artigo raios 222
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F Í S I C A Um ‘Einstein’ giga Como as idéias do físico alemão Eles são fragmentos de matéria bilhões de vezes menores que um grão de poeira, mas podem carregar energias macroscópicas, equivalentes àquela de um tijolo arremessado à mão, com toda força, contra um muro. Penetram a atmosfera terrestre, vindos de todas as direções do espaço, e, ao se chocarem com átomos que formam o ar, desencadeiam uma ‘chuveirada’ com bilhões de partículas. Parte desses estilhaços subatômicos chega ao solo e penetra o corpo humano à razão de dezenas por segundo. Esses viajantes espaciais são os raios cósmicos, as partículas mais energéticas de que se tem conhecimento. De onde eles vêm? Que mecanismos de aceleração lhes imprimem tamanha energia? Essas são apenas duas das muitas questões – ainda sem resposta – que tornam a pesquisa em raios cósmicos uma das mais instigantes da atualidade. Neste artigo, o leitor ainda terá a chance de saber como as idéias lançadas há exatos 100 anos por Einstein ajudam a desvendar a origem e as propriedades dessas misteriosas partículas ultra-energéticas. Ronald Cintra Shellard Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Telescópio ‘olho de mosca’ (à direita), tanque detector, detalhe das fotomultiplicadoras (acima) e panorama da área ocupada pelo Observatório Auger (alto, à direita) 36 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 4 F Í S I C A ntesco nos pampas ajudam a estudar os raios cósmicos FOTOS CEDIDAS PELO AUTOR A viagem ao Observatório Pierre Auger é longa. Do Rio de Janeiro, toma-se um avião para Buenos Aires – ou a Santiago do Chile – e outro até Mendoza, na Argentina. A sede do observatório fica em Malargüe, cidade no planalto pré-andino, a cerca de 400 km ao sul de Mendoza. Para chegar lá, carro ou ônibus – e carretas pesadas, quando se trata de carregar equipamentos. É uma viagem bonita, em estradas sem muito movimento, acompanhando a cordilheira dos Andes, com vistas espetaculares – em particular, a do vulcão Tupangato. Malargüe é uma corruptela do nome Malal-Hué, termo que significa ‘curral de pedra’ na língua mapuche, falada pelos povos indígenas que habitam a região. Ao todo, pelo menos 15 horas de viagem. Os 80 km finais da estrada vão costeando a região onde estão sendo instalados os detectores do observatório – 3 mil km2 de área instrumentada, equivalente a três vezes a do município do Rio de Janeiro (figura 1). Nos últimos seis anos, tivemos duas reuniões por ano para discutir a evolução do projeto, analisar os dados produzidos e definir as estratégicas para levantar recursos para completar o observatório. Reuniões com cientistas vindos de toda parte, enfrentando a longa viagem. Já se vão quase nove anos desde que começamos esse projeto. A colaboração Pierre Auger – em homenagem ao físico francês (1899-1993) – foi formada em uma reunião realizada na sede da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), em Paris, em novembro de 1995. Nós, pesquisadores brasileiros, juntamo-nos a colegas argentinos nessa reunião para defender a proposta de construir a sede sul do futuro observatório na Argentina. Concorríamos com os sul-africanos, que traziam uma carta de apelo do então presidente Nelson Mandela para que fosse escolhida, como sede do observatório, uma região no oeste da África do Sul, perto da fronteira com a Namíbia. Os argen- tinos traziam também uma carta de seu então presidente – nome, hoje, que preferem esquecer. A outra proposta foi feita pelos australianos, oferecendo uma área que era uma reserva militar, usada como campo de treinamento para bombardeiros. Evidentemente, a hipótese de que teríamos, de tempos em tempos, bombas explodindo perto de nossos detectores eliminou imediatamente esse candidato. Era também o lugar mais longínquo para a maioria dos delegados reunidos em Paris. O argumento decisivo para a escolha da Argentina como sede do observatório sul foi a existência de uma comunidade de físicos bastante grande na Argentina e no Brasil. A decisão sobre a sede do observatório norte, nos Estados Unidos, foi tomada em outra reunião, seis meses depois. Mais energéticos do universo Desvendar um dos grandes mistérios da física atual é a motivação da equipe de cerca de 250 físicos, de dezenas de nacionalidades, que está construindo o observatório. O mistério é a natureza dos raios cósmicos, com as energias mais altas que qualquer outro objeto encontrado no universo. Raios cósmicos são bastante ubíquos – ou seja, vêm de todas as direções do espaço –, atravessando nossos corpos o tempo todo, sem nos darmos conta disso. São parte da radiação natural do meio ambiente. Milhares deles atravessam qualquer metro quadrado da superfície da Terra a cada segundo. Mesmo dentro de edifícios, eles estão presentes. Quando algum experimento científico necessita ser realizado em um ambiente com pouquíssimos raios cósmicos, tem-se que buscar cavernas ou túneis muito profundos, de maneira que o material acima os absorva. a b r i l d e 2 0 0 5 • C I Ê N C I A H O J E • 37 F Í S I C A Os raios cósmicos que irradiam a Terra têm energias muito variadas. Porém, quanto maior a energia, mais raros são. Para cada fator 10 no aumento de energia, o fluxo de raios cósmicos – ou seja, o número deles por metro quadrado – cai por um fator de quase mil. Os de energia mais alta já registrados por sensores na Terra têm um fluxo de cerca de um raio por ano em uma área de mil km2. Portanto, para poder capturá-los, ou temos sensores espalhados por muitos quilômetros quadrados, ou dedicamos centenas de anos ao trabalho! Obviamente, optou-se pela primeira solução. Os raios cósmicos de mais alta energia são geralmente denominados ultra-energéticos. Se apenas um micrograma desse tipo de matéria atingisse a Terra, o choque seria equivalente ao de um asteróide com a massa do monte Everest – o mais alto pico do mundo – viajando a 200 mil km/h. A energia carregada por um ultra-energético chega a ser macroscópica, ou seja, equivalente àquela a que estamos acostumados no dia-a-dia. E isso impressiona pelo fato de o fragmento que carrega essa energia ser bilhões de vezes menor que um grão de pó. Km que viram mm O tema de fundo desta série de artigos que a Ciência Hoje está publicando este ano é a comemoração do centenário do annus mirabilis (ano miraculoso) de Albert Einstein (1879-1955). Raios cósmicos com energias extremas têm a ver com os três 38 • CIÊNCIA HOJE • vol. 36 • nº 214 FIGURAS CEDIDAS PELO AUTOR Figura 1. Área do município do Rio de Janeiro e regiões adjacentes equivalente àquela que será ocupada, em Malargüe, na região de Mendoza (Argentina), por 1,6 mil detectores previstos para o Observatório Pierre Auger – hoje, cerca de 700 deles já estão em funcionamento. Na parte inferior da linha demarcada, está indicada a localização do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) assuntos abordados por esse físico alemão em seus trabalhos de 1905. Os raios cósmicos são partículas relativísticas, ou seja, viajam a velocidades muito próximas à da luz (300 mil km/s, no vácuo). No caso dos raios que são o objeto de estudo do Auger, a energia é muito maior que a de repouso, definida pela equação mais conhecida da física: E = mc2, onde E é a energia, m a massa e c2 a velocidade da luz no vácuo ao quadrado. A razão entre a energia e mc2 (E/mc2), conhecido no vocabulário técnico como fator de Lorentz, uma homenagem ao físico holandês Hendrik Anton Lorentz (1860-1925), regula as transformações do espaço-tempo – contrações espaciais e dilatações temporais –, ou seja, mostra como dois observadores, um em movimento em relação ao outro, observariam o mesmo fenômeno e como mediriam distâncias, velocidades e intervalos de tempo. O fator de Lorentz é conseqüência de um postulado simples – porém ousado para época – proposto por Einstein: a velocidade da luz é constante para todos os observadores, estejam eles parados ou em movimento. Um astronauta viajando com o mesmo fator de Lorentz de um raio cósmico ultra-energético veria a Terra não como uma esfera, mas como um disco com o raio da Terra – cerca de 6 mil km –, porém com uma espessura de cerca de 40 mícrons (40 milésimos de milímetro), bem menos que a espessura de um fio de cabelo! Por outro lado, se estivéssemos observando o astronauta, e ele se dirigisse para Proxima Centauri (estrela mais perto do Sol), mediríamos, a partir da Terra, em 4,24 anos o tempo que ele levaria para chegar lá. No entanto, o relógio do astronauta, que bate em um ritmo muito diferente que o nosso, cronometraria sua viagem em meio microssegundo (ou meio milésimo de segundo)! Naves espaciais viajando a essas velocidades são irrealizáveis, pois a quantidade de energia necessária para acelerá-la seria despropositada. Porém, observamos o efeito da dilatação do tempo e da contração dos comprimentos nos raios cósmicos. Quando um raio cósmico – um próton, por exemplo – colide com um átomo da atmosfera, entre os fragmentos da colisão encontram-se múons (‘primos’ mais pesados do elétron), que têm uma vida muito breve, cerca de 2 microssegundos, transformando-se, depois disso, em outras partículas. Nesse tempo de vida, viajando praticamente à velocidade da luz, um múon percorre 660 metros. Como essas colisões ocorrem a alturas muito elevadas – 20 km, 30 km ou mais –, não esperaríamos que os múons sobrevivessem e chegassem até a superfície da Terra. Quase todos chegam. A explicação está no ‘relógio interno’ dos múons, F que está batendo em um ritmo muito mais lento que os relógios parados na Terra. Do ponto de vista do múon, as dezenas de quilômetros da atmosfera estarão contraídas e serão equivalentes a alguns mícrons apenas. Esses mesmos fenômenos são observados também nos aceleradores de partículas, cotidianamente. EXTRAÍDO E ADAPTADO DE THE PARTICLE EXPLOSION (OXFORD UNIVERSITY PRESS, OXFORD, 1987), DE F. CLOSE, M. MARTEN E C. SUTTON Energia que se torna matéria O segundo tema abordado por Einstein foi o efeito fotoelétrico, fenômeno em que elétrons são arrancados dos átomos de um metal pelo ‘impacto’ da luz incidente. Foi um passo revolucionário atribuir à luz um caráter corpuscular, com energia e momento (produto da massa pela velocidade) bem definidos. A demonstração explícita de que a luz tinha momento – em outras palavras, que se comportava como um corpúsculo – só veio a ser realizada em 1923 pelo físico norte-americano Arthur Compton (1892-1962). Dois anos depois, outros experimentos confirmariam esses resultados e suplantariam as dúvidas sobre a realidade física dos fótons, termo introduzido, em 1926, pelo físicoquímico norte-americano Gilbert Lewis (19751946), para designar as partículas de luz. Na década de 1920, chegou-se a suspeitar que os raios cósmicos com energias muito altas poderiam ser fótons igualmente energéticos. Porém, essa hipótese foi logo descartada por experimentos. Hoje, sabe-se que o universo é bastante opaco a fótons energéticos – em contraste, o universo é transparente para os fótons de luz visível, e é isso que permite que o brilho das estrelas chegue até nós. No entanto, os chuveiros atmosféricos (figura 2) – ou seja, os fragmentos da colisão de raios cósmicos com núcleos da atmosfera – têm grande quantidade de raios gamas, nome pelo qual os fótons de mais alta energia são conhecidos. Eles têm tanta energia que, eventualmente, a convertem em matéria, transformando-se em um par formado por um elétron e sua antipartícula, o pósitron. Í S I C A Panquecas atmosféricas A fragmentação do raio cósmico é o efeito que o torna passível de ser observado e toca no terceiro tema de Einstein. A propagação de um raio cósmico pela atmosfera pode ser entendida como o movimento browniano relativístico – no caso, a qualificação ‘relativístico’ se dá pelo fato de essa propagação ocorrer a velocidades próximas à da luz. Einstein, em 1905, também produziu dois trabalhos sobre o movimento browniano, um fenômeno que designa a trajetória desorganizada de partículas diminutas suspensas em um líquido e que foi descrito em 1827 pelo botânico escocês Robert Brown (1773-1858). Brown notou que grãos de pólen sobre a superfície da água apresentavam um ‘ziguezague’ errático, mas não soube dar uma explicação para isso. Mais tarde, o movimento browniano – como ficou conhecido – seria entendido como resultado do choque das moléculas do líquido – estas em agitação térmica – contra as partículas suspensas. No caso dos raios cósmicos, não está em jogo a colisão de moléculas contra partículas macroscópicas – como foi observado por Brown –, mas sim o caráter aleatório – ou seja, as flutuações – nas colisões dos fragmentos do raio cósmico contra núcleos da atmosfera. Uma ‘panqueca’ de partículas é a imagem mais realista para imaginar o que um raio cósmico com as energias mais altas provoca depois de penetrar na atmosfera. Essa panqueca vai se difundindo lateralmente e se propaga rumo à superfície praticamente à velocidade da luz. Na primeira colisão do raio cósmico contra um núcleo atômico de um elemento químico presente na composição do ar – como nitrogênio ou oxigênio –, criam-se fragmentos de núcleos, bem como novas partículas – por exemplo, píons neutros e com Figura 2. Concepção artística de um chuveiro atmosférico. Acima, raio cósmico que desencadeou o chuveiro. O impacto inicial gera novos núcleos atômicos (N) e partículas subatômicas, como os píons eletricamente carregados (p+ ou p-) e píons neutros (p0). Os primeiros de desfazem em múons (m+ ou m-) e neutrinos (n), e os neutros em raios gama (g), que, por sua vez, podem gerar pares de elétrons (e-) e pósitrons (e+). Esse evento também pode arrancar prótons (p) e nêutrons (n) dos núcleos (à direita). Dependendo da energia do primário – nome que se dá ao raio cósmico que inicia o evento –, bilhões de partículas podem ser geradas no chuveiro (secundário), sendo que milhões dela chegam ao solo e podem penetrar grandes camadas de matéria. abril de 2005 • CIÊNCIA HOJE • 39 F Í S I C A Outro dedo de Einstein Figura 3. Esquema e foto de um dos tanques (detectores) do Observatório Auger. Quando partículas do chuveiro que chega ao solo penetram a água (ultrapura) do tanque, elas emitem uma luz (radiação Cherenkov), que é detectada pelos sensores (fotomultiplicadoras), depois de ser refletida nas paredes interiores do tanque, revestidas com um plástico especial (Tyvek). Esse sinal é enviado para um centro de controle através da antena de comunicações, que usa tecnologia semelhante à de um telefone celular. Um sistema de posicionamento global (GPS) funciona como relógio de grande precisão do detector. A parte eletrônica do tanque é alimentada por uma bateria, e esta por um painel solar carga elétrica. Todos esses fragmentos carregam muita energia e, por sua vez, vão criar novas colisões. Isso faz com que aumente substancialmente o número de partículas em torno do que seria a trajetória original do raio cósmico que originou esse evento. Os píons carregados eletricamente são as partículas responsáveis pela coesão do núcleo atômico. Depois de serem criados, eles se desfazem em múons e neutrinos (partículas neutras com massa extremamente pequena e alto poder de penetração). Mas muitos desses píons sobrevivem e são detectados na superfície da Terra. Já os píons neutros se desfazem em fótons, que, por sua vez, se materializam em pares elétron-pósitron. Um raio cósmico ultra-energético pode desencadear uma panqueca contendo cerca de 10 bilhões de fragmentos, com sua energia original distribuída entre todos eles. Quando cada uma das partículas do chuveiro atmosférico – o nome técnico que se dá à panqueca de partículas – tem energia abaixo de um limiar, elas acabam sendo absorvidas pela atmosfera. Em conseqüência disso, um chuveiro cresce de intensidade até um máximo e, depois, começa a minguar. Mas, mesmo assim, centenas de milhões de fragmentos chegam ao solo, espalhando-se por áreas bem grandes, da ordem de alguns quilômetros quadrados. 40 • CIÊNCIA HOJE • vol. 36 • nº 214 Portanto, a estratégia para poder medir as características de um raio cósmico é espalhar sensores por grandes áreas, para coletar uma amostragem de pedaços de um chuveiro e, a partir disso, reconstruir sua estrutura. Vários tipos de sensores são usados. No caso do Auger, esses sensores são tanques de água, isto é, barris de plástico com 1,5 m de altura e quase 3,5 m de diâmetro, contendo 12 toneladas de água pura (figura 3) – pura, no caso, para evitar o crescimento de microrganismos no interior dos tanques. Pode parecer um tanto surpreendente usar água para observar raios cósmicos. Aqui, de novo, há o dedo de Einstein. O efeito por trás disso chama-se radiação Cherenkov, homenagem ao físico russo Pavel Cherenkov (19041990), que a descobriu. Esse efeito é análogo ao ‘boom’ sônico gerado por um avião viajando a uma velocidade maior que a do som na atmosfera. Uma partícula de um chuveiro atmosférico está viajando a uma velocidade muito próxima à da luz no vácuo. Quando penetra na água do tanque, ela continua com a mesma velocidade. No entanto, a velocidade da luz na água é muito menor – ela é a velocidade da luz no vácuo dividida pelo índice de refração, que, no caso da água, é 1,33. Portanto, a velocidade da partícula cai de algo próximo a 300 mil km/s para cerca de 225 mil km/s. A perturbação da passagem da partícula carregada pela água – o efeito Cherenkov não ocorre com partículas neutras – gera uma frente de onda – o chamado ‘cone sônico’ – que é convertida em luz ultravioleta. Essa radiação ilumina as paredes do tanque, que estão forradas por um tipo especial de plástico que difunde a luz ultravioleta. Flutuando na água estão três fotomultiplicadoras, sensores que têm o efeito fotoelétrico como base de seu funcionamento e que são capazes de registrar cada fóton de luz. A intensidade da luz Cherenkov é proporcional ao comprimento das trajetórias das partículas carregadas atravessando a água. Fotomultiplicadoras são instrumentos muito rápidos, fazendo uma amostragem de luz a cada 25 nanossegundos (25 F bilionésimos de segundo). Os tanques ‘falam’ entre si, conferindo, a intervalos regulares, a presença de um sinal coincidente nos tanques vizinhos. Quando três tanques vizinhos detectam a chegada de raios cósmicos em um intervalo da ordem de milissegundos – este é o sinal de que chegou uma panqueca atmosférica –, enviam todos a informação que coletaram para uma central, onde esses dados são analisados, rotulados e armazenados. Noites sem luar Os fragmentos do raio cósmico dão origem a outro efeito que tornam os chuveiros atmosféricos visíveis por um outro instrumento. As colisões desses fragmentos com as moléculas da atmosfera geram uma luminosidade muito semelhante àquela que acontece nas lâmpadas fluorescentes. As moléculas do ar – e, em particular, as moléculas de nitrogênio – são excitadas pela passagem do raio cósmico – ou seja, uma parte ínfima da energia da partícula é capturada por essas moléculas, que a emitem de volta na forma de fótons energéticos, ou seja, luz ultravioleta. Essa quantidade de radiação é suficiente para ser capturada por telescópios localizados a dezenas de quilômetros de distância (figura 4). Evidentemente, essa luz só pode ser vista à noite, quando o luar não é muito intenso. De dia e em noites de lua cheia, esse fenômeno é ofuscado pela luz do Sol ou por aquela vinda diretamente da Lua (luar). A poluição visual gerada pelas grandes aglomerações humanas também ofusca a emissão de luz ultravioleta pelos raios cósmicos e, por isso, experimentos como o Auger só podem ser realizados em lugares com atmosfera seca e pouco habitados, característica do local onde está o observatório. Há um terceiro efeito gerado por um raio cósmico, mas que ainda não é aproveitado pelos cientistas. São as emissões da radiação pelo chuveiro na região das ondas de rádio (faixa menos energética do espectro eletromagnético). Atualmente, há um grande esforço, em muitos laboratórios do mundo, para desenvolver antenas sensíveis o suficiente para fazer uma ‘radiografia’ de um raio cósmico com energias muito altas. Í S I C A Radiação extraterrestre Raios cósmicos não eram reconhecidos como cósmicos no início do século passado. A existência de uma radiação difusa que perturbava experimentos eletrostáticos era conhecida havia muito tempo. O físico francês Charles Augustin Coulomb (17361806), ainda no final do século 18, notou que uma esfera carregada, pendurada em um fio de seda fino e longo, gradualmente perdia sua carga. A explicação mais plausível era a de que o ar não era um isolante perfeito, e a perda de carga se dava através dele. No final do século 19, passou-se a atribuir esse efeito à radioatividade – fenômeno então recém-descoberto – natural do meio ambiente. A identificação extraterrestre dessa radiação foi realizada pelo físico austríaco Victor Hess (18831964) em uma série de vôos de balões entre 1911 e 1913. Munido de aparelhos especiais (eletroscópios), mediu o nível de radiação até 5 km de altura, verificando que lá a radiação era muito maior que no solo. Hess observou que a radiação diminuía ligeiramente até a altura de cerca de 1 km, quando, então, começava a aumentar continuamente. Um ano antes, o físico e padre jesuíta holandês Theodor Wulf (1868-1946) levou um único eletroscópio ao alto da Torre Eiffel (Paris), a 300 m de altitude, e notou que a radiação era mais intensa que no solo. Mas não foi muito além em suas conclusões. A natureza da radiação cósmica só foi desvendada no final da década de 1920. O físico norteamericano Robert Millikan (1868-1953) defendia a hipótese de que essa radiação era composta por raios gama e cunhou, em 1925, a expressão ‘raios cósmicos’ para nomeá-la. O físico holandês Jacob Clay (1882-1995) descobriu, em 1928, que a intensidade dos raios cósmicos aumentava com a latitude e sugeriu que eles poderiam ser cargas elétricas defletidas por campos magnéticos. Em Figura 4. Um dos quatro telescópios do tipo ‘olhos de mosca’ empregados pelo Observatório Auger para observações em noites sem nuvens e de luar pouco intenso. Cada ‘olho’ – atrás de cada uma das janelas – é formado por um espelho esférico (3,7 m de diâmetro) que converge a luz captada para 440 sensores (fotomultiplicadoras). A luz, no caso, na faixa do ultravioleta, é uma radiação emitida por átomos dos elementos químicos da atmosfera terrestre – principalmente os de nitrogênio –, resultado da interação destes com as partículas que formam o chuveiro extenso criado pelo impacto inicial do raio cósmico a dezenas de km de altitude. A antena (à esquerda) envia os sinais captados para o centro de controle do observatório. Cada ‘olho’ desse telescópio é capaz de detectar uma lâmpada de 4 watts a 15 km de distância. Atualmente, três dos quatro telescópios previstos já estão funcionando abril de 2005 • CIÊNCIA HOJE • 41 F Í S I C A altas dos Alpes. Eles mostraram, em 1938, que havia correlação entre os sinais de dois detectores, mesmo quando estes estavam a vários metros de distância. A correlação no tempo persistia mesmo quando a distância entre eles era de 75 m. Eles rotularam esses fenômenos como chuveiros atmosféricos extensos, nome que ainda é usado hoje. No Brasil, em 1939, o físico ítalo-russo Gleb Wathagin (1899-1986) e os brasileiros Marcello Damy e Paulus Pompéia (1910-1993) identificaram nos chuveiros partículas com alto poder de penetração na matéria – hoje, sabemos que essas partículas são os múons. O estudo mais sistemático dos chuveiros atmosféricos usando redes de detectores em associação se iniciou logo após o final da Segunda Guerra, com experimentos nos Estados Unidos, do físico itaAcredita-se que os raios de mais alta energia – ou seja, acima de 1020 liano Bruno Rossi (1905-1993), e na então elétrons volts (eV) – sejam gerados por um desses dois mecanismos: União Soviética, por Georgi Zatsepin. a) forças eletromagnéticas intensas; b) decaimento de partículas exóticas. No primeiro caso, núcleos atômicos são impulsionados por campos eletromagnéticos, e podem levar milhões de anos para atingir essas energias. No segundo, ocorre o oposto: partículas hipotéticas e extremamente pesadas, supostamente relíquias da explosão que deu início ao O estudo dos raios cósmicos abriu o camuniverso (Big Bang), se desfariam – ou decairiam, no vocabulário técnico po das partículas elementares e gerou im– em constituintes da matéria com energia próximas aos 1020 eV. portantes descobertas, como a dos pósiA seguir, exemplificamos alguns desses supostos mecanismos: trons, em 1932, pelo norte-americano Carl Anderson (1905-1991); cinco anos mais Magnestars. Estrelas de nêutrons (partículas nucleares sem carga elétarde, a dos múons por Anderson e seu trica) dotadas de alta rotação (cerca de mil delas por segundo) gerariam colega Seth Neddermeyer (1907-1988); a campos magnéticos milhões de vezes mais intensos que o terrestre e, dos píons pela equipe do inglês Cecil Poassim, acelerariam os raios cósmicos. well (1903-1969), em 1947, na qual teve Choque de galáxias. Evidências experimentais indicam que galáxias papel muito importante o brasileiro César podem se chocar. Mecanismos subjacentes a essas colisões poderiam Lattes (1924-2005). gerar raios cósmicos ultra-energéticos. Com o advento dos aceleradores de partículas, no início da década de 1950, os Buracos negros. Esses corpos celestes, conhecidos por sugar matéria raios cósmicos deixaram de ser o centro e luz, também são capazes de lançar jatos altamente energéticos de made atenção no estudo das partículas. No téria. Acredita-se que aqueles dotados de rotação e com massa bilhões de entanto, a caracterização dos raios cósmivezes superior à do Sol poderiam ser os responsáveis pelo mecanismo de cos prosseguiu até os dias de hoje, usando aceleração dos raios cósmicos de mais alta energia conhecida. uma extensa gama de sensores, de pequeExplosões de raios gama. São os fenômenos mais energéticos do nos detectores localizados no alto de monuniverso. Geram, em segundos, massas equivalentes à do Sol. Assim, tanhas a vôos de balão, foguetes e satélisupõe-se que tenham energia para acelerar prótons e outros núcleos até tes, incluindo nesta lista aqueles espalhao patamar de 1020 eV. dos por áreas extensas para estudar os raios cósmicos de energia mais alta. As Partículas exóticas. São, por enquanto, partículas hipotéticas. Ao naves Voyager I e II – lançadas ao espaço decaírem, como defendem alguns teóricos, poderiam originar raios cósmiem 1977 e que hoje estão nos limites do cos na faixa das mais altas energias detectadas até hoje. Nessa lista, há sistema solar – carregam a bordo detecvários candidatos, como os críptons, os vórtons e os wimpzillas. tores de raios cósmicos. Defeitos topológicos. Seriam diminutos volumes do espaço-tempo – Ainda em 1934, o astrofísico alemão um misto inseparável de altura, largura, comprimento e tempo – que não Walter Baade (1893-1960) e o suíço Fritz teriam ‘explodido’ juntamente com o Big Bang. Por isso, são classificados Zwicky (1898-1974) sugeriram que sucomo ‘defeitos’ da topologia do espaço-tempo. Nesse fenômeno poderia pernovas (explosões de estrelas maciças estar a origem de partículas com energias de até 1025 eV. no final da vida) seriam a fonte dos raios cósmicos. O físico italiano Enrico Fermi 1929, eles foram observados, como trajetórias tênues, em detectores então recém-inventados, as chamadas câmaras de nuvens, pelo russo Dmitri Skobeltzyn (1892-1991). Logo em seguida, os alemães Walther Bothe (1891-1957) e Werner Kolhörster (1887-1946) mostraram que as trajetórias eram curvadas quando submetidas a campos magnéticos, demonstrando definitivamente que raios cósmicos eram partículas carregadas. O físico francês Pierre Auger (1899-1993) e seus colaboradores posicionaram detectores em regiões Impulsão e decaimento Ondas de choque 42 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 4 F (1901-1954), em 1949, propôs que a aceleração dos raios cósmicos seria feita pelas ondas de choque magnéticas geradas nesse tipo de explosão. Esse mecanismo ficou conhecido como aceleração de Fermi. Grande parte dos raios cósmicos caindo na Terra são originados em supernovas na Via Láctea. Essas partículas perambulam por nossa galáxia, tendo suas trajetórias distorcidas pelos campos magnéticos até chegarem à atmosfera terrestre. Sua composição química e o fato de elas chegarem a partir de todas as direções do espaço permitem inferir características da matéria interestelar. Porém, os raios cósmicos com energias muito altas provavelmente vêm de fora da galáxia, uma vez que os campos magnéticos nela não são intensos o suficiente para distorcer suas trajetórias. Í S I C A Figura 5. A imagem mostra como um chuveiro é detectado na tela de um computador no centro de controle do Observatório Auger. Abaixo (à esquerda), vê-se a direção das partículas do chuveiro em relação aos detectores (tanques). Também abaixo (à direita), aparecem dados como data (21 de maio de 2004), número de tanques (38) atingido, bem como valores aproximados para o ângulo de chegada do chuveiro em relação à vertical (60 graus) e a energia estimada do raio cósmico que ocasionou o evento detectado (100 EeV ou 1020 elétrons-volt) Espaço ‘enevoado’ Os raios cósmicos trazem a memória de sua origem em sua direção de chegada. Logo depois da descoberta da radiação cósmica de fundo (RCF) – radiação na faixa de microondas que ‘banha’ todo o universo e é remanescente do Big Bang, a explosão que deu início ao universo há cerca de 14 bilhões de anos –, o norte-americano Kenneth Greisen e os soviéticos Georgi Zatsepin e Vadim Kuzmin calcularam a influência da RCF sobre raios cósmicos. O chamado efeito GZK – iniciais dos sobrenomes dos três pesquisadores – mostrou que a RCF torna o espaço ‘enevoado’ para os raios cósmicos. Assim, aqueles com energias acima de 3 x 1019 elétrons-volt (eV) – unidade de energia comumente usada na física de partículas, mas insignificante se comparada com aquelas a que estamos acostumados no cotidiano – não poderiam se propagar com essa energia por mais que cerca de 50 megaparsecs sem dissipar sua energia em função dos ‘choques’ contra as partículas de luz (fótons) da RCF. Essa distância, pequena em padrões cosmológicos, é cerca de 50 vezes aquela que nos separa de Andrômeda (a galáxia gigante mais próxima da Via Láctea) ou equivalente àquela que a luz, viajando a 300 mil km/s, leva cerca de 160 milhões de anos para percorrer. Alguns anos antes da publicação do efeito GZK, o físico norte-americano John Linsley (1925-2002) observou, em 1962, em uma rede de sensores concebida por Bruno Rossi e construída em Vol- cano Ranch, no estado norte-americano do Novo México, um chuveiro atmosférico cuja energia excedia o valor de 1020 eV, ou seja, acima do limite GZK. Natureza imbatível Hoje, vários outros detectores, usando diferentes técnicas, já mediram chuveiros deflagrados por raios cósmicos cujas energias excedem 1020 eV. O próprio Observatório Auger está entre eles (figura 5). Para se ter uma idéia, um próton com essa energia viaja a 99,999999999999999999999% da velocidade da luz. E mesmo o mais potente acelerador de partículas do planeta, o LHC (sigla, em inglês, para Grande Colisor de Hádrons), ainda em construção, na Suíça, só conseguirá gerar partículas com energias 10 milhões de vezes menores que esses patamares. Portanto, a natureza ainda continua imbatível. No entanto, a origem e natureza dos raios cósmicos continuam a desafiar os físicos, apesar de haver hoje várias hipóteses sobre os mecanismos cósmicos que os criam ou aceleram (ver ‘Impulsão e decaimento’). O Observatório Pierre Auger foi concebido para desvendar esses mistérios. Perguntas como ‘De onde os raios cósmicos de mais alta energia vêm?’ e ‘Que mecanismos lhes imprimem tamanha energia?’ são apenas dois exemplos de questões em aberto que fazem dessa área de pesquisa uma das mais instigantes da ciência deste início de século. ■ SUGESTÕES PARA LEITURA ESCOBAR, C. O. e SHELLARD, R. C. ‘Energias extremas no universo’ in Ciência Hoje no 151, julho de 1999. SHELLARD, R. C. e VIEIRA, C. L. ‘O enigma das micropartículas com macroenergia’ (entrevista com James Cronin, prêmio Nobel de Física de 1980) in Ciência Hoje no 124, setembro/outubro de 1996. CBPF. Raios Cósmicos – Energias Extremas no Universo . João dos Anjos e Ronald Cintra Shellard (eds.). Disponível em www.cbpf.br/ Publicacoes em formato pdf. Na internet: http://www. comciencia.br/ reportagens/ framereport.htm (em português) www.auger.org (em inglês) www.auger.org.ar (em espanhol) abril de 2005 • CIÊNCIA HOJE • 43
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