O rio Purus apresenta, em toda sua extenso, uma diversidade

Transcrição

O rio Purus apresenta, em toda sua extenso, uma diversidade
GESTÃO DAS ÁGUAS NA AMAZÔNIA: A BACIA DO RIO PURUS
Wilson Cabral de Sousa Júnior 1 ; Andréa Viviana Waichman 2 ; Andrés Leandro Gumiero
Jaime1; Paulo Antônio de Almeida Sinisgalli 3
RESUMO - O presente estudo aborda questões relevantes para a gestão das águas na Amazônia,
trazendo à análise a bacia do rio Purus, um dos maiores contribuintes da margem direita do rio
Solimões. Sendo um rio de bacia transfronteiriça – nasce na Bolívia, passa pelo Peru e adentra o
Brasil, passando pelos estados do Acre e Amazonas, o Purus representa um interessante caso para o
debate sobre a gestão das águas na Amazônia. Suas características geomorfológicas, associadas a
um processo de ocupação diversificado, além de ser objeto de uma série de políticas públicas
remotas e recentes, fazem da bacia do Purus um bom exemplo da diversidade institucional da
Amazônia brasileira, a qual apresenta questões complexas que o modelo legal, preconizado pela
Política Nacional de Recursos Hídricos, está longe de responder. O artigo apresenta considerações
para aprimoramento do modelo de gestão e possível adaptação à realidade local.
ABSTRACT - This paper analyses some relevant questions to the water management process in
Amazon, focusing on the Purus river watershed, one of the major tributary from the right side of the
Solimões river. As a transboundary river – it born on Bolívia, passes trough Peru and reaches Brazil
on Acre and Amazon states, the Purus represents an interesting case study to the discussion about
water management on Amazon region. Its geomorphologic characteristics associated to a diversified
occupation process – as an ancient and actual public policies object, became the Purus watershed a
good sample of the institutional diversity of the Brazilian Amazon. This region presents complex
questions to which the National Water Resources Policy seems to be far from the answers. The
article presents considerations to improvement of the water management model and, when possible,
to adaptation of that model to local conditions.
PALAVRAS-CHAVE: gestão das águas, Amazônia, rio Purus.
1
Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA – Depto de Hidrologia. E-mail: [email protected].
Universidade Federal do Amazonas – UFAM – E-mail: [email protected]
3
Universidade de São Paulo – USP/EACH – E-mail: [email protected]
2
Workshop Sobre Gestão Estratégica de Recursos Hídricos
1
1. INTRODUÇÃO
Tornou-se “lugar comum” nas discussões sobre a gestão das águas no Brasil, a associação do
modelo adotado no país ao desenvolvimento dos processos de gestão das regiões sul e sudeste, mais
precisamente dos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo, pioneiros no marco legal atual. Tal
assertiva aponta para uma incapacidade do modelo em abranger regiões como a Amazônia
brasileira, região esta que, assim como outros biomas, demandaria uma adaptação do modelo
preconizado pela Lei 9433/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos. No entanto,
ainda que para isso parece haver um consenso, muito pouco se avançou em analisar que adaptações
viriam a ser estas, e, mais além, pouco se discute a gestão das águas à luz das demandas das
populações tradicionais e do arranjo institucional vigente na região.
De certa maneira, a Amazônia ainda é tratada como uma região continente – e uma imensa massa
de recursos naturais – e não como um mosaico de diversos contextos em que se misturam políticas
públicas e ausência de Estado, migrações espontâneas e ressurgência étnica, fronteira agrícola e
unidades de conservação, terras indígenas e conflitos fundiários. A bacia do rio Purus é palco de
todas estas nuances, além de ser uma bacia transfronteiriça – o rio nasce na Bolívia, passa pelo Peru
e adentra o Brasil, passando pelos estados do Acre e Amazonas até desaguar no rio Solimões,
próximo à cidade de Manaus.
Conhecer estas nuances e inseri-las na análise da bacia para fins de subsidiar a adaptação do modelo
de gestão das águas, ou mesmo apresentar argumentos que apontem a impossibilidade de uma
eventual adaptação, são objetivos do presente trabalho. Estas reflexões se originam no contexto de
um projeto de diagnóstico socioambiental e pesquisa sobre gestão das águas em execução por uma
rede interinstitucional na bacia do rio Purus.
2. A BACIA DO RIO PURUS
O rio Purus nasce no Peru, a cerca de 500 metros de altitude. Estende-se por cerca de 3.218
km até a foz, no rio Solimões. No Brasil, o rio Purus segue a direção Sudoeste-Nordeste, porém, em
determinado ponto, passa para Leste-Norte-Leste, direção geral que segue até receber o rio Acre;
após, volta à direção original (Sudoeste-Nordeste) penetrando no Estado do Amazonas.
Dependendo das direções que segue, o rio Purus se torna mais retilíneo (Nordeste-Sudoeste e
Noroeste-Sudeste). A partir do estado do Acre, do qual representa a segunda maior área de
drenagem, o curso do rio se torna intensamente curvilíneo ocupando boa parte da planície, e
deixando diversos meandros abandonados. As faixas que margeiam o rio, alargam-se na direção da
foz e comportam extensas áreas alagadas e de inundação onde ocorrem paranás, furos, igapós,
igarapés, depósitos lineares fluviais antigos e áreas de colmatagem recente, além de uma grande
quantidade de lagos com gênese e forma diferenciadas. Os terraços fluviais presentes na planície e
abrangem uma rede de drenagem curta e recente, que corta tanto estes, quanto as planícies,
perpendicularmente à drenagem principal. A cobertura vegetal nesta unidade morfo-estrutural é de
Floresta Aberta Aluvial com Palmeiras, desenvolvendo-se sobre solos Gleissolos (IMAC, 2006).
Quanto aos afluentes, na margem direita estão presentes os maiores como o Acre, o Iaco, o Caeté e
o Chandless, no estado do Acre. Já no Amazonas, os principais são os rios Pauini – que contribui
com boa parte do regime de vazão do baixo Purus – e Tapauá, o qual, nos períodos de cheia, forma
um elo entre as bacias do Purus, Coari e Juruá.
Estas características: o grande número de habitats definidos a partir dos movimentos do rio, bem
como o grau de conectividade entre estes – a partir do regime de enchentes e vazantes – atribui à
bacia do Purus uma grande importância ambiental. Além disso, ainda que haja uma pressão de
ocupação de fronteira econômica, o grau de conservação dos ambientes naturais da bacia é
Workshop Sobre Gestão Estratégica de Recursos Hídricos
2
relativamente alto. Segundo Trancoso et al (2005), a bacia do Purus, no estado do Acre possui
relativamente menos áreas alteradas pelo desmatamento, que os demais rios da margem direita na
bacia do Amazonas (com exceção do Juruá). Segundo os autores, sua posição de interlândia,
somada a uma certa inacessibilidade, impediu até então a chegada das frentes de colonização
características das outras bacias. A porção leste das suas cabeceiras sofre atualmente a pressão de
uma frente de ocupação em movimento oriundo de Mato Grosso e Rondônia.
3. A OCUPAÇÃO DA BACIA E A GESTÃO DAS ÁGUAS
Por apresentar esta diversidade de ambientes, em toda a sua extensão, a bacia do rio Purus 4 possui
também distintos modos de uso e ocupação por parte das comunidades que ali se estabelecem.
Data de meados do século XIX, os primeiros registros da presença branca na região. São desta
época as expedições de Manoel Urbano e William Chandless, este último um ordenado do Serviço
Geológico Inglês, cujos nomes foram posteriormente atribuídos a tributários do rio Purus.
Posteriormente, conforme descreve Santana (2000), Euclides da Cunha liderou expedição para
delimitação de fronteiras em litígio entre Brasil e Peru, tendo subido o rio Purus adentrando o que
hoje é território peruano, em busca de suas cabeceiras.
A ocupação da bacia do Purus se mostra atrelada a políticas públicas que se iniciaram com o ciclo
da borracha, no final do século XIX e se estenderam pelo século XX, acentuando-se na década de
1970, a partir dos projetos de assentamento no eixo da rodovia Transamazônica.
Atualmente, a região de interface entre o alto e médio Purus é cenário de expansão de fronteira
agrícola, a partir da logística dada pelas rodovias BR-364, BR-319 e BR-230. É nesta região que se
concentra o impacto da ocupação na bacia, associada, principalmente, às atividades madeireira e
pecuária. A presença de Terras Indígenas e Unidades de Conservação tem garantido a conservação
de áreas importantes no alto Purus, entre Santa Rosa e Manoel Urbano. A ocupação de fronteira se
concentra nos municípios de Sena Madureira, no Estado do Acre, e Boca do Acre e Lábrea, no
Estado do Amazonas, eixo de extensão da BR-230 (Transamazônica, trecho Humaitá-Lábrea). A
ampliação da área de várzea, que sofre inundações sazonais, e a inexistência de outras modalidades
de transporte, além do fluvial, demonstram ser as principais condicionantes da ocupação no médiobaixo Purus. Os barcos de maior calado (transporte de passageiros e cargas) têm dificuldades de
locomoção nos períodos de seca, reduzindo consideravelmente as trocas econômicas a partir do rio.
Aumenta, nesta época, a dependência do transporte rodoviário, fazendo de Lábrea um importante
centro de distribuição.
A pesca, artesanal, comercial e até de peixes ornamentais, é atividade determinante no processo de
ocupação, atendendo desde a subsistência das comunidades instaladas ao longo da várzea, até a
geração de excedentes a partir da comercialização do pescado. Segundo Soares e Junk (2000), de
1976 a 1998, a participação da pesca no rio Purus nos desembarques em Manaus, capital do estado
do Amazonas, triplicou, passando de 15,7% para 49,3%.
Do ponto de vista da organização política, a influência maior é exercida a partir dos municípios.
Algumas comunidades são organizadas em torno de patriarcados remanescentes da ocupação mais
4
Em função da dinâmica sócio-econômica e da morfologia fluvial, propõe-se aqui, em caráter preliminar, a distinção
da porção brasileira da bacia em três trechos: o alto Purus (compreendendo a porção acreana da bacia, nos municípios
de Santa Rosa do Purus, Manoel Urbano e Sena Madureira), o médio Purus (porção anterior da bacia no estado do
Amazonas, onde o rio cruza os municípios de Boca do Acre, Pauini, Lábrea e Canutama) e o baixo Purus (na parte mais
próxima à foz, onde o rio cruza os municípios amazonenses de Tapauá, Anori e Beruri).
Workshop Sobre Gestão Estratégica de Recursos Hídricos
3
remota – como na época dos seringais, enquanto outras se organizam em torno de acordos
comunitários para uso de recursos naturais – por exemplo, no caso da pesca em lagos
“proprietários”. Há ainda a presença de acordos baseados em títulos precários de propriedade e
patronato comercial.
De maneira geral, a população na bacia – especialmente aquela das proximidades do rio – está
adaptada ao regime natural de enchente e vazante, e às condições extremas. Ocupam espaços
durante a seca, principalmente nas comunidades mais organizadas, cultivam nas praias – culturas de
feijão, mandioca e melancia – e praticam extrativismo florestal no período de cheia, extraindo
principalmente madeira e castanha.
4. CONSIDERAÇÕES PARA A GESTÃO INTEGRADA
A gestão das águas na bacia do Purus se reveste de complexidade, dada a diversidade de ambientes,
de modos de uso e apropriação dos recursos naturais e de arranjos sócio-políticos locais. A distinção
entre trechos com características geomorfológicas e de ocupação diferenciados, parece ser uma
idéia interessante para um primeiro ensaio. Nas regiões de várzea, a proximidade das terras firmes e
a presença de lagos permanentes, determinam também um processo diferenciado de uso e ocupação,
e, consequentemente, aportam elementos para a gestão.
Nas várzeas, onde a propriedade da terra é necessariamente da União, é necessário desenvolver
processos alternativos de regularização fundiária para que as populações possam ter segurança de
moradia, acesso a crédito, etc. O isolamento de algumas comunidades tem implicações grandes nas
formas de organização possível. As políticas devem se adaptar a esta grande diversidade.
Um modelo de gestão para a bacia precisa compreender os arranjos locais, especialmente os
acordos coletivos firmados de maneira não formal e que respeitam regras próprias.
Dado o estado de conservação de boa parte da bacia, e a existência de uma adaptação da ocupação
às características locais, há que se considerar a possibilidade de manutenção destas características
no processo de gestão, o qual poderia ser formulado a partir de um modelo endógeno e não deveria
estar dissociado dos processos de gestão de terras públicas, terras indígenas e de áreas de
conservação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Instituto de Meio Ambiente, Acre – IMAC. (2006) Zoneamento Ecológico-Econômico.Volume
I/08. Disponível em http://www.ac.gov.br/meio_ambiente. Consultado em 20/04/2006.
Santana, J. C. B. Euclides da Cunha e a Amazônia: visão mediada pela ciência. História, Ciências,
Saúde — Manguinhos, vol. VI (suplemento) 901-917, setembro 2000.
Soares, M.G.M.; Junk, W. J. Commercial fishery and fish culture of the State of Amazonas: status
and perspectives. In: Junk, W.J.; Ohly, J.J.; Piedade, M.T.F.; Soares, M.G.M. (eds.) The central
amazon floodplains: actual use and options for a sustainable management. Backhuys
Publishers, Leiden, The Netherlands, 433-461. 2000.
Trancoso, R.; Carneiro Filho, A.; Ferreira, D. A. C.; Noguera, S. P. Sistemas de Informação
Geográfica como ferramenta para o diagnóstico e gestão de macrobacias no arco do
desmatamento na Amazônia. XII Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, Goiânia,
Brasil, 16-21 de abril, 2005. Anais. INPE, p. 2405-2412. 2005.
Workshop Sobre Gestão Estratégica de Recursos Hídricos
4