Uma Reflexão Filosófica no Cotidiano do Educador

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Uma Reflexão Filosófica no Cotidiano do Educador
UMA REFLEXÃO FILOSÓFICA
NO COTIDIANO DO EDUCADOR
Prof. Ms. Flávio Donizete Batista
“A vida que não é refletida não merece ser vivida” - Sócrates.
“O século XXI será ético e espiritual ou não será” - André Malraux.
“Atreve-te a pensar por conta própria” - Kant.
1. Sala de aula: local para o encontro educativo
O professor Augusto Novaski diz que educar é, fundamentalmente, estar
com os outros (apud MORAIS, 1984). Todo encontro com o outro é uma possibilidade de
educação.
Esta afirmação traz em si algumas indagações: todo encontro é educativo?
O que faz um encontro ser educativo e outro não? Um encontro é educativo quando
possibilita a aprendizagem do que é fundamental: a aprendizagem do humano. A tarefa da
educação é tornar a pessoa cada vez mais humana. Edgar Morin diz que a educação
“deve contribuir para a auto-formação da pessoa (ensinar a assumir a condição humana,
ensinar a viver)” (MORIN, 2001, p.65). À medida que o encontro dá condições para que os
envolvidos aprendam a serem humanos, ele é educativo. Mas o que é aprender a ser
humano? É tomar consciência dessa condição, a de humano, e de que ela é fruto de uma
construção contínua de significados e atitudes. É saber, cada vez mais, que ser humano é
ter dignidade, esperança, compromissos e capacidade de tecer relações. É buscar um
sentido para a existência, e com ele alcançar a realização. É estar sempre “diante do
caráter duplo e complexo do que é humano: a humanidade não se reduz absolutamente à
animalidade, mas, sem animalidade, não há humanidade” (MORIN, 2001, p.41).
Deparamo-nos com uma tarefa inesgotável. E ao mesmo tempo, irrecusável:
abrir mão dela significa fracassar naquilo que é fundamental na educação, e tudo o que
viesse a ser feito seria em vão. Portanto, o que pensarmos em educação - didática,
metodologia, planejamento de conteúdos, estratégias e recursos, formação de professores,
organização escolar, por exemplo - deve ser para possibilitar encontros que ajudem esse
aprendizado do humano.
É claro que nessa concepção de educação, a sala de aula não é o seu único
ambiente. Todos os espaços e os momentos podem ser educativos. Humberto Maturana
afirma que
(...) o educar se constitui no processo em que a criança ou o adulto convive com o
outro e, ao conviver com o outro, se transforma espontaneamente, de maneira que
seu modo de viver se faz progressivamente mais congruente com o do outro no
espaço da convivência. O educar ocorre, portanto, todo o tempo e de maneira
recíproca (MATURANA, 1999, p.29).
No entanto, a sala de aula é, podemos dizer, um espaço privilegiado da
educação formal, e precisa cada vez mais possibilitar experiências de aprendizagem.
Trazendo uma idéia de Hugo Assmann (1998), a escola (sala de aula) só terá razão de
existir se proporcionar tais experiências de aprendizagem que, segundo ele, são processos
vitais para a pessoa. E caberá à escola dar condições para que o indivíduo desenvolva
habilidades de acessar informações e de saber usá-las, e de construir teias de relações
interativas com o ambiente (pessoas e coisas). Isso garantirá que ela sobreviva.
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2. Cronos e Kairós: uma nova temporalidade na educação (Neto, 2002)
O tempo para nossa sociedade é o tempo cronológico (Cronos) marcado útil,
contado, medido, seqüencial, que se contrapõe com outro tipo de tempo, também dos
gregos, chamado Kairós – tempo de eventos, de acontecimentos de caráter singular e
únicos. O primeiro tempo passa a ter um sentido dominante com a modernidade,
inauguram-se nela os relógios de torre, especialmente das Igrejas; demarcam horas
íntimas circunscritas pelo tempo e disciplinado sobre o corpo como instrumento de
trabalho. Cobram a produção social material e os tempos livres subordinados ainda à
produção; e o tempo religioso marcadamente de renúncia para os trabalhadores da
submissão. Marca ainda a morte, a transitoriedade como forma de controle dos corpos, da
mente e da força de trabalho. A noção de momento da oportunidade representado por
Kairós constitui um elemento complexo para ser pensado. Tempo e espaço fundem-se.
O movimento histórico da educação, enquanto um conjunto de
conhecimentos intencionalmente selecionados de uma cultura, está passado por uma
noção de ordem, onde a oportunidade é antes planejada que deixada para ser percebida.
Essa noção de ordem reflete o paradigma de Cronos. A experiência de Kairós, por seu
turno, baseia-se na percepção sutil de um significado que surge da totalidade de um
instante imprevisível. Ocorre quando o professor se defronta com determinado contexto
pedagógico, por exemplo, e nesse percebe uma oportunidade singular para ensinar algo.
A consciência de Kairós requer uma percepção aguda das necessidades dos
indivíduos envolvidos, bem como daquilo que o grupo engendra. Kairós apresenta-se como
uma janela de oportunidade que subitamente se percebe aberta em um dado contexto.
Perceber e explorar um momento oportuno requer uma atitude atenta e criativa, o estar
presente e a habilidade para inserir a ação pedagógica. Ao responder às sutis
necessidades do momento, recorrendo ao sentido de oportunidade informado por Kairós, a
ação pedagógica ultrapassa os limites representados por Cronos.
As temporalidades representadas por Cronos e Kairós, complementares,
requerem conjugação. Assim como alguns contextos educacionais podem ser criados,
outros devem ser descobertos ou percebidos, na forma de oportunidade adequada para se
efetivar alguma ação pedagógica, ainda que apenas na transmissão. Por outro lado, não
há existência humana senão plasmada no espaço, sexualizada e temporalizada.
A ordenação do conhecimento implicado no modo historicamente
estabelecido de fazer e praticar o currículo, se por um lado recorre a Cronos, ignora as
possibilidades criativas de Kairós. Kairós, entretanto, desdobra-se da totalidade em
movimento, que não pode ser aprisionada a priori, ao contrário, do que supõe a visão
mecanicista-newtoniana que inspirou as primeiras formulações do currículo.
Uma aproximação à noção de temporalidade simbolizada por Kairós pode
ser vislumbrada em momentos de “reflexão-na-ação”. Nestes momentos sutis, o professor
reflexivo percebe uma ordem distinta de significado em um evento de aprendizagem, e
retorna a ele com um novo sentido de temporalidade aí presente, diríamos que o professor
reflexivo percebe uma janela de oportunidade se abre momentaneamente. A percepção de
Kairós, portanto, significa saber quando e como utilizar o momento oportuno.
Em se tratando do histórico na educação, a dimensão temporal representada
por Kairós ajuda a pensar as limitações impostas pela noção de tempo cronológico, linear e
rígido, que historicamente tem perpassado a concepção prática do currículo, e propõe o
desafio de incorporar uma noção de temporalidade ainda pouco explorada, mas muito
“oportuna” para o contexto crítico da educação contemporânea.
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Olhar o que não se mostra e alcançar o que ainda não se consegue. Isso
envolve uma nova atitude de aprendiz-pesquisador, o que aprende com sua própria
experiência pesquisando. Para tanto, é impossível pensá-la como um modelo estático ou
um paradigma ao qual, por exemplo, um currículo deva conformar-se. Pressuporia
paradoxos que desafiam e revolucionam os paradigmas norteadores, desestabilizando-os
para conduzi-los a uma nova ordem.
Olhamos para um novo tempo que não é cronos, tempo de controle, mas
Kairós, tempo que subverte a ordem de cronos, que se aproveita da imprevisibilidade,
tempo flutuante. Em cronos submetemo-nos a cronogramas. Em Kairós, à oportunidade de
criar. Entendemos o tempo não só como cronologia, mas como vivência, aprendizagem e
luta. Somos Kairós, uma dimensão em que a existência não se mede por dias, mas pela
qualidade que imprimimos à nossa vida.
3. Um convite à Filosofia...
Queremos com nosso estudo, despertar o interesse pela Filosofia partindo
de indagações e de problema suscitados pela experiência cotidiana, ou seja, indicando que
as questões filosóficas não são estranhas nem distantes de nossa vida de todo dia.
O filosofar geralmente é compreendido,
pelo menos, de três formas
distintas:
a) Como o ato de pensar. Às vezes, doenças ou morte de pessoas
próximas, decepções, perdas irreparáveis e outros problemas existenciais nos fazem
pensar (“filosofar”) sobre o sentido de nossa vida. Mas esse significado é por demais vago
e amplo para caracterizar o verdadeiro sentido do filosofar.
b) Como sinônimo de “saber viver” virtuosamente. Aqui, filosofar é viver
com sabedoria. O sábio é aquele que se torna um exemplo vivo das virtudes apreciadas
em uma sociedade e é tomado como ponto de referência para fortalecer o valor das
tradições vigentes. É nesse sentido que as sabedorias orientais são também chamadas
“filosofias”.
c) Como o filosofar propriamente dito, que teve início na Grécia, em torno
dos séculos VI e V a.C. Por essa época, começou-se a repensar a natureza, o ser humano
e as divindades com um olhar crítico. Procurava-se saber a validade dos próprios
conhecimentos. Até que ponto a cultura era fruto de fantasias dos antepassados? O que
garantia que as tradições recebidas dos anciãos eram verdadeiras? A filosofia, portanto,
questiona os fundamentos da cultura.
3.1 Qual a coisa mais importante da vida?
Se fizermos esta pergunta a uma pessoa de um país assolado pela fome, a
resposta será: a comida. Se fizermos a mesma pergunta a quem está morrendo de frio,
então a resposta será: o calor. E quando perguntamos a alguém que se sente sozinho e
isolado, então certamente a resposta será: a companhia de outras pessoas.
Mas, uma vez satisfeitas todas essas necessidades, será que ainda resta
alguma coisa de que todo mundo precise? Os filósofos acham que sim. Eles acham que o
ser humano não vive apenas de pão. É claro que todo mundo precisa comer. E precisa
também de amor e de cuidado. Mas ainda há uma coisa de que todos nós precisamos. Nós
temos a necessidade de descobrir quem somos e por que vivemos.
Portanto, interessar-se em saber por que vivemos não é um interesse casual,
como colecionar selos, por exemplo. Quem se interessa por tais questões toca um
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problema que vem sendo discutido pelo homem praticamente desde quanto passamos a
habitar este planeta. A questão de saber como surgiu o universo, a terra e a vida por aqui é
uma questão maior e mais importante do que saber quem ganhou mais medalhas de ouro
nos jogos olímpicos.
Essas perguntas que deveriam interessar a todos são as perguntas
filosóficas. Como o mundo foi criado: Será que existe uma vontade ou um sentido por
detrás do que ocorre? Há vida depois da morte? Como podemos responder a essas
perguntas? E, principalmente, como devemos viver? Essas perguntas têm sido feitas pelas
pessoas de todas as épocas. Não conhecemos nenhuma cultura que não se tenha
perguntado quem é o ser humano e de onde veio o mundo.
Basicamente, não há muitas perguntas filosóficas para se fazer. Já fizemos
algumas das mais importantes. É mais fácil fazer perguntas filosóficas do que respondêlas. A história nos mostra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas, mas cada
um de nós deve procurar a sua resposta. A leitura do que as outras pessoas pensaram
pode nos ser útil quando precisamos construir nossa própria imagem do mundo e da vida.
Platão acreditava que a filosofia era fruto da capacidade do homem de se
admirar com as coisas. Ele achava que para o homem a vida é algo tão singular que as
perguntas filosóficas surgem como que espontaneamente. É como o que ocorre quando
assistimos a um truque de mágica: não conseguimos entender como é possível acontecer
aquilo que estamos vendo diante de nossos olhos. Como é que o mágico conseguiu
transformar dois lenços de seda num coelhinho vivo?
Para muitas pessoas, o mundo é tão incompreensível quanto o coelhinho
que o mágico tira da cartola, que antes estava vazia. No caso do coelhinho, sabemos
perfeitamente que o mágico nos iludiu. Mas quando falamos sobre o mundo, as coisas são
um pouco diferentes, o mundo não é uma ilusão, pois estamos vivendo, somos parte dele.
A PRIMEIRA COISA DE QUE PRECISAMOS PARA NOS TORNARMOS
BONS FILÓSOFOS É A CAPACIDADE DE NOS ADMIRARMOS COM AS COISAS.
Parece muito simples, mas por que essas questões não despertam a admiração de todos?
Por que, embora as questões filosóficas digam respeito a todas as pessoas, nem todas se
tornam filósofos? Os motivos são os mais diferentes. A maioria das pessoas é tão
absorvida pelo cotidiano, pelas necessidades imediatas, que a admiração pela vida acaba
sendo completamente reprimida. A maioria vivencia o mundo como uma coisa
absolutamente normal.
Um(a) filósofo(a) nunca é capaz de se habituar completamente com este
mundo. Para ele ou para ela, o mundo continua a ter algo de incompreensível, algo de
enigmático, de secreto. Só os(as) filósofos(as) têm ousadia para se lançar nessa jornada
rumo aos limites da linguagem e da existência.
4. Sobre a Ética
4.1 Buscando uma definição de ética
Desde suas origens, a ética busca estudar e fornecer princípios norteadores
para o agir humano. No entanto, ela nunca apresenta respostas prontas sobre como agir
nas diversas situações, o que não justifica dizer que cada pessoa possa agir criando seus
próprios princípios. As situações particulares precisam ter uma ação definida por
fundamentos que possibilitem uma avaliação das mesmas. Como todo agir que não se
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orienta por princípios é cego, passa a ser imprescindível para as pessoas a busca de uma
reflexão que oriente adequadamente sua prática.
A ética, segundo Vázquez (2002, p. 23), é a teoria ou ciência do
comportamento moral dos homens em sociedade. Embora intrinsecamente relacionados,
não podemos confundir a ética e a moral. Inclusive, a etimologia dos termos é semelhante.
A partir de Aranha (2001) e Vázquez (2002), moral vem do latim mos, moris, que significa
“maneira de se comportar regulada pelo uso”, daí “costume”, e de moralis, morale, adjetivo
referente ao que é “relativo aos costumes”. Moral refere-se ao comportamento adquirido ou
modo de ser conquistado pelo homem. A ética vem do grego ethos, que tem o mesmo
significado de “costume”, modo de ser ou caráter enquanto forma de vida também
adquirida ou conquistada pelo homem.
Em outras palavras, a moral comumente refere-se a valores e a normas
aceitas livre e conscientemente, que regulam o comportamento individual e social dos
homens, e a ética, trata-se da reflexão sobre esses valores e normas, visando descobrirlhes os princípios gerais. Vale dizer que não se tratam de princípios gerais universais, mas
daqueles que são absolutamente válidos para uma determinada sociedade ou instituição,
pois há uma série de padrões que modelam o comportamento individual: o modo de
trabalhar, de sentir, de amar etc., e que variam de uma sociedade para outra. Ética seria,
mais uma vez, uma reflexão teórica que analisa e critica ou legitima os fundamentos e
princípios que regem determinado sistema moral (dimensão prática) (SUNG; SILVA, 2000,
p. 13).
Quero ainda aprofundar um pouco a compreensão etimológica da ética
trazendo aquilo que está em sua raiz: o termo ethos. A palavra grega “”, quando
escrita com um “eta” inicial, significa “morada”, “casa”. O animal, quando entra no mundo
não precisa construir uma casa. Seu aparato instintivo “é uma encarnação da lei cósmica”.
No entanto, conosco não acontece assim. Este mundo que nos precede não é
simplesmente dado, colocado à nossa disposição para um relacionamento imediato.
Somos em parte determinados imperfeitamente pela nossa própria constituição biológica.
Nossa estrutura de instintos no nascimento é insuficientemente especializada e não é
dirigida a um ambiente que nos seja específico. Precisamos organizar o mundo para
superar o caos, necessitamos construir um mundo que tenha sentido humano, e, nesse
processo, construir o nosso próprio eu.
Assim, o homem constrói sua casa e nela procura abrigo e proteção contra
as intempéries do tempo e as hostilidades do meio ambiente. A morada é símbolo dos
valores transmitidos pela tradição familiar e cultural, tudo aquilo que torna o mundo
habitável para o homem. É ainda no espaço aberto pelo ethos-morada onde se faz a
abertura para o novo.
O termo grego “”, com um “épsilon” inicial, significa “costume” e traduz
aquela disposição interior, que leva o homem a agir com uma certa constância no espaço
aberto de sua liberdade. O fruto desta disposição é o “hábito”, enquanto aquisição psíquica
estável, que orienta o agir do homem, fazendo dele um homem virtuoso. Pois bem, entre o
processo formador de hábitos e o seu termo que é a aquisição da virtude (entendendo
“virtude” no sentido que ela tinha para os gregos, vale dizer, excelência), abre-se o espaço
para a realização ética do ser humano. Ao homem compete a tarefa de construir o seu
projeto existencial e este engloba também a tarefa de construir seu ethos individual e
social, pois ele é um ser situado no tempo e na história.
Na tentativa de complementar as definições até aqui apresentadas, diremos
que moral é tudo aquilo que é da dimensão do dever, da obrigatoriedade. “Não matar” é
moral, pois é dever. Todas as sociedades têm um mínimo de regras e normas, com
deveres a serem cumpridos. Não existe sociedade saudável sem um mínimo de normas
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morais, do dever, que são internalizadas nos indivíduos que a compõem, para que sejam
cumpridas.
Já a ética pergunta sobre que vida vale a pena ser vivida e o que leva à
felicidade? Quais as ações que poderão tornar os relacionamentos melhores? A ética
refere-se a um projeto de vida em sociedade. Se a moral, portanto, está relacionada ao
dever e à obrigatoriedade, a ética relaciona-se ao nível do desejo, da escolha daquilo que
tornará a vida melhor.
Após essa apresentação e tentativas de definição, achamos oportuno afirmar
que não pretendemos neste trabalho encarar a ética como um ordenamento sobre o que
deve e pode ser feito, e sobre o que não deve e não pode ser feito, mas sim entender a
ética como a reflexão que cada homem precisa fazer no seu dia-a-dia, no seu encontro
com as situações concretas, para discernir e escolher livremente sobre o necessário para
garantir uma convivência possibilitadora de reconhecimento da individualidade e
interdependência entre tudo o que acontece e entre todos nós.
Nesse sentido, entendendo a educação como um projeto humano que diz
respeito a indivíduos situados num mundo em construção, podemos ver a ética como
inspiradora do agir e do pensar na escola, na grande tarefa de construir um projeto de vida
que valha a pena ser vivido.
5. Consciência Crítica
O termo conscientização parece que nasceu no Brasil, e tem sido atribuído
muitas vezes a Paulo Freire. O método de alfabetização deste pedagogo se baseia
teoricamente numa análise da consciência da população, especialmente do adulto não
alfabetizado. Segundo a análise de Paulo Freire, há três tipos de consciência: a
consciência mágica, a consciência transitivo-ingênua e a consciência critica.
1) Consciência mágica é a consciência dos grupos humanos que estão de tal
maneira imersos nos acontecimentos do dia-a-dia, que não percebem nem as verdadeiras
causas dos acontecimentos, nem o processo a que se chama processo da História .
2) Consciência transitivo-ingênua é a consciência dos grupos humanos que
já conseguem perceber de alguma maneira que os acontecimentos de cada dia não são
frutos do acaso nem de forças extramundanas. Percebe-se que a história humana é um
desenvolvimento contínuo do próprio homem. Entretanto, a visão das causas ainda é
insuficiente e, principalmente, ainda não tem o dinamismo que impele a tentar corrigir as
próprias causas dos acontecimentos negativos. As pessoas percebem que a pobreza é
fruto de injustiça, mas não analisam corretamente esta injustiça, ou não vêem como lutar
contra ela.
3 ) Consciência crítica é a consciência que superou os dois limites: o limite
que afoga a consciência na ignorância e na inércia, o limite da inércia e da impotência
perante a realidade humana.
Sendo assim, a finalidade precípua do método Paulo Freire é a formação da
consciência crítica. Daí duas perguntas iniciais: o que é a consciência critica? Como é que
se forma a consciência crítica?
A palavra conscientização nasceu com este sentido: formação da
consciência crítica. Tendo em vista a variedade imensa de sentidos que se tem
emprestado a esta palavra, é importante notar que este significado original é bastante
definido. O uso inflacionário e desgastante esvaziou-a do que ela tem de mais profundo. O
sentido da palavra pode entretanto ser recuperado através da resposta a tais perguntas
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que são o desdobramento das interrogações acima formuladas: l) o que é consciência? 2)
o que é crítica? 3) como nasce a consciência crítica?
5.1 O que é consciência
A palavra consciência tem aqui um sentido filosófico, e não psicológico. Em
psicologia, usa-se aliás mais freqüentemente o termo "o consciente" e designa o conjunto
de fenômenos e dados psíquicos que a pessoa é capaz de verbalizar reflexamente. Opõese ao "inconsciente", que é objeto das pesquisas psicológicas e dos métodos de
psicanálise divulgados hoje em dia. O princípio básico é de que o comportamento humano
é, em grande parte, comandado pelo "inconsciente".
A consciência é, fundamentalmente, a capacidade humana, e estritamente
humana, de prever e planejar previamente as próprias atividades, de refletir sobre elas no
decorrer da ação, e de cotejar os resultados seja com os planos prévios, seja com
princípios e ideais teóricos ou práticos. A consciência é a capacidade de planejar, refletir e
criticar.
Embora a análise acima acenada de Paulo Freire seja criticada como
insuficiente, ela oferece oportunidade de compreensão inicial do que expusemos até agora.
Assim, há comportamentos constantes que são típicos da consciência mágica. O homem
acredita que os acontecimentos são frutos de forças extraterrenas, de malefícios, e só
aceita intelectualmente as explicações que reforcem este comportamento. Inversamente, o
homem crítico já toma uma outra atitude profunda, antes mesmo de se dar conta de que
sua atitude é crítica. Ele é capaz de verbalizá-la e de traduzi-la em conceitos, mas esta
atitude é fundamental e anterior ao nível psicologicamente consciente.
5.2 O que significa “crítica”
Normalmente, opõe-se ao conceito de atitude crítica o termo atitude ingênua.
A ingenuidade ou falta de senso crítico é, às vezes, mítica, enquanto se baseia em
explicações fora da realidade, e muitas vezes participa simplesmente do senso comum, ao
qual adere sem maiores considerações.
A adesão pacífica ao senso comum não é meramente casual. Ela tem uma
raiz bastante detectável, e portanto modificável. Sabemos que o senso comum é a maneira
habitual de pensar e agir ou reagir dentro de uma coletividade humana. Outros grupos ou
outras coletividades podem muito bem pensar ou agir diversamente, e têm assim outro
senso comum. Além disso, a constância e profundidade do senso comum podem ser tão
importantes que o grupo se julga dividido e agredido quando alguém pensa ou age
diversamente, e expulsa os dissidentes. Neste sentido o senso comum une fortemente um
determinado grupo humano, e forma a base de sua unidade. Os planos, as reflexões e as
críticas são feitos a partir dessa unidade constante do pensar e do agir.
Atualmente tem-se discutido muitíssimo sobre este fenômeno, sob o título de
ideologia. A ideologia é inconscientemente herdada ou dos antepassados ou do ambiente
vital. Por isto ela determina com bastante profundidade os comportamentos e a atitude
profunda das pessoas que nasceram e se desenvolveram no seu seio. A atitude profunda
de uma pessoa que sempre viveu em ambiente miserável e subumano é muito diferente do
comportamento fundamental e constante de quem vive em um meio ambiente saudável. A
educação da consciência depende pois muito do ambiente em que o grupo vive e se
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desenvolve. Conseqüentemente, a modificação do que se chamam as estruturas do grupo
é de capital importância.
Uma pessoa que deixa o ambiente originário e passa a outro, tem que
modificar a sua maneira de pensar e de agir, ou seja, a sua ideologia. Ela tem que passar a
pensar e agir de maneira a se ligar ao grupo novo, que passou a integrar. Ela tem
necessidade de tornar isto legítimo. A ideologia de um grupo qualquer procura legitimar
todas as atitudes que o grupo tem, e procura tornar aceitáveis às pessoas as maneiras de
agir e reagir impostas pelo grupo. Na nossa sociedade, os grandes meios de comunicação
desenvolvem neste sentido uma função vital. É por causa deles que o grande público
aceita e se acostuma depressa com acontecimentos e realidades até mesmo repugnantes.
Eles fazem acreditar que são normais certas coisas até mesmo absurdas: a propaganda de
cigarros procura fazer acreditar que fumar aquela marca é sinal de prosperidade. Sempre
que os jornais noticiam crimes, titulam os autores de marginais, assassinos, sem acenar
minimamente às causas que levaram a pessoa a cometer desatinos independentes de sua
vontade. A propaganda cria necessidades totalmente supérfluas, unicamente com a
finalidade de criar mercado para o que é produzido. Há toda uma campanha direcionada
para as crianças, porque o público infantil pressiona os pais para a compra de artigos
supérfluos, às vezes até em prejuízo de compra de outros itens básicos e fundamentais. E
a escola procura internalizar os comportamentos socialmente aceitos.
Às vezes, é evidente que o que a ideologia afirma não é verdadeiro, como no
caso de que "todas as coisas boas da vida começam no Banco X: carros, televisão,
motocicletas, geladeiras e os objetos que tornam a vida melhor e mais agradável", ou em
casos semelhantes. Mas ninguém protesta eficazmente contra a sua contínua afirmação. A
repetição de tais 'slogans' (ideologemas) passa a recomendar uma série de atitudes, o que
é aliás a intenção da propaganda. Através da realização do ritual imposto pela propaganda,
vai-se criando uma série de convicções que velam e escondem totalmente a realidade. As
coisas e os acontecimentos passam então a ser compreendidos e interpretados não mais
em função do que são, em base a uma percepção correta, mas em base ao que a
ideologia afirma deles, ou seja, a partir de uma imagem distorcida, que esconde a
realidade. A realidade que se esconde atrás da propaganda não é a da realização do
homem "que sabe o que quer" ou que atinge os bons sonhos, mas a criação de
necessidades artificialmente geradas pelo sistema de produção. Desde que há
determinadas fábricas, é necessário que haja quem consuma (compre, use ou venda,
jogue fora e compre de novo) o que elas produzem, e em ritmo imposto pelo ritmo de
produção.
A crítica tende a ser a superação da ideologia. A consciência crítica é a que
se torna paulatinamente capaz de detectar os planos, a realização e os resultados dos
acontecimentos. A crítica é, entretanto, também autocrítica. Desde que não existe ciência
que atinja perfeitamente o próprio objeto e compreenda exatamente o que ela estuda,
existe sempre uma margem de conhecimentos herdados e não problematizados, que
velam a realidade, legitimam atitudes e tendem a estabilizar as bases de um poder. Neste
sentido é que se diz que não existe ciência neutra, e que o princípio proclamado pelos
tecnocratas, de que a ciência e intocável porque imparcial, é mais uma afirmação
ideológica.
Finalmente, a crítica, como superação de uma ideologia, é a superação dos
acontecimentos que geram e alimentam uma ideologia, ou que dela resultam, reforçandoa. Não existe formação da consciência crítica sem uma atividade consciente e atenta. Se
as palavras não correspondessem a posições e comportamentos, não teria sentido
pronunciá-las nem menos ainda censurá-las.
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6. Bibliografia
ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte:
UFMG, 1999.
MORAIS, Regis. Sala de aula: que espaço é esse? Campinas: Papirus, 1984.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
NETO, Augusto Martins da Rosa. O Cronos e o Kairós: uma perspectiva da temporalidade
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SUNG, Jung Mo; SILVA, Josué Cândido da. Conversando sobre ética e sociedade. 7.ed.
Petrópolis: Vozes, 2000.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 22.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Material utilizado no Curso de Atualização “A Docência: Possibilitando reflexões sobre a
formação e atuação profissional”, promovido pela fundação de Apoio à FAFIPA, no dia 09
de junho de 2007.
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