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VERDI
OTELLO
VERDI
Álbum de família/1989
Mario Henrique Simonsen com o tenor e amigo Plácido Domingo
OTELLO
OTELLO E OTHELLO
Q
ue a transformação de Othello de Shakespeare em libreto de ópera por Arrigo Boito
é uma obra-prima literária é questão pouco
controvertida. Por certo, essa adaptação pouco serviria
sem a música de Verdi. Mas, no reverso da medalha, é
igualmente certo que Verdi jamais se decidiria a compor Otello sem um libreto como o que Boito lhe ofereceu.
Transformar uma peça de teatro em libreto de ópera envolve uma série de problemas conhecidos desde
os primórdios do gênero lírico. Primeiro é preciso
condensar a peça, suprimindo personagens e episódios
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OTELLO
secundários e eliminando a maior parte do texto ou
dos versos, já que a palavra cantada flui muito mais
lentamente do que a falada, mesmo numa ópera extremamente sintética, como Otello. Segundo, é preciso levar em conta que a música introduz efeitos que
não são acessíveis ao teatro dramático, e que, por isso
mesmo, é preciso inverter ou até suprimir certas cenas,
sobretudo nas entradas e nos finais. No caso da tragédia do mouro de Veneza havia um terceiro problema
mais sutil. O Othello de Shakespeare é uma obra do
teatro elisabetano, não apenas repleta de sensualidade, mas altamente tolerante com a permissividade da
linguagem. Boito precisava transformá-la numa peça
aceitável pelos padrões vitorianos, até para que Otello
não tivesse o destino inicial da Carmen de Bizet. Essa,
de fato, era a maior dificuldade a transpor.
O trabalho de condensação realizado por Boito é
reconhecidamente magistral. O número de versos de
Otello é aproximadamente um quarto do original de
Shakespeare, mas a estrutura da tragédia se mantém
fundamentalmente a mesma. O principal artifício
inventado por Boito foi reduzir o número de atos da
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peça de cinco para quatro, eliminando o primeiro ato
em Veneza da obra de Shakespeare e iniciando a ação
diretamente no ato seguinte, em Chipre. As cenas desse
ato suprimido que eram essenciais ao desenvolvimento da tragédia, como a inicial em que Iago explica a
Roderigo seu ódio a Otello e Cassio, foram transferidas para o primeiro ato da ópera, da mesma forma
que a declaração de amor entre Otello e Desdêmona,
ed io t’amavo per le tue sventure, e tu m’amavi per la
mia pietà. Uma única passagem importante na peça de
Shakespeare realmente não foi aproveitada por Boito.
Aquela em que Brabantio, pai de Desdêmona e que se
opunha a seu casamento com Othello, avisa o mouro
que aquela que traiu o pai bem poderá trair o marido.
Não era o caso de, por isso, manter na ópera a cena em
Veneza. Mas uma recordação dessa advertência ajudaria a explicar o ciúme de Otello.
A reordenação de cenas arquitetada por Boito também foi extraordinariamente hábil. A seguir a ordem
shakespeariana, a ópera se iniciaria com o dueto IagoRoderigo, Roderigo, ebben, che pensi?; Otello entraria
em cena pronunciando algumas frases convencionais,
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para só alguns minutos depois anunciar a vitória sobre os muçulmanos, e a ópera acabaria com Lodovico
condenando Iago à tortura e à morte, diante dos cadáveres de Otello, Desdêmona e Emilia. Boito, com
seu senso não apenas de teatro, mas de teatro lírico,
percebeu que o poder da música exigia a inversão da
ordem dos fatores. No primeiro ato da ópera, o início
seria a tempestade, depois a entrada de Otello e após a
confissão de Iago. Diga-se de passagem, nos primeiros
esboços do libreto, a entrada de Otello seguia o fra­
seado convencional de Shakespeare. A ideia de expor o
mouro diretamente no Esultate foi de Verdi. Do mesmo modo, o final da ópera teria que ser o suicídio de
Otello e não a condenação de Iago, que fica implícita.
Até aí, Boito agiu com extraordinária perícia, mas
seguindo aquilo que se poderia denominar o “manual
do libretista”. De certa forma, Francesco Maria Piave
havia feito o mesmo ao transformar Le roi s’amuse,
de Victor Hugo, no Rigoletto, respeitada obviamente a
distância entre Shakespeare e Hugo. O problema mais
sutil e menos comentado era a mudança de linguagem necessária. No Othello de Shakespeare, há duas
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linguagens em interação. Uma, extremamente nobre, e
que se destaca pelo vocabulário, pela métrica e pelas rimas, e que é o modo de expressão do mouro no início
da peça. Outra arrítmica, branca em versos e até por
vezes chula, que é a de Iago. Na medida em que Iago
enreda o mouro na sua teia de intrigas, a linguagem
de Othello passa a se assemelhar cada vez mais à do
seu alferes. O que leva a uma interpretação mística do
Othello, em que o mouro é possuído por um Iago demoníaco. A ponto de, quando Othello descobre toda
a intriga que o leva a assassinar Desdêmona, exigir que
Iago mostre os seus pés para saber se não se trata do
verdadeiro diabo.
Na era vitoriana, essa dualidade de linguagem seria
inaceitável, assim como qualquer insinuação em matéria de sensualidade, e nesse ponto Boito é obrigado a
se afastar inteiramente de Shakespeare. O insulto mais
violento que Otello dirige a Desdêmona é chamá-la de
“prostituta” pouco antes de estrangulá-la. Insulto que
só é percebido pelos conhecedores da partitura, pois
Verdi trata de abafá-lo tanto com a orquestra quanto
com a voz de Desdêmona. Isto posto, a metamorfose
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de linguagem de Othello não se encontra em Otello.
Ao contrário, a obsessão de Boito com a riqueza do
vocabulário e a preciosidade das rimas faz com que todas as personagens se exprimam num italiano altamente rebuscado. Um bom exemplo se encontra no fim do
dueto Otello-Desdêmona do terceiro ato da ópera:
Datemi ancor Volta a dar-me a tua
l’eburnea mano, mão ebúrnea,
vo’fare ammenda.
quero me desculpar.
Vi credea Acreditava que foste
(perdonate se (perdoa-me
il mio pensiero è fello)
se estou enganado)
Quella vil cortigiana Aquela vil cortesã
ch’è la sposa d’Otello
que é a esposa de Otello
A palavra ammenda é a rima para orrenda, antes
referida por Desdêmona, e o qualificativo fello se destina apenas a prover a rima para Otello. Com menos
preocupações com métrica e rima, Shakespeare consegue muito mais impacto (Othello, Ato IV, cena II):
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I cry you mercy, then:
I took you for that cunning whore of Venice
That married with Othello
Nem por isso a cena tem menos impacto na ópera
do que na peça teatral. Só que o impacto é provocado
pela música de Verdi, e não pelos versos de Boito.
De qualquer forma, a unificação da linguagem exigia uma redefinição da personalidade de Iago, e Boito
compreendeu perfeitamente esse problema. No original de Shakespeare há um toque de bruxaria envolvendo o alferes. No século XIX, já muito distante da caça
às bruxas, Iago é apenas a encarnação da maldade, cuja
doutrina se explicita no Credo do segundo ato, uma
invenção de Boito.
Um balanço final da transformação do Othello
em Otello conclui que Boito conseguiu produzir uma
obra-prima de libreto a partir de uma obra-prima
teatral, condensando a ação e os versos, suprimindo
personagens e passagens acessórias, e adaptando a linguagem elisabetana. A questão é que um libreto, por
definição, não é uma obra de arte acabada, mas apenas
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a base para a fusão da palavra à música. Quinze anos
antes do Otello, Boito construíra um excelente libreto,
o de Mefistofele, resumindo o primeiro e o segundo
Fausto de Goethe num prólogo, quatro atos e um epílogo, que ele próprio tratou de pôr em música. A ópera
ainda se representa vez por outra, sobretudo na Itália,
pelas oportunidades que oferece aos cantores, mas é
musicalmente medíocre. Boito, embora na época se
considerasse um wagneriano, de fato estava na linha
de Meyerbeer. Há passagens agradáveis para os coros,
Fausto e Margarida, mas a caracterização musical do
protagonista é absolutamente frustrante. A diferença entre Otello e Mefistofele não é o libretista, mas o
compositor. Verdi atingira o ápice de sua criatividade, e
o grande mérito de Boito foi aceitar construir a ponte
entre um poeta e um compositor superiores a ele.
A AVENTURA CROMÁTICA
DE OTELLO
Uma leitura de relance da partitura de Otello revela um aspecto sem precedentes na obra de Verdi:
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OTELLO
a enorme frequência de mudança das chaves tonais.
Mais ainda, dentro da maioria das chaves, a sequência
de sustenidos e bemóis sugere incontáveis mudanças
de tonalidade. De fato, em Otello, Verdi abandona a
tradição diatônica da ópera italiana, lançando-se numa
formidável aventura cromática.
Influência de Wagner? Indiretamente sim, à medida que os novos caminhos descobertos por Wagner incentivaram Verdi a também pesquisar outras trajetórias
para o drama lírico. Só que o cromatismo, em Wagner e
em Verdi, presta-se a objetivos diametralmente opostos.
Em Wagner, particularmente em Tristão e Isolda e em
Parsifal, o cromatismo liberta as âncoras tonais, criando
sensações de levitação aural. Em Otello, o cromatismo
simplesmente comanda uma dança irregular das âncoras diatônicas, expondo o ouvinte a sucessivos choques
e surpresas auditivas. Ou seja, Verdi não busca a indefinição, mas a instabilidade tonal, conseguindo-a pela extrema economia das modulações, ou simplesmente por
variações tonais sem modulação. As transições suaves,
via círculos de quintas e de quartas, limitam-se aos momentos de repouso aural no decorrer da ópera.
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A instabilidade tonal em Otello se presta a dois objetivos. O primeiro, e mais importante, é descrever as
reações maníaco-depressivas do mouro. Os sentimentos do Otello mudam explosivamente, o que não pode
ser traduzido harmonicamente pelo gradualismo do
círculo das quintas. O segundo é manter a ópera em
altíssima voltagem, desafiando o fôlego do espectador,
o que não ocorre em nenhuma ópera de Wagner, salvo,
talvez, em Ouro do Reno. Otello é uma ópera incrivelmente compacta, em que os quatro atos se completam
em cerca de duas horas e quinze minutos. Há óperas
mais curtas, que acabam parecendo mais longas por
não conseguirem manter o pulso de Otello.
Descrever em pormenores o passeio cromático que
é a partitura de Otello requereria um tratado. Na análise que se segue nos limitaremos a uns poucos exemplos:
A) Da tempestade ao Esultate;
B) Fuoco di gioia;
C) O dueto final do primeiro ato;
D) Do Era la notte ao final do Sì, pel ciel
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A) DA TEMPESTADE AO ESULTATE
A ópera se inicia com um violento acorde dissonante – dó, no pedal grave, sol-si-bemol-ré-fá nos metais,
e instrumentos agudos – encaminhado apenas por um
rápido arpejo. Uma figura cromática alusiva à tempestade se combina com progressões harmônicas, fazendo saltar irrequietamente a tonalidade nos cinquenta
e seis primeiros compassos da partitura. Na frase do
coro Fende l’etra um torvo e cieco spirto di vertigine,
a música pousa temporariamente em dó menor, mas
poucos compassos depois continua no seu passeio tonal. Só no nonagésimo quinto compasso, quando o
coro canta em fortíssimo o Dio! fulgor della bufera!, a
partitura encontra uma âncora diatônica em lá menor.
Só que essa âncora se desprende após pouco mais de
dez compassos, até que os trompetes anunciam a entrada de Otello em Dó sustenido maior:
Esultate! L’orgoglio
Exultai! O orgulho
musulmano sepolto muçulmano está
è in mar
sepultado no mar
Nostra e del cielo è gloria. A glória é nossa e do céu.
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Dopo l’armi lo vinse Depois das armas, a
l’uragano.
tempestade o venceu.
Na primeira sílaba da palavra l’armi, Verdi eleva
abruptamente a tonalidade em um tom e meio, migrando de dó sustenido para Mi maior. Mudanças
abruptas nesse estilo, de extraordinário impacto aural,
são típicas de Otello.
B) FUOCO DI GIOIA
O coro do primeiro ato Fuoco di gioia, um dos
raros momentos de distensão emocional no Otello,
é uma das obras-primas do cromatismo verdiano. O
cromatismo aí não é usado para provocar qualquer
sensação de instabilidade aural, mas para transmitir
alegria esfuziante. Nisso ele contrasta deliberadamente com o coro do segundo ato em homenagem a
Desdêmona, basicamente diatônico, e que se propõe
a oferecer um interlúdio de paz a partir da primeira
intriga de Iago. O Fuoco di gioia se constrói a partir
das variações ao tema inicial, alusivo à tempestade,
combinado com a mais animada melodia diatônica:
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a figura cromática nº 1 conduzindo naturalmente as
mutações tonais.
C) O DUETO FINAL DO PRIMEIRO ATO
Charles Osborne, um dos mais fanáticos apreciadores de Verdi de todos os tempos, admirador, inclusive, de óperas pouco felizes como Alzira e Giovanna
d’Arco, qualifica o dueto Già nella notte densa como
um “Wagner destilado”. Verdi, que tinha horror a ser
classificado como imitador de Wagner, provavelmente rejeitaria essa qualificação. Contudo, se há algum
ponto de Otello no qual a linguagem musical verdiana
lembra a de Wagner, é exatamente nesse extraordinário
dueto. Isso tem uma explicação lógica: trata-se do único momento de idílio na ópera, quando a linguagem
cromática exige que a tonalidade flutue, em vez de oscilar bruscamente.
O dueto se inicia na chave de Sol bemol maior, mas
as mudanças tonais dentro da chave se sucedem rapidamente. A frase de Desdêmona, Oh! Com’è dolce il
mormorare insieme, parece ancorada em Mi bemol
maior; mas o mi natural do te ne rammenti conduz
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por semitons para o Quando narravi l’esule tua vita,
uma inspiradíssima melodia diatônica em Fá maior.
Verdi, em plena aventura cromática, não pousa por
muito tempo na mesma tonalidade, após inúmeras
voltas introduz o tema do Beijo em Mi maior.
No final do dueto, na frase Vien... Venere splende,
Otello transporta a música para Ré bemol maior.
D) DO ERA LA NOTTE AO FINAL DO SÌ, PEL CIEL
O fim do segundo ato é um prodígio de habilidade harmônica a serviço da expressão dramática. Iago
inicia sua intriga do sonho de Cassio, em Era la notte,
numa linha melódica estritamente diatônica, ainda
que sublinhada por insinuações cromáticas na orquestra. À medida que a intriga avança, as progressões por
semitons invadem a linha de canto e todo o tecido orquestral. Progressões com luvas de seda, que em nada
evocam as de Wagner, mas que se antecipam aos impressionistas franceses. A genialidade de Verdi foi perceber que, nesse ponto da ópera, a música não deveria
apenas expressar o que Iago narra, mas especialmente
o que Otello sente. As transformações cromáticas pro18
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gridem até o momento em que Iago afirma ter visto
nas mãos de Cassio o lenço que Otello deu de presente a Desdêmona. Nesse momento Otello se decide, no
Ah! Mille vite em Lá maior. Salvo pequenas ornamentações, a expressão musical adequada a esse estado de
decisão é diatônica, e é na tonalidade de Lá maior que
se assenta o dueto final Sì, pel ciel.
OS PROBLEMAS DE ENCENAÇÃO
DE OTELLO
Otello, não obstante ser considerada a obra-prima
de Verdi, é encenada com muito menor frequência do
que outras óperas do compositor, como La traviata.
O problema é semelhante ao de Tristão e Isolda, mas
com algumas diferenças. A partitura é complexa e requer um grande regente e uma boa orquestra. Só que
os seus mistérios já foram desvendados por Toscanini,
Tullio Serafin e outros diretores de orquestra, podendo
ser absorvidos por centenas de diretores musicais da
atualidade, inclusive quanto às sutilezas harmônicas da
partitura.
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O problema é encontrar um tenor à altura das exigências do papel do mouro de Veneza. Verdi exige de
Otello uma voz estentórica, cujo primeiro desafio é
o Esultate; expressão lírica e legato para o dueto com
Desdêmona no final do primeiro ato; incrível pujança
vocal para enfrentar a intriga de Iago no segundo ato;
fantástica resistência para suportar o dueto com Desdêmona, o Dio! mi potevi scagliar e o final do terceiro
ato. E, por último, suficiente resistência para se suicidar
com dignidade no quarto ato. Mais ainda, o papel de
Otello pede mais do que um grande cantor. Pede também um grande ator, cenicamente e nas inflexões vocais.
Por certo, o papel de Otello é muito mais curto do
que o de Tristão, um consolo aos candidatos a interpretar o mouro. Só que Verdi preparou duas armadilhas. Primeiro, no segundo ato, o tenor é desafiado por
uma massa orquestral em que os sopros de metal assumem uma intensidade que Wagner jamais ousou inserir nas suas partituras, pelo menos nos momentos em
que as personagens cantavam. Segundo, Wagner não
pede agudos acima do lá natural, pelo menos para o
Tristão. Otello precisa do lá sustenido ou do si bemol
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em várias ocasiões, dois deles absolutamente expostos
no monólogo do terceiro ato Dio! mi potevi scagliar;
um si natural na appogiatura do Esultate, precedendo
l’uragano, e um outro no seu primeiro dueto com Iago
no segundo ato. E, se possível, um dó de peito, ainda
que de raspão, no final do dueto com Desdêmona no
início do terceiro ato.
Para complicar, a tradição italiana exige tenores
com belos timbres de voz, uma exigência que os alemães abandonaram para conseguir uma massa crítica
de tenores heroicos. De fato, como aturar as asperezas
vocais de um Otello contracenando com um Iago e
com uma Desdêmona de timbres impecáveis?
Com essas exigências, os grandes intérpretes de
Otello passam a contar-se a dedo: Francesco Tamagno, que estreou o papel sem deixar Verdi inteiramente convencido; Giovanni Zenatello e sobretudo Giovanni Martinelli, o memorável Otello das décadas de
1930 e 1940; Ramón Vinay, projetado por Toscanini e
realmente comovente em cena, mas inconvincente em
termos de timbre e legato; Mario del Monaco, o excepcional Otello da década de 1950; Jon Vickers, excelente
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ator, mas de timbre mais rico do que o de Vinay; e,
finalmente, Plácido Domingo a partir de 1975. É importante notar que Enrico Caruso nunca se sentiu motivado ou preparado para enfrentar o Otello.
Iago e Desdêmona também são papéis difíceis, sobretudo o do primeiro, que precisa ser suficientemente lírico para enfrentar os três lás naturais do Brindisi
do primeiro ato, da violência do Credo do segundo, e,
mais adiante, as sutilezas do Era La notte. Mas nunca
faltaram sopranos nem barítonos à altura dos respectivos papéis. Um tenor lírico mediano dá conta do Cassio, um baixo razoável do Lodovico, e as demais partes
não envolvem qualquer dificuldade.
Em matéria de cenários não há muito que inventar, embora um produtor genial como Franco Zefirelli
sempre possa trazer algo de novo. Nas produções de
Zefirelli, para o Scala de Milão e para o Metropolitan
de Nova York, há dois momentos de extraordinário
impacto. O primeiro é a redução da profundidade do
palco na primeira parte do terceiro ato por uma cortina que imita uma sala de armas. A ação se desenvolve
nesse palco reduzido até o trio Otello-Iago-Cassio, e
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os posteriores diálogos Iago-Cassio e Iago-Otello. Nos
oito compassos em que os trompetes internos anunciam a chegada do embaixador o palco escurece. Para
se iluminar com toda a claridade, e superpopulado
(inclusive com Otello ao fundo), na entrada do coro
Viva! Evviva! Viva il Leon di San Marco! O impacto
dramático é extraordinário, mas é preciso conseguir
realizá-lo em oito compassos (o que não chega a ser
difícil, pois apenas Otello e Iago precisam se deslocar
da frente para o fundo do palco nesse interregno; as
demais personagens já podem ter sido reunidas antes).
Só que é preciso perfeita sincronização entre a direção
de iluminação e a musical. Um segundo de defasagem,
no caso, gera uma catástrofe. O segundo efeito excepcional da produção de Zefirelli é o jogo de luzes sobre
o leito de Desdêmona no quarto ato, gradualmente
evocando um túmulo onde, no final, jazem Desdêmona e Otello a seus pés.
Um ponto mais delicado na direção cênica é como
caracterizar Otello, Iago, e o relacionamento entre os
dois. Desde a peça de Shakespeare, questiona-se como
Otello se deixou enredar numa intriga urdida tão pre23
OTELLO
cariamente, e o que motiva Iago a destruir Otello e Desdêmona. Uma resposta simples é que o teatro e a vida
não são a mesma coisa, mas é preciso buscar o mínimo
de coerência para que a tragédia se torne convincente.
No caso de Otello, a solução é relativamente simples, tanto em Shakespeare quanto na versão de Boito:
envelhecido, negro e bruto, ele próprio não acredita que
Desdêmona seja capaz de sentir por ele uma atração duradoura. No próprio idílio do primeiro ato, a declaração de amor culminante é a de uma relação instável:
E tu m’amavi per le mie sventure, ed io t’amavo per la
tua pietà.
sugerindo que o amor de Desdêmona era piedade pelas desventuras do mouro.
No quarteto do segundo ato, Otello, falando consigo mesmo, expressa claramente seus sentimentos:
forse perchè discendo talvez porque desço
nella valle degli anni, no vale dos anos,
forse perchè ho sul viso talvez porque tenho
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quest’atro tenebror...
no rosto esta negra
escuridão...
forse perchè gl’inganni talvez porque não
d’arguto amor non entendo os enganos
tendo etc.
do amor arguto etc.
Em suma, Otello acha que a fidelidade de Desdêmona só se sustenta por um fio, dada a diferença de
idade, de cor e de trato social entre os dois. A paixão de
Desdêmona fora o impulso transitório de uma jovem,
incapaz de resistir à erosão do tempo ou à sedução de
um Cassio. Nada disso é obra de Iago. É simplesmente
o que se passa na cabeça de Otello.
Iago, naturalmente, é perspicaz o bastante para descobrir o calcanhar de aquiles do mouro. Seu ódio por
Otello e Cassio é explicitado no breve dueto Roderigo,
ebben, che pensi? Cassio conseguiu o posto de substituto imediato de Otello usurpando uma promoção que,
por mérito, deveria pertencer a Iago, e sua primeira
vingança é embriagar o Capitão nos festejos da chegada de Otello (presumivelmente, Cassio conseguiu essa
promoção pela sua melhor estratificação social, e não
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pelos seus feitos heroicos como combatente). A falsidade e a crueldade de Iago também são descritas convincentemente tanto em Shakespeare quanto no libreto de
Boito, neste último sublinhado pelo Credo do segundo
ato. Iago é pelo menos tão paranoico quanto Otello é
maníaco-depressivo, se é que se podem comparar diferentes padrões de psicose.
O problema é que, para destruir Otello, Iago aceita a
autodestruição. Primeiro, para urdir sua intriga, o alferes
corre um grande risco: baseá-la num lenço, supostamente encontrado nas mãos de Cassio, e que Otello poucos
minutos antes havia jogado para longe quando Desdêmona tentou enxugar-lhe a fronte. Lenço histórico, o
primeiro presente de amor de Otello a Desdêmona, e
que é recolhido por Emilia e logo a seguir roubado por
Iago. Presume-se que Otello não perceba de que lenço se
trata no momento em que o projeta para longe no início
do quarteto do segundo ato. Esse é um ponto fundamental a ser observado pelos diretores de cena e que pode
ser facilmente deglutido pelos espectadores. A questão
mais delicada é que Desdêmona também se esquece do
episódio, sem o que facilmente se explicaria no dueto do
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terceiro ato, invocando inclusive o testemunho de Emilia. Iago aposta nesse jogo de falta de atenção, sem o que
a sua intriga seria rapidamente desmoralizada.
Segundo, o objetivo claro de Iago é se vingar de
Otello e, de passagem, de Cassio. Desdêmona é apenas um instrumento, e em nenhuma passagem do texto
shakespeariano ou da ópera Iago parece odiá-la intrinsecamente. Para realizar os seus planos, duas mortes
são essenciais para Iago, a título de queima de arquivo:
a de Cassio e a de Emilia. A primeira é arquitetada
pela combinação com Roderigo, a segunda só se realiza a posteriori no drama shakespeariano e em algumas
interpretações da ópera (já que a partitura não dá nenhuma indicação nesse sentido), mas a título de pura
vingança da mulher que o desmoraliza. Mesmo que
se eliminassem as possíveis testemunhas, a vingança
de Iago não poderia terminar no assassinato de Desdêmona por Otello. Para se consumar plenamente, o
mouro teria de descobrir que assassinara injustamente
a esposa, como realmente acontece na ópera. Só que,
nesse caso, Iago estaria condenado à morte.
Uma escapatória adotada por alguns diretores de
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OTELLO
cena consiste em insinuar um amor homossexual de
Iago por Otello, não importa se consumado ou não nas
viagens marítimas dos dois. Nesse caso, o objeto principal do ciúme de Iago seria Desdêmona. Só que nada há
no libreto que apoie essa interpretação, muito menos na
música. Mais lógico é aceitar Iago como um psicótico,
disposto ao próprio sacrifício desde que destrua Otello.
Um ponto importante nas encenações da ópera
se refere aos possíveis cortes na partitura. O balé do
terceiro ato, composto para a primeira apresentação
da ópera em Paris, mas inexistente na estreia em 1887
no Scala de Milão, certamente é um apêndice desnecessário. A música é da melhor qualidade, mas quebra
a continuidade dramática do terceiro ato, e é melhor
deixá-la para apresentações em salas de concerto. No
mais, em muitas versões de Otello introduzem-se dois
outros cortes: 1) parte do coro em homenagem a Desdêmona no segundo ato; 2) o trecho central do concertante do terceiro ato, após a longa frase de Desdêmona, A terra! Sì, nel livido fango.
Nenhum desses cortes se justifica em uma ópera compacta como Otello, ainda que Verdi não objetasse a eles.
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Os cortes no coro do segundo ato não têm maiores consequências musicais ou dramáticas, mas apenas privam
o ouvinte de uns poucos minutos de belíssima música.
Já o corte no concertante do terceiro ato, ainda que
justificável por critérios estritamente musicais, interrompe a sequência dramática num ponto essencial: aquele
em que Iago convence Roderigo a assassinar Cassio, para
que Otello e Desdêmona (por quem Roderigo está apaixonado) continuem na Ilha de Chipre. Sem isso, dois
pontos fundamentais do quarto ato ficam sem explicação: por que Emilia anuncia um grande crime, Cassio
matou Roderigo, e por que Montano narra a confissão
de Roderigo, moribundo sobre as artes nefandas de Iago.
Em suma, ressalvado o balé, que não foi composto
para a estreia de Otello no Scala de Milão, qualquer
corte na partitura é uma agressão desnecessária ao espectador. Isso para não falar no filme de Zefirelli, com
Plácido Domingo, visualmente fantástico, mas no qual
não há apenas cortes, e sim uma completa mutilação
musical.
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Original de Mario Henrique Simonsen sobre “Otello”
Mario Henrique Simonsen’s original on “Otello”
ISBN 978-85-98831-17-6
9 788598 83117 6

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