Folha de sala

Transcrição

Folha de sala
OS MORTOS CHEGAM SEMPRE A HORAS, são estrutural e caricaturalmente pontuais. Agamémnon
sobe orgulhoso a escadaria de Argos, deixa-se
banhar e vestir com o precioso traje que Clitemnestra teceu e cai três vezes trespassado antes de
tocar a primeira iguaria do banquete. Cassandra
calca os degraus da mansão cujos muros suam sangue e deixa que as pesadas portas se fechem nas
suas costas. Egisto não vem por desejo próprio,
mas nem por isso é menos preciso no seu mortal
encontro com Orestes. Clitemnestra, brutalmente
empurrada portas adentro, é varada pelo bronze do
filho antes de cair sobre o cadáver do seu amante
sob o olhar impiedoso de Pílades. Mas como troca
Os Mortos exigem algo, alojar-se nas dobras da
memória que nem o tempo, esse feroz destruidor,
consegue apagar. Os Mortos tornam-se Mitos e buscam uma eterna vingança.
¿Que faz Electra enquanto Orestes, no átrio do
palácio, justifica o seu coup d'état? As cativas, as
quais têm sem dúvida a sua própria agenda, estão
presentes, regozijam-se com mais este passo sangrento na horrível caminhada da família dos Átridas. ¿E Electra? ¿Por que não acorre a saudar o
irmão libertador, por que não vem nesta hora de
dúvidas e incertezas? ¿Que faz fechada no seu
quarto do gineceu? Lavínia/Clara Mannon, na última cena de Mourning Becomes Electra, de Eugene
O'Neill, dá talvez uma resposta ao encerrar-se na
mansão amaldiçoada que a mãe via como um túmulo, ao mandar aferrolhar portas e janelas para que
nem um raio de sol possa penetrar naquela casa
que agora habitará sozinha com as suas terríveis
recordações e os velhos retratos de família.
Na parede branca, quase sem janelas, de uma
enorme moradia que fica mesmo em frente à pastelaria Lutèce, perto de minha casa, em Oeiras,
alguém escreveu com spray azul um grafitti que
diz o seguinte: QUEREMOS UM TSUNAMI. Com o
vento e a chuva a tinta tem vindo a desvanecer-se
e já não tem o fulgor de há ano e tal. Já mal se vê.
Mas continuo a imaginar fascinado no que pensaria
a pessoa que o desenhou, naquele gesto meio
desastrado, meio voador, da escrita nas paredes.
JOSÉ VALENTIM LEMOS
Alunos Turma C:
Actores: Ana Rita Neves; Bartolomeu Paes; Carmen
Gonçalves; Catarina Rosa; Duarte Silva; Joana de
Verona; Joana Campos; José Redondo; Mafalda
Matos; Maria João Rêgo; Maria Mexia; Ricardo Sousa; Rita Nunes Pereira; Simão Miranda. Design de
Cena: Bárbara Pinto; Diana Lopes; Vanessa Espadinha. Produção: Bernardo Rocha; Laura Tomás;
Mónica Sousa; Nuno Santos. Dramaturgia: Andreia
Bernardo; Nuno Pontes.
Direcção da Oficina Comum:
Pedro Matos, José Espada e José Valentim Lemos
Professores de Apoio:
Elsa Braga (Voz), Howard Sonenklar (Corpo)
Imagem Polaroid do programa e do cartaz:
Laura Tomás
Proposta de intervenção sonora:
Nuno Pontes
(excertos de “Time” e de “The Great Gig in the
Sky”, Pink Floyd no álbum “The Dark Side of the
Moon”, 1973)
Interpretação ao violino:
Bartolomeu Paes
Programa de:
Pedro Azevedo e José Valentim Lemos
Agradecimentos:
Agradecemos aos funcionários do Museu Nacional
do Traje que nos prestaram a sua melhor colaboração, nomeadamente à sua Directora Dr.ª Clara Vaz
Pinto, ao Arq.º Rui Costa e a Manuela Santos.
EM PARCERIA COM
ANGELS
a partir de um excerto de
Agamémnon e de a obra As Coéforas de Ésquilo na
tradução de Manuel de Oliveira Pulquério e versão
de trabalho de José Valentim Lemos e de Mourning
Becames Electra/Electra e os Fantasmas de Eugene
O’Neill, na versão livre de Henrique Galvão
CENAS E PERSONAGENS
primeira jornada O MORTO: CLITEMNESTRA Catarina Rosa; EGISTO Simão Miranda; ORESTES Ricardo
Sousa; PÍLADES Duarte Silva; ELECTRA Joana Campos; CORIFEU Mafalda Matos; CORO Ana Rita Neves,
Joana de Verona, Maria Mexia
segunda jornada O RECONHECIMENTO: ELECTRA
Maria João Rego; ORESTES Ricardo Sousa e depois
Bartolomeu Paes; PÍLADES Duarte Silva e depois
José Redondo CORIFEU Mafalda Matos e depois Ana
Rita Neves; CORO Joana de Verona, Mafalda Matos,
Maria Mexia
terceira jornada O PLANO: ELECTRA Maria João
Rêgo; ORESTES Bartolomeu Paes; PÍLADES José
Redondo CORIFEU Ana Rita Neves; CORO Joana de
Verona, Mafalda Matos, Maria Mexia
quarta jornada O ASSASSINÍO: ORESTES Duarte
Silva e depois José Redondo; PÍLADES Ricardo Sousa
e depois Bartolomeu Paes; SERVIDOR Joana Campos; CLITEMNESTRA Catarina Rosa; CORIFEU Maria
Mexia e depois Joana de Verona; CORO Ana Rita
Neves, Mafalda Matos, Joana de Verona; AMA Rita
Aveiro; EGISTO Simão Miranda
quinta jornada OS FANTASMAS: CORIFEU: Joana de
Verona; CORO: Ana Rita Neves, Mafalda Matos,
Maria Mexia; ORESTES: José Redondo; PÍLADES:
Bartolomeu Paes; CLARA MANNON: Maria João
Rego; TOMÁS: Joana Campos
ANGELS CINCO METROS ACIMA.
A montagem de uma versão de
As Coéforas nos espaços interiores do Museu Nacional do Traje tornou-se um
desafio para os alunos de Design de Cena e de
Produção. Como lidar com espaços que não estão
estruturalmente vocacionados para a apresentação
de teatro ou com o pouco tempo e dinheiro disponíveis? As soluções têm de ser encontradas e passam, substancialmente, pelo desenvolvimento de
algumas das capacidades essenciais nestas áreas:
análise, gestão, criatividade e iniciativa. No interior do Museu do Traje evocam-se vários espaços
de acção em pouco mais de duas salas, pelo que se
estabeleceram pistas dramatúrgicas, protagonizadas por alguns elementos cenográficos e pela iluminação, que ajudam o espectador na sua leitura,
interpretação e reconhecimento. O próprio edifício do Museu serve como cristalização metafórica
do palácio dos Átridas mas aqui, contrariando a
encenação grega clássica, optamos por explorar a
possibilidade do seu interior, privilegiando uma
abordagem intimista e poética. Se a máquina do
tempo imaginada por H. G. Wells nos fosse acessível, poderíamos convidar os espectadores a deslocarem-se um ano em direcção ao passado, e a
cinco metros em direcção ao centro da terra.
Poderiam então assistir ao exercício da Oficina
Comum que, há um ano atrás, apresentou uma
versão da terceira parte da Oresteia nas inquietantes salas da cave do Museu do Traje, mesmo
por baixo de nós. As subterrâneas Erínias aguardam as acções de Orestes...
MAS NÓS INVOCAMOS OS DEUSES,
que sabem que tempestades nos
arrastam, à maneira de marinheiros tomados por um turbilhão. E,
se for de sua vontade que nós
alcancemos a salvação, dum pequeno germe
poderá sair um grande tronco. Electra em As
Coéforas, versos 200 a 204.
Em tempos de zapping, este trabalho teve como
base a criação de um entrosamento com o espaço
ancestral da tragédia clássica. Cultivar uma relação especial com esse espaço, desenvolvê-la individualmente mas sobretudo colectivamente, passou por cumprir nas aulas um roteiro de vários
estudos ou exercícios de aproximação, que permitissem aos alunos desvelar a complexidade e as
múltiplas dimensões presentes em As Coéforas.
Transcendendo naturalmente a literatura, o acto
teatral tem como mãe a necessidade e como pai a
vontade. Esta imagem de união (que sempre faz a
força) serve aqui para transmitir a consciência de
que fazer é o caminho a trilhar para poder saber
como fazer. Ou, sobretudo, que a via do actor
para chegar ao essencial reside tanto em encarar a
dificuldade do seu trabalho como em valorizar
cada uma das suas descobertas. Não desperdices
nada.
JOSÉ ESPADA
PEDRO MATOS