Portugal como negativo da fotografia ibérica. Perplexidades

Transcrição

Portugal como negativo da fotografia ibérica. Perplexidades
Portugal como
negativo da fotografia
ibérica. Perplexidades
peninsulares partindo
de Garrett, Camilo
e Eça de Queirós.
Gabriel Magalhães
Universidade da Beira Interior
Centro de Estudos Comparatistas
Resumo
Este artigo estuda a construção da identidade portuguesa, defendendo que
esta se faz através da inversão amnésica de uma consciência ibérica. Estudamse obras de Garrett, de Camilo e de Eça de Queirós para ilustrar o ponto de
vista defendido. A experiência peninsular do autor é também tida em conta.
Palavras-chave
Identidade portuguesa, iberismo, Garrett, Camilo, Eça.
Abstract
This article looks at the construction of the Portuguese identity, defending
that this is done through the inversion from an Iberian conscience. There are
studied works of Garrett, of Camilo and of Eça de Queirós to illustrate the
defended point of view. The peninsular experience of the author is taken also
into account.
Keywords
Portuguese identity, iberism, Garrett, Camilo, Eça.
1. O crítico também é, em certos momentos, narrador, mais homodiegético
do que autodiegético, de uma vida que se confunde misteriosamente com a
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sua actividade interpretativa. Quer dizer: é porque vivemos determinadas
coisas que resolvemos investigar certas matérias. De facto, as nossas biografias
destinam-nos, destinam-nos e condenam-nos, a umas áreas científicas
concretas. E é assim que as nossas existências se transformam nos bastidores
vivos dessa fria peça de um neoclassicismo gélido que acaba por ser uma
carreira de investigador.
Tendo residido quinze anos da minha vida em Espanha, boa parte deles nos
tempos da minha infância, eu sou um português condenado à ibericidade.
Tanto mais que muitos desses anos foram passados no País Basco. Assim,
senti na minha carne essa tripla esquizofrenia da Península Ibérica: a basca,
a espanhola, a portuguesa. Acabei por me tornar um lusíada convicto que,
porém, fala Espanhol com correcção. De tal modo que me posso fazer passar
por castelhano, caso seja necessário: possuo, enfim, o perfil de um agente
duplo ibérico.
O meu curso de Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos
Portugueses e Espanhóis, representou uma maneira de passar a limpo a minha
condição peninsular. E tudo isto desembocou numa tese de doutoramento em
que se partia de uma leitura comparada das obras de Garrett e Rivas para
se chegar a um conceito de romantismo ibérico. Nesse trabalho (Magalhães
2009: II, 255-291), punha-se em causa o chavão de que «Portugal e Espanha
sempre viveram de costas voltadas», ideia que tem servido de mote a sonoros
discursos, tão sonoros quanto inconscientes da verdade das relações entre os
dois países peninsulares.
De facto, ao longo dos séculos, Espanha e Portugal praticaram uma
cumplicidade intensa, mas também sonsa – sonsa, discreta, silenciosa. O
levantamento destas ocultas intimidades peninsulares foi sendo realizado,
parcelarmente, por vários estudiosos de diversas universidades, tanto
portuguesas como espanholas. Há poucos anos, apresentou-se um projecto
de investigação que tinha por fim reunir alguns destes esforços eruditos numa
obra comum que nos daria a surpresa de contemplarmos em panorama global
muitas dessas confluências ibéricas1.
É curioso pensar que as teses são, no fundo, incertezas rigorosamente
demonstradas e, por isso, vividas como certezas nesse carnaval de seriedades
que é o mundo académico. Hoje, já não me satisfaz saber que entre Portugal
e Espanha existem, em todos os momentos da sua história, encontros,
colaborações, cumplicidades – e que isso acontece até nos períodos de maior
distância oficial entre as duas nações: épocas como o século XVIII, por
exemplo (Magalhães 2003: 95). A peninsularidade sempre se verificou, sempre
foi praticada: é um facto natural, e em certo sentido inevitável, da história dos
dois países. No fundo, os portugueses são um pouco espanhóis – mesmo que
o não queiram. Também os espanhóis são um pouco portugueses – mesmo
que o ignorem.
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Contudo, a apeninsularidade é também uma realidade, pois Portugal e
Espanha estão sempre, simultaneamente, a construir e a desconstruir a
sua condição ibérica. Interessa-me neste artigo estudar como três autores –
Garrett, Camilo e Eça – rasuraram da sua obra uma consciência peninsular
que, paradoxalmente, nessa mesma obra existia, e de forma muito vincada.
O destino ibérico de Espanha e Portugal funciona, afinal, como uma teia de
Penélope que se tece de dia e se destece de noite. Ou, se se quiser, uma prova
fotográfica – de que por vezes só nos interessa o seu negativo. Utiliza-se assim
a própria consciência peninsular para destruir essa peninsularidade – deste
modo fazendo da proximidade uma forma íntima de distância. Vejamos tudo
isto com exemplos concretos dos autores referidos – exemplos esses que nos
permitirão compreender melhor os «encontros e desencontros» que marcam a
relação entre espanhóis e portugueses (Sáez Delgado 1999: 24).
2. Vivendo num período muito difícil da história portuguesa, uma época
que privilegiou as tácticas da sobrevivência, Garrett usou Espanha como
espantalho político, facto que já foi estudado (Vázquez Cuesta 1974). Contudo,
o que deste autor nos interessa no presente artigo – é vermos como se serve
do seu conhecimento da cultura e da literatura espanholas para construir a
especificidade portuguesa. Isto é: através da lembrança de Espanha, João
Baptista edifica o esquecimento dessa mesma Espanha. Esta prática paradoxal
torna-se bem visível sobretudo em duas obras-primas garrettianas: quer em
Frei Luís de Sousa, quer em Viagens na Minha Terra, o país vizinho surge
como algo que se esquece através da sua lembrança.
Frei Luís de Sousa, o primeiro dos textos mencionados, servir-nos-á para
entendermos melhor estes paradoxos. Como sabemos, na Memória ao
Conservatório Real, Almeida Garrett explica que esta obra tem origem numa
«comedia» espanhola vista na sua juventude, durante umas férias, num teatro
ambulante castelhano que se encontrava nos areais da Póvoa de Varzim.
Seria aí que o autor teria contemplado a cena do palácio incendiado, com
que fechará mais tarde o “Acto Primeiro” do seu drama trágico. Garrett não
identifica a tal «comedia famosa»: afirma ter esquecido o seu título (Garrett
1973: 207). Obviamente, muitos especialistas se têm lançado na procura desta
esmeralda perdida dos estudos garrettianos; contudo, ainda hoje, apesar de
algumas propostas eruditas (González Ollé 1953), não sabemos com certeza
absoluta que obra seria essa.
O que, porém, nos surpreende é comprovar que esse incêndio espanhol do
passado se transformou num incêndio português do presente. Isto é: aquilo
que era um elemento de relação entre os dois países – metamorfoseou-se em
elemento de ruptura. Uma companhia ambulante castelhana representa, em
Portugal, nos areais da Póvoa de Varzim, uma obra dramática espanhola: tudo
isto é um cenário de relação fluida entre as duas nações. Pegando nesse facto,
nessa relação, Garrett constrói uma não-relação: Manuel de Sousa Coutinho
incendeia o seu palácio para não receber os governadores castelhanos.
Devemos sublinhar como, a partir de uma transitividade, se constrói um
Gabriel Magalhães, Portugal como negativo da fotografia ibérica.
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mundo intransitivo. Trabalha-se, pois, com o negativo da fotografia ibérica. E
é assim que a partir da lembrança se edifica o esquecimento.
Esta amnésia garrettiana das suas próprias memórias peninsulares parece
lógica, pois o drama trágico de 1843 funciona, todo ele, como um grande
desencontro entre Portugal e Espanha. Foi Perfecto Cuadrado quem notou
a linha condutora nacionalista, e até anti-espanhola, que articula numa
continuidade o teatro garrettiano a partir de Um Auto de Gil Vicente
(Cuadrado 1997: 12). Pode mesmo dizer-se que Frei Luís de Sousa encena
um país encurralado, através da representação de uma família que vive num
beco sem saída. E quem constrói esse beco é um grande fantasma no texto –
o fantasma de D. João de Portugal, certamente, mas também o fantasma de
Espanha. Quando Manuel de Sousa Coutinho afirma que «há-de saber-se no
mundo que ainda há um português em Portugal» (Garrett 1973: 61) – é desse
espectro que está a falar, sem o referir. Espanha é, no Frei Luís de Sousa, um
imenso silêncio – uma coisa que se diz sem se dizer. De facto, os silêncios
também têm a sua retórica.
Contudo, recordemos que toda esta portugalidade do drama trágico se
constrói, como já vimos, a partir de uma sugestão espanhola. E algo disto
acontece também em Viagens na Minha Terra. Com efeito, neste livro, existe
um paradigma estrutural castelhano que organiza o texto: referimo-nos ao
Quijote de Cervantes. As referências a esta obra são muito significativas: de
facto, estruturantes – como podemos ver nos capítulos II e III (Garrett 1981:
21-30). Seria correcto dizer que Garrett, um pouco na linha da sua atitude
de reciclagem neoclássica, fez um trabalho extraordinário de reorganização
do paradigma narrativo de Cervantes. Em parte, isto já foi estudado numa
obra de referência de Maria Fernanda de Abreu (Abreu 1992). Contudo,
deveremos acrescentar que agora os cenários são portugueses, as vendas estão
na Azambuja – de tal modo que aquilo que era um modelo espanhol serve
para viajar rumo a Portugal: rumo à verdade portuguesa.
Para quem conheça bem a Primera parte de El ingenioso hidalgo D. Quijote
de la Mancha, chama a atenção o modo como Garrett decalca a estrutura
profunda deste livro: numa fase inicial da publicação cervantina de 1605,
D. Quixote surge como a grande personagem – e a narrativa centra-se nas
suas loucuras. Mas existe um equador, a chegada a Sierra Morena, a partir
da qual o romance de Cervantes deriva para histórias encaixadas, de modo a
não aborrecer o leitor com a repetição das ilusões quixotescas. Esta estrutura
constitui uma das genialidades do livro – permitindo que a narrativa se
transforme, não só na história de um delírio, mas num livro de livros: uma
biblioteca total, onde está contida quase toda a literatura.
Do mesmo modo, em Viagens na Minha Terra, prevalecem numa fase inicial
as peripécias do narrador, que secretamente se assume como um Quixote
nacional, fazendo do leitor outro Sancho Pança que o acompanha, conversando,
conversando: conversando como tanto se conversa na obra cervantina. Mas, a
partir do equador de uma janela, surge, tal como na obra do génio espanhol, uma
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história encaixada: uma só porque o livro é mais pequeno – história encaixada
esta que nos vai distrair do cansaço de um tão quixotesco narrador. Torna-se
assim curioso constatar que esta estrutura espanhola se metamorfoseia num
esplendor português, através da figura de Joaninha, incrustada no Vale de
Santarém. E aquilo que é, de facto, uma homenagem oculta a Cervantes –
torna-se oficialmente um preito a Bernardim Ribeiro.
Assim, também aqui se constrói a portugalidade a partir da peninsularidade.
Quer dizer: vamos chegando à conclusão de que a consciência da ibericidade
serve aos portugueses para construírem a sua portugalidade através de um
sistema de inversões, de transposições, de curiosos esquecimentos. Portugal
no fundo é isso mesmo: um esquecimento lembrado de Espanha. Dizer
simplesmente que os dois países vivem de costas voltadas é ignorar que eles se
viram de costas um para o outro precisamente porque também se contemplam de
frente – porque estão um diante do outro de forma fatal, necessária, inevitável.
O que significa que estudar as relações entre os dois países implica ter uma
extraordinária capacidade de ambiguidade – aquela necessária para entender
que as proximidades são afastamentos e os afastamentos são proximidades.
Enfim, a Península em que vivemos é de uma infinita subtileza.
3. O caso de Camilo sempre me interessou muito porque, se existe um autor
«enterrado» em Portugal, «enterrado» na portugalidade, esse autor é Camilo.
O escritor de Amor de Perdição viveu numa província funda, distante, tão
afastada de tudo quanto próxima do rosto da sua própria tragédia. O que
significaria a literatura espanhola para Camilo, o cultor de um Português tão
vernáculo que os seus vocábulos parecem muitas vezes saídos dos baús mais
antigos da linguagem? O estilo de Camilo lembra, de facto, tantas vezes, um
móvel antiquado, destes que se encontram nas casas muito velhas, acentuados
cuidadosamente pelas teias de aranha.
Talvez por isto mesmo, a sua linguagem, tal como a de Mário Cláudio, protesta
contra a tradução – constrói-se contra uma possível tradução, enfeudandose naquilo que de mais intraduzível tem o nosso idioma. No caso de Mário
Cláudio, isto é uma opção estética – a de acreditar na beleza única daquilo
que é particular. No caso de Camilo, parece-nos, pelo contrário, que o autor
de A Brasileira de Prazins nunca terá considerado a possibilidade de uma
carreira internacional, talvez porque ela nunca ocorreria durante a sua vida. E
Camilo, depois da sua morte, vê-se a si mesmo como um cidadão dessa mesma
morte – totalmente desinteressado do que acontecerá deste lado, esta margem
dos vivos onde estamos. Essa é outra dimensão misteriosa da magnífica
escrita camiliana: existe para o seu tempo – e quer lá saber do futuro, da
«eternidade». Interessa-lhe a raiva própria do presente – e o seu génio, por
vezes incomensurável, serve tão-só para conquistar a actualidade.
É por isso que a escrita de Camilo, tal como a música de jazz, funciona
como um acontecimento que se dá intensamente num presente em que toda
a criatividade é possível. Seja como for, surpreende o grande interesse que o
romancista de S. Miguel de Ceide sente pela literatura espanhola – e que,
Gabriel Magalhães, Portugal como negativo da fotografia ibérica.
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por exemplo, se revela numa longuíssima citação de Espronceda e do seu
“Canto a Teresa”, citação esta que se encontra em Onde Está a Felicidade?,
na realidade uma das melhores obras de Camilo (Branco 2005A: 243-245).
Noutros romances, como A Bruxa de Monte Córdova, encontramos uma
rede de citações que define uma relação aprofundada com a cultura espanhola
(Branco 2005B). Não é por acaso que Jacinto do Prado Coelho, um estudioso
magno da obra camiliana, afirma que «as leituras de Camilo mostram como
ele se integrou na espiritualidade e na tradição literária hispânicas – o que está
de acordo com a dimensão ibérica da sua obra» (Coelho 2001: 137).
Estudar esta questão implica debruçarmo-nos sobre o catálogo da livraria
do escritor (Anónimo 1883). Encontraremos lá bastantes livros em língua
espanhola: uma presença muito significativa de 71 obras literárias, históricas,
genealógicas, espirituais, que definem uma relação intensa com a cultura do país
vizinho2. Afinal, um escritor tão vernáculo, tão aparentemente enclausurado
no recanto português – manteve uma porta aberta para Espanha. E porventura
algo do casticismo linguístico camiliano passa por uma relação intensa com
o uso seiscentista e setecentista do Português, uso esse por vezes tão próximo
do Castelhano. Por outras palavras: por mais estranho que isto possa parecer,
uma parte da vernaculidade camiliana assenta no fundo ibérico, peninsular,
pois muitas das suas palavras portuguesas de gema soam-nos frequentemente
como elegantes castelhanismos. Se assim for, mais uma vez a construção da
portugalidade passa pela inversão lusitana de uma consciência peninsular.
4. Pareceria, à partida, muito difícil encontrar uma linha temática que unisse
os contos de Eça de Queirós (Queirós 2000). Com efeito, eles foram sendo
publicados dispersamente, ao longo da vida do autor, regendo-se assim pelas
misteriosas leis do acaso, próprias das produções parcelares e esporádicas.
Contudo, o convívio com estas narrativas breves queirosianas, aparentemente
desirmanadas, leva-me a propor uma ideia dominante que as atravessa
e as relaciona umas com as outras. Refiro-me àquilo a que, em termos de
teoria da literatura, Cristina Maria da Costa Vieira chama a «argumentação
do excedente» (Vieira 2005: 153-154). O que significa esta expressão? A
«argumentação do excedente» designa aquele processo cervantino que consiste
em ilustrar o erro em que cai uma personagem que acredita de uma maneira
fundamentalista num determinado princípio. Como sabemos, Alonso Quijano
não duvida da realidade dos romances de cavalaria – convicção esta que o vai
levar a cometer todo o tipo de dislates.
Ora, se pensarmos nas narrativas breves queirosianas, elas estão cheias
de Quixotes. Logo a primeira peça na edição clássica da editora Livros do
Brasil, esse belo texto intitulado “Singularidades de uma rapariga loura”, trata
dos absurdos do excesso de probidade de Macário, protagonista da história
(Queirós 2000: 5-34). “Um poeta lírico” constitui também um conto sobre o
excesso: já não o excesso de honradez, mas sim o excesso de poesia que marca a
biografia do romanesco Korriscosso (Queirós 2000: 35-48). Assim, se Macário
era um fundamentalista da honestidade, fundamentalismo este que o tinha
condenado irremediavelmente à solidão, Korriscosso é um fundamentalista
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do sentimento poético de matriz romântica. Passando ao conto “No moinho”,
estamos agora perante o excesso de santidade de Maria da Piedade: é esse
excesso de santidade que a leva a suportar uma existência extraordinariamente
limitada. O curioso é que esse santo extremismo se transformará num viver em
extremo pecaminoso por influência deletéria de um determinado escritor que
visita a vila onde ela reside (Queirós 2000: 49-63). Uma vez mais, encontramonos perante uma subtil crítica do extremismo. E o mesmo acontece em “José
Matias”, um texto em que se verbera o excesso da paixão romântica idealista
(Queirós 2000: 197-222). Outro conto, “O tesouro”, tem como tema o excesso
de cobiça (Queirós 2000: 95-104), tal como “Frei Genebro” se centra no
problema do excesso de santidade que, paradoxalmente, leva a cometer um
pecado atroz (Queirós 2000: 105-117). E essa brincadeira neoclássica que é o
conto “A Perfeição” constitui-se precisamente como uma narrativa breve sobre
o excesso de perfeccionismo considerado como fonte de infelicidade (Queirós
2000: 223-244).
Como podemos ver através de todos estes Quixotes – tão desejosos de serem
absolutamente qualquer coisa –, a lição de Miguel de Cervantes é bem evidente.
Esta memória cervantina, presente no corpus dos contos queirosianos,
intensifica-se em “Civilização” (Queirós 2000: 65-93), a narrativa breve que,
como é sabido, irá dar origem a A Cidade e as Serras (Queirós, sem data). Mais
uma vez, o tema do conto é o excesso – desta vez, o excesso de civilização, o
fundamentalismo civilizacional que caracteriza Jacinto. Resulta curioso ver
como essa matriz cervantina se agudiza na construção romanesca a que o conto
dará lugar. Na verdade, Zé Fernandes e Jacinto reproduzem de algum modo o
par formado por Sancho Pança e D. Quixote: o primeiro é mais realista, mais
brutal, mais pacóvio, enquanto o segundo está todo tomado pelas idealidades
do progresso.
Não é também um acaso que o elemento da viagem seja central no livro de
Eça, tal como o era no romance de Cervantes. Com efeito, há uma relação
de equivalência entre as viagens por uma Mancha que o cavaleiro andante
idealiza, no Quijote, e aquelas que, em A Cidade e as Serras, Jacinto e Zé
Fernandes realizam rumo a uma cidade, Paris, também por eles idealizada.
E não é também mera coincidência que uma biblioteca, nas duas narrativas,
desempenhe o papel de corporização material, documental mesmo, do absurdo
fundamentalista em que caíram ambas as personagens: o fidalgo Alonso
Quijano e o elegante Jacinto.
Se é verdade que o Quijote deixou marcas técnicas na narrativa portuguesa
(Abreu 1992: 207-249) – muito visíveis, por exemplo, na escrita camiliana
ou na escrita aquiliniana –, a verdade é que, no caso de A Cidade e as Serras,
a influência vai até aos temas, à construção das personagens, à escolha dos
cenários. Quando, já perto do fim do livro, Jacinto se ri lendo o Quijote, o
único livro que lhe resta – esta citação é uma homenagem e uma confissão
queirosiana da funda marca cervantina que esta sua obra apresenta (Queirós
sem data: 164-165). No fundo, era a mesma marca cervantina que já estava
Gabriel Magalhães, Portugal como negativo da fotografia ibérica.
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presente nos contos – e que se aprofundou, se desenvolveu, neste conto
alongado, esticado, que é A Cidade e as Serras.
Duas reflexões devem agora fazer-se. Em primeiro lugar, recordar as teorias
de Ricardo Piglia sobre o conto3. Para este teórico e criador argentino, o
conto é sempre constituído por duas histórias – uma de superfície e outra
subterrânea. Na parte final, toma destaque, aflora nas palavras, a história
subterrânea, clandestina, que até aí estivera escondida no fluir evidente da
história de superfície. Ora, esta constituição estrutural do conto ajusta-se
perfeitamente à crítica do excesso que Eça de Queirós gosta de levar a cabo
nas suas narrativas breves. Na verdade, os contos queirosianos dão no início
a sensação de estarem de acordo com o extremismo das suas personagens –
é esta a história de superfície – para, no fim, nos mostrarem o absurdo, a
desgraça a que conduz este fundamentalismo, este extremismo radical. Por
outras palavras: a estrutura que Piglia propõe para o conto moderno – e que
nos parece em boa parte corresponder à realidade deste género – permitiu a Eça
de Queirós trabalhar simultaneamente o excesso ideológico e a relativização
crítica desse mesmo excesso.
A segunda reflexão conduz-nos ao tema que tem guiado esta nossa meditação
sobre os misteriosos mecanismos ibéricos. Não deixa de ser curioso constatar
como um texto tão “espanhol” (no sentido de tão cervantino), como é A
Cidade e as Serras, acaba por servir de base a uma das viagens mais profundas
que se fizeram à interioridade portuguesa. Quer dizer: uma estrutura literária
espanhola serve para a afirmação da individualidade portuguesa – com essa
idealização lusíada de Tormes, que constitui, no fundo, a Ilha dos Amores que
Eça de Queirós inventou para si.
Na essência, trata-se do processo que já tínhamos identificado em Viagens
na Minha Terra e, também, na escrita camiliana. A consciência ibérica acaba
por desembocar na construção de um nacionalismo lusitano que se edifica
através de uma inversão portuguesa das referências espanholas. Como temos
estado a ver, este processo é muito comum. Na qualidade de constatação final,
podemos afirmar que, em todas as viagens de Jacinto e Zé Fernandes, quase
nunca se vê a paisagem espanhola, numa rasura impressionante do universo
cultural que subjaz a este romance queirosiano. E toda a estrutura cervantina
do livro está traduzida ao francês do ambiente parisiense em que ele se insere.
De facto, A Cidade e as Serras é resumidamente um Quijote português que
decorre numa Mancha francesa.
5. Aproximamo-nos, pois, de uma leitura mais “afinada” do que foram, foram
e vão sendo, as relações entre esses dois irmãos siameses algo contrariados
que são Portugal e Espanha. Dizer que viveram de costas voltadas é uma
imprecisão: os dois países vivem e viveram conscientes um do outro – atentos
um ao outro. Distraidamente atentos, se quisermos, mas atentos. Com efeito,
o destino histórico dos dois Estados peninsulares vai sendo paralelo – e os
governantes sabem que o que acontece ao lado se revela decisivo para o evoluir
da situação no seu próprio país. Por outro lado, ao nível das populações – e
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em todos os terrenos da vida social –, foram existindo contactos. Tal como
os políticos seguem com atenção o devir do país vizinho, também o cidadão
normal vai aproveitando e adaptando aquilo que lhe convém do outro lado
da fronteira. Entretanto, nas últimas décadas, a integração de Portugal e
Espanha na União Europeia intensificou – intensificou e, em certo sentido,
tornou visível para todos – um processo que, mais apagadamente, sempre teve
lugar.
Contudo, embora os dois países pratiquem esta ibericidade pragmática,
também vão construindo, por outro lado, a sua apeninsularidade. No caso
português, como vimos através de vários exemplos literários – garrettianos,
camilianos e queirosianos –, edifica-se a lusitanidade através da inversão
portuguesa das referências espanholas. Enunciando esta ideia de um modo
mais metafórico: da fotografia ibérica, os portugueses preferem um negativo
em que vivem – e que dialoga, através de um mecanismo de inversões, com
a prova positiva da fotografia ibérica espanhola. Enfim, acaba por ser através
de um profundo conhecimento de Espanha que o português constrói a sua
ignorância dessa mesma Espanha. Espanha, a sua cultura, a sua literatura, é
um imenso esquecimento imensamente lembrado pelos criadores portugueses.
Não será, pois, por acaso que Mário Cláudio escreveu um romance sobre Goya
em que nunca se grafam a palavra «Goya» e a palavra «Madrid» (Cláudio,
2004). E, agora sim, parece-me que temos já uma boa base de trabalho para
compreender a relação perplexa, paradoxal, que a cultura portuguesa mantém
com a cultura espanhola.
É este um artigo com moldura biográfica. Começa pela vida do crítico:
acaba também referindo a vida do autor deste breve estudo. Já há uns anos,
desloquei-me a Luanda, país onde nasci, embora depois só lá tenha residido
oito meses: «malhas que o império tece», como diz o poeta. Estive em Luanda
a leccionar mestrados na Universidade Agostinho Neto: simplesmente seis
dias de trabalho. Mas a verdade é que os ritmos humanos dos trópicos, os
fascínios de uma paisagem extrema foram rasurando a minha personalidade
peninsular. Sejamos sinceros: compreendi que África também formava parte
do meu destino – e até que, em certo sentido, África se sobrepunha à minha
matriz peninsular. Vivi o que devem ter vivido muitos portugueses: vivi o que
viveu o meu país quando se lançou nesse disparate com todo o sentido e sem
sentido nenhum que foram as Descobertas.
Cada dia que passava em Luanda era um ano que se apagava na minha vivência
da Península: se esta é uma jangada de pedra, ela afundava-se dentro de mim,
como um seixo que cai num poço e já não mais se poderá encontrar. Nunca
pensei que pudesse haver perspectivas tão amplas para o facto de ser português
como aquelas que encontrei em Angola. É um facto: trata-se de um país
perigoso, instável – mas a morte precisamente faz parte dos horizontes imensos,
como uma estrela cheia de mistério. Compreendi a exaltação das viagens – a
descoberta do mundo como destino de uma pátria. De repente, senti-me actor
numa peça que eu sempre contemplei desde essa plateia sossegada que é o
conhecimento intelectual e livresco das coisas. Há uma coisa que se percebe
Gabriel Magalhães, Portugal como negativo da fotografia ibérica.
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logo: a permanência de Pessoa na África do Sul portugalizou decisivamente
o jovem Fernando Pessoa – porque introduziu na sua experiência biográfica
uma vivência da distância e do espaço que é absolutamente fundamental para
compreender a dimensão maior de Portugal.
No fundo, Pessoa fez as Descobertas ao contrário: partindo de fora para
dentro, partindo da dimensão exterior, geográfica, da aventura marítima
para a dimensão íntima, psicológica, deste processo histórico. Quando volta
para Portugal, ele vai à procura dessa raiz psicológica dos Descobrimentos: a
Mensagem é uma psicologização do espírito que esteve na base da expansão
– Pessoa foi o Proust, foi o Freud da alma portuguesa que fez as grandes
viagens marítimas. E foi então que eu compreendi também o seguinte: o
verdadeiro negativo da fotografia ibérica é a fotografia do mundo. Quer dizer,
a cultura portuguesa negou a sua ibericidade espalhando-se pelo universo.
Espanha foi atrás de Portugal neste processo. E é por isso que quem dominar
o Português e o Espanhol pode percorrer quase o planeta inteiro. Curioso é
constatar, enfim, que quem tira uma fotografia da Península e lhe contempla o
negativo encontra um imenso mapa-múndi. Portugal acaba por ser uma dessas
imagens que muda consoante a forma como nela incide a luz – iluminado de
uma determinada maneira é peninsular, iluminado de outra é uma realidade
universal.
(Endnotes)
Este projecto chama-se “Relações linguísticas e literárias entre Portugal
e Espanha desde o início do século XIX até à actualidade” (RELIPES).
Foi apoiado pela linha 3C do programa INTERREG da União Europeia.
Envolveu investigadores das Universidades de Salamanca, Évora e Beira
Interior.
1
A contabilidade das obras mencionadas no catálogo, distribuída por
nacionalidades, dá os seguintes resultados aproximados: 333 livros franceses,
130 livros ingleses, 71 livros espanhóis, 36 livros latinos, 16 livros italianos,
2 livros alemães. O catálogo contém perto de 1855 entradas de livros. Como
é evidente, dominam as obras em português. Seja como for, o lugar ocupado
pela cultura espanhola não é de modo algum despiciendo.
2
Ricardo Piglia trata este tema em duas obras. No primeiro caso, trata-se do
livro El laboratorio del escritor, cuja tradução brasileira, da responsabilidade
de Josely Viana Baptista, saiu em 1994: O Laboratório do Escritor, São Paulo,
Iluminuras. O mesmo tema é retomado num trabalho mais recente: Ricardo
Piglia, Formas Breves, Barcelona, Anagrama, 2000. Pode ser útil para o leitor
assinalar-se aqui que existe uma página na Internet – que não é, porém, da
responsabilidade deste autor argentino – onde se poderá encontrar o essencial
das teses de Piglia sobre o conto moderno: http://www.portrasdasletras.com.
3
br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/oconto
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Bibliografia
Abreu (1992), Maria Fernanda Antunes de Abreu, Românticos Portugueses por
Caminhos de Dom Quixote: Garrett e Camilo (Cavaleiros Andantes, Manuscritos
Encontrados e Gargalhadas Moralíssimas), Lisboa, tese de doutoramento
apresentada na Universidade Nova de Lisboa.
Anónimo (1883), Catálogo da Preciosa Livraria do Eminente Escritor Camilo
Castelo Branco Contendo Grande Número de Livros Raros, em Diversas Línguas,
e Muitos Manuscritos Importantes, a Qual Será Vendida em Leilão, em Lisboa,
no Próximo Mês de Dezembro de 1883, no Local Oportunamente Anunciado, sob
a Direcção da Casa Editora Matos Moreira & Cardosos, Lisboa, Tipografia de
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