artigo raios 222

Transcrição

artigo raios 222
F
Í
S
I
C
A
Um ‘Einstein’ giga
Como as idéias do físico alemão
Eles são fragmentos de matéria bilhões de vezes menores que
um grão de poeira, mas podem carregar energias macroscópicas, equivalentes àquela de um tijolo arremessado à mão, com
toda força, contra um muro. Penetram a atmosfera terrestre,
vindos de todas as direções do espaço, e, ao se chocarem com
átomos que formam o ar, desencadeiam uma ‘chuveirada’ com
bilhões de partículas. Parte desses estilhaços subatômicos
chega ao solo e penetra o corpo humano à razão de dezenas por
segundo. Esses viajantes espaciais são os raios cósmicos, as
partículas mais energéticas de que se tem conhecimento. De
onde eles vêm? Que mecanismos de aceleração lhes imprimem
tamanha energia? Essas são apenas duas das muitas questões
– ainda sem resposta – que tornam a pesquisa em raios cósmicos uma das mais instigantes da atualidade.
Neste artigo, o leitor ainda terá a chance de saber como as idéias
lançadas há exatos 100 anos por Einstein ajudam a desvendar
a origem e as propriedades dessas misteriosas partículas
ultra-energéticas.
Ronald Cintra Shellard
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ)
e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Telescópio ‘olho de mosca’
(à direita), tanque detector, detalhe
das fotomultiplicadoras (acima)
e panorama da área ocupada pelo
Observatório Auger (alto, à direita)
36 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 4
F
Í
S
I
C
A
ntesco nos pampas
ajudam a estudar os raios cósmicos
FOTOS CEDIDAS PELO AUTOR
A viagem ao Observatório Pierre Auger é longa. Do Rio de Janeiro,
toma-se um avião para Buenos Aires – ou a Santiago do Chile – e outro até Mendoza, na Argentina. A sede do observatório fica em Malargüe, cidade no planalto pré-andino, a cerca de 400 km ao
sul de Mendoza. Para chegar lá, carro ou ônibus –
e carretas pesadas, quando se trata de carregar
equipamentos. É uma viagem bonita, em estradas
sem muito movimento, acompanhando a cordilheira dos Andes, com vistas espetaculares – em particular, a do vulcão Tupangato.
Malargüe é uma corruptela do nome Malal-Hué,
termo que significa ‘curral de pedra’ na língua
mapuche, falada pelos povos indígenas que habitam a região. Ao todo, pelo menos 15 horas de
viagem. Os 80 km finais da estrada vão costeando
a região onde estão sendo instalados os detectores
do observatório – 3 mil km2 de área instrumentada, equivalente a três vezes a do município do Rio
de Janeiro (figura 1). Nos últimos seis anos, tivemos duas reuniões por ano para discutir a evolução do projeto, analisar os dados produzidos e
definir as estratégicas para levantar recursos para
completar o observatório. Reuniões com cientistas
vindos de toda parte, enfrentando a longa viagem.
Já se vão quase nove anos desde que começamos
esse projeto. A colaboração Pierre Auger – em homenagem ao físico francês (1899-1993) – foi formada em uma reunião realizada na sede da Unesco
(Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura), em Paris, em novembro de 1995.
Nós, pesquisadores brasileiros, juntamo-nos a colegas argentinos nessa reunião para defender a proposta de construir a sede sul do futuro observatório
na Argentina. Concorríamos com os sul-africanos,
que traziam uma carta de apelo do então presidente
Nelson Mandela para que fosse escolhida, como
sede do observatório, uma região no oeste da África
do Sul, perto da fronteira com a Namíbia. Os argen-
tinos traziam também uma carta de seu então presidente – nome, hoje, que preferem esquecer.
A outra proposta foi feita pelos australianos,
oferecendo uma área que era uma reserva militar,
usada como campo de treinamento para bombardeiros. Evidentemente, a hipótese de que teríamos, de tempos em tempos, bombas explodindo
perto de nossos detectores eliminou imediatamente esse candidato. Era também o lugar mais longínquo para a maioria dos delegados reunidos em
Paris.
O argumento decisivo para a escolha da Argentina como sede do observatório sul foi a existência
de uma comunidade de físicos bastante grande na
Argentina e no Brasil. A decisão sobre a sede do
observatório norte, nos Estados Unidos, foi tomada
em outra reunião, seis meses depois.
Mais energéticos do universo
Desvendar um dos grandes mistérios da física
atual é a motivação da equipe de cerca de 250 físicos, de dezenas de nacionalidades, que está construindo o observatório. O mistério é a natureza
dos raios cósmicos, com as energias mais altas
que qualquer outro objeto encontrado no universo.
Raios cósmicos são bastante ubíquos – ou seja,
vêm de todas as direções do espaço –, atravessando nossos corpos o tempo todo, sem nos darmos
conta disso. São parte da radiação natural do meio
ambiente. Milhares deles atravessam qualquer
metro quadrado da superfície da Terra a cada
segundo. Mesmo dentro de edifícios, eles estão
presentes. Quando algum experimento científico
necessita ser realizado em um ambiente com
pouquíssimos raios cósmicos, tem-se que buscar
cavernas ou túneis muito profundos, de maneira
que o material acima os absorva.
a b r i l d e 2 0 0 5 • C I Ê N C I A H O J E • 37
F
Í
S
I
C
A
Os raios cósmicos que irradiam a Terra têm
energias muito variadas. Porém, quanto maior a
energia, mais raros são. Para cada fator 10 no
aumento de energia, o fluxo de raios cósmicos – ou
seja, o número deles por metro quadrado – cai por
um fator de quase mil. Os de energia mais alta já
registrados por sensores na Terra têm um fluxo de
cerca de um raio por ano em uma área de mil km2.
Portanto, para poder capturá-los, ou temos sensores
espalhados por muitos quilômetros quadrados, ou
dedicamos centenas de anos ao trabalho! Obviamente, optou-se pela primeira solução.
Os raios cósmicos de mais alta energia são geralmente denominados ultra-energéticos. Se apenas um micrograma desse tipo de matéria atingisse a Terra, o choque seria equivalente ao de um asteróide com a massa do monte Everest – o mais
alto pico do mundo – viajando a 200 mil km/h. A
energia carregada por um ultra-energético chega a
ser macroscópica, ou seja, equivalente àquela a
que estamos acostumados no dia-a-dia. E isso impressiona pelo fato de o fragmento que carrega
essa energia ser bilhões de vezes menor que um
grão de pó.
Km que viram mm
O tema de fundo desta série de artigos que a Ciência Hoje está publicando este ano é a comemoração do centenário do annus mirabilis (ano miraculoso) de Albert Einstein (1879-1955). Raios cósmicos com energias extremas têm a ver com os três
38 • CIÊNCIA HOJE • vol. 36 • nº 214
FIGURAS CEDIDAS PELO AUTOR
Figura 1. Área do município do Rio de Janeiro e regiões adjacentes
equivalente àquela que será ocupada, em Malargüe, na região de Mendoza (Argentina), por 1,6 mil detectores previstos para o Observatório
Pierre Auger – hoje, cerca de 700 deles já estão em funcionamento. Na
parte inferior da linha demarcada, está indicada a localização do Centro
Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF)
assuntos abordados por esse físico alemão em seus
trabalhos de 1905. Os raios cósmicos são partículas relativísticas, ou seja, viajam a velocidades
muito próximas à da luz (300 mil km/s, no vácuo).
No caso dos raios que são o objeto de estudo do
Auger, a energia é muito maior que a de repouso,
definida pela equação mais conhecida da física:
E = mc2, onde E é a energia, m a massa e c2 a
velocidade da luz no vácuo ao quadrado.
A razão entre a energia e mc2 (E/mc2), conhecido no vocabulário técnico como fator de Lorentz,
uma homenagem ao físico holandês Hendrik Anton
Lorentz (1860-1925), regula as transformações do
espaço-tempo – contrações espaciais e dilatações
temporais –, ou seja, mostra como dois observadores, um em movimento em relação ao outro, observariam o mesmo fenômeno e como mediriam distâncias, velocidades e intervalos de tempo. O fator
de Lorentz é conseqüência de um postulado simples – porém ousado para época – proposto por
Einstein: a velocidade da luz é constante para todos os observadores, estejam eles parados ou em
movimento.
Um astronauta viajando com o mesmo fator de
Lorentz de um raio cósmico ultra-energético veria
a Terra não como uma esfera, mas como um disco
com o raio da Terra – cerca de 6 mil km –, porém
com uma espessura de cerca de 40 mícrons (40
milésimos de milímetro), bem menos que a espessura de um fio de cabelo! Por outro lado, se estivéssemos observando o astronauta, e ele se dirigisse para Proxima Centauri (estrela mais perto do
Sol), mediríamos, a partir da Terra, em 4,24 anos
o tempo que ele levaria para chegar lá. No entanto,
o relógio do astronauta, que bate em um ritmo
muito diferente que o nosso, cronometraria sua
viagem em meio microssegundo (ou meio milésimo de segundo)!
Naves espaciais viajando a essas velocidades são
irrealizáveis, pois a quantidade de energia necessária para acelerá-la seria despropositada. Porém,
observamos o efeito da dilatação do tempo e da
contração dos comprimentos nos raios cósmicos.
Quando um raio cósmico – um próton, por exemplo – colide com um átomo da atmosfera, entre os
fragmentos da colisão encontram-se múons (‘primos’ mais pesados do elétron), que têm uma vida
muito breve, cerca de 2 microssegundos, transformando-se, depois disso, em outras partículas. Nesse tempo de vida, viajando praticamente à velocidade da luz, um múon percorre 660 metros. Como
essas colisões ocorrem a alturas muito elevadas –
20 km, 30 km ou mais –, não esperaríamos que os
múons sobrevivessem e chegassem até a superfície
da Terra. Quase todos chegam.
A explicação está no ‘relógio interno’ dos múons,
F
que está batendo em um ritmo muito mais lento
que os relógios parados na Terra. Do ponto de vista
do múon, as dezenas de quilômetros da atmosfera
estarão contraídas e serão equivalentes a alguns
mícrons apenas. Esses mesmos fenômenos são observados também nos aceleradores de partículas,
cotidianamente.
EXTRAÍDO E ADAPTADO DE THE PARTICLE EXPLOSION (OXFORD UNIVERSITY PRESS, OXFORD, 1987), DE F. CLOSE, M. MARTEN E C. SUTTON
Energia que se torna matéria
O segundo tema abordado por Einstein foi o efeito
fotoelétrico, fenômeno em que elétrons são arrancados dos átomos de um metal pelo ‘impacto’ da
luz incidente. Foi um passo revolucionário atribuir à luz um caráter corpuscular, com energia e
momento (produto da massa pela velocidade) bem
definidos. A demonstração explícita de que a luz
tinha momento – em outras palavras, que se comportava como um corpúsculo – só veio a ser realizada em 1923 pelo físico norte-americano Arthur
Compton (1892-1962). Dois anos depois, outros
experimentos confirmariam esses resultados e suplantariam as dúvidas sobre a realidade física dos
fótons, termo introduzido, em 1926, pelo físicoquímico norte-americano Gilbert Lewis (19751946), para designar as partículas de luz.
Na década de 1920, chegou-se a suspeitar que
os raios cósmicos com energias muito altas poderiam ser fótons igualmente energéticos. Porém, essa
hipótese foi logo descartada por experimentos. Hoje,
sabe-se que o universo é bastante opaco a fótons
energéticos – em contraste, o universo é transparente para os fótons de luz visível, e é isso que
permite que o brilho das estrelas chegue até nós.
No entanto, os chuveiros atmosféricos (figura 2) –
ou seja, os fragmentos da colisão de raios cósmicos
com núcleos da atmosfera – têm grande quantidade de raios gamas, nome pelo qual os fótons de
mais alta energia são conhecidos. Eles têm tanta
energia que, eventualmente, a convertem em matéria, transformando-se em um par formado por
um elétron e sua antipartícula, o pósitron.
Í
S
I
C
A
Panquecas atmosféricas
A fragmentação do raio cósmico é o efeito que o
torna passível de ser observado e toca no terceiro
tema de Einstein. A propagação de um raio cósmico
pela atmosfera pode ser entendida como o movimento browniano relativístico – no caso, a qualificação ‘relativístico’ se dá pelo fato de essa propagação ocorrer a velocidades próximas à da luz.
Einstein, em 1905, também produziu dois trabalhos sobre o movimento browniano, um fenômeno
que designa a trajetória desorganizada de partículas
diminutas suspensas em um líquido e que foi descrito em 1827 pelo botânico escocês Robert Brown
(1773-1858). Brown notou que grãos de pólen sobre
a superfície da água apresentavam um ‘ziguezague’
errático, mas não soube dar uma explicação para
isso. Mais tarde, o movimento browniano – como
ficou conhecido – seria entendido como resultado
do choque das moléculas do líquido – estas em
agitação térmica – contra as partículas suspensas.
No caso dos raios cósmicos, não está em jogo a
colisão de moléculas contra partículas macroscópicas – como foi observado por Brown –, mas sim
o caráter aleatório – ou seja, as flutuações – nas
colisões dos fragmentos do raio cósmico contra
núcleos da atmosfera.
Uma ‘panqueca’ de partículas é a imagem mais
realista para imaginar o que um raio cósmico com
as energias mais altas provoca depois de penetrar
na atmosfera. Essa panqueca vai se difundindo lateralmente e se propaga rumo à superfície praticamente à velocidade da luz. Na primeira colisão
do raio cósmico contra
um núcleo atômico de
um elemento químico
presente na composição
do ar – como nitrogênio
ou oxigênio –, criam-se
fragmentos de núcleos,
bem como novas partículas – por exemplo,
píons neutros e com Figura 2. Concepção artística de um chuveiro atmosférico. Acima, raio cósmico
que desencadeou o chuveiro. O impacto inicial gera novos núcleos atômicos (N)
e partículas subatômicas, como os píons eletricamente carregados (p+ ou p-) e píons
neutros (p0). Os primeiros de desfazem em múons (m+ ou m-) e neutrinos (n), e os
neutros em raios gama (g), que, por sua vez, podem gerar pares de elétrons (e-) e
pósitrons (e+). Esse evento também pode arrancar prótons (p) e nêutrons (n) dos
núcleos (à direita). Dependendo da energia do primário – nome que se dá
ao raio cósmico que inicia o evento –, bilhões de partículas podem ser geradas
no chuveiro (secundário), sendo que milhões dela chegam ao solo e podem
penetrar grandes camadas de matéria.
abril de 2005 • CIÊNCIA HOJE • 39
F
Í
S
I
C
A
Outro dedo de Einstein
Figura 3. Esquema e foto de um dos tanques (detectores) do Observatório Auger. Quando partículas do chuveiro que chega ao solo penetram a água (ultrapura) do tanque, elas emitem uma luz (radiação
Cherenkov), que é detectada pelos sensores (fotomultiplicadoras),
depois de ser refletida nas paredes interiores do tanque, revestidas
com um plástico especial (Tyvek). Esse sinal é enviado para um centro de controle através da antena de comunicações, que usa tecnologia semelhante à de um telefone celular. Um sistema de posicionamento global (GPS) funciona como relógio de grande precisão do
detector. A parte eletrônica do tanque é alimentada por uma bateria,
e esta por um painel solar
carga elétrica. Todos esses fragmentos carregam
muita energia e, por sua vez, vão criar novas colisões. Isso faz com que aumente substancialmente
o número de partículas em torno do que seria a
trajetória original do raio cósmico que originou
esse evento.
Os píons carregados eletricamente são as partículas responsáveis pela coesão do núcleo atômico.
Depois de serem criados, eles se desfazem em
múons e neutrinos (partículas neutras com massa
extremamente pequena e alto poder de penetração). Mas muitos desses píons sobrevivem e são
detectados na superfície da Terra. Já os píons
neutros se desfazem em fótons, que, por sua vez,
se materializam em pares elétron-pósitron.
Um raio cósmico ultra-energético pode desencadear uma panqueca contendo cerca de 10 bilhões de fragmentos, com sua energia original distribuída entre todos eles. Quando cada uma das
partículas do chuveiro atmosférico – o nome técnico que se dá à panqueca de partículas – tem
energia abaixo de um limiar, elas acabam sendo
absorvidas pela atmosfera. Em conseqüência disso,
um chuveiro cresce de intensidade até um máximo e, depois, começa a minguar. Mas, mesmo
assim, centenas de milhões de fragmentos chegam
ao solo, espalhando-se por áreas bem grandes, da
ordem de alguns quilômetros quadrados.
40 • CIÊNCIA HOJE • vol. 36 • nº 214
Portanto, a estratégia para poder medir as características de um raio cósmico é espalhar sensores por
grandes áreas, para coletar uma amostragem de
pedaços de um chuveiro e, a partir disso, reconstruir sua estrutura. Vários tipos de sensores são
usados. No caso do Auger, esses sensores são tanques de água, isto é, barris de plástico com 1,5 m
de altura e quase 3,5 m de diâmetro, contendo 12
toneladas de água pura (figura 3) – pura, no caso,
para evitar o crescimento de microrganismos no
interior dos tanques. Pode parecer um tanto surpreendente usar água para observar raios cósmicos.
Aqui, de novo, há o dedo de Einstein. O efeito
por trás disso chama-se radiação Cherenkov, homenagem ao físico russo Pavel Cherenkov (19041990), que a descobriu. Esse efeito é análogo ao
‘boom’ sônico gerado por um avião viajando a uma
velocidade maior que a do som na atmosfera. Uma
partícula de um chuveiro atmosférico está viajando a uma velocidade muito próxima à da luz no
vácuo. Quando penetra na água do tanque, ela
continua com a mesma velocidade. No entanto, a
velocidade da luz na água é muito menor – ela é
a velocidade da luz no vácuo dividida pelo índice
de refração, que, no caso da água, é 1,33. Portanto,
a velocidade da partícula cai de algo próximo a
300 mil km/s para cerca de 225 mil km/s.
A perturbação da passagem da partícula carregada pela água – o efeito Cherenkov não ocorre
com partículas neutras – gera uma frente de onda
– o chamado ‘cone sônico’ – que é convertida em
luz ultravioleta. Essa radiação ilumina as paredes
do tanque, que estão forradas por um tipo especial
de plástico que difunde a luz ultravioleta. Flutuando na água estão três fotomultiplicadoras,
sensores que têm o efeito fotoelétrico como base
de seu funcionamento e que são capazes de registrar cada fóton de luz.
A intensidade da luz Cherenkov é proporcional
ao comprimento das trajetórias das partículas carregadas atravessando a água. Fotomultiplicadoras
são instrumentos muito rápidos, fazendo uma
amostragem de luz a cada 25 nanossegundos (25
F
bilionésimos de segundo). Os tanques ‘falam’ entre
si, conferindo, a intervalos regulares, a presença
de um sinal coincidente nos tanques vizinhos.
Quando três tanques vizinhos detectam a chegada
de raios cósmicos em um intervalo da ordem de
milissegundos – este é o sinal de que chegou uma
panqueca atmosférica –, enviam todos a informação que coletaram para uma central, onde esses
dados são analisados, rotulados e armazenados.
Noites sem luar
Os fragmentos do raio cósmico dão origem a outro
efeito que tornam os chuveiros atmosféricos visíveis por um outro instrumento. As colisões desses
fragmentos com as moléculas da atmosfera geram
uma luminosidade muito semelhante àquela que
acontece nas lâmpadas fluorescentes. As moléculas do ar – e, em particular, as moléculas de nitrogênio – são excitadas pela passagem do raio cósmico – ou seja, uma parte ínfima da energia da
partícula é capturada por essas moléculas, que a
emitem de volta na forma de fótons energéticos, ou
seja, luz ultravioleta. Essa quantidade de radiação
é suficiente para ser capturada por telescópios
localizados a dezenas de quilômetros de distância
(figura 4).
Evidentemente, essa luz só pode ser vista à noite,
quando o luar não é muito intenso. De dia e em
noites de lua cheia, esse fenômeno é ofuscado pela
luz do Sol ou por aquela vinda diretamente da Lua
(luar). A poluição visual gerada pelas grandes aglomerações humanas também ofusca a emissão de
luz ultravioleta pelos raios cósmicos e, por isso,
experimentos como o Auger só podem ser realizados em lugares com atmosfera seca e pouco habitados, característica do local onde está o observatório.
Há um terceiro efeito gerado por um raio cósmico, mas que ainda não é aproveitado pelos cientistas. São as emissões da radiação pelo chuveiro
na região das ondas de rádio (faixa menos energética do espectro eletromagnético). Atualmente,
há um grande esforço, em muitos laboratórios do
mundo, para desenvolver antenas sensíveis o suficiente para fazer uma ‘radiografia’ de um raio
cósmico com energias muito altas.
Í
S
I
C
A
Radiação extraterrestre
Raios cósmicos não eram reconhecidos como cósmicos no início do século passado. A existência de
uma radiação difusa que perturbava experimentos
eletrostáticos era conhecida havia muito tempo. O
físico francês Charles Augustin Coulomb (17361806), ainda no final do século 18, notou que uma
esfera carregada, pendurada em um fio de seda
fino e longo, gradualmente perdia sua carga. A explicação mais plausível era a de que o ar não era
um isolante perfeito, e a perda de carga se dava através dele. No final do século 19, passou-se a atribuir esse efeito à radioatividade – fenômeno então
recém-descoberto – natural do meio ambiente.
A identificação extraterrestre dessa radiação foi
realizada pelo físico austríaco Victor Hess (18831964) em uma série de vôos de balões entre 1911
e 1913. Munido de aparelhos especiais (eletroscópios), mediu o nível de radiação até 5 km de altura, verificando que lá a radiação era muito maior
que no solo. Hess observou que a radiação diminuía ligeiramente até a altura de cerca de 1 km,
quando, então, começava a aumentar continuamente. Um ano antes, o físico e padre jesuíta holandês
Theodor Wulf (1868-1946) levou um único eletroscópio ao alto da Torre Eiffel (Paris), a 300 m
de altitude, e notou que a radiação era mais intensa que no solo. Mas não foi muito além em suas
conclusões.
A natureza da radiação cósmica só foi desvendada no final da década de 1920. O físico norteamericano Robert Millikan (1868-1953) defendia
a hipótese de que essa radiação era composta por
raios gama e cunhou, em 1925, a expressão ‘raios
cósmicos’ para nomeá-la. O físico holandês Jacob
Clay (1882-1995) descobriu, em 1928, que a intensidade dos raios cósmicos aumentava com a
latitude e sugeriu que eles poderiam ser cargas
elétricas defletidas por campos magnéticos. Em Figura 4. Um dos quatro telescópios do tipo ‘olhos de mosca’
empregados pelo Observatório Auger para observações em
noites sem nuvens e de luar pouco intenso. Cada ‘olho’ – atrás
de cada uma das janelas – é formado por um espelho esférico
(3,7 m de diâmetro) que converge a luz captada para 440
sensores (fotomultiplicadoras). A luz, no caso, na faixa do
ultravioleta, é uma radiação emitida por átomos dos elementos químicos da atmosfera terrestre – principalmente os de nitrogênio –, resultado da interação destes com as partículas que
formam o chuveiro extenso criado pelo impacto inicial do raio
cósmico a dezenas de km de altitude. A antena (à esquerda)
envia os sinais captados para o centro de controle do observatório. Cada ‘olho’ desse telescópio é capaz de detectar uma
lâmpada de 4 watts a 15 km de distância. Atualmente, três dos
quatro telescópios previstos já estão funcionando
abril de 2005 • CIÊNCIA HOJE • 41
F
Í
S
I
C
A
altas dos Alpes. Eles mostraram, em 1938, que havia
correlação entre os sinais de dois detectores, mesmo
quando estes estavam a vários metros de distância.
A correlação no tempo persistia mesmo quando a
distância entre eles era de 75 m. Eles rotularam
esses fenômenos como chuveiros atmosféricos extensos, nome que ainda é usado hoje.
No Brasil, em 1939, o físico ítalo-russo Gleb Wathagin (1899-1986) e os brasileiros Marcello Damy e
Paulus Pompéia (1910-1993) identificaram nos chuveiros partículas com alto poder de penetração na
matéria – hoje, sabemos que essas partículas são os múons. O estudo mais sistemático
dos chuveiros atmosféricos usando redes
de detectores em associação se iniciou logo
após o final da Segunda Guerra, com experimentos nos Estados Unidos, do físico itaAcredita-se que os raios de mais alta energia – ou seja, acima de 1020
liano Bruno Rossi (1905-1993), e na então
elétrons volts (eV) – sejam gerados por um desses dois mecanismos:
União Soviética, por Georgi Zatsepin.
a) forças eletromagnéticas intensas; b) decaimento de partículas exóticas. No primeiro caso, núcleos atômicos são impulsionados por campos
eletromagnéticos, e podem levar milhões de anos para atingir essas
energias. No segundo, ocorre o oposto: partículas hipotéticas e extremamente pesadas, supostamente relíquias da explosão que deu início ao
O estudo dos raios cósmicos abriu o camuniverso (Big Bang), se desfariam – ou decairiam, no vocabulário técnico
po das partículas elementares e gerou im– em constituintes da matéria com energia próximas aos 1020 eV.
portantes descobertas, como a dos pósiA seguir, exemplificamos alguns desses supostos mecanismos:
trons, em 1932, pelo norte-americano Carl
Anderson (1905-1991); cinco anos mais
Magnestars. Estrelas de nêutrons (partículas nucleares sem carga elétarde, a dos múons por Anderson e seu
trica) dotadas de alta rotação (cerca de mil delas por segundo) gerariam
colega Seth Neddermeyer (1907-1988); a
campos magnéticos milhões de vezes mais intensos que o terrestre e,
dos píons pela equipe do inglês Cecil Poassim, acelerariam os raios cósmicos.
well (1903-1969), em 1947, na qual teve
Choque de galáxias. Evidências experimentais indicam que galáxias
papel muito importante o brasileiro César
podem se chocar. Mecanismos subjacentes a essas colisões poderiam
Lattes (1924-2005).
gerar raios cósmicos ultra-energéticos.
Com o advento dos aceleradores de partículas, no início da década de 1950, os
Buracos negros. Esses corpos celestes, conhecidos por sugar matéria
raios cósmicos deixaram de ser o centro
e luz, também são capazes de lançar jatos altamente energéticos de made atenção no estudo das partículas. No
téria. Acredita-se que aqueles dotados de rotação e com massa bilhões de
entanto, a caracterização dos raios cósmivezes superior à do Sol poderiam ser os responsáveis pelo mecanismo de
cos prosseguiu até os dias de hoje, usando
aceleração dos raios cósmicos de mais alta energia conhecida.
uma extensa gama de sensores, de pequeExplosões de raios gama. São os fenômenos mais energéticos do
nos detectores localizados no alto de monuniverso. Geram, em segundos, massas equivalentes à do Sol. Assim,
tanhas a vôos de balão, foguetes e satélisupõe-se que tenham energia para acelerar prótons e outros núcleos até
tes, incluindo nesta lista aqueles espalhao patamar de 1020 eV.
dos por áreas extensas para estudar os
raios cósmicos de energia mais alta. As
Partículas exóticas. São, por enquanto, partículas hipotéticas. Ao
naves Voyager I e II – lançadas ao espaço
decaírem, como defendem alguns teóricos, poderiam originar raios cósmiem 1977 e que hoje estão nos limites do
cos na faixa das mais altas energias detectadas até hoje. Nessa lista, há
sistema solar – carregam a bordo detecvários candidatos, como os críptons, os vórtons e os wimpzillas.
tores de raios cósmicos.
Defeitos topológicos. Seriam diminutos volumes do espaço-tempo –
Ainda em 1934, o astrofísico alemão
um misto inseparável de altura, largura, comprimento e tempo – que não
Walter Baade (1893-1960) e o suíço Fritz
teriam ‘explodido’ juntamente com o Big Bang. Por isso, são classificados
Zwicky (1898-1974) sugeriram que sucomo ‘defeitos’ da topologia do espaço-tempo. Nesse fenômeno poderia
pernovas (explosões de estrelas maciças
estar a origem de partículas com energias de até 1025 eV.
no final da vida) seriam a fonte dos raios
cósmicos. O físico italiano Enrico Fermi
1929, eles foram observados, como trajetórias tênues, em detectores então recém-inventados, as
chamadas câmaras de nuvens, pelo russo Dmitri
Skobeltzyn (1892-1991). Logo em seguida, os alemães Walther Bothe (1891-1957) e Werner Kolhörster (1887-1946) mostraram que as trajetórias eram
curvadas quando submetidas a campos magnéticos, demonstrando definitivamente que raios cósmicos eram partículas carregadas.
O físico francês Pierre Auger (1899-1993) e seus
colaboradores posicionaram detectores em regiões
Impulsão e decaimento
Ondas de choque
42 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 4
F
(1901-1954), em 1949, propôs que a
aceleração dos raios cósmicos seria feita pelas ondas de choque magnéticas
geradas nesse tipo de explosão. Esse
mecanismo ficou conhecido como aceleração de Fermi.
Grande parte dos raios cósmicos
caindo na Terra são originados em
supernovas na Via Láctea. Essas partículas perambulam por nossa galáxia,
tendo suas trajetórias distorcidas pelos campos magnéticos até chegarem
à atmosfera terrestre. Sua composição
química e o fato de elas chegarem a
partir de todas as direções do espaço
permitem inferir características da
matéria interestelar. Porém, os raios
cósmicos com energias muito altas
provavelmente vêm de fora da galáxia, uma vez que os campos magnéticos nela não são intensos o suficiente
para distorcer suas trajetórias.
Í
S
I
C
A
Figura 5. A imagem mostra como um chuveiro é detectado na
tela de um computador no centro de controle do Observatório
Auger. Abaixo (à esquerda), vê-se a direção das partículas do
chuveiro em relação aos detectores (tanques). Também abaixo
(à direita), aparecem dados como data (21 de maio de 2004),
número de tanques (38) atingido, bem como valores aproximados para o ângulo de chegada do chuveiro em relação à
vertical (60 graus) e a energia estimada do raio cósmico que
ocasionou o evento detectado (100 EeV ou 1020 elétrons-volt)
Espaço ‘enevoado’
Os raios cósmicos trazem a memória de sua origem em sua direção de chegada. Logo depois da
descoberta da radiação cósmica de fundo (RCF) –
radiação na faixa de microondas que ‘banha’ todo
o universo e é remanescente do Big Bang, a explosão que deu início ao universo há cerca de 14
bilhões de anos –, o norte-americano Kenneth
Greisen e os soviéticos Georgi Zatsepin e Vadim
Kuzmin calcularam a influência da RCF sobre raios
cósmicos. O chamado efeito GZK – iniciais dos
sobrenomes dos três pesquisadores – mostrou que
a RCF torna o espaço ‘enevoado’ para os raios
cósmicos. Assim, aqueles com energias acima de
3 x 1019 elétrons-volt (eV) – unidade de energia
comumente usada na física de partículas, mas
insignificante se comparada com aquelas a que
estamos acostumados no cotidiano – não poderiam
se propagar com essa energia por mais que cerca
de 50 megaparsecs sem dissipar sua energia em
função dos ‘choques’ contra as partículas de luz
(fótons) da RCF. Essa distância, pequena em padrões cosmológicos, é cerca de 50 vezes aquela
que nos separa de Andrômeda (a galáxia gigante
mais próxima da Via Láctea) ou equivalente àquela que a luz, viajando a 300 mil km/s, leva cerca
de 160 milhões de anos para percorrer.
Alguns anos antes da publicação do efeito GZK,
o físico norte-americano John Linsley (1925-2002)
observou, em 1962, em uma rede de sensores
concebida por Bruno Rossi e construída em Vol-
cano Ranch, no estado norte-americano do Novo
México, um chuveiro atmosférico cuja energia
excedia o valor de 1020 eV, ou seja, acima do
limite GZK.
Natureza imbatível
Hoje, vários outros detectores, usando diferentes
técnicas, já mediram chuveiros deflagrados por
raios cósmicos cujas energias excedem 1020 eV. O
próprio Observatório Auger está entre eles (figura
5). Para se ter uma idéia, um próton com essa
energia viaja a 99,999999999999999999999% da
velocidade da luz. E mesmo o mais potente acelerador de partículas do planeta, o LHC (sigla, em
inglês, para Grande Colisor de Hádrons), ainda em
construção, na Suíça, só conseguirá gerar partículas com energias 10 milhões de vezes menores que
esses patamares. Portanto, a natureza ainda continua imbatível.
No entanto, a origem e natureza dos raios cósmicos continuam a desafiar os físicos, apesar de haver
hoje várias hipóteses sobre os mecanismos cósmicos
que os criam ou aceleram (ver ‘Impulsão e decaimento’). O Observatório Pierre Auger foi concebido
para desvendar esses mistérios. Perguntas como ‘De
onde os raios cósmicos de mais alta energia vêm?’
e ‘Que mecanismos lhes imprimem tamanha energia?’ são apenas dois exemplos de questões em aberto que fazem dessa área de pesquisa uma das mais
instigantes da ciência deste início de século.
■
SUGESTÕES
PARA LEITURA
ESCOBAR, C. O. e
SHELLARD, R. C.
‘Energias extremas
no universo’
in Ciência Hoje
no 151,
julho de 1999.
SHELLARD, R. C.
e VIEIRA, C. L.
‘O enigma das
micropartículas
com macroenergia’
(entrevista com
James Cronin,
prêmio Nobel
de Física de 1980)
in Ciência Hoje
no 124,
setembro/outubro
de 1996.
CBPF. Raios Cósmicos –
Energias Extremas
no Universo . João
dos Anjos e Ronald
Cintra Shellard
(eds.). Disponível
em www.cbpf.br/
Publicacoes em
formato pdf.
Na internet:
http://www.
comciencia.br/
reportagens/
framereport.htm
(em português)
www.auger.org
(em inglês)
www.auger.org.ar
(em espanhol)
abril de 2005 • CIÊNCIA HOJE • 43

Documentos relacionados

Raios cósmicos - Indico

Raios cósmicos - Indico • Raios cósmicos constituíam um tema muito tradicional para as pesquisas, inclusive no Brasil, com Bernhard Gross e Gleb Wataghin. • Wataghin e seus assistentes publicaram o primeiro trabalho brasi...

Leia mais

Texto de Apoio

Texto de Apoio 4. Pierre Auger e os chuveiros atmosféricos ......................................................................... 7 5. Descoberta de novas partículas ..............................................

Leia mais