o carmina burana enquanto linguagem de ensino

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o carmina burana enquanto linguagem de ensino
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PERSPECTIVAS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL:
O CARMINA BURANA ENQUANTO LINGUAGEM DE ENSINO
Gabrieu de Queiros Souza – [email protected]
Universidade Estadual de Maringá (UEM) – Campus Sede
Isabel Cristina Rodrigues – [email protected]
Universidade Estadual de Maringá (UEM) – Campus Sede
Resumo: Atualmente passamos por um momento na educação em que novas metodologias e
abordagens ao ensino se tornam necessárias. Um ensino tradicional, pautado apenas no livro
didático, não corresponde mais a realidade da educação pública e privada, sendo assim, novas
linguagens de ensino são necessárias como forma de fomentar o interesse dos alunos e corrigir os
problemas dos materiais didáticos tradicionais. A partir dessa perspectiva, pautados no uso das
canções do Carmina Burana enquanto linguagem de ensino e de aprendizagem, buscamos
apresentar uma nova perspectiva ao ensino de História Medieval. Justificamos o nosso debate ao
pensarmos nas deficiências dos livros didáticos dos Ensinos Fundamental e Médio ao retratarem o
medievo, afinal muitos desses livros apresentam visões distorcidas, desatualizadas ou mesmo
errôneas sobre tal período. Retratado muitas vezes como um período de atraso, estagnação e medo,
a Idade Média se torna uma verdadeira Idade das Trevas, um longo período sem importância de ser
estudado ou entendido. Sendo assim, através de nosso presente trabalho, ao utilizarmos as canções
do Carmina Burana objetivamos novos caminhos ao ensino da Idade Média, afinal essas canções
apresentam um medievo rico e colorido em seus mais diversos aspectos culturais, sociais e humanos.
Para isso, partimos da análise e crítica de livros didáticos do Ensino Médio e, partir de suas lacunas e
problemas teóricos, buscamos nas canções do Carmina Burana uma reflexão histórica que ajude a
professores, alunos e pesquisadores a superar tais problemas e a trazer novos olhares para o ensino
de História.
Palavras-chave: Carmina Burana; Idade Média; ensino de história; linguagem de ensino;
Introdução/Justificativa
No presente trabalho, sugerimos novos olhares ao ensino de História
Medieval a partir do uso das canções do Carmina Burana como linguagem de
ensino. Pautados nas discussões presentes nos livros didáticos utilizados em
nossas escolas, pretendemos mostrar que, em muitos casos, o conteúdo referente à
Idade Média é tratado de forma breve, incompleto e até mesmo errôneo, sendo
priorizadas temáticas como política e economia em detrimento de outras como a
cultura.
No entanto, não pretendemos desqualificar tão importante material de ensino,
pois como aponta Fonseca o livro didático é “(...) o elemento predominante e muitas
vezes determinante no processo de ensino (2006, p. 49), além de ser (...) o principal
veiculador de conhecimentos sistematizados, o produto cultural de maior divulgação
entre os brasileiros que têm acesso à educação escolar” (2006, p. 49). O que
queremos é apenas apontar algumas falhas metodológicas e científicas desses
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livros, contribuindo assim, para uma educação melhor e mais apropriada à realidade
do presente.
Objetivos
Os livros didáticos ao retratarem o medievo de forma reducionista e
simplificada, não se atentando com o devido cuidado aos seus diversos aspectos
culturais, políticos, econômicos e sociais, acabam por fazer com que os alunos
vejam tal período como uma temática sem importância e significado real para a sua
formação, ou mesmo algo desagradável de ser estudado.
Apesar de nos focarmos na Idade Média, um ensino de História pautado
apenas no livro didático e no “(...) ensino tradicional é um dos fatores que faz os
alunos se mostrarem desinteressados. Sendo assim, trazer novas abordagens e
recursos para o espaço escolar pode ser uma alternativa para alterar esta situação”
(GUERRA; DINIZ, 1995, p. 129). Sendo assim, a partir das canções do Carmina
Burana, buscamos por meio de uma abordagem que priorize aspectos como a
cultura, aproximar o aluno do conteúdo de História Medieval e corrigir possíveis
lacunas e problemas teóricos dos livros didáticos.
Resultados
Para fundamentar nossa pesquisa, selecionamos e analisamos quatro livros
didáticos do Ensino Médio e verificamos como os mesmos propõem e entendem a
Idade Média. Os livros selecionados foram: História: Volume único para o Ensino
Médio, de Heródoto Barbeiro, Bruna Renata Cantele e Carlos Alberto Schneeberger1
(2004); Nova História. Integrado: Ensino Médio, de João Paulo Mesquita Hidalgo
Ferreira e Luiz Estevam de Oliveira Fernandes (2005); História: série Novo Ensino
Médio, de Divalte Garcia Figueira (2004); e Nova História Crítica: Ensino Médio, de
Mario Furley Schmidt (2005).
Dos quatro livros analisados três apresentam algumas ideias distorcidas ou
reducionistas sobre a Idade Média. A obra de João Paulo Mesquita Hidalgo Ferreira
e Luiz Estevam de Oliveira Fernandes (2005) apresenta a Idade Média como um
período com uma produção de subsistência. Divalte Garcia Figueira (2004) entende
a sociedade medieval como controlada por uma Igreja que pune, sendo que o
homem medieval não poderia fugir dessa realidade. Mario Furley Schmidt (2005)
coloca uma sociedade medieval onde os servos eram totalmente submetidos a
espada do senhor feudal e à cruz da Igreja, pois caso se revoltassem “podiam ser
considerados pecadores (hereges) pela Igreja, corriam o risco de morrer e ir para o
inferno por terem se rebelado contra a ordem natural’ (p. 87-88).
Além de apresentarem ideias generalizantes, as obras por nós analisadas
apresentam debates pautados em aspectos políticos e econômicos, dando pouco
espaço aos aspectos culturais das sociedades medievais. Duby (2011) entende que
“em qualquer sociedade, por menos evoluída que seja, não há uma, mas várias
culturas”(p.150), sendo assim, os livros didáticos apresentam mínimos aspectos
culturais e o homem no seu cotidiano e nas suas ideias perde importância nas
discussões em sala de aula. Entretanto, o livro didático não deve e não pode ser
encarado como um substituto ao trabalho do docente. Cabe ao professor entender e
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As referências completas estão no final do artigo.
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superar as limitações desse material. Sendo assim, é nesse sentido que propomos o
Carmina Burana como uma introdução ao ensino de história medieval.
Antes de discutirmos nossa proposta de ensino, devemos entender o que é o
Carmina Burana e quem foram os seus autores. Segundo Maurice van Woensel
(1994), o Carmina Burana2 é um série de poemas e canções encontrados em 1803
na abadia beneditina de Benediktbeuern, Baviera. Copiados em um manuscrito
datado do século XIII, as ‘Canções de Beuern’ (em latim Carmina Burana) “contêm
críticas (contundentes) ao alto clero (...) exaltam os prazeres do amor, de uma boa
mesa, do jogo. (...) constituem a primeira contestação bem documentada da Igreja e
da sociedade medievais” (p. 18). As canções do Carmina Burana, em sua maioria
em latim, foram escritas e cantadas por goliardos, verdadeiros “poetas itinerantes”
que deram vozes aos homens e mulheres do medievo. Essas canções mostram o
ser humano como ele realmente é, traz o seu cotidiano e os seus anseios.
Selecionamos três das canções do Carmina Burana3 que, no nosso
entendimento, fomentariam de forma mais clara as discussões em sala de aula. As
canções que ora foram selecionadas foram traduzidas para o português por Maurice
van Woensel e publicadas em 1994. Transcreveremos alguns trechos e faremos
uma breve apresentação dessas canções justificando o seu uso4.
A primeira canção que selecionamos é Manus ferens (CB 1), traduzida como
“A mesma mão que dá propina”. Nessa canção os clérigos e juízes eclesiásticos são
criticados pela sua corrupção. O goliardo denuncia o poder do dinheiro: “A mesma
mão que dá propina, faz pecar qualquer cristão, desavenças elimina, a grana chama
à razão, os discordantes ele afina, ao conflito dá solução. O juízo dos prelados
depende dos ducados. Juízes, vossa sentença a grana não dispensa! Quando é a
grana que impera, o direito degenera, ao indigente é negado o direito comprovado;
para o rico não falta juiz a vender-se por pratas vis (...). Quando a grana é quem
manda, a justiça enfraquece, toda causa que desanda, vitoriosa aparece, pobre
perde seu direito (...) (tradução de VAN WOENSEL, 1994, p. 25)”.
Ao utilizar Manus ferens na sala de aula o professor pode trabalhar a
existência da moeda na Idade Média e, consequentemente, o comercio que existiu
no período. Além de que, as críticas feitas aos clérigos e juízes eclesiásticos na
canção demonstram que, as relações entre a população e os membros da Igreja
eram muito mais complexas do que a ideia presente nos livros didáticos de uma
sociedade controlada e punida pela instituição eclesial.
A segunda canção é Florebat olim studium (CB 6), traduzida como “Estudar,
outrora moda”. Segundo van Woensel, a canção é uma sátira que critica os
estudantes do período e a inversão de valores da sociedade (p. 165): “Estudar,
outrora moda, hoje a muitos incomoda; importava o saber, agora brincam para valer.
Nossos jovens são astutos, imberbes, já exibem canudos; arrogantes, insolentes,
até parecem inteligentes; nos tempos bons de outrora, se estudava a toda hora; aos
noventa, tão-somente, aposentavam um discente. Mas agora, aos dez de idade,
jovens passam por abade, bancam eles os professores; de cegos, cegos condutores
(...). Tudo agora anda sem rumo vemos tudo fora de prumo. O sábio deve, do
coração, podar pecado e perversão; não basta chamar: ‘Senhor, Senhor!’ para o juiz
bem dispor; quando aquele juiz julgar, não terá a quem apelar (ibidem, p. 27 e 29)”.
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O Carmina Burana ganhou popularidade no século XX com as versões musicadas de Carl Orff (1895-1984).
Manus ferens (CB 1), Florebat olim studium (CB 6) e Huc usque, me miseram (CB 126).
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Optamos por transcrever apenas as traduções feitas por van Woensel (1994). Para os interessados em suas
versões originais indicamos a obra ‘CARMINA BURANA: Canções de Beuern. Apresentação de Segismundo
Spina, introdução e tradução de Maurice van Woensel. São Paulo: ArsPoetica, 1994’.
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Florebat olim studium critica o desprezo pelo conhecimento presente em
alguns meios sociais. Propomos a utilização dessa canção no sentido de demonstrar
aos alunos a importância da educação e do conhecimento no medievo, algo não
debatido nos livros didáticos ao indicarem que apenas monges e padres eram
letrados.
Huc usque, me miseram (CB 126) – “Ai de mim, que medo” – é a terceira
canção que selecionamos. Uma das mais interessantes canções do Carmina
Burana, em Huc usque, me miseram uma jovem fala da rejeição que sofre da
sociedade ao ser abandonada grávida: “Ai de mim, que medo, furaram meu segredo:
amava loucamente. (...) Mamãe me fustiga, papai me castiga, só fazem me xingar.
Fico em casa trancada, não piso na calçada, não posso mais brincar. Se eu na rua
andar, todos vão me olhar: ‘Um monstro a passar!’ Vêem com mesquinhez minha
gravidez e passam sem falar. (...) Olhares me incriminam, à fogueira me destinam,
grande pecadora. (...) Dores sem fim padeço, aflita, desfaleço, choro de agonia. E
tudo agravou-se, meu noivo exilou-se para longe daqui (tradução de VAN
WOENSEL, 1994, p. 55 e 57)”.
Será que a sociedade ocidental cristã mudou nesse aspecto, ou ainda temos
adolescentes que se tornam mães solteiras? A aproximação dessa temática
(gravidez na adolescência) com a realidade dos alunos, e alunas, justifica o ensino
e a reflexão histórica a partir dessa canção. Pois, em Huc usque, me miseram são
discutidos os valores familiares da sociedade medieval e o papel da mulher naquele
meio. Constituição da família, moral na sociedade cristã e história das mulheres,
são apenas alguns dos temas que podem ser debatidos em sala de aula ao
utilizarmos essa canção.
Considerações Finais
As canções que selecionamos são apenas uma pequena parte do conteúdo
presente na obra Carmina Burana. Buscamos demonstrar que o uso de linguagens
alternativas de ensino, como a poesia e a música, proporcionam uma educação
mais ampla e significativa aos nossos alunos. O professor, ao utilizar tais materiais,
complementa as discussões presentes nos livros didáticos e ‘corrige’ seus erros e
lacunas.
O Carmina Burana permite um entendimento mais amplo do homem e da
cultura no medievo. Pois como aponta Johan Huizinga (2010), na sua clássica obra
O Outono da Idade Média, “para compreender o espírito medieval como uma
unidade total, é necessário analisar as formas básicas de seu pensamento não
apenas levando em conta as representações da fé e da especulação mais elevada,
mas também a sabedoria de vida do cotidiano e das práticas mundanas (p. 375)”.
Referências
BARBEIRO, Heródoto; CANTELE, Bruna Renata; SCHNEEBERGER, Carlos
Alberto. História: Volume único para o Ensino Médio. São Paulo: Scipione, 2004.
CARMINA BURANA: Canções de Beuern. Apresentação de Segismundo Spina,
introdução e tradução de Maurice van Woensel. São Paulo: ArsPoetica, 1994.
DUBY, Georges. Problemas e métodos em história cultural. In: Idade Média, Idade
dos homens: do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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FERREIRA, João Paulo Mesquita Hidalgo; FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira.
Nova História. Integrado: Ensino Médio, Volume único. Campinas: Companhia
da Escola, 2005.
FIGUEIRA, Divalte Garcia. História: série Novo Ensino Médio. São Paulo: Ática,
2004.
FONSECA, Selva Guimarães. Livros didáticos e paradidáticos de História. In:
Didática e Prática de Ensino de História: Experiências, Reflexões e Aprendizados.
Campinas: Papirus, 2006. cap. 4, p. 49-57.
GUERRA, Fabiana de Paula; DINIZ, Leudjane Michelle Viegas. A incorporação de
outras linguagens ao ensino de história. In: História & Ensino: Revista do
Laboratório de Ensino de História. Centro de Letras e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Londrina. – Vol. 1 (Abr. 1995). Londrina: Ed. UEL, 1995. p.
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HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média.São Paulo: Cosac Naify, 2010.
SCHMIDT, Mario Furley. Nova História Crítica: Ensino Médio volume único. São
Paulo: Nova Geração, 2005.

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