Editora Clássica
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Séllos
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
Apresentação
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Este livro foi idealizado pelos Professores Roberto Correia da Silva Gomes
Caldas e Rubia Carneiro Neves que, a partir da coordenação do Grupo de Trabalho
“Atuação Empresarial no Estado Democrático de Direito” no XX Encontro Nacional
do CONPEDI realizado entre os dias 22 e 25 de junho de 2011, em Belo Horizonte/
MG, na Universidade FUMEC, perceberam o elevado nível das discussões ali
produzidas e decidiram ampliar o alcance daquelas ideias promovendo, dessa
maneira, o aprimoramento da ciência jurídica e o aperfeiçoamento do projeto
temático também vinculado à linha de pesquisa “Regulação e Autonomia Privada”
do Mestrado em Direito da Universidade FUMEC.
O Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito –
CONPEDI é uma associação de personalidade jurídica de direito privado e sem
fim econômico, fundamentalmente voltado para apoiar os estudos jurídicos e
o desenvolvimento da Pós-Graduação em Direito, nos termos praticados pelas
Instituições de Ensino Superior.
Os Grupos de Trabalho que acontecem nos Encontros e Congressos
promovidos pelo CONPEDI visam a criar, incentivar o intercâmbio e a
cooperação cultural de pesquisadores e professores de Direito, entre instituições
nacionais e internacionais, bem como colaborar para a interação dos diferentes
cursos de mestrado e doutorado em Direito, bem como para a transferência de
experiências entre pesquisadores e centros de pesquisas jurídicas.
A realização desses eventos tem proporcionado profícuo lavor de
hermenêutica jurídica que em muito contribui para o aprimoramento da Ciência
do Direito, produzindo novas reflexões doutrinárias aptas a contribuir para a
confecção normativa, bem como, orientar a sua aplicação (do Direito) pelos
Tribunais do País.
Tendo em vista que o projeto em tela investiga a dicotomia entre
a autonomia privada e a interferência do Estado Democrático de Direito na
criação, na interpretação e na aplicação das normas que regulam e estruturam as
corporações, bem como os institutos relacionados com a atuação empresarial,
agruparam-se os textos sob quatro temáticas neles predominantes, quais
sejam: I - Empresa e função social; II – Responsabilidade, Direito Societário e
Direito Penal; III - Negócios Jurídicos, atuação empresarial e a necessidade de
compatibilizar a autonomia da vontade e a intervenção estatal; e IV - Regulação
no mercado financeiro e demais setores.
Nesse contexto tão relevante em que nasce a presente obra, inclusive
como efluência dos tão enriquecedores debates ocorridos quando da exposição
dos estudos durante o Grupo de Trabalho “Atuação Empresarial no Estado
Democrático de Direito”, é de se registrar, os próprios coordenadores,
animados com a mesma excelência dos textos que afluíram em subseqüência
para a compilação, resolveram igualmente contribuir com a apresentação de um
lavor científico conjunto intitulado “Administração pública consensual: uma
nova tendência nos acordos de parceria para promover tecnologia e inovação”,
resultado da fusão interdisciplinar de trabalhos seus anteriores e isoladamente
publicados, os atualizando, revisando e ampliando consideravelmente.
O livro, daí, consubstancia-se em 16 (dezesseis) textos coordenados
em torno do tema “Atuação Empresarial no Estado Democrático de Direito”,
abordando o envolvimento do Direito Empresarial com outros ramos jurídicos,
dentre os quais evidenciam-se o Direito Administrativo, Constitucional, do
Consumidor, de Família e Sucessões, Falimentar, Penal e Trabalhista.
É de se consignar que a disposição dos estudos sob os quatro eixos
temáticos em que repartidos os capítulos, em si, não foi tarefa fácil, porquanto
os assuntos neles tratados, em verdade, se inter-relacionam de modo a não
comportarem uma separação estanque.
Desse modo, a divisão deu-se segundo os temas abordados com maior
ênfase, elegendo-se tal critério para o agrupamento realizado de forma a mais
cômoda possível.
Assim, no primeiro capítulo “Empresa e função social”, a abordagem
predominante é de cunho mais geral e com grande amplitude principiológicoconstitucional. Tem-se, com isso:
“A Proteção da Microempresa como Princípio Constitucional da Ordem
Econômica”, de Daniela Ramos Marinho, em que se analisa a possibilidade
de aplicação satisfatória da Lei Complementar nº 123, que instituiu o Estatuto
Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte;
“O Planejamento Sucessório como Instrumento de Alcance da Função
Social da Atividade Empresaria”, de Leonardo Barreto da Motta Messano, que
apresenta uma proposta de utilização da empresa familiar como um mecanismo
viabilizador de princípios constitucionais; e “Recuperação extrajudicial pelos
caminhos da mediação: a preservação da empresa com soluções dinâmicas”,
de Sávio Raniere Pereira Pinto e Renata Christiana Vieira Maia, pelo qual
se observa a possibilidade de realização da Recuperação Extrajudicial por
intermédio da Mediação.
No segundo capítulo “Responsabilidade, Direito Societário e Direito
Penal”, a empresa é analisada sob o viés interdisciplinar dos institutos da
despersonalização da pessoa jurídica e da responsabilidade. Verificam-se, pois:
“A Disregard of Legal Entity Doctrine Versus o Princípio da Preservação
da Sociedade Empresária”, de Deilton Ribeiro Brasil, a ter-se em que medida
a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada levando-se em
consideração o custo da sua implementação diante do princípio da função social da
sociedade empresária e da relevância da organização empresária para o mercado;
“Como o STJ e STF entendem a Responsabilidade Penal e Não Penal
dos Administradores de Sociedades Empresárias?”, de Marta Rodriguez de
Assis Machado e Viviane Muller Prado, possibilita compreender-se o regime
de distribuição de responsabilidade no Direito Brasileiro, sua aplicação pelos
Tribunais pátrios e como o princípio da individualização da responsabilidade
penal vem sendo absorvido como norte de atuação pelos os agentes econômicos
que ocupam cargos de direção nas sociedades empresárias;
e “A Crise da Limitação da Responsabilidade nas Sociedades Empresárias
Limitadas sob o Enfoque da Figura do Administrador”, de Sabrina Tôrres
Lage Peixoto de Melo, versa sobre a aleatória e injustificada mitigação da
personalidade das sociedades empresariais, com uma indevida responsabilização
dos seus sócios gerentes, fragilizando irritamente o instituto.
Já no terceiro capítulo “Negócios Jurídicos, Atuação Empresarial e
Compatibilização da Autonomia da Vontade com Intervenção Estatal”, a tônica
é a busca do equilíbrio entre a vontade empresarial e a intervenção do Estado
sob suas diferentes modalidades. Os trabalhos aí insertos são:
“A Simulação como Vício do Negócio Jurídico nos Contratos de
Sociedade”, de Gustavo Henrique de Almeida e Mário César Hamdan Gontijo,
que trata desse vício de consentimento enquanto invalidante do atuar empresarial,
como também das práticas correlatas que desvirtuam o contrato de sociedade
empresária, em desvio à sua finalidade e detrimento à sua função social;
“Acordos Trabalhistas Extrajudiciais: Uma Possibilidade de
Compatibilizar a Autonomia e a Intervenção Estatal”, de Marcelo Ivan Melek,
a seu turno, encara a conciliação extrajudicial como um válido instrumento para
a solução dos conflitos entre as empresas e seus empregados, estipulando os
limites à sua homologação no âmbito da Justiça do Trabalho, à luz do primado
da hipossuficiência e eventuais vícios de vontade.
“A Importância do Project Finance no Desenvolvimento das Empresas
Brasileiras”, de Isamara Seabra, observa sua origem, aspectos e as dificuldades
de sua implantação, salientando sua relevância para projetos que necessitem
elevados montantes de investimento sem garantias tradicionais.
“Controle da Publicidade de Produtos Derivados do Tabaco”, de Eric
Baracho Dore Fernandes e Fernando Gama de Miranda Netto, entende o tabaco
como uma epidemia a ser controlada a prol da saúde pública, mediante restrições
à sua publicidade direta e indireta, segundo políticas públicas que permitam
a sua verificação de forma válida, a proteção estatal dos consumidores e a
responsabilização das empresas pelos efeitos danosos de seus produtos.
“O Novel Estatuto da Igualdade Racial e Seus Impactos na Atividade
Empresarial: Efetividade ou Mera Retórica?”, de Felippe Abu-Jamra Corrêa,
traz o contexto das ações afirmativas no Brasil com o advento da Lei 12.288,
de 20 de julho de 2010 (Estatuto da Igualdade Racial), questionando a
efetividade de sua implantação nas empresas, inclusive como forma de
promoção da igualdade.
O quarto e derradeiro capítulo “Regulação do Mercado Financeiro e
Demais Setores”, cuida da regulação no âmbito empresarial, quer promovida
pelo Estado, quer pelo próprio Mercado, quando da estipulação de regras de
governança corporativa. Os seus textos são:
“A Regulação Financeira em face dos Direitos Fundamentais”, de João
Salvador dos Reis Neto, traduz a necessidade da regulação no mercado financeiro
e sua relação com os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de
1988, além de outros nela não contidos, atentando para uma aplicação legítima
das normas regulatórias ao sistema financeiro nacional pátrio.
“Administração Pública Consensual: Uma Nova Tendência nos Acordos
de Parceria para Promover Tecnologia e Inovação”, de autoria da coordenação,
verifica o contexto em que os acordos de parceria para promover a tecnologia e
inovação são influenciados pela atividade regulatória administrativa concertada,
claramente impregnada por um espírito associativo de parceria.
“O Novo Marco Regulatório e as Joint Ventures na Indústria do
Petróleo: Um Olhar Crítico sobre a Intervenção do Estado na Autonomia
Privada”, de Alberto Lopes da Rosa, revela as novas formas de parceria e
sua regulação com o advento da Lei n.º 12.351/2010, para exploração de
petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos na região denominada de présal e outras áreas estratégicas.
e “Atuação Empresarial no Mercado de Combustíveis e Derivados:
Aspectos Jurídicos decorrentes da Adulteração e o Papel Regulador da
ANP”, de Alexandre Ferreira De Assumpção Alves, no qual se identificam
as responsabilidades dos agentes que atuam nesse mercado, e sua respectivas
sanções administrativas decorrentes da atividade regulatória da ANP, à luz da
Lei do Petróleo (Lei nº 9.847/97), inclusive mediante a desconsideração da
personalidade jurídica das respectivas empresas.
Postas essas breves explicações e explanações, a permitirem aflorar
as características tão incomuns para uma obra interdisciplinar a respeito
de assuntos empresariais atuais e modernos, em busca de soluções a certos
problemas enfrentados pelos operadores do Direito no seu dia-a-dia, é que se
recomenda vivamente a proveitosa leitura.
São Paulo, 25 de junho de 2012.
Roberto Caldas e Rubia Carneiro Neves
Agradecimentos
Agradecemos a todos os autores que gentil e solicitamente procederam
às adaptações indicadas a seus textos para a imperiosa adequação ao formato
definido para a publicação, parabenizando-os pela excelência dos brilhantes
trabalhos apresentados.
Também somos agradecidos ao Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
(Presidente do CONPEDI) por ter prontamente apoiado a iniciativa da confecção
desta obra, enquanto extensão das exposições verbalmente realizadas quando
do XX Encontro Nacional do CONPEDI, bem como por ter aceito prefaciá-la.
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
prefácio
Foi com muita alegria que aceitei o convite para prefaciar esta obra, que
consiste na compilação de textos produzidos no âmbito do Grupo de Trabalho
“Atuação Empresarial no Estado Democrático de Direito” que teve lugar no
XX Encontro Nacional do CONPEDI realizado entre os dias 22 e 25 de junho
de 2011, em Belo Horizonte/MG, na Universidade FUMEC. Os textos com um
eixo temático comum e baseados na intersecção da premissa da intervenção
estatal e autonomia privada, apresentam-se com a profundidade e densidade
necessária para nossos propósitos institucionais de extrema valorização da
pesquisa e seus resultados na seara acadêmica.
Os temas aqui escolhidos são muitas vezes relegados ao exclusivo
enfoque da economia como se não houvesse qualquer inflexão jurídica sobre
questões relativas a observância de direitos fundamentais, da globalização
com qualidade de vida, informação, privacidade e respeito pela diversidade,
apenas para exemplificar. Entretanto, os trabalhos aqui selecionados abordam
vários mecanismos de ação dos agentes econômicos, como isso ocorre e como
podem vir a ser numa perspectiva de um capitalismo avançado e complexo,
com atendimento às normas e refreamento de abusos. Essa é a expectativa das
sociedades corretamente reguladas, como a nossa.
Todos os artigos estão adequados a um enfoque central que parte de sua
gênese econômica, mas que são caros a toda a sociedade, pois se irradiam sobre
direitos e garantias fundamentais.
Esta sociedade acuada pelo excesso de oferta de produtos, serviço e crédito,
de uma prolixidade nas relações comerciais e de uma extrema concentração de
capital nas mãos das grandes corporações é ávida por mecanismos jurídicos
de contenção. A maior mobilidade social a partir da ascensão econômica,
entretanto, não afasta a dívida social, ainda latente.
Resta o desafio ao estudioso do direito de perquirir soluções e equacionar
as discrepâncias que surgem da prática de uma economia de mercado diante das
salvaguardas constitucionais do indivíduo e da coletividade.
O texto “Controle da publicidade de produtos derivados do tabaco”, de
Fernando Gama de Miranda Netto, aborda os limites do marketing do tabaco,
produto que, embora comercializado licitamente, merece tratamento restritivo na
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
mídia, sendo que o autor analisa com profundidade quais os limites constitucionais
e legais para a autonomia da vontade do consumidor. A publicidade do tabaco
aqui é estudada em razão de seu impacto, da real extensão da publicidade sobre
a autonomia da vontade, sendo objeto do estudo a inevitável equivocidade e a
abusividade ao mercado de consumo. Em torno das verdades e mentiras sobre
o espectro da liberdade que é dada ao fornecedor para introduzir esse produto
lícito no mercado de consumo, procede a interessante cotejo sobre a liberdade de
fornecer e a possível tutela do consumidor e sua saúde.
Alberto Lopes da Rosa opta pela análise das joint ventures na indústria
do petróleo com destaque para as alterações promovidas pelo novo marco
regulatório – Lei n.º 12.351/2010 –, perquirindo sobre as medidas adotadas
para as atividades relacionadas à indústria do petróleo, mormente no que diz
respeito à opção do legislador por uma política de maior intervenção do Estado
na autonomia privada, e a disciplina dos consórcios (joint ventures) lá previstos.
João Salvador dos Reis Neto, em “A Regulação Financeira em Face
dos Direitos Fundamentais”, traz mais um texto sobre a regulação, agora
sob o prisma da intervenção do estado na atividade financeira, onde a
configuração desse mercado financeiro é a tônica, além de abordar de forma
perfunctória as características do mercado atual, o engessamento promovido
pelos os órgãos de regulação e a forma como são procedidas as negociações
de mercado diante da constituição vigente, e sua possível conformação e
respeito aos direitos fundamentais.
Ainda sob a ótica da regulação, Alexandre Ferreira de Assumpção Alves,
com o trabalho “Atuação Empresarial no Mercado de Combustíveis e Derivados
: Aspectos Jurídicos Decorrentes da Adulteração e o papel da ANP” busca
uma análise da Lei do Petróleo (Lei nº 9.847/97) a Política Energética Nacional,
e sua efetividade diante de um consumidor vulnerável frente a um fornecimento
altamente controlado pelo Estado, num setor sensível no mercado de consumo
até mesmo para garantir estabilidade de preços para os demais produtos e
prestação de serviços. O autor analisa a questão da formação e controle de
preços, qualidade dos produtos, e a competência da Agência Nacional do
Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), órgão regulador e fiscalizador
da atuação empresarial, seus poderes e a eficiência da regulação. O autor dá
relevo ao tema da desconsideração da personalidade jurídica, prevista na Lei
nº 9.847/99, sendo ainda digna de nota a análise das obrigações impostas ao
fornecedor pelo marco regulatório, uma opção moderna de controle de serviços
e bens essenciais na sociedade de consumo.
O recentemente editado Estatuto da Igualdade Racial foi o tema eleito
por Felipe Abu-Jamra Corrêa sob o foco de seus impactos na atividade
empresarial, trazendo à luz o questionamento de sua real efetividade ou retórica
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
ineficaz. O texto é um esforço de análise jurídica e política sobre a inserção
social promovida pelas ações afirmativas transcritas na Lei n. 12.288, de 20 de
julho de 2010, e o evidente propósito de resgate que este diploma legislativo
visa promover num original contexto de análise da aplicação do princípio da
igualdade a partir de fórmulas dignificantes de valorização do trabalho, e ao
mesmo tempo avalia a real implementação da lei no âmbito empresarial, e, sob
aspecto mais teórico, se a lei em comento é expletiva do princípio da igualdade.
“O Planejamento Sucessório como Instrumento de Alcance da Função
Social da Atividade Empresaria”, de Leonardo Barreto da Motta Messano também
parte de uma abordagem atual e original sobre a função social da propriedade,
da atividade do empresário, e do necessário questionamento do tema empresa
familiar não como um fim em si mesmo, mas ao contrario, de viabilizador de
princípios constitucionais mais valiosos que a simples transmissão endógena do
negócio familiar. O autor constata as necessidades de atendimento do interesse
coletivo, que suplanta a ideia tão cultuada no século XIX.
Em “A Proteção da Microempresa como Princípio Constitucional da
Ordem Econômica”, de Daniela Ramos Marinho, o norte é a possibilidade de
aplicação satisfatória da Lei Complementar n. 123, que instituiu o Estatuto
Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte com o intuito de
criar um regime único de arrecadação de impostos e contribuições no âmbito
da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios. O trabalho analisa as
possibilidades de diminuição da onerosidade referente às obrigações trabalhistas
e previdenciárias, entre outras, tais como se a microempresa é capaz ainda de
alavancar negócios e gerar empregos. Questiona se há um horizonte para esse
principio de proteção constitucional da Ordem Econômica contido no artigo 170,
e, mais do que isso, o trabalho analisa a aptidão e relevância das microempresas
num cenário cada vez mais dominado pelas grandes corporações e seus braços.
Para Gustavo Henrique de Almeida e Mário César Hamdan Gontijo, vale
analisar peculiaridades da atividade empresarial, e, em “A Simulação como
Vício do Negócio Jurídico nos Contratos de Sociedade”, a partir de temas
do direito privado que nos são caros, tal como a função social do contrato de
sociedade empresária e a prevalência do social sobre o individual. O autor atenta
para a necessária transposição dos aspectos básicos constitutivos e expressivos
da manifestação de vontade, tal como a boa-fé e a cooperação no contrato, e
atinge questões mais densas como a já citada função social contrato, que não
pode ser maculada por interesses individuais e menos altruístas que aqueles
queridos por toda a sociedade para a atividade negocial.
“Acordos Trabalhistas Extrajudiciais: Uma Possibilidade de Compatibilizar
a Autonomia e a Intervenção Estatal” é o trabalho trazido por Marcelo Ivan
Melek, que elege a conciliação na esfera trabalhista como método relevante na
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
solução de conflitos laborais não somente pelo ângulo dos efeitos jurídicos que
podem ser alcançados, mas também e principalmente pela segurança jurídica
que tais instrumentos podem proporcionar, mormente se considerado que a
autocomposição pode refletir uma satisfação real que previne novos conflitos.
Outro texto, “A Disregard of Legal Entity Doctrine Versus o Princípio
da Preservação da Sociedade Empresária”, de Deilton Ribeiro Brasil aborda
a função social da sociedade empresária, sua aptidão para atingir mais que
fins econômicos elementares – o lucro –, mas uma nova concepção que visa
a uma finalidade precípua para as sociedades empresárias que possibilitem o
atendimento de exigências de natureza social, o que significa a própria função
social afirmada. O autor capta o leitor para sua compreensão de que a meta
do legislador moderno não é desvirtuar a atividade empresária, lucrativa por
excelência, dentro de mecanismos que promovam a contenção da finalidade
primeira da atividade aos limites do necessário respeito à construção de uma
sociedade empresária adequada ao interesse social.
“A Importância do Project Finance no Desenvolvimento das Empresas
Brasileiras”, de Isamara Seabra, elege os principais aspectos do project finance
como tema, sua origem no mundo e no Brasil, bem como procede a uma
análise de sua distinção de outras estruturas de financiamento, tais como o
corporate finance e o development finance. A autora nos apresenta sua visão
realista das limitações jurídicas e as dificuldades de transposição para o project
finance no Brasil e as suas principais fontes de financiamento, não sem destacar
a importância de sua utilização para as empresas brasileiras, as peculiaridades
dos projetos que demandam grande injeção de capital e os principais agentes
financiadores em atividade, tal como a Caixa Econômica Federal, o BNDES e
os Bancos Regionais de Fomento.
O texto de Marta Rodriguez de Assis Machado e Viviane Muller Prado
nos é introduzido com uma pergunta, e “Como o STJ e STF entendem a
Responsabilidade Penal e Não Penal dos Administradores de Sociedades
Empresárias?” é um exercício de análise para compreender-se o regime jurídico
de responsabilização dos administradores e sua capacidade de interferência sobre
a organização e funcionamento da empresa e sobre o estímulo à livre iniciativa
no Brasil. O trabalho realiza de forma eficiente uma compilação de dados que
possam traduzir os verdadeiros limites da atividade empresarial em torno do
regime de distribuição de responsabilidade no Direito Brasileiro, sua aplicação
pelos tribunais e como o princípio da individualização da responsabilidade
penal vem sendo absorvido como norte de atuação pelos os agentes econômicos
que ocupam cargos de direção nas sociedades empresárias.
“Administração pública consensual: uma nova tendência nos acordos de
parceria para promover tecnologia e inovação”, de Roberto Correia da Silva Gomes
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Caldas e Rubia Carneiro Neves é um trabalho de aprofundamento que converge para
as teorias sobre o Estado Democrático de Direito, o capitalismo humanista e ainda a
funcionalização do contrato. Os autores com competência analisaram a dogmática
e seu conteúdo pertinente, pois necessária a análise da estrutura normativa aplicável
na dinâmica da regulamentação, o contexto associativo dos denominados contratos
administrativos e a inflexão dos limites da legislação sobre os acordos de parceria
celebrados para promover a tecnologia e inovação.
“A crise da limitação da responsabilidade nas sociedades empresariais
limitadas sob o enfoque da figura do administrador”, de Sabrina Tôrres Lage Peixoto
de Melo investigou a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica e sua caótica leitura nos dias atuais, o desvirtuamento de sua inserção em
nosso sistema normativo, sua imputação aos sócios do empreendimento – o que
tem se verificado com roupagem quase arrivista – e tem o propósito de promover
uma sensata análise da responsabilidade das sociedades.
A “Recuperação extrajudicial pelos caminhos da mediação: a preservação
da empresa com soluções dinâmicas” é um texto de Sávio Raniere Pereira Pinto
e Renata Christiana Vieira Maia cujo propósito é analisar a possibilidade de
realização da Recuperação Extrajudicial por intermédio da Mediação, a Lei
11.101/2005 e seus paradigmas de preservação do empreendimento, mas é um
texto atento ao pouco interesse que o instituto tem provocado nos estudiosos
brasileiros, além da falta de tradição de aplicação do instituto da mediação.
Por fim quero consignar que foi com grande prazer que me debrucei
sobre os textos bem selecionados pelo sistema do duplo cego do Conselho
Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito – CONPEDI –, que resultou
numa obra consistente e simétrica nos seus propósitos de proporcionar uma
visão moderna, proficiente e sistemática do interesse social que deve revestir a
disciplina da atividade econômica. Boa leitura!
Florianópolis, Inverno de 2012.
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente do CONPEDI
17
Sumário
PREFÁCIO................................................................................................................ 13
I - Empresa e função social
A PROTEÇÃO DA MICROEMPRESA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
DA ORDEM ECONÔMICA
Daniela Ramos Marinho................................................................................. 21
O PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO COMO INSTRUMENTO DE ALCANCE DA
FUNÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE EMPRESÁRIA
Leonardo Barreto da Motta Messano...................................................... 39
RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL PELOS CAMINHOS DA MEDIAÇÃO: A
PRESERVAÇÃO DA EMPRESA COM SOLUÇÕES DINÂMICAS
Sávio Raniere Pereira Pinto e Renata Christiana Vieira Maia........ 59
II - Responsabilidade, Direito Societário e Direito Penal
A DISREGARD OF LEGAL ENTITY DOCTRINE VERSUS O PRINCÍPIO DA
PRESERVAÇÃO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA
Deilton Ribeiro Brasil..................................................................................... 87
COMO O STJ E STF ENTENDEM A RESPONSABILIDADE PENAL E NÃO PENAL
DOS ADMINISTRADORES DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS?
Marta Rodriguez de Assis Machado e Viviane Muller Prado ......... 115
A CRISE DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE NAS SOCIEDADES
EMPRESÁRIAS LIMITADAS SOB O ENFOQUE DA FIGURA DO ADMINISTRADOR
Sabrina Tôrres Lage Peixoto de Melo........................................................ 145
19
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
III - Negócios Jurídicos, atuação empresarial e a necessidade de
compatibilizar a autonomia da vontade e a intervenção estatal
A SIMULAÇÃO COMO VÍCIO DO NEGÓCIO JURÍDICO NOS CONTRATOS
DE SOCIEDADE
Gustavo Henrique de Almeida e Mário César Hamdan Gontijo....... 169
ACORDOS TRABALHISTAS EXTRAJUDICIAIS: UMA POSSIBILIDADE DE
COMPATIBILIZAR A AUTONOMIA E A INTERVENÇÃO ESTATAL
Marcelo Ivan Melek......................................................................................... 195
A IMPORTÂNCIA DO PROJECT FINANCE NO DESENVOLVIMENTO DAS
EMPRESAS BRASILEIRAS
Isamara Seabra................................................................................................... 217
CONTROLE DA PUBLICIDADE DE PRODUTOS DERIVADOS DO TABACO
Fernando G. de Miranda Netto e Eric Baracho D. Fernandes ......... 247
O NOVEL ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL E SEUS IMPACTOS NA ATIVIDADE
EMPRESARIAL: EFETIVIDADE OU MERA RETÓRICA?
Felippe Abu-Jamra Corrêa.............................................................................. 283
IV - Regulação no mercado financeiro e demais setores
A REGULAÇÃO FINANCEIRA EM FACE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
João Salvador dos Reis Neto......................................................................... 307
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONSENSUAL: UMA NOVA TENDÊNCIA NOS
ACORDOS DE PARCERIA PARA PROMOVER TECNOLOGIA E INOVAÇÃO
Roberto C. da Silva G. Caldas e Rubia Carneiro Neves ....................... 341
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS E
DERIVADOS: ASPECTOS JURÍDICOS DECORRENTES DA ADULTERAÇÃO E
O PAPEL REGULADOR DA ANP
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves................................................. 371
O NOVO MARCO REGULATÓRIO E AS JOINT VENTURES NA INDÚSTRIA DO
PETRÓLEO: UM OLHAR CRÍTICO SOBRE A INTERVENÇÃO
DO ESTADO NA AUTONOMIA PRIVADA
Alberto Lopes da Rosa..................................................................................... 403
20
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
I - Empresa e função social
A PROTEÇÃO DA MICROEMPRESA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
DA ORDEM ECONÔMICA
THE PROTECTION GIVEN TO SMALL COMPANIES
AS PRINCIPLE CONSTITUTIONAL OF ECONOMICAL ORDER
Daniela Ramos Marinho
RESUMO
Em dezembro de 2006 foi publicada a Lei Complementar n. 123, que
instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno
Porte com o intuito criar um regime único de arrecadação de impostos
e contribuições no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e
Municípios, além de proporcionar a diminuição da onerosidade referente
às obrigações trabalhistas e previdenciárias, bem como ao registro e
regulamentação de sua atividade frente à lei civil e tributária. Esta norma
foi criada para atender ao princípio Constitucional previsto no capítulo que
trata da ordem econômica Constitucional, notadamente ao artigo 170 que
prevê tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas
sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Desta forma, este trabalho tem como escopo demonstrar os mecanismos
constitucionais que salvaguardam os interesses da microempresa. Para
isto, procedeu-se, no primeiro capítulo, à conceituação da microempresa,
seguido de breve exposição da evolução legislativa deste segmento. Em
ato subseqüente, o trabalho foca-se no estudo da Ordem Econômica
inserida num capítulo específico da Constituição Federal de 1988 para,
por fim, demonstrar à proteção dada à microempresa que adquiriu estatus
de princípio norteador dos postulados desta Ordem Econômica. Por fim,
aponta-se, a relevância das microempresas no cenário brasileiro que,
por certo, conduziram o legislador constituinte à promoção de amparo
específico às microempresas no bojo do texto Constitucional.
Palavras-Chave: microempresa, ordem econômica, Constituição, tratamento
favorecido.
21
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
ABSTRACT
In December 2006 the complementary no 123 law which created the
small company and small company legislation with the objective to create sole
of tax collection in the federal, state and county scopes. Besides reducing the
costs concerning the labor obligations, as well as the registration and regulation
of its activities before the civil and tributary laws. This norm was crated to
serve the constitutional principle foreseen in the chapter which deals with the
economical order, especially the 170 Article that foresees favored treatment to
the small companies created on Brazilian laws which have their headquarters
and management in the country. So, this treatment has in its scope to show the
constitutional mechanisms that safeguard the small companies’ interests. And
so in the first chapter the small company, followed by a brief exposition of the
legislative evolution of this segment. On a subsequent act the work focus on
the economical study inserted in the specific of the 1988 Federal Constitution
and at last show the protection given to small companies that gained the status
of guiding principle of this new economical order. And at last the relevance
of the small companies in the Brazilian scenario, that certainly conducted the
constitutional legislator to promote specific support to the small companies in
the scope of The constitutional text.
Keywords: small companies, economical order, Constitution, favored treatment
1. INTRODUÇÃO
Após intensos debates na sociedade e especificamente no Congresso
Nacional, em 16 de dezembro de 2006, por meio da Lei Complementar n. 123,
foi, enfim, instituído o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de
Pequeno Porte.
A norma foi criada para atender, além dos reclamos sociais, aos preceitos
delineados na Constituição Federal.
É que, assim como os trabalhadores que após longos anos de luta,
obtiveram tratamento diferenciado em suas relações com os empregadores a
fim de elidir os conflitos sociais e de justiça que seguiam insolúveis, também
no campo do direito econômico, o Constituinte de 1988 houve por bem exigir
tratamento jurídico diferenciado para as microempresas.
Nesse passo, este trabalho tem como objetivo demonstrar os mecanismos
constitucionais que salvaguardam os interesses dos pequenos empreendimentos
22
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
brasileiros. Emerge do questionamento sobre as razões que fizeram originar
a formulação constitucional que contempla uma proteção específica às
microempresas.
A pesquisa se deu de forma exploratória com análise bibliográfica a
partir de coleta de dados em material científico e informativo atualizado sobre
o assunto abordado.
Com o propósito aludido, procede-se, no primeiro capítulo, à
conceituação da microempresa à luz da legislação e outros órgãos que a definem
para fins de concessão de incentivos. Também neste capítulo apresenta-se
a evolução histórico-normativa das legislações brasileiras que, de alguma
forma, propiciaram um tratamento mais benéfico para as empresas objeto
deste estudo, com menção ao recente projeto noticiado pela mídia brasileira
que traz mudanças paras as microempresas, com ampliação dos limites de
faturamento visando o aumento do número de empresas aos benefícios fiscais
do Simples Nacional.
Em ato contínuo, o trabalho foca-se no estudo da Ordem Econômica
inserida num capítulo específico da Constituição Federal de 1988 para, por fim,
demonstrar à proteção dada à microempresa que adquiriu estatus de princípio
norteador dos postulados desta Ordem Econômica.
Após o delineamento de mencionado aspecto, aponta-se os dados
que indicam a função exercida pelas microempresas no cenário econômico
brasileiro a fim de esclarecer a relevância desse segmento empresarial, que, por
certo, conduziram o legislador constituinte à promoção de amparo específico às
microempresas no bojo do texto Constitucional.
2. BREVE ESBOÇO SOBRE A DEFINIÇÃO DA MICROEMPRESA E SUA EVOLUÇÃO
LEGISLATIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O artigo 3º da Lei Geral das Micro e Pequena Empresas dispõe que
considera-se microempresa a sociedade empresária, a sociedade simples ou
o empresário individual que tenha auferido, no ano-calendário, receita bruta
igual ou inferior a R$240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e empresa de
pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples ou o empresário
individual que tenha auferido receita bruta superior a R$240.000,00 (duzentos
e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$2.400.000,00 (dois milhões e
quatrocentos mil reais).
Sobre esses valores, cumpre aqui abrir um parêntese para mencionar
que no último dia 08 de agosto a presidente Dilma Rousseff anunciou em rede
nacional o aumento de 50% em todas as faixas da tabela do Simples Nacional,
em vigor desde 2007. A proposta veiculada por meio do projeto de Lei
23
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Complementar 591/10, propõe o aumento do limite da receita bruta anual das
microempresas dos atuais R$240 mil para R$360 mil. No caso das empresas
de pequeno porte, o limite foi alterado de R$2,4 milhões para R$3,6 milhões.
Embora seja esse critério o mais aceito para fins de conceituação de
microempresa, não existe unicidade na definição, pois existem outros critérios
administrativos para definir a microempresa, trazidos por órgãos como o
SEBRAE (Serviço de Brasileiro de Apoio à Micro Pequenas Empresas), e o
BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para fins
de concessão dos benefícios existentes no ordenamento jurídico.
Exemplo disso está na classificação que concebe a microempresa a partir
do proprietário, que é aquele que centraliza quase todas as atividades, exercendo
várias funções ao mesmo tempo.
Outro parâmetro encontrado é aquele desenvolvido pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Serviço Brasileiro de Apoio
às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), o qual é empregado de acordo com
a quantidade de pessoas que trabalham nessas empresas. Assim, é considerada
microempresa aquela que emprega até nove pessoas no ramo de atividade de
comércio e serviços, e até dezenove pessoas na indústria.
Por fim, há a classificação que concebe a microempresa pelo seu volume
monetário ou econômico. Esta classificação é utilizada pelas leis federais e estaduais,
como a anunciada no início deste tópico, para fins de tributação, considerando os
limites de faturamento para o enquadramento como micro ou pequena empresa.
Sobre a evolução legislativa da microempresa no ordenamento jurídico há
de ser dito que, embora sempre tenha havido alguma previsão legal em atenção
aos pequenos negócios, somente no início da década de 80, ficou assentada a
importância da pequena empresa para o desenvolvimento nacional. Daí para
frente, várias ações foram efetivadas no âmbito legislativo.
Destarte, em abril de 1980, foi editado o Decreto- Lei nº1.780, concedendo
isenção de imposto sobre a renda em relação às empresas de pequeno porte,
dispensando-o, também, do cumprimento de obrigações acessórias.
Em 1981, surgiu a Lei nº. 6.939 estabelecendo o regime sumário de
registro e arquivamento no Registro do Comércio para as firmas individuais
e sociedades mercantis que preenchessem determinados requisitos, como por
exemplo, serem constituídas sob a forma de sociedade limitada, determinado
número de trabalhadores, dentre outros.
Já em 1984, a Lei 7.256, regulamentada pelo Decreto 90.880 de 1985,
estabeleceu a primeira definição legal sobre a microempresa, desenvolvendo
ainda a assertiva segundo a qual a microempresa teria um tratamento privilegiado.
No mesmo ano, buscando consolidar os objetivos da lei em menção,
foi criada a Lei Complementar Nº. 48, isentando as microempresas do
24
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
recolhimento de ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) e de ISS
(Imposto sobre Serviços), isenção essa ampliada pouco depois pela lei 7.519
de 14 de julho de 1986.
Embora tais leis tivessem como escopo precípuo o tratamento
diferenciado para as microempresas, este intento logrou avanço somente quando
da promulgação da Constituição Federal de 1988, que incluiu o tratamento
favorecido para microempresa no capítulo sobre a Ordem Econômica, assunto
que será melhor tratado em tópico vindouro.
Com o objetivo precípuo de atender aos ditames balizados no texto
constitucional, em 28 de marços de 1994, com a edição da Lei 8.864, foi criado
o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, resgatando a
obrigatoriedade da escrituração até então revogada, determinando, todavia,
simplificação nos procedimentos, a ser estabelecida por um Decreto regulamentar
definidor das normas próprias para escrituração do micro e pequeno empresário.
Em 1996, foi criado, pela Lei nº 9.317, o regime denominado SIMPLES
(Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas
e Empresas de Pequeno Porte). Por meio desta lei, foi aprimorado o sistema
de pagamentos de impostosa fim de, reduzindo a carga tributária, incentivar o
surgimento dos pequenos empreendimentos. O regime incluiu as pequenas
empresas como beneficiárias da tributação simplificada e ampliou a relação dos
impostos e contribuições incluídos no benefício da arrecadação única.
Por fim, no mês de dezembro de 2007, foi publicada a Lei Complementar
nº. 123, revogando a Lei nº 9841 de outubro de 1999 (Estatuto da Microempresa
e da Empresa de Pequeno Porte) que até então regulava a matéria e a lei nº.
9317 de 1996 (SIMPLES).
Esta lei instituiu um regime único de arrecadação de impostos e
contribuições no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e
Municípios, o que possibilitou ao erário um controle mais efetivo das
atividades empresariais.
Ressalta-se que esta norma objetiva não somente o aprimoramento da
forma de arrecadação estatal, como também a diminuição da onerosidade
referente às obrigações trabalhistas e previdenciárias. Do mesmo modo, trouxe
normas facilitadoras para o registro e regulamentação de sua atividade frente à
lei civil e tributária, como, por exemplo abertura e encerramento das atividades
sem a necessidade de apresentação de comprovantes de regularidade fiscal.
Paralelamente a esta norma, outras também trataram de incorporar regras
que proporcionaram tratamento jurídico e diferenciado ao segmento empresarial
aqui estudado. Exemplo disso reside na Lei de Falência e recuperação de
empresas (Lei n. 11.101 de 09 de fevereiro de 2005), a qual instituiu um plano
especial de recuperação judicial da microempresa.
25
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Por fim, menciona-se que as microempresas não tiveram apenas suporte
legal para o fomento de suas atividades, já que, desde 1990 foi criado o
SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas) como
uma instituição técnica de apoio e desenvolvimento da atividade empresarial
de pequeno porte, voltado para a difusão de programas e projetos de promoção
e fortalecimento das micro e pequenas empresas, criado pelas Leis 8.029, de
12 de abril de 1990, e 8.154 de 28 de dezembro 1990, e regulamentadas pelo
Decreto 99.570 de 1990, cuja atividade vem sendo exercida até os dias atuais.
3. A ORDEM ECONÔMICA INSTITUÍDA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Conforme as lições do professor Silva (2002), a ordem econômica
adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em que as Constituições
passaram a discipliná-la sistematicamente.
A Constituição brasileira de 1988 é considerada uma típica representante do
que se conhece como constitucionalismo dirigista ou de caráter social, que se iniciou
com a Constituição mexi­cana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. Sofreu
ainda forte influência do modelo alemão do pós-guerra, assim como da Constituição
portuguesa, adotada depois da derrubada do regime salazarista, nos anos 70.
Percebe-se que, ao contrário das Constituições Liberais que visam limitar
a esfera de atuação do Estado, assegurando amplo espaço para a realização
da liberdade individual, especificamente do mercado, as Constituições Sociais
estabelecem obrigações positivas para o Estado na área social, impõe diretrizes
para regulamentar as atividades econômicas, assim como configuram órgãos
para a implementação de suas políticas públicas.
Embora tenha sido elaborada num momento de reflorescimento das idéias
pertinentes à limitação da atuação do Estado e de redução dos direitos de caráter
social, a Constituição Brasileira de 1988 adotou o figurino do Estado de bemestar social, o que é compreensível numa sociedade que, à época, apresentava
profundos padrões de desigualdades.
É imperioso, no entanto, citar o pensamento de Silva (2002), quando
pondera que, a ordem econômica consubstanciada em nossa Constituição não
é senão uma forma econômica capitalista, uma vez que se apóia na apropriação
privada dos meios de produção e na iniciativa privada, o que, inclusive, vem
estampado em seu artigo 170 da Constituição.
Sobre isso, o citado professor escreveu que “a atuação do Estado, assim,
não é nada menos que do que uma tentativa de por ordem na vida econômica e
social, de arrumar a desordem que provinha do neoliberalismo”.
Essa forma de atuação do Estado ficou conhecida como “dirigismo”
(SILVA, 2002) razão de sua forma de atuação que implica apenas em enunciar
diretrizes, fins e programas a serem realizados pela sociedade.
26
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Apenas a título de informação, deve se lembrar que a idéia de Constituição
dirigente foi formulada pelo jurista português José Joaquim Gomes Canotilho,
em sua tese de doutorado de 1.982, cujo título da obra é “Constituição dirigente
e vinculação do legislador”.
Em seu trabalho, ficou assentado que a Constituição não deve limitar em
absoluto o Poder; mas, todavia, traçar as metas que deverão ser progressivamente
realizadas pelo Estado, para transformar a ordem política, econômica e social.
(CANOTILHO, 1994, p.338).
Em conseqüência do caráter dirigista, a Constituição Federal de 1988,
traçou, em seu art. 170, os ditames da ordem econômica.
No capítulo voltado à mencionada ordem econômica, observa-se
a reunião de princípios, normas e institutos jurídicos voltados para sua
regulamentação.
Esse conjunto de preceitos voltados à regulação da economia em nível
Constitucional recebeu o nome de “Constitucionalização da Ordem Econômica”.
(ARAÚJO, 1999, p.347).
Deve ser lembrado que expressão “ordem econômica” foi assimilada
pelos juristas a partir do início deste século, significando uma idéia de sistema
voltado para regulação das relações econômicas em um Estado, determinando
seus limites, sendo que os desígnios presentes em seu conteúdo sempre
contiveram forte carga ideológica.
Sobre a ordem econômica, o professor Grau (1998, p. 68), assim ensinou:
[...] em um primeiro sentido, “ordem econômica” é o modo de ser
empírico de uma determinada economia concreta; a expressão, aqui, é
termo de um conceito de fato (é conceito do mundo do ser, portanto);o
que o caracteriza é a circunstância de referir-se não a um conjunto de
regras ou a normas reguladoras de relações sociais, mas sim a uma relação
entre fenômenos econômicos e matérias, ou seja, relação entre fatores
econômicos concretos; conceito do mundo do ser, exprime a realidade de
uma inerente articulação do econômico como fato;
[...] em um segundo sentido, “ordem econômica” é expressão que designa
o conjunto de todas as normas(ou regras de conduta), qualquer que seja
a sua natureza(jurídica, religiosa, moral etc.), que respeitam à regulação
do comportamento dos sujeitos econômicos; é o sistema normativo( no
sentido sociológico) da ação econômica;
[...] em um terceiro sentido, “ordem econômica” significa “ordem jurídica
da economia.”
27
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Para Araújo (1999, p. 347,) a ordem econômica pode ser definida como “o
conjunto de normas fundamentais que estabelecem juridicamente os elementos
estruturais de uma forma concreta de um determinado sistema econômico[...]”.
Simplificando as definições dadas, deve se dizer que ordem econômica
é a parcela que regra normativamente as questões econômicas, que
institucionalizam uma determinada ordem econômica, regulando os limites da
atuação da iniciativa privada, bem como do Estado.
3.1 FUNDAMENTOS DA ORDEM ECONÔMICA
A Constituição declara que a ordem econômica é fundada na valorização
do trabalho humano e na iniciativa privada. Para o professor Silva (2002, p.
765), isto implica dizer que:
Em primeiro lugar quer dizer precisamente que a Constituição consagra
uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa
privada é um princípio básico da ordem capitalista. Em segundo lugar
significa que, embora capitalista, a ordem econômica dá prioridades ao
trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado.
Por ser uma declaração de princípio, o professor Silva afirma que essa
prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado na Economia,
a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho que, ao lado da iniciativa
privada, constituem o fundamento não só da ordem econômica, mas da própria
República Federativa do Brasil.
Sobre a valorização do trabalho humano importa lembrar que esta
constitui também fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos
no art. 1º, inc. IV da CF/88.
Erivaldo Moreira Barbosa (2003, p.205) recorda que o trabalho na
Antigüidade não era considerado digno, sendo desempenhado pelos menos
favorecidos, já que os nobres não deveriam se envolver em atividades
consideradas tão baixas.
Esta situação foi sofrendo modificações somente no período Medieval
esse, em face do Cristianismo, passando a ser encarado como um vetor
contributivo da dignidade.
Ao tratar da valorização do trabalho o jurista Eros Grau (p.64, 2004)
assevera que esta caracterização representa uma preocupação com um tratamento
distinto ao trabalho que, “em uma sociedade capitalista moderna, peculiariza-se
na medida em o trabalho passa a receber proteção não meramente filantrópica,
porém politicamente racional”.
28
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Sobre esse assunto, Slaib Filho acrescenta ser inegável que o trabalho
diz respeito ao fator social da produção, “porém ele está muito além
da necessidade econômica de suprir as necessidades materiais – é uma
necessidade, inerente à natureza humana e ao instituto da auto preservação e
progresso pessoal” (2006, p. 702).
Bastos (1997, p.113) entende que o Texto Constitucional refere-se à
valorização do trabalho humano também no sentido material que a expressão
abarca. Isto significa dizer que o trabalho deve possuir a uma contrapartida
monetária que o torne materialmente digno.
Não obstante, o autor em menção afirma que o trabalho deve receber a
dignificação da sociedade, por servir de instrumento de concretização da própria
dignidade, haja vista ser incoerente alcançá-la se não há condições mínimas
de subsistência. Na verdade, segundo esse pensamento, ao se proporcionar
melhores condições e oportunidades de trabalho ao indivíduo, estar-se-á, via
de conseqüência, fornecendo subsídios para que se atinja a dignidade, que é
assegurada, em toda a sua plenitude, pela Constituição Federal.
Quanto à livre iniciativa, como segundo fundamento da ordem
econômica, esta também constitui fundamento da República Federativa do
Brasil (art. 1º, inc. IV da CF/88).
Conforme os autores Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes
Júnior, a livre iniciativa estampada no texto constitucional possui uma densidade
normativa, da qual se pode extrair a “faculdade de criar e explorar uma atividade
econômica a título privado” e a “não sujeição a qualquer restrição estatal, senão
em virtude de lei” (ARAUJO; SERRANO JUNIOR, 2006, p. 466).
Silva (2002, p.765) comenta que a livre iniciativa consagra uma
economia de mercado, de natureza capitalista, já que é um princípio básico da
ordem capitalista. Ensina que “a liberdade de iniciativa envolve a liberdade de
indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato”.
Eros Grau, por sua vez, pondera que a liberdade de iniciativa não se
identifica apenas com a liberdade de empresa, pois abrange todas as formas
de produção individuais ou coletivas, dando ensejo às iniciativas privada,
cooperativa, autogestionária e pública (2004, p. 186-187).
Certo é que a livre iniciativa sugere a liberdade de empresa, que pode ser
entendida sobre três vertentes: “liberdade de investimento ou acesso; liberdade
de organização; liberdade de contratação” (VAZ apud ARAUJO; SERRANO
JUNIOR, 2006, p. 465).
Embora pareça, num primeiro momento, contraditório a existência
desses dois fundamentos no texto constitucional – valorização do trabalho
humano e livre iniciativa, há de ser dito que estes podem perfeitamente
coexistir na medida em que o desenvolvimento do livre exercício do
empreendedorismo por parte dos particulares não se separa da necessária
29
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
valorização do trabalho humano como forma de se garantir e efetivar o
fundamento da Ordem Econômica delineada na Constituição Federal de 1988.
Sobre este assunto, Bastos aponta que “A nossa Constituição trata da
livre iniciativa logo no seu art. 1º., inc. IV [...]. Ela é, portanto, um dos fins da
nossa estrutura política, em outra palavras, um dos fundamentos do próprio
Estado Democrático de Direito, mas, nem por isso deixa de estar vinculada à
obediência aos demais preceitos constitucionais” (2004, p.121).
Com estas ponderações, importa registrar ainda que, conforme exposto no
artigo 170 da Constituição Federal, objeto de análise deste estudo, estes fundamentos
da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa têm por finalidade assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Sobre a existência digna, esta se coaduna com o princípio da dignidade
da pessoa humana, constituindo fundamento República Federativa do Brasil,
conforme previsto no art. 1º, inc. III, da Constituição Federal
Esclarecendo a dignidade da pessoa humana, o jurista José Afonso da
Silva assim escreveu:
“Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo
de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.
“Concebido como referência constitucional unificadora de todos os
direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira],
o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação
valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativoconstitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não
podendo reduzir-se o sentido de dignidade humana à defesa dos direitos
pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou
invoca-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual,
ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana.
Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos
existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça
social (art. 193), a educação o desenvolvimento da pessoa e o seu preparo
para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados
formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da
dignidade da pessoa humana”. (SILVA, 2001, p. 109)
Em lapidar lição sobre o assunto Ferraz Júnior assim escreveu:
Existência digna, conforme os ditames da justiça social, como vimos,
não é um bem subjetivo e individual, mas de todos, que não admite
miséria nem marginalização em parte alguma e distribui o bem-estar e o
30
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
desenvolvimento com eqüidade. Protege, não privilegia. É fraternidade
e ausência de discriminação. Não se mede por um absoluto, mas é,
conforme certos limites de possibilidade estabelecidos, um sentido de
orientação para não excluir ninguém. Assegurar, como fim da Ordem,
é velar para que não ocorram impedimentos na realização de valores.
(1989, p. 47).
Extrai-se dessas afirmações que toda a atividade econômica deverá
observar o dever de servir, não ao Estado como ente autônomo, mas à
coletividade, através da efetivação dos valores que o povo, por meio de seus
representantes, elegeram como indissociáveis desta ordem econômica.
Pondo termo a este tópico, impõe destacar que o texto constitucional,
especificamente no artigo 170, indica ainda que os fundamentos da ordem
também devem ser orientados pela busca da justiça social.
Ferreira Filho esclarece que esta expressão “justiça social” não possui
um sentido unívoco, contudo seu uso é divulgado especialmente pela doutrina
social da Igreja, podendo ser considerada como, a “virtude que ordena para o
bem comum todos os atos humanos exteriores” (2007, p. 359).
Grau menciona que a “justiça social, inicialmente quer significar
superação das injustiças na repartição, a nível pessoal do produto econômico
(...) passando a consubstanciar exigência de qualquer política econômica
capitalista” (GRAU, 2004, p. 208).
Silva, a seu turno, ensina que a “justiça social só se realiza mediante
eqüitativa distribuição da riqueza” (2001, p. 767.), o que certamente possibilita
a humanização do capitalismo.
3.2 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA MICROEMPRESA
Após apontar os fundamentos, a Constituição Federal, em seu artigo 170,
enuncia os princípios regentes da ordem econômica, sendo eles: I - soberania
nacional; II - propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre
concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente; VII –
redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas, sob
as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Vale anotar que as disposições normativas, sejam de fundo constitucional
ou infraconstitucional, devem pautar-se por estes princípios orientadores na sua
interpretação, haja vista que tais princípios constituem as pautas expressas ou
implícitas que denotam o ponto de partida de qualquer ordem jurídica.
Na verdade, estes princípios constituem normas cogentes. Neles é que o
31
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
legislador brasileiro deve se pautar como também o judiciário, ao dirimir questões
postas à sua avaliação e decisão, sob pena de evidente inconstitucionalidade das
práticas que afrontarem estes princípios, ou das leis que estabelecerem metas
opostas a eles.
Inobstante a relevância de todos os princípios regentes da ordem
econômica, aborda-se-á neste tópico, posto constituir ponto fulcral
deste trabalho, o princípio que enuncia o “tratamento favorecido para as
pequenas empresas”.
Sendo assim, há de ser mencionado que o favorecimento às
microempresas, revela a necessidade de se proteger os organismos micro
empresariais que possuem menores condições de competitividade em relação
às grandes empresas.
Este princípio do tratamento favorecido aos pequenos empreendimentos
é reafirmado no art. 179 da CF, nos seguintes termos:
a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às
microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei,
tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação
de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias,
ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
Trata-se de um princípio isonômico, equalizador que expressa o
reconhecimento das desigualdades que existem na prática; por isso, impõe às
pessoas políticas um dever que consiste em tratar desigualmente os desiguais;
vale dizer, numa ordem econômica fundada na livre iniciativa, é necessário
dispensar tratamento favorecido às pequenas empresas para que estas possam
resistir ao mercado competitivo da livre concorrência.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2001, p.65) afirmou que:
numa era de gigantismo empresarial, a sobrevivência das empresas de
pequeno porte é extremamente difícil. São elas, porém, um elemento de
equilíbrio e, conseqüentemente, merecem um tratamento especial.
A seu turno, o pesquisador Lafayete Josué Petter (2005, p.38),
apresentando justificativa para tal tratamento diferenciado discorreu que:
“(...) de outra banda, certo é que o tratamento jurídico favorecido às
empresas de pequeno porte tem variados fundamentos a justificar sua
inserção dentre os princípios da atividade econômica. Bem examinadas
as disposições relativas à ordem econômica no texto constitucional –
sem olvidar que ela é parte integrante e indissociável da Constituição
32
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
vista em sua inteireza - parece mesmo intuitivo que algo deveria ser
feito em relação às empresas de pequeno porte. Pois são elas que mais
empregam mão-de-obra, o que nos reconduz à valorização do trabalho
humano como fundamento da ordem econômica. São elas que menos
investimentos necessitam, havendo expansão do desenvolvimento se
trilhados os caminhos em face delas abertos. Demais disso, exercem no
contexto da economia um papel mais versátil e próximo do consumidor
do que o desempenhado por grandes estruturas empresariais. Obtêm sua
aprovação no mercado sem intermediação de pesados investimentos
publicitários, indutores de hábitos de consumo, em muitos casos,
evidentemente supérfluos. Mas também são elas as que mais dificuldades
têm para a obtenção de financiamentos junto às instituições financeiras,
daí o necessário.
Dando continuidade ao seu pensamento, Petter esclarece que não há
nenhum preconceito aos grandes negócios, sendo a diversidade de tamanhos de
empresas necessária para uma economia saudável:
[...] Não há aqui nenhuma espécie de preconceito quanto as empresas
maiores, em muitas situações reflexos de trabalho e dedicação ao longo
da vida inteira. Ao contrario, numa economia saudável, com tantas
necessidades de atender parece mesmo natural coabitarem empresas de
todos os tamanhos. (2008, p, 304)
Veja, portanto, que o tratamento jurídico favorecido às empresas de
pequeno porte, tem variados fundamentos a justificar sua inserção dentre os
princípios da atividade econômica.
Para reafirmar o exposto acima, convém mencionar que, de acordo com
estudo empreendido por BONFIM (2007. p.5), existem no país 4,5 milhões de
pequenos negócios formais, nos quais 60 milhões de pessoas estão diretamente
envolvidas, que correspondem a 98% dos empreendimentos existentes no país.
Estes micros e pequenos negócios são responsáveis por 44% dos postos de
trabalho e 42% da massa salarial.
Conforme as palavras do professor Carlos O. Quandt (2004), as pequenas
e médias empresas possuem um grande potencial para acelerar o crescimento
econômico, ampliar sua participação nas exportações e promover um padrão
de desenvolvimento mais desconcentrado e eqüitativo nas regiões menos
desenvolvidas.
Sobre isto Vidigal D‘Arcanchy (2008) assim escreveu:
33
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
“as microempresas (ME) e as empresas de pequeno porte (EPP), em
nosso país, têm sua origem, via de regra, em trabalhadores excluídos do
mercado de trabalho, que entram no setor de serviços, ou de produção
em pequena escala, com mínima tecnologia e pouca formalidade de
atividades administrativas”.
Além disso, o jurista Carvalho Alvim (1998) indica alguns atributos inerentes
às microempresas e empresas de pequeno porte, quais sejam, ter a capacidade de
reagir rapidamente num contexto econômico de mudanças constantes. Este fato é
determinante, pois representam segmento empresarial que se molda rapidamente
às condições de mercado, podendo suprir suas demandas em curto prazo; além da
possibilidade de inovações mais constantes em detrimento das grandes empresas,
uma vez que sua estrutura simplificada permite novas experiências, flexibilização
e capacidade de adaptação rápida às mudanças tecnológicas impostas pelo
mercado e a representatividade crescente nas atividades exportadoras.
Destas digressões, pode-se extrair que os pequenos negócios exercem
uma função que se sobrepõe à lógica do lucro, sendo certo que não estão
inseridos como princípio norteadores da ordem econômica sem propósito ou
razão plausível. Na verdade, a busca da preservação da dignidade da pessoa
humana, do pleno emprego, entre outros objetivos podem ser melhor atingidos se
houver, no Brasil, uma microempresa forte, capaz de sobreviver às intempéries
do mercado.
Feita essas ponderações, importa mencionar que, quanto ao parâmetro
identificador do que seja tratamento favorecido, o legislador se deparou com um
dilema consistente em estabelecer o critério que funcionaria como delineamento
para a concessão do tratamento diferenciado.
Em resposta à consulta formulada pelo SEBRAE, o jurista Ives Gandra
da Silva Martins (1992, p. 77), assim esclareceu:
Tratamento favorecido é tratamento mais benéfico, com menos encargos,
ônus e obrigações, com mais apoio, auxílio e suporte das autoridades [...]
Favorecido é adjetivo, que vem do substantivo favor, favoris, que quer
dizer interesse, apoio, afeição e estima.
Continua explicando:
[...] o discurso constituinte explicita que tal tratamento diferenciado será
resultante de duas formas de incentivos, a saber: a) simplificação das
obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias; b)
eliminação ou redução de tais obrigações. (MARTINS, 1992, p. 79)
34
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A análise de todo o exposto, conduz à percepção de que o princípio
consagrador do tratamento favorecido para as pequenas empresas está em
consonância com os fundamentos da ordem econômica, quais sejam, valorização
do trabalho humano e iniciativa privada, que assegura a todos a existência digna.
Há de se ponderar, por fim, que tendo sido, estes princípios, esculpidos
na Constituição Federal e, sendo esta a norma sob a qual todas as demais devem
se adequar, quaisquer normas criadas com o fito de regular as atividades das
microempresas, devem se amoldar plenamente aos ditames e princípios da
ordem econômica, notadamente o que determina a este segmento um tratamento
favorecido.
4. CONCLUSÃO
A Constituição Federal Brasileira disciplinou o tema sobre a Ordem
Econômica e Financeira no seu Título VII.
Esta ordem econômica prevista na Constituição não revela senão uma
forma econômica capitalista, uma vez que se apóia na apropriação privada dos
meios de produção e na iniciativa privada, o que, inclusive, vem estampado em
seu artigo 170 da Constituição.
No entanto, a forma de atuação do Estado, conforme narrado nas linhas
pretéritas, ficou conhecida como “dirigismo” em virtude de sua forma de
atuação que implica apenas em enunciar diretrizes, fins e programas a serem
realizados pela sociedade.
Ante o caráter dirigista, a Constituição Federal de 1988, traçou, no art.
170, título VII, capítulo I, os ditames da ordem econômica.
Neste sentido, o artigo 170 menciona os fundamentos em que se assentam
as diretrizes que permearão toda a legislação infraconstitucional sobre o tema
da Atividade Econômica, firmando-se a Valorização do Trabalho Humano e a
Livre Iniciativa, como fundamentos desta ordem, assegurando-se a existência
digna conforme os ditames da justiça social.
Além disso, o artigo em menção delineia os Princípios a serem observados
no exercício da atividade econômica, sendo que entre todos, mereceu destaque
neste trabalho o tracejado no inciso IX que assim declara: “tratamento favorecido
para as empresas de pequeno porte constituídas sobre as leis brasileiras e que
tenham a sua sede e administração no País”.
Por microempresa, tem-se concebido, a despeito de outros critérios, o
elencado no artigo 3º da Lei 123/06, que considera o Empresário, a pessoa
jurídica, ou a ela equiparada, que aufira em cada ano-calendário Receita
Bruta igual ou inferior a R$ 240.000.00 (duzentos e quarenta mil) reais”.
Já no inciso II: “No caso de Empresas de Pequeno Porte, o Empresário, a
35
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
pessoa jurídica ou a ela equiparada, aufira em cada ano-calendário Receita
Bruta superior a R$ 2.400.00.00 (dois milhões e quatrocentos mil) reais.
Tais valores serão alterados conforme se vem anunciado na mídia brasileira.
Anota-se, por fim, que se observou que este tratamento favorecido
conferido às microempresas, alçado à condição de princípio constitucional, foi
entornado em virtude do relevante papel que estas empresas possuem dentro
do nosso mercado econômico, pois, conforme dados apontados neste trabalho,
representam significava parcela dos empreendimentos brasileiros, além de
serem responsáveis por empregar boa parte da população brasileira, sendo,
portanto, essencial para a economia nacional.
36
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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capacitação tecnológica das microempresas e empresas de pequeno porte. São
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empresas. Revista Estudos do Sebrae, maio/junho, 1994 38
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO COMO INSTRUMENTO DE ALCANCE
DA FUNÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE EMPRESÁRIA
SUCCESSION PLANNING TO ACHIEVE SOCIAL FUNCTION
OF THE COMPANY
Leonardo Barreto da Motta Messano1*
RESUMO
A sucessão e a continuidade em organizações empresárias não se
pressupõem. Por outro lado, as organizações empresárias, principalmente aquelas
que são identificadas pela presença da família em sua estrutura interna, suprem a
demanda da sociedade por bens e serviços, sendo utilizada pelo Estado não como
fim, mas como meio para atingir os valores constitucionais, cumprindo com a dita
função social. A falha no processo de transferência da organização empresarial do
fundador a seus sucessores se traduz em dissolução da sociedade empresária ou
alienação para grupos concorrentes. O planejamento sucessório serve como um
efetivo instrumento para o alcance da função social da atividade empresária.
Palavras-Chave: Sucessão. Continuidade. Função Social. Planejamento
Sucessório.
ABSTRACT
The succession and the continuity in business organizations aren´t
assumed .On the other hand, the business organizations, mainly those who
are identified by the presence of the family in its internal structure, supply the
society´s demand for goods and services, being used by the Government not
as an end, but as a means to achieve constitutional values, fulfilling the social
function. The flaw in the process of transferring the business organization´s
founder to the successors, results in a dissolution of the business associations or alienation for the competing groups. Succession planning serves as an
effective instrument to reach the social function of the business activity.
Keywords: Succession. Continuity. Social Function. Succession Planning.
Especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas, Mestrando em Direito de
Empresa pelo Programa de Pós-Graduação strictu sensu da Faculdade de Direito Milton Campos.
1 *
39
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
SUMÁRIO: 1. Balizamentos introdutórios. 2. Das Organizações
Empresárias. 3. Diretrizes sobre uma empresa familiar. 3. A Função
Social da Empresa 4. O planejamento sucessório 5. Conclusão
6. Referências bibliográficas.
1. BALIZAMENTOS INTRODUTÓRIOS
A preservação da atividade empresária vem sendo amplamente discutida
no meio jurídico, pois cada vez mais se percebe, numa visão interdisciplinar,
a importância deste tema, não somente sobre os aspectos normativos que
envolvem uma organização empresária, mas também o aspecto econômico e
social que são indissociáveis.
Por outro lado é expressiva a presença da família nas organizações empresárias,
sendo que grande parte das empresas existentes são familiares, pois iniciaram suas
atividades através de uma atitude empreendedora de seu fundador. Já afirmava Robert
Heilbroner (1964)2, que na formação das sociedades empresárias baseadas na tradição
os problemas econômicos são resolvidos de uma forma muito exeqüível, tratando em
primeiro lugar do problema da produção e a conseqüente transmissão dos ofícios dos
pais aos filhos, garantindo ocupação de geração para geração.
Em empresas familiares o problema da sucessão e continuidade adquire
um significado ainda maior. Indicadores apontam que a maior parte das empresas
familiares são vendidas ou dissolvidas a partir do falecimento ou retirada do sócio
fundador3. O fracasso desses negócios na continuidade das empresas familiares para
além da posse de seus fundadores tem graves conseqüências sociais e econômicas.
Assim, é possível verificar que sucessão realizada na empresa, com
base nas regras previstas na legislação cível e comercial, concede a esta
uma limitação ou um condicionamento na chamada sucessão da organização
empresária. Associar sucessão e continuidade da organização empresária não
é algo tão automático como se poderia supor. Portanto, a situação que merece
destaque é a proteção da organização empresarial para a sua continuidade e
conseqüente atendimento de sua função social.
A empresa familiar é aquela que reúne mais condições de programar
uma combinação vencedora entre a tradição e mudança, e um dos mecanismos
para que isto aconteça é a influência positiva do planejamento estratégico pelos
valores, crenças, propósitos e pela historia da família, características essas
observadas em uma organização.
HEILBRONER, Robert L. A formação da sociedade econômica. 5. Ed. Guanabara, 1964. pag. 28.
A Revista Exame 03/2005 apresentou um percentual sobre a perpetuidade das empresas: 50%
sobrevivem na primeira geração, 30% sobrevivem na segunda geração, 15% sobrevivem na terceira
geração, 4% sobrevivem na quarta geração.
2
3
40
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Alem do que, o desenvolvimento da empresa familiar é assunto de elevada
importância para o futuro da economia do país. Assim sendo, os herdeiros e
futuros executivos responsáveis por essas empresas devem ser adequadamente
treinados (Oliveira, 1999, p. 20).
Oliveira (1999, p. 18) ressalta ainda que:
“[...] a nova realidade da abertura de mercado e a globalização
consolidaram uma nova situação na economia, com forte influência nas
empresas familiares. Nesse novo cenário, o processo de crescimento
e desenvolvimento das empresas familiares depende, no mínimo, de
elevada tecnologia para que a empresa possa continuar no mercado. E,
para que isto ocorra, é necessário que a empresa familiar tenha recursos
suficientes para capitalizar a tecnologia necessária.”
O encaminhamento do processo da sucessão pode ser avaliada pelos
inúmeros casos que nos últimos anos somaram as estatísticas em várias
empresas no Brasil, perfazendo comum a expressão: “pai rico, filho nobre,
neto pobre”4. O que se pretende com o planejamento sucessório não é sintetizar
nessa expressão, afirmando que na sua ausência a função social da empresa
será perdida. O que importa é verificar que o assunto sucessão quando não
tratado no seu devido tempo, acarreta sérios problemas posteriores para a
organização empresária, para a família empresária e conseqüentemente para
a comunidade envolvida.
Diante do exposto, a definição do problema se expressa por meio da seguinte
indagação: Quais os caminhos para um efetivo processo sucessório que podem ser
decisivos para o crescimento e a continuidade de uma empresa familiar?
O objetivo é contribuir para a continuidade da atividade empresária,
através da investigação de problemas, vantagens, desvantagens, dinâmicas e
diferencias do planejamento sucessório, demonstrando que a idealização da
sucessão das atividades empresárias orientada pelos preceitos da Constituição
da República de 1988 e legislação pertinente possibilita a sobrevivência
da empresa familiar, uma vez que a satisfação dos interesses empresariais
compreende uma atuação conformadora da autonomia privada.
Os objetivos específicos consistem em verificar os diversos conceitos e
abordagens sobre a função social da atividade empresária, o processo de sucessão
previsto no ordenamento jurídico, identificação de uma empresa familiar, seus
elementos estruturais e sua inter-relação e a análise do planejamento sucessório
para a manutenção da atividade empresária.
Trata-se de uma expressão popular brasileira em alusão às famílias que com o decorrer das
gerações diminuem sua condição sócio-econômica.
4
41
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O ciclo de vida organizacional independe do ciclo de vida de pessoas físicas
envolvidas com a empresa, sejam seus fundadores, seus proprietários ou seus
administradores. Assim, por analogia ao ciclo de vida humano, que não se muda
da infância para a fase adulta, a empresa não passa por transição súbita e repentina.
Todavia é certo que os ciclos de vida do homem e da organização
empresária não coincidem, o que pode ser evidenciado com algumas pequenas
observações: o fundador geralmente já se encontra na fase da maturidade quando
a empresa está sendo fundada; muitos herdeiros nascem quando a empresa
está em sua plenitude e falecimentos ocorrem quando a empresa permanece
em funcionamento. É indiscutível a separação entre a vida da empresa e das
pessoas a ela relacionadas.
Baseados nesses fatos, saber quando uma organização terminará suas
atividades ou procurar uma resposta para a pergunta: “quanto tempo dura
uma empresa?” não devem ser preocupações para os administradores ou
proprietários de uma empresa. A preocupação deve ser ater ao fato de a
empresa estar preparada para enfrentar diversas crises com que fatalmente
irá se deparar, especialmente nas mudanças de ciclos, para que possa
permanecer ativa no mercado.
A pesquisa que ora se propõe realizar justifica-se, além da relevância
conjuntural, por pretender demonstrar que a garantia constitucional de que toda
a pessoa natural tem o direito de herança, seja qual espécie for (corpóreo e
incorpóreo) nem sempre traduz em via de sucesso para a atividade empresária,
sendo o comando da organização pelo sucessor ou herdeiro um dos maiores
desafios e oportunidade para a empresa familiar, mantendo sua função social.
Guarda relevância ainda o tema, pois destaca os preceitos da legislação
civil e comercial que buscam assegurar a sobrevivência da empresa em uma
sucessão, demonstrando a utilização do planejamento sucessório não como
fim em si mesmo, mas como instrumento para alcance da função social da
atividade empresária.
Tratar de impregnar a atividade empresária com o alicerce da Constituição
de modo a propiciar a compreensão do ciclo de vida organizacional, bem como
as influências que a vida pessoal dos familiares exerce na organização é apenas
um passo para preparar a empresa ao sucesso duradouro.
A vertente metodológica utilizada no presente pesquisa foi a vertente
jurídico-sociológica, uma vez que o trabalho preocupa-se com a faticidade do
direito e as relações contraditórias que estabelece com o próprio direito, e com
os demais campos sócio-culturais, político e antropológico.
O tipo de pesquisa das ciências sociais aplicadas à ciência jurídica
é o histórico jurídico, na qual busca desenvolver o presente trabalho com a
origem dos fenômenos em uma relação temporal de análise da causa, efeito
42
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e da sucessividade dos fatos. A natureza dos dados coletados é secundária,
consistindo nas pesquisas de doutrinas, sendo a interpretação hermenêutica
como característica do procedimento metodológico.
Através da análise da atividade empresária das empresas familiares,
compreendida em seus fundamentos, objetivos e cultura, bem como dos preceitos
legais que buscam assegurar a sobrevivência da empresa em uma sucessão da
organização, será demonstrada a utilização do planejamento sucessório não
como fim em si mesmo, mas como instrumento para alcance da função social
da atividade empresária.
2. ORGANIZAÇÕES EMPRESÁRIAS
Em grupos organizados permite-se à espécie humana enfrentar
diversidades que uma pessoa sozinha não conseguiria. Com a somatória
das forças as organizações obtêm resultados de maneira mais expressiva
que o indivíduo.
Nas organizações incluem-se não somente as sociedades empresárias, objeto
deste estudo, mas qualquer entidade como fundações, associações, sindicatos, igrejas,
clubes partidos políticos, etc. No campo da Administração de Empresas, encontramse diversas definições sobre o conceito de organizações, sendo este termo inclusive
utilizado pelos administradores para se referir a uma sociedade empresária.
Segundo Hampton (1992)5, uma organização é uma combinação
intencional de pessoas e de tecnologia para atingir um determinado objetivo,
entendendo ainda que uma sociedade empresária é uma organização. Já Daft
(2003)6 sustenta que as organizações são entidades sociais que estão direcionadas
para as metas, sendo sistemas de atividades estruturadas e coordenadas inclusive
ao meio externo.
Para Maximiniano (2006)7, as organizações são grupos sociais que
de forma deliberada buscam objetivos gerais de fornecimento de produtos e
serviços, alegando serem estes os objetivos comuns a todas as organizações.
Assim, para Adachi (2006)8, as sociedades empresárias são organizações
com personalidade jurídica própria, com cultura e independente de seus
proprietários e administradores, com o objetivo definido, que, atuando como
HAMPTON, David R. Administração Contemporânea. 3. Ed. São Paulo: Makron Books:
Pearson Eduacation do Brasil, 1992. p. 8.
6
DAFT, Richard L. Organizações: Teoria e Projetos. São Paulo: Pioneira Thomson Learning,
2003.p. 11.
7
MAXIMIANO, Antonio Cesar Amaru. Introdução à Administração. 6. ed. São Paulo, Atlas,
2006. p. 231.
8
ADACHI, Pedro Podboi. Família S.A.: gestão da empresa familiar e gestão de conflitos. São
Paulo: Atlas, 2006. P. 5.
5
43
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
sistema, interagem com as variáveis do ambiente interno e externo no qual atua.
O nosso ordenamento civil prevê em seu art. 449 quem são as pessoas
jurídicas de direito privado, que poderão ser criadas para determinado fim:
associações, sociedades, fundações organizações religiosas e partidos políticos
(BRASIL, 2009, p. 264).
A personalidade jurídica própria confere às sociedades a capacidade
de adquirir direitos e assumir obrigações, podendo figurar nos pólos ativos
ou passivos das relações, sejam jurídicas ou econômicas. Assim, as pessoas
jurídicas compõem-se por entidades diferentes de seus proprietários ou
administradores, com titulares diferentes de direitos e obrigações.
Além da personalidade jurídica própria, a cultura própria perfaz outro
elemento de diferenciação das pessoas que compõem as sociedades. Assim
como cada pessoa física possui cultura própria, peculiaridades e maneira de
agir, também são as sociedades.
Os autores Caravantes, Panno e Kloeckner (2005)10, na obra
Administração: teorias e práticas, definem a cultura de uma organização:
“As organizações podem ser consideradas um ser vivo, com personalidade.
Seu comportamento se traduz por tradição, hábitos, costumes, opiniões
atitudes, preconceitos, regulamentos e maneiras de resolver problemas
– conjunto que constitui a cultura organizacional. O Comportamento da
organização é determinado por sua cultura.”
Para Ducan (1989)11, a cultura organizacional é conjunto de valores,
crenças orientadas, conhecimentos e modelos de pensar compartilhado pelos
membros de uma organização e transmissão aos novos membros como
adequado.
A cultura dentro de uma sociedade é observada pela padronização definida
em seu funcionamento, vinda principalmente da concepção de seus fundadores
que acabam integrando o modus operandi da atividade empresária, através
da criação de ritos, histórias, símbolos, slogans, linguagem, comportamento,
atitudes, tradição, costumes e hábitos.
A cultura permitem às pessoas que fazem parte da sociedade organizarem
a atividade empresária, possibilitando em primeiro plano que se atinja os
BRASIL. Código Civil, Comercial, Processo Civil e Constituição Federal (2002). Código Civil:
5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
CARAVANTES, Geraldo R.; PANNO, Claudia C.; KLOECKNER, Mônica C. Administração:
10
teorias e processos. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005. p. 255.
11
DUCAN, Jack. Organizational Culture: getting a fix on a elusive concept. Acadmy of
Management Executive 3. 1989. p. 229.
9
44
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
objetivos contratuais e estatutários12 pelos quais foi criada, observado os
preceitos legais, e, em segundo plano, a longevidade da atividade, que
utilizando de comportamentos padronizados acaba por utilizar métodos mais
conservadores e avaliar melhor as novas opções.
Adachi (2006)13 entende que, a organização tem como escopo principal
revelar a orientação geral do negócio pelo qual foi criada, tanto para os membros
da organização como para terceiros envolvidos na atividade da sociedade, seja
fornecedor, cliente, credor ou interessado.
Já o sistema é caracterizado pelo procedimento adotado na
organização para viabilizar a integração com os mais diversos setores
internos e externos, proporcionando que o resultado do processo permita
a manutenção desta atividade.
A relação da organização com o ambiente externo causa reflexos com
diversas entidades e encontram-se em constante troca14. Daft (2003)15 diz que,
o ambiente organizacional é caracterizado como os elementos que existem fora
dos limites da organização e que tem o poder de afetá-la no todo ou em parte.
A organização empresária é criada para manter uma relação dinâmica
com seu ambiente, sejam clientes, competidores, organizações de trabalho,
fornecedores, governo, entre outras. Portanto, a integração se perfaz forçosa
vez que as sociedades não são sistemas fechados e possuem a necessidade de
constante interação com outras entidades para consecução de seus fins.
3. DIRETRIZES SOBRE UMA EMPRESA FAMILIAR
Comumente, de forma incompleta e equivocada conceitua-se a empresa
familiar como aquela em que os membros da família trabalham. Em verdade,
O Art. 2ª da Lei 6.404/76, conhecida como a Lei das Sociedades por Ações, dispõe em seu art.
2º sobre o objeto social: Art. 2º Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo,
não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes. § 1º Qualquer que seja o objeto, a
companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio.§ 2º O estatuto social definirá o
objeto de modo preciso e completo.§ 3º A companhia pode ter por objeto participar de outras
sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o
objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais
13
ADACHI, Pedro Podboi. Família S.A.: gestão da empresa familiar e gestão de conflitos. São
Paulo: Atlas, 2006. P. 11
14
Para designar um conjunto de diversa entidades que influenciam uma organização é comumente
utilizada uma expressão da Língua Inglesa, stakeholders, sem equivalente em Português, que
significa indivíduo ou grupo que possa sofrer influência por alguma coisa, especialmente quem
investe em um negócio (someone who will be affected by something, especially someone who puts
Money into a business)
15
DAFT, Richard L.: Organizações: teorias e projetos. São Paulo: Pioneira Thompson Leraning,
2003. p. 122.
12
45
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
pode-se considerar uma empresa familiar como sendo qualquer organização
na qual uma ou poucas famílias concentram o poder de decisão envolvendo
o controle da sociedade e, eventualmente, a participação na gestão.
O pioneiro sobre este assunto no Brasil, João Bosco Lodi (1987, p.
5), em seu livro “A Empresa Familiar”, tratou o assunto da seguinte forma:
“No Conceito de Donnelley, a empresa familiar é aquela que se
identifica com uma família há pelo menos duas gerações e quando
essa ligação resulta numa influência recíproca.
[...]
Na geração do fundador a firma é quando muito pessoal e não familiar”
Nesta esteira, René A. Werner (2004, p. 20) assim conceitua empresas
familiares:
“A empresa familiar pode ser definia como: I- Aquela que nasceu de
uma só pessoa, um self made man (empreendedor). Ele a fundou, a
desenvolveu, e, com o tempo, a compôs com membros da família a
fim de que na sua ausência, a família assumisse o comando. II – a
que tem o controle acionário nas mãos de uma família, a qual em
função desse poder; mantém o controle da gestão ou de seus direção
estratégica.”
Uma definição mais ampla foi apresentada por Werner Bornholdt
(2005, p. 34):
“Uma empresa familiar é aquela organização com vínculos que
vão além do interesse societário e econômico. Considera-se uma
empresa familiar quando um ou mais dos fundamentos a seguir
podem ser identificados numa organização ou grupo de empresas: a)
o controle acionário pertence a uma família e/ou a seus herdeiros; b)
os laços familiares determinam a sucessão no poder; c) os parentes
se encontram em posições estratégicas, como na diretoria ou no
conselho de administração; d)as crenças e valores da organização
identificam-se com os da família; e) os atos dos membros da família
repercutem na empresa, não importando se na atuam; f) ausência
de liberdade total ou parcial de vender suas participações/quotas
acumuladas ou herdadas na empresa.”
46
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Leone (2005, p.9) trabalha o conceito de empresa familiar em quatro fatores:
“Caracteriza a empresa familiar pela observação dos seguintes fatos:
iniciada por um membro da família; membros da família participando da
propriedade e/ou direção; valores institucionais identificando-se com um
sobrenome da família ou com a figura do fundado; e sucessão ligada ao
fator hereditário.”
Oliveira (1999, p.18)16 contribui para a formulação do tema,
conceituando a empresa familiar pela sucessão do poder decisório de maneira
hereditária a partir de uma ou mais famílias. Assim, a empresa familiar pode
ser verificada como uma organização, com uma ou poucas famílias, restando
presentes: a concentração do poder decisório, o controle da sociedade e
eventual participação na gestão.
O emprego do termo família na definição de empresa familiar implica em
aspectos relacionados à sucessão, representando um elo emocional que une os
seus familiares, como a prevalência do amor e proteção entre seus membros.
Segundo Adachi (2006), é possível encontrar pesquisas que apontem que
cerca de 90% (noventa por cento) das empresas em operação no mundo são
familiares, assim como existem profissionais do ramo que afirmam que as empresas
familiares constituem 60% (sessenta por cento) das organizações mundiais.
Continua o autor elucidando exemplos de empresas familiares, desde os
pequenos estabelecimentos como um pequeno bar administrado pela família, a
organizações multinacionais como o Wal-Mart, uma das maiores empresas em
faturamento no mundo. São também exemplos o Grupo Pão de Açúcar, o Itaú, a
Gerdau e a Votorantim.
Grande parte dos negócios inicia a sua atividade como uma empresa
familiar, através de um objetivo traçado pelo empreendedor fundador, buscando
o desenvolvimento desta atividade para o conseqüente desenvolvimento familiar.
4. DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
Sendo inquestionável a importância das organizações empresárias
assumida na atualidade, torna-se imprescindível avaliar alguns contornos e
papéis que estas podem desempenhar, promovendo os valores protegidos pela
Constituição e pela legislação, para identificarmos a sua ligação ao planejamento
em uma empresa familiar.
OLIVEIRA, Djalma de Pinho Rebouças de. Empresa Familiar: como fortalecer o
empreendimento e otimizar o processo sucessório. São Paulo: Atlas, 1999. p. 18.
16
47
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Para Guilherme Calmon Nogueira Gama (2007)17, a importância provém
do dinamismo e do poder de transformação do regime empresarial, que se
expressa de diversas formas dentre as quais cabe destacar, a criação de uma
extensa rede de interação e de interdependência entre agentes econômicos
assalariados e não assalariados que gravitam em torno dos empreendimentos
empresarias, a grande parcela de bens e de serviços produzidos por aqueles
e consumidos pela população, além da significativa fração de receitas fiscais
provindas do exercício dessa atividade.
Já para Fábio Konder Comparato (1985)18, a atuação mais marcante
à sociedade empresária diz respeito a sua influência na determinação do
comportamento de outras instituições e grupos sociais. Estas breves ponderações
já permitem evidenciar o interesse do estudo dos contornos atuais da empresa
para associar com a idéia de continuidade, objetivo deste estudo.
O conceito de função social nasceu vinculado ao conceito da propriedade.
Em seu estudo sobre o assunto, GAMA (2007) traz a baila o questionamento de
dois autores, que segundo ele tornaram-se expositores deste tema, Karl Renner
e Léon Duguit. Para o primeiro doutrinador, possuidor de uma visão marxista,
a função social de um instituto jurídico corresponderia à imagem da função
econômica do mesmo instituto, e, alterada a função econômica estaria alterada
a função social. Neste aspecto, ao ser a sociedade empresária caracterizada
como centro produtor de riquezas, mediante capital e trabalho, haveria a função
social, sendo portanto, a função social o reconhecimento de uma realidade.
Esta doutrina foi criticada por Eduardo Tomasevicius (2003)19, que
afirma que uma propriedade improdutiva exerce uma função econômica de
reserva de valor. Se a função social fosse uma imagem da função econômica,
a propriedade improdutiva também atenderia à sua função social. Tendo em
vista ser inaceitável a existência de propriedades improdutivas, isso significa
que a função social não coincide com a função econômica do instituto jurídico.
No caso das empresas, bastariam elas estarem funcionando para atender à sua
função social. Além disso, o autor ainda afirma que a economia pode mudar
sem implicar em mudança para o direito e vice e versa.
Já para Duguit, a função social substitui a expressão individualista da
vontade humana e não há a preocupação para o exercício legítimo de institutos
como a própria propriedade20. Posição também criticada por padecer de excessiva
GAMA, Guilherme Calmo Nogueira da; BARTHOLO Bruno Paiva. Função Social da Empresa.
RT 857/96. São Paulo: Revistas dos Tribunais. Mar. 2007.
18
COMPARATO, Fábio Konder. A reforma da empresa. Revista Forense. v. 290. Rio de Janeiro:
Forense, 1985. P.9.
19
TOMASEVICIUS, Eduardo. A função Social da Empresa. RT 810/35. São Paulo: Revista dos
Tribunais. Abr. 2003.
20
Para o Duguit a função social é “(...) a la vez realista y socialista: realista, porque descansa en
17
48
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
supressão de liberdade individual, pois não faz diferenciação necessária entre a
definição de um direito e a subordinação de um bem.
O autor Comparato (1996)21 elucida que usa-se o termo função para
designar a finalidade legal de um instituto jurídico, ou seja, o bem ou valor
em razão do qual existe, segundo a lei, esse conjunto estruturado de normas.
Acrescenta que a função jurídica pode também ser tomada num sentido mais
abstrato, como atividade dirigida a um fim e comportando, de parte do sujeito
agente, um poder ou competência.
O conceito da função social da empresa, segundo Comparato, têm base
no binômio direito subjetivo e dever jurídico, elucida que:
“Se analisarmos mais de perto esse conceito abstrato da função, em suas
múltiplas espécies, veremos que o escopo perseguido pelo agente é sempre
o interesse alheio, e não o próprio do titular do poder. O desenvolvimento
da atividade é, portanto, um dever, mas exatamente, um poder-dever: e
isto, não no sentido negativo, de respeito a certos limites estabelecidos
em lei para o exercício da atividade, mas na acepção positiva de alto que
dever ser feito ou cumprido.”
Quando a função é exercida em benefício da coletividade, nela e somente
nela, que se deve falar em função social. Este fenômeno da funcionalização da
propriedade e dos demais institutos reflete a necessidade de condicionamento
do exercício dos respectivos direitos aos interesses maiores da sociedade,
representados pelas previsões constitucionais.
Nesta análise, Gama (2007) alega que a existência de uma função
social da empresa não seria mera conseqüência da associação entre o poder de
controle empresarial, na direção dos bens incorporados a uma exploração por
el hecho de la función social observado y comprobado directamente; socialista, porque descansa
en las condiciones mismas de la vida social. La regla jurídica, que se impone a los hombres, no
tiene por fundamento el respeto y la protección de derechos individuales que no existen, de una
manifestación de voluntad individual que por si misma no puede producir ningún efecto social.
Descansa en el fundamento de la estructura social, la necesidad de mantener coherentes entre
si los diferentes elementos de la estructura social, la necesidad de mantener coherentes entre si
los diferentes elementos sociales por el cumplimiento de la función social que incumbe a cada
individuo, a cada grupo. Y así, es como realmente una concepción socialista del derecho sustituye
a la concepción individualista tradicional.” DUGUIT, León. Las transformaciones del derecho
privado. Las Transformaciones generales del derecho (publico y privado). Buenos Aires: Heliasta,
1975, p. 181.
21
COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. RT 732/41. São Paulo: Revistas
dos Tribunais, 1996.
49
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
uma empresa, e a função social da propriedade em si, já que o fenômeno da
funcionalização seria estendido a todos os institutos do direito, considerados
em si mesmos e dentro de suas potencialidades.
Afirma o autor que a realização da empresa deve ser ater ao princípio
da livre iniciativa e aos demais parâmetros constitucionais que regem o
exercício da atividade econômica, quando só então merecerá a devida tutela,
justificando assim a fundamentação de alguns autores na relação da função
social da empresa com o artigo 170 da Constituição da República de 1988
(BRASIL, 2009, p. 87)22, uma vez que este preceito adensa o conceito da
função social, determinando-lhe um teor mínimo do qual possa decorrer
direitos positivos e negativos.
Mas em que consistem os deveres positivos de um proprietário em relação
a coletividade? Esse questionamento ainda é ponto de discussão da doutrina,
mas o que parece haver é um consenso no que tange à vinculação social da
propriedade privada não perfazer uma imposição direta (dever negativo) ao
proprietário no uso de seus bens, notadamente os imóveis.
De qualquer forma, Comparato (1996) elucida que no conjunto de
normas constitucionais relativas à função social da propriedade é que o Estado
exerce um papel decisivo e insubstituível na aplicação normativa. Um Estado
despreocupado com o bem estar da população não tem legitimidade para exigir
dos proprietários o cumprimento de sua função social.
Para a atividade empresarial, indubitável é o reconhecimento da norma
na proteção de interesses internos e externos e nas pessoas que dela participam,
mas também os interesses da comunidade na qual está inserida.
Dentro deste espectro, qual será o dever positivo de um empresário diante
do conflito entre o interesse próprio e o interesse da coletividade? Poderá ele
deixar de lado a consecução do lucro, abaixando inclusive os preços de seus
produtos e serviços atendendo o interesse da comunidade?
BRASIL. Código Civil, Comercial, Processo Civil e Constituição Federal (2002). Constituição
Federal 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
O artigo 170 da Constituição Federal de 1988, prescreve que: A ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania
nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42 , de 19.12.2003) VII - redução das
desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido
para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6 , de 1995) Parágrafo único.
É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de
autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
22
50
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Comparato (1996) alerta que a idéia das empresas estarem obrigadas
de um modo geral a uma função social para a coletividade é uma insanável
contradição. A doutrina contemporânea passou a ver a empresa não somente
como uma unidade de produção de bens e prestação de serviços, mas também
como uma organização produtora de lucros.
Cateb (2011)23, sobre a função social diz que a empresa se propõe ao
exercício de determinada atividade, de forma lícita e eficaz, gerando empregos
e tributos, produzindo riquezas e satisfazendo os interesses de seus acionistas,
atendendo assim às necessidades do mercado e da sociedade.
A empresa, portanto, é utilizada pelo Estado não como fim, mas como
meio para atingir os valores constitucionais. A iniciativa econômica privada é
amplamente condicionada no sistema constitucional, e se é implementada na
atuação empresarial, e esta se subordina ao princípio da função social, para
realizar ao mesmo tempo o desenvolvimento nacional, assegurada a existência
digna de todos, conforme ditames da justiça social. Bem se vê que a liberdade
de iniciativa só se legitima quando voltada para a efetiva consecução desses
objetivos da ordem econômica, fins e valores da ordem econômica.
5. O PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO E SUA RELAÇÃO
Max Weber (1946)24, um dos grandes sociólogos alemães, foi um dos
primeiros a identificar a importância de ter o fundador de uma organização,
de entregar o poder a um sucessor que pudesse solidificar as estruturas
administrativas necessárias para o desenvolvimento contínuo de uma sociedade
empresária. O autor ainda referiu a este processo como a institucionalização
do carisma e disse que esta se traduz em um dos maiores desafios de um líder.
A empresa familiar é aquela que reúne mais condições de programar
uma combinação vencedora entre a tradição e mudança, e um dos mecanismos
para que isto aconteça é a influência positiva do planejamento estratégico pelos
valores, crenças, propósitos e pela historia da família, características observadas
na organização.
Um membro da família muitas vezes tem a visão da empresa como a
importante parte da identidade familiar, como patrimônio e como fonte de
segurança financeira que possibilitará a satisfação de suas expectativas de vida.
Neste aspecto, a empresa funciona como mãe, cuja função é nutrir e unir os
membros familiares. Por outro lado, os Administradores têm uma visão de
CATEB, Alexandre Bueno; OLIVEIRA, Fabrício de Souza. Breves anotações sobre a função
social da empresa. Disponível em :< www.amde.org.br> Acesso em: 30/01/2011.
24
WEBER, Max. The theory of social economic organization. (T. Parsons. Trans.) New York:
Oxford University Press, 1946.
23
51
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
estarem as suas carreiras vinculadas à empresa e tendem a considerar o negócio
como veículo para a realização profissional e econômica25.
Mas em que consiste um planejamento sucessório em empresas
familiares?
A priori, consiste na diferenciação entre herdeiro e sucessor. Herdeiro
na definição do dicionário é aquele que sucede na totalidade ou em parte da
herança, seja por força de lei, seja por distinção de testamento. Já Sucessor é
aquele que sucede a outrem ou que o substitui em cargo, funções.
Segundo Adachi (2006), o herdeiro está relacionado à sociedade
empresária, quando ingressa no quadro societário em virtude de recebimento de
participação societária como herança de um falecido sócio, estando diretamente
relacionado à sucessão de patrimônio. Já o sucessor vincula-se ao negócio, à
substituição do cargo profissional, à administração da organização empresária.
Ressalta-se que o termo sucessão no âmbito do direito civil não se confunde
com a proposta deste trabalho.
Os preceitos civis ao prescreverem o direito de herança, regulam tão
somente a questão da transferência da titularidade do direito patrimonial, não
visualizando a existência de legitimidade daqueles que por direito receberão a
herança e passarão a compor o quadro societário das organizações empresárias.
Para Bernhoeft (2006)26, a legitimidade é fruto da conquista pessoal dos
sucessores. Depende do desejo de assumir essa posição, da capacitação para
os negócios e o reconhecimento por parte de todos. Sendo necessário a todo o
processo de planejamento da sucessão e da continuidade o desenvolvimento de
lideranças por parte do fundador.
Outra base do planejamento consiste em enxergar a empresa familiar
como um sistema formado por três subsistemas: família, patrimônio e empresa.
Entender esses três subsistemas, seus valores essenciais e a forma de interação de
cada um deles é fundamental para a família empresária e conseqüentemente para
o próprio planejamento da sucessão e da continuidade da atividade empresária.
A empresa enquanto encontra-se pelo controle do fundador, a família,
patrimônio e a empresa estão todos mesclados, sem nenhuma distinção,
constituindo quase que uma unidade. Há ainda uma forte presença do fundador,
ilustrada pela clássica figura do pai patriarca e da mãe gestora do lar. Neste
diapasão o patrimônio é uno e não precisa ser dividido. A relação entre o
fundador e a empresa é vinculada a uma forte questão emocional.
LANSBERG, Ivan. The Succession Conspirancy. Family Business Review. Disponível em: <www.
lgassoc.com/Articles/customer-files/116-TheSuccessionConspiracy.pdf> Acesso em 30/11/2009.
26
PASSOS, Édio, BERNHOFT, Renata, BERNHOFT, Renato, TEIXEIRA, Wagner. Família,
família, negócios à parte: como fortalecer laços e desatar nós na empresa familiar. São Paulo:
Editora Gente, 2006, p. 46.
25
52
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Este estágio traz questões importantes para a organização empresária,
como rapidez nas decisões permitindo acompanhar novas tendências do
mercado face o comando centralizado.
Os três subsistemas começam a tornarem-se mais complexos quando há
a alternância da primeira para a segunda geração da família de sua organização
empresária. Neste momento, quando há o ingresso de outros membros da
família na gestão da sociedade, passa a ter importância a análise de cada um dos
subsistemas, uma vez que, passará a ter relevância a observação diferenciada
de cada um deles.
O planejamento consistirá, neste momento, na identificação definida
e separada de cada um destes subsistemas, permitindo ao fundador e a seus
familiares um maior controle sobre a sociedade.
O subsistema patrimônio é formando por tudo a que os herdeiros terão
direito por força legal, incluindo portanto imóveis, investimentos, participações
em outras companhias, alem da própria empresa.
Nas gerações seguintes há uma tendência no aumento da demanda de
liquidez, fruto do crescimento familiar. Em razão desta maior necessidade, um
planejamento patrimonial perfaz uma segurança maior para família empresária,
sendo o meio adequado para separar os riscos da empresa dos riscos pessoais,
numa via de mão dupla.
Por outro lado, os outros dois subsistemas começam a ser definidos por
acordos societários que deve ser construído pelas partes, com participação
de todos e de forma consensual. O acordo societário deve fixar uma missão
coletiva que viabilize a sobrevivência da família empresária.
De forma prática, observando a cultura da organização empresária,
o acordo societário deverá ser composto por questões de ordem legal, como
critérios e regras de participação societária, e por questões de ordem moral e
ética, como as regras de entrada de familiares na empresa da família.
Bernhoeft (2006)27 elucida ainda que, a finalidade do planejamento
sucessório é que a família empresária discuta os valores da família, formalizando
instrumentos que possibilitem a profissionalização da atividade empresária,
através de mecanismos que definam o que se entende por família, remuneração
de seus membros, familiares que trabalham na empresa, utilização de bens e
instalações, código de ética, entre outros.
O planejamento é ferramenta fundamental para o sucesso de qualquer
empresa, e o planejamento sucessório permite alinhar valores da família
com a cultura da organização, sendo a sua falta apontada como uma das mais
27
PASSOS, Édio, BERNHOFT, Renata, BERNHOFT, Renato, TEIXEIRA, Wagner. Família,
família, negócios à parte: como fortalecer laços e desatar nós na empresa familiar. São Paulo:
Editora Gente, 2006, p. 62.
53
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
importantes razões porque várias empresas da primeira geração não sobrevivem
em relação aos seus fundadores.
6. CONCLUSÃO
Sem negar os princípios contratualistas, que em certa medida, dominam
o nosso direito societário, pode-se afirmar que as sociedades pressupõem, em
princípio, certa duração e organização em vista de um resultado, por forma a
sobrepor a vontade coletiva às dissidências individuais, com mira na realização
do fim comum. As sociedades comerciais apresentam um caráter duradouro, não
ocasional, já que exercício do comércio ou indústria exigem uma organização
estável, cuja rápida desintegração implica a perda de valores econômicos.28
O princípio da preservação da empresa interessa ao Direito e à
Economia, pela proteção que oferece na continuidade dos negócios sociais.
O princípio da preservação da empresa é gênero no qual a continuidade das
atividades compõe espécie29.
A identificação e a conjugação dos institutos família, empresa e
patrimônio, contribui significativamente para que todas as sociedades
familiares apresentem histórias, com certa previsibilidade. Ao mesmo tempo,
cada empresa familiar é única e diferente em sua especificidade. Em que pese,
parecerem contraditórios estes argumentos, são explicados pela previsibilidade
de seus estágios evolutivos e da constatação de que pessoas diferentes precisam
encontrar um objetivo comum dentro da organização. Já a especificidade é
relativa à cultura familiar existente.
A primeira geração de uma família empresária tem uma pesada
dependência de seus fundadores, não somente pela liderança e direção, mas
também pela sua introdução aos negócios e pela transferência do conhecimento.
Sem um planejamento, ocorre uma privação em uma série de recursos
gerenciais desta atividade. Entretanto, se o planejamento sucessório é evitado,
a saída inesperada de seu fundador pode causar perturbações no padrão de
autoridade e distribuição da propriedade. Nesta situação, os conflitos surgem
tão intensamente que torna inviável realizar decisões estratégicas necessárias
para garantir o futuro da empresa. A falha no planejamento sucessório sempre
ameaça o bem estar financeiro da família, deixando muitas questões sem
resposta, ocasionando a venda ou o fechamento muitas vezes como resultado.
O planejamento sucessório permite uma maior capacidade de resposta
diante das mudanças, possibilitando mais informações e reduzindo as
NUNES, A. J. Avelãs. O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais, 2002. pag. 51
FACHIN, Luis Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2º ed. revista e atualizada. Rio
de Janeiro: Renovar, 2006, pag. 186
28
29
54
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
incertezas, contribuindo para com os interesses da família e renovação da
liderança familiar e societária.
Deste modo, face à imediata exigibilidade da observância à função social
da empresa, em atendimento aos preceitos constitucionais, deve toda a atividade
empresarial ser conduzida conforme seus ditames, sem deixar o empresário
fundador de adotar a técnica sistêmica, garantido a atividade empresária a sua
manutenção.
55
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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57
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL PELOS CAMINHOS DA MEDIAÇÃO:
A PRESERVAÇÃO DA EMPRESA COM SOLUÇÕES DINÂMICAS
EXTRAJUDICIAL RECOVERY FOR WAYS MEDIATION:
THE PRESERVATION OF THE COMPANY WITH DYNAMIC SOLUTIONS
Sávio Raniere Pereira Pinto
Renata Christiana Vieira Maia
RESUMO
O presente trabalho analisa a possibilidade de realização da Recuperação
Extrajudicial através da Mediação. A Lei 11.101/2005, inspirada em leis
falimentares e recuperacionais estrangeiras, estabeleceu o paradigma da
preservação da empresa, trazendo o instituto da Recuperação de Empresas,
que pode ser judicial ou extrajudicial. A Recuperação Extrajudicial não tem
sido muito utilizada no Brasil. A doutrina pouco se preocupou em delimitar
as formas de elaboração do plano de recuperação extrajudicial. A dinâmica
empresarial necessita de um método que realmente contribua para a preservação
da empresa e a preservação das relações entre credores e o devedor-empresário.
A mediação é um mecanismo capaz de atender as expectativas do mundo
empresarial contribuindo nas soluções para as crises econômicas. Podem ser
várias as formas de elaboração do plano extrajudicial, mas a mediação oferece
campo propício para o diálogo e a integração no mundo empresarial por suas
vantagens. A Recuperação Extrajudicial pode ser realizada pela mediação,
desde que credores e o devedor assim convencionem.
Palavras-Chave: Preservação da Empresa; Recuperação Extrajudicial; Mediação
ABSTRACT
This study analyses the possibility of conducting an Extrajudicial
Recovery through Mediation. The Law no.11.101/2005, inspired
by bankruptcy and foreign recovery laws, established the paradigm
of company preservation,bringing the institute of Corporate Recovery,
which can be judicial or extrajudicial. The Extrajudicial Recovery has
59
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
not been widely used in Brazil. The doctrine has not been concerned in
defining the ways of preparing an extrajudicial recovery plan. The business
dynamic needs a method that actually contributes to the company’s
survival and the preservation of the relations between creditors and the debtorentrepreneur. The Mediation is a mechanism able tomeet the expectations
of business world contributing with solutions to economic crises. There
can be several ways to elaborate an extrajudicial plan, but Mediation offers a
proper field for dialogue and integration into business world, because of
its advantages. The Extrajudicial Recovery can be accomplished through
the mediation, whereascreditors and debtors have agreed as well.
Keywords: Preserving Company; Extrajudicial Recovery; Mediation
1. INTRODUÇÃO
O ordenamento jurídico brasileiro inovou com a Lei 11.101 de 2005 que
trata da falência e recuperação de empresas, ultrapassando uma ótica meramente
liquidatória para o enfoque na preservação da empresa30. Essa perspectiva tem
em vista a função social da empresa. A empresa é conceituada como atividade
economicamente organizada para produção e circulação de bens e serviços. O
modelo pró-credor, da legislação anterior sobre falência, não convergia com
os interesses sociais que giram em torno da empresa, ficando completamente
desgastado frente às noções da ordem econômica e do paradigma do Estado
Democrático de Direito, instituído com a Constituição da República de 1988.
A nova ordem jurídica leva em conta os interesses sociais que circundam
a empresa. Antes da legislação falimentar e recuperacional vigente, o modelo
inspirava-se no incentivo à liquidação do patrimônio do devedor, distribuindo-o
entre os credores – culminando no encerramento das atividades produtivas. Não
havia prestígio da empresa como atividade organizada. O instituto da concordata,
por exemplo, não alcançava a teleologia da preservação da empresa31.
Com Lei 11.101 de 2005 a tentativa é de superação da crise-econômica
do devedor-empresário através do instituto da Recuperação de Empresa para a
manutenção de suas atividades, ou a maximização dos ativos do devedor para
solver os credores num procedimento falimentar eficiente e célere. Mas a falência
é exceção, visto que os graves efeitos de uma decretação de quebra demandaram
uma ordem mais adequada para atender a função social da empresa viável.
A Recuperação Extrajudicial é uma novidade trazida pela nova
Lei de Falência e Recuperação de Empresa (LFRE). Está disciplinada nos
FERNANDES, Jean Carlos. Direito Empresarial Aplicado. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 169.
Ibid., 2005, p. 178.
30
31
60
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
artigos 161 a 167 da Lei 11.101/2005. Tal instituto não existia no revogado
Decreto-lei 7.661 de 1945. Com a Recuperação Extrajudicial o legislador
abriu possibilidade para que haja negociação entre os credores e o devedorempresário, no intuito de recuperar aquele que se encontra em crise
econômico-financeira e preservar a empresa para que esta atenda o interesse
social, atendendo também à satisfação dos credores.
A extrajudicialidade tem sido instituída na legislação brasileira para dar
eficiência às disposições legais e/ou desburocratizar os procedimentos judiciais.
No entanto, a Recuperação Extrajudicial ainda é pouco utilizada. Além disso, a
doutrina brasileira não tem se preocupado em delimitar as formas de se utilizar
a Recuperação Extrajudicial para a preservação das atividades econômicas.
A exploração das maneiras de realizar a recuperação de uma empresa, pela
via extrajudicial, poderia contribuir para o aumento de sua utilização prática,
oferecendo opções àqueles que pretendem recuperar a empresa, além de se
verificar quais os métodos que são verdadeiramente eficientes para a recuperação
extrajudicial das empresas em crise.
Percebeu-se nos últimos anos o avanço de um movimento de
desjudicialização, que se caracteriza pela simplificação processual ou o recurso
a métodos menos formais para soluções de conflitos e o surgimento de estruturas
não judiciais para dirimir questões conflituosas. Um dos frutos do movimento
de desjudicialização é a mediação, que é um aperfeiçoamento da negociação,
na qual existe um terceiro que facilita o diálogo entre as partes para que
possam chegar a um acordo mutuamente aceito. Na mediação há espaço para a
comunicação e para a superação das diferenças entre as partes, valorizando os
interesses de todos os envolvidos. A mediação é pautada pela voluntariedade e
a participação ativa dos envolvidos.
Neste ponto, é possível que se realize a Recuperação Extrajudicial
de sociedades empresárias utilizando-se a mediação? A mediação é um
procedimento eficaz e adequado para a elaboração do plano de recuperação
extrajudicial de empresários e sociedades empresariais?
À primeira vista, na Recuperação Extrajudicial, o devedor que passar
por um momento de crise, pode apenas propor e negociar diretamente com
credores um plano de recuperação extrajudicial. As formas intermediadas
estariam excluídas?
O objetivo deste artigo é compreender os preceitos trazidos pela Lei 11.101
de 2005 (Lei de Falência e Recuperação de Empresários), suas implicações para
as sociedades empresárias e para a sociedade em geral; além de verificar o âmbito
de aplicação da mediação como forma de solução de questões conflituosas e
as vantagens que tal procedimento tem para a realização da recuperação de
empresas, na forma extrajudicial. Especificamente, os objetivos do trabalho
61
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
se traduzem na verificação da eficiência da mediação dentro da Recuperação
Extrajudicial disciplinada na Lei 11.101 de 2005, tendo em vista a nova ordem
jurídica inaugurada por esta lei e a ordem econômica pautada pelos princípios
do Estado Democrático de Direito. A intenção é averiguar as relações privadas
entre credor e devedor no Direito Empresarial e a possibilidade de utilização
da mediação para a Recuperação Extrajudicial de sociedades empresárias sob a
ótica da ordem jurídica e econômica.
A compreensão das relações entre as sociedades empresariais e também
do ordenamento jurídico deve estar inserida em seu contexto específico, tendo
em vista os aspectos diversos que exercem influência nessas relações. Deste
modo, no que tange à metodologia, é necessário partir-se de uma visão geral
para entender o contexto dos objetos de estudo e, posteriormente, particularizar,
definindo, criticando e reconstruindo os institutos da pesquisa. Desta forma, este
artigo foi desenvolvido com a reflexão de textos sobre falência e recuperação do
empresário e sociedades empresariais e também sobre o processo e mediação,
buscando-se a historicidade dos institutos e sua fundamentação.
Justifica-se o presente trabalho na tentativa de concretizar a preservação
da atividade econômica e a função social da empresa de um modo eficiente,
eficaz e vantajoso – através da Recuperação Extrajudicial e da mediação. A
reestruturação e o saneamento das empresas (atividades produtivas) podem
beneficiar não somente os credores, mas o próprio devedor-empresário e
todos os interesses sociais e econômicos que circundam as atividades de
circulação e produção de serviços e bens. Com a instituição da recuperação
de empresas pela Lei 11.101 de 2005 se deduz que a empresa é considerada
uma instituição de desenvolvimento social e econômico. A mediação, neste
viés, pode se constituir como um acréscimo à noção recuperacional, no intuito
de propiciar não só a elaboração do plano de recuperação extrajudicial, mas a
manutenção das relações privadas entre os empresários (credores e o devedor),
com a valorização do diálogo e a aproximação entre sujeitos com interesses
inicialmente conflitantes.
Em primeiro lugar, é realizado um histórico da legislação brasileira
sobre falência. No capítulo imediatamente posterior parte-se para a análise
da reforma do direito falimentar brasileiro realizada em 2005. Nesse capítulo,
trazemos os motivos da reforma, tratando do insustentável modelo pró-credor,
da reforma positiva no direito falimentar brasileiro e a nova perspectiva do
direito falimentar e recuperacional. O quarto ponto tratará especificamente do
paradigma da preservação da empresa introduzido pela Lei 11.101 de 2005.
Depois, passamos à análise da recuperação extrajudicial em ordenamentos
estrangeiros e no Brasil. Já no sexto capítulo, abordamos a mediação, com
sua definição, preceitos e vantagens. Em seguida, será discutida a aplicação
62
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
da mediação na recuperação extrajudicial. Ulteriormente, são estabelecidas as
ressalvas à utilização da mediação para elaboração do plano de recuperação
extrajudicial. Por fim, no último tópico, expomos as considerações finais sobre
o tema proposto.
2. HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE FALÊNCIA
A legislação aplicada no Brasil sobre o concurso de credores era
primeiramente a de Portugal. Até meados do século XIX com a instituição do
Código Comercial brasileiro, a falência era regida pelas Ordenações Afonsinas,
depois pelas Ordenações Manuelinas e, por fim, pelas as Ordenações Filipinas
decretadas no ano de 1603, que continham regras mais específicas sobre a quebra32.
Não se pode dizer que tal regramento era a falência especificamente. Todavia,
em 1756 foi promulgado um Alvará por Marquês de Pombal, o qual instituiu um
processo de falência eminentemente mercantil, inclusive com juízo comercial.
A aplicação da legislação portuguesa perdurou em solo brasileiro mesmo
depois de proclamada a independência em 1822. Somente com o advento do
Código Comercial brasileiro de 1850 e o Decreto n. 738 do mesmo ano é
que se passou a disciplinar as denominadas “quebras” e sua regulamentação
processual. Posteriormente, por numerosos problemas dessa legislação, a
regulamentação das quebras foi derrogada pelo Decreto n. 917 de 1890, que
instituiu a concordata extrajudicial no direito brasileiro33. Entretanto, este
decreto de 1890 não fora suficiente para conter fraudes e abusos em matéria
falimentar. O referido decreto foi substituído pela Lei n. 859 de 1902, que foi
sucedido pela Lei n. 2.024 em 190834. Este último diploma legislativo, que vigeu
por 20 (vinte) anos, extirpou do ordenamento a concordata extrajudicial. No
ano de 1929 a lei foi alterada pelo Decreto n. 5.746 e posteriormente revogada
pelo Decreto-lei 7.661 de 1945.
O Decreto-lei 7.661 de 1945 focava o comerciante individual,
sendo que as sociedades mercantis e as sociedades por ações ficavam em
segundo plano. O legislador falimentar de 1945 não enxergou a importância
da atividade econômica organizada. Naquela época vigorava no direito
brasileiro os Atos de Comércio e não a Teoria da Empresa, que somente foi
instituída com o Código Civil brasileiro de 2002. A legislação que vigorou
NEGRÃO, Ricardo, Manual de direito comercial e de empresa: v. 3. 2 ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 10.
33
COSTA JÚNIOR, José Vinícius Bicalho. O princípio da preservação da empresa e o instituto
da recuperação extrajudicial no direito brasileiro: A responsabilidade social do empresário. Nova
Lima: Faculdade de Direito Milton Campos / FDMC, 2006. Dissertação de mestrado. p. 27.
34
Ibid., 2006, p. 28.
32
63
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
até 2005 possuía caráter repressivo e processual35, mostrando-se ineficiente
perante a realidade econômica brasileira. O Decreto-lei 7.661/1945 tinha
um perfil meramente liquidatório.
Sofrendo severas críticas da doutrina pátria, a legislação de 1945 ainda
perdurou por 6 (seis) décadas até o advento da então vigente Lei 11.101 de 2005,
que regula a recuperação e falência do empresário e da sociedade empresária –
denominado devedor ou devedor-empresário.
3. A REFORMA DO DIREITO FALIMENTAR BRASILEIRO
3.1 O MODELO PRÓ-CREDOR INSUSTENTÁVEL
À época do projeto de lei 4.376/1993 havia muitos reclamos pela
reforma do direito falimentar. O Brasil da década de 1940 sofreu grandes e
notáveis transformações tanto na sociedade quanto na economia. A legislação
sobre falência necessitava, portanto, de uma transformação paradigmática. O
surgimento de conglomerados industriais ensejou o desenvolvimento urbano,
ficando de lado a economia predominantemente agrária da metade do século
XX. As práticas empresariais já eram outras36.
A falência estava caracterizada pela eliminação dos agentes produtivos
através da pura satisfação dos credores. Até então a tutela era dos interesses
dos credores (modelo inglês pró-credor)37, ficando sem prestígio a atividade
produtiva. Dessa forma, a legislação anterior não cumpria nenhuma finalidade
social, firmando-se como mero “meio violento de cobrança”38, no qual havia
satisfação do crédito mediante a derrocada da empresa e de sua função social.
Nestes termos, o Decreto-lei 7.661/1945 restava totalmente ultrapassado,
porque não era capaz de evitar a falência, mas de estimulá-la39, tão-somente para
satisfazer os credores. Além do mais, o mecanismo da concordata não possuía
o condão de preservar a empresa. Com essa legislação arcaica o Brasil sofreu
graves conseqüências, “impediu a preservação de milhares de empresas, que
poderiam ter recebido crédito e se recuperado, ao invés de falir”40, e “destruiu
milhares de empregos que poderiam ter sido preservados e ampliados, se uma
ABRÃO, Nelson. O novo direito falimentar. São Paulo: RT, 1985, p. 163.
COSTA JÚNIOR, op. cit., 2006, passim.
37
FERNANDES, op. cit., 2007. p. 169.
38
SILVA, José de Anchieta; FIÚZA, Ricardo Arnaldo Malheiros (coord.) Vinte Anos de
Advocacia. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 182.
39
WALD, Arnoldo (org.). Direito Empresarial: falimentar e recuperação empresarial, v.6. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 2011. p. 77.
40
Ibid., 2011. p. 78.
35
36
64
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
parcela das empresas falidas tivesse sido recuperada”41. Quem perdeu com tais
conseqüências, com certeza, foi a sociedade brasileira, já que a falência de uma
unidade produtiva é capaz de atingir todos aqueles que estão ligados direta ou
indiretamente à atividade empresarial, podendo citar empregados, fornecedores,
Estado, etc.. Jorge Lobo42, parafraseando Giovanni Lo Cascio, destaca que:
a falência constitui um procedimento extremamente grave seja para
o devedor, seja para os credores, seja para a economia pública, pois
o empresário, com a quebra, perde o seu negócio e os bens materiais e
imateriais que o compõem, sem se falar nas conseqüências de uma longa e
onerosa demanda judicial, a interrupção de seus negócios e as repercussões
econômicas que provoca, inclusive no âmbito de complexas organizações,
podendo até gerar um estado de crise de ordem geral na economia nacional.
Muitos especialistas no assunto falimentar argumentavam favoravelmente
à reforma do direito concursal positivo com fundamento também no direito
comparado. Países como França, Itália, Portugal e Estados Unidos já haviam
estabelecido novas óticas sobre o direito falimentar43. Nesses países, o direito
há muito estava voltado para a manutenção da empresa. Todavia, fazia-se
necessário não somente uma importação dos modelos estrangeiros, mas a
criação no Brasil de um modelo falimentar e recuperacional que se adequasse
à realidade do país, combinando com a “concretização de uma sociedade mais
justa e solidária”44 - pretensão da Carta Constitucional brasileira de 1988.
3.2 DA REFORMA POSITIVA NO DIREITO FALIMENTAR BRASILEIRO
O projeto de lei, que mais tarde veio se tornar a Lei 11.101/2005, já
tinha como principal objetivo a recuperação da empresa que se encontrasse
em dificuldades. A evolução do direito falimentar em todo o mundo estava em
direção à preservação da empresa, que se constitui como “fonte de tributos,
empregos e divisas”45. A empresa é um organismo social, definida pela doutrina
como atividade economicamente organizada com finalidade lucrativa. Isto é, a
empresa é “fonte geradora de bens patrimoniais, econômicos e sociais”46 e, por
isso, deve ser preservada, quando viável.
Id.
Ibid., 2011. p. 84.
43
Ibid., 2011. p. 57.
44
Id.
45
Ibid., 2011, p. 63.
46
MACHADO, Rubens Approbato (coord.). Comentários à Nova Lei de Falências e Recuperação
de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 22.
41
42
65
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O projeto de lei 4.376 de 1993 tramitou na Câmara dos Deputados
por 10 (dez) longos anos e, após muitos debates, o projeto foi remetido ao
Senado, onde se tornou o projeto de lei 71 de 2003. O Senador Ramez Tebet,
relator do projeto, depois de reiteradas discussões, elaborou um relatório
atribuindo outros moldes ao projeto mantendo, entretanto, a centralidade da
recuperação das empresas.
Dentre os pontos relatados, o Senador Ramez Tebet enunciou 12 (doze)
princípios: 1) Preservação da empresa; 2) Separação dos conceitos de empresa
e empresário; 3) Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis;
4) Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis;
5) Proteção dos trabalhadores; 6) Redução do custo do crédito no Brasil;
7) Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8) Segurança jurídica; 9)
Participação ativa dos credores; 10) Maximização do valor dos ativos do
falido; 11) Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de
pequeno porte; e 12) Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à
recuperação judicial.
Com esses princípios norteadores, o projeto passou por várias comissões
até sua aprovação em sessão plenária do Senado, datada de 06 de julho de 2004.
Retornando à Câmara dos Deputados a redação final do projeto foi definida e
posteriormente levada à sanção do Poder Executivo no ano de 2005.
3.3 A NOVA PERSPECTIVA DO DIREITO FALIMENTAR E RECUPERACIONAL
O advento da Lei 11.101 de 2005 inaugurou um novo paradigma no
direito falimentar brasileiro. A nova lei já não contribui para o encerramento da
empresa, mas, pelo contrário, busca preservar as atividades economicamente
organizadas viáveis que se encontram em crise econômica. A preservação
da empresa, segundo a doutrina, está expressamente acolhida na legislação
brasileira no artigo 47 da Lei 11.101/2005. O referido dispositivo afirma que
é objetivo da recuperação judicial viabilizar a superação da crise econômica
do devedor, permitindo a manutenção da atividade produtiva, do emprego dos
trabalhadores, do interesse dos credores, preservando a empresa e sua função
social, estimulando ainda a atividade econômica47.
Um ponto que merece destaque dentre os princípios elencados na nova
lei é o da separação dos conceitos de empresa e empresário. Adotada a Teoria
www.planalto.gov.br - Lei 11.101 de 2005. “Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo
viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir
a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores,
promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade
econômica”.
47
66
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
da Empresa no Brasil, a legislação falimentar é aplicada ao empresário, isto
é, empresário individual ou sociedade empresária. O art. 966 do Código
Civil brasileiro de 2002 define que é empresário aquele que exerce atividade
econômica organizada com intuito lucrativo, e não a figura dos sócios. A doutrina
deduz que empresa é a atividade produtiva. Nessa ótica, quem está sujeito à
falência e à recuperação é o empresário e a sociedade empresária, denominado
devedor, conforme explicita o art. 1º da Lei 11.101 de 2005. Entretanto o que se
preserva ou se busca preservar é a atividade produtiva, ou seja, a empresa, não
necessariamente a sociedade empresária.
O direito pátrio deixou de lado um sistema classificado como liquidatório,
de satisfação pura dos credores, para adentrar num sistema eminentemente
recuperacional, centrado na preservação da empresa48. Visto que os efeitos da
falência podem atingir não só os credores, mas também a economia, os empregos
e o próprio Estado, fazia-se necessário uma ordem jurídica que estivesse mais
adequada a uma perspectiva menos individual e mais coletiva.
Um modelo que tem por objetivo apenas satisfazer os credores não tem a
preocupação com os contornos que possui uma atividade produtiva. Neste ponto, a
legislação agora se preocupa com interesses sociais, voltando-se para todos aqueles
que podem sofrer os impactos da falência de uma determinada sociedade empresária.
É obvio que os credores são figuras importantes que querem ver o
cumprimento da obrigação pactuada com o empresário-devedor, porém isso
deve levar em conta um contexto mais abrangente, onde as relações ultrapassam
a subjetividade obrigacional. Com isso, a legislação implica que deve haver
certo sacrifício por parte dos credores a fim de beneficiar um devedor comum,
permitindo-lhe o saneamento da crise econômica49. Para tanto, a nova legislação
falimentar trouxe o instituto da Recuperação de Empresas. Esse instituto se
subdivide em dois: a Recuperação Judicial e a Recuperação Extrajudicial.
Ambos são sistemas cuja finalidade é contribuir para a superação da crise
econômico-financeira das empresas. A Recuperação Judicial é prevista na lei de
uma forma mais sistemática e delimitada, abarcando as sociedades empresariais
de um modo geral e, de um modo especial, as microempresas e as empresas de
pequeno porte. Já a Recuperação Extrajudicial, específico objeto deste estudo,
compreende-se basicamente como uma maneira “consensual de viabilização da
empresa realizado entre devedor e credores, sujeito à homologação em juízo”50.
Nessas novas perspectivas, o Estado não pode manter-se inerte
perante as crises sofridas pela empresas. Cabe também ao Estado, portanto, a
colaboração para a manutenção das fontes produtivas, que tanto contribuem para
FERNANDES, op. cit., 2007. p. 179.
Ibid., 2007. p. 195.
50
NEGRÃO, op. cit., 2007, p. 123.
48
49
67
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
o desenvolvimento do país, pois “estando em crise a empresa privada, é dever
do Estado enviar esforços no sentido de recuperá-la”51. Ora, é da empresa que
advém a subsistência de grande parte da população ativa do Brasil pelo trabalho
assalariado, dela também provêm bens e serviços consumidos pela população e
são fontes de tributos para o Estado. Esses fatores constituem a função social da
empresa, acrescidos de outros, como a evolução e avanço de novas tecnologias52.
Enfim, a nova ótica do direito falimentar brasileiro está voltada para a
preservação da empresa que possua viabilidade econômica de se reerguer, em
razão da finalidade social que carrega. Caso não seja possível a superação da
crise das empresas, o sistema de falência brasileiro busca ser célere e, sobretudo,
eficiente no adimplemento das obrigações contraídas com os credores através
da maximização dos ativos. A decretação da falência é mecanismo de exceção,
visto que há privilégio para manter a empresa cumprindo sua função social
através do instituto da Recuperação da Empresa.
4. O PARADIGMA DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA
Conforme explicitado acima o Código Civil brasileiro de 2002 traz em
seu artigo 966 o conceito de empresário. Desse conceito legal a doutrina retira
a definição de empresa, sendo essa a atividade econômica organizada. Portanto
o empresário (individual ou sociedade empresarial) é aquele que exerce a
empresa (atividade).
A Lei de Falência e Recuperação de Empresa trouxe um novo paradigma
ao direito brasileiro, como já referido. Dentre os pontos enunciados como
princípios pelo Senador Ramez Tebet está a Preservação da Empresa, isto é, a
manutenção da atividade econômica organizada. A doutrina estabelece que o
paradigma da Preservação da Empresa encontra-se positivado no artigo 47 da
Lei 11.101/2005. Segundo Jürgen Habermas “paradigmas do direito permitem
diagnosticar a situação e servem de guias para a ação”53. Nesse aspecto, é a
Preservação da Empresa um verdadeiro norte para a aplicação da Lei que rege
a falência e a recuperação de empresas no Brasil.
Atribui-se relevância à função social da empresa, a qual deve ser
preservada sempre que viável economicamente. Fala-se em função social
da empresa por esta ser fonte geradora de riqueza, emprego e renda – o que
contribui para o desenvolvimento social do País.
É notável a importância social da empresa na sociedade. Ela é propulsora da
movimentação da economia, geradora de emprego e renda, além de tributos para o
WALD, op. cit., 2011, p. 103.
COMPARATO, Fábio Konder, apud WALD, op. cit., 2011, p. 64.
53 HABERMAS Jürgen. Direito e democracia: entre a faticidade e validade. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 181.
51
52
68
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Estado, podendo isso acontecer em nível local, regional, nacional e internacional.
Existe, portanto, um complexo de interesses que concorrem para a proteção da
empresa. E os efeitos da falência podem atingir não apenas o devedor e a empresa,
mas também trabalhadores, fornecedores, credores, a economia e o próprio Estado.
Daí se conservar a empresa sempre que possível, analisando-se a importância social
que ela possui, bem como as condições econômicas de soerguimento.
A Preservação da Empresa adquiriu espaço no ordenamento brasileiro pela
necessidade de tratamento especial às atividades econômicas que passam por
crises momentâneas. O instituto existente na legislação anterior, a Concordata,
não continha o viés de preservar a fonte produtora54. A Recuperação de Empresas
visa justamente criar condições para que se possa superar a transitoriedade de
crise do devedor, preservando a empresa e sua função social.
Houve verdadeiro câmbio estrutural na legislação falimentar que,
segundo Lídia Valério Marzagão: “torna um instrumento de manutenção da
fonte produtiva, de preservação da empresa, ao invés de sua liquidação”55. O
próprio ente estatal tem a função de incentivar a empresa, conforme estabelece
a Constituição da República de 1988, em seu artigo 17456. É nesse sentido
que a legislação falimentar cria mecanismos de incentivo à continuação das
atividades economicamente organizadas.
Ressalte-se, porém, que não é toda e qualquer empresa que deve ser
preservada ou recuperada, mas somente a empresa que apresentar viabilidade
para tanto. Segundo Fábio Ulhoa Coelho57, a viabilidade pode ser examinada
em função da importância social da empresa, da mão-de-obra e tecnologia
empregada na atividade, do volume do ativo e passivo, do tempo de
funcionamento da empresa e de seu porte econômico.
Embora a Preservação da Empresa esteja acolhida num dispositivo que se
refere tão-somente à Recuperação Judicial é obvio que se pode estender o paradigma
da preservação à Recuperação Extrajudicial. Primeiramente a Constituição da
República diz que o Estado deve incentivar as atividades econômicas (empresa);
em segundo lugar porque a Preservação da Empresa foi enunciada como princípio
de toda a Lei de Falência e Recuperação de Empresas; além do mais, o tipo
de recuperação da empresa não pode ser critério para se estabelecer ou não a
conservação da empresa. Os objetivos da recuperação de empresas, seja judicial
ou extrajudicial, são idênticos: saneamento da crise econômica, preservação da
atividade produtiva com sua função social e os interesses dos credores.
MACHADO, op. cit. 2005. p. 77.
Id.
56
www.planalto.gov.br - Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
57
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 3. 5ª ed. rev. e atual. de acordo com o
novo Código Civil e a nova Lei de falências. São Paulo: Saraiva. 2005, p. 383-385.
54
55
69
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Saliente-se que o dispositivo acolhedor da Preservação da Empresa
estabelece que a recuperação visa a superação da crise econômico-financeira do
devedor para atingir a finalidade de manutenção da fonte produtora, do emprego
dos trabalhadores e dos interesses dos credores, significando a preservação da
empresa com sua função social e o incentivo à empresa.
5. A RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL
5.1 SOBRE A RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL NO MUNDO
Uma das grandes características do Direito nos últimos tempos é a
desjudicialização ou desjurisdicização. O direito falimentar ou concursal não segue
linha diferente, pois a solução para a crise econômica que passa a empresa pode ficar
nas mãos dos credores e devedores, na medida da permissão legal ou não, dependendo
do país que acolhe as medidas extrajudiciais de saneamento da empresa.
Segundo Rubens Requião58, o embrião da recuperação extrajudicial
brotou na República de Veneza, denominado de concordata extrajudicial. Não
se constituía num sistema regulado legalmente, daí sua inexpressiva utilização
pelos comerciantes, diante da insegurança da não intervenção de um juiz. Já
nos séculos XVI e XVII, os acordos entre devedor em estado de crise e seus
credores eram mais comum. Esses acordos previam geralmente a dilação de
prazos de pagamento de obrigações e o perdão parcial de dívidas59.
Em terras latino-americanas a Lei de Falências do Chile permite um convênio
extrajudicial desde que haja aprovação unânime dos credores com um relatório que
conste um detalhamento da situação do devedor com um balanço patrimonial. A
legislação falimentar do Peru permite a composição extrajudicial, servindo esta
apenas para facilitar a liquidação, mas não para evitar a decretação da falência.
Em solo colombiano há permissão para realização de um acordo privado
dentro de um procedimento judicial, buscando-se evitar a quebra. Na Argentina
também existe a possibilidade de superação da crise econômica da empresa
através de um acordo, denominado de acuerdo preventivo extrajudicial, no qual
não há intervenção judicial60.
No continente europeu o direito inglês também admite um tipo de
acordo com o fito de evitar a falência. Em terras espanholas, mesmo sem
previsão legal no Código Comercial espanhol, a doutrina hispânica considera
REQUIÃO, Rubens. A crise do direito falimentar brasileiro. Reforma da lei de falências.
Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, São Paulo, v.6, n.20, p.199207, abr./jun. 2003.
59
COSTA JÚNIOR, op. cit., 2006. p. 32.
60
Id.
58
70
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
válido o acordo realizado entre credores e devedor. Na França a lei admite
três soluções extrajudiciais para crises de empresas: prevenção, alerta e
saneamento extrajudicial. O direito italiano e o direito alemão, com base no
princípio da liberdade contratual, aceitam que haja acordo privado entre o
devedor e seus credores61.
A legislação dos Estados Unidos permite a negociação entre credores e
devedor numa fase anterior à solicitação da falência (bankruptcy), na própria
Corte de Falências62. Isso significa que antes de um requerimento de falência
credores e o devedor podem negociar, elaborando um plano de recuperação
para a empresa em crise. O direito estadunidense denomina a recuperação
extrajudicial de “prepackaged chapter 11 plan”. Através desse instituto também
há oportunidade do devedor tentar negociar com seus credores um plano de
recuperação após a protocolização do pedido de falência63. Por essa negociação
chega-se a um acordo extrajudicial para a reorganização da sociedade
empresária devedora. O plano de reorganização pode ser acordado junto ao
juízo falimentar, adquirindo força de lei e, portanto, não há possibilidade de
desistência das partes.
A recuperação extrajudicial, nos moldes da lei dos Estados Unidos,
objetiva sanar a crise econômica e as conseqüências gravosas que a falência
pode causar, já que possui efeitos devastadores na economia e na sociedade.
Muitos credores preferem negociar e renegociar as dívidas, diminuindo o risco
de não recebimento do crédito, em vez de ver a falência de um empresário e,
conseqüentemente, a perda de um cliente. É nesse sentido que: “o instituto, nos
EUA, é bem sucedido”64.
5.2 RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL NO BRASIL
O Brasil já teve um instituto próximo à Recuperação Extrajudicial,
denominado de Concordata Extrajudicial. O Decreto nº 917 de 1890 previa essa
espécie de concordata realizada através de um acordo com os credores. Nesse
acordo deveria haver ao menos ¾ (três quartos) de todo o passivo e, para sua
eficácia, era necessária a homologação em juízo comercial. Obtida a homologação
evitava-se a falência, conforme dispunha o art. 120 do referido Decreto.
No ano de 1908 o Decreto nº 2.024 extinguiu a concordata extrajudicial e
consolidou-se no direito brasileiro o sistema da concordata judicial, perdurando
até a entrada da atual legislação de 2005.
63
64
61
62
Id.
MACHADO, op. cit., 2005. p.155.
Id.
Ibid., 2005. p.156.
71
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Antes da legislação falimentar de 2005 no Brasil, o Decreto-lei 7.661/1945
revogado penalizava as tentativas de o devedor renegociar as dívidas com seus
credores. A legislação de 1945 caracterizava como falência a convocação dos
credores para dilação, remissão de créditos ou cessão de bens, de acordo com
o artigo 2º, III do revogado Decreto-lei. Isto é, não era possível a composição
extrajudicial, já que esta caracterizava o estado falimentar do comerciante.
Na legislação revogada uma tentativa de acordo extrajudicial denotava o
estado de insolvência do devedor comerciante. Ressalte-se que o Decreto-lei de
1945 focava sua tutela nos interesses dos credores. Justificava-se a vedação de
acordo, que ensejava a penalidade de decretação de falência, no interesse maior
dos credores, já que poderia haver prejuízo para eles, pela falta de isonomia no
tratamento65 ou a par conditio creditorum.
Atualmente a empresa tem importância social, sendo que o sistema não
pode ser tão rigoroso a ponto de preservar apenas os interesses individuais dos
credores em detrimento de outros interesses que estão ao redor da empresa.
Então, nem sempre é necessária a intervenção judicial para a recuperação ou
reorganização da empresa, podendo-se preservar a atividade através de soluções
advindas dos próprios protagonistas dos negócios, isto é, credores e o devedorempresário. Essas soluções são denominadas de soluções de mercado. Para
que exista solução de mercado é necessário que a lei permita ou não proíba a
renegociação de dívidas.
Sob o ponto de vista da análise econômica do direito, a legislação deve
regulamentar o procedimento extrajudicial de recuperação de empresas criando
condições para as renegociações do passivo66, promovendo a iniciativa privada.
Além da criação dessas condições, a reorganização extrajudicial merece ampla
proteção para que se tenha segurança em sua realização. Os acordos devem ser
estimulados a fim de evitar a intervenção judicial custosa e morosa nos processos
de recuperação judicial e falência. Podem, portanto, os próprios credores e o
devedor tomar as iniciativas de solução para a crise, ficando o judiciário apenas
com a função de homologar os acordos, quando assim requeridos e verificar as
eventuais fraudes ou situações ilegais.
Na medida em que haja viabilidade econômica de erguimento da atividade
em crise e interesse social em mantê-la não há porque o legislador negar a
recuperação da empresa através de um modelo extrajudicial ou amigável.
Desde que não haja fraudes a terceiros e a outras esferas da sociedade ou do
mercado, é plenamente concebível, devendo inclusive ser estimulada, a atuação
de credores e devedor para a reorganização da empresa de modo extrajudicial,
concretizando a participação ativa dos credores.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v.2, p. 6.
COELHO, op. cit., 2005. p. 238.
65
66
72
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Rubens Requião, comungando com os dizeres de Bento Faria, aduz:
Como sugere Bento Faria não deve ser visto como expediente dilatório,
utilizado quase sempre com o propósito de retardar a ação dos credores
o fato de o devedor convocar todos os seus credores para demonstrarlhes, com sinceridade, a suficiência do seu ativo comercial e propor a
todos ou a alguns deles os referidos meios de dilatar a exigibilidade dos
respectivos créditos, como meio de conjugar um embaraço momentâneo,
conseqüente a força maior e removível em breve espaço67.
É nessa perspectiva da preservação da empresa e de oportunizar soluções
de mercado para empresas em crise econômica que a atual lei que regula a
falência e recuperação de empresas (Lei 11.101/2005) instituiu a Recuperação
Extrajudicial. O Brasil inspirou-se nos sistemas estrangeiros que admitiam a
possibilidade de um acordo amigável para o soerguimento da empresa em crise
e a manutenção da fonte produtora.
Incluído no projeto da nova lei de falências pelo Deputado Osvaldo
Biolchi no ano de 2002, o instituto da Recuperação Extrajudicial foi alterado
durante a tramitação do projeto no Senado, em 2004. O texto elaborado no
Senado dizia que a homologação judicial do plano de recuperação extrajudicial
tem como condição a adesão da totalidade (100%) dos credores. No entanto,
com essa redação o instituto teria grandes chances de ter pouca utilidade prática
já que nem todos os credores poderiam anuir.
Após numerosas críticas sobre a redação que ganhou o instituto da
recuperação extrajudicial no Senado, o projeto foi reformulado no capítulo
que trata o instituto. Dessa vez, as emendas realizadas retiraram a carga de
que todos os credores deveriam aderir ao plano para homologação judicial
e, além disso, reintroduziu a possibilidade de obrigar todos os credores
através da vontade da maioria68.
Com a Lei 11.101 de 2005, o legislador brasileiro reabriu caminho
para que os credores e o devedor-empresário possam renegociar suas dívidas
objetivando a este último a superação da situação momentânea de crise
econômico-financeira.
A Recuperação Extrajudicial é um modo mais simples e rápido que a
demanda judicial de recuperação. O instituto preleciona aos protagonistas do
mercado uma forma de tentarem solucionar o momento de crise com acordos
amigáveis, num viés mais consensual, preservando a empresa, os interesses dos
credores e a função social da empresa.
REQUIÃO, op. cit., p. 86.
COSTA JÚNIOR, op. cit., 2006. p.38.
67
68
73
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
As legislações modernas sobre quebras e recuperação de empresas
incentivam soluções de caráter mais econômico do que propriamente jurídicas69.
A noção da recuperação extrajudicial no Brasil é oferecer um campo para
soluções econômicas, que poderão ser homologadas em juízo, combinando a
autonomia privada e a atuação do Estado-juiz.
Ocorre que, mesmo depois da entrada em vigor da nova Lei de Falência
e Recuperação de Empresas, a reorganização extrajudicial não tem sido
muito utilizada. Os credores e o próprio devedor-empresário têm optado pela
Recuperação Judicial, seja pela falta de conhecimento ou dúvidas na aplicação
da recuperação na modalidade extrajudicial. Mas este instituto denominado
extrajudicial poderia se constituir como uma forma mais utilizada pelo
empresariado brasileiro, a depender do modo de elaboração do plano.
6. MEDIAÇÃO: DEFINIÇÃO E PRECEITOS
A mediação pode ser entendida como um procedimento para solução de
disputas no qual uma terceira pessoa, o mediador, facilita negociações entre
as partes fazendo com que elas cheguem a um acordo. Esse procedimento é
capaz de ampliar as opções de resolução para os conflitos, indo além dos pontos
estritamente jurídicos que se encontram ao redor da controvérsia70. O mediador
ajuda as partes a se comunicarem para realizarem acordos de forma voluntária,
resolvendo os conflitos.
Numa abordagem histórica a mediação foi utilizada por tribos, pajés,
anciãos e conselheiros como forma de pacificação e integração social71.
Entretanto, com o advento do Estado moderno ocorreu o monopólio das soluções
de disputas, ficando a mediação e outras formas de resoluções de controvérsias
como “alternativas” à aplicação do Direito estatal72.
Nas décadas de 1970 e 1980, a mediação é retomada principalmente nos
Estados Unidos num movimento denominado de Alternative Dispute Resolution
(ADR), que visava a promoção do acesso ao direito e à justiça73. O movimento
defendia a co-existência de outros mecanismos para solução de litígios, dentre
eles, a mediação. Nesse período houve forte tendência à desjudicialização. A
WALD, op. cit., 2011, p. 88.
SCHNITMAN, Dora Fried. Novos paradigmas em mediação. Tradução: Marcos A. G.
Domingues e Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. 1999, p.189.
71
DIAS, Maria Tereza Fonseca (coord.) Mediação, cidadania e emancipação social: a experiência
da implantação do centro de mediação e cidadania da UFOP e outros ensaios. Belo Horizonte:
Fórum, 2010, p. 153.
72
ROMÃO, José Eduardo Elias. Justiça procedimental: a prática da mediação na teoria discursiva
do Direito de Jürgen Habermas. Brasília: Maggiore, 2005, p. 155.
73
DIAS, op. cit., 2010, p. 154.
69
70
74
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
desjudicialização pode tanto simplificar o processo legal e promover os meios
menos formais de resolução de litígios dentro do próprio processo judicial,
como criar estruturas fora do Poder Judiciário para que resolvam conflitos74.
Em termos gerais a mediação é um procedimento que contribui para
a administração de um conflito e amplia possibilidades para se chegar a um
equilíbrio entre os envolvidos. Nela há um alargamento do espaço retórico
buscando-se, para além de uma resolução pura e simples de conflitos, a
permanência de relações ou a criação e estreitamento de laços entre sujeitos.
Diferentemente da lógica ganhar-perder do sistema judiciário, na mediação
as partes “se habilitam para o discurso, apresentando-se como protagonistas
(individuais ou coletivos) nesse mesmo espaço”. A partir desse canal de
comunicação criado e do protagonismo dos envolvidos, a solução das questões
é legitimada pelos argumentos e pretensões trazidos e levantados no discurso.
Não significa a simples aplicação do direito, pois o espaço é amplo, envolvendo
diversas habilidades e conhecimentos.
Há uma pretensão integradora na mediação que se dá através da cooperação
e do cuidado recíproco dos que nela estão envolvidos. O procedimento é
permeado pelo pluralismo, internormatividade, dialogicidade, campo retórico
alargado e protagonismo75. A mediação busca aproximar interesses heterogêneos
em vez de apartá-los. A sociedade contemporânea está inserida em “cenários
plurais, polifônicos e heterogêneos”76, necessitando-se, antes que separar, unir
e reconhecer pretensões.
Mediação pode ser entendida de diversas formas, inexistindo um conceito
único do termo. Christopher Moore define a mediação da seguinte maneira:
A mediação é um prolongamento ou aperfeiçoamento do processo de
negociação que envolve a interferência de uma aceitável terceira parte,
que tem poder de tomada de decisão limitado ou não-autoritário. Esta
pessoa ajuda as partes principais a chegarem de forma voluntária a um
acordo mutuamente aceitável das questões em disputa. Da mesma forma
que ocorre com a negociação, a mediação é um processo voluntário em
que os participantes devem estar dispostos a aceitara ajuda do interventor
se sua função for ajudá-los a lidar com suas diferenças – ou resolvê-las77.
PEDROSO, João et al. Percursos da informalização e da desjudicialização por caminhos da
reforma da administração da justiça (análise comparativa). Coimbra: Centro de Estudos Sociais,
2001, p. 42.
75
DIAS, op. cit., 2010, p. 161.
76
Ibid., 2010, p. 165.
77
MOORE, Christopher W. O processo de mediação: estratégias práticas para a resolução de
conflitos. Trad. Magda França Lopes. Porto Alegre: ARTMED, 1988. p. 22-23.
74
75
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O referido autor deixa claro que a mediação nada mais é do que uma
negociação assistida/facilitada por uma terceira pessoal aceitável. Este terceiro
é o mediador, que tem por função facilitar o diálogo e ajudar os envolvidos
na superação de diferenças, contribuindo também para que seja feito um
acordo, de forma voluntária. Além disso, dispõe Dora Fried Shnitman que “A
mediação se define como um trabalho conjunto, em que se cria um contexto
no qual as pessoas podem encontrar e gerar condições de possibilidade e
oportunidade para a mudança”78.
A mediação é um procedimento não adversarial. Por tal procedimento os
participantes têm possibilidade de chegar a um acordo com ganhos recíprocos.
É necessário se chegar aos verdadeiros interesses dos participantes, para que
possam ser convergidos em interesses comuns através da compreensão mútua e
buscar as possibilidades reais de acordo79.
O procedimento deve ser realizado com oralidade, intercompreensão e
participação voluntária. Não há viés coercitivo na mediação nem obrigatoriedade
na participação do procedimento, porém o acordo celebrado possui natureza
contratual. As partes decidem exercendo a autonomia e por ela se vinculam,
podendo o acordo ser levado à homologação judicial. A mediação é um
procedimento autocompositivo, haja vista que os próprios participantes é que
têm o poder de decisão e, portanto, estabelecem a solução da questão conflituosa.
Respeita-se a autonomia privada tanto na iniciativa ou inércia de participação
da mediação quanto nas tomadas de decisões dentro do procedimento. Neste
aspecto o mediador tem poder de decisão limitada, não podendo impor solução,
mas facilitar a comunicação entre os envolvidos para que estes decidam.
A terceira pessoa, isto é, o mediador é verdadeiro intermediário, que
aproxima as partes e seus interesses num procedimento que pode possuir
várias etapas, com diversas possibilidades de resolução para o caso, inclusive
criativas e dinâmicas. O mediador controla o processo sem adentrar no
conteúdo e nos resultados, os quais cabem às partes80. Explica Dora Fried
Schnitman: “Por meio da conversação, o mediador age no sentido de facilitar
essas condições, mas prescinde de sua própria qualificação em relação aos
temas, conteúdos e soluções”81. Os participantes da mediação hão de possuir
oportunidade devidamente adequada para a comunicação, levando-se em conta
o contraditório82.
SCHNITMAN, op. cit., 1999, p.246.
DIAS, op. cit., 2010, p. 48.
80
SCHNITMAN, op. cit., 1999, p.190-193.
81
Ibid., 1999, p.246.
82
AZEVEDO, André Gomma (org.). Manual de Mediação Judicial. Brasília/DF: Ministério da
Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. 2009, passim.
78
79
76
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
As vantagens do procedimento da mediação se constituem no
alargamento do espaço para o diálogo, argumentação e negociação. Além de
resolver o conflito a mediação pode aproximar os interesses e fazer duradoura
a relação entre os envolvidos. As discussões ultrapassam as individualidades de
determinado problema em jogo e planeja o futuro da relação. O procedimento
há de ser confidencial; pode ser mais célere que um processo judicial, considera
aspectos sociais, econômicos, psicológicos e outros não somente jurídicos;
tenta satisfazer efetivamente os participantes; possui baixo custo financeiro e,
além de tudo, tenta preservar o relacionamento entre as partes83.
A mediação abre grande possibilidade para a concretização dos reais
interesses, já que há estímulo para a compreensão recíproca e participação ativa
dos envolvidos. Os sujeitos têm a oportunidade de reconhecer as necessidades e
interesses do outro para assim poderem pensar numa pacificação da disputa. Essa
pacificação deve ser fruto de uma integração entre os envolvidos no procedimento,
ou seja, o acordo realizado na mediação é uma construção harmônica da solução
do conflito. Em síntese a mediação é nada menos que uma negociação catalisada
por um terceiro (o mediador) imparcial em relação ao conflito84.
7. A APLICAÇÃO DA MEDIAÇÃO NA RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL
A Recuperação Extrajudicial é assim denominada porque a primeira parte
do procedimento é realizada fora das esferas judiciais. Primeiramente o devedor
tem a prerrogativa de propor e negociar um plano de recuperação extrajudicial,
plano este que poderá passar por homologação judicial, se assim for requerido,
numa segunda etapa. Os ensinamentos doutrinários de Jean Carlos Fernandes85
e Ricardo Negrão86 reconhecem que a recuperação denominada extrajudicial é,
no entanto, judicial caso for homologada em juízo.
Na dicção do artigo 161 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas o
devedor poderá propor e negociar com seus credores um plano de recuperação
extrajudicial. Mas como se chegar ao plano que será objeto de homologação?
A lei utiliza os termos “propor” e “negociar”. No primeiro caso ter-se-ia
um plano elaborado pelo devedor e proposto para os credores que podem aproválo ou rejeitá-lo. Já no plano negociado, o devedor convocaria os credores para
renegociação das dívidas de maneira conjunta, com propostas e contrapropostas,
até se chegar a um plano de recuperação extrajudicial. Seriam esses os meios de
DIAS, op. cit., 2010, passim.
AZEVEDO, André Gomma (org.). Manual de Mediação Judicial. Brasília/DF: Ministério da
Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. 2009, passim.
85
FERNANDES, op. cit. 2007. p. 214.
86
NEGRÃO, op. cit., 2007. p. 203.
83
84
77
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
realização da recuperação extrajudicial ao se propor e negociar diretamente com os
credores o plano de recuperação antes da homologação em juízo. O entendimento
de Ricardo Negrão87 é o de que para o devedor em crise “A proposta e a negociação
de meios que lhe proporcionem a recuperação de seu empreendimento são
realizadas diretamente com os credores [...]”. Ou seja, o plano de recuperação
extrajudicial é fruto da propositura e negociação direta com os credores, para o
referido autor. Todavia, esse mesmo entendimento estaria restringindo o campo
de atuação das formas de elaboração do plano de recuperação extrajudicial, que
deve ser mais amplo, comportando outras maneiras de se chegar ao plano.
Ao estabelecer a Recuperação Extrajudicial no ordenamento o
legislador abriu caminho para a reorganização empresarial, juntamente com
o cumprimento das obrigações, do modo como preferirem o devedor e seus
credores com o objetivo precípuo de conservar a empresa. Podem ser várias
as maneiras de se chegar a um plano extrajudicial para a preservação das
atividades econômicas. As maneiras de elaboração do plano não têm de serem
formas necessariamente diretas. As palavras “propor” e “negociar” estão em
sentido amplo na lei falimentar e recuperacional. Em razão de a recuperação
extrajudicial ter a primeira fase permeada pela autonomia privada, cabe também
às partes estabelecerem como realizar o plano. Os interessados podem muito
bem eleger, por exemplo, a arbitragem, a negociação direta ou a mediação para
solucionarem as disputas e recuperar a empresa em crise.
Este trabalho escolheu tratar da mediação para a elaboração do plano
de recuperação extrajudicial por conta de suas vantagens para o mundo
empresarial. A mediação possibilita as rediscussões do crédito num viés mais
dinâmico e interdisciplinar, compatibilizando a aplicação do direito com outras
esferas interferentes na atividade econômica. A negociação direta, sem dúvida,
é forma de se chegar ao plano de recuperação extrajudicial, contudo não é a
única. A relação entre credores e o devedor já pode estar desgastada, podendo
necessitar de um intermediário para recriar um espaço para o diálogo entre os
interessados. Nesse ponto, a mediação contribui para reunir as partes, eleger
interesses, restabelecer a confiança, criar soluções e, sobretudo, manter as
relações entre credores e o devedor.
A mediação proporciona a ampliação do espaço para a discussão das
dívidas e pode fazer com que as partes enxerguem múltiplas soluções para as
obrigações não cumpridas ou a vencer, estando o devedor em crise econômica.
A utilização do procedimento da mediação para a elaboração do plano de
recuperação extrajudicial pode ainda aproximar mais os credores e o devedor,
pois um geralmente depende do outro para a própria sobrevivência no mercado.
O contexto criado pela mediação pode fazer prolongar as relações entre os
Id.
87
78
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
interessados na recuperação extrajudicial da empresa, que continuarão a realizar
contratos uns com os outros.
De um lado os credores querem receber o que lhes é devido; de outro
o devedor quer adimplir suas obrigações, mas passa por um momento de
dificuldade financeira; e, numa terceira ponta, há interesse do Estado e de toda
a sociedade em preservar a atividade econômica, ou seja, a empresa. Através da
mediação, que visa a intercompreensão e cria um espaço para a comunicação,
esses objetivos podem ser cumpridos. O que inicialmente está em lados opostos
são convergidos na mediação, desde que haja voluntariedade na participação.
As decisões são tomadas pelas próprias partes e o mediador apenas conduz o
procedimento, fazendo perguntas e tentando pacificar os credores e o devedor
para que esses decidam, preponderantemente, pelo acordo. É preferível que o
mediador tenha prévio conhecimento acerca do procedimento da mediação e
também dos traquejos próprios da vida empresarial e jurídica.
O mundo empresarial busca por soluções compatíveis com a dinâmica
que lhe é peculiar. Deste modo, a mediação ao alcançar perspectivas
transindividuais, econômicas, sociais e psicológicas se constitui num campo
propício para a atuação da recuperação extrajudicial no que tange à elaboração
do plano. No cenário atual das esferas de mercado os empresários e as sociedades
empresariais levam em conta a gama de elementos que são determinantes no
planejamento e na conclusão de seus negócios, bem como o tempo e os riscos
quando se tem uma solução definitiva para as controvérsias88. No procedimento
da mediação há um espaço discursivo alargado, onde são colocados à mesa os
problemas e os múltiplos tipos de soluções, além de o assunto ser discutido com
argumentos legitimados pelos próprios participantes, gerando grande chance do
plano de recuperação ser devidamente cumprido.
As mais modernas legislações sobre falência e recuperação de empresas
em crise têm procurado oferecer soluções mais adequadas à dinâmica do mundo
empresarial, soluções de ordem econômica e não somente soluções jurídicas.
Na medida em que na mediação as discussões ultrapassam as juridicidades
dos problemas, a recuperação extrajudicial realizada por tal procedimento
concretiza os preceitos das mais avançadas das legislações falimentares e
recuperacionais, tal qual a Lei brasileira. Explica Dora Fried Schnitman que
“Nosso futuro global é plural, multidisciplinar, convida à criatividade em um
horizonte de tempo-espaço expandido a novos saberes”89. Assim é também o
contexto empresarial: plural, multidisciplinar e carece de soluções criativas,
que atendam os interesses de todos os envolvidos – sendo a mediação capaz de
oferecer o campo para tais soluções.
VILELA, Marcelo Dias Gonçalves (coord.) – Métodos Extrajudiciais de Solução de
Controvérsias – São Paulo: Quartier Latim, Coleção LEXNET, 2007, passim.
89
SCHNITMAN, op. cit., 1999, p.26.
88
79
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
As soluções oriundas da mediação são mais flexíveis, para atender as
necessidades e interesses de seus partícipes e, no caso empresarial, do mercado
e da ordem econômica. A mediação no meio empresarial tem o viés de
preservar parcerias, conter gastos e evitar o desgaste na imagem das sociedades
empresariais, buscando soluções duráveis e o equilíbrio.
Ressalte-se que se há tentativa de recuperação da empresa em crise é
porque houve certa ruptura do crédito em razão do não pagamento pontual.
Essa hipótese enseja desconfiança no devedor e instabilidade na relação,
o que pode gerar o pedido de falência pelo credor que se sente inseguro no
que tange ao recebimento de seu crédito90. Nesse sentido, crédito e confiança
estão inteiramente interligados. De outro lado, em muitos casos, credores e
o devedor são comumente chamados fornecedores e comprador (que adquire
para revender a um consumidor final), sendo que um necessita do outro para
os rendimentos de seus negócios. E, havendo ruptura do crédito e quebra da
confiança é preciso que, antes de um pleito falimentar ou recuperacional, as
partes tentem restabelecer a confiança. É preciso que os sujeitos empresariais
possam reconhecer suas próprias necessidades, bem como as dos outros, que
devem ser seus parceiros de mercado. É nesse ponto que entra a mediação: para
que haja diálogo entre os envolvidos, restauração do crédito e da confiança.
Utilizada a mediação para a elaboração do plano de recuperação
extrajudicial a tendência é que se fortifique a confiança dos credores e se
perdure as relações entre os credores e o devedor na ordem econômica. Os
credores, enxergando a boa-fé do devedor em se recuperar cumprindo com
suas obrigações, poderão preferir atribuir nova confiança a ele para negociar e
renegociar as dívidas ao passo de ver a quebra do devedor e, portanto, a perda
de um cliente. Os credores também poderão optar pela mediação na recuperação
extrajudicial ao passo do moroso processo de Recuperação Judicial. Com a
mediação os credores terão chance de afastar a inadimplência e o estado de
crise do devedor comum, através da flexibilização do direito creditório.
É, portanto, plenamente possível e viável a utilização da mediação para
a elaboração de plano de recuperação extrajudicial, desde que as partes assim
convencionem. Escolhida a mediação, os participantes do procedimento hão
de proceder com lealdade, boa-fé, zelo, cuidado, presteza e simplicidade na
linguagem para melhor compreensão das situações em voga. O mediador deve
facilitar as comunicações tentando restabelecer a confiança entre credores e o
devedor, tendo sempre à vista o objetivo maior da Lei de Falência e Recuperação
de Empresas que é salvaguardar a empresa cumprindo sua função social, sem se
olvidar dos interesses dos credores.
WALD, op. cit., p. 62.
90
80
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
8. RESSALVAS À UTILIZAÇÃO DA MEDIAÇÃO PARA ELABORAÇÃO DO PLANO
DE RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL
Como a mediação envolve, a priori, apenas direitos disponíveis o mediador tem
o dever de esclarecer sobre os limites legais e de ordem pública para a elaboração dos
acordos. A própria Lei de Falência e Recuperação de Empresa limita a Recuperação
Extrajudicial em alguns pontos. Por se tratar do exercício da autonomia privada na
elaboração do plano extrajudicial, existem créditos que não estão sujeitos ao plano
porque não há poder de disposição por parte daqueles que os detém.
O parágrafo 1º do artigo 161 da LFRE estabelece que a Recuperação
Extrajudicial não é aplicada aos titulares de créditos tributários, aos derivados
da legislação trabalhista ou decorrentes de acidente de trabalho e ao proprietário
fiduciário, arrendador mercantil, vendedor ou promitente vendedor de imóvel
por contrato irrevogável e vendedor titular de reserva de domínio, assim como
à instituição financeira credora por adiantamento ao exportador.
O parágrafo 2º do artigo 161 da LFRE dispõe que o plano extrajudicial não
pode conter pagamento antecipado de dívidas nem tratamento desfavorável àqueles
credores não sujeitos ao plano. Deste modo, deve-se tomar extremo cuidado para
que na mediação não haja propostas e acordos que prejudiquem terceiros, isto é,
credores que optaram não participar do plano. No caso de pendência de pedido
de recuperação judicial ou havendo o devedor recuperado judicialmente ou
extrajudicialmente há menos de 2 (dois) anos não poderá requerer homologação
do plano extrajudicial, na ótica do artigo 161, parágrafo 3º. O parágrafo seguinte
do mesmo dispositivo também procura afastar eventual prejuízo aos credores não
sujeitos ao plano extrajudicial no que se tange às suas ações, direitos, execuções
e sobre o pleito de decretação de falência, que não serão suspensos em virtude do
pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial.
Enfim, os credores e o devedor-empresário deverão, sobretudo, abster-se
das práticas expressamente proibidas por lei e não descumprir as exigências
legais para elaboração do plano extrajudicial durante a mediação, sob pena
de não obterem homologação, mesmo após o pedido, visto que poderão vir
impugnações ao plano no processamento da recuperação (conforme o disposto
no artigo 164 e seu parágrafo 3º da LFRE). Se o plano é elaborado através da
mediação as partes já deverão se precaver das eventuais impugnações, evitando
os atos ilícitos e as eventuais impugnações ao plano.
A mediação, em princípio, não poderá abarcar a hipótese prevista no
artigo 163 da LFRE, pois esse dispositivo abrange obrigações aos credores
que não participaram das discussões de renegociações. Ora, a mediação é
procedimento voluntário e não pode obrigar os credores que dela não fizeram
parte, isto é, que não tiveram oportunidade de discutir seus créditos ou não
81
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
concordaram em participar do diálogo mediado. Mas os credores participantes
e a sociedade em crise poderão, preenchidos os requisitos legais, pleitear a
recuperação extrajudicial na forma do artigo 163. Contudo, nessa hipótese,
não se pode dizer que houve mediação na fase pré-judicial, visto que houve
extrapolação dos preceitos da mediação.
Outro ponto que envolve grande complexidade sobre a utilização da
mediação para a elaboração do plano extrajudicial é o devedor-empresário
conseguir a anuência de boa parte de seus credores para rediscussão de seu
passivo. A mediação é realizada desde que haja voluntariedade das partes e não
tem coerção. Os credores poderão não concordar com o procedimento e assim
frustrar as expectativas do devedor interessado na mediação.
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista o paradigma da Preservação da Empresa instituído com a
Lei de Falência e Recuperação de Empresas (Lei 11.101/2005) e a necessidade
empresarial de oportunizar soluções compatíveis com sua dinâmica, a mediação
pode contribuir para alavancar a utilização da Recuperação Extrajudicial por
suas diversas vantagens, oferecendo aos sujeitos empresariais oportunidade
para rediscussão do crédito e a manutenção das relações.
A justiça tem tendência a ser cada vez mais consensual do que coercitiva.
A sociedade contemporânea tem aspirado por métodos simples, informais e
céleres para concretização da justiça. Nesse ponto, mediação e Recuperação
Extrajudicial estão próximos. A atuação do judiciário na falência e recuperação
de empresas deve ser exceção. Primeiramente é imprescindível que haja
estímulo às soluções de mercado, promovendo a iniciativa privada. Fábio Ulhoa
Coelho diz: “o papel do estado-juiz deve ser apenas o de afastar os obstáculos
ao regular funcionamento do mercado”91, sendo esse o norte das mais modernas
legislações falimentares e recuperacionais no mundo.
Podem ser várias as formas de elaborar um plano de recuperação
extrajudicial. Não se pode limitar a recuperação extrajudicial a métodos
diretos. As formas intermediadas merecem igualmente respaldo, pois o que
importa é a preservação da empresa viável economicamente, com sua função
social, combinado com a satisfação dos credores. Portanto, fica a cargo das
partes decidirem o procedimento a ser utilizado para a elaboração do plano
extrajudicial.
A legislação falimentar e recuperacional tenta conciliar a aplicação do
direito com eficiência econômica e, nessa ótica, a mediação contribui para
concretizar esse preceito na recuperação extrajudicial. Deve-se prezar pela
COELHO, op. cit., 2005, p. 237.
91
82
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
busca pelo equilíbrio entre credores e o devedor, harmonizando a autonomia
privada e a atuação estatal.
A mediação é capaz de criar as condições para as negociações do
passivo e a recuperação da empresa em crise, atendendo também aos anseios
dos credores. Com a mediação para elaboração do plano de recuperação
extrajudicial haverá aproximação das posições conflitantes e espaço discursivo
para que os próprios protagonistas empresariais encontrem soluções para suas
divergências. Através da mediação as sociedades empresariais poderão não
somente solucionar a controvérsia, mas preservar as parcerias e restabelecer a
confiança, obter soluções adequadas (não somente jurídicas) e duráveis para o
conflito creditório, evitar custosos e morosos processos de falência e recuperação
judicial e, por fim, preservar a empresa cumprindo sua função social. Basta que
haja voluntariedade na participação do procedimento.
A Recuperação Extrajudicial, ainda pouco utilizada no Brasil, deve
ser fomentada para que seja uma real opção para as sociedades empresariais
que se encontram em crise econômica. Se credores e devedores, além de
advogados, administradores, contadores e outros profissionais que atuam no
meio empresarial conhecessem mais de perto o procedimento da mediação e
seus preceitos a Recuperação Extrajudicial poderia ser mais utilizada.
A mediação, portanto, é um mecanismo eficiente para as soluções de
crise das empresas, procurando estreitar os laços empresariais num mundo tão
competitivo. A Recuperação Extrajudicial realizada pelos caminhos da mediação
é frutífera pela oferta de soluções compatíveis com a dinâmica empresarial. Na
mesma linha das modernas leis recuperacionais que objetivam a preservação
da empresa com noções não somente jurídicas, mas também econômicas, a
mediação incentiva e provoca o exercício da autonomia empresarial com o
objetivo maior da preservação da empresa viável cumprindo sua função social.
83
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
II – Responsabilidade, Direito Societário e Direito Penal
A DISREGARD OF LEGAL ENTITY DOCTRINE VERSUS O PRINCÍPIO DA
PRESERVAÇÃO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA
DISREGARD OF LEGAL ENTITY DOCTRINE VERSUS THE PRINCIPLE OF
COMPANY’S PRESERVATION
Deilton Ribeiro Brasil 92*
SUMÁRIO: Introdução. Capítulo I - A função social da sociedade
empresária. Capítulo II - A função social da sociedade empresária na
legislação infraconstitucional. Capítulo III - Princípio da preservação da
sociedade empresária. Considerações finais. Referências.
RESUMO
Ao longo dos tempos, a atividade econômica da sociedade empresária
vem passando por evoluções, passando da marcante fase da teoria dos atos
de comércio, vista como instrumento de objetivação do tratamento jurídico da
atividade mercantil. Isto é, com ela, o Direito de Empresa deixou de ser apenas
o Direito de certa categoria de profissionais, organizados em corporações
próprias, para se tornar a disciplina de um conjunto de atos, que, em princípio,
poderiam ser praticados por qualquer cidadão; para a fase da teoria da sociedade
empresária que possui o acento tônico da comercialidade, em consequência do
progresso da técnica e da economia de massa, deslocando-se da noção de ato
para a noção de atividade. O exercício profissional da atividade intermediária
entre a produção e o consumo de bens impõe uma crescente especialização
e a criação de organismos econômicos cada vez mais complexos. O Código
Civil de 2002 demonstra a importância em propiciar meios para a preservação
e continuidade da atividade exercida pela sociedade empresária, uma vez que é
fonte de tributos, empregos e divisas, propiciando, pois, benefícios à sociedade
em geral. Depreende-se, portanto, que o princípio da preservação da sociedade
empresária tem se constituído a principal preocupação do Direito de Empresa
contemporâneo, diante do inegável abalo social produzido uma tendência de
generalizar, inadvertidamente, a aplicação da teoria da desconsideração da
* Doutor em Estado e Direito: internacionalização e regulação pela Universidade Gama Filho
do Rio de Janeiro/RJ. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos de Belo
Horizonte/MG. Membro do IAMG. Professor da Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete FDCL. E-mail: [email protected]
92
87
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
pessoa jurídica. Deve-se verificar atentamente, se estão presentes os pressupostos
reconhecidos pela doutrina como ensejadores de sua aplicação, para, somente
depois, em caso de resposta afirmativa, proceder-se à sua efetiva aplicação.
Palavras-Chave: Disregard doctrine, Preservação da sociedade empresária,
Pressupostos jurídicos, Constituição Federal, Código Civil de 2002.
ABSTRACT
Over time, the economic activity of the business company is going
through changes, through a remarkable phase of the theory of acts of trade,
seen as a means of objectifying the legal treatment of financial activity. That
is, with it, the Company Law is no longer just the jurisprudence of a group of
professionals, organized themselves into corporations, to become the subject
of a series of acts which, in principle, could be committed by any citizen; to
the stage theory of the company that has the stress of marketability, as a result
of technical progress and economics of mass, moving from the notion of an
act for the notion of activity. The professional activity intermediate between
production and consumption of goods imposes an increasing specialization and
the creation of economic organizations increasingly complex. The Civil Code of
2002 demonstrates the importance of providing means for the preservation and
continuation of activities performed by business associations, since it is a source
of taxes, jobs and foreign exchange, providing therefore benefits to society in
general. It appears therefore that the principle of preservation of the company
has been the main concern of contemporary business jurisprudence in the face
of undeniable social shock produced a tendency to generalize, inadvertently,
the application of the theory of disregard of legal entity. It is necessary to
check carefully whether the conditions are present according to the doctrine as
recognized by the opportunity of its application, for only then if the answer is
affirmative it will be necessary to proceed to its effective implementation.
Keywords: Disregard of legal entity doctrine, Preservation of the company,
Legal presumptions, The Federal Constitution, Civil Code of 2002.
INTRODUÇÃO
Em especial, o presente artigo objetiva analisar as situações que autorizam
a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
As circunstâncias excepcionalíssimas que autorizam a aplicação da disregard
of legal entity se subsumem nos conceitos genéricos de fraude e má-fé, que não
88
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
se presumem. É necessária a apuração se houve ato fraudulento ou abuso na
utilização da pessoa jurídica e, ainda, fazer a oitiva daquele em relação ao qual
foi estendida a responsabilidade por obrigações da sociedade, com constrição
de bens em obediência ao princípio da preservação da sociedade empresária.
O simples prejuízo de credores decorrente da separação de patrimônios entre
sócios e sociedade empresária não se mostra, de acordo com a formulação
original da teoria, suficiente para autorizar a aplicação da teoria.
Fundamental destacar que o objetivo da disregard doctrine não é
questionar o princípio da autonomia patrimonial, que continua válido e eficaz
ao estabelecer que, em regra, os membros da pessoa jurídica não respondem
pelas obrigações desta. Trata-se de aperfeiçoamento da teoria da pessoa jurídica,
através da coibição do mau uso de seus fundamentos. Assim, a pessoa jurídica
desconsiderada não é extinta, liquidada ou dissolvida pela desconsideração;
não é igualmente, invalidada ou desfeita. Apenas determinados efeitos de seus
atos constitutivos deixam de se produzir episodicamente. Em outras palavras,
a separação patrimonial decorrente da constituição da pessoa jurídica não será
eficaz no episódio da repressão ao abuso e à fraude. Para todos os demais
efeitos, a constituição da pessoa jurídica é existente, válida e plenamente eficaz.
Completa-se a pavimentação teórica do tema em investigação com o
desenho do fenômeno do princípio da preservação da empresa que interessa ao
Direito e à Economia, em especial pela proteção que oferece à continuidade dos
negócios sociais. Tal preservação da empresa tem uma notável importância. O
princípio da preservação é gênero no qual a continuidade das atividades compõe
a espécie, e nele se encontra similitude com a guarida ao patrimônio mínimo, na
hipótese inerente à manutenção do empreendimento.
Da leitura do art. 170, III da Constituição Federal denota-se que a
sociedade empresária está ali contemplada como ente integrante de ordem
econômica nacional, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, desde que observados os princípios da propriedade privada e da função
social da propriedade. 93 Constata-se, portanto, que o legislador constituinte, de
maneira categórica, pretende evitar que a iniciativa econômica privada possa
ser desenvolvida de maneira prejudicial à promoção da dignidade da pessoa
humana e à justiça social. 94 Rejeita, igualmente, que os espaços privados, como
CAVALLAZZI FILHO, Tullo. A função social da empresa e seu fundamento constitucional.
OAB/SC Editora, 2006, p. 53.
94
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60: conceitua no prisma jurídico
o princípio da dignidade da pessoa humana como a qualidade intrínseca e distintiva de cada
ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante de desumano, como
93
89
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
a família, a sociedade empresária e a propriedade, possam representar uma
espécie de zona franca para violação do projeto constitucional. 95
A dignidade é valor próprio e extrapatrimonial da pessoa humana,
especialmente no contexto do convívio na comunidade, como sujeito moral. Não
há dúvida de que todos os interesses têm como centro a pessoa humana, a qual
é o foco principal de qualquer política pública ou pensamento, sendo imperioso
harmonizar a dignidade da pessoa humana ao desenvolvimento da sociedade e,
consequentemente, do progresso científico e tecnológico, porquanto este deve
tender sempre a aprimorar e melhorar as condições e a qualidade de vida das
pessoas humanas, e não o inverso. 96
Tem-se, assim, que a Constituição Federal pode ser considerada o que
a doutrina denomina de Constituição Econômica, justamente por empreender
um conjunto de normas que, garantindo os elementos definidores de um
determinado sistema econômico, estabelece os princípios fundamentais de
determinada forma de organização e funcionamento da economia e constitui,
por isso mesmo, uma determinada ordem econômica. 97
Essa ordem econômica e financeira não é ilha normativa apartada
da Constituição. É fragmento da Constituição Federal, uma parte do todo
constitucional e nele se integra. A interpretação, a aplicação e a execução dos
preceitos que a compõem reclamam o ajustamento permanente das regras da
ordem econômica e financeira às disposições do texto constitucional que se
espraiam nas outras partes da Constituição Federal. A ordem econômica e
financeira é indissociável dos princípios fundamentais da República Federativa
e do Estado Democrático de Direito. Suas regras visam atingir os objetivos
fundamentais que a Constituição colocou na meta constitucional da República
Federativa. A ordem econômica e financeira é, por isso, instrumento para
a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. É a fonte das normas
e decisões que permitirão à República garantir o desenvolvimento nacional,
erradicar a pobreza, a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação. 98
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e
da vida em comunhão com os demais seres humanos.
95
TEPEDINO, Gustavo. A constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas
diante do novo código. In: Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 118.
96
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. Função social
no direito privado e Constituição. In: Função social no direito civil. São Paulo: Atlas, 2007, p. 25.
97
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 771.
98
HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 301.
90
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Eventual conflito ou mesmo incompatibilidade, ainda que transitória
entre o lucro (compatível com a livre iniciativa da atividade empresária) e a
concretização dos Direitos Sociais, a solução jurídica adequada para dirimi-lo
deverá privilegiar, ao final, os objetivos sociais. 99
Em consequência, resulta lógico sustentar que a ordem econômica brasileira,
a partir da Constituição Federal, defende a livre iniciativa e a valorização do trabalho
humano, para que auxiliem – em caráter preferencial – na proteção da dignidade da
pessoa humana, afastando, portanto, qualquer possibilidade de desprezá-la. Em outras
palavras, a Constituição Federal quando trata da ordem econômica funcionaliza a
atividade econômica para que auxilie na proteção da dignidade da pessoa humana.
Conclui-se, portanto, que a Constituição de 1988, fundada no trabalho valorizado e
na liberdade de iniciativa, insere a função social como um dos princípios da ordem
econômica. Com isso, visou alcançar existência digna para todos. 100
Diante desse contexto constitucional, há que se defender que a preservação da
sociedade empresária foi erigida a princípio constitucional, sob pena de não atingir
os objetivos pretendidos, dentre os quais, repita-se, a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária (CF/88, art. 3º, I), mesmo porque nem todos os princípios
constitucionais estão escritos. 101 A solidariedade, ou socialidade, é um dos princípios
basilares do Estado, e deve ser entendida, em primeira colocação, como um elemento
essencial de interpretação, na forma de interpretação conforme a Constituição,
irradiada pelo princípio maior da democracia social e econômica. 102 A circunstância
de o legislador constituinte haver incluído no texto constitucional vários princípios e
regras tipicamente de Direito Privado impõe que todas as normas infraconstitucionais
de Direito Civil devam ser interpretadas em conformidade com a Constituição. 103
Na verdade, a solidariedade implica o reconhecimento de que,
embora cada um de nós componha uma individualidade irredutível ao
todo, estamos também todos juntos, de alguma forma irmanados por um
destino comum. Ela significa que a sociedade não deve ser o locus da
concorrência entre indivíduos isolados, perseguindo projetos pessoais
antagônicos, mas sim um espaço de diálogo cooperação e colaboração
entre pessoas livres e iguais, que se reconheçam como tais. 104
CAVALLAZZI FILHO, Tullo. A função social da empresa e seu fundamento constitucional.
OAB/SC Editora, 2006, p. 40.
100
Id. Ibid. 2006, pp. 40-1.
101
Id. Ibid. 2006, p. 41.
102
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina,
1996, pp. 340 et seq.
103
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do
direito privado. In: Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 38.
104
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen
99
91
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A comprovação da existência de princípios constitucionais não escritos105
está no próprio texto constitucional, que, ao tratar dos Direitos Fundamentais,
estabelece em seu art. 5º, §§ 1º e 2º, que as normas definidoras dos Direitos e
Garantias Fundamentais têm aplicação imediata e que os Direitos e Garantias
expressos na Constituição Federal não excluem outros, decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte. 106
Não se pode falar, portanto, na concretização dos Direitos Fundamentais
e, por conseguinte, na construção de uma sociedade mais justa e solidária sem
enfrentar e destacar o papel desempenhado pelas sociedades empresárias na
sociedade contemporânea. Afinal, o exercício dessa atividade econômica não
gera apenas deveres e obrigações estabelecidos pelo ordenamento jurídico,
como também interesses econômicos para a subsistência dos envolvidos direta
e indiretamente, cujo desenvolvimento dessa cadeia produtiva alcança o Estado
como um todo, uma vez que é por intermédio da atividade econômica que arrecada
os tributos, indispensáveis para que possa honrar suas despesas e obrigações. 107
O método escolhido para elaboração desse artigo foi o indutivo e a técnica
a pesquisa bibliográfica. A pesquisa desenvolvida adotou como procedimento
por excelência de uma metodologia do tipo qualitativo com o manejo de fontes
bibliográficas, documentais, legislativa e de Direito comparado além da coleta de
dados jurisprudenciais no Superior Tribunal de Justiça, através de seu site com
consulta espontânea (consulta livre) da jurisprudência que trata sobre a teoria da
desconsideração da personalidade da pessoa jurídica e seus principais aspectos.
A fonte primeira da investigação é a jurisprudencial, à medida que seu objeto
consiste no inteiro teor de acórdãos fornecidos pelo site do Superior Tribunal de Justiça.
Como fontes secundárias aparecem a legislação constitucional e a infraconstitucional,
bem como a doutrina que informa os conceitos de ordem dogmática.
Assim investigação pautou-se como insumo básico dados da realidade
jurídica normativa brasileira, com reafirmação através da análise do ordenamento
Juris, 2004, p. 338.
105
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 35: conceitua como uma regra que é tratada como premissa (o raciocínio
redutivo) ou consequência (o raciocínio dedutivo) das normas do direito positivo. A natureza
lógica destes raciocínios no campo normativo é sujeita a controvérsias dentro da discussão sobre
a lógica jurídica. Porém, quando se utiliza a noção de princípio implícito do direito, admite-se
que o raciocínio em questão garante a validade dos princípios pertencentes ao sistema do direito.
106
Sobre o assunto ver: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pp. 85 et seq.
107
CAVALLAZZI FILHO, Tullo. A função social da empresa e seu fundamento constitucional.
OAB/SC Editora, 2006, p. 136.
92
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
jurídico tanto infraconstitucional como constitucional, considerando-se ainda
de capital importância a recuperação dos julgados citados como precedentes,
bem como do estudo de caso que só pode aspirar à cientificidade onde o papel
da teoria não é deformado, onde a crítica epistemológica dos problemas e
conceitos não é negligenciada.
O presente artigo pretende colaborar na construção de um instrumental
metodológico voltado para uma melhor estruturação das análises jurisprudenciais,
sendo, portanto, nosso objetivo utilizar o estudo de caso, não como método de
ensino do Direito, mas como método de pesquisa, a fim de melhor compreender
as diferentes gradações da teoria da desconsideração da personalidade jurídica
e do princípio da preservação da sociedade empresária que o Superior Tribunal
de Justiça adere.
Os capítulos I e II voltam-se à exploração da função social da sociedade
empresária que se constitui em linha mestra do Direito de Empresa no Código
Civil, reforçando a opinião da preservação da sociedade empresária como
princípio essencial desse Diploma Legal. os novos contornos da teoria da
desconsideração da personalidade da pessoa jurídica que possui um estreito
liame com o princípio da preservação da sociedade empresária. O que aqui se
propõe é uma sistematização das premissas teóricas regedoras do fenômeno
em investigação; o percurso dos argumentos de oposição à maior amplitude do
instituto; e a evidenciação de sua aplicabilidade no contexto atual.
Completa-se o artigo com o capítulo III, voltado à exploração do princípio
da preservação da sociedade empresária. O Código Civil de 2002 demonstra a
importância em propiciar meios para a preservação e continuidade da atividade
exercida pela sociedade empresária, uma vez que é fonte de tributos, empregos
e divisas, propiciando, pois, benefícios à sociedade em geral.
CAPÍTULO I
A FUNÇÃO SOCIAL DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA
Fábio Konder Comparato entende a função social como um poder de agir
sobre a esfera jurídica alheia, no interesse de outrem, jamais em proveito do
próprio titular. Algumas vezes, interessados no exercício da função são pessoas
indeterminadas e, portanto, não legitimadas a exercer pretensões pessoais e
exclusivas contra o titular do poder. É nessas hipóteses, precisamente, que se
deve falar em função social ou coletiva. A função social da propriedade não
se confunde com as restrições legais ao uso e gozo dos bens próprios; em se
tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa uma
destinação compatível com o interesse da coletividade transmuda-se, quando
tais bens são incorporados a uma exploração empresária, em poder-dever do
93
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
titular do controle de dirigir a sociedade empresária para a realização dos
interesses coletivos. 108
Estas considerações explicam a inserção da função social da propriedade
no âmbito constitucional, bem como a da sociedade empresária que, por sua
vez, encontrou respaldo no art. 170, III, da Constituição Federal, que o instituiu
como princípio da ordem econômica, 109 vez que a sociedade empresária atua
não apenas para atender aos interesses dos sócios, mas de toda a coletividade e
principalmente dos empregados. 110
A função social da sociedade empresária se vincula, pois, de sorte
imediata, à atividade empresária desenvolvida e pode ser dividida em duas
espécies: endógena e exógena, de acordo com os fatores envolvidos. 111
A função social de caráter endógeno diz respeito aos fatores empregados
na atividade empresária no interior da produção. Assim, fazem parte dessa
espécie as relações trabalhistas desenvolvidas no âmbito empresário; o ambiente
no qual o trabalho é exercido; os interesses dos sócios da sociedade empresária
não implícitos na relação administradores-sócios etc.112
A função social da sociedade empresária em seu perfil exógeno leva em
conta os fatores externos à atividade desenvolvida pela sociedade empresária.
Nesse sentido, são compreendidos nessa espécie de incidência da função social
da sociedade empresária: concorrentes, consumidores; e, o meio ambiente. 113
A título de demonstração de que tanto o perfil exógeno quando o endógeno
foram levados em conta pelo legislador constituinte, faz-se imprescindível a
transcrição do texto do art. 170 da Constituição Federal, asseverando-se que
tal preceito abre as disposições constitucionais acerca da ordem econômica no
Estado brasileiro. 114
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios:
I. Soberania nacional;
II. Propriedade privada;
COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva,
1990, passim.
109
CAVALLAZZI FILHO, Tullo. A função social da empresa e seu fundamento constitucional.
OAB/SC Editora, 2006, p. 153.
110
COMPARATO, Fábio Konder. Ibid., 1990, passim.
111
AMARAL, Luiz Fernando de Carmo Prudente. A função social da empresa no direito
constitucional econômico brasileiro. São Paulo: SRS Editora, 2008, p. 119.
112
Id. Ibid. 2008, p. 119.
113
Id. Ibid. 2008, p. 119.
114
Id. Ibid. 2008, p. 120.
108
94
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
III. Função social da propriedade;
IV. Livre concorrência;
V. Defesa do consumidor;
VI. Defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos
de elaboração e prestação;
VII. Redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII. Busca do pleno emprego;
IX. Tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas
sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer
atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos
públicos, salvo nos casos previstos em lei.
A transcrição do preceito não só demonstra a preocupação do constituinte
com a construção de uma sociedade justa e igualitária, como traz à baila o fato
de que, ao serem previstos diversos princípios aplicáveis à ordem econômica,
cada um deles deverá ter a mesma importância, mas poderá se moldar mais
adequadamente à determinado caso concreto.115
Da mesma forma, o caput do art. 170 da Constituição Federal traça os
limites que deverão ser obedecidos na aplicação dos princípios que integram
seu rol, ao delimitar objetivo relativo à existência digna de todos os brasileiros,
devendo ser levados em conta os ditames da justiça social, isto é, de uma justa
organização social dos componentes da sociedade, numa expressa referência ao
Direito como instrumento social. 116
Também há que se afirmar que a ordem econômica deve ser
explicitamente fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa.
Verifica-se, pois, que os fatores exógenos e endógenos da atividade empresária
estão presentes em tal artigo. Afinal, a valorização do trabalho humano, sob o
ponto de vista empresário, encontra-se dentre os fatores endógenos da função
exercida pela sociedade empresária. No que se refere ao meio ambiente, aos
consumidores etc., tem-se expressa preocupação do legislador constituinte com
fatores exógenos à função social da sociedade empresária, vez que voltados à
coletividade na qual a mesma exerce suas atividades. 117
Nesse sentido, a sociedade empresária tem uma óbvia função social,
nela sendo interessados os empregados, os fornecedores, a comunidade em
que atua e o próprio Estado que dela retira contribuições fiscais e parafiscais.
Id. Ibid. 2008, pp. 120-1.
Id. Ibid. 2008, p. 121.
117
Id. Ibid. 2008, p. 121.
115
116
95
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Por consequência, existem três principais funções sociais da sociedade
empresária: a primeira refere-se às condições de trabalho e às relações com
seus empregados; a segunda volta-se ao interesse dos consumidores; a terceira
volta-se ao interesse dos concorrentes. E ainda mais atual é a preocupação com
os interesses de preservação ecológica urbana e ambiental da comunidade em
que a sociedade empresária atua. 118
Quanto às outras importantes atuações da função social da sociedade
empresária, Sheilla Regina Brevidelli explica que seus reflexos sobre o contrato
de trabalho que também são evidentes; neles, impõe-se a incidência de outro
princípio a reger o contrato: a boa-fé objetiva que, por sua vez, pode ser
entendida sob dois enfoques: o subjetivo e o objetivo. 119
A boa-fé subjetiva refere-se a um estado de consciência que consiste em
ignorar que se está prejudicando interesse alheio, protegido ou tutelado pelo
Direito. A boa-fé objetiva impõe um dever e um padrão de comportamento
baseados em lealdade, probidade e confiança recíprocas. Assim, ela permite a
concreção de normas impondo que os sujeitos de uma relação se conduzam de
forma honesta, leal e correta. 120
Tem-se ainda que a boa-fé objetiva incide em três fases: pré-contratual,
contratual e pós-contratual. Os deveres de respeito e lealdade, devidos pelo
empregador, no contrato de trabalho, então se desdobram em: 1. Fase pré-contratual:
respeito à privacidade durante a seleção de pessoal, deveres de informação clara e
precisa das tarefas a serem desempenhadas e das cláusulas contratuais em questão,
respeito às expectativas criadas no candidato; 2. Fase contratual: respeito às
cláusulas contratuais, deveres de cuidados com a saúde física e mental do trabalhador
(devendo os conceitos de insalubridade ser estendido ao nível psicológico); 3. Fase
pós-contratual: respeito estrito ao Direito Constitucional ao trabalho, inscrito no
art. 6º da Constituição Federal, com a consequente proibição de fornecer más
referências a novos empregadores potenciais. 121
Toda a essência da relação de trabalho e a proteção do trabalhador
pode ter uma nova dimensão e parâmetro dentro desse novo pensar da
sociedade empresária. A questão do trabalho e até mesmo da efetividade do
processo do trabalho, perpassa a maneira como se estruturam as sociedades
empresárias, como o Direito as conforma e como permite ou não brechas para
que as obrigações empresárias contraídas e os deveres contratuais não sejam
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. São Paulo: Saraiva, 1977,
vol. III, p. 237.
119
BREVIDELLI, Sheilla Regina. A função social da empresa: alargamento das fronteiras éticas
nas relações de trabalho. São Paulo: USP, 2000, p. 5.
120
COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976,
pp. 29-31.
121
Id. Ibid., 1976, pp. 29-31.
118
96
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
cumpridos, favorecendo a instabilidade social, a concentração de riquezas e
aumentando o fosso da injustiça social. 122
A função social da sociedade empresária, portanto, acarreta a superação
do caráter eminentemente individualista, devendo o Direito Individual do seu
titular coexistir com a funcionalização do instituto, desempenhando, pois, um
papel produtivo em benefício de toda a coletividade. A atividade empresária,
então, apresenta um caráter dúplice, uma vez que serve não só ao sujeito
proprietário, como também às necessidades sociais. 123
A função social da sociedade empresária, então, constitui-se em linha mestra
do Direito de Empresa no Código Civil, o que reforça a opinião da preservação da
sociedade empresária como princípio essencial desse Diploma Legal. Reforçando
esse entendimento, em face da timidez do texto do Código Civil, foi elaborado na
Jornada de Direito Civil, realizada em Brasília, nos dias 11 a 13 de setembro de
2002, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho Federal, sob a
coordenação do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior do Superior Tribunal de
Justiça, o Enunciado 53 de relatoria de Newton de Lucca que dispõe que deve-se
levar em consideração o princípio da função social na interpretação das normas
relativas à sociedade empresária, a despeito da falta de referência expressa. 124
Nesse sentido, o Projeto de lei 9.620/02, que trata de emendas e reformas
ao Código Civil, propõe a inserção de um novo parágrafo (2º) ao art. 996
com o seguinte conteúdo: o exercício da atividade de empresário, fundada
na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, observará os limites
impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes.
Ainda no que diz respeito à função social da sociedade empresária,
registra-se que a função social significa um paliativo retórico aos efeitos
concretos de nossas políticas econômicas, ou seja, traduz uma válvula de escape
psicossocial, a qual pode ser definida como instrumento de aparente conquista
social que, na realidade, acaba por atuar exatamente de forma oposta, mantendo
privilégios ou impedindo a real conquista dos interesses sociais. 125
Tem-se, então, que a busca da concretização de uma sociedade mais justa e
solidária, com a efetiva participação da sociedade, exige a preservação das sociedades
empresárias que adotem uma postura positiva no tocante à concretização dos
Direitos Sociais. Essa responsabilidade e dever social das sociedades empresárias,
por sua vez, não afastam os deveres inerentes ao Estado. Ao contrário, incumbe ao
BREVIDELLI, Sheilla Regina. Ibid., p. 6.
CASTRO, Carlos Alberto Farracha. Preservação da empresa no código civil. Curitiba: Juruá,
2007, p. 138.
124
Id. Ibid., 2007, pp. 138-9.
125
TOKARS, Fábio Leandro. Função social da empresa. In: Direito civil constitucional: situações
patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002, pp. 77-96.
122
123
97
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Estado não só concretizar políticas públicas destinadas à moradia, segurança, saúde
e educação, como também, evitar práticas anticoncorrenciais de determinados
grupos de sociedades empresárias. Estado e sociedade empresária, portanto, não
mais atuam em setores distintos. Na verdade se completam. 126
A função social do Direito Civil, como uma das exigências fundamentais
do Estado brasileiro, é um aspecto componente do aparato de proteção que
se dá ao princípio da dignidade da pessoa humana, no sentido de viabilizar a
consolidação efetiva dos princípios de igualdade material e justiça social. 127 128
CAPÍTULO II - A FUNÇÃO SOCIAL DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA
NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
A lei n° 6.404 de 15 de dezembro de 1976 também denominada de lei
das sociedades anônimas faz menção expressa à função social da sociedade
empresária em dois dispositivos, quais sejam:
Art. 116. [...] Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder
com o fim de fazer a companhia realizar o seu objetivo e cumprir sua função
social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da
empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos
direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.
Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições a que a lei e o
estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas
as exigências do bem público e da função social da empresa.
Os citados artigos determinam a vinculação dos fins econômicos – finalidade
precípua de sociedades empresárias – ao atendimento de exigências de natureza
CASTRO, Carlos Alberto Farracha. Preservação da empresa no código civil. Curitiba: Juruá,
2007, p. 143.
127
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. Função social
no direito privado e Constituição. In: Função social no direito civil. São Paulo: Atlas, 2007, p. 28.
128
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 110-3: preleciona que de forma
bastante simples, é possível afirmar que o conteúdo jurídico da dignidade se relaciona com os
chamados direitos fundamentais ou humanos. Isto é, terá respeitada sua dignidade o indivíduo
cujos direitos fundamentais forem observados e realizados, ainda que a dignidade não se esgote
neles. [...] Concretizando um pouco mais o que se acaba de expor, lembre-se que os direitos
fundamentais são tradicionalmente apresentados pela doutrina como um conjunto formado
pelas seguintes categorias: direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais, esta última
uma redução da locução direitos sociais, econômicos e culturais. Os direitos individuais são
comumente identificados como direitos da liberdade. Trata-se de um conjunto de direitos cuja
missão fundamental é assegurar à pessoa uma esfera livre da intervenção da autoridade política
ou do Estado. Nessa linha, foram progressivamente conquistados os direitos à liberdade religiosa,
liberdade civil e profissional, [...] dentre outros.
126
98
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
social, o que significa a própria função social afirmada. Nesse sentido, não quis o
legislador desvirtuar a atividade empresária, lucrativa por excelência, mas sim obrigar
o respeito à construção de uma sociedade empresária melhor ajustada (equilibrada),
de sorte a atingir o interesse (bem) público almejado pela coletividade. 129
É lícito, portanto, inferir que independentemente de seu caráter privado,130
a atividade empresária desenvolvida pelas sociedades anônimas faz a mesma
assumir também uma responsabilidade de cunho comunitário, 131 não ficando
adstrita apenas aos interesses particulares de sua sociedade controladora e/ou de
seus administradores, mas também ao interesse comum de toda a comunidade na
qual está inserida. 132 Em outras palavras, no exercício da atividade empresária,
reconhece a lei que devem ser respeitados os interesses internos e externos à
atividade empresária, ou seja, os interesses de capitalistas e trabalhadores, mas
também os interesses da comunidade em que ela atua. 133
O Código de Defesa do Consumidor é outro diploma que, inequivocamente,
funda-se na função social da sociedade empresária. Afinal, ao elaborar normas
capazes de proteger os consumidores, responsáveis pela continuidade do sistema
produtivo, impõe às sociedades empresárias, agentes do sistema de produção,
deveres claros de respeito e atenção para com seus consumidores. 134
A atividade empresária não pode causar dano ao consumidor, impondo
às sociedades empresárias normas de caráter negativo (abstenção) e positivo
(ação), sendo este último o caso de obrigatoriedade de observância dos
princípios da boa-fé, com seus corolários de lealdade, informação, proteção
etc. Por outro lado, a lei n° 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor – fez
com que os produtos e serviços destinados aos consumidores ganhassem em
qualidade e segurança, favorecendo a coletividade. 135
AMARAL, Luiz Fernando de Carmo Prudente. A função social da empresa no direito
constitucional econômico brasileiro. São Paulo: SRS Editora, 2008, p. 133.
130
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. São Paulo: Saraiva,
1997, vol. I, p. 7: informa que não obstante ser uma pessoa jurídica de direito privado, ressalta
na sociedade anônima sua função social. Constituída em virtude de um contrato privado,
a companhia, na medida em que atua no meio social como forma de organização jurídica da
sociedade empresária, acaba por ser considerada uma instituição de interesse público, levando
inclusive à ingerência do Estado nos atos de sua formação e atuação.
131
COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. In: Revista dos Tribunais, São
Paulo, n° 732, out., 1996, p. 38.
132
CAVALLAZZI FILHO, Tullo. A função social da empresa e seu fundamento constitucional.
OAB/SC Editora, 2006, pp. 122-3.
133
TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A função social no código civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, p. 144.
134
AMARAL, Luiz Fernando de Carmo Prudente. Ibid., 2008, p. 135.
135
Id. Ibid., 2008, p. 135.
129
99
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Ainda acerca da defesa dos consumidores tem-se que é princípio que deve
ser seguido pelo Estado e pela sociedade para atingir a finalidade de existência
digna e justiça social. É possível extrair, ainda, da leitura do artigo constitucional
que o Brasil adota o modelo de economia capitalista de produção, já que a livre
iniciativa é um princípio basilar da economia de mercado. No entanto, não deixou
de consignar a Constituição que a ordem econômica brasileira confere a defesa
do consumidor contra os possíveis abusos ocorridos no mercado de consumo. 136
Assim, inegável a relevância do Código de Defesa do Consumidor, seja
para defender os consumidores, bem como para fazer com que as sociedades
empresárias produtoras atendam a função social que lhes é imposta e, ainda,
para que o princípio maior de nosso Estado possa ser atingido qual seja a
dignidade da pessoa humana. 137
Outro Diploma que muito contribuiu à consolidação da função social da
sociedade empresária de maneira explícita foi a lei n° 8.884/94, a qual trata das
questões relativas à concorrência no setor empresário. O art. 1º ao determinar
as finalidades a que se destina, estabelece que:
Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra
a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade
de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos
consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.
Parágrafo único. A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos
por esta lei.
Tal dispositivo elucida de maneira induvidosa os motivos que
determinaram a criação do texto normativo. A intenção do legislador foi
justamente reprimir o abuso econômico, tutelando a livre iniciativa, mais
viabilizando também a livre concorrência, ao que levou em conta todos os
demais princípios trazidos pelo art. 170 da Constituição Federal, bem como
atribuiu à coletividade a titularidade dos bens protegidos pela lei. Não há maior
clareza para se determinar a existência de uma função social do que definir a
coletividade (o povo) como titular dos bens que a lei tutela. Isto é, tudo aquilo
que for feito em virtude de tal texto legislativo terá por objetivo ser revertido
em prol da coletividade. 138
Outra importante legislação que foi promulgada no intuito de cumprir os
mandamentos de natureza constitucional foi a lei n° 9.605/98, que regulamenta
o meio ambiente. Como visto, o meio ambiente é um dos princípios norteadores
DENSA, Roberta. Direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2007, p. 4.
AMARAL, Luiz Fernando de Carmo Prudente. Ibid., 2008, p. 136.
138
Id. Ibid., 2008, p. 136.
136
137
100
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
da ordem econômica, isto é, toda e qualquer atividade de natureza econômica há
de respeitar e se responsabilizar pela manutenção do meio ambiente de maneira
sustentável, sob pena de se desviar da função social da sociedade empresária,
bem como de ocasionar ofensa a outro princípio da Constituição Federal, qual
seja, a dignidade da pessoa humana que é princípio base de todo o ordenamento
jurídico brasileiro. 139
Outro dispositivo que tem em sua gênese a ideia de função social da sociedade
empresária enquanto pessoa jurídica é o art. 50 do Código Civil ao estabelecer:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo
desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir,
a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber
intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores
ou sócios da pessoa jurídica.
Registra-se que o desvio de finalidade na atividade empresária (pessoa
jurídica), como importante demonstração de desvio da própria função social
da sociedade empresária, ocasionará ao empresário que assim agir os danos
oriundos da chamada teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a fim
de que os bens particulares dos sócios possam ser atingidos por credores e por
terceiros lesados, caindo o manto protetor da pessoa jurídica. 140
CAPÍTULO III - PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA
SOCIEDADE EMPRESÁRIA
Na busca da concretização da livre iniciativa como um dos fins de nossa
estrutura política, é dizer, um dos fundamentos do próprio Estado Democrático
de Direito,141 desde que valorizado o trabalho humano, a Constituição Federal,
também, elege como princípios da ordem econômica, dentre outros, a função
social da propriedade, a livre concorrência, a busca do pleno emprego. 142
Postular a livre iniciativa quer dizer precisamente que a Constituição
Federal consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois
a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista. 143 Significa
Id. Ibid., 2008, p. 137.
Id. Ibid., 2008, pp. 132-3.
141
BASTOS, Celso Ribeiro. Direito econômico brasileiro. São Paulo: IBDC, 2000, p. 115.
142
CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. Preservação da empresa no código civil. Curitiba: Juruá,
2007, p. 43.
143
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros,
2004, p. 742.
139
140
101
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
também dizer que a consagração da liberdade de iniciativa, como primeira das
bases da ordem econômica e social, traduz que é através da atividade socialmente
útil a que se dedicam livremente os indivíduos, segundo suas inclinações, que
se procurará a realização da justiça social e, portanto, do bem estar social. 144
A busca do pleno emprego está relacionada estritamente com o princípio
da preservação da sociedade empresária, que, por sua vez, interessa ao Direito
e à Economia, pela proteção que oferece à continuidade dos negócios sociais.
145
Afinal, o exercício da atividade empresária é a fonte de tributos e empregos.
Ou seja, sem preservação da atividade empresária inexiste emprego, razão
pela qual não há como se valorizar o trabalho, motivo por que a pretensão do
legislador constituinte fica reservada ao seu imaginário.146
O princípio da busca do pleno emprego corresponde ao da preservação
da sociedade empresária (de que é corolário o da recuperação da sociedade
empresária), segundo o qual, diante das opções legais que conduzam a dúvida
entre aplicar regra que implique a paralisação da atividade empresária e outra
que possa também prestar-se à solução da mesma questão ou situação jurídica
sem tal consequência, deve ser aplicada essa última, ainda que implique
sacrifício de outros Direitos também dignos de tutela jurídica. 147
A preservação da sociedade empresária como princípio constitucional,
porém, não deriva exclusivamente do princípio da busca do pleno emprego
(CF/88, art. 170, VIII), mas também, do fato de que a Constituição Federal,
dentre os princípios gerais da atividade econômica, estabelece a função social
da propriedade (CF/88, art. 170, III), o que não tolera a extinção de sociedades
empresárias produtivas, sob pena de não atender aos interesses coletivos, mas,
tão-somente, aos individuais e patrimoniais dos seus titulares. 148
A preservação da sociedade empresária como princípio constitucional,
também, pode ser visualizada a partir da desmaterialização da riqueza,
consequência da função social da propriedade. 149 Dessa forma, se a sociedade
empresária consubstancia a noção contemporânea da propriedade, ela, por
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São
Paulo: Saraiva, 1995, p. 3.
145
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro/São Paulo:
Renovar, 2001, p. 199.
146
CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 43.
147
GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Apontamentos de direito comercial. Curitiba: Juruá, 1998,
p. 99.
148
CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 43.
149
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, pp. 66-7: consignava que parece ser
o contrato, e já que não a propriedade, o instrumento fundamental de gestão dos recursos e de
propulsão da economia. [...] mesmo porque, no presente, o processo econômico é determinado e
impulsionado pela empresa, e já não pela propriedade.
144
102
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
força de princípio constitucional, deve atender a uma função social, isto é,
gerar benefícios não só aos seus titulares, mas também a terceiros, isto é, a
trabalhadores, fornecedores, consumidores e ao próprio Estado (em razão
do interesse de recolher tributos do exercício daquela atividade econômica
organizada). 150 Assim procedendo, a Constituição Federal levou em conta
a propriedade, considerada sob o aspecto econômico, mas com evidentes
reflexos sociais, que abrangem, primordialmente, a sociedade empresária,
como atividade organizadora que é da propriedade em fase dinâmica, nesta
reconhecida como meio de produção. 151 Depreende-se, dessa maneira, que
o legislador constituinte defende a preservação da sociedade empresária; em
caso contrário, não existirá função social concreta e, muito menos, haverá o
desenvolvimento de atividade produtiva, com reflexos sociais, como a geração
de empregos. Aliás, impossível esquecer-se de que a Constituição Federal
eleva a função social da propriedade e a busca do pleno emprego à condição de
princípios da atividade econômica (art. 170, III e VIII), e não será destruindo
centros de produção que essas normas serão observadas. 152
A ordem econômica, portanto, também se funda no princípio da
preservação da sociedade empresária, que, por sua vez, contribui para a
concretização dos demais Direitos Fundamentais, vez que eventuais Direitos
Fundamentais não enumerados abrangem Direitos de qualquer natureza: tanto
direitos, liberdades, garantias como direitos econômicos, sociais e culturais. 153
Não se quer com essa assertiva, no entanto, erigir o princípio da preservação
da sociedade empresária a Direito Fundamental, mesmo porque é impossível
fazê-lo dada a natureza dos Direitos Fundamentais, os quais, na essência, são os
Direitos do homem livre e isolado, sem prejuízo de que a distinção entre Direitos
Fundamentais ou não radica na própria Constituição Federal. Os Direitos do art.
5º são enunciados, como Direitos e Garantias Fundamentais (CF/88, art. 5º, caput
e itens I a LXXVII). Outros há que a fundamentalidade não os reveste. Dentre
os Direitos constitucionalmente assegurados, só os Direitos Fundamentais estão
sintaticamente ao abrigo das cláusulas pétreas (CF/88, art. 60, § 4º, IV). 154 O que
se pretende é demonstrar que a defesa da preservação da sociedade empresária,
como princípio constitucional não escrito e integrante da ordem econômica
CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 45.
SOUSA, Sueli Baptista de. Responsabilidade dos sócios na sociedade limitada. São Paulo:
Quartier Latin, 2006, p. 176.
152
TEPEDINO, Ricardo. A recuperação da empresa em crise diante do Decreto-lei 7.661/45. In:
Revista de Direito Mercantil, n° 128, out./dez., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 167.
153
QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos fundamentais: teoria geral. Coimbra: Coimbra, 2002,
p. 89.
154
BORGES, José Souto Maior. Relação entre tributos e direitos fundamentais. In: Tributos e
direitos fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, pp. 217-8.
150
151
103
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
nacional, auxilia a concretização dos Direitos Fundamentais, notadamente o da
dignidade da pessoa humana. Quer dizer, sua preservação está em conformidade
com os postulados do atual sistema constitucional, cuja preocupação primeira é
atender e preservar os interesses sociais do homem, em sua plenitude. 155
Analisando a questão da sociedade empresária em dificuldade
econômico-financeira transitória, a doutrina sustenta que para sua recuperação
e preservação, naquele momento exclusivamente, há que se privilegiar a
preservação da sociedade empresária em detrimento de outros princípios, como
por exemplo, os Direitos Trabalhistas. 156 No caso de recuperação judicial, a
assembleia geral de credor e o juiz da causa deverão entregar-se à ponderação
de fins - salvar a sociedade empresária, manter os empregos e garantir os créditos
-, pelo princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, quando, então, talvez,
venham a concluir que o caso concreto exige o sacrifício, verbi gratia: a) do
interesse da sociedade empresária e de seus sócios e acionistas em benefício de
empregados e credores ou b) dos Direitos de empregados e credores em prol da
sociedade empresária. 157
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A preservação da sociedade empresária como princípio constitucional, ainda
que não escrito, é necessário para se evitar que a eficácia da recuperação judicial
venha a ser abalada, vez que não se reconhece ao sócio de sociedade empresária em
recuperação judicial o Direito de recorrer ao recesso, uma vez que nessas condições
o instituto do direito de recesso é contrário ao sistema e, portanto, inaceitável.
Melhor explicando, não há como reconhecer ao sócio de sociedade empresária
em recuperação judicial o direito de recorrer ao recesso, pois a admissão desta
possibilidade afetaria a eficácia da recuperação almejada não somente pelos credores,
mas pelos empregados, pelos demais sócios e pela comunidade em geral na qual
determinada sociedade empresária atua. De um lado estaria um indivíduo ou um
grupo de pessoas objetivando um benefício particular, de outro, uma comunidade
diferenciada a ser negativamente afetada pelo insucesso definitivo da sociedade
empresária. 158 Nesse caso, o Direito Individual de propriedade (patrimonial) do
titular cede (ainda que temporariamente) diante da necessidade do exercício e
SOUSA, Sueli Baptista de. op. cit., 2006, p. 205.
CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 47.
157
LOBO, Jorge. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência, São Paulo: Saraiva,
2005, p. 110.
158
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Direito de retirada: tratamento legal na falência e na
recuperação. In: Direito societário e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo:
Quartier Latin, 2006, pp. 106-7.
155
156
104
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
exploração da propriedade (função social). 159 Portanto, a defesa da preservação da
sociedade empresária não autoriza sua aplicação generalizada, isto é, padronizada,
com sacrifício habitual dos credores. Há que se efetuar uma análise específica do
caso concreto e, por conseguinte, dos interesses envolvidos, de modo a decidir se
naquela situação prepondera a manutenção da unidade produtiva em detrimento
dos seus credores (crédito) ou a liquidação imediata, evitando que seu estado de
insolvência permaneça indefinido, abalando não só a comunidade envolvida, mas
também a credibilidade do mercado, essencial para o seu funcionamento.
Compete, pois, ao juiz a análise do caso concreto, com base nos princípios
norteadores da ordem econômica, decidir se determinada sociedade empresária
merece guarida judicial no sentido de ser preservada; ou, caso contrário,
liquidada imediatamente, de modo que as demais sociedades empresárias que
integram o mercado não sofram nenhum abalo, continuando o exercício de suas
atividades. Não resta outra opção ao juiz, uma vez que seria ingênuo legislar
sobre critérios eminentemente econômicos. 160 161
Importante, também, a função desenvolvida pela jurisprudência, com
o intuito de harmonizar textos de lei que em tese resultam contraditórios,
como também de desenvolver e concretizar a norma jurídica. Entre o ideal da
certeza e da estabilidade das normas para que a segurança no tráfico jurídico
não fique comprometida, e o ideal de que o Direito se aproxime da Justiça, a
jurisprudência realiza sua altíssima função de harmonizar o que aparentemente
resulta contraditório: harmonizar aquela certeza e estabilidade da norma com o
fluente e variável que nos apresente a vida do Direito. A jurisprudência, como
fonte subsidiária do Direito, evitando sua cristalização, constitui a prova de
como já não procede inclinar-se ante o dogma da onipotência legislativa e,
assim, permanecer indiferente ou impassível frente a uma norma que se separa
da ideia da maior humanização. 162
O princípio da preservação da sociedade empresária, portanto, é um
princípio constitucional, porém o modo de sua aplicação, isto é, a preservação
propriamente dita ou liquidação imediata, deve ser analisada caso a caso pelo
CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 47.
Id. Ibid., 2007, p. 49.
161
CANDELARIO MACÍAS, Maria Isabel; RODRIGUES GRILLO, Luísa E. La empresa en crisis.
Derecho actual. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1998, p. 17: prelecionam que a experiência
universal ensina que as soluções ensaiadas por diversos sistemas legais para enfrentar o fenômeno
das sociedades empresárias em crise não tem sido de todo satisfatórias e isso nada tem a ver com
agudez da visão do legislador, mas como dado insustentável: os limites próprios da atuação do
legislador e do juiz em um campo em que prevalecem os fenômenos econômicos.
162
SPOTA, Alberto G. O juiz, o advogado e a formação do direito através da jurisprudência. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 5.
159
160
105
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
juiz. A sua transparência e viabilidade serão elementos absolutamente decisivos
para que o instituto tenha êxito. 163 164
Desse modo, evidente que a concretização dos Direitos Fundamentais
sociais exige não só uma nova política orçamentária com fiscalização efetiva
do Judiciário, mas também, uma dogmática constitucional emancipatória,
que interprete não só o texto constitucional, mas igualmente o Código Civil
e legislação extravagante de modo solidário, aberto e evolutivo, como, por
exemplo, na defesa responsável do princípio constitucional da preservação da
sociedade empresária. 165
O Código Civil de 2002 demonstra a importância em propiciar meios para
a preservação e continuidade da atividade exercida pela sociedade empresária,
uma vez que é fonte de tributos, empregos e divisas, propiciando, pois,
benefícios à sociedade em geral. Exemplo disso deriva da norma positivada
no art. 974 166 do mesmo diploma que trata da pessoa do incapaz. Com efeito,
o Código Civil de 2002 permite que o incapaz, devidamente assistido por
meio de representante, possa continuar o exercício da atividade empresária
(até então administrada sozinha por ele enquanto capaz), ainda que mediante
autorização judicial, admitindo dessa forma que o incapaz continue a atividade
empresária, ainda que sujeito a restrições. Em outras palavras, antes do
advento do Código Civil de 2002 caso o sócio administrador de uma sociedade
empresária viesse a se tornar incapaz (como, por exemplo, em decorrência
de acidente de trânsito ou mesmo sério abalo emocional), inexoravelmente, a
sociedade empresária era dissolvida, com o encerramento de suas atividades,
causando, pois, consequências nefastas a toda a coletividade envolvida. Afinal,
os funcionários ficavam desempregados. O Estado deixava de recolher tributos
derivados daquela atividade econômica organizada. Os fornecedores ficavam
impossibilitados de fornecer matéria-prima e assim sucessivamente ocorria
com os demais envolvidos na cadeia empresária. 167
CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. Op. cit., 2007, pp. 51-2.
LUCCA, Newton de. A reforma do direito falimentar no Brasil. In: Separata da Revista do
Tribunal Regional Federal da 3ª Região. São Paulo, n° 40, 1999, p. 48.
165
Cf. CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 52.
166
CC/2002, art. 974. Poderá o incapaz, por meio de representante ou devidamente assistido,
continuar a empresa antes exercida por ele enquanto capaz, por seus pais ou pelo autor de herança.
167
CASES, José Maria Trepat. Código civil anotado. Porto Alegre: Síntese, 2004, p. 662: comenta
que a incapacidade absoluta ou relativa superveniente de quem exercia atividade empresária,
ou quem tenha de exercê-la por força de sucessão, não interromperá a continuação da empresa,
fazendo-o por meio de representante ou assistente. A continuação da atividade empresária darse-á por autorização judicial, ouvidos os pais, tutores ou representantes legais do menor ou
interdito, quanto à viabilidade de continuação da atividade, sem que a continuação ou interrupção
cause prejuízos a terceiros.
163
164
106
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Depreende-se, pois, que do texto do art. 974 do Código Civil de 2002
extrai-se o princípio da preservação da sociedade empresária, uma vez que
o legislador optou pela separação da sorte da sociedade empresária e da do
empresário, sem, contudo, olvidar de continuar tutelando o patrimônio
particular do incapaz, uma vez que esse patrimônio específico não se sujeita
aos riscos inerentes do exercício da atividade empresária, 168 ou seja, não serve
como garantia ao pagamento de eventuais débitos. 169
A preservação da sociedade empresária, na verdade, impregna todo o
Título II do Livro II do Direito de Empresa, denominado Da Sociedade. Para
sustentar essa alegação, basta se socorrer à regra positivada no art. 1.033,
inciso IV: dissolve-se a sociedade quando ocorrer: (...) a falta da pluralidade
de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias, sepultando em
definitivo a possibilidade de extinção de sociedade empresária composta por
apenas dois sócios, na hipótese de afastamento de um deles. 170 171
Outro exemplo que enfatiza o princípio da preservação da sociedade
empresária como fio condutor do Código Civil de 2002, reside na regra
positivada no art. 1.085, que permite a exclusão do sócio que está pondo em
risco a continuidade da sociedade empresária, ainda que observado previamente
o exercício do Direito de defesa em assembleia. 172 O próprio art. 1.029 173 do
CC/2002, art. 974, § 2º. Não ficam sujeitos ao resultado da empresa os bens que o incapaz já
possuía ao tempo da sucessão ou da interdição, desde que estranhos ao acervo daquela, devendo
tais fatos constar do alvará que conceder a autorização.
169
CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, pp. 112-3.
170
Id. op. cit., 2007, p. 113.
171
FRONTINI, Paulo Salvador. Sociedade por quota – morte de um dos sócios – herdeiros
pretendendo a dissolução parcial – dissolução total requerida pela maioria social – continuidade
da empresa. In: Revista de Direito Mercantil, n° 116, jul./set., 2001, p. 178: registra que a figura
pessoal do sócio esmaece-se em face da realidade funcional da atividade, que a sociedade
empresária desenvolve. Este deve continuar, como verdadeira coisa principal, sendo substituíveis
os sócios, como algo acessório, fungível. No âmago desse fenômeno, como que a alimentá-lo,
está o princípio da preservação da sociedade empresária. Assim, o princípio de preservação da
sociedade empresária, [...] vem se alçando ao patamar matriz legitimadora dos negócios jurídicos
celebrados no plano societário e também em diversas configurações jurídicas contemporâneas.
172
CC/2002, art. 1.085. Ressalvado o disposto no art. 1.030, quando a maioria dos sócios,
representativa de mais da metade do capital social, entender que um ou mais sócios estão pondo
em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade, poderá excluí-los
da sociedade, mediante alteração do contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa
causa. Parágrafo único. A exclusão somente poderá ser determinada em reunião ou assembleia
especialmente convocada para esse fim, ciente o acusado em tempo hábil para permitir seu
comparecimento e o exercício do direito de defesa.
173
CC/2002, ar. 1.029. Além dos casos previstos na lei ou contrato, qualquer sócio pode retirarse da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais com antecedência
mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa.
168
107
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
mesmo diploma estabelece a faculdade de que qualquer sócio pode retirar-se
da sociedade, sem prejuízo de sua continuidade. Reflete, também, a função
social dos contratos, corolário da função social da propriedade, sendo que para
compreender o desenvolvimento desse novo paradigma, basta ver a construção
do princípio da preservação da sociedade empresária. 174
A preservação da sociedade empresária como princípio estruturante do
Código Civil de 2002, 175 também, ficou revelada na influência que exerceu
no relator do Projeto de lei n° 71/03, externada no Parecer 534, de 2004,
que resultou na posterior lei n° 11.101/05, denominada Lei de Recuperação
de Empresas e Falência, que, ao tratar da noção de empresário, registrou sua
preocupação em evitar interpretações equivocadas e aproveitar do Código Civil
de 2002. 176 Reforça esse entendimento, a redação dos arts. 1º e 47 da lei n°
11.101/05 que dispõe:
Art. 1º. Esta lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação
extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante
referidos simplesmente como devedor.
[...]
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação
da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a
manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses
dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social
e o estímulo à atividade econômica.
O legislador ao erigir o princípio da preservação da sociedade empresária
como fundamento estruturante do Livro II do Código Civil de 2002, gerou
repercussões, dentre as quais, destaque-se a sua manifesta incompatibilidade
com o abuso na utilização do instituto da desconsideração da personalidade
da pessoa jurídica, 177 que, por seu turno, era para se constituir em situação
FORGIONI, Paula A. A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil
brasileiro. In: Revista de Direito Mercantil. Nova Série. vol. 42, n° 130, abr./jun., São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 34.
175
Entendemos, portanto, que, se a legislação extravagante que trata exclusivamente da
recuperação (preservação) de sociedades empresárias utilizou como instrumental teórico o
Código Civil de 2002, inexoravelmente, o princípio da preservação da sociedade empresária foi
alçado à linha mestra do próprio Código Civil. No mesmo sentido: CASTRO, Carlos Alberto
Farracha de. op. cit., 2007, p. 120.
176
TEBET, Ramez. Parecer 534, de 2004, sobre o Projeto de Lei da Câmara n° 71, de 2003 (n°
4.376/93, na Casa de origem), de iniciativa do Presidente da República, que regula a recuperação
judicial, a extrajudicial e a falência de devedores pessoas físicas e jurídicas que exerçam atividade
econômica regida pelas leis comerciais, e dá outras providências. Publicado no Diário do Senado
Federal em 10.06.2004 – p. 17.856 a 17.941.
177
Sobre essa preocupação, consultar: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BRASIL, Deilton
Ribeiro; ANDRADE, Paulo José Cabanas de Queiroz et allii. Desconsideração da personalidade
174
108
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
excepcional, embora a realidade do cotidiano forense demonstre exatamente o
inverso, isto é, desvirtuamento, quando não, aplicação exagerada do instituto
da disregard doctrine.
Em outras palavras, o desenvolvimento da teoria da desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica está solidificando uma tendência de generalizála, inadvertidamente. Em razão disso, a prática forense mormente no âmbito das
relações de consumo e do trabalho (até mesmo em ações falimentares) demonstra
uma nítida despreocupação com os parâmetros estabelecidos na doutrina.
Nesse mesmo sentido, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa também
defende que o abuso do instituto da disregard doctrine desestimula a atividade
empresária, causando insegurança aos agentes econômicos e eventualmente os
afastando da opção pelo exercício daquela, com prejuízo para a economia como
um todo. Da desconsideração generalizada da personalidade da pessoa jurídica,
tal como se tem verificado em diversas áreas do Direito, deve-se passar à sua
reconsideração, com o fortalecimento da atividade empresária. 178
Nesse sentido é o Enunciado 51 aprovado pela Jornada de Direito Civil,
promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal,
no período de 11 a 13.9.2002, sob a coordenação de Ruy Rosado de Aguiar,
na ocasião, Ministro do Superior Tribunal de Justiça: Enunciado 51. Art. 50.
a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine
– fica positivada no Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos
microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema.
Portanto, ao aplicar-se a teoria da desconsideração da personalidade da
pessoa jurídica, deve-se verificar atentamente, se estão presentes os pressupostos
reconhecidos pela doutrina como ensejadores de sua aplicação, para, somente
depois, em caso de resposta afirmativa, proceder-se à sua efetiva aplicação, 179
garantindo-se a ampla defesa e o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV). 180
Depreende-se, portanto, que o princípio da preservação da sociedade
empresária tem se constituído a principal preocupação do Direito de Empresa
contemporâneo, diante do inegável abalo social produzido por uma quebra. No
caso, ausente prejuízo a qualquer dos interessados, não há razão para declarar
a nulidade de arrematação que não seguiu os estritos comandos do Código de
jurídica: uma visão crítica da jurisprudência. GAMA, G. C. N. [Coord.]. São Paulo: Atlas, 2009,
passim.
178
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: teoria geral das sociedades
– As sociedades em espécie do Código Civil. São Paulo: Malheiros, 2006, vol. II, p. 105.
179
ALVIM, Thereza. Aplicabilidade da teoria da desconsideração da pessoa jurídica no processo
falimentar. In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n° 87, jul./set., 1997, pp. 211
et seq.
180
CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 125.
109
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Processo Civil. Valorização, no caso, da preservação da atividade empresária
em detrimento do formalismo procedimental. A melhor interpretação da lei é a
que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que
o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças.
A atividade judicial, portanto, não se exaure em desvendar o significado
da lei ou mesmo a intenção do legislador, com cunho meramente declaratório.
Na verdade, possui caráter constitutivo, ou seja, o juiz ao decidir, cria uma
norma jurídica renovando o sistema jurídico. Desta forma, na medida em que
se busca demonstrar que o princípio da preservação da sociedade empresária
se constitui no pilar do Direito de Empresa no Código Civil de 2002, há que se
esclarecer que esse pensamento implica visualizar o Código como um sistema
aberto que integra a unidade do sistema jurídico, cuja leitura deve ser feita
a partir da Constituição Federal, cuja concretização dos valores e princípios
constitucionais não se exaure com a promulgação da Constituição Federal e,
muito menos, com o advento da vigência do Código Civil de 2002. 181
Dentro dessa ótica, deve-se, pois, proceder à releitura do Livro II do
Código Civil, que trata do Direito de Empresa à luz da Constituição Federal,
cuja perspectiva indica para arco evolutivo que migra da relação jurídica
fundada acentuadamente na garantia do crédito para trânsito jurídico que dá
relevo destacado à proteção da pessoa. 182
Em nosso entender, a teoria da desconsideração da personalidade
da pessoa jurídica possui um estreito liame com o princípio da preservação
da sociedade empresária. A teoria da disregard doctrine of legal entity não
postula a invalidade, irregularidade ou dissolução da sociedade empresária.
Ao contrário, por desconsideração da autonomia patrimonial se entende
tomar por episodicamente ineficaz o ato constitutivo da pessoa jurídica, ou
seja, a sociedade empresária será ignorada apenas no julgamento da conduta
fraudulenta ou abusiva da pessoa que a utilizou indevidamente, permanecendo
existente, válida e eficaz em relação a todos os demais aspectos no plano de sua
existência jurídica. Em outros termos, os demais negócios jurídicos celebrados
pela pessoa jurídica, que não se encontrarem diretamente relacionados com
a fraude ou abuso a coibir, são preservados em sua validade e eficácia. Isto
significa que a teoria da disregard doctrine possibilita a coibição da fraude ou do
abuso sem o comprometimento dos interesses que visam o desenvolvimento da
atividade empresária, que nenhuma relação guardam com a conduta fraudulenta
ou abusiva justificadora da aplicação da desconsideração da personalidade da
pessoa jurídica; e possibilita a preservação da sociedade empresária porque
CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, pp. 131-3.
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro/São Paulo:
Renovar, 2001, p. 175.
181
182
110
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
não se põe em questão a validade ou regularidade do ato constitutivo ou dos
negócios e demais atos jurídicos praticados pela sociedade empresária. Naquele
episódio, e somente nele, em que a autonomia patrimonial foi instrumento de
fraude ou abuso, a sociedade empresária não será considerada, mas ignorada.
Para as demais relações jurídicas ela continua sendo pessoa jurídica sujeita de
direitos e obrigações no âmbito do ordenamento jurídico.
111
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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114
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
COMO O STJ E STF ENTENDEM A RESPONSABILIDADE PENAL E NÃO PENAL
DOS ADMINISTRADORES DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS?
HOW DOES THE BRAZILIAN SUPERIOR COURTS UNDERSTAND THE CRIMINAL
AND NON-CRIMINAL LIABILITY OF THE EXECUTIVES AND BOARD
OF DIRECTORS MEMBERS?
Marta Rodriguez de Assis Machado183
Viviane Muller Prado184
RESUMO
Este artigo discute a aplicação do regime jurídico de responsabilidade
de administradores em sociedades empresárias, a partir do estudo empírico de
decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
Há, no meio empresarial o sentimento generalizado de sobre-responsabilização
dos dirigentes de empresas com atividade no Brasil. Pode-se afirmar que a propagação
da idéia de constante desvantagem do empresário ou do gestor frente ao sistema
jurídico no tocante à responsabilidade individual do administrador age como fator de
desestímulo ao desenvolvimento de atividades empresariais. A dimensão desse risco,
no entanto, permanece uma incógnita e merece ser estudada.
Esta pesquisa pretende fornecer dados sistematizados para responder
a duas perguntas-chave: 1) Como o regime de responsabilidade penal e não
penal expressamente previsto nas regras jurídicas vem sendo aplicado pelos
tribunais? 2) Como o princípio da individualização da responsabilidade penal
vem sendo entendido para os agentes econômicos que ocupam cargos de direção
nas sociedades empresárias?
Fazemos isso a partir das decisões dos Tribunais Superiores. O
levantamento jurisprudencial foi realizado com base nos instrumentos de
busca disponibilizados nos sites do STJ e do STF e seus respectivos bancos
de dados. Trata-se de um primeiro passo para a compreensão da atuação do
regime jurídico de responsabilização dos administradores e sua capacidade
de interferência sobre a organização e funcionamento da empresa e sobre o
estímulo à livre iniciativa no Brasil.
Palavras-Chave: responsabilidade de administradores de sociedade empresária;
pesquisa em jurisprudência; jurisprudência do STJ; jurisprudência do STF.
Mestre e doutora em Direito pela USP. Professora da Escola de Direito de São Paulo da
Fundação Getúlio Vargas e Pesquisadora do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento
(CEBRAP).
184
Doutora em Direito pela USP. Professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas.
183
115
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
ABSTRACT
This paper reports and discusses empirical research about the legal
liability system applied to directors and managers of corporations by the
Superior Court of Justice and the Superior Federal Court.
There is a widespread sense of excessive liability being applied to
directors of corporations in Brazil. It can be argued that the spreading argument
about the disadvantages suffered by owners or managers facing the legal system
of individual liability discourages the corporate activity. However, the extent of
this risk remains unknown and deserves to be studied.
This paper aims to provide systematic data to answer two key questions: 1)
How are the courts applying the legal liability system (both criminal and non-criminal)
expressly regulated in Brazilian statutes? 2) How has the principle of individual
criminal liability being interpreted when applied to corporations’ directors?
This analysis is made from decisions of the Brazilian Superior Courts
and the data was collected on the courts’ websites search engines. This is a
first step to shed light on the legal liability system of directors and managers as
well as on its capacity to alter preferences of corporation’s organization and its
impact on encouragement of free enterprise in Brazil.
Keywords: legal liability of directors and managers; empirical research on
Court decision; Brazilian Superior Courts decisions
I. INTRODUÇÃO
Há, no meio empresarial o sentimento generalizado de sobreresponsabilização dos dirigentes de empresas com atividade no Brasil. Pode-se
afirmar que a propagação da idéia de constante desvantagem do empresário ou
do gestor frente ao sistema jurídico no tocante à responsabilidade individual do
administrador age como fator de desestímulo ao desenvolvimento de atividades
empresariais. A dimensão desse risco, no entanto, permanece uma incógnita e
merece ser melhor estudada.
Este trabalho185 é um primeiro passo para a compreensão da atuação do
regime jurídico de responsabilização dos administradores e sua capacidade
de interferência sobre a organização e funcionamento da empresa e sobre o
estímulo à livre iniciativa no Brasil.
Este texto encontra base no relatório de pesquisa intitulado Responsabilidade dos
administradores de sociedade empresarial na jurisprudência do STJ e STF, produzido por Viviane
Muller Prado, Marta Rodriguez de Assis Machado, Lizianne Marques Curto e Marina Zanatta
Ganzarolli.
185
116
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Pretendeu-se obter dados que indicassem como o controle da atividade
empresarial é exercido pelo sistema de distribuição de responsabilidade no
Direito brasileiro. Mais especificamente, essa pesquisa pretende fornecer dados
sistematizados para responder a duas perguntas-chave: 1) Como o regime de
responsabilidade penal e não penal expressamente previsto nas regras jurídicas
vem sendo aplicado pelos tribunais? 2) Como o princípio da individualização
da responsabilidade penal vem sendo entendido para os agentes econômicos
que ocupam cargos de direção nas sociedades empresárias?
Fazemos isso a partir de um universo limitado – apenas as decisões dos
Tribunais Superiores. O levantamento jurisprudencial foi realizado com base
nos instrumentos de busca disponibilizados nos sites do STJ e do STF e seus
respectivos bancos de dados. A pesquisa foi empreendida no espaço de consulta
à jurisprudência nos endereços eletrônicos http://stj.gov.br e http://stf.gov.br, de
forma que utilizamos para a coleta de acórdãos a busca por palavras-chave186
disponíveis nesses sítios187. Estabelecemos o limite temporal de 01.01.05 a
01.04.07. Chegamos ao número final de 250 acórdãos, sendo 244 casos julgados
pelo STJ e 6 julgados pelo STF. Deste número, 198 acórdãos versam sobre
matéria não penal e 52 acórdãos sobre matéria penal.
Trata-se, portanto, de um primeiro impulso para a construção de um
diagnóstico sobre o funcionamento dos sistemas vigentes de responsabilidade,
que deve sem dúvida ser ampliado, mas desde já pode trazer elementos
para iniciar uma discussão mais ampla sobre o modo como os regimes de
responsabilidade podem interferir na atividade empresarial e seu possível papel
na criação de estímulos para organizações transparentes, a prevenção de fraudes
e o aperfeiçoamento de mercados.
O artigo está dividido em três partes. Após esta introdução (I), apresentamos
os resultados (item II). Inicialmente, os resultados referentes à responsabilidade
tanto penal quanto não penal dos administradores serão apresentados
conjuntamente. Posteriormente, os acórdãos são separados em conjuntos distintos
– não penais e penais –, para que pudessem ser exploradas as peculiaridades das
matérias. Ao final, apresentamos as conclusões da pesquisa empírica (item III).
O objetivo deste texto é descrever de forma objetiva os resultados obtidos
a partir do banco de dados construído, para que possam ser apropriados pela
discussão pública sobre o tema.
Utilizamos as seguintes palavras-chave: “responsabilidade e administrado$”, “responsabilidade
e gerent$”, “responsabilidade e direto$”, “responsabilidade e conselheir$”, “responsabilidade
e gesto$”, “denúncia e administrado$”, “denúncia e gerent$”, “denúncia e direto$”, “denúncia e
conselheir$” e “denúncia e gerent$”. De acordo com os recursos das ferramentas de busca, o
símbolo “$” utilizado conjuntamente com as palavras-chave permite captar todas as variações
possíveis das respectivas palavras.
187
A coleta das decisões no banco de dados dos Tribunais referidos foi feita em julho de 2007.
186
117
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
II. RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES
NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ E STF
1. RESULTADOS CONJUNTOS: ACÓRDÃOS EM MATÉRIA PENAL E NÃO PENAL
Apresentamos nesse item dados sobre o conjunto total de acórdãos. Utilizamos
as siglas NP e P para denominar, respectivamente, os grupos de acórdãos “não
penais” e “penais”.
1.1 TIPO SOCIETÁRIO
Uma das informações que buscamos com a pesquisa é saber se o tipo
societário (isto é, sociedade limitada, sociedade anônima, sociedade simples,
cooperativa etc.) influencia a maneira como os Tribunais decidem sobre a
imputação da responsabilidade aos seus administradores.
Considerando o total de acórdãos, podemos encontrar os seguintes
números sobre os tipos societários envolvidos nos casos analisados:
Tabela 1 Distribuição de acórdãos penais e não penais por tipo societário
e instâncias em números absolutos Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
Em uma primeira leitura dos dados, poderíamos afirmar que há mais casos
envolvendo o questionamento de administradores de sociedades limitadas,
pois, das 250 decisões analisadas, apenas 27 envolviam sociedades por ações.
A análise deste dado, no entanto, deve levar em conta o fato de que, no Brasil,
o número de sociedades limitadas é muito superior ao de sociedades anônimas.
Conforme estatística do Departamento Nacional de Registro e Comércio sobre
a constituição de empresas por tipo jurídico de 1985 a 2005, havia 4.3000.257
sociedades limitadas e apenas 20.080 sociedades por ações.188
Informação disponível em www.dnrc.gov.br, acessado em 24 de novembro de 2010.
188
118
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
De toda forma, há mais questionamentos sobre a responsabilidade de
administradores em limitadas se comparados aos casos de sociedade por ações.
Por outro lado, em 61 decisões o tipo societário não foi mencionado no acórdão.
Aparentemente, não se considerou o tipo de estrutura societária como dado que
teria algum papel no sentido de influenciar, limitar ou estimular a atuação dos
administradores nos ilícitos analisados.
1.2 POSIÇÃO QUE O RÉU OCUPA NA EMPRESA
Outra informação que pode ser retirada da pesquisa refere-se à posição
do réu na empresa. O objetivo de conhecer este dado é verificar se o cargo
do réu, suas competências e seus deveres estatutários, contratuais e legais são
levados em consideração para verificar eventual responsabilidade.
Sobre esta informação, os resultados obtidos foram os seguintes:
Tabela 2 Distribuição de acórdãos penais e não penais pela posição do réu na
empresa e instâncias em números absolutos rasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
Ressaltamos que a palavra “réu” foi utilizada para denominar aquele que
figurou no pólo passivo da ação, sendo que em grau recursal pode ter sido tanto
requerente quanto requerido.
Constatamos que são inúmeras as denominações utilizadas pelos
Ministros quando fazem referência à posição do réu na empresa. Apenas a título
de exemplo, encontramos as seguintes variações: “sócio-gerente”, “sócio”,
“sócio-cotista”, “controlador”, “administrador”, “membro do Conselho
Administrativo”, “diretor”, “gestor” e “diretor-presidente”. Sistematizamos
estas informações em cinco categorias: “Sócio”, “Sócio/Administrador”,
“Administrador”, “Outros” e “Não há indicação no acórdão”. Dessa forma,
conseguimos perceber se a condição de sócios (fornecedor de capital) e a
119
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
posição de administrador (com poderes de gestão) são consideradas isolada ou
conjuntamente.
A expressão “sócio” engloba sócio, sócio-cotista, sócio-proprietário e
proprietário. A denominação “sócio/administrador” inclui sócio-gerente, sóciodiretor e sócio-presidente, ou seja, pessoas que ocupavam tanto a posição de
sócio quanto de administrador da sociedade. Já a denominação “administrador”
compreende as seguintes expressões: administrador, gerente, gerente geral,
gestor, diretor, diretor-presidente, diretor estatutário, diretor superintendente,
superintendente, diretor financeiro, diretor administrativo, ex-administrador
(ocupava o cargo à época dos fatos) e membro do Conselho Administrativo, ou
seja, todas aquelas denominações que se referem às pessoas que possuem poder
de gestão. A expressão “outros” abrange ex-sócio (não ocupava o cargo à época
dos fatos), procurador e representante legal, ou seja, foram agrupadas sob essa
rubrica aquelas pessoas que, embora não exercessem efetivamente um cargo
de administração na sociedade, foram citadas nos respectivos julgados como
indivíduos que possuem certa ligação com a empresa. Finalmente, aqueles
acórdãos que não especificam a posição do réu foram agrupados sob a rubrica
“não há indicação no acórdão”.
É importante frisar que, como nosso objetivo era estudar a posição do
administrador, dentre as palavras-chave que utilizamos para a construção de
nosso banco de dados, não incluímos a palavra isolada “sócio”. Apesar disso, é
curioso notar que temos 42 casos que tratam de réus nessa posição. Esse número
de acórdãos que conseguimos captar, mesmo sem ter utilizado essa palavrachave, evidencia algo que pode ser desde já considerado um dos resultados da
pesquisa: a fungibilidade de expressões utilizadas pelos Ministros para designar
as posições dentro da empresa.
Chama a atenção o fato de que a expressão mais freqüente (169 nos casos
não penais e 11 nos penais do STJ) seja “sócio-gerente”. Esta denominação era
utilizada na vigência da legislação antiga das sociedades limitadas (Decreto
3.708/19), que foi modificada para administrador pelo Código Civil. Além
disso, este resultado provavelmente decorre da expressão gerente do art. 135
do CTN, uma vez que os casos tributários representam grande parte dos casos
da nossa pesquisa.
Interessante notar que há uma variedade muito maior de expressões para
designar o cargo que ocupava o administrador nos acórdãos de matéria penal do
que naqueles de matéria não penal. Enquanto estes utilizaram basicamente as
expressões “sócio”, “sócio-gerente” e “administrador”, os acórdãos de matéria
penal utilizaram amplamente as variantes apresentadas acima.
120
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Constatamos que os Ministros, principalmente em matéria não penal, não
dispensaram atenção em relação à denominação propriamente dita dos cargos
que os indivíduos ocupam na empresa em um número considerável de acórdãos.
Considerando o total de recursos não penais analisados, em 103 acórdãos, ao
comparar a ementa e o interior dos votos, encontramos diversas expressões para
designar a mesma pessoa. As expressões que mais freqüentemente apareciam
como sinônimas eram “sócio” e “sócio-gerente”. Notamos também a utilização
de outras expressões - tais como diretores, gerentes ou representantes da pessoa
jurídica - como equivalentes da figura do sócio. De modo geral, tanto em casos penais como em não-penais, ao que nos
pareceu, as distinções existentes entre os papéis e funções de sócio (aquele
que aporta capital de risco na empresa e não necessariamente administra os
mesmos) e administrador (responsável pela gestão do patrimônio empresarial)
não tiveram grande relevância para a decisão sobre responsabilidade.
Por fim, observamos que pelo menos 46 dos acórdãos de matéria não
penal estudados tinham a presença de mais de uma pessoa que exercia a mesma
função na empresa189, no pólo passivo ou ativo do recurso.
Em matéria penal, pudemos constatar que 8 decisões possuíam mais
de uma pessoa no pólo passivo, usualmente com cargos distintos na empresa.
Nessas 8 decisões, os cargos eram os de diretor, diretor adjunto, funcionária,
engenheiro, presidente-superintendente e uma pessoa jurídica, alocada no pólo
passivo da ação penal em razão da aplicação da Lei de Crimes Ambientais, que
prevê a responsabilidade penal da pessoa jurídica (RMS 16.696).
1.3 MATÉRIA
Tendo em vista que a disciplina da responsabilidade dos administradores
está dispersa na legislação brasileira, buscamos verificar sobre quais matérias
versam as decisões analisadas. Assim, além da divisão em dois grandes grupos
denominados “não penal” e “penal”, avançamos na classificação dos acórdãos,
de acordo com o assunto tratado, dividindo-os, ainda, nos seguintes grupos:
“Tributário/Previdenciário”, “Sistema Financeiro”, “Civil”, “Ambiental”,
“Societário” e “Outro”. Neste ponto, obtivemos os seguintes resultados.
Dentre esses acórdãos de matéria não penal, identificamos que em 25 desses a decisão versava
sobre mais de um “sócio-gerente” no pólo passivo da ação, em outros 16 acórdãos ocorria a
mesma situação em relação aos “sócios” e os 05 restantes citavam mais de um “administrador” ou
“ex-administrador”.
189
121
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Tabela 3 Distribuição de acórdãos penais e não penais por matéria em
números absolutos - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
No grupo Tributário/Previdenciário estão incluídas tanto as decisões sobre
responsabilidade fiscal quanto previdenciária. Apenas em alguns momentos
deste relatório, apresentaremos ambas as matérias em grupos distintos. Esta
distinção representa a classificação do caso dada pelo próprio Tribunal na
ementa. Ressalta-se, todavia, que ao ler a íntegra das decisões, percebemos
que muitos casos, embora versassem sobre contribuições previdenciárias,
foram classificados pelos Ministros apenas como “Tributário” na ementa.
Diante dessa aparente falta de uniformidade, e considerando o entendimento
pacífico do STJ no sentido de que as contribuições previdenciárias têm natureza
tributária, decidimos unir as duas matérias sob a mesma rubrica “Tributário/
Previdenciário”. Excepcionalmente, e apenas naqueles em que a disciplina
própria de cada matéria acarretaria diferença de tratamento do caso, mantivemos
a referência original ao grupo “Previdenciário”, composto por aqueles acórdãos
em que os Ministros fizeram expressamente essa diferenciação na ementa e
utilizamos as definições da própria ementa.
A classificação “Sistema Financeiro” foi utilizada para todos aqueles
acórdãos em que a responsabilidade do cargo de administrador estavam ligados
a instituições bancárias.
Sob a rubrica “Civil” incluímos casos não penais que versam sobre
partilha de bens e responsabilidade civil dos administradores.
Sob a denominação “Ambiental”, reunimos as decisões que versaram
sobre danos ambientais.
Em matéria penal, 25 ementas traziam a referência a “crimes societários”
para se referirem, de modo genérico, a atos ilícitos praticados no âmbito de
sociedades empresariais. Trata-se de classificação imprecisa e os acórdãos
122
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
podem ser redistribuídos, de acordo com a matéria exposta no inteiro teor das
decisões, nos seguintes grupos: Direito Tributário e Previdenciário (16 decisões),
Ambiental (05 decisões), Crimes contra a Ordem Econômica e as Relações
de Consumo (01 decisão), Financeiro (01 decisão), falsidade ideológica (01
decisão) e processo de licitação irregular (01 decisão).
Na categoria “Outros” incluímos caso de crimes de falsidade ideológica
(01 decisão) e processo de licitação irregular (01 decisão).
1.4 JULGAMENTO POR UNANIMIDADE OU POR MAIORIA
No tocante à forma das decisões, a pesquisa distinguiu as situações nas
quais todos os Ministros votaram no mesmo sentido daquelas em que houve
divergência nos votos proferidos.
Tabela 4 Distribuição de acórdãos penais e não penais por votação unânime
e instâncias em números absolutos - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
Constata-se assim, a partir dos números gerados, que a unanimidade é o
padrão decisório nos casos sobre responsabilidade do administrador, sugerindo
que não há muita divergência nos órgãos colegiados sobre o tema.
1.5 RESULTADOS SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO
Tanto em matéria penal quanto não penal, utilizamos o conceito
“responsabilização” de forma ampla para permitir a comparação entre
o resultado das decisões. Tal categoria refere-se principalmente à
declaração de responsabilidade feita pelo órgão jurisdicional e não às
conseqüências da decisão, nem à efetividade da decisão em relação ao
seu impacto no patrimônio do administrador.
Reunimos as decisões em dois grupos denominados “positivo em relação
à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização” e “negativo em
relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização”. Chamamos
123
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
de decisões cujo resultado foi “negativo em relação à responsabilização ou
à possibilidade de responsabilização” todas aquelas que, independentemente
de o recurso analisado ter sido originado a partir de sentenças ou decisões
interlocutórias, optaram pela não manutenção da parte no pólo passivo ou
pela sua absolvição. Já dentre aquelas denominadas “positivo em relação à
responsabilização ou à possibilidade de responsabilização” foram agrupadas
todas as decisões que, independentemente de o recurso analisado ter sido
originado a partir de sentenças ou decisões interlocutórias, optaram pela
manutenção da parte no pólo passivo ou pela sua condenação.
Em matéria penal, agrupamos sob a denominação “negativo em relação
à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização” as decisões
em que se determinou o não prosseguimento da ação penal, ou seja, o
seu trancamento; bem como as decisões em que não houve imputação do
crime ao réu, ou seja, houve absolvição. Já sob a denominação “positivo
em relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização”
agrupamos as decisões em que se imputou definitivamente o crime ao
réu, ou seja, em que houve condenação, bem como as decisões que
determinaram o prosseguimento da ação penal, ou seja, manteve-se o
réu no pólo passivo. Nesses últimos casos, entendeu-se, no momento
do recurso analisado, que já havia indícios suficientes ao menos para a
manutenção da ação penal.
Diante da diversidade de tipos de recursos, interpostos em distintos
momentos do processo, o agrupamento nos permite olhar esses casos em relação
à decisão acerca da responsabilidade dos administradores e comparar os dados
obtidos nos acórdãos que tratam sobre matéria não penal e os que versam sobre
matéria penal.
Nesse sentido, vemos na tabela abaixo que no conjunto de casos não
penais foi mais comum encontrar decisões contrárias à responsabilização do
administrador ou à continuidade do processo contra ele. Essa relação se inverte
no conjunto de casos penais, embora a diferença entre os dois resultados, nesse
campo, seja muito menor.
124
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Tabela 5 Distribuição de acórdãos penais e não penais pelo resultado da
decisão e instâncias em números absolutos
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
Interessante analisar conjuntamente este dado com a informação acerca
do tipo societário. Considerando o conjunto de acórdãos que indicou o tipo
societário em questão – 136 acórdãos em matéria não penal e 49 acórdãos
em matéria penal – as decisões sobre responsabilização dos administradores
distribuíram-se da seguinte forma em relação ao tipo societário:
Tabela 6 Distribuição de acórdãos penais e não penais pelo tipo societário,
resultado da decisão e instâncias em números absolutos - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
A soma de entradas na tabela ultrapassa a soma dos casos. Cf. nota 05, supra.
1
125
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
2. RESULTADO DAS DECISÕES SOBRE RESPONSABILIDADE NÃO PENAL DE
ADMINISTRADORES
2.1 RELAÇÃO DA MATÉRIA COM A RESPONSABILIZAÇÃO OU NÃO DOS
ADMINISTRADORES
Nos pareceu relevante verificar as relações entre atribuição ou não de
responsabilidade aos administradores e a matéria analisada no caso. Ao cruzar
essas informações, obtivemos os seguintes dados:
Tabela 7 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com a matéria e a
responsabilização ou não dos administradores - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.
De modo geral, esses dados não permitem confirmar a tese de que há
um excesso de responsabilização dos administradores. Nota-se aqui, em
matéria tributária, o grande número de casos que resultam em não atribuição de
responsabilidade individual aos administradores.
2.2 FUNDAMENTOS DAS DECISÕES
Como disposto na tabela abaixo, investigamos os argumentos mais
recorrentes utilizados pelos Ministros para embasar positivamente ou
negativamente a possibilidade de responsabilização dos administradores.
Para que pudéssemos padronizar os argumentos que foram utilizados para
fundamentar as decisões dos recursos que analisamos, criamos cinco categorias
que passaremos a explicar:
(i) “O não pagamento do tributo não enseja redirecionamento/
responsabilização”:
Podemos dizer que esse argumento é o mais utilizado em matéria
tributária e previdenciária. Ele guarda uma relação direta com o disposto
no art. 135, III do CTN.
126
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Em matéria tributária, temos que o pólo passivo da relação pode
ser ocupado pelo contribuinte ou por um terceiro eleito pela lei. Em alguns
casos de responsabilidade de terceiros, como ocorre com o art. 135, III, do
CTN, a obrigação de pagar o tributo surge a partir da ocorrência de certo fato
posterior ao fato gerador do tributo, sendo que, neste caso, estamos diante
da “responsabilidade de terceiro por transferência”. Com isso, queremos
dizer que se aquele que exerce um cargo de administração na empresa agir
com excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato ou estatuto social, ele
pode ser responsável pelo adimplemento do tributo, pois a dívida, que em um
primeiro momento deveria ser paga pela empresa, é redirecionada para aquele.
O redirecionamento da dívida só pode ser operado nos casos expressamente
previstos em lei. Nesse sentido, o argumento “o não pagamento do tributo
não enseja redirecionamento/responsabilização” é usado pelos Ministros para
afastar a possibilidade de redirecionamento da dívida tributária ou mesmo
para afastar a efetiva responsabilização pelo adimplemento da obrigação
tributária. Isso acontece porque os Ministros entendem que o simples ato de
não pagar o tributo não configura fato que se encaixe nas hipóteses estritas de
redirecionamento da dívida previstas no art. 135, III, do CTN.
Esse argumento pode ser encontrado nos acórdãos sob duas formas. A
primeira delas traz apenas a afirmativa de que o simples não pagamento do
tributo não enseja redirecionamento ou responsabilização. O excerto abaixo
exemplifica o uso do argumento ao qual nos referimos:
“Esta Corte fixou o entendimento que o simples inadimplemento
da obrigação tributária não caracteriza infração legal capaz de ensejar a
responsabilidade prevista no art. 135, III, do Código Tributário Nacional.”
(grifo nosso) (Recurso Especial n° 826.706 – SC, Relator Ministro Castro
Meira, julgado em 15 de agosto de 2006)
No segundo caso, o argumento vem acompanhado da afirmação de que,
pelo fato de não terem sido provadas quaisquer das condutas prescritas no art.
135 do CTN, o redirecionamento ou responsabilização daquele que exerce cargo
de administração na empresa não deve ocorrer, pois, como é pacífico na Corte,
o simples não pagamento do tributo não deve gerar esses efeitos. O trecho do
acórdão abaixo nos fornece um exemplo do argumento acima referido.
“Esta Corte pacificou o entendimento de que, inexistindo prova de que
o representante da sociedade agiu com excesso de mandato ou infringência à
lei ou ao contrato, não há de direcionar-se para ele a execução. ”(grifo nosso)
(Recurso Especial n° 235.679 - SP, Relator Ministro Castro Meira, julgado em
07 de abril de 2005)
127
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
(ii) “Dissolução irregular”:
A dissolução irregular, de acordo com a jurisprudência do STJ, ocorre
quando o empresário simplesmente “fecha as portas de seu estabelecimento” sem
regularizar a situação deste em relação ao encerramento das atividades. Embora
alguns doutrinadores afirmem que a dissolução irregular está implicitamente
inserida dentre as hipóteses do art. 135 do CTN, pois poderia ser considerada uma
infração à lei, os Ministros do STJ não mencionam explicitamente essa discussão
nos acórdãos. Optamos por considerar a dissolução irregular como argumento
diverso, vez que os Ministros não citam explicitamente essa hipótese como
pertencente ao art. 135 do CTN. No entanto, devemos mencionar que, embora a
maioria dos Ministros não diga incisivamente que a dissolução irregular faz parte
das hipóteses do artigo supramencionado, eles enumeram a dissolução irregular
como hipótese de infração à lei. O seguinte trecho exemplifica tal situação:
“(...) os sócios (diretores, gerentes ou representantes da pessoa jurídica)
são responsáveis, por substituição, pelos créditos correspondentes a obrigações
tributárias quando há dissolução irregular da sociedade ou se comprova a
prática de ato ou fato eivado de excesso de poderes ou de infração de lei,
contrato social ou estatutos.” (Recurso Especial n° 826.704 – SC, Relator
Ministro Castro Meira, julgado em 15 de agosto de 2006)
Situação que analisamos dentre os acórdãos que tratam da questão
da dissolução irregular merece destaque aquela em que a empresa deixa de
funcionar na sede em que está inscrita na Junta Comercial.
Sobre este fundamento de responsabilização dos administradores,
ressalta-se que, em 14 de abril de 2010, o STJ editou a Súmula 435 com a
seguinte redação: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar
de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes,
legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.”
(iii) “Presunção de certeza e liquidez da Certidão da Dívida Ativa (CDA)”
A Certidão da Dívida Ativa é um título executivo extrajudicial que, por
ser constituído pela Administração Pública, goza de presunção de liquidez e
certeza, de acordo com os ditames da lei. Nesse sentido é pacífica a jurisprudência
do STJ, que faz uma interpretação literal dos dispositivos que tratam sobre o
assunto. Os acórdãos basicamente convergem no sentido de enunciar que
uma vez presente na CDA o nome do sócio ou de qualquer outro que exerça
cargo de gerente na empresa, o ônus da prova será invertido, cabendo a esse
último provar que não incorreu em nenhuma das hipóteses de responsabilidade
enunciadas no art. 135 do CTN.
128
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Já outros acórdãos, primordialmente naqueles em que um dos argumentos
da parte recorrente é justamente a questão da liquidez e certeza do título, os
Ministros são unânimes em ressaltar que a inversão do ônus da prova não deve
operar nos casos em que o nome do sócio ou qualquer outro que exerça cargo
de administração na empresa não tiver sido incluído na CDA.
Ainda, é importante salientar que, em se tratando de Certidão da Dívida
Ativa, existe um acórdão da Relatoria do Ministro Castro Meira do ano de
2005, mais especificamente os Embargos de Divergência em Recurso Especial
n° 702.232, que é bastante citado por outros Ministros em suas decisões. Esse
acórdão prevê as várias hipóteses em que a questão da CDA pode aparecer e
propõe, para cada uma delas, uma solução em relação à responsabilização do
“sócio-gerente”. Por esse motivo, é usado por aqueles que o citam em suas
decisões como uma espécie de guia sobre o assunto.
(iv) “Discussão da posição na empresa”
Referimo-nos a “Discussão da posição na empresa” em decisões
que terminaram por incluir ou excluir a parte do pólo passivo, em razão dos
seguintes fundamentos: a) sucessão de sócio autoriza redirecionamento para o
novo sócio; b) ingresso de novo sócio não exime a responsabilidade do anterior;
c) não basta ocupar cargo na administração; d) em razão do cargo ocupado
pela parte na estrutura da administração da empresa; e) em razão de disposição
legislativa que considera responsável aquele que ocupa determinado cargo na
empresa; e f) fato gerador posterior ao exercício de cargo de gerência.
Neste item também está o argumento, identificado em apenas cinco
acórdãos, que diz respeito a situações em que o indivíduo não foi mantido no
pólo passivo da ação por se considerar que os fatos que estavam sendo analisados
não tinham relação direta com a sua pessoa ou com o cargo que exercia ou
exerce na empresa. Em matéria tributária esse argumento fica bastante claro
quando é usado para explicitar que, para que o redirecionamento da dívida ou
sua efetiva responsabilização se opere, é necessário provar que o réu da ação
exercia à época dos fatos cargo de gerência na empresa.
(v) “Questões processuais”
Esse critério foi utilizado todas as vezes em que os Ministros usavam
argumentos que, por serem meramente processuais, não discutiam propriamente
a questão da responsabilidade. Dentre argumentos classificados como tal, temos
desde a discussão sobre a aplicação de multa à discussão sobre o cabimento da
exceção de pré-executividade.
129
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Esse tipo de argumento foi encontrado isoladamente e cumulado com
outros (em 14 acórdãos). Nesses últimos, além do argumento processual,
contabilizamos também os outros fundamentos relacionados diretamente à
questão da responsabilidade.
(vi) “Outros”
Na categoria “outros” incluímos os seguintes argumentos residuais: a)
decurso do prazo decadencial; b) preclusão lógica da matéria de responsabilidade;
c) inquérito administrativo do Banco Central não responsabilizou o
administrador por liquidação extrajudicial; d) falta de prova; e e) não aplicação
dos dispositivos legais.
O resultado que encontramos aparece nas Tabelas 8 e 9 abaixo, que
respectivamente indicam os fundamentos para a responsabilização e para a não
responsabilização.
Tabela 8 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com a fundamentação
para a responsabilização em números absolutos - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.
O argumento que aparece com maior freqüência para a responsabilização
dos administradores é a dissolução irregular da sociedade, lembrando que desde
2010 este fundamento está na Súmula STJ 435 que tem a seguinte redação:
“Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no
seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o
redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.”
Outro fundamento relevante é a presunção de certeza e liquidez da CDA,
indicando que a via administrativa é bastante importante para determinar a
responsabilização perante o Poder Judiciário. Por outro lado, verifica-se que
a análise da posição do réu na empresa apareceu poucas vezes. Este dado
sugere que, para fundamentar as decisões no sentido da responsabilização dos
agentes empresariais perante terceiros, em especial, perante o fisco, não aparece
como relevante a verificação de quais eram as competências e poderes dos
administradores dentro da sociedade.
130
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Tabela 9 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com a fundamentação
para a não responsabilização em números absolutos - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.
Verificamos que a maior parte das decisões de não atribuição de
responsabilidade individual refere-se a casos em que os juízes apontam que o
simples não pagamento do tributo não poderia justificar a direta responsabilidade
dos gestores e sócios da empresa. A discussão da posição do administrador da
empresa não aparece como relevante nem casos de não responsabilização.
2.3 FUNDAMENTAÇÃO LEGAL
Dentre o total de acórdãos não penais estudados, identificamos acórdãos
cujas decisões foram embasadas com fundamentos legais e aquelas que não
receberam esse fundamento expressamente.
Tabela 10 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com a
fundamentação legal em números absolutos - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.
Em um segundo momento, a fim de identificarmos os dispositivos
legais mais citados nos votos, computamos as menções feitas pelos Ministros
a artigo de lei190.
O numero total é superior ao numero de acórdãos pois alguns acórdãos, por trazer mais de
um dispositivo legal como fundamento, geraram mais de uma entrada.
190
131
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Ao colher esse dado, não diferenciamos os casos em que tal dispositivo
tenha sido decisivo para a construção do resultado da decisão do recurso
daqueles em que ele foi utilizado incidentalmente. Além disso, os resultados
apresentados em relação aos dispositivos utilizados nas decisões não levam
em consideração a possível combinação feita entre os dispositivos legais, mas
apenas o número de ocorrências de determinado dispositivo de acordo com a
área em estudo.
Na tabela abaixo, agrupamos os principais dispositivos citados por
matéria tratada.
Tabela 11 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com os dispositivos
utilizados na fundamentação legal da decisão - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.
* Cumpre esclarecer que para a construção dessa tabela consideramos cada dispositivo legal
utilizado nos acórdãos como uma entrada. Isso quer dizer que as decisões que continham mais de
um dispositivo legal na sua fundamentação foram contabilizadas tantas vezes quantos foram os
dispositivos utilizados pelos Ministros para fundamentarem as suas decisões.
132
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
2.4 RESULTADO E POSIÇÃO DO RÉU NA EMPRESA
No total de acórdãos não penais analisados, identificamos, de acordo com
a tabela abaixo, as posições ocupadas pelo réu na empresa e a sua possível
responsabilização:
Tabela 12 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com a conseqüência
do tipo de decisão e a posição do réu em números absolutos - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.
3. RESPONSABILIDADE PENAL DOS ADMINISTRADORES
Apresentamos neste item os dados referentes apenas aos acórdãos que
tratavam de matéria penal, ou seja, nosso conjunto aqui é composto pelos 46
acórdãos do STJ e 6 do STF.
3.1 TIPO DE DECISÃO
Distinguimos decisões do tipo “prosseguimento”, que tratam sobre
o prosseguimento ou trancamento da persecução penal quando ainda estão
em curso; e decisões do tipo “imputação”, que decidem sobre a imputação
ou não de responsabilidade penal a um determinado autor (decisões que
condenam ou absolvem).
A maioria das decisões analisadas versa sobre o prosseguimento da ação.
Apenas seis decisões têm como resultado a absolvição ou condenação do réu.
133
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Tabela 13 Distribuição de acórdãos penais por tipo de decisão e instâncias
Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
A soma do número total de acórdãos nessa tabela não coincide com o numero de casos, pois o
RMS 16.696 foi considerado duas vezes. A decisão neste acórdão excluiu um dos réus do pólo
passivo da ação penal, absolvendo-o (decisão sobre imputação) e determinou o trancamento da
ação penal em relação ao outro réu (decisão sobre prosseguimento). O segundo réu, neste caso de
responsabilidade ambiental, é uma pessoa jurídica.
1
3.2 ESPÉCIE DE RECURSO OU AÇÃO
A tabela seguinte revela que, tanto o STJ quanto o STF são chamados a
decidir principalmente em Habeas Corpus e em Pedidos de Extensão. Apenas
no STJ encontramos decisões em ações penais e em Recursos Especiais,
enquanto no STF as decisões referem-se sempre a Habeas Corpus e Recursos
Ordinários e Habeas Corpus.
Tabela 14 Distribuição de acórdãos penais por tipo de recurso e instâncias
Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
134
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
3.3 MOMENTO DA INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
A pesquisa distinguiu o momento processual de interposição do recurso,
considerando-se quatro momentos distintos, a saber: se este foi interposto antes
do recebimento da denúncia (isto é, antes do início da ação penal) (I), no curso
da ação penal (II), entre sentença e decisão de 2ª instância (III) ou após decisão
de 2ª instância (IV).
A grande maioria das decisões analisadas foi interposta no curso da ação
penal, referindo-se tanto os casos em que o acusado pede trancamento da ação
penal, como os casos em que esta foi trancada por decisão de 1ª ou 2ª instância
não transitada em julgado.
Tabela 15 Distribuição de acórdãos penais por momento de interposição do
recurso e instâncias - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
3.4 TIPO DE CRIME
No tocante à incidência dos tipos penais previstos, para fins de alimentação
do nosso banco de dados, consideramos “tipo penal” a norma incriminadora
atribuída ao caso concreto pela acusação, na denúncia. Importante ressaltar que,
desta forma, ela pode não coincidir com a atribuição feita pelos Tribunais no
momento da decisão de mérito nas diferentes instâncias.
Dentre o universo de acórdãos analisados na área penal encontramos uma
grande diversidade de tipos penais, sendo os seguintes os mais recorrentes. O
artigo 1º da Lei 8.137/90 (Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica
e contra as Relações de Consumo) foi o tipo penal mais freqüente, objeto de 15
acórdãos analisados. Em segundo lugar, veio o artigo 168-A do Código Penal,
que foi tema de 9 das decisões191. Além desses, o artigo 54 da Lei 9.605/98 (Lei
de Crimes Ambientais), o art. 4º da Lei 7.492/86 (Lei do Colarinho Branco) e o
É preciso dizer que cada tipo penal foi contado individualmente, mesmo quando apareceram
em concurso com outros tipos penais no mesmo acórdão.
191
135
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
artigo 304 do Código Penal repetiram-se em mais de uma decisão. Residualmente
apareceram também crimes tipificados pelo Código de Defesa do Consumidor,
pela Lei 1.521/51 (Lei dos Crimes contra a Economia Popular), pela Lei 9.613/98
(Lei dos Crimes de Lavagem de Dinheiro), entre outros do Código Penal.
Pudemos observar, no STJ, um relativo equilíbrio entre decisões que versavam
sobre um único tipo penal e aquelas que correspondiam a crimes em concurso. No
STF, dentre os seis acórdãos, cinco apresentaram tipificação em concurso.
Tabela 16 Distribuição de acórdãos penais por tipificação única ou em
concurso Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
Dois exemplos freqüentes de concurso são: o concurso entre incisos do
art. 1º da Lei 8.137/90 (Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e
contra as Relações de Consumo) e o concurso entre o art. 333, parágrafo único,
do CP, o art. 4º da Lei 7.492/86 (Crimes contra o Sistema Financeiro) e o art.
1º, inciso V, § 4º da Lei 9.613/98 (Lei dos Crimes de Lavagem de Dinheiro).
3.5 FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
Como vimos na Tabela 5, há 31 decisões positivas em relação à
responsabilização ou à possibilidade de responsabilização e 24 decisões
negativas em relação à responsabilização ou continuidade da ação penal.
Analisamos o inteiro teor dessas decisões, contabilizando, para cada
acórdão, os argumentos apresentados pelos Ministros.
Nos casos positivos em relação à continuidade da ação penal, ou seja, naqueles
em que foi determinado o seu prosseguimento, e naqueles positivos em relação à
imputação, ou seja, em que de fato houve a responsabilização do réu, classificamos
os fundamentos das decisões em: “há indícios de autoria”, “há prova de autoria”, “há
prova de materialidade” e “imputação por cargo”, que explicamos adiante192.
Importante frisar que os exemplos apresentados durante a exposição dos critérios foram
escolhidos sem a preocupação com sua representatividade. Apenas as decisões em que houve
imputação por cargo serão integralmente apresentadas.
192
136
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Nos casos negativos em relação à persecução da ação penal, ou seja,
naqueles em que houve o trancamento da mesma, e naqueles negativos em
relação à imputação, ou seja, em que se determinou a absolvição do paciente,
classificamos os argumentos em “falta de prova para materialidade”, “falta de
prova para autoria”, “vedação de análise probatória na via eleita”, “extinção da
punibilidade”, ausência de individualização da conduta” e “questões processuais”.
Tabela 17 Distribuição de acórdãos penais pela fundamentação da decisão em
casos de prosseguimento e de imputação em que houve responsabilização
ou não e instâncias - Brasil 2005-2007
Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.
A soma do número total de acórdãos nessa tabela é superior a 100% pois mais de um argumento
foi utilizado na fundamentação elaborada pelos magistrados nas decisões, de forma que, nesses
casos, houve mais de uma entrada na tabela referente ao mesmo acórdão.
1
137
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A discussão sobre autoria é a mais freqüente nas decisões analisadas.
No geral, vemos a predominância de decisões que determinam o não
prosseguimento da ação penal com base em falta de prova para autoria (18
no STJ e 4 no STF) ou ausência de individualização da conduta (17 no STJ
e 3 no STF), questões que invariavelmente encontram-se ligadas.
Decisões sobre o prosseguimento ou não de ações penais analisaram essa
questão sob o enfoque da justa causa para processar, entendida como indícios
de autoria acompanhados de comprovada materialidade do crime.
Nesse âmbito, a questão da prova da materialidade não recebeu tantas
menções quanto as discussões referentes aos indícios ou provas de autoria,
mas também foi destacada em algumas decisões de forma a desconstituir a
usualmente alegada inépcia da denúncia.
Classificamos sob a rubrica “imputação por cargo” os argumentos que remetem
a suposições ou expectativas de deveres a partir do cargo ocupado pelo acusado.
Citem-se os seguintes exemplos da articulação desse raciocínio: 1) no
HC 33.459/PA, a relatora Ministra Laurita Vaz (STJ) considera que “é razoável
supor que as operações ilícitas eram de conhecimento daquele que é justamente
o principal responsável pelas atividades desenvolvidas pela Empresa, o diretorpresidente”; 2) no HC 50.654/SC, o Ministro Paulo Medina (STJ) afirma que
“se, por um lado, é certo que a condição de dirigente não basta, por si, para a
afirmação da responsabilidade penal, por outro lado, não é menos certo que essa
qualidade de dirigente empresarial, que confere aos sujeitos uma especial posição
em relação aos processos decisórios e às ações executadas em nome da empresa,
aliada a outras circunstâncias, é, quando menos, indicativa da responsabilidade
penal”; 3) no HC 85.549-1/SP de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence (STF)
é determinado o prosseguimento da ação penal, confirmada a gestão dos pacientes
na empresa (S.A.) à época dos fatos, uma vez que “a condição de gestores da
empresa no período da prática dos fatos delituosos basta para fundar a imputação
inicial a eles feita de co-responsáveis pelas infrações”.
Com efeito, decisões que imputassem finalmente responsabilidade penal
com base em argumentos dessa ordem enfrentariam maiores dificuldades de
serem defendidas à luz do princípio da culpa e das regras de aplicação da lei
penal. Nesse sentido, um ponto importante da argumentação dos Ministros que
assim decidiram foi justamente o fato de se tratar de decisão provisória sobre
processar ou não o acusado.
O Ministro Sepúlveda Pertence, por exemplo, ressalta que “não se trata
de fazer concessão à responsabilidade penal objetiva nos crimes societários:
cuida-se apenas, de admitir que, (...) a circunstância de terem sido os pacientes
denunciados na condição de dirigentes da empresa, aos quais cabe, a princípio,
tomar as decisões a ela pertinentes, ‘há de ser tida ao menos como indício
veemente de autoria’”. A Ministra Laurita Vaz, por sua vez, faz notar em
138
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
seu voto que o paciente terá a oportunidade de demonstrar a ausência de sua
responsabilidade no curso da instrução criminal. No mesmo sentido, Ministro
Paulo Medina aponta que o exame probatório adequado poderá ser feito por
meio processual próprio que não o habeas corpus.
Ainda que a decisão sobre a justa causa exija apenas a existência de indícios
de autoria, utilizar presunções a partir da posição do réu na empresa representa
flexibilização das exigências da peça acusatória. Não por acaso, a Ministra acima
citada refere-se ao REsp 285.188/ES (rel. Min. Félix Fischer, DJ de 27/08/2001)
em que se vê desenvolvido o argumento de que por se tratar de “crime societário”,
não haveria necessidade de descrever pormenorizadamente a autuação de cada
agente. Nesse sentido, o Ministro Sepúlveda destacou, em seu voto no HC 85.579
(rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 24/06/2008), seguindo o que segundo ele é a linha
da jurisprudência dominante do Tribunal193 que “tratando-se de crimes societários
em que não se verifica de plano, que ‘as responsabilidades de cada um dos
sócios-gerentes são diferenciadas, em razão do próprio contrato social relativo ao
registro da pessoa jurídica envolvida’, não há inépcia da denúncia pela ausência
de indicação individualizada da conduta de cada indiciado, sendo suficiente a de
que ‘os acusados sejam de algum modo responsáveis pela condução da sociedade
sob a qual foram supostamente praticados os delitos’”.
Por estarem freqüentemente relacionados, a discussão sobre existência ou não
dos requisitos da justa causa para acusar encontra-se muitas vezes combinada com a
discussão sobre a inépcia da denúncia por falta de individualização da conduta.
A ausência de individualização da conduta na denúncia por diversas
vezes ensejou o trancamento da ação penal. O Ministro Gilson Dipp, relator
de mais da metade dos casos de matéria penal analisados no STJ, determinou o
trancamento de 14 casos194 por falta de individualização da conduta utilizandose da seguinte justificativa:
“Não obstante o entendimento desta Corte no sentido de que, nos crimes
societários, em que a autoria nem sempre se mostra claramente comprovada,
a fumaça do bom direito deve ser abrandada, dentro do contexto fático que
dispõe o Ministério Público (ou Parquet) no limiar da ação penal; no caso
dos autos, assiste razão o(s) impetrante(s). Embora não se exija, nas hipóteses
de crimes societários, a descrição pormenorizada da conduta de cada agente,
isso não significa que o órgão acusatório possa deixar de estabelecer qualquer
Cf. HHCC 84.663, 2ª T., 23.11.04, Barbosa, DJ 18.02.05; 82.242, 2ª T., 17/9/02, Gilmar; DJ
11/10/02; 73.903, Rezek, DJ de 25.4.97; HC 74.791, Ilmar, DJ de 09.5.97; RHC 65.369, Moreira, DJ
de 27.10.87; RHC 59.857, Firmino Paz, DJ de 10.12.82.
194 RHC 17.872/CE; HC 49.554/RS; HC 46.654/AM; AP 404/AC; HC 43.210/SP; RHC 19.764/
PR; RHC 17.437/SP; HC 43.210/SP; HC 54.412/PR; HC 56.058/SP; HC 56.955/SP; HC 57.213/SP;
REsp 838.846/MT; REsp 884.414/CE.
193
139
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
vínculo entre o denunciado e a empreitada criminosa a ele imputada. O simples
fato de ser sócio ou administrador de empresa não autoriza a instauração de
processo criminal por crimes praticados no âmbito da sociedade, se não restar
comprovado, ainda que com elementos a serem aprofundados no decorrer da
ação penal, a mínima relação de causa e efeito entre as imputações e a condição
de dirigente da empresa, sob pena de se reconhecer a responsabilidade penal
objetiva. A inexistência absoluta de elementos hábeis a descrever a relação
entre os fatos delituosos e a autoria ofende o princípio constitucional da ampla
defesa, tornando inepta a denúncia”.
No RHC 85.658/ES, o Ministro Cezar Peluso (STF) entendeu que a
inicial não descreveu a conduta individualizada de nenhum dos acusados
e incluiu o paciente membro do Conselho de Administração de S.A. sem
menção direta ou indireta a eventual conduta que teria praticado. Destaca que
a acusação não pode apenas servir-se de “investigações que têm por base outro
modelo de responsabilidade, menos exigente que o penal, para sustentar a
viabilidade da denúncia, com abstração da necessidade de reunir elementos,
ainda quando crítico-lógicos, que bastem a inculcar responsabilidade subjetiva
e pessoal de cada sócio, administrador ou empregado da empresa”. Destaca
ainda que “a necessidade da descrição pormenorizada das condutas de cada
um dos denunciados interfere, ao depois, com a distribuição dos ônus da prova
no processo, pois sua falta, subvertendo as regras decisórias (art. 156 do CPP)
acabaria por exigir ao réu a prova de que não participou dos fatos”. Assim,
o Ministro determina a nulidade absoluta da decisão que recebeu a denúncia
inepta, concedendo habeas corpus de ofício para decretar nulo o processo a
partir da denúncia, inclusive estendendo a ordem aos demais co-réus.
No HC 85.948-8/PA, o Ministro Carlos Britto (STF) destacou que, pela
dificuldade empírica de se pormenorizar condutas que, em geral, são provenientes
de decisões internas dos gestores de cada empresa, nos crimes societários tem se
aceitado denúncias genéricas possibilitando que o processo penal seja ao menos
iniciado, garantindo-se que ao longo da instrução fique clara a participação de
cada acusado na suposta prática da infração penal. Porém, o Ministro ressalta que
tal orientação jurisprudencial vem sendo abrandada para exigir que a denúncia
contenha uma descrição mínima da participação do acusado, de forma que mesmo
nos crimes societários não haveria dispensa dessa descrição, ainda que mínima,
a fim de garantir-se o exercício da ampla defesa e do contraditório. No caso em
análise, o Ministro destaca que a denúncia não aponta sequer a posição jurídica
do denunciado no organograma da empresa e menos ainda que tipo de vínculo
operacional teria ele com os fatos tidos por delituosos. Nos debates, os Ministros
discutem a inépcia da denúncia por não descrever minimamente o poder de
gerência dos denunciados e destacam a falta de tecnicidade do Ministério Público
na utilização da nomenclatura de direito societário, uma vez que diretor-presidente
140
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
existe em S.A., enquanto em limitada existem sócios cotistas ou sócios gerentes.
Assim, concluem pelo trancamento da ação penal.
III. CONCLUSÕES
O presente levantamento buscou fazer um retrato das questões sobre
responsabilidade de administradores que chegaram aos Tribunais Superiores
no período de 2005 a 2007. Em razão dos limites do seu recorte, não se trata
de um diagnóstico sobre o tratamento dessa questão pelo Judiciário brasileiro,
o que demandaria que se estudasse um período mais amplo, bem como outras
instâncias judiciais, incluindo também a justiça do trabalho.
Entretanto, o retrato que obtivemos já é capaz de apontar uma série de
questões que importam à compreensão do tema, especialmente sobre o tipo de
caso chega até o STJ e o STF e os temas de discussão mais relevantes.
No que diz respeito à matéria, a pesquisa demonstrou que as discussões
envolvendo direito tributário e previdenciário ocupam a imensa maioria dos casos
julgados pelos tribunais superiores sobre o tema da responsabilidade individual
dos administradores. Das 250 decisões analisadas, 206 tratam dessa matéria.
Também no conjunto de acórdãos da área penal o maior número de casos
versou sobre matéria tributária/previdenciária, totalizando 27 casos de 52. O
artigo 1º da Lei 8.137/90 (Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica
e contra as Relações de Consumo) foi o tipo penal mais freqüente, objeto de 15
acórdãos analisados. É seguido pelo artigo 168-A do Código Penal (apropriação
indébita previdenciária), que foi objeto de 9 decisões.
Com relação ao tipo societário envolvido na discussão dos casos, vimos que
das 250 decisões analisadas, 153 discutem responsabilidade dos administradores
em sociedades limitadas e apenas 27 em sociedades por ações. Esse dado,
contudo, deve ser analisado com parcimônia. É usual ouvir de agentes de mercado
e advogados que é melhor constituir sociedade por ações, pois é mais difícil obter
as informações de quem é administrador e quem são os acionistas, uma vez que
tais informações não constam no estatuto social, mas em atas e livros societários.
A superioridade de casos envolvendo sociedades limitadas não necessariamente
confirma esse tipo de afirmação. É preciso considerar que no Brasil o número
de sociedades limitadas é muito superior ao de sociedades anônimas195 e tal
configuração tem certamente algum impacto nos números apresentados.
Ainda sobre este ponto, em 62 dos casos analisados não se consegue extrair
informação sobre qual o tipo societário é objeto de julgamento. Ou seja, essa
Conforme estatística do Departamento Nacional de Registro e Comércio sobre a constituição
de empresas por tipo jurídico de 1985 a 2005, havia 4.3000.257 sociedades limitadas e apenas
20.080 sociedades por ações. Informação disponível em www.dnrc.gov.br.
195
141
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
informação aparentemente não foi determinante na construção do argumento e da
decisão do julgador. Este fato, por si só, não seria problemático, uma vez que o tipo
societário escolhido pelo empresário não determina o regime de responsabilidade
dos seus administradores perante terceiros, salvo em conflito referente às relações
internas, que na nossa amostra apareceu apenas uma única vez.
Situação semelhante refere-se à falta de precisão na análise da posição do
réu na empresa. Constatamos que os Ministros utilizam inúmeras denominações
para designar as posições dentro da empresa e o fazem de forma pouco precisa.
Muitas vezes utilizam de modo intercambiável algumas denominações que
a rigor referem-se a diferentes papéis sociais, com conjuntos distintos de
obrigações e deveres. Considerando o total de recursos não penais analisados,
em 103 acórdãos, ao comparar a ementa e o interior dos votos, encontramos
diversas expressões para designar a mesma pessoa ou função. As expressões
que mais freqüentemente apareceram como sinônimas foram “sócio” e “sóciogerente”. Outras expressões - tais como diretores, gerentes ou representantes da
pessoa jurídica – são também utilizadas como equivalentes da figura do sócio. De qualquer modo, verificou-se que a cumulação da posição de sócio e
administrador é a figura mais presente nas decisões, isto é, em 167 dos 250. Em
apenas 36 decisões figura apenas o administrador.
Chamou atenção também o fato de que a expressão mais freqüente
seja “sócio-gerente” (169 nos casos não penais e 11 nos penais do STJ). Esta
denominação era utilizada na vigência da legislação antiga das sociedades
limitadas (Decreto 3.708/19), que foi modificada para administrador pelo
Código Civil, e da expressão gerente do art. 135 do CTN, uma vez que casos
tributários representam grande parte de casos desta pesquisa.
Como explicamos, a pesquisa utilizou o conceito “responsabilização”
para referir-se à declaração de responsabilidade individual feita pelo órgão
jurisdicional - o que não necessariamente indica que o caso tenha resultado,
efetivamente, impacto no patrimônio do administrador. A fim de lidar com
casos em distintos estágios do desenvolvimento do processo, reunimos decisões
finais sobre imputar ou não responsabilidade e decisões que determinavam
o prosseguimento ou extinção precoce do processo. Trabalhamos, dessa
forma, com dois conjuntos de decisões: um de decisões que determinavam o
prosseguimento do processo ou atribuíam responsabilidade individual ao sócio
e outro conjunto contendo decisões que determinavam a extinção precoce do
caso ou não responsabilizavam individualmente o administrador.
No geral, foi mais comum encontrar decisões contrárias à
responsabilização do administrador ou à continuidade do processo contra ele
– foram 154 decisões do primeiro tipo, contra 99 decisões do segundo. Essa
142
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
relação se inverte no conjunto de casos penais, embora a diferença entre os dois
resultados, nesse campo, seja muito menor: 24 casos foram no sentido negativo
em relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização e 31
foram em direção à responsabilização ou possibilidade de responsabilização.
As distinções existentes entre os papéis e funções de sócio (aquele
que aporta capital de risco na empresa e não necessariamente administra o
mesmo) e administrador (responsável pela gestão do patrimônio empresarial)
não apareceram como determinantes para a decisão sobre responsabilidade. A
pesquisa constatou que os julgados, em especial nos casos não penais em que
isso seria mais relevante (já que na esfera penal se trata de responsabilidade por
ação individualizada), não tiveram a preocupação de analisar as competências e
atribuições internas da organização societária.
Outro dado importante refere-se à fundamentação das decisões para atribuir
ou não responsabilidade aos administradores. O argumento que aparece com maior
freqüência para a responsabilização dos administradores é a dissolução irregular
da sociedade, lembrando que desde em 2010 está na Súmula STJ 435. Outro
fundamento relevante é a presunção de legitimidade da CDA, indicando que a via
administrativa é bastante importante para determinar a responsabilização perante
o Poder Judiciário. Para a não atribuição de responsabilidade aos administradores,
o argumento com mais freqüência apontado pelos julgadores como motivo da
decisão é o de que o simples não pagamento do tributo não implica em direta
responsabilidade dos gestores e sócios da empresa.
Outro ponto que chama a atenção é que a discussão da posição do
administrador da empresa não parece ser critério determinante para fins de
atribuição de responsabilidade aos agentes empresariais perante terceiros, em
especial, perante o fisco.
A pesquisa distinguiu situações em que os Ministros votaram em um mesmo
sentido das decisões em que houve divergência manifestada por meio da apresentação
de voto vencido. Das 236 decisões analisadas, 250 se deu por unanimidade.
Na área penal, repete-se a situação de que a grande maioria dos
casos chega ao STJ e ao STF antes de terem atingido uma decisão de
mérito em primeira instância. São interpostos ainda no curso da ação
penal (abrangendo tanto os casos em que o acusado pede trancamento da
ação penal, como os casos em que esta foi trancada por decisão de 1ª ou
2ª instância não transitada em julgado). Os meios de impugnação mais
freqüentes são Habeas Corpus e Recursos Ordinários em Habeas Corpus.
Observamos a partir da análise pormenorizada das decisões que a questão
da definição da autoria e da individualização da conduta é central nesse campo,
especialmente nas discussões acerca da continuidade ou extinção dos casos
Diagnóstico comum a sistemas que adotam o princípio da culpa
individual é o de que tais regras de individualização têm enfrentado
143
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
obstáculos para serem aplicadas no âmbito da empresa. Tal fato decorre da
dificuldade de se identificar agentes e individualizar seu conhecimento e
sua contribuição para atividades ou condutas ilícitas realizadas no âmbito
de organizações complexas.
Para ilustrar como os Tribunais estão atualmente lidando com essa
questão da imputação individual em empresas são úteis os dados obtidos
nesta pesquisa. Do total de 52 acórdãos em matéria penal analisados, a
maioria das decisões em matéria penal julgadas pelos STJ e STF versa
sobre o prosseguimento ou trancamento da ação. Apenas seis decisões têm
como resultado a absolvição ou condenação do réu.
Vemos a predominância de decisões que determinam o não prosseguimento
da ação penal com base em falta de prova para autoria (18 no STJ e 4 no STF)
ou ausência de individualização da conduta (17 no STJ e 3 no STF).
Os dados obtidos revelam que, no que diz respeito ao desfecho de
casos envolvendo imputação de crimes no âmbito da empresa, há um número
significativo de casos que são precocemente extintos por não apresentarem os
requisitos da individualização da acusação. Ainda que esse levantamento diga
respeito apenas aos casos que chegaram aos Tribunais Superiores, ele traz um forte
indicativo de que esse problema pode ser encontrado nas instâncias inferiores.
Esse cenário é importante de ser diagnosticado pois está na base
de uma série de tentativas – no campo dogmático e no campo legislativo
– de contornar o problema da individualização da responsabilidade nos
crimes empresariais. A imputação de responsabilidade individual a pessoas
jurídicas, por exemplo, coloca-se no contexto dessa discussão. Mas também
se colocam como alternativas outras soluções que, mantendo a imputação
individual, flexibilizam alguns de seus requisitos. Dentre elas, podemos
mencionar como as mais relevantes a reformulação dogmática do conceito de
autoria, a fim de abarcar também aqueles que não tomaram parte na execução
da conduta, mas tinham o que se denomina “domínio do fato”, e a criação de
mais tipos omissivos – em que o empresário ou aqueles que ocupam cargos
mais elevados na estrutura empresarial podem ser responsabilizados pela
conduta ativa de um funcionário, diante da qual ele teria o dever de atuar
para evitar. Em suma, o diagnóstico que apresentamos aqui está na base das
discussões contemporâneas no campo da dogmática penal.
Por fim, vale observar a necessidade da realização de mais pesquisas
empíricas para o conhecimento da real extensão do regime de responsabilidade
dos administradores de sociedades empresariais. Apenas a continuidade da
exploração empírica desse campo é que permitirá dimensionar, de fato, se e
como os regimes de responsabilidade podem interferir na atividade empresarial
e seu possível papel na criação de estímulos para organizações transparentes, a
prevenção de fraudes e o aperfeiçoamento de mercados.
144
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A CRISE DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE NAS SOCIEDADES
EMPRESÁRIAS LIMITADAS SOB O ENFOQUE DA FIGURA
DO ADMINISTRADOR
THE CRISIS OF THE LIMITATION OF LIABILITY IN LIMITED BUSINESS
COMPANIES FIGURE IN THE FOCUS OF THE ADMINISTRATOR
Sabrina Tôrres Lage Peixoto de Melo196*
RESUMO
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem sido aplicada
nos dias atuais com a finalidade de imputação de responsabilidade aos sócios,
de forma aleatória e injustificada, com critérios subjetivos que tornam difícil a
prova demonstrando uma pretensa relação causal entre personalidade jurídica
e limitação da responsabilidade. O que se tem observado, na prática, é uma
verdadeira imputação automática de responsabilidade aos sócios das sociedades
empresárias limitadas, mesmo que haja patrimônio em nome da pessoa jurídica.
Essa realidade pode ser facilmente comprovada na esfera tributária onde o
administrador tem sido alvo constante de solidariedade com as pessoas jurídicas,
se equiparando ao principal devedor, tendo até mesmo seu nome inscrito em
dívida ativa por dívidas da pessoa jurídica, distorcendo, por completo, todas as
normas jurídicas legais previstas no ordenamento jurídico pátrio. Por esta razão,
mister se faz um estudo mais diligente no sentido de explicitar a responsabilidade
das sociedades e dos administradores, de forma e modo a entender a limitação,
para, de fato, aplicá-la com base em critérios objetivos condizentes com a
norma jurídica. O presente artigo tem o objetivo de traçar alguns aspectos gerais
sobre a limitação de responsabilidade, suas causas modernas, demonstrando a
crise do instituto em análise nas sociedades empresárias limitadas, e, de forma
audaciosa, tem o propósito de traçar um paralelo entre a figura do administrador
na sociedade empresária limitada e na sociedade por ações sob a forma fechada,
mostrando como a limitação de responsabilidade da sociedade empresária
limitada tem colocado seu administrador em condição mais frágil do que em
uma sociedade empresária por ações sob a forma fechada. Para a consecução dos
objetivos propostos serão utilizadas algumas premissas da análise econômica
Doutoranda em Direito Privado pela PUC Minas. Mestre em Direito de Empresas pela
Faculdade de Direito Milton Campos. Especialista em Direito Empresarial pelo CAD. Graduada
em Direito pela FUMEC. Advogada da Pedrosa Orsini Auditores Independentes. Professora
de Direito Empresarial da Faculdade de Direito Promove e da Faculdade de Direito Pitágoras.
Coordenadora licenciada da Faculdade de Direito Promove MG.
196 *
145
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
do direito para se realizar o silogismo e obter a conclusão jurídica de acordo
com os parâmetros econômicos. Para tanto, serão consideradas, nos termos
dos autores Jairo Saddi e Armando Castellar as premissas de que, nenhum ser
humano está disposto a aplicar esforços senão, para obter o melhor para si,
utilizando-se da maximização de seus interesses. Ainda, se partirá do princípio
de que, todo ser humano procura analisar se existem incentivos ou não para a
prática de determinadas condutas, e quais as possíveis sanções existentes para
aquela prática, para saber se a conduta compensa ou não, verificando os custos
de transação e se as regras legais funcionam como incentivos ou formas de
inibição de condutas nas decisões racionais dos indivíduos. Vale ressaltar que
a análise econômica será aqui utilizada tão somente como um instrumental útil
para casos que aceitam a lógica da maximização sem o propósito de demonstrar
soluções mais eficientes do que as já existentes. Com isso, o presente artigo
procurará, de forma singela, contribuir para a demonstração de mais um ponto
frágil das sociedades empresárias limitadas na atualidade comparando-o á
figura semelhante em outro tipo societário que também tem limitação de
responsabilidade, qual seja, a sociedade por ações, sob a forma fechada.
Palavras-Chave: Sociedade limitada e riscos. Sociedade anônima fechada.
Responsabilização dos administradores nas sociedades empresárias limitadas.
Responsabilidade dos administradores nas sociedades empresárias por ações
sob a forma fechada. Análise econômica de tipos societários.
ABSTRACT
The disregard doctrine has been applied actually for the purpose of
attributing responsibility to the members at random and unjustified, with subjective
criterion that make it difficult to evidence showing a causal link between alleged
legal personality and limited liability. What has been observed in practice, is a true
automatic imputation of responsibility to the shareholders of business companies
limited, even if there are assets on behalf of the corporation. This reality can be
easily proven in the field where the tax administrator has been subject to constant
solidarity with the legal, equating it to the principal debtor, even having his name
inscribed in outstanding debt for debt of the corporation, distorting, completely,
all the legal standards laid down in statutory law patriotism. For this reason, is
necessary to make a more diligent study in order to clarify the responsibility of
companies and directors, and so in order to understand the limitation, to actually
apply it based on objective criterion, consistent with the rule of law. This article
aims to outline some general aspects about the limitation of liability, causes
modern, demonstrating the crisis of the institute in question in companies limited,
146
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
and so bold, is meant to draw a parallel between the figure of administrator in
the limited liability company and closed corporation, showing how the limitation
of liability of the limited liability company has put its director in more fragile
condition than in a business company by shares under the closed form. To achieve
the proposed objectives will be used some assumptions of economic analysis of
law to perform the syllogism and get the legal conclusion in accordance with
the economic parameters. So it must be considered in terms of the authors and
Armando Castelar Jairo Saddi assumptions that no human being is willing to
apply effort, except to get the best for you, using the maximization of their
interests. Still, they shall be presumed that every human being seeks to examine
whether or not there are incentives for the practice of certain behaviors, and what
possible sanctions exist for this practice, as to whether the conduct pays off or
not by checking the transaction costs and legal rules act as incentives or forms
of inhibition of behavior in rational decisions of individuals. It is worth noting
that economic analysis will be used here only as an instrument useful for cases
that they accept the logic of maximization without the purpose of demonstrating
solutions more efficient than existing ones. Therefore, this article will seek, in
simple form, contribute to the demonstration of another weak point of business
companies limited at present by comparing the figure will be similar in the other
type of company that also has limited liability, which is the corporate.
Keywords: Company limited and risks. Private corporation. Accountability
of managers in commercial companies limited. Responsibility of managers in
corporate. Economic analysis of corporate types.
1. INTRODUÇÃO
A hipótese metodológica que motivou a redação do presente artigo
se encontra basicamente aliada a um problema de fácil percepção do
contexto empresarial moderno, qual seja, a verdadeira crise da limitação da
responsabilidade dos sócios nas chamadas sociedades empresárias limitadas.
Há muito tempo tenho me questionado acerca deste tipo empresarial tão
conhecido, tão utilizado e tão procurado por aqueles que desejam empresariar:
a sociedade empresária limitada.
Em até que ponto ela hoje cumpre com as funções para as quais foi criada?
Qual a segurança jurídica pode hoje ser oferecida àqueles que me questionam
sobre dita forma societária, quando, na prática, as questões contemporâneas
apontam exatamente para um resultado distinto do que o proposto pela lei?
Existiria outro tipo societário que, sob dito aspecto, poderia viabilizar
maior segurança jurídica?
147
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Ademais, com a aprovação da limitação da responsabilidade do empresário
unipessoal, volto a questionar: qual a razão que motivará os sujeitos que desejam
empresariar na atualidade, a optar pelas Sociedades Empresárias Limitadas, se,
de um lado, os mesmos podem ser exercer a atividade empresarial de forma
individual, limitando seus riscos, através da EIRELI – Empresa Individual de
Responsabilidade Limitada, e, se, de outro lado, podem eles optar por um tipo
societário que melhor os resguarde, qual seja, a Sociedade por Ações, prevista
na Lei 6404/76?
Ou seja, por que correr o risco de ter o patrimônio pessoal simplesmente
“invadido”, em verdadeira afronta a razão de ser da personalidade jurídica, se
existem outras hipóteses jurídicas que podem vir a ser mais viáveis?
Tal ponderação pode parecer assustadora em um primeiro momento,
porém, nada mais é do que um retrato da atual realidade empresarial brasileira.
Quem nunca ouviu falar de alguém que teve um bloqueio “BACENJUD”
em sua conta corrente, mesmo após já ter saído de uma sociedade empresária? E
quantos não são aqueles que simplesmente descobrem que o CPF está atrelado á
uma sociedade da qual já não faz parte há mais de 5 anos? E ainda, para piorar
ainda mais a situação, quem nunca escutou um comentário sobre as verdadeiras
vítimas da esfera tributária que simplesmente parece não ter limites para o seu
poder de tributar os administradores das sociedades?
Em virtude da frequência que se tem observado a invasão patrimonial
pessoal dos sócios de sociedades empresárias limitadas, e ainda, principalmente,
com relação ás pessoas que exercem a administração da pessoa jurídica, é que
se fez necessário o presente estudo.
As questões supra mencionadas são suficientes para que se escreva
um livro inteiro, porém, por hora, o foco será a atual crise da limitação da
responsabilidade dos administradores, traçando um pequeno paralelo entre a
figura dos mesmos nas sociedades empresárias limitadas, e nas sociedades por
ações sob a forma fechada.
As considerações finais são de cunho estritamente pessoal e apontam
para uma solução, (que na verdade ainda é fruto imaturo de minha pesquisa que
apenas está no inicio), mas, registre-se de passagem, é a que me parece mais
salutar até o presente momento.
O presente artigo é sucinto, e não tem o objetivo de esgotar o assunto,
muito antes pelo contrário. Aqui encontraremos apenas uma semente do que
se pretende, para clamar a comunidade acadêmica para um debate científico
extremamente necessário sobre o direito de empresas.
Para tanto, no primeiro capítulo serão abordados os principais problemas
observados na prática empresarial atual, os quais convenciono chamar de
geradores da crise da responsabilidade empresarial atual.
148
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Em seguida, no Capítulo 2, foram feitos apontamentos sobre a atual
figura do administrador das sociedades empresárias limitadas, e no Capítulo
3, dita abordagem se deu sobre a mesma figura, administrador, porém, nas
chamadas Sociedades por Ações, sob a forma fechada. No Capítulo 4, foram
feitos os esclarecimentos finais, os quais, com base na analise econômica do
direito, convidam o leitor a uma releitura do direito empresarial moderno.
2 A CRISE DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE NAS SOCIEDADES
EMPRESÁRIAS LIMITADAS
A origem das sociedades revela as vantagens da associação entre os
indivíduos, os quais, reunidos, deram origem aos primeiros tipos societários.
Após o aparecimento da moeda, a economia de escambo não mais se
resumia á troca de produto por produto para a satisfação de grupos, evoluindose para a economia de mercado, com a nítida visão do lucro como essencial.
Assim, juntamente com a majoração dos negócios veio a necessidade
de aparecimento de normas para delimitar os direitos e deveres das partes
envolvidas, surgindo as corporações de mercadores ou de ofício, as quais, por
intermédio de seus estatutos próprios cuidavam daquela jurisdição consular,
específica para os então comerciantes, assim considerados aqueles que
praticavam os atos de comércio.
Os tipos societários que limitam a responsabilidade dos sócios foram
essenciais para a expansão e o desenvolvimento dos empreendimentos de
risco em que se baseava o comércio em geral. Com esses tipos societários,
comerciantes e investidores puderam focalizar seus interesses sem o risco de
perderem tudo o que tinham.
Certos empreendimentos necessitavam de uma grande quantidade de recursos,
os quais só poderiam ser levantados mediante uma grande quantidade de investidores,
o que resultou no crescimento e fortalecimento das sociedades anônimas.
Posteriormente, se viu a necessidade de um tipo societário que atendesse
ao pequeno e médio investidor. Dessa necessidade surgiram as chamadas
sociedades de responsabilidade limitada que, em função da simplicidade em
relação a sua constituição e funcionamento, mostraram-se de grande utilidade
não só para as pequenas e médias empresas, mas também para as grandes, que
se aproveitam desse tipo societário para fugir das exigências de publicidade
previstas na Lei nº 6.404/76.
E o que se pode entender como sendo a limitação de responsabilidade de
um sócio em uma sociedade?
Alimitação significa para a pessoa física que queira empresariar a possibilidade
de explorar a atividade econômica com limitação de prejuízos pessoais.
149
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Como mencionado, o instituto da pessoa jurídica, ou melhor dizendo,
a criação de sociedades personificadas surgiu como um meio interessante de
limitar os riscos das atividades econômicas.
Sendo a pessoa jurídica um ente autônomo com direitos e deveres
próprios que não se confundem com as pessoas dos seus sócios, essa limitação
se tornou um meio de incentivo para a atividade econômica, desde que, não
usada para cometer fraudes, abusos ou iniqüidades197.
Entretanto, tal possibilidade acabou por permitir, de forma indireta,
uma série de fraudes, eis que, várias sociedades passaram a contrair dívidas e
obrigações sem patrimônio para satisfazê-las, de modo que os sócios mantinham
seus lucros, ficando o prejuízo para os credores. E quem na verdade pode vir a
responder por isso?
A pessoa jurídica enquanto ficção jurídica torna imprescindível a
intermediação de um órgão para a exteriorização da sua vontade e da sua
gestão. Observe-se que não se confunde a figura do órgão da sociedade com um
procurador da sociedade que representa a mesma no âmbito restrito dos poderes
que lhe forem conferidos.
O administrador, sendo um órgão, detém a plenitude dos poderes de
administração da sociedade ressalvadas as hipóteses limitativas previstas
no contrato social (BORBA, 2004, p. 61). Há quem entenda que nem
mesmo as restrições contratuais têm eficácia externa, servindo apenas para a
responsabilização interna.
Esse órgão é o órgão administrativo da sociedade que pode ser composto
por uma ou várias pessoas com competências conjuntas ou separadas, ou ainda
ter um regime similar ao que ocorre nas sociedades anônimas (TOMAZETTE,
2004, p. 175).
Quando o órgão age, quem age é a pessoa jurídica e não a pessoa física
que eventualmente esteja assinando pela pessoa jurídica.
Entretanto, não é isso que ocorrido na atualidade. Em completo
desrespeito ás normas de responsabilidade civil pelos atos praticados, ou ainda,
das hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, os administradores
têm sido elencados como responsáveis por atos praticados pela pessoa jurídica,
ainda que em pleno respeito aos seus respectivos deveres de gestão!
Ou seja, ainda que tenham atuado em estrito cumprimento dos poderes
que lhes foram auferidos pelo contrato social ou documento apartado, com a
moral e conduta ilibada de todo homem probo, fato é que, estas figuras hoje
em dia, têm sido alvos de constantes imputações de responsabilidade solidária,
Vale ressaltar que a limitação da responsabilidade decorre da natureza creditória dos direitos
dos sócios sobre os resultados da empresa, e não da atribuição de personalidade jurídica. Neste
sentido, Warde Júnior (2007).
197
150
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
sendo considerados verdadeiros devedores corresponsáveis, ainda que o ônus
da prova seja do ente autuador.
Daí o que se convencionou chamar de crise da responsabilidade limitada.
Como se pode garantir a alguém que venha a ocupar o cargo de administrador
de sociedade empresaria limitada, que, agindo em conformidade com a lei, seu
patrimônio pessoal jamais será atingido, se as respostas do Poder Judiciário são
exatamente inversas?
É necessário deixar claro que não se está aqui querendo dizer que os
aplicadores da norma a têm feito de forma errônea. Muito antes pelo contrário.
Na grande maioria das vezes, uma vez comprovado que o administrador não agiu
com dolo, fraude ou má-fé, abuso de poder, e, não sendo hipótese de dissolução
irregular de sociedade, ao mesmo não será imputada a responsabilidade em
nome da pessoa jurídica.
Porém, o que não se pode deixar de avaliar, é o custo de transação
que está aliado á este procedimento, até que o administrador consiga provar,
judicialmente, que agiu da forma correta, de acordo com o objeto social e dentro
dos poderes que lhe foram conferidos.
Estamos falando de execuções fiscais que demoram anos a fio, trazendo
custos de contratação de advogados, custos de duração do processo, custos para
o próprio Poder Judiciário, para provar o que simplesmente deveria ser óbvio, o
administrador não pode ter seu patrimônio pessoal invadido de forma abrupta,
por débitos da pessoa jurídica da qual faz parte!
A assertiva supra se comprova na medida em que observamos o grande
número de “laranjas”, nome popularmente dado àqueles que assumem a figura
de gestão da sociedade “protegendo” os verdadeiros administradores que não
querem colocar o patrimônio em risco.
Por esta razão, e para melhor compreensão da dinâmica destes órgãos
tanto na sociedade empresária limitada, quanto na sociedade por ações, passa-se a
seguir, a breves explanações sobre as principais características em um e outro tipo
societário, para ao final, como proposto, tentar se demonstrar qual tipo se parece o
mais economicamente interessante sob a ótica da figura da administração.
2. DESENVOLVIMENTO: A FIGURA DO ADMINISTRADOR NAS SOCIEDADES
EMPRESÁRIAS LIMITADAS
Com o Código Civil de 2002 (CC), a sistemática da gestão da sociedade limitada
foi profundamente alterada, com a possibilidade da nomeação de administradores
estranhos ao quadro social facilitando a profissionalização da gestão.
Entretanto, ainda assim, existe o quorum qualificado de unanimidade para
nomeação de tais estranhos, e dois terços do capital social após sua integralização
151
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
em função dos maiores riscos que podem advir da nomeação de um estranho.198
Observe-se que a versão primeira do art. 1061 do Código Civil que tratava sobre o
tema, dispunha que o contrato social poderia admitir a nomeação de administrador
não sócio. Com a Lei nº 12.375/10, é que foi extraída a necessidade de autorização
contratual prévia, permanecendo os quoruns.
As atividades essenciais da sociedade empresária serão conduzidas pelo órgão
social com este poder de representação, diligenciando com dever de lealdade,
prestação de contas, convocação de assembléia ou reunião, demonstrações
e realizações contábeis, e uma série de outros atos de gestão da sociedade
empresária. Nos dizeres do ilustre Dr. Eduardo Goulart Pimenta:
A sociedade empresária é, como espécie de pessoa jurídica, uma entidade
apta a adquirir direitos e contrair obrigações. É claro, entretanto, que a
capacidade da pessoa societária é limitada, se comparada à das pessoas
físicas, pois somente está habilitada a praticar atos jurídicos que,
diretamente ou não, tenham relação com a atividade econômica por ela
desenvolvida. (PIMENTA, 2010, p. 55).
O administrador deve conduzir a sociedade empresária em estrita obediência
aos fins a que se destina, sendo-lhe vedada a prática de negócios que extrapolem
os limites das finalidades sociais, sob pena de invalidade e ineficácia do negócio
praticado e de sua responsabilização pessoal pelo excesso de poderes, privilégios
injustificados a grupos de acionistas ou de cotistas, conforme o caso; a prática de atos
de mera liberalidade em detrimento da sociedade sem prévia autorização do órgão
deliberativo, a contratação de financiamentos sem prévia autorização, dentre outros.
Ditos atos transitam no limite da legalidade e poderão ser considerados
ilícitos se o administrador transgredir a norma de boa conduta dos fins sociais,
cometendo atos dolosos e culposos que impliquem na concretização de um dano
em desfavor da sociedade. Nestes casos, surge, então, a possibilidade de destituição
do administrador e o conseqüente dever de reparação do prejuízo causado.
Essa possibilidade existe em virtude do princípio da separação da pessoa
jurídica em relação ao sócio. Assim sendo, a sociedade limitada somente
responde pelos compromissos assumidos pelos seus administradores, se os
compromissos forem contraídos em proveito da sociedade.
Redação antiga do art. 1061 CC: “Se o contrato permitir administradores não sócios, a
designação deles dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não
estiver integralizado, e de dois terços, no mínimo, após a integralização”.
Nova redação (Lei 12.375 de 30.10.2010): Art. 1061 CC: “A designação de administradores
não sócios dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiver
integralizado, e de dois terços, no mínimo, após a integralização”.
198
152
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Caso contrário, poderá o administrador responder por dívidas sociais,
acaso haja com excesso no exercício de poderes de gestão (violação da lei e do
contrato social), hipótese em que, responderá perante terceiros, ilimitadamente
e de forma solidária com a pessoa jurídica, podendo a sociedade responsabilizar
o administrador pela falta cometida.
Veja-se que, para a superação da personalidade jurídica (art. 20 do CC) é
mister que haja caracterização de motivos de utilização fraudulenta da sociedade,
como entreposta pessoa para cobrir atos que, em verdade, aproveitam somente às
pessoas físicas, que se guardam por trás da proteção e anteparo da pessoa jurídica.
Assim, para aplicação da disregard doctrine é imprescindível a comprovação da
fraude. Entretanto, infelizmente, não é isso que vem ocorrendo na prática.
As decisões judiciais da atualidade têm aplicado a desconsideração da
personalidade jurídica como regra, e não como exceção. Dita transgressão pode
ser facilmente percebida se for feita uma pesquisa jurisprudencial nas áreas
trabalhista e tributária.
A responsabilidade dos administradores por créditos trabalhistas não tem
disciplina legal e a doutrina interpreta como sendo o caso de aplicação da teoria
da desconsideração da personalidade jurídica.
Sabe-se que imprescindível seria a apuração de utilização fraudulenta da
personalidade jurídica, que deveria ser devidamente comprovada em regular
processo de instrução, sob pena de violação do princípio do devido processo legal.
Mas, como dito, a forma mais comum utilizada hoje em dia, é a emissão
de bloqueio de valores no BACEN JUD199 na conta do administrador da pessoa
jurídica, sem ao menos existir uma audiência em que reste comprovado que o
mesmo agiu de forma indevida no uso dos seus poderes.
Aliás, a questão probatória, como dito, fica extremamente fragilizada
pois o administrador tem que se defender de algo que não sabe que fez.
Pois bem, a situação que ora se pretende abordar trata da questão da
responsabilidade do administrador, na esfera tributária.
Sabe-se que o sujeito passivo da obrigação principal se subdivide em
contribuinte e em responsável200.
O contribuinte é aquele que tem relação pessoal e direta com a situação
que constitui o respectivo fato gerador. Se não cumpre a obrigação tributária, o
contribuinte é o próprio responsabilizado pela conduta antijurídica que gerou a
sanção pelo inadimplemento.
O Bacen Jud é um instrumento de comunicação eletrônica entre o Poder Judiciário e
instituições financeiras bancárias, com intermediação, gestão técnica e serviço de suporte a cargo
do Banco Central. Por meio dele, os magistrados protocolizam ordens judiciais de requisição de
informações, bloqueio, desbloqueio e transferência de valores bloqueados, que serão transmitidas
às instituições bancárias para cumprimento e resposta. (BANCO CENTRAL DO BRASIL, s.d.).
200
Vide art. 121, parágrafo único, do CTN.
199
153
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Já o responsável, sem se revestir necessariamente na condição de
contribuinte, tem sua obrigação decorrente de disposição expressa de lei,
podendo lhe ser imponível a sanção.
Neste sentido, o art. 135 do Código Tributário Nacional (CTN) enumera
como pessoalmente responsáveis por obrigações tributárias praticadas com
excesso de poder ou ato infracional à lei, contrato social ou estatutos, os
mandatários, prepostos e empregados, e os diretores, gerentes ou representantes
de pessoas jurídicas de direito privado.
A responsabilidade pessoal exclui o contribuinte, incluindo na sujeição
passiva o terceiro pessoalmente responsável.
O que se torna discutível é exatamente essa responsabilidade pessoal
exclusiva das pessoas enumeradas e que, efetivamente, não tenham praticado
atos com excesso de poderes, que tenham sido praticados com infração da lei,
do contrato social ou dos estatutos.
Sem estes requisitos, reveladores de conduta ilegítima e muitas vezes
ilícita, não se pode invocar a responsabilização pessoal. Para sustentar tal
assertiva, é imprescindível estender o raciocínio para outro ponto conflitivo
em doutrina e jurisprudência, que diz respeito ao simples não-recolhimento do
tributo, se ele constitui infração da lei, levando à responsabilidade pessoal na
forma do art. 135 do CTN.
O não-cumprimento de obrigação tributária, por si, caracteriza ilícito
coibido pelos consectários da mora. Entretanto, não foi esse ilícito simples
o descrito pelo art. 135 do CTN. Trata-se, isto sim, do ilícito deliberado,
arquitetado, marcado pelo elemento subjetivo doloso que fundamenta a fraude
ou o excesso de poderes.
Ocorre que, tal como na esfera trabalhista, na prática, o nome do
administrador já é incluído na Certidão de Dívida Ativa como co-responsável, de
forma imediata, para, somente posteriormente, em fases processuais avançadas
haver a discussão se o mesmo agiu ou não como acima mencionado. Enquanto
isso, o nome do administrador fica completamente “sujo” no mercado, eis que,
sem Certidão Negativa, o que lhe impede de negociar em nome próprio.
Ao final desse raciocínio, conclui-se que o simples não-pagamento da
obrigação tributária por pessoa jurídica, tem consagrado a responsabilidade
ilimitada do administrador como regra e isso é simplesmente inadmissível.
De acordo com o ordenamento jurídico-tributário pátrio, a solidariedade
do administrador pela dívida da sociedade só se manifesta, todavia, quando
comprovado que, no exercício de sua função, praticou os atos elencados na
forma do art. 135, caput, do CTN.
Além disso, para que seja aplicado o princípio da responsabilidade
pessoal, mister se faz a efetiva comprovação da conduta dolosa de extrapolação
de poderes conferidos ou, então, de conduta fraudulenta.
154
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Percebe-se, do todo exposto, que não se trata aqui, de crítica aos
instrumentos normativos que regulamentam a matéria. Muito pelo contrário,
ditos artigos legais são expressos e taxativos quanto á responsabilização dos
administradores, sócios e pessoas jurídicas.
O que se pretende deixar claro é que na maior parte das vezes, não tem
existido por parte do Poder Judiciário o cumprimento eficiente de ditas normas
legais, de tal forma que, um processo precisa chegar ao Superior Tribunal de
Justiça, em sede de Recurso Especial para se ter uma decisão como a abaixo
transcrita, da lavra da Ministra Fátima Nancy Andrighi:
Os sócios da sociedade de responsabilidade por cotas não respondem
objetivamente pela dívida fiscal apurada em período contemporâneo a sua
gestão, pelo simples fato da sociedade não recolher a obrigação contento
o tributo devido, visto que, o não cumprimento da obrigação principal,
sem dolo ou fraude, apenas representa mora da empresa contribuinte e
não ‘infração legal’ deflagradora da responsabilidade pessoal e direta do
sócio da empresa. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2000, p. 235).
A ementa acima colacionada revela bem o que é a situação de um
administrador de uma sociedade empresária limitada.
Apesar de ter a lei, os artigos supra citados, e tudo mais a seu suposto
favor, o sujeito teve que ajuizar um procedimento em março de 1997, e até a
presente data, qual seja, 23 de janeiro de 2011, não há trânsito em julgado do
referido processo!
Ou seja, se trata de um administrador que, há 14 anos tenta se eximir
de uma responsabilidade que lhe fora imputada por inadimplemento de tributo
não pago pela sociedade empresária da qual faz parte, pelo simples fato de dela
fazer parte como administrador.
E infelizmente, esse é apenas um de milhares de casos que ocorrem
diuturnamente na prática empresarial, levando várias pessoas a colocarem a
figura tão importante da gestão da sociedade, muitas vezes em nome de outrem
(as clássicas figuras conhecidas vulgarmente como “laranjas”), com o temor da
solidariedade ilimitada que tem sido regra em patente confronto á lei.
Diante desta trágica realidade, fica então o questionamento: existiria
outro tipo societário, em que há limitação de responsabilidade que possa servir
como alternativa viável para dita situação?
A resposta leva ao estudo da figura do administrador na chamada
sociedade por ações, a qual será estudada apenas sob a forma fechada o que se
passa a fazer no item que se segue.
155
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
3. A ADMINISTRAÇÃO NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS FECHADAS
Nas sociedades por ações, a gestão da sociedade não fica a cargo somente
de uma pessoa eleita como administrador, como no caso das sociedades
empresárias limitadas. Os administradores não representam propriamente a
sociedade, pois dela são órgãos. A pessoa jurídica se faz presente através deles.
Uma de suas características é a estrutura complexa de atuação.
Funcionam também como órgãos de gestão, a assembléia geral, o
conselho de administração, a diretoria e o conselho fiscal, cada qual com sua
função e a sua importância. Nos dizeres de Rubens Requião:
Esse órgãos sociais, que integram a direção da sociedade anônima são
estruturados de forma democrática. Aliás, a coletividade de pessoas
que a sociedade envolve segue geralmente esse comportamento. Assim,
os órgãos sociais estão constituídos em três categorias: o órgão de
deliberação, que expressa a vontade da sociedade; o órgão de execução
que realiza a vontade social, e o órgão de controle, que fiscaliza a fiel
execução da vontade social. (REQUIÃO, 2003, v. 2, p. 166).
A assembléia geral é o órgão deliberativo máximo da estrutura da
sociedade anônima, que tem o poder de deliberar sobre qualquer assunto do
interesse social, inclusive discutir e votar201. A assembléia-geral, convocada e
instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os
negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar
convenientes à sua defesa e desenvolvimento.
A assembléia pode ser considerada o órgão de maior poder deliberativo na
companhia, é ele mesmo quem decidirá como será a formação deste conselho,
quem serão os seus integrantes, assim como, por conseqüência, é ele que detém
o poder de destituir estes membros.
Nos moldes do art. 138 da Lei nº 6.404/76, a figura da administração está
também a cargo do chamado conselho de administração que funciona como
fiscalizador e deliberativo, e poderá demandar acerca de qualquer assunto que
não seja de competência da assembléia geral. Dito conselho visa aprimorar
o processo de tomada de decisão, no interior da organização empresarial, e
por ser um órgão colegiado, suas deliberações somente terão eficácia se forem
ditadas por reunião devidamente convocadas e instaladas. Dita reunião resulta
na vontade do conselho de administração, embora haja o concurso de diversas
vontades de seus membros manifestadas através dos votos.
Art. 121, Lei nº 6.404/76.
201
156
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Observe-se, por este aspecto, que a medida que se analisa a figura da
sociedade por ações, verifica-se que o exercício da gestão empresarial é muito
mais pulverizado que na sociedade empresária limitada, e assim sendo, muito
mais difícil de ocorrer fraudes ou atitudes em desfavor do objeto social, eis
que, vários órgãos existem para corroborar com a eficiência do estatuto social.
Mesmo sendo um órgão facultativo nas sociedades fechadas, e obrigatório
nas abertas, o processo deliberativo do Conselho de Administração resguarda
melhor o interesse social, em comparação com o processo decisório individual
da diretoria. Denote-se que nas companhias fechadas, a facultatividade seria
justificada pela tendência à profissionalização da administração, que levaria
também a situar os controladores no Conselho de Administração, deixando aos
administradores profissionais de empresa o encargo de efetivamente geri-las.
Ainda quanto á gestão, a Sociedade por Ações conta com a chamada
Diretoria, órgão de representação legal da companhia e de execução das
deliberações da assembléia geral e do conselho de administração. Trata-se de
órgão executivo da companhia, composta por, no mínimo, duas pessoas, eleitas
pelo conselho de administração, ou, se este não existir, pela assembléia geral.
A Diretoria tem a função de gestão da empresa, e visa manifestar a vontade da
pessoa jurídica, na generalidade dos atos e negócios que ela pratica.
As decisões da Diretoria têm caráter individual, em regra, ao contrário
das do conselho de administração. Mesmo quando a decisão da diretoria sobre
determinadas matérias for tomada em reunião, não logra o órgão revestir-se
de caráter colegial. Apesar de a decisão ser coletiva, o poder de executá-la é
individual daquele que o estatuto, para tanto, designou.
Portanto, os diretores, sempre estarão dentro de suas funções de gestão e
representação da sociedade, no que o estatuto convier a cada um deles.
Ainda para estabelecer um controle e fiscalização sobre os atos praticados
pela administração das sociedades anônimas, existe o chamado conselho fiscal
que é o órgão fiscalizador da companhia. Ele assessora a assembléia geral na
apreciação das contas dos administradores e na votação das demonstrações
financeiras. A sua existência é obrigatória, e seu funcionamento é facultativo.
Observe-se que a sua principal função, como já demonstrado, é a de
fiscalizar a atividade desenvolvida pelos administradores que conduzem os
negócios sociais da companhia.
O Direito Societário comporta dois sistemas de administração da
Companhia, um unitário ou monista, e o outro bipartido ou dualista. Modesto
Carvalhosa descreve os termos como sistemas unitários ou bipartidos, no sentido
da administração ser concentrada em um único órgão, com característica principal
a nomeação direta de seus membros pela Assembléia Geral. Lado outro aduz
que o sistema bipartido, nos termos do sistema alemão, contempla o conselho
supervisor e a Diretoria, cujas atribuições, estrutura e sistema, derivam da lei.
157
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Com as seguintes características:
A administração é concentrada em um único órgão, tendo como principal
característica a nomeação direta de seus membros pela assembléia geral.
Acerca do sistema bipartido, descreve que ‘de acordo com o sistema
alemão, existem dois órgãos: o conselho supervisor (Aufsichtrat) e a
diretoria (Vorstand)’. Os membros daquele são eleitos pela assembléia
geral e os deste último pelo conselho supervisor. Esse conselho supervisor
constitui, com efeito, órgão de administração e não de fiscalização ou
de mero controle. Trata-se, portanto, de dois órgãos de administração,
necessários e permanentes, cujas atribuições, estrutura e composição
derivam da lei. (CARVALHOSA, 2003, v. 3, p. 342).
Vistos os órgãos gestores das sociedades anônimas, cumpre ainda
falar a respeito da figura dos administradores propriamente ditos, assim
considerados aqueles que conduzem a sociedade para que se produza o
objetivo proposto pelo estatuto.
O administrador estará devidamente habilitado para as atividades
de administração da Companhia após a sua investidura, que se realiza
com a assinatura no livro ata do conselho de administração ou da diretoria,
caracterizado pelo Termo de Posse, de acordo com artigo 149, da Lei das
Sociedades Anônimas (LSA). Ainda, a Companhia dispõe da faculdade, através
de seu estatuto, de estabelecer que o cargo de administrador deva ser garantido
por penhor de ações da companhia ou outra garantia, precavendo, assim, uma
maior segurança em sua administração. Também esclarece que esta garantia
somente será liberada após a aprovação das últimas contas apresentadas pelo
administrador que houver deixado o cargo (artigo 148, § único, LSA).
Conforme se pode verificar, as sociedades resguardam um maior grau de
zelo à sua administração, como descrito acima. E assim o sendo, cada vez menor
é o risco de confusão patrimonial entre a figura da pessoa física do administrador
e do patrimônio da pessoa jurídica, ao contrário do que ocorre nas limitadas.
Lado outro, tal como nas limitadas, o administrador da sociedade responde
pelos danos causados acaso infrinja os deveres da diligência, da lealdade e o de
informar, nos moldes do artigo 153 da Lei nº 6.404/76.
É de se ressaltar que há diversas teorias que suscitam a relação da pessoa
do administrador aos órgãos de gestão. A teoria que por muito tempo vigorou
entre as sociedades refere-se à contratualista, que enxergava na relação entre
o administrador e a sociedade, um vínculo contratual, caracterizado pelo
contrato de mandato, que tornava efetivos as funções de gestão e o poder de
representação da sociedade.
158
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Por este raciocínio, os poderes dos administradores seriam delegados e
não próprios, não respondendo o mesmo por seus atos, eis que, agindo estaria
de acordo com a vontade dos acionistas.
Por esta razão, várias são as críticas á este respeito, dentre elas, a de que,
não tendo a assembléia geral os poderes de gestão e de representação, próprios
dos administradores, não se pode falar em mandato, na medida em que não
pode haver mandatários com mais poderes que o mandante.
Ademais, o mandato exige dois sujeitos, o que tecnicamente não se
verifica na pessoa jurídica.
Outra teoria, a qual é adotada pelo Direito brasileiro, é a orgânica ou
teoria do órgão, que tem em seu fundamento a figura do gestor de sociedade
anônima como titular de uma posição orgânica e criou a noção do dever de
diligência, próprio de um dirigente de empresa ordenado e consciencioso, pois
a responsabilidade deste decorre da lei, e não da Assembléia Geral.
Assim, em contraste com a teoria contratualista, esta transporta a
responsabilidade dos administradores de companhias do campo do inadimplemento
contratual para o âmbito dos ilícitos civis. Modesto Carvalhosa, sobre o tema, entende
que os órgãos são juridicamente irresponsáveis, Para ele, há uma dualidade entre o
órgão e seus titulares, pessoas físicas. No âmbito privado, os órgãos – diretoria e
conselho de administração – são aparelhos da companhia, não tendo com ela nenhuma
relação jurídica, sendo, portanto, irresponsáveis perante terceiros. Já os titulares –
conselheiros e diretores – teriam relação jurídica com a companhia, em termos de
nomeação, destituição, deveres e responsabilidades, respondendo perante ela não
só pela má gestão, mas também pelo eventual aproveitamento das suas funções em
benefício próprio (arts. 154, 155 e 156). Tendo em vista essa dualidade entre o órgão
e seus titulares, tanto na organização dos aparelhos do Estado como na das sociedades
anônimas, referido autor não admite que o administrador seja o próprio órgão.
Modesto Carvalhosa sobre o tema, assim dispõe:
Já que fundada na organização dos aparelhos do Estado, cabe lembrar
que, na esfera pública, inexiste relação intersubjetiva entre o determinado
poder e seus órgãos. Ademais, os órgãos são juridicamente irresponsáveis,
respondendo a pessoa jurídica de direito público perante terceiros.
Não obstante, os titulares dos órgãos governamentais são responsáveis
perante a pessoa jurídica de direito público. Tem o titular do respectivo
cargo deveres e responsabilidades pessoais, não só de caráter funcional,
como também patrimonial, na condução dos negócios públicos sob sua
responsabilidade. Há, conseqüentemente, uma dualidade entre o órgão e
seus titulares, pessoas físicas. No âmbito privado, os órgãos – diretoria
e conselho de administração – são aparelhos da companhia, não tendo
159
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
com ela nenhuma relação jurídica, sendo, portanto, irresponsáveis
perante terceiros. Já os titulares – conselheiros e diretores – têm relação
jurídica com a companhia, em termos de nomeação, destituição, deveres
e responsabilidades, respondendo perante ela não só pela má gestão, mas
também pelo eventual aproveitamento das suas funções em benefício
próprio (arts. 154, 155 e 156). Tendo em vista essa dualidade entre o
órgão e seus titulares, tanto na organização dos aparelhos do Estado como
na das sociedades anônimas, não se pode admitir seja o administrador o
próprio órgão. (CARVALHOSA, 2003, v. 3, p. 365).
Assim, todos os administradores, tanto conselheiros como diretores,
possuem deveres e responsabilidades de caráter orgânico, os quais respondem,
tanto individualmente quanto solidariamente, por danos ocasionados por seus
atos, porém sob uma esfera muito mais pulverizada e definida, que, de certa
forma colaboram para trazer maior segurança jurídica áqueles que optem
exercer a administração societária.
Os atos dos administradores são principiologicamente regulados pelo art.
153 da Lei nº 6.404/76, que dispõe o dever de lealdade, “cuidado e diligência
que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos
seus próprios negócios”, gerindo a empresa de acordo com os interesses dos
acionistas (art. 154 da LSA).
Via de regra, o administrador não tem responsabilidade pessoal pelas obrigações
que contrair em nome da sociedade de capital e em decorrência de regulares atos de
gestão empresarial (art. 158, da LSA). A exceção desta regra é a responsabilidade
civil pessoal do administrador quando atuar, dentro de suas atribuições ou poderes,
com culpa ou dolo; com violação da lei ou do estatuto, tratando-se também de
responsabilidade subjetiva, conforme entende majoritária doutrina.
Patente que há a necessidade de descumprimento de dever legal para
a responsabilização do administrador, bastando que haja a ocorrência fática
de uma conduta ilícita, com liame de causalidade com o dano conseqüente,
qualificada pelo elemento subjetivo (dolo ou culpa).
Realizado o ato danoso, delibera-se em Assembléia Geral a substituição
do administrador responsável pelo ato, bem como a adoção das medidas
necessárias para ação de reparação de danos.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS COM BASE NA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO
Explanadas as hipóteses de gestão em um e outro tipo societário, ambos
de responsabilidade limitada, fica então a indagação: onde se encaixa a analise
econômica como referencial teórico tido como método para o presente artigo?
160
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A consideração de que os agentes econômicos agem de forma racional é
pressuposto da analise econômica do direito para se entender que reagem a incentivos
e condições proibitivas. A celebração de um contrato entre empresários visa a limitação
de liberdade do outro em um verdadeiro jogo de cooperação, eis que, agindo de forma
isolada, os resultados não seriam maximizados da mesma forma.
A questão da escolha racional dos agentes em busca da melhor alocação
dos recursos, a eficiência, as falhas do mercado, externalidades e custos de
transação não podem ser omitidos quando se opta por analisar vantagens e
desvantagens de um tipo societário.
Sob dita ótica, várias são as hipóteses que alçam resultados importantes,
senão de ver-se.
A escolha racional pressupõe ofertas concomitantes em que o agente
agirá racionalmente para saber comparar e decidir sobre as mesmas. Quando o
agente escolhe de forma racional o faz com o padrão das informações que tem,
ou da forma que as analisa. Neste sentido, afirmam:
Para que o individuo escolha de forma racional basta que saiba ordenar o que
lhe é mais interessante, mais útil. Não há necessidade de saber quantificar o
quanto lhe é mais útil algo em relação á outra alternativa. Por uma questão
lógica, a escolha racional é subjetiva, ou seja, depende dos padrões e desejos
de quem escolhe, não sendo possível eleger uma escala do que é mais útil
de forma universal, para todos os agentes, sendo aferíveis as preferências do
grupo pela analise da demanda por um bem de acordo com a variação do seu
preço. (RIBEIRO; GALESKI JUNIOR, 2009, p. 85).
O presente artigo retrata a realidade empresarial de dois tipos societários
de responsabilidade limitada, os mais utilizados pela grande maioria dos
empresários, diga-se de passagem, quais sejam, a sociedade empresaria limitada
e a sociedade por ações.
E qual seria então o melhor tipo societário? Para uma atenta análise
racional, foi necessário avaliar as questões da limitação da responsabilidade.
Conforme se pode observar o direito brasileiro atravessa hoje o que se
pode chamar de crise da limitação de responsabilidade.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica surgiu como um meio
de supressão de custos sociais eventualmente externalizados e não compensáveis,
hipótese de ineficiência, por meio de imputação de responsabilidade aos sócios.
Neste sentido, afirma Walfrido Jorge Warde Júnior em sua obra:
A despersonificação pontual de sociedade mostra, em conseqüência,
uma técnica pouco adequada à imputação de responsabilidade. Essa
161
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
deficiência evidencia-se não só por uma inviabilidade lógica, mas também
pela extrema subjetividade de seus critérios, que tornam difícil, (senão
impossível), a prova e equânime aplicação das regras de julgamento,
determinando, por vezes, uma aleatória e injustificada atribuição de
personalidade. (Warde Júnior, 2007, p. 164).
A diminuição de riscos empresariais e de custos de capital é objetivo
concreto de qualquer empresário e a limitação da responsabilidade sempre
buscou promover isso.
Porém, incentivadas pela limitação muitas sociedades foram conduzidas a
atividades arriscadas ou simplesmente ao descumprimento do direito de credito,
demonstrando, de forma clara a incapacidade da limitação de preservar suas
funções modulares. E essa postura tem levado os tribunais a aplicar o conceito
de desconsideração da personalidade, quase de forma automática nas sociedades
empresárias limitadas, principalmente, como dito, na esfera tributária.
Conforme se pode observar no presente artigo, as sociedades empresárias
limitadas atualmente têm sofrido do que se pode convencionar como sendo
ineficiência para sustentar a manutenção da responsabilidade dos sócios como
regra geral. Sobre tal aspecto, interessante o posicionamento de Márcio Tadeu
Guimarães Nunes:
Deve-se ter em mente um efeito colateral da questão: para além do
aumento da indústria dos seguros especiais destinados a cobertura dos
administradores, essa modalidade não garante os riscos que os gestores
podem vir a enfrentar durante um incidente de desconsideração da
personalidade jurídica de sociedades por ele administradas. Isto porque
não há seguro que cubra o custo de um longo processo que envolva a
discussão da matéria em debate, tampouco os danos prévios que o
patrimônio do administrador poderá suportar. (NUNES, 2010, p. 359).
Ou seja, o suporte fático do poder de controle das sociedades é subsidio
importante para se demonstrar a ineficiência da limitação da responsabilidade nas
sociedades empresárias limitadas para a proteção do patrimônio pessoal do sócio.
Lado outro, foi evidenciada a gestão nas sociedades por ações, a qual
se demonstra um complexo mais estruturado, que fundamenta regras especiais
de responsabilização, previstas na Lei nº 6.404/76, que sobrepõem-se à norma
geral do art. 50 do Código Civil.
A análise econômica do direito, enquanto ferramenta interdisciplinar,
apresenta conceitos interessantes para que se tenha em mente, qual tipo societário
pode ser o mais interessante no sentido de proporcionar ao empreendedor
proteção patrimonial.
162
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
É inegável a importância das sociedades limitadas no Brasil, bem como,
a preferência dos empresários por sua forma. Porém, o hoje tão empregado
instituto, que resultou de uma preocupação eminentemente econômica de
estabelecer incentivos para os pequenos e médios empreendedores, não se
configura mais tão seguro, quanto o fora em sua origem. Eduardo Goulart
Pimenta, assim aduz em artigo sobre o tema:
Já salientamos que a sociedade limitada é a combinação ordenada
de características da sociedade anônima e das sociedades com
responsabilidade ilimitada para os sócios. Da sociedade anônima se
extraiu, em essência, a limitação da responsabilidade dos sócios pelos
débitos da pessoa jurídica. Esta limitação é o principal incentivo
econômico àqueles que pretendem empreender juntos, uma vez que
permite afastar seu patrimônio pessoal do risco de empreendimento.
(PIMENTA, 2008, p. 260).
Conforme demonstrado supra, hoje em dia, constata-se uma verdadeira
crise na limitação da responsabilidade. A falta de um controle mais efetivo
sobre a manutenção e formação do capital social vem banalizando o instituto, o
que tem levado aos aplicadores da lei a relativizar o preceito da separação entre
patrimônio dos sócios e dívidas das sociedades.
Não se está com isso querendo dizer que o Poder Judiciário, ao final,
não aplique da forma correta os subsídios legais e fáticos aos casos concretos.
Porém, os custos de transação de um litígio, para se demonstrar a não atuação
fraudulenta de um administrador, por exemplo, ao não efetuar o pagamento
de um tributo em sua gestão, é um incentivo á não contratação sob dita forma
societária. Alexandre Bueno Cateb, assim corrobora sobre o tema:
Se para a empresa a busca pelo lucro é uma das principais razoes de
sua existência, também para o investidor o retorno do investimento, na
forma de participação em lucros maiores, justifica e incentiva a criação
e aplicação da lei de forma mais eficiente, economicamente considerada.
Trata-se da utilização da chamada teoria dos custos de transação, conceito
fundamental da chamada Teoria Neo-Institucionalista, na idealização
e aplicação da lei. Custos de transação são os custos de realização e
cumprimento de transações ou trocas de titularidade. Ou seja, na realização
de qualquer negócio jurídico, os agentes considerarão os custos embutidos
naquele negócio para parametrizar suas ações em busca de um melhor e
mais eficiente resultado econômico. (CATEB, 2008, p. 265).
163
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Apartadas as sociedades de responsabilidade ilimitada, ficam aos sócios
as alternativas da sociedade anônima e da sociedade limitada. Estes tipos
guardam inúmeras distinções em sua estrutura e disciplina legal, as quais foram
demonstradas neste artigo sobre o critério da gestão empresarial.
Dentre eles, restou comprovado que a gestão empresarial das sociedades
limitadas em virtude da crise da limitação da responsabilidade está hoje mais
fragilizada. Assim, um administrador de uma sociedade empresária pode ter que
arcar com valores altos para comprovar o que está previsto em lei, mostrando
uma fragilidade que demanda altos custos de transação.
E, assim o sendo, sob o tópico da gestão, conclui-se por ora, que a Sociedade
por Ações parece ser um exemplo melhor de situação em que os partícipes de um
mesmo ato têm na mútua colaboração a melhor escolha para a maximização de
seus próprios interesses, sendo, portanto, o tipo societário economicamente mais
interessante para resguardar um empreendedor na atualidade.
164
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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168
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
III - Negócios Jurídicos, atuação empresarial e a necessidade de
compatibilizar a autonomia da vontade e a intervenção estatal
A SIMULAÇÃO COMO VÍCIO DO NEGÓCIO JURÍDICO NOS CONTRATOS
DE SOCIEDADE
THE SIMULATION AS DEFECT OF JURIDICAL INSTITUTE CALLED SOCIETY
CONTRACTS
Gustavo Henrique de Almeida
Mestre em Direito Empresarial
Mário César Hamdan Gontijo
Mestre em Direito Empresarial
RESUMO
Trata-se de estudo relativo à função social do contrato de sociedade
empresária. O trabalho tem como escopo a análise da autonomia privada e seus
reflexos na elaboração de um contrato social e a função social deste instituto, tanto
no seu aspecto intrínseco quanto extrínseco. Ademais, o estudo aborda práticas
que desvirtuam do aludido princípio e propõe-se uma reflexão sobre a finalidade
do contrato social. O objetivo deste estudo é constatar o limite à autonomia privada
em relação ao contrato social e analisar a validade de um contrato social que
possui dois sócios, sendo que um deles figura como parte apenas para possibilitar
a limitação da responsabilidade. A abordagem possui um viés eminentemente
constitucional. Nesse sentido, são conjugados interesses individuais e coletivos,
analisando a prevalência de um sobre o outro em caso de conflito.
Palavras-Chave: Autonomia privada e o contrato. Contrato social. Função social
do contrato de sociedade empresária.
ABSTRACT
It is a study about the social function of enterprise contract. The article
aims to analyze the private autonomy and all reflects on a social contracting
creation, besides the social function of the institute and its internal and external
aspects. Furthermore, the study focuses the practices that changes mentioned
principle and proposes a reflection the about the goals of the enterprise contract.
169
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
The aim of this study is to find the limit of private autonomy in relation to
the social contract and review the validity of a social contract that has two
members, one of which is party of it to just allow the limitation of liability. The
approach is eminently constitutional. In this sense, are combined individual and
collective interests, analyzing the prevalence of one interest over the other just
in case of conflict.
Keywords: Private autonomy and contract. Social contract. Social function of
enterprise contract.
1. INTRODUÇÃO
O direito permite aos cidadãos o entabulamento de pactos mediante o
respeito às normas postas, considerando que o particular o faça pautando-se
pela autornomia privada. Exatamente essa permissão do direito se constitui
portas abertas para o exercício dessa autonomia.
Em que pese o particular estar dotado da capacidade de regular suas
relações privadas, deve ele o fazer pautando-se pelas regras e princípios
jurídicos. Nesse sentido, impera a necessidade de se respeitar a coletividade.
No âmbito do Direito Empresarial, o contrato de sociedade, que tem
como uma de suas finalidades a regulação da vida privada dos sócios e da
sociedade empresária, reflete na esfera jurídica de terceiros. Nesse sentido,
o pacto inicialmente de reflexos na vida dos particulares amplia seu raio de
abrangência para o coletivo.
Nesse sentido, o tema da presente pesquisa se situa no campo do Direito
Empresarial com interfaces em relação ao Direito Contratual, consistindo o
tema central no estudo da validade do contrato de sociedade quando não há,
efetivamente, affectio societatis, entre os sócios em uma sociedade de pessoas.
Sendo assim, o problema de pesquisa consiste em saber se é possível
desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade de pessoas na qual
não está presente a affectio societatis. Constitui objetivo do presente trabalho
a decomposição do instituto jurídico contrato de sociedade, analisando quais
seriam os seus limites.
A justificativa se ampara na necessidade de se compreender juridicamente
a validade de contratos nos quais figuram sócios que não estão efetivamente
contribuindo com a socieade, mas, figuram como sócios apenas para dotar os
demais do benefício da responsabilidade limitada.
No que toca ao tipo de método científico, utiliza-se na pesquisa o método
jurídico-descritivo, pelo qual se procede ao cotejo e à decomposição do problema
jurídico apresentado em seus diversos níveis, além de se utilizar o método
170
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
jurídico-propositivo, por meio do qual se proporá uma nova metodologia de
realização do direito empresarial.
No capítulo segundo é analisada a autonomia privada e os seus limites
ao se contratar sociedade. Isto é, alguns princípios, como o da função social
do contratao, equivalem a um limite à liberdade de contratar conferida pela
autonomia privada, questão analisada de forma detida neste capítulo.
Diante disso, o contrato social, especialmente o da sociedade empresária,
deve respeitar regras e os princípios jurídicos que resguardam a coletividade,
mister pela necessidade de se pautar pelo modelo constitucional de prevalência
do coletivo sobre o individual.
O capítulo terceiro aborda a temática específica do modelo constitucional
em relação às relações contratuais, nas quais se percebe uma prevalência do
coletivo sobre o individual. Tal premissa fica evidente quando individuos que
contratam sociedade devem observar a ordem jurídica de terceiros, como se
expõe no capítulo em questão.
No capítulo quarto, o estudo aborda a ausência da affectio societatis
como causa da nulidade do contrato de sociedade, posto que lhe faltaria um
requisito, o vínculo real entre os sócios. Neste capítulo o problema de pesquisa
é concisamente analisado, sendo verificado que se a sociedade de pessoas é
o tipo de sociedade que pressupõe um elo entre os sócios, do qual se parte
para constituir e manter a união entre tais sócios, ausente tal vínculo, seja na
constituição ou na continuação da sociedade, um dos pressupostos para esse
tipo societário não está presente.
Segue-se ao capítulo quarto a conclusão na qual os fatores alinhavados no
relatório da pesquisa são conjugados e por meio do método jurídico-propositivo
chega-se à formular soluções concretas.
2.A AUTONOMIA PRIVADA E O CONTRATO
2.1 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E O PRESSUPOSTO DA AUTONOMIA
A dogmática jurídica contemporânea concebe os homens como livres,
iguais, sujeito de direitos e dotados de capacidade para exercê-los em sua
plenitude, na medida em que o ordenamento jurídico lhe permita ou não vede tal
exercício. Tais dogmas foram assumidos como ideários da Revolução Francesa
e consubstanciados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em
1789, no artigo 1º ao declarar, ab initio, que os homens nascem e são livres,
além de serem iguais em direitos. Ainda, no artigo 5º, ao afirmar que tudo que
não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a
fazer o que ela não ordene.
171
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Todos os postulados de liberdade e igualdade surgidos ou potencializados
pela Revolução Francesa refletiram significativamente no mundo ocidental e nos
ordenamentos jurídicos que foram influenciados pelos ideais que conduziram a
tomada da Bastilha. Depois dos citados momentos históricos, os ordenamentos
de diversos Estados incorporaram os ideários da liberdade e da igualdade. A
própria Constituição Francesa de 1791 trouxe declarações que faziam expressa
alusão aos sentimentos libertários e igualitários percebidos pela sociedade
francesa nos quais a Revolução se fundou.
Marco histórico para humanidade, referida Revolução e os acontecimentos
que lhes são conexos representam uma ruptura com os padrões feudais de uma
sociedade estamental, ao passo que subsidiaram o florescimento de novos
paradigmas, os quais propiciaram, ainda que do ponto de vista formal, a
igualdade entres os cidadãos e a liberdade, inclusive para contratar. Firmouse, também, o direito de propriedade, que foi erigido à categoria de atributo da
pessoa, como uma faculdade e um poder individual, ao ponto da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu artigo 17º, mencionar que,
como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser
privado, exceto quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir
e mediante condição de justa e prévia indenização.
Nesse contexto histórico, o contrato revela-se como instituto jurídico de
suma importância, na medida em que o pleno exercício do direito de propriedade
e a manifestação da liberdade passa pela possibilidade de contratar. Vivia-se,
naquele período, sob a égide do Estado Liberal marcado pelo laissez-faire. A
liberdade de contratar, portanto, surgiu como uma manifestação da autonomia
privada, na medida em que, segundo Karl Larenz:
[...] o indivíduo só pode existir socialmente como personalidade quando
lhe seja reconhecida pelos outros não apenas a sua esfera de propriedade,
mas também quando, além disso, possa em princípio regular por si mesmo
as suas questões pessoais e, na medida em que com isso seja afetada
outra pessoa, possa regulamentar as suas relações com ela com caráter
juridicamente obrigatório mediante acordo livremente estabelecido [...]
(LARENZ apud RIBAS, 2009).
A autonomia privada consiste na possibilidade das pessoas regularem suas
relações de natureza eminentemente privada, cuja força vinculante e obrigatória
que as compele a proceder conforme por elas regulado, entre elas se torna norma
jurídica por livre manifestação da vontade individual. Tal manifestação só é
possível por haver autonomia dos entes privados para regularem suas relações
jurídicas pessoais permitidas pelo ordenamento. Nesse sentido, Ricardo Luis
172
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Lorenzetti afirma que a autonomia privada é reconhecida pela ordem jurídica
como “[...] la fuente de las obligaciones [...]” (LORENZETTI, 1999, p. 19).
Por sua vez, a força obrigatória dos contratos encontra fundamento na
autonomia da vontade. O contrato, portanto, é um instrumento dessa autonomia
na medida em que esta por aquele se manifesta e se realiza.
Em que pese a concepção de contrato como instrumento da autonomia
da vontade e realização desta ter surgido no limiar da Revolução Francesa e se
desenvolvido a partir da permissão constitucional daquele país, além das previsões
do Código Napoleônico com base na idéia de liberdade, foi a propriedade que
deu novos contornos à concepção de contrato como livre manifestação de
vontade. O próprio Código Civil Francês de 1804 dispunha sobre contratos
em seu livro destinado aos modos pelos quais se adquire a propriedade. Nesse
sentido, Messineo afirma que o contrato “[...] es un reflejo de la institución de la
propriedad privada. Ella es el vehiculo de la circulación de la riqueza, en cuanto
se admita una riqueza (esto es, una propriedad) privada [...]” (RIBAS, 2009).
O direito de propriedade, ao ser exercido, demanda a utilização do
contrato para, pelo arbítrio da vontade das partes, transigirem sobre os direitos
inerentes à propriedade. Sendo esta o objeto do contrato, este instituto viabiliza
a plena disposição pelo proprietário dos seus direitos.
O Estado Liberal garantiu aos particulares a regulação de suas esferas
privadas com base na autonomia e na liberdade de contratar, que aparenta trazer
consigo apenas interesses privados, em verdade, reflete um viés dos interesses
públicos, uma vez que a garantia da manifestação dos interesses particulares
representa interesse comum.
A permissão para que todos pudessem contratar segundo sua autonomia
privada seria um dever do Estado que, ao garantir o direito de liberdade e
de propriedade, possibilitaria a cada um lograr a felicidade individual, o que
representaria a felicidade de todos particularmente e, consequentemente, a
finalidade do Estado.
Contudo, a ideia de que a somatória dos interesses privados garantidos pela
liberdade e pela autonomia privada representaria o interesse público esbarrou em
dilemas da práxis que o Estado Liberal não estava preparado para enfrentar. O
desequilíbrio nas relações privadas promovidos pela prevalência da parte melhor
aparelhada social, econômica e culturalmente, consiste e elemento passível de
tornar uma relação contratual também desequilibrada e, consequentemente,
socialmente desinteressante. Portanto, a liberdade de contratar e a autonomia
privada, por si só, não seriam suficientes para garantir que interesses privados
estariam sendo velados pelo Estado, tampouco os interesses públicos, pois nem
sempre o interesse público coincide com a mera somatória dos interesses privados
realizados, podendo, inclusive, contrapor-se a eles.
173
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Em virtude das pressões sociais e ideológicas, sobretudo do marxismo,
o Estado Liberal se transformou no Estado social. Isso porque o liberalismo
favorecia os capitalistas, enquanto uma massa social não gozava de acesso ao
mínimo existencial. Assim, o Estado Social surge no século XX como resposta
à miséria e a exploração de grande parte da população.
O Estado Social representou uma transformação superestrutural do
Estado liberal com a finalidade de superar a contradição entre a igualdade formal
e a desigualdade social. O liberalismo não solucionava as contradições sociais,
mormente das pessoas à margem da vida econômica, desapossadas de quase
todos os bens. Em virtude disso, passou o Estado a atuar garantindo direitos
relativos ao trabalho, à previdência, à educação, intervindo na economia,
regulando o salário, a moeda e os preços e combatendo o desemprego.
O intervencionismo estatal sobre a vida privada também teve os seus
reflexos na esfera dos contratos, o que evidenciou a necessidade de se equilibrar,
além de regulamentar as relações contratuais, traçando regras gerais. Dentre as
causas do intervencionismo estatal, pode-se elencar a primazia do social sobre
o individual, os efeitos maléficos da acumulação e concentração de capitais, a
desigualdade entre os contratantes e a necessidade de proteger os indivíduos
da tirania das sociedades. Logo, o Estado passou a intervir na economia para
promover a justiça social, restando evidenciada a sobreposição dos interesses
sociais sobre os individuais, tão tutelados pelo Estado Liberal.
A evolução do Estado Social culminou com o surgimento do Estado
democrático de direito, o qual designa qualquer Estado que se aplica a garantir
o respeito das liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas
liberdades fundamentais por meio do estabelecimento de uma proteção jurídica.
O Estado democrático de direito não suprimiu o Estado Social, mas sim
alargou o espectro de tutela de direitos e garantias fundamentais. Em razão
disso, a prevalência dos interesses sociais sobre os individuais é abraçado pelo
Estado democrático de direito. Sendo assim, pode o Estado intervir nas relações
privadas regulando e corrigindo distorções, inclusive no âmbito contratual.
O soerguimento do Estado democrático de direito sobre as bases do
Estado social permitiu a construção de um direito dotado de caráter social,
cujo objetivo centrou-se na coletividade, no intuito de se estabelecer o
equilíbrio e a harmonia, corrigindo distorções históricas promovidas,
especialmente, pelo Estado Liberal.
Na medida em que o Estado adotou uma postura intervencionista, os
direitos passaram a ter uma função marcadamente social. Os espaços para a
individualidade foram se tornando cada vez mais limitados, pois o coletivo se
sobrepôs ao individual. Nenhum direito pode, hipoteticamente, ser exercido em
prejuízo do social beneficiando apenas o titular individualmente.
174
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O exercício do direito de contratar foi frontalmente atingido pelo
paradigma da função social dos direitos. A liberdade de contratar, portanto,
deve ser plena até o limite da sua função social, pois não se pode conceber
um contrato “[...] com acentuado potencial econômico ou financeiro, se, em
contrapartida, nos depararmos com um impacto negativo ou desvalioso no
campo social” (GAGLIANO, 2005, p. 49).
Nesse sentido, um contrato não pode ser concebido levando-se em conta
apenas os objetivos buscados pelos contratantes, pois se torna necessário,
sobretudo, analisar a repercussão social que dele possa resultar. Isso implica
dizer que o contrato como instrumento particular não pode ser ajustado aos
interesses exclusivos dos contratantes, desprezando a interferência que talvez
possa provocar na esfera jurídica de terceiros, ou de toda uma coletividade.
A função social do contrato deve ser entendida como uma cláusula geral
que rege toda a relação contratual antes, durante e depois da sua execução.
Deve, ainda, ser concebida como um princípio, que orienta o sistema jurídico
no âmbito das relações contratuais.
Na medida em que a propriedade como objeto contratual foi perdendo
o seu caráter puramente privado, estava evidenciando, também, que “[...] o
contrato naturalmente experimentaria o mesmo fenômeno [...]” (GAGLIANO,
2005, p. 49). No mesmo sentido, Hironaka sustenta que deve se “[...] subordinar
a propriedade privada aos interesses sociais, através desta idéia-princípio, a um
só tempo antiga e atual, denominada ‘doutrina da função social’” (2000, p. 105).
Admitir esses preceitos significa dizer que, no campo da propriedade,
assim como dos contratos, houve uma evolução e uma consequente superação
do modelo oitocentista migrando-se para um estado de preocupação com
a repercussão social dos direitos. A tutela da propriedade e do contrato deve
ocorrer na exata medida em que o exercício desses direitos não repercuta
maleficamente entre as partes que deles se valem, ou mesmo para sociedade.
A função social dos contratos, entretanto, possui um conceito aberto e
indeterminado, razão pela qual delimitá-lo abstratamente beira o impossível.
No intuito de traçar linhas mestras na compreensão desse instituto, Paulo Nalin
apud Theodoro Júnior (2003, p. 43), sustenta que a função social dos contratos
possui dois níveis, o intrínseco e o extrínseco.
O nível intrínseco refere-se ao dever que os contratantes guardam em
relação ao respeito, à boa-fé objetiva e à lealdade negocial, observando, ainda a
equivalência material entre as partes.
Por sua vez, o nível extrínseco relaciona-se aos terceiros, à coletividade
externa ao âmbito contratual. Nesse sentido, segundo a função social do contrato,
jamais poderá ocorrer hipótese em que os interesses contratuais puramente
privados se sobreponham aos interesses externos e coletivos.
175
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Depreende-se da lição trazida a lume por Nalin, os deveres acessórios
e conexos ao contrato, em uma clara superação do caráter individualista de
outrora, ressaltando-se os aspectos da ética e da lealdade evidenciados pelos
deveres de informação, confidencialidade, assistência e lealdade, dentre outros.
A preocupação com as repercussões do contrato revelam a importância
desse instituto para a sociedade, especialmente porque ele constitui um
instrumento de circulação de riquezas e pode conduzir, por isso mesmo, ao
desenvolvimento social. Em virtude disso, modelar o desenvolvimento social
por meio dos contratos requer a intervenção do Estado, sobretudo para garantir
a esse instrumento a eficácia da sua finalidade.
A intervenção, contudo, não significa extinguir a autonomia privada ou o
princípio do pacta sunt servanda. O que ocorre é uma mitigação dos aludidos
princípios a fim de torná-los adequados à nova realidade social e jurídica do
Estado Democrático de Direito. Trata-se, portanto, de corrigir distorções sociais
históricas e humanizar o conceito de contrato.
3. MODELO CONSTITUCIONAL
3.1 PREVALÊNCIA DO SOCIAL SOBRE O INDIVIDUAL
A constituição brasileira inaugurou uma nova era em relação à amplitude
dos direitos sociais em nosso país. Atendendo ao clamor social que cresceu e
tomou forma no fim dos anos 70, a constituinte elaborou e promulgou em 1988
aquela que se tornaria a nossa norma fundamental, a qual foi recebida pela
sociedade com a expectativa daqueles que almejavam a garantia das liberdades.
Dentre os vários matizes da liberdade constitucionalmente garantida,
encontramos a contratual, que se traduz na liberdade para contratar ou não e, ao
contratar, o modo como fazê-lo.
A Carta Magna concede a máxima liberdade contratual no âmbito das
relações privadas, mas sobrepõem os interesses coletivos aos individuais.
Isso ocorre na medida em que aos contratantes não basta a satisfação das suas
vontades particulares, mas também a observância dos aspectos sociais da
contratação, sejam eles diretos ou indiretos. Por esta razão, o poder constituinte
fez constar do texto constitucional, em seu art. 5º, incisos XXII e XXIII, que a
propriedade atenderá a sua função social.
Ao exigir que o direito de propriedade atenda à sua função social,
a constituição exige o mesmo do contrato, pois o exercício do direito de
propriedade se perfaz, necessariamente, pelo contrato, com leciona Miguel
Reale, sobre a função social deste instituto:
176
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Um dos motivos determinantes desse mandamento resulta da Constituição
de 1988, a qual, nos incisos XXII e XXIII do Art. 5º, salvaguarda o direito
de propriedade que “atenderá a sua função social”. Ora, a realização
da função social da propriedade somente se dará se igual princípio for
estendido aos contratos, cuja conclusão e exercício não interessa somente
às partes contratantes, mas a toda a coletividade. (REALE, 2003)
Tais previsões de Direito Constitucional evidenciam a constitucionalização
do Direito Privado, o que curva este à orientação principiológica daquele. Se o
nosso modelo constitucional adota a prevalência do social sobre o individual,
como podemos depreender dos dispositivos já citados, assim com dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil de construir uma sociedade
livre, justa e solidária, que possa garantir o desenvolvimento nacional, erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais,
também o contrato deve atender a sua função social, “[...] a fim de que ele seja
concluído em benefício dos contratantes sem conflito com o interesse público”
(REALE, 2003).
3.2 O CONTRATO DE SOCIEDADE
O desenvolvimento da atividade empresária pode suceder de forma
individual ou coletiva. A primeira ocorre quando uma pessoa natural, em
nome próprio exerce a empresa, denominando-se empresário individual. A
segunda forma, a coletiva, se reveste de uma roupagem jurídica denominada de
sociedade empresária.
A atividade empresária individual se apresenta mais adequada a
pequenos empreendimentos, o que não impede, todavia, de que os grandes
sejam conduzidos por empresários individuais. Contudo, em razão de algumas
vantagens conferidas às sociedades, tais como a limitação da responsabilidade
dos sócios, a distinção da personalidade, dentre outros fatores, o exercício
da atividade empresarial de forma coletiva se apresenta relativamente mais
favorável aos que pretendem empreender.
O ordenamento jurídico brasileiro disponibiliza algumas formatações
sociais aos cidadãos, de modo que se possa escolher aquela que mais se ajusta
ao tipo de empreendimento e ao vínculo que entre os prováveis sócios possa
existir. Cada sociedade revela suas peculiaridades, cuja escolha, salvo algumas
restrições, fica a cargo dos empreendedores.
A despeito das várias teorias que gravitam em torno da empresa,
especialmente as teorias institucionalistas, o que ora se analisa é vínculo
estabelecido entre os sócios ou acionistas da sociedade criada com a finalidade
177
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
de se exercer a empresa. O foco, portanto, é o elo entres as pessoas que se unem
para criar a sociedade.
O contrato ou estatuto social202 por meio do qual nasce a sociedade nasce,
nos termos do art. 981, do Código Civil brasileiro é celebrado por pessoas que
reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício
de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Contudo, torna-se
necessário esclarecer que:
O contrato de sociedade empresária não tem muita afinidade com o
universo dos contratos ortodoxos. Nada tem de comum, para ser mais
direto. Trata-se de uma avença diferenciada das demais modalidades
contratuais porque vocacionada à constituição de uma pessoa jurídica.
Também se aparta dos outros contratos de sociedade porque a pessoa
jurídica que constitui é afetada por uma destinação empresarial, ou seja,
ingressará no mundo jurídico como titular de uma atividade econômica
organizada no sentido da produção e/ou circulação de bens ou serviços.
(FÁZZIO JÚNIOR, 2009)
Waldo Fázzio Júnior enfatiza que prevalece na doutrina o entendimento
esposado por Tullio Ascarelli, no sentido de que o contrato de sociedade é um
contrato plurilateral de organização, cuja função não termina:
[...] quando executadas as obrigações das partes (como acontece, ao
contrário, nos demais contratos); a execução d as obrigações das partes
constitui a premissa para uma atividade ulterior; a realização desta
constitui a finalidade do contrato; este consiste, em substância, na
organização de várias partes em relação ao desenvolvimento de uma
atividade ulterior (FÁZZIO JUNIOR, 2005, p. 155).
Nesse sentido, o contrato é o instituto jurídico que viabiliza a criação
de uma sociedade empresária concebida, em regra, por particulares. Não se
olvide que o pacto, para merecer algumas vantagens e proteções legais, deve ser
celebrado na forma escrita, conforme estatui os arts. 986 e 992, do CC. Contudo,
nada impede que o mesmo seja elaborado verbalmente, ou até tacitamente.
O Conselho de Justiça Federal aprovou o enunciado proposto por Vinícius José Marques
Gontijo e Lidiane Santos de Cerqueira, relativo ao artigo 981, do Código Civil brasileiro, no qual
se evidencia que apesar de o aludido dispositivo referir-se somente ao contrato social, deve-se
ler subentendendo também “estatuto social”, tendo em vista que a constituição de sociedade
empresária pode dar-se pelo ajuste de vontades contratual e estatutário.
202
178
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O contrato social pode dizer respeito a uma sociedade de pessoas,
classificação conferida àquela que tenha por elemento precípuo a qualidade dos
sócios, ou à sociedade de capitais, classificação dada às sociedades que tenham
como elemento preponderante o capital disponibilizado pelo sócio ou acionista à
sociedade. Uma sociedade de pessoas se difere da de capitais também em virtude
do feixe de relações jurídicas estabelecido, o que pode refletir uma dupla relação
jurídica, sendo que por um lado se estabelece direitos e obrigações dos sócios entre
si e para com a sociedade, e por outro, apenas dos sócios para com a sociedade, na
media em seja, respectivamente, sociedade de pessoas ou de capitais.
Na sociedade de pessoas, o vínculo entre os sócios é maior, pois importa
saber que serão os sócios. Esse tipo de sociedade geralmente é destinado a
pequenos empreendimentos. Na sociedade de capitais, sobretudo a sociedade
anônima de capital aberto, não se revela preponderante a qualidade dos
acionistas, mas tão-somente o seu aporte de capital, sendo a sua entrada ou
saída do quadro de acionista extremamente facilitada.
Em virtude do vínculo entre os sócios na sociedade de pessoas ser mais
estreito, decorre naturalmente do contrato social por eles entabulado um feixe
de relações jurídicas entre os sócios e a sociedade, e também dos sócios entre si,
ao passo que na sociedade de capitais o feixe de relações jurídicas se estabelece
apenas ente os sócios e a sociedade, não havendo maior relevância as relações
entre aqueles que compõem o quadro societário.
As relações jurídicas estabelecidas a partir do contrato de sociedade
evidenciam a manifestação da autonomia privada, levada a efeito pela liberdade
de contratar e pela liberdade contratual, na medida em que ninguém pode ser
compelido a contratar ou a permanecer contratado e que os contratantes dispõem
de liberdade para pactuar o teor contratual.
Consequentemente, o contrato de uma sociedade empresária deve
atender a sua função social, o que implica dizer que este “[...] não pode ser
transformado em um instrumento para atividades abusivas, causando dano à
parte contrária ou a terceiros [...]”. (REALE, 2003) Na medida em que atende
sua função social, o contrato ou estatuto social jamais pode ser utilizado como
meio para se atentar contra um dos sócios, contra a própria sociedade ou mesmo
contra terceiros estranhos ao quadro societário.
3.3 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE SOCIEDADE EMPRESÁRIA
O contrato social é um instituto de extrema importância para a atividade
empresária. Por meio dele se exterioriza a vontade das pessoas que contribuem
com recursos e esforços para a formação de uma organização destinada a
desempenhar uma atividade fim, com o objetivo de lucro.
179
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Desde que escrito e devidamente arquivado, o instrumento contratual
confere personalidade jurídica à sociedade que dele surge. Entretanto,
o contrato não escrito ou escrito e não arquivado, não retiram o status de
sociedade do grupo de pessoas que se reúnem mediante a contribuição de
recursos e esforços para exercerem atividade empresária. Contudo, para que
surja a personalidade jurídica da sociedade distinta da personalidade dos
sócios, necessária é a regular inscrição na Junta Comercial competente.
Trataremos, por ora, do contrato social de sociedade empresária como
gênero, sem descer às especificidades de cada caso, tais como contratos
escritos e inscritos ou não, sociedade de pessoas ou de capitais, dentre outras
variações. Analisaremos como a função social impacta este instituto e quais as
circunstâncias interferem no seu bom uso, seja em nível intrínseco ou extrínseco.
A partir do momento em que a autonomia privada é exercida e se
estabelece um contrato social, nascem diversos direitos e obrigações,
especialmente para os sócios, os quais são responsáveis, pelo menos em um
primeiro momento, pela avença entabulada. Deflui dos acordos iniciais e
também da vida posterior da sociedade a obrigação dos sócios de cooperar
para a consecução dos fins sociais, e todos os esforços exigidos dos sócios
devem ser prestados para que o exercício da atividade pela sociedade possa
ser alcançado.
A cooperação pode ser revestir de várias formas, desde uma colaboração
de cunho intelectual para a estratégia de atuação, passando pelo conhecimento
de mercado, podendo chegar até uma contribuição extraordinária para a
o aumento do capital social. Pela função social do contrato, a cooperação
dos sócios deve ocorrer na exata medida da necessidade da sociedade,
observando-se, contudo, a possibilidade de se exigir do sócio tais prestações.
Essa cooperação deve ser levada a efeito sempre no objetivo de alcançar o
objeto social, sem haver espaços para que interesses antagônicos aos sociais
sejam admitidos e, mais ainda, sem que interesses de terceiros ou de algum
sócio sejam sacrificados para a cooperação social.
Do ponto de vista intrínseco ao contrato social, o dever que os contratantes/
sócios guardam, mutuamente, em relação ao respeito, à boa-fé objetiva e à
lealdade negocial, observando, ainda, a equivalência material entre as partes
revelam-se como os parâmetros para função social do contrato de sociedade.
No que toca ao respeito e ao trato com hombridade, resta evidenciado que
o homem probo nos negócios está adstrito ao comportamento cordial para com
seus sócios, equivalendo dizer que as amarras do padrão de comportamento
ético devem ser condizentes com a vida em comunidade, sobretudo no âmbito
das relações profissionais. A probidade necessária aos sócios faz presumir que
a sua ausência pode significar empecilho à consecução dos fins sociais.
180
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A boa-fé objetiva, por sua vez, exige que os contratantes guardem desde
as tratativas até a posterior criação da sociedade um comportamento segundo
o padrão, “[...] o modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico,
segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo,
obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’
[...]” (MARTINS-COSTA, 2000, p. 411).
Uma das funções do princípio da boa-fé objetiva é o de limitar o exercício
de direitos subjetivos. (BARROSO; REZEK, p. 29) Nesse sentido, os sócios
devem compatibilizar o exercício de algum direito que viole ou sacrifique o
direito dos outros sócios, da sociedade ou mesmo de terceiros. Todavia, tal
compatibilização nem sempre é fácil de exigir ou possível de se realizar, em
virtude dos diversos interesses subjetivos que podem existir em torno de um
contrato social que, pela natureza, comporta uma multiplicidade de sócios.
Outro ponto controvertido no que toca ao aspecto intrínseco do da função
social do contrato de sociedade diz respeito à equivalência material das partes.
Esta equivalência refere-se à distribuição isonômica das prestações das partes que
celebram uma avença. No contrato de sociedade, por serem diversos os sujeitos,
cada qual com seu interesse pessoal e compartilhando, ao mesmo tempo, um
interesse comum, que é o social, a equivalência material pode restar prejudicada.
O contrato de sociedade é, por natureza, um contrato que, diante da
distribuição de quotas e da quantidade de sócios, o poder de tomar decisões
e o direito de perceber lucros pode ser concentrado, o que acarretaria na não
equivalência das partes/sócios.
A própria lei estabelece quóruns de deliberações sociais que tem como
critério de voto à parcela proporcional das quotas que cada sócio possui. Com efeito,
o voto pode ser contabilizado per capta, mas resta evidente que pode, também, ter
como parâmetro a parcela das quotas dos sócios, e nesse aspecto é que se evidencia
a desproporção natural do contrato de sociedade. Diante dessas circunstâncias, o
poder dos sócios difere do ponto de vista material, pois aquele que possuir maior
quantidade de quotas pode, em tese, ter o controle das deliberações sociais. Ressaltese, por oportuno, que até mesmo a exclusão de um sócio pode ser deliberada com
base na maioria dos sócios representativa de mais da metade do capital social.
O que pode conferir contornos à função social e, consequentemente,
limite aos direitos subjetivos dos sócios, diante dessa natural ausência de
equilíbrio contratual em um contrato de sociedade empresária, é o interesse
da própria sociedade. Deliberação alguma, ainda que formalmente regular por
respeitar os quóruns legais e contratuais, pode ser tomada se houver prejuízo
para sociedade, pois, do ponto de vista intrínseco, esta também é sujeita de
direitos na relação com os sócios, ainda que majoritários, devendo prevalecer,
em caso de conflito, os interesses sociais.
181
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Por sua vez, o nível extrínseco da função social do contrato de sociedade
relaciona-se aos terceiros, à coletividade externa ao âmbito contratual. Nesse
sentido, jamais poderá ocorrer hipótese em que os interesses contratuais
puramente privados se sobreponham aos interesses externos e coletivos.
Nesse aspecto a função social do contrato muito se aproxima da função
social da empresa. Contudo, há uma tênue distinção, pois, a primeira se refere
ao contrato que proporciona a consecução da atividade empresária, e a segunda
refere-se à própria atividade.
O nível extrínseco da função social refere-se ao impacto do contrato na
coletividade. Por se tratar de uma criação jurídica, a personalidade atribuída
à pessoa jurídica de direito privado quando do regular arquivamento do seu
ato constitutivo, o contrato, abre a possibilidade da sociedade se relacionar na
ordem civil como pessoa titular de direitos que também contrai obrigações.
Nesse sentido, a autonomia privada confere aos sócios a possibilidade
de estabelecer parâmetros contratuais que repercutem na esfera jurídica de
terceiros. O melhor exemplo do reflexo do contrato social de uma sociedade
empresária em relação a terceiros diz respeito à responsabilidade dos sócios por
obrigações da sociedade.
A responsabilidade dos sócios de sociedade empresária pode ser limitada
ao valor das quotas ou ações subscritas e integralizadas, a depender, inclusive, da
formatação societária adotada para o desenvolvimento da atividade empresarial.
A conseqüência natural é a de que a os sócios, por terem personalidade distinta da
sociedade e por terem responsabilidade limitada, não arcam com as obrigações
societárias, em regra.
A prática forense evidencia o mau uso da autonomia privada quando
os sócios se valem das prerrogativas aludidas para se esquivarem de
responsabilidades ou mesmo para fraudar a lei, notadamente em prejuízo de
terceiros. Resta clara, em tais casos a afronta ao princípio da função social do
contrato, pois, dele se valem sócios que se escondem por detrás de um véu, de
uma personalidade, para lesar terceiros.
No mesmo sentido, são comuns os casos em que uma pessoa natural,
para se valer das vantagens da responsabilidade limitada, convida outra pessoa
a figurar formalmente no contrato social para cumprir o requisito mínimo da
pluralidade de sócios, para alguns tipos societários, simulando um ato jurídico,
sem que haja, contudo, participação material efetiva com recursos e esforços
para a consecução da atividade empresária.
Outro ponto nebuloso refere-se ao patrimônio da pessoa jurídica que
surge a partir do contrato. Este patrimônio consiste na garantia de terceiros
que contratam com a sociedade. Os integrantes do quadro societário devem
contribuir para sua formação. Essa obrigação tem um caráter social de extrema
182
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
relevância, pois este patrimônio, se inexistente ou insuficiente em relação às
obrigações, pode causar prejuízos aos terceiros. O princípio da efetividade,
que exige a equivalência do capital real e a do descrito no contrato, vê-se
comumente violado.
Sendo assim, para que terceiros não sejam prejudicados, ou até mesmo
os próprios sócios e a sociedade empresária sejam responsabilizados, os sócios
devem integralizar as quotas subscritas, de forma efetiva. Nesse sentido,
não se pode admitir que a constituição do patrimônio social ocorra de modo
meramente ficto, ou seja, descrito no contrato, mas não integralizado e não
posto à disposição da sociedade.
Por fim, temos uma das funções da função social do contrato consiste na
limitação de direitos subjetivos, como já declinado. Sendo assim, temos que os
sócios podem se valer do contrato para constituir uma personalidade jurídica
autônoma, inclusive com a limitação da responsabilidade, porém, jamais
comprometendo terceiros.
4. A AFFECTIO SOCIETATIS
Qualquer contrato tem sua gênese na consensualidade dos contratantes.
Essa consensualidade se refere às liberdades de contratar e liberdade contratual,
que indicam que os contratantes são, a princípio, livres para decidir se contratam
ou não e, decidido isso, para decidir como contratam. A affectio societatis pode
ser definida como sendo a intenção de contratar e manter uma sociedade, e
apresenta um aspecto subjetivo (em dois momentos distintos) e um objetivo
(MAMEDE, 2004, p. 125).
O aspecto subjetivo da affectio societatis aparece, primeiramente, na
vontade203 de se associar, de formar a sociedade. É a própria intenção de se criar
a sociedade (que em um primeiro momento será sempre uma sociedade em
comum). Em um segundo momento, esse mesmo aspecto subjetivo pode (e deve)
ser verificado na intenção, renovada a cada dia, de permanecer em sociedade. Esse
aspecto pode ser enxergado na norma contida no artigo 5º, XX, da Constituição
da República que prescreve que “ninguém poderá ser compelido a associar-se
ou a permanecer associado”, ou seja, os sócios são livres para se associar e para
deixar a sua associação, dependendo exclusivamente de sua vontade.
O aspecto objetivo da affectio societatis “traduz o dever geral de todos
os sócios de atuarem a bem da sociedade permitindo que se realizem as suas
funções jurídica, econômica e social” (MAMEDE, 2004, p. 126).
Não será discutida a questão acerca da “vontade” das pessoas jurídicas, lembrando-se de que,
em alguns casos, admite-se as pessoas jurídicas como sócias.
203
183
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
É ainda de Gladston Mamede que vem o ensinamento de que
é forçoso reconhecer que o animus contrahendi pressupõe, no mínimo
em atenção aos princípios da boa-fé (bona fides) e da função social do
contrato, comportamento coerente das partes contratantes, que devem
trabalhar a favor do ajuste, atendendo às legítimas expectativas da parte
contrária. (MAMEDE, 2004, p. 126)
É claro que, ao se tornar sócio de qualquer sociedade, seja ela de que tipo
for, haverá a confiança daquele que assim age de que a sociedade agirá
(ou continuará agindo) no mais absoluto respeito às normas jurídicas,
inclusive às contidas no contrato ou estatuto social.
Dessa forma, seja no início de uma nova sociedade, seja no trato
diário de uma já existente, deverá haver por parte de todos os seus sócios a
necessária intenção e efetiva contribuição para que ela, a sociedade, atinja
seus objetivos e propicie, em retorno, que também cada sócio em separado
atinja os seus (normalmente, o lucro). Veja-se que nas sociedades de capitais
a affectio societatis se faz presente, ainda que de forma bastante mais tênue
que nas sociedades de pessoas. A questão, por certo, haverá de ser verificada
em cada caso específico.
De fato, em enfrentamento à questão, o Superior Tribunal de Justiça
decidiu, no julgamento do recurso especial nº 111.294 que:
Pelas peculiaridades da espécie, em que o elemento preponderante,
quando do recrutamento dos sócios, para a constituição da sociedade
anônima envolvendo pequeno grupo familiar, foi a afeição pessoal que
reinava entre eles, a quebra da affecttio societatis conjugada à inexistência
de lucros e de distribuição de dividendos, por longos anos, pode se
constituir em elemento ensejador da dissolução parcial da sociedade,
pois seria injusto manter o acionista prisioneiro da sociedade, com seu
investimento improdutivo, na expressão de Rubens Requião.204
O mesmo raciocínio é pertinente quanto às sociedades limitadas. A affectio
societatis é mais sensível (e exigível) na limitada que tome a conformação
de uma sociedade de pessoas que naquela que se amolde como de capitais,
existindo, no entanto, em ambos os casos.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 111.294/PR. Relator: Ministro Barros
Monteiro. DJ, Brasília, 28 maio 2001. Disponível em: <https://ww2.stj.gov.br/revistaeletronica/
REJ.cgi/IMG?seq=5672 8&nreg=199600667578&dt=20010528&formato=PDF>. Acesso em: 1
abr. 2009. p. 1.
204
184
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A intenção de se tornar e permanecer como sócio, junto com a de envidar
esforços para a consecução dos objetivos sociais, notadamente nas sociedades
de pessoas, como a limitada que assuma essa conformação, é elemento essencial
e constante de validade do contrato e sua ausência pode levar, como visto, à
exclusão do sócio que não a cumpre em qualquer momento que seja.
Ausente a affectio societatis, restará ausente a consensualidade necessária
ao surgimento e manutenção dos contratos. A ausência desse elemento como
causa para a desconsideração do contrato de sociedade que, assim, é meramente
formal, já foi analisada pelo juízo trabalhista, que assim concluiu:
SÓCIO - EMPREGADO - RELAÇÃO DE EMPREGO. EMPREGADO
CONTRATADO FORMALMENTE COMO SÓCIO. SUBORDINAÇÃO
JURÍDICA. AUSÊNCIA DE AFFECTIO SOCIETATIS. Diante do princípio
tutelar da primazia da realidade, inerente ao Direito do Trabalho, sobreleva
priorizar o que efetivamente ocorre no mundo dos fatos, e não o nomen
juris que é dado à relação jurídica. Nesse aspecto, estando presentes os seus
elementos tipificadores previstos no art. 3º da CLT, sobretudo a subordinação,
cumpre reconhecer como de emprego a relação jurídica havida entre as partes,
ainda que sob a roupagem de uma sociedade por cotas de responsabilidade
limitada, na qual a Reclamante formalmente ingressa como sócia, mormente
quando não há evidências de affectio societatis.205
Em rápida e primeira conclusão, tem-se que o negócio jurídico contratual
societário tem validade plena condicionada à existência da affectio societatis.
Essa afeição societária, vontade de se associar e de se manter associado
(consensualidade), há de ser substancial e não meramente formal, tendo em
vista a limitação à autonomia de vontade imposta pela boa fé objetiva; e mais,
o contrato de sociedade (feito, repita-se, a partir da e com a affectio societatis)
somente será plenamente válido se cumprir sua função social.
4.1 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
A chamada disregard doctrine ou teoria da desconsideração da
personalidade jurídica é um dos institutos mais intrigantes do direito e, como
tal, ainda hoje não se encontra totalmente delimitado e compreendido. Pelo
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (3. Região). Recurso Ordinário nº 00147-2008073-03-00-9. Relator: Desembargador Márcio Ribeiro do Valle. Minas Gerais, Belo Horizonte,
23 ago. 2008. Disponível em: <http://as1.trt3.jus.br/consultaunificada/mostrarDetalheLupa.do?
evento=Detalhar&idProcesso=RO%20 %200814627&idAndamento=RO%20%200814627PACO
20080827%20%20%20%2010293500>. Acesso em: 1 abr. 2009. p. 35.
205
185
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
contrário, é instituto originador de inúmeras e grandes controvérsias, seja
quanto aos seus aspectos formais, seja quanto aos materiais.
Basicamente, a teoria significa a possibilidade de, verificadas
determinadas situações previstas na lei, afastar-se pontualmente a personalidade
jurídica e, junto, a sua autonomia patrimonial, para que os efeitos de obrigações
determinadas sejam estendidos aos patrimônios dos seus sócios e/ou
administradores.
De forma pragmática, tem-se que o direito brasileiro agasalhou legalmente
esta doutrina, nos artigos 28 da Lei nº 8.078/90, 18 da Lei nº 8.884/94, 4º da
Lei nº 9.605/98 e, finalmente, 50 do Código Civil, este último assim redigido:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo
desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir,
a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber
intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores
ou sócios da pessoa jurídica.
A partir da norma legal, vê-se que os efeitos obrigacionais de certas e
determinadas obrigações (e não, portanto, de forma indeterminada “todas
as obrigações”) poderão atingir o patrimônio particular dos sócios que, a
princípio, pela autonomia patrimonial dada às pessoas jurídicas, não podem ser
responsabilizados pelas obrigações assumidas por essas.
Para que isso ocorra, é necessário que o pedido, feito pela parte ou pelo
Ministério Público, seja feito com fundamento na presença necessária de pelo
menos uma das duas hipóteses legais autorizadoras e que indicam ter havido
abuso da personalidade jurídica, a saber: o desvio de finalidade ou a confusão
patrimonial. Desde já cumpre destacar que a personalidade jurídica não deixa de
existir em momento algum. Ela será apenas afastada para que os efeitos, em uma
dada situação concreta, atinjam os sócios ou os administradores da sociedade.
Como ensina Luiz Antônio Soares Hentz, a doutrina anglo-americana
sobre a qual se funda a teoria da desconsideração da personalidade jurídica
“baseia-se no fato de que a personificação das sociedades decorre de um ato
individual de concessão do poder político” (HENTZ, 2002, p. 93). A proposição,
é claro, não deve ser recebida como pronta por nós, brasileiros, cujo direito é de
tradição romano-germânica, sendo necessária uma adequação da leitura.
Por aqui, a personificação, mais que autorizada (desde que observados
todos os requisitos legais), é buscada pela lei. Esse fato surge da necessidade
de se incentivar o empreendedorismo, ou seja, o exercício de empresas, para a
geração de riquezas, empregos, tributos, dentre outros. A partir desse prisma,
186
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
a lei põe à disposição tipos societários que garantem aos seus sócios que, em
caso de insucesso do empreendimento, somente a parcela do patrimônio que se
transferiu à sociedade responderá pelos prejuízos, ficando a salvo o restante de
seus patrimônios particulares.
No caso mais numerosamente adotado no Brasil, ou seja, no das
sociedades limitadas, somente a parte do patrimônio que tenha sido transferido
à sociedade ou que devesse ter sido transferida é que será atingida pelas
obrigações da sociedade. Se já tiver havido a transferência à sociedade, não
haverá, por certo, de se falar em afetação do patrimônio do sócio, mas sim do
da própria sociedade. Haverá a afetação particular, portanto, no caso em que
tenha sido assumido o compromisso (subscrição) de se transferir à sociedade
determinada parcela de seu patrimônio pessoal (integralização) e isso ainda não
tenha sido cumprido.
Em qualquer caso, antes de se cogitar a busca pela responsabilização
do patrimônio dos sócios, será responsabilizado o da sociedade (art. 1.024 do
Código Civil). Dessa forma, o legislador dá ao empreendedor a garantia de que,
no caso de o empreendimento ser mal sucedido, gerando prejuízos patrimoniais
ao invés dos esperados lucros, o seu patrimônio particular não responderá pelas
obrigações eventualmente assumidas. Não há dúvidas de que é um benefício
concedido pelo legislador.
Em troca do benefício, no entanto, e de forma justa, a lei cobra dos
sócios e administradores que, na formação e na condução do negócio se
aja sempre estritamente dentro da lei e com observância aos princípios que
norteiam a atividade, dentre os quais os já mencionados neste texto. Caso essa
contrapartida não seja observada, autoriza a lei que os patrimônios dos sócios
e dos administradores venham a responder pelas obrigações assumidas pela
sociedade em determinado caso.
Nos dizeres de José Edwaldo Tavares Borba:
A sociedade, ainda que unipessoal, representa um foco de interesses o interesse da empresa. Desvirtuada essa destinação, frustra-se a base
teleológica do instituto - quebra-se a personalidade jurídica, de modo a
permitir penetrá-la e responsabilizar o sócio. (BORBA, 2008, p. 34)
São essas, portanto, a origem e a razão da teoria da desconsideração
da personalidade jurídica. O abuso da personalidade jurídica, caracterizado
pelo desvio de finalidade, refere-se aos casos em que a sociedade (o ente
personificado) é utilizada pelos sócios e/ou administradores para atingir fins
que não são lícitos ou para empreender em desconformidade com o previsto em
seus atos constitutivos.
187
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A confusão patrimonial diz respeito aos casos em que, a par da autonomia
patrimonial da sociedade em relação aos seus sócios (e administradores), são
praticados atos e instituídas relações jurídicas por estes últimos com a obrigação
do patrimônio da sociedade. O patrimônio desta é usado como se fosse do(s)
sócio(s) e como se com ele se confundisse.
4.2 A AUSÊNCIA DA AFFECTIO SOCIETATIS
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
COMO
CAUSA
PARA
Como um dos pontos centrais desta pesquisa, põe-se a questão dos
efeitos da ausência da affectio societatis na criação e manutenção de uma
sociedade limitada quanto a terceiros, credores desta sociedade. A situação não
é incomum. Pelo contrário, é bastante usual. Um empreendedor, pretendendo
exercer empresa e, por certo, obter lucro, tem à sua disposição duas opções
básicas: ou exerce pessoalmente a empresa, caso em que agirá como empresário
individual; ou o faz criando uma sociedade, quando precisará, obviamente, de
pelo menos mais um sócio.
A opção da sociedade se mostra, sob diversos aspectos, mais vantajosa que a
de exercer individualmente a empresa. E a principal dessas vantagens é exatamente
a separação patrimonial e, por conseguinte, o não comprometimento de todo o
seu patrimônio. De fato, não há qualquer separação entre a parte do patrimônio do
empresário individual usado no exercício da empresa e a parte que não o é, restando
passível de responder pelas obrigações a totalidade de seu patrimônio.
Esse fato muitas vezes leva o empreendedor a buscar alguém que apenas
“empreste” seu nome para a constituição de uma sociedade que, como já dito, é
mais comum que seja a limitada.206 Daí se cria uma sociedade limitada com um
dos sócios participando com 90% ou mais do capital social e o outro, meramente
figurativo, com os restantes 10% ou menos do capital social. É comum que este
“sócio” seja o cônjuge ou companheiro do empreendedor.
Como se vê, o “sócio de fachada” não tem, em nenhum momento, seja
na constituição, seja em momento posterior a ela, uma real vontade ou intenção
de se tornar sócio e, nos termos do artigo 981 do Código Civil, reciprocamente
se obrigar “a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade
econômica e a partilha, entre si, dos resultados”.
Em suma, não se faz presente a affectio societatis, embora, com a
assinatura do contrato social, ela formalmente ou aparentemente se faça
presente. Maria Helena Diniz percebe o fenômeno e afirma que:
Este é um dos argumentos usados pelos que defendem a adoção, pelo direito brasileiro, da
chamada sociedade unipessoal ou mesmo do patrimônio de afetação empresarial.
206
188
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
[...] é recomendável a sociedade unipessoal porque muitas sociedades
de responsabilidade limitada contêm um sócio majoritário contando
com 90% a 99,9% de quotas, ficando o outro (parente, amigo próximo)
com as restantes. Trata-se de fórmula usada para constituir sociedade,
diante da obrigação imposta por lei de ter pelo menos um sócio para sua
constituição, dando origem a uma ‘simulação autorizada de sociedade’.
(DINIZ, 2008, p. 114-115)
Apesar de arguta a observação da ilustre civilista, não é exato que a mencionada
simulação seja autorizada. E isso traz sérias consequências. A falta da affectio societatis,
como visto, seja no momento da formação da sociedade, seja em momento posterior,
leva a que falte ao contrato de sociedade assim firmado ou mantido o requisito da
consensualidade e a que ele seja simulado (sem autorização, repita-se).
Não seria proporcional se admitir que os demais sócios possam pretender a
exclusão do sócio pela quebra da affectio societatis, mas se negar que essa quebra
(ou inexistência) possa ser invocada por terceiros prejudicados. Essa constatação
leva, obrigatoriamente, a se discutir a questão à vista do disposto no artigo 166, III
e VI, e 167, ambos do Código Civil. Prevê o artigo 166, III, que o negócio jurídico
será nulo se “o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito”. O
inciso IV do mesmo dispositivo legal, por seu turno, prevê a nulidade para o
negócio jurídico que “tiver por objetivo fraudar lei imperativa”.
Pois bem. A lavratura do contrato social, feita pelos dois “sócios”, dos quais
apenas um portador daquela vontade e daquele intuito previstos no artigo 981
do Código Civil, é feita pelo motivo comum de se usar da proteção patrimonial
decorrente da constituição de uma sociedade, pondo a salvo dos credores desta
sociedade a parcela do patrimônio do sócio realmente empreendedor que não
foi utilizado para o empreendimento, limitando, assim, os riscos de perda dele.
É evidente que a personalidade jurídica não existe para ser usada para
o que se bem pretenda. Tanto é assim que a lei prevê que, para a sua criação,
é necessária a observância de diversos critérios, elementos e requisitos, dentre
eles a existência da affectio societatis.
Dessa forma, os sócios agem movidos por razão determinante comum que
não é lícita, e o negócio jurídico - contrato social, sociedade -, é nulo, pelo menos a
princípio. Igualmente, o negócio será nulo, também a princípio, porque o seu objetivo
é fraudar a lei que prevê que a integralidade do patrimônio de uma pessoa responderá
pelas obrigações por ela assumidas em empresa individual. Por fim, em casos assim
se está diante de negócio jurídico evidentemente simulado porque no contrato social
se faz, obrigatoriamente, declaração não verdadeira e, por conseguinte, nele haverá
cláusulas também não verdadeiras (art. 167, §1º, II, Código Civil).
O negócio jurídico simulado é nulo, somente subsistindo o que se
dissimulou se ele for válido na substância e na forma, o que não é o caso já
189
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
que, em substância, o negócio, como visto, é nulo. Importante, ainda, dizer que
nesses casos os sócios não terão agido com a necessária boa fé objetiva de que
já se cogitou neste trabalho. Mesmo entre eles, em que há um verdadeiro pacto
de solidariedade, faz-se presente unicamente a boa fé subjetiva e não a objetiva.
Quanto aos terceiros, notadamente quanto aos credores da “sociedade”, então,
nem de longe há se falar em observância da boa fé objetiva já que a lealdade e
confiança que marcam este princípio jamais terão existido.
O que decorre desta constatação é drástico: o contrato social é nulo
e, portanto, não existe sociedade. E os negócios jurídicos nulos não podem
ser confirmados e o decurso de tempo não os faz convalescer (artigo 168 do
Código Civil). Ou seja, tudo o que se tiver praticado em nome da sociedade
será, igualmente, nulo. E já que a sociedade é inexistente, diante da nulidade
do contrato que a criou, é inviável a continuidade do exercício de qualquer
atividade por ela, o que levará à extinção da empresa (atividade) e encerramento
da produção de riqueza, tributos, da geração de empregos, dentre outros.
Tendo em vista o princípio da preservação da empresa, que como visto
se faz presente inclusive na legislação falimentar, não parece que a simples
declaração de nulidade do negócio jurídico seja a solução mais adequada a ser
tomada, mormente se, de uma forma ou de outra, tal empresa esteja cumprindo
sua função social. Por outro lado, aquele que eventualmente se veja lesado pela
simulada proteção patrimonial criada não pode ser prejudicado.
A solução para a questão, então, parece estar na desconsideração episódica
da personalidade jurídica da sociedade, alcançando-se o patrimônio do sócio
que tenha se beneficiado, satisfazendo os interesses do credor e mantendo-se a
atividade produtiva. Diz Luiz Hentz sobre o assunto:
A dificuldade para admitir novas formas de atuação empresarial, como a
sociedade unipessoal, a empresa individual de responsabilidade limitada e
o patrimônio de afetação, tem propiciado o abuso de modelos societários
com o objetivo de limitar a responsabilidade dos sócios, que assim não se
veem atingidos por obrigações originárias da empresa. A pessoa jurídica
ergue-se como véu protetor do patrimônio dos integrantes da sociedade.
José de Oliveira Ascensão enuncia a possibilidade de abuso em fraude à lei,
à obrigação contratual, contra credores e em razão de controle societário,
quando provada a falta da autonomia da entidade controlada. A verificação
de qualquer hipótese, resultando penalização de credores, como a dificuldade
para receber créditos ou executar direitos reais, dá lugar, mediante devido
processo legal, ao afastamento do véu protetor da personalidade jurídica para
alcançar a satisfação do direito de terceiros.207 (HENTZ, 2002, p. 91)
HENTZ, Luiz Antônio Soares. Ob. cit., p. 91.
207
190
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
De fato, não há como se imaginar que, sendo usada com o objetivo de
burlar a lei, a personalidade jurídica não esteja sendo desviada de seus fins.
Dessa forma, lembrando-se novamente do princípio da preservação da empresa,
a sociedade assim formada deve poder continuar exercendo a empresa. O que
não se admite é a oposição da autonomia patrimonial, da distinção entre o
patrimônio da pessoa jurídica e o de seus sócios, a terceiros que se mostrem
credores dessa sociedade.
Como o vício (a simulação) é continuamente repetido, é reiterado a cada
dia de existência da sociedade, o resultado será o de que qualquer obrigação
contraída pela sociedade poderá ter seu cumprimento imposto aos sócios.
Extinto o vício com, por exemplo, a admissão de um sócio real, tornando
presente a affectio societatis, cessa a causa da desconsideração e a sociedade
passa a ter, verdadeiramente, autonomia patrimonial.
5. CONCLUSÃO
A autonomia privada, que consiste na possibilidade das pessoas regularem
suas relações de natureza eminentemente particular, possui força vinculante
e obrigatória que as compele a proceder conforme pelas partes regulado.
Tal manifestação só é possível por haver autonomia dos entes privados para
regularem suas relações jurídicas pessoais permitidas pelo Direito.
O direito de propriedade, ao ser exercido, vale-se do contrato para,
pelo arbítrio da vontade das partes, transigirem sobre os direitos inerentes à
propriedade. Sendo esta o objeto do contrato, tal instituto viabiliza a plena
disposição pelo proprietário dos seus direitos.
Na medida em que a propriedade como objeto contratual foi perdendo
o seu caráter puramente privado, o contrato experimentou o mesmo processo.
No mesmo sentido, as relações jurídicas estabelecidas a partir do contrato de
sociedade evidenciaram a manifestação da autonomia privada, levada a efeito
pela liberdade de contratar e pela liberdade contratual, na medida em que
ninguém pode ser compelido a contratar ou a permanecer contratado e que os
contratantes dispõem de liberdade para pactuar o teor contratual.
O contrato social consiste em um instituto de extrema importância para a
atividade empresária, pois, é por meio dele se exterioriza a vontade das pessoas
que contribuem com recursos e esforços para a formação de uma organização
destinada a desempenhar uma atividade fim, com o objetivo de lucro.
Os contornos impostos pela função social do contrato aos contratantes
estão a todo tempo em conflito com os direitos subjetivos exercidos ora pelos
sócios, ora pela própria sociedade, o que demanda uma definição clara do limite
para os sócios que se unem pelo contrato social e pela sociedade que age em
nome próprio, mas por meio de um administrador.
191
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Se uma das funções da funções sociais do contrato consiste na limitação
de direitos subjetivos, temos que os sócios podem se valer do contrato para
constituir uma personalidade jurídica autônoma sem, contudo, comprometer
os demais sócios ou terceiros fora da relação societária. A sociedade, por
sua vez, deve respeitar os sócios, assim como qualquer terceiro, pois, apesar
de personalidade autônoma em relação a dos sócios, seus atos não podem
prejudicar qualquer um deles, tampouco a sociedade em geral. Sendo assim,
ao contrato de sociedade se impõe um limite à manifestação da autonomia
privada, a função social.
Por fim, uma das conclusões a que se chega é a de que a sociedade
de pessoas é o tipo de sociedade que pressupõe um elo de afinidade entre os
sócios, do qual se parte para constituir e manter a união entre tais sócios. Se
ausente tal vínculo, seja na constituição ou na continuação da sociedade, um
dos pressupostos para esse tipo societário não está presente. Tratando-se de
sociedade cuja presença de um dos sócios ocorre meramente para que o outro
possa obter as vantagens da limitação da responsabilidade, forçoso concluir
que este contrato de sociedade é simulado, razão pela qual é nulo, visto que a
simulação é um vício do negócio jurídico, eivando-o de nulidade.
192
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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194
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
ACORDOS TRABALHISTAS EXTRAJUDICIAIS: UMA POSSIBILIDADE DE
COMPATIBILIZAR A AUTONOMIA E A INTERVENÇÃO ESTATAL
EXTRAJUDICIAL LABOR AGREEMENTS: A POSSIBILITY OF
HARMONIZING AUTONOMYAND STATE INTERVENTION
Marcelo Ivan Melek208
RESUMO
A conciliação é uma importante forma de solução de conflitos, pois as
próprias partes põem fim a lide a partir de suas convicções, ou seja, não há
intervenção estatal impositiva do Estado. No direito processual do trabalho, a
conciliação é um princípio que norteia este ramo do direito e também é norma
jurídica pois a Consolidação das Leis do Trabalho, determina que o juiz tente
promover pelo menos em dois momentos processuais a conciliação. Vale dizer, que
a conciliação realizada em juízo não encontra problemas principalmente no que
tange a real vontade das partes e a segurança jurídica. Assim, o objeto de estudo
do presente artigo está inserido precisamente nas conciliações que são realizadas
extra juízo, ou seja, nas transações extrajudiciais. A problemática a ser enfrentada
neste trabalho versa acerca da validade da transação e da (im)possibilidade e limites
da homologação judicial da transação extrajudicial realizada pelas próprias partes,
feitas ou não com o acompanhamento de um advogado. Sabe-se que a validade
deste tipo de transação é muito questionada na Justiça e pela doutrina, tendo em
vista a hipossuficiência do empregado face ao empregador, podendo conter vícios
de consentimento daquele. Outra questão envolta de polêmica, que merece uma
cuidadosa análise, é no que se refere a (in)competência da Justiça do Trabalho para
homologar a transação extrajudicial, eis que a Constituição Federal de 1988 no
seu art. 114 não contempla expressamente tal possibilidade. A pesquisa pautou-se
em ampla pesquisa bibliográfica envolvendo o tema, com análise de jurisprudência
identificando os argumentos jurídicos que ora defendem a possibilidade de
homologação e ora negam essa possibilidade. A partir deste estudo, conclui-se, ao
final, que é dever da Justiça do Trabalho fazer tal homologação, devendo ainda
incentivar e promover a conciliação, inclusive a extra judicial, o que se comprova
com a incidência de princípios e de normas jurídicas neste campo. Por fim, ressaltaBacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Especialista em Direito do Trabalho
e Processual do Trabalho. Mestre em Educação. Advogado Trabalhista. Doutorando em Direito
pela PUC/PR. Membro do Grupo de Pesquisa “Desregulamentação Do Direito, do Estado e
Atividade Econômica: Enfoque Laboral”. Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.
208
195
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
se que diante da negativa do juiz em fazer tal homologação da transação, que
efetivamente ocorreu, não resta outra alternativa para as partes, senão de simular
uma reclamatória trabalhista, para que na primeira audiência se faça o acordo.
Todavia, esta última possibilidade não pode prosperar no Direito Brasileiro como
forma de solução de conflitos, sendo a homologação o instrumento jurídico que
fornece segurança jurídica para as partes e eficácia da transação. Palavras-Chave: Atividade Laboral, Homologação Extrajudicial, Conciliação.
ABSTRACT
Conciliation is an important form of conflict resolution because the parties
themselves put an end to proceedings from his convictions, ie, no forceful state
intervention of the state. In the procedural law of the work, conciliation is a guiding
principle for this branch of law and rule of law is also for the Consolidation of Labor
Laws, provides that the judge try to promote at least two times the conciliation
procedure. Ie, that reconciliation held in court does not find problems, especially
regarding the real intentions of the parties and legal certainty. Thus, the study object
of this paper is inserted precisely in that reconciliations are performed extra court, or
in-court transactions. The issue to be addressed in this essay is about the validity of
the transaction and the (im) possibility and limits of judicial approval of extrajudicial
transaction performed by the parties themselves, or not made with the help of a
lawyer. It is known that the validity of this type of transaction is very challenged in
court and by the doctrine in view of the weaker of the employee against the employer,
and may contain defects that consent. Another issue surrounded by controversy,
which deserves careful analysis, as regards the (in) competence of the Labour Court
to approve the transaction out of court, behold, the 1988 Federal Constitution in its
article. 114 does not expressly contemplates that possibility. The research was based
on extensive literature review of the subject, with analysis of case law identifying
the legal arguments that now advocate the possibility of approval and now deny that
possibility. From this study it is concluded in the end it is the duty of the Labour Court
to make such approval, and shall encourage and promote reconciliation, including
extra judicial, which is proved with the incidence of principles and rules of law in
this field. Finally, we emphasize that the denial before the judge in making such an
approval of the transaction, which actually occurred, there is no other alternative
for the parties, but to simulate a labor claim, that the first audience to do the deal.
However, this latter possibility can not thrive in Brazilian law as a means of conflict
resolution, with the approval the legal instrument that provides legal certainty for
the partie s and effectiveness of the transaction.
Keywords: Labor Activity, approval Extrajudicial, Conciliation.
196
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1. INTRODUÇÃO
Um dos princípios norteadores da Justiça do Trabalho, sem dúvida, é
a conciliação. A conciliação permite que as próprias partes solucionem seus
conflitos, sem necessariamente haver lide, isto é, sem a obrigatoriedade de
haver a pretensão resistida.
A própria CLT contribui como norma para que as partes realizem
a conciliação, pois ao longo do processo do trabalho, o juiz é obrigado, nos
termos desta norma, propor pelo menos duas vezes a conciliação. Vale lembrar
que a conciliação é permitida a qualquer tempo, mesmo em fase de execução.
Outro exemplo do interesse em realizar conciliação foi a edição da Lei n°
9.958/2000, que alterou o art. 625 da CLT, criando as comissões de conciliação
prévia, com o intuito das partes resolverem seus conflitos em âmbito negocial,
fora da Justiça do Trabalho, gerando diversos efeitos como por exemplo a
diminuição do número de demandas a serem processadas e julgadas por esta
Justiça Especializada.
Ainda, os Tribunais Regionais, por recomendação do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) têm promovido a chamada Semana da Conciliação,
onde as partes são chamadas para juntamente com os conciliadores, que
comumente são alunos das faculdades de direito ou servidores da Justiça,
resolverem suas demandas.
Vale dizer, que antes mesmo de haver uma demanda trabalhista, as partes
podem se conciliarem transacionando extrajudicialmente. Todavia, neste caso
a segurança jurídica fica abalada pelo fato de que uma das partes podem tentar
vir a invalidar o acordo extrajudicial realizado pelas partes, por diversos tipos
de argumentos jurídicos, como a coação, simulação ou outro vício.
Todavia, a fim de fornecer maior segurança jurídica para as partes, o
ordenamento jurídico prevê a possibilidade da homologação judicial da
transação extrajudicial, precisamente no Código Civil e Processual Civil. Desta
forma, estes dispositivos aplicados no Direito do Trabalho, atender-se-ia o
princípio da conciliação, e neste caso sem a formação da lide, o que demandaria
todo o processamento e julgamento do processo pela Justiça.
No entanto, discute-se acerca da possibilidade da aplicação destes
dispositivos no Direito do Trabalho, questionando-se sobre sua compatibilidade.
Ainda, há também a alegação de que a Justiça do Trabalho não tem competência
para a jurisdição voluntária.
Não se pode olvidar que a conciliação face a intervenção Estatal de dizer
o direito, é muito mais vantajosa para a atividade econômica, para o Estado
e também para o trabalhador. Para as partes é a solução mais vantajosa, pois
foram elas mesmas que decidiram as questões, sem imposição de um terceiro.
197
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Em seu turno, no que tange ao Estado este não tem interesse em intervir para
decidir o conflito, ao menos que seja provocado e ainda assim, como visto, tenta
a negociação através da Justiça do Trabalho.
A partir destas considerações acerca da conciliação, como forma de
solução de conflito, e sua importância, tem-se como objetivo deste estudo
verificar a possibilidade da homologação judicial de transação extrajudicial na
Justiça do Trabalho, de maneira que se atenda o princípio da conciliação, sem
ferir as disposições legais trabalhistas.
2. DAS FORMAS DE SOLUÇÃO DE CONFLITO
Antes mesmo de discorrer sobre as formas de solução de conflito,
necessário fazer considerações a respeito dos conflitos. Os conflitos ocorrem
em qualquer relação humana, especialmente a trabalhista, tendo em vista
o conflito inerente a relação dialética entre capital e trabalho. Aliás, este
conflito é inerente desde as formas mais primitivas do trabalho, como a
escravidão e a servidão.
A palavra conflito vem do latim, e quer significar combater, lutar,
designando posições antagônicas209. Essa luta ou combate na relação trabalhista
não é necessariamente nefasta a sociedade, pois como resultado dela os
trabalhadores historicamente foram conquistando direitos e novas formas de
trabalho, que não ferissem sua condição humana e de dignidade. Obviamente,
há também o lado negativo dessa batalha, pois a atividade econômica que
uma determinada empresa explora pode sofrer conseqüências profundas e até
mesmo deixar de existir, frente a essa batalha, que em maior escala pode gerar,
como dito, a extinção da empresa, e com ela todos os benefícios trazidos por
ela, como emprego e renda, por exemplo.
Como dito, apenas algumas considerações a respeito do conflito são
fornecidas, já que o objetivo aqui é de verificar e analisar as formas de solução
deles. Obviamente, outras colocações de ordem sociológica, filosófica e
econômica caberiam na análise dessa luta.
Na esfera trabalhista, comumente utiliza-se as expressões controvérsias
ou dissídios para denominar o conflito, as quais possuem o mesmo significado
em termos práticos. A greve e o lockout são exemplos de conflitos, os quais
a doutrina os entende como sendo mais gerais e amplos210. Já os dissídios,
vocábulo empregado pela CLT, estão atrelados a idéia de solução judicial, ou
seja, de um conflito a ser solucionado pela Justiça do Trabalho.
Dicionário Básico de Latim Jurídico. 5ªed. São Paulo: Russell, p. 212.
Exemplo de doutrina que tem este entendimento é a obra Direito Processual do Trabalho, de
Sérgio Pinto Martins. 27ªed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 46.
209
210
198
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Vale lembrar, que os dissídios podem ser de natureza individual e coletivo,
cada qual com seu regramento jurídico. O primeiro diz respeito às relações
individuais de trabalho, onde as partes são de um lado um empregado e um ou mais
empregadores, ficando a decisão judicial com efeito apenas entre elas. Também,
há as ações plúrimas onde há uma pluralidade de partes, seja do lado ativo ou
passivo, tendo a sentença efeitos igualmente entre as partes. Os dissídios coletivos,
os efeitos da sentença atinge toda uma categoria ou grupo de trabalhadores, tendo
a figura dos Sindicatos grande destaque neste tipo de dissídio.
Claro está que nesta distinção não importa necessariamente o número de
indivíduos no dissídio, mas sim as naturezas dos interesses discutidos. Enquanto
que nos individuais os interesses discutidos são concretos, os beneficiários são
pessoas determinadas, individualizadas, já no coletivo os interesses discutidos
são abstratos, pertinentes a toda categoria e os beneficiários são pessoas
indeterminadas, representadas por um Sindicato de categoria patronal e outro
de natureza profissional.
Outro vocábulo jurídico relevante para a análise deste tema é a lide, que
segundo Carnelutti211, é um conflito de interesses dotado de pretensão resistida,
ou seja, há um conflito onde uma das partes nega ou modifica a pretensão da
outra, e vice-versa. Neste caso, o conflito vai evoluindo para um dissídio, onde
haverá duas teses que geralmente são diametralmente opostas, e dificilmente a
resposta jurídica para este conflito não vai vir do Estado.
Feitas estas considerações passa-se, então, a análise das formas de
solução dos conflitos trabalhistas, propriamente dito.
As formas de solução não são classificadas de maneira uniforme
pelos doutrinadores, adotando para fins deste estudo a de Amauri Mascaro
Nascimento212 o qual classifica da seguinte forma: autodefesa, autocomposição
e heterocomposição.
A autodefesa é a forma de solução de conflitos, onde as partes fazem a
sua própria defesa, impondo sua vontade ou condição à outra. Esta modalidade
de autodefesa é admitida em casos excepcionais na esfera trabalhista, sendo
exemplos a greve e o lockout. Certo é que a greve nem sempre resolve o conflito,
representando uma forma de pressão de uma parte sobre a outra, tendo que ser
resolvida, inclusive sob sua legalidade ou abusividade pela Justiça do Trabalho.
Já no que tange a heterocomposição, deve-se dizer que sua principal
característica é de que a decisão vem de um terceiro, devendo as partes cumprir
o que foi determinado por este terceiro fielmente e adstrito as determinações
CARNELUTTI, Francesco. Instituzioni del processo civile Italiano. 5. ed. Roma: Soc. Ed. Del
“Foro Romano”, 1956, p.148.
212
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 23ªed. rev.
atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 5.
211
199
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
da decisão. São formas desta modalidade de solução de conflitos, a medição,
arbitragem e a tutela e jurisdição.
Em síntese, a mediação que vem do verbo em latim mediare, tem o sentido
de mediar, dividir ao meio de intervir213, consistindo basicamente no chamamento
pelas partes de um terceiro para solucionar o conflito, mediante uma proposição
de solução as partes. Vale dizer, que as partes não estão obrigadas a aceitar
tal proposição, mas podem realizar uma composição, por meio de um acordo
de vontades. Esta modalidade apresenta-se em geral na forma extrajudicial,
diferentemente da conciliação que pode ser judicial ou extrajudicial.
Outra figura que se enquadra para alguns doutrinadores, como Sérgio Pinto
Martins, como mediação são as comissões de conciliação prévia (CCP) criada
pela Lei n° 9.958 de 2000, modificando o art. 625 da CLT, onde são realizadas
propostas para solução dos conflitos apresentados. Vale dizer que a CCP não tem
competência decisória, isto é, o mediador ou conciliador não tem competência
para decidir, mas sim mediar e conciliar. No entanto, o entendimento que se tem
acerca da natureza jurídica da CCP é a conciliatória de forma preponderante.
Sobre a conciliação, incluindo a CCP, será abordado no próximo tópico
de maneira mais apropriada.
Ainda, na heterocomposição tem-se a arbitragem, cuja origem remonta
nas Ordenações do Reino de Portugal, ainda no século XVII. Segundo Sérgio
Pinto Martins214, arbitragem é uma forma de solução de conflitos, feita por um
terceiro estranho à relação das partes ou por um órgão, que é escolhido por elas,
impondo a solução do litígio. É uma forma voluntária de terminar o conflito, o
que importa em dizer que não é obrigatória. Então, tem-se a figura do árbitro
com a sua decisão denominada de sentença arbitral. As partes podem submeter
o seu conflito ao árbitro de duas formas: por meio de cláusula compromissória
ou pelo compromisso arbitral, ambos regulados pela Lei n 9.307/96, bem como
todo o instituto da arbitragem.
A aplicação da arbitragem no direito do trabalho é muito discutida e
controvertida na comunidade jurídica como um todo. Há argumentos jurídicos
relevantes defendendo a possibilidade, como há, também, argumentos
igualmente relevantes defendendo, ao contrário, sua impossibilidade. O que se
deve lembrar, é que de acordo com a Lei n 9.307/96, logo em seu artigo 1°,
somente os direitos patrimoniais disponíveis podem estar sujeitos a arbitragem.
Direito patrimoniais disponíveis são os de natureza privado ou contratual, que
podem ser alienados. Aliás, este é um dos principais argumentos encontrados
na doutrina brasileira215 que justificam a impossibilidade de aplicação deste
Dicionário Básico de Latim Jurídico. 4ªed. São Paulo: Russell, 2002, p. 531.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.58.
215
Neste sentido: DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 5ªed. São
213
214
200
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
instituto no campo trabalhista, uma vez que o trabalhador não pode transacionar
seus direitos diante do empregador, apenas em juízo.
Como o objetivo aqui não é discutir o instituto da arbitragem no direito
do trabalho, a abordagem do tema ficará limitada como forma de solução de
conflitos, mediante heterocomposição.
Finalmente, o que mais interessa no presente estudo é a última forma
de solução de conflitos, denominada de autocomposição. Segundo Amauri
Mascaro do Nascimento216, autocomposição é a técnica segundo a qual o conflito
é solucionado pelas próprias partes, sem emprego de violência, mediante ajuste
de vontades. Obviamente, está-se diante da melhor forma de solução de conflito,
pois as próprias partes resolvem suas questões, em intervenção de um terceiro,
ficam plenamente satisfeitas com o deslinde do conflito.
A autocomposição pode ser realizada, de acordo com classificação
doutrinária, como unilateral e bilateral. A primeira é caracteriza pela
renúncia de uma das partes a sua pretensão. Já a segunda, ocorre quando há
concessões recíprocas, ao que se denomina de transação. Exemplos de formas
autocompositivas de solução dos conflitos trabalhistas são os acordos e
convenções coletivas.
Uma interessante posição doutrinária de Octávio Bueno Magano, que
merece ser aqui trazida é de que a arbitragem e a mediação são formas de
autocomposição, uma vez que as próprias partes escolherão uma pessoa para
dirimir seus conflitos217.
A conciliação pode ser feita por meio de um conciliador, que tem a função de
aproximar as partes, sem fazer propostas, representando uma figura de facilitador
que aproxima as partes. Também, a conciliação pode ser feita por iniciativa das
próprias partes. A conciliação pode ser feita no âmbito judicial ou extrajudicial.
A definição sociológica218 de conciliação é como sendo a forma consciente
de acomodação. Envolve a mudança de sentimento com a diminuição da
hostilidade. Há harmonização entre os antagonistas. Com esta definição enfatiza
o fato de que as partes ficam satisfeitas, sentem-se justiçadas, pois as suas
vontades foram levadas em conta e foram decisivas para por fim ao conflito.
A conciliação traz consigo diversas vantagens para as partes, pois como
dito, além do sentimento de justiça satisfeito, as partes não se expõem, isto é, são
poupadas de discussões, de comparecimento às audiências, de serem obrigadas
Paulo: Ltr,2006, p. 1451.
216
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 23ªed. rev.
atual. São Paulo: Saraiva, p. 06.
217
MAGANO, Octávio Bueno. Manual de Direito do Trabalho: direito individual. São Paulo:
Ltr, 1992, p. 53.
218
LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. 6ªed. São Paulo: Atlas, 1990, p. 309.
201
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
a lembrar e comprovar, muitas vezes, situações desagradáveis que trazem ainda
maior sofrimento para as partes. Há também, um aspecto econômico a ser
destacado nesta modalidade de solução de conflitos, pois praticamente não há
despesas judiciais e de honorários advocatícios, se comparados com uma ação
processada e julgada pela Justiça do Trabalho.
A conciliação também apresenta uma alternativa interessante à atividade
econômica, pois por meio dessa consegue por fim ao conflito, diminuindo
a previsão de passivo trabalhista do empregador, o que contribui para um
melhor planejamento e organização da exploração da atividade por parte dos
administradores. As conciliações, comumente, trazem grandes vantagens
econômicas para ambos os lados: de um lado para o trabalhador, que recebe o
montante de forma rápida e eficaz, ficando livre de compromissos judiciais, bem
como pode também organizar e planejar melhor a sua vida, a partir do acordo
celebrado; de outro lado, o empregador livra-se de custas, maiores despesas de
honorários advocatícios, pagamento de eventual perícia, etc, sem dizer que os
acordos celebrados são, quase que em sua maioria, valores muito aquém daqueles
que seriam decididos pelo Estado, em caso de condenação. Além disso, o
empregador também se desobriga a acompanhar o processo e suas fases, podendo
se ocupar mais de sua atividade na administração de sua empresa.
Para o Estado também é vantajosa a conciliação, pois não é sua função
de intervir nos interesses dos particulares, senão mediante provocação de uma
das partes. De igual modo, há vantagens econômicas e de eficácia da Justiça
do Trabalho, pois na conciliação, praticamente não há custo para o Estado,
bem como toda a estrutura judiciária não é ativada para por fim ao conflito,
podendo ser mais célere com os processos em andamento, ou seja, provoca uma
diminuição de demandas na Justiça do Trabalho.
Como visto neste tópico, a conciliação ocupa papel de destaque, dentre as
formas de solução de conflitos, uma vez que cabe as próprias partes resolverem
seus conflitos, em contraposição de um terceiro que proferirá uma decisão de
forma impositiva às partes, como ocorre no caso da heterocomposição. A
autotutela, como visto, não é uma forma muito comum de solução de conflitos,
uma vez que as hipóteses de utilização são pouco numerosas, se comparadas com
as outras formas, no Direito do Trabalho. Em virtude de seu destaque dentre as
formas apresentadas, a conciliação será o objeto de apreciação do próximo tópico.
3. A CONCILIAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO
A conciliação é muito utilizada nas relações de trabalho, não só no
Brasil, como em todo o mundo, pondo fim aos conflitos por meio da ação
das próprias partes envolvidas.
202
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O Estado por meio de suas normas e pelo próprio Poder Judiciário
motiva de várias formas a celebração de um acordo. As regras processuais do
trabalho, contidas na CLT, colocam a conciliação como um princípio expresso
a ser atingido no processo.
Neste sentido, Amauri Mascaro do Nascimento, ao descrever os princípios
específicos do direito processual trabalhista e ao falar da conciliação assim
escreve: “a importância fundamental da conciliação nos dissídios individuais
e coletivos”219. No mesmo sentido, Isis de Almeida220, afirma que considera o
princípio da conciliação o mais peculiar, diante da sujeição, tanto dos dissídios
individuais como coletivos, à fase obrigatória de conciliação.
Neste mesmo sentido, Carlos Henrique Bezerra Leite221 diz que “embora
o princípio da conciliação não seja exclusivamente do processo laboral, parecenos que é aqui que ele se mostra mais evidente, tendo, inclusive, um iter
procedimentalis peculiar”.
Diante destas contribuições doutrinárias, conclui-se ser a conciliação
mais do que uma forma de solução de conflitos, mas um princípio com função
de integração e de orientação. Como já dito anteriormente, a CLT enquanto
norma também coloca a conciliação com papel de destaque, pois logo em seu
segundo artigo de normas relativas ao processo do trabalho, art. 764, acrescenta
que os dissídios individuais ou coletivos submetidos à apreciação da Justiça
do Trabalho serão sempre sujeitos à Conciliação. E ainda, em seu parágrafo 1º
determina que os Juízes e Tribunais do Trabalho empregarão sempre os seus
bons ofícios e persuasão no sentido de uma solução conciliatória dos conflitos.
Diante do conteúdo do artigo acima citado, nota-se que a conciliação é
sempre possível e desejada ao longo do processo do trabalho, ainda que em fase
de execução de sentença e colocam os juízes e tribunais como sujeitos ativos
para promover a conciliação. Neste sentido, vale recordar as lições de Amauri
Mascaro Nascimento222 que diz que:
O direito processual do trabalho dá grande ênfase à conciliação, como
forma de se atingir o objetivo da paz social. Interessa ao Estado que as
próprias facções em litígio encontrem, elas mesmas, a fórmula capaz
de compor suas divergências. Por isso, ao criar órgãos judiciários
especializados em questões do trabalho, instituiu na função conciliatória
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito processual do trabalho. 23.ed. Saraiva:
Rio de Janeiro, 2008, p. 118.
220
DE ALMEIDA, Isis. Manual de Direito processual do trabalho. São Paulo: Atlas, 1995, p. 125.
221
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Atlas,
2006, p. 79.
222
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 23ªed. rev.
atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 208-209.
219
203
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
deles, devendo o juiz atuar como mediador na busca de uma auto-solução
pacífica para as pendências.
Diante da citação, fica clara que uma das funções primordiais do direito
processual do trabalho, enquanto instrumento, forma de se chegar à aplicação do
direito material, é de buscar a conciliação, como forma de atingir a paz social.
Desta forma, a CLT obriga o juiz a tentar pelo menos duas vezes ao longo
do processo a conciliação, em dois momentos: assim que aberta a audiência,
de acordo com o art. 846 da CLT; e logo após as razões finais, conforme o art.
850 do mesmo diploma legal, sob pena de nulidade processual de acordo com
jurisprudência consolidada.
Como visto, a lei processual do trabalho tenta ao máximo promover
ou motivar as partes, a celebrar acordo, com a participação fundamental dos
juízes e tribunais, os quais devem utilizar de sua experiência e habilidades de
persuasão, a fim de que se promova a conciliação.
No entanto, ainda na CLT há também a previsão legal das CCP, criada pela
Lei 9.958, de 12 de janeiro de 2000, facultou a criação das CCP seja em âmbito
sindical, seja no âmbito da empresa. A referia Lei acrescentou as letras “A” a “H”
no art. 625 da CLT, disciplinando sobre a forma da criação, composição, eficácia
e alguns procedimentos. Dentre as disposições a que merece especial destaque
é a letra “D” do artigo em questão, uma vez que obriga todas as demandas de
natureza trabalhista serem submetidas previamente a CCP, quando existente.
Aqui, está-se diante de mais uma forma que o Estado encontrou em
resolver as demandas trabalhistas por meio da conciliação. Quando realizada,
lavra-se termo assinado pelo empregado, empregador ou seu preposto e pelos
membros da Comissão, fornecendo cópias as partes, constituindo-se um título
executivo extrajudicial, que confere eficácia liberatória geral, exceto nas
parcelas expressamente ressalvadas.
Como visto, teoricamente só há benefícios na constituição e no
funcionamento das CCP, já que representa uma forma alternativa de por fim a um
conflito, com eficácia liberatória geral, sem a interferência estatal, sem contar que
contribui para o desafogamento das demandas trabalhistas na Justiça. Todavia,
a prática tem demonstrado que muitos Sindicatos e empresas não possuem
CCP, pelo menos na cidade de Curitiba, não sendo aplicados os dispositivos
do art.625 da CLT e seus respectivos efeitos. E, quando existente, os resultados
em termos de conciliação, variam muito de Sindicato para Sindicato, havendo,
contudo, bons exemplos sindicais que obtêm bons resultados conciliatórios.
Também, a respeito do funcionamento da CCP, muitos doutrinadores
fazem juízos críticos sobre o instituto. Dentre eles, confere-se destaque
para o seguinte:
204
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Não vislumbramos boas possibilidades de sucesso na atuação prática das
Comissões de Conciliação Prévia, por várias razões. Em primeiro lugar,
o termo de conciliação não oferece a segurança liberatória almejada pelo
empregador. O processo trabalhista sempre recusou a força executiva
aos títulos extrajudiciais, basicamente porque a situação de inferioridade
em que se encontra o empregado prejudica a autenticidade de sua
manifestação de vontade. (...)223.
A este juízo crítico foi conferido destaque por evidenciar a insegurança
jurídica das partes, especialmente aqui do empregador, na celebração do acordo,
no que tange a sua eficácia, bem como a insegurança em possuir um título
executivo extrajudicial, tendo em vista a hipossuficiência do empregado face
ao empregador. Então, reforça-se neste juízo crítico a importância da garantia
de haver uma homologação judicial mesmo em acordos celebrados que por
garantia legal já teriam o status de título executivo extrajudicial.
De qualquer sorte, pode-se dizer que a CCP, enquanto instituto jurídico
pode ser aperfeiçoado e aprimorado pelas empresas e Sindicatos, podendo obter
resultados mais expressivos em termos conciliatórios. Há que se dizer que a CCP
tem sua importância em representar mais uma forma de solução de conflitos.
Como já dito anteriormente, o Estado tem interesse na conciliação pelos
motivos já expostos, fazendo os juízes e Tribunais terem papel de destaque na
tentativa conciliatória, embora não seja atividade atribuída exclusivamente a eles.
Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça, também vem atuando no sentido
de promover a conciliação trabalhista. Exemplo disso, é a recomendação nº 8 de
2007224, a qual recomenda aos Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais
e a realização de estudos e de ações tendentes a dar continuidade ao Movimento
pela Conciliação. Expressamente na alínea “b”, nesta recomendação, o CNJ dispõe:
b) o planejamento anual, no âmbito do Tribunal, do Movimento pela
Conciliação, em que se podem inserir a fixação de um dia da semana com
pauta exclusiva de conciliações, a preparação de semanas de conciliação
e do Dia Nacional da Conciliação de 2007, a definição de metas, a
realização de pesquisas, dentre outras atividades;
Deste modo, em todo o País os Tribunais Regionais do Trabalho, têm
promovido pelo menos uma vez por ano a chamada Semana da Conciliação,
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 23ªed. rev.
atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p.217.
224
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=273
2:recomenda-no-8&catid=60:recomendas-do-conselho&Itemid=515. Acesso em 03/08/09.
223
205
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
onde as partes são chamadas a comparecer na Justiça, com a figura de um
conciliador que motiva e tenta promover a conciliação. Pelo o que foi pesquisado
nos Estados de São Paulo, Paraná e também do Distrito Federal, os resultados
têm sido bem expressivos e dignos de apresso.
Como exemplo, pode-se colocar os resultados da Semana Nacional da
Conciliação do TRT da 9 ª Região, que em cinco dias realizou 5961 audiências,
com 2447 acordos, o que representa um percentual de 41% de acordos celebrados.
O valor geral obtido com a conciliação foi no montante de R$ 22.776.058,94,
ou seja, quase 23 milhões considerados os acordos da 1ª e 2ª instâncias225.
Constata-se que o Movimento pela Conciliação coordenado pelo
CNJ representa mais uma alternativa de solução de conflitos, por meio da
conciliação, o que contribui em muito para a agilidade e eficácia da Justiça
do Trabalho Brasileira.
Todavia, a conciliação também pode ser obtida ainda quando não há lide
propriamente dita, ou seja, quando há conflito sem haver pretensão resistida,
neste caso sem haver demanda trabalhista. Assim, não há submissão há CCP,
quando existentes, e tão pouco a Justiça do Trabalho.
Esta forma de conciliação sem haver demanda trabalhista, ocorre quando
as partes de comum acordo concordam em resolver seus conflitos, sem necessitar
que uma das partes ingresse com uma ação trabalhista. Esta modalidade de
conciliação denomina-se de transação extrajudicial.
A ocorrência desta forma de solução de conflitos, em regra, é mais comum
quando as partes já possuem um bom nível de diálogo, mesmo no momento do
rompimento do vínculo contratual, o que facilita a aproximação delas, tendo
como resultado a transação. Neste caso, as partes ficam satisfeitas e muitas
vezes sequer vislumbram necessariamente um conflito, pois se concentram em
resolver os problemas levantados por uma ou por ambas as partes.
No entanto, há que se dizer que este tipo de transação apresenta o
mesmo problema da falta de segurança jurídica em ser um título executivo
extrajudicial, pelos mesmos motivos apresentados na conciliação feita na CCP,
com o agravante de não haver uma comissão designada para este fim, sendo
comumente realizada diretamente entre empregado e empregador.
Desta forma, a fim de assegurar maior eficácia a esta forma de conciliação
e assim maior segurança jurídica às partes, é interessante a homologação judicial
dessa transação feita extra juízo, objeto do tópico a seguir.
Apresentação dos dados disponíveis em: http://www.trt9.jus.br/internet_base/pagina
downloadcon.do?evento=F9-Pesquisar&tipo=3#continuidade ao Movimento pela Conciliação.
Acesso em: 02/08/09.
225
206
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
4. A HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL DA TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL
Sob o argumento principal da segurança jurídica no momento da transação
extrajudicial, as partes, ou especialmente o empregador, tem interesse que esta
forma de conciliação seja homologada judicialmente.
No que diz respeito à legislação trabalhista, esta não prevê em seus
dispositivos a homologação judicial de transação extrajudicial. Diante da
omissão da CLT e demais dispositivos, busca-se fundamento em outras
disposições fora do Direito do Trabalho ou Processual do Trabalho.
O Código de Processo Civil (CPC) dispõe em seu art. 475-N, alínea III,
Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, que são títulos executivos judiciais
o acordo extrajudicial, de qualquer natureza, homologado judicialmente. Desta
forma, o CPC contempla expressamente a possibilidade do juiz homologar
acordo extrajudicial de qualquer natureza, e aí se incluiria o trabalhista,
tornando-o título executivo judicial.
O Código Civil Brasileiro não é silente ou omisso nesta questão ao afirmar
em seu art. 840 a licitude dos interessados de se prevenirem ou terminarem o
litígio mediante concessões mútuas. Nota-se que mediante a transação as partes
podem, inclusive, se prevenirem de um litígio, isto é, mesmo não havendo
pretensão resistida, a lide, pode ser transacionada, e neste caso o CPC autoriza
expressamente a sua homologação judicial, passando a ter status de título
executivo judicial.
Diante desta análise nos diplomas legais aqui trazidos, fica notória a
possibilidade da homologação judicial, mesmo sem haver lide, de transação
extrajudicial, nas relações privadas.
Na esfera trabalhista é polêmica esta possibilidade, uma vez que muitos
juízes e Tribunais concordam e assim fazem a homologação de transação
extrajudicial e outros simplesmente entendem não ter a Justiça do Trabalho
competência para tanto. Como dito, a jurisprudência ainda é bastante oscilante
neste particular, e por isso foram selecionadas algumas delas com o objetivo
de demonstrar a não uniformidade nos entendimentos e ao mesmo tempo
apresentar os argumentos de cada uma das posições.
Primeiramente, quanto às transações realizadas no âmbito da CCP
parece não haver dúvida, por parte dos julgadores, acerca de sua validade e
eficácia, salvo se comprovado por aquele que alegou a existência de vício de
consentimento, embora haja ações tentando desconstituir o acordo. As duas
ementas de jurisprudência abaixo comprovam esta afirmação:
TRT-PR-27-02-2009 ACORDO FIRMADO PERANTE A COMISSÃO
DE CONCILIAÇÃO PRÉVIA. VALIDADE. EFEITOS - A transação
207
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
extrajudicial celebrada no âmbito da Câmara de Conciliação Intersindical
instituída pelos sindicatos do autor e da ré possui plena validade,
constituindo-se em título executivo extrajudicial e materialização da
declaração de vontade emitida pelos litigantes, nos termos do parágrafo
único do art. 625-E da CLT. A confissão do autor sobre a livre manifestação
de vontade ao firmar o acordo extrajudicial não autoriza a declaração de
sua nulidade.226
TRT-PR-08-07-2008 TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL. COMISSÃO
DE CONCILIAÇÃO PRÉVIA. ADMISSIBILIDADE. EFEITOS. O
termo de transação extrajudicial, firmado por empregador e trabalhador
perante Comissão de Conciliação Prévia, estando o obreiro ciente do
completo teor e conseqüências do acordo, deve ser reputado como válido e
eficaz, devendo o Judiciário Trabalhista respeitar a declaração de vontade
emitida pelas partes, não lhe sendo lícito interferir nesse pacto, ainda
mais quando não se comprovou o alegado vício de consentimento.227
Diante do exposto, conclui-se que a transação extrajudicial realizada
em CCP goza de maior garantia jurídica, pois há previsão legal expressa
reconhecendo sua validade e eficácia, além dos julgadores reafirmarem em suas
decisões sobre sua validade e eficácia. Logo, pode-se entender que é difícil ver
uma transação desta natureza desconsiderada pela Justiça.
De outro lado, ocorre também que apesar das partes terem transacionado
extrajudicialmente, uma delas tenta socorrer-se a Justiça na tentativa de
pleitear os mesmos ou outros pedidos do mesmo período trabalhado constante
na transação. Neste caso, a decisão abaixo é enérgica ao coibir este tipo de
abuso, reconhecendo a transação extrajudicial, atendendo alguns pressupostos
e respeitando o ato jurídico perfeito.
TRT-PR-19-05-2009 TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL LEVADA
A EFEITO DURANTE O LITÍGIO - QUITAÇÃO CONTRATUAL
- ALCANCE. A conciliação extrajudicial levada a efeito durante o
litígio e submetida à chancela judicial, abrangendo não só os pedidos
formulados, mas todo o contrato de trabalho, como ocorrido no caso em
tela, há que ser respeitada, seja em homenagem ao ato jurídico perfeito
- acordo realizado extrajudicialmente sem qualquer alegação de vício de
TRT-PR-31742-2007-007-09-00-7-ACO-06470-2009 - 1A. TURMA. Relator: EDMILSON
ANTONIO DE LIMA.Publicado no DJPR em 27-02-2009.
227
TRT-PR-00280-2006-325-09-00-1-ACO-24047-2008 - 4A. TURMA.Relator: SÉRGIO
MURILO RODRIGUES LEMOS.Publicado no DJPR em 08-07-2008.
226
208
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
legalidade ou consentimento - seja à coisa julgada - apesar da roupagem
de sentença processual, eis que expressa à extinção do processo sem
a resolução do mérito, não se pode olvidar que o conteúdo do termo
de fls. 217 tem cunho material, ou seja, adentrou no mérito do acordo
celebrado e o validou, leia-se, homologou-o , tendo como corolário a
impossibilidade de repropositura de idêntica ação, sob a despicienda
alegação de que o processo anterior foi extinto sem resolução do mérito.
Ora, considerando os termos do art. 471 do CPC, c/c art. 769 da CLT,
incabível decidir-se, novamente, sobre o mesmo acidente de trabalho e
os respectivos pleitos de indenização, eis que as partes já conciliaram
no particular, cabendo a extinção da presente ação sem resolução do
mérito, com fulcro no art. 267, V, do CPC. Ressalte-se que aos acordos
extrajudiciais tem sido dada plena eficácia por esta C.Turma, máxime
quando há quitação do contrato de trabalho sem quaisquer ressalvas.
Exemplo disso é o acordo firmado perante as Comissões de Conciliação
Prévia, anteriormente à tutela judicial e mesmo em casos em que a
matéria litigiosa sequer abarca todo o contrato de trabalho. Com muito
mais razão no caso em tela, onde o acordo foi firmado sobre o próprio
litígio - acidente de trabalho e pedidos indenizatórios decorrentes -, no
decorrer da lide, pelos próprios causídicos das partes e submetido à
chancela judicial, atraindo a incidência analógica do art. 625-E da CLT
e da OJ 132 da SDI-2 do TST, sendo destarte válido e dotado de eficácia
liberatória geral de todos os direitos oriundos da relação de trabalho,
contratual ou extracontratual. Inteligência da Súmula 13 deste E.TRT.
ACOLHO a preliminar arguida e DECLARO extinto o processo sem
resolução do mérito, com fulcro no art. 267, V, do CPC. LITIGÂNCIA
DE MÁ-FÉ - PARTE E PROCURADOR. O ajuizamento de demanda
postulando as mesmas parcelas já transacionadas anteriormente refletem
o descaso, tanto da parte como da sua advogada, no tratamento com a
Justiça, fazendo-se necessária a condenação do reclamante como litigante
de má-fé, solidariamente com seu advogado, na forma dos artigos 17,
CPC, 896, CCB, e 32, Lei 8.906/94).228
Observa-se que mesmo o juiz de primeiro grau ter homologado a referida
transação, ainda assim a parte moveu ação trabalhista sobre o conteúdo e período
já homologado judicialmente. Neste caso disciplinarmente e de forma acertada,
a decisão condenou o reclamante em litigância de má-fé, solidariamente com
seu advogado.
TRT PR - -99533-2006-006-09-00-3-ACO-14881-2009 - 1A. TURMA. Relator: CELIO
HORST WALDRAFF. Publicado no DJPR em 19-05-2009
228
209
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Outra jurisprudência que merece grande destaque que corrobora nos argumentos
deste estudo, proferida pelo Dr. Juiz de 1° grau do TRT da 9ª Região, Marlos
Augusto Melek, nos autos n°04101-2009-015-09-00-6, que homologa a
transação extrajudicial, mesmo contrariando o parecer do Ministério Público,
apresentando fundamentos inequívocos: quanto a competência da Justiça do
Trabalho para realizar tal feito; a existência latente do interesse de agir; o
substrato principiológico que orienta a conciliação; o resultado social, dentre
outros. Além de argumentos técnico-jurídico o magistrado faz uma reflexão
empírica que merece ser aqui transcrita:
Uma empresa paga ao empregado – dispõe do capital – desde que tenha
segurança jurídica de que o valor acertado é o bastante. Atuar de forma
diversa é assumir um risco desnecessário à atividade, pois se a “porta”
está aberta à lide, porque pagar antes ?
Finalmente, seria um caso quiça raro mas ilustrativo, que as partes já
conciliadas sob os olhos do juiz, que aprecia um pedido de homologação
de transação, passassem à lide, por atos, fatos, palavras (o que é aliás,
factível). A competência jurisdicional nasceria com este conflito ?
Ainda empiricamente, não se pode conceber que seja o juiz o melhor dos
melhores conciliares, embora os Magistrados exerçam tal função com
louvor. Não é monopólio do juiz a conciliação das partes, que podem
resolverem seus problemas pela mediação, ou por si próprias, apenas
pretendendo a chancela judicial.
O momento, informado pela complexidade social inerente à facilidade
do acesso às informações, às novas formas regulamentadas e ainda não
regulamentadas de relações, requer certeza, e não incertezas, motivo
pelo qual o conceito de segurança jurídica é salutar para a manutenção
da paz social.
O juiz existe para resolver problemas, não para criar mais.
A partir dessa reflexão empírica pode-se dizer que a segurança jurídica é
um elemento fundamental na solução de conflitos, e quanto maior a segurança
melhor será as condições que favorecem a conciliar, pois sem haver segurança
do conciliado não há porque conciliar. Também, é notório que não os juízes
não possuem monopólio na conciliação, sendo desejável que as próprias partes
encontrem obtenham a conciliação. O magistrado que não homologa a transação
210
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
acaba por criar mais um problema jurídico para as partes, pois fornece uma grande
insegurança jurídica para o empregador e uma grande possibilidade do empregado,
já conciliado, promova ação trabalhista desconsiderando o acordo celebrado.
Assim, denota-se a importância em se homologar no Judiciário a
transação extrajudicial, eis que a segurança jurídica somente fica garantida na
sua plenitude com o título executivo judicial.
Por outro lado, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região entendeu
não ter competência para homologar acordos extrajudiciais, já que a Constituição
Federal de 1988 menciona que a competência da Justiça do Trabalho é de apenas
conciliar e julgar dissídios em que haja lide.
ACORDO EXTRAJUDICIAL. HOMOLOGAÇÃO. INCOMPETÊNCIA
DA JUSTIÇA DO TRABALHO. A Justiça do Trabalho, como prescreve o art.
114 da Constituição Federal tem competência para conciliar e julgar dissídios
individuais, ou mais apropriadamente, litígios fundados em uma controvérsia,
não se prestando, assim, para homologar acordos extrajudiciais229.
Nota-se que a decisão é do ano de 2002, e o art. 474-N do CPC foi
introduzido apenas em 2005. Todavia, acredita-se que a decisão seria a mesma,
já que o fundamento para a não homologação baseou-se exclusivamente na
competência da Justiça do Trabalho, definida pela Constituição Federal.
Tantas outras decisões poderiam ser trazidas e analisadas. Todavia, o
objetivo é apenas de demonstrar a existência das divergências de entendimentos
na Justiça acerca desta questão.
A partir do exposto, pode-se dizer que os argumentos que sustentam a
possibilidade e até mesmo o dever do magistrado em homologar a transação
extrajudicial, estão consubstanciados na aplicação subsidiária do CPC ao
processo trabalhista, inclusive por determinação da própria CLT em seu art. 769
que diz que nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária
do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com
as normas processuais trabalhistas. Outro argumento utilizado e louvável é que
o princípio da conciliação deve ser sempre o norteador da solução do conflito,
já que é um objetivo a ser perseguido pelo Estado por meio de suas normas,
magistrados e Tribunais.
Diante do caso, não se pode falar em incompatibilidade da lei processual
civil, muito pelo contrário, pois a norma processual civil complementa e
possibilita a concreção dos fins processuais trabalhistas a ser atingidos, em
especial os da conciliação. Desde que não haja vício na realização do acordo
TRT 2ª Região ACO 20020014796 8ª TURMA. Publicado no DOE SP, PJ, TRT 2ª em 29/01/2002.
229
211
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
extrajudicial, como pode a Justiça do Trabalho virar-se de costas para seus
jurisdicionados? Qual seria a alternativa das partes, no caso de não haver
CCP e objetivarem o reconhecimento judicial do acordo, senão por meio da
homologação da transação?
Já os argumentos contrários a referida homologação são entendidos
neste estudo como insuficientes e precários. No que tange a suposta falta de
competência da Justiça do Trabalho prevista na Constituição Federal, esta deve
ser rebatida, pois a Constituição não pode ser interpretada de forma literal e sim
de forma sistemática. Entende-se que a Carta Magna ao utilizar a expressão
dissídios individuais, não quis colocar como condição sine qua non a existência
de lide para se definir a competência e assim autorizar o magistrado a processar
e julgar a ação trabalhista. Quis isto sim, definir a competência material desta
Justiça, e no caso da ação de homologação de acordo extrajudicial, o juiz teria
toda a competência para analisar as matérias ali contidas e assim validar e
atribuir eficácia judicial a transação efetuada.
Além disso pela supressão da palavra conciliar no art.114 da Constituição
Federal, que estabelece a competência da Justiça do Trabalho, não pretendeu
tolher os poderes-deveres conciliatórios dessa Justiça uma vez que as normas
infraconstitucionais não são incompatível com a nova redação. Neste sentido,
Carlos Henrique Bezerra Leite230 é taxativo ao dizer que: “A omissão [da palavra
conciliar], contudo, não desnatura o princípio em estudo, pois ele continua
existindo no plano infraconstitucional e não se mostra incompatível com o novo
texto da Carta de Outubro de 1988.”.
Outro argumento observado é a ausência de pressuposto processual, qual
seja a falta de interesse de agir. Qual interesse seria maior do que obter da
Justiça uma chancela da solução do conflito realizada fora dela, exatamente
com o intuito de se ter maior segurança jurídica? O interesse em agir está
exatamente em haver a homologação judicial do acordo celebrado. Sobre o
interesse de agir Tullio Liebman231, ensina que:
O interesse de agir é o elemento material do direito de ação e consiste
no interesse de obter o provimento demandado. Ele se distingue do
interesse substancial, para cuja proteção se intenta a ação, assim como
se distinguem os dois correspondentes direitos, o substancial, que se
afirma caber ao autor, e o processual, que se exercita para a tutela
do primeiro. O interesse de agir é, pois, um interesse processual,
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 4ªed. São Paulo:
Ltr, 2006 p. 79.
231
Liebman, Enrico Tullio, Manual de Direito Processual Civil, trad. por Cândido Rangel
Dinamarco, vol. I, Ed. Forense, 1984, p. 314.
230
212
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
secundário e instrumental em relação ao interesse substancial
primário, e tem por objeto o provimento que se pede ao magistrado,
como meio para obter a satisfação do interesse primário, prejudicado
pelo comportamento da contraparte.
Diante do conceito de Liebman fica claro que o interesse processual
requer, uma utilidade prática com o resultado da demanda, ou seja, que justifique
buscar o Judiciário exercitando seu direito de ação.
Como visto os argumentos contrários ao ato de homologar não são
coerentes e vão de encontro de toda a principiologia e lógica do direito material
e processual do trabalho.
Conclui-se, então, que o instrumento processual adequado para
a homologação de transação trabalhista, é a promoção de uma ação de
homologação de transação extrajudicial, precisamente com o fulcro no art. 840
do CC e 475-N III do CPC, uma vez que os dispositivos legais são totalmente
compatíveis com a CLT, diante de sua omissão.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo preocupou-se em abordar, ainda que de forma sucinta,
todas as formas de solução de conflitos. A autocomposição mereceu maior
destaque pelo objetivo do trabalho ser exatamente em analisar a possibilidade
jurídica da Justiça do Trabalho homologar transação extrajudicial feita,
sobretudo, fora do âmbito da CCP e da própria Justiça.
Diante da problemática trazida por este estudo concluiu-se que a melhor
forma de transacionar extrajudicialmente é por intermédio da CCP quando
existente, pois há garantias legais que conferem validade e eficácia para os
acordos que neste caso, mesmo não havendo lide podem ser celebrados. Como
visto, ao longo deste trabalho demonstrou-se que a Justiça do Trabalho reforça
as disposições legais pertinentes a CCP, principalmente no que tange aos
acordos celebrados naquela seara.
Todavia, ainda assim quer parecer que seria possível requerer em juízo
a homologação da transação, passando de título executivo extrajudicial para
judicial, o que sem dúvida, oferece maior certeza e segurança jurídica.
O problema realmente reside quando as partes não dispõem de CCP para
transacionar, pois assim elas não têm a opção de socorrerem-se a ela. Assim,
fica patente a insegurança jurídica, já que historicamente a Justiça do Trabalho
vê com muitas ressalvas os acordos extrajudiciais, pelo fato da situação de
hipossuficiência do empregado. Aqui, a homologação, praticamente, passa a
ser uma necessidade para conferir real eficácia à transação realizada.
213
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Neste caso, parece que a melhor solução seria que o juiz homologasse
a transação, mediante a realização de uma audiência conciliatória, se achasse
conveniente e oportuno, designada especialmente para este fim, qual seja a
homologação para que o juiz possa se acautelar e assim ter certeza da real vontade
das partes, evitando assim práticas simuladas pelas partes. Obviamente, nesta
audiência o juiz não analisaria o mérito da questão, ficaria adstrita a confirmar
ou não a existência de vícios de vontade, ou seja, saber se realmente as partes
transacionaram por livre vontade e se têm ciência do que transacionaram.
Tudo isto se justifica sob a égide de mais um argumento: nos casos em
que o juiz não homologa a transação e as partes ainda pretenderem a garantia
conferida por um título executivo judicial, não restaria outra opção senão
simularem uma ação trabalhista, onde o acordo na primeira audiência será
homologado. Assim, observa-se que a Justiça não pode motivar ou contribuir
de alguma forma para a existência de simulação, já que isto sim representaria
uma verdadeira simulação que deve ser repelida a todo custo pela Justiça.
Não se vislumbra simulação de forma alguma no caso da ação que intenta a
homologação de transação extrajudicial.
Por fim, conclui-se que um dos fins da Justiça do Trabalho é motivar e
promover a conciliação entre as partes, e caso não seja necessária sua atuação
no sentido de promover o ato em si, então é seu dever contribuir para que
haja concreção da transação extrajudicial para que surta os efeitos jurídicos
desejados pelas partes, garantindo sempre a segurança jurídica das partes.
214
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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MARTINS, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho. 27ªed. São Paulo:
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215
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A IMPORTÂNCIA DO PROJECT FINANCE NO DESENVOLVIMENTO DAS
EMPRESAS BRASILEIRAS
THE IMPORTANCE OF PROJECT FINANCE IN DEVELOPMENT BRASILIAN
COMPANIES
Isamara Seabra232
SUMÁRIO:1. Introdução 2. Project Finance: breve histórico 2.1 Project
Finance no Mundo 2.2 Project Finance no Brasil 3. Características Gerais
e Estrutura Básica do Project Finance 3.1 Distinção entre Development
Finance, Corporate Finance e Project Finance 4. Aspectos Jurídicos do
Project Finance 5. Riscos em Project Finance e suas Mitigações 6. A
Importância do Project Finance para o Desenvolvimento das Empresas
Brasileiras 6.1 Fontes de Financiamento de Project Finance 6.2. A
Aplicação do Project Finance no BNDES 7. Conclusão.
RESUMO
Esse trabalho tem como escopo descrever os principais aspectos do project
finance: sua origem no mundo e no Brasil, a sua distinção de outras estruturas de
financiamento, como o corporate finance e o development finance, seus aspectos
jurídicos, seus principais riscos e mitigações. Especial atenção é dada para as
dificuldades de operacionalização do project finance no Brasil e as suas principais
fontes de financiamento. Destaca-se, também, a importância da utilização do project
finance para as empresas brasileiras na viabilização de projetos que demandam
elevados montantes de financiamento e que não possuem garantias tradicionais, como
as reais e fidejussórias. Expõe-se que no Brasil os principais agentes financiadores
na estrutura de project finance são os bancos públicos, como por exemplo, a Caixa
Econômica Federal, o BNDES e os Bancos Regionais de Fomento. Por fim, ressalta
que o BNDES é o banco público que tem o maior destaque em operações de project
finance e descreve como essa técnica é ali aplicada.
ABSTRACT
The objective of this paper is to describe the main aspects of project finance
technique: its origin in the world and in Brazil, the distinction for other financing
structures, such as corporate finance and development finance, its legal aspects, main
risks and the mitigations involved in. Special attention is given to the difficulties to
make operational the structure of project finance in Brazil. It is also presented the main
Advogada do BNDES. Mestranda em Direito e Políticas Públicas no UNICEUB. Especialista
em direito público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Bacharel em direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais.
232
217
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
institutions that work with this structure of financing. It also shows the importance of the
use of project finance for Brazilian firms to viable projects that require large amounts
of financing and lack traditional collateral like real ones. The paper also explained that
in Brazil the main financial institutions using the project finance technique are public
banks, such as CEF, BNDES and the Regional Development Banks (BASA, BNB
and Banco do Brasil). At the end, the paper emphasizes that BNDES is the public
bank that is not only the most important bank in financing the infrastructure sector but
also the one that has emphasized on implementation of project finance technique in
Brazil and also describes how it is applied by BNDES.
Palavras-Chave: project finance; histórico; características; estrutura de
financiamento; aspectos jurídicos; riscos; fontes de financiamento; BNDES.
Keywords: project finance; history; features; financing structure, legal aspects,
risks, financial resources; BNDES
1. INTRODUÇÃO
Nos países em desenvolvimento e mesmo nos mais adiantados, os
grandes projetos privados nas áreas de infraestrutura, mineração, indústria e de
alguns segmentos do setor serviços, como o turismo e os serviços tradicionais
do governo possuem, em termos relativos, dificuldades maiores na obtenção de
recursos financeiros para implantação e desenvolvimento.
As dificuldades são de duas ordens: (i) no aporte de garantias reais e pessoais,
geralmente exigidas pelas instituições financeiras em operações de crédito a qualquer
projeto, e (ii) nos elevados volumes de capital necessário, seja na forma de recursos
próprios seja em financiamentos, a serem captados no mercado de capitais. Nos países
onde o mercado de capitais é ainda incipiente essas dificuldades são ainda maiores.
A solução encontrada em âmbito mundial para lidar com problemas de
falta recursos para financiar projetos da infraestrutura vem sendo o uso de uma
engenharia financeira baseada no fluxo de caixa dos próprios empreendimentos,
denominada project finance.
Na técnica de project finance as garantias oferecidas aos bancos
financiadores são os ativos do empreendimento a serem adquiridos e os valores
recebíveis ao longo do funcionamento do mesmo, ou seja, em última análise, a
garantias corresponde ao próprio lucro gerado no fluxo de caixa do projeto233.
O fluxo de caixa de um projeto é representado por todas as entradas e saídas de dinheiro do
empreendimento tais como, a compra de ativos, o pagamento da mão de obra empregada no
projeto, as matérias primas, a compra de equipamentos e máquinas, o pagamento das construções
e o recebimento das vendas e demais valores.
233
218
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Esse trabalho tem como escopo descrever os principais aspectos da
sistemática de project finance, chamando atenção para as dificuldades de
operacionalização dessa estrutura de financiamento e dando destaque para sua
importância para viabilizar projetos que demandam montantes elevados de
financiamento e cujos empreendedores e investidores não possuem garantias
pessoais ou reais a oferecer. Além disso, expõe a importância e a necessidade da
aplicação do project finance no Brasil para auxiliar as empresas na batalha por
obtenção de crédito para investimentos, em um mercado bancário conservador
e não disposto a correr riscos. Por fim, o trabalho discorre sobre a aplicação
do project finance nos financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social – BNDES, que, no Brasil, foi o pioneiro nestas operações,
tendo alcançado a posição de principal fonte de recursos de longo prazo para
financiar os diversos setores da economia.
O trabalho está assim dividido: introdução, cinco tópicos de análise
e conclusão. A primeira parte da análise destina-se a apresentar um breve
histórico da técnica de project finance no mundo e no Brasil. A segunda analisa
as características gerais e a estrutura básica do project finance, além de fazer
a sua diferenciação de outras estruturas financeiras. O terceiro tópico traz os
principais aspectos jurídicos envolvidos em um project finance . A quarta relata
os mais importantes riscos envolvidos em project finance e como eles podem
ser mitigados. Por fim, o artigo expõe como a técnica de project finance pode
contribuir para o desenvolvimento das empresas brasileiras, ao auxiliar na
obtenção de crédito. Mostra também quais os principais agentes financiadores
que empregam a sistemática de project finance, dando destaque à sua aplicação
pelo BNDES. No último item são apresentadas as conclusões finais.
2. PROJECT FINANCE: BREVE HISTÓRICO
2.1 O PROJECT FINANCE NO MUNDO
O financiamento de empreendimentos com base nas características de
project finance possui uma longa história, começando na antigüidade clássica,
nos empreendimentos marítimos contratados sob a forma de comande ou
comanda, relatados no Direito Comercial. Nesses empreendimentos, quem
ajudava a armar e a financiar uma expedição comercial tinha direito a uma parte
de seus resultados, porém bancava todos os riscos da empreitada.
Dessa forma, projetos de grande porte que, sem outra forma de
financiamento, seriam abandonados, puderam ser empreendidos através de
estruturas societárias e creditícias originais, utilizando-se de uma estrutura
financeira adequada para reduzir os riscos dos sócios empreendedores,
219
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
utilizando-se de instrumentos como a segregação jurídica, a securitização de
receitas, a gestão compartilhada das perdas e a diluição de responsabilidades.
Assim foram financiadas as Cruzadas, as grandes navegações ibéricas,
as expedições de corsários e as Companhias das Índias de Portugal. Há
também registros que, no século XIII, a Coroa Britânica negociou um grande
empréstimo junto ao Frescobaldi, à época, um dos importantes bancos de
investimento de Milão, para explorar as minas de prata da região de Devon,
na Escócia234.
O contrato era um esboço do que existe atualmente sob a denominação
de project finance, pois previa que o credor teria direito a controlar as
operações das minas pelo período de um ano, quando usaria o direito de
retirar quanto minério não refinado que conseguisse, tendo, porém, que
assumir integralmente o custo e os riscos de operação das minas. E a Coroa
Britânica não oferecia qualquer garantia quanto à quantidade ou qualidade
da prata que poderia ser extraída durante aquele ano. Tais condições de
empréstimo foram antecessoras ao que hoje se conhece como empréstimo
com pagamento em produção235.
Nos Estados Unidos, os primeiros financiamentos na base de project
finance ocorreram na década de 1930, no segmento de exploração de
recursos naturais, no projeto da Wildcat, uma empresa do ramo petrolífero
que, nos estados do Texas e de Oklahoma, explorou campos de petróleo,
a partir de financiamentos garantidos apenas pelo fluxo de caixa futuro do
empreendimento a ser implantado236.
Naquele país houve alguns estímulos públicos para a estruturação de
financiamentos na forma de project finance, aprovado pelo Congresso NorteAmericano, como o Public Utility Regulatory Policy Act (PURPA) de 1978. Os
incentivos serviram para incrementar os investimentos em fontes alternativas
de energia, a partir da obrigação de as empresas concessionárias de serviços
públicos comprarem energia das empresas produtoras, por meio de contratos
de compra de longo prazo. Estes contratos permitiram às empresas produtoras
de energia a projetar suas receitas com segurança, e com o uso de recebíveis de
longo prazo representativos dos lucros futuros, as concessionárias poderiam
captar financiamentos e tornar viável a implantação de seus projetos.
2.2 O PROJECT FINANCE NO BRASIL
Faria, Viviana Cardoso de Sá. O papel do project finance no financiamento de projetos de
energia elétrica:caso UHE Cana Brava. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Programa de
pós-graduação de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003, p. 48.
235
Pereira, Renato Sundin. O project finance como fonte alternativa de recursos. Dissertação de
Mestrado. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção. Universidade
Federal de Santa Catarina - UFSC, Santa Catarina, 2003, p.16.
236
Ibidem. Pereira, Sundim; p.17.
234
220
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
No Brasil, a década de 1970 foi marcada pela elevação da inflação e
implantação de grandes projetos do governo, que demandavam elevado volume
de recursos, providos por instituições financeiras internacionais ou pelo próprio
setor público, com recursos do Tesouro e com baixo custo de financiamento.
Na década de 1980, com a deterioração financeira e operacional do
setor público, o País chegou a decretar moratória internacional, prejudicando
substancialmente a captação de recursos e o crescimento da economia, e levando
o governo a reduzir sua participação no total dos investimentos do País. De modo
mais acentuado, os investimentos em infraestrutura foram reduzidos, gerando
gargalos estruturais na economia237, fato que foi agravado pela falta de alternativas
às fontes tradicionais de financiamento para os grandes projetos da infraestrutura.
Nos anos 1990, o País implantou o Programa Nacional de Desestatização
e vendeu a maioria das empresas públicas, buscando aliviar a situação das
finanças do governo. No entanto, em face das sérias restrições orçamentárias,
o Estado permaneceu incapacitado de manter a tradição histórica de financiar,
por via fiscal, os grandes investimentos públicos (como comentado, os
investimentos eram viabilizados por meio de recursos públicos e empréstimos
de agências nacionais e multinacionais de crédito).
Após a metade da década de 1990, tendo sido obtida a estabilidade econômica,
o País buscou alternativas para realizar os investimentos na infraestrutura, contando
principalmente com o setor privado. Em face da mudança de atuação do setor
público, o setor privado passou a demandar volumosos financiamentos e garantias
no mercado financeiro visando implementar as obras públicas. A partir de então
a necessidade de criar formas alternativas para viabilizar os financiamentos
demandados, e o project finance começasse a se desenvolver no País.
A técnica de project finance foi empregada no Brasil, pela primeira vez,
em 1996, através de uma operação pioneira de financiamento realizada pelo
BNDES para um projeto privado na área de saneamento básico. Em seguida,
os agentes tradicionais de financiamento ao setor de infraestrutura, tais como
Caixa Econômica e o Banco do Brasil, também procuraram no project finance a
solução para os problemas de funding e garantia, criados pelas novas demandas
de recursos das empresas privadas238.
3. CARACTERÍSTICAS E ESTRUTURA BÁSICA DO PROJECT FINANCE
Finnerty239define project finance como a captação de recursos para
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Project Finance e infraestrutura: descrição e críticas. Revista do
BNDES, Rio de Janeiro: Revista do BNDES, v. 5, n. 9, pg.105-121, jun. 1998, p. 2.
238 Ibidem,p.3.
239
Finnerty, Jonh D. Project finance. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1999, p. 355.
237
221
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
financiar determinado projeto de investimento, cujo capital seja economicamente
segregável, através de uma empresa denominada Sociedade de Propósito
Específico ou sociedade veículo do empreendimento (conceitos apresentados
adiante) e sem a utilização de garantias reais para os financiamentos aportados.
As principais características dessa estrutura de financiamento
compreendem: 1) a busca da minimização dos riscos do projeto ao longo
de sua vida útil, através de diversos meios, inclusive o estabelecimento de
obrigações contratuais e 2) o baixo risco mercadológico do empreendimento a
ser financiado, que garanta controle e previsibilidade às receitas do projeto. Por
meio de arranjos contratuais com os recebíveis do empreendimento, os credores
garantem o recebimento de seus créditos.
Em project finance, a análise do projeto e a realização do financiamento
são fundamentalmente baseadas no fluxo de caixa, gerado a partir das
receitas e despesas previstas para o investimento. Ou seja, o que determina a
viabilidade do projeto e o seu financiamento é a expectativa de que ele gerará
retorno econômico e financeiro satisfatório e previsível, demonstrado em seu
fluxo de caixa, e não a confiança ou segurança proporcionada por bens dos
empreendedores, oferecidos em garantia aos financiadores.
Em outras palavras, a viabilidade do projeto não deve depender do crédito
geral ou do patrimônio da empresa tomadora do empréstimo, e sim da capacidade
de geração de fundos no próprio projeto. O financiamento ficará garantido não
por valores reais, mas sim por meio de compromissos contratuais, inclusive
a contratação de seguros, que irão garantir a geração de lucro e o pagamento
do crédito recebido. Por isso se diz que esse esquema de financiamento apóiase no mérito do projeto, ao invés de fundar-se na credibilidade da empresa
responsável pelo empreendimento ou nos empreendedores, sejam pessoas
físicas ou jurídicas.
No emprego da técnica de project finance é fundamental a identificação,
mensuração e análise dos riscos que envolvem o projeto, bem como dos
meios empregados para mitigá-los. A análise e o tratamento dos riscos em
project finance mostram uma outra característica importante do método: ser
uma metodologia capaz de reduzir os riscos envolvidos no projeto, além de
melhor distribuí-los entre os participantes, sejam investidores, fornecedores,
financiadores ou outros.
Segundo Bonomi e Malvessi240, as operações de financiamento a um
empreendimento podem ser classificadas de acordo com as garantias concedidas
aos seus financiadores, da seguinte forma:
1) Non recourse241 - sem cobertura de garantias reais, ou que não permite
Bonomi, Cláudio Augusto; Malvesse, Oscar. Project finance no Brasil. São Paulo: Atlas, 2002, p. 64.
Vale notar que no decorrer do trabalho serão usados termos em inglês habituais da prática
bancária dos países anglo-saxões.
240
241
222
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
aos credores acionar o patrimônio dos investidores ou de outros parceiros do
empreendimento, em caso de inadimplemento;
2) Limited course – com cobertura parcial de garantias; um conjunto de
garantias convencionais são cedidas pelos empreendedores e acionistas aos
financiadores, como caução de ações, hipoteca, carta de crédito, acrescido dos
recursos e bens do próprio empreendimento; essas garantias podem permanecer
válidas durante certa fase do projeto ou durante todo o período de duração do
financiamento e correspondem à parte das obrigações para com as instituições
financiadoras, ou seja, o financiamento possui garantias que dão acesso parcial
ou temporário aos ativos dos patrocinadores e investidores responsáveis pelo
projeto, sendo o acesso aos ativos uma garantia subsidiária, durante uma fase
do projeto (na fase de construção, geralmente), e depois liberadas, ficando os
financiadores a partir daí cobertos em seus créditos apenas pela garantia dada
pelas receitas líquidas do empreendimento. Correspondem à prática mais usual
no sistema financeiro.
3) Full recourse - os credores contam com os recursos gerados
pelo empreendimento, além de garantias convencionais, concedidas pelos
acionistas, para garantir a totalidade das obrigações do tomador de recursos.
Os financiamentos full recourse não se aplicam a project finance.
No project finance a responsabilidade patrimonial dos empreendedores
em relação ao financiamento deve ficar limitada à sua participação no capital
integralizado do projeto, deixando o restante do seu patrimônio pessoal livre de
qualquer compromisso relacionado ao empreendimento e aos financiamentos.
Por isso, nos financiamentos dos tipos non recourse e limited recourse242,
os agentes financiadores, por meio de esquemas legais pré-estabelecidos
contratualmente, estão protegidos por um direito preferencial à principal fonte
de pagamento do empréstimo, o fluxo de caixa do empreendimento243, e os
financiamentos com estas características são candidatos a serem estruturados
na forma de project finance.
De modo geral, em project finance, o exercício da garantia fundamental,
os recebíveis, se processa pela escolha de uma instituição, que fica responsável
pela administração de uma conta bancária para receber as receitas do projeto.
Na administração dessa conta fica estabelecida prioridade para o pagamento
dos gastos operacionais e do serviço da dívida contraída.
No caso de financiamento realizado por um consórcio de agentes
financeiros é preciso que seja escolhido um banco líder para tratar, por mandato,
do relacionamento com a sociedade veículo e com os demais participantes do
empreendimento. Em geral, a principal instituição financeira é chamada de
Bonomi, Cláudio Augusto; Malvesse, Oscar,op.cit, p.65.
Idem.
242
243
223
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
“banco líder ”244, e o seu papel como garantidor subsidiário dos pagamentos a
todos os credores faz com que ela seja uma instituição trustee.
Como mencionado, no Brasil, não existe a presença de project finance
na modalidade full recourse. Em geral os financiamentos com base em project
finance acontecem na modalidade limited recourse ou non recourse, em que os
credores não têm seus créditos cobertos por garantias reais, ou estão garantidos
apenas parcialmente.
Seixas esclarece melhor alguns fundamentos essenciais do project
finance, como a separação de riscos na sociedade veículo do projeto245 , sendo
imprescindível que o projeto, desde a sua origem, permaneça segregado dos
demais interesses e negócios de seus participantes e financiadores. Com isso,
os bens e os demais componentes do patrimônio da sociedade veículo ficam
vinculados apenas à realização do projeto, e este deve ser autosustentável.
Em project finance, a estrutura de financiamento ao projeto é definida em
função da análise e da atribuição de pesos aos diferentes riscos. Exige-se, além
disso, que outros procedimentos sejam realizados, tais como: um planejamento
para o uso racional das diversas fontes de financiamento disponíveis; a
segregação do projeto de tal forma que o acervo patrimonial não tenha
destinação diversa do objetivo original do projeto, e a organização de inúmeros
instrumentos de segurança e de fiscalização administrativa do empreendimento
para que o princípio da destinação única dos bens da sociedade veículo e do uso
racional das fontes de financiamento do projeto sejam seguidos.
Por outro lado, para que o princípio do non recourse project finance seja
respeitado na estruturação do financiamento, os diferentes riscos e benefícios
do projeto devem ser alocados de acordo com os interesses de cada um dos
participantes do empreendimento, ou seja, deve haver diferente distribuição dos
riscos e dos benefícios, sempre procurando alocar os riscos para aqueles que têm
melhor capacidade de suportá-los, compensando-os com maior benefício a receber.
Em project finance, o aporte de recursos próprios do empreendedor ao
projeto varia de 10% a 20% do investimento total. O aporte de capital próprio
possui os objetivos de mostrar o comprometimento dos empreendedores
em realizar o projeto tal como foi planejado e reduzir o risco dos recursos
financiados246. O valor remanescente do investimento total, ou seja, entre 90%
ou 80%, é geralmente financiado por uma ou mais instituições financeiras.
Borges, Luiz Ferreira Xavier Borges. Aplicabilidade das Técnicas de Project Finance para
Financiamento da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997
a 2001. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPE, Engenharia da Produção, 2005, p. 102.
245
Seixas, Renato. Project Finance, em empreendimentos de pequeno e médio porte. Revista de
Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Ano 10, nº 10, v. 37, pg. 30-47. Jul./Set. 2007, p. 38.
246
Seixas, Renato,op.cit, p. 40.
244
224
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Havendo dois ou mais financiadores, costuma-se dizer que o projeto é financiado
por meio de um sindicated loan - por um pacote de financiamentos do qual
participam vários investidores financeiros247. Assim, os riscos do projeto ficam
distribuídos entre o empreendedor e os diversos financiadores.
Quando os financiadores exigem garantias reais que pertencem à empresa
veículo do projeto o pacote de garantias fica constituído pelo acervo patrimonial
dela (chamado de security package), um patrimônio que necessita ser adequado,
suficiente e de fácil liquidação e execução, tanto quanto possível, com riscos jurídicos
mínimos ou inexistentes248. Quase sempre há nessa modalidade de financiamento a
exigência por parte dos financiadores para que seja viável a execução extrajudicial
dessas garantias à primeira solicitação (first demand garantee)249.
3.1 DEVELOPMENT FINANCE, CORPORATE FINANCE, PROJECT FINANCE: DISTINÇÃO
Algumas vezes o project finance é confundido com outros esquemas de
financiamento, tais como development finance e corporate finance, que são
institutos de financiamento com realidades bem diferentes.
Nos projetos organizados na base de development finance, conhecido
também como “velho modelo de financiamento”, o governo majoritariamente
provê os recursos e banca os riscos dos investimentos. Estes investimentos
quase sempre são realizados por empresas estatais concessionárias de serviços
públicos ou pela administração pública direta250.
Em development finance o lucro dos projetos e das empresas financiadas é
tratado como questão secundária, e a análise dos projetos não obedece a critérios apenas
financeiros, mas sim atendem a conceitos de importância estratégica para o país e o
interesse público. Ou seja, nesses casos, a visão dominante é que as características e
o interesse públicos, presentes na edificação de infraestruturas e produção de serviços
públicos, requerem necessariamente provisão por meio do Estado e financiamento
público, e em algumas vezes monopólio, sendo em geral as garantias fornecidas pelo
Tesouro Nacional, que é o tomador dos recursos ou o garantidor dos empréstimos.
Esse modo de financiar projetos do setor público foi e ainda é praticado em
todo mundo. Entretanto, como cada vez mais tem sido incentivada a presença da
iniciativa privada em parceria ou não com o governo, nos grandes projetos dos
segmentos da infraestrutura, as instituições financeiras cada vez mais observam
Ibidem, p. 41.
Idem.
249
Idem.
250
Borges, Luiz Ferreira Xavier Borges e Faria, Viviana Cardoso de Sá. Project Finance:
considerações sobre a aplicação em infra-estrutura no Brasil. Rio de Janeiro: Revista do BNDES,
v. 9, n. 18, p. 241-280, dez. 2002, p. 274.
247
248
225
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
os princípios do project finance em suas operações de financiamento, e realizam
a análise do financiamento e dos riscos.
Por outro lado, no corporate finance, o estudo do financiamento é
focado na análise da capacidade de pagamento da empresa tomadora dos
recursos. Os financiadores não se asseguram, a priori, se os recursos solicitados
serão necessariamente aplicados em determinado projeto, pois uma vez
disponibilizados para a empresa podem ser absorvidos por outros projetos251.
As operações financeiras com base no corporate finance são geralmente
realizadas levando em conta que já existe uma planta em operação. Portanto,
ela possui um histórico de resultados (pelo menos um ano), que permite projetar
quais serão os resultados futuros da empresa em termos de lucro e capacidade
de pagamento de um financiamento. Se os resultados projetados apresentam
tendência à lucratividade, a empresa pode receber os empréstimos solicitados,
oferecendo garantias que, inclusive, podem ser de terceiros252. A expansão das
atividades da empresa e o posterior pagamento do financiamento são realizados
com base nos lucros projetados.
As garantias tradicionais, reais ou pessoais, concedidas aos financiadores,
predominam nesse tipo de financiamento253. E, como mencionado, não existindo
necessariamente a vinculação do financiamento a determinado projeto da
empresa, há sempre o risco de a empresa envolver-se em outros projetos e
os resultados financeiros se afastarem da situação inicialmente avaliada para
concessão do crédito, criando incerteza para os financiadores.
No corporate finance, os empreendedores têm liberdade de gerir seu próprio
negócio, assumindo o risco de qualquer problema que possa ocorrer na empresa,
o que faz dos financiadores simples observadores do processo de investimento.
Para a realização do corporate finance, as organizações recebedoras do
financiamento são geralmente estruturadas de forma corporativa e nas seguintes
situações: os credores têm total direito de regresso junto ao empreendedor
ou patrocinador do projeto; os riscos são diversificados entre os ativos do
patrocinador e da empresa recebedora do financiamento; os riscos podem ser
transferidos a terceiros através de contratação de seguros; os financiamentos
podem ser rapidamente montados desde que a empresa tenha informações
adequadas de suas operações passadas, que permitam projetar os lucros
futuros; os recursos gerados internamente podem ser usados para financiar
outros projetos da empresa; os credores se valem de toda a carteira de ativos do
Borges, Luiz Ferreira Xavier Borges e Faria, Viviana Cardoso de Sá. Project Finance:
considerações sobre a aplicação em infra-estrutura no Brasil. Rio de Janeiro: Revista do BNDES,
v. 9, n. 18, p. 241-280, dez. 2002, p.275.
252
Seixas, Renato, Op.cit, p. 32.
253
Pereira, Renato Sundin, op.cit,p. 20.
251
226
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
patrocinador para garantir o pagamento do serviço da dívida; e há somente um
contrato de financiamento254, que cobre as fases de implantação e de operação,
sendo o credor e o devedor únicos.
Diferentemente das modalidades corporate finance e development
finance, acima discutidas, a estruturação de um project finance é muito mais
complexa e envolve grande esforço de negociação para realização de acordos,
não só entre os sócios e financiadores como também entre fornecedores,
clientes, empresas seguradoras, etc. Como resultado, essas negociações geram
uma estrutura de compartilhamento de riscos e garantias, que são expressos em
diversos instrumentos jurídicos, sempre seguindo o princípio de buscar garantir
o maior retorno financeiro para o projeto pela redução do custo financeiro.
4. ASPECTOS JURÍDICOS DO PROJECT FINANCE
a) A Sociedade de Propósito Específico (SPE)
Em project finance, o projeto é implementado por meio de uma pessoa
jurídica, criada especificamente para realizar seus objetivos. Em geral, a pessoa
jurídica adota a forma de uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada
ou de sociedade anônima (aberta ou fechada) em seu contrato social ou estatuto.
A entidade relacionada com a implantação do projeto possui as seguintes
denominações: sociedade-veículo (vehicle entity), sociedade de propósito
específico (special purpose company, a denominação mais adotada no Brasil) e
a sociedade de objeto exclusivo (exclusive purpose company).
A Sociedade de Propósito Específico ou SPE não constitui um novo tipo
societário na ordem jurídica brasileira. Ela se organiza sempre sob uma das
formas previstas pela legislação255.
A idéia central da SPE é que seja uma sociedade constituída exclusivamente
para viabilizar a consecução de um projeto, e mais que isto, que todos os riscos
e benefícios inerentes ao projeto fiquem nela contidos. A SPE não tem passado,
nasce em determinado momento para a realização do projeto e desenvolve
atividades exclusivamente vinculadas ao mesmo. Portanto, não há exposição a
atividades passadas. Da mesma forma, a SPE não expõe os seus proprietários
em suas outras atividades. Mais ainda, durante o tempo de duração do projeto,
a sociedade-veículo permanece isolada dos riscos decorrentes de atividades
passadas, presentes ou futuras de seus participantes ou dos investidores em seus
Pereira, Renato Sundin,op.cit,p. 23.
FERES, Marcelo Andrade. As sociedades de propósito específico no âmbito das parcerias
público-privadas-PPP. Algumas observações de Direito Comercial sobre o art. 9° da Lei
11.079/2004. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 694, 30 de maio de 2005. p. 3.
254
255
227
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
projetos. Para que esse isolamento ocorra são previstas diversas cláusulas no
ato constitutivo dessas instituições256.
Em geral, na constituição de uma SPE deve haver previsão de cláusulas
de saída dos sócios. Se uma das partes quiser vender sua participação na empresa
terá que oferecê-la primeiro aos demais sócios que terão direito de preferência
na aquisição, em igualdade de oferta. Também é possível a exigência de aval
dos bancos financiadores para a entrada de novo sócio.
Na SPE, deve haver uma previsão para o caso de conflito de interesses:
se um dos acionistas por intermédio de suas empresas contratarem serviços com
a SPE, ele deverá abster-se de participar de qualquer decisão referente a essa
contratação.
Quanto ao controle da SPE, há vários meios para impedir que a sociedadeveículo esteja sob controle de um de seus membros ou de um bloco de controle
isolado. Os dois principais meios para isso são257:
1) a criação de ação ou cota social, com direitos e prerrogativas especiais,
como o direito de veto a respeito de certas deliberações e o direito de votar em
separado matérias especificas;
(2) estabelecimento no ato constitutivo da SPE do projeto de certas
matérias para as quais serão exigidas deliberações unânimes; para outras
matérias pode haver o direito de veto por parte de determinados membros.
b) As garantias
A regra básica em project finance é serem as garantias reais ou
fidejussórias adicionais ou acessórias, pois os recebíveis do projeto constituemse na principal garantia.
Para que haja proteção e preservação dos recebíveis e para as variações
no fluxo de caixa do projeto devem ser estipuladas obrigações contratualmente
ajustadas, as chamadas covenants258. O conjunto dessas garantias de suporte
à obtenção das receitas previstas é chamado de security package. Como em
project finance as garantias reais dão ao credor apenas uma forte posição de
negociação, a importância e o papel dos covenants são reforçados.
c) Os recebíveis
Os recebíveis correspondem às receitas futuras do projeto. Os recebíveis
de uma empresa são formalizados por meio de sua securitização (títulos
de crédito ou valores mobiliários representativos das receitas futuras, que
Ibidem,p.3-5.
Seixas, Renato, op.cit,p. 39.
258
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Covenants: Instrumento de Garantia em Project Finance. Rio de
Janeiro: Revista do BNDES, v. 6, nº11, pg. 117-136, jun/1999, p. 119.
256
257
228
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
lhe servem de lastro ou estão a elas vinculadas) ou de sua vinculação a
títulos259. A securitização é materializada pelo mandato conferido a uma
instituição financeira, que funciona como agente fiduciário da operação de
financiamento, para reter em conta especial os valores para pagamento dos
créditos recebidos pelo projeto.
Nos Estados Unidos, a instituição financeira que controla e fiscaliza
os recursos gerados pelo empreendimento edificado numa SPE é chamada
de trustee. No direito brasileiro ocorre a adaptação da lei norte americana,
havendo redução e especialização do conceito de trustee, que é interpretado
como sendo um pouco mais que um mandatário260. Essa figura semelhante à
do modelo norte americano é chamada de agente fiduciário261 e só é usada no
caso de garantia de recebíveis.
A forma operacional de acesso à receita do projeto se dá através de uma
conta corrente, que deverá recolher os créditos do devedor (collection account)
e efetuar os pagamentos aos credores (escrow account). O Banco é denominado
escrow agent ou agente financeiro fiduciário do project finance262.
A constituição do agente fiduciário é realizada por um contrato em
que se estabelecem as condições de transferência de uma conta para outra, os
investimentos para os quais os recursos se destinam e as obrigações da instituição
financeira de prestar informações sobre a situação das contas correntes, quando
solicitadas pelos credores. É importante ressaltar que, no Brasil, apesar desse
instrumento ter uma visão mais limitada que o instituto do trustee da prática da
legislação norte americana, nada impede que, dentro da liberdade contratual,
as partes criem obrigações que reproduzam as práticas internacionais para o
escrow agent e a escrow account.
A conta bancária é denominada collection account e deve ser mantida em
banco de notória solvência. Qualquer valor relacionado ao projeto será depositado
e mantido nessa conta de coleta, tais como: o capital próprio integralizado do
empreendedor, todos os empréstimos realizados para desenvolver o projeto,
indenizações securitárias, receitas diversas, etc.
Como suporte à garantia de recebíveis, nas operações de financiamento
de um project finance é constituída uma aplicação financeira ou conta corrente
vinculada, formando um “colchão de liquidez”263 para o caso de as receitas da
Ibidem, p. 129.
Trust, no direito anglo-saxão, é um contrato financeiro em que alguém, um grupo de pessoas
ou uma organização, guarda ou investe direito alheio.
261
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Aplicabilidade das Técnicas de Project finance para Financiamento
da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001.
Tese de doutorado, Rio de Janeiro, COPPE/UFRJ, Engenharia da Produção, 2005, p.87.
262
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Covenants: Instrumento de Garantia em Project Finance, p. 136.
263
Ibidem, p. 137.
259
260
229
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
conta centralizadora não serem suficientes para liquidação do serviço da dívida
financeira com os bancos credores. Essa conta é chamada de conta reserva ou
“colchão” e deve ser mantida pelo devedor durante todo o prazo do contrato de
financiamento, para pagamento de parcelas do principal e respectivos encargos
financeiros. Geralmente são mantidos nesta conta recursos no montante
suficiente para cumprimento das obrigações financeiras durante um ano.
d) os covenants
O instituto do covenant constitui no direito anglo-saxão264 um
compromisso ou promessa, para qualquer contrato formal de dívida, lícito e
possível, protegendo os interesses do credor e estabelecendo que determinados
atos não devam, ou devam, cumprir-se. Trata-se, portanto, de um sistema de
garantias indiretas, próprio de financiamentos, representado por um conjunto de
obrigações contratuais acessórias, positivas (positive covenants) ou negativas
(negative covenants), objetivando o pagamento da dívida.
Os covenants265 podem conviver com as garantias tradicionais por toda
vida do contrato de financiamento, ou por prazo determinado, como também
podem constar no contrato de empréstimo ou em outros contratos relacionados
ao empreendimento. Os covenants podem ser protegidos e assegurados através
de previsão contratual de juízo arbitral.
As obrigações positivas, positive covenants, são exigências relativas
à observância de determinadas boas práticas de gestão, consideradas
indispensáveis à eficiente administração da empresa ou do projeto. As
obrigações negativas, negative covenants, são exigências para que a empresa
adote comportamentos restritivos em sua conduta. Os dois tipos consistem
em obrigações civis ou comerciais acessórias, equiparando-se às obrigações
de fazer e de não fazer, disciplinadas pelo Código Civil, as quais se prendem
basicamente a três modalidades mais comuns de preocupações266:
1) limitação do grau de endividamento da empresa contratada através
de uma expressão financeira genérica a ser seguida e relatada a partir de dados
do balanço da empresa; 2) limitação ou impedimento para contrair novas
obrigações e impedir a subordinação futura do direito do credor contratante,
impedimento que se refere a créditos com garantia real ou privilégios,
excetuando-se obrigações inerentes ao financiamento regular da empresa (essas
obrigações já são normalmente previstas nos padrões contratuais das instituições
Azúa, Daniel Real de. Project finance. Uma modalidade de financiamento Internacional. São
Paulo: Aduaneiras, 2002, p.33.
265
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Aplicabilidade das Técnicas de Project finance para Financiamento
da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001, p.102.
266
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Covenants: Instrumento de Garantia em Project Finance,p. 132.
264
230
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
financeiras); e 3) manutenção de capital de giro mínimo, estipulada a partir
de um índice de liquidez corrente, calculado com base em valores do balanço
auditado da empresa; a liquidez deve ser mantida para proteger o credor contra
uma significativa expansão das responsabilidades a curto prazo ou contra uma
possível diminuição do nível de negócios da empresa267.
São exemplos de obrigações adicionais positivas: prestar regularmente
informações que permitam o acompanhamento do projeto pelo credor, manter
escrituração adequada, ceder cópias das demonstrações financeiras auditadas,
informar fatos relevantes e suas prevenções, dar livre acesso à empresa a
auditores externos, efetuar pagamento tempestivo geral, manter seguros
adequados e respeitar a legislação sobre a livre concorrência.
São exemplos de obrigações adicionais restritivas ou negativas: não
assumir ou garantir obrigações de terceiros, exceto as ordinárias, não permitir
privilégios e prioridades, bem como garantias reais ou pessoais que onerem
seu ativo, exceto as já existentes, os destinados a negócios ordinários e as
decorrentes de lei.
Outros exemplos de obrigações adicionais negativas são: não vender,
descontar ou dispor de títulos de crédito, exceto nas operações ordinárias;
não mudar a natureza do negócio ou objeto; não efetuar incorporação, fusão
ou cisão; não antecipar pagamentos e limitar empréstimos, investimentos,
dividendos, resgate e remuneração de sócios e administradores; limitar o voto
dos controladores quanto à alienação direta ou indireta do controle, distribuição
de dividendos, endividamento, tecnologia; não dar em caução nem se desfazer
de qualquer dos bens do ativo da empresa.
A lógica do uso de covenants se completa com a estipulação da pena de
vencimento antecipado em caso de inadimplemento das obrigações principais e
acessórias, depois de um prazo determinado no contrato em que o devedor poderá
regularizar a situação das obrigações assumidas268. É importante estipular que
esse prazo para sanar o vício começa a contar a partir de interpelação judicial
ou extrajudicial feita pelo credor. No caso de operações bancárias nacionais e
internacionais existe ainda a possibilidade de ser previsto o vencimento cruzado
de todos os contratos do devedor.
5. RISCOS EM PROJECT FINANCE E SUAS MITIGAÇÕES
No financiamento corporativo os riscos são assumidos quase que
integralmente pelos sócios da empresa tomadora do empréstimo. No project
finance, são os financiadores que assumem o maior risco, ao financiar o projeto
Ibidem,p.133.
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Covenants: Instrumento de Garantia em Project Finance.p. 134.
267
268
231
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
em proporções muito acima da participação de equity ou do capital próprio.
Neste tipo de financiamento, uma das etapas mais importantes de sua
estruturação é a análise de todo o ambiente em que o empreendimento estará
inserido, para antecipar cenários de adversidades e riscos e procurar formas
de mitigá-los, principalmente através de arranjos contratuais. Somente a
partir da qualificação e quantificação dos riscos é que se verifica se um
projeto é “bancável”.
Os riscos podem estar relacionados, dentre outros motivos, à
imprevisibilidade dos parâmetros econômicos usados nas projeções do
fluxo de caixa do projeto (risco do negócio) e às incertezas resultantes
de variações dos juros pagos nos financiamentos, das disponibilidades
de recursos no mercado financeiro e das flutuações do valor das moedas,
utilizadas no processo de financiamento do empreendimento – o chamado
risco financeiro ou financial risk269;
Diferentemente da abordagem tradicional quantitativa, a análise de
risco em project finance é qualitativa e usada para encontrar soluções com
o maior nível de segurança possível para os riscos envolvidos no projeto.
Como os empreendimentos em project finance são novos, de longo prazo
de maturação e não possuem histórico de rentabilidade e longevidade, são
necessárias garantias contra certos riscos básicos, a partir da utilização de
instrumentos existentes no mercado270.
Um exemplo da mitigação de riscos está no uso de consórcio (sindicated
loan ) de agentes financeiros para a divisão do risco do financiamento do
empreendimento. Outros exemplos compreendem: 1) a utilização da conta
garantia centralizadora ou pagadora do empréstimo (escrow account), que
é fundamental para a mitigação de diversos riscos de procedimentos na fase
operacional do projeto271, e 2) a cobertura do financiamento com garantias
adicionais reais ou pessoais, de fora do projeto, durante a fase de implantação,
e a dispensa das mesmas durante a fase de operação/produção.
Os riscos que cercam os grandes projetos podem ser agrupados nas
seguintes categorias:
a) risco político ou soberano
O risco soberano ou risco país envolve aspectos políticos, como a
credibilidade na estabilidade política, mesmo quando há mudança de poder, na
estabilidade da moeda ou do câmbio272. Este risco está relacionado também à
Pereira, Renato Sundin. Project finance como fonte alternativa de recursos, p.30.
Pereira, Renato Sundin. Project finance como fonte alternativa de recursos, p. 32.
271
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Aplicabilidade das Técnicas de Project finance para Financiamento
da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001, p.98.
272
Borges, Luiz Ferreira Xavier Borges e Faria, Viviana Cardoso de Sá. Project Finance:
269
270
232
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
possibilidade de expropriação, confisco ou nacionalização dos investimentos.
Seguros são usados para cobrir esse risco, que são de elevado custo, e por isso
mesmo, nos financiamentos que possuem esta característica de risco as taxas de
juros são elevadas.
b) risco regulatório e legal
O risco regulatório é ligado à possível quebra ou mudança nas “regras
do jogo”, determinada poder público, o Estado ou por agências reguladoras
responsáveis pelas concessões dos serviços públicos setoriais. As mudanças
ocorrem por ações normativas gerais ou específicas, não previstas em contrato ou
em lei anterior ao início do projeto. Trata-se de riscos que podem afetar o contrato
de concessão e atingir a segurança e a rentabilidade do empreendimento273.
Esse risco inclui também mudanças na legislação tributária ou
administrativa, como por exemplo, os riscos que existem na obtenção e renovação
de licenças ambientais, ou de outras autorizações exigidas pelos órgãos públicos
responsáveis pela aprovação de fiscalização do empreendimento.
No risco legal podem ser incluídos aqueles resultantes da formatação
da SPE, do não cumprimento das normas societárias e da má gestão do
empreendimento, entre outros274.
Outra questão sensível para os financiamentos na base de project finance
refere-se à longa demora de solução dos processos litigiosos no judiciário,
provocando, muitas vezes, um clima de desconfiança nos financiadores
e investidores. Por isso, é muito comum que os participantes de um project
finance, para solucionar eventuais conflitos relacionados aos projetos, tendam a
buscar a via da arbitragem, quase sempre em jurisdição internacional.
c) riscos de implantação e operacionais
Os riscos de implantação estão relacionados a problemas na conclusão
das obras e de instalação do projeto. Para mitigar esse risco existem algumas
medidas que podem ser tomadas, tais como: análise da reputação do construtor,
adoção de tecnologia conhecida, uso de auditoria especializada para a análise
do projeto de engenharia e acompanhamento da construção. A previsão de
penalidades para o construtor, a participação pari passu dos financiadores na
construção, são também fatores mitigantes dos riscos na fase de implantação275.
considerações sobre a aplicação em infra-estrutura no Brasil, p.252.
273
Teixeira, Mariana Quaresma Mendonça. Riscos regulatórios em Parcerias Público Privadas.
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 2007,p.71.
274
Savoia, José Roberto Pereira. Shinohara, Daniel Yoshio. Parcerias público-privadas no Brasil.
Baueri: Manole, 2008, p. 50.
275
Pereira, Renato Sundin. Project finance como fonte alternativa de recursos.p. 35.
233
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Nos projetos modulares (em que a implantação do empreendimento pode
ser feita em módulos ou em etapas) o financiamento pode ser aprovado por meio
de diferentes subcréditos (tranches), que são repassados ao empreendimento com
diferentes prazos e condições ((vários desembolsos de recursos são realizados).
A existência de várias tranches cria carências ou cobranças intermediárias dos
financiamentos, em função de eventos previstos contratualmente. Isso facilita
a continuidade dos investimentos em caso de problemas em um dos módulos.
Facilita também o trabalho de fiscalização na fase de implantação276.
Os riscos operacionais são aqueles que podem ocorrer durante a fase de
execução do projeto. Eles são de diversos tipos.
Por exemplo, o risco tecnológico ou de obsolescência é muito comum em
empreendimentos que geram ou utilizam tecnologia de ponta. Projetos geradores
ou concentradamente utilizadores de tecnologia de ponta, tais como as indústrias
de computadores e de equipamentos de bens de capital, não são considerados
apropriados para o financiamento por meio de project finance: os riscos são
elevados e de difícil mensuração, podendo inviabilizar o retorno do capital
investido, ao se cobrar elevada taxa de juros de compensação pelo risco277.
Na fase operacional, é comum haver o risco relacionado ao fornecimento de
matéria-prima para o projeto. Para a mitigação desse risco, os credores cercam-se de
garantias, exigindo a contratação de empresas especializadas para realizarem estudos
sobre a quantidade e a qualidade da matéria-prima para o empreendimento, disponível
na região, ou podem cobrar a celebração de acordos terceirizados de fornecimento de
matéria-prima, nos quais o fornecedor sofre forte penalidade se as entregas não forem
realizadas conforme a combinação contratual278.
Aparecem também na fase operacional os chamados “riscos de demanda”.
Eles possuem uma natureza especial em project finance, tendo em vista que a garantia
dos credores está quase que fundamentalmente apoiada nas receitas previstas para o
projeto, que, portanto, não devem falhar. Estes riscos envolvem tanto as condições
relacionadas à produção quanto as decorrentes de variações nas condições do
mercado de determinados itens produzidos no projeto. Os riscos aparecem ao
ocorrer diminuição significativa da demanda, gerando uma receita insuficiente para
cobrir os custos operacionais e o serviço da dívida, ou ainda, se não for alcançada
uma taxa de retorno esperada pelos investidores para o empreendimento.
Os fatores mitigantes do risco de demanda compreendem a realização de
contratos de venda de longo prazo e a realização prévia de estudos detalhados
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Aplicabilidade das Técnicas de Project finance para Financiamento
da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001,p. 93.
277
Fróes, Fernando de Carvalho. Infraestrutura: privatização, regulação e financiamento. Belo
Horizonte: UNA Editora, 1999, p.465.
278
Ibidem. p. 466.
276
234
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
do mercado, além da previsão contratual de ajustes de preços e tarifas,
principalmente em projetos que exploram serviços públicos.
d) riscos financeiros
Os riscos financeiros estão relacionados com o impacto de possíveis
desequilíbrios no fluxo de caixa do projeto, decorrentes de descontinuidades
em relação às projeções (derivadas de fatores como a inflação, a taxa de juros e
o câmbio). Estes riscos podem ser enfrentados por uma mistura de instrumentos
do mercado financeiro e de capitais, que permitem obter um fluxo estável de
recursos no fluxo de caixa independentemente de situações conjunturais. 279
O risco financeiro da taxa de juros existe porque os financiamentos são
contratados a taxas de juros flutuantes, podendo afetar o fluxo de caixa do projeto
quando a taxa no mercado se elevar consideravelmente. Este risco pode ser
eliminado por operações de proteção do mercado financeiro, que consistem na
contratação paralela ao financiamento principal de outro empréstimo que contenha
um teto para as taxas de juros ou que seja realizado com taxa de juros fixa280.
Por outro lado, o risco cambial ocorre quando o empreendimento toma
financiamentos em uma moeda diferente daquela encontrada no fluxo de sua
receita. Isto pode fazer com que em determinado ano as receitas do projeto,
por causa da taxa de câmbio, cresça menos do que os valores a pagar do
financiamento, afetando a rentabilidade do projeto281.
O risco relacionado ao câmbio pode ocorrer mesmo quando investidores
e financiadores de um projeto são do mesmo país. Neste caso, o risco de
descasamento cambial decorre da existência, no projeto, de pagamentos e
recebimentos em diferentes moedas (fato comum em projetos que envolvem a
importação ou exportação de bens e serviços, onde não é possível compatibilizar
os pagamentos e os recebimentos na mesma moeda). Uma forma de atenuar o
risco cambial consiste em transformar em moeda local parte ou a totalidade da
dívida contraída em moeda externa.
6. A IMPORTÂNCIA DO PROJECT FINANCE PARA O DESENVOLVIMENTO DAS
EMPRESAS BRASILEIRAS
Apesar das grandes mudanças estruturais que o País passou nas últimas
décadas e a estabilização econômica adquirida, as empresas brasileiras ainda
encontram grandes dificuldades para desenvolveram seus investimentos. A
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Aplicabilidade das Técnicas de Project finance para Financiamento
da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001,p. 94.
280
Operações denominadas hedge e swap de taxa de juros.
281
Pereira, Renato Sundin. Project finance como fonte alternativa de recursos,p.36.
279
235
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
elevada e complexa carga tributária, o confuso sistema de normas legais e a
falta de recursos para investimento são alguns motivos que explicam essas
dificuldades. Outro grande empecilho é a falta de acesso ao crédito, seja para
começar, incrementar ou expandir suas atividades.
As empresas e os empreendedores, em geral, não possuem capital de geração
própria para arcar com os investimentos necessários, e as instituições de crédito
exigem em seus empréstimos garantias de elevado valor, reais282 e fidejussórias,
além de não estarem dispostas a assumir os riscos de novos empreendimentos.
Por isso, a moderna realidade empresarial283exigiu a formatação de novos
instrumentos capazes de dar conta da complexidade das operações econômicas e
financeiras a que estão envolvidas as empresas na atualidade.
Conforme já comentado, no Brasil, o project finance só começou a ser
utilizado após a década de 1990, quando houve a mudança do paradigma do
Estado Interventor para o de regulador, e ocorreu a transferência para a iniciativa
privada dos investimentos nos setores da infraestrutura, através dos processos
de privatização e realização de concessões. Esses setores, cujos investimentos
antes eram financiados pelo próprio Estado, com a transferência para a iniciativa
privada, passaram a necessitar de novas fontes de financiamento.284 E a mudança
de gestão dos investimentos produziu relevantes alterações no cenário econômico
brasileiro, tornando necessário recriar e/ou inventar arranjos financeiros, capazes
de financiar um setor vital para impulsionar o crescimento econômico.285
6.1 AS FONTES DE FINANCIAMENTO PARA PROJECT FINANCE
Na composição do funding para o project finance , as empresas contam com
recursos que podem ser próprios, dos acionistas286 (equity), de terceiros ou
ainda apresentarem um mix de recursos, de terceiro e próprios (quasi equity)287.
Em projetos que demandam elevados volumes de recursos, como os
aplicados na modalidade de project finance não é possível a realização de
investimentos só com recursos próprios, havendo a necessidade de ser feito
Normalmente os bancos exigem garantias reais correspondentes ao valor total do
financiamento, além de uma contrapartida de recursos próprios.
283
Timm, Luciano Benetti e D’Avila Anderson Jardim. Alienação fiduciária em garantia no
project finance no Brasil. Revista de Direito Bancário,v.14, janeiro-março de 2011,p.152.
284
Ibidem, p.132.
285
Borges, Luiz Ferreira Xavier e Faria, Viviana Cardoso de Sá. Project Finance: considerações
sobre a aplicação em infra-estrutura no Brasil,p.263.
286
Normalmente uma operação de project finance se inicia com o aporte de capital por parte
dos acionistas.
287
Faria, Viviana Cardoso de Sá. O papel do project finance no financiamento de projetos de
energia elétrica:caso UHE Cana Brava, p.62-63.
282
236
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
um mix de recursos próprios e de terceiros, e ocorrer o envolvimento de várias
fontes de financiamento.
Entre as principais fontes financiadoras estão as agências multilaterais de
crédito, os bancos comerciais, o mercado de capitais, as agências de crédito à
exportação, as agências de seguro e garantia e as agências nacional e estaduais
de desenvolvimento.
Agências Multilaterais
As agências multilaterais são compostas por capitais de uma ampla gama de
países, sendo que o foco de sua atuação não se restringe aos seus membros. A principal
missão destas instituições é promover o desenvolvimento econômico e social, através
do financiamento a projetos capazes de contribuir para a melhoria da qualidade de
vida da população mundial e particularmente dos países em desenvolvimento.
Os recursos dessas agências são provenientes da contribuição dos países
membros e da emissão de instrumentos de dívida de longo prazo no mercado
internacional288. A participação direta e até mesmo o envolvimento indireto
das Agências Multilaterais e seus estudos são importantes para os projetos da
infraestrutura em países em desenvolvimento.
As seguintes agências multilaterais de crédito se destacam no cenário
internacional: o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento
(BIRD), que faz parte do Banco Mundial, a Corporação Financeira Internacional
(IFC), um braço do Grupo Banco Mundial e a Corporação Andina de Fomento
(CAF), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), além do Banco
Europeu e Asiático de Desenvolvimento.
Bancos Comerciais
Os bancos comerciais também financiam operações de project finance,
e muitas vezes atuam como consultores financeiros para os grandes projetos.
No Brasil, os bancos comerciais não possuem uma participação ativa
e isolada de outras instituições de crédito no provimento de recursos na base
de project finance. Entre os motivos deste comportamento podem ser citados
a dificuldade para analisar a concessão de crédito, devido a complexidade
do esquema financeiro na base de project finance, a falta de disposição para
correr riscos e para aceitar garantias que não sejam as tradicionais, reais ou
fidejussórias, e a falta de expertise técnica para análise de projetos. Enfim, há
grande dificuldade para essas instituições implementarem novos padrões de
financiamento no Brasil, especialmente os bancos comerciais mais tradicionais.
Faria, Viviana Cardoso de Sá,op.cit,p. 62-63.
288
237
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Para realizar operações de project finance, os bancos atuam geralmente
através de sindicatos de bancos (consórcio de bancos) repartindo os riscos do
empreendimento e do crédito, além de buscar apoio nas agências de crédito
mais experientes nessa modalidade de financiamento.
Mercado de capitais
O mercado de capitais pode ser uma fonte de recursos de curto ou longo
prazo para project finance. As formas mais comuns de captação de recursos no
mercado de capitais compreendem os commercial papers289, as debêntures e o
lançamento de ações.
No Brasil o mercado de capitais não é ainda suficientemente desenvolvido
para atender a maior parte da demanda por recursos, ou seja, não se pode ainda
contar efetivamente com essa fonte de recursos para project finance, sendo sua
solidificação primordial para viabilizar o financiamento direto em larga escala
de projetos, a partir da formação de um sistema de crédito privado de longo
prazo, em substituição ao crédito público e externo290.
Agências Bilaterais
As agências bilaterais de crédito são instituições governamentais cuja
finalidade é promover a economia de seus países, através da concessão de
crédito à exportação, de seguro e de garantia aos projetos, nas situações em que
o setor privado de seu país esteja envolvido. As agências possuem apenas um
país membro e limitam aí a sua atuação.
As agências bilaterais podem ser subdividas basicamente em três
categorias: Agência de Crédito à Exportação (ACE); Agência de Seguro e
Garantia; e Agência de Desenvolvimento291.
As Agências de Crédito à Exportação são órgãos governamentais que
foram constituídos com o intuito de promover a exportação de seus países,
oferecendo condições atrativas de financiamento aos importadores292, como
ocorre, por exemplo, com o Eximbank (EUA) e o Hermes (Alemanha).
As Agências de Seguro e de Garantia complementam o papel das agências
de crédito à exportação, privilegiando a concessão de seguros contra o risco
político e comercial.
Commercial papers ou notas promissórias comerciais dizem respeito a um título de curto
prazo emitido por instituições não financeiras, sem garantia real, podendo ser garantido por
fiança bancária, negociável em mercado secundário e com data de vencimento predefinida.
290
Faria, Viviana Cardoso de Sá,op.cit,p. 67.
291
Ibidem, p. 65.
292
Ibidem, p. 66-67.
289
238
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
As Agências de Desenvolvimento, foco maior desse trabalho, são
organismos criados para auxiliar na promoção do desenvolvimento de uma
zona territorial determinada, contando com instrumentos financeiros diversos
e, principalmente, com um nível apreciável de autonomia de gestão. Elas atuam
por meio de instrumentos financeiros (incentivos e subsídios, empréstimos,
concessão de garantias e avais e participação acionária) e não-financeiros
(informação e assessoria).
Os principais objetivos dessas agências são a atração de investimentos
privados para empreendimentos que apresentem vantagens de localização
relevantes, a orientação de ações públicas e privadas no processo de privatização e
desregulamentação dos serviços públicos, o financiamento de empreendimentos
considerados relevantes para a promoção do desenvolvimento regional, a
ampliação dos espaços das parcerias entre o setor público e o privado e a atuação
como agente catalisador, se posicionando entre governo e empresariado.
No mundo, destacam-se as seguintes agências de desenvolvimento: o
KfW (Alemanha); Jexim (Japão), CDC e ODA (Reino Unido) e no Brasil, a
atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES.
Vale notar que, no Brasil, os principais agentes financiadores de project
finance são os bancos públicos. Os exemplos são a Caixa Econômica Federal,
o BNDES e os bancos regionais de fomento (BNB, BASA e Banco do
Brasil)293. Entre os bancos públicos destaca-se a atuação do Banco Nacional
do Desenvolvimento Econômico e Social, que se constitui na maior fonte de
financiamento de longo prazo da economia, em setores não ligados a saneamento
e habitação, alvos dos financiamentos da Caixa Econômica Federal, e ao funding
fiscal direto, cujas operações são realizadas pelo Banco do Brasil, Banco do
Nordeste (BNB) e Banco da Amazônia (BASA)294.
No Brasil, ainda hoje é essencial a intervenção dessas instituições
financeiras públicas no mercado de crédito para prover os recursos necessários
para os investimentos da economia.
6.2 A APLICAÇÃO DO PROJECT FINANCE NO BNDES
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
é uma empresa pública federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio.
Como mencionado, o BNDES se constitui no principal instrumento de
financiamento de longo prazo para investimentos em todos os segmentos da
Bone, Rosemarie Bröker. Indicador Econômico. FEE: Porto Alegre, v.29, nº 2,p.156-179,
agosto de 2001, p.170.
294
Ibidem, p.171.
293
239
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
economia. Além disso, através das políticas operacionais do BNDES, o Governo
federal imprime uma determinada direção ou rumo para a economia do País
Nesse sentido, todos os instrumentos que podem auxiliar o BNDES
na concretização de seus objetivos e na atuação em project finance estão ali
aportados: funding suficiente, regras compatíveis com as novas modalidades de
financiamento, independência de procedimentos, etc.
O Banco somente incluiu o project finance na sua política operacional
como um dos mecanismos básicos de crédito a longo prazo depois dos anos
1990, apesar de aplicar recursos sob outras modalidades de financiamento há
mais de seis décadas.
A política operacional aplicável aos pleitos de financiamento sob a
técnica de project finance exige que os investidores atendam, em seus projetos
as seguintes características cumulativamente295:
a) a beneficiária do financiamento deve ser uma sociedade de ações com
propósito específico (SPE), constituída para implementar o projeto financiado e
segregar o fluxo de caixa, o patrimônio e os riscos do empreendimento;
b) o resultado líquido esperado para o fluxo de caixa do projeto deve ser
suficiente para saldar os financiamentos obtidos; e
c) as receitas futuras do projeto devem ser vinculadas, ou cedidas, em
favor dos financiadores.
A operação de financiamento poderá ser da forma direta, indireta ou
mista, ou seja, realizada direta e unicamente pelo BNDES, por um agente
financeiro do Banco, ou ainda por meio de vários bancos sindicalizados, com a
participação do BNDES, que geralmente atuará como líder da operação.
De maneira geral, os grandes projetos são financiados na forma direta, e a
análise de concessão do crédito é toda realizada pela equipe técnica do BNDES.
Além disso, a estruturação do pacote de financiamento trabalha com a premissa
que os empréstimos serão pagos com os recebíveis a serem gerados durante a
vida operacional do projeto.
Normalmente uma operação de financiamento no BNDES passa por três
fases básicas: análise, contratação e acompanhamento.
Na fase de análise de uma operação na base de project finance o exame
da série histórica da sociedade de propósito específico fica prejudicada, pois
a mesma é criada para a realização de um projeto geralmente novo e para a
segregação dos riscos envolvidos nele. Porém, é realizada a análise cadastral
dos sócios da SPE e avaliada toda a estrutura societária.
O BNDES também realiza uma análise detalhada do fluxo de caixa
futuro do empreendimento, uma vez que os recebíveis a serem gerados são a
Disponemwww.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/Apoio_Financeiro/
Produtos/Project_Finance/index.html, acesso 01.05.2011
295
240
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
garantia do empréstimo, isolada ou em conjunto com outras garantias reais ou
fidejussórias.
Outro cuidado importante tomado pela equipe técnica durante essa
fase é indicar as obrigações que devem constar do contrato de financiamento.
Tais obrigações podem prever o cálculo e a apresentação de indicadores de
performance financeira da empresa, de manutenção de patamares esperados
de recebíveis, de apresentação das licenças legais exigíveis para se aprovar a
operação, a contratação de auditoria e a elaboração de relatórios e balanços.
No caso de descumprimento de cláusulas financeiras e não financeiras
do contrato de financiamento, a Instituição exige o vencimento antecipado das
obrigações financeiras.
Na fase final de análise da operação também são indicados os prazos
de carência296 e amortização do empréstimo (somados, representam o período
total para pagamento do empréstimo), que são fixados de acordo com o tempo
estimado para o projeto começar a operar e a alcançar receitas suficientes para
o pagamento da dívida.
Todas essas informações fazem parte do relatório de análise, que é
submetido à Diretoria297 do BNDES para aprovação ou não da operação financeira.
Se o projeto for aprovado começa a fase de elaboração do instrumento
contratual, e após a sua aprovação dá-se a assinatura do contrato pelas partes e o
seu registro. A partir daí ocorre a primeira liberação de recursos para o projeto,
conforme cronograma físico e financeiro previsto no relatório de análise, desde
que haja o total cumprimento das obrigações preliminares exigidas.
Na fase dos desembolsos dos recursos previstos no financiamento,
geralmente são realizadas visitas de acompanhamento ao empreendimento,
que acontecem pari passu com as liberações dos valores. As liberações são
realizadas de forma gradual, diminuindo o risco de inadimplemento, pois
os problemas na implantação do projeto são rapidamente detectados. E uma
nova liberação só é realizada se forem cumpridas as exigências previstas
contratualmente. Durante a fase de acompanhamento são exigidos também
relatórios e balanços auditados da SPE.
Vale ressaltar que o processo de sedimentação das normas de project
finance no BNDES começou há vários anos, desde 1996. Desde então, o BNDES
vem adaptando sua estrutura operacional para melhor analisar as operações
Prazo em que o valor principal da dívida não é pago, mas pode haver ou não pagamento dos
acessórios da dívida, como por exemplo, os juros.
297
Compete a diretoria do BNDES aprovar as concessões de crédito. O BNDES é administrado
por uma diretoria composta pelo presidente, pelo vice-presidente e por seis diretores. Comete à
diretoria aprovar as operações de crédito por maioria nas reuniões em que estejam pelo menos
cinco dos seus membros, tudo conforme art.9º, 14º do Estatuto do BNDES, determinado pelo
Decreto nº 4.418, de 11/10/2002 DE 2002.
296
241
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
de financiamento sob a modalidade de project finance, pois durante a maior
parte de sua existência trabalhou com operações estruturadas principalmente na
forma de corporate finance.
Durante a fase de implantação das operações de project finance no
BNDES não se utilizou o conceito puro desta modalidade de financiamento. Ao
contrário, foram mescladas características de financiamento do tipo corporativo
(que sempre fez parte da tradição do Banco) com as características básicas de
project finance298. Com essas características hibridas da fase inicial de atuação
em project finance , houve maior segurança por parte do Banco na concessão
dos financiamentos. Hoje, para a análise de diversos tipos de projetos são
utilizados os principais conceitos de project finance299.
Deve ser ainda destacada que a principal aplicação de project finance
no BNDES se refere ao apoio às SPEs que são formadas pelos vencedores de
certames licitatórios de concessões públicas. As dívidas das SPEs são pagas
com os recebíveis obtidos com a exploração das concessões, com destaque para
os projetos dos setores de energia elétrica, telefonia e rodoviário.
No BNDES, o setor que mais se utilizou de financiamentos estruturados
na base de project finance foi o de energia, tendo havido diversas operações de
financiamento desde 2003.
As condições operacionais de apoio financeiro aos projetos de investimento
ao setor de energia vêm sendo aperfeiçoadas desde 1996, tendo ocorrido a
diminuição do custo financeiro dos empréstimos por meio da queda nas taxas
de juros, elevação dos prazos amortização, a redução do índice de cobertura do
serviço da dívida e o aumento da participação máxima do BNDES sobre os itens
financiáveis em cada projeto300. Isso foi possível principalmente pela criação de
um ambiente institucional favorável à implantação de novos projetos, a partir do
novo marco regulatório do setor (lei 10.848/04 do setor elétrico), que procurou
atrair tanto o capital privado quanto o público para novos projetos setoriais301.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O project finance é mais uma importante alternativa para o financiamento
de grandes projetos, que lutam com a falta de garantias reais e pessoais,
demandadas pelas instituições de crédito.
Borges, Luiz Ferreira Xavier e Faria, Viviana Cardoso de Sá. Project Finance: considerações
sobre a aplicação em infra-estrutura no Brasil,p. 267.
299
Borges, Luiz Ferreira Xavier. Project Finance e infraestrutura: descrição e críticas. Revista do
BNDES, Rio de Janeiro, v.5, n.9, jun. 1998,p.116.
300
Filho, Nelson Fontes Siffert. Alonso, Leonardo de Almeida. Chagas, Eduardo Barros das et
al. O papel do BNDES na expansão do setor elétrico nacional e o mecanismo do project finance.
BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 29, p. 3-36, mar. 2009, p.34.
301
Ibidem. Filho, Nelson Fontes Siffert et al, p.35.
298
242
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Devido ao processo da atenuação dos riscos identificados nos projetos,
esta modalidade de financiamento requer, necessariamente, maior tempo de
análise e uma significativa malha de contratos e serviços de consultoria para os
projetos envolvidos, resultando em custos de transação mais elevados.
Na organização de project finance não há uma fórmula única; cada
operação de financiamento é singular e deve ser analisada de uma forma
específica, na qual todos os contratos envolvidos na implantação e operação do
empreendimento convivam de maneira harmoniosa e coordenada.
Essa poderosa forma de estruturação financeira tem se tornado uma
aliada das empresas brasileira na superação dos desafios na obtenção de crédito
para o desenvolvimento de suas atividades. Ou seja, o project finance pode se
transformar em uma das mais importantes soluções para o desenvolvimento dos
diversos setores da infraestrutura brasileira. No entanto, é importante lembrar,
as condições do ambiente regulatório são extremamente importantes para a
estruturação de projetos nessa modalidade, fazendo-se necessário a implantação
de marcos regulatórios, como o formulado para o setor de energia.
Ressalte-se que a estrutura de um project finance é baseada na geração
de fluxos financeiros suficientes no empreendimento a ser financiado, não
suprindo, portanto, a falta de viabilidade comercial, de mercado ou cambial.
Há diversos obstáculos que dificultam o melhor aproveitamento dessa
técnica de financiamento no Brasil, como o conservadorismo do mercado
bancário, que reluta em adotar novos modelos de financiamento e exigir outras
garantias para as operações financeiras, além das tradicionais.
Também existem dificuldades de adaptar as características originais do
project finance do direito anglo-saxão, onde esta modalidade ainda hoje é mais
praticada, para o sistema do direito romano-germânico como o brasileiro.
As fontes de financiamento público, principalmente as do BNDES, que foi
o vanguardista na aplicação dessa técnica, são ainda essenciais na consolidação
definitiva desse instrumento financeiro no Brasil, que pode contribuir ainda
mais o para o desenvolvimento da infraestrutura e das empresas brasileiras.
243
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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245
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
CONTROLE DA PUBLICIDADE DE PRODUTOS DERIVADOS DO TABACO
ADVERTISING CONTROL AND TOBACCO-RELATED PRODUCTS
Fernando Gama de Miranda Netto
Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho (RJ), com período de pesquisa
de um ano junto à Deutsche Hochschule für Verwaltungswissenschaften
de Speyer (Alemanha) e junto ao Max-Planck-Institut (Heidelberg) com
bolsa CAPES/DAAD. Professor Adjunto de Direito Processual nos cursos
de graduação e pós-graduação stricto sensu da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Líder do Laboratório Fluminense
de Estudos Processuais (LAFEP/UFF). E-mail: [email protected]
Eric Baracho Dore Fernandes
Estudante de Direito da Universidade Federal Fluminense,
Monitor de Direito Constitucional
Área do Direito: Constitucional; Consumidor
RESUMO
O controle da epidemia do tabaco representa um dos maiores desafios
para a saúde pública mundial. Nesse contexto, a publicidade direta ou indireta
desse produto constitui um das maiores influências para o início do hábito de
fumar, em especial para crianças e adolescentes. Justamente por isso, o presente
trabalho tem por objeto o atual panorama das políticas públicas de controle da
publicidade de produtos derivados do tabaco no Brasil, analisado: (a) os atuais
níveis de restrição da propaganda do tabaco no Brasil; (b) a constitucionalidade
e legitimidade desse tipo de restrição; (c) a possibilidade da interferência estatal
para proteger o consumidor; (d) a responsabilidade civil da indústria pelos
danos decorrente da propaganda de tais produtos.
Palavras-Chave: Controle do Tabaco. Publicidade e Propaganda. Responsabilidade Civil. Controle de Constitucionalidade.
ABSTRACT
The control of tobacco epidemics represents one of the biggest challenges
to world´s public health. On this regard, the publicity of such product constitutes
one of the biggest influences that lead to smoke habits, especially amongst
247
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
children and teenagers. For this reason, this paper broaches the current degree of
development on Brazil’s public policies regarding the advertisement of tobaccorelated products, which shall be studied under four main aspects: (a) the current
levels of advertisement control in Brazil; (b) the constitutionality and legitimacy
of such control; (c) the possibility of state intervention to protect consumers; (d)
civil libel regarding the damages caused by tobacco advertisement.
Keywords: Tobacco Control. Publicity and Advertisement. Civil Liability.
Judicial Review.
SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. O controle da publicidade do tabaco no Brasil
- 2.1 Publicidade direta e publicidade indireta de produtos derivados do
tabaco – 2.2 Publicidade do tabaco e autonomia da vontade do consumidor
- 2.3 Restrição da publicidade do tabaco no Brasil - 3. Constitucionalidade
e proporcionalidade das restrições da publicidade do tabaco - 3.1 Tutela
da saúde como fim legítimo na restrição da publicidade do tabaco - 3.2
Adequação da restrição da publicidade do tabaco - 3.3 Necessidade do
meio restritivo eleito - 3.4 Ponderação entre as vantagens e desvantagens
na restrição da publicidade - 4. Responsabilidade civil da indústria do
tabaco e a publicidade abusiva e enganosa - 4.1. Licitude da atividade de
comercializar produtos derivados do tabaco - 4.2. Direito à informação
versus publicidade ilícita - 4.2.1. Direito à informação e livre-arbítrio 4.2.2. Defeito de informação e produto de periculosidade inerente e nãodefeituoso - 4.3. Responsabilidade civil e o mito jurídico da falta de nexo
de causalidade - 4.4. Dano moral difuso decorrente da publicidade de
produtos fumígenos - 5. Conclusão - 6. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Não se pode negar seriamente o impacto que a publicidade provoca no
comportamento do consumidor. É esta a razão pela qual as grandes empresas
investem milhões de reais na divulgação de seus produtos. Neste campo, o
consumidor é alvo de inúmeras informações, nem sempre precisas, acerca
dos produtos que lhe são ofertados. Muito embora o Código de Defesa do
Consumidor contenha inúmeros dispositivos que asseguram o dever de
informação do fornecedor (arts. 4º, caput; 6º, II e III; 8º, 9º, 14, 30, 31, 33,
36, par. único; 43, apenas para citar alguns), surpreende que em algumas
relações jurídicas este direito seja vilipendiado, desamparando o consumidor e
deixando sem freio a atividade empresarial. O problema se torna mais evidente
em atividades que geram riscos para a saúde do consumidor, notadamente as
248
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
desenvolvidas por fabricantes de produtos derivados do tabaco, potencialmente
capazes de afetar de forma mais intensa crianças e adolescentes e induzi-las
ao consumo de produtos perigosos. A despeito do atual panorama legislativo
de controle desse tipo de propaganda no Brasil, muito ainda se questiona a
respeito da constitucionalidade desse tipo de restrição e da responsabilidade dos
fornecedores de cigarros pelos produtos colocados no mercado.
Diante do problema apresentado, o objeto deste trabalho é justamente
uma análise crítica a respeito do panorama atual de controle da publicidade de
tabaco no Brasil e a responsabilização civil dos fornecedores de tais produtos
pelos danos causados por suas atividades, o que se pretende realizar através
da resposta aos seguintes questionamentos: a) se a publicidade do tabaco
interfere na autonomia da vontade do consumidor; b) a constitucionalidade e
proporcionalidade das restrições à publicidade do tabaco; c) se é adequada à
informação que envolve a publicidade dos produtos derivados do tabaco; d) se
o Estado deve intervir nas relações jurídicas que envolvem a venda de produtos
fumígenos e proteger o consumidor e sua capacidade de autodeterminação da
publicidade ilícita; e) qual a relação entre o nexo causal e a publicidade para
efeito de responsabilização civil.
O estudo do tema que se pretende enfrentar será empreendido por meio
de um roteiro composto por três eixos principais. Em um primeiro momento, de
cunho predominantemente expositivo, serão apresentados o atual panorama de
controle da publicidade (direta e indireta) do tabaco no Brasil e o debate acerca
da natureza enganosa de tal atividade. A seguir, pretende-se discutir de forma
mais profunda a constitucionalidade do atual marco legislativo e regulatório
de controle da propaganda do tabaco diante das normas constitucionais
que garantem a liberdade de expressão e de propaganda, análise que será
empreendida à luz do princípio da proporcionalidade e seus subprincípios. Por
último, será trabalhado o tema da responsabilidade civil dos fornecedores de
produtos fumígenos e a aplicação das normas de proteção ao consumidor neste
tipo de relação. Ao final, serão sintetizadas breves conclusões que, esperase, sejam capazes de responder de forma mais precisa aos questionamentos
apresentados no parágrafo anterior.
2. O CONTROLE DA PUBLICIDADE DO TABACO NO BRASIL
Um importante razão para que exista um controle da publicidade de
produtos é impedir que o consumidor receba informações deficientes ou
até mesmo falsas do ponto de vista científico, permitindo que a vontade do
consumidor ao adquirir determinado produto não seja eivada de vício.302 Isto
Reza o art. 36, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor: “O fornecedor, na
302
249
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
porque um anúncio publicitário não significa apenas um convite à oferta. Há
nele um conjunto de informações que despertam confiança e expectativas
legítimas. Nesta linha, este tópico examina a distinção entre publicidade direta
e indireta. Em seguida, relação entre publicidade e formação da vontade do
consumidor, terminando com a atual situação legislativa no país.
2.1 PUBLICIDADE DIRETA E PUBLICIDADE INDIRETA DE PRODUTOS DERIVADOS
DO TABACO
Ao menos no Brasil, a publicidade direta de cigarros jamais teve cunho
informativo e esclarecedor, tendo sido sempre promovida com o intuito de criar
uma ambientação agradável e associada a imagens de atividades esportivas,
sociabilidade, saúde, requinte ou sucesso profissional. Tal estratégia persuasiva
usava imagens sedutoras para incitar ao hábito, e quando tal veículo de
comunicação alcança uma criança, adolescente ou pessoas menos maduras,
opera sua influência com um alcance ainda maior. Sendo assim, parece mentirosa
uma propaganda que, deliberadamente, busque associar um estilo de vida ideal
a um hábito que, de acordo com uma verdade factual, causa graves danos à
saúde. Nesse sentido, extraímos a lição da professora Cláudia Lima Marques:
“(...) não somente as empresas [do tabaco] desinformam voluntariamente
seus milhares de consumidores, como enviaram mensagens que – para estes
leigos – eram aceitáveis e acreditáveis. Em outras palavras, a informação
publicitária (imagens, induções, sons, risos, frases, personagens,
situações de esporte, lazer, prazer, etc.) é recebida e processada por um
leigo, o consumidor brasileiro, que nela acredita...”.303 (destaque nosso)
Além da publicidade direta, cujas conseqüências são mais amplamente
conhecidas, é preciso analisar as conseqüências de uma publicidade indireta,
muito mais sutil e igualmente sedutora. Entende-se por publicidade indireta, por
exemplo, a estratégia de pagar atores e diretores de filmes para divulgar imagens
positivas de cigarros durante as cenas dos filmes. Segundo informações,304 entre
os anos de 1978 e 1988, aproximadamente 188 atores e diretores de cinema
norte-americano receberam pagamentos das empresas produtoras de tabaco
publicidade de seus produtos ou serviços, manterá em seu poder, para a informação dos legítimos
interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.”
303
MARQUES, Claudia Lima. “Violação do dever de boa-fé de informar corretamente, atos
negociais omissivos afetando o direito/liberdade de escolha”, Revista dos Tribunais, n.835, p. 75133, maio 2005.
304
As informações são de estudo publicado na revista Tobacco Control, vinculada à British Medical
Association. Disponível em: [http://tobaccocontrol.bmj.com/]. Acesso em: 02.01.2010.
250
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
para que seus produtos fossem exibidos. Lúcio Delfino, em obra que explora
de forma profunda o tema da propaganda do tabaco, traz alguns exemplos
memoráveis:
(...) cite-se a cena em que a personagem Betty Boop vende maços de
cigarros no filme “Uma Cilada Para Roger Rabbit”, de Robert Zemeckis;
ou, ainda, a cena em que Sean Connery, na pele de James Bond, acende
um cigarro com prazer em “007 – Nunca Mais Outra Vez”. O mesmo
fizeram Paul Hogan em “Crocodilo Dundee”, Bruce Willis no primeiro
“Duro de Matar” e vários personagens de “Grease – Nos tempos da
Brilhantina” e “Wall Street”.305
Um acordo firmado entre indústria do tabaco e o governo dos Estados
Unidos nos anos 90 determinava o fim desse tipo de propaganda indireta em
filmes e na televisão. Entretanto, uma pesquisa realizada pelo Centro de Câncer
de Norris Cotton (EUA), demonstrou que tal proposta jamais foi respeitada.
Foram analisados os 25 filmes de maior audiência entre 1988 e 1997, dos quais
85% continham cenas de tabagismo. O aspecto mais preocupante do estudo foi
que a veiculação de marcas de cigarro foi quase tão freqüente nos filmes adultos
quanto nos filmes de adolescentes, reduzindo-se a 20% nos filmes infantis.306 De
fato, a maioria dos filmes citados anteriormente ainda são diariamente assistidos
por um público composto significativamente por crianças e adolescentes.
A análise de tais estatísticas leva a uma conclusão curiosa. É consenso
que esse tipo de propaganda não deva alcançar crianças e adolescentes. De fato,
espera-se que, diferentemente dos jovens, os adultos tenham discernimento e
maturidade suficientes para decidir acerca do hábito de fumar. Contudo, nem
todos os adultos que atualmente são fumantes fizeram uma escolha pautada por
uma livre manifestação de vontades. Por influência da forte propaganda das
décadas passadas, experimentaram o cigarro ainda quando jovens, tornando-se
rapidamente dependentes do produto, sem a força de vontade, maturidade ou
condições necessárias para desvencilhar-se do hábito após uso prolongado do
produto. Ou, similarmente, foram expostos a essa propaganda desde quando
pequenos, ainda que viessem a experimentar o produto apenas na idade adulta.
Destaque-se que apesar do posicionamento demonstrado publicamente pela
indústria do tabaco sempre ter sido no sentido de que a propaganda não seria
DELFINO, Lucio. “O fumante e o livre-arbítrio: um polêmico tema envolvendo a
responsabilidade civil das industrias do tabaco”. Revista Jurídica, n. 361, p. 78.
306
BRASIL. INCA. Multinacionais de cigarro e cinema hollywoodiano continuam associados.
Disponível em: [http://www.inca.gov.br/atualidades/ano10_1/multinacionais.html]. Acesso em:
01.01.2010.
305
251
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
direcionada a criança e adolescentes, documentos secretos307 dos fabricantes
atestam o contrário. A Souza Cruz, por exemplo, afirma em seu website que
“A Souza Cruz fabrica cigarros para uso exclusivo de adultos baseada nos
melhores mecanismos e meios para a produção308”. Diversos documentos
secretos da indústria, contudo, desmentem tal afirmação. A seguir, toma-se a
liberdade de reproduzir o teor de um desses documentos:
“É importante saber tanto quanto possível sobre os padrões de tabagismo
dos adolescentes. Os adolescente de hoje são os potenciais consumidores
regulares de amanhã, e a grande maioria dos fumantes começa a fumar
na sua adolescência. Devido ao nosso grande espaço de mercado entre
os fumantes mais jovens, a Philip Morris sofrerá mais do que qualquer
outra companhia com o declínio do número de adolescentes fumantes.”309
2.2 PUBLICIDADE DO TABACO E AUTONOMIA DA VONTADE DO CONSUMIDOR
Muitos defendem a liberdade de propaganda de produtos fumígenos sob
o fundamento de que a liberdade de propaganda, em geral, seria um importante
meio de persuasão inerente ao discurso político, jurídico e comercial.310 De fato,
Em 12 de Maio de 1994, os argumentos a favor da publicidade do cigarro sofreram um duro
golpe, quando foram revelados documentos secretos referente às atividades desenvolvidas pela
British American Tobacco e sua subsidiária nos Estados unidos, a Brown and British American
Tobacco. Os documentos foram publicados em diversos periódicos científicos e em artigos do
New York Times. Após recursos da empresa alegando interferência em sua privacidade, a Corte
Superior do Estado da Califórnia reconheceu que tais documentos deveriam ser de domínio
público. Em 1998, um acordo entre as sete maiores companhias produtoras de cigarro e o
governo dos Estados Unidos determinou que tais empresas disponibilizassem ao público todos
os seus documentos internos. Os dados alarmantes contidos em tais documentos, em um total
aproximado de 5 milhões deles, passaram a subsidiar diversos argumentos contra a publicidade
abusiva do cigarro, demonstrando a necessidade de políticas públicas mais incisivas para seu
controle. Acesse algumas dessas informações em: [http://www1.inca.gov.br/tabagismo/frameset.
asp?item=atento&link=arquivos_secretos.pdf]. Acesso em 03.01.2010.
308
Disponível em: [http://www.souzacruz.com.br]. Acesso em: 03.01.2010.
309
Tradução de um memorando enviado por um pesquisador da Philip Morris, Myron E.
Johnston para Robert B. Seligman, Vice Presidente de pesquisa e desenvolvimento da Philip
Morris, 1981. Documentos disponíveis em: [http://www.pmdocs.com/]. Acesso em: 03.01.2010.
310
“A propaganda é meio comunicacional de persuasão. A persuasão é um objetivo comunicacional
que não se reduz ao instrumento publicitário. Integra o discurso político, o discurso jurídico, o
discurso opinativo em geral, diferenciando-se dos discursos científicos, mas até deles fazendo
parte na forma de discurso pedagógico. Persuadir significa argumentar de tal forma a obter um
comportamento do destinatário, não importam as convicções que os argumentos nele produzam”.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade,
estado, direitos humanos e outros temas. São Paulo: Manole, 2007, p. 234.
307
252
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
não se nega que a propaganda comercial assuma papel essencial no sistema
capitalista de consumo, trazendo a tona o constante desejo de comprar cada vez
mais bens e produtos, e, com isso, mantendo a roda da economia em constante
movimento. Contudo, mesmo sendo dotada dessa importante função social,
tal liberdade deve encontrar limites na utilização de informações falsas ou
mentirosas, que induzam o consumidor ao erro ou ao prejuízo de seus direitos
fundamentais, “entendendo-se por mentira a falsidade deliberada que negue ou
omita uma verdade factual”.311
Todo esse panorama de influências diretas e indiretas demonstra de
forma bastante clara a forte influência da indústria do fumo no livre-arbítrio do
consumidor. Sendo assim, se torna altamente questionável a hipótese de que dar
início ao hábito de fumar seria uma decisão originada única e exclusivamente
da livre manifestação de vontades do consumidor, isenta de vícios e influências
externas. O que dizer, então, da decisão de parar de fumar? Com efeito, em
um ambiente onde exista a plena liberdade de propaganda inexiste a plena
liberdade do indivíduo, enquanto consumidor e cidadão titular de direitos
fundamentais. Dessa forma, torna-se essencial a intervenção do estado para
tutelar e proteger tal liberdade do consumidor, através da restrição dessa
liberdade de propaganda.
2.3 RESTRIÇÃO DA PUBLICIDADE DO TABACO NO BRASIL
As produções legislativas do Brasil nas últimas décadas demonstram
que o país tem seguido essa tendência mundial de desestímulo a propaganda e
consumo do cigarro. A Lei no. 9.294 de 1996 estabeleceu restrições à propaganda,
que se tornaram mais severas ao serem modificadas pela Medida Provisória 1o
2.190-34 de 2001 e pela Lei no 10.167 de 2000, que restringiu a propaganda
comercial dos produtos apenas aos pôsteres, painéis e cartazes na parte interna
dos locais de venda. Tal restrição gerou reação da indústria do tabaco através da
contratação de diversos pareceres que alegavam a inconstitucionalidade da lei.
Destaque-se que a agência reguladora ANVISA também trouxe regulamentação
restritiva à propaganda do tabaco, através das resoluções RDC no 104/2001 e
RDC no 335/2003.
O panorama é de progresso em relação ao tema. Contudo, a análise das
restrições a propaganda do tabaco no Brasil nos remete a considerações mais
complexas. O reconhecimento da necessidade de contenção da expansão do
tabagismo como problemas mundiais fez com que, em maio de 1999, durante
a 52ª Assembléia Mundial da Saúde, os Estados Membros das Nações Unidas
propusessem a adoção do primeiro tratado internacional de saúde pública da
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Op. Cit.
311
253
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
história da humanidade. Trata-se da Convenção-Quadro para o Controle do
Tabaco. Apesar de introduzir uma série de medidas de controle da propaganda
do tabaco, a Convenção estabelece expressamente que tais restrições devem
ser compatíveis com as constituições de cada um dos estados signatários.312
Dessa forma, se faz necessário empreender uma análise mais profunda quanto
à constitucionalidade do nosso atual modelo de restrições à propaganda do
tabaco, bem como quanto a sua legitimidade perante o direito internacional dos
direitos humanos. É o que se propõe realizar a seguir.
3. CONSTITUCIONALIDADE E PROPORCIONALIDADE DAS RESTRIÇÕES DA
PUBLICIDADE DO TABACO
Conforme já dito, a Lei no 10.167 de 27 de Dezembro de 2000, ao alterar
dispositivos da Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996, restringiu de forma severa
a veiculação de propagandas que tenham por objeto produtos fumígenos.313 A
partir da vigência do novo diploma, a propaganda comercial dos produtos em
questão só pode ser efetuada através de pôsteres, painéis e cartazes, na parte
interna dos locais de venda.314 Além disso, na propaganda passa a ser proibido
veicular o consumo à prática de atividades esportivas ou em situações perigosas
e ilegais, diferente da redação anterior que vedava apenas esportes olímpicos.
Outro ponto relevante foi que a nova lei prevê não apenas a total proibição
da presença de crianças e adolescentes na propaganda, mas também quaisquer
referências às mesmas. É clara a tentativa do legislador em evitar que jovens se
tornem destinatários dessa influência.
O tema é polêmico. Registre-se o fato de a Confederação Nacional da
Indústria ter ajuizado Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI nº 3311)315
perante o Supremo Tribunal Federal para atacar a legislação que veda a
publicidade de cigarros nos veículos de comunicação de massa e determina
a inclusão das advertências constantes nos maços. A Aliança de Controle do
Tabagismo foi admitida na ação como amicus curiae e defendeu a manutenção
Artigo 13 - Publicidade, promoção e patrocínio do tabaco. 1. As Partes reconhecem que uma
proibição total da publicidade, da promoção e do patrocínio reduzirá o consumo de produtos de
tabaco. 2. Cada Parte, em conformidade com sua Constituição ou seus princípios constitucionais,
procederá a proibição total de toda forma de publicidade, promoção e patrocínio do tabaco. (...).
BRASIL. Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco. Decreto no 5.658 de 2 de Janeiro 2006.
313
BRASIL. Lei no 10.167 de 27 de Dezembro de 2000.
314
Art. 3o A propaganda comercial dos produtos referidos no artigo anterior só poderá ser
efetuada através de pôsteres, painéis e cartazes, na parte interna dos locais de venda. Idem.
315
Acompanhamento processual disponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/processo/
verProcessoAndamento.asp?numero=3311&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgame
nto=M]. Acesso em: 01.02.2010.
312
254
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
da lei. No plano internacional, vale conferir a decisão da Suprema Corte NorteAmericana sobre a enganosidade dos cigarros de baixos teores (light),316 bem
como a decisão da Suprema Corte do Canadá sobre a proibição de publicidade
de produtos derivados de tabaco.317
Este cenário oferece um verdadeiro convite para questionar a
constitucionalidade e proporcionalidade das restrições da publicidade do
tabaco. Nesta linha, cumpre investigar a constitucionalidade das restrições da
publicidade do tabaco, o que se fará à luz do postulado da proporcionalidade,318
perquirindo: a) legitimidade dos fins;319 b) adequação da medida para atingir
os fins propostos; c) necessidade dos meios empregados; d) proporcionalidade
stricto sensu (ponderação). Neste campo, a experiência internacional não
pode ser descartada. Conforme lição de Paula Ligia Martins,320 o Direito
Internacional dos Direitos Humanos não assume a liberdade de expressão como
um direito absoluto, mas exige que qualquer limitação a ele imposta deva ser
cuidadosamente desenhada.321 A Corte Interamericana de Direitos Humanos
tem esclarecido em suas decisões322 que restrições à liberdade de expressão
e comunicação devem (i) ser estabelecidas em lei e precisamente definidas;
(ii) buscar atingir fins legítimos com as restrições impostas, ou seja, de acordo
Disponível em: [http://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/210_supremacorteEUA cigar
roslight.pdf]. Acesso em: 01.02.2010. Veja-se, a propósito: [http://new.paho.org/hq/index.
php?option=com_content&task= view&id=1372&Itemid=1232]. Acesso em 01.02.2010.
317
Disponível em: [http://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/178_CanadaSupremaCorte 2007
publicidade.pdf]. Acesso em: 01.02. 2010.
318
É curial aqui fazer uma advertência de ordem terminológica. Segundo ROBERT ALEXY,
Theorie der Grundrechte, p. 100, n. 84, a proporcionalidade não tem status de princípio, porque
seus sub-princípios (adequação, necessidade e ponderação) não são usados com referência a
outros, isto é, não é uma norma que prevalece em alguns casos e em outros não. Para o autor, a
pergunta é se os sub-princípios (Teilgrundsätze) estão satisfeitos ou não, podendo por isso ser a
proporcionalidade classificada como regra. Talvez por esta razão prefira HUMBERTO ÁVILA,
Teoria dos Princípios, p. 80-2, considerar a proporcionalidade como metanorma ou norma de
segundo grau, preferindo, entretanto, o termo postulado, que oferece a vantagem de não confundir
a proporcionalidade com outras normas. Assim, definimos o postulado da proporcionalidade
como a metanorma que controla a aplicação de outras normas, com a análise da relação meio-fim.
319
Observe-se que alguns autores e também a Corte Européia de Direitos Humanos arrolam a
“legitimidade dos fins” como uma das máximas do princípio da proporcionalidade que precede
as outras três (cf. LUÍS VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, “O proporcional e o razoável”, in: Revista
dos Tribunais, n. 798, p. 35).
320
MARTINS, Paula Lígia. “Conteúdo e Extensão da Liberdade de Expressão e suas Limitações
Legítimas”, in: O STF e o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
321
O teste usado pelo Comitê de Direitos Humanos para aplicação do art. 19 do Protocolo de
Direitos Civis e Políticos encontra-se expresso no Comentário Geral 10 do Relatório do Comitê de
Direitos Humanos à Assembléia Geral, 38a Sessão, Sup. no 40, 1983 (A/38/40), Anexo VI.
322
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião Consultiva 5/85, la colegiacion
obligatoria de periodistas.
316
255
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
com os propósitos listados no art. 13 (2) da Convenção Americana de Direitos
Humanos; e (iii) ser realmente necessária para garantir um daqueles fins
legítimos.
3.1 TUTELA DA SAÚDE COMO FIM LEGÍTIMO NA RESTRIÇÃO DA PUBLICIDADE
DO TABACO
A restrição legal da publicidade do tabaco, além de profundamente
delimitada, encontra fundamento na própria Constituição Federal, no capítulo
destinado à Comunicação Social, no art. 220, § 4º.323 Luís Roberto Barroso
entende, contudo, em parecer,324 que a legislação atual deixa de ser uma mera
restrição à publicidade do tabaco, configurando um verdadeiro banimento.
Segundo uma interpretação semântica do dispositivo, o autor afirma que a
expressão “restrições” traz implicitamente a impossibilidade do banimento
da propaganda, o que, em tese, teria ocorrido com a restrição da propaganda
apenas a painéis, pôsteres e cartazes na parte interna dos locais de venda.
É de se questionar tal interpretação. A idéia de que os direitos só podem ser
restringidos pela própria Constituição é desmentida pela (a) indeterminação
das normas constitucionais; (b) complexidade de grande parte dos casos que
envolvam tais direitos. Afinal, nem sempre é possível delimitar com nitidez
o âmbito de proteção definitiva dos direitos.325 Segundo tais teorias modernas
de interpretação constitucional, é possível atribuir limites distintos aos que
estabeleceu o professor Barroso através de interpretação exclusivamente
semântica do dispositivo em questão. 326 Além disso, a afirmação da restrição
da propaganda aos pôsteres e cartazes nos locais internos de venda configurar
praticamente um banimento a essa propaganda é no mínimo contraditória.
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto
nesta Constituição. (...). § 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos,
medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo
anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
(Grifo nosso). BRASIL. Constituição Federal.
324
BARROSO, Luís Roberto. “Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da
publicidade de cigarro”, in: BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo I.
325
Novamente negando uma interpretação unicamente semântica do dispositivo, vale destacar
que a doutrina nos mostra claramente a possibilidade de restrições de direitos fundamentais
não expressamente autorizadas pela Constituição, desde que pautadas por parâmetros racionais
de controle. Nesse sentido, NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela constituição, passim.
326
Cf. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais:
Uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria
dos princípios.
323
256
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Ainda no mesmo parecer, Luís Roberto Barroso afirma:
“O cigarro é um produto maduro, vale dizer, está no mercado faz longo
tempo e não há necessidade de criação de uma demanda específica pelo
seu consumo. Diferentemente se passaria, por exemplo, com um novo
sistema de transmissão de dados ou um novo programa de computador.
Por ser um produto maduro, a publicidade não se destina a estimular
o consumo, mas, sim, a atrair os consumidores para uma determinada
marca”. (Grifo nosso)327
Ora, se a intenção da propaganda de produtos fumígenos não é atrair
novos consumidores, mas apenas destacar as qualidades particulares de uma
determinada marca em detrimento de outras, parece razoável que a propaganda
seja restrita aos locais de venda. É uma forma de garantir que a propaganda alcance,
de forma mais precisa, apenas o público alvo pretendido pela indústria de tabaco,
visto que tais locais concentrariam os consumidores que já fazem uso do produto.
O “espaço amostral” dos afetados pela propaganda tenderia a concentrar mais
consumidores que já fumam, ao invés das propagandas televisivas que atingem
um público composto também por não fumantes (o que potencialmente inclui,
conforme já demonstrado no presente trabalho, crianças e adolescentes).
O argumento de que a propaganda do tabaco tem como objetivo apenas
convencer os fumantes a mudarem ou deixarem de mudar para outra marca de
cigarro é argumento recorrente pelos críticos da restrição da propaganda de
tabaco. Em relação a tal argumento recorrente, afirma Jens Karsten:
“Eu penso que esse argumento está mal definido. Se prova científica
for necessária para suprir a necessária fundamentação para satisfazer
a demanda provando a relação entre a propaganda de tabaco e o ato
de começar a fumar, pode-se confiar em um relatório completo do
Departamento Nacional de Pesquisas Econômicas dos Estados Unidos
(NBER). Esse relatório demonstra, tanto quanto a ciência social pode
fornecer provas, que eliminar a propaganda leva a redução na média per
capita do consumo do tabaco de aproximadamente 7%.”328
“Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da publicidade de cigarro”, in:
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo I, p. 247.
328
KARSTEN, Jens. “Controle do tabaco na União Européia e a proibição de propaganda”. Revista
de Direito do Consumidor, n.40, p. 18. O relatório ao qual o professor Jens Karsten se refere se trata
de CHALOUPKA, Frank; SAFFER, Henry. Tobacco Advertising: Economic Theory and International
Evidence. Disponível em: [http://www.nber.org/papers/w6958]. Acesso em: 02.01.2010.
327
257
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Perante o art. 13(2) da Convenção Interamericana de Direitos Humanos,
o nível atual de restrições se mostra igualmente legítimo. Confira-se:
Artigo 13º - Liberdade de pensamento e de expressão
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse
direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações
e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente
ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro
processo de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar
sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem
ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da
moral públicas. (Grifo nosso)
Ora, toda e qualquer possibilidade de restrição à propaganda comercial
prevista pelo Constituinte no art. 220, § 4º envolve produtos nocivos para a
saúde. No caso do tabaco, é um consenso de que o produto se configura como
fator de risco para diversas doenças.329 Logo, concluímos que antes de proteger
a liberdade de escolha do consumidor de tais produtos, o poder constituinte
buscou proteger o bem jurídico da saúde, tornando tal restrição legítima
sob a ótica dos Direitos Humanos. Dessa forma, tendo sido demonstrada a
legitimidade das restrições perante a ótica dos Direitos Humanos, parte-se ao
requisito da adequação.
3.2 ADEQUAÇÃO DA RESTRIÇÃO DA PUBLICIDADE DO TABACO
Em sentido instrumental, a adequação entre meio e fim da restrição
significa que o meio empregado deve ser compatível com a finalidade a ser
alcançada. Em um sentido de adequação constitucional,330 seria a exigência de
que toda restrição aos direitos fundamentais seja idônea para o atendimento de
um fim constitucionalmente legítimo.
Faz-se necessário apreciar, aqui, a capacidade empírica do meio em
contribuir para a realização do fim. A finalidade é, sem dúvida, diminuir o
Confira-se as estatísticas disponíveis no website do instituto nacional do câncer (INCA), em: [http://
www1.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=atento&link=doencas.htm]. Acesso em: 01.01.2010.
330
GONÇALVES PEREIRA, Jane Reis. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais:
Uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria
dos princípios.
329
258
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
número de potenciais novos fumantes ao proteger a liberdade de escolha do
consumidor alvo dessa propaganda, bem como um aumento no número de
fumantes que deixam o hábito. Por conseguinte, alcançando assim um resultado
positivo também no que tange o direito social e humano da saúde e a proteção
da criança e adolescente, visto que os jovens se encontram entre os principais
atingidos por esse tipo de propaganda. Entendemos haver uma adequação em
sentido instrumental pelo fato de a restrição da Lei 10.167/2000 se adequar
com a finalidade proposta. Ela não apenas restringe de forma mais precisa essa
publicidade a um grupo que tende a concentrar indivíduos que já fumam (o
que, diga-se de passagem, está em consonância com o argumento da própria
indústria do tabaco de que tais propagandas têm como objetivo promover uma
marca nova entre pessoas que já fumam), como também diminui o impacto da
propaganda entre crianças e adolescentes.
A perspectiva de adequação constitucional garante que interesses
constitucionalmente legítimos não sejam restringidos em face de direitos que,
hierarquicamente, não gozem de proteção idêntica. Não há dificuldade alguma
em encontrar a adequação da restrição em questão com bens jurídicos protegidos
constitucionalmente. Novamente, destacamos o direito fundamental e humano à
liberdade do consumidor, o direito fundamental, social e humano da saúde, e, por
fim, a criança e adolescente como categoria especial protegida pela Carta Magna.
Deste modo, extrai-se a ilação de que a restrição é não apenas adequada
para evitar que os modelos comerciais de um estilo de vida ideal baseado no
cigarro seduzam o consumidor ao hábito de fumar, mas também evita que tais
imagens seduzam crianças e adolescentes.
3.3 NECESSIDADE DO MEIO RESTRITIVO ELEITO
Quanto ao critério da necessidade, este serve para restringir a escolha
de meios adequados para a realização de um fim ligado a um direito ou
princípio envolvido, de forma que se houver mais de um meio igualmente
adequado para a execução de um fim, deverá ser privilegiado aquele interfere
no direito ou princípio de forma menos gravosa.331 Deve-se realizar a, portanto,
a verificação concreta se outra medida menos gravosa pode ser utilizada para
alcançar o mesmo resultado. Em relação a esse questionamento, mais uma vez
colacionamos as palavras de Jens Karsten:
“Muito importante também é a observação do relatório de que a regulação
inclusiva tem um claro efeito na redução do uso do tabaco, enquanto a
regulação limitada quase não é eficaz. A regulação limitada não reduz o
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional, 2009, p.174.
331
259
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
impacto da propaganda porque permite a substituição por outro tipo de
mídia. No total, uma redução na propaganda de tabaco não é alcançada com
regulação limitada, por exemplo, na propaganda de televisão, mas deve,
para ser efetiva, alcançar toda a mídia. Essas descobertas também trazem
argumentos para dizer que não existem alternativas para a regulamentação
da propaganda. Não há como obter meios menos restritos para alcançar
o mesmo fim. Medidas positivas, como campanhas de informação que
demonstram os perigos de fumar para a saúde, são severamente prejudicadas
se a promoção do tabaco é ao mesmo tempo permitida”. 332
Assim, na perspectiva de Jens Karsten, não há alternativa menos gravosa
senão a restrição severa das propagandas de cigarro na mídia, destacando que
medidas pouco severas têm um grau mínimo de eficácia concreta na diminuição
do número de fumantes. Tais conclusões não são exclusividade das fontes
citadas. O Instituto Nacional do Câncer (INCA) informa o seguinte:
“Diversos estudos mostram que o incremento na promoção do tabaco
está diretamente ligado ao aumento do consumo de tabaco na população
em geral. A promoção também está relacionada à iniciação ao tabagismo
entre grupos específicos tais como mulheres e crianças como resultado
de campanhas dirigidas a eles. Estudos também têm demonstrado que
a eliminação ou a máxima restrição da promoção do tabaco reduz o
seu consumo. Restrições parciais da promoção têm pouco ou nenhum
impacto no consumo, normalmente porque somente quando alguns
veículos de comunicação ou tipos de propaganda são restringidos, a
indústria do tabaco simplesmente investe mais dinheiro em promoções
através dos meios ainda permitidos.”333
Há até que entenda que o meio escolhido nem é tão gravoso assim.
Afinal, a legislação restritiva da publicidade não proíbe o cigarro, não aumenta
Nessa passagem, o autor novamente se refere ao relatório do Departamento Nacional de
Pesquisas Econômicas dos Estados Unidos (NBER), que assinala: Tobacco advertising is a public
health issue if these activities increase smoking. (…) This paper also provides new empirical
evidence on the effect of tobacco advertising. The primary conclusion of this research is that a
comprehensive set of tobacco advertising bans can reduce tobacco consumption and that a limited
set of tobacco advertising bans will have little of no effect. CHALOUPKA, Frank; SAFFER, Henry.
Tobacco Advertising: Economic Theory and International Evidence. Disponível em: [http://www.
nber.org/papers/w6958]. Acesso em: 02.01.2010.
333
Os argumentos dos opositores do controle do tabagismo: sugestões de resposta às questões mais
freqüentes. Disponível em: [http://www1.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=publicacoes&
link=argumento_opositores.pdf]. Acesso em: 02.01.2010.
332
260
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
os tributos, não obriga a indústria a custear o tratamento de saúde das vítimas
do fumo (como fazem os americanos); apenas impede que as imagens de
homens de sucesso, garotas sedutoras e práticas esportivas fomentem nos
jovens a vontade de fumar e mergulhem na mais profunda dependência química
existente.334 Dessa forma, concluímos pela necessidade da medida. Ainda que
existissem outros meios menos gravosos, eles não atenderiam a necessidade de
proteger o direito humano fundamental à saúde e a formação livre da vontade
dos jovens com a mesma intensidade da restrição atual, devido ao elevado grau
de interferência da liberdade de propaganda para com tais direitos.
3.4 PONDERAÇÃO ENTRE AS VANTAGENS E DESVANTAGENS NA RESTRIÇÃO DA
PUBLICIDADE
Em relação à proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, a ponderação do
equilíbrio entre as vantagens e desvantagens adquiridas pela restrição, Robert Alexy
a destaca como sendo uma “otimização” das possibilidades legais.335 Seu objeto
seria o limite de satisfação referente às suas possibilidades jurídicas. Para o autor,
a aplicação da proporcionalidade em sentido estrito exige avaliar três aspectos, a
saber: o grau de interferência de um direito em outro, o peso abstrato das normas
em conflito e, por fim, a confiabilidade das premissas empíricas que fundamentam
a restrição.336 Nesse sentido, a colisão de bens jurídicos que esse trabalho busca
analisar pondera, de um lado, a liberdade de propaganda de produtos fumígenos,
manifestação da liberdade de expressão comercial e da livre iniciativa. Do outro
lado, encontra-se a liberdade do consumidor em decidir de forma plena sobre
um hábito nocivo a sua saúde. De forma secundária, se torna também inevitável
ponderar em face dessa propaganda, ao lado da liberdade do consumidor, o direito
à saúde, bem como os direitos de proteção diferenciada das crianças e adolescentes.
O primeiro aspecto diz respeito ao grau de interferência ou não satisfação
de um dos princípios em jogo. Significa que quanto maior o grau de não satisfação
ou de prejuízo de um dos direito, maior deverá ser o ônus argumentativo
VARELLA, Drauzio. A propaganda do cigarro. Disponível em: [http://www.drauziovarella.
com.br/ExibirConteudo/401/a-propaganda-do-cigarro]. Acesso em: 20.04.2011.
335
“Balancing is the subject of the third sub-principle of the principle of proportionality, the
principle of proportionality in the narrow sense. This principle expresses what optimisation
relative to the legal possibilities means. ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and
Rationality. Oxford: Blackwell Publishing; 2003; p. 6.
336
ALEXY, Robert. “Epílogo a la teoria de los derechos fundamentales”. Revista Española de Derecho
Constitucional, Ano 22, nº 66, 2002. Disponível em: [http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/
Revistas/6/REDC_066_011.pdf]. Acesso em: 03.01.2010. Ainda, para uma discussão aprofundada
sobre essa metodologia, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição
constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p.177 e ss.
334
261
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
para a prevalência do direito contraposto. Ora, em uma circunstância onde a
publicidade do tabaco atinge consumidores de forma indiscriminada através da
propaganda direta e indireta nos meios de comunicação de massa, há um grande
comprometimento à formação do livre-arbítrio. Como conseqüência, além da
interferência da propaganda com o direito individual e humano da liberdade,
há um posterior dano a outro direito fundamental, a saúde. Por fim, o ônus
argumentativo se acentua ainda mais se considerar que crianças e adolescentes
estão entre os potenciais afetados pela propaganda enganosa do tabaco. Dessa
forma, há de se considerar a não satisfação não apenas da liberdade, mas de três
direitos distintos.
O segundo aspecto consiste em verificar o peso dos direitos envolvidos,
seja em abstrato ou diante do caso concreto examinado, procurando delinear
ou desvendar a magnitude e extensão do mesmo em razão das particularidades
verificadas. Quando se trata do peso em abstrato, não há hierarquia entre normas
constitucionais, mas no jogo da ponderação um princípio pode se revelar mais
valioso em face de outros princípios. No caso da liberdade de propaganda em
face de outras espécies de liberdade ou em face do direito à saúde, o Direito
Internacional dos Direitos Humanos claramente coloca a liberdade de propaganda
em uma posição axiológica inferior. Novamente, nas palavras de Jens Karsten:
“É consenso que a expressão comercial não contribui da mesma maneira
para uma sociedade liberal e democrata como, por exemplo, a expressão
política ou artística. A liberdade de expressão comercial é, por essa
razão, matéria que implica restrições. A proteção da saúde é um dos
fundamentos sob o qual o art. 10 (2) da convenção Européia de Direitos
Humanos permite a imposição de restrições à liberdade de expressão.
Essa previsão estabelece, em suas partes relevantes: o exercício dessas
liberdades, uma vez que isso traz obrigações e responsabilidades,
pode estar sujeito a formalidades, condições, restrições ou penalidades
conforme estabelecido ela lei, e são necessárias em uma sociedade
democrática, no interesse da (...) proteção da saúde (...)”. É notável que a
Corte Européia de Direitos humanos (em Strasburgo), na aplicação dessa
limitação, jamais tenha derrubado uma lei nacional banindo a propaganda
do tabaco e tenha colocado muito menos ênfase no discurso comercial do
que nas variedades políticas e artísticas”.
Em relação ao direito a saúde, diga-se de passagem, o peso é ainda
maior se levarmos em consideração a proteção diferenciada que o Direito
Internacional dos Humanos atribui a esse direito, e em especial, à saúde
das crianças e adolescentes. Tal proteção é expressa, por exemplo, no Pacto
262
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu artigo
12.337 Vale lembrar o exemplo do direito norte-americano, no qual durante
muito tempo a liberdade de propaganda sequer foi incluída no conjunto maior
que constitui a liberdade de expressão338. Mesmo após sua inclusão nesse rol, a
Suprema Corte entendeu o comercial speech como um valor inferior na escala
de valores da Primeira Emenda. In verbis:
“We have not discarded the “common-sense” distinction between
speech proposing a commercial transaction, which occurs in an area
traditionally subject to government regulation, and other varieties of
speech. To require a parity of constitutional protection for commercial
and noncommercial speech alike could invite dilution, simply by a
leveling process, of the force of the Amendment’s guarantee with respect
to the latter kind of speech. Rather than subject the First Amendment
to such a devitalization, we instead have afforded commercial speech
a limited measure of protection, commensurate with its subordinate
position in the scale of First Amendment values, while allowing modes
of regulation that might be impermissible in the realm of noncommercial
expression.”339 (destaque nosso)
Por fim, o terceiro aspecto a ser considerado na metodologia de Alexy
para aplicação da proporcionalidade em sentido estrito é a confiabilidade das
premissas empíricas, o grau de certeza a respeito dos efeitos concretos que a
decisão jurídica produzirá no fato social ao se adotar uma ponderação específica.
Classifica-se, dessa forma, o grau de confiabilidade das premissas em leve,
médio ou alto. Em relação às produções jurídicas e pareceres que buscam
defender a propaganda do tabaco, o grau de vinculação prévia da tese para
com um resultado necessariamente favorável à propaganda impede que um
grau de confiabilidade mais elevado seja atribuído. Um grau de confiabilidade
das premissas empíricas mais elevado deve ser atribuído somente para as teses
patrocinadas por grupos ou desenvolvidas por autores que não demonstrem uma
tendência prévia de vinculação de suas conclusões a determinado resultado.
Assim, uma tese ou parecer jurídico contratado na defesa de qualquer dos dois
ARTIGO 12. 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa
desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. 2. As medidas que os Estados partes
do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as
medidas que se façam necessárias para assegurar: a) a diminuição da mortalidade infantil, bem
como o desenvolvimento são das crianças (...). (Grifo nosso) BRASIL. Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Decreto no 591 de 6 de Julho de 1992.
338
SUNSTEIN, Cass. Democracy and the Problem of Free Speech. New York: The Free Press, 1995.
339
Caso Ohralik v. Ohio State Bar Assn., 436 U.S 447 (1978).
337
263
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
sentidos possui um grau de confiabilidade menor como premissa empírica.
Já um relatório como o realizado pelo Departamento Nacional de Pesquisas
Econômicas dos Estados Unidos (NBER) ou por órgãos governamentais
possuiria um grau de confiabilidade maior, pois apesar de decidir no sentido de
que as restrições são efetivas, não o faz patrocinado por interesses específicos.340
Assim, através da submissão às normas brasileiras de controle da
propaganda do tabaco a um teste de proporcionalidade, concluímos que o
nível atual de restrições estabelecido pela Lei nº. 10.167/2000 se mostra
constitucional.
4. RESPONSABILIDADE CIVIL DA INDÚSTRIA DO TABACO E A PUBLICIDADE
ABUSIVA E ENGANOSA
Embora o Brasil tenha adotado inúmeras medidas legais e administrativas
específicas para realizar o controle da atividade da indústria do fumo, ocupando
uma posição de liderança, os tribunais brasileiros, em regra, não têm acolhido
as pretensões indenizatórias de pessoas que foram acometidas por doenças
associadas ao tabaco.
A Aliança de Controle do Tabagismo, sob a coordenação de Clarissa
Menezes Homsi, pesquisou como os tribunais pátrios têm se comportado diante
de ações indenizatórias contra a indústria do tabaco. Nesta pesquisa foram
analisadas 66 decisões dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Distrito
Federal, sendo que apenas 3 eram ações coletivas.341 No que diz respeito às
É possível destacar uma vasta gama de pesquisas com grau de confiabilidade elevado como
premissa empírica que sejam favoráveis à restrição severa da propaganda do cigarro, a citar:
CHALOUPKA, Frank J; GROSSMAN, Michael. Price, Tobacco Control Policies and Smoking
Among Young Adults, JHE, Vol. 16, no. 3 (June 1997): 359-373; CHALOUPKA, Frank J. Tobacco
Advertising: Economic Theory and International Evidence; GROSSMAN, Michael CRAWDORD,
Moodie et al., “Tobacco Marketing Awarenes on Youth Smoking Susceptibility and Perceived
Prevalence Before and After and Advertising Ban”, European Journal of Public Health 18:5 (2008);
ROSEMBERG, José. Nicotina. Droga universal. São Paulo: SES/CVE, 2003; ROSEMBERG, José.
Pandemia do tabagismo – Enfoques Históricos e Atuais. São Paulo – SES, 2002.
341
A Indústria do Tabaco no Poder Judiciário, p. 11. Em uma delas o Ministério Público/DF
pleiteou que a indústria fosse obrigada a fazer contra-propaganda, além do pagamento em
danos morais difusos. Apesar do reconhecimento de publicidade abusiva e enganosa, em grau de
recurso foi negado o pedido quanto a obrigatoriedade de contra-propaganda e reduzido o valor
dos danos morais de R$ 14.000.000,00 para R$ 4.000.000,00. Em outra ação coletiva a Associação
dos Consumidores Explorados do Distrito Federal (Acode) pleiteou que a empresa de cigarro
abstivesse de produzir e/ou comercializar cigarros no território nacional. Tendo sido considerado
pedido impossível por entender o Judiciário que apenas o Estado poderia definir os produtos a
serem fabricados ou comercializados, a ação foi extinta sem julgamento de mérito, tendo sido
a decisão confirmada pelo TJDF. Por fim, em São Paulo a Associação de Defesa da Saúde do
340
264
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
ações individuais pesquisadas, mais de 60% foram promovidas por fumantes,
pouco mais de 30% por “familiares de fumante falecido (cônjuge, filhos, pais)”
e curiosamente uma ação foi proposta por um fumicultor que alegou ter tido
problemas de saúde decorrentes de sua atividade.342 Os problemas de saúde
mais citados nas ações individuais são: doença pulmonar; câncer; doenças
vasculares, até mesmo com amputação e doença psiquiátrica.343
A tutela judicial do consumidor de tabaco deixa a desejar, porque, em
regra, tem sido acolhida a linha de argumentação dos advogados que trabalham
para a indústria do tabaco,344 que alegam: a) a produção e comercialização de
cigarros não só é lícita, mas amplamente regulamentada e todos os atos da Souza
Cruz estão de acordo com o que dispõe a Constituição (art. 220, §4º), o Código
de Defesa do Consumidor e os regulamentos da Anvisa; b) a propaganda do
cigarro não é enganosa ou abusiva; c) O cigarro não é um produto defeituoso,
mas um produto de periculosidade inerente; d) os riscos associados ao consumo
de cigarros são de conhecimento dos consumidores há várias décadas; e) não há
como estabelecer o nexo causal entre o ato de fumar e “doenças multifatoriais”
(diversos fatores de risco são concorrentes), mormente pelo fato de que a
associação dessas doenças ao tabaco é meramente estatística, não levando em
consideração o indivíduo isolado; f) ao consumidor deve ser imputada culpa
exclusiva, porque fumar é uma opção que envolve riscos conhecidos e nada
impede que o fumante decida parar de fumar a qualquer tempo, já que a nicotina
é incapaz de intoxicar o consumidor a ponto de afetar a sua autodeterminação.345
Algumas considerações devem ser feitas no que diz respeito aos
argumentos acima apresentados para efeito de responsabilização civil.
Fumante (ADESF) propôs ação coletiva com pedido de “danos morais e materiais aos fumantes
prejudicados pelo uso do cigarro, bem como para que as empresas adéqüem suas embalagens e
publicidade nos termos da legislação consumerista”. Apesar de em primeira instância ter sido
julgado procedente o pedido, até o dia 01/02/2010 o mérito ainda não havia sido julgado pelo
Tribunal de Justiça (processo n. 387.231-5/6-00).
342
CLARISSA MENEZES HOMSI (coord.). A Indústria do Tabaco no Poder Judiciário, p. 11/12.
343
Idem, p. 14.
344
Veja-se, no entanto, sentença de procedência favorável à pretensão indenizatória por dano
moral contra a indústria tabagista da lavra do juiz MAURO CAUM GONÇALVES, “Ação de
indenização por danos morais contra a indústria tabagista”, in: Revista de Direito do Consumidor,
vol. 66, p. 353/366.
345
Cf. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, “A causalidade nas ações indenizatórias por
danos atribuídos ao consumo de cigarros” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livrearbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e
processuais, p. 240/241.
265
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
4.1. LICITUDE DA ATIVIDADE DE COMERCIALIZAR PRODUTOS DERIVADOS DO
TABACO
Ninguém nega que a comercialização do cigarro no Brasil seja lícita.
Toda a cadeia produtiva, desde o cultivo até a preparação e comercialização
do produto é amparada pela legalidade, sendo fiscalizada e tributada de forma
regular pelo poder público. De fato, a manutenção deste como produto lícito é
útil para que o Estado mantenha um nível tolerável de controle sobre a tributação
e fiscalização acerca da qualidade dos produtos fornecidos ao consumidor.346
No entanto, “não deixa de ser estranha a licitude de um produto que mata,
nada menos, que a metade de seus consumidores diretos, acarretando, inclusive,
prejuízos altíssimos aos cofres públicos.”347 De qualquer forma, a licitude da
atividade não torna lícito todos os atos empresariais. Do contrário, nunca uma
empresa que vende aparelhos eletrônicos poderia ser responsabilizada com base
no CDC. Ademais, a licitude da atividade não é significativa para a discussão
acerca da responsabilidade da indústria, visto que a mesma é de natureza
objetiva, conforme o artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor.348
4.2 DIREITO À INFORMAÇÃO VERSUS PUBLICIDADE ILÍCITA
Publicidade significa tornar público. Diga-se, desde logo, que a
publicidade é uma das técnicas da informação e, por esta razão, não pode
desinformar.349 No consumo de produtos derivados do tabaco há informação de
todos os riscos que, aliás, são do conhecimento dos consumidores? O tema vem
regulado da seguinte forma no Código de Defesa do Consumidor:
“É de ressaltar, desde já, que a exploração comercial do tabaco e da nicotina (venda de cigarros)
representa um negócio extremamente lucrativo, mas tolerado pelo Poder Público que, com isso,
previne a clandestinidade que uma súbita proibição poderia causar – tal qual o fenômeno verificado
durante a Lei Seca nos Estados Unidos – fomentadora de sensível evasão (sonegação) fiscal, bem como
prejuízo da ruptura do controle exercido sobre a qualidade e sobre os componentes disponibilizados
ao consumidor”. CRUZ, Guilherme Ferreira da. “Responsabilidade Civil das Empresas Fabricantes
de Cigarros”. Revista de Direito do Consumidor, n. 47, p. 78.
347
LÚCIO DELFINO. Responsabilidade Civil e Tabagismo no Código de Defesa do Consumidor, p. 107.
348
Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador
respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados
aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem,
fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. BRASIL. Código de
Defesa do Consumidor.
349
TERESA ANCONA LOPEZ, Nexo causal e produtos potencialmente nocivos: e experiência
brasileira do tabaco, p. 89.
346
266
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de
caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro
modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a
respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades,
origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer
natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição,
se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança,
desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor
a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
§ 3° Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão
quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.
Segundo Fábio Ulhôa Coelho, “o essencial, na caracterização da
publicidade enganosa, é o potencial de indução em erro que a mensagem pode
apresentar, e não necessariamente a falsidade da informação transmitida.”350
E arremata o mesmo autor: “Nenhuma lingerie é usada por mulheres feias;
nenhum cigarro é consumido por doentes; nenhum produto é relacionado
seriamente com o fracasso pessoal ou profissional. Apenas nos anúncios de
formato bastante simples não se vislumbra qualquer apelo fantasioso”. 351
Isto parece contrariar, todavia, a redação do § 1° do art. 37 que se refere à
informação ou comunicação “inteira ou parcialmente falsa”. Uma coisa é
informar fornecendo dados verdadeiros, reconhecidos pela ciência; outra, bem
diferente, é criar informações fantasiosas no campo científico. Seria inteiramente
falsa, por exemplo, a informação de que fumar melhora o desempenho físico
de um atleta. Diga-se, aliás, que o art. 66 do CDC tipifica a afirmação falsa ou
enganosa como infração penal, e isto nada tem a ver com apelo fantasioso352.
A conclusão que se chega é que a publicidade do cigarro é enganosa por omissão.
Realmente, quais são os dados que precisam ser informados do cigarro? Alguns
juristas sustentam que os males provocados pelo fumo já estão presentes na
consciência da coletividade ou na cultura popular353. Chegam praticamente
“Análise da licitude da publicidade de cigarros à luz do Código de Defesa do Consumidor”
[Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente
– o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 163.
351
“Análise da licitude da publicidade de cigarros à luz do Código de Defesa do Consumidor”
[Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente
– o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 165.
352
No sentido do texto: LÚCIO DELFINO. Responsabilidade Civil e Tabagismo no Código de
Defesa do Consumidor, p. 107.
353
Assim, por exemplo, ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO, “A dependência ao tabaco e a sua
350
267
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
a dizer que todos nascem sabendo e que isto isenta os fabricantes de colocar
informações nos produtos fumígenos. Esquecem que os principais consumidores
atingidos são hipervulneráveis, porque são crianças e adolescentes, conforme
tivemos a oportunidade de demonstrar anteriormente.
Ademais, o caráter abusivo resta patente na medida em que a
publicidade do cigarro faz a apologia de um produto que acarreta danos ao
consumidor, aproveitando-se da carência de informações dos jovens que
são atraídos pelos efeitos perversos da publicidade com a promessa de autoafirmação para uma vida adulta354.
4.2.1. DIREITO À INFORMAÇÃO E LIVRE-ARBÍTRIO
Há quem não veja com bons olhos a excessiva intromissão do Estado no
setor privado. Não estaríamos aqui diante de uma forte intervenção na autonomia
da vontade – e por que não dizer – no direito de liberdade dos fumantes? Por
outro lado, a dependência provocada pela nicotina não constitui uma forma
de dano moral ao espaço de decisão do fumante que tenta desesperadamente
abandonar o vício? Afinal, em que medida deve o Estado regular a publicidade
dos produtos fumígenos?
Até hoje está disseminada a idéia de que fumar é um ato consciente
de vontade que está dentro da esfera de livre-arbítrio de cada um. Para Teresa
Ancona Lopez, 355 a liberdade de fumar é um direito humano tanto quanto a
liberdade de não fumar, e é dever do Estado tutelar e tornar harmônicas essas
duas liberdades quando estiverem em rota de colisão. Para a autora,356 no
entanto, deve-se evitar a todo custo o “higienismo estatal”, isto é, permitir que
o Estado se intrometa na vida privada das pessoas, ocupando o lugar da família,
formando uma sociedade de eternas crianças.
De acordo com os defensores da propaganda, a decisão de fumar seria
única e exclusivamente do consumidor fumante, um hábito adquirido por uma
decisão racional e plenamente ciente dos prós e contras de tal decisão. Dessa
forma, defendem uma linha de culpa exclusiva da vítima pelos danos causados.
Essa tese se baseia na premissa de que não há, por parte das empresas, qualquer
forma de influência que leve o consumidor ao hábito fumar ou os impeça de
deixar de fazê-lo. Muitos sustentam, inclusive, que a finalidade da propaganda
influência na capacidade jurídica do indivíduo. A caracterização de defeito no produto sob a ótica
do CDC” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco
inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 82.
354
LÚCIO DELFINO. Responsabilidade Civil e Tabagismo no Código de Defesa do Consumidor,
p. 138/139.
355
Nexo causal e produtos potencialmente nocivos: e experiência brasileira do tabaco, p. 15.
356
Idem, p. 16/17.
268
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
do tabaco seria única e exclusivamente a de “fazer com que um consumidor que
já fume decida por uma determinada marca em detrimento de outra”. 357
No entanto, a idéia de um livre-arbítrio puro é equivocada para descrever
o início do hábito de fumar. A suposta liberdade possuída pelo consumidor
“pré-fumante” acaba sendo envolvida pelo bombardeiro de influências externas
no processo de formação de sua vontade.
Com efeito, a vontade humana não é invariável, inatingível ou
totalmente livre de influências. A mesma pode ser conduzida e transformada
por estímulos externos, advindos de uma realidade obtida pela experiência.
Sempre que possível, na tentativa de analisar uma situação de fato na qual
o fator determinante seja uma manifestação de vontades pautada no livre
arbítrio, é necessário investigar possíveis interferências externas motivadoras,
potencialmente prejudiciais à formação da vontade, e que induzem o indivíduo
a um agir específico. Nesta linha, não há como afirmar que determinado hábito
depende única e exclusivamente de um livre arbítrio quando não há liberdade
plena em tal escolha.
Recorde-se, aliás, que a prática do tabagismo é uma doença causada
pela dependência da nicotina. E como doença deve ser tratada, “não bastando
a simples vontade ou opção do enfermo para expurgá-la de seu organismo”.
358
Estudos demonstram que a primeira tragada do fumante ocorre não na fase
adulta e sim quando adolescente. Os jovens sempre estiveram na mira da
indústria do tabaco. Historicamente, a estratégia da indústria de tabaco tem se
baseado em omissão de informações acerca dos males do fumo, e em técnicas
de marketing que criam a imagem de um estilo de vida ideal.359
O fator genético também não pode ser ignorado. Estudos indicam que
90% dos fumantes são fisiologicamente dependentes da nicotina, enquanto 50%
dos usuários de heroína apresentam esta predisposição genética e apenas 10%
dos consumidores de álcool possuem dependência fisiológica.360 É simplesmente
impossível que a pessoa que decide experimentar o cigarro pela primeira vez
esteja ciente de todos os malefícios que pode vir a desenvolver, sem falar dos
danos que pode provocar ao meio ambiente e à saúde de terceiros.361
Não há, por isso, total livre arbítrio no ato do homem médio que dá início ao
Cf. BARROSO, Luís Roberto. “Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da
publicidade de cigarro”, in: Temas de Direito Constitucional. Tomo I, p. 247.
358
DELFINO, Lucio. Responsabilidade Civil & Tabagismo, p. 229.
359
CF. ROSEMBERG, José. Nicotina. Droga universal. São Paulo: SES/CVE, 2003; p. 28. No
mesmo sentido, ROSEMBERG, José. Pandemia do tabagismo – Enfoques Históricos e Atuais. São
Paulo – SES, 2002.
360
AMANDA FLÁVIO DE OLIVEIRA, Direito de [não] fumar: uma abordagem humanista, p. 105.
361
Cf. AMANDA FLÁVIO DE OLIVEIRA, Direito de [não] fumar: uma abordagem humanista,
p. 108/115.
357
269
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
hábito de fumar em um ambiente onde existe plena liberdade de propaganda
sem uma informação adequada sobre o produto que se está sendo vendido. Tal
ambiente impede a possibilidade de uma decisão racional e a plena liberdade
do indivíduo, enquanto consumidor e cidadão titular de direitos fundamentais.
Dessa forma, torna-se essencial a intervenção do estado para tutelar e proteger tal
liberdade do consumidor, através da restrição dessa liberdade de propaganda.
4.2.2 DEFEITO DE INFORMAÇÃO E PRODUTO DE PERICULOSIDADE INERENTE E
NÃO-DEFEITUOSO
Nos termos do art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, consideramse produtos defeituosos aqueles que apresentam “defeitos decorrentes de projeto,
fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes
ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.”
Na lição de Gustavo Tepedino,362 cumpre distinguir a periculosidade
inerente (riscos de fumar são conhecidos) de defeito do produto (segurança
dentro dos padrões da expectativa legítima dos consumidores). Exemplifica que
o ferimento provocado em um cozinheiro pela faca (perigo inerente previsível)
não gera o dever de indenizar, e tampouco se poderia alegar defeito do produto
de fogos de artifício com base em sua combustão.
De acordo com Adroaldo Furtado Fabrício, poder-se-ia ter como
defeituoso “um cigarro que não queimasse, ou que não tivesse sabor algum, ou,
por ausência de qualquer dos componentes ordinariamente contidos nele, fosse
incapaz de proporcionar ao fumante a sensação de prazer por ele esperada”.363
Embora esses autores não toquem no tema do defeito de informação,
Álvaro Villaça Azevedo, sustentar inexistir tal defeito, porque somente
com o advento da Portaria do Ministério da Saúde n. 695, de 1º de junho
de 1999, é que foi imposta a obrigação de informar que “a nicotina é droga
e causa dependência”.364
“Liberdade de escolha, dever de informar, defeito do produto e boa-fé objetiva nas ações
de indenização contra os fabricantes de cigarro” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livrearbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e
processuais, p. 196/199.
363
“Iniciativa judicial e prova documental procedente da Internet. Fatos notórios e máximas da
experiência no direito probatório: a determinação processual do nexo causal e os limites do poder
de instrução dos juízes” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e
produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 31.
364
“A dependência ao tabaco e a sua influência na capacidade jurídica do indivíduo. A
caracterização de defeito no produto sob a ótica do CDC” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre
o livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis
362
270
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Ora, se a nicotina, de fato, motiva a dependência, têm-se aqui mais uma
prova de que o ato de parar de fumar seja um comportamento que dependa apenas
do livre-arbítrio do fumante (que pode ter começado a fumar na adolescência).
Uma vez ausente a vontade do viciado cai por terra a tese de que haveria culpa
exclusiva do consumidor (art. 12, III, CDC). De qualquer forma, o CDC é de
clareza solar no que diz respeito à obrigação de informar adequadamente e
suficientemente e até hoje o defeito persiste.
Como sustentar a culpa exclusiva do consumidor, se este desconhece
qual seria a quantidade “segura” de consumo de um produto de reconhecida
nocividade e periculosidade? Esta informação, sobre a quantidade máxima de
cigarros que poderiam ser consumidos, obviamente não aparece nos maços. Os
meios publicitários apenas estimulam o consumo do tabaco para que o consumidor
desenvolva dependência física e psicológica, fazendo-o refém de inúmeras
substâncias que, caso ausentes no organismo, provocarão efeitos indesejáveis.365
4.3. RESPONSABILIDADE CIVIL E O MITO JURÍDICO DA FALTA DE NEXO DE
CAUSALIDADE
Certamente um dos maiores óbices para que pessoas acometidas por
doenças relacionadas ao tabaco possam pleitear algum tipo de indenização é
o argumento da falta de nexo de causalidade. Todavia, a maioria dos autores
restringe o exame do nexo causal ao aspecto fático do ato de fumar e a doença
adquirida. Diferentemente, Teresa Ancona Lopez apresenta a distinção entre
causalidade natural e causalidade jurídica, e dedica um trabalho inteiro aos
aspectos jurídicos do nexo de causalidade. Nesta linha, a autora conclui que
não há formação do nexo de causalidade: entre os possíveis danos do cigarro e
a falta de conhecimento do fumante quanto aos males do fumo, porque não há
defeito de informação sobre os riscos à saúde, e a publicidade não é enganosa
ou abusiva. Entende a autora estar excluída a possibilidade de indenização ao
fumante pelo fato de ser o cigarro um produto perigoso, e não defeituoso, e a
vítima submeter-se, conscientemente, a um risco evitável.366
Embora bem fundamentado, é uma pena que o estudo acima tenha
praticamente ignorado a teoria da imputação objetiva na responsabilidade
civil.367 A teoria da imputação objetiva remonta à filosofia jurídica de Hegel.
e processuais, p. 81.
365
ANDRIGHI, Fátima Nancy; ANDRIGHI, Vera Lúcia; KRÜGER, Cátia Denise Gress.
“Responsabilidade Civil da Indústria Fumageira pelos Danos Causados a Direito Fundamental
do Consumidor de Tabaco”, in: Responsabilidade Civil Contemporânea em homenagem a Sílvio de
Salvo Venosa, p. 370.
366
Nexo causal e produtos potencialmente nocivos: e experiência brasileira do tabaco, p. 22 e ss.
367
Idem, p. 28/29.
271
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Dela é que Karl Larenz, no ano de 1927, colheu inspiração para publicar a
obra Teoria da imputação de Hegel e o conceito de imputação objetiva.368 Para
esse autor, a imputação tem a ver com a pergunta sobre a responsabilidade
que deve ser atribuída a um sujeito com a sua ação de modo que ele seja feito
responsável. Nesta ordem de idéias, a imputação não é outra coisa senão a
tentativa de distinguir o próprio ato de acontecimentos casuais.
Ela foi posteriormente também desenvolvida no campo do Direito Penal,
mas a teoria da imputação objetiva ainda conserva valor inestimável para o
campo da responsabilidade civil, sobretudo no tratamento da omissão. De fato,
há problemas que, conforme lição de Calixto Díaz-Regañón García-Alcalá, “se
circunscriben al tratamiento concreto de la imputación objetiva del daño y no
del nexo causal material. Para ello, es preciso distinguir cuándo estamos ante
un caso de responsabilidad civil donde la conducta del demandado es positiva
o identificable con una “acción” y cuándo, por el contrario, estamos ante un
comportamiento omisivo o negativo”.369 É dizer: no caso da imputação objetiva
do resultado a omissão de uma conduta no plano dos fatos pode significar a
realização de um risco juridicamente não permitido.
Basta uma rápida leitura do Código de Defesa do Consumidor para
perceber que o fornecedor só poderá explorar os produtos potencialmente
nocivos se respeitar o dever de informar, de forma clara, adequada, precisa e
ostensiva, a respeito da nocividade, composição e periculosidade do produto (art.
9º e 31). As pesquisas indicam que o cigarro possui mais de 4.000 substâncias
tóxicas e estas nunca vieram elencadas nos maços de cigarro.
Como pondera Lúcio Delfino, “as singelas advertências acerca dos malefícios
ocasionados pelo consumo de cigarro, inseridas nos maços vendidos no Brasil, e na
própria publicidade do produto, decorrem de previsão legal, mais especificamente,
advém do dever do Estado de adotar medidas com a finalidade de preservar a
saúde da comunidade, como também da obrigação de conscientizar a população
sobre os agravos à saúde gerados pelo consumo de tabaco e seus derivados. Essas
advertências não eximem as empresas fumígenas de seu dever de informar.” 370
É neste contexto que a conduta omitida (dever de informar de forma
clara, adequada, precisa e ostensiva, a respeito da nocividade, composição e
periculosidade do produto) caracteriza a criação de um risco não permitido e
Hegels Zurechnungslehre und der Begriff der objektiven Zurechnung: ein Beitrag zur
Rechtsphilosophie des kritischen Idealismus und zur Lehre von der “juristischen Kausalität.” passim.
369
“Relación de causalidad e imputación objetiva en la responsabilidad civil sanitária”, in: Revista
para el Análisis del Derecho, 2004, n. 1, p. 20. Disponível em: [http://www.indret.com/pdf/180_
es.pdf]. Acesso em: 01.02. 2010.
370
Responsabilidade Civil e Tabagismo no Código de Defesa do Consumidor, p. 116/117. Consultese, também, CARLOS ALEXANDRE MORAES, Responsabilidade civil das empresas tabagistas,
p. 165.
368
272
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
fundamenta a imputação objetiva do dever de indenizar.371 É o que basta para
desmistificar o mito da falta de nexo causal. O Direito não pode trabalhar com
mitos. Ademais, a relação consumerista baseia-se na boa-fé objetiva, o que por
certo não ocorre para a hipótese em que o fornecedor omite, propositalmente,
informações relevantes sobre a nocividade de seu produto.
Há, portanto, a necessidade de que sejam informados os metais
tóxicos (Arsênico, Cádmio, Acetato de Chumbo, Fósforo P4 e P6 etc.)
os gases tóxicos (ex.: Monóxido de Carbono, Amônia, Tolueno, Cianeto,
Butano, Cetona, Terebentina, Xileno, Ácido Levulínico etc.), bem como
as substâncias cancerígenas (Alcatrão, Polônio, Níquel, Benzeno,
Formaldeído, Acroleína etc.) e outras que podem interagir perigosamente
com os produtos derivados do tabaco.
Vencido o problema do nexo causal em sua faceta jurídica, resta ainda
enfrentar o tema em seu aspecto fático. Isto porque vários juristas sustentam
ser “indispensável a prova inequívoca da relação de causalidade entre o ato
de fumar e a doença invocada, sendo insuficiente, para o caso concreto, a
associação estatística e genérica, para fins epidemiológicos, da doença com
o consumo de cigarros” 372. É absolutamente curiosa essa exigência de prova
impossível para o consumidor do tabaco. Todos sabem que o fumo provoca
diversos males à saúde e que existe um rol de doenças associadas ao consumo
do tabaco. Esses juristas esquecem, no entanto, que também a Medicina é
uma ciência de probabilidades. Assim, o médico, ao tratar de um paciente, vai
eliminando possibilidades para se aproximar da certeza.
De qualquer forma, o nexo de causalidade não pode mais ser ignorado.
Através da Resolução WHA 52.18, a 52ª Assembléia Mundial de Saúde, em
maio de 1999, estabeleceu um órgão de negociação aberto aos Estados Membros
da Organização Mundial de Saúde para implementar uma coalizão mundial –
denominada de Convenção Quadro para o Controle do Tabaco (Framework
Convention on Tobacco Control) – para o controle do tabagismo.373 Cuida-se,
a bem ver, de um verdadeiro Tratado Internacional versando sobre a Saúde
Pública mundial.374
No sentido do texto: ANDRIGHI, Fátima Nancy; ANDRIGHI, Vera Lúcia; KRÜGER,
Cátia Denise Gress. “Responsabilidade Civil da Indústria Fumageira pelos Danos Causados a
Direito Fundamental do Consumidor de Tabaco”, in: Responsabilidade Civil Contemporânea em
homenagem a Sílvio de Salvo Venosa, p. 368.
372
Cf. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, “A causalidade nas ações indenizatórias por danos atribuídos
ao consumo de cigarros” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e
produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 251.
373
JOSÉ ROSEMBERG, Nicotina: droga universal, p. 164. Disponível em: [http://www.inca.gov.
br/ tabagismo/publicacoes/nicotina.pdf]. Acesso em: 31.01.2010.
374
O Decreto n.º 1.012, 28 de outubro de 2005, aprovou o texto da Convenção-Quadro sobre
371
273
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Um dispositivo importante e que merece transcrição é o do art. 8º que se refere
à proteção contra a exposição à fumaça do tabaco, verbis:
1. As Partes reconhecem que a ciência demonstrou de maneira inequívoca
que a exposição à fumaça do tabaco causa morte, doença e incapacidade.
(destaque nosso)
Aqui há o reconhecimento, pelo Estado Brasileiro, de que há nexo causal
entre a exposição à fumaça do tabaco e a morte, doença e incapacidade. Ora,
se consta no art. 8º da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, que
“a ciência demonstrou de maneira inequívoca que a exposição à fumaça do
tabaco causa morte, doença e incapacidade, como podem os advogados da
indústria do tabaco, sem nunca ter aberto um único livro de medicina, duvidar
do consenso científico mundial? De tal arte, basta o consumidor provar que é
fumante e possuir alguma enfermidade ou evento danoso relacionado ao tabaco
para fazer jus à reparação do dano.
4.4. DANO MORAL DIFUSO DECORRENTE DA PUBLICIDADE DE PRODUTOS
FUMÍGENOS
Afinal, se fumar realmente é prejudicial à saúde, como apontam
diversos estudos médicos, não deveria haver algum tipo de responsabilização
daqueles que provocam este dano social, isto é, atingem o direito à saúde da
coletividade e forçam o Poder Público a destinar mais verbas para os hospitais
tratarem especificamente de doenças ligadas ao tabagismo?
Um vídeo encontrável na rede mundial acabou sendo alvo do processo n.
2004.011102028-0, por veicular propaganda de cigarro fora do horário permitido
por lei. Com efeito, O Ministério Público do Distrito Federal ajuizou ação civil
pública em face das empresas Souza Cruz, Standart Ogilvy & Mather Ltda e
Conspiração Filmes Entretenimento S/A, em virtude da propaganda televisiva
intitulada “Artista Plástico II”, exibida no período de agosto a dezembro de
Controle do Uso do Tabaco, assinada pelo Brasil, em 16 de junho de 2003 e, em seqüência, o
Decreto nº 5.658, de 2 de janeiro de 2006, promulgou a Convenção-Quadro sobre Controle do
Tabaco, adotada pelos países membros da Organização Mundial de Saúde em 21 de maio de 2003
e assinada pelo Brasil em 16 de junho de 2003. No art. 3º resta evidente o objetivo humanitário
da Convenção: “O objetivo da presente Convenção e de seus protocolos é proteger as gerações
presentes e futuras das devastadoras conseqüências sanitárias, sociais, ambientais e econômicas
geradas pelo consumo e pela exposição à fumaça do tabaco, proporcionando uma referência
para as medidas de controle do tabaco, a serem implementadas pelas Partes nos níveis nacional,
regional e internacional, a fim de reduzir de maneira contínua e substancial a prevalência do
consumo e a exposição à fumaça do tabaco.”
274
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
2000, a qual teria causado dano a interesses difusos, de âmbito nacional, tendo
a publicidade afetado o público infanto-juvenil de todo o país. Na decisão de
primeiro grau, tais empresas foram condenadas ao pagamento de indenização
milionária a título de danos morais coletivos375, tendo a sentença sido confirmada
pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal.376
Com a severa restrição que enfrenta hoje a indústria do tabaco no que diz
respeito à publicidade, é natural que os fabricantes procurem outros meios para
divulgar e estimular o consumo de produtos fumígenos. Obviamente este tipo
de publicidade pode afetar direitos metaindividuais, especialmente na hipótese
de não observar a legislação pátria sobre o tema.
A indústria aposta agora nas embalagens e nos pontos de venda.377
Atualmente, caixas de padarias, bancas de jornal e algumas lojas de shopping
que comercializam livros e revistas são os postos de venda onde são exibidos
os produtos fumígenos, geralmente com vitrines luminosas, contendo doces e
alguns brinquedos.
Uma rápida busca no portal do Youtube permite encontrar propagandas antigas
de cigarro,378 mulheres com cigarro se exibindo379 e até brinquedos feitos com
caixas de cigarro.380 Com isto, pode-se perceber que a exposição de nossos
jovens à cultura do tabaco ainda é intensa e está longe de ser satisfatória.
5. CONCLUSÃO
Através de uma análise acerca do estado atual do controle da publicidade
do tabaco no Brasil, este trabalho procurou responder a cinco questionamentos
pontuais: a) se é adequada à informação que envolve a publicidade dos produtos
derivados do tabaco; b) a constitucionalidade e proporcionalidade das restrições
à publicidade do tabaco; c) se a publicidade do tabaco interfere na autonomia
da vontade do consumidor; d) se o Estado deve intervir nas relações jurídicas
que envolvem a venda de produtos fumígenos e proteger o consumidor e sua
capacidade de autodeterminação da publicidade ilícita; e) qual a relação entre o
nexo causal e a publicidade para efeito de responsabilização civil.
BRASIL, TJDFT, Processo no 2004.01.1.102028-0, Juiz Robson Barbosa de Azevedo, DJE
03/03/2006.
376
BRASIL, TJDFT, Apelação Civil no 2004.01.1.102028-0, Rel. Des. Vera Andrighi, DJE
24.07.2007.
377
JOHNS, Paula. A publicidade da indústria do fumo. Disponível em: [http://www.
conexaoprofessor.rj.gov.br/especial.asp?EditeCodigoDaPagina=375]. Acesso em: 20.04.2011.
378
Cf. [http://www.youtube.com/watch?v=LHy7RXJ7W8Y]. Acesso em: 17.04.2011.
379
Por exemplo: [http://www.youtube.com/watch?v=NqiPOPSMgFY]. Acesso em: 17.04.2011.
380
Veja-se a imitação de um robô da série Transformers: [http://www.youtube.com/
watch?v=0CwtrrDYdqQ]. Acesso em: 17.04.2011.
375
275
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O Brasil, nas últimas décadas, tem seguido a tendência mundial de desestímulo
a propaganda e consumo do cigarro. A Lei no. 9.294 de 1996 estabeleceu restrições
à propaganda, que se tornaram mais severas ao serem modificadas pela Medida
Provisória 1o 2.190-34 de 2001 e pela Lei no 10.167 de 2000, que restringiu a
propaganda comercial dos produtos apenas aos pôsteres, painéis e cartazes na parte
interna dos locais de venda.
A publicidade de cigarros jamais teve cunho informativo e esclarecedor
no Brasil, tendo sido sempre promovida com o intuito de criar uma ambientação
agradável e associada a imagens de atividades esportivas, sociabilidade, saúde,
requinte ou sucesso profissional. Tal estratégia persuasiva usava imagens sedutoras
para incitar ao hábito, e quando tal veículo de comunicação alcança uma criança,
adolescente ou pessoas menos maduras, opera sua influência com um alcance ainda
maior. Sendo assim, parece mentirosa uma propaganda que, deliberadamente, busque
associar um estilo de vida ideal a um hábito que, de acordo com uma verdade factual,
causa graves danos à saúde. Patente se revela o defeito de informação, na medida
em que os fornecedores omitem, propositalmente, informações relevantes sobre a
nocividade de seu produto nos maços de cigarro.
No que diz respeito ao controle da propaganda do tabaco, as restrições
estabelecidas pela Lei nº. 10.167/2000 se mostram constitucionais e atendem à
norma da proporcionalidade. Em relação à legitimidade dos fins, percebe-se que as
normas encontram pleno amparo no Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Em uma perspectiva de adequação, a restrição é não apenas adequada para evitar
que os modelos comerciais de um estilo de vida ideal baseado no cigarro seduzam o
consumidor ao hábito de fumar, mas também evita que tais imagens seduzam crianças
e adolescentes. Em relação à necessidade, não há forma de alcançar aquela finalidade
que seja menos gravosa à liberdade de propaganda. E por fim, a partir da técnica da
ponderação, entende-se que o sacrifício da liberdade de propaganda resulta em um
ganho proporcional aos demais bens jurídicos em questão. Afinal, em um ambiente
onde exista a plena liberdade de propaganda inexiste a plena liberdade do indivíduo,
enquanto consumidor e cidadão titular de direitos fundamentais. Dessa forma, torna-se
essencial a intervenção do estado para tutelar e proteger tal liberdade do consumidor,
através da restrição dessa liberdade de propaganda.
No que tange è relação entre o nexo causal e a publicidade, a maioria dos
autores restringe o exame do nexo causal ao aspecto fático do ato de fumar e a
doença adquirida. É preciso, primeiramente, fazer a distinção entre causalidade
natural e causalidade jurídica. É este último aspecto que nos interessa. Muitos
danos do ocasionados pelo cigarro se devem à falta de conhecimento do fumante
quanto aos males do fumo, porque há defeito de informação sobre os riscos à saúde,
caracterizando-se a publicidade como enganosa e abusiva. É neste contexto que a
conduta omitida (dever de informar de forma clara, adequada, precisa e ostensiva, a
respeito da nocividade, composição e periculosidade do produto) cria um risco não
permitido e fundamenta a imputação objetiva do dever de indenizar. É o que basta
para desmistificar o mito da falta de nexo causal.
276
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281
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O NOVEL ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL E SEUS IMPACTOS NA
ATIVIDADE EMPRESARIAL: EFETIVIDADE OU MERA RETÓRICA?
THE NEW RACIAL EQUALITY STATUTE AND ITS IMPACT ON BUSINESS
ACTIVITY: EFFECTIVENESS OR RHETORIC?
RESUMO
Felippe Abu-Jamra Corrêa
O artigo analisa inicialmente o contexto das ações afirmativas no Brasil e o
advento da Lei 12.288 de 20 de julho de 2010 (Estatuto da Igualdade Racial). Nesse
sentido faz breve análise do panorama atual da aplicação do princípio da igualdade,
o qual indubitavelmente está intimamente ligado a legislação em comento.
A seguir se verifica a importância da empresa no contexto do Estatuto,
posto que essa foi conclamada a participar de sua implantação no Brasil, uma
vez que inegavelmente é a força motriz da sociedade contemporânea.
Por fim, se coteja se há possibilidade, diante do texto promulgado, de
efetiva implementação da Lei no âmbito empresarial ou se essa não passará de
mera retórica vazia, como é o caso de diversas Leis editadas no país.
Palavras-chave: Empresa. Ações Afirmativas. Princípio da Igualdade
ABSTRACT
The article analyzes initially, the context of affirmative actions in Brazil and
the convention of the Law 12.288 of July 20th of 2010 (Racial Equality Statute).
In this sense a brief analysis of the actual situation of the application of the equality
principle, which is undoubtedly intimately connected to the legislation comment.
Following, it is verified the importance of the company in the context of
the Status, set as it was urged to participate on it’s implantation in Brazil, once
it is, undeniably the moving force of the contemporary society.
Finally, it its reflected if there is the possibility, facing the enacted text,
from effective implementing of the corporatist scope or if it won’t go beyond
mere empty rhetoric, just like the various edited Laws in the country.
Keywords: Company. Affirmative Actions. Equality Principle.
INTRODUÇÃO
O presente estudo se pautará pela análise dos impactos trazidos pelo
novel Estatuto da Igualdade Racial às empresas, visto que, conforme se verá
283
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
adiante, essas foram devidamente convocadas pelo Estado a participar desse
novo sistema de inclusão social criado no Brasil.
Diante desse panorama buscar-se-á verificar, por meio da metodologia
dedutiva, o histórico das ações afirmativas no Brasil (passando inicialmente
por uma breve reflexão sobre o princípio da igualdade e sua pertinência). Em
consequencia, se perquire o novo cenário da sociedade global, de verdadeira
ascendência das minorias em busca dos seus direitos, o qual levou no Brasil a
implantação do Estatuto da Igualdade Racial. Ainda, será realizado exame sobre
a importância da empresa privada nesse novo contexto de ações afirmativas,
sendo ao fim, verificado se, efetivamente a nova legislação alcançará seus
objetivos (tendo em vista alguns pontos de ressalva constatados na redação
legislativa) ou então, como em muitos casos brasileiros, a Lei não passará de
mero exercício de retórica (política) vazia.
A análise do tema proposto se mostra relevante não só pelo frescor
da legislação (datada do final de 2.010), mas em especial quando atrelada a
importância da inclusão da comunidade negra – uma das que pode ser considerada
socialmente vulnerável –, primordialmente no ambiente laboral, ação essa que
para ser alcançada certamente terá nas empresas um de seus atores principais.
1. PREFACIALMENTE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA
IGUALDADE
Inicialmente forçoso reconhecer ser pouco provável que se possa tratar
diretamente de ações afirmativas (que é o caso do Estatuto) sem que se faça uma
breve análise do tão aclamado princípio da igualdade.
Evidentemente que o tema não será esgotado, seja por sua complexidade
(tanto que os juristas ainda debatem sua aplicação e destinação) e ainda por não
ser esse o objetivo do presente ensaio.
Sem embargo, parece mais produtivo se fazer a análise do atual panorama
desse caro princípio constitucional.
Quanto a dito princípio, trata-se de norma prevista constitucionalmente,
e que acaba reflexamente por gerar incidência sobre todas as demais normas.
Ainda que não se vá colacionar diversos e repetidos conceitos sobre o
tema, importante salientar as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello que
assim se pronuncia.
O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas.
Sem embargo, o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e
precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, normas legais
nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas
284
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes
diferentes. Donde, a algumas são deferidos determinados direitos e
obrigações que não assistem a outras, por obrigadas em diversa categoria,
regulada por diferente plexo de obrigações e direitos. A lei não deve
ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da
vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este
é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia
e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo
assimilados pelos sistemas normativos vigentes.381
Assim, e como notório, fala-se da velha máxima de tratar os iguais com
igualdade e os desiguais de forma desigual.
Mas qual o caráter dessa expressão atualmente no Brasil?
Não parece difícil concluir que existem, e sempre existirão, grupos
diferenciados dentro de uma mesma sociedade. E não menos lógico, até mesmo
por determinação Constitucional, que o direito pode sem qualquer objeção
tratar esses indivíduos de maneira diferente visando justamente estabelecer a
igualdade (seja formal ou material).
Tal princípio se mostra absolutamente importante e por essa razão
garantido em nossa Carta Magna. Ainda assim é possível se observar que nem
sempre é invocado de maneira correta.
Aliás, essa tem se mostrado verdadeira tendência atualmente: para toda e
qualquer ocasião se emana algum princípio qualquer para tentar justificar situação
fática que sequer guarda qualquer relação com o preceito ventilado. O que se
observa, em última análise, é nada além de utilizações principiológicas equivocadas
e que acabam por enfraquecer o próprio sistema jurídico como um todo.
Também, em muitas ocasiões os debates acerca dos temas acabam se
dando de maneira partidária ou ainda imbuída de diversos (pré) conceitos
pessoais do interlocutor, fato que anuvia qualquer possibilidade de conclusão
coerente com aquilo que a própria Constituição efetivamente impõe.
E não é diferente com o caro princípio da igualdade. Em diversas situações
tal preceito é utilizado para criação de normas que visem dar tratamento
diferenciado à determinado grupo. Contudo, nem sempre tal grupo é devidamente
minoritário a ponto de efetivamente merecer qualquer guarida diferenciada.
Mero exercício mental parece suficiente para se demonstrar a questão:
uma Lei que eventualmente garanta benefícios aos idosos não parece passível
de qualquer oposição. Trata-se de grupo diferenciado que, por sua condição,
merece legitimamente guarida distinta dos demais.
MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São
Paulo: Malheiros. 2006. 3 ed. p. 10/13.
381
285
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
De outro lado, quando a discussão muda de patamar (com a questão de
instituição de cotas para determinado grupo, por exemplo) a questão tende a
gerar imensos debates, e, novamente, pelas razões já expostas, não há consenso
sequer sobre os efetivos destinatários do princípio da igualdade, e muito menos,
se, em determinada situação a discriminação positiva é legítima.
Certo da mesma maneira que, tanto aqueles que entendem desnecessárias
medidas protetivas quanto os que clamam por sua implementação, sempre terão
terreno fértil não só na Constituição, mas em julgados e até mesmo na doutrina
para embasar suas intenções.
Mero passar de olhos sobre o artigo 5º da própria Carta Magna revela
uma fonte razoavelmente grande de argumentos que podem, ao alvitre do
interlocutor, embasar posicionamento tanto favorável quanto contrário a
medidas diferenciadas a determinados grupos.
Evidente que nem todas as interpretações serão adequadas (até mesmo
constitucionalmente), razão pela qual a doutrina crítica e embasada será sempre
de suma importância justamente para depurar aquilo que se demonstra (ou não)
passível de proteção através do princípio da igualdade.
Diante desse panorama, e certamente arrimado no princípio em debate,
tem-se observado recentemente no Brasil algumas medidas que visam
justamente a proteção e promoção diferenciadas de determinados grupos.
De maneira frequente, e já tratando da questão racial, o legislador
de todos os âmbitos tem promulgando medidas que visam a inclusão dos
negros no Brasil. Assim se observou de forma recente a instituição de cotas
em universidades, culminando com a promulgação em 2010 do Estatuto da
Igualdade Racial.
Em que pese a discussão favorável e contrária a tais medidas, inclusive
já ventiladas de forma sumária acima, resta evidente que, convicções deixadas
de lado, Leis com tal caráter têm sido promulgadas, logo, cabe ao jurista
exatamente fazendo a análise mais apurada, verificar se as razões que embasam
a novel legislação são legítimas, e mais e principalmente, se seus comandos são
passíveis de efetivo cumprimento.
Feitas as considerações anteriores, restam claras duas conclusões: a
primeira de que não paira dúvida sobre a importância do princípio Constitucional
da Igualdade, em especial em países em que sequer os preceitos basilares são
integralmente observados (caso do Brasil). Do mesmo modo, e em mão inversa,
os princípios têm sido invocados de forma inadequada, ora para embasar
pretensões ora para garantir guarida a grupos que pouco possuem escorço fático
legítimo para tais situações específicas.
De qualquer maneira, e sem fazer qualquer julgamento sobre a adequação
e contexto da promulgação da Lei 12.288/2010, certo é que a mesma já se
286
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
encontra em vigor, e mais, vai impactar indubitavelmente o setor empresarial.
Nesse mesmo diapasão caberá cada vez mais ao verdadeiro e gabaritado
intérprete jurídico fazer a devida análise de questões como a que ora se ventila.
2. O CONTEXTO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL E O ADVENTO DO
ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL
Feitas as considerações anteriores, e diante da última afirmação de que
caberá cada vez mais ao intérprete papel de destaque na análise de questões
complexas, resta inegável que atualmente vasta gama de doutrinadores se
dedica ao estudo das dificuldades enfrentadas pela sociedade contemporânea, e
via de consequência, quais seriam são seus legítimos anseios.
Nessa árdua tarefa, e objetivando o momento histórico social, lançam
mão de diversas nomenclaturas para designá-lo como, como, por exemplo382,
pós-modernidade, hiper-modernidade, nova modernidade, pós-positivismo,
dentre tantas outras.
Ainda que a idéia de criar nomenclaturas seja sempre válida (e quiçá
necessária para conceituação científica do objeto de estudo), parece ainda mais
relevante efetivamente entender – independentemente do nome que se queira
dar ao fenômeno – o que realmente vem ocorrendo com a sociedade globalizada
de hoje. E ainda mais importante (especialmente para a ciência jurídica) é que
se entenda quais são os anseios de dita sociedade para que se possa tutelar de
forma adequada todos os grupos sociais, visando em última análise cumprir a
nobre missão do Direito de efetiva pacificação social.
Nessa seara, alguns grupos ditos minoritários vêm buscando o devido
reconhecimento e, mais, a efetiva proteção e promoção de seus interesses por
parte do Estado que em alguns casos repassa essa responsabilidade também a
iniciativa privada.
Os grupos que podem ser considerados minoritários (não necessariamente
numericamente, mas pelo tratamento que lhes é conferido) e que estão buscando
cada dia mais a garantia de seus direitos, são numerosos: indígenas, mulheres,
idosos, portadores de deficiência, homossexuais, negros, etc.
De toda sorte, ainda no âmbito legislativo, num momento prévio a efetiva
ação, resta a certeza de que a simples proclamação jurídica de garantias por si
só na basta para reverter quadros históricos de discriminação, sendo inconteste
que uma posição passiva do Estado em nada reverterá tal quadro.
O termo pós-modernidade é citado nas obras de Eros Grau e Ivo Dantas; Hipermodernidade
é termo empregado pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky para denominar fenômeno
de superação da pós-modernidade; já a nomenclatura nova-modernidade é utilizada
por doutrinadores como Luc Ferry; por derradeiro o termo pós-positivismo se encontra
devidamente cotejado por Lênio Streck.
382
287
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Nesse mesmo diapasão, e especialmente se falando da comunidade negra,
um dos mecanismos conhecidos e efetivos de inclusão e alteração do panorama
histórico de exclusão são as ações afirmativas.
Esse conceito é proveniente dos Estados Unidos, datado da década de
1960, através do qual, por meio de políticas estatais se buscava a discriminação
positiva da minoria negra.
Hoje é certo que ações dessa natureza já estão disseminadas por diversos
países383 (ocupando-se dos mais diversos grupos minoritários), ainda que seus
expoentes mais conhecidos no que tange a comunidade negra sejam justamente
os Estados Unidos e a África do Sul.
Visando conceituar ações afirmativas, colaciona-se a lição de Joaquim
Barbosa, para quem podem ser descritas como
conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório,
facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à
discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para
corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo
por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a
bens fundamentais como a educação e o emprego [...]
visam atingir uma série de objetivos que restariam normalmente
inacabados caso a estratégia de combate à discriminação se limitasse à
adoção de regras meramente proibitivas de discriminação384.
No mesmo sentido diz João Paulo de Farias Santos:
A ação afirmativa é um conceito que exprime uma espécie de tratamento
discriminatório de acordo com o ordenamento jurídico, fazendo que o
direito seja garantia de tratamento mais equânime no presente como
compensação à discriminação sofrida no passado.
Ação afirmativa é tratar de forma preferencial aqueles que historicamente
foram marginalizados, para que lhes sejam concedidas condições
equidistantes dos privilegiados da exclusão.
As ações afirmativas apresentam assim seu viés de constitucionalidade
garantida, na medida da promoção da igualdade e de uma justa contribuição
do direito para um mais correto reconhecimento da diversidade nacional, pois
tais ações não buscam um assistencialismo ou um paternalismo estatal, mas
KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Ações Afirmativas à Brasileira: necessidade ou
mito? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 23.
384
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade.
Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 40/44.
383
288
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
a abertura dos caminhos decisórios também para os negros, para que estes
construam, como vêm fazendo no movimento social, a igualdade racial.385
No Brasil, paradoxalmente ao panorama histórico, as ações afirmativas
passaram a ser aplicadas apenas recentemente, já sendo possível observar
alguns exemplos concretos.
Uma das dificuldades que se tem, conforme defende parte da doutrina seria
a de simplesmente se importar conceitos de outros países (como os EUA, por
exemplo) e tentar aplicá-los sobre a realidade brasileira de forma indiscriminada.
Nessa senda, Roberta Fragoso Kaufmann fala pontualmente:
O tema das ações afirmativas desperta muitos debates e é alvo de
discussões nem sempre pautadas pela racionalidade e pela cientificidade.
Difícil se torna então, falar sobre um tema quando este já vem impregnado
de diversas pré-compreensões, acompanhadas, no mais da vezes, por
uma postura passional e extremista.
No Brasil, dois fatos principais parecem conduzir à necessidade de uma
análise toda própria da questão: nunca houve um sistema de segregação
institucional entre as raças, seja por meio das leis, de decisões judiciais,
ou por atos do governo. Além disso, a forma como fomos colonizados
nos levou à formação de uma sociedade altamente miscigenada386.
De qualquer forma, e em que pese não se tratar de um tema fácil ou
ainda otimizado, certo é que se observam alguns exemplos positivos de sua
aplicação no Brasil, e que, apesar de eventuais debates ou discordâncias, já vêm
demonstrando potencial para gerar avanços sociais.
Um dos primeiros exemplos de discriminação positiva trazido a realidade
brasileira foi o sistema de cotas instituído através da Lei 3.708/01 de 2001 no Rio de
Janeiro, o qual previa que 40% das vagas da UERJ e da UENF, a partir do vestibular
de 2.002, fossem destinadas a alunos que se autodenominassem “negros ou pardos”.
Seguindo o modelo carioca, inúmeros estados brasileiros inseriram cotas
em suas universidades.
Evidentemente que nem todos os segmentos da sociedade se sentiram
confortáveis com tais ações afirmativas, e por diversas razões, buscaram guarida
judicial para que não prosperasse tal sistema.
SANTOS, João Paulo de Faria. Ações afirmativas e igualdade racial. A contribuição do
direito na construção de um Brasil diverso. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 45/46/86/87.
386
KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Op. cit. p. 21/211.
385
289
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A questão também foi tema da ADPF 186-2 em trâmite perante o STF,
através da qual um partido político (DEM) buscou barrar o sistema de cotas,
sendo que, contudo, não obteve a liminar pleiteada.
O Ministro Relator Gilmar Mendes, entendeu que muito embora seja
pertinente a discussão, não é prudente na atual quadra histórica (e em sede
liminar) alterar o sistema que vem funcionando na UnB desde o ano de 2004.
Ainda, nessa mesma seara tem-se já em vigor (porém pouco observada)
a Lei 11.645 de março de 2008, segundo a qual nos estabelecimentos de ensino
médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena.
Ainda assim, o Brasil foi além.
Através da Lei 12.288 de 20 de julho de 2.010 foi instituído o já
mencionado Estatuto da Igualdade Racial, o qual pode ser encarado como
verdadeira ação afirmativa, talvez, a mais importante já efetivada no país em
busca dos direitos da população negra.
Tanto a matéria tratada é polêmica que foi debatida no Congresso por
aproximadamente dez anos, para então ter sua versão final enfim aprovada.
Já em seu artigo 1º fica demonstrado de forma inequívoca qual é a intenção
de referido Estatuto: “garantir a população negra a efetivação da igualdade de
oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o
combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”.
Nota-se de plano que a missão do Estatuto é bastante espinhosa. Questões
pouco (ou nada) cuidadas ao longo de diversas décadas serão agora atacadas pela
presente medida, o que evidentemente, não será tarefa fácil, ao exemplo do que
já vem ocorrendo com simples sistema de instituição de cotas em universidades.
Feita essa breve análise do conceito de ações afirmativas e seu panorama atual
no Brasil, cumpre analisar em que medida o novel Estatuto da Igualdade Racial se
relaciona com a iniciativa privada, e mais, sua correlação com a atuação da empresa.
3. A IMPORTÂNCIA DA EMPRESA E O ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL
Como é notório, o Estado contemporâneo não mais centraliza todas as
suas atividades. Pelo contrário, ele busca repassar à iniciativa privada muitas de
suas atribuições através das mais variadas formas, as quais não serão analisadas
no presente estudo por não ser esse seu foco central.
Afirma Geraldo Araújo que “o Estado ainda não conseguiu fazer surtir
o resultado esperado. Aqui está o engodo, pois o seu passado e a história nos
forçam a acreditar que ele não é capaz de exercer por si só, com razoabilidade,
a responsabilidade social que lhe foi confiada”.387
ARAÚJO, Geraldo Bonnevialle Braga. A responsabilidade social da empresa e as fundações
privadas. In: Oliveira, Gustavo Henrique Justino (Coord.). Direito do Terceiro Setor: Atualidades
387
290
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
De toda sorte o que não mais se nega é que o próprio Estado ao verificar
que sozinho não poderá arcar com todas as responsabilidades que lhe são
inerentes claramente apóia-se nos particulares para alcançar tal nobre missão.
A realidade tem mostrado que no hodierno panorama econômico a empresa
é a verdadeira força motriz da sociedade contemporânea, especialmente diante
do cenário de globalização e avanço das tecnologias, sendo que em contrapartida,
essa mesma sociedade cobra do empresário respeito aos princípios basilares da
nação, não sendo autorizado o lucro a qualquer preço.
Diante disso, o atual momento traz o conceito de empresa imbuído das
responsabilidades já mencionadas, sendo certo que o empresário é cada vez
mais convocado a participar ativamente na resolução dos problemas sociais,
nascendo uma verdadeira re-fundação da idéia de “responsabilidade social”.
Nesse sentido, e em complemento ao que foi dito no primeiro tópico
do estudo, imperiosa desde logo a indagação sobre a efetividade dos preceitos
constitucionais em nossa sociedade atual.
Como bem observa Lenio Streck388, evidentemente que em países
de evolução tardia, como é o caso do Brasil “parte considerável dos direitos
fundamentais-sociais continua imcumprida, passados dezoito anos da
promulgação da Constituição”.
Ou seja, é possível se afirmar que, em alguns casos, o próprio Estado
não cumpre aquilo que vem expresso em sua Constituição, deixando de prover
assim o cidadão, alvo direto de tais preceitos.
De tal modo seria justo se pensar – tratando aqui o termo justiça como aquilo
que constitucionalmente adequado – que então as empresas, devem diante da omissão
do Estado auxiliar no provento das garantias pensadas pela própria Constituição.
Até porque é inegável que “quando o constituinte estabeleceu que a
ordem econômica deve atentar para o princípio da função social da propriedade,
atingiu inegavelmente, a empresa que é uma das unidades econômicas mais
importantes do hodierno sistema capitalista”389.
E porque tal ônus recairia sobre as empresas? Se não bastasse a
própria Constituição assim determinar, ainda é de se verificar que, uma vez
inseridas no sistema capitalista, as empresas - como vem sendo defendido tomam caráter importantíssimo na sociedade.
Isso porque “é nas empresas que a maior parte dos trabalhadores
assalariados do país está empregada; é delas que o Estado recebe a maior
e Perspectivas. Curitiba: OAB/PR, 2006, p. 84.
388
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 26.
389
DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Notas sobre a subordinação jurídica e a função social da
empresa à luz do solidarismo constitucional. In: Gevaerd, Jair. Tonin, Marta Marília. (Coords.).
Direito Empresarial e Cidadania – Questões Contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2006, p. 208.
291
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
parte das receitas fiscais; é delas que a maioria dos consumidores adquire
bens e serviços”390.
Portanto, resta verificada a premissa constitucional de que as empresas são
também responsáveis pelo desenvolvimento da nação quanto aos seus aspectos
mais relevantes havendo “a necessidade de adotar ou adaptar novas estruturas,
políticas e rotinas que dêem suporte aos novos ou mais apurados padrões éticos”391.
Fato é que hoje “a sociedade, [...], exige das empresas uma
readequação ao novo cenário mercadológico, uma reestruturação de sua
filosofia e uma adaptação fiel ao modelo socialmente responsável”392.
Em suma, a empresa que de tal forma age, além de efetivamente
atender aos preceitos constitucionais, estará a surpreender positivamente
seus parceiros e consumidores, ou seja, além de agir de maneira
constitucionalmente correta - mesmo que tal agir esteja imbuído de custos
“utilizando seus próprios recursos e estrutura393” - estará fazendo um
investimento em si própria, o qual pode inclusive ser motivo de propaganda
e apelo ao seu consumidor final e/ou clientes.
Pois bem, vista a importância das empresas no atual cenário mundial e
as razões pelas quais sua atuação torna-se dia a dia mais importante, resta a
indagação sobre a observância de ações afirmativas no âmbito empresarial.
Como se observa no já mencionado Estatuto da Igualdade Racial, seu
capítulo V dispõe sobre o acesso da população negra ao trabalho (ou seja,
tema que de plano impacta as empresas).
Inicialmente o próprio Estatuto fala que tal medida será de
“responsabilidade do poder público”, nada obstante, a seguir e ao longo de
todo o mencionado capítulo V se fale em “incentivo a adoção de medidas
similares nas empresas e organizações privadas”.
Portanto, é inegável que a empresa e organizações de cunho privado,
mediante incentivos (os quais ainda não foram especificados pela própria Lei)
terão de participar ativamente do processo de implementação de ações de
promoção ao trabalho da comunidade negra.
Devido a novidade do tema não é possível ainda se teorizar muito sobre
como se darão os ditos “incentivos” previstos na Lei, sendo certo que haverá
necessidade de algumas regulamentações posteriores para que o Estatuto seja
inteiramente cumprido.
ARAÚJO, Geraldo Bonnevialle Braga. Op. cit., p. 87.
AGUILAR. Francis J. A ética nas empresas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 136.
392
CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de. Terceiro Setor e responsabilidade social. In: Oliveira,
Gustavo Henrique Justino (Coord.). Direito do Terceiro Setor: Atualidades e Perspectivas.
Curitiba: OAB/PR, 2006, p. 148.
393
MELO NETO, Francisco Paulo; FROES, César. Responsabilidade Social e Cidadania
Empresarial: a administração do terceiro setor. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2000, p. 77.
390
391
292
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
De toda sorte a intenção do presente estudo é a de verificar a importância
do que dispõe o Estatuto e mais, o porquê a empresa foi efetivamente instada a
participar de sua implantação.
Como já se expôs previamente, a comunidade negra por razões históricas
e culturais é inegavelmente submetida a diferenciação no acesso a renda,
educação, cultura, etc. o que acaba culminando com adultos pouco preparados
para o mercado de trabalho atual.
Assim não se pode negar a importância da empresa já nesse tocante
pois “o cuidado com o interesse dos trabalhadores está na preservação da
dignidade do trabalho produtivo e no acesso a renda. A empresa deve estar
comprometida com a idéia de que o trabalho é a atividade indispensável para
o exercício pleno da cidadania”394.
Ou seja, se verifica claramente o inconteste enlace entre o acesso de
determinada comunidade a um emprego digno (que gere renda para uma vida
adequada) e a própria questão de cidadania.
Assim quando se fala no Estatuto que a empresa deverá buscar a inclusão
da comunidade negra em seus quadros, o que se está buscando é justamente a
promoção social desse grupo discriminado, o que por consequência, vai gerar
uma vida mais digna e cidadã aos impactados pela medida.
Evidente que não se fala aqui de uma inclusão a qualquer custo.
Certamente que desvios históricos (como a baixa qualidade, ou pior, ausência
de estudo de determinada população) não será de plano corrigido pela empresa.
Mas parece ser necessário enxergar a Lei como um marco inicial para essa nova
política de inclusão.
A idéia principal parece ser a de que, incluindo-se a comunidade negra
hoje (através de ações afirmativas com ao presente) suas gerações futuras
terão acesso a melhor qualidade de vida, o que por sua vez irá culminar em
adultos mais bem preparados que, talvez, sequer necessitem de ações da
mesma natureza.
Em suma, não se pode mais negar que a complexidade social de hoje
Gerou um novo tipo de produção de norma jurídica, feita por, e para,
grupos sociais de interesses, ou com uma identidade comum, específicos.
Esses grupos são diferenciados, por consistirem em indivíduos vistos
de maneira unida. [...] de maneira a enfeixarem e projetarem certos
interesses sociais comuns.
Deve-se observar, pois, que essa nova produção jurídica vem não só para
OLIVEIRA, Francisco Cardozo de. Uma nova racionalidade administrativa empresarial.
In: Gevaerd, Jair. Tonin, Marta Marília. (Coords.). Direito Empresarial e Cidadania – Questões
Contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2006, p. 124.
394
293
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
atender os interesses grupais, mas também em face de diferentes papéis
sociais vividos pelas pessoas ou grupos de pessoas. [...]
Na Idade Média o Direito aplicável poderia variar conforme o status
social do indivíduo, na pós-modernidade essa variedade poderá advir dos
vários papéis sociais atribuíveis a um mesmo cidadão395.
Pois bem, sedimentada essa idéia, como fica especificamente a atividade
empresária sob o viés dessa nova realidade?
As empresas, nos moldes do já exposto, têm de se adaptar a nova
realidade, sem, contudo, que tal adequação lhe seja prejudicial ou até mesmo
contraproducente.
É indubitável que “se os clientes demandarem haverá um estimulo para
que o mercado desenvolva e ofereça bens e serviços que incorporem mecanismos
que ajudem a dar conta da exclusão social, da preservação do meio ambiente ou
quaisquer que sejam as demandas”396.
Exatamente nessa seara deve ser encarado o Estatuto da Igualdade Racial,
pois além de ser verdadeira estrutura que visa auxiliar na resolução de um grave
e histórico problema de exclusão social, ainda, pode se reverter (em muitos
casos) em verdadeiras vantagens para a própria empresa.
E tal afirmação decorre da verificação de que em primeiro plano – e
como já foi objeto de análise – a atividade empresarial estará efetivamente
comprometida com o desenvolvimento da própria nação. Ou seja, os ideais
constitucionais e basilares da nação estarão sendo alcançados também por essa
que é hoje um dos mais importantes atores sociais do mundo globalizado.
Ainda, um segundo aspecto que não pode ser desprezado é o inegável
impacto positivo que a observância de ações como a presente tem diretamente
no consumidor final de produtos e serviços.
Nesse sentido destaca o doutrinador francês Gilles Lipovetsky que
Pesquisas recentes revelaram que 70% dos investidores dispondo-se a
vender suas ações se a empresa na qual investiram provoca algo grave,
julgado socialmente não responsável. Quanto mais são exigidos níveis
de rentabilidade elevados dos capitais investidos, mais a gestão ética
ascende. Quanto mais as empresas nadam nas águas geladas do liberalismo
econômico, mais se mostram em busca de alma; maior é a fúria da guerra
MACHIONI, Jarbas Andrade. Novos fundamentos do direito comercial sob o Código
Civil de 2002. In: Simão Filho, Adalberto. LUCCA, Newton de (Coords.). Direito Empresarial
Contemporâneo. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 313/314.
396
BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto. Responsabilidade Social das Empresas. Práticas sociais
e regulação jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 145.
395
294
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
econômica, maior a exigência de uma moralização dos negócios.397
É evidente que uma empresa que atua de forma socialmente responsável,
imbuída de valores e conceitos que tenham cunho verdadeiramente social,
podem e devem utilizar-se de tal como medida para alavancar sua marca, e via
de consequencia, o próprio incremento de sua lucratividade.
Não se trata a publicidade nesse sentido de mero meio para obtenção de
lucros. Trata-se sim de verdadeiro atestado de que determinada companhia age
de forma a fomentar ações positivas para toda a nação.
É claro também que não se pode olvidar que em alguns casos, as empresas
podem utilizar-se dessa publicidade sem efetivamente fazer muito pelo social,
sendo que para evitar esse tipo de abuso existem inúmeros institutos e órgãos
(governamentais ou não) capazes de atestar com seriedade e correição a efetiva
atuação consciente da empresa.
A grande questão parece ser então que para a empresa
o ir alem da imagem e da ostentação de selinhos beneficentes pressupõe
uma visão estratégica institucional a organização/empresa como agente
de desenvolvimento econômico e social e incluída na dinâmica social.
A diferença que isso representa para a empresa é a mesma que existe entre
sobrevivência a curto prazo e perenidade. É a mesma diferença que existe
entre a dimensão puramente negocial e a dimensão institucional; entre o
instrumento e a finalidade, enfim, entre o instrumental e o substantivo398.
Conclui-se assim que diante da promulgação do Estatuto da Igualdade
Racial dúvidas não mais restam sobre a verdadeira missão que foi instituída a
iniciativa privada. O capítulo V de referida Lei é expresso: a empresa diante da
inegável importância que tem atualmente no cenário econômico mundial foi
chamada a, juntamente ao Estado, levar adiante essa importante ação afirmativa
adotada agora em âmbito nacional.
Como em toda quebra ou nascimento de novo paradigma, pode haver
alguma resistência, ou até mesmo dúvidas quanto a operacionalidade e
efetividade da Lei. Todavia, esse parece ser um novo horizonte que não pode
ser simplesmente negado ou ignorado.
De toda sorte, após a vigência do Estatuto resta a indagação: será possível
cumpri-lo e alcançar efetivamente aquilo que foi planejado, ou, ao contrário,
LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da cultura liberal. Porto Alegre: Sulina, 2004, p. 42.
SANTOS, Elisabete Adami Pereira dos. A empresa cidadã: filantropia estratégica, imagem
ou responsabilidade social?. In: Cavalcanti, Marli. (Coord.). Gestão social, estratégias e
parcerias. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 63.
397
398
295
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
a Lei, diante de suas eventuais imperfeições (como em incontáveis casos no
Brasil), não alcançará os objetivos pretendidos?
4. A IMPLEMENTAÇÃO DO ESTATUTO NO ÂMBITO EMPRESARIAL:
POSSILIBILIDADE OU MERA RETÓRICA?
Como visto, através da Lei o Poder Legislativo deixou patente um
verdadeiro chamado para que a iniciativa privada colabore e participe da
implementação de ações que viabilizem a inclusão da comunidade negra em
seus quadros.
Ainda assim, restam algumas dúvidas sobre como efetivamente se dará
essa participação.
A seguir se fará a análise de alguns pontos que eventualmente podem afetar
a prática da Lei e, em última análise, sua efetividade no âmbito da empresa.
4.1 A FALTA DE CLAREZA DA LEI EM ALGUNS ASPECTOS
O Estatuto, numa primeira análise, parece padecer do mesmo mal crônico
que não raramente se observa na legislação brasileira: apesar de boas intenções,
a lei acaba formulada de maneira imprecisa em alguns aspectos, o que acarreta
em comandos pouco claros ou ainda carecedores de nova regulamentação futura.
Nesse sentido, sempre oportuna a lição de Paolo Grossi ao dizer que
Excesso de atividade legislativa, uma quantidade tal a ponto de provocar
como consequência letal a impossibilidade de seu conhecimento:
leis que muito frequentemente abdicam da velha louvável virtude
da generalidade, pois tem origem em demandas partidárias e são
destinadas a tutelar interesses particulares; leis tecnicamente malfeitas,
improvisadas, linguisticamente obscuras, às vezes até mesmo incoerentes
em seu próprio tecido; um Parlamento surdo, resistente a dar-se conta das
necessidades emergentes, ou então é lento, incrivelmente lento; muitas
vezes um Parlamento impotente na sua divisão – e perene contraposição
– partidária, e portanto incapaz também de corresponder a solicitações
também urgentes da coletividade399.
Assim, certo que a implementação imediata da Lei acaba prejudicada,
pois algumas expressões da própria, como “por meio de incentivos” (ao setor
privado), ou ainda, “promoção de empresários negros”, não são exatamente
claras quanto a sua operacionalização.
GROSSI, Paolo. Primeira Lição sobre Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 86.
399
296
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Necessário destacar ainda que devido ao pouquíssimo tempo de
promulgação e vigor do Estatuto, torna-se complexa a tarefa de precisar
exatamente quais serão (se é que existirão) os incentivos concedidos a iniciativa
privada e a promoção do empresário negro.
Cabe enfatizar desde logo nesse sentido que foi retirada do projeto de Lei
inicial a possibilidade do poder público conceder incentivos fiscais às empresas
que contassem com uma cota mínima de 20% de trabalhadores negros. O então
relator do projeto entendeu que tal medida poderia gerar a demissão de diversos
trabalhadores brancos, que também se encontram em situação de baixa renda.
Ou seja, resolve-se um problema (inclui-se o trabalhador negro no mercado)
gerando outro (demissão de demais trabalhadores para abertura de tais vagas).
Por derradeiro quanto a esse tópico, imperioso destacar que em diversos
casos, no Brasil, a lei não é cumprida justamente porque em sua gênese já traz
a necessidade de alguma nova regulamentação futura para que se torne efetiva.
E esse talvez seja o caso do Estatuto.
Ao se cotejar o Regulamento de discriminação positiva fica evidente em
alguns de seus tópicos (como inclusive no tocante ao trabalho, título V) que diversas
questões cruciais para a sua efetiva prática ficaram relegadas ao futuro, e talvez
submetidas a boa vontade governamental de complementar as regras já instituídas.
Pois bem, como é notório essa nem sempre é uma questão fácil. Mera
troca de governo transforma questões antes tratadas como de suma importância
em efêmeras, ou seja, o Estatuto por ter deixado diversos pontos carecendo de
regulação posterior possa correr o risco de também – como diversas Leis –ser
esquecido ao longo dos anos e não alcançar a nobre missão objetivada.
Todavia, nesse caso específico e ante a nobreza de argumentos que revestem
a Lei, esse não parece ser o panorama que se observará, posto que a questão racial
há de ser encarada de forma responsável, sendo essa agenda obrigatória de agora
em diante independentemente de qualquer falha legislativa na criação do Estatuto.
4.2 A CONCESSÃO DE “INCENTIVOS” COMO ESTÍMULOS AO SETOR PRIVADO
PARA ADOÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS
O artigo 39 da Lei fala sobre a promoção de “ações que assegurem a
igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra”,
complementando no § 3º que “o Poder Público estimulará, por meio de
incentivos, a adoção de iguais medidas pelo setor privado”.
Diante disso, discussão que pode vir a permear a questão é se, no caso de
concessão de incentivos por parte do governo à iniciativa privada, a tomada de
medidas no sentido de inclusão da comunidade negra é efetivamente observância da
responsabilidade social da empresa ou, apenas e somente, maneira de se alcançar um
297
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
benefício econômico sem de fato se estar preocupado com a realização de ditas ações.
Em outras palavras, se o empresário para a realização de uma ação
afirmativa no âmbito empresarial recebe um benefício (seja ele de qualquer
natureza), está realmente visionando a dita responsabilidade social da empresa?
E mais, se o fizer realmente mirando o benefício concedido, ainda assim não
estará levando a cabo uma ação afirmativa, o que em última análise e deixada
de lado a valoração da conduta do empresário, é o objetivo da Lei?
É certo que “em qualquer das esferas – jurídica, econômica ou social –,
do discurso à ação há uma grande distância. A responsabilidade social pode
virar uma commodity, ou uma estratégia gerencial”400.
Assim, ao menos inicialmente, e enquanto não se tem uma regulamentação
mais efetiva sobre como se dará o dito “incentivo” trazido na Lei, difícil
mensurar como pode agir o empresário.
De qualquer maneira desde logo nasce a obrigatoriedade do Estado
em levar adiante referidos incentivos, pois uma vez que a Lei já se encontra
em vigor, o próprio empresário pode exigir uma contraprestação ao adotar o
Estatuto dentro de sua empresa, conforme inclusive leciona Célia Cunha Mello:
No que se refere as promessas governamentais, cumpre ressaltar
que essa via de emanação de planos é usualmente utilizada pelos
governantes para induzir os agentes econômicos a procederem desta ou
daquela maneira, sem que haja qualquer emanação normativa, ou seja,
o agente econômico altera o seu comportamento normal, por acreditar
na promessa levada a efeito por pessoas que, investidas em funções
públicas, falam em nome do Estado.401
Ou seja, o Estado ao editar a Lei fez uma opção pela convocação
da empresa a participar da promoção das ações afirmativas no âmbito do
emprego, mas, em contrapartida deixou patente que haverá adoção de
“estímulos” para tanto.
Logo, “haverá violação ao princípio da boa-fé se não forem implementadas
as promessas governamentais ou se o forem de forma diversa daquela apregoada”402.
O Estado assim poderia não ter incluído na Lei a palavra “incentivo” ao
tratar do setor privado. De toda sorte como o fez, tem – se não juridicamente,
ao menos principiologicamente – o dever de boa-fé, a partir de então, em
efetivamente apresentar alguma contrapartida ao empresário que se dispuser a
cumprir a legislação tal qual promulgada.
BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto, p. 147.
MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública. Belo Horizonte : Del Rey,
2003, p. 164.
402
Idem, p. 165/166.
400
401
298
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
4.3 O PODER PÚBLICO PODE EXIMIR-SE DE ALGUMA DE SUAS
RESPONSABILIDADES E REPASSÁ-LAS PARA O SETOR EMPRESARIAL?
Conforme já foi exposto anteriormente, em diversas oportunidades
o Estado demonstra não ter condições plenas de arcar com todas as
responsabilidades que lhe são conferidas.
Nesse viés, o próprio tem se mostrado afeito a idéia de repassar ao setor
privado ditas responsabilidades, sendo exigido seu fiel cumprimento.
Pois bem, o Estatuto em comento – frise-se imbuído certamente de
inegável boa vontade e mecanismo necessário ao Brasil – pode relativamente a
questão de geração de empregos justamente incorrer na mencionada situação.
Isso porque como já foi exposto no tópico supra, a Lei é bastante clara
sobre quem é o responsável principal pela adoção das medidas: o Estado.
De toda sorte e como seria muito natural na quadra histórica atual, devido
a sua inegável importância, a empresa privada foi incluída nesse chamamento
para levar adiante essa novel política governamental.
E como já exposto em diversas ocasiões o Estado brasileiro institui certas
normas, mas posteriormente, ao não dar conta de levar a cabo suas pretensões,
exige do particular que o faça em seu lugar.
Não cabe aqui adentrar em discussões meritórias sobre os princípios
da boa-fé ou da confiança que regem a Administração Pública, por não ser
exatamente esse o foco do presente estudo.
De qualquer maneira, imperioso que se observe que o próprio Estatuto
deixa patente ao longo de todo o seu texto que o Estado é o principal
responsável pela implementação da Lei, relegando sempre ao segundo plano
a iniciativa privada.
Assim o que se quer demonstrar é que a empresa ainda que instada
a participar dessa nova era de ações afirmativas no Brasil, não pode
jamais ser considerada como única responsável pela inclusão do negro no
mercado de trabalho.
Aliás, em observância inclusive ao princípio da confiança – e decorrente
desse o da boa-fé – a Administração tem a obrigação de levar adiante o que
foi prometido no Estatuto (seja quanto ao seu cumprimento, seja quanto aos
incentivos, etc.), pois como autora da Lei se obriga a tal pela auto-vinculação.
Em outras palavras, o particular pode e deve participar de maneira firme
e séria da inclusão da comunidade negra nos quadros de funcionários das
empresas, todavia, o “exemplo” tem de vir do próprio Estado, pois em última
análise é ele (até mesmo por disposições legais) o principal responsável por tal
mister, não se podendo jamais perder tal idéia de foco.
299
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
4.4 A EMPRESA NÃO PODE SER A ÚNICA RESPONSÁVEL PELA QUEBRA DE
PARADIGMAS
Essa constatação se faz no sentido de que, ainda que haja incentivos
para a empresa implementar em seus quadros funcionários negros, certo é que
nenhum empresário irá contratar pessoa menos gabaritada apenas e tão somente
pelo critério “cor da pele”.
Ou seja, ainda que haja alguma espécie de fomento estatal (como já mencionado
anteriormente), parece pouco crível que efetivamente se mude o panorama atual de
exclusão mediante tão somente políticas junto ao setor empresarial.
É certo na mesma medida que o próprio Estatuto prevê medidas similares
em diversos âmbitos (como na educação, saúde, etc.), mas de toda forma, é fato
facilmente verificável através de estatísticas oficiais403, que o negro encontra-se
hoje a margem do mercado de trabalho não pela cor de sua pele, mas sim em
virtude de sua histórica má-formação educacional, social e cultural.
Tanto é assim que a Lei diz no próprio Capítulo V (que trata do trabalho) em
seu art. 38, § 7º que “o Poder Público promoverá ações com o objetivo de elevar
a escolaridade e a qualificação profissional nos setores da economia que contem
com alto índice de ocupação por trabalhadores negros de baixa escolarização”.
Logo, há o reconhecimento implícito (ou explícito?) de que a questão de
inclusão no mercado de trabalho passa não pela mera abrangência “a qualquer
custo” da comunidade negra.
Pelo contrário, há latente necessidade de que sejam fornecidas melhores
escolas, cursos técnicos e profissionalizantes, universidades públicas, etc. a
toda a comunidade brasileira, ação que certamente formará adultos mais bem
preparados para o mercado de trabalho como um todo.
Assim, novamente cautela é necessária pois não se pode esperar do
empresário brasileiro que de imediato passe a contratar inúmeros funcionários
negros tão somente em virtude do critério racial. Há necessidade de que o
Governo juntamente com a sociedade implemente todas as diretrizes da novel
Lei para que então, ao longo dos próximos anos (quiçá décadas), a inclusão
no mercado de trabalho de dita minoria se dê de forma gradativa através de
profissionais efetivamente gabaritados para tanto.
Segundo dados do IBGE a população estimada do Brasil em 2009 era composta por 48,2%
de brancos, ao passo que negros/pardos compunham 51,1 da sociedade.Entretanto, ao se
analisar os indicadores relativos a média de anos de estudo os declarados brancos têm 9,2
contra 7,4 dos negros, o que reflete invariavelmente no rendimento médio mensal dessas
pessoas: enquanto os brancos recebem em média 3,2 salários mínimos nacionais como
remuneração, os negros recebem 1,8.
403
300
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
4.5 OS CRITÉRIOS QUE DEVEM SER UTILIZADOS PARA AÇÕES AFIRMATIVAS NO
BRASIL
Por derradeiro, há necessidade de uma consideração extremamente
relevante sobre as ações afirmativas, e que, por consequência atinge a legislação
em comento.
Como já tratado em sumárias linhas, a questão das ações afirmativas no
Brasil é, além de nova, bastante peculiar.
Isso porque como regra (e como parece ser costume brasileiro), têm-se
simplesmente transportado do cotidiano estadunidense ações lá praticadas com
sucesso, sem o devido cotejo e adequação para que entrem em vigor no Brasil.
Não é necessário maior esforço para se concluir que existem diferenças
latentes entre os dois países no tocante a estigmatização da comunidade
negra. As notórias diferenças vão desde a colonização até recentes políticas
governamentais de segregação de raças.
No Brasil, a discriminação se revela de maneira bem diferente: não existe
política pública de segregação, e a própria população costuma bradar que no
país não há qualquer espécie de preconceito, sendo esse um belo exemplo de
país miscigenado.
De outro lado, pela análise histórica e cultural do país, resta bastante claro
que os negros são, a evidência, em inúmeras situações deixados a margem da
sociedade, logo merecedores de alguma espécie de guarida estatal para incluí-los.
Contudo, eles não são os únicos.
Os menos favorecidos brasileiros não são exclusivamente negros. São
também brancos, deficientes, indígenas, enfim, todos aqueles que são expostos
a um sistema de educação frágil que não forma cidadãos capazes de prover sua
própria existência com dignidade.
Logo, o que se propõe e parece mais adequado para a nação brasileira,
é que se adote a discriminação positiva mediante critérios compostos, e não
somente pelo critério racial.
Assim, seria possível se incluir, mais especificamente no mercado de
trabalho (e de maneira geral a todos os demais serviços de que dispõe o Estatuto)
todos aqueles que são efetivamente hipossuficientes.
Em outras palavras, o critério poderia ser o de pobreza combinado com
a cor de pele, por exemplo, o que daria caráter mais isonômico em ações da
natureza da Lei 12.288/2010.
Nesse diapasão discorre Roberta Kaufmann
Seria mais condizente com os ideais de justiça e de igualdade no Brasil a
realização de uma política afirmativa em que a cor e a classe social fossem
301
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
consideradas como conjunto. Mesmo porque, fortes indícios, colhidos na
própria história, demonstram que o preconceito e a discriminação não
atuaram, aqui, como barreira intransponível para os negros, tal como
aconteceu na sociedade norte-americana404.
Outra idéia não menos importante é que se observem ações afirmativas
(principalmente quando se pretender falar em cotas) conforme a distribuição
geográfica de negros em cada região do Brasil, por ser esse um país de
verdadeiras dimensões continentais. Assim, o que se propõe é que em estados
como a Bahia, por exemplo, em que a população negra/parda é muito maior
que a de estados como da região sul, o critério obedeça as estáticas oficiais para
implementação de ações afirmativas.
Portanto, exemplificativamente, em um estado que a população negra
chegue aproximadamente a 50% da população talvez seja adequado falar em
reserva de vagas ou ações visando a inclusão desse percentual de pessoas,
ao passo que em um estado federativo com menor população negra, se fale
também em cotas e/ou ações de forma reduzida. O que não se pode almejar é
tratar o Brasil com unicidade quanto a esse tema, sob pena de se incorrer em
grande equívoco.
Resta claro, portanto, que a discussão sobre como se implementar políticas
de discrimen positivo no país ainda carece de certa análise, pois, os critérios a
serem aqui utilizados talvez tenham de ser compostos, não sendo possível um
isolamento específico de tão somente um deles, sob pena de se gerar de outro
lado, a exclusão de outros grupos também minoritários do mercado de trabalho.
Ainda assim e como no Brasil essa experiência é bastante recente, é
crível que se possam alterar tais critérios para que o incremento das medidas
possa ser mais efetivo.
5. CONCLUSÕES
Diante de todo o exposto no presente estudo a lição remanescente é
a de que a empresa efetivamente tomou caráter de inegável importância no
atual momento histórico, e certamente cada vez mais será convocada pelo
Estado para realização de políticas sociais, como é o caso do Estatuto da
Igualdade Racial.
É de se ressaltar inclusive que essa conduta do Estado não só se alinha
ao momento histórico vivido (em que esse busca desinchar seu aparato sem
perder de vistas os interesses sociais), como acima de tudo é o reconhecimento
(talvez tardio) de que “o governo brasileiro hoje precisa e – porque não dizer? –
KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Op. cit. p. 295/296.
404
302
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
depende da empresa para alcanças suas metas e fazer o que deve”405.
Diante desse novo desafio de verdadeira responsabilidade social na inclusão
dos negros no mercado de trabalho, alguns cuidados têm que ser tomados pois “as
ações afirmativas não podem se transformar em promessas vazias, que não consigam
superar o mito da democracia racial brasileira, retomando falsas e ideológicas idéias
de passividade e cordialidade já tão inseridas em nossa sociedade”406.
Ou seja, a atuação terá de ser ativa não só no âmbito empresarial, mas
também de toda a sociedade e principalmente do Estado para que essa tão
importante ação afirmativa que ora nasce no Brasil seja efetivamente levada
a cabo, visando precipuamente a satisfação dos interesses dos negros (e não
interesses políticos ou estranhos ao interesse inicial da legislação).
Ainda que caibam discussões sobre o Estatuto (o que certamente irá
acontecer de forma bastante acalorada) e mais, que o próprio ainda dependa de
uma série de regulamentações pelo próprio Governo para que se torne efetivo,
fato é que a simples promulgação da Lei em comento pode vir a ser um avanço
para a sociedade brasileira.
Evidente da mesma forma que a Lei padece de diversas questões que
precisam ser amplamente discutidas e aprimoradas, para que possa, a curto ou
médio prazo, alcançar os nobres objetivos que ensejaram sua promulgação.
Não pensar dessa maneira pode significar ao Estatuto seu sepultamento,
como, aliás, é corriqueiro no Brasil: as Leis são diariamente editadas, mas em
diversos casos são simplesmente relegadas ao esquecimento e não atingem
qualquer efetividade para a sociedade.
De toda sorte, e observadas as premissas antes mencionadas, cabe
a implementação firme e responsável do Estatuto por todos os setores da
sociedade – e não somente pela empresa, que é mais um, mas não o único ator
social relevante na atualidade – tratando o tema com a seriedade devida tendo
em vista ser o assunto de importância ímpar em um país como o Brasil.
Para as empresas não será diferente pois a inclusão dos grupos minoritários
em seus quadros é não só uma questão de responsabilidade social, contribuição
com a cidadania e o desenvolvimento adequado da nação, etc. Essa é agora uma
meta a ser atingida, seja por vontade própria do empresário, seja porque como
se viu, já existe legislação em vigor dizendo dessa forma.
A questão racial enfim foi colocada em discussão no Brasil: Governo,
sociedade, e mais especificamente, as empresas, já foram convocados para o
debate e para dar efetividade ao Estatuto, oportunidade essa que, a nosso ver,
não pode ser desperdiçada nessa quadra histórica.
Apresentação à obra Ética e responsabilidade social nos negócios. In: Ashley, Patrícia
Almeida (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2 ed., 2010, p. XVI.
406
SANTOS, João Paulo de Faria.Op. cit. p. 87.
405
303
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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305
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
IV - Regulação no mercado financeiro e demais setores
A REGULAÇÃO FINANCEIRA EM FACE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
THE FINANCIAL REGULATION IN FACE OF THE FUNDAMENTAL RIGHTS
João Salvador dos Reis Neto407
RESUMO
O presente artigo analisa a questão da regulação no mercado financeiro na
atual realidade brasileira. À luz do paradigma jurídico-constitucional do Estado
Democrático de Direito, busca-se identificar o motivo da necessidade dessa
regulação e sua relação com os direitos fundamentais postos na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, bem como com aqueles não escritos.
Abordando questões como as características do mercado financeiro atual, a divisão
do sistema financeiro nacional, os órgãos de regulação, dentre outras, bem como as
peculiaridades das negociações ocorridas naquele mercado, procura-se atentar para
a legitimação alcançada pelos institutos pertinentes e mecanismos de regulação
do mercado financeiro quando de sua adequação à sistemática constitucional
relacionada aos direitos fundamentais postos e àqueles que se fizerem surgir da
aclamação popular. Neste diapasão, este breve estudo propõe, com base nos
discursos de diversos doutrinadores apresentados ao longo do trabalho, uma leitura
constitucionalizante do mercado financeiro e de sua regulação, tendo como ponto
de partida a teoria constitucional dos direitos fundamentais.
Palavras-Chave: Mercado Financeiro; Regulação; Direitos Fundamentais;
Estado Democrático de Direito.
ABSTRACT
This article analyzes the issue of regulating financial market in the
current Brazilian reality. In the light of the paradigm legal-constitutional
Democratic State of Law, seeking-if verify what is the reason for the need for
this regulation and its relationship with the fundamental rights posts in the
Mestrando em Direito Privado pela Universidade FUMEC. MBA em Direito Tributário pela
Fundação Getúlio Vargas. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Gama Filho/RJ.
Professor de Direito Empresarial e Tributário da Faculdade de Ciências Jurídicas Prof. Alberto
Deodato. Advogado.
407
307
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Constitution of the Federal Republic of Brazil from 1988, as well as with those
not written. Addressing issues such as the characteristics of the current financial
market, the division of the national financial system, the regulatory agencies,
among others, and, given the peculiarities of the negotiations taking place in
that market, we look for legitimacy achieved by the relevant institutions and
mechanisms of market regulation when their financial suitability to the scheme
relating to fundamental rights constitutional posts and those that do arise from
the popular acclaim. In this vein, this brief study suggests, based on the speeches
of several scholars presented throughout the work, a constitucional reading of
financial market and its regulation, taking as its starting point the theory of
constitutional rights.
Keywords: Financial Markets; Regulation; Fundamental Rights; Democratic
State of Law.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O mercado financeiro. 2.1 Considerações
iniciais. 3 O sistema regulatório do mercado financeiro. 3.1 A
necessidade de regulação. 3.2 Função e composição do sistema
financeiro e suas instituições reguladoras. 3.2.1 Banco Central do Brasil
– BACEN: regulação prudencial e o risco sistêmico. 3.2.2 A Comissão
de Valores Mobiliários - CVM - e a regulação do mercado de capitais.
3.2.3 A Superintendência de Seguros Privados – SUSEP. 3.2.4 A
Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC.
4 Teoria constitucional dos direitos fundamentais. 4.1 Breve análise
da constatação de leituras constitucionalizantes do Direito Privado. 4.2
Proposta de leitura constitucional do direito do mercado financeiro. 4.3
Teoria constitucional dos direitos fundamentais. 4.4 O rol de direitos
fundamentais expressos e os direitos não escritos. 4.5 A legitimação
pelos direitos fundamentais. 4.6 Os direitos fundamentais que gravitam
no mercado financeiro e de capitais. 4.6.1 Direito à livre iniciativa. 4.6.2
Direito do consumidor. 4.6.3 Direito á livre concorrência. 4.6.4 Direito
fundamental à igualdade. 4.6.5 Direitos fundamentais dos sócios. 5 A
regulação do mercado financeiro e de capitais sob o enfoque dos direitos
fundamentais. 6. Conclusão. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem a pretensão de promover uma leitura
constitucionalizante da regulação do mercado financeiro. Para tanto, partir-se-á
do pressuposto de que essa regulação, bem como os diversos institutos desse
308
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
mercado só serão adequados e legítimos se realizados sob a égide da proteção
dos direitos fundamentais.
Devido à égide da liberdade, pode-se crer que grande parte das negociações
realizadas no mercado financeiro encontra-se eivada de desigualdade entre as
partes, principalmente diante da assimetria de informações e do desequilíbrio
no que tange ao poder econômico. Tais situações podem, em vários momentos,
permitir abusos e infrações a diversos ideais previstos na sistemática
constitucional vigente.
No sentido de vedar tais abusos e infrações no âmbito do mercado
financeiro, em princípio um ramo eminentemente privado, o Supremo Tribunal
Federal já asseverou que os direitos fundamentais assegurados pela Constituição
vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados
também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.408
Motivado por este e outros julgados no mesmo sentido, optou-se por verificar
como a questão dos direitos fundamentais tem sido tratada no Estado Democrático
de Direito, tendo como objeto de análise a regulação do mercado financeiro.
No item 2, serão tecidas algumas considerações sobre as características
do mercado financeiro atual, identificando, principalmente, os atores nele
inseridos e os destinatários dos direitos fundamentais pertinentes à matéria.
No item 3, será abordado o mecanismo de regulação do mercado de
financeiro, apresentando-se os órgãos reguladores do sistema financeiro
nacional, bem como fazendo algumas considerações a respeito dele.
O item 4 está reservado para a apresentação da teoria constitucional
dos direitos fundamentais, atentando, principalmente, para aqueles cujos
destinatários façam parte do mercado financeiro. Na oportunidade, serão
investigadas algumas contribuições da doutrina e sua busca pela compreensão
do papel desses direitos constitucionalmente protegidos.
O item 5 se destina a traçar um paralelo entre a regulação do mercado
financeiro e os direitos fundamentais, o que representa o cerne do presente
trabalho, em que se verificará a legitimação da regulação e dos institutos do
mercado financeiro através da observância dos direitos fundamentais postos na
Constituição, e mesmo dos não inscritos.
O item 6 encerra o presente trabalho, trazendo no seu bojo as conclusões
obtidas ao longo da discussão.
BRASIL. STF. RE 201819/RJ. Rel. Min. Gilmar Mendes. Disponível em: <http://www.
stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(201819.NUME.+OU+
201819.ACMS.)+((GILMAR+MENDES).NORL.+OU+(GILMAR+MENDES).
N O R V. + O U + ( G I L M A R + M E N D E S ) . N O R A . + O U + ( G I L M A R + M E N D E S ) .
ACMS.)&base=baseAcordaos>. Acesso em: out. 2010.
408
309
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
2. O MERCADO FINANCEIRO
No presente item, serão apresentados alguns elementos e definições
acerca do mercado financeiro no intuito de se construir um cenário para o
desenvolvimento da presente discussão.
A expressão “mercado”, segundo o Professor Otávio Yazbek, pode ser
utilizada em diversos contextos, com os mais variados sentidos.409 Porém, neste
trabalho será adotada a definição que o referido professor toma de Einaudi,
a qual tem o mercado como um local em que compradores e vendedores de
bens, tomadores e prestadores de serviços se encontram para negociar tais
bens e serviços.410 Ditas negociações, expressas através de relações jurídicoeconômicas e sociais,411 necessitam de promoção, observável através da análise
das funções do mercado financeiro, e proteção, verificável quando da análise do
mecanismo regulatório desse mercado.
Em relação às funções do mercado financeiro, colaciona-se o entendimento
do professor Otávio Yazbek no que diz respeito à definição e função do mercado
financeiro:
[...] seria aquele em que são negociados instrumentos financeiros ou em
que se estabelecem relações de conteúdo financeiro visando, fundamental
mas não exclusivamente, dois fins nem sempre concomitantes, a repartição
de riscos e o financiamento das atividades econômicas. [...] tal mercado
cumpre as suas funções a partir de uma progressiva “financeirização “das
relações econômicas, ou seja, de um processo pelo qual essas relações
são, em certa medida, “monetizadas” e incorporadas a instrumentos
negociáveis, para os quais se provê uma certa liquidez.412
Já os professores Andréa Andrezo e Iran Lima conceituam e apresentam
a função do mercado financeiro nos seguintes termos:
O mercado financeiro consiste no conjunto de instituições e instrumentos
destinados a oferecer alternativas de aplicação e captação de recursos
financeiros. Basicamente, é o mercado destinado ao fluxo de recursos
YAZBEK, Otávio. Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais. Rio de janeiro: Elsevier,
2009. p. 53.
410
Idem, ibidem, p. 54.
411
O mercado financeiro possui não só relações econômicas, mas também sociais, como é o caso
daquelas concernentes às sociedades empresárias e simples que atuam neste mercado; as quais
serão abordadas adiante.
412
YAZBEK, ob. cit., p. 125.
409
310
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
financeiros entre poupadores e tomadores. Dessa forma, o mercado
financeiro pode exercer as importantes funções de otimizar a utilização
dos recursos financeiros e de criar condições de liquidez e administração
de riscos.413
Sobre o mercado em comento, o professor Ricardo Quiroga
Mosquera discorre:
O mercado financeiro e o mercado de capitais surgiram em decorrência
do fluxo de capitais que é inerente a todas as comunidades sociais. Com
efeito, os homens desde os primórdios da civilização começaram a
relacionar-se e dentre as diferentes espécies de relacionamento temos as
relações financeiras e de troca. Para suprir suas necessidades pessoais
e familiares, o ser humano acaba por prestar serviços em troca de uma
remuneração. Tal contrapartida se dava ou mediante o pagamento em
bens de consumo ou, quando do surgimento da moeda, por intermédio de
pagamento em pecúnia. Desse dado social, começa a emergir na sociedade
um conjunto de relações de cunho comercial e financeiro que revelaram a
circulação da riqueza entre os homens. Alguns em situações privilegiadas
conseguiam poupar riquezas, enquanto outros eram necessitados delas. O
excesso e a carência de capitais passaram a ser o verso e o anverso da
mesma realidade econômica, qual seja, o fluxo de capitais. A poupança
passou a mobilizar-se entre os doadores e os tomadores de recursos,
fazendo desse transito de recursos uma atividade financeira rentável para
alguns e onerosa para outros. 414
Não obstante a importância da contribuição de Ricardo Quiroga Mosquera,
não se coaduna com sua afirmação quando elenca o mercado financeiro e o
mercado de capitais como mercados autônomos. Acredita-se ser o mercado de
capitais integrante de um conceito maior, o mercado financeiro, o qual também
possui no seu bojo o mercado de crédito, dentre outros.
Nesse sentido, este trabalho foi sistematizado de forma a abordar o
mercado financeiro de forma geral, porém, enfocando com maior atenção o
que concerne ao mercado de crédito e mercado de capitais. Ressalte-se que os
demais mercados poderão ser objeto de outra pesquisa.
ANDREZO, Andréia Fernandes; LIMA, Iran Siqueira. Mercado financeiro: aspectos históricos
e conceituais. São Paulo: Thomson Learning, 2002. p. 5.
414
MOSQUERA, Roberto Quiroga. Os princípios informadores do direito do mercado financeiro
e de capitais. In: ______ (coord). Aspectos atuais do Direito do Mercado Financeiro e de Capitais.
São Paulo: Dialética, 1999. p. 258.
413
311
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
3. O SISTEMA REGULATÓRIO DO MERCADO FINANCEIRO
3.1 A NECESSIDADE DA REGULAÇÃO
O Professor Otávio Yazbek exemplifica bem a necessidade de regulação do
mercado financeiro:
Esse emaranhado de instituições é integrado também por uma dimensão
jurídica, destinada a prover mecanismos garantidores do funcionamento
dos mercados, seja sob a forma de uma infra-estrutura permissiva e
protetiva dos processos alocativos, seja pelo ordenamento do todo e de
sua dinâmica.415
Não há que se falar em uma nação desenvolvida sem esta possuir um bom
sistema financeiro416 e um mercado atrativo e eficiente.417 Para que este sistema
seja bom e seu mercado tenha as características mencionadas, faz-se necessária
uma regulação por parte dos Poderes Judiciário e Legislativo e, principalmente,
das agências reguladoras, de modo a garantir seus institutos frente aos ideais do
ordenamento jurídico-constitucional do país pertinente. Na realidade brasileira,
entende-se que esta adequação será alcançada pela verificação dos direitos
fundamentais postos e dos que ainda estão para serem escritos.
De fato, o mercado financeiro e seu sistema demandam atenção. De acordo
com Armando Castellar Pinheiro e Jairo Saddi, o mercado financeiro requer uma
base jurídica sólida, pois, ao contrário da maioria das atividades comerciais: “As
transações realizadas no mercado financeiro são estruturadas contratualmente e
tem nas suas duas pontas, agentes que raramente se conhecem”.418
Os referidos autores atentam para a importância da fidúcia no mercado
financeiro frente ao descompasso temporal do cumprimento das obrigações das
YAZBEK, Otávio. Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais. Rio de janeiro: Elsevier,
2009. p. 55.
416
PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005. p. 448.
417
Eficiente talvez seja a palavra que melhor defina como um mercado deve ser. Nas palavras de
Raquel Sztajn, a eficiência é a “aptidão para atingir o melhor resultado com o mínimo de erros
ou perdas, obter ou visar ao melhor rendimento, alcançar a função prevista de maneira mais
produtiva”. SZTAJN, Rachel. Law and Economics. In: ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel
(org.). Direito & Economia: análise econômica do Direito e das organizações. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005. p. 81.
418
PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005. p. 448.
415
312
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
partes que realizam o negócio no mercado financeiro, como inclusive já havia
sido tratado acima. Discorrendo ainda sobre a importância da regulação, os
autores aduzem que:
A regulação das instituições financeiras se justifica tanto por objetivos
macro como microeconômicos. Os primeiros estão relacionados à
capacidade de os bancos criarem moeda (escritural) e ao papel que
desempenham como canais de transmissão da política monetária. Como
as instituições captadoras de depósitos mantêm apenas uma fração
desses depósitos como dinheiro vivo e reservas no Banco Central (BC),
emprestando o resto, o total de moeda na economia e um múltiplo da base
monetária - soma de papel moeda com as reservas bancarias no BC -, que
é o agregado monetário cuja oferta e diretamente controlada pelo BC.
À razão entre a oferta total de moeda e a base monetária dá-se o nome
de multiplicador monetário. A política monetária, administrada pelas
autoridades monetárias, objetiva, em grande medida, influenciar esse
multiplicador, de forma a controlar a inflação. Os principais instrumentos
regulatórios utilizados com esse fim são a proporção de depósitos
compulsórios sobre depósitos a vista e a prazo e a taxa de redesconto,
que é a taxa de juros à qual o Banco Central empresta recursos a bancos
com problemas de liquidez.
O Banco Central também pode influenciar o tamanho da base monetária
por meio de operações de mercado aberto. A justificativa microeconômica
para regular o mercado financeiro é dual: por um lado, buscar a eficiência,
a equidade do sistema; par outro lado, evitar crises, ou seja, atingir certo
equilíbrio. Para tanto, são estabelecidas normas indicativas, baseadas em três
objetivos de política legislativa: estabilidade, eficiência e equidade. Assim,
todo o sistema financeiro é afetado de forma igual por esses três objetivos.419
Roberto Quiroga Mosquera420 apresenta uma sistemática dos princípios
que informam o Direito referente ao mercado financeiro. Demonstra-se
interessante observá-la, haja vista poder sedimentar a importância que possui o
mercado financeiro e, consequentemente, sua regulação.
PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005. p. 449-450.
420
MOSQUERA, Roberto Quiroga. Os princípios informadores do direito do mercado financeiro
e de capitais. In: ______ (coord). Aspectos atuais do Direito do Mercado Financeiro e de Capitais.
São Paulo: Dialética, 1999. p. 263-270.
419
313
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O mercado financeiro tem como princípio a mobilização da poupança
nacional, possibilitando ao homem atuar no fluxo de capitais. A atuação do
Direito no mercado financeiro deve alcançar a finalidade de, por meio de normas
jurídicas, movimentar a poupança nacional, sendo as normas impeditivas desse
fim consideradas uma afronta à própria Constituição da República de 1988.
De acordo com o artigo 192, caput, mais adiante tratado, o texto
constitucional impõe que o Sistema Financeiro Nacional deve estar estruturado
de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos
interesses da coletividade, devendo o legislador infraconstitucional editar
normas jurídicas obedecendo aos ditames constitucionais de a) promover o
desenvolvimento equilibrado do País e b) servir aos interesses da coletividade.
Estas são as bases que a Constituição garante ao Direito para a proteção da
mobilização da poupança nacional.
O mercado financeiro reflete-se na poupança nacional, logo possui como
princípio a proteção da economia popular, haja vista seus recursos advirem
dessa economia. Fato é que, em se tratando de relações financeiras, pode
acontecer de uma das partes tornar-se inadimplente. No mercado financeiro,
as instituições financeiras ocupam um lugar na dupla relação creditícia, ora
captando recursos dos poupadores, ora oportunizando recursos aos tomadores.
Havendo inadimplência em qualquer uma das relações, o sistema poderá sofrer
colapsos pecuniários, trazendo grandes prejuízos ao mercado e aos participantes.
Da mesma forma, pode acontecer que o mercado de capitais tenha o fluxo
prejudicado pelo descumprimento de obrigações. Se for caso, por exemplo, de
uma participação societária, a consequência de uma eventual inadimplência seria
a falência. Com efeito, os mercados financeiros e de capital estão intimamente
ligados à poupança nacional de tal forma, que é sensível ao sucesso ou fracasso
de operações, agentes e participantes.
O princípio da proteção da estabilidade da entidade financeira está
intimamente ligado ao princípio da proteção da economia popular. Não basta
proteger a economia popular sem proteger as instituições financeiras que
exercem função fundamental no mercado financeiro e de capitais, seja como
intermediadoras, seja como prestadoras de serviço que viabilizam operações de
crédito. Para tanto, o Direito tratou de exigir requisitos específicos rígidos para
que determinada entidade se habilite como instituição financeira.
O princípio da proteção do sigilo bancário prevê o segredo bancário
nas relações do mercado financeiro, sendo inclusive uma definição positivada
constitucionalmente, no artigo 5, incisos X421 e XII.422 Trata-se da defesa de um
“Art. 5º, inc. X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
422
“Art. 5º, inc. XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de
421
314
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
direito personalíssimo, em proteção da ética moral. Não obstante, tal ocultação
não pode ocorrer de forma a dar guarida a atos criminosos, sendo certo, portanto,
que o sigilo bancário no Brasil é relativo e não absoluto.
O princípio da proteção da transparência de informações assegura
igualdade de informações oportunizadas aos participantes do mercado
financeiro e de capitais, no intuito de se relativizar ao máximo a assimetria
de informações. O primeiro protege a informação íntima; o segundo, a
informação pública. As normas que regulam o mercado financeiro e
de capitais penalizam a denominada informação privilegiada (insider
information), sendo certo que a norma advinda deste princípio se aplica
a todos, mas mais especificamente às entidades financeiras, sociedades
anônimas abertas e entidades governamentais, como o Banco Central do
Brasil – BACEN – e a Comissão de Valores Mobiliários – CVM.
Com efeito, todos esses princípios se relacionam com a regulação do
mercado financeiro, de tal forma que se apresentam como normas jurídicas
de caráter genérico, conferindo identidade e norte a este sistema jurídico
na busca pela efetivação de valores previstos na própria Constituição da
República, os quais giram em torno, principalmente, da poupança popular
e de seu papel no desenvolvimento da economia.
Nesse diapasão, o Professor Yazbek lembra ainda que os mercados
estão, na realidade, imersos no conjunto de relações sociais, sobre eles
incluindo um amplo leque de regras, procedimentos e padrões, formais ou
informais.423
Explicitada a necessidade de regulação do mercado, cumpre
observar como se compõe o Sistema Financeiro Nacional, o qual possui
os mecanismos de fomento e regulação do mercado financeiro.
3.2 FUNÇÃO E COMPOSIÇÃO DO SISTEMA FINANCEIRO E SUAS INSTITUIÇÕES
REGULADORAS
Primeiramente, saliente-se que se tratará da composição do Sistema Financeiro
Nacional tal como é apresentada pelo próprio Banco Central. Não serão
abordados outros segmentos especializados do referido sistema, como o Sistema
Financeiro de Habitação – SFH424 e o Sistema de Pagamentos Brasileiro –
dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e
na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.”
423
YAZBEK, Otávio. Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais. Rio de Janeiro: Elsevier,
2009. p. 55.
424
“Sistema Financeiro da Habitação (SFH) é um segmento especializado do Sistema Financeiro
Nacional, criado pela Lei 4380/64, no contexto das reformas bancária e de mercado de capitais.
Por essa Lei foi instituída correção monetária e o Banco Nacional da Habitação, que se tornou o
315
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
SPB,425 dentre outros, ao quais poderão ser investigados em trabalho específico.
Tendo como função precípua a intermediação e transferência de
titularidade dos recursos financeiros entre os agentes econômicos,426 o Sistema
Financeiro Nacional pode ser dividido de acordo com o QUADRO 1 a seguir:
órgão central orientando e disciplinando a habitação no País. Em seguida, a Lei 5107/66 criou
o FGTS. O sistema previa desde a arrecadação de recursos, o empréstimo para a compra de
imóveis, o retorno desse empréstimo, até a reaplicação desse dinheiro. Tudo com atualização
monetária por índices idênticos. Na montagem do SFH, observou-se ainda que havia
necessidade de subsídios às famílias de renda mais baixa, o que foi realizado de maneira a não
recorrer a recursos do Tesouro Nacional. Foi estabelecido então um subsidio cruzado, interno
ao sistema, que consistia em cobrar taxas de juros diferenciadas e crescentes, de acordo com
o valor do financiamento, formando uma combinação que, mesmo utilizando taxas inferiores
ao custo de captação de recursos nos financiamento menores, produzia uma taxa média
capaz de remunerar os recursos e os agentes que atuavam no sistema. [...] Da criação do
SFH até os dias de hoje, o sistema foi responsável por uma oferta de cerca de seis milhões de
financiamentos e pela captação de uma quarta parte dos ativos financeiros. O sistema passou
a apresentar queda nos financiamentos concedidos a partir de uma sucessão de políticas
de subsídios que reduziram substancialmente os recursos disponíveis. O SFH possui,
desde a sua criação, como fonte de recursos principais, a poupança voluntária proveniente
dos depósitos de poupança do denominado Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo
(SBPE), constituído pelas instituições que captam essa modalidade de aplicação financeira,
com diretrizes de direcionamento de recursos estabelecidas pelo CMN e acompanhados pelo
Bacen, bem como a poupança compulsória proveniente dos recursos do Fundo de Garantia
do Tempo de Serviço (FGTS), regidos segundo normas e diretrizes estabelecidas por um
Conselho Curador, com gestão da aplicação efetuada pelo Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão(MPOG), cabendo a CEF o papel de agente operador.” (BRASIL. Banco
Central do Brasil. Legislação básica do sistema de consórcio. Disponível em: <http://www.bcb.
gov.br/?SFHHIST> Acesso em: 17 nov. 2010.)
425
Até meados dos anos 90, as mudanças no Sistema de Pagamentos Brasileiro – SPB
foram motivadas pela necessidade de se lidar com altas taxas de inflação e, por isso, o
progresso tecnológico então alcançado visou principalmente o aumento da velocidade
de processamento das transações financeiras. Na reforma conduzida pelo Banco Central
do Brasil em 2001 e 2002, o foco foi redirecionado para a administração de riscos. Nessa
linha, a entrada em funcionamento do Sistema de Transferência de Reservas - STR, em 22
de abril daquele ano, marca o início de uma nova fase do SPB. Com esse sistema, operado
pelo Banco Central do Brasil, o País ingressou no grupo de países em que transferências
de fundos interbancárias podem ser liquidadas em tempo real, em caráter irrevogável
e incondicional. Esse fato, por si só, possibilita redução dos riscos de liquidação nas
operações interbancárias, com conseqüente redução também do risco sistêmico, isto é,
o risco de que a quebra de um banco provoque a quebra em cadeia de outros bancos, no
chamado “efeito dominó” Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/ ?SFHHIST> Acesso
em 17 de novembro de 2010.
426
PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro
Elsevier, 2005 p. 434.
316
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
QUADRO 1 - Estrutura atual do Sistema Financeiro Nacional
ÓGÃOS
NORMATIVOS
ENTIDADES
SUPERVISORAS
Conselho
Monetário
Nacional CMN
Banco
Central do
Brasil - BACEN
Instituições
financeiras
captadoras de
depósitos à
vista
Demais
instituições
financeiras
Banco de
Câmbio
Comissão de
Valores
Mobiliários
CVM
Bolsas de
mercadorias e
futuros
Bolsas de
valores
Conselho
Nacional de
Seguros
Privados CNSP
Superintendência
de Seguros
Privados SUSEP
Resseguradores
Sociedades
seguradoras
Conselho
Nacional de
Previdência
Complementar
CNPV
Superintendência
Nacional de
Previdência
Complementar
PREVIC
Instituições
financeiras
Entidades fechadas de previdência complementar
captadoras de (fundos de pensão)
depósitos à
vista
OPERADORES
Outros intermediários
financeiros e administradores
de recursos de terceiros
Sociedades de
capitalização
Entidades
abertas de
previdência
complementar
Fonte: Banco Central do Brasil
Ultrapassada esta fase, passa-se a analisar brevemente os órgãos
reguladores instituídos no mercado financeiro. É mister salientar que os órgãos
em si não são objetos da presente pesquisa, mas sim a adequação destes à ordem
constitucional através da promoção dos direitos fundamentais.
3.2.1 BANCO CENTRAL DO BRASIL – BACEN: REGULAÇÃO PRUDENCIAL E O
RISCO SISTÊMICO
O Banco Central do Brasil – BACEN – exerce função primordial na
regulação do mercado financeiro, notadamente no mercado de crédito e setor
bancário, personificando efetivamente a mão visível do Estado.427
A função regulatória do BACEN corresponde à regulação e supervisão
da atividade bancária e financeira e, em tempos de crise, constitui modulador
das externalidades negativas. É a chamada regulação prudencial, responsável
por assegurar as condições de acesso ao mercado e as condições ao exercício
da atividade bancária.
MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Banco Central e regulação: a mão vísivel do Estado. In:
OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Direito Econômico. Evolução e institutos. Obra em homenagem ao
prof. João Bosco Leopoldino da Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2009,. p. 381.
427
317
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Marcelo de Oliveira Milagres, citando o Professor João Bosco Leopoldino
da Fonseca, lembra:
Para o Professor João Bosco Leopoldino da Fonseca: “[ ...] O Banco Central
do Brasil, surgido da transformação da Superintendência da Moeda e do
Crédito, por determinação do art. 2° da Lei n° 4.595, de 1964, inserido no
contexto do sistema financeiro nacional, sempre teve funções de regulação
e controle, como se depreende dos arts. 8° a 16 da citada lei.”428
Diante de sua importância, o BACEN, como agência reguladora do
sistema financeiro, deve ser autônomo, não vinculado a programas de governo,
mas sim ter suas regras limitadas no artigo 192 da Constituição da República, o
qual será tratado em seguida.
O Professor Kildare Gonçalves, atentando para a importância do tema
referente à atuação e autonomia do Banco Central, apresenta:
Tema constante do sistema financeiro nacional, a ser disciplinado por lei
complementar, diz respeito ao banco central e a sua autonomia, pois quando
forte e independente desempenha papel relevante no processo político. As
variáveis que devem ser consideradas para medir o índice de independência dos
bancos centrais, são a autonomia legal, a formulação da política monetária, os
objetivos do banco e limitações aos empréstimos, e a indicação e permanência
no cargo do presidente do banco [...]429
3.2.2 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS - CVM - E A REGULAÇÃO DO
MERCADO DE CAPITAIS
A Comissão de Valores Mobiliários – CVM – foi criada pela Lei Federal
nº 6.385/76, pela qual teve conferida competência para regular do mercado de
capitais, atribuição anteriormente conferida ao BACEN através da Lei Federal nº
4.595/64. Desta forma, a regulação do sistema financeiro no Brasil ficou dividida,
cabendo ao BACEN a regulação pelo sistema bancário, de crédito e monetário,
enquanto à CVM coube a competência para regular o mercado de capitais.
Tendo sua criação inspirada na Securities and Exchange Comission SEC - dos Estados Unidos, a CVM é autarquia federal vinculada ao Ministério
da Fazenda, dotada de autoridade administrativa independente e ausência de
subordinação hierárquica, funcionando como um órgão de deliberação colegiado.
Idem, ibidem, p. 382.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição.
Direito Constitucional Positivo. 14 ed. rev. atual. amp. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 1.246.
428
429
318
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A CVM se diferencia da SEC no sentido de que surgiu como forma de
fomentar o mercado de capitais na economia nacional, enquanto a SEC foi criada
para por fim às práticas indevidas em um mercado já desenvolvido. De qualquer
forma, ambas possuem como fundamento o da defesa do processo de prestação
de informações pelos emissores de valores mobiliários, o chamado disclosure.430
3.2.3 SUPERINTENDÊNCIA DE SEGUROS PRIVADOS – SUSEP
Conforme informações do BACEN, a Superintendência de Seguros
Privados – SUSEP – é uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, sendo
responsável pelo controle e fiscalização do mercado de seguro, previdência
privada aberta e capitalização.
Dentre suas atribuições, destaca-se a de fiscalizar a constituição,
organização, funcionamento e operação das Sociedades Seguradoras, de
Capitalização, Entidades de Previdência Privada Aberta e Resseguradores, na
qualidade de executora da política traçada pelo Conselho Nacional de Seguros
Privados – CNSP; atuar no sentido de proteger a captação de poupança popular
que se efetua através das operações de seguro, previdência privada aberta, de
capitalização e resseguro; zelar pela defesa dos interesses dos consumidores
dos mercados supervisionados; promover o aperfeiçoamento das instituições e
dos instrumentos operacionais a eles vinculados; promover a estabilidade dos
mercados sob sua jurisdição; zelar pela liquidez e solvência das sociedades
que integram o mercado; disciplinar e acompanhar os investimentos daquelas
entidades, em especial os efetuados em bens garantidores de provisões técnicas;
cumprir e fazer cumprir as deliberações do CNSP e exercer as atividades que
por este forem delegadas; prover os serviços de Secretaria Executiva do CNSP.
3.2.4 SUPERINTENDÊNCIA NACIONAL DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR – PREVIC
Novamente recorrendo a informações do BACEN, tem-se que a
Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC – é
uma autarquia vinculada ao Ministério da Previdência Social, responsável por
fiscalizar as atividades das entidades fechadas de previdência complementar
(fundos de pensão).
A PREVIC atua como entidade de fiscalização e de supervisão das
atividades das entidades fechadas de previdência complementar e de execução
das políticas para o regime de previdência complementar operado pelas
A política do disclosure, presente no art. 4º, inc. VI, e art. 22, § 1º, da Lei nº 6.385/76, consiste
no processo de divulgação de informações amplas e completas pelas empresas a respeito delas
próprias e dos valores mobiliários por ela ofertados, de forma equitativa para todo o mercado.
430
319
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
entidades fechadas de previdência complementar, observando, inclusive, as
diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Conselho
Nacional de Previdência Complementar.
4 TEORIA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
4.1 BREVE ANÁLISE DA CONSTATAÇÃO DE LEITURAS CONSTITUCIONALIZANTES
DO DIREITO PRIVADO
Historicamente, sempre que se suscitava o Direito Privado, relacionavase automaticamente sua fonte primária ao Código Civil, ao passo que, sendo
o Direito Público a disciplina analisada, a fonte primária pertinente seria a
Constituição da República Federativa de 1988 e leis correlatas.
O Direito Privado é demonstrado como o sistema de normas jurídicas,
tendo como principais disciplinas as que tratam das relações existentes entre os
particulares no Direito Civil, no Direito Empresarial e no Direito do Consumidor.
Pode-se incluir nesta lista o direito referente ao mercado financeiro, atentando
para o fato que, diante de suas especificidades, possui elementos também
presentes nas disciplinas de Direito Público.
Fato é que, através do sistema privatístico, o particular integrante
de uma relação horizontal431 é livre para manifestar sua vontade, podendo,
inclusive, eleger livremente os efeitos da negociação da qual é parte para
a sua vida privada. Ou seja, é faculdade do particular estabelecer para a
sua vida normas privadas.
Neste sentido, tem-se que o Direito Privado, através de seu regramento,
demonstra-se como a seara viável à existência de normas nascidas da
manifestação da autonomia privada, sendo este tratado como um princípio
constitucional basilar das relações privadas.
De outra sorte, o Direito Público constitui o sistema de normas jurídicas
em que a relação dos participantes é desigual, haja vista ser ao menos um deles
o Estado. Neste sentido, será a relação vertical, se tiver como participantes o
Estado e o particular.
Fato é que se viu surgir nos últimos anos esforços no sentido de se
promoverem leituras constitucionalizantes do Direito Privado, inicialmente do
Direito Civil, no intuito de se demonstrar que as normas deste ramo devem ser
lidas à luz dos princípios e valores protegidos na Constituição da República
Horizontal no sentido de se tratar de uma relação privada, na qual as partes, particulares,
teoricamente, estariam no mesmo patamar. De forma diversa, como se verá à frente, seria vertical
se uma das partes fosse o Estado. Atente-se para o fato de o status de igualdade na relação privada
ser apenas teórico, diante da constatação da assimetria de informações.
431
320
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Federativa do Brasil de 1988, sob pena de não ser alcançada a adequação de
seus institutos à atualidade e ao Estado Democrático de Direito.432
É certo que não só o Direito Civil deve ser objeto de uma leitura
constitucionalizada, mas o Direito Privado como um todo. Na verdade, não
se está falando de uma constitucionalização do Direito Civil, como aduzem os
Professores Paulo Luiz Netto Lôbo433 e Gustavo Tepedino,434 ou mesmo do Direito
Privado, termo este que dá margem ao questionamento da constitucionalidade
de um ramo do Direito. Mas sim, de uma leitura dos institutos e mecanismos do
Direito sob a ótica dos valores protegidos constitucionalmente.
4.2 PROPOSTA DE LEITURA CONSTITUCIONAL DO DIREITO DO MERCADO
FINANCEIRO
Uma leitura constitucionalizante também deve ser dirigida ao Direito
pertinente ao mercado financeiro e à regulação deste mercado, buscando-se
a adequação dos institutos, que será encontrada nos moldes do paradigma do
Estado Democrático de Direito. Interpretar o mercado financeiro sob o enfoque
da teoria dos direitos fundamentais deve ser uma temática a ser buscada pela
doutrina contemporânea.
O processo de leitura com viés público dos diversos ramos do Direito,
no caso presente daquele pertinente ao mercado financeiro, possibilitaria
uma mudança necessária do pensamento dos agentes econômicos, até então
caracterizado pelo pragmatismo,435 os quais passariam a atentar, de forma
voluntária ou posta pelo Estado, para situações antes não observadas.
Como visto anteriormente, institutos clássicos de Direito Público e Direito
Privado estão sendo misturados como se fossem ingredientes de uma solução. E de
fato, não poderia ser diferente, afinal, o Direito é uno, e o estudo individualizado
de seus ramos decorre tão-somente da melhor sistematização da matéria.
O Direito Privado deve ser lido também como um mecanismo de
alcance dos ideais democráticos. Direitos fundamentais, como o da livre
iniciativa, têm sua aplicação evidente em todas as situações, balizados
por diversos princípios constitucionais que os protegem. O princípio da
dignidade de pessoa humana436 é um destes.
FIÚZA, César. Direito Civil: curso completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 118.
LÔBO, Paulo Luiz Netto, Constitucionalização do Direito Civil. In: FIÚZA, César (coord.)
Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 200.
434
TEPEDINO, Gustavo. A constitucionalização do Direito Civil: perspectivas interpretativas
diante do novo código. In: FIÚZA, César (coord.) Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003. p. 115.
435
Cf BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009.
436
Não obstante o reconhecimento da importância do princípio da dignidade da pessoa humana
432
433
321
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
É certo que a leitura constitucionalizante dos ramos do Direito não é algo
novo, na medida em que o Direito, como um todo, é fundamentado e regulado
inicialmente na nossa Constituição da República de 1988, sendo, por si só,
constitucional por nascimento.
As relações no mercado financeiro, talvez o exemplo mais claro de
liberalidade econômica, têm seu fundamento principal na própria Carta Magna,
no art. 192, sendo relevante a análise de seus institutos e sua regulação sob a
égide da sistemática constitucional.
Explicitada a justificativa sobre a proposta de uma leitura
constitucionalizante, colaciona-se a contribuição de Konrad Hesse ao tecer um
paralelo entre as relações no mercado financeiro e os direitos fundamentais:
Liberdade humana é posta em perigo não só pelo Estado, mas também por
poderes não-estatais, que na atualidade podem ficar mais ameaçadores
do que as ameaças pelo Estado. Liberdade deixa-se, todavia, garantir
eficazmente só com liberdade uniforme: contanto que ela não deve ser
na construção da democracia, receia-se a forma como ele pode ser utilizado. O mesmo mecanismo de
vedação a abusos presente no bojo desse princípio pode ser utilizado para cometer abusos, se ele não
for interpretado sob a égide dos ideais democráticos. Como exemplo cita-se o princípio da dignidade
da pessoa humana, princípio basilar e dos mais importantes e fundamentais do Estado Democrático
de Direito no qual se funda o Brasil. Suponha-se a seguinte situação, numa relação locatícia fictícia.
O locador, diante da inadimplência latente do locatário, promove contra este a cobrança dos aluguéis
atrasados, sob pena de ser proposta a necessária ação de despejo nos termos da Lei Nº 8.245/91,
para ver resguardados seus direitos enquanto proprietário do imóvel locado. O locatário, não só se
mantém inadimplente face à cobrança do locador, como propõe ação de reparação por danos morais
com base no princípio da dignidade da pessoa humana por entender ter sido violada sua dignidade
quando da cobrança intentada pelo locador. Diante do litígio que lhe é apresentado, o magistrado de
primeiro grau responsável dá ganho de causa ao locatário, concordando com a ofensa ao princípio
da dignidade humana, sendo que tal decisão gerará consequências, inclusive, na pretensa ação de
despejo do locador. Em segunda instância, uma colenda turma de desembargadores mantém a
sentença. Neste sentido, o locador, proprietário de imóvel, resta prejudicado no que tange ao valor
dos aluguéis que lhe são devidos, resta prejudicado no que tange ao imóvel que se mantém em
posse do locatário inadimplente e resta prejudicado principalmente no que tange à indenização
que deverá pagar a este. Fato é que esta situação – em que o princípio da dignidade da pessoa
humana é tomado de forma absoluta - não está tão longe de acontecer. Ora, a relação locatícia é da
regência do Direito Privado, notadamente do Direito Civil, sendo a cobrança de alugueis e a ação
de despejo institutos legais e devidos nas relações entre locadores e locatários. Proteger o locatário
de forma irrestrita, sob a pretensa motivação de se defender o princípio da dignidade da pessoa
humana, traz ao exemplo supramencionado insegurança e prejuízos inominados à relação locatícia
e aos institutos de Direito Privado. Será que os efeitos da decisão que deu procedência ao pedido de
indenização por parte do locatário foram observados pelo magistrado? Será que as consequências
foram levadas em consideração, ou apenas buscou-se atender a este “fetichismo jurídico” que se
demonstra a constitucionalização do Direito Privado? Será que este locador voltará a locar este
imóvel novamente? Acredita-se que não.
322
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
somente uma liberdade dos poderosos, carece ela de proteção, também
contra prejuízos sociais.
Essa tarefa foi antigamente entendida exclusivamente como objeto do
direito legislado, especialmente do Direito Civil, do Direito Penal e
do Direito Procedimental pertinente. Em época recente, a validez dos
direitos fundamentais é estendida, em uma medida, em certos pontos,
ainda aberta, também a este âmbito, ao neste aspecto ser aceito um dever
do Estado para a proteção dos direitos fundamentais e, conexo com isso,
um certo “efeito diante de terceiro” de direitos fundamentais.437
Partindo-se do estabelecimento da teoria constitucional dos direitos
fundamentais como marco teórico do presente artigo, passa-se à sistemática
constitucional pertinente.
4.3 TEORIA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Inicialmente, uma observação se faz necessária. A Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 traz no seu bojo um extenso rol de
direitos fundamentais, característica esta inerente à maioria das Constituições
de cunho democrático. Contudo, o presente artigo será sistematizado de forma
a abordar somente aqueles direitos fundamentais que se entende tangenciam de
forma mais evidente as relações no mercado financeiro e, portanto, passiveis de
proteção através dos mecanismos de regulação.
Não se tem a pretensão de afirmar que apenas os direitos fundamentais
ora elencados são os pertinentes, esgotando a possibilidade de outros
incidirem sobre a matéria. Ademais se entende que o referido rol de direitos
é extenso, porém não exaustivo, ao passo que se reconhece a possibilidade
de outros não escritos se fazerem pertinentes. Saliente-se, portanto,
que os direitos fundamentais aqui elencados decorrem do critério deste
Autor, que entende serem os mais tangentes sobre a matéria, sob pena de,
despretensiosamente, ser cometido um equívoco.
A ideia de democracia apresentada pelo atual paradigma constitucional
possui como característica fundamental o governo pelo povo, o qual escolhe
seus representantes, que, agindo como mandatários, decidem os rumos da nação.
Contudo, este poder delegado não é absoluto, sendo certo que está indissoluvelmente
combinado à ideia da necessidade de limitação.438 Dentre as várias limitações, a
previsão de direitos fundamentais é a que mais interessa neste momento.
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federativa da Alemanha.
Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 278.
438 MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 56.
437
323
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Positivados no ordenamento jurídico como expressão dos anseios da
sociedade, os direitos fundamentais trazem no seu bojo um ideal de democracia
que permite avanços sociais e econômicos. Sobre a função limitadora dos direitos
fundamentais, cabe observar o entendimento do Professor J. J. Gomes Canotilho:
[...] a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva:
(1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência
negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as
ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano
jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais
(liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma
a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).439
Na mesma linha, o Professor José Afonso da Silva esclarece a amplitude
de aplicação dos direitos fundamentais, sendo que:
A expressão direitos fundamentais do homem, como também já deixamos
delineado com base em Pérez Luño, não significa esfera privada
contraposta à atividade pública, como simples limitação ao Estado
ou autolimitação deste, mas limitação imposta pela soberania popular
aos poderes constituídos do Estado que dela dependem. Ao situarmos
sua fonte na soberania popular, estamos implicitamente definindo sua
historicidade, que é precisamente o que lhes enriquece o conteúdo e os
deve pôr em consonância com as relações econômicas e sociais de cada
momento histórico. A Constituição, ao adotá-los na abrangência com que
o fez, traduziu um desdobramento necessário da concepção de Estado
acolhida no art. 1°: Estado Democrático de Direito. O fato de o direito
positivo não lhes reconhecer toda dimensão e amplitude popular em
dado ordenamento (restou dar na Constituição, conseqüências coerentes
na ordem econômica) não lhes retira aquela perspectiva, porquanto,
como dissemos acima, na expressão também se contêm princípios que
resumem uma concepção do mundo que orienta e informa a luta popular
para conquista definitiva da efetividade destes direitos.”440
Neste diapasão, é de se consignar a primordial importância dos direitos
fundamentais e sua função inegável na legitimação do Direito e na viabilização
da democracia prometida pela Constituição.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. p. 541.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18. ed. rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 182-183.
439
440
324
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Mas será que a Carta Magna traz no seu bojo todos os direitos
fundamentais existentes em nossa sociedade? Reconhece-se que não, haja vista
que os anseios da sociedade podem surgir em toda sorte de situações possíveis,
inclusive naquelas ainda não previstas pelo ordenamento jurídico. Estamos
falando, neste último caso, como doutrina José Adércio Leite Sampaio, de
direitos não escritos.441
4.4 O ROL DE DIREITOS FUNDAMENTAIS EXPRESSOS E OS DIREITOS
NÃO ESCRITOS
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prima por
trazer uma extensa lista de previsão de direitos fundamentais, característica esta
inerente à maioria das Constituições de Estados com paradigmas democráticos.
Uma lista extensa, porém, como aduzido, não exaustiva.442
O Professor José Adércio, fazendo referência a René Capitant, adverte
que novas regras não produtos da atividade do legislador podem surgir no direito
positivo através do reconhecimento que a própria nação faz de sua autoridade.
Neste caso, deve-se conferir a esta nova regra a qualidade de direito não escrito.443
Tais direitos, introduzidos na ordem jurídico-constitucional através da
consciência social, e não da atividade do legislador, devem ser, também, objeto
de proteção pelos juízes constitucionais, alcançando o que o Professor José
Adércio denomina ‘lista aberta de direitos fundamentais’.444
De fato, o entendimento do referido professor parece correto e pontual.
Com efeito, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 traz em
seu art. 5°, § 2°, a afirmação que o rol de direitos fundamentais previstos em
seu bojo não é exaustivo, não sendo excluídos outros direitos decorrentes do
regime e dos princípios pela Constituição adotados, ou mesmos de tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.445
Neste sentido, reconhece-se a possibilidade de que um direito
fundamental, não escrito na Constituição, traga adequação a um instituto do
mercado financeiro. Diante da celeridade das relações financeiras, não é demais
imaginar uma situação ainda não prevista. Conforme atenta André-Jean Arnaud:
SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002. p. 705
442
Idem, ibidem, p. 706-717.
443
SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002. p. 705.
444
Idem, ibidem, p. 705.
445
“CRFB - Art. 5º, § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.”
441
325
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
“O direito dos mercados financeiros encontra-se à proa de uma pluralidade de
racionalidades em evolução”.446
4.5 A LEGITIMAÇÃO PELOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Conforme verifica o Professor Sérgio Botrel,447 fazendo referência
aos Professores Ingo Wolfgang Sarlet448 e Konrad Hesse,449 os direitos
fundamentais, concebidos inicialmente como instrumentos de proteção frente a
abusos do Estado na intervenção na sociedade, exercem atualmente a função de
legitimação do próprio Direito, integrando, ademais, a ordem subjetiva.
Com efeito, o paradigma constitucional vigente, fundado na ideia
de democracia, prevê a instituição e proteção de direitos fundamentais no
intuito de se limitar o poder daqueles que, nomeados pelo povo, governam
como mandatários. Pode-se constatar, então, que a legitimação dos
institutos e mecanismos dos diversos ramos Direito450 seria alcançada não
só, mas principalmente, pela adequação destes aos direitos fundamentais
previstos no ordenamento jurídico-constitucional. Novamente, o Professor
Botrel, citando os Professores Ingo Wolfgang Sarlet e Luís Roberto
Barroso, adverte para o papel legitimador dos direitos fundamentais:
Nessa ordem de idéias, é de se insistir que, quando se faz alusão à leitura
constitucional do Direito Privado, com o objetivo de conferir legitimidade
à produção e aplicação do Direito, são os direitos fundamentais positivados
no texto constitucional que desempenham essa tarefa de legitimação.
[...] Na atualidade, juntamente com a função de assegurar a liberdade
individual, os direitos fundamentais atuam como “fundamento material
de todo o ordenamento jurídico, merecendo registrar, ademais, que o
“ideal democrático realiza-se não apenas pelo princípio majoritário, mas
também pelo compromisso na efetivação dos direitos fundamentais”.451
ARNAUD, André-Jean. As transformações do Direito. Revista de Direito Mercantil, ano 39, v.
117, jan.-mar. 2000, p. 46.
447 BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009. p. 22.
448
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007. p. 70-71.
449 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federativa da Alemanha.
Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 228.
450 Não seria diferente com os institutos e mecanismos existentes no Direito do Mercado
Financeiro.
451
BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009. p. 19.
446
326
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Jürgen Habermas,452 comentado também pelo Professor Botrel, adverte
que um sistema de Direito que pretenda regular a convivência de cidadãos por
meios legítimos deve contemplar os direitos fundamentais.453
Como acentua o Professor Kildare Gonçalves de Carvalho: “O parâmetro
de legitimidade do Direito e do Estado como Democrático de Direito leva à
concepção dos direitos fundamentais universais (...)”.454
Sob a ótica da teoria do processo, coadunando com esse caráter
legitimador dos direitos fundamentais, o Professor Carlos Eduardo Araújo
Carvalho apresenta para sua pesquisa, dentre outras, a seguinte afirmação:
O Processo, enquanto instituição jurídica constitucionalizada, impede
a massificação do homem (sujeito de direito), frente aos abusos do
Estado, na medida em que garante uma revisitação das decisões estatais,
de forma irrestrita, constante e atemporal, através de uma demarcação
teórica e da testificação ampla destas decisões por uma sociedade aberta
de interpretes, que se dá pela verificação do ganho sistêmico, ou seja:
com a implementação dos direitos fundamentais.455
No mesmo diapasão, o Professor José Adércio Leite Sampaio adverte
sobre o caráter legitimador dos direitos fundamentais:
Os direitos fundamentais desempenham um papel central de legitimidade
da ordem constitucional, não apenas pelo seu catálogo formal, mas
sobretudo por sua realização prática. Embora sejam, assim, o centro
de gravidade da estrutura orgânica e funcional do sistema, não podem
ser considerados como um “conjunto fechado” de valores, senão como
um centro ligado, funcional e normativamente, com as outras partes do
Direito Constitucional.456
A contribuição doutrinária acima elencada é uníssona no sentido de
que os direitos fundamentais, além de exprimirem os anseios da sociedade, e
justamente por isso, legitimam o Direito na suas mais variadas vertentes.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. I. p. 154.
453
BOTREL, ob. cit., p. 16.
454
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição.
Direito Constitucional Positivo. 14 ed. rev. atual. amp. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 670.
455
Cf. CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo de. Legitimidade dos Provimentos. Fundamentos da
Ordem Jurídica Democrática. Curitiba: Juruá, 2009. p. 23.
456
SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002. p. 671.
452
327
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
No caso do mercado financeiro, cuja regulação se mostra necessária,
não é diferente. Sua legitimação está vinculada à verificação da sistemática
constitucional dos direitos fundamentais, postos ou não escritos.
4.6 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS QUE GRAVITAM NO MERCADO FINANCEIRO
E DE CAPITAIS
Salienta-se novamente que, ao elencar abaixo os direitos fundamentais
que se entende tangenciarem o mercado financeiro, não se está exaurindo a
possibilidade de outros também serem pertinentes. Pelo contrário, reconhece-se
a possibilidade de outros gravitarem no mercado, haja vista a própria evolução
da sociedade e a globalização dos mercados.
4.6.1 DIREITO À LIVRE INICIATIVA
O princípio da livre iniciativa está inserido de forma indissociável ao
mercado financeiro. Demonstra-se como o direito básico do homem inserido
em um Estado democrático, trazendo o valor de que cada um deve ser livre para
empreender, buscando realizar no mercado seus propósitos pessoais. A livre
iniciativa abarca não só a liberdade de indústria e comércio, como também as
atividades presentes no mercado financeiro e de capitais. Enfim, toda e qualquer
atividade lícita que o indivíduo escolha realizar como sua fonte de renda ou não.
Tal liberdade exerceu papel fundamental na formação do Estado moderno.
Como era claro na Constituição de 1824,457 a afirmação da liberdade de indústria
e comércio implicava a abolição das corporações de ofícios. Se, no período
medieval, o exercício de atividades industriais e comerciais era condicionado
ao pertencimento a corporações de ofício; com a modernidade, rompem-se os
vínculos feudais, e cada indivíduo passa a poder, virtualmente, escolher quais
atividades irá desempenhar. Cuida-se da hoje conhecida liberdade de empresa.
No sistema capitalista, o indivíduo é idealizado como homem
empreendedor, cabendo às instituições liberais garantir o resultado desse
empreendimento. Nisso está o elemento central do que Constant denominava
“liberdade dos modernos”.458
Tem-se entendido, com razão, que a livre iniciativa abarca também a
liberdade de lucro. A Constituição certamente legitima as atividades lucrativas,
e em nada lhes é refratária.
CRFB, art. 179, inc. XXIV e XXV.
CONSTANT, Benjamin. De la liberté des anciens comparée à celle des modernes. In: Id. Écrits
politiques. Paris: Gallimard, 1997. p. 603.
457
458
328
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Como assevera Sérgio Botrel, a livre iniciativa, como os demais direitos
fundamentais, não detém caráter absoluto, sendo não só possível como
necessária a sua limitação pelo legislador.459
A livre iniciativa constitui, portanto, direito fundamental, passível de
restrições, tanto pelo constituinte derivado, quanto pelo legislador ordinário. A
hipótese é de típica norma de eficácia contida ou restringível.
Tal natureza é ressaltada pelo art. 170 da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, cujo parágrafo único assegura o “livre exercício
de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos
públicos, salvo nos casos previstos em lei”. A lei poderá justamente restringir
as possibilidades de escolha individual no campo econômico com vistas à
proteção de outros bens que merecem tutela constitucional. A restrição à livre
iniciativa só seria compatível com a Constituição quando adequada, necessária
e justificada pela promoção concomitante de outro direito fundamental.
4.6.2 DIREITO DO CONSUMIDOR
Em todo o corpo da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 é feita referência à promoção e proteção do Direito do Consumidor.
No art. 5º, inc. XXXII, a Constituição determina que “o Estado promoverá,
na forma da lei, a defesa do consumidor”, elevando-o à categoria de direito
fundamental. Já no art. 170, inc. V, o Direito do Consumidor figura como direito
do particular e princípio da ordem econômica. O art. 150, § 5º, institui o dever
de a lei determinar “medidas para que os consumidores sejam esclarecidos
acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”.
Por fim, o art. 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias
– ADCT – atribui ao Congresso Nacional o dever de elaborar, em cento e vinte
dias da promulgação da Constituição, o “Código de Defesa do Consumidor”,
o qual foi inserido no nosso ordenamento jurídico em 11 de setembro de 1990,
através da Lei n° 8.078. Como se vê, a proteção do consumidor foi amplamente
assumida no texto constitucional, o qual legitima, em seu nome, importantes
restrições ao princípio da livre iniciativa.
De fato, tamanha preocupação com a proteção do consumidor está
em consonância com as dimensões das práticas comerciais, empresariais e
financeiras que têm lugar em nosso tempo. A produção hoje é feita em larga
escala, por grandes empresas, por vezes atuantes em todo o globo, que têm em
vista criar padrões massificados de consumo. Trata-se da sociedade de massas,
e dos padrões de consumo e comportamento que lhe correspondem.
BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009. p. 47.
459
329
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
No antigo liberalismo do século XIX, vigorava como princípio mais
importante de toda a ordem jurídica o pacta sunt servanda. Os indivíduos, como
antes destacado, eram concebidos como livres e iguais, razão pela qual deveria
ser respeitada e garantida a sua manifestação de vontade proferida por ocasião
da elaboração de um contrato. Tal liberdade, já naquele momento, era fictícia,
e o Estado, com a instituição do direito do trabalho, deu consequência prática a
essa percepção, limitando a validade dos contratos com o propósito de proteger a
parte mais fraca – o trabalhador. Na segunda metade do século XX, a percepção
do desequilíbrio das relações econômicas se projeta para o plano das relações
de consumo, e emerge todo um ramo do Direito preordenado à finalidade de
proteger o polo mais fraco das relações de consumo – o consumidor.
Observe-se, contudo, que a função das normas de proteção do
consumidor não é apenas limitar a liberdade de contratação para promover
maior igualdade entre as partes contratantes. É também proteger a própria
liberdade, mas a liberdade real do consumidor. Há nas relações de consumo
um evidente desequilíbrio, sobretudo em relação às informações sobre o
produto comercializado. Enquanto o produtor as detém todas, o consumidor as
ignora em grande parte. O consumidor costuma ser acometido por um déficit
de informações que o impossibilita de manifestar de forma realmente livre
a sua vontade. O que vigora é, muitas vezes, a manipulação do consumidor,
seja através de propaganda enganosa, seja através da imposição unilateral
de cláusulas contratuais, que constam dos chamados “contratos de adesão”.
Para promover a proteção do consumidor, o legislador editou a lei prevista
no supramencionado art. 48 do ADCT – o Código de Defesa do Consumidor,
definindo diversas práticas abusivas.460
Os contratos de consumo, dos quais também fazem parte os contratos
bancários e seguros, dentre outros, que resultem dessas práticas são considerados
Dentre diversas outras práticas abusivas previstas por esse estatuto, estão as de “condicionar o
fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como,
sem justa causa, a limites quantitativos”; “enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação
prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço”; “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância
do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingirlhe seus produtos ou serviços”; “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva”;
“executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor”;
“colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas
expedidas pelos órgãos oficiais competentes”; “elevar sem justa causa o preço de produtos ou
serviços”; “aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido”.
(CDC, art. 39). O Código proscreve também a prática da publicidade enganosa, entendida como
tal “qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou
parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o
consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem,
preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços”. (CDC, 37, § 1º).
460
330
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
nulos, desonerando-se o consumidor de cumprir obrigações que não assumiu
através de uma manifestação autônoma de sua vontade.461
Outro instrumento também utilizado para promover a defesa do consumidor,
sobretudo na hipótese de “aumento arbitrário dos lucros”, é o controle de preços.
Por meio dele defende-se o consumidor quando o mecanismo de mercado não
funciona, inexistindo competição entre as empresas que atuam em determinado
setor. Cuida-se, contudo, de medida diferente daquelas propiciadas pela Lei de
Defesa da Concorrência, acima citada. Enquanto esta autoriza a atuação repressiva
do Estado, após a ocorrência das práticas abusivas; o controle de reajustes, o
tabelamento e o congelamento de preços constituem medidas que incidem
previamente ao seu advento, prevenindo a perpetuação do contexto lesivo.
Os doutrinadores Armando Castellar Pinheiro e Jairo Saddi advertem
sobre a importância da defesa ao consumidor no mercado financeiro,
principalmente no que tange ao mercado de crédito:
Em síntese, em função da especialidade dos bancos, se poderia dizer que
são três as razoes - ou justificativas - pelas quais o Estado regula o setor
Financeiro, como aqui descritas: a) Do ponto de vista do consumidor (e
cidadão, trata-se de protegê-lo do risco desmedido e, em especial, criar
uma rede de segurança para os poupadores que recorrem as instituições
financeiras [...].462
Neste diapasão, conclui-se pela necessidade de uma regulação no
mercado financeiro em prol da defesa do direito fundamental do consumidor.
4.6.3 DIREITO À LIVRE CONCORRÊNCIA
Liberdade econômica irrestrita leva a abusos e ocorrência de crises, não
obstante ideais liberais conceberem modelos de economia de mercado como
sistemas capazes de se autorregular e de se autoequilibrar.
São ainda declaradas nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas
ao fornecimento de produtos e serviços que “impossibilitem, exonerem ou atenuem a
responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou
impliquem renúncia ou disposição de direitos”, bem como as que “subtraiam ao consumidor a
opção de reembolso da quantia já paga” e as que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas,
abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com
a boa-fé ou a eqüidade” (CDC, art. 51). Estas são exemplos de cláusulas abusivas, ou leoninas,
com as quais o fornecedor muitas vezes visa se beneficiar em detrimento do consumidor,
sobretudo daquele que ostenta maior hipossuficiência.
462
PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005. p. 460.
461
331
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A acumulação de poder econômico facilita a capacidade de controlar
setores do mercado, no qual os empreendedores menos poderosos não
têm força para competir, sendo dele excluídos. A concorrência deixa de
existir, e a função de autorregulação dos mercados, que se exerce através
da competição entre os atores econômicos, deixa de ter lugar. Os preços
são fixados unilateralmente pelos detentores do poder econômico, que não
precisam reduzir seus preços, nem aumentar a qualidade dos produtos, para
que aumentem seus lucros. Os consumidores têm de se submeter às condições
que essas empresas fixam. O mecanismo de mercado, que legitima o sistema
capitalista, deixa de funcionar. Torna-se, então, necessária a intervenção
estatal, para garantir a “livre concorrência”.
O princípio está estabelecido no art. 170, inc. IV, da Constituição da
República Federativa de 1988. Encontra-se ainda reafirmado no § 4º do art.
173: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos
mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.
Por derradeiro, Armando Castellar Pinheiro e Jairo Saddi advertem sobre
a importância da defesa da livre concorrência no mercado financeiro, sobretudo
no setor bancário: “Do ponto de vista concorrencial, garantir que não haverá
competição predatória ou monopolística e que, na atividade bancária, os agentes
serão tratados de forma igual.”463
Não há que se falar em um mercado financeiro atrativo e uma regulação
legítima sem se falar em iguais condições de proteção contra abusos aos
operadores deste mercado.
4.6.4 DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE
“Todos são perante a lei...”. Umas das máximas mais importantes do
paradigma constitucional, presente no caput do art. 5° da Constituição da
República Federativa de 988,464 constitui coluna basilar de qualquer atividade
econômica, realizada no mercado financeiro ou não. O status de direito
fundamental à igualdade confere a garantia de que todos terão as mesmas
condições de operar no mercado nacional, sendo vedada qualquer discriminação,
ressalvadas as restrições de ordem constitucional.
PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005. p. 460.
464
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...]”
463
332
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
4.6.5 DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS SÓCIOS
Os direitos fundamentais dos sócios estão inseridos no ordenamento
jurídico-constitucional em vários ditames do art. 5° e se resumem basicamente
ao direito da liberdade de se associar465 e de não permanecer associado,466 ao
direito de propriedade467 sobre quotas ou ações em que se divide o capital social
e ao direito de informação.468 469 Este último talvez seja o mais importante, haja
vista a latente escassez de informação e assimetria entre os agentes econômicos,
inclusive no âmbito das sociedades empresárias, sejam elas agentes econômicos
do mercado financeiro ou não.
5. A REGULAÇÃO DO MERCADO FINACEIRO SOB O ENFOQUE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Ultrapassados os paradigmas constitucionais do Estado Social e o do
Estado Liberal, restou claro que seus erros foram maiores que os acertos,
fazendo-se necessário que uma nova realidade fosse apresentada. Neste sentido,
viu-se o erguimento da democracia sobre a égide do paradigma do Estado
Democrático de Direito, o qual possui no seu bojo grandes parcelas de ideais de
ambos os modelos, assentados de forma pacífica.
Os melhores anseios sociais e liberais residem neste paradigma, às vezes
de forma conflituosa, às vezes não. Mas, o fato é que ambos os paradigmas
anteriores trouxeram contribuições à ordem constitucional democrática
atual. O objeto do presente trabalho é uma contribuição do modelo liberal
ao paradigma atual. Trata-se do mercado financeiro, força pulsante das
economias de livre mercado.
Não obstante, devido à ideia de liberdade existente no mercado
financeiro, este mercado pode servir de local propício ao cometimento de
abusos. É no sentido de evitá-los que as agências reguladoras dos setores do
mercado financeiro devem atuar, sob pena de, na sua omissão, permitiremse danos consideráveis ordem econômica e social. Neste sentido, a atuação
das autoridades reguladoras deve ser pontual, de modo que elas próprias não
afrontem valores sociais constitucionalmente protegidos, pelo que, verifica-se
aí, a contribuição do modelo social ao paradigma atual.
“Art. 5°, inc. XVII - É plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter
paramilitar.”
466
“Art. 5°, inc. XX - Ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado.”
467
“Art. 5°, inc. XXII - é garantido o direito de propriedade.”
468
“Art. 5°, inc. XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte,
quando necessário ao exercício profissional.”
469
BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009. p. 57.
465
333
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
No que tange ao mercado financeiro e seu sistema, em sua redação
original, a Constituição da República de 1988 prefixou, nos incisos e parágrafos
do art. 192, o conteúdo da matéria concernente ao sistema financeiro nacional.
Não obstante, conferiu as regras deste à legislação complementar.
Fato é que o referido artigo foi alterado pela Emenda Constitucional n°
40, de 29 de maio de 2003, passando a apresentar a seguinte redação:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover
o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da
coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as
cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que
disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas
instituições que o integram.
Na oportunidade da alteração, foram revogados todos os incisos, alíenas
e parágrafos do artigo, subsistindo apenas o mandamento do caput, redigido
na forma supracitada. Sobre esta alteração promovida, o Professor Kildare
Gonçalves esclarece que:
Busca-se com a nova redação do artigo 192 viabilizar a aprovação de
leis estruturadoras do sistema financeiro nacional. Ao contrário do texto
anterior, que remetia tal regulamentação para lei complementar única,
o atual dispositivo constitucional possibilita que a tarefa regulamentar
se faça de modo fracionado, no conteúdo e no tempo, dando tratamento
separado aos diversos mercados que compõe o sistema financeiro.470
Diante da não edição da referida lei complementar, cabe às agências
reguladoras atuais adotar uma atuação eficaz e adequada, em prol da promoção
de um mercado cada vez mais atrativo e em prol de não se verem afrontados
direitos fundamentais daqueles que atuam ou são atingidos por este mercado.
Coaduna-se com o entendimento do Professor Kildare Gonçalves,
quando este atenta para a possibilidade de edição de várias leis complementares,
ocasionando a regulação fracionada do mercado financeiro. Ora, não são
poucas as relações econômicas e sociais que podem ser percebidas no mercado
financeiro. Seja em operações bancárias típicas, no mercado de valores
mobiliários ou através de contratos de seguros, cada relação surgida nestes
setores do mercado financeiro é uma nova chance de cometimento de abusos.
Tanto é assim que, como visto anteriormente, diversas são as instituições de
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição.
Direito Constitucional Positivo. 14 ed. rev. atual. amp. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 1.245.
470
334
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
regulação do mercado financeiro, cada uma no seu setor. Neste sentido, com
uma variada legislação complementar e, setorizada, se possível, acredita-se ser
possível conferir mais segurança às relações que ocorrem no seu bojo.
6. CONCLUSÃO
Desde o final da década de 1990471 até os dias atuais, o Sistema
Financeiro Nacional vem passando por diversas transformações, em grande
parte influenciadas pela difusão e globalização do mercado financeiro. Fato é
que, frente a mudanças estruturais, cabe aos órgãos reguladores atentarem para
o fortalecimento da solidez, eficiência e liquidez deste mercado, no intuito de
garantir a permanência daqueles que hoje nele operam e de atrair novos atores.
Não há que se falar em mercado eficiente sem se falar em responsabilidade
e segurança jurídica. As normas regulatórias do Sistema Financeiro Nacional,
sob pena de ineficácia, devem coadunar com o paradigma do Estado Democrático
de Direito, notadamente no que tange à garantia dos direitos fundamentais.
O Estado, enquanto ator, e o Direito, enquanto instrumento, são elementos
fundamentais para a regulação social, principalmente em negociações que
envolvem recursos próprios e de terceiros, como ocorre no mercado financeiro.
A interdependência entre o Estado e o Direito é essencial, ao passo que a
ausência de um ou de outro pode gerar prejuízos inestimáveis.
A regulação no mercado financeiro deve ser tal que estabeleça modelos
ideais para as situações já previstas e bases teóricas para aquelas inéditas,
mesmo que sejam impossíveis de serem previstas. Ou seja, em prol da segurança
jurídica, deverá a regulação do mercado financeiro ser a mesma em tempos de
crise e em tempos de calmaria. Deverá, ainda, capitular situações ocorridas e
estar receptivo a mudanças diante de novos fatos.
Ora, não poderia ser diferente. A questão é harmonizar as relações
financeiras, que são dinâmicas, com o Direito, que é estático, mas que deseja
ser sensível às todas as situações que se avizinham. Esta é uma das funções
precípuas do Direito: garantir a efetividade das ideias da ordem jurídicoconstitucional posta. Observado o mercado financeiro, em constante mudança,
gerando a necessidade de mudanças na ordem jurídica que o regula, evidenciase a importância da normatividade baseada nas garantias constitucionais.
Independentemente de qual seja a mudança ocorrida, seja no mercado
financeiro ou não, é certo que as autoridades competentes não podem se
esquivar de sua função regulatória, bem como devem dosar sua atuação ao
previsto constitucionalmente. Tanto a referida atuação quanto sua dosagem
Utiliza-se como ponto de partida a data do Acordo de Adequação de Capital da Basiléia I,
instituído em 1988.
471
335
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
terão sua adequação e legitimidade pautadas pela verificação e proteção aos
direitos fundamentais, sejam eles escritos ou não.
Com efeito, a regulação do mercado financeiro por parte do Estado472 será
eficiente se suas regras, frente às mudanças promovidas pela globalização, e
pela própria evolução da sociedade, trouxerem no seu bojo a proteção do direito
fundamental do qual for destinatário o agente econômico da negociação financeira.
Celeridade e liberdade: estes são os elementos que definem o mundo
contemporâneo. No que tange às relações financeiras, tais características
ficam mais evidentes. Cabe aos operadores do direito garantir que esta
celeridade e liberdade não decorram do enfraquecimento do Estado, enquanto
regulador, ou do Direito, enquanto instrumento. Caso seja verificado esse
enfraquecimento, estar-se-á possibilitando abusos e infrações, o que afastará
cada vez mais o mercado financeiro do ideal de eficiência e liquidez, e a
regulação da adequação e legitimidade.
Ressalta-se que a eficiência do mercado financeiro está intimamente
ligada à ideia de responsabilidade. No mesmo sentido, a regulação deste
mercado deve garantir essa eficiência através de uma atuação pautada na
observância dos direitos fundamentais, postos e não. Seja de forma voluntária,
por parte dos agentes, seja pela interferência pontual das autoridades
reguladoras, acredita-se que somente haverá legitimidade no mercado
financeiro e, consequentemente, eficácia e responsabilidade, se observados
sob a égide de uma leitura constitucionalizante.
472 Apesar de ter não sido objeto do presente artigo, reconhece-se a regulação dos mercados por
outras forças, como a moral, e não apenas pela intervenção estatal.
336
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
REFERÊNCIAS
ANDREZO, Andréia Fernandes; LIMA, Iran Siqueira. Mercado financeiro:
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339
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONSENSUAL: UMA NOVA TENDÊNCIA NOS
ACORDOS DE PARCERIA PARA PROMOVER TECNOLOGIA E INOVAÇÃO473
PUBLIC ADMINISTRATION CONSENSUAL: A NEW TREND IN
PARTNERSHIP AGREEMENTS TO PROMOTE INNOVATION AND TECHNOLOGY
Roberto Correia da Silva Gomes Caldas
Mestre e Doutor em Direito Público pela PUC/SP
Professor da PUC/SP
Advogado no Brasil e em Portugal
RESUMO
Rubia Carneiro Neves
Mestre e Doutora em Direito Comercial pela UFMG
Professora da Faculdade
de Direito da UFMG
O presente estudo verifica o contexto em que os acordos de parceria para
promover a tecnologia e inovação são influenciados pela atividade regulatória
administrativa concertada. Assim, define-se regulação, classificando-a e
diferençando-a de regulamentação de modo a, em seguida, observar-se a sinergia
envolvida no seu exercício consensual contratual, mediante as distintas parcerias
possíveis para os ajustes públicos em torno do fomento da tecnologia e inovação.
Palavras-Chave: Regulação administrativa concertada; Regulamentação;
Parcerias para tecnologia e inovação; Contratos administrativos.
ABSTRACT
This study evaluates the context in which the partnership agreements
to promote technology and innovation are influenced by administrative
concerted regulatory activity. Thus, we define regulation, classifying it and
explaining its different levels in order to observe the synergy involved in
the exercise of concerted covenant by the different possible partnerships
for public settings around the promotion of technology and innovation.
Keywords: Administrative concerted regulation; Partnerships for
technology and innovation; Administrative contracts.
O presente estudo apresenta-se como uma fusão das idéias contidas em trabalhos dos autores
já publicados, com as necessárias revisão, atualização e ampliação, de sorte a ter-se profícua
interdisciplinaridade entre o Direito Empresarial e o Direito Administrativo na área de fomento
da tecnologia e inovação.
473
341
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Definição de regulação, classificação e sua
diferenciação de regulamentação – 3. Atividade regulatória administrativa
e o seu exercício sinérgico – 3.1. O contexto do exercício sinérgicopactual – 3.2. As premissas de regulação administrativo-econômica
concertada sinérgica – 4. Regulação administrativa pactual concertada
e o contexto associativo dos denominados contratos administrativos
– 4.1. O contexto associativo dos “contratos administrativos” e a
atividade regulatória administrativa pactual concertada – 5. A regulação
administrativa pactual concertada e o acordo de parceria para a promoção
da tecnologia e inovação – 6. Conclusões – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O estudo em tela objetiva, em primeiro lugar, definir e classificar
regulação administrativa, diferenciando-a de regulamentação nos ajustes com
o Estado, para verificar seu conceito concertado (consensual), e exercício
sinérgico-associativo neste âmbito, ou seja, quais os modos negociados de se
regrar as forças dos agentes envolvidos nos pactos administrativos, capazes de
contribuir para a potenciação das prestações de serviços públicos, precedidas
ou não de obras, de sorte a estas apresentarem a maior adequação possível aos
interesses públicos por si versados.
Para tanto, o estudo da regulação administrativa concertada que aqui se
cuida toma em consideração o modelo teórico trazido da doutrina francesa sobre
o contrato administrativo474, vez que encerra um corte metodológico que permite
uma análise clara sobre os vários atos (a serem regulados) que o compõem.
Em segundo lugar, o estudo pretende demonstrar como a aplicação
dessa teoria está condizente com o modelo de Estado Democrático de Direito
adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e como
pode viabilizar uma maior eficiência na celebração de acordos de parcerias que
visem à promoção da tecnologia e inovação.
E para desenvolver-se essa reflexão, utilizou-se da vertente teóricojurídica, pois o trabalho também se apoiou na revisão bibliográfica para
apresentar a hodierna teoria de regulação concertada e defender as teorias
do Estado Democrático de Direito, do Capitalismo à luz da função social do
contrato, principalmente o administrativo quando havido enquanto instrumento
de concreção de políticas públicas. A dogmática também esteve presente no
A respeito, vide MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios..., vol. I – Introdução,
3ª ed., 2007, p. 671-673; et “Contrato de direito público ou administrativo”. Revista de direito
administrativo. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, nº 88, abr./jun. de 1967, itens “16” e “17”.
474
342
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
desenvolvimento do trabalho, já que a estrutura do ordenamento jurídico e
alguns dispositivos constitucionais (e legais) foram objetos da reflexão.
Com isso, além desta introdução, da conclusão e das referências, o
trabalho foi dividido em cinco partes, sendo que na primeira, abordou-se
a respeito da definição de regulação, sua classificação e sua diferenciação
de regulamentação; na segunda, examinou-se sobre a atividade regulatória
administrativa e o seu exercício sinérgico; na quarta parte, analisou-se a
regulação administrativa pactual concertada e o contexto associativo dos
denominados contratos administrativos; na quinta parte, tratou-se a respeito das
implicações da regulação administrativa pactual concertada sobre o acordo de
parceria celebrado para promover a tecnologia e inovação.
Assim, postas tais considerações preambulares, inicia-se a apresentação
da primeira parte.
2. DEFINIÇÃO DE REGULAÇÃO, CLASSIFICAÇÃO E SUA DIFERENCIAÇÃO DE
REGULAMENTAÇÃO
A diferenciação entre regulação administrativa e regulamentação
aplicada aos chamados contratos administrativos (ato regulamentar) não é
apenas terminológica475.
No diapasão dessa premissa supra-estabelecida, entende-se por regulação
administrativa a atividade em exercício de função administrativa que conforma
a atividade particular aos interesses públicos, englobando o conjunto das normas
jurídicas (de modo geral) e controles administrativos476, divergindo do que se
tem por auto-regulação477.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que a regulação administrativa
A respeito do conceito de regulação e as várias acepções em que empregue o vocábulo, vide
ALMEIDA, Fernando Dias Menezes. “Teoria da regulação”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins
et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ,
João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros
Editores, vol. III, 2006, p. 119 e 123.
476
Vide QUEIROZ, João Eduardo Lopes. “Principais aspectos jurídicos da privatização”.
In: CARDOZO, José Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico.
CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia
Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. III, 2006, p. 80. Sobre o
sentido mais abrangente das atividades regulatórias, tem-se MEDAUAR, Odete. “Regulação e
auto-regulação”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Renovar, nº 228, abr./jun. de
2002, p. 123-128, especificamente p. 124-127.
477
Segundo ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. “Teoria da regulação”. In: CARDOZO, José
Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO, José Eduardo
Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São
Paulo : Malheiros Editores, vol. III, 2006, p. 127.
475
343
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
alcança as atividades de certo conteúdo econômico, quer de ordem pública,
quer de ordem privada, como também as atividades sociais (traz regras de
conduta e controle, bem como a proteção de interesses públicos mediante uma
organização econômico-social478).
Edmir Netto de Araújo distingue a atividade de regulação administrativa
da de regulamentação, afirmando que a primeira, genericamente, contém a
segunda, pois regramento geral para submissão às leis – cunho normatizador geral
–, enquanto que regumentação encerra maior especificidade, principalmente
quanto à competência e ao modo de tratamento da matéria versada479.
A par de tais orientações, nos ajustes públicos, as atividades de
regulação administrativa são as limitações aos direitos de propriedade e de
liberdade (“poder de polícia”, ou como também dito nesse setor por Maria
Sylvia Zanella Di Pietro, regulação propriamente dita480), pautando o agir
privado em decorrência direta da lei (supremacia geral da Administração),
enquanto que as atividades regulamentares decorrem diretamente desse
vínculo jurídico específico (manifestação da chamada supremacia especial
ou relação especial de sujeição481). As ações regulatórias pactuais, salientese, estão também diretamente voltadas à implementação e concretização das
políticas públicas setoriais482.
É de se ponderar que as agências reguladoras, segundo sua atual
conformação jurídica, exercem ambas as atividades (regulação administrativa e
regulamentação) no âmbito dos pactos públicos483.
Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria
público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005, p. 205-206.
479
“A aparente autonomia das agências reguladoras”. In: MORAES, Alexandre et alii. Agências
reguladoras. MORAES, Alexandre de (Org.). São Paulo : Atlas, 2002, p. 41.
480
Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria
público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005, p. 193.
481
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo : Malheiros
Editores, 25ª ed., 2007, item “15” e nota de rodapé nº 18, p. 344-345.
482
SOUTO, Marcos Juruena Villela. “Agências reguladoras e entidades similares”. In: CARDOZO,
José Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO, José Eduardo
Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São
Paulo : Malheiros Editores, vol. III, 2006, p. 374; MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo.
Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo : Malheiros Editores, 2002, p. 204; FREITAS,
Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo : Malheiros
Editores, 4ª ed., 2009, p. 353; e AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. “Observações sobre agências
reguladoras de serviço público”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Fundação
Getúlio Vargas, nº 231, jan./mar. de 2003, p. 2.
483
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão,
permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas,
5ª ed., 2005, p. 192-193.
478
344
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Dinorá Adelaide Musetti Grotti484, ao comentar sobre as agências setoriais de
regulação administrativa, afirma exercerem amplo “poder normativo” (deverpoder de fiel execução da lei, na dicção constitucional do art. 84, IV), havido de
várias legislações, junto com o fiscalizatório, sancionatório e de dirimição de
conflitos, vendo uma tripla regulação, qual seja, a “regulação de monopólios”
(minimizadora dos efeitos das forças setoriais de mercado), a “regulação para a
competição” (que busca a manutenção da concorrência) e a “regulação social”
(a qual visa à universalização dos serviços).
3. ATIVIDADE REGULATÓRIA E O SEU EXERCÍCIO SINÉRGICO
3.1 O CONTEXTO DO EXERCÍCIO SINÉRGICO-PACTUAL
O intuito de parceria nos ditos contratos administrativos é uma maior
repartição e melhor distribuição dos riscos envolvidos nos empreendimentos485,
a impor a necessidade de um normatizar preciso e permanente, que estabeleça
seu conteúdo, amplitude e modo de expressão, inclusive como forma de
imprimir maior diálogo e garantia de segurança nos referidos ajustes (regulação
administrativa pactual concertada)486.
À luz dessa necessidade de precisão e permanência inerente ao regramento
geral da regulação administrativa voltada à atividade pactual, põe-se que se sigam
alguns princípios básicos para não se ter problemas quando do seu exercício
sinérgico (e harmônico, de conseqüência), cuja ênfase e incentivo ao diálogo,
consenso e associação487 é que lhe cunha o conceito de regulação administrativa
484
“A arbitragem e a administração pública”. In: PUCCI, Adriana Noemi et alii. Novos rumos
da arbitragem no Brasil. GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida (Coord.). São Paulo
: Fiuza Editores, 2004, p. 158-159. Nessa mesma linha: AMARAL, Antônio Carlos Cintra do.
“Observações sobre agências reguladoras de serviço público”. Revista de direito administrativo. Rio
de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, nº 231, jan./mar. de 2003, p. 2.
485 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Políticas públicas e parcerias: juridicidade,
flexibilidade negocial e tipicidade na administração negocial”. BLC - Boletim de licitação e
contratos. São Paulo : NDJ – Nova Dimensão Jurídica, ano 21, nº 1, janeiro de 2008, p. 39.
486
Nesse contexto, é de se dissociar a idéia de regulação como exclusiva da atividade desempenhada
pelas agências regulatórias, conforme já salientado por Juarez Freitas [“Parcerias público-privadas
(PPPs): natureza jurídica”..., p. 701, nota de rodapé nº 35], sendo mais apropriado seu tratamento,
sua disciplina em uma Lei específica e própria, que fixe as normas regulatórias gerais.
487
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo : Dialética,
2003, p. 61; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão,
permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª
ed., 2005, p. 111; e FREITAS, Juarez. “Parcerias público-privadas (PPPs): natureza jurídica”. In:
CARDOZO, José Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO,
José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos
(Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. I, 2006, p. 715.
345
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
concertada, redutora, por excelência, dos riscos havidos nos pactuados públicos.
A regulação administrativa concertada, em seu sentido lato, tem sido
referida pela hodierna expressão “governança”, segundo uma transposição
conceitual da dita “governança corporativa”, em âmbito local, regional, nacional
e internacional (“global governance”), externando a idéia de um método ou
mecanismo de regulação de conflitos ou problemas, mediante a obtenção de
soluções mutuamente satisfatórias e vinculantes aos pólos de atuação, segundo
negociação ou cooperação, pois que nenhum deles se revela independente o
suficiente para impô-las e também, de outro lado, para delas poder prescindir488.
Assim, a regulação administrativa, para as relações ditas contratualadministrativas (no âmbito dos chamados contratos administrativos e entre
as prestadoras de serviços públicos489), é indelegável, pois obrigatória (deverpoder da Administração), sendo voltada à organização econômico-social e ao
estabelecimento de regras de conduta e controle.
A expressão “regulação” tem sido utilizada para designar um direito
elaborado pelas agências, haurido de modo negociado entre o Estado e o
particular interessado (malgrado pouco desenvolvido no Brasil), revelando a
substituição da tradicional regulação estatal pelas “regulações sociais”490.
Assim, Juarez Freitas afirma que regulação é tarefa, dever de Estado
e não de governo, independente, autônomo e duradouro, sem favoritismos,
partidarismos ou tendências governamentais, sendo vista como a tarefa magna
das agências regulatórias491.
Ante esse contexto regulatório estatal (e não simplesmente
governamental), calha ter-se que as atividades regulatórias não devem ser
desempenhadas conjuntamente com as de Poder contratante, regulamentares;
CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Traduzido por Marçal Justen Filho. Belo
Horizonte : Fórum, 2009, p. 273-277.
489
MODESTO, Paulo. “Reforma do estado, formas de prestação de serviços ao público e
parcerias público-privadas: demarcando as fronteiras dos conceitos de ‘serviço público’,
‘serviços de relevância pública’ e ‘serviços de exploração econômica’ para as parcerias
público-privadas”. In: SUNDFELD, Carlos Ari et alii. Parcerias público-privadas.
SUNDFELD, Carlos Ari. (Coord.). São Paulo : Malheiros Editores, 2005, p. 469-470. DI
PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão,
franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed.,
2005, p. 192-193.
490
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão,
franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005,, p.
204. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo : Malheiros Editores,
4ª ed., 2002, p. 131.
491
“Parcerias público-privadas (PPPs): natureza jurídica”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins
et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ,
João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros
Editores, vol. I, 2006, p. 715. Idem. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais.
São Paulo : Malheiros Editores, 4ª ed., 2009, p. 264-269 e 349-354.
488
346
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
regulador deve ser apenas regulador, e não também contratante.
De conseguinte, as agências regulatórias, no modelo legal brasileiro do século
XXI, possuem apenas autonomia nominal. A solução seria a criação da carreira
de agente regulador dentro da Administração, inclusive quanto às autarquias492,
de sorte a alcançar-se a sinergia não apenas entre o Estado e o particular, mas
também entre os reguladores, o que ainda precisa ser desenvolvido493.
E uma outra maneira para tal sinergia ocorrer entre os reguladores
(agências regulatórias, Tribunais de Contas e controladores internos, v. g.)
e entre eles e os demais pólos de atuação nos pactos administrativos, é a
intensificação da participação popular e do controle social na regulação (com
maior cidadania ativa a ser desenhada como condição de validade no processo da
atividade regulatória concertada), mediante, e. g., os novos mecanismos, além
dos tradicionais de consultas e audiências públicas (sob pena de nulidade)494,
trazidos pelo art. 48, da Lei Complementar nº 101/2000, consoante as alterações
da Lei Complementar nº 131/2009.
É a idéia do diálogo, e não da imposição, que se deve ter nos denominados
contratos entre o Estado e os particulares, à luz de uma regulação impregnada
das noções de Administração concertada495 e segundo princípios específicos de
atuação. Daí, a noção de regulação administrativa pactual concertada, a qual
de forma alguma elimina ou mitiga o poder de a Administração impor, em última
hipótese, a organização econômico-social e as medidas de conduta e controle
para a fiscalização, solução de conflitos e repressão de posturas indesejáveis
SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. I, 2006, p.
. Idem. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo : Malheiros
Editores, 4ª ed., 2009,, p. 261-264.
493
SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. I, 2006, p.
715. Idem. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo : Malheiros
Editores, 4ª ed., 2009,, p. 261 e 263. Como exemplo da falta de sinergia entre os reguladores vide:
SUNDFELD, Carlos Ari; CAMPOS, Rodrigo Pinto de. “Conflito de competências regulatórias
entre entes federativos: o caso do gás natural liquefeito”. Interesse público. Sapucaia do Sul (Grande
Porto Alegre) : Notadez, ano 8, nº 37, mai./jun. de 2006, p. 13-27.
494
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo
: Malheiros Editores, 4ª ed., 2009, p. 358, item “IV”. Sobre as audiências públicas e seu regime
jurídico, ver: MENCIO, Mariana. Regime jurídico da audiência pública na gestão democrática das
cidades. Belo Horizonte : Fórum, 2007.
495
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Novos institutos consensuais da ação administrativa”.
Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, nº 231, jan./mar. de
2003, p. 146. Nesse mesmo diapasão, sobre a necessidade das empresas e organizações nãogovernamentais em geral tomarem a iniciativa e assumirem algumas funções governamentais para
a solução de problemas comuns à sociedade, vide HEIDEMANN, Francisco G. “Do sonho do
progresso às políticas de desenvolvimento”. In: HEIDEMANN, Francisco G. et alii. Políticas públicas
e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. HEIDEMANN, Francisco G.; SALM,
José Francisco (Org.). Brasília : Editora Universidade de Brasília - UnB, 1ª ed., 2009, p. 32-33.
492
715
347
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
(expressão da supremacia geral).
E, diante destas prerrogativas regulatórias, tem-se como pontos cardeais
da ação governamental de regulação administrativa concertada (dita
também governança em âmbito nacional, interno496), não apenas a redução de
regulação e encargos administrativos desnecessários, como também a certeza
de que ela e seu exercício sejam proporcionais497, com “accountability”498,
consistência (dita também coerência)499, transparência500 (“discloure”) e
focalização (dita também foco, orientação ou segmentação)501. São estes, os
cinco princípios a serem seguidos pelos reguladores públicos para uma boa
atividade regulatória administrativa concertada (“good governance”), segundo
a conceituada entidade internacional, “The Better Regulation Commission”502.
CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Traduzido por Marçal Justen Filho. Belo
Horizonte : Fórum, 2009, p. 275.
497
Significa a intervenção, quando e na medida do necessário. Implica dizer que outras opções
devem ser cogitadas a fim de se obterem menos custos em relação aos riscos envolvidos, dando-se
preferência por educar em vez de sancionar (Better Regulation Task Force. “Principles of Good
Regulation”. Disponível em: <http://archive.cabinetoffice.gov.uk/brc/publications/principlesentry.
html>. Acesso em 03/06/09). A proporcionalidade, em última análise, no âmbito regulatório é um
fator modulador de riscos.
498
Esse princípio encerra a significação de que as propostas regulatórias, quando apresentadas,
devem ser tornadas públicas e, antes de qualquer coisa, com os afetados sendo consultados das
decisões a serem tomadas, submetendo-se-as a prévio exame público (decisões as quais, diga-se
de passagem, devem ser sempre justificadas) (Ibidem). Em relação à expressão accountability,
optou-se por não traduzi-la em acolhimento ao entendimento também sufragado por Francisco
G. Heidemann, quando da tradução de texto em inglês a respeito. Com efeito, corretamente
esclareceu em nota que, “Em virtude da dificuldade de se encontrar uma palavra ou uma expressão
em português que encerre a enorme amplitude conceitual contida no termo accountability – isto
é, que traduza seu sentido genérico –, o tradutor preferiu manter intraduzida a palavra inglesa,
em sua acepção ampla, na versão em português. O significado da palavra accountability, no
entanto, pode ser contextual, pontual e especificamente apreendido, entre outras, pelas seguintes
palavras: responsabilidade, prestação de contas, satisfação, explicação, atendimento. Nas poucas
vezes em que se traduziu accountability nesta versão, a palavra portuguesa a que se recorreu está
grafada em itálico. Pode-se, portanto, concluir que accountability diz respeito, genericamente, a
alguma forma de prestação de contas ou de satisfação a detentores de expectativas diversas” (Nota
de tradução. In: ETZIONI, Amitai. “Concepções alternativas de accountability: o exemplo da
gestão da saúde”. Tradução de Francisco G. Heidemann. In: HEIDEMANN, Francisco G. et alii.
Políticas públicas..., p. 287-288).
499
A implementação das medidas deve ser firme, precisa e coerente para não haver qualquer
contradição (Better Regulation Task Force. “Principles of Good Regulation”. Disponível em:
<http://archive. cabinetoffice.gov.uk/brc/publications/principlesentry.html>. Acesso em
03/06/09).
500
As regulações devem ser abertas e mantidas de forma simples e amigável (Ibidem).
501
Os objetivos devem ser bem traçados e direcionados com foco ao problema a ser enfrentado,
sempre com metas pactuadas, é claro (Ibidem).
502
The Better Regulation Commission, Cabinet Office. “Five Principles of Good Regulation”.
496
348
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A estes princípios, somam-se os da conformidade no cumprimento das normas
regulatórias (dito “compliance”) e do senso de justiça no seu desempenho
(designado “fairness”)503.
Cumpre registrar que todos esses princípios se encontram, de certo modo,
em maior ou menor grau de intensidade, influenciando o direito fundamental
do cidadão à boa administração pública, elevado por alguns ao patamar de
princípio de Direito Administrativo (do qual o princípio da eficiência seria uma
faceta), de sorte a significar uma atividade administrativa mais convergente,
congruente, oportuna e adequada aos fins legais (sempre de interesse público),
por meios e ocasiões melhores para tanto, sendo sua observância vinculante
quando do exercício de competência discricionária.
3.2 AS PREMISSAS DE REGULAÇÃO
CONCERTADA E SEU EXERCÍCIO SINÉRGICO
ADMINISTRATIVO-ECONÔMICA
Charles W. Eliot504, respeitável professor da Universidade de Harvard,
analisando o modelo público norte-americano de regulação econômica, oferece
outros fundamentos aplicáveis genericamente para uma nova ordem regulatória.
Observa existir um conjunto do que chama de seis princípios, havido enquanto
propriedades desejáveis a qualquer regime regulatório505.
Dentre seus princípios estão os cuidados necessários para se evitar a cooptação
dos reguladores pelo setor regulado. Igualmente ressalta que a promoção da
auto-regulação se revela como forma de regulação, cujos próprios modelos irão
mensurar os níveis dos riscos de capitais nos empreendimentos, com o controle
estatal podendo se dar com base nos balanços apresentados pelas empresas506.
Disponível em:<http://archive.cabinetoffice.gov.uk/brc/upload/assets/www.brc.gov.uk/principles.
pdf>. Acesso em: 03/06/09. Vide também a respeito: BOURN, John. “O papel do Grupo de
Trabalho de Privatização da Intosai e a responsabilização dos entes reguladores no Reino Unido”.
Revista do TCU. Brasília : TCU, ano 36, nº 104, abr./jun. 2005, p. 17-22.
503
ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal. Governança Corporativa: fundamentos,
desenvolvimento e tendências. São Paulo : Atlas, 4ª ed., 2009, p. 562.
504
“Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times –
ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em <http://www.ft.com/
cms/s/6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658,Authorised=false.html?_i_location=http
%3A%2F%2Fwww.ft.com%2Fcms%2Fs%2F0%2F6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658.
html%3Fnclick _check%3D1&_i_referer=&nclick_check=1>. Acesso em 03/06/09.
505
“Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times –
ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em <http://www.ft.com/
cms/s/6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658,Authorised=false.html?_i_location=http
%3A%2F%2Fwww.ft.com%2Fcms%2Fs%2F0%2F6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658.
html%3Fnclick _check%3D1&_i_referer=&nclick_check=1>. Acesso em 03/06/09.; tradução livre.
“Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times –
506
349
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Em terceiro lugar, pondera que a regulação deve ter por premissa a
incapacidade das instituições, ou dos seus reguladores, em prever as condições
do mercado futuro com muita confiabilidade. Afirma que, em vez de avaliarem
onde e quando irá ocorrer a próxima crise, os reguladores têm de tentar garantir
a resiliência, a flexibilidade do sistema com relação aos choques econômicos ou
problemas em qualquer setor ou instituição507.
Observa, ainda, que o foco da regulamentação deve deslocar-se das
práticas de prudente supervisão das instituições para a saúde do sistema
financeiro, como também que qualquer regime regulatório deve abordar, de
forma realista, os riscos decorrentes das atividades bancárias paralelas508.
Por fim, ensina que a política regulatória deve, o máximo possível, criar
uma situação em que a falha de um indivíduo não é, em si mesma, fonte de
risco sistêmico, sendo apenas desta forma possível a contenção dos perigos
associados ao apoio governamental para as crises econômico-financeiras509.
Entende-se, diante do acima apreciado, que tais premissas foram, de certa
maneira, abarcadas pelo novo plano de regulação administrativo-econômica
lançado nos Estados Unidos da América para se contornar a crise mundial
setorial que lá teve seu início em 2008, dando-se reforço a um atuar sinérgico e
potencializador do diálogo consensual nas avenças, inclusive e principalmente
com o Estado.
O programa de regulação administrativo-econômica norte-americano
envolve, ressalte-se, além dos bancos, as seguradoras, empresas do setor de
crédito e gigantes das áreas industrial e comercial, prevendo para o Governo mais
poderes de intervenção no mercado (inclusive com autoridade para a assumpção
ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em <http://www.ft.com/
cms/s/6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658,Authorised=false.html?_i_location=http
%3A%2F%2Fwww.ft.com%2Fcms%2Fs%2F0%2F6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658.
html%3Fnclick _check%3D1&_i_referer=&nclick_check=1>. Acesso em 03/06/09.; tradução livre.
507
“Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times –
ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em <http://www.ft.com/
cms/s/6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658,Authorised=false.html?_i_location=http
%3A%2F%2Fwww.ft.com%2Fcms%2Fs%2F0%2F6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658.
html%3Fnclick _check%3D1&_i_referer=&nclick_check=1>. Acesso em 03/06/09.; tradução livre.
508
“Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times –
ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em <http://www.ft.com/
cms/s/6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658,Authorised=false.html?_i_location=http
%3A%2F%2Fwww.ft.com%2Fcms%2Fs%2F0%2F6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658.
html%3Fnclick _check%3D1&_i_referer=&nclick_check=1>. Acesso em 03/06/09.; tradução livre.
509
“Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times –
ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em <http://www.ft.com/
cms/s/6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658,Authorised=false.html?_i_location=http
%3A%2F%2Fwww.ft.com%2Fcms%2Fs%2F0%2F6e0613d4-2fef-11dd-86cc-000077b07658.
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350
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
de empresas consideradas “grandes demais para cair”, ou seja, de significativo
impacto negativo para a Economia global) e maior proteção aos consumidores
de produtos financeiros (como, e. g., empréstimos ao consumo de bens móveis e
imóveis, ou para o incentivo ao ensino, inclusive via cartões de crédito)510.
Saliente-se, todavia, que dentre os pontos em que se funda esse programa
norte-americano, destaca-se não apenas essa maior proteção aos consumidores de
produtos financeiros e esses outros poderes de intervenção no mercado, mas também
a introdução de mais transparência nas transações financeiras, seguida da necessidade
de aumento de capital nos bancos (para que resistam a novas crises) e do controle das
chamadas “operações exóticas” com derivativos e outros instrumentos511.
Outro elemento importante desse pacote é que os bancos e instituições
que atuarem no mercado de securitização de dívidas terão que ficar com
pelo menos 5% (cinco por cento) dos títulos constitutivos de tais transações,
obrigando-se-os à assumpção de uma parcela dos seus riscos, o que os leva a
serem mais conservadores512.
Depois, em paralelo ao programa norte-americano, na Europa se tem,
como esforço para se contornar a crise econômico-financeira mundial surgida
em 2008 (e se prevenir de futuras outras), não só a terceira análise estratégica
do programa “The Better Regulation” na União Européia (a terceira revisão
das Diretrizes Regulatórias), conduzida pela Comissão das Comunidades
Européias513, mas, ainda, o novo plano de regulação administrativo-financeiro,
malgrado nascido em meio a críticas austeras quanto à sua possível efetividade.
Com efeito, o principal ponto do plano europeu, votado para vigorar no
ano de 2010, é a criação do Comitê Europeu do Risco Sistêmico [por meio do
Regulamento (UE) n. 1092/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de
novembro de 2010, relativo à supervisão macroprudencial do sistema financeiro
na União Europeia] com poderes para Recomendações junto aos Governos dos
27 (vinte e sete) países da União Européia (e. g., a sua Recomendação, de 22
CANZIAN, Fernando. “Obama lança maior regulação desde anos 30”. Folha de S. Paulo Dinheiro, São Paulo, quinta-feira, 18 de junho de 2009. Disponível em <http://www1.folha.uol.
com.br/fsp/ dinheiro/fi1806200915.htm>. Acesso em 20/06/09.
511
CANZIAN, Fernando. “Obama lança maior regulação desde anos 30”. Folha de S. Paulo Dinheiro, São Paulo, quinta-feira, 18 de junho de 2009. Disponível em <http://www1.folha.uol.
com.br/fsp/ dinheiro/fi1806200915.htm>. Acesso em 20/06/09..
512
CANZIAN, Fernando. “Obama lança maior regulação desde anos 30”. Folha de S. Paulo Dinheiro, São Paulo, quinta-feira, 18 de junho de 2009. Disponível em <http://www1.folha.uol.
com.br/fsp/ dinheiro/fi1806200915.htm>. Acesso em 20/06/09..
513
Disponível em <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2009:0015:FI
N:PT:PDF>. Acesso em 03/06/09. O atuar do programa “The Better Regulation”, conduzido pela
Comissão das Comunidades Européias, tem por escopo a adoção da regulação apenas “...quando
necessário, da forma mais simples possível, com base num diálogo com os interessados e limitando ao
mínimo os encargos para as empresas e os cidadãos” (Ibidem).
510
351
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
de dezembro de 2011, relativa ao mandato macroprudencial das autoridades
nacionais514), sem, contudo, proceder à implementação, à concreção direta
das políticas públicas do setor econômico-financeiro, conforme exigência
anteriormente trazida pelo Reino Unido515.
Igualmente, entre outros pontos, ressai importante observar que haverá
um sistema de agências de fiscalização financeira (para bancos, Bolsas e
seguros), a fixar padrões comuns, reforçar a cooperação entre reguladores
nacionais e supervisionar as agências de qualificação de risco516.
As críticas existentes a esse plano europeu de combate à crise econômicofinanceira são traduzidas na possibilidade de o conselho sistêmico não vir a ter
o poder suficiente para regular e influenciar as autoridades nacionais quanto às
medidas necessárias a serem implementadas517.
4. REGULAÇÃO ADMINISTRATIVA PACTUAL CONCERTADA E O CONTEXTO
ASSOCIATIVO DOS DENOMINADOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS
A esta altura, depois de estabelecer-se a conjuntura da atividade regulatória
concertada havida como adequada para melhor explorar o seu exercício
sinérgico nos ajustes com o Estado, cumpre que agora se passe à análise da
relação associativa que a regulação administrativa pactual concertada com eles
trava, definindo-se quais os pólos de atuação neles verificados (reguladores,
particulares, usuários e Estado) e as formas pelas quais os influencia ou pode
influenciar o desempenho das atividades a eles inerentes (inclusive com auxílio
da participação popular e do controle).
No diapasão dessas idéias, toma-se, para efeitos meramente didáticos,
como modelo de análise dos chamados contratos administrativos, o de
origem gaulesa, cuja exposição dos atos que os compõem permite analisálos de modo muito mais claro e preciso à luz da regulação que a eles se
possa pretender aplicar518.
Disponível em <http://www.esrb.europa.eu/pub/pdf/recommendations/2011/ESRB_2011_3.
pt.pdf?9c6350e762569571b80f868fcf403830>. Acesso em 07/05/12.
515
“Plano de regulação na UE nasce sob críticas”. Folha de S. Paulo - Dinheiro. São Paulo, sábado,
20 de junho de 2009. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2006200911.
htm>. Acesso em 20/06/09.
516
“Plano de regulação na UE nasce sob críticas”. Folha de S. Paulo - Dinheiro. São Paulo, sábado,
20 de junho de 2009. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2006200911.
htm>. Acesso em 20/06/09.
517
“Plano de regulação na UE nasce sob críticas”. Folha de S. Paulo - Dinheiro. São Paulo, sábado,
20 de junho de 2009. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2006200911.
htm>. Acesso em 20/06/09.
518
Vide, a respeito: MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito
administrativo. Rio de Janeiro : Forense, v. I – Introdução, 3ª ed., 2007, p. 689-690; et “Contrato
514
352
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
4.1. O CONTEXTO ASSOCIATIVO DOS “CONTRATOS ADMINISTRATIVOS” E A
ATIVIDADE REGULATÓRIA ADMINISTRATIVA PACTUAL CONCERTADA
À luz dessas ponderações, nos denominados contratos administrativos,
embora uma de suas características primordiais ainda seja claramente o ius
variandi (expressão da supremacia especial), é preciso se ver a coexistência de
outras preocupações e eles relacionadas dentro de um espírito de cooperação
(e. g., de defesa dos interesses dos usuários e consumidores519, ou da nova
concepção de boa-fé), dando-lhes o tom associativo no cumprimento do dever
de constante negociação de soluções construtivas e eqüitativas para as crises e
dificuldades havidas durante sua execução520.
Entre as características mais recentes dos pactos entre os particulares e o
Estado, há o fato de outros organismos, inclusive com participação da sociedade
civil, também exercerem a mesma atividade de acompanhamento, controle e
fiscalização do cumprimento das obrigações “contratuais”, em concomitância
à realizada diretamente pela “Administração-acordante” (é o caso dos órgãos
ou entes reguladores, colegiados ou não, com tais atribuições legais específicas
como, e. g., o Comitê Gestor das Parcerias Público-privadas – CGP, os conselhos
deliberativos, as agências reguladoras de serviços públicos, etc.)521, além de que
também ao “particular-acordante” é dada maior flexibilidade e liberdade de
atuação para a prestação dos serviços ou realização das obras públicos522.
de direito público ou administrativo”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Fundação
Getúlio Vargas, nº 88, abr./jun. de 1967, p. 31. Curso..., 20ª ed., itens “16” e “17”, p. 582.
519
Themistocles Brandão Cavalcanti, pelo menos desde a década de 1930, em seu Instituições
de direito administrativo, via a possibilidade de utilização do ius variandi, por si dito jus imperii,
nos ditos contratos de direito público (assim chamados por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello),
como também uma forma de defesa dos interesses dos usuários e consumidores, em claro
prenúncio ao conceito do que neste estudo acoima-se de regulação administrativa pactual
concertada (Parecer. In: SILVA, Nelson Rodrigues. Concessão, tarifa, interesse público. São Paulo :
Prefeitura do Município de São Paulo, 1945, p. 457).
520
Sobre a questão da boa-fé nas avenças públicas vide: WALD, Arnoldo. “Novas tendências do
direito administrativo: a flexibilidade no mundo da incerteza”. Revista de direito administrativo.
Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, nº 202, out./dez. de 1995, p. 46; FREITAS, Juarez.
“Parcerias público-privadas (PPPs): natureza jurídica”..., p. 733.
521
A postura doutrinária de Juarez Freitas a respeito da relação jurídica complexa e plurilateral
em que se consubstancia não apenas as parcerias público-privadas, mas também as concessões
públicas e os ditos contratos administrativos [“Parcerias público-privadas (PPPs): natureza
jurídica”..., p. 715], é a que se adota, com o reconhecimento de quatro pólos de atuação com uma
trilateralidade funcional (os atos regulatórios – envolvendo a regulamentação e fiscalização –, os
atos de prestação dos serviços e os atos praticados pelos usuários ao se beneficiarem dos serviços).
522
WALD, Arnoldo. “Novas tendências do direito administrativo: a flexibilidade no mundo
da incerteza”..., p. 44; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Políticas públicas e parcerias:
juridicidade, flexibilidade negocial e tipicidade na administração negocial”. BLC - Boletim de licitação
353
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Tais situações surgiram como conseqüência do processo transformador
contemporâneo do figurar estatal, deixando-se cada vez mais de lado a atividade
regulatória operacional para se adotar a regulatória normativa523, exsurgindo
a trilateralidade funcional (atividade regulatória, atividade prestadora e
atividade de fruição das prestações, com os deveres e direitos delas efluentes)
da relação jurídica complexa em que consubstanciadas as avenças com o Estado
e os particulares, com quatro evidentes pólos de atuação nessa relação
(“Estado-acordante”, “particular-acordante”, usuário e o regulador autônomo).
A grande novidade que desponta nesse novo ato unilateral nos ajustes
com o Estado, não é, como se pode ver, a introdução de atos formuladores de
políticas públicas setoriais específicas, mas, repita-se em outras palavras, os atos
regulamentares que passam a ser praticados não apenas pela “Administraçãoacordante”, mas também por órgãos reguladores e executivos, colegiados ou
não, de composição mista (sociedade civil, os particulares, de um lado, e os
administradores públicos, de outro), ou homogênea (apenas membros da
Administração Pública), para o exercício das prerrogativas de acompanhamento,
controle, fiscalização e dirimição de conflitos, em um claro grau de maior
concreção da representatividade popular, ficando em um intermédio entre a
representatividade tradicional (expressada na “Administração-acordante”) e a
participação popular direta (a sociedade, os cidadãos, enfim, o povo)524.
Com isso, verifica-se incrementado o controle social sobre a implantação das
políticas públicas e sua concreção através dos “contratos administrativos” (o que se
dá, inclusive, por agências executivas, eminentemente de âmbito federal, mediante
a submissão dessas a contratos de gestão para desempenho de suas atividades525).
Outra característica que também se tem como presente e marcante dos
denominados “contratos” administrativos, em corte didático metodológico de
análise, consiste no ato-condição, no ato-união que é também praticado pelo
Estado, de forma recíproca e indissolúvel ao praticado pelo particular. Não se
trata de apenas um ato-união, um ato-condição, mas de dois, justapostos um ao
outro de forma indissociável, diferentes e impossíveis de serem confundidos,
sendo um da Administração e outro do setor privado, com declarações de
vontades coincidentes.
e contratos. São Paulo : NDJ – Nova Dimensão Jurídica, ano 21, nº 1, janeiro de 2008, p. 35.
523
AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico: do direito nacional ao direito supranacional.
São Paulo : Atlas, 2006, p. 202; e PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática:
institutos de participação popular na administração pública. Belo Horizonte : Fórum, 2004, p. 140 e 142.
524
TOJAL, Sebastião Botto de Barros. “Controle judicial da atividade normativa das agências
reguladoras”. In: MORAES, Alexandre et alii. Agências reguladoras. MORAES, Alexandre de
(Org.). São Paulo : Atlas, 2002, p. 152.
525
AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico: do direito nacional ao direito supranacional.
São Paulo : Atlas, 2006, p. 214-215.
354
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Com essa nova característica que se atribui à relação jurídica complexa
atual em que se consubstanciam os chamados “contratos” administrativos, o
cunho associativo exsurge também do fato de que, além do ato-regulamento
e do contrato (havido em sua acepção clássica quanto à parte econômica da
avença), o Estado pratica, igualmente, o ato-condição, segundo o qual aquiesce
com o particular submetendo-se à situação objetiva por si estabelecida para a
prestação do serviço público ou a realização da obra pública526.
Tal circunstância contextualiza, de conseguinte, a noção mais
consentânea e atual de regulação administrativa pactual concertada e seu
viés associativo, a ser sempre observado quando de um exercício rotineiro.
5. A REGULAÇÃO ADMINISTRATIVA PACTUAL CONCERTADA E O ACORDO DE
PARCERIA PARA A PROMOÇÃO DA TECNOLOGIA E INOVAÇÃO
Essa perspectiva de regulação administrativa pactual concertada pode
ser verificada na celebração e execução do acordo de parceria firmado entre o
Estado, organizações empresariais e instituições de ciência e tecnologia.
Inicialmente, cumpre considerar que além de a garantia do
desenvolvimento nacional ser um dos objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, o texto constitucional de 1988, nos arts. 218 e 219, prevê
que o Estado brasileiro tem o papel de promover a ciência e a tecnologia,
considerando que o mercado interno faz parte do patrimônio nacional, motivo
pelo qual deve ser viabilizado o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o
bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País.
Combinando esses dispositivos com o art. 174 do texto constitucional,
segundo o qual o Estado tem papel de agente normativo (regulador) e
regulamentador da atividade econômica, verifica-se que a atuação do Estado
deve ocorrer de forma articulada com as entidades da iniciativa privada,
devendo assumir as funções de fiscalizar, incentivar e planejar ações voltadas a
E é imbuído desse espírito que os ditos contratos administrativos devem ser interpretados
como uma união de forças, a consubstanciar vigorosa sinergia entre os setores público e privado
para a execução das imperiosas obras públicas, em criação da infra-estrutura necessária, ou
prestação dos serviços públicos de que a população é sempre tão carente. Manoel de Oliveira
Franco Sobrinho explica que “A simples letra do contrato, ocorrendo contradições ou dúvidas,
explica-se pela motivação e finalidade, já que pela reciprocidade dos interesses, na legitimidade
prevalece o público mesmo com sacrifício do privado, o que a Administração procura realizar com
a colaboração ou participação dos particulares” (“Interpretação dos contratos administrativos”...,
p. 94). E, fundando-se na prestigiada doutrina de Georges Pequinot, continua lecionando que,
“Sem dúvida, no tocante à vontade administrativa, toda e qualquer interpretação deve proceder da
finalidade tendo em vista o serviço público como objeto essencialmente variável, e, por conseqüência
volta-se para a vontade atual e não passada, uma vontade ligada aos modos executórios e aos
procedimentos indicados por cláusulas entre si harmonizadas” (Ibidem, p. 94).
526
355
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
tal atividade e, como não poderia deixar de ser, também para a área de ciência,
tecnologia e inovação.
Daí por que é possível verificar a regulação administrativa concertada na
formação de alianças entre entidades públicas, organizações civis, empresariais
e pessoas físicas, através das variadas modalidades de acordo de parceria. Ora, o
Estado não pode concretizar a promoção de ciência, tecnologia e inovação sem a
iniciativa privada que, por sua vez, depende da renovação para o aprimoramento
de seus processos e produtos, aumentando, com isso, sua capacidade competitiva.
A atual estrutura do Estado brasileiro foi concebida de modo a admitir
que não atue como o principal agente econômico, mas, sim, precipuamente
como o regulador dessa atividade, justamente por partir da premissa de que não
tem fôlego administrativo, financeiro e orçamentário para, com exclusividade,
promover o desenvolvimento social nas áreas de educação, saúde, saneamento,
transportes, infra-estrutura e, ainda, o desenvolvimento econômico.
Assim, é de se fixar na retentiva que consoante o modelo do hodierno
Estado pátrio, ele não pode ser o principal ator econômico, mas, seguramente,
tem que atuar, especialmente se considerada a área da inovação científicotecnológica, de forma direta, por meio das instituições de ensino públicas,
ou indiretamente, regulando, regulamentando e também fomentando o seu
desenvolvimento por intermédio de incentivos, inclusive.
Em relação a esse novo papel do Estado, tem razão Calixto Salomão
Filho ao admitir que
em vez de gestão abstrata e macroeconômica da sociedade, cumprelhe fazer algo que o particular e o mercado jamais farão: incumbelhe redistribuir. É na redistribuição que deve ser identificada a grande
função do novo Estado. Trata-se, portanto, de um Estado que deve
basear sua gestão (inclusive do campo econômico) em valores e não
em objetivos econômicos.527
Essa redistribuição não tem relação apenas com o Direito Tributário,
Financeiro ou Orçamentário, mas também com a universalização, seja de
serviços ou de conhecimento, que acaba se traduzindo em informação e poder,
isto é, poder de decisão, de escolha e de ação.
De acordo com Calixto Salomão Filho,
a base de sustentação jurídica de regulação desenvolvimentista é a crença
na necessidade de difusão do conhecimento econômico. Partindo-se
SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros Editores,
2002. p.41.
527
356
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
do pressuposto de que a pretensão de isolar e teorizar o conhecimento
econômico leva a resultados socialmente inconvenientes, é preciso
que a regulamentação dê vazão e ofereça canais de transmissão do
conhecimento econômico adquirido de forma difusa na sociedade.528
Para haver democracia, é preciso haver consciência política, cuja
existência pressupõe inserção econômica da população, esta dependente de
uma estrutura que garanta a diluição do poder econômico dos particulares e de
pleno desenvolvimento econômico, que por sua vez exige o aprimoramento
da educação, da ciência, bem como, a criação de tecnologia e inovação de
produtos e de processos.
A inovação, principalmente científico-tecnológica, requer vultosos
investimentos de recursos em material e em capital humano, cuja soma não
será proveniente apenas do investimento estatal, o que se justifica pela atual
estrutura do Estado brasileiro já supra-referida.
Nesse contexto, porém, calha observar-se a problemática decorrente do
fato de que a esfera privada não tem despendido voluntariamente os recursos
necessários para o investimento em pesquisa e desenvolvimento, seja pelo fato
de deles não dispor, seja por falta de priorização da atividade inovadora.
E é aí, em solução a essa situação, que se insere o acordo de parceria,
o qual, sob a perspectiva da regulação administrativa pactual concertada
(imbuída de claro espírito associativo), pode ser utilizado pelo Estado para
incentivar as entidades particulares, juntamente com o investimento público,
a realizar a promoção da inovação, do desenvolvimento econômico e, em
última análise, da Democracia.
O acordo de parceria entre instituições de ciência e tecnologia, Estado, e
organizações privadas do setor produtivo contribui para uma maior repartição e
melhor distribuição dos riscos envolvidos com a pesquisa e o empreendimento
de transformação da ciência em inovação tecnológica529.
Claro que tal parceria impõe, como já dito, a necessidade de um normatizar
econômico-social preciso e permanente, que estabeleça seu conteúdo, amplitude
SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros Editores:
2002. p. 44.
529
Por administração de risco, também dita exposure managementou risk management, tem-se
a Aplicação de análise financeira e utilização de diversos instrumentos financeiros no controle e na
redução de determinados tipos de risco (GASTINEAU, Gary L.; KRITZMAN, Mark P. Dicionário
de administração de risco financeiro. São Paulo : Bolsa de Mercadorias & Futuros, 1ª ed., 2000,
p. 342). Administrar risco financeiro significa avaliar e tentar controlar o equilíbrio entre risco e
retorno em empresas voltadas ao lucro e em organizações sem fins lucrativos (GASTINEAU, Gary
L.; KRITZMAN, Mark P. Prefácio. In: _______. Dicionário de administração de risco financeiro.
São Paulo : Bolsa de Mercadorias & Futuros, 1ª ed., 2000, p. 9).
528
357
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e modo de expressão, inclusive como forma de imprimir maior diálogo e garantia
de segurança nos referidos ajustes (regulação administrativa pactual concertada).
Em outro sentido, essa forma regulatória, se aplicada nesses ajustes de
parceria, acaba por promover uma condição que pode aumentar a chance de
efetivação da Democracia, pois havendo investimentos privados e públicos em
pesquisa e inovação, haverá a transformação de conhecimento em tecnologias
competitivas e, com isso, será criado um maior número de postos de trabalho,
com maior distribuição de renda, circulação de recursos e recolhimento de
tributos, ocorrendo, dessa maneira, uma melhoria nas condições econômicas e
sociais da nação. Com esse aperfeiçoamento, haverá aumento do conhecimento
econômico da população, que acabará adquirindo maior consciência política e
maior condição de decidir sobre os rumos do Brasil.
Rockefeller Brothers Fund explica que
Em virtude de permitir a democracia tanta liberdade ao indivíduo e
adjudicar-lhe tão grande poder de julgamento e autodisciplina, ela está
subordinada mais que a maioria de outras formas de governo a uma
compreensão natural e à sujeição voluntária da maior parte de seus
cidadãos a determinados princípios morais.530.
Ora, como permitir essa compreensão e sujeição voluntária ao regime
democrático, sem consciência econômica, ainda mais se as pessoas vivem na
pobreza e na miséria? Opina-se não ser possível haver consciência política sem
consciência econômica, que decorre da inserção no mercado de trabalho, do
acesso aos meios culturais e de comunicação.
Segundo Vinícius Guilherme Rodrigues Vieira,
Na Nova Ordem, não basta manter a tecnologia e o conhecimento restritos
a um pequeno grupo, mesmo que ele produza benefícios que repercutam
entre a população como um todo (...). No ambiente democrático, as
massas precisam ter acesso direto à informação e ao conhecimento, bem
como o domínio da técnica, a fim de atuarem de fato como cidadãos,
reconhecendo direitos e deveres; como trabalhadores, na medida em
que possuem reais oportunidades de se inserir no mercado de trabalho;
e como pessoas, detentoras de um saber humanístico que lhes permita
ter consciência do meio em que vivem, de modo que esses três sujeitos
sejam interdependentes entre si, reunindo-se em todos os indivíduos.531.
FUND, Rockefeller Brothers. O Poder da idéia democrática. Tradução de Luiz Fernandes.
2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1964. p. 11.
531
VIEIRA, Vinícius Guilherme Rodrigues. O papel do Estado na economia do conhecimento.
530
358
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Claro que o que se está a defender não é uma preocupação exclusiva com
investimentos em pesquisa e desenvolvimento, sem considerar o necessário
investimento na educação em geral; pelo contrário, admite-se ser necessária a
combinação dos dois esforços.
Reforça a tese aqui defendida, a análise de Rockefeller Brothers Fund
sobre as condições econômicas de uma Democracia eficaz. Para ele,
igualmente importante é a manutenção de uma economia que deixe
a maioria de seus componentes com a convicção de que eles ou seus
filhos têm uma oportunidade para progredir, e de que posição em sua
sociedade é algo adquirido e não herdado. “Igualdade de oportunidade”
é, portanto, uma das coisas mais importantes que a democracia significa
quando traduzida em termos econômicos e sociais. A democracia política
concede aos cidadãos o direito de opinar sobre questões públicas. Ela
é amparada por um sistema econômico que concede aos cidadãos uma
parcela de bem-estar de uma sociedade. (...) Uma sociedade democrática
deve, portanto, comprometer-se, tanto por razões práticas como por razões
morais, com luta contra a pobreza. A ética de concessão e a compreensão
mútua em que se apóiam os processos políticos democráticos, requer
cidadãos que não se sintam em apuros e que possuam uma ampla visão
de interesses e cooperação. Pobreza é incompatível com essa situação.532
Ora, como evitar a pobreza? Dentre outras possibilidades, uma forma está
relacionada com o fato de agregar valor aos produtos e aos processos, e para isso, será
preciso investimento em pesquisa e desenvolvimento, cuja atuação estatal ou privada
não será exclusiva, como já visto anteriormente. Dessas verdades, admitimos aquela
segundo a qual a parceria, enquanto negócio jurídico, é uma das possibilidades a
viabilizar investimentos públicos e privados no implementar de pesquisa e inovação.
E como também se viu, a regulação administrativa pactual concertada
pode ser utilizada para viabilizar a eficiente execução desse negócio de parceria,
ante a sobranceira relação de Administração Pública que rege tal atividade sob a
ideia mestra de cooperação supracitada por Rockefeller Brothers Fund.
Segundo Giovani Clark e Nizete Lacerda Araújo, o Brasil, assim como
outras nações tem um triplo desafio, isto é, gerar novos conhecimentos,
transformá-los em tecnologias competitivas e fazê-lo em meio à recente crise
O fortalecimento da democracia através das novas tecnologias. In: A revolução tecnológica, a
economia do conhecimento e a democracia. Democracia: o espaço da paz. Império e ditadura:
a geopolítica da guerra/[coordenação] (Coleção Prêmio Luís Eduardo Magalhães;6). Instituto
Tancredo Neves – Brasília, 2004. p. 76.
532
FUND, Rockefeller Brotheres. O Poder da idéia democrática. Tradução de Luiz Fernandes.
2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1964. p.47.
359
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
econômica internacional. Para eles, em virtude da contida atuação estatal no
domínio econômico, instalou-se uma aguda crise socioeconômica mundial
iniciada nos setores imobiliário e financeiro dos Estados Unidos. Isso é reflexo
de irresponsabilidade e ineficácia das políticas econômicas reguladoras. Daí
porque reconhecem que uma das formas de alavancar o desenvolvimento
econômico, no micro e no macroambiente, é através do estímulo à inovação;
e ressaltam a importância do seu incentivo por meio de políticas públicas
estimuladoras e sedimentadoras de um sistema criativo nacional, possibilitador
de empregabilidade e gerador de renda interna.533
E o estímulo à inovação por parte do Estado, reitera-se, pode e deve ser
viabilizado através da celebração de acordos de parceria. Arnold Wald, aliás,
ressalta o uso de parcerias como forma de fomentar o desenvolvimento, para
quem “a formulação atual do direito do desenvolvimento está vinculada a uma
idéia que é, ao mesmo tempo, antiga e nova. Antiga na sua concepção, nova
na sua densidade e nas dimensões que está alcançando. É a idéia de parceria.
Parceria entre nações, parceria entre o Estado e a iniciativa privada, parceria
entre moradores do mesmo bairro, parceria entre produtor e consumidor,
parceria entre acionistas e dirigentes da empresa (...)”. 534
De acordo com a teoria da “hélice tríplice”, proposta por Etzkowitz
em 1994535, o desenvolvimento de um país é resultante da ação conjunta de
organizações empresárias, instituições de ensino superior e o Estado, nos setores
de ciência e tecnologia. E cabe ao Estado fomentar, principalmente por suas
ditas “agências de fomento” (e. g., FAPESP, CNPq, etc.), a integração entre
o setor produtivo e o acadêmico, mediante acordos de parceria que criem um
ambiente favorável à participação de organizações empresariais em atividades de
pesquisa, realizadas primordialmente em departamentos do setor produtivo e nas
instituições de ensino superior (públicas e privadas), em verdadeiro mutualismo.
Além do aspecto macroeconômico, existem vantagens para os pactuantes
da parceria celebrada entre as entidades privadas, as instituições de ensino e
entidades estatais, como a união de recursos técnicos, humanos e financeiros para
maximizar as chances de sucesso da pesquisa, bem como a divisão dos riscos
do negócio e dos custos, sendo estes últimos os que se apresentam como uma
constante elevada tanto para os departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento
(P&D) das indústrias, como da pesquisa acadêmica536.
CLARK, Giovani. ARAÚJO, Nizete Lacerda. Incubadora de empresas e o Direito Econômico.
Revista de Direito Empresarial. Curitiba, Juruá, n. 14, jul./dez. 2010. p. 189.
534 WALD, Arnold. O Direito de Parceria e a nova Lei de Concessões. Editora RT, 1996. p. 27.
535
ETZKOWITZ, H. Academic-industry relations: a sociological paradigm for economic
development. In: LEYDERSDORFF, L.; VAN DEN BESSLAAR, P. Evolutionary economics and
chaos theory: new directions in technology studies. London: Pinter, 1994, p. 141.
536
BRISOLA, Sandra; CORDER, Solange; GOMES, Erasmo; MELLO, Débora. As relações
533
360
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A inovação tecnológica, assim, é resultante das atividades de Pesquisa e
Desenvolvimento (P&D), geralmente de grande risco financeiro, pois o retorno
do investimento não é certo e seu desempenho é de alta complexidade, vez que
exige nível elevado de técnica e conhecimento.
Apesar do risco, cumpre mencionar-se, a P&D é uma atividade essencial
para as indústrias (e demais setores produtivos do País) que devem buscar a
criação e o aperfeiçoamento de seus produtos e processos, a fim de apresentarem
condições para enfrentar a concorrência mercadológica.
Nesse aspecto, para as organizações empresariais do setor produtivo é
extremamente vantajoso conseguir realizar atividades de P&D em conjunto
com instituições de ensino superior, uma vez que estas são grandes detentoras de
conhecimento científico. Já para as instituições de ensino (públicas ou privadas),
participar do processo de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) juntamente com
organizações privadas, em especial as empresariais do setor produtivo, resulta na
captação de recursos financeiros, físicos e humanos adicionais e complementares
para tal mister, maxime quanto ao desenvolvimento de pesquisas básicas e
aplicadas, conservação de pesquisadores mais qualificados em seus quadros e o
oferecimento de um ensino vinculado aos avanços tecnológicos. 537
Outra vantagem desse tipo de parceria é também a maior possibilidade
de controle da Administração Pública por parte da sociedade civil, já que ela
própria se mostra envolvida no projeto de criação da tecnologia e inovação
(participação popular), além da coexistência dos princípios de Direito
Administrativo e de Governança Corporativa, a implicarem o atual conceito de
governança regulatória que pressupõe controle social.
Em suma, os chamados acordos de parceria para desenvolvimento de
pesquisas em cooperação entre organizações empresariais, entidades estatais
e instituições de ensino superior (públicas e privadas) surgem no cenário
nacional com o intuito de unir a técnica existente nessas últimas com o interesse
comercial e os recursos do setor produtivo, proporcionando ganhos para os
pactuantes, além de acarretar o desenvolvimento socioeconômico do País com
maior certeza e segurança, pois também implementada a regulação concertada
no desenrolar do que avençado.
Tanto é que, ao ser constatada a inovação como uma questão de interesse
público nacional, foi instituída a Política Nacional de Ciência, Tecnologia
e Inovação (surgida na segunda metade do século XX, com a criação do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, da
universidade-empresa-governo: Um estudo sobre a Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), Campinas/SP, dezembro de 1997, p. 2.
537
ALVIM, Paulo César Rezende de Carvalho, Inteiração Universidade-Empresa, Instituto
Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Brasília, 1998. p. 99 a 125.
361
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior - CAPES e
do FNDCT – Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico),
através da qual se pode verificar uma forte atuação do Estado para incentivar
a integração de organizações empresariais, as instituições de ensino superior e
entidades estatais, de forma participativa e regulamentadora.
Esse atuar estatal de incentivo à ciência, tecnologia e inovação, de
conseguinte, no modo participativo, é observado pela presença do Estado
como parceiro ou participante nas relações que envolvem as instituições de
ciência e tecnologia públicas. De outro lado, como fruto da teoria da regulação
administrativa pactual concertada, verifica-se também pela presença do Estado
com papel normativo, o qual cria ambiente propício ao desenvolvimento e
pesquisa, quer regulando as parcerias em âmbito infra-legal, quer promovendo
as alterações na legislação para conferir maior liberdade aos entes da
Administração Pública em firmar acordos que versem sobre a inovação, a
pesquisa científica e tecnológica538, ou quer ainda instituindo linhas específicas
para disponibilizar crédito ao fomento da inovação.
Com essas medidas, o Estado cumpre com o seu papel de democratizador
do conhecimento, enquanto agente regulador que também promove
desenvolvimento econômico-social e cria condições para tornar efetiva a
Democracia e seus benefícios libertários tão almejados.
Aliás, Hans Kelsen ao questionar sobre se a Democracia favorece mais o
Capitalismo ou o Socialismo, responde que essa questão só pode ser respondida com
base na experiência histórica e, na opinião dele, até aquele momento, a experiência
concreta não era suficiente para dar uma resposta cientificamente fundamentada.539
Sem a pretensão de dar essa resposta científica almejada por Hans
Kelsen quanto aos benefícios da Democracia, este trabalho reconhece que o
Socialismo autoritário, salvo raras exceções, foi vencido e extinto, sendo que
ela, a Democracia, é o regime de Governo que mais se adequa ao Capitalismo,
adotado pelo Direito pátrio; assim, admite-se que se conseguirmos eliminar
as injustiças e as desigualdades através do desenvolvimento científico e
tecnológico, poderemos atingir o modelo ideal de sociedade.
6. CONCLUSÕES
No caso dos acordos de parceria para a promoção de tecnologia e
inovação, celebrados entre os entes estatais, as organizações empresariais do
Lei n. 10.973, de 02 de dezembro de 2004, dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa
científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências.
539
KELSEN, Hans. A democracia. ed. 2. Tradução dos originais em alemão, Vera Barkow. São
Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 254.
538
362
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
setor produtivo e as instituições de ensino (públicas ou privadas), concluise, diante de tudo que se viu no estudo que se empreendeu, que a atividade
regulatória administrativa pactual concertada é uma nova tendência sua, pois
se apresenta sob a forma dialogada e associativa neste tipo de ajustes públicos.
Com essa atuação regulatória estatal consensual, acaba-se por verificar
a minimização de encargos às organizações empresariais produtivas e às
instituições científicas, vez que o diálogo reduz as discussões, seus gastos e
desgastes correlatos, resultando ao Estado, também por esse viés de normatização
dialogada, o fomento do desenvolvimento da tecnologia e inovação, e, de
conseguinte, do desenvolvimento nacional, em última instância, democrático.
É de se concluir, outrossim, que a utilização da atividade regulatória
administrativa pactual concertada no desenvolvimento dos acordos de parceria
entre os entes estatais, as instituições científicas e o setor privado, em si, acaba
por promover uma necessária sinergia para a exitosa inovação colimada, o que
se tem, ainda, como atividade em atenção aos ditames da Política Nacional de
Ciência, Tecnologia e Inovação.
Conclui-se, ainda na subseqüência generalizante, que a atividade
regulatória administrativa pactual concertada implica sua verificação dialogada
e associativa de forma constante nos ajustes públicos, em busca de regramentos
singelos e dentro do estritamente imperioso, além de se apresentar preocupada
com a minimização dos encargos que traz para as organizações empresariais e
os por si afetados direta ou indiretamente.
Outra conclusão da qual não se escapa, é a existência da premente
necessidade de uma Lei Geral de Regulação Administrativa que discipline
a atividade regulatória e seu processo administrativo democrático (inclusive
no âmbito pactual), isto é, da sanção de normas regulatórias gerais para fixar
as competências no sistema regulatório administrativo concertado brasileiro
(prescrevendo quem as detém – além das ditas agências regulatórias – e em
que proporções e delimitações, a evitar, assim, também eventuais conflitos
de competências), abordando tanto os serviços públicos outorgados, como as
atividades econômicas – e não apenas essas, como explica Maria Sylvia Zanella
Di Pietro540 – de relevante interesse coletivo, com a exposição das suas distinções
e seus lindes, sempre que for o caso, estimulando-se a dita ação sinérgica541.
Tal Lei Geral da Regulação é, ainda, a contribuição que se espera para
“...O objeto da regulação pode ser a sociedade, algumas de suas dimensões, como a economia, ou
uma área de atividades sociais” (Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia,
terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005, p. 203).
541
FREITAS, Juarez. “Parcerias público-privadas (PPPs): natureza jurídica”..., p. 701, nota de
rodapé nº 35.
540
363
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
a solução da tradicional crise de credibilidade relacionada aos atores nos
tratos públicos, a saber-se: a) do Estado brasileiro contratante, quanto à sua
pontualidade para o cumprimento das obrigações, principalmente de cunho
pecuniário, que assume frente aos particulares nos ajustes que com eles trava,
em virtude de introduzir maior segurança institucional, com mais certeza de
adimplemento público e, de conseguinte, redução dos riscos inerentes a tais
avenças; b) do particular-acordante, quanto à prática de preços e custos reais
e sem acréscimos de superfaturamento para além de uma margem de lucro
aceitável, expurgando-se a possibilidade de cooptações de agentes públicos e
reguladores em detrimento de uma adequada realização de obras e prestação de
serviços públicos; c) dos próprios reguladores, no que tange ao conhecimento
especializado e à independência necessários, de sorte a se afastarem, inclusive,
conflitos de competência entre si.
Trata-se, com isso, de se garantir o futuro dos investimentos privados na
criação e ampliação da infra-estrutura do País, mediante um direito regulatório
brasileiro a se tornar forte, cujo âmbito pactual deve englobar tanto as limitações
à liberdade e propriedade como os atos regulamentares, retirando-se-o da
incipiência obstacularizadora de uma cidadania ativa (também caracterizadora
do exercício do poder tal qual preconizado no art. 1º, parágrafo único, da
Constituição Federal de 1988), de modo a impulsionar a descentralização,
sempre que possível, da definição de prioridades dos recursos e a ampliação da
participação popular e do controle social, para serem verificados em graus de
maior intensidade e coercitividade.
364
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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369
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS E DERIVADOS:
ASPECTOS JURÍDICOS DECORRENTES DA ADULTERAÇÃO E O PAPEL
REGULADOR DA ANP
BUSINESS ACTING IN THE MARKET FOR FUELS AND DERIVATIVES: LEGAL
ASPECTS ARISING FROM THE FUEL ADULTERATION AND THE REGULATORY
ROLE OF THE BRAZILIAN NATIONAL AGENCY OF PETROLEUM, NATURAL
GAS AND BIOFUELS (ANP)
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves
RESUMO
Estudo dos aspectos jurídicos da adulteração de combustíveis e das
responsabilidades dos agentes que atuam nesse mercado. O trabalho, estruturado
em três capítulos, inicia-se com a análise da Lei do Petróleo (Lei nº 9.487/97) na
perspectiva dos objetivos da Política Energética Nacional, em especial a proteção
do consumidor quanto aos preços, qualidade e disponibilidade de produtos, e da
competência da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis
(ANP), órgão regulador e fiscalizador da atuação empresarial neste segmento
do downstream. Na segunda parte são apresentadas as atividades que compõem
o Sistema Nacional de Estoque de Combustíveis, as atribuições da ANP e as
prerrogativas dos seus agentes no exercício da atividade. No mesmo capítulo,
discorre-se sobre as sanções administrativas cominadas, com destaque para aquelas
relacionadas com a adulteração, e o processo administrativo para verificação e
eventual aplicação das medidas aplicáveis. O último segmento é dedicado ao exame
das sanções impostas aos fornecedores e dos transportadores de petróleo, gás natural,
seus derivados e biocombustíveis em relação aos vícios de qualidade e quantidade,
também aqueles procedentes da disparidade com as constantes indicações do
conteúdo, embalagem ou etiqueta, que os tornem impróprios ou inadequados para
o consumo, ou diminuam seu valor. Nesta parte ganha destaque a possibilidade de
desconsideração da personalidade jurídica, prevista na Lei nº 9.847/99.
Palavras-Chaves: Adulteração de combustíveis. Responsabilidades. Agência
Nacional do Petróleo, Gás Natural de Biocombustíveis (ANP)
ABSTRACT
Study of the legal aspects of fuel adulteration and the liabilities of the
responsible agents in brazilian regulation. The first part begins with the analysis
371
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
of the Law nº 9,478/97 (Law of the Petroleum) on the national policies for
the rational utilization of the energy sources, that will aim at many objectives,
among them the protection of the consumer interest with respect to price,
quality and availability of products. In the second part are presented the
activities that compose the National System for Fuel Stock, the performance of
the Brazilian National Agency of Petroleum, Natural Gas and Biofuels (ANP)
and the prerogatives of its agents in the exercise of the enforcing activity, the
foreseen administrative infractions, with prominence for those related to the
fuel adulteration, and the administrative proceeding for infraction verification
and eventual application of the applicable measures. The third part is dedicated
to the examination of the sanctions imposed to the suppliers and transporters
of oil, natural gas, its derivatives and biofuels, specially the disregard of the
legal entity, for the vices of quality or amount, also those proceeding from
the disparity with the constant indications of the container, of the packing or
labeling, that makes them improper or inadequate to the consumption or that
diminishes their the value.
Keywords: Fuel adulteration. Liabilities. Brazilian National Agency of
Petroleum, Natural Gas and Biofuels (ANP).
INTRODUÇÃO
Em sentido oposto ao de trabalhos que procuram realçar o papel
social da atividade econômica organizada por uma pessoa física ou jurídica de
modo profissional (empresa), como instrumento da livre iniciativa e em face
de princípios da ordem econômica constitucional, procura-se nesta pesquisa
examinar o lado oposto: as distorções na atuação empresarial no mercado de
distribuição e revenda de combustíveis e derivados e seus reflexos negativos
para o consumidor e a livre concorrência. Para tanto, a fim de delimitar o objeto
da investigação, toma-se por base a adulteração de combustíveis.
A pesquisa realizada para a elaboração do trabalho é empírica, com fulcro
na análise da norma jurídica no contexto da realidade em que se manifesta,
utilizando-se de referências bibliográficas e documentais. O método adotado
é o indutivo, sendo empregado o método comparativo como auxiliar, para
confrontar espectros diferentes da adulteração de combustíveis e identificar
relações entre eles.
A adulteração consiste em adicionar ao combustível uma substância
que não entra na sua composição, nos termos das prescrições legais, ou em
percentuais além ou aquém das especificações técnicas (v.g. inserção de
solventes ou de álcool na composição da gasolina acima do limite máximo).
372
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Em decorrência dessa prática, o empresário ou adulterador obtém um produto
inferior, que é vendido como se legítimo fosse ao consumidor ou a revendido a
outro empresário, por vezes com consciência do produto que é adquirido.
A adulteração de combustíveis é tema sempre presente e seu estudo
perpassa uma única área definida do conhecimento jurídico. Embora o enfoque
da pesquisa seja empresarial, está também presente a repressão criminal ao
delito, considerado crime contra a ordem econômica, bem como os efeitos
civis e a fiscalização da ANP sobre os postos de combustíveis, distribuidoras e
transportadoras.
É fundamental compreender os aspectos desta prática ilícita e
anticoncorrencial, a legislação aplicável e as responsabilidades decorrentes, a
fim de traçar um paralelo entre as sanções previstas e sua aplicação pelo órgão
regulador – a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis
(ANP), bem como pelos Tribunais, eis que das decisões administrativas
cabe recurso ao Poder Judiciário, nos termos do inciso XXXV do art. 5º da
Constituição Federal de 1988. [1]
O trabalho inicia-se com a análise dos efeitos da adulteração de
combustíveis para o consumidor, as formas usuais de adulteração e as condutas
proativas que o consumidor pode tomar como precaução, além de expor como se
dá a regulação desse mercado pela ANP. Passa-se, em seguida, ao exame da Lei
nº 9.847/99, das atividades que compõem o Sistema Nacional de Combustíveis,
a atuação da ANP, prerrogativas de seus agentes no exercício da atividade
fiscalizadora, as infrações administrativas previstas, com destaque para aquelas
relacionadas à adulteração de combustíveis e o processo administrativo para
apuração de infração e eventual aplicação das sanções cominadas.
A terceira parte é consagrada às sanções civis e criminais impostas
aos fornecedores e transportadores de petróleo, gás natural, seus derivados e
biocombustíveis pelos vícios de qualidade ou quantidade, inclusive aqueles
decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da
embalagem ou rotulagem, que os tornem impróprios ou inadequados ao
consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor. Neste ponto, torna-se
imperativo associar a responsabilidade objetiva prevista na Lei nº 9.478/97 ao
Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) e os princípios do direito do
consumidor aplicáveis, bem como ilustrar a exposição com julgados pertinentes
onde foi aplicada a “teoria menor” da desconsideração da personalidade jurídica.
Para a efetivação da reparação dos danos causados ao Sistema Nacional
de Combustíveis podem ser responsabilizados tanto as pessoas jurídicas como
também as pessoas físicas, autoras, co-autoras ou participantes do fato e os
sócios das pessoas jurídicas. Aliás, a prática demonstra que, na maioria das
vezes, os responsáveis/denunciados são pessoas vinculadas a sociedades
373
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
empresárias, seja na condição de sócio, administrador ou gerente.
Por fim, examinam-se aspectos ligados à responsabilidade penal, em
manifestações do STJ, tais como: a competência para julgar os crimes
de adulteração de combustíveis e sua comercialização; a necessidade de
individualização da conduta praticada por cada corréu; a desnecessidade de
exaurimento da instância administrativa (processo administrativo junto a ANP)
para o oferecimento da denúncia.
1. REGULAÇÃO DO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS, A ADULTERAÇÃO E A
PROTEÇÃO DOS INTERESSES DO CONSUMIDOR
A Lei nº 9.478/97 (Lei do Petróleo), ao indicar os objetivos da política
energética nacional, inclui entre eles a proteção dos interesses do consumidor
quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos (art. 1º, III) [2]. Tal orientação
não é casual, haja vista ser a defesa do consumidor um dos princípios da Ordem
Econômica Constitucional (art.170, V, CF), fundada também na livre iniciativa,
sendo dever do Estado promover uma política de valorização do consumidor,
reconhecendo sua vulnerabilidade e possibilitando o reconhecimento de direitos
fundamentais (art. 5º, XXXII, CF).
A má qualidade dos combustíveis acarreta várias conseqüências, todas
negativas para o consumidor e para o empresário enganado por distribuidores,
mas vantajosas para os autores da adulteração [3].
De plano, o veículo é a principal “vítima” da prática ilícita e criminosa.
Solavancos na partida, aumento do consumo de combustível por quilômetro
rodado, falhas no motor, reduzindo sua vida útil, e queda acentuada no
desempenho do veículo levam o motorista, muitas vezes, a presumir que
o produto ou determinada peça é defeituoso ou de má qualidade, quando,
na verdade, podem ser indícios de que o combustível não é puro ou foi
adulterado. Descoberta a raiz do problema, a adulteração pode ter danificado
peças ou filtros em tal gravidade que será necessário substituí-los, com gastos
adicionais e imprevistos [4].
A distribuição e comercialização de combustível em desacordo com as
especificações técnicas não afeta apenas o desempenho dos veículos, alcança
aspectos também relevantes, como ambientais (aumento da poluição do ar
em razão da queima de combustível de má qualidade), concorrenciais (preços
inferiores aos de mercado), flagrante violação à boa-fé objetiva contratual, tanto
nos termos da oferta quanto no do conteúdo do contrato, até mesmo a segurança
e saúde do consumidor.
No que tange à saúde e à segurança do consumidor, os artigos 8º e 10
do Código de Defesa do Consumidor (CDC) impõem deveres ao fornecedor,
374
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
tanto na fase pré-contratual quanto contratual a informar o consumidor de
sua natureza e fruição dos riscos à sua saúde ou segurança, bem como sobre
a periculosidade ou nocividade que apresentem. No caso do combustível
adulterado, o fornecedor responde por omissão, ou seja, pela não informação
ao consumidor dos riscos, especialmente à segurança do veículo, que pensa
estar comprando um produto não defeituoso. O desgaste mais rápido de peças,
exigindo sua substituição, pode vir a causar acidentes.
O consumidor tem o direito de escolher o produto e serviço que está
comprando e ser informado claramente o preço, a quantidade, o peso, a
composição e a origem, inclusive no instrumento de oferta (art. 31). A venda,
por exemplo, de gasolina de tipo diferente do que é anunciado (comum ao invés
de superior ou aditivada) é caso típico de publicidade enganosa, proscrita pelo
CDC (art.37) em razão de induzir o adquirente em erro quanto à manifestação
de sua vontade a respeito da natureza do produto; da mesma forma é enganosa
quando o fornecedor omite a verdadeira origem do combustível ou declaração
uma procedência diversa da realidade.
A regulação da ANP no setor de combustíveis impõe várias obrigações
aos empresários que se dedicam: (i) às atividades de revenda [5] varejista de
combustível automotivo; (ii) distribuição [6] de combustíveis líquidos derivados
de petróleo, álcool combustível, biodiesel, mistura óleo diesel/biodiesel
especificada ou autorizada pela ANP e outros combustíveis automotivos;
(iii) revenda varejista de combustível automotivo com comercialização de
gás natural veicular – GNV (Portarias ANP 116/2000, 29/1999 e 202/1999 e
32/2001, respectivamente).
Em decorrência da atuação do empreendedor num mercado regulado
como o de combustíveis, o princípio da liberdade de iniciativa para o exercício de
atividade econômica, insculpido no parágrafo único do art. 170 da CF [7] sofre
limitações, em defesa dos outros princípios da ordem econômica arrolados nos
incisos do mesmo artigo, notadamente a função social da propriedade, a defesa
do consumidor, do meio ambiente e da livre concorrência. Os mesmos princípios
estão contidos na Lei do Petróleo (art. 1º, III, IV e IX), que regulamenta o art.
238 da CF [8] no art.8º, incisos I, XIII e XV, in verbis:
Art. 8o A ANP terá como finalidade promover a regulação, a contratação
e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do
petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis, cabendo-lhe:
I - implementar, em sua esfera de atribuições, a política nacional de
petróleo, gás natural e biocombustíveis, contida na política energética
nacional, nos termos do Capítulo I desta Lei, com ênfase na garantia
do suprimento de derivados de petróleo, gás natural e seus derivados,
375
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e de biocombustíveis, em todo o território nacional, e na proteção dos
interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta dos
produtos; [...] XV - regular e autorizar as atividades relacionadas com o
abastecimento nacional de combustíveis, fiscalizando-as diretamente
ou mediante convênios com outros órgãos da União, Estados, Distrito
Federal ou Municípios. [grifos nossos]
Com o fito de demonstrar o impacto da regulação na constituição
da sociedade empresária, instalação e funcionamento do estabelecimento
empresarial, bem como a importância que a proteção do consumidor e a
preocupação com a qualidade do combustível têm na regulação da ANP,
faz-se mister citar algumas determinações contidas na Portaria ANP nº
116/2000 – regulamenta o exercício da atividade de revenda varejista de
combustível automotivo [9].
Preliminarmente, entende-se por atividade de revenda varejista a
comercialização de combustível automotivo em estabelecimento denominado
posto revendedor. Embora o local seja destinado à sua atividade precípua,
o empresário pode desenvolver outras atividades comerciais e de prestação
de serviços no local, sem prejuízo da segurança, saúde, meio ambiente e do
bom desempenho da atividade. O distribuidor de combustíveis não pode
exercer a atividade de revenda varejista, salvo quando o posto revendedor
se destinar ao treinamento de pessoal, com vistas à melhoria da qualidade
do atendimento aos consumidores.
A autorização da ANP para exploração da empresa somente pode ser
concedida à sociedade brasileira (art. 1.126 do Código Civil) que possua,
em caráter permanente, registro de revendedor varejista expedido pela
ANP e disponha de posto revendedor com tancagem para armazenamento e
equipamento medidor de combustível automotivo.
O pedido de registro deverá ser instruído, entre outros documentos, com
cópia autenticada do estatuto ou do contrato social, que especifique a atividade
de revenda varejista de combustível automotivo, arquivado na Junta Comercial
e, quando alterado, com todas as alterações posteriores ou a mais recente
consolidação. Deferido o registro, antes do início da atividade, deverá ocorrer a
publicação no Diário Oficial da União.
O registro de revendedor varejista não será concedido à sociedade
empresária que tenha em seu quadro administrador ou sócio que, nos cinco anos
anteriores à data do pedido de registro, tenha sido administrador de sociedade
que não tenha liquidado débitos e cumprido obrigações decorrentes do exercício
de atividade regulamentada pela ANP.
376
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
No tocante à qualidade do combustível automotivo adquirido e negociado,
o revendedor varejista deverá informar ao consumidor, de forma clara e ostensiva,
a origem do combustível automotivo comercializado, e somente poderá adquiri-lo
de sociedade que possua registro de distribuidor conferido pela ANP e autorização
para o exercício de uma das atividades descritas no art. 8º da Portaria.
Ademais, é vedado ao varejista: a) alienar, emprestar ou permutar,
sob qualquer pretexto ou justificativa, combustível automotivo com outro
revendedor varejista, ainda que o estabelecimento pertença à mesma sociedade;
b) condicionar a revenda de combustível automotivo ou a prestação de serviço
ao consumidor à revenda de outro combustível automotivo ou à prestação
de outro serviço (trata-se de venda casada, proscrita pelo inciso I do art. 39
do CDC); c) estabelecer limites quantitativos para revenda de combustível
automotivo ao consumidor (prática comercial abusiva, conforme art. 39, I do
CDC); d) misturar qualquer produto ao combustível automotivo.
No rol das obrigações impostas ao varejista (art. 10) verifica-se o pleno
atendimento ao princípio da defesa do consumidor e do objetivo descrito no art.
1º, III da Lei do Petróleo, notadamente os princípios da informação e da boa-fé
objetiva, tanto na fase pré quanto na contratual [10].
As distribuidoras de combustíveis também devem adotar ações
compatíveis com a proteção do consumidor e em prol da qualidade do
combustível. Conforme o art. 20 da Portaria ANP 29/1999, destacam-se as
seguintes obrigações: I - solicitar ao fornecedor autorizado atestado de qualidade
do produto no ato da sua aquisição; II - fornecer combustíveis automotivos
aditivados ao preço dos similares não aditivados, na falta eventual deste produto;
III - garantir a qualidade e a quantidade dos combustíveis, quando transportados
sob sua responsabilidade ou quando armazenados em instalações próprias ou de
terceiros; IV - observar e respeitar as normas que regem a ordem econômica, o
controle do meio ambiente e a segurança do consumidor.
De acordo com a Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e
de Lubrificantes (FECOMBUSTÍVEIS), as formas usuais de adulteração e seus
efeitos para o consumidor são [11]:
a) álcool molhado: é o álcool anidro (álcool com até 1% de água)
misturado à água e vendido com álcool hidratado, próprio para consumo de
veículos. O consumidor é prejudicado porque a água misturada ao álcool
contém sais minerais que provocam danos ao motor.
b) gasolina com teor alcoólico acima do especificado pelo governo
federal: se o teor de álcool na gasolina estiver em desacordo com o estabelecido,
o combustível é irregular [12]. O adulterador acrescenta mais álcool à mistura
e ganha no preço, porque o álcool é mais barato que a gasolina; o consumidor
perde em rendimento do combustível e paga por uma gasolina mais cara.
377
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
c) gasolina misturada com solvente: se a gasolina possui mais solventes
do permitido, está adulterada. Ao misturar solvente à gasolina, por ser aquele
mais barato, o adulterador melhora a rentabilidade do negócio em até 10%.
d) gasolina misturada com óleo diesel: a tributação do o óleo diesel é
menor do que a da gasolina e, por conseguinte, o produto final é mais barato.
Com a mistura de óleo à gasolina o motor do veículo é prejudicado, porque ele
é mais pesado e sua queima não é completa.
e) combustível comum vendido como se fosse aditivado: o combustível
aditivado é mais caro porque garante a limpeza do sistema de combustível do
veículo. O consumidor é enganado quanto à qualidade do produto adquirido.
f) óleo diesel misturado com óleo vegetal: óleo vegetal não é biodiesel,
que deve passar por um processo químico chamado transificação para que
seja próprio para o uso nos motores de veículos. Os motores de diesel não são
preparados para funcionar com óleo vegetal e em curto prazo danos ao motor
serão ocasionados.
O consumidor, por sua vez, pode se precaver de danos potenciais ao
não confiar em preços muito baixos do combustível, ainda que disfarçados por
“mega promoções”. Trata-se de um forte indício de procedência duvidosa do
produto ou qualidade inferior, além de suspeita de sonegação. Pedir nota fiscal
é uma prova importante em eventual demanda judicial, já que é uma prova
documental do vínculo jurídico que se estabeleceu no ato da compra e identifica
inequivocamente o vendedor.
Abastecer o veículo no mesmo estabelecimento, sempre que possível e
ter as notas fiscais é outra atitude positivo em caso de contestação por parte do
vendedor da conformidade do combustível comercializado.
Os desembargadores da Oitava Câmara do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo negaram provimento ao recurso de apelação interposto
por consumidor contra a sentença que julgou improcedente seu pedido
indenizatório, em razão de danos causados ao motor pela adição de água ao
combustível. No mérito, entenderam os julgadores que não restou comprovado
que a apelante abastecia seu veículo sempre no mesmo local; ademais não havia
prova da adulteração do combustível vendido. Como o fornecedor – a quem
cabia o ônus da prova – atestou a excelência do combustível vendido, conforme
ofício da fornecedora, que exerce rigoroso controle sobre seus produtos, não foi
possível inferir que os danos causados possam ser atribuídos ao vendedor, até
mesmo porque seus tanques de combustíveis eram operados eletronicamente e
abertos somente quando a fornecedora entregava o produto [13].
2. O SISTEMA NACIONAL DE COMBUSTÍVEIS E AS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS
A normatização do abastecimento nacional de petróleo ocorreu em 1938,
com a edição do Decreto-Lei nº 395, regulamentado pelo Decreto nº 4.071/1939. O
378
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
primeiro diploma declarou de utilidade pública o abastecimento nacional de petróleo,
compreendendo as atividades de produção, importação, transporte, distribuição e o
comércio de petróleo bruto e seus derivados, e a refinação de petróleo importado ou
de produção nacional, qualquer que seja a sua fonte de extração.
Somente o Governo Federal poderia autorizar, regular e controlar a
importação, a exportação, o transporte, inclusive a construção de oleodutos, a
distribuição e o comércio de petróleo e seus derivados; autorizar a instalação
de quaisquer refinarias ou depósitos; estabelecer os limites, máximo e mínimo,
dos preços de venda dos produtos refinados – importados em estado final ou
elaborado no país – tendo em vista, tanto quanto possível, a sua uniformidade
em todo o território nacional.
O Decreto-Lei, editado sob a égide do Estado Novo, deixa claro seu
caráter nacionalista, determinando a nacionalização da indústria de refinação
do petróleo importado ou de produção nacional, mediante a organização
das respectivas sociedades com capital social constituído exclusivamente
por brasileiros natos, em ações ordinárias, nominativas; direção e gerência
confiadas exclusivamente a brasileiros natos, com participação obrigatória de
empregados brasileiros.
O órgão mais importante do sistema era o Conselho Nacional do
Petróleo (CNP), constituído de brasileiros natos, designados pelo Presidente
da República, representando vários ministérios (Guerra, Marinha, Fazenda,
Agricultura, Viação e Obras Públicas, Trabalho, Indústria e Comércio), assim
como as organizações de classe da indústria e do comércio.
O Conselho era subordinado diretamente ao Presidente da República e
suas atribuições foram fixadas pelo art. 10 do Decreto-Lei nº 538/1938. Dentre
elas destacam-se: “a) autorizar, regular e controlar a importação, a exportação,
o transporte, inclusive a construção de oleodutos, a distribuição e o comércio
de petróleo e seus derivados no território nacional; [...] f) autorizar e fiscalizar
as operações financeiras das empresas constituídas, ou que se constituírem, para
a exploração da indústria da refinação do petróleo, importado ou de produção
nacional, qualquer que seja, neste caso a sua fonte de extração; [...] i) organizar
e manter um serviço estatístico de todas as operações relativas ao abastecimento
nacional do petróleo, inclusive dos preços de venda do petróleo bruto e seus
derivados no território nacional;” [14].
Em 1990, o Decreto nº 99.244 reorganizou os órgãos da Presidência
da República e dos Ministérios, criando o Ministério da Infra-Estrutura. Na
estrutura desse Ministério foi criada a Secretaria Nacional de Energia e, em
sua composição, o Departamento Nacional de Combustíveis (DNC). Como as
atribuições conferidas ao DNC absorveram as do CNP (art. 222), esse órgão
deixou de existir. A partir de então, o DNC passou a superintender, autorizar e
379
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
fiscalizar o abastecimento nacional de petróleo, óleo de xisto e seus respectivos
derivados; gás natural e suas frações recuperáveis.
Em 1997, a Lei nº 9.478 criou em seu art. 7º a ANP, que somente foi
organizada com a edição do Decreto nº 2.455, de 14 de janeiro de 1998. Conforme
o art. 14, a ANP regulará as atividades da indústria do petróleo e a distribuição e
revenda de derivados de petróleo e álcool combustível, no sentido de preservar
o interesse nacional, estimular a livre concorrência e a apropriação justa dos
benefícios auferidos pelos agentes econômicos do setor, pela sociedade, pelos
consumidores e usuários de bens e serviços da indústria do petróleo. Com o início
das atividades da autarquia, foram-lhe transferidos o acervo técnico e patrimonial,
as obrigações, os direitos e as receitas do DNC (art. 25).
A ANP é a responsável pela implementação da Política Nacional de
Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, tendo em vista, dentre outros fins,
a proteção dos interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e
oferta dos produtos (art. 8º, I). Ademais, cabe à Agência regular e autorizar
as atividades relacionadas à produção, importação, exportação, armazenagem,
estocagem, transporte, transferência, distribuição, revenda e comercialização
de biocombustíveis, assim como avaliação de conformidade e certificação de
sua qualidade, fiscalizando-as diretamente ou mediante convênios com outros
órgãos da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios (art. 8º, XVI, com
redação dada pela Medida Provisória nº 532, de 28 de abril de 2011).
Dando concretude a esta diretriz, a Lei nº 9.847/99, fruto de conversão da
Medida Provisória nº 1.883-17/99 (originária MP nº 1.670/98), dispõe sobre a
fiscalização das atividades relativas ao abastecimento nacional de combustíveis,
estabelecendo sanções administrativas [15] aos infratores, sem prejuízo
das sanções de natureza civil e penal em caso de descumprimento de suas
disposições. Contém, ademais, normas pertinentes ao exercício de atividades
relativas à indústria do petróleo, ao abastecimento nacional de combustíveis, ao
Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis e ao Plano Anual de Estoques
Estratégicos de Combustíveis.
O Sistema Nacional de Combustíveis é atividade de utilidade
pública, abrangendo as atividades de produção, importação, exportação,
transporte, transferência, armazenagem, estocagem, distribuição, revenda e
comercialização de biocombustíveis, assim como avaliação de conformidade
e certificação de sua qualidade (art. 1º, § 1º, II, com a redação dada pela
Medida Provisória nº 532/2011).
De acordo com o § 3o do art. 1º, alterado pela Medida Provisória nº 532,
de 28 de abril de 2011, a regulação e a fiscalização por parte da ANP abrangem
também as atividades de produção, armazenagem, estocagem, comercialização,
distribuição, revenda, importação e exportação de produtos que possam
380
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
ser usados, direta ou indiretamente, para adulterar ou alterar a qualidade de
combustíveis. [16]
Não teria êxito a ação da autarquia se seus agentes não tivessem as
necessárias prerrogativas no exercício da atividade fiscalizadora [17]. Nesse
sentido, os servidores (inclusive dos órgãos conveniados) estão autorizados
a emitir autos de infração, instaurar processos administrativos, a interditar,
total ou parcialmente, instalações e equipamentos (como aposição de lacre em
bombas de abastecimento), bem como apreender bens e produtos (arts. 5º e 12
da Lei nº 9.847/99).
Independentemente da atuação dos agentes da ANP, qualquer pessoa,
constatando infração às normas relativas à indústria do petróleo, ao abastecimento
nacional de combustíveis, ao Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis
e ao Plano Anual de Estoques Estratégicos de Combustíveis, poderá dirigir
representação à Agência, conclamando-a ao exercício do seu poder de polícia.
A ANP deve ser comunicada, em até 24 horas, pelo agente responsável pela
fiscalização se for interditado algum estabelecimento ou equipamento, bem como
em caso de apreensão de bens e produtos, sob pena de responsabilidade funcional,
encaminhando-lhe cópia do auto de infração e, se houver, da documentação que o
instrui. A interdição ou apreensão, por ser medida temporária, pode ser levantada,
uma vez cessadas as causas que a determinaram (§ 2º do art. 5º).
As penas de apreensão de bens e produtos, de perdimento de produtos
apreendidos, de suspensão de fornecimento de produtos e de cancelamento do
registro do produto serão aplicadas, conforme o caso, quando forem constatados
vícios de quantidade ou de qualidade por inadequação ou falta de segurança do
produto. Para este fim são de suma importância as normas técnicas baixadas
pela Agência em vários atos administrativos [18].
Tratando-se de produtos fora das especificações, com vício de qualidade
ou quantidade, suscetíveis de reaproveitamento, total ou parcial, a ANP notificará
o autuado ou o fornecedor para proceder à sua retirada para reprocessamento ou
decantação, cujas despesas e eventuais ressarcimentos por perdas e danos serão
suportados por aquele que, no julgamento definitivo do respectivo processo
administrativo, for responsabilizado pela infração cometida.
Após o recebimento do auto de infração, será instaurado processo
administrativo, que deverá conter os elementos suficientes para determinar a
natureza da infração, a individualização e a gradação da penalidade, assegurado
o direito de ampla defesa e o contraditório (art. 13).
Caso seja comprovada a importação, exportação, comercialização de
petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis fora de especificações
técnicas, com vícios de qualidade ou quantidade, inclusive aqueles decorrentes
da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem ou
381
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
rotulagem, que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se
destinam ou lhes diminuam o valor (infração prevista no inciso XI do art. 3º da
Lei nº 9.847/99), após a decisão definitiva proferida no processo administrativo,
a autoridade competente da ANP, sob pena de responsabilidade, encaminhará
ao Ministério Público cópia integral dos autos, para a investigação criminal e
eventual oferecimento de denúncia.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL E CRIMINAL DOS INFRATORES E SÓCIOS
Em relação às sanções civis impostas aos fornecedores e transportadores de
petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis pelos vícios de qualidade
ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se
destinam ou lhes diminuam o valor, torna-se imperativo associar a responsabilidade
objetiva prevista na Lei nº 9.478/97 ao Código de Defesa do Consumidor.
O fornecedor de combustível adulterado (vendedor ou distribuidor) é
responsabilizado pelo “vício do produto”, expressão utilizada no art. 18 do CDC
para identificar os vícios de qualidade ou quantidade que o torne impróprio ou
inadequado ao consumo a que se destina, bem como lhes diminua o valor, “assim
como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do
recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária” (quase sempre
o combustível adulterado é de qualidade inferior ou não guarda relação com a
indicação do rótulo ou de alguma mensagem publicitária). No mesmo artigo, o
§ 6º, inciso II, complementa o caput, dispondo que os produtos adulterados são
considerados impróprios ao consumo.
A responsabilidade civil de que trata o art. 18 é solidária, portanto,
distribuidor e revendedor podem ser demandados conjuntamente, e, em razão do
art. 23, objetiva, eis que “a ignorância do fornecedor sobre os vícios de qualidade
por inadequação dos produtos e serviços não o exime de responsabilidade”.
Ao lado da ação individual, movida pelo consumidor, o Ministério
Público poderá pleitear a indenização dos fornecedores por meio da ação civil
pública, nos termos das Leis nº 7.347/1985 (arts. 1º, II e 5º, I) e 8.078/1990 (art.
81 e 82, I). Sobre o tema decidiu a Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro que
Os estabelecimentos que comercializam combustíveis adulterados
possuem legitimidade para figurar no pólo passivo da ação civil pública.
É dever dos fornecedores do produto disponibilizar no mercado produtos
que observem as normas estabelecidas pelo órgão regulador. A Lei nº
7347/85 prevê a possibilidade de ação civil pública de responsabilidade
por danos morais e materiais, sendo admissível seu ressarcimento
382
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
coletivo. Desprovimento do primeiro e terceiro recursos e provimento
do segundo. [19]
Os sócios da sociedade empresária fornecedora podem ser
responsabilizados pelos danos decorrentes da adulteração, com fundamento
na responsabilidade extracontratual (art. 186 do Código Civil), devidamente
comprovada sua participação, como decidiu a Décima Segunda Câmara do 1º
Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo [20]:
[...] 2. A responsabilidade atribuída à empresa ré é de natureza contratual.
Assim, não há dúvida quanto sua legitimidade passiva. Os demais coréus não foram incluídos no pólo passivo em razão de serem sócios da
primeira ré, mas sim por lhes ser atribuída responsabilidade de natureza
extracontratual, própria, pessoal, consistente em promover adulteração
com utilização de produtos químicos no combustível transportado.
A responsabilidade civil independe da criminal e a inexistência de
investigação dos fatos pela Polícia não obsta o ajuizamento da ação.
Ademais, independentemente da incidência do CDC à relação contratual,
o Código Civil estabelece a responsabilidade objetiva dos empresários e
sociedades empresárias pelos danos ocasionados pelos produtos postos em
circulação (art. 931).
Para a efetivação da reparação dos danos causados ao Sistema Nacional
de Combustíveis podem ser responsabilizados tanto as pessoas jurídicas
como também as pessoas físicas, autoras, co-autoras ou participantes do
fato e os sócios das pessoas jurídicas. O art. 18 da Lei nº 9.847/99, na linha
do mesmo artigo do CDC, impõe a solidariedade entre os fornecedores e
transportadores de petróleo e seus derivados, de gás natural e condensado,
bem como de álcool etílico combustível, pelos vícios de qualidade ou
quantidade, decorrentes da disparidade com as indicações constantes
do recipiente da embalagem ou rotulagem, que os tornem impróprios ou
inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor. A
responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas naturais,
autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato (§ 2º).
Dentre as medidas previstas na Lei nº 9.847/99 para garantir o
ressarcimento aos danos causados ao abastecimento nacional de combustíveis, ou
ao sistema nacional de estoques de combustíveis, encontra-se a desconsideração
da personalidade jurídica. Não se pode olvidar que o Sistema Nacional de
Combustíveis é considerado atividade de utilidade pública (art. 1º, § 1º); por
conseguinte, há um interesse especial do legislador em garantir a efetividade
383
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
na aplicação das sanções previstas e a personalidade jurídica das sociedades
envolvidas na indústria do petróleo não pode representar um freio à eficácia
da norma, deixando impune o sócio que se locupleta através da autonomia
subjetiva e objetiva da pessoa jurídica.
O § 3º do art. 18 permite ao juiz aplicar o instituto quando verificar, no
caso concreto, que a personalidade jurídica da sociedade é um obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados pela conduta da pessoa jurídica perpetrada
por seus sócios ou administradores. A redação do dispositivo segue a orientação
inaugurada pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 28, § 5º), reproduzida
na lei ambiental (Lei nº 9.605/98, art. 4º), ou seja, não enumera hipóteses de
incidência da desconsideração, apenas enuncia a aplicação da medida em
caráter subsidiário, quando o lesado não encontrar o ressarcimento pleno no
patrimônio do lesante – a pessoa jurídica. Pela orientação legislativa, seriam
pressupostos para a desconsideração a existência da pessoa jurídica, o dano
sofrido e a presunção de insolvência do infrator, sendo os sócios chamados a
responder, subsidiariamente, pela reparação não integralmente efetivada.
O fundamento para a aplicação da desconsideração da personalidade
jurídica no Brasil sempre trouxe controvérsias, tanto na doutrina quanto
na jurisprudência. O fato de o art. 28 do CDC trazer causas diversas para a
aplicação da medida judicial, isto é, no caput indicar comportamentos ilícitos
dos sócios ou administradores, revelando o critério subjetivo na aferição do
abuso da personalidade jurídica, e no § 5º simplesmente indicar que qualquer
obstáculo ao ressarcimento devido à autonomia objetiva da pessoa jurídica
enseja a desconsideração. Ressalte-se que diplomas posteriores, ao tratar do
mesmo instituto, como as Leis nº 8.884/94, 9.605/98, 9.847/99, ou o Código
Civil (art. 50), não adotaram critérios diferenciados.
Para subsidiar o entendimento firmado pelo STJ em 2003, quando foi
instado a se pronunciar sobre qual das duas “teorias” ou fundamentos seria
aplicado na relação de consumo, cabe discorrer brevemente sobre as opiniões
acerca do § 5º do art. 28 do CDC.
A amplitude da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica
(“sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo”) deixa clara a
intenção do legislador de proteger direitos básicos do consumidor, notadamente
a efetiva reparação de anos materiais e morais (art. 6º, VI). No entanto, diante
das limitações contidas no caput (abuso do direito, ato ilícito, violação ao
contrato, etc), divergiram os doutrinadores sobre a possibilidade de conciliar o
caput com o parágrafo.
Na linha da possibilidade de conciliação, Domingos Afonso Krieger
Filho [21], sustenta que o parágrafo será aplicado sempre que houver lesão ao
consumidor e o patrimônio do fornecedor for insuficiente, desde que haja nexo
384
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
causal entre a conduta e o dano. Assim, o parágrafo complementaria o caput,
trazendo novas possibilidades para a desconsideração.
No mesmo sentido, porém de forma restritiva, Fabio Ulhôa Coelho prevê
sua aplicação apenas no sentido de sanções de caráter não pecuniário a que se
encontra sujeito o fornecedor, que se utiliza da autonomia subjetiva para se
furtar ao cumprimento de uma obrigação legal [22].
Pela aplicação exclusiva do caput pugna Rachel Sztajn, sustentando
que a interpretação literal do § 5º implicaria na derrogação do caput e do
princípio da autonomia da pessoa jurídica [23]. No mesmo sentido, Regis
Fichtner Pereira expõe:
O tratamento, portanto, dado à desconsideração da personalidade jurídica
no Código do Consumidor, na hipótese de se interpretar a norma na sua
literalidade, na verdade aniquilaria toda a teoria formada sobre este
tema, uma vez que de fato somente se pode falar em desconsideração
da personalidade jurídica, se se reconhecer a existência de uma
personalidade a ser desconsiderada. O Código de Defesa do Consumidor,
na sua expressão literal, simplesmente ignora o princípio da separação de
patrimônios, ao preceituar que o patrimônio do sócio poderá ser atingido
sempre que o credor não puder receber seu crédito da pessoa jurídica.[24]
No estudo realizado sobre o tema [25], chegou-se à constatação que o
§ 5º do art. 28 faz sentido na sistemática do CDC (proteção dos interesses do
consumidor que teve direitos básicos violados ou não atendidos) e de leis que
visam à proteção especial de interesses tutelados pela própria Constituição
Federal, como a defesa do meio ambiente e a livre concorrência. Tais
princípios, conjugados, podem ser invocados para justificar o fundamento
objetivo adotado pelo § 3º do art. 18 da Lei nº 9.847/99, inclusive se for
considerada que ela visa atender aos objetivos da Política Energética Nacional,
sendo uma complementação da Lei do Petróleo, onde tais princípios estão
expressamente indicados.
A questão principal a ser considerada na análise de todos os artigos de leis
que apresentam a desconsideração sob forma de “obstáculo ao ressarcimento”,
é que não se trata de desconsideração da personalidade jurídica, e sim de
responsabilidade subsidiária de sócio, de modo objetivo e solidário. Há,
portanto, uma designação equivocada sob o nomen juris “desconsideração da
personalidade jurídica” de um outro instituto pertinente ao direito societário.
“Obstáculo” refere-se à incapacidade patrimonial de a pessoa jurídica
arcar com o prejuízo em razão de fatos internos ou externos a ela (v.g. má
administração, gestão fraudulenta, recessão econômica, falta de crédito, etc),
385
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
conduzindo a uma situação de insolvência econômica. Ademais, embora não
tenha servido de inspiração ao legislador brasileiro, há semelhança entre o texto
do § 5º do art. 28 com o art. 998 do Código Civil português vigente (DecretoLei nº 47 344 de 25-11-1966), in verbis:
Artigo 998º - (Responsabilidade por factos ilícitos)
1. A sociedade responde civilmente pelos actos ou omissões dos seus
representantes, agentes ou mandatários, nos mesmos termos em que os
comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários.
2. Não podendo o lesado ressarcir-se completamente, nem pelos
bens da sociedade, nem pelo património do representante, agente ou
mandatário, ser-lhe-á lícito exigir dos sócios o que faltar, nos mesmos
termos em que o poderia fazer qualquer credor social. [grifos nossos]
Tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil
português estabelecem um benefício de ordem para os sócios. Ocorre que o
Código português responsabiliza a sociedade perante o lesado, equiparando-o a
qualquer credor, e, subsidiariamente os sócios, mas tendo como premissa atos
ilícitos praticados por seus representantes em sentido lato (inclusive agentes e
mandatários). No § 5º do art. 28, a regra é muito mais abrangente, eis que não
é necessária a prova do ato ilícito, obviamente partindo-se do fato de que os
requisitos do caput não seriam exigíveis para a aplicação da desconsideração
e, portanto, os sócios respondem independentemente de culpa pela reparação
civil. A contrario sensu, não seria exigido dos sócios nenhuma prestação se
a pessoa jurídica puder efetuar o pagamento integral, mesmo que tenha sido
verificado o abuso de sua personalidade por parte de um integrante.
Conclui-se, em apertada síntese, que as responsabilidades solidária
e subsidiária não se confundem com a desconsideração, pois enquanto esta
altera a sujeição passiva do devedor perante o credor, aquelas a ampliam,
reconhecendo seu caráter de co-responsabilidade (solidariedade) ou
acessoriedade (benefício de ordem). Desta forma, pela sua generalidade e
dissonância dos reais objetivos da desconsideração, isto é, coibir o abuso
da personalidade jurídica perpetrado pelo sócio, tendo como premissa o
inafastável elemento subjetivo, o § 5º do art. 28 está em descompasso com
a disregard doctrine, ainda que possa ser utilizado como norma em favor do
consumidor ou de outros interesses tutelados em leis especiais.
Em 4 de dezembro de 2003, a Terceira Turma do STJ, no julgamento
do Recurso Especial nº 279273/SP, por maioria, vencidos os Ministros Ari
Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito, posicionou-se pela aplicação às
386
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
relações de consumo da “teoria menor” da desconsideração, segundo a qual não
é necessário ficar comprovado o abuso da personalidade jurídica pelos sócios
para a efetivação da medida.
O relator originário, Ministro Ari Pargendler, não concordou com o
fundamento adotado pelo voto condutor no julgamento da apelação pelo
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que admitiu ter o § 5º do artigo
28 do CDC criado nova hipótese ensejadora da desconsideração, tornando sua
aplicação francamente objetiva (qualquer forma de obstáculo ao ressarcimento),
independentemente de atuação culposa por parte dos administradores. Apoiado
em Pontes de Miranda, ao discorrer sobre a autonomia da pessoa jurídica,
em seu voto o Ministro reafirmou a existência de patrimônios distintos e,
corroborando as opiniões de Cândido Dinamarco e Waldirio Bulgarelli [26],
concluiu que, sem a presença de uma das circunstâncias do caput, o suporte
fático para a desconsideração não se completa, portanto, não incide a aludida
norma jurídica, sendo desinfluente o § 5º determinar que a desconsideração
possa ser mero efeito da necessidade de ressarcir os prejuízos causados aos
consumidores. Ademais, acrescentou, “na técnica de interpretação, o parágrafo
não tem autonomia, subordinando-se aos limites do caput”.
Em seu voto, a Ministra Nancy Andrighi, relatora para o acórdão,
discordou do entendimento do Ministro Ari Pargendler sobre a subordinação
do § 5º aos requisitos do caput do art. 28, destacando que a “teoria maior”
da desconsideração.
é a regra geral no sistema jurídico brasileiro e, segundo seu postulado,
não pode ser utilizada a desconsideração com a mera demonstração
de estar a pessoa jurídica inadimplente para o cumprimento de suas
obrigações. Exige-se, para além desta prova, ou a demonstração de desvio
de finalidade ou a confusão patrimonial, nos termos do art. 50 do Código
Civil. Sem embargo, a teoria menor da desconsideração foi acolhida em
no ordenamento jurídico pátrio no Direito do Consumidor e no Direito
Ambiental, incidindo com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica
para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência
de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. [27]
Os demais Ministros da Terceira Turma, à exceção de Carlos Alberto
Menezes Direito, acompanharam o entendimento da Ministra e, por conseguinte,
firmou-se a interpretação de que o § 5º tem exegese autônoma em relação ao
caput. Assim, o terceiro que contratou com a pessoa jurídica não suportará o
risco empresarial decorrente do exercício da empresa, cabendo aos sócios e/ou
administradores assumi-lo, “ainda que estes demonstrem conduta administrativa
387
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta
culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica”,
como consignado na ementa do acórdão.
Como a redação do § 3º do art. 18 da Lei nº 9.847/99 é a mesma do §
5º do art. 28 do CDC, por analogia, a referência ao “Direito do Consumidor” e
“Direito Ambiental” na ementa não é exaustiva, sendo a teoria menor também
aplicável aos danos causados ao abastecimento de combustíveis.
A adulteração de combustíveis também acarreta sanções criminais aos
responsáveis, autores ou participantes dos atos delituosos, comumente sócios
ou administradores de sociedades que exploram atividades como postos de
gasolina ou de transporte de combustíveis e derivados.
No exame da responsabilidade penal apresenta-se a sanção prevista no
art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.176/91 (detenção de 1 a 5 anos), que considera crime
contra a ordem econômica adquirir, distribuir e revender derivados de petróleo,
gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico, hidratado carburante e
demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas legais.
Trata-se de norma penal que deve ser analisada, para fins de incidência do delito,
à luz das disposições da legislação especial, inclusive os atos administrativos da
ANP no uso de sua competência (art. 8º, I da Lei nº 9.478/97).
Em relação à competência da Justiça Estadual para o julgamento
do crime de adulteração de combustíveis, o art. 2º da Lei nº 8.176/91 [28]
provocou interpretações divergentes sobre eventual interesse da União no
feito, atraindo a competência da Justiça Federal, tal como relatado pelo
Ministro Jorge Mussi, no Conflito de Competência (CC) nº 95591/MG,
julgado em 2010 pela Terceira Seção do STJ.
O Juízo Federal da 9ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado de
Minas Gerais, acolhendo a manifestação do Parquet Federal, suscitou
conflito negativo de competência, sendo suscitado o Juízo de Direito da
2º Vara Criminal de Barbacena/MG. Concluído o inquérito policial, o
Ministério Público do Estado de Minas Gerais ofereceu denúncia contra
quatro pessoas pela suposta prática dos crimes de comercialização de
combustível adulterado e exploração de matéria-prima sem autorização
legal (art. 2º da Lei nº 8.176/91) e quadrilha (art. 288 do Código Penal).
O Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal de Barbacena, de imediato,
remeteu os autos à Justiça Federal, asseverando tratar-se de matéria do
interesse da União, [pois entendeu que havia crime contra o patrimônio
desta, na modalidade de usurpação].[29]
No voto do relator ficou consignado que “O fato ora apurado
(comercialização de combustível adulterado e exploração de matéria-prima
388
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
sem autorização legal), por si só, não apresenta qualquer lesão a bens,
serviços ou interesses da União [...]”. Em razão da ausência de prejuízo
evidenciado no processo a entidade federal, também “não há falar em
competência da Justiça Federal em decorrência da fiscalização pela Agência
Nacional de Petróleo-ANP”.
O cotejo de vários julgados do STJ no mesmo sentido permite apontar
os seguintes fundamentos para a fixação de competência da Justiça Estadual:
a) Súmula 498 do STF: “Compete à Justiça dos Estados, em ambas as
instâncias, o processo e o julgamento dos crimes contra a economia popular.”
(AgRg no CC 90035/SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Terceira Seção, DJe de
13/05/2009);
b) “[...] o fato de na Lei n.º 8.176/91, no seu art. 2º, constar referência a bem
ou matéria-prima da União, não excepciona em todos os casos o julgamento dos
crimes dessa natureza pelo foro federal, tampouco sinaliza para interpretações
nesse sentido, [...] devendo-se respeitar, como na espécie, o estrito interesse da
comunidade local por onde se perfila a escolha do juiz natural.” (trecho do voto
da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, relatora do CC 56.804/SP, Terceira
Seção, DJ de 9/4/07);
c) A Lei n.º 8.137/90 não previu a competência diferenciada para os
crimes elencados contra a ordem tributária, econômica e contra as relações
de consumo. Dessa forma, evidencia-se a competência da Justiça Comum
Estadual, ex vi do art. 109, inciso VI, da Constituição Federal (CC 42.957/PR,
Rel. Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, DJ de 2/8/04) [30]; e
d) a possível prática de dumping ou adulteração de combustível deve
provocar lesão a bens, serviços ou interesses da União ou de entidades federais,
nos termos do art. 109, inciso IV, da Carta Magna. (CC 15.206/RJ, Rel. Ministro
Fernando Gonçalves, Terceira Seção, DJ 23/6/97).
Dentre os fundamentos apontados pelo STJ, a invocação da Súmula
498 do STF, que em seu verbete menciona os “crimes contra a economia
popular”, permite concluir que a condenação transitada em julgado pelo crime
de adulteração de combustível impõe ao sujeito passivo, enquanto perdurarem
os efeitos da condenação, o impedimento para ser administrador de qualquer
sociedade, nos termos do § 1º do art. 1.011 do Código Civil e do § 1º do art. 147
da Lei nº 6.404/76.
Aspecto relevante na jurisprudência criminal do STJ é a inclusão na
denúncia pelo crime de adulteração de combustíveis de sócios integrantes da
sociedade empresária responsável pela infração, apenas pelo fato de comporem
os quadros da pessoa jurídica, sem prova indiciária de sua participação.
Sobre o tema, decidiu a Sexta Turma do STJ, no julgamento do recurso
de habeas corpus (HC) nº 34.364/MG, que “A despeito de não se exigir a
389
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
descrição pormenorizada da conduta do agente nos crimes societários, isso
não significa que o Parquet possa deixar de estabelecer qualquer vínculo
entre o denunciado e o fato a ele imputado.” Em seu voto, o relator, Ministro
Hamilton Carvalhido, observou não ser suficiente para a persecução criminal
o fato de o paciente ter a condição de sócio da sociedade empresária apontada
como infratora, “se não restar comprovado, ainda que com elementos a serem
aprofundados no decorrer da instrução criminal, o mínimo vínculo entre
as imputações e a sua atuação na qualidade de sócio.” Citando precedente
do STF (HC 89.105-5, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de
06/11/2006), o Ministro entendeu violados os princípios do devido processo
legal (CF, art. 5º, LIV), da ampla defesa, do contraditório (CF, art. 5º, LV) e
da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). [31]
Por outro lado, a Quinta Turma, no julgamento do Recurso Ordinário em
Habeas Corpus (RHC) nº 17591/SP, entendeu que se a denúncia descreve, clara
e objetivamente, a conduta do acusado, gerente dos postos de abastecimento
envolvidos na prática delitiva, destacando a sua participação no grupo de pessoas
que integravam a administração do estabelecimento onde se comercializava
gasolina adulterada, não há ilegalidade da prisão. Para restar violado o princípio
da ampla defesa deve existir prova inequívoca de que o acusado não exercia
função de gerência na sociedade administradora do posto de abastecimento.
Na fundamentação de seu voto, a Ministra Laurita Vaz, relatora,
observou que “eventual acolhimento da alegação de ausência de elemento
material indiciário [o fato de não ser gerente do estabelecimento], apto a
justificar a imputação, requer, indubitavelmente, o exame acurado do conjunto
fático-probatório, o qual somente poderá ser realizado na instrução criminal,
sendo, como é sabido, incabível na via estreita do habeas corpus.” Advertiu
também a relatora que não há inépcia da denúncia, pois “nos crimes societários
é dispensável a descrição minuciosa e individualizada da conduta de cada
acusado, bastando, para tanto, que a exordial narre a conduta delituosa de forma
a possibilitar o exercício da ampla defesa.”[32]
Em abril de 2009, a Sexta Turma, no julgamento do recurso de habeas
corpus (HC) nº 71493/PE [33], afastou a responsabilidade solidária e objetiva,
baseada em relatório do órgão fiscalizador, que atribuiu responsabilidade a
todos os envolvidos, sem individualizar as condutas de per si.
O Ministério Público do Estado de Pernambuco denunciou cinco
pessoas pela prática do crime de adulteração (art. 1º da Lei nº 8.176/91), dentre
elas ex-presidente de distribuidora de petróleo e derivados. A peça vestibular
da ação penal foi feita com supedâneo no laudo emitido pela fiscalização da
ANP, onde foram constatadas irregularidades numa amostra de combustível
retirada de um posto de bandeira localizado em Recife. A coleta, segundo o
390
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
laudo da ANP, mostrou que o ponto de ebulição do combustível era superior
ao permitido pela regulamentação, o que prejudicaria a qualidade do produto
vendido aos consumidores.
Diante da impossibilidade de definir tecnicamente o momento da
adulteração do combustível (se dentro ou fora do recinto da distribuidora), a
Agência responsabilizou todos os envolvidos da cadeia de comercialização –
distribuidor, transportador e varejista – pela irregularidade, aplicando o § 1º e o
caput da Lei nº 9.847/99.
A defesa dos pacientes sustentou que a denúncia do Ministério Público não
teria justa causa, por estar lastreada nas conclusões do processo administrativo, que
por sua vez se baseou numa disposição de lei cuja matéria não é criminal (fiscalização
das atividades de abastecimento de combustíveis), prevendo, como consignado na
ementa, sanções administrativas. Por conseguinte, segundo a tese da defesa, o MP
não descreveu as condutas de cada réu, individualizando-as, mas sim responsabilizou
a todos eles objetivamente, ou seja, sem observar sua culpa ou dolo.
A relatora do HC, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, reconheceu a
procedência parcial das alegações da defesa, reiterando entendimento da Corte
de que nos “crimes societários”, como o de adulteração de combustíveis, não
se exige a descrição pormenorizada da conduta de cada denunciado [34]. Sem
embargo, o uso de informações de processos administrativos pelo Ministério
Público para embasar denúncias é inadmissível, quando a peça acusatória se
reduz à simples reprodução de relatório, como o elaborado pela ANP, sem
individualizar as condutas de cada réu e sua tipificação.
Observou a julgadora que é inaceitável a responsabilidade solidária no
processo penal, pontuando que, nessa seara, a responsabilidade é sempre pessoal.
“A falta de imputação ou a imputação deficiente na denúncia impossibilitam o
exercício da ampla defesa”, em desacordo com o art. 5º, LV, da Constituição,
complementou a Ministra relatora em seu voto.
A decisão unânime da Sexta Turma determinou a concessão de
habeas-corpus a todos os pacientes, a anulação do processo penal a partir do
oferecimento da denúncia, ressalvado o direito do MP formular nova acusação,
desde que individualize a conduta dos acusados.
Ainda em 2009, no julgamento do HC 69018/SP, a Sexta Turma
manifestou-se no mesmo sentido, isto é, pela necessidade de individualização
na denúncia da conduta de cada um dos acusados pelo crime de adulteração
de combustíveis (ao contrário de uma imputação genérica), sob pena de restar
caracterizado constrangimento ilegal. A decisão foi assim ementada:
HABEAS CORPUS. ADULTERAÇÃO DE COMBUSTÍVEL. ART. 1º, I,
DALEI Nº 8.176/91. DENÚNCIA. INÉPCIAFORMAL. NECESSIDADE
391
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
DE INDIVIDUALIZAR MINIMAMENTE A CONDUTA PRATICADA
PELOS ACUSADOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL.
1. São uníssonos os precedentes do Superior Tribunal de Justiça no sentido
de que, embora não se exija a descrição pormenorizada da conduta de
cada denunciado nos casos de crimes societários, é imprescindível que
o órgão acusatório estabeleça a mínima relação entre os denunciados e o
delito que lhes é imputado.
2. É formalmente inepta a denúncia que não demonstra, sequer
genericamente, a responsabilidade dos denunciados perante a empresa
ou o nexo de causalidade entre a conduta deles e o crime supostamente
cometido, tampouco aponta quais foram os meios empregados ou de que
maneira foi praticado o delito.
3. Ordem concedida para anular a ação penal a partir da denúncia,
inclusive, por inépcia formal, sem prejuízo de que outra seja
elaborada com o cumprimento dos ditames legais, com extensão de
ofício aos corréus [35].
A ausência de previsão de responsabilidade em ato administrativo
regulador (Portaria da ANP) pode afastar a responsabilidade penal dos gestores
de distribuidora de combustíveis, ou de qualquer outra pessoa que tenha
concorrido para a perpetração do delito previsto no art. 1º, I, da Lei 8.176/91
(adulteração de combustível)? A questão proposta foi analisada no julgamento
do HC 60652/PB [36].
Em apertada síntese a descrição dos fatos é a seguinte: X, sócioadministrador de uma sociedade distribuidora de combustíveis, foi denunciado
pela suposta prática do crime de adulteração de combustível. Consta da denúncia
que o paciente negociava o combustível adulterado em comunhão de ações e
desígnios com mais duas pessoas, administradores de outra sociedade, e esta o
comercializava em desacordo com as especificações da ANP, como demonstra a
prova pericial. O Tribunal de Justiça da Paraíba denegou a ordem ali impetrada
pela qual se pretendia o trancamento da ação penal, sob a alegação de negativa
de autoria e de materialidade. Contra a decisão, foi impetrado no STJ habeas
corpus substitutivo do recurso ordinário, com pedido de liminar.
A negativa de autoria se deve ao fato de o sócio de uma distribuidora não
poder ser réu na ação penal. De acordo com o art. 3º da Portaria nº 248/2000 [37],
da ANP, a responsabilidade acerca da qualidade e quantidade dos combustíveis
recai sobre o revendedor varejista (pessoa jurídica), cabendo a este coletar
amostra de cada compartimento do caminhão-tanque que contenha o combustível
a ser recebido e efetuar as análises descritas no Regulamento Técnico, bem como
recusar o recebimento de produto desconforme. Quanto à falta de materialidade,
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
sustenta-se que os testes de qualidade dos produtos descritos nas notas fiscais
foram feitos e estão dentro das especificações da ANP.
A Quinta Turma, seguindo o voto do relator, Ministro Arnaldo Esteves
Lima, decidiu pela denegação da ordem, com base nos seguintes fundamentos:
a) o trancamento de ação penal, pela via estreita do habeas corpus, somente é
possível quando, pela mera exposição dos fatos narrados na denúncia, verificase que há imputação de fato penalmente atípico ou que não existe nenhum
elemento indiciário demonstrativo da autoria do delito imputado ao paciente
ou, ainda, quando extinta encontra-se punibilidade; b) distribuir combustível
em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei constitui crime
(art. 1º, I, da Lei 8.176/91); c) o ato administrativo regulador (Portaria ANP
248/00) que impõe obrigações administrativas ao revendedor varejista quanto
à quantidade e à qualidade do produto não tem o condão de, por si só, afastar
a responsabilidade penal dos gestores da distribuidora ou de qualquer outra
pessoa que tenha concorrido para a perpetração do delito; d) o desfecho da lide
pressupõe, necessariamente, o exame da prova, o que não se adéqua à ação de
pedir de habeas corpus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A adulteração de combustíveis acarreta conseqüências que transcendem
a vítima e o autor das condutas ilícitas perpetradas. A sociedade e, sobretudo, o
consumidor e os concorrentes do mau empresário sofrem os efeitos desta prática. O
primeiro por estar adquirindo, inconscientemente, um combustível de má qualidade,
com reflexos diretos (mediatos ou imediatos) no desempenho do veículo e em sua
manutenção, sendo lesado em sua boa-fé objetiva tanto no momento da contratação
como nas fases pré e pós-contratual. O concorrente por não poder praticar preço
inferior aos desleais empresários, que não adquirem combustível de procedência
controlada ou em desacordo com as especificações técnicas, perdendo parte de sua
clientela em razão de prática anticoncorrenciais proscritas.
Para garantir a responsabilização de todos aqueles que, de algum modo,
intervêm na cadeia produtiva, a legislação estabelece, tal qual no diploma
consumerista, a responsabilidade objetiva e solidária dos partícipes, cabendo
em ação regressiva a verificação da conduta dolosa ou culposa dos responsáveis.
Independentemente da medida, as sanções administrativas arroladas no art. 2º
da Lei nº 9.847/99.
Cabe a ANP a fiscalização desta atividade em todas as suas etapas, nos
termos da Lei nº 9.847/99, bem como a aplicação das sanções administrativas
competentes e, se necessário, poderá em juízo, na ação de cobrança das
multas, ser requerida e aplicada a desconsideração da personalidade jurídica da
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
sociedade infratora, a fim de impedir que a separação formal e patrimonial da
pessoa jurídica não sirva de obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados
ao Sistema Nacional de Abastecimento de Combustíveis.
Consoante a interpretação vigente no STJ esposada no RESP 279273/SP
e considerando-se a redação similar do § 5º do art. 28 do CDC ao § 3º do art. 18
da Lei nº 9.847/99, aplica-se a teoria menor da desconsideração para as relações
jurídicas entabuladas no sistema nacional de combustíveis. Portanto, sempre que
houver presunção de insolvência da pessoa jurídica infratora, sendo necessário
para garantir a efetiva aplicação da sanção, poderá o juiz responsabilizar
subsidiariamente os sócios e administradores para que respondam pelos atos da
sociedade, independentemente de culpa.
Tal orientação legislativa, corroborada pelo STJ, denominada “teoria
menor da desconsideração”, não se coaduna com a disregard doctrine, na
medida em que se limita a traduzir a aplicação do instituto a uma hipótese
de responsabilidade objetiva, solidária e subsidiária dos sócios, produzindo, na
verdade, não a desconsideração, mas a despersonalização da pessoa jurídica.
Como examinado, a responsabilidade solidária e subsidiária amplia
a sujeição passiva do devedor, enquanto que a desconsideração altera essa
imputação, transferindo-a da sociedade para o sócio, tendo como premissa o
elemento subjetivo.
No âmbito criminal, vários aspectos do crime de adulteração de
combustíveis foram analisados, a partir do exame de julgados do STJ. O mais
contundente é que, independentemente da obrigação de indenizar, a adulteração
de combustíveis enseja a incidência da pena privativa de liberdade (detenção),
podendo o MP oferecer denúncia com base no procedimento administrativo
instaurado pela ANP ou em inquérito policial. Sem embargo, é imperativo que
as condutas perpetradas sejam individualizadas, não se aplicando a teoria do
risco proveito em matéria criminal, sob pena de eliminação ou restrição da
garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa.
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
REFERÊNCIAS
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da personalidade jurídica no sistema jurídico da Common Law e sua aplicação
nos direitos inglês e norte-americano – influência no Código Brasileiro de
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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SZTAJN, Rachel. Desconsideração da personalidade jurídica. Revista de Direito
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_____________________________________
[1] Art. 5º, inciso XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
ou ameaça a direito;”
[2] Note-se que outros objetivos da Política Energética brasileira relacionados à
proteção da qualidade do combustível são: “IV - proteger o meio ambiente e promover
a conservação de energia; V - garantir o fornecimento de derivados de petróleo em todo
o território nacional, nos termos do § 2º do art. 177 da Constituição Federal; [...] IX promover a livre concorrência; [...].”
[3] Embora não seja o objetivo precípuo do trabalho, cabe ressaltar que a adulteração
de combustíveis costumeiramente tem por finalidade fraudar o pagamento de tributos,
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
sendo os outros objetivos do fraudador meios para atingir esta meta. Rodolfo Landim,
engenheiro civil e de petróleo, ex-diretor-gerente de exploração e produção e presidente
da Petrobras Distribuidora S.A. e articulista do jornal Folha de São Paulo, aponta as
fraude mais comuns dos sonegadores: “A partir da criação de distribuidoras “barriga de
aluguel”, alguns empresários praticam sistematicamente a sonegação da CIDE, do PIS/
COFINS e/ou do ICMS. Entre as práticas mais comuns, destacam-se: 1) a sonegação
de tributos no diesel, devido a alíquotas de ICMS diferenciadas entre Estados; 2) venda
de álcool supostamente para outros fins, com menor incidência de carga tributária; 3)
falsa operação interestadual de etanol hidratado; 4) venda de álcool hidratado com nota
fiscal de anidro (que, por ser misturado à gasolina, não paga imposto ao sair da usina);
5) reutilização de uma mesma nota fiscal; 6) venda sem nota fiscal. As “barrigas de
aluguel” não possuem ativos e operam unicamente intermediando as operações. Essas
distribuidoras são abertas e fechadas com grande velocidade, engordando as contas
bancárias de seus proprietários e deixando passivos tributários significativos. Segundo
o SINDICOM (Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de
Lubrificantes), essa perda tributária, apenas no álcool hidratado, pode chegar a R$ 1
bilhão em 2010, valor equivalente ao custo de construção de 100 mil casas populares.
[...]Perdem as distribuidoras e os revendedores éticos, que sofrem prejuízo ao competir
com preços predatórios e têm sua imagem desgastada. Por fim, perdem a sociedade
e o Estado, que vêem a receita e a capacidade de investimento reduzidas. Mas a
realidade é que as margens apertadas e o alto valor dos impostos envolvidos criam um
ambiente favorável para a existência de uma competição desleal através de sonegação e
adulteração, caso essas não sejam combatidas.” Disponível em http://www1.folha.uol.
com.br/fsp/mercado/me1510201029.htm . Acesso em 19/4/2011.
[4] O SINDIPOSTO - Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo no
Estado de Goiás – aponta vários defeitos a que o veículo está sujeito com o uso freqüente
de combustível adulterado pode causar vários defeitos, dentre eles: “O entupimento da
bomba de gasolina que fica no tanque e leva o combustível até o motor. Com isso, o
carro começa a falhar e o motor “morre” sendo preciso dar a partida várias vezes para o
carro voltar a funcionar. Nesse caso, o conserto fica em torno de R$ 300,00. A corrosão
do sistema de injeção eletrônica, que é um conjunto de peças que injetam a quantidade
exata de gasolina nos cilindros para o motor funcionar, evitando desperdícios. Se
este sistema parar de funcionar, o carro pára também. Um conserto no sistema de
injeção eletrônica custa, em média, R$ 1.500,00 nos veículos populares. Acúmulo de
resíduos na parte interna do motor, causado pela queima de gasolina adulterada. Esses
resíduos ocupam o espaço de movimentação das peças móveis do motor, dificultando
a articulação dessas peças. Os resíduos podem atingir também a bomba de óleo. Os
defeitos no motor demoram mais a aparecer, cerca de 5.000 km depois dos primeiros
abastecimentos com gasolina adulterada. Se o motor fundir, o conserto não fica por
menos de R$ 1.200,00, variando de acordo com o veículo.” (http://www.sindiposto.com.
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
br/paginas_associados/mercado_comb/adulteracao_comb.htm). Acesso em 22/4/2011.
[5] Segundo a Lei do Petróleo (art. 6º, XXI), entende-se por revenda, para fins da
regulamentação por parte da ANP, a “atividade de venda a varejo de combustíveis,
lubrificantes e gás liquefeito envasado, exercida por postos de serviços ou revendedores,
na forma das leis e regulamentos aplicáveis;”
[6] Segundo a Lei do Petróleo (art. 6º, XX), entende-se por distribuição, para fins da
regulamentação por parte da ANP, a “atividade de comercialização por atacado com a
rede varejista ou com grandes consumidores de combustíveis, lubrificantes, asfaltos
e gás liquefeito envasado, exercida por empresas especializadas, na forma das leis e
regulamentos aplicáveis;”
[7] CF, art. 170 [...] Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer
atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo os
casos expressos em lei.
[8] CF, art. 238. A lei ordenará a venda e revenda de combustíveis de petróleo, álcool
carburante e outros combustíveis derivados de matérias-primas renováveis, respeitados
os princípios desta Constituição.
[9] A Portaria ANP 202/2000 dispõe sobre os requisitos a serem cumpridos para acesso
à atividade de distribuição de combustíveis líquidos derivados de petróleo, álcool
combustível, biodiesel, mistura óleo diesel/biodiesel especificada ou autorizada pela ANP
e outros combustíveis automotivos. No tocante à constituição, instalação e funcionamento
das sociedades distribuidoras, as disposições são bastante semelhantes com as exigências
da Portaria 116 para os revendedores varejistas, como a nacionalidade brasileira da
sociedade, o registro e a autorização, em caráter permanente, concedidos pela ANP e a
vedação de concessão de registro à sociedade empresária com administradores ou sócios
que, nos cinco anos anteriores à data do pedido de registro, tenha sido administrador de
sociedade que não tenha liquidado débitos e cumprido obrigações decorrentes do exercício
de atividade regulamentada pela ANP. Sem embargo, destacam-se como peculiaridades:
(i) a possibilidade de transferência de titularidade do registro de distribuidor, mediante
prévia e expressa aprovação da ANP, desde que o novo titular satisfaça os requisitos
regulamentares; (ii) a exigência prévia à autorização de o empresário possuir base, própria
ou arrendada (contrato com prazo igual ou superior a 5 anos com expressa previsão de
renovação, registrado em cartório na forma de extrato, se for o caso), com instalações
de armazenamento e distribuição de combustíveis líquidos derivados de petróleo, álcool
combustível, biodiesel, mistura óleo diesel/biodiesel especificada ou autorizada pela
ANP e outros combustíveis automotivos, autorizada pela ANP a operar, com capacidade
mínima de armazenamento de 750 m³ (setecentos e cinquenta metros cúbicos); (iii)
comprovação de capital social integralizado de, no mínimo, R$ 1.000.000,00 (um milhão
de Reais), e comprovação da capacidade financeira para obter o registro de distribuidor,
correspondente ao montante de recursos necessários à cobertura das operações de compra
e venda de produtos, inclusive os tributos envolvidos.
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
[10] Art. 10 da Portaria ANP 116/2000. “O revendedor varejista obriga-se a: [...] II
- garantir a qualidade dos combustíveis automotivos comercializados, na forma da
legislação específica; III - fornecer combustível automotivo somente por intermédio
de equipamento medidor, denominado bomba abastecedora, aferida e certificada pelo
Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial - INMETRO ou
por empresa por ele credenciada, sendo vedada a entrega no domicílio do consumidor;
IV - identificar em cada bomba abastecedora de combustível automotivo, no (s) painel
(is) de preços, e nas demais manifestações visuais, de forma destacada, visível e de
fácil identificação para o consumidor, o combustível comercializado, informando se
o mesmo é “aditivado”, ficando facultada a identificação de “comum” para os demais
combustíveis; V - informar ao consumidor, de maneira adequada e ostensiva, a respeito
da nocividade, periculosidade e uso do combustível automotivo; VI - prestar informações
solicitadas pelos consumidores sobre o combustível automotivo comercializado;
VII - exibir os preços dos combustíveis automotivos comercializados em painel com
dimensões adequadas, na entrada do posto revendedor, de modo destacado e de fácil
visualização à distância, tanto ao dia quanto à noite; VIII - exibir em quadro de aviso,
em local visível, de modo destacado, com caracteres legíveis e de fácil visualização,
as seguintes informações: a) o nome e a razão social do revendedor varejista; b) o
nome do órgão regulador e fiscalizador das atividades de distribuição e revenda de
combustíveis: Agência Nacional do Petróleo – ANP, bem como o sítio da ANP na
internet www.anp.gov.br; c) o telefone do Centro de Relações com o Consumidor CRC da ANP, informando que a ligação é gratuita e indicando que para o CRC deverão
ser dirigidas reclamações que não forem atendidas pelo revendedor varejista ou pelo (s)
distribuidor (es); d) o horário de funcionamento do posto revendedor; [...] XV- alienar
óleo lubrificante usado ou contaminado somente às empresas coletoras cadastradas
na ANP; XVI - permitir o livre acesso ao posto revendedor, bem como disponibilizar
amostras dos combustíveis comercializados para monitoramento da qualidade e a
documentação relativa à atividade de revenda de combustível para os funcionários da
ANP e de instituições por ela credenciadas; XVII - atender às demandas do consumidor,
não retendo estoque de combustível automotivo no posto revendedor [o comportamento
contrário configura prática abusiva, nos termos do art. 39, II do CDC]; [...].”
[11] BRASIL. Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e Lubrificantes.
Direitos do Consumidor. Disponível em http://www.fecombustiveis.org.br/index.
php?option=com_content&id=102&task=view&Itemid=40&date=2011-05-01. Acesso
em 21/4/2011.
[12] Segundo a Resolução nº 30, do CONSELHO INTERMINISTERIAL DO AÇÚCAR
E DO ÁLCOOL - CIMA, de 15/5/2003, é de 25% (vinte e cinco por cento) o percentual
obrigatório de adição de álcool etílico anidro combustível à gasolina.
[13] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Oitava Câmara Cível. Apelação com revisão nº
0019736-44.1999.8.26.0000. Relator: Des. Burza Netto. Julg. em 14/4/2004.
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
[14] BRASIL. Decreto-Lei nº 538, de 7 de julho de 1938. Organiza o Conselho Nacional
de Petróleo, define suas atribuições e dá outras providências. Diário Oficial da União
de 08/07/1938, p. 13.628.
[15] De acordo com o art. 2º, as sanções administrativas podem consistir, cumulativamente
ou não, em: multa, apreensão de bens e produtos, perdimento de produtos apreendidos,
cancelamento do registro do produto junto à Agência Nacional do Petróleo, suspensão de
fornecimento de produtos, suspensão temporária, total ou parcial, de funcionamento de
estabelecimento ou instalação e cancelamento de registro de estabelecimento ou instalação.
[16] O combustível é considerado não-conforme quando há desvio em relação a
qualquer um dos itens da especificação definida pela ANP para o produto. A adulteração
é a adição ilegal de qualquer substância a este produto. O produto não-conforme
não é necessariamente resultado de adulteração proposital e pode ser resultante de
contaminação. O óleo lubrificante é considerado não conforme quando há desvios em
relação aos itens declarados no seu registro na ANP – características físico-químicas
e nível de desempenho. Desde 1º de julho de 2008, o óleo diesel comercializado em
todo o Brasil deve conter, obrigatoriamente, 3% de biodiesel. Portanto, desde aquela
data, são autuados e interditados os postos que não estiverem vendendo biodiesel B3,
conforme a especificação.
[17] Nos termos do art. 8º, VII, da Lei nº 9.478/97, a ANP pode celebrar convênios
com órgãos da Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios visando à promoção da atividade de fiscalização.
Os convênios vigentes estão disponíveis em http://www.anp.gov.br/doc/petroleo/
fiscalizacao_convenios.pdf (acesso em 22/4/2011).
[18] Consulte-se, como exemplos, a Resolução ANP nº 3/2011 (marcação dos
solventes, com o objetivo de permitir a identificação do solvente quando utilizado para
adulterar gasolina), Resolução ANP nº 7/2011 (especificações do álcool etílico anidro
combustível ou etanol anidro combustível e do álcool etílico hidratado combustível ou
etanol hidratado combustível), (Portaria ANP nº 309/2001 (Estabelece as especificações
para a comercialização de gasolinas automotivas em todo o território nacional e
define obrigações dos agentes econômicos sobre o controle de qualidade do produto),
Resolução ANP nº 42/2009 (Estabelece as especificações para a comercialização de
óleo diesel automotivo em todo o território nacional e define obrigações dos agentes
econômicos sobre o controle de qualidade do produto) e Resolução nº 16/2008 (Aprova
o Regulamento Técnico que estabelece a especificação do gás natural, de origem
nacional ou importado, a ser comercializado no país).
[19] RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Sétima Câmara Cível. Apelação Cível nº
0059087-40.2004.8.19.0001. Relator: Des. José Geraldo Antonio. Julg. em 16/02/2011.
[20] SÃO PAULO. 1º Tribunal de Alçada Cível (extinto). Décima Segunda Câmara.
Agravo de Instrumento nº 0059596-81.2001.8.26.0000. Relator: Juiz Andrade Marques.
Julg. em 19/2/2002.
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
[21] KRIEGER FILHO, Domingos Afonso. Aspectos da desconsideração da
personalidade jurídica societária na lei do consumidor. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo, v.13, jan./mar. 1995, p. 83.
[22] COELHO, Fábio Ulhoa. Da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Das
Práticas Comerciais (arts. 28 a 45). In: OLIVEIRA, Juarez de (Coord.) Comentários ao
Código de Proteção do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 146.
[23] SZTAJN, Rachel. Desconsideração da personalidade jurídica. Revista de Direito
do Consumidor, São Paulo, v.2, abr./jun. 1992, p. 74.
[24] PEREIRA, Regis Fichtner. Origens e Evolução da Teoria da Desconsideração da
Personalidade Jurídica no Direito Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UERJ.
Rio de Janeiro: Renovar, n.5, 1997, p.81.
Cf. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. Fundamentos da desconsideração da
personalidade jurídica no sistema jurídico da Common Law e sua aplicação nos direitos
inglês e norte-americano – influência no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.
In: ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira
da (Coord.). Temas de Direito Civil-Empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.
49-52, passim.
[26] Pareceres de Cândido Dinamarco e Waldirio Bulgarelli que fundamentaram o voto
do Ministro relator, destacando os seguintes trechos: “Candido Dinamarco, com apoio
em Fábio Ulhoa Coelho, observou que: ‘Na realidade o caput do art. 28 está cuidando
da responsabilidade direta dos sócios, em matéria que conceitualmente não se integra
no fenômeno da desconsideração da personalidade jurídica. É regra comum de direito
societário a de que os sócios respondem em nome próprio (e não por desconsideração)
quando atuem com abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, violação dos
estatutos societários ou quando pratiquem, na qualidade de sócios, certos atos ilícitos.
Tal ilicitude é sempre de direito societário e, para ter a conseqüência descrita no art. 28,
sequer seria necessário este” (parecer – fl. 1.692/1.693, 9º vol.). E concluiu: ‘... quando
a lei manda desconsiderar a personalidade jurídica como meio de remover obstáculos
ao ressarcimento (CDC, art. 28, § 5º) as formas pelas quais se houverem criado tais
obstáculos não podem ser os mesmos fatos dos quais haja emergido a obrigação de
indenizar. Interpretação contrária significaria – tanto quanto a que se repudiou no tópico
precedente – haver por derrogada a regra da autonomia das pessoas jurídicas em face dos
sócios (CC, art. 20) e a limitação da responsabilidade nas sociedades anônimas ou por
quotas’ (parecer, fl. 1.694, 9º vol.). No mesmo sentido, o parecer de Waldírio Bulgarelli
(fl. 864/890, 5º vol.): ‘Afora, pois, os casos de falência ou insolvência, encerramento ou
inatividade da pessoa jurídica por má administração, os demais casos arrolados como
fatos a serem subsumidos pela norma se referem a figuras a bem dizer delituosas, e
note-se, que tenham sido utilizados contra o consumidor, ou como diz a própria lei, no
§ 5º do art. 28 cit., como obstáculos. Tecnicamente, em termos de redação legislativa
trata-se de uma daquelas chamadas pela doutrina, hoje, regras de decisão, cabendo ao
401
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
juiz, aliás, como em outras que o Código contém, como a da inversão da prova, etc.,
decidir perante o caso concreto’ (fl. 884, 5º vol.)”.
[27]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Responsabilidade civil e
direito do consumidor. Recurso Especial nº 279273. Rel. Ministra Nancy Andrighi.
Julg. em 04/12/2003.
[28] Lei nº 8.176/91, art. 2º. “Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade
de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem
autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo.”
[29] STJ. Terceira Seção. Conflito de Competência (CC) nº 95591/MG. Rel. Ministro
Jorge Mussi. Julg. em 23/6/2010. DJe de 30/06/2010.
[30] CF, art. 109. “Aos juízes federais compete processar e julgar: [...] VI- os crimes
contra a organização do trabalho e, nos casos determinados em lei, contra o sistema
financeiro e a ordem econômico-financeira.” [grifos nossos]
[31] STJ. Sexta Turma. HC 34.364/MG. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. DJU de
11/09/2006.
[32] STJ. Quinta Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) nº 17591 / SP.
Rel. Min. Laurita Vaz. Julg. em 02/02/2006. DJ de 20/03/2006, p.305.
[33] Ementa: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ADULTERAÇÃO DE
COMBUSTÍVEL. INÉPCIADAINICIAL. RESPONSABILIDADE PENAL SOLIDÁRIA.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL. RECONHECIMENTO. 1. É inadmissível que a
denúncia se reduza a mera reprodução de relatório de procedimento fiscalizatório da
Agência Nacional de Petróleo, consagrando responsabilidade penal solidária.
2. Ordem concedida, confirmada a liminar e na esteira do parecer do Ministério Público
Federal, para anular o processo a partir do oferecimento da denúncia, em relação a
todos os corréus.
[34] Precedentes citados: HC 117945/SE, Rel. Ministra Jane Silva (desembargadora
convocada do TJ/MG), DJe 17/11/2008; HC 62330/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, DJ
29/06/2007; HC 69.240/MS, rel. Ministro Felix Fischer, DJ 10/09/2007.
[35] STJ. Sexta Turma. HC 69018/SP. Relator Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Julgamento em 03/09/2009. DJe de 19/10/2009.
[36] STJ. Quinta Turma. HC 60652/PB. Relator Min. Arnaldo Esteves Lima. Julg. em
21/8/2007. DJ de 01/10/2007.
[37] A Portaria nº 248, de 31/10/2000, da ANP, estabeleceu o Regulamento Técnico ANP
nº 3/2000 para o controle da qualidade do combustível automotivo líquido adquirido
pelo Revendedor Varejista para comercialização. A referida Portaria foi revogada pelo
art. 14 da Resolução ANP nº 9/2007, que atualmente trata do tema.
402
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O NOVO MARCO REGULATÓRIO E AS JOINT VENTURES NA
INDÚSTRIA DO PETRÓLEO: UM OLHAR CRÍTICO SOBRE A INTERVENÇÃO
DO ESTADO NA AUTONOMIA PRIVADA
THE NEW REGULATORY FRAMEWORK AND JOINT VENTURES IN THE
OIL INDRUSTRY: A CRITICAL EYE ON THE STATE INTERVENTION IN
THE PRIVATE AUTONOMY
RESUMO
Alberto Lopes da Rosa
O artigo então desenvolvido busca efetuar primeiramente uma análise
do conceito e da natureza jurídica das joint ventures, especificando suas
peculiaridades, para posteriormente analisar a situação destas dentro do
novo marco regulatório que se firma para exploração de petróleo, gás natural
e outros hidrocarbonetos na região denominada de pré-sal e outras áreas
estratégicas. Nesse sentido, foram analisadas as mudanças instituídas pela Lei
n.º 12.351/2010, a qual instituiu o modelo de partilha de produção, no qual
se observou uma mudança do Estado que deixa de ser mero regulador para
atuar mais diretamente, de modo a influenciar a atuação empresarial, limitando
a autonomia privada no referido setor.
Palavras-Chaves: Joint Ventures – Estado - Marco Regulatório – Autonomia
Privada e Atuação Empresarial.
ABSTRACT
The article then developed primarily seeks to analyze the concept
and the legal nature of joint ventures, specifying its peculiarities, to further
analyze their situation within the new regulatory framework that is firm to
explore oil, natural gas and other hydrocarbons in the region called pre-salt
and other strategic areas. Accordingly, we analyzed the changes instituted by
the Law n.º 12.351/2010, which established the model production sharing,
in which we observed a change in the State ceases to be mere regulator to
act more directly, to influence the business performance, limiting individual
autonomy in that sector.
Keywords: Joint Ventures - State - Regulatory Framework - Autonomy and
Private Business Activity.
403
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1. INTRODUÇÃO
A prática empresarial tende a exigir de seus atores soluções dinâmicas
e criativas para solucionar os problemas oriundos da atividade. Nem sempre
é possível ao direito acompanhar a versatilidade e rapidez com que essas
práticas se estabelecem.
A atuação empresarial começou, então, a perceber que para o
desenvolvimento de determinadas atividades mostrava-se mais viável a
comunhão de esforços do que a concorrência entre si, desta forma, foram
surgindo as associações entre sociedades empresárias para a consecução de
um objetivo comum. Essas associações, tanto podem dar origem a uma nova
pessoa jurídica corporate joint venture (Joint Venture Societária), ou não, as
denominadas non corporate joint venture (Joint venture contratual).
O espírito de cooperação e de colaboração entre os pactuantes é, sem sombras
de dúvidas, primordial em uma joint venture, seja ela contratual ou societária,
cabendo a cada um dos co-ventures contribuir para com a consecução do negócio,
seja pela sua expertise ou know-how ou mesmo apenas com o capital.
No que tange às joint ventures na indústria do petróleo, tema central do
presente trabalho, importante será observar as alterações promovidas pelo novo
marco regulatório – Lei n.º 12.351/2010, de modo a perquirir se as medidas
adotadas para as atividades relacionadas à indústria do petróleo representam
uma diretriz política de maior intervenção do Estado na autonomia privada, para
isto, traçou-se um corte epistemológico de modo que seja analisada a figura dos
consórcios (joint ventures) previstos no art. 20 do referido diploma legal.
O intuito do trabalho, portanto, é constatar os eventuais efeitos
decorrentes desta alteração do marco legal, de modo a verificar primeiramente
se os novos parâmetros estabelecidos podem ou não ensejar em uma grande
fuga de investimentos no setor, para em seguida verificar os papéis que
serão desempenhados pela Petróleo Brasileiro S.A. - PETROBRAS e pela
empresa pública, autorizada, porém ainda não criada, Empresa Brasileira de
Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA),
de modo a correlacionar as atribuições de cada uma delas com a intervenção
estatal na autonomia privada.
Assim, a estrutura do presente trabalho dar-se-á de modo a primeiramente
estabelecer o conceito de joint venture, verificando desde a gênese desta forma de
colaboração, para em seguida definir a sua natureza jurídica.
Definidos o conceito e a natureza jurídica, o trabalho concentrar-se-á nas
joint ventures na Indústria do Petróleo, com especial enfoque sobre as eventuais
implicações decorrentes do novo marco regulatório instituído, contrapondo
a situação destas, bem como a posição do próprio Estado, no modelo de
404
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
concessão, previsto na Lei n.º 9.478/1997 e no modelo de partilha, previsto na
Lei n.º 12.351/2010.
O presente trabalho adotou o método científico dedutivo, com a utilização
de pesquisa bibliográfica e de textos normativos.
2. JOINT VENTURE
A atuação empresarial na busca de soluções criativas para o desempenho
de suas atividades tem consagrado ao longo dos anos novos fenômenos e
mecanismos para a consecução de determinados empreendimentos.
O grande salto tecnológico, associado a um mercado no qual a
concorrência é cada vez mais acirrada e global, fez com que muitos homens
de negócios vislumbrassem a associação empresarial como uma maneira de
transpor barreiras, dividir os riscos e, assim, lograr êxito no negócio.
As joint ventures se mostram como um modelo de cooperação empresarial
no qual há exatamente esta divisão de riscos. Tendo em vista que não há uma
tipificação para tal fenômeno, a autonomia da vontade é quem o rege, limitada
pelas normas gerais de direito privado.
2.1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
A expressão joint venture é proveniente da língua inglesa, não havendo
em língua portuguesa um termo equivalente, podendo, por tradução literal, ser
entendido como empreendimento comum ou aventura conjunta. Importante
ressaltar que o primeiro termo parece ser mais adequado ao ordenamento
jurídico brasileiro, por ser aquele utilizado na Exposição de motivos da Lei das
Sociedades por Ações (Lei n.º 6.404/76) [1].
O surgimento do termo joint venture deu-se na Grã-Bretanha, no
século XVI, e designava aquelas associações estabelecidas entre dois ou mais
comerciantes para aprestar um navio e negociar no ultramar. Tais associações
se davam de forma temporária e informal. As joint adventures, utilizando a
designação inglesa da época, eram sociedades sem personalidade jurídica, de
modo diverso das chartered companies.[2] [3]
As chartered companies recebiam, por outorga real, os privilégios da
personalidade jurídica e da limitação da responsabilidade, todavia, ficavam
sujeitas a um rígido Estatuto, além da fiscalização da Coroa, ao passo que as
joint ventures, organizadas à revelia do Estado, de maneira livre e informal
estavam desvinculadas de restrições estatutárias [4].
Já nos Estados Unidos, muitos autores que se dedicaram ao estudo do tema
indicam que o primeiro posicionamento das Cortes ianques se deu em 1808 [5] na
405
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Suprema Corte da Pensilvânia, todavia, o professor canadense Robert Flannigan
[6] indica que, na verdade, o termo joint venture, já havia sido suscitado em
decisão daquela mesma corte em 1806 [7], ou seja, dois anos antes.
No julgamento apontado pelo professor canadense, os julgadores partiram
de premissa na qual o vínculo existente entre as partes da lide era o de sócios [8]
(partners) mesmo que em uma joint venture. Tendo em vista que, as disputas
entre sócios são resolvidas por meio do juízo de equidade, através de uma ação
de prestação de contas, o fato de existir uma joint venture não justificaria a
propositura de uma ação em direito (assumpsit - ação por descumprimento
contratual). O Juízo entendeu, portanto, ser impossível manter a ação, na forma
como fora proposta [9].
Ainda sobre a questão processual, ou seja, o tipo de ação que pode
ser utilizada pelas partes, cabe a transcrição de decisão da Suprema Corte
de Nevada, in verbis: A principal diferença entre a partnership [10] e a joint
venture é que, em muitas jurisdições, onde é considerada a existência desta,
uma parte pode acionar a outra por descumprimento contratual; mas este direito
não torna precluso o direito de demandar pedindo a prestação de contas no juízo
de equidade [11] (Tradução livre).
Apesar das primeiras decisões remontarem, como acima descrito, ao
início do século XIX, foi apenas em sua segunda metade e no início do século
XX, que houve as primeiras manifestações jurisprudenciais mais preocupadas
em definir mais precisamente as características das relações estabelecidas em
uma joint venture.
Interessante observar que, da leitura de uma das muitas decisões das
Cortes norte-americanas sobre o tema da joint venture, depreende-se a seguinte
afirmação: os Tribunais ainda não deram uma definição exata do termo joint
venture que possa ser usada, como uma regra, por meio da qual as questões
concernentes podem ser determinadas [12].
Nichols [13] explica essa indefinição pelo fato de que nem todas as
combinações às quais os homens de negócios chamam de joint venture
são consideradas como tal aos olhos dos Tribunais de seu país. Algumas
foram consideradas como simples sociedades (partnership), outras, simples
acordos financeiros.
Não tendo sido fixado pelos Tribunais uma definição precisa da joint venture,
o conceito restou um tanto quanto fluido, sendo as definições estabelecidas em cada
caso, consoante a natureza do negócio e de outros fatos.
Tendo em vista ter surgido no curso da vida prática das negociações,
buscando atender com incrível flexibilidade aos anseios dos homens
de negócio, a joint venture, à primeira vista, parece não se submeter ao
enquadramento das definições.
406
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Em virtude desta dificuldade para elaboração de um conceito unívoco,
importante é observar o trabalho desempenhado tanto pela doutrina quanto
pelos tribunais norte-americanos, que passaram cada vez mais a destacar
as diferenças existentes entre a joint venture e a partnership, de modo a
individualizar cada vez mais aquela.
Dentre as distinções estabelecidas, podem-se citar as mais importantes, tais
como: a) quem podem ser as partes – na partnership, somente podem participar
pessoas físicas, enquanto nas joint ventures, podem também ser pessoas jurídicas
[14]; b) delectus personarum – na partnership qualquer sócio pode vetar a entrada
de um novo sócio provocando, em regra, a dissolução da sociedade, o que não
ocorre na joint venture; c) relação entre os sócios – na partnership, há a delegação
para um ou mais participantes para que estes exerçam a direção e representação
da sociedade; já na joint venture, essa delegação de poderes não existe, a não
ser que os sócios tenham realizado tal delegação de forma expressa, nesta, em
regra, a gestão é conjunta; d) divisão de lucros ou perdas – nas joint ventures,
a repartição de lucros não acarreta, obrigatoriamente, a repartição de eventuais
prejuízos; já nas partnerships, esse princípio é fundamental; e) ação judicial –
enquanto nas partnerships os sócios somente possuem um tipo de ação (real)
cabível contra a sociedade, para recebimento de seus créditos, nas joint ventures
os participantes dispõem, além desta, uma outra ação contra o inadimplemento
de obrigação contratual; f) duração do empreendimento – as partnerships são
tidas como associações duradouras, de tempo indeterminado, ao contrário das
joint ventures, que são vistas como passageiras ou ad hoc. Todavia, esta última
característica vem perdendo importância em face da existência de joint ventures
cujos empreendimentos têm caráter temporal indefinido, em virtude da natureza
do próprio negócio.[15]
Com efeito, delineadas as diferenças existentes entre as partnerships e
as joint ventures, não se poderia chegar a um conceito desta antes que, por
último, fossem apontados os traços que a identificam. Desta forma, importante
é trazer à baila a lição dada pelo Prof. Luiz Olavo Baptista [16] que busca
tipificar as joint ventures com base nos elementos reiteradamente apontados
em diversas decisões judiciais norte-americanas, quais sejam: 1) a reunião dos
participantes em uma empresa – ou uma comunidade de interesses divididos
entre os participantes em um ou mais projetos; 2) um motivo, quase sempre o
lucro, que leva os participantes a participar da empresa; 3) um acordo para a
gestão da joint venture que disciplina o exercício dos controles; 4) esse acordo
deve ter os elementos de um contrato (tal como definidos pela Common Law);
5) a motivação e o interesse das partes em relação à empresa devem ser claros;
assim como 6) a forma de distribuição dos lucros se a empresa visa lucro para
si própria e não para outras empresas.
407
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Para ilustrar alguns dos requisitos, em seu artigo o mestre paulista traduz
o trecho de uma decisão que, por sua técnica e conteúdo, merece ser transcrito:
A joint venture não é um status created by Law, como observou um
Tribunal Federal em Nova York, quando uma ação do governo dos
EUA contra a Standard Oil Co. of California, teve que examinar a
natureza jurídica da joint venture. Nesse caso, em que a joint venture
foi examinada minuciosamente, ressaltou-se a exigência de um contrato,
pois, segundo esse Tribunal, para afirmar se a joint venture foi criada
ou não, depende-se integralmente da vontade das partes, expressa ou
implícita. Continuava o julgado dizendo que a joint venture pode ter a
mesma natureza de uma sociedade limitada a um único empreendimento,
e não com propósito geral, e mais que ela é em geral descrita como uma
combinação de propriedades, esforços, conhecimentos e decisões em um
empreendimento comum. [17]
Da leitura do trecho, nota-se que um dos requisitos apontados como
condição sine qua non para que haja uma joint venture é a existência de um
contrato, seja ele implícito ou explícito. Ou seja, nota-se a forte presença
da autonomia da vontade, na medida em que é um contrato de forma livre,
posto que não tipificado.
A Suprema Corte norte-americana decidiu que o contrato que dá origem
à joint venture deve ter ínsita a intenção de criá-la, e a verificação da existência,
ou não, dessa intenção é uma questão a ser verificada de fato, caso por caso
[18]. Além da característica supra, importante destacar que o decisum também
estabelece a gestão conjunta, além do empenho de esforços de cada uma das
partes para obtenção de lucros não apenas para si, mas para a sociedade.
Das decisões dos Tribunais norte-americanos sobre o fenômeno,
depreende-se que é feita uma análise casuística, na qual se observa se há o
preenchimento dos requisitos, como em um teste, desta forma sendo preenchidos
determinados requisitos, verifica-se que se trata de uma joint venture.
Explicitados os conceitos acima, deve-se agora perquirir na definição
da natureza jurídica da joint venture. Importante frisar que, para estabelecer a
natureza jurídica de um fenômeno faz-se mister a análise da relação jurídica
existente. Pelo já exposto, nota-se que o vínculo existente entre as partes
não é imperativo - ex re, mas voluntariamente assumido, a relação entre as
partes nasce do consenso - ex contractu. Assim, nota-se que, mesmo quando
a joint venture adotar a forma de uma sociedade, sua natureza jurídica será
contratual, já que a relação jurídica é estabelecida pelo consenso entre as
partes, ou seja, pelo acordo de vontades.
408
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Na esteira daqueles que entendem a história como algo cíclico, dir-se-ia
que as joint ventures de hoje se assemelham aos comerciantes da Idade Média
e início da Idade Moderna que vislumbraram na associação de pessoas uma
forma de transpor desafios e empreender atividades com as quais os custos um
homem isoladamente dificilmente iria conseguir arcar.
Naquela época, não muito longínqua, surgiram os diversos tipos de
sociedades que se conhece atualmente, onde os homens reuniam seus esforços
e capital e dividiam os riscos. Atualmente, em um mercado extremamente
competitivo e globalizado, são as sociedades que encontram na união entre si,
uma forma de superar os desafios da atividade empresária.
Os contratos de colaboração visam diminuir os gastos que adviriam da
celebração de diferentes contratos de intercâmbio, sem qualquer concatenação.
Desta forma a celebração daquele tipo contratual enseja numa redução dos
custos de transação, ou seja:
Trata-se de realidade inegável: os empresários, em sua prática diária,
trazem à luz contratos que pressupõem esforços conjugados, mas em que
as partes, patrimonialmente autônomas, mantêm áleas distintas, embora
interdependentes. Nem sociedade, nem intercâmbio, mas uma categoria
que se situa entre esses dois pólos [19].
Destaque deve ser dado a esta ultima frase, visto que a joint venture pode
adotar ou não uma forma societária. Desta forma, caberá agora efetuar uma
breve análise das diferentes modalidades existentes do fenômeno, para entender
as peculiaridades que revestem cada uma delas.
2.2. MODALIDADES
Para adentrar o estudo das diferentes modalidades existentes de joint
venture, importante se faz ressaltar que tal fenômeno se mostra como um campo
livre da autonomia da vontade, donde as mentes criativas dos empreendedores
vislumbram diversas possibilidades negociais.
Assim, diferenças quanto aos riscos econômicos assumidos pelos
contratantes, as eventuais formas possíveis para o fenômeno, além da distinção
entre joint ventures nacionais e internacionais, serão abaixo explicitadas.
2.2.1. EQUITY JOINT VENTURES E NON EQUITY JOINT VENTURES
Os juristas norte-americanos com base na clássica distinção econômica
entre o equity capital (capital de risco, investimento direto) e o loan-capital
409
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
(empréstimos ou investimentos indiretos) estabeleceram uma importante
classificação entre as equity joint ventures e as non equity joint ventures.
Nas equity joint ventures há um investimento direto de capital em outras
sociedades já existentes ou criadas no ato, que se realiza através da aquisição,
por qualquer forma, de participação no capital social.
Importante destacar que a legislação de alguns países impõe que o
investimento estrangeiro se dê através do modelo de uma equity joint venture.
Tal imposição tem por fulcro impedir a implantação de sociedades subsidiárias
integrais no território de tais países.
Nos Estados Unidos as equity joint venture utilizam a estrutura da
corporation (sociedade anônima), enquanto em outros países, como, por
exemplo, no Brasil, além do referido tipo societário é possível também a
utilização da sociedade limitada.
Quanto às non equity joint ventures, a posição do participante não será
a de sócio, mas a de um credor em um empréstimo, estando o investimento
associado à álea do negócio. Esta última se demonstrava como o único meio
de atuação em países socialistas, nos quais a legislação não admitia o direito de
propriedade sobre os bens de produção.
Como bem observa Luiz Olavo Baptista [20], foi sobre a non equity joint
venture que os juristas norte-americanos se debruçaram para que prevalecesse
o caráter contratual, e assim, fosse possível caracterizar as joint ventures,
distinguindo-as das partnerships.
Superado o estudo acerca da natureza do investimento efetuado pelos
participantes no empreendimento, é possível agora trilhar rumo à próxima
classificação, qual seja quanto à forma que será adotada pela joint venture.
2.2.2. CORPORATE JOINT VENTURE E NON CORPORATED JOINT VENTURE
Inicialmente, observar-se-á a lição de Paula Andrea Forgioni sobre os
contratos de colaboração entre empresas:
Retornando à imagem de que nos valemos no início deste capítulo,
dispuséssemos as formas jurídicas das relações entre empresas ao longo
de uma linha imaginária, teríamos, em um extremo, os contratos de
intercâmbio e, no outro, as sociedades. No entremeio, os mais variados
tipos de contratos híbridos, que conjugam o elemento de intercâmbio
com o de colaboração. Quanto mais próximo o contrato híbrido estiver
daquele de intercâmbio, maior o grau de independência das partes e
menor a colaboração entre elas. Ao nos deslocarmos paulatinamente na
direção das sociedades, maior será o grau do vínculo e da colaboração.
410
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
[21]
Vale lembrar que o melhor exemplo de contrato de intercâmbio é a
compra e venda, contrato no qual uma parte se obriga a pagar um determinado
valor e, em contrapartida, a outra parte se obriga a fazer ou a dar alguma coisa,
ou seja, o comprador paga o preço e o vendedor entrega a coisa ou presta o
serviço, conforme o caso. Desta forma, após a conclusão do contrato, caberá a
cada uma das partes cumprir com a sua obrigação, ocorrendo uma mera troca
para satisfação dos próprios fins objetivados individualmente pelas partes.
De modo diverso, na outra ponta encontra-se o contrato de sociedade que,
por sua vez encontra sua melhor definição no próprio ordenamento jurídico, no
art. 981 do Código Civil brasileiro, in verbis:
Art. 981 Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente
se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de
atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um ou
mais negócios determinados.
Neste diapasão, do próprio texto legal depreende-se que o caráter
colaborativo é inerente aos contratos de sociedade, afinal, os sócios se obrigam a
contribuir reciprocamente para o exercício da atividade, de modo a partilharem
os resultados. Além disto, importante observar que, ao se referir a pessoas a lei
não faz qualquer distinção entre pessoa natural ou moral, ou seja, tanto uma
quanto a outra podem celebrar o referido contrato, desde que observadas as
peculiaridades atinentes a cada tipo societário.
Ademais, importante é observar o parágrafo único que deixa claro a
possibilidade de constituição de uma sociedade para realização de apenas um negócio.
A norma do art. 981 permite organizar sociedade cuja existência seja
prevista para se protrair por tempo indeterminado, enquanto convier
a todos, ou, como no caso do presente parágrafo, seja voltada para a
realização de um único negócio, como, por exemplo, a formação de um
consórcio que reúna várias sociedades para a consumação de uma só
operação negocial. Irrelevante o tempo de duração. Com o completamento
do negócio, a sociedade consorcial não tem mais razão para existir, uma
vez que lhe falta objeto. Além dos consórcios de sociedades, outros
negócios com a mesma característica, isto é, únicos, podem dar origem a
organizações que se definem como sociedades. [22]
411
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Transcorridas estas primeiras observações, necessário é adentrar
no cerne da questão que é observar a diferença entre a corporate e a non
corporated joint venture.
Para traçar tal distinção muito importante é se socorrer da ilustração
bastante didática de Paula Andrea Forgioni que ao lecionar sobre os contratos
de colaboração entre empresas, colocou de um lado os contratos de intercâmbio
e do lado oposto as sociedades.
Tendo em vista o caráter de colaboração, de empreendimento comum,
ou seja, do esforço conjunto das partes (co-ventures), logo à primeira vista se
percebe que as joint ventures tendem mais para uma sociedade do que para
um simples contrato de compra e venda. Neste passo e, na medida em que no
direito brasileiro predomina o princípio da autonomia da vontade, não havendo
a exigência de uma forma específica para os negócios jurídicos, estes podem se
realizar livremente, desde que não defesos em lei.
Neste ponto começa a ficar mais evidente a diferença existente entre
aqueles contratos que estão pendentes para o lado da sociedade daqueles que
não estão apenas pendentes, porque na verdade são uma sociedade, preenchem
os requisitos formais de modo que se vestem com as rígidas formas societárias.
Estes são denominados corporate joint venture ou joint venture Societária,
ao passo que aqueles são chamados de non corporated joint venture ou joint
venture Contratual. A distinção se mostra presente quanto à forma jurídica
adotada para desenvolver o empreendimento comum.
Na non corporate joint venture ou joint venture contratual, apesar de
haver uma associação de interesses para o compartilhamento dos riscos entre
os parceiros, não há a formação de uma estrutura societária, ou seja, não há o
nascimento de uma pessoa jurídica distinta dos pactuantes. Nesta modalidade
o vínculo entre as partes é de caráter estritamente contratual, onde ocorre a
associação de duas ou mais pessoas que, no intuito de efetuar um projeto, se unem
para em conjunto unir recursos, sejam financeiros ou materiais, além de suas
experiências e conhecimentos, para a consecução do projeto, convencionando
também a divisão de lucros e perdas.
Qualquer análise da joint venture contratual dentro do ordenamento
jurídico brasileiro, não pode ser feita sem que também seja analisada a questão
dos consórcios, instituto previsto nos artigos 278 e 279 da lei das sociedades por
ações (Lei nº 6.404/76).
Na doutrina é pacífico que a Lei nº 6.404 de 1976 é a lei geral dos
consórcios. Nos dois artigos supracitados são indicados os participantes e o
objeto do consórcio, há previsão textual de que este não tem personalidade
jurídica. Além disso, da leitura do art. 278, § 2º, depreende-se que inexiste
presunção de solidariedade entre as sociedades consorciadas. Todavia, como a
412
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
maioria das regras comporta exceções, neste caso, não é diferente, por isso deve-se
ressaltar o prescrito no art. 28, § 3° do Código de Defesa do Consumidor, in verbis:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade
quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso
de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou
contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver
falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa
jurídica provocados por má administração.
[...]
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas
obrigações decorrentes deste código.
Apesar de parecer inequívoco o erro legislativo, eis que inclui o consórcio,
fenômeno que pela lei não é dotado de personalidade jurídica, em um artigo
que versa especificamente sobre a desconsideração da personalidade jurídica.
Todavia, enquanto não revogado o referido parágrafo, prevalecerá, no que
tange as relações consumeristas, a solidariedade existente entre as sociedades
consorciadas. [23]
Passadas estas primeiras observações, é importante destacar que a lei
disciplina o consórcio como uma modalidade de contrato de colaboração
empresarial, sendo que parte da doutrina prefere inseri-lo no gênero dos grupos
de sociedades, na espécie dos grupos de coordenação.
O consórcio é uma forma de concentração administrativa, em relação
de coordenação decorrente da comunhão parcial de interesses. Ele
comporta a união parcial ou secundária de duas ou mais empresas, com
a persistência das células individuais. Ele surge assim como opção onde
a união integral revela-se inadequada, configurando uma estrutura de
cooperação institucional que permite a conjugação de esforços e recursos.
[24]
Importante também é colacionar a lição de Mauro Rodrigues Penteado
sobre o contrato de consórcio:
Trata-se de contrato plurilateral, modalidade contratual superiormente
sistematizada por Tullio Ascarelli, cuja nota marcante repousa na
existência de escopo comum entre os interessados, que assumem
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
direitos, obrigações e prestações que convergem para a sua consecução,
diversamente das obrigações chamadas “correspectivas”, peculiares aos
contratos bilaterais. [25]
Desta forma, é possível chegar à conclusão de que existem muitos traços
comuns entre os contratos de consórcio e as non corporated joint ventures,
visto que em ambos os fenômenos há a união de pessoas as quais visam a
concretização de um interesse comum, estabelecido por um vínculo contratual.
Todavia é importante fazer a seguinte ressalva: por mais que o consórcio
seja visto como uma non corporated joint venture, a recíproca não é verdadeira,
eis que, aquele contrato é tipificado [26] em seu respectivo diploma legal,
Lei das Sociedades por Ações, ao passo que este é associado à autonomia da
vontade, podendo adotar outras formas que não as do contrato de consórcio.
A prática mercantil costuma sempre anteceder a legislação, o que não
se mostrou diferente no caso de colaboração entre sociedades empresárias. A
regulamentação dos consórcios foi posterior à gênese do espírito de cooperação
entre empresários, ou seja, as soluções se mostram oriundas das próprias
sociedades, que observando os limites legais, buscaram, em conjunto, meios
de empreender determinadas atividades as quais, separadamente, dificilmente
seria possível realizar. Como lecionou Fabio Konder Comparato:
Onde a concentração se revela impossível ou inadequada, a chave do
êxito passa pela conjugação de esforços e recursos, sem a supressão da
autonomia das diferentes unidades em causa. Cada empresa continua a
perseguir o seu próprio objetivo, sob o controle independente de cada
empresário, mas o método de trabalho não é mais individualista. Criamse estruturas de cooperação institucional, onde antes havia um conjunto
de operações isoladas. [27]
É exatamente na linha do pensamento de Fabio Konder Comparato, que é
possível concluir a abordagem sobre a non corporated joint venture e dar início
à discussão do tema relativo àquelas sociedades que, buscando estreitar ainda
mais o vínculo de colaboração, estritamente contratual, tornam-se sócias em
uma sociedade, para desenvolverem um negócio conjunto. Importante observar
que haverá a criação de uma pessoa jurídica distinta da dos contratantes, sendo
esta o meio utilizado para que os sócios (co-ventures) exerçam em conjunto as
atividades que estarão estabelecidas no contrato de joint venture.
Na Companhia Joint Venture [28], as sociedades participantes tem
interesse em organizar uma empresa separada de suas respectivas
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
empresas, a que deverá corresponder uma nova sociedade empresária
com personalidade jurídica autônoma e patrimônio próprio. Geralmente,
assim querem porque o objeto da associação exige a instituição de uma
organização própria permanente e requer investimentos de maior vulto
em capital próprio (daí porque tais associações são também chamadas de
“Equity joint Ventures”). [29]
Antes de expor uma definição da corporate joint venture, importante é
fazer três observações.
Primeiramente, cabe salientar que no ordenamento jurídico brasileiro
inexiste uma obrigatoriedade de adoção de determinado tipo societário para
a constituição de uma joint venture. Todavia, tendo em vista a limitação de
responsabilidade dos sócios, a prática consagrou como mais utilizados os tipos
de sociedade anônima ou limitada.
Em segundo lugar, por mais que pareça óbvio, é importante destacar
que o fato de as corporate joint ventures serem também equity joint ventures,
se dá pelo fato de que nesta modalidade de joint venture, há o investimento de
risco, ou seja, as partes contratantes assumem os riscos inerentes ao negócio.
Sendo a sociedade um contrato plurilateral e, nas palavras de Orlando Gomes,
“negócio jurídico pelo qual duas ou mais partes se obrigam reciprocamente a
contribuir, com bens ou, quando permitido, com serviços, para o exercício de
determinada atividade econômica”[30], depreende-se que em uma sociedade,
os sócios, não visam apenas o próprio interesse, mas cooperam para a
realização do fim comum.
Por último, antes de definir a corporate joint venture, é forçoso perquirir
a possibilidade de uma Sociedade de Propósito Específico (Special Purpose
Company) ser uma joint venture. Para iniciar esta verificação, colacionase a lição de Nelson Eizirik, autor que se expressa pela possibilidade de
comparação, veja-se:
A SPE pode ser comparada a uma joint venture para a qual duas ou mais
sociedades vertem seus esforços econômicos, tecnológicos, de pessoal,
etc., com a finalidade de criar uma pessoa jurídica cujo único objetivo é
realizar um empreendimento ou negócio específico. Sua existência fica
expressamente condicionada à realização do seu propósito específico,
tendo, normalmente, uma duração mais curta do que as sociedades
mercantis. [31]
Para chegar a tal conclusão, Nelson Eizirik cita Leonardo Guimarães,
autor que critica o possível enquadramento da Sociedade de Propósito
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Específico como uma sociedade empresária, preferindo defini-la como um tipo
de joint venture:
A primeira consideração importante a ser ventilada acerca desta
interessante forma de joint venture gira em torno de sua natureza jurídica.
Trata-se a SPE de um novo modelo de sociedade mercantil? A resposta
que se nos afigura mais acertada é não, porquanto, para que possa existir,
exige-se da SPE, enquanto corporate joint venture – ou seja, joint
venture constituída separadamente do corpo das suas controladoras -,
que se revista de uma das formas societárias previstas no ordenamento
jurídico pátrio. Destarte, a SPE, em si, não se pode conferir a qualidade
de sociedade mercantil. [32]
Importante ressaltar que para Leonardo Guimarães o fundamento que
justificaria a impossibilidade de enquadramento da Sociedade de Propósito
Específico como uma sociedade empresária está no fato de esta não ter vontade
própria, pois é uma sociedade criada única e exclusivamente para prestar um
serviço ou desenvolver um projeto específico, alcançado tal objetivo, dá-se a
dissolução da sociedade. De modo diverso, este não é o destino necessário de
uma corporate joint venture, pois tal sociedade poderá se estender no tempo.
Além disso, o poder de decisão se dá no âmbito da própria joint venture, por
deliberação dos sócios.
Vista esta possibilidade, é fundamental ressaltar um aspecto muito
importante e que, nos casos de Sociedade de Propósito Específico não pode
ser esquecido, que é a impossibilidade de a corporate joint venture ser uma
subsidiária integral [33], ou seja, uma sociedade controlada por outra sociedade.
O controle no âmbito das joint ventures é partilhado entre os sócios.
Aliás, existem mecanismos para que, mesmo no caso de participações distintas
no capital social, o poder decisório se dê de forma equitativa aos parceiros. Por
fim, tendo em vista tal impossibilidade, verifica-se que, nos casos em que a SPE
é uma subsidiária integral não há que se falar em joint venture.
Traspassadas estas primeiras linhas, necessário é trazer à baila a definição
de joint venture societária, dada pelos mestres Alfredo Lamy Filho e José Luiz
Bulhões Pedreira:
É o contrato de sociedade entre dois ou mais empresários que se obrigam
a reunir esforços e recursos com o fim de exercer em conjunto a função
empresarial em determinado empreendimento econômico ou empresa.
Duas são, portanto, as diferenças que o caracterizam, como espécie de
contrato de sociedade: (a) os contratantes são empresários – pessoas
416
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
naturais ou sociedades empresariais – e (b) o contrato é instrumento para
que os contratantes exerçam a atividade empresarial. [34]
Tendo em vista a constituição de uma sociedade, depreende-se que, existe
um interesse maior quanto à rigidez da estrutura do contrato de joint ventures.
Tal interesse acaba expressando um maior grau de comprometimento entre as
partes, que passam a ser sócios.
Ao escolher pela corporate joint venture, os co-ventures costumam avaliar
vários fatores, em especial no que tange a natureza do projeto, bem como a sua duração,
além de sopesar as características das legislações sobre o contrato de sociedade, haja
vista as diferentes exigências existentes nos diversos ordenamentos jurídicos.
Desta forma, caberá aos negociadores, a priori, efetuar uma análise da
legislação de direito societário do país onde se quer constituir a joint venture,
avaliando a possibilidade ou não de sua constituição sob a forma societária.
Vale aqui destacar que, em determinados ordenamentos jurídicos, como, por
exemplo, nos países socialistas, não é possível a constituição de uma sociedade,
o que por si só, impossibilita a constituição de uma corporate joint venture.
A fortiori, os negociadores deverão se debruçar sobre a análise
acerca da viabilidade econômica. A constituição de uma sociedade em
determinados ordenamentos jurídicos pode se mostrar bastante onerosa, para o
empreendimento. Outro fator também a ser analisado é o tempo, tendo em vista
as burocracias legais para se constituir uma sociedade. Após estas duas análises
é que os negociadores poderão verificar se valerá à pena a constituição de uma
corporate joint venture para a exploração econômica da atividade.
A flexibilidade existente no fenômeno demonstra que este possui uma grande
força de penetração no mercado internacional, e é exatamente neste sentido que será
feita a terceira classificação das joint ventures, qual seja se nacionais ou internacionais.
2.2.3. JOINT VENTURES NACIONAIS E INTERNACIONAIS
Conforme a nacionalidade dos participantes, pode haver joint ventures
nacionais e internacionais. Na joint venture nacional são participantes duas
ou mais sociedades empresárias de mesma nacionalidade, ao passo que, na
internacional os participantes são duas ou três sociedades empresárias de
nacionalidades distintas. Nesta, há uma associação entre a sociedade empresária
estrangeira com alguma sociedade do país no qual aquela pretende executar um
projeto ou empreendimento específico.
As joint ventures internacionais costumam abarcar o sentido mais amplo
empregado ao termo, pois podem expressar os mais diferentes mecanismos
jurídicos aplicados ao fenômeno.
417
ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Neste sentido expressa Astolfi: “En la prática la expresión joint venture
es comúnmente utilizada para ilustrar acuerdos de colaboración internacional,
prescindiendo de las modalidades de realización de ellos, y del significado
histórico y jurídico de la misma expresión” [35].
Por meio deste tipo de associação empresarial, a sociedade empresária
estrangeira terá a vantagem de ter como colaborador alguém que já conta com
um conhecimento do mercado, e dos ambientes político, cultural e negocial do
local. Além disso, muitas vezes também, a associação se mostra como a única
forma legal de ingresso no mercado de determinados países.
3. AS JOINT VENTURES NA INDÚSTRIA DO PETRÓLEO
Tendo em vista a importância atual do tema, bem como o advento
de um novo marco regulatório para as áreas recentemente descobertas do
pré-sal, é forçoso salientar as especificidades existentes no caso das joint
ventures na indústria de exploração do petróleo. Sendo o petróleo uma
das matérias-primas mais importantes do mundo, a sua exploração tende
a ser uma preocupação mundial. Indústrias de todo o mundo desenvolvem
pesquisas na busca de inovações tecnológicas o que torna a exploração do
petróleo cada vez mais sofisticada.
Os avanços tecnológicos tem permitido a exploração de petróleo em
águas muito profundas, alias, este é o caso brasileiro, que tem na exploração
off shore quase que a totalidade de sua produção, visto que suas maiores jazidas
estão situadas nas profundezas do oceano. A exploração em alto mar requer
um esforço conjunto que, por demandar grandes investimentos, acaba não se
reduzindo a um plano interno, mas internacional.
O processo de internacionalização da exploração petrolífera, congregando
empresas oriundas de ordenamentos jurídicos distintos, com sujeição às
leis e tradições de um terceiro país hospedeiro, diversificou e aprimorou
os modelos de JOAs, atualmente utilizados. [36]
Os JOAs (Joint Operating Agreement) são acordos de operações
conjuntas, instrumentos contratuais com o particular interesse na indústria
do petróleo, dele são participantes empresas internacionais, as quais firmam
contrato de exploração com a empresa estatal do país hospedeiro.
No Brasil, por exemplo, a empresa estatal é a Petróleo Brasileiro S.A.
– PETROBRAS. Antes da EC nº 9/95, o mercado de petróleo e a exploração
econômica do petróleo no Brasil eram monopólios da União, sendo exercido
através de sua empresa – PETROBRAS, conforme art. 2º da Lei n.º 2.004/53 [37].
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Sob este marco regulatório, a sociedade empresária estrangeira que pretendesse
explorar petróleo no Brasil, deveria celebrar um acordo de operações conjuntas
com a PETROBRAS, pois o modelo baseava-se no monopólio de exploração
pela sociedade estatal, sendo, nesta hipótese, o Brasil o país hospedeiro, ou seja,
o país onde se daria a exploração do petróleo.
Com o advento da EC nº 9/95, houve a flexibilização do monopólio do
petróleo, visto que tal emenda permitiu que a União pudesse contratar, não
apenas com empresas estatais, mas também com sociedades empresárias
privadas, a realização das atividades previstas nos incisos I a IV do art. 177 da
Constituição. [38]
Em 1997, foi promulgada a Lei n.º 9.478, a chamada Lei do Petróleo,
que dentre outras mudanças previu que as atividades econômicas previstas
no art. 177 da Constituição, poderiam ser exercidas, mediante concessão ou
autorização, por empresas constituídas sob as leis brasileiras, com sede e
administração no País.
Outrossim, para a regulação e fiscalização daquelas atividades, foi
instituída pela Lei do Petróleo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
Biocombustíveis - ANP, entidade integrante da Administração Federal Indireta,
submetida ao regime autárquico especial, como órgão regulador da indústria do
petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis.
Em um contexto político neoliberal de redução do papel do Estado,
associado ao fato de ser o Brasil um país importador de petróleo e, além disso,
carente de recursos para investir em novas lavras, em 1997, restou assim
estabelecido na indústria do petróleo brasileira um paradigma baseado em um
modelo de concessão o qual se fazia compatível com o potencial das bacias
petrolíferas conhecidas que eram de alto risco e baixa rentabilidade.
Todavia, com o anúncio da descoberta de grandes quantidades de petróleo
e gás em nova província petrolífera, denominada Pré-Sal, em 2007, o Governo
Federal entendeu que caberia realizar uma revisão do papel do Estado, de
modo a viabilizar uma política econômica de fortalecimento de uma indústria
nacional de fornecedores de bens e serviços e de uma necessária agregação de
valores à cadeia de produção do petróleo e gás, ou seja, investimentos também
nas industrias de downstream, para que não se exporte apenas o óleo in natura,
mas refinado, com valor agregado.
Assim, entendendo que o marco legal estabelecido na Lei nº 9.478/97,
não seria suficiente para garantir o aproveitamento das reservas petrolíferas
nas áreas da província do Pré-Sal, a comissão interministerial [39] afirma
que o modelo instituído em 1997, no qual cabe ao concessionário arcar com a
totalidade dos riscos e, portanto, obter o rendimento da exploração, mostrar-seia incompatível com a natureza da gigante área do Pré-sal40. Assim, a referida
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
comissão propôs ao Presidente da República projeto de lei n.º 5.938/2009, o
qual introduzia a possibilidade de exploração e produção de petróleo, de gás
natural e de outros hidrocarbonetos fluidos mediante a realização de contratos
de partilha de produção, projeto que após a devida tramitação, transformou-se
na Lei n.º 12.351/2010.
Nesta esteira, houve então a modificação do marco regulatório até então
vigente, para a exploração de hidrocarbonetos na região do pré-sal, passando-se
do modelo de concessões para um modelo denominado de partilha de produção.
[41]
Importante observar que no modelo de concessões havia Rodadas
de Licitações para exploração de determinados blocos, sendo possível aos
concorrentes se apresentar individualmente ou em consórcios. Assim, à sociedade
empresária ou ao consórcio vencedor de determinado bloco caberá celebrar
um contrato de exploração de petróleo com o Estado, sendo o concessionário
responsável, por sua conta e risco, pelo desenvolvimento das atividades,
adquirindo, em caso de sucesso, a propriedade dos recursos petrolíferos de
fato produzidos, ou seja, o petróleo no subsolo era monopólio da União, mas
passava a ser de propriedade do concessionário que o descobriu a partir da boca
do poço, cabendo à União o recebimento de royalties, participações especiais,
bônus de assinatura etc.
Neste cenário supramencionado é possível observar a existência de uma
menor interferência do Estado na autonomia da vontade [42], a limitação que
ocorre no modelo de concessão, é feita através da regulamentação da Agência
Nacional do Petróleo, que estabelece modelos padrões de contratos – standarts,
que devem ser observados pelas partes, mesmo quando contratam entre si para
a formação de consórcios. Assim, o Estado regulador estabelece os limites da
autonomia da vontade em benefício da ordem pública.
O que no momento ocorre, e o jurista não pode desprender-se das idéias
dominantes no seu tempo, é a redução da liberdade de contratar em
benefício da ordem pública, que na atualidade ganha acendrado reforço,
e tanto que Josserand chega mesmo a considerá-lo a “publicitação do
contrato”. Não se recusa o direito de contratar, e não se nega a liberdade
de fazê-lo. O que se pode apontar como a nota predominante nesta quadra
da evolução do contrato é o reforçamento legal do contrato, a fim de
coibir abusos advindos da desigualdade econômica; o controle de certas
atividades empresárias; a regulamentação dos meios de produção e
distribuição; e sobretudo a proclamação efetiva da preeminência dos
interesses coletivos sobre os de ordem privada, com acentuação tônica
sobre o princípio da ordem pública, que sobreleva ao respeito pela
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
intenção das partes, já que a vontade destas obrigatoriamente tem de
submeter-se àquela. [43] (grifos nossos)
Ocorre que com o advento da Lei n.º 12.351/2010, nota-se que para a região
do pré-sal o Governo Federal, ao revés do marco regulatório anterior, pretende
intervir diretamente nas atividades da indústria petrolífera, fundamentando-se,
justamente no interesse público, ao afirmar que a alteração do modelo objetiva
assegurar para a Nação a maior parcela do óleo e do gás, apropriando para o
povo brasileiro parcela significativa da valorização do petróleo44.
Para garantir a sua participação direta, bem como no intuito de diminuir a
assimetria de informações entre a União e as empresas de petróleo por meio da
atuação e acompanhamento direto de todas as atividades na área de exploração
e produção, em especial o custo de produção do óleo, o Governo Federal
instituiu a Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A.
- Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) [45], empresa pública estatal que irá gerenciar
a exploração de petróleo do pré-sal. A atuação desta empresa se concentrará na
gestão dos contratos de partilha de produção, não cabendo a esta a assunção
de quaisquer riscos, nem mesmo com os custos e investimentos referentes às
atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação
das instalações de exploração e produção decorrentes dos contratos de partilha
de produção. [46]
Importante é ainda observar a posição dada pela lei à PETROBRAS que
como operador ficará responsável pela condução e execução, direta ou indireta,
de todas as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e
desativação das instalações de exploração e produção. [47]
Além da posição de operador, caberá à PETROBRAS atuar como
contratada, isoladamente ou em consórcio por ela constituído com o vencedor
da licitação, para a exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros
hidrocarbonetos fluidos em regime de partilha de produção. [48]
Insta salientar que diferentemente do modelo de concessão, a participação
da PETROBRAS é imprescindível na formação dos consórcios, sendo que
esta deve ter a participação mínima de 30% (trinta por cento) [49], ou seja, no
modelo de partilha ora vigente para o pré-sal, a autonomia privada encontra-se
amplamente restringida, visto que as exigências legais impedem a formação de
parcerias empresariais que não sejam formadas com a PETROBRAS e a PréSal Petróleo S.A. (PPSA).
Ademais, cabe salientar a possibilidade de se sustentar um vício de
inconstitucionalidade da Lei n.º 12.351/2010, na medida em que dá um
tratamento diferenciado à PETROBRAS que poderá ser contratada diretamente
pela União dispensada a licitação. [50] Como sociedade de economia mista
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
a PETROBRAS deveria competir em pé de igualdade com as sociedades de
direito privado, sob o risco de prejuízo à livre concorrência [51], assim, a
dispensa à licitação além de caracterizar um tratamento não isonômico, também
desestimula a livre iniciativa.
Outra preocupação que se apresenta, já no campo econômico e não tanto
no jurídico, diz respeito a uma eventual incapacidade de a PETROBRAS poder
arcar com os elevadíssimos custos para a exploração e produção do petróleo,
afinal, como dito alhures, para extração em regiões muito profundas como
as do pré-sal, são necessárias vultosas quantias. Vale lembrar que pelo novo
marco regulatório caberá à PETROBRAS a participação em pelo menos 30%
(trinta por cento) de cada consórcio, desta forma, cabe uma reflexão quanto à
viabilidade econômica da referida sociedade empresária no que tange arcar com
todos os custos inerentes aos riscos da atividade.
4. CONCLUSÃO
Da análise do conceito das joint ventures foi possível depreender que tal
fenômeno se trata de um modo de colaboração empresarial, hodiernamente,
bastante utilizado na prática empresária. Quanto à natureza jurídica do referido
fenômeno importante observar que ela é eminentemente contratual, visto que o
vínculo existente entre as partes não é imperativo - ex re, mas voluntariamente
assumido. A relação entre as partes nasce do consenso - ex contractu. O que
permite verificar que, mesmo quando a joint venture adotar a forma de uma
sociedade, sua natureza jurídica será contratual, já que a relação jurídica é
estabelecida pelo consenso entre as partes, ou seja, pelo acordo de vontades.
Verificada a presença do caráter de colaboração existente, na medida
em que se expressa pelo esforço conjunto das partes (co-ventures), forçoso é
concluir que as joint ventures tendem mais para uma sociedade do que para um
simples contrato de intercâmbio.
Após visualizar as diversas modalidades de joint ventures existentes,
o estudo se dir

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