Uma Reflexão Filosófica no Cotidiano do Educador
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Uma Reflexão Filosófica no Cotidiano do Educador
UMA REFLEXÃO FILOSÓFICA NO COTIDIANO DO EDUCADOR Prof. Ms. Flávio Donizete Batista “A vida que não é refletida não merece ser vivida” - Sócrates. “O século XXI será ético e espiritual ou não será” - André Malraux. “Atreve-te a pensar por conta própria” - Kant. 1. Sala de aula: local para o encontro educativo O professor Augusto Novaski diz que educar é, fundamentalmente, estar com os outros (apud MORAIS, 1984). Todo encontro com o outro é uma possibilidade de educação. Esta afirmação traz em si algumas indagações: todo encontro é educativo? O que faz um encontro ser educativo e outro não? Um encontro é educativo quando possibilita a aprendizagem do que é fundamental: a aprendizagem do humano. A tarefa da educação é tornar a pessoa cada vez mais humana. Edgar Morin diz que a educação “deve contribuir para a auto-formação da pessoa (ensinar a assumir a condição humana, ensinar a viver)” (MORIN, 2001, p.65). À medida que o encontro dá condições para que os envolvidos aprendam a serem humanos, ele é educativo. Mas o que é aprender a ser humano? É tomar consciência dessa condição, a de humano, e de que ela é fruto de uma construção contínua de significados e atitudes. É saber, cada vez mais, que ser humano é ter dignidade, esperança, compromissos e capacidade de tecer relações. É buscar um sentido para a existência, e com ele alcançar a realização. É estar sempre “diante do caráter duplo e complexo do que é humano: a humanidade não se reduz absolutamente à animalidade, mas, sem animalidade, não há humanidade” (MORIN, 2001, p.41). Deparamo-nos com uma tarefa inesgotável. E ao mesmo tempo, irrecusável: abrir mão dela significa fracassar naquilo que é fundamental na educação, e tudo o que viesse a ser feito seria em vão. Portanto, o que pensarmos em educação - didática, metodologia, planejamento de conteúdos, estratégias e recursos, formação de professores, organização escolar, por exemplo - deve ser para possibilitar encontros que ajudem esse aprendizado do humano. É claro que nessa concepção de educação, a sala de aula não é o seu único ambiente. Todos os espaços e os momentos podem ser educativos. Humberto Maturana afirma que (...) o educar se constitui no processo em que a criança ou o adulto convive com o outro e, ao conviver com o outro, se transforma espontaneamente, de maneira que seu modo de viver se faz progressivamente mais congruente com o do outro no espaço da convivência. O educar ocorre, portanto, todo o tempo e de maneira recíproca (MATURANA, 1999, p.29). No entanto, a sala de aula é, podemos dizer, um espaço privilegiado da educação formal, e precisa cada vez mais possibilitar experiências de aprendizagem. Trazendo uma idéia de Hugo Assmann (1998), a escola (sala de aula) só terá razão de existir se proporcionar tais experiências de aprendizagem que, segundo ele, são processos vitais para a pessoa. E caberá à escola dar condições para que o indivíduo desenvolva habilidades de acessar informações e de saber usá-las, e de construir teias de relações interativas com o ambiente (pessoas e coisas). Isso garantirá que ela sobreviva. www.flaviobatista.com.br 2 2. Cronos e Kairós: uma nova temporalidade na educação (Neto, 2002) O tempo para nossa sociedade é o tempo cronológico (Cronos) marcado útil, contado, medido, seqüencial, que se contrapõe com outro tipo de tempo, também dos gregos, chamado Kairós – tempo de eventos, de acontecimentos de caráter singular e únicos. O primeiro tempo passa a ter um sentido dominante com a modernidade, inauguram-se nela os relógios de torre, especialmente das Igrejas; demarcam horas íntimas circunscritas pelo tempo e disciplinado sobre o corpo como instrumento de trabalho. Cobram a produção social material e os tempos livres subordinados ainda à produção; e o tempo religioso marcadamente de renúncia para os trabalhadores da submissão. Marca ainda a morte, a transitoriedade como forma de controle dos corpos, da mente e da força de trabalho. A noção de momento da oportunidade representado por Kairós constitui um elemento complexo para ser pensado. Tempo e espaço fundem-se. O movimento histórico da educação, enquanto um conjunto de conhecimentos intencionalmente selecionados de uma cultura, está passado por uma noção de ordem, onde a oportunidade é antes planejada que deixada para ser percebida. Essa noção de ordem reflete o paradigma de Cronos. A experiência de Kairós, por seu turno, baseia-se na percepção sutil de um significado que surge da totalidade de um instante imprevisível. Ocorre quando o professor se defronta com determinado contexto pedagógico, por exemplo, e nesse percebe uma oportunidade singular para ensinar algo. A consciência de Kairós requer uma percepção aguda das necessidades dos indivíduos envolvidos, bem como daquilo que o grupo engendra. Kairós apresenta-se como uma janela de oportunidade que subitamente se percebe aberta em um dado contexto. Perceber e explorar um momento oportuno requer uma atitude atenta e criativa, o estar presente e a habilidade para inserir a ação pedagógica. Ao responder às sutis necessidades do momento, recorrendo ao sentido de oportunidade informado por Kairós, a ação pedagógica ultrapassa os limites representados por Cronos. As temporalidades representadas por Cronos e Kairós, complementares, requerem conjugação. Assim como alguns contextos educacionais podem ser criados, outros devem ser descobertos ou percebidos, na forma de oportunidade adequada para se efetivar alguma ação pedagógica, ainda que apenas na transmissão. Por outro lado, não há existência humana senão plasmada no espaço, sexualizada e temporalizada. A ordenação do conhecimento implicado no modo historicamente estabelecido de fazer e praticar o currículo, se por um lado recorre a Cronos, ignora as possibilidades criativas de Kairós. Kairós, entretanto, desdobra-se da totalidade em movimento, que não pode ser aprisionada a priori, ao contrário, do que supõe a visão mecanicista-newtoniana que inspirou as primeiras formulações do currículo. Uma aproximação à noção de temporalidade simbolizada por Kairós pode ser vislumbrada em momentos de “reflexão-na-ação”. Nestes momentos sutis, o professor reflexivo percebe uma ordem distinta de significado em um evento de aprendizagem, e retorna a ele com um novo sentido de temporalidade aí presente, diríamos que o professor reflexivo percebe uma janela de oportunidade se abre momentaneamente. A percepção de Kairós, portanto, significa saber quando e como utilizar o momento oportuno. Em se tratando do histórico na educação, a dimensão temporal representada por Kairós ajuda a pensar as limitações impostas pela noção de tempo cronológico, linear e rígido, que historicamente tem perpassado a concepção prática do currículo, e propõe o desafio de incorporar uma noção de temporalidade ainda pouco explorada, mas muito “oportuna” para o contexto crítico da educação contemporânea. www.flaviobatista.com.br 3 Olhar o que não se mostra e alcançar o que ainda não se consegue. Isso envolve uma nova atitude de aprendiz-pesquisador, o que aprende com sua própria experiência pesquisando. Para tanto, é impossível pensá-la como um modelo estático ou um paradigma ao qual, por exemplo, um currículo deva conformar-se. Pressuporia paradoxos que desafiam e revolucionam os paradigmas norteadores, desestabilizando-os para conduzi-los a uma nova ordem. Olhamos para um novo tempo que não é cronos, tempo de controle, mas Kairós, tempo que subverte a ordem de cronos, que se aproveita da imprevisibilidade, tempo flutuante. Em cronos submetemo-nos a cronogramas. Em Kairós, à oportunidade de criar. Entendemos o tempo não só como cronologia, mas como vivência, aprendizagem e luta. Somos Kairós, uma dimensão em que a existência não se mede por dias, mas pela qualidade que imprimimos à nossa vida. 3. Um convite à Filosofia... Queremos com nosso estudo, despertar o interesse pela Filosofia partindo de indagações e de problema suscitados pela experiência cotidiana, ou seja, indicando que as questões filosóficas não são estranhas nem distantes de nossa vida de todo dia. O filosofar geralmente é compreendido, pelo menos, de três formas distintas: a) Como o ato de pensar. Às vezes, doenças ou morte de pessoas próximas, decepções, perdas irreparáveis e outros problemas existenciais nos fazem pensar (“filosofar”) sobre o sentido de nossa vida. Mas esse significado é por demais vago e amplo para caracterizar o verdadeiro sentido do filosofar. b) Como sinônimo de “saber viver” virtuosamente. Aqui, filosofar é viver com sabedoria. O sábio é aquele que se torna um exemplo vivo das virtudes apreciadas em uma sociedade e é tomado como ponto de referência para fortalecer o valor das tradições vigentes. É nesse sentido que as sabedorias orientais são também chamadas “filosofias”. c) Como o filosofar propriamente dito, que teve início na Grécia, em torno dos séculos VI e V a.C. Por essa época, começou-se a repensar a natureza, o ser humano e as divindades com um olhar crítico. Procurava-se saber a validade dos próprios conhecimentos. Até que ponto a cultura era fruto de fantasias dos antepassados? O que garantia que as tradições recebidas dos anciãos eram verdadeiras? A filosofia, portanto, questiona os fundamentos da cultura. 3.1 Qual a coisa mais importante da vida? Se fizermos esta pergunta a uma pessoa de um país assolado pela fome, a resposta será: a comida. Se fizermos a mesma pergunta a quem está morrendo de frio, então a resposta será: o calor. E quando perguntamos a alguém que se sente sozinho e isolado, então certamente a resposta será: a companhia de outras pessoas. Mas, uma vez satisfeitas todas essas necessidades, será que ainda resta alguma coisa de que todo mundo precise? Os filósofos acham que sim. Eles acham que o ser humano não vive apenas de pão. É claro que todo mundo precisa comer. E precisa também de amor e de cuidado. Mas ainda há uma coisa de que todos nós precisamos. Nós temos a necessidade de descobrir quem somos e por que vivemos. Portanto, interessar-se em saber por que vivemos não é um interesse casual, como colecionar selos, por exemplo. Quem se interessa por tais questões toca um www.flaviobatista.com.br 4 problema que vem sendo discutido pelo homem praticamente desde quanto passamos a habitar este planeta. A questão de saber como surgiu o universo, a terra e a vida por aqui é uma questão maior e mais importante do que saber quem ganhou mais medalhas de ouro nos jogos olímpicos. Essas perguntas que deveriam interessar a todos são as perguntas filosóficas. Como o mundo foi criado: Será que existe uma vontade ou um sentido por detrás do que ocorre? Há vida depois da morte? Como podemos responder a essas perguntas? E, principalmente, como devemos viver? Essas perguntas têm sido feitas pelas pessoas de todas as épocas. Não conhecemos nenhuma cultura que não se tenha perguntado quem é o ser humano e de onde veio o mundo. Basicamente, não há muitas perguntas filosóficas para se fazer. Já fizemos algumas das mais importantes. É mais fácil fazer perguntas filosóficas do que respondêlas. A história nos mostra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas, mas cada um de nós deve procurar a sua resposta. A leitura do que as outras pessoas pensaram pode nos ser útil quando precisamos construir nossa própria imagem do mundo e da vida. Platão acreditava que a filosofia era fruto da capacidade do homem de se admirar com as coisas. Ele achava que para o homem a vida é algo tão singular que as perguntas filosóficas surgem como que espontaneamente. É como o que ocorre quando assistimos a um truque de mágica: não conseguimos entender como é possível acontecer aquilo que estamos vendo diante de nossos olhos. Como é que o mágico conseguiu transformar dois lenços de seda num coelhinho vivo? Para muitas pessoas, o mundo é tão incompreensível quanto o coelhinho que o mágico tira da cartola, que antes estava vazia. No caso do coelhinho, sabemos perfeitamente que o mágico nos iludiu. Mas quando falamos sobre o mundo, as coisas são um pouco diferentes, o mundo não é uma ilusão, pois estamos vivendo, somos parte dele. A PRIMEIRA COISA DE QUE PRECISAMOS PARA NOS TORNARMOS BONS FILÓSOFOS É A CAPACIDADE DE NOS ADMIRARMOS COM AS COISAS. Parece muito simples, mas por que essas questões não despertam a admiração de todos? Por que, embora as questões filosóficas digam respeito a todas as pessoas, nem todas se tornam filósofos? Os motivos são os mais diferentes. A maioria das pessoas é tão absorvida pelo cotidiano, pelas necessidades imediatas, que a admiração pela vida acaba sendo completamente reprimida. A maioria vivencia o mundo como uma coisa absolutamente normal. Um(a) filósofo(a) nunca é capaz de se habituar completamente com este mundo. Para ele ou para ela, o mundo continua a ter algo de incompreensível, algo de enigmático, de secreto. Só os(as) filósofos(as) têm ousadia para se lançar nessa jornada rumo aos limites da linguagem e da existência. 4. Sobre a Ética 4.1 Buscando uma definição de ética Desde suas origens, a ética busca estudar e fornecer princípios norteadores para o agir humano. No entanto, ela nunca apresenta respostas prontas sobre como agir nas diversas situações, o que não justifica dizer que cada pessoa possa agir criando seus próprios princípios. As situações particulares precisam ter uma ação definida por fundamentos que possibilitem uma avaliação das mesmas. Como todo agir que não se www.flaviobatista.com.br 5 orienta por princípios é cego, passa a ser imprescindível para as pessoas a busca de uma reflexão que oriente adequadamente sua prática. A ética, segundo Vázquez (2002, p. 23), é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Embora intrinsecamente relacionados, não podemos confundir a ética e a moral. Inclusive, a etimologia dos termos é semelhante. A partir de Aranha (2001) e Vázquez (2002), moral vem do latim mos, moris, que significa “maneira de se comportar regulada pelo uso”, daí “costume”, e de moralis, morale, adjetivo referente ao que é “relativo aos costumes”. Moral refere-se ao comportamento adquirido ou modo de ser conquistado pelo homem. A ética vem do grego ethos, que tem o mesmo significado de “costume”, modo de ser ou caráter enquanto forma de vida também adquirida ou conquistada pelo homem. Em outras palavras, a moral comumente refere-se a valores e a normas aceitas livre e conscientemente, que regulam o comportamento individual e social dos homens, e a ética, trata-se da reflexão sobre esses valores e normas, visando descobrirlhes os princípios gerais. Vale dizer que não se tratam de princípios gerais universais, mas daqueles que são absolutamente válidos para uma determinada sociedade ou instituição, pois há uma série de padrões que modelam o comportamento individual: o modo de trabalhar, de sentir, de amar etc., e que variam de uma sociedade para outra. Ética seria, mais uma vez, uma reflexão teórica que analisa e critica ou legitima os fundamentos e princípios que regem determinado sistema moral (dimensão prática) (SUNG; SILVA, 2000, p. 13). Quero ainda aprofundar um pouco a compreensão etimológica da ética trazendo aquilo que está em sua raiz: o termo ethos. A palavra grega “”, quando escrita com um “eta” inicial, significa “morada”, “casa”. O animal, quando entra no mundo não precisa construir uma casa. Seu aparato instintivo “é uma encarnação da lei cósmica”. No entanto, conosco não acontece assim. Este mundo que nos precede não é simplesmente dado, colocado à nossa disposição para um relacionamento imediato. Somos em parte determinados imperfeitamente pela nossa própria constituição biológica. Nossa estrutura de instintos no nascimento é insuficientemente especializada e não é dirigida a um ambiente que nos seja específico. Precisamos organizar o mundo para superar o caos, necessitamos construir um mundo que tenha sentido humano, e, nesse processo, construir o nosso próprio eu. Assim, o homem constrói sua casa e nela procura abrigo e proteção contra as intempéries do tempo e as hostilidades do meio ambiente. A morada é símbolo dos valores transmitidos pela tradição familiar e cultural, tudo aquilo que torna o mundo habitável para o homem. É ainda no espaço aberto pelo ethos-morada onde se faz a abertura para o novo. O termo grego “”, com um “épsilon” inicial, significa “costume” e traduz aquela disposição interior, que leva o homem a agir com uma certa constância no espaço aberto de sua liberdade. O fruto desta disposição é o “hábito”, enquanto aquisição psíquica estável, que orienta o agir do homem, fazendo dele um homem virtuoso. Pois bem, entre o processo formador de hábitos e o seu termo que é a aquisição da virtude (entendendo “virtude” no sentido que ela tinha para os gregos, vale dizer, excelência), abre-se o espaço para a realização ética do ser humano. Ao homem compete a tarefa de construir o seu projeto existencial e este engloba também a tarefa de construir seu ethos individual e social, pois ele é um ser situado no tempo e na história. Na tentativa de complementar as definições até aqui apresentadas, diremos que moral é tudo aquilo que é da dimensão do dever, da obrigatoriedade. “Não matar” é moral, pois é dever. Todas as sociedades têm um mínimo de regras e normas, com deveres a serem cumpridos. Não existe sociedade saudável sem um mínimo de normas www.flaviobatista.com.br 6 morais, do dever, que são internalizadas nos indivíduos que a compõem, para que sejam cumpridas. Já a ética pergunta sobre que vida vale a pena ser vivida e o que leva à felicidade? Quais as ações que poderão tornar os relacionamentos melhores? A ética refere-se a um projeto de vida em sociedade. Se a moral, portanto, está relacionada ao dever e à obrigatoriedade, a ética relaciona-se ao nível do desejo, da escolha daquilo que tornará a vida melhor. Após essa apresentação e tentativas de definição, achamos oportuno afirmar que não pretendemos neste trabalho encarar a ética como um ordenamento sobre o que deve e pode ser feito, e sobre o que não deve e não pode ser feito, mas sim entender a ética como a reflexão que cada homem precisa fazer no seu dia-a-dia, no seu encontro com as situações concretas, para discernir e escolher livremente sobre o necessário para garantir uma convivência possibilitadora de reconhecimento da individualidade e interdependência entre tudo o que acontece e entre todos nós. Nesse sentido, entendendo a educação como um projeto humano que diz respeito a indivíduos situados num mundo em construção, podemos ver a ética como inspiradora do agir e do pensar na escola, na grande tarefa de construir um projeto de vida que valha a pena ser vivido. 5. Consciência Crítica O termo conscientização parece que nasceu no Brasil, e tem sido atribuído muitas vezes a Paulo Freire. O método de alfabetização deste pedagogo se baseia teoricamente numa análise da consciência da população, especialmente do adulto não alfabetizado. Segundo a análise de Paulo Freire, há três tipos de consciência: a consciência mágica, a consciência transitivo-ingênua e a consciência critica. 1) Consciência mágica é a consciência dos grupos humanos que estão de tal maneira imersos nos acontecimentos do dia-a-dia, que não percebem nem as verdadeiras causas dos acontecimentos, nem o processo a que se chama processo da História . 2) Consciência transitivo-ingênua é a consciência dos grupos humanos que já conseguem perceber de alguma maneira que os acontecimentos de cada dia não são frutos do acaso nem de forças extramundanas. Percebe-se que a história humana é um desenvolvimento contínuo do próprio homem. Entretanto, a visão das causas ainda é insuficiente e, principalmente, ainda não tem o dinamismo que impele a tentar corrigir as próprias causas dos acontecimentos negativos. As pessoas percebem que a pobreza é fruto de injustiça, mas não analisam corretamente esta injustiça, ou não vêem como lutar contra ela. 3 ) Consciência crítica é a consciência que superou os dois limites: o limite que afoga a consciência na ignorância e na inércia, o limite da inércia e da impotência perante a realidade humana. Sendo assim, a finalidade precípua do método Paulo Freire é a formação da consciência crítica. Daí duas perguntas iniciais: o que é a consciência critica? Como é que se forma a consciência crítica? A palavra conscientização nasceu com este sentido: formação da consciência crítica. Tendo em vista a variedade imensa de sentidos que se tem emprestado a esta palavra, é importante notar que este significado original é bastante definido. O uso inflacionário e desgastante esvaziou-a do que ela tem de mais profundo. O sentido da palavra pode entretanto ser recuperado através da resposta a tais perguntas www.flaviobatista.com.br 7 que são o desdobramento das interrogações acima formuladas: l) o que é consciência? 2) o que é crítica? 3) como nasce a consciência crítica? 5.1 O que é consciência A palavra consciência tem aqui um sentido filosófico, e não psicológico. Em psicologia, usa-se aliás mais freqüentemente o termo "o consciente" e designa o conjunto de fenômenos e dados psíquicos que a pessoa é capaz de verbalizar reflexamente. Opõese ao "inconsciente", que é objeto das pesquisas psicológicas e dos métodos de psicanálise divulgados hoje em dia. O princípio básico é de que o comportamento humano é, em grande parte, comandado pelo "inconsciente". A consciência é, fundamentalmente, a capacidade humana, e estritamente humana, de prever e planejar previamente as próprias atividades, de refletir sobre elas no decorrer da ação, e de cotejar os resultados seja com os planos prévios, seja com princípios e ideais teóricos ou práticos. A consciência é a capacidade de planejar, refletir e criticar. Embora a análise acima acenada de Paulo Freire seja criticada como insuficiente, ela oferece oportunidade de compreensão inicial do que expusemos até agora. Assim, há comportamentos constantes que são típicos da consciência mágica. O homem acredita que os acontecimentos são frutos de forças extraterrenas, de malefícios, e só aceita intelectualmente as explicações que reforcem este comportamento. Inversamente, o homem crítico já toma uma outra atitude profunda, antes mesmo de se dar conta de que sua atitude é crítica. Ele é capaz de verbalizá-la e de traduzi-la em conceitos, mas esta atitude é fundamental e anterior ao nível psicologicamente consciente. 5.2 O que significa “crítica” Normalmente, opõe-se ao conceito de atitude crítica o termo atitude ingênua. A ingenuidade ou falta de senso crítico é, às vezes, mítica, enquanto se baseia em explicações fora da realidade, e muitas vezes participa simplesmente do senso comum, ao qual adere sem maiores considerações. A adesão pacífica ao senso comum não é meramente casual. Ela tem uma raiz bastante detectável, e portanto modificável. Sabemos que o senso comum é a maneira habitual de pensar e agir ou reagir dentro de uma coletividade humana. Outros grupos ou outras coletividades podem muito bem pensar ou agir diversamente, e têm assim outro senso comum. Além disso, a constância e profundidade do senso comum podem ser tão importantes que o grupo se julga dividido e agredido quando alguém pensa ou age diversamente, e expulsa os dissidentes. Neste sentido o senso comum une fortemente um determinado grupo humano, e forma a base de sua unidade. Os planos, as reflexões e as críticas são feitos a partir dessa unidade constante do pensar e do agir. Atualmente tem-se discutido muitíssimo sobre este fenômeno, sob o título de ideologia. A ideologia é inconscientemente herdada ou dos antepassados ou do ambiente vital. Por isto ela determina com bastante profundidade os comportamentos e a atitude profunda das pessoas que nasceram e se desenvolveram no seu seio. A atitude profunda de uma pessoa que sempre viveu em ambiente miserável e subumano é muito diferente do comportamento fundamental e constante de quem vive em um meio ambiente saudável. A educação da consciência depende pois muito do ambiente em que o grupo vive e se www.flaviobatista.com.br 8 desenvolve. Conseqüentemente, a modificação do que se chamam as estruturas do grupo é de capital importância. Uma pessoa que deixa o ambiente originário e passa a outro, tem que modificar a sua maneira de pensar e de agir, ou seja, a sua ideologia. Ela tem que passar a pensar e agir de maneira a se ligar ao grupo novo, que passou a integrar. Ela tem necessidade de tornar isto legítimo. A ideologia de um grupo qualquer procura legitimar todas as atitudes que o grupo tem, e procura tornar aceitáveis às pessoas as maneiras de agir e reagir impostas pelo grupo. Na nossa sociedade, os grandes meios de comunicação desenvolvem neste sentido uma função vital. É por causa deles que o grande público aceita e se acostuma depressa com acontecimentos e realidades até mesmo repugnantes. Eles fazem acreditar que são normais certas coisas até mesmo absurdas: a propaganda de cigarros procura fazer acreditar que fumar aquela marca é sinal de prosperidade. Sempre que os jornais noticiam crimes, titulam os autores de marginais, assassinos, sem acenar minimamente às causas que levaram a pessoa a cometer desatinos independentes de sua vontade. A propaganda cria necessidades totalmente supérfluas, unicamente com a finalidade de criar mercado para o que é produzido. Há toda uma campanha direcionada para as crianças, porque o público infantil pressiona os pais para a compra de artigos supérfluos, às vezes até em prejuízo de compra de outros itens básicos e fundamentais. E a escola procura internalizar os comportamentos socialmente aceitos. Às vezes, é evidente que o que a ideologia afirma não é verdadeiro, como no caso de que "todas as coisas boas da vida começam no Banco X: carros, televisão, motocicletas, geladeiras e os objetos que tornam a vida melhor e mais agradável", ou em casos semelhantes. Mas ninguém protesta eficazmente contra a sua contínua afirmação. A repetição de tais 'slogans' (ideologemas) passa a recomendar uma série de atitudes, o que é aliás a intenção da propaganda. Através da realização do ritual imposto pela propaganda, vai-se criando uma série de convicções que velam e escondem totalmente a realidade. As coisas e os acontecimentos passam então a ser compreendidos e interpretados não mais em função do que são, em base a uma percepção correta, mas em base ao que a ideologia afirma deles, ou seja, a partir de uma imagem distorcida, que esconde a realidade. A realidade que se esconde atrás da propaganda não é a da realização do homem "que sabe o que quer" ou que atinge os bons sonhos, mas a criação de necessidades artificialmente geradas pelo sistema de produção. Desde que há determinadas fábricas, é necessário que haja quem consuma (compre, use ou venda, jogue fora e compre de novo) o que elas produzem, e em ritmo imposto pelo ritmo de produção. A crítica tende a ser a superação da ideologia. A consciência crítica é a que se torna paulatinamente capaz de detectar os planos, a realização e os resultados dos acontecimentos. A crítica é, entretanto, também autocrítica. Desde que não existe ciência que atinja perfeitamente o próprio objeto e compreenda exatamente o que ela estuda, existe sempre uma margem de conhecimentos herdados e não problematizados, que velam a realidade, legitimam atitudes e tendem a estabilizar as bases de um poder. Neste sentido é que se diz que não existe ciência neutra, e que o princípio proclamado pelos tecnocratas, de que a ciência e intocável porque imparcial, é mais uma afirmação ideológica. Finalmente, a crítica, como superação de uma ideologia, é a superação dos acontecimentos que geram e alimentam uma ideologia, ou que dela resultam, reforçandoa. Não existe formação da consciência crítica sem uma atividade consciente e atenta. Se as palavras não correspondessem a posições e comportamentos, não teria sentido pronunciá-las nem menos ainda censurá-las. www.flaviobatista.com.br 9 6. Bibliografia ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1999. MORAIS, Regis. Sala de aula: que espaço é esse? Campinas: Papirus, 1984. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. NETO, Augusto Martins da Rosa. O Cronos e o Kairós: uma perspectiva da temporalidade na educação. In: Revista Educação em Movimento, Curitiba: Champagnat, v.1, n.1, p.4347, jan./abr. 2002. SUNG, Jung Mo; SILVA, Josué Cândido da. Conversando sobre ética e sociedade. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2000. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 22.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Material utilizado no Curso de Atualização “A Docência: Possibilitando reflexões sobre a formação e atuação profissional”, promovido pela fundação de Apoio à FAFIPA, no dia 09 de junho de 2007. www.flaviobatista.com.br