A Tese do "Rompimento da Base do Negócio"

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A Tese do "Rompimento da Base do Negócio"
A TESE DO "ROMPIMENTO DA BASE DO NEGÓCIO"
(*) JOÃO ANTÔNIO CÉSAR DA MOTTA
Já de há muito tempo, mesmo antes do Código de Proteção do Consumidor (Lei 8.078/90 - art. 4º,
inc. III) e da Lei Anti-Trust (Lei 8.884/94 - art. 20), está positivado no direito brasileiro o princípio da boa-fé objetiva,
normatizado no país em 1850 pelo Código Comercial (art. 131) e '... que permaneceu letra morta por falta de
inspiração na doutrina e nenhuma aplicação pelos Tribunais' (RUY ROSADO in A Boa-Fé na Relação de Consumo,
Rev. Direito do Consumidor 14/20).
Pois bem, este princípio de direito '... quer significar - segundo a conotação que adveio da
interpretação conferida ao parágrafo 242 do Código Civil Alemão, de larga força expansionista em outros
ordenamentos e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law, - modelo de conduta social,
arquétipo ou standard jurídico segundo o qual 'cada pessoa deve ajustar a sua própria conduta a esse arquétipo,
obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade.' Por este modelo objetivo de conduta
levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não
se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo. 'A expressão boa-fé objetiva se
desprende, portanto, da pesquisa da intencionalidade da parte, de nada importando, para a aplicação do princípio, a
sua consciência individual no sentido de não estar lesionando direito de outrem ou violando regra jurídica. 'O que
importa é a consideração de um padrão objetivo de conduta, verificável em certo tempo, em certo meio social ou
profissional e em certo momento histórico' (JUDITH MARTINS-COSTA in O Princípio da Boa Fé, Revista Ajuris, vol.
50, p. 207, Porto Alegre, 1990).
Desta maneira, é fundamental dentro do princípio da boa-fé objetiva como norma de conduta que
os Bancos informem e, mais, aconselhem seus clientes, sob pena de, não o fazendo, revelar que seu
comportamento está fora de um correto '... padrão objetivo de conduta, verificável em certo tempo, em certo meio ...
profissional e em certo momento histórico' (JUDITH MARTINS-COSTA in O Princípio da Boa Fé, Revista Ajuris, vol.
50, p. 207, Porto Alegre, 1990).
Segundo o prof. ANTÔNIO MENEZES CORDEIRO (Direito Bancário, Almedina, 1997, p. 125), '...
no Direito português, a base legal dos deveres acessórios reside no art. 762.º/2. do Código Civil. Este preceito, sob
a epígrafe "princípio geral" relativo ao cumprimento das obrigações, dispõe: No cumprimento da obrigação, assim
como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé'.
Como se vê, o Direito português tem semelha disposição abrigada de início em nosso Código
Comercial (art. 131), onde se estabelece a boa-fé como fonte de deveres acessórios.
Mas o que são estes deveres acessórios ?
Dentro de uma nova principiologia no Direito das Obrigações, de uma nova leitura do velho código
de 1850 sob as luzes da legislação consumerista, significa dizer que ao lado dos deveres escritos no contrato,
existem outros '... de segurança, lealdade e informação ... derivados da necessidade de melhor precisar o conteúdo
das obrigações e o seu cumprimento' (MENEZES CORDEIRO, ob.cit., p. 124/125).
O que interessa ao caso é o dever de aconselhamento e informação, no sentido de que '... a parte
mais habilitada terá, ex bona fide, especiais adstrições, no tocante à informação da parte menos conhecedora'
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(MENEZES CORDEIRO, ob.cit., p. 126). Sendo assim, o ponto nodal de discussão é que, dentro de uma nova visão
do Direito das Obrigações, reside a vital necessidade de que um profissional, um especialista, tenha o dever de
acautelar à contratação com '... segu-rança, lealdade e informação ... derivados da necessidade de melhor precisar
o conteúdo das obrigações e o seu cumprimento' (MENEZES CORDEIRO, ob.cit., p. 124/125).
Sobre o dever de aconselhamento, veja-se a lição de DIDIER FERRIER: "Il est admis que le dol
résulte d´une réticence, c´est-à-dire du silence gardé sur une information qui aurait pu éclairer de manière
déterminante le consentement de l´autre partie. Dans les relations entre professionnel et consommateur, le
déséquilibre créé par les conaissances du premier et l´ignorance du second est un facteur de multiplication et
d´aggravation de cas de réticence. Aussi, par-delà la sanction classique de la réticence dolosive que la jurisprudence
n´hesite pas à assimiler au dol, le législateur a imposé au professionnel la délivrance d´informations permettant
d´éclairer autant que possible le consentement du consommateur. L´exigence est formulée, de la maniére la plus
générale, par l´article L. 111-1 du Code de la consommation: “Tout professionnel vendeur ou prestataire de services
doit, avant la conclusion du contrat, mettre le consommateur en mesure de connaître les caractéristiques
essentielles du bien ou du service”. Il s´agit bien d´informer le consommateur sur les éléments du contrat de nature à
éclairer son consentement. (...) La jurisprudence, de son côté, vient encore alourdir cette obligation précontratuelle
d´informer en sanctionnant le profissionnel qui s´abstient d´indiquer au consommateur le caractère inoportun de
l´operation envisagée (com. 25 février 1981, IR 278) ou les obstacles à surmonter pour obtenir le résultat recherché
(Civ. 27 octobre 1981, Bull. Civ. I, 265) ou les risques encourus du fait de l´operation (Civ. 10 mars 1978, Bull. Civ. I,
78). L´obligation d´informer le consommateur se transforme, ici, en une véritable obligation précontractuelle
de le conseiller dans sa décision de contracter ou de ne pas contracter, afin qu´il ne se trompe pas: on
s´éloigne de la protection contre le dol et l´on se rapproche de la proctection contre l´erreur." (La Protection
des Consommateurs, Dalloz, Paris, 1996, págs. 34 e 35).
Como se vê, a doutrina consumerista francesa repudia a réticence dolosive, uma espécie de
omissão dolosa, ou, nas palavras do autor, o silêncio sobre uma informação que poderia ter esclarecido de maneira
determinante o consentimento da outra parte.
Melhor dizendo, o profissional que não presta as informações necessárias sobre seu produto ou
serviço age contra a boa-fé que deve reinar em todo o contrato.
Além disso, justamente o desequilíbrio gerado pelos conhecimentos dos Bancos (profissional no
mercado financeiro) e seus clientes (que não são), é fator de agravação em caso de réticence, ou seja, ausência de
informação sobre as características da contratação.
Ressalte-se que a jurisprudência francesa tem decidido sobre esta obrigação pré-contratual de
informar, impondo sanção ao profissional que se abstiver de indicar ao consumidor o caráter inoportuno da
operação visada ou os obstáculos a transpor para obter o resultado pretendido ou ainda os riscos decorrentes do
fato da contratação.
E conclui o jurista francês no sentido de que a obrigação de informar o consumidor constitui-se em
verdadeira obrigação pré-contratual de aconselhamento sobre a decisão de contratar ou não contratar.
Veja-se o que diz RUBÉN S. STIGLITZ a respeito do dever de aconselhamento: "El deber de consejo es de
outra que la obligación de información que, a lo sumo, le suministra su marco. El deber de consejo pone de
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manifiesto la dinámica que adquiere la información devida quando es suministrada com el propósito que ele
cocontratante decida – por ter – en torno a la conveniencia o no de la formalización de un contrato, considerándolo
un mecanismo apto para satisfacer útilmente las necessidades que cada quien, previamente, ha enunciado a lo la
contraparte" (Revista de Direito do Consumidor, nº 22, Abril – Junho 97, La Obligación Precontractual y Contractual
de Información. El Deber de Consejo, págs. 9 a 25).
Ora, um conglomerado financeiro composto é um especialista no assunto, a alocação de capital.
Ele, assim como o médico, que tem o dever de indicar o melhor tratamento (já que detém todo o conhecimento a
respeito daquela determinada atividade), tem o dever de aconselhar as melhores maneiras de contratar !!!
E isso é decorrente, justamente, do fato de um conhecer e o outro não, o que gera a
obrigatoriedade do dever anexo de aconselhamento. A falta deste aconselhamento ou o mau aconselhamento gera
a quebra da boa-fé objetiva como norma de conduta, essencial para o bom andamento de um contrato.
Note-se que sob forte influência da IOSCO - INTERNATIO-NAL ORGANIZATION OF SECURITIES
COMISSIONS, os Países da Comunidade Européia, através de suas Diretivas, têm procurado até mesmo normatizar
estes deveres anexos, o que tem sido feito em Códigos de Conduta, como se pode divisar da obra do prof.
ARMINDO SARAIVA MATIAS:
A nova Lei Bancária institui, pela primeira vez, em diploma legal, de forma aliás, pormenorizada e
rigorosa, regras de conduta para as instituições bancárias.
Constituem traves mestras daquelas regras os seguintes deveres:
-
dever da mais elevada competência técnica;
dever de lealdade e discrição;
dever de informar adequadamente os clientes;
dever de diligência, actuando como gestores criteriosos e
ordenados;
- dever de segredo profissional;
- dever de respeito pelas regras da concorrência.
in DIREITO BANCÁRIO, Coimbra Editora, 1998, pp. 83/84
Nesta ótica, qualquer situação que possa revelar a falta ou o mau aconselhamento e informação,
que venham a causar reflexos na equação econômica do contrato bancário, revela-se como absolutamente
incongruente com o moderno rumo do Direito das Obrigações, que disciplina cogentemente devas ser respeitados
princípios de paridade obrigacional, com forte influência à responsabilidade civil do profissional especializado em
favor do cliente contratante !!!
Aliás, é inegável que a relação jurídica com bancos está sob o manto de proteção do Código de
Defesa do Consumidor, pois o emérito SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, através de suas duas Turmas que
compõe a Seção de Direito Privado, em recentíssimas decisões, já assim deliberaram:
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O Código de Defesa do Consumidor, na linha de precedente da 3ª Turma, aplica-se aos
contratos de arrendamento mercantil, já que caracterizada a prestação de serviços pela
arrendadora e estabelecida uma relação de consumo.
STJ - 3ª TURMA, REsp. n.º 263.721/MA, rel. Min. Menezes Direito, DJU de 09/04/2001, p. 355.
LEASING. VARIAÇÃO CAMBIAL. CDC. Aplica-se ao contrato de leasing as disposições do CDC.
Precedentes. Demais questões não prequestionadas. Recurso não conhecido.
STJ - 4ª TURMA, REsp. n.º 293.440/RJ, rel. Min. Ruy Rosado, DJU de 11/06/2001, p. 234.
Pois bem, a denominada 'Teoria do Rompimento da Base do Negócio' vem do direito inglês
através do 'Coronation Cases', onde fatos ligados à coroação do Rei Eduardo III levou à frustração de inúmeros
negócios devido ao adiamento da data do evento. Várias pessoas haviam alugado cadeiras, janelas e embarcações
para verem o cortejo, como tal foi adiado, os tribunais tiveram que liberar estas pessoas das obrigações firmadas,
pois teria havido uma frustação na causa do negócio, ou melhor, a base da negociação havia sido quebrada pois
não existiria mais o evento que motivou às contratações.
Todavia, o desenvolvimento da Teoria deu-se através dos estudos realizados pelos juristas
alemães, a Wegfall der Geschäfstgrundlage (quebra do negócio jurídico). Os problemas financeiros pelos quais a
Alemanha do pós 1ª Guerra passou, fizeram com que surgissem pensadores como PAUL OERTMANN que
procuraram elaborar teorias que adequassem os contratos à realidade inflacionária do país. Esta teoria, no entanto,
era muito ligada ao dogma da vontade.
Foi KARL LARENZ com a sua obra 'A Base del Negócio Jurídico y Cumplimiento del Contrato',
que melhor retrata a Teoria da Base procurando uma objetivação desta. Ele aproxima a base subjetiva ao erro sobre
os motivos e à garantia dos vícios ocultos. No sentido objetivo visualiza-se o meio em que foi celebrado o
contrato e em que circunstâncias.
Desta feita, é preciso analisar quais são os fatores que precisam ser objetivamente mantidos para
que o acordo continue se desenvolvendo de uma maneira, no mínimo, sensata.
A adequação desta teoria ao sistema positivo pátrio, mesmo antes do advento do Código do
Consumidor, foi idealizada por CLÓVIS VERÍSSIMO DO COUTO E SILVA (in A Obrigação como Processo, pág.
134 e 135), onde referia: A teoria da base do negócio jurídico, tal como está formulada, abranje dois aspectos: o
subjetivo e o objetivo. Sob o aspecto subjetivo, de expectativa ou previsão comum de ambas as partes,
inegavelmente encontra obstáculo na determinação do art. 90 do Cód. Civil. No sentido de base objetiva do negócio,
isto é, de que o negócio jurídico, segundo o conceito imanente da justiça comutativa, supõe a coexistência de uma
série de circunstâncias econômicas, sem as quais ele se descaracterizaria, sem dúvida alguma, vige e é utilizável
em nosso direito.
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A base do negócio jurídico desaparece, desta forma, quando, dentro de uma relação obrigacional
chega-se a ponto de não se encontrar mais uma eqüiponderância entre as prestações. Existe uma tamanha
deterioração do vínculo que não é mais possível falar-se de contraprestação.
A fundamentação desta teoria encontra-se no campo da boa-fé em seu sentido objetivo, vista
como regra de conduta que indica às partes o caminho que devem seguir na evolução dos vínculos jurídicos, sem
que possam, com tais agires causarem lesões à outra parte.
O disposto no art. 6º, V, 2ª parte, do CDC, trata da possibilidade de revisão das cláusulas
contratuais em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Inclusive, não se vê aqui
uma exigência de que o fato seja imprevisível.
Assim, o direito pátrio mais se aproxima da Teoria da Base objetiva do negócio jurídico, do que da
vetusta teoria da imprevisão, sendo que a Lei 8.078/90 ainda contempla a positivação do princípio da boa-fé
objetiva, fundamentador da Teoria da Base, ex vi dos arts. 4º, III e 51, IV, todos do CDC.
Mais ainda, seja pelo rompimento da base do negócio, objetivamente considerada, seja, na
instauração do negócio, haver sido quebrado pelo profissional o dever de informação e aconselhamento (dentre
tantos outros, p.ex.), justifica-se a revisão judicial do contrato, independentemente do acontecimento, ou não, de
caso imprevisível.
(*)
João Antônio César da Motta é advogado em São Paulo/SP, autor do livro Os
Bancos no Banco dos Réus, da Editora América Jurídica. Professor convidado junto ao
Congresso de Direito Bancário na Comunidade Européia (Lisboa-1997), ao 1º Simpósio
Internacional de Direito Bancário (São Paulo-1998) e ao Encontro Nacional de Responsabilidade
Civil (Recife-2000).
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