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O PENSAMENTO ALEMÃO, A DESCOBERTA DA
CULTURA GERMÂNICA E NOVOS APONTAMENTOS
SOBRE O LIED ‘REI DOS ELFOS’, DE FRANZ SCHUBERT,
SOBRE POEMA DO POETA JOHANN WOLFGANG VON
GOETHE
GERMAN THOUGHT, DISCOVERY OF GERMAN CULTURE AND
ADDITIONAL NOTES ON ART SONG “KING OF THE ELVES”,
BY FRANZ SCHUBERT, BASED ON JOHANN WOLFGANG VON
GOETHE’S POEM
Francisco José dos Santos Braga
Titular da Cadeira nº 28
Patrono:Antônio de Andrade Reis
I. INTRODUÇÃO
P
reliminarmente, gostaria de delimitar o escopo deste ensaio,
cujo cerne consiste em uma análise literomusical da balada
de Goethe musicada por Schubert. ¹ Para essa abordagem, foi preciso fazer
uma contextualização, colocando a obra poética dentro do arcabouço do
pensamento alemão vigente no final do século XVIII e início do XIX,
condicionado por influências históricas e filosóficas, bem como por
movimentos literários então emergentes. Foi dentro desse contexto que se
deu a impressionante parceria entre dois gênios: um, Franz Schubert (17971828), gênio da Música, vienense, falecido aos 31 anos, sem dinheiro e
dependente da ajuda de amigos, enquanto o outro, Johann Wolfgang von
Goethe (1749-1832), o maior nome das Letras alemãs em praticamente
todos os gêneros literários, conhecido como O Sábio de Weimar, — cidade
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onde residiu durante mais de 50 anos e onde veio a falecer rico, aclamado
mundialmente.
II. O PENSAMENTO ALEMÃO NO FINAL DO SÉCULO XVIII E
NO SÉCULO XIX ²
A língua alemã, depois de mil anos de existência, cultivada primeiro
pelos monges, seguidos pelos poetas-cavaleiros como Walter von der
Vogelweide, por mestres cantores como Hans Sachs e outros, utilizada
polemicamente pelo reformador Lutero como arma de combate contra
Roma, tornou-se, por fim, instrumento dos sábios, firmando o princípio de
que a razão é “o” apanágio do Homem. Pensadores como Kant e Hegel
fizeram dela expressão de todas as sutilezas, ambiguidades ou precisões
possíveis de o pensamento alcançar. De fato, nenhuma outra língua
ocidental contemporânea contribuiu mais para o vocabulário filosófico e do
Direito do que o idioma alemão.
Inicialmente, cabe aqui pontuar que a Alemanha, no início do século
XIX, era constituída por “uma variedade colorida de pequenas e médias
unidades políticas”, na feliz expressão do historiador inglês Harold James.
Conforme o poeta alemão Heinrich Heine (1797-1856), havia nesta
Alemanha 700 homens de letras (os chamados Siebenhundert Weiser), que
se achavam espalhados por toda a parte, raramente se encontrando para
trocarem ideias e vivendo isolados, sem contato com o exterior. Cada um
fixado num condado ou principado (Jena, Berlim, Königsberg, Bonn ou
Düsseldorf), jamais esses pensadores, poetas e autores teatrais constituíram
uma frente de intelectuais como os franceses. Muitos deles, antes de se
projetarem, viviam modestamente como preceptores dos filhos dos nobres
ou dos burgueses bem sucedidos.
Desprovidos das conquistas dos oceanos e dos feitos do moderno
racionalismo, obra dos ingleses e dos franceses seus vizinhos próximos, só
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O Pensamento Alemão. A Descoberta da Cultura Alemã...
restou aos alemães a teoria, terem que tomar de assalto o prodigioso e
fantástico mundo das ideias.
Cabe assinalar, sobre os precursores Moses Mendelssohn (1729-1786),
pensador criativo e eclético, e Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781),
crítico literário e dramaturgo, juntamente com os filósofos Leibnitz (16461716) e Kant (1724-1804), que foram decisivos para o surgimento do
Iluminismo alemão (Aufklärung). Mendelssohn deixou obras sobre
metafísica e estética, teoria política e teologia; passou à história por ter sido
protagonista e modelo de tolerância religiosa na obra Nathan der Weise, de
Lessing; por ser considerado pai do Judaísmo reformado; finalmente, por
ser o avô de Felix Bartholdy e Fanny Mendelssohn.
Ao longo do século XIX, lançaram-se a ocupar esse continente
intelectual. Começando pela filosofia kantiana e seu grito de guerra Sapĕre
aude (atreve-te a saber, ousa pensar por ti mesmo, tem a coragem de servirte da própria inteligência), engendraram assim o Idealismo alemão e a
formação de uma moderna linhagem de pensadores (Fichte, Schelling e
Hegel, por excelência).
Tempestade e Ímpeto (STURM UND DRANG) foi o título sonoro e
retumbante da inconformidade de escritores e autores teatrais. Representava
um movimento nacionalista de fervor romântico, situado entre 1767 e 1785,
cujos princípios foram formulados por Heinrich Gerstenberg em suas Briefe
über Merkwürdigkeiten der Literatur [Cartas sobre as Curiosidades da
Literatura (1766)], incitando poetas e autores dramáticos à rebeldia e ao
inconformismo diante da frieza do Iluminismo.
O movimento Sturm und Drang obteve o engajamento ativo de Goethe e
Schiller, ambos estabelecidos em Weimar, os quais passaram a valorizar
materiais e temas até então tidos como menos nobres e não merecedores dos
olhos dos intelectuais, a saber: as histórias e cantigas populares, as
mitologias germânicas e nórdicas, o estranho universo das aparições, as
lendas de fantasmas, as celebrações feitas pelas bruxas durante a
Walpurgisnacht, imortalizada sobretudo por Goethe no Fausto. Além de
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Goethe e Schiller, ainda pode ser citada a participação de Johann Gottfried
Herder (1744-1803) no movimento, o qual enfatizou a poesia do povo em
substituição ao ideal artístico da Antiguidade. A expressão Sturm und
Drang passou a ser associada à literatura ou à música com o objetivo de
assustar o público ou imbuí-lo de extremos de emoção, até à dispersão do
movimento no Classicismo de Weimar e na eventual transição para o
Romantismo, ao qual foram incorporados objetivos sócio-políticos.
III. A DESCOBERTA DA CULTURA ALEMÃ
Goethe (1749-1832), com Os sofrimentos do jovem Werther, editado em
1774, consegue a façanha de tornar-se o primeiro nome das letras teutônicas
a circular fora das fronteiras da Alemanha. Mas coube a Madame de Staël,
em viagem pelo país em 1803-4, apresentar os intelectuais alemães (Goethe,
Schiller, Wieland e Schlegel, com quem esteve) como “os homens mais
instruídos e os mais meditativos da Europa”, no seu famoso ensaio De
l’Allemagne, onde realizou verdadeira geografia cultural da Alemanha.
Goethe considerou esse ensaio “como um poderoso instrumento que foi a
primeira brecha na muralha de antigos preconceitos erguidos entre nós e a
França.”
IV. O MITO FÁUSTICO E AS MARCAS INTERTEXTUAIS
A primeira compilação de tudo quanto se acreditava e dizia acerca de
Fausto como personalidade histórica teve início em 1587, quando Johann
Spiess publicou “Historia von Dr. Joahnn Fausten”. Dois anos depois,
Christopher Marlowe (1563-1593), na Inglaterra, transforma Fausto em
peça teatral. Dois séculos mais tarde, precisamente em 1760, Lessing cria
uma nova versão dramática do Fausto, agora encarnando o heroísmo do
inteleto humano, capaz por si mesmo de triunfar sobre o mal, personificado
no diabo. A seguir, Fausto se tornaria um dos personagens preferidos do
Sturm und Drang e de todo o período romântico alemão. Mas seria através
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de Goethe que a tragédia Fausto alcançaria sua máxima expressão, tendolhe consumido quase 60 anos para ser concluída (1775-1832); é, sem
dúvida, a obra simbólica da vida desse poeta e um dos textos que adquire
significado universal por materializar o mito fáustico do homem moderno,
apesar de o mito se referir também a essa figura histórica, Johann Georg
Faust (1480-1540), que estudou magia, medicina, astrologia e alquimia,
permitindo-lhe fazer profecias. Neste caso, ganha contornos de fábula,
ficção.
Esse texto reflete as várias vivências do poeta, evidenciando marcas
intertextuais aí presentes:
 enquanto poeta,
participando de várias escolas literárias:
Iluminismo, “Sturm und Drang”, Classicismo e Romantismo;
 seus interesses científicos (botânica, mineralogia, estudo das cores,
etc.);
 seus estudos filosóficos (teologia, teosofia, estudos mágicosmísticos);
 seus conhecimentos sobre mitologia antiga.
A primeira versão, composta por Goethe em 1775 e publicada em 1887,
pode ser considerada um esboço, intitulado Urfaust (Proto-Fausto ou Fausto
Zero); outro esboço foi feito em 1791, que não chegou a ser publicado,
recebeu o nome de Faust, ein Fragment. A versão definitiva foi publicada
em 1808, ano em que veio a lume a maior obra-prima de Goethe, com o
nome de Faust, eine Tragödie (Fausto, uma Tragédia). Mas o poeta não se
satisfez com a solução que dera à problemática humana de seu Fausto de
1808; assim, em 1826, iniciou a composição da segunda parte do poema,
que terminou um pouco antes de morrer em março de 1832, com o nome de
Faust. Der Tragödie zweiter Teil in fünf Akten (Fausto. Segunda parte da
tragédia, em cinco atos).
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V. A ETIQUETA
O sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), em Mozart: Sociologia
de um Gênio, observou existir uma tensão permanente entre a
intelectualidade de classe média e os frequentadores das Cortes. Separavaos uma espécie de desprezo mútuo entre as Letras e a Etiqueta (vista como
uma forma de dominação utilizada pelo rei). Talvez fosse essa a razão de os
pensadores alemães – como reação à indiferença com que eram tratados desenvolverem uma prosa muito peculiar, quase que ininteligível para quem
desconhecesse o assunto, colocando a filosofia alemã, por vezes, num
patamar muito próximo ao esotérico.
Com o título Gênio Mozart, segundo Norbert Elias, publiquei um artigo
postado no Blog do Braga em 15 de dezembro de 2009 e mencionado na
bibliografia. Ali fiz o seguinte comentário sobre a intolerância de Mozart
quanto às rígidas regras da Etiqueta:
Movendo-se em círculos da aristocracia da corte, cujo gosto
musical adotou e cujo padrão de comportamento deveria
seguir, Mozart fugiu desse estereótipo: sendo extremamente
rude em sua conduta pessoal, com um comportamento
totalmente franco e direto, nunca se tornou um "homme du
monde", isto é, um cavalheiro, como pretendia seu pai.
Profundamente identificado com a nobreza da corte e seu
gosto, Mozart sentia profundo ressentimento pela
humilhação que ela lhe impunha.
As cartas de seu período parisiense são um reflexo do
desagrado que sentia com o tratamento altaneiro dos nobres
da corte de que era vítima. Esse ressentimento cada vez
crescente evoluiu para um franco enfrentamento, o que se
deu com a escolha feita do libretto de Da Ponte para "As
Bodas de Fígaro", ópera cujo tema o próprio Mozart
escolheu e que foi considerado politicamente suspeito,
segundo o ponto de vista absolutista.
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Em A Sociedade de Côrte (Die höfische Gesellschaft), Elias analisa a
Etiqueta como uma forma de dominação utilizada pelo rei para reduzir as
tensões, oriundas de uma relação de interdependência no âmbito cortesão.
De acordo com Elias, o rei favorece ora um, ora outro cortesão, usando os
mecanismos da Etiqueta, com a finalidade de incitar as tensões e os ciúmes
e de usá-los a seu favor.
É possível admitir que a submissão de Kant, como súdito obediente à
ordem real de 1º de outubro de 1794, no incidente causado por seu ensaio
Religião nos Limites da Simples Razão (Religion innerhalb der Grenzen der
blossen Vernunft), de certo modo, pautou a relação dos intelectuais alemães
com as autoridades. Bem poucos deles tinham a ousadia dos franceses de
afrontar as instituições.
Sobre a Etiqueta e seus rigores, cabe relembrar aqui a trilogia Sissi,
constituída de três filmes dos anos de 1955-7. Elisabeth, carinhosamente
apelidada de Sissi, natural da Baviera, enfrenta toda sorte de dificuldades
para adaptar-se à estrita e protocolar etiqueta da corte dos Habsburgos,
primeiro como Imperatriz da Áustria, uma vez que no dia 24 de abril de
1854, em Viena, Sissi, com dezesseis anos, desposou o seu primo Francisco
José I, então com quase vinte e quatro anos. Depois, sua preferência pela
Hungria chocou a Áustria e isolou cada vez mais Sissi da vida familiar e dos
compromissos oficiais. A 8 de junho de 1867, juntamente com o marido,
Sissi foi coroada Rainha da Hungria na sequência da assinatura do
compromisso austro-húngaro. Ela colaborou efetivamente na instituição do
Império Austro-Húngaro (1867-1918).
VI. CONSTRUÇÃO DO II REICH
A primeira metade do século XIX assistiu a um embate prolongado na
Alemanha entre as forças do liberalismo, que queriam uma Alemanha
federal unida sob uma constituição democrática, e as forças do
conservadorismo, que desejavam mantê-la como um conjunto de fracos
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Estados independentes e palco da competição entre Prússia e Áustria. Em
1848, durante o erguimento das barricadas – levante conhecido como
Revolução dos Poetas – os liberais, entre os quais figuravam Heinrich
Heine, Ferdinand Freiligrath, Richard Wagner, Max Stirner, David Strauss,
Moses Hess, Karl Marx e Friedrich Engels, tiveram a sua chance e
encontraram clima favorável à aberta insubordinação, embora por pouco
tempo, permitindo-lhes desaforarem o poder. Exatamente em razão disso,
muitos deles tiveram que levar a vida no exterior experimentando o pão
salgado do exílio, na companhia dos refugiados.
Finalmente as forças do liberalismo se impuseram e Otto von Bismarck,
entre 1861 e 1871, possibilitou, além da criação de um sólido estado
nacional alemão unificado, a difusão do pensamento e da cultura alemã,
atraindo as atenções do mundo para os filósofos, cientistas e artistas
alemães, universalizando-os, juntamente com os Concertos de
Brandemburgo de Bach, as sinfonias de Beethoven, os Lieder de Schubert e
as óperas de Wagner, sobretudo Parsifal.
VII. A CULTURA ALEMÃ ASSEMELHA-SE À FÊNIX
É possível identificar a cultura alemã, ao longo da história, com um fato
carregado de simbolismo: a sobrevivência milagrosa da estátua do mestre
cantor “Hans Sachs” (1494-1576), em meio aos escombros da cidade de
Nüremberg, devido ao bombardeio anglo-americano em 1945, próximo ao
final da II Guerra Mundial.
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Homenagem a Hans Sachs em Nüremberg
Hans Sachs ³ já tinha sido imortalizado na ópera Die Meistersinger von
Nürenberg (“Os Mestres Cantores de Nüremberg”), de Richard Wagner.
Coloca-se a seguinte indagação: 67 anos após a tragédia da II Grande
Guerra e 21 anos após a queda do Muro de Berlim, o que vemos? Uma
Alemanha ressurgida das cinzas, novamente reunificada, tendo superado
todos os problemas econômicos e sociais que tal reintegração engendrou,
tendo sido incorporado o território da antiga República Democrática Alemã
à República Federal da Alemanha. Para que isso fosse obtido, os cidadãos
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alemães tiveram que conviver com altas taxas de inflação e depressão.
Agora mesmo, com a crise nos países da eurozona, os títulos alemães são
considerados pelas agências de risco como praticamente livres de risco,
detendo o rating AAA de classificação de risco, enquanto os da Grécia,
Espanha, Portugal e Itália atingem os piores patamares imagináveis.
VIII. ERLKÖNIG (REI DOS ELFOS), DE FRANZ SCHUBERT
Com esse título, publiquei um artigo postado no Blog do Braga em 8 de
março de 2012 e mencionado na bibliografia. Para maior conveniência do
leitor, reproduzo, a seguir, não só o texto de Goethe, como também a
tradução não-rimada, quase literal, que ofereci para a célebre balada “Rei
dos Elfos”, ambos constantes do referido artigo da minha autoria:
Erlkönig
Johann Wolfgang von Goethe
Wer reitet so spät durch Nacht und Wind?
Es ist der Vater mit seinem Kind.
Er hat den Knaben wohl in dem Arm,
Er faßt ihn sicher, er hält ihn warm.
"Mein Sohn, was birgst du so bang dein Gesicht?"
"Siehst, Vater, du den Erlkönig nicht?
Den Erlenkönig mit Kron' und Schweif?"
"Mein Sohn, es ist ein Nebelstreif."
"Du liebes Kind, komm, geh mit mir!
Gar schöne Spiele spiel ich mit dir;
Manch bunte Blumen sind an dem Strand,
Meine Mutter hat manch gülden Gewand."
"Mein Vater, mein Vater, und hörest du nicht,
Was Erlenkönig mir leise verspricht!?"
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"Sei ruhig, bleibe ruhig, mein Kind;
In dürren Blättern säuselt der Wind."
"Willst, feiner Knabe, du mit mir gehn?
Meine Töchter sollen dich warten schön;
Meine Töchter führen den nächtlichen Reihn,
Und wiegen und tanzen und singen dich ein."
"Mein Vater, mein Vater, und siehst du nicht dort
Erlkönigs Töchter am düstern Ort?"
"Mein Sohn, mein Sohn, ich seh es genau:
Es scheinen die alten Weiden so grau."
"Ich liebe dich, mich reizt deine schöne Gestalt;
Und bist du nicht willig, so brauch ich Gewalt."
"Mein Vater, mein Vater, jetzt faßt er mich an!
Erlkönig hat mir ein Leids getan!"
Dem Vater grausets, er reitet geschwind,
Er hält in Armen das ächzende Kind,
Erreicht den Hof mit Mühe und Not —
In seinen Armen das Kind war tot.
(Fonte: REINERS, Ludwig: Der ewige Brunnen: ein Volksbuch deutscher
Dichtung, uma antologia de poemas coletados e publicados pelo compilador (18961957), Verlag C.H. Beck, Munique, 1955, 946 p.)
Eis agora a minha tradução para Erlkönig:
Rei dos Elfos
Johann Wolfgang von Goethe
Quem cavalga tão tarde pela noite e ao vento?
É o pai com o seu filho;
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Ele segura a criança bem nos braços,
Segura-o com firmeza, mantém-no quente.
"Meu filho, por que escondes tão receoso teu rosto?"
"Pai, não vês o Rei dos Elfos?
O Rei dos Elfos com coroa e cauda?"
"Meu filho, é um fio de névoa."
"Tu, querida criança, vem comigo!
Maravilhosos jogos eu jogarei contigo,
Na praia há muitas flores coloridas,
A minha mãe tem várias túnicas douradas."
"Meu pai, meu pai, não ouves
O que o Rei dos Elfos baixinho me promete?"
"Calma! Sossega, meu filho,
O vento é que murmura nas folhas secas."
"Queres, belo garoto, vir comigo?
As minhas filhas te farão a corte;
Minhas filhas conduzem a dança noturna,
E embalarão, dançarão e cantarão para adormeceres."
"Meu pai, meu pai, não vês ali
As filhas do Rei dos Elfos no local sombrio?"
"Meu filho, meu filho, eu vejo perfeitamente:
São os velhos salgueiros de cor cinzenta."
"Eu amo-te; encanta-me a tua linda figura;
E se não vieres por bem, eu usarei da força."
"Meu pai, meu pai, ele agarra-me agora!
O Rei dos Elfos machucou-me!"
O pai estremece, ele cavalga rapidamente,
Ele segura nos braços a criança gemente,
Com muito custo à fazenda ele chega.
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Nos seus braços a criança jazia morta.
Conforme é sabido, Goethe baseou sua balada em A Filha do Rei dos
Elfos, uma obra dinamarquesa traduzida para o alemão por Herder. Alerto
aqui para o fato de que o material da balada Erlkönig, proveniente de um
tesouro de contos e provérbios nórdicos, proíbe que se aproprie do caráter
pavoroso-demoníaco do acontecimento, através de tentativas de explicações
racionais de seu resultado; assim, até o pai, tão razoável, fracassou em suas
explicações dos fatos, rendendo-se finalmente à evidência de que também
ele se achava tomado de horror diante do desfecho impressionante do que
considerara simples alucinação do seu filho.
A percepção desempenha um papel importante nas obras da época
romântica. Nessa escola, era comum o uso de realidades distorcidas,
colocando em dúvida a ideia da existência de apenas uma realidade.
Um ótimo exemplo vem de Goethe, cuja obra alavancou o movimento
“Sturm und Drang” e, mais tarde, o Romantismo. Sua balada Erlkönig
apresenta um menino que acredita estar obsedado por um espírito da
floresta, o Rei dos Elfos, enquanto ele e seu pai cavalgam pela floresta à
noite. Seu pai, não vendo o Rei dos Elfos, recusa-se a ouvir os apelos da
criança; pelo contrario, dá explicações lógicas para tudo o que o menino
está a relatar. Ao final do poema, o menino está morto, mas fica a dúvida: O
Rei dos Elfos lhe tirou a vida? Ou a criança estava simplesmente febril,
sofrendo alucinação? O poema não dá resposta, mas, em vez disso, leva o
leitor a indagar: Quem afinal deve ser levado a sério, o pai ou o filho? Ou
ambos os pontos de vista são igualmente reais?
Esse tipo de questionamento vai completamente contra o Iluminismo, no
qual se buscava uma verdade única. Goethe, em vez disso, sugere, com a
sua balada Erlkönig, que várias verdades podem existir, cada uma delas
igualmente válida.
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Independente de o resultado ter sido obtido através do efeito de febre,
drogas ou doença mental, o fato é que ficou muito claro para os românticos
que havia mais modos de ver as coisas do que o habitual. Ao levarem em
conta que podia haver mais de uma forma de perceber o mundo e as pessoas
aí, essa descoberta lhes deu muito maior liberdade de pensamento do que se
estivessem querendo mostrar apenas uma interpretação “verdadeira”. De
fato, foi este questionamento sobre o papel da mente humana que
pavimentou a estrada para a psicologia moderna e suas investigações da
percepção humana.
Convém explicar qual é, a meu ver, a dificuldade técnica de se cantar o
Lied de Schubert sobre essa letra de Goethe. Quatro personagens – o
narrador, o pai, o filho e o Rei dos Elfos – todos, enfim, são cantados por
um(a) cantor(a) somente, mas a peça foi pensada para quatro cantores
diferentes. Schubert colocou cada personagem em uma extensão vocal
completamente diferente, tendo cada voz suas próprias nuances rítmicas.
Além disso, os cantores mais capazes tentam usar uma diferente cor vocal
para cada um desses personagens.
Reproduzo aqui novamente o que registrei no meu artigo mencionado
acima:
Assim, o Narrador permanece na extensão média e está no
modo menor. O Pai fica na extensão grave e canta tanto em
modo menor quanto maior. O Filho fica na região aguda, em
modo menor, representando o pavor da criança. A linha
vocal do Rei dos Elfos, no modo maior, ondula para cima e
para baixo de acordo com o acompanhamento arpejado,
resultando daí um contraste gritante. As linhas do Rei dos
Elfos — a própria representação da morte — são tipicamente
cantadas pianissimo, retratando uma persuasividade vil,
lembrando às vezes as insinuações doces de um pedófilo. Ou
seja, a dificuldade está em o(a) cantor(a) conseguir adotar
quatro vozes distintas para esses quatro personagens
envolvidos. Um quinto personagem pode ser imaginado, o
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cavalo, permanentemente sugerido nas rápidas tresquiálteras
ou tercinas tocadas pelo pianista ao longo da peça, imitando
tropel de cascos.
O Lied “Erlkönig” de Schubert é considerado um desafio de
execução para qualquer cantor, devido à caracterização vocal
exigida do(da) cantor(a) solista, bem como ao seu difícil
acompanhamento, envolvendo o toque de oitavas e acordes
repetidos rapidamente para criar o drama e urgência poética.
Cabe aqui analisar mais detidamente as possíveis razões que levaram
Goethe a praticamente ignorar seu colaborador Schubert, tido atualmente
como genial e perfeito. Sabe-se que, em 1816, Franz Schubert e seu círculo
de amigos decidiram publicar uma coleção de todas as canções que
Schubert até ali tinha composto. Joseph Spaun, que Schubert conhecia
desde seus tempos estudantis, tentou a sua sorte (e a de Schubert)
escrevendo uma carta dirigida a Goethe, o então inquestionável Mestre da
Língua Alemã, na qual falava do critério utilizado para a seleção das
canções alemãs, que consistiriam de oito volumes, todos com arranjo
musical de Schubert, informando que os dois primeiros conteriam apenas
poemas da autoria do autor da balada Erlkönig.
Parece que Goethe não se importou com essa iniciativa de Schubert,
pois Schubert não fazia parte das “afinidades eletivas de Goethe”, termo
utilizado pelo filólogo Bernhard Rudolf Abeken (1780-1866) em seu tratado
de 1810 e, mais tarde, analisado em Ensaios Reunidos: Escritos sobre
Goethe, de Walter Benjamin.
Portanto, importa ainda indagar: Por acaso existiria uma razão musical
para o Sábio de Weimar não se importar com os arranjos musicais de seus
poemas por Schubert? A resposta a essa pergunta é dada por determinada
carta de Goethe, manifestando contentamento com um compositor que
musicava seus poemas, e, ao mesmo tempo, fazendo-lhe as seguintes
referências elogiosas:
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Ele satisfaz o caráter de um tal poema, em estrofes idênticas,
o todo retornando esplendidamente de forma que se faz
sentir de novo em cada parte individual, ao passo que outros
(compositores), através da assim chamada composição ‘nãoestrófica’, destroem a impressão do todo pela ênfase nos
elementos particulares. ⁴
Quem aqui é elogiado por Goethe não é Schubert, mas o compositor
Carl Friedrich Zelter e seus Lieder simples (hoje quase completamente
esquecidos). Não admira que Goethe ⁵, assim pensando, não tenha mesmo
conseguido captar a complexidade rítmica e a harmonia sutil de um
Schubert.
Em teoria da música sobre forma musical, costuma-se dizer que o Lied é
throughcomposed (ingl.) ou durchkomponiert (ger.), sempre que ele possui
diferente música para cada estrofe. Muitos exemplos desta forma nãorepetitiva podem ser encontrados nos Lieder de Schubert. O Lied Rei dos
Elfos (Erlkönig) é um desses exemplos, no qual a composição musical
propõe um diferente arranjo para cada nova estrofe e, sempre que a peça
apresenta um novo personagem (o pai, o filho, o Rei dos Elfos ou o
narrador), retrata o respectivo registro vocal e tonalidade específicos
exigidos pelo personagem em questão.
Apesar de o compositor de Viena ter enviado as duas coleções em 1816
e 1825 a Weimar em busca de reconhecimento do poeta, este deve ter
considerado Schubert um compositor de Lied não-repetitivo (que não utiliza
a forma estrófica) e, por essa razão, elas foram postas levianamente de
parte.
Essa balada numinosa, plena de magia natural, Erlkönig, de Goethe,
apareceu em 1781. A letra da balada de Goethe foi usada por muitos
compositores em seus Lieder, sendo a versão de Franz Schubert
(1815/1821) a mais conhecida: seu Opus 1 (D. 328).
Vou-me permitir uma ligeira digressão para considerar surpreendente a
inventividade de Schubert especialmente no Lied, — gênero de música
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vocal por excelência, mas que Schubert concebeu também como de música
instrumental, dada a riqueza da sua escrita duplamente descritiva e
polifônica para o piano, — com suas descobertas de novas sonoridades,
inesperadas soluções harmônicas, modulações avançadas, dotando o piano
com um poder de descrição absolutamente inovador e com uma
expressividade até então desconhecida.
A harmonia de Schubert reflete alterações emocionais, vivenciadas quer
pelo texto quer pelo autor (passando de menor para maior, deslocando-se
magicamente para a terça respectiva, resolvendo sutilmente uma 7ª
diminuta, modulando uma estrofe final para acelerar o clímax), sendo
utilizadas também as figurações de acompanhamento para ilustrar imagens
poéticas (água em movimento, brilho de estrelas, sino de igreja). Com tais
recursos, Schubert desbravou novos caminhos para a música expressar um
texto, desde a descrição do amanhecer até arroubos de angústia.
Ao descobrir a lírica narrativa de Wilhelm Müller, poeta Biedermeier,
Schubert pôde consumar o desenvolvimento do Lied por meio do
Liederzyklus (ciclo de canções ou de Lieder). Ao musicar a produção
poética de Müller, apareceram duas obras-primas de Schubert, na forma de
ciclos de canções, consideradas praticamente sem precedentes, insuperáveis.
Elas identificam a natureza com o sofrimento humano.
O primeiro ciclo de Lieder sobre poemas de Wilhelm Müller, chamado
Die schöne Müllerin ou A bela Moleira (Op. 25 D. 795), evoca caminhadas,
o fluir das águas e o desabrochar das flores. Schubert musicou os poemas
entre maio e setembro de 1823, aos 26 anos de idade, tendo publicado esse
ciclo de Lieder em 1824. A história desse ciclo pode ser sintetizada da
seguinte forma: Há vinte canções no ciclo (cerca de metade na simples
forma estrófica) que passam do alegre otimismo ao desespero e à tragédia.
No começo do ciclo, um moleiro andarilho passeia gostosamente pela área
rural. Atinge um regato, que dá num moinho. Ele se apaixona pela bonita
filha do moleiro. Ela está fora do seu alcance por ele ser simplesmente um
viajante. Mesmo assim, ele tenta impressioná-la, mas a resposta dela parece
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ambígua. Esse jovem é logo suplantado nas afeições dela por um caçador
vestido de verde, a cor de uma fita que ele ofertou à jovem. Em sua
angústia, o andarilho é tomado por uma obsessão pela cor verde, e em
seguida por uma extravagante fantasia de morte na qual brotam flores do
túmulo dele para expressar o seu amor eterno. No final, o jovem se
desespera e se afoga no regato. A última canção do ciclo A bela Moleira é
uma balada cantada às margens do regato.
Entre os dois ciclos de canções com letra de Wilhelm Müller, isto é, em
1825-6, apareceu o Liederzyklus vom Fräulein vom See (Ciclo de Canções
da Dama do Lago), de Schubert, no qual a sua célebre Ave Maria é
chamada de Ellens dritter Gesang (Terceira Canção de Ellen), com base em
letra alemã do tradutor Philip Adam Storck para o poema narrativo de
Walter Scott, intitulado The Lady of the Lake.
Publiquei um artigo intitulado Crônica da Solenidade cívico-religiosa
do Registro civil tardio de Francisca de Paula de Jesus (Nhá Chica), no dia
10 de maio de 2011, no Blog de São João del-Rei, com os seguintes
comentários na Nota do Autor nº 15 a respeito da Ave Maria, de Schubert:
A “Ave Maria” de Schubert tem uma história que merece ser
conhecida. Franz Schubert (1797-1829) compôs essa canção
em 1825 como parte do Op. 52, sob o título ‘Sete Canções
extraídas de “A Dama do Lago” de Walter Scott’ (Sieben
Gesänge aus Walter Scotts Fräulein vom See), um “ciclo de
canções de A Dama do Lago” (Liederzyklus vom Fräulein
vom See). A canção conhecida por “Ave Maria” é chamada
“Ellens dritter Gesang” (Terceira Canção de Ellen). Não só a
música, mas também a letra das 7 canções na versão original
de Walter Scott (1771-1832), bem como a sua tradução por
Storck para a língua alemã, foram ambas publicadas em
1826 como Op. 52 de Schubert. Este foi, financeiramente,
um dos mais bem sucedidos projetos do compositor
vienense: o editor pagou-lhe 20 libras esterlinas, um belo
cachê naquela época.
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Também merece atenção a história do longo poema
narrativo, A Dama do Lago, do romancista escocês, que deu
origem ao ciclo de 7 canções de Schubert. Publicado em
1810, A Dama do Lago descreve uma disputa ficcional no
século XVI entre vários clãs do Planalto Escocês, uns leais
ao Rei Jaime V da Escócia (1512-1542), e outros não, como
o clã dos Douglas. A obra narra como a bela e jovem
heroína, Ellen Douglas, é obrigada a esconder-se, em
companhia do pai, James Douglas, numa caverna, fugindo
do rei vingativo. Aí ela canta uma canção — “Hino à
Virgem” —, uma prece à Virgem Maria por socorro. Essa
canção — a conhecida Ave Maria — ocorre no Canto 3 da
obra, estrofe 29.
Philip Adam Storck (1780-1822) traduziu-a livremente para
a língua alemã em Essen, em 1819. Essa tradução então se
tornou base para o referido ciclo de canções de Schubert,
composto em 1825 e publicado como Op. 52 em 1826. A
Ave Maria de Schubert é uma das mais populares canções no
mundo, embora seja frequentemente cantada com uma letra
diferente da original, por exemplo, em latim, ou executada
em diferentes versões instrumentais com nenhuma letra.
O segundo ciclo de Lieder sobre poemas de Wilhelm Müller, intitulado
Winterreise ou Viagem de Inverno (totalizando 24 Lieder, aparecido no
outono de 1827, um ano antes da morte do compositor), distingue-se por
uma qualidade mais intensamente romântica, universal, profundamente
trágica. Constitui uma série de reflexões feitas por um viajante de inverno
sobre temas sombrios e tristes, realçadas pela utilização de tonalidades
menores em 16 delas. A própria Natureza retratada nos poemas reflete o
estado de espírito amargurado do poeta, uma vez que são frequentes as
descrições de paisagens sombrias e geladas.
Cabe ainda mencionar neste espaço o último ciclo de Lieder de
Schubert, chamado Schwanengesang ou Canto do Cisne, título de uma
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coletânea póstuma de Lieder, sobre poemas de três poetas, sete de Ludwig
Rellstab (1799-1860), seis de Heinrich Heine (1797-1856) e um de Johann
Gabriel Seidl (1804-1875). Esse último Lied do ciclo, da autoria de Seidl,
leva o título de Taubenpost ou “Pombo-correio” e é considerado o último
que Schubert compôs em vida. Nele, o cantor declara que possui um
pombo-correio, cujo nome é Sehnsucht (Saudade). É perceptível que esse
poema tem pouco a ver com os outros poemas do ciclo, o que gerou dúvida
se o editor Haslinger o apensou ao ciclo com o objetivo de arredondar todos
os últimos Lieder restantes de Schubert, comprometendo assim a ideia de
unidade do ciclo e criando problemas de continuidade. Outros sugerem que
a intenção de Schubert era na realidade publicar os conjuntos
separadamente, como, de fato, ele, em 2 de outubro de 1828, tentou fazê-lo
oferecendo os direitos autorais sobre o conjunto de poemas de Heine a um
editor de Leipzig, conhecido como Probst. Não obstante, a maioria das
pessoas consideram a coletânea publicada por Haslinger como a versão
oficial e é como é executada normalmente.
Como explicar tudo isso, especialmente se se considerar que se
desconhece ter havido, por parte do maior compositor de Lieder, um estudo
musical formal e aprofundado, como o que tiveram outros compositores? O
que no fundo se sabe é que Schubert fora, na sua infância e adolescência,
um dos Meninos Cantores de Viena e, mais tarde, discípulo predileto de
Antonio Salieri (1750-1825), professor de música das filhas do Conde
Esterházy, bem como eterno candidato a mestre de capela, cargo com que
sempre sonhou e que nunca chegou a ocupar. Suas cartas aos amigos
evidenciam que procurou conhecer bem a sua Áustria, cuja beleza
descreveu com grande sentimento; além disso, admirava a Hungria, cujo
folclore, em versão livre, se pode apreciar nos ritmos, nas harmonias e nas
melodias de muitas obras instrumentais tardias. Aos 31 anos morreu
vitimado por uma febre tifóide e, só então, sua música foi “redescoberta”,
para tal tendo colaborado o emocionado Schumann, ao “desenterrar” a
Sinfonia em dó maior D. 944, “A Grande”, do mestre vienense. A fama de
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Schubert limitou-se por muito tempo à de um autor de Lieder, uma vez que
o corpo de sua imensa produção não havia sequer sido publicado, e muitas
obras sequer executadas até o final do século XIX.
Após essa curta digressão, é importante assinalar que sobrevivem muitos
outros arranjos musicais para a célebre balada Rei dos Elfos, a começar por
membros do círculo de Goethe, tendo citado quase todos no meu artigo
supracitado, inclusive a versão de Beethoven. Destacaram-se ali a
importante e dificílima transcrição do Lied de Schubert para piano solo, da
autoria de Franz Liszt, a orquestração do arranjo pianístico de Schubert feita
por Hector Berlioz em 1860 como acompanhamento para o solo da mezzo
soprano e, mais recentemente, uma grande toccata orquestral composta por
Hans Werner Henze em 1996, sobre um libretto que Jean Cocteau havia
escrito para ele em 1962.
Se eu tivesse que selecionar um vídeo do YouTube para ilustrar uma
apresentação sobre a balada Rei dos Elfos de Schubert, escolheria a
gravação antológica do barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau,
comumente abreviado para DFD (1925-2012), com acompanhamento do
pianista inglês Gerald Moore (1899-1987), porque o que ali se constata é
que esse duo teve a exata compreensão do Lied como “forma poéticomusical tipicamente germânica”, que Schubert consolidou no primeiro
quarto do século XIX. MARTINELLI (2012) prestou a seguinte
homenagem a DFD, por ocasião de sua morte em 18 de maio de 2012:
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, tanto os aliados
como os alemães tinham uma difícil tarefa: restabelecer uma
nova imagem para o país. Nesse processo, a arte e os
artistas desempenharam importante papel, com especial
destaque para os músicos clássicos. Entre eles, FischerDieskau alcançou alta excelência e serviu de modelo, pois,
apesar de ter integrado as tropas nazistas, sua biografia
deixava claro que não fora por livre-arbítrio.
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Logo o artista começou a firmar parcerias musicais com
importantes músicos de outras nações. Simbolicamente, esta
arte da reconciliação que Fischer-Dieskau inspirava teve
seu ponto culminante na estreia do Réquiem de Guerra, do
inglês Benjamin Britten, em 1962.
Porém, foi com o Lied que Fischer-Dieskau viria a se tornar
uma espécie de embaixador da música alemã. A partir da
inspirada parceria com o pianista inglês Gerald Moore, o
cantor aproveitou uma oportunidade única com a ascensão
da indústria fonográfica clássica, convencendo o mundo do
apelo universal dessa forma de expressão poético-musical
tipicamente germânica. Desse imenso repertório, FischerDieskau concentrou suas forças nas centenas de canções de
Schubert, gravando-as na íntegra, e em alguns ciclos, que
registrou várias vezes. Seus discos sempre obtiveram
expressivos resultados de venda.
Apesar de ter sua imagem fortemente vinculada ao Lied, o
barítono teve também uma importante carreira nos palcos
de ópera. Entre os diversos papéis que encarnou, foram
especialmente aclamados seu Hans Sachs de Os mestre
cantores de Nüremberg, de Wagner, e o papel-título de
Wozzeck, a ópera moderna de Alban Berg.
Aliás, vários foram os compositores modernos que
escreveram especialmente para a voz de Fischer-Dieskau.
Além de Britten, o cantor estreou também obras de Hans
Werner Henze, Gottfried von Einem, Witold Lutosławski e
Aribert Reimann, cujo Lear foi a última gravação em ópera
feita pelo cantor.” (grifos meus)
Conforme fiz no meu artigo supracitado, reitero aqui minha esperança
de ter deixado evidente para o leitor a presença da misteriosa balada
Erlkönig de Goethe no imaginário do mundo ocidental, desde o seu
aparecimento em 1781, — e da sua versão musical mais conhecida, o
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"Lied" de Franz Schubert de 1815/1821, — até hoje, através das diversas
gerações.
E termino este ensaio com um texto retirado de GIBBS (1995), em
minha tradução:
O poema de Goethe seduziu centenas de compositores a
fazerem arranjos, dentre eles os destacados compositores de
'Lied', tais como Reichardt, Zelter e Loewe. O arranjo
superior de Schubert é um de um conjunto das composições
mais executadas, reelaboradas e gravadas jamais compostas,
a peça é a que fez o nome de Schubert na década de 1820 e é
a mesma que continua a possuir uma atração incomum tanto
para os intérpretes quanto para os ouvintes.
IX. BIBLIOGRAFIA
BIANCOLINO, T. : A evocação de sonoridades instrumentais na escrita para
piano no ciclo Winterreise de Franz Schubert [dissertação apresentada em
cumprimento parcial às exigências para a obtenção do título de Mestre em Música
pelo Programa de Pós- Graduação em Música do Instituto de Artes da Unesp], São
Paulo, 2008, p. 4-6 da Introdução, disponível na Internet.
BRAGA, F.J.S. : “Gênio Mozart, segundo Norbert Elias”, postado no Blog do
Braga em 15 de dezembro de 2009, disponível na Internet no seguinte endereço:
http://www.bragamusician.blogspot.com.br/2009/12/genio-mozart-por-norbertelias.html
— “Erlkönig (Rei dos Elfos), de Franz Schubert”, postado no Blog do Braga em 8
de março de 2012, disponível na Internet no seguinte endereço:
http://www.bragamusician.blogspot.com.br/2012/03/erlkonig-rei-dos-elfos-porfranz.html
— “Crônica da Solenidade cívico-religiosa do Registro civil tardio de Francisca de
Paula de Jesus (Nhá Chica)”, postado no Blog de São João del-Rei em 10 de maio
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de 2011, disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.saojoaodelrei.blogspot.com.br/2011_05_01_archive.html
GIBBS, Christopher H.: "Komm, geh' mit mir: Schubert' s uncanny Erlkönig",
extraído do seu livro 19th-Century Music e publicado no JSTOR (Journal Store),
University of California Press, vol. 19, nº 2 (outono, 1995), p. 115-135.
MARTINELLI, L. : Dietrich Fischer-Dieskau (1925-2012), São Paulo: Revista
Concerto nº 185, julho de 2012, p. 26-7.
RIGOTTO, G.; SILVA, V.H.A. e SCHILLING, V. : “Tempestade e Ímpeto” –
História-Síntese da Cultura Alemã (Caderno de História, nº 16 – Memorial do Rio
Grande do Sul e Instituto Goethe), s/d, disponível na Internet no seguinte endereço:
www.memorial.rs.gov.br/cadernos/alemanha.pdf
X. NOTAS DO AUTOR
¹ Muitos dos elementos utilizados neste trabalho constituem basicamente reprodução
da palestra com o título O Lied ‘Rei dos Elfos, de Franz Schubert’ sobre poema do
ilustre poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe, que o autor proferiu na
Academia de Letras de São João del-Rei, em 29 de julho de 2012, a convite de sua
Diretoria.
² Vários subsídios para esta matéria, especialmente os referentes ao pensamento
alemão e à cultura e história germânica, foram extraídos do trabalho, citado na
bibliografia, de autoria de RIGOTTO, SILVA & SCHILLING.
³ Hans Sachs foi um intérprete do Meistersang (arte dos mestres cantores). Após ter
peregrinado pelo sul da Alemanha, regressou à sua terra natal Nüremberg, tendo se
dedicado a uma atividade literária muito produtiva. Redigiu mais de 4.000
Meisterlieder (cânticos de mestre), cerca de 1.500 Schwänke (estórias cômicas) e
mais ou menos 200 obras dramáticas. Sua produtividade surpreeende, em especial
porque, paralelamente à sua atividade artística, ele se manteve com a profissão de
sapateiro ao longo de toda a sua vida. BIANCOLINO (2008) registrou em sua
dissertação de mestrado:
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⁴ “Er trifft den Charakter eines solchen, in gleichen Strophen wiederkehrenden
Ganzen trefflich, so dass es in jedem einzelnen Theile wieder gefühlt wird, da wo
andere, durch ein sogenanntes Durchcomponieren, den Eindruck des Ganzen durch
vordringende Einzelheiten zerstören.” (Lamento que o comentário sobre Peter Franz
Schubert da autoria de Joachim Landkammer não deu maiores referências sobre essa
correspondência de Goethe, donde ele extraiu esse trecho, no lançamento da The
Naxos Deutsche Schubert-Lied-Edition 13 – Goethe Lieder Vol. 2)
⁵ BIANCOLINO (2008) registrou em sua dissertação de mestrado:
“(…) Entretanto, hoje, quando nos referimos ao Lied romântico, nos
referimos ao gênero de música vocal cristalizado nas primeiras décadas do século
XIX por compositores de língua alemã, e que tem por principal característica a
interação entre a poesia, expressa na linha vocal, e a parte do piano, que deixa de
funcionar como mero acompanhador da voz:
A essência da canção, especialmente do Lied romântico,
consiste na igualdade de música e texto, uma síntese
realizada por uma nova forma de arte advinda de dois
diferentes meios. Aqueles que falham em compreender o
significado do poema falham, do mesmo modo, em
compreender o significado da música originada dele.
(STEIN; SPILLMAN, 1996, p. 20).
(…)
O conteúdo do poema deveria, segundo o entendimento padrão do
compositor de canções do século XVIII, ser apresentado pela linha vocal sem que o
instrumento interferisse nesse processo. Em grande parte, tal fenômeno deveu-se à
concepção iluminista da música que, na verdade, corroborava a concepção vigente
desde a Antigüidade clássica, segundo a qual os sons só tinham razão de ser quando
em função da poesia. Em outras palavras, o pensamento era o de que a música
servia apenas como um suporte ao texto. A poesia, nesse sentido, era tida como a
mais nobre das artes. A predileção de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
pela canção estrófica revela o gosto vigente entre os intelectuais do século XVIII, e
é, no mínimo, irônica, considerando que muitos de seus poemas foram utilizados na
composição de obras de base de todo o gênero Lied:
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Francisco José dos Santos Braga
Para ele [Goethe], a canção ideal era basicamente silábica e
em forma estrófica, para se ajustar à dos poemas. A melodia
devia guiar-se pelos versos, sem aspirar à independência, e
não cabia ao acompanhamento chamar a atenção ou sequer
ilustrar as palavras, senão de maneira mais geral. [...] Goethe
teria considerado excessivamente musicais as canções
compostas sobre poemas seus, a começar por Schubert e
Loewe. (RUSHTON, 1991, p. 146).”
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