DO JESUÍTA PERO PAIS (1620) Ricar - Assis

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DO JESUÍTA PERO PAIS (1620) Ricar - Assis
X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
[email protected]
A CONSTRUÇÃO DO OUTRO: A REPRESENTAÇÃO DOS ETÍOPES NA OBRA “HISTÓRIA
DA ETIÓPIA” DO JESUÍTA PERO PAIS (1620)
Ricardo Sorgon Pires (Graduando – UNESP/Assis – CNPq)
RESUMO: O presente artigo visa realizar uma apresentação e uma breve análise da obra História da
Etiópia, escrita pelo jesuíta Pero Pais durante o seu período de estadia como missionário no reino cristão
da Etiópia no início do século XVII. A referida obra é uma vasta compilação que abrange diversos temas,
tais como: religiosos, culturais, históricos, dentre outros. Cabe ressaltar que o livro foi escrito com o intuito
de servir como um "manual" para o processo de "catequização" da Etiópia. A proposta central da análise
é identificar o olhar que os jesuítas, e por extensão, que uma parcela dos europeus tinham a respeito da
Etiópia no século XVII, considerando, para tanto, a representação criada por Pais, a qual partiu de seus
valores, intenções e (pré)conceitos de um homem europeu do século XVI/XVII, católico e jesuíta.
PALAVRAS-CHAVE: Etiópia; jesuítas; representação.
A formação do reino cristão da etiópia e seus contatos externos
A Etiópia é uma região muito antiga citada no Antigo Testamento, devido às suas
relações milenares com os povos do Sul da Arábia e das regiões adjacentes, dentre os quais os
hebreus1. Sabe-se que já em meados do século V a.C. se formaram as primeiras cidadesestados e posteriormente alguns reinos na região. A partir do século III a.C. a Etiópia começa a
ter uma autonomia cultural, artística e linguística, distanciando-se, assim, da influência iemita
que era então predominante 2.
O termo Etiópia, do grego Aethiophia significa rosto queimado, ou mais especificamente, o lugar onde habitam os
homens de rosto queimado. Esse termo já é citado no livro a Ilíada de Homero. Assim, o termo Etiópia é uma
definição altamente genérica e estereotipada que abrangia qualquer localização ao sul do Saara. Na Idade Média a
região da Etiópia passa por vezes, a ser sinônimo de “Índias”, outro conceito genérico que chegava a abranger
desde a atual Etiópia, até a China. Por isso, o termo Etiópia em textos como o Velho Testamento, ainda é motivo de
muitas polêmicas especialmente entre historiadores e arqueólogos com o intuito de se saber com um mínimo de
precisão de que lugar a fonte está se referindo. A esse respeito, ver dentre outros: OLIVA, Anderson Ribeiro. “Da
Aethiopia à Africa: As Idéias de África, do Medievo Europeu à Idade Moderna” In: Revista Fênix, Vol. 5, n0 4,
Out/2008. p. 1-20.
2 SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
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Todavia, em sua longa história, talvez o acontecimento mais difundidor tenha sido a
adoção do Cristianismo no século IV seguindo a versão copta (egípcia) que era monofisista*. O
Cristianismo etíope se desenvolveu de uma forma muito rica, valendo-se de um amplo
intercâmbio cultural com outros povos. Este intercâmbio possibilitou a formação de uma religião
amplamente sincrética. O cristianismo etíope apoiou-se em uma vasta literatura religiosa,
litúrgica e até “hagiográfica”, compreendendo também uma grande diversidade de mitos, lendas
e tradições, criando um universo cultural, simbólico e identitário muito característico.
É importante ressaltar que a forte presença judaica na Etiópia3 contribuiu para a
relativamente fácil adesão popular ao Cristianismo Copta no início do século IV, uma vez que na
sua forma primitiva, o mesmo surge como uma variante do Judaísmo.
Assim, o Cristianismo Copta teve ampla receptividade na Etiópia, e logo assume status
de religião oficial (ainda no século IV), visto que ela legitimava a dinastia reinante na Etiópia
assegurando a origem bíblica do imperador (negus), como descendente de Salomão e da rainha
de Sabá. Esse fato está registrado em um dos livros sagrado da Igreja Copta, o Kebra Naguest
(Glória dos reis).
A partir do século VII com o avanço dos muçulmanos no norte da África e com a
invasão do Egito em 622, a Etiópia torna-se o único país cristão da África encontrando-se quase
que totalmente isolada dos demais países cristãos, tendo algum contato apenas com os
bizantinos. Contudo, no século XV, os bizantinos, cristãos do Oriente que mantinham boas
relações com a Etiópia por serem ambos ortodoxos, são derrotados pelos otomanos em 1453,
resultando no isolamento ainda maior da Etiópia cristã, colocando-a mais ainda à mercê dos
seus vizinhos muçulmanos (CURTO, 2008, p. 52-54).
2002, p. 186-187.
* O Concílio de Calcedônia foi o quarto concílio ecumênico convocado em 451 pelo papa Leão I. Nele foi condenado
o eutiquianismo, também chamado monofisismo, que pregava que Jesus Cristo possui somente uma natureza: a
divina e carece de natureza humana. Ao final do concílio foi deliberado que Cristo possui tanto a natureza divina
como a humana e que ambas coexistem inseparavelmente em seu seio. Portanto, o Cristianismo Copta passou a
ser considerado por Roma como um culto herege.
3 Estima-se que havia uma forte presença judaica na Etiópia já no século VIII a.C. Contudo, essa é uma estimativa
aproximada, pois não há registros históricos e arqueológicos suficientes para precisar quando e em que medida o
judaísmo penetrou na região da Etiópia. Segundo a Bíblia, o judaísmo chegou à Etiópia com a conversão da rainha
de Sabá a essa religião após seu envolvimento com o rei Salomão de Israel. Ao defender que os reis cristãos
descendiam de Salomão, a Igreja Copta Etíope procurou aproximar o judaísmo do cristianismo para favorecer a
conversão dos judeus e ao mesmo tempo fornecer uma sólida legitimidade aos reis cristãos (negus). Ver: CURTO,
Pedro Mota. História dos Portugueses na Etiópia. (1490-1640). Porto: Campo Das Letras, 2008. Especialmente o
capítulo III. E também SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança... Op cit. Sobretudo os capítulos: “Axum” e
“Axum Cristão”.
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Devido a esse isolamento imposto aos etíopes, esses se fecharam sobre sua própria
sociedade agarrando-se ao que ela tinha de mais autêntica perante as demais sociedades do
Chifre da África: a sua religião cristã pregada por sua igreja ortodoxa.
Com relação ao histórico dos contatos entre Etiópia e Portugal, pode-se dizer que esse
se iniciou do desejo de ambos em realizar uma aliança cristã contra os muçulmanos. O vasto
Império Otomano nos séculos XV, XVI e XVII, por um lado, ameaçava Europa e por outro, tinha
sob seu domínio todo o norte da África. Assim, Se Portugal temia ser invadido pelo Norte da
África, a Etiópia temia ser invadida pelo Mar Vermelho ou pelo Egito4.
Desse modo, se Portugal esperava proteger-se (e talvez até atacar) dos islâmicos ao
encontrar o famigerado Reino de Preste João5 (na época associado ao Reino da Etiópia), por
seu lado, os etíopes esperavam firmar sólidas relações com outros países da Cristandade afim
de saírem de seu isolamento, e fortalecerem sua posição de “Guardiões do Cristianismo” no
continente africano. Assim, quando Pero Pais chega à Etiópia, sessenta anos após a expulsão
dos muçulmanos, havia uma forte convicção de uma próspera aliança entre Portugal e Etiópia6.
Pero pais e sua obra História da Etiópia
O jesuíta espanhol Pero Pais, que chegou à Etiópia em 1603 e lá permaneceu até sua
morte em 1622, havia sido designado pela Companhia de Jesus como o responsável pelas
atividades evangelizadoras no país, ele obteve considerável sucesso, uma vez que os jesuítas
nesse período lograram em converter muitos etíopes ao credo romano e em construir algumas
igrejas católicas. Os jesuítas discutiam em clima de “saudável rivalidade” questões teológicas em
geral, não apenas com padres e bispos da igreja etíope, mas também com integrantes da
CURTO, Pedro. História dos Portugueses... Op cit. Em especial, os capítulos V e VI.
da criação da lenda do Preste João, ver dentre outros: JÚNIOR, Hilário Franco. “A construção de uma
utopia: O Império de Preste João”. In: A Eva Barbada: Ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 1996.
6 A pesar desse clima de fraternidade entre portugueses e etíopes, esses ficaram muito receosos de permitir a vinda
de jesuítas temendo a conversão da maioria da população cristã ortodoxa (religião que legitimava a dinastia
imperial) ao catolicismo Ao fim, é permitido a vinda dos jesuítas na condição de que esses ficassem restritos a uma
área específica do reino (Fremoná) onde havia mais portugueses e seus familiares convertidos ao catolicismo,
proibindo a pregação do catolicismo ao restante da população. Contudo, essa situação irá se alterar posteriormente,
levando a uma grande expansão do catolicismo no reino, especialmente entre alguns membros da nobreza e
proprietários de terra. Para uma visão mais detalhada acerca das relações luso-etíopes e a questão religiosa, ver,
por exemplo: GIRMA, Beshah e AREGAY, Merid Wolde. The question of the union of the churches in Luso-Ethiopian
relations (1500-1632). Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar e Centro de Estudos Históricos Ultramarinos,
1964. e também CURTO, Pedro Mota. História dos Portugueses... Op cit.
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5 A respeito
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nobreza, afinal, demonstrar conhecimentos religiosos, sobretudo bíblicos, acarretava em obter
status de pessoa culta e refinada na sociedade etíope do período tratado7.
Um fato importante acerca de Pero Pais é seu sucesso em converter dois imperadores
ao catolicismo, Zá Dengel (1603-1604) e Suzênios (1606-1632). O primeiro converteu-se
unicamente por interesse, pois tentou buscar nos portugueses o apoio necessário para tomar o
poder que estava em disputa entre os herdeiros do trono. Contudo, a conversão do segundo se
dá em grande parte pela inegável habilidade de Pais como missionário, pois Suzênios apenas se
converte ao catolicismo após ver que Pais e os jesuítas convertem alguns dos mais importantes
nobres e guerreiros do reino. Além disso, Pais prometeu apoio aos portugueses, caso Suzênios
se convertesse ao catolicismo8.
Assim, Pero Pais vê na Etiópia de Suzênios o apogeu do catolicismo (em grande parte
devido a sua ação). A fé romana havia se tornado a religião oficial do reino e apresentava sinais
de expansão com o aumento das missões jesuíticas e também devido ao crescente número de
conversões, por interesse, por parte dos nobres e de seus familiares. No entanto, Pais morre
pouco depois da conversão de Suzênios (1622), não vendo, portanto, a guerra civil que irá
eclodir na Etiópia devido ao conflito entre católicos e ortodoxos9, que culminou, por fim, na
restauração da religião ortodoxa, na expulsão dos jesuítas e no rompimento de todas as relações
com qualquer país europeu até meados do século XIX.
O livro do jesuíta é um dos mais ricos relatos referente à Etiópia publicado no Brasil,
tendo sido compilado em três volumes. Cada volume contém aproximadamente 37 capítulos,
sendo que cada um aborda um aspecto diferente a respeito da Etiópia. Assim, os livros
abrangem as mais diversas temáticas. Segundo Elaine Sanceau, que prefaciou a obra de Pero
Pais: “História da Etiópia possui muito mais que história, há geografia, etnologia, teologia,
arqueologia e ciências naturais” (PAIS, 1945, p.19).
Ver: SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança... Op.cit. Capítulo intitulado: “O Reino Cristão da Etiópia”.
Ver: GIRMA, Beshah e AREGAY, Merid Wolde. The question of the union... Op cit. Capítulos IX e X.
9 Mesmo no período em que o Catolicismo manteve-se como religião oficial do Reino da Etiópia, a maioria da
população continuava fiel ao credo monofisista, sendo que a maioria dos católicos se encontravam nos arredores
das missões jesuíticas ou na capital e outros grandes centros populacionais, onde tornar-se católico garantia certos
privilégios políticos e outras facilidades devido a seu status de religião oficial. Contudo, com o início das
perseguições contra os ortodoxos após a morte de Pero Pais (1622) e sua substituição pelo intolerante jesuíta
Afonso Mendes (1625), ocorrem grandes revoltas populares contra o catolicismo, lideradas pelos membros do clero
ortodoxo que procuravam reaver seus privilégios. Houve também revoltas mais “espontâneas” e populares,
notadamente dos camponeses ortodoxos que sentiam-se agredidos culturalmente pelos jesuítas e outros católicos.
Assim, querendo acabar com o banho de sangue em seu próprio reino, Suzênios renuncia em lugar de seu filho,
restitui a religião ortodoxa e expulsa os jesuítas. Ver: SILVA, Alberto da Costa. A manilha e o libambo: A África e a
escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 594-606.
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História da Etiópia como literatura jesuítica
A obra História da Etiópia foi escrita como um autêntico exemplo de literatura jesuítica
como apontado por Fernando Torres Londoño. Para esse autor, os registros e o próprio ato de
escrever era algo fundamental para a realização do projeto jesuítico ou em suas palavras:
[...] as informações presentes nas cartas não se deviam unicamente ao espírito de controle
ou ao desejo de matar curiosidades [...] Elas seriam recolhidas e enviadas à Europa,
constituindo textos diferenciados, produzidos como parte de um projeto missionário que
estava sendo construído e para o qual o poder sempre foi uma referência fundamental. E
nessa construção da missão a escrita cumpriu um papel estratégico. (LONDOÑO, 2002, p.
13)
Assim, a escrita de cartas ou de crônicas pelos jesuítas era de uma importância capital
para a Companhia de Jesus, pois serviam comunicação entre os membros da ordem permitindo
a resolução de forma mais rápida e efetiva de eventuais problemas nas missões, bem como para
averiguar os progressos catequéticos nelas realizado.
Desse modo, a divulgação dos escritos jesuítas na Europa foi um importante meio de
fazer “propaganda” da Ordem mostrando os avanços alcançados por seu “trabalho de Deus”.
Além disso, a escrita permitia um controle da Companhia de Jesus sobre os membros dispersos,
servindo também para reconfigurar constantemente a identidade desses membros (POMPA,
2003, p. 81). Por fim, deve-se dar destaque à importância das crônicas jesuítas para a
Companhia, na medida em que um dos principais objetivos das crônicas era propor um método
de ação para os jesuítas, tendo como base as especificidades do povo sobre o qual se escrevia
nessas crônicas.
Em outras palavras, o livro de Pais foi escrito na intenção de servir como um extenso
“manual” para a Companhia, explicando detalhadamente como era configurada a sociedade
etíope especialmente no que concerne à religião e mostrando em detalhes os supostos “erros”
que os etíopes cometeram por adotarem uma forma monofisista de cristianismo.
História da Etiópia como representação
Como visto, Pais acreditava que através da compreensão das especificidades
culturais, sociais e religiosas dos etíopes, seria mais fácil para os missionários convencê-los a
aderirem à “verdadeira fé católica”. Considerando essa intenção do jesuíta de elaborar uma
“história” da Etiópia com fim catequético, é importante considerar as teorias acerca da
representação, visto que o jesuíta acaba por construir uma imagem acerca do país e do povo
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etíope.
Para tanto, considera-se relevante analisar a representação criada pelo jesuíta
procurando compreendê-la no contexto da sua criação. De acordo com Roger Chartier:
As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade
de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo
que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos
com a posição de quem os utiliza (CHARTIER, 1998, p.17). [...] Desta forma, pode pensarse uma história cultural do social que tome por objeto a compreensão das formas e dos
motivos — ou, por outras palavras, das representações do mundo social — que, à revelia
dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e
que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como
gostariam que fosse (CHARTIER, 1998, p.19).
Mediante tais concepções teóricas, é possível refletir sobre a obra de Pero Pais
buscando compreender qual a imagem da Etiópia construída pelo jesuíta e quais objetivos e
idéias embutidos nessa construção, ainda que esses não se evidenciem de forma explícita,
podendo estar diluídas nos temas tratados pelo jesuíta, nos seus comentários, ou ainda pela
observação do que não foi escrito acerca da Etiópia e seus habitantes.
A construção do outro em História da Etiópia
Um dos primeiros elementos que aparecem no livro de Pais acerca da representação
dos etíopes pode ser visto logo no título do primeiro capítulo: “Em q se trata da situação ; e de
quantos e quais sejão os Reynos e prouincias da parte d'Ethiopia, q senhorea o Emperador q
chamão Preste João”. Durante toda sua obra, Pais identifica a Etiópia como sendo o Reino de
Preste João. O jesuíta, contudo, não foi o pioneiro a fazer tal associação.
O mito do Preste João surgiu na Europa na segunda metade do século XII, no contexto
das Cruzadas, em um período de crescente dificuldade para os cristãos que começavam
progressivamente a perder suas possessões no Oriente Médio para os muçulmanos. Diante
desse quadro, começou a circular nas cortes européias uma carta enviada ao rei de Bizâncio de
um suposto rei asiático chamado Preste João, que seria um missionário cristão que se perdeu
nos confins das “Índias”, mas que consegui converter um reino inteiro ao cristianismo.
Na carta, esse rei apresentava-se como senhor de um império poderosíssimo, vasto
(mais de 72 reis vassalos), de fartura e riquezas abundantes, e repleto de animais e seres
místicos (RAMOS, 1998, p. 4-5). Evidentemente, essa carta foi uma fraude criada em um
contexto de incertezas políticas e dificuldades materiais, com o intuito de manter em alta a moral
dos cruzados em sua campanha, tendo como base o ideal cristão do messianismo adaptado, no
caso, a uma intervenção divina a favor dos cruzados, vinda por meio do Reino de Preste João
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que se aliaria a Cristandade européia e com um ataque fulminante “libertaria” Jerusalém de uma
vez por todas, eliminando os muçulmanos.
Entretanto, a localização desse reino não era nada precisa, abrangendo uma região
enorme. Somente no século XIV, após receber algumas informações de missionários sírios, é
que os europeus tomaram maior conhecimento sobre esse misterioso reino cristão, identificandoo com o Reino da Etiópia10. Cabe ressaltar que, apesar do fim das Cruzadas, a imagem de
Preste João e seu reino continuou forte na Espanha e Portugal, devido à questão da luta contra
os muçulmanos nesses países (Reconquista) se perdurar até o século XV.
Portugal lançou inúmeras expedições com a intenção precisa de alcançar esse reino e
firmar alianças para ameaçar os maometanos11. Assim, quando os primeiros jesuítas chegaram
à Etiópia (1557), eles ainda criam que haviam alcançado as terras de Preste João, mesmo
considerando as circunstâncias em que se deram as relações luso-etíopes12.
Ou seja, mesmo após um razoável período de relações efetivas entre os portugueses e
os etíopes em que ficou claro que o reino Cristão da Etiópia não era nem de perto a Terra da
Fartura, tão pouco uma inabalável potência militar, o mito, de certa forma, continuou presente no
imaginário, sobretudo português, mesmo após a constatação de como era “realmente” esse
reino africano.
Um exemplo dessa permanência é que a referência ao soberano da Etiópia como
Preste João em Portugal, perdura até meados do século XVIII. Contudo, tal permanência, após o
fracasso dos jesuítas na Etiópia (1632), não significava que havia crença nesse mito, mas sim
algo resultante de uma permanência na memória coletiva após séculos de crença nessa lenda.13
É interessante notar que principalmente a partir do século XIV há todo um esforço europeu em construir uma
suposta ancestralidade negra cristã com o objetivo de aproximar a Etiópia da Europa ao menos simbolicamente,
com o intuito de transmitir aos europeus a idéia de que a Etiópia sempre esteve presente na história do cristianismo.
Por exemplo, nesse período começa-se a divulgar que um dos Reis Magos, Baltazar, era etíope, passando a ser
retratado como negro; enfatiza-se a “conversão” da Etiópia ocorrida a partir de Filipe, narrada em Atos dos
Apóstolos (At. 8: 26-40); dentre outras. Ver: PINTO, Tânia. A construção de uma ancestralidade negra cristã e o
culto aos santos católicos entre negros de Salvador no século XVIII. Salvador: UFBA, 200_?
11 A esse respeito, ver: READER, Jonh. “In search of Prester John”. In. Africa: A biography of the continent. London:
Hamish Hamilton, 1997.
12 A efetivação das relações Luso-Etíopes se deu após o bem sucedido auxílio português ao pedido desesperado do
negus cujo reino estava sendo inapelavelmente dominado pelos somalis e outras tribos muçulmanas. Ver dentre
outros: PAIS (1945, capítulos 31 ao 36); SILVA (2002, p. 582-594) e GIRMA, Beshah e AREGAY, Merid Wolde
(1964, capítulos V ao VIII).
13 É importante frisar que a visão da Etiópia como a Terra de Preste João, sempre foi ambígua. Historicamente,
havia por um lado, uma Etiópia amaldiçoada por Cam, cujos habitantes seriam monstruosos devido ao clima árido, e
por outro lado, havia a partir do século XII, uma “Etiópia Ocidental” (asiática) onde se localizava o Reino fantástico
de Preste João. Após o fracasso das missões jesuíticas na Etiópia, a visão desta, como sendo a terra de Preste
João, passa a ser desacreditada, havendo a ambiguidade: idealização do mito versus realidade etíope. A Etiópia
que negou o “verdadeiro cristianismo” (católico) não tinha mais nada a oferecer à cristandade européia, sendo vista
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Assim, apesar de Pais associar, ao longo de sua obra, o negus etíope ao Preste João,
isso não comprova que o jesuíta acreditava em tal lenda apenas por estar usando uma
terminologia comum em sua época. Afinal, Pais, afirma constantemente em seu livro que está
fazendo uma obra “verídica”, embasada em “depoimentos idôneos”, e realmente, a grande
contribuição de sua obra para o conhecimento sobre a Etiópia, é devido ao seu distanciamento
para com a narrativa do frade Luiz de Urreta, seu predecessor, que constrói uma imagem da
Etiópia totalmente idealizada e utópica, associada ao mito do Preste João (RAMOS, 1998, p.11).
Entretanto, o que se propõe nesse artigo é demonstrar que apesar dessa grande
diferença da narrativa de Urreta para a de Pais (a propósito, o próprio Pais em sua obra
constantemente usa trechos do livro de Urreta, apontando seus enganos, exageros e até
mentiras), o segundo, por vezes, não consegue desvencilhar-se totalmente de uma narração que
atribua certas características míticas à Etiópia. Uma das melhores passagens do livro de Pais
que exprime essa ambiguidade é a seguinte:
Quasi todas as terras, q senhorea o Preste João, tem bons ares, são muy temperadas e
sadias, tanto q há muitos homens de cem annos muito bem dispostos, e ainda vi alguns de
cento e vinte e de cento e trinta com boas forças. Contudo há alguas terras baixas, onde
faz grandes calmas no fim do verão quando começa a chouer há nellas m.tas doenças e
morre gente ; pello q aly ordinariamente morão em lugares altos, mas por m.tas calma q
faça, se poe à sombra, achão fresco. Tambem há terras muito frias, como no Reyno de
Begmêder, em a Prouincia de Oagrâ; e sobretudo na Prouincia q chamão Çemên, q he
frigidíssima (PAIS, 1945, p. 208).
De acordo com a citação, ao descrever os etíopes como extremamente longevos,
chegando alguns a cento e trinta anos, é possível identificar no discurso do jesuíta a
permanência de um elemento mítico relacionado ao reino de Preste João. Segundo RAMOS
(1998, p.4) “[...] a sua vida [do Preste João] era milagrosamente prolongada graças ao poder da
água de uma fonte no centro de seu palácio”.
Desse modo, o que se pode perceber é que houve uma mutabilidade do mito “original”,
segundo o qual apenas o soberano era quase imortal por seu passado místico (como
descendente do rei mago Baltazar), e por possuir uma “fonte da juventude”. Essa versão sofreu
alterações ao longo do tempo e espaço, como podemos observar no discurso de Pais que afirma
que a grande longevidade está presente também em parte da população comum do reino,
devido, neste caso, à grande fertilidade do solo e ao bom clima.
a partir de então apenas como um reino quase gentil como os demais africanos. O mito, des de meados do século
XVII, passava a ser apenas fragmentos de uma memória esvaziada. Segundo RAMOS (1998, p.13), “[...] o
estereótipo popular do uso do título “Preste João” para designar o imperador cristão da Etiópia, são manifestações
desse esvaziamento memorial”
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Segundo o mito medieval, as Terras de Preste João eram agraciadas pela imensa
fartura de alimentos decorrente da grande fertilidade de seu solo, uma vez que a localização
desse reino era, por vezes, associada ao local onde há tempos se localizava o Jardim do Éden.
Todavia, ao invés de generalizar tal descrição para toda a Etiópia, Pais no mesmo parágrafo,
demonstra que (ao contrário do que afirma o mito) nesse reino há também terras menos férteis
onde há proliferação de doenças mortais, bem como de terras gélidas que, portanto, são pobres
em termos agrícolas.
Assim, é possível perceber que se por um lado Pais se preocupa em fazer uma
descrição objetiva da Etiópia, fugindo às construções míticas e utópicas relacionadas ao mito
medieval, por vezes, o jesuíta não consegue desvencilhar-se plenamente da forte influência que
teve esse mito quando descreve o Reino da Etiópia a partir de alguns elementos maravilhosos,
que ainda perduram na visão de mundo do jesuíta. A passagem analisada é emblemática nesse
sentido, pois permite averiguar tal ambiguidade em um mesmo parágrafo.
Conclusão
Primeiramente, é importante afirmar que a temática abordada nesse artigo permanece
envolta ainda em uma série de controvérsias, uma vez que esse assunto foi trabalhado no Brasil
somente de forma muito pontual, muitas vezes em artigos cujo foco central é a Idade Média
européia, ou mesmo a religiosidade cristã em terras brasileiras, não havendo nenhuma
dissertação ou tese específica sobre o assunto.
Desse modo, um dos objetivos centrais desse trabalho foi procurar demonstrar as
potencialidades em termos de pesquisa contidas na obra História da Etiópia de Pero Pais, a qual
nunca foi o objeto central de análise em trabalhos acadêmicos no Brasil. Buscou-se defender
que com a análise da obra de Pais é possível recuperar valiosas informações - ainda que
fragmentárias - de diversos aspectos culturais, políticos, sociais, dentre outros, que vistos em
conjunto auxiliam na compreensão da riqueza cultural do povo africano – no caso com destaque
para o reino etíope - e sua influência na cultura de outros povos.
Vale lembrar que a influência desse reino africano se fez sentir nos mais variados
locais. Desde os povos da região do Chifre da África, onde se encontra a Etiópia, passando pela
Europa com todo o seu histórico de visões construídas sobre o continente africano e a Etiópia
desde os gregos antigos, até a lenda de Preste João, e chegando até mesmo na América e no
Brasil, como demonstrado no belo artigo de Anderson Oliveira e Tânia Pinto.
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Ademais, o livro do jesuíta é muito fértil como fonte de pesquisa acerca da mentalidade
e das visões de mundo européia medieval e renascentista, de estudos sobre as Grandes
Navegações portuguesas, e até mesmo sobre a história da Igreja Católica.
Já com relação à análise da obra proposta nesse artigo, foi possível constatar que
apesar da permanência de alguns elementos míticos na obra de Pero Pais, reflexo de um longo
processo de construção de visões estereotipadas na Europa, o jesuíta inova em seu livro quando
comparado a outros que o precederam, como Frei Luiz Urreta, ao propor uma “história” da
Etiópia desvinculada da visão utópica e repleta de elementos maravilhosos, buscando, na
medida do possível, uma descrição mais “realista” e desmistificada dos etíopes.
Apesar de alguns percalços, considerando a época em que a obra foi escrita, o jesuíta
obteve considerável sucesso por seu profundo conhecimento da língua etíope (amárico), e por
seu objetivo em fazer uma história da Etiópia mais palpável, que pudesse realmente auxiliar no
conhecimento desse povo, tendo em vista o público alvo principal de Pais, ou seja, os demais
membros da Companhia de Jesus, que por meio de seu livro poderiam levar adiante seu projeto
missionário no “lendário” reino cristão de terras africanas, sempre visto pelos europeus ora como
um povo demoníaco, ora como utópico, mas nunca como simplesmente diferente.
Referências bibliográficas
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