companhia de jesus ontem, hoje, amanhã
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companhia de jesus ontem, hoje, amanhã
COMPANHIA DE JESUS ONTEM, HOJE, AMANHÃ Colecção MANRESA Autoconhecimento e Discernimento Cristão Domingos Terra, S.J. Espiritualidade Inaciana – 1ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. Deus e o Homem segundo Santo Inácio – 2ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA. VV. Jesus Cristo na Espiritualidade Inaciana – 3ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. A Trindade na Espiritualidade Inaciana – 4ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. Exercícios Espirituais de Libertação Pessoal José Alves Martins, S.J. Ordenar a Vida – Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola Dário Pedroso, S.J. Manual do Peregrino – Caminhando com os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola António Vaz Pinto, S.I. São Francisco Xavier – 450 Anos da sua morte (1552-2002) – 5ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo – 6ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. Companhia de Jesus – Ontem, Hoje, Amanhã – 7ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. VII Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana COMPANHIA DE JESUS ONTEM, HOJE, AMANHÃ Editorial A. O. – Braga Capa: Paginação: Impressão e Acabamentos: JoeFox. brand consultants Editorial A. O. – Braga Tipografia Tadinense – Braga Depósito Legal nº ISBN 978-972-39-0704-9 Outubro de 2008 Com todas as licenças necessárias © SECRETARIADO NACIONAL DO APOSTOLADO DA ORAÇÃO Largo das Teresinhas, 5 – 4714-504 BRAGA Tel.: 253 201 220 * Fax: 253 201 221 [email protected]; www.apostoladodaoracao.pt SESSÃO DE ABERTURA A. da Costa Silva, S.J. Com uma saudação amiga de boas vindas, vamos iniciar a VII Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana, encerrando desta forma e neste Santuário de Fátima as celebrações dos 450 anos da morte de Santo Inácio de Loyola e dos 500 anos do nascimento de S. Francisco Xavier e do Beato Pedro Fabro. Por caminhos e projectos pessoais, encontraram-se um dia em Paris, no Colégio de Santa Bárbara, iniciando, sem o saberem, um projecto comum que terminaria no nascimento da Companhia de Jesus. Vêm da «di-versidade» de mundos parciais para a «uni-versidade» (universo) do mundo cultural do tempo. Fabro traz o mundo rural e bucólico da Saboia à procura do saber; Xavier traz de Navarra a tradição académica do tio, o Doutor Navarro, em busca da fama; Inácio traz o mundo dos ideais purificados por uma experiência espiritual, em busca dos conhecimentos que lhe permitam dedicar a vida à salvação das almas. Vêm os três do particular para os horizontes do universal. A celebração do jubileu dos três primeiros jesuítas conduz-nos ao «Ontem» que a presente semana de estudos pretende aprofundar no «hoje» e prolongá-lo no «amanhã». Daqui o tema «Companhia de Jesus – Ontem, Hoje, Amanhã». No seu ontem encontramos as marcas genéticas que nos permitem perceber melhor não só a identidade da Companhia de Jesus, mas também o «onde» ela se vive como corpo apostólico e o «para quê» da sua existência histórica. 6 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Não foi fácil o nascimento da Companhia de Jesus como Inácio e companheiros a desejaram, a julgar pelas forças empenhadas em abortar a criança ainda a nascer. Basta lembrar as resistências à sua aprovação em Roma e as hostilidades vindas de Espanha a que se associa a França com o decreto da Sorbonne de 1549, declarando-a «danosa em matéria de fé, perturbadora da paz da Igreja (...), apta mais para destruir do que para edificar», ao ponto do Papa Paulo IV lhe ter imposto o Ofício Divino como forma de a reconduzir ao espírito e à vivência da vida religiosa do tempo, o que faria dela, de facto, um aborto à nascença. Seria mais uma ordem religiosa na Igreja, mas não a ordem nova para os tempos novos, também eles a nascer. Nascendo, como nasceu, na fronteira do mundo medieval chegado ao fim e o humanismo renascentista a impor-se, a Companhia de Jesus é vista como «subversiva e perigosa». Não lhe faltarão tempestades no seu percurso histórico. Amada por uns, odiada por outros, «morta» em 1773 pelo Breve «Dominus ac Redemptor» de Clemente XIV para ser «ressuscitada» em 1814 por Pio VII, desta vez pelo Breve «Solicitudo omnium Ecclesiarum», recomeçou, desde então, o seu caminho, sempre na crista da onda. Não foi fácil o seu nascimento porque nasceu diferente. Nascendo sem a recitação pública do Ofício Divino, ausência de penitências corporais, de hábito como forma de vestir e de clausura (a sua casa será o mundo e não o convento), está a ameaçar os pilares em que assentava a vida religiosa do tempo, pelo menos na perspectiva de Melchor Cano que não se cansará de a acusar disto mesmo, enquanto o P. Nadal, por sua vez, não se cansará de repetir «Não somos monges» sempre que via indícios de aproximação a práticas mais próprias da vida monacal. A Companhia de Jesus nasce noutro e para outro paradigma. Sessão de Abertura 7 Nasce primeiro como «missão» em consequência do voto de Montmartre, naquele memorável dia 15 de Agosto de 1534 em que Inácio e companheiros se consagraram a Deus em pobreza e virgindade, fazendo voto de se dedicarem à salvação das almas, e, só depois como «corpo», cinco anos mais tarde, na Deliberação de 1539. Sabemos da história deste voto e da chamada Cláusula Papal nele incluída, que os acontecimentos transformaram no 4º Voto de Obediência ao Papa acerca das Missões, a que Santo Inácio chamará «nosso princípio e principal fundamento». Os primeiros companheiros buscavam em Montmartre uma missão particular em Jerusalém, Deus, porém, conduzi-los-ia à missão universal da Igreja, a todo o mundo, entre fiéis e infiéis, aonde o Papa os quisesse enviar. Dum grupo de amigos nasce um corpo apostólico. Bobadilha, já com 80 anos de idade, aquando do 55º Aniversário do voto de Montmartre, em carta de 11 de Agosto de 1589 ao Geral Cláudio Aquaviva, escreverá: «Recordo (...) como nesse dia, festa da Gloriosa Senhora, nós, os primeiros Padres da Companhia de Jesus, no monte dos Mártires, perto de Paris, fizemos voto de peregrinar a Jerusalém e como a Divina Providência (...) mudou este voto num melhor e mais proveitoso, no peregrinar ao estado religioso». A Companhia de Jesus nasce, pois, como um «Corpo para a Missão». Entendamos, contudo, a sua novidade. Não nasce corpo à busca duma missão, mas missão à busca dum corpo. Este é consequência daquela, é por causa daquela. Como tal é «instrumento e serviço». O seu modo de ser e proceder encontram aqui a sua explicação. Mas nasce, simultaneamente, em missão. Quando aprovada a 27 de Setembro de 1540 por Paulo III, nas Letras Apostólicas «Regimini militantis Ecclesiae», para só falar dos três primeiros 8 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã companheiros, já S. Francisco Xavier partira em missão a caminho do Oriente, enquanto Pedro Fabro partia uma semana depois da sua aprovação para os Colóquios entre católicos e protestantes na Alemanha; Inácio ficará definitivamente em Roma a cuidar do corpo e a levar a cabo a elaboração das constituições como missão recebida dos companheiros. A Companhia de Jesus nasce como corpo na dispersão. «Repartidos pela vinha do Senhor», escreverá Inácio na 7ª parte das mesmas constituições. O «Corpo para a Missão» assumirá, por isso, a estrutura concreta dum «Corpo na Dispersão». Corpo e missão transformam-se desta forma em dois pólos de permanente tensão na vida da Companhia de Jesus. A missão exige-lhe dispersão enquanto o corpo exige coesão; a missão leva sentido centrífugo, o corpo necessita sentido centrípeto. Santo Inácio está consciente desta realidade ao escrever: «Quanto mais difícil é a união dos membros desta congregação entre si e com a cabeça, dada a dispersão pelas diversas partes do mundo entre fiéis e infiéis, tanto mais necessário é procurar todos os meios para a obter» (Const. 655). A citação é tirada do começo da 8ª parte das Constituições cujo título é: «Meios de unir com a cabeça e entre si aqueles que estão dispersos». A 7ª parte das Constituições configura o corpo a partir dum duplo princípio: o princípio da flexibilidade na sua adaptação «às circunstâncias de pessoas, tempo e lugar» e o princípio da mobilidade estrutural para que possa «discorrer pelas diversas partes do mundo». A Companhia de Jesus quer ser corpo para ser missão e sabe que quanto mais corpo for, mais missão será. A «união dos corações» da 8ª parte das Constituições aparece, pois, como contraponto à mobilidade estrutural da 7ª parte, introduzindo uma especificidade na forma como este corpo é corpo. A coesão do corpo Sessão de Abertura 9 não nasce da «unidade», na visão de Inácio (nunca usa a palavra comunidade = unidade comum) mas da «comunhão» (= união comum), ou seja, da «interior lei da caridade e amor que o Espírito Santo escreve e imprime nos corações» (Proémio das Const. 134). «Amigos no Senhor» será a expressão clássica da linguagem jesuíta. União na dispersão. O que os une não é a geografia, mas o coração; não é o estar juntos mas o estar unidos. «Companhia de Jesus – Hoje e Amanhã». A Companhia de Jesus conta, actualmente, com perto de 20.000 membros espalhados pelos cinco continentes. Fiel ao legado recebido do seu Ontem, quer continuar «dispersa mas unida» como «Corpo para a Missão». Este é o legado que deseja partilhar com os seus amigos aqui presentes. No próximo Domingo, dia 3 de Dezembro, festa litúrgica de S. Francisco Xavier, encerraremos simultaneamente a VII Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana e as Celebrações do jubileu dos três primeiros jesuítas com a Eucaristia a que presidirá o P. Nuno da Silva Gonçalves, Provincial da Província Portuguesa da Companhia de Jesus. Terminaremos assim em acção de graças. Queria finalizar estas minhas palavras de abertura com um sentimento agradecido a Inácio de Loiola pelo corpo apostólico que hoje somos, a Pedro Fabro que ao morrer em Roma a caminho do Concílio de Trento nos leva para dentro da Igreja e da sua problemática, e a Francisco Xavier que às portas da China nos deixa com o olhar no Futuro que está no Amanhã. Deus queira que saibamos entrar nele. INÁCIO DE LOIOLA E A COMPANHIA DE JESUS: A COMPANHIA DE JESUS EM TEMPO DE MUDANÇA António Vaz Pinto, S.J. Esclarecimento prévio Este título é ambíguo: poderia querer significar a Companhia de Jesus, hoje, em tempo de mudança, mas a nota escrita que me foi enviada pelos organizadores esclarece que se pretende visar o ontem do nascimento da Companhia referente a Santo Inácio, nos tempos de mudança que então se viviam… Um segundo esclarecimento prévio parece-me conveniente: como o próprio Santo Inácio repetidamente afirma nos seus escritos, o autor e fundador da Companhia é o próprio Jesus que a quis fundar, através de Inácio de Loiola e dos seus primeiros companheiros, o grupo inicial dos 7 de Paris, entre os quais avultam Inácio, Pedro Fabro e Francisco, que neste encontro da SEEI felizmente recordamos e celebramos. Vamos a isso… 1. Inácio de Loiola – O contexto familiar e pessoal Quando em 1491, no País Basco, nasce o décimo terceiro e último filho dos Senhores de Loiola, Iñigo, nada fazia prever que iria ser santo e que, apesar da sua pequena estatura física, viria a ser uma das maiores figuras da história da Igreja e até da humanidade… 12 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Inácio – assim se passou, mais tarde, a chamar a si próprio, por devoção ao grande Inácio de Antioquia e por ser um «nome» mais universal – enraizado no seu tempo e no seu meio, brota de uma família nobre, valente e por vezes violenta, localmente poderosa mas com ligações importantes de parentesco e amizade com os grandes do mundo do seu tempo. Experiência de contacto e de relação que mais tarde, embora não já com objectivos de carreira e de «poder», virá também a ser preciosa… Dizia alguém, a propósito dos nobres do «século do oiro» espanhol: «homens com uma fé de apóstolos e os sete pecados capitais»… Era o caso de Inácio de Loiola, já então com uma fé inabalável, como mostram as circunstâncias do cerco de Pamplona, perigo de morte e convalescença na casa paterna, mas orientado pelos interesses e valores de um nobre cavaleiro do final da Idade Média, que ressoam fortemente na parábola do Rei Temporal dos Exercícios Espirituais: lealdade, fidelidade, honra, grandes ideais, coragem até ao fim… O resto, como ele próprio dita ao seu secretário P. L. Gonçalves da Câmara, «até aos 26 anos de idade, foi homem dado às vaidades do mundo e principalmente deleitava-se no exercício de armas com um grande e vão desejo de ganhar honra». Tudo isto, primeiro em Loiola e arredores, mas sobretudo em Arévalo, ao serviço de Juan Velásquez de Cuéllar, Contador-mor (Ministro das Finanças) de Castela e membro do Conselho Real de Fernando, o Católico. Mais tarde, serve o seu parente António Manrique de Lara, duque de Nájera e Vice-Rei de Navarra. Foram pelo menos 11-13 anos de educação informal, de contactos, de aventuras, conflitos e mulheres, de corte... Como dizia o P. Polanco, seu confidente, «embora fosse aficionado à fé, não vivia nada conforme a ela, nem se guardava de pecados, A Companhia de Jesus em tempo de mudança 13 antes era especialmente travesso em jogos e em coisas de mulheres e em revoltas e coisas de armas». Era este o nosso homem, baixo, corajoso, bom negociador, activo e simultaneamente reflexivo, cheio de pecados, desejos e sonhos que vai «aterrar» no cerco de Pamplona. Em 1521, dá-se o «feliz desastre» de Pamplona: a sua coragem e determinação, a sua capacidade de liderança não são suficientes para salvar a praça de Pamplona, sitiada pelos atacantes, entre os quais estavam presentes os irmãos de Francisco de Xavier… Derrota, graves ferimentos físicos, uma das pernas coxa para sempre, perigo de morte. É levado aos ombros, em liteira, até Loiola, a casa paterna, pelos inimigos… Belos tempos!… Em Loiola, perigo de vida, perna estendida, imobilidade forçada, convalescença longa. Sonhos, recordações, tédio, o tempo que custa a passar, a impressão de inutilidade… E então, para passar o tempo, porque não havia nada de melhor, a leitura difícil, depois ávida e empenhada dos dois livros que constituíam a biblioteca daquela casa, nobre e rica: «a Vida de Cristo» e a «Vida dos Santos». É a silenciosa revolução interior, o combate dos espíritos, as angústias e hesitações, o «casulo», onde o verme vai ganhar asas... a – De Loiola a Jerusalém – de cavaleiro a peregrino Finalmente, a água do baptismo começa a florir, um novo horizonte se rasga, uma nova paixão e um novo ideal surgem: Jesus Cristo. Jesus Cristo é agora o seu novo Senhor, o seu amor, sem hesitações, sem medos, sem «meias-tintas», radicalmente. Conhecê-Lo, amá-Lo, segui-Lo, é o novo sentido da sua vida. 14 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Neste momento de viragem, a que se segue a velada de armas em Montserrat, o envergar o traje de mendigo, Inácio de Loiola é apenas o peregrino, só e a pé, em direcção a Jerusalém, porque em Jerusalém viveu, morreu e ressuscitou Jesus Cristo. Nada mais o ocupa ou preocupa: oração, penitência, austeridade, seguimento de Jesus, um simples «eremita itinerante»… Religioso convencional? Padre? Fundador de uma ordem religiosa? Se o interrogássemos ao sair de Loiola ou mesmo depois de Manresa – os nove meses que constituíram o seu Pentecostes – provavelmente rir-se-ia de nós ou mal compreenderia a pergunta… Esse Deus que entra abruptamente na vida de Inácio, que Se lhe revela como o único Absoluto feito homem e carne, com um rosto e um nome, Jesus Cristo, uma vez descoberto e encontrado, marca-o para sempre. Concretizemos. Quem é nesta altura Inácio de Loiola? Depois da conversão de Loiola, da confissão geral, velada de armas e mudança de traje em Montserrat e depois das profundas e dramáticas experiências interiores em Manresa, incluindo a chamada «exímia ilustração», junto ao rio Cardoner, Inácio de Loiola é já um outro homem. Com jejuns e penitências corporais contínuas, sete horas de oração, confissão e comunhão frequentes, pedindo esmola para comer, tomando notas, num pequeno livro, das suas luzes e experiências, ocupando-se ainda em «ajudar algumas almas que ali o vinham procurar» (RP n. 26 ), Inácio de Loiola é já um homem novo, pobre, apaixonado por Cristo e desejoso de peregrinar a Jerusalém, muito longe ainda de saber qual será o destino da peregrinação da sua vida….. Estes inesperados meses na cova de Manresa, quase um ano, com os seus três períodos, de paz e alegria, de lutas interiores e A Companhia de Jesus em tempo de mudança 15 escrúpulos e, finalmente, de extraordinárias iluminações e ilustrações, são o grande momento interior da sua vida, contendo seminalmente quer os futuros Exercícios Espirituais, quer a própria Companhia de Jesus… Como ele próprio afirma, «neste tempo Deus tratava-o da mesma maneira que um mestre-escola trata um menino, ensinando-o» (RP. 28). O cavaleiro que serve o Rei terreno, torna-se assim o peregrino que busca o Rei eterno… b – De Jerusalém a Paris – de peregrino a estudante Não cabe, nesta conferência, refazer em pormenor todo este período de estudos e amadurecimento espiritual de Inácio de Loiola. Relembremos apenas os tópicos essenciais: Em 1523, chega a Jerusalém; em 1525, está de regresso a Barcelona estudando «Gramática»; em 1526, parte para Alcalá, estudar «Artes», donde sai para Salamanca, em princípio de Julho; em meados de Setembro de 1527, sai de Salamanca e, passando por Barcelona, dirige-se a Paris, onde entra em Fevereiro de 1528, para estudar latim, no Colégio de Montaigu. Em Paris, em Setembro de 1529, muda-se para o Colégio de Santa Bárbara, onde conhece e se torna amigo de Pedro Fabro e Francisco de Javier. Ao nível de estudos, em Paris, consegue o grau de bacharel em Artes, em 1532, a licenciatura em 1533, é mestre em Artes, em 1534. No dia 15 de Agosto do mesmo ano de 1534, já com os primeiros companheiros, faz os chamados «Votos de Montmartre». 16 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Mais do que este percurso exterior e académico, importa-nos acompanhar o percurso interior. Que se passou, que se foi passando, na mente e no coração de Inácio de Loiola? Profundamente tocado pela graça e transformado pelo Espírito, impedido de permanecer na Terra Santa, o novo Inácio, de costas voltadas para o passado, tem que viver e que deitar contas à vida. Que vou fazer? Ou melhor, que quer Deus que eu faça? Confiante, disponível, aberto, querendo seguir e servir o Senhor Jesus Cristo, Inácio não sabe ainda o que Deus quer de si no futuro, mas já vai sabendo o que Deus quer dele no presente: o seguimento de Jesus e o «ajudar as almas», partilhando com os outros a profunda e riquíssima experiência de Deus que o próprio Deus lhe fez viver e que facilmente Inácio intui que não era só para si… Este longo período que vai desde Jerusalém, 1523, até aos votos de Montmartre em 1534, 11 anos, é pois um período tacteante, de maturação, polarizado no seguimento de Jesus, em Igreja, e na ajuda ao próximo. Os próprios estudos, empreendidos já com tanta idade, dolorosamente, não são para Inácio uma «carreira docente»; são apenas e só um «instrumento», a conceptualização da sua própria experiência de encontro com Deus e a condição imposta pela Igreja, para «poder ajudar as almas». Neste longo tempo de estudo e de peregrinação, além dos locais acima citados, esteve ainda na Flandres, na Inglaterra, em Loiola, sua terra natal, não contando com as suas travessias da Itália, na ida e vinda de Jerusalém – peregrinações estas sempre «só e a pé» e sem dinheiro – neste longo tempo, dizia, Inácio foi amadurecendo e Deus foi-o amadurecendo… A Companhia de Jesus em tempo de mudança 17 Importante também neste período e amadurecimento, foram as suspeitas, calúnias e perseguições que quase sempre o acompanhavam. Calúnias e suspeitas das pessoas que saíam prejudicadas pelas profundas mudanças que através de Inácio se operavam; e, talvez mais graves e sérias, as desconfianças e acusações surgidas no seio de uma Igreja desconfiada e receosa, que tinha a Inquisição a funcionar e que naqueles que eram piedosos e menos ortodoxos no seu viver, buscava a nova «seita» dos «alumbrados», os iluminados… Na autobiografia e no seu estilo seco e despojado, Santo Inácio conta-nos este lastro de difamações e perseguições, prisões e julgamentos que o vai acompanhando e o vai fazendo mudar de cidade – Alcalá – Salamanca – até aportar em Paris. Experiência dolorosa mas purificadora, que o vai consolidando na confiança em Deus e libertando de vanglória e de preocupações do sucesso, experiência assumida e integrada que irá ser um veio permanente na dinâmica dos Exercícios Espirituais. Mas a sua vida não era só oração, estudo e peregrinações; progressivamente, a outra vertente, a ajuda aos outros, apesar da teologia não estar ainda terminada, vai-se consolidando e aperfeiçoando. Na verdade, esta ajuda ao próximo, para lá do testemunho pessoal que atraía e impressionava, vai-se concretizando em três linhas principais, diferentes mas complementares: a conversa ou trato pessoal com os outros, a prática de dar Exercícios Espirituais (EE), ainda rudimentares e em forma incipiente, e, finalmente, a procura de amigos e companheiros que o quisessem seguir no seguimento de Jesus. Deixando de lado a conversa ou «trato de gentes» (em que Inácio se vai tornando exímio, ele que nunca será grande pregador…) os EE e a procura de companheiros merecem uma especial referência. 18 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Dizem os principais biógrafos que Inácio começou a elaborar e a escrever o futuro livro dos EE durante ou depois da experiência de Manresa. Tem toda a lógica: é a grande experiência espiritual da sua vida, ele tem o hábito de reflectir e de escrever e as luzes que recebe, que vão da Trindade à Eucaristia, passando pela Incarnação, não se podem perder… Por outro lado, quer a sua experiência passada de vida mundana e de pecado, quer as suas novas experiências depois da conversão, de despojamento, oração, peregrinação, humilhações, confiança, etc., vão podendo ser sistematizadas e integradas nessa proposta completa e integral de peregrinação cristã que constitui os EE e que a partir dessa objectivação pode ser oferecida, proposta aos outros… O livro dos EE não foi nem podia ser um livro que ele tivesse escrito num momento feliz de inspiração… Foi antes um livro que ele foi escrevendo ao longo da sua vida, ensaiando, experimentando, completando, desde o «esboço» inicial de Manresa, até à aprovação final e papal, como documento oficialmente aprovado pela Igreja, em 1547, já depois de aprovada a Companhia e na ponta final da sua vida… Este livrinho que se vai completando e estruturando, sem pressas, torna-se o privilegiado instrumento para levar os outros até Deus e simultaneamente para fazer companheiros, para construir uma comunidade cristã, embora ainda informe, sem estrutura. Falhadas, por vários motivos, as suas tentativas de constituir uma pequena comunidade cristã, coesa, homogénea, estável, em Alcalá e em Salamanca, é finalmente em Paris, com estudantes universitários de várias nações e origens, que o milagre acontece... Primeiro Fabro, depois Javier, em breve mais 4, entre os quais o nosso Simão Rodrigues, o núcleo original dos 7 fundadores da Companhia, a que não tardam a juntar-se vários outros... A Companhia de Jesus em tempo de mudança 19 Por esta altura, em Paris, ainda não há Companhia de Jesus… Mas está a nascer… Do grupo inicial, só Pedro Fabro era sacerdote. Todos estão a acabar os seus estudos. Quando terminarem, o que irão fazer? Dispersar-se? Regressar cada um à sua terra ou encetar novo caminho? Manter-se unidos? O grupo já estava coeso e unido, a amizade em torno de Inácio tinha-os tornado «amigos no Senhor». A decisão surge clara para cada um: «ir a Veneza e a Jerusalém e ali gastar a sua vida em proveito das almas; e se não conseguissem autorização para permanecer em Jerusalém, voltariam para Roma e apresentar-se-iam ao Vigário de Cristo para que os empregasse onde considerasse que seria maior glória de Deus e proveito das almas. Determinaram também que esperariam um ano a embarcação em Veneza e que se naquele ano não saíssem naves para levante, ficariam livres do voto de Jerusalém e se apresentariam ao Papa» (R.P. 85). São as próprias palavras de Inácio, na Autobiografia. Tendo feito também, cada um, o voto de castidade e de pobreza, fizeram este voto de irem para Jerusalém e, caso não fosse possível, em alternativa, de se oferecerem ao Papa, como Vigário de Cristo – é o chamado «Voto de Montmartre», feito com grande consolação diante de Cristo sacramentado na missa celebrada por Pedro Fabro, na Festa da Assunção de Nossa Senhora, a 15 de Agosto de 1534, na capela da Igreja de Montmartre. Este grupo internacional de cristãos universitários, estudantes de teologia e preparando-se para o sacerdócio, ainda não é uma ordem religiosa: não está estruturado, nem tem regra, não tem líder institucional, nem está reconhecido pela Igreja. No entanto, o voto de Montmartre é um momento chave na génese da Companhia, esta nova ordem que está a nascer. 20 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã c – De Paris a Roma – de estudante a homem da Igreja Jerusalém mostra-se inviável devido à ruptura entre Veneza e os Turcos que impossibilita as viagens. Encontram-se em Veneza, onde Inácio, vindo da terra natal, já os espera. São ordenados sacerdotes e antes de seguir para Roma, a alternativa prevista em Montmartre, rezam e deliberam, durante 40 dias; dividem-se depois por grupos, começam a pregar e decidem tomar o nome de Companhia de Jesus, «visto que não tinham cabeça nenhuma entre si, nem outro prepósito a não ser Jesus Cristo, a quem unicamente desejavam servir, parecendo-lhes que deveriam tomar o nome daquele que tinham por cabeça» (FN I, 204). Com esta decisão de permanecerem juntos, de tomarem nome, de começarem a pregar, a fazer apostolado, e de se irem oferecer ao Papa, nasceu, de facto, embora ainda não juridicamente, a Companhia de Jesus. Finalmente, em finais de Outubro de 1537, a caminho de Roma. E neste caminho, a cerca de 16 km de Roma, sentiu Inácio «uma grande mudança na sua alma e viu claramente que Deus Pai o punha com o seu Filho, parecendo-lhe ver Cristo carregando com a cruz e junto a Ele o Pai eterno que Lhe dizia: quero que tomes a este por teu servidor. E Jesus mesmo o tomava e lhe dizia: quero que tu Nos sirvas» (RP, 96). E ainda: «Em Roma vos serei propício» (FN II, 133). É a famosa «visão de la Storta», o grande «selo místico» confirmativo, recebido por Inácio e transmitido aos companheiros. Em Roma onde, como em Veneza, são de novo caluniados e absolvidos, os companheiros saltam de casa em casa, até se instalarem, finalmente, em 1541, numa casa perto de Santa Maria da Estrada, continuando sempre a assistência a pobres a doentes e a catequese e pregação pelas ruas e igrejas da cidade. A Companhia de Jesus em tempo de mudança 21 No período de Março a meados de Junho de 1539 deliberam e expressamente decidem a formação de uma nova ordem religiosa, ideia que encontra oposição de alguns responsáveis eclesiais. Mas em Setembro, Paulo III aprova oralmente a fórmula do Instituto que o Cardeal Contarini lhe lê, mandando-o expedir o breve correspondente e finalmente a 27 de Setembro de 1540, já com Rodrigues e Javier enviados a caminho de Lisboa e da Índia, é aprovada a Companhia de Jesus, pela Bula «Regimini militantis Ecclesia», ainda com a limitação a 60 do número de professos. Em 1550, Júlio III, o novo Papa, volta a confirmar a Companhia. Em 1541, começam os companheiros as reuniões para discutir e redactar, conforme a Bula, as Constituições da Companhia de Jesus. Em 19 de Abril do mesmo ano, Santo Inácio aceita, finalmente, o cargo de Prepósito Geral, para o qual tinha sido eleito, por unanimidade. A 22 de Abril, os companheiros presentes em Roma fazem a sua profissão solene, na Basílica de S. Paulo extra-muros. Está finalmente fundada, no espírito e no corpo, a Companhia de Jesus. Com frequentes períodos de doença e de fortes dores, Inácio governa a Companhia, como Geral, troca uma massa imensa de correspondência com pessoas de dentro e fora da Companhia, e vai trabalhando, especialmente com a ajuda do seu secretário Juan de Polanco, nas várias versões das Constituições, que só depois da sua morte, na 1ª e 5ª Congregações Gerais, são finalmente fechadas e aprovadas pela própria Companhia e sancionadas pelo Papa. Tendo tido a alegria de ver o livro dos EE oficialmente aprovado e louvado pela Igreja, em 1547, a 31 de Julho de 1556, 22 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Inácio de Loyola morre discretamente em Roma. Nessa data, já havia mais de mil «companheiros de Jesus»… Nesse mesmo ano de 1556 abdica no seu filho Filipe II, o Imperador Carlos V. Estes, a nosso ver, os principais acontecimentos deste fecundo período. Mas, vamos ao seu significado, que é o mais importante. Em Paris, o conjunto internacional de estudantes universitários que se vai reunindo à volta de Inácio, sobretudo através do seu exemplo, das conversas, acompanhadas da prática cristã mais óbvia e dos EE, torna-se um grupo cristão espontâneo, liderado carismaticamente por Inácio, o mais velho e o mais experiente, «em coisas do mundo e em coisas de Deus», uma comunidade de jovens já então apaixonados por Jesus Cristo, querendo-O seguir radicalmente – daí o «natural» voto de pobreza e castidade – e querendo, cada um, dedicar a sua vida à ajuda, concretamente, à salvação das almas. Os tempos em que vivem, se conhecem e estudam, são difíceis: Lutero e Calvino «estão no ar», a crise do Papado é indiscutível, a ameaça política e militar do Islão é real. Tudo isto se vivia, se falava e discutia. Centrados em Paris, a mais luminosa universidade da época, nada disto lhes era desconhecido ou lhes passava ao lado… Em termos eclesiais, a sua «opção prévia» estava feita ou fez-se então: apesar dos escândalos e da crise, só há uma Igreja, a que é regida pelo Papa de Roma, «o Vigário de Cristo». Mas face a esta mesma Igreja que reconhecem e que, apesar de todas as fraquezas humanas, respeitam, ao longo do tempo de Paris eles não são mais do que um grupo ou comunidade «informal» de jovens estudantes de teologia, apaixonados por Cristo, vindos de vários países e origens, cheios de entusiasmo A Companhia de Jesus em tempo de mudança 23 e generosidade. Nem mais nem menos… É o fim dos estudos e a consequente aproximação da eventual dispersão que os leva ao voto de Montmartre, expressão da sua vontade de permanecerem unidos na vida e no apostolado. E só a tentativa fracassada de partir e permanecer em Jerusalém é que os leva ao reencontro em Veneza e os obriga à deliberação (1539) que vai desembocar na decisão de constituir uma nova ordem religiosa. Até então, como já referi, não têm nenhuma regra nem obediência, nem sequer a Inácio… Assim, curiosamente, a obediência, que é o último «elemento» a aparecer no seu comum percurso espiritual, obediência antes de mais ao próprio «Vigário de Cristo», ao serviço do qual se vão colocar, e obediência ao Prepósito Geral que posteriormente hão-de eleger, vai-se tornar o «timbre» e a «pedra de toque» dos membros da Companhia de Jesus, obediência religiosa, é certo, mas radicada nas exigências de missão. Este lugar de excelência da obediência na estrutura mental do jesuíta e de toda a Companhia de Jesus é claramente vincado na famosa «Carta da Obediência», escrita aos estudantes jesuítas de Coimbra e na expressão por ele mesmo consagrada onde afirma que «o especial voto de obediência ao Papa é o princípio e fundamento de toda a Companhia de Jesus». Longo percurso o percorrido por Inácio e os seus companheiros… Nascidos na Igreja, vivendo nela, estudando e crescendo nela, apesar das suas debilidades e fraquezas, é nela que querem permanecer e lutar. Oferecem–se a Deus, na Igreja, através da proposta de uma nova ordem religiosa que se põe ao serviço do Vigário de Cristo para a missão. E o Vigário de Cristo, ao aceitar a oferta, reconhecendo e oficializando a sua iniciativa, sela definitivamente o seu percurso e a sua eclesialidade. 24 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã De facto, com os seus companheiros do grupo de Paris, Inácio de Loiola, estudante, tornou-se homem da Igreja. As consequências desta «história» concreta, conduzida por Deus, far-se-ão sentir na história da Igreja, da Companhia e do Mundo. É o que iremos considerar de seguida. 2 – O contexto histórico Para lá do que já foi sendo dito de passagem, é de extrema importância situar historicamente Inácio de Loiola e os seus companheiros, pois a Companhia de Jesus não pode ser compreendida sem se compreender o contexto onde nasce, age e ao qual reage. a – Político-Social Politicamente, na Península Ibérica, a unificação da Espanha acabou de se fazer. Grande parte da juventude de Inácio passa-se ainda no tempo de Fernando de Aragão que, com Isabel de Castela, unificam a Espanha, expulsam os muçulmanos do seu último reduto na Península (Granada) e se tornam os «Reis Católicos». Tudo isto não acontece sem grandes tensões sociais, «comuneros contra senhores», e «regionais», o centro contra as «periferias», as várias «nacionalidades» de Espanha. O episódio da feliz derrota de Pamplona, que iniciou a conversão de Inácio, é aqui que se situa… Em Portugal, sucedem-se os reis D. João II, D. Manuel e D. João III, mas sobretudo a nação inteira envolve-se e compromete-se na epopeia das conquistas (Ceuta, 1415), (sobretudo das praças do Norte de África) e das descobertas: A Companhia de Jesus em tempo de mudança 25 Madeira, Açores, costa ocidental de África, cabo da Boa Esperança, Índia (1498), Brasil (1500). Dividido em dois, o Mundo Novo a descobrir e conquistar, pelo Tratado de Tordesilhas (1494), sob a égide do Papa Alexandre VI, Portugal e Espanha lançam-se à sua grande gesta ultramarina, «dando novos mundos ao Mundo», a África, o Oriente, a América do Sul e do Norte, na feliz expressão de Camões, quebrando o isolamento político e militar da Europa e da Cristandade, ameaçadas pelo «Turco», no seu próprio solo (Solimão, o magnífico, toma Belgrado em 1521 e em 1529 Viena de Áustria é cercada) e no seu mar mediterrâneo (a decisiva batalha de Lepanto, ganha por D. João de Áustria, bastardo de Carlos V e meio-irmão de Filipe II, só é travada em 1571). No interior da própria Europa, a turbulência política e social é enorme, no estertor de um mundo antigo, a Idade Média que se convencionou terminar com a conquista pelos Turcos de Constantinopla – Bizâncio, a capital do Império do Oriente, em 1451, mas cujas ondas de agonia duraram um século…. Tempo de transição entre a Idade Média que morre e uma nova época que surge, o Renascimento. É o tempo por excelência de Carlos V e Filipe II, em Espanha; de D. Manuel e D. João III, em Portugal, dos famosos papas do Renascimento, em Roma. b – Cultural Se estes acontecimentos e personagens são importantes para compreender a génese, a configuração e o crescimento da Companhia de Jesus, mais importante ainda é a profunda mutação cultural que acontece então. 26 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Um mundo cultural antigo, a Idade Média, vai morrendo, mas outro, novo, o Renascimento, vai nascendo e crescendo, afectando a mentalidade, os valores e o comportamento. De modo necessariamente breve, como caracterizar este complexo período chamado «Renascimento», que abriga dentro de si varias tendências e orientações? Ao nível da mentalidade global, dá-se, sem dúvida, uma viragem estrutural em relação à Idade Média, a passagem do teocentrismo típico do mundo medieval para uma nova perspectiva, o antropocentrismo, pois o homem e não já Deus passa a estar no centro «e a ser medida de todas as coisas». Daí que naturalmente seja um período «humanista», mas não de um humanismo qualquer: há como que uma rejeição da perspectiva medieval, considerada bárbara e primitiva, para regressar aos modelos artísticos, culturais e humanos do mundo clássico – grego e latino – mitificados como expressão de uma «idade de ouro», a seguir e a imitar. Por isso se chama a esta tentativa global de passar por cima da Idade Média e de regressar ao mundo clássico e ideal, re-nascimento. Simultaneamente, a quase totalidade dos grandes humanistas desse tempo, com escolas e tendências diversas, mantém-se fiel à fé cristã e, até à crise de Lutero, mesmo à instituição eclesial, procurando uma síntese muitas vezes difícil, entre o seu humanismo «clássico» de raiz pagã e a sua tradição religiosa de origem cristã. Esta tentativa de regresso ao passado clássico não pode fazer-se sem a «cópia» dos modelos arquitectónicos e escultóricos da Antiguidade, abundantes na Itália, a pátria do renascimento, e o regresso aos autores, literatos e filósofos, gregos e latinos, envolvendo um grande esforço de estudo, de regresso às fontes e às origens, onde abunda a linguística e que abarca também A Companhia de Jesus em tempo de mudança 27 a procura das fontes do Cristianismo, buscando uma religião cristã genuína, pura, sem estar anquilosada e sobrecarregada pelo peso da tradição de quase um milénio e meio… Todo este movimento cultural e de mentalidade acontece e só pode acontecer então por se tratar de um período que globalmente se pode caracterizar, no espaço europeu, como de prosperidade económica, devido à iniciativa de Estados, cidades e cidadãos, com fortalecimento da actividade industrial e um forte aumento das trocas comerciais internas e com o Oriente próximo, que as dificuldades políticas e estratégicas não conseguiram asfixiar. É essa mesma prosperidade económica que vai permitir a multiplicação e crescimento das Universidades por toda a Europa, os grandes centros do saber, que por sua vez permitirão a multiplicação de letrados e humanistas e amanhã de cientistas… De facto, é também neste período, embora com inegáveis raízes medievais, que, no campo do saber, correspondendo à viragem antropocêntrica, acima referida, a ciência, experimental e exacta vai ocupando espaço, ao lado da filosofia e sobretudo da teologia medievais… Simultaneamente, o crescimento dos nacionalismos, o surgir do Estado-Nação e a lenta mas inexorável passagem da «respublica christiana» da Idade Média, arbitrada ainda pela incontestada supremacia papal, para os estados modernos, não podia deixar de trazer um acentuado enfraquecimento do poder político do papado e, indirectamente, se outras causas não houvesse… do prestígio da própria Igreja Católica, sediada em Roma. É aqui que as descobertas e conquistas dos Portugueses e Espanhóis, já fruto do desenvolvimento científico e técnico al- 28 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã cançado, mas a partir de agora seu poderoso acelerador, alteram profundamente o mundo de então e operam uma das maiores viragens da História: novas rotas, novas terras, novos produtos, novos povos e culturas, aceleração das trocas comerciais, promoção da ciência e da técnica e se isto fosse pouco... o quebrar, através do Oceano Atlântico, da tenaz férrea do «Turco», que isolava e ameaçava a Europa e a fazia diminuir nas suas fronteiras. Religião, cultura, ciência, política e guerra estão a construir um «novo mundo», onde vive a Igreja e a fé, onde nasce a Companhia de Jesus. c – Eclesial De todos os contextos importantes para a compreensão da génese da Companhia de Jesus, o contexto religioso e eclesial é, sem dúvida, o mais importante. Campeavam na Igreja a simonia e os benefícios eclesiásticos; o povo, abandonado, estava ignorante; o clero era muitas vezes venal e corrupto, escandaloso e inculto. Mais grave ainda, muitos dos principais responsáveis oficiais da Igreja, em muitos locais da Cristandade, eram mais príncipes do que pastores e os próprios bispos de Roma, os Papas, homens que se converteram ao Renascimento, construíram um escandaloso contra-testemunho: corrupção, riqueza e luxo, nepotismos e luta pelo poder, violência e interesses materiais, fazendo da Igreja uma potência política que ombreava com as outras… A Igreja – era opinião quase unânime – estava profundamente necessitada de uma urgente e radical reforma. As condições mentais, geográficas, políticas e militares em que decorria a sua vida tinham-se alterado radicalmente e sobretudo a sua própria vida interna e cristã era, em muitos locais, calamitosa. A Companhia de Jesus em tempo de mudança 29 É o tempo dos grandes papas do Renascimento, muitos deles grandes humanistas e mecenas. E muitos deles até conscientes da necessidade da reforma interna da Igreja, mas sem força e coragem para a empreender… E o «inevitável» aconteceu: um obscuro monge agostinho e sacerdote, escandalizado com a venda das «Indulgências» pontifícias e com o luxo e escândalo da corte pontifícia que tinha testemunhado aquando de uma visita a Roma, prega à porta da Catedral de Wittenberg, em 1517, as suas famosas «95 teses», dando início a um incêndio religioso e político cujas chamas alastram por toda a Europa – a Reforma – por nós, católicos, vulgarmente chamado o Protestantismo. Não cabe aqui fazer a história da Reforma Protestante e da Reforma Católica, chamada Contra-Reforma. Mas é de ter presente que às teses de Lutero em 1517, seguem-se as pregações de Zuínglio, na Suíça. Já em 1518, dá-se a cisão da Igreja Anglicana, com Henrique VIII, que em 1531 – no termo de uma sangrenta história – se proclama chefe da Igreja Anglicana. Em 1533, o francês João Calvino (que estudara em Paris, no mesmo colégio de Santa Bárbara que Santo Inácio, Calvino a sair, Inácio a entrar…) adere ao protestantismo e, fugido de França, instala-se na Suíça. As consequências políticas e religiosas destes «gestos» de rebeldia e insubmissão, a recusa da autoridade eclesial e pontifícia, a rejeição de muitas das instituições e tradições da Igreja, são imensas – o Cisma do Ocidente. Deixando de lado a Igreja Oriental, já separada de Roma desde o séc. XI, com o cisma do Ocidente o mapa religioso da Europa começa agora a ser completamente diferente: a Inglaterra sai da órbita de Roma e mais tarde a Escócia, na linha calvinista; os países Escandinavos seguem o seu próprio 30 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã caminho rumo ao protestantismo; os Países Baixos dividem-se em católicos e protestantes, a própria França, sobretudo através de João Calvino, ganha uma forte e significativa minoria protestante – os huguenotes. A Europa central, Áustria, Hungria, Boémia ficam divididas e na «corda bamba»… Na Alemanha, por influxo de Lutero, apropriado pelos príncipes, apesar dos esforços do Imperador Carlos V, mais de metade passa-se para o protestantismo… Na velha Igreja Católica romana, permanecem a Itália, a Espanha, Portugal, a Áustria, a maioria da França e a minoria da Alemanha. Não vamos acompanhar de perto as consequências políticas e militares desta grave crise religiosa, que marcaram dois séculos de vida europeia, com guerras de religião, perseguições, divisões, tentativas de domínio e de recuperação, matanças e assassinatos… onde os interesses políticos e religiosos se entrelaçaram ambiguamente. Mas vamos sublinhar duas ou três linhas que julgamos mais importantes para a compreensão do nascimento e evolução da Companhia de Jesus. A primeira linha a sublinhar é que os primeiros reformadores, e é bom lembrar Savonarola em Florença e João Huss na Boémia, o próprio Henrique VIII no início e até Lutero na sua primeira fase, mantiveram-se ainda como reformadores católicos, quando muito «cismáticos», isto é, provocando a divisão, pela sua oposição à autoridade da Igreja católica universal, de Roma. Mas prolongando este dinamismo de revolta, foram passando do mero cisma à «heresia», isto é, à defesa de doutrinas incompatíveis com a doutrina da Igreja Católica. Foi a passagem desta fronteira que consumou, até hoje, a ruptura e divisão. Estas novas maneiras de olhar o Cristianismo, apelando sempre para o Cristianismo primitivo, original, estão já perfei- A Companhia de Jesus em tempo de mudança 31 tamente delineadas em Calvino, com o seu famoso «Institutio christianae religionis» (1536), onde são negados pontos essenciais da doutrina católica tradicional, e na segunda fase de Lutero. Este, sobretudo ao defender o «livre exame» das Sagradas Escrituras, sem a mediação da autoridade eclesial – «Sola Scriptura» – e a salvação por pura graça da fé, sem a colaboração das «obras» – «Sola fide» – entra num caminho de divergência doutrinal do qual já não há retorno…. O segundo sublinhado a fazer é que os grandes intervenientes neste processo, desde o Papa ao Imperador e aos Reis, passando pelos próprios reformadores, foram ganhando consciência da gravidade daquilo que estava em jogo: a unidade ou separação da Igreja, Corpo de Cristo. Assim se compreende que até à consumação definitiva da ruptura, acontecida do lado católico com o Concílio de Trento, nas suas várias sessões (1545–1548; 1551–1552; 1562–1563) houve muitos e grandes esforços, individuais e colectivos, para salvar a unidade, ou para tentar fazer a reunificação da Igreja dividida. Terceiro sublinhado. Foi neste período conturbado e turbulento, na política e na religião, que nasceu a Companhia de Jesus e viveram os primeiros companheiros, participantes activos na vida da Igreja e intervenientes directos nas controvérsias religiosas do seu tempo, P. Fabro, N. Bobadilla, D. Laynez, Salmeron, C. Jay, etc., como legados ou teólogos do Papa, de Cardeais ou de Bispos. É também este contexto de crise e confronto de vida eclesial que nos permite entender as «Regras para sentir com a Igreja» (EE 352-370) que depois das Regras de Discernimento de Espíritos, são, sem dúvida, o conjunto de regras mais importantes dos EE, e que embora não citem nunca nem Calvino nem Lutero, claramente estão pressupostos no texto… 32 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Neste conjunto, que bem se poderia chamar os «princípios de combate do bom cristão», encontramos diferentes tipos de regras, de importância muito desigual: «regras conjunturais» (2, 3, 4, 5, 6, 7, 8) que se limitam a louvar o que os reformadores protestantes contestavam: confissão, comunhão, oração, horas canónicas, vida religiosa, relíquias, indulgências, jejuns e abstinências, ornamentos das Igrejas, preceitos, etc., contestando a contestação; encontramos ainda o que podemos chamar «regras prudenciais» (10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18) de maior importância, normas de conduta em tempo de nevoeiro, onde as grandes polémicas teológicas de então, sobretudo as doutrinas de Lutero e Calvino, estão no horizonte: conduta face aos superiores, louvor dos concílios, doutores e teólogos antigos, predestinação e liberdade, fé e obras, amor e temor, etc. Finalmente, as regras mais importantes, as «regras estruturais» (1, 9, 13), talvez melhor ainda, estruturantes, donde todas as outras brotam, sendo a partir delas que se compreendem e justificam. Estas é que são o núcleo teológico, o fundamento do «sentir com a Igreja». Por elas, diz-nos Santo Inácio, «devemos… obedecer em tudo à verdadeira esposa de Cristo, nosso Senhor, que é a nossa Santa Mãe, a Igreja hierárquica» (EE 353-1ª Regra), «buscando razões para defender os preceitos da Igreja e não para os criticar» (EE 361-9ª Regra). E ainda, «devendo, para em tudo acertar, estar sempre dispostos a acreditar que o branco que eu vejo é negro, se a Igreja hierárquica assim o determina, acreditando que entre Cristo, nosso Senhor, esposo e a Igreja, sua esposa, é o mesmo Espírito que nos governa e dirige para a salvação das nossas almas. Porque é pelo mesmo Espírito e Senhor nosso, que deu os dez mandamentos, que é regida e governada a nossa santa Mãe Igreja» (EE 363-13ª Regra). A Companhia de Jesus em tempo de mudança 33 Nestas citações das «Regras para sentir com a Igreja», notem-se três coisas essenciais: para Inácio e certamente para os seus companheiros, a Companhia nascente, não há duas ou mais Igrejas; e a única Igreja de Cristo, apesar de pecados e infidelidades, é a Igreja hierárquica. Reformá-la, sim; dividi-la ou separar-se dela, não. Note-se ainda que para Inácio, que bem conhecia os males e podres da Igreja do seu tempo, apesar de tudo, a Igreja não é uma mera instituição social ou uma «madrasta»; é, sobretudo, mãe. Por isso, a questão eclesial que é a questão religiosa central do tempo de Inácio, é ultimamente uma questão de amor: perante a Igreja de Cristo, pecadora, caída, suja, distancio-me e separo-me ou aproximo-me e sirvo, no amor? Finalmente, é de notar que para lá das múltiplas outras importantes razões, a razão última da fidelidade à Igreja radica na relação dela a Cristo, seu esposo que a fundou e ao Espírito Santo que a governa e dirige para a salvação das nossas almas. Esta, em breves palavras, a «teoria» de Inácio, expressa nos EE e certamente partilhada pela sua «escola», os seus companheiros. Mas, não se pense que na sua vida pessoal a sua atitude é «primitiva»: ele próprio, na «sua pele», sofreu as perseguições da Inquisição; a tão moderna expressão «os nossos irmãos separados», referindo-se aos protestantes, deve-se a Pedro Fabro; Inácio empenha-se repetidamente pela oração e pelo envio dos «melhores», no esforço de reunificação das Igrejas e até recorda aos padres que envia que não se apresentem como «papistas». Nas próprias regras não invectiva nem nomeia os adversários, não chama «cismático» ou «herege» a ninguém… Simplesmente, expõe a doutrina, procura fundamentá-la e propõe comportamentos, de comunhão com a Igreja e de serviço, sem medos nem ambiguidades… 34 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 3 – O Espírito Santo, Inácio de Loiola, a Companhia e a Igreja Continuidade e inovação A Igreja, na sua história, na sua sucessão, na sua crise, por um lado; um grupo internacional de estudantes e sacerdotes, liderados por Inácio, por outro, como dois rios que se encontram no fluir do tempo, convergem em Roma. Assim nasce a Companhia de Jesus, com os intervenientes e através dos acontecimentos que teremos suficientemente recordados, uma nova ordem no teatro da história. Profundamente «tradicional», fiel a Jesus Cristo, ao Evangelho, à Comunidade cristã e ao vigário de Cristo, co-herdeira de 1500 anos de história. Manteve e defendeu integralmente a fé e a doutrina, quis ser uma nova ordem no interior da vida eclesial, sacerdotal e assumiu os tradicionais votos religiosos, de pobreza, castidade e obediência… Neste sentido, a Companhia é claramente tributária da vida da Igreja até então e da história das ordens religiosas anteriores, mantendo e reforçando, até, a continuidade com o passado… Mas, simultaneamente, porque as condições culturais, políticas, eclesiais se transformaram profundamente e sobretudo por fidelidade à própria história de Inácio e dos seus primeiros companheiros, que o Espírito Santo neles foi escrevendo, no corpo e no espírito, a Companhia é profundamente original e inovadora. Vejamos. A finalidade da Companhia é a mesma de Inácio a partir da sua conversão e dos seus companheiros de Paris, a quem, através dos EE, conseguiu transmitir a inspiração inicial, «ajudar as almas», ou no dizer já elaborado da Fórmula do Instituto, aprovada por Paulo III e inserida no Exame Geral aos candi- A Companhia de Jesus em tempo de mudança 35 datos: «o fim da Companhia é não só a salvação e perfeição das almas próprias, com a graça de Deus, mas com a mesma (graça) procurar intensamente a salvação e perfeição das almas dos próximos» (Ex. Geral, 3). Foi esta finalidade que os congregou ainda em Paris, que os levou ao voto de Montmarte e que, como vimos, os conduziu até Roma para que o Vigário de Cristo deles pudesse dispor. Esta centralidade da missão é tão forte que conduziu ao 4º voto da Companhia professa, de especial obediência ao Papa, acerca das missões, uma profunda originalidade no panorama das ordens religiosas de então. Mas as exigências da missão vão fazer brotar um verdadeiro novo estilo de vida religiosa. Repare-se nalguns elementos significativos: O noviciado, etapa inicial, ao contrário do que era comum, passa de um ano para dois anos de duração; e durante estes dois anos não se resume a oração, isolamento, leitura; pelo contrário, integram-no, como parte indispensável, os EE durante um mês, a experiência de ajuda num hospital e a peregrinação a pé e a pedir esmola, que pretende reproduzir, para os novos jesuítas, a experiência profunda de Inácio e dos seus companheiros, que viveram anos desta vida… A formação intelectual deve ser longa, cuidada e sólida, como eles a tiveram, sobretudo em Paris. Mas, para além da tradicional filosofia e teologia, exigida aos sacerdotes das outras ordens religiosas, uma nova etapa, tipicamente renascentista, é inserida a seguir ao noviciado, o juniorado, o estudo das humanidades clássicas. Constituindo toda a longa formação num tempo de provação, tal como Inácio e os primeiros companheiros, a profissão solene é realizada já depois da ordenação sacerdotal e depois de um tempo de apostolado, correspondendo ao tempo do 36 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã norte de Itália e dos inícios de Roma, posterior à ordenação em Veneza. No «exterior», também as exigências da missão se fazem sentir: nem coro e horas canónicas em comum; nem penitências exteriores, nem hábito religioso próprio, para melhor acomodação aos vários locais… E também as exigências da missão modelam a estrutura orgânica e de governo da Companhia: um modelo claramente centralista-monárquico, onde a Congregação Geral detém todo o poder legislativo, e o Propósito Geral todo o executivo; Congregações Gerais deliberadamente sem prazo marcado de reunião e Geral eleito com mandato vitalício. De tudo isto, exterior, formação, orgânica, o que brotou? Brotou, na feliz expressão de um jesuíta francês, um «corpo para a missão». Mas, poderá perguntar-se ainda, qual missão? Dentro da finalidade última já apontada – a salvação e perfeição dos próprios e dos próximos – não há nem deve haver resposta «objectiva», a Companhia deve fazer isto ou aquilo, ter esta ou aquela «obra». A resposta é apenas um critério – o «mais» – dentro do possível, o «mais», o melhor, o maior. Concretizando este critério, aquilo que em cada momento, a juízo da Igreja e do Superior, for julgado o maior serviço de Deus e dos homens, o serviço mais universal, mais urgente, mais duradoiro, essa é a «obra», a missão da Companhia. Este é o segredo e a grande novidade da Companhia de Jesus, a total disponibilidade e o contínuo discernimento do «mais», o coração e a raiz da sua diversidade, maleabilidade e fecundidade, no seu serviço a Deus e aos homens, na Igreja. Compreende-se assim que mal acabada de nascer (Simão Rodrigues e Francisco Xavier votaram por correspondência na A Companhia de Jesus em tempo de mudança 37 eleição de Inácio, pela urgência da missão...), compreende-se assim, dizia, que desde o seu início, a mesma espiritualidade e a mesma orientação, o mesmo «mais» da missão, conduza a direcções geográficas e políticas tão diversas: a Europa onde acontecem os grandes conflitos, culturais, políticos e sobretudo religiosos da época; e o «Mundo Novo» das descobertas, que portugueses e espanhóis acabam de abrir, África, América, Oriente. Como Inácio e os seus companheiros, no seguimento de Jesus Cristo pobre e humilde, na Igreja, buscar e encontrar Deus em todas as realidades e deixar-se conduzir pelo Espírito Santo, o Espírito do Pai e do Filho, como eles se deixaram conduzir… Confiança, disponibilidade e discernimento é o segredo de um passado glorioso e a semente de um futuro sempre novo. Fontes – RP – Relato do Peregrino – El Peregrino. Autobiografia de San Ignacio de Loyola. Col. Manresa. Mensagero. Sal Terrae. – RI – Recuerdos Ignacianos. Memorial de Luís Gonçalves da Câmara. Col. Manresa. Mensagero. Sal Terrae. – FN – Fontes Narrativi, Roma 1943. – P. M. Collins e M. A. Price, História do Cristianismo. Liv. Civilização Ed., 2000. – João Ameal, História da Europa, vol III. Ed. Verbo, 1983. 39 A FORMAÇÃO NA COMPANHIA DE JESUS Mário Garcia, S.J. A formação, o tempo desde a entrada no Noviciado até aos últimos votos, começa e termina, na Companhia de Jesus, com os Exercícios Espirituais completos. Está balizada por eles, não como marcos de fronteira, mas como pórticos de entrada na vida, no amor e na morte. A «repetição» inaciana não consiste, como sabemos, numa espécie de encaixe ou justaposição. Trata-se de um resumo filtrado pela oração, a reflexão, a experiência, que purifica, ilumina, une, os aspectos aparentemente divergentes da acção de Deus na História. Encarar a formação como uma «repetição» supõe aprofundar os elementos identificadores daquele «sinal» que designa o «espírito» que flui de um determinado modo de proceder. A formação – toda a formação – «imprime carácter». A fo(ó)rma não é uma fo(ô)rma que se cola à pele, como um vestido ou tatuagem. Formar não significa formatar ou formalizar. A formação não uniformiza. Mas se a fo(ó)rma, de facto, forma, é porque individua, define, disciplina, canaliza, orienta uma energia de vida. Trata-se, sempre, por conseguinte, de unificar dois princípios complementares, um mais passivo outro mais activo, um molde e uma alma, para conformar e não deformar a liberdade de uma pessoa concreta. Na Companhia de Jesus, o molde e a alma da formação são os Exercícios Espirituais. O que pretendo expor, brota do «modo e ordem» (EE 2) dos Exercícios. A formação de um jesuíta obedece, realmente, ao núcleo pedagógico e mistagógico de uma experiência espiritual integradora, cuja eficácia se vai desentranhando em círculos concêntricos de significação sempre cada vez mais universal. 40 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Como se processa, ao longo do tempo, a «repetição» de uma determinada vocação à Companhia? Como se passa de um enamoramento teórico para a concretização prática da vontade? De que modo o movimento contínuo do amor alcança fixar-se, inabalável, no absoluto de Deus? Santo Inácio, ao apresentar, nos Exercícios, os pontos para a oração sobre o chamamento dos Apóstolos, afirma o seguinte: «Três vezes parece que foram chamados S. Pedro e Santo André. A primeira a um certo conhecimento de Jesus. (…) A segunda a seguirem dalguma forma a Cristo (…). A terceira, a seguirem para sempre a Cristo nosso Senhor» (EE 275). Na primeira etapa, fala-se de Jesus; na segunda, de Cristo; na terceira, de Cristo nosso Senhor. «Um certo conhecimento» dá lugar a uma certa «forma» e, finalmente, a seguir sem condições, «para sempre». Faz lembrar a sequência de verbos, conhecer, amar, imitar, tão inaciana, que o Papa João Paulo II propõe na Carta Apostólica À entrada do novo milénio: «O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n’Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste» (nº 29). A clássica tríplice partição da ascese cristã nas três vias (que Santo Inácio chama vidas, EE 10): purgativa, iluminativa e unitiva, poderia servir-nos de guia: o Noviciado constituiria a figura de um complexo processo de purificação; os estudos e sua prática pastoral corresponderiam à via iluminativa; a Terceira Provação, à via unitiva. É tentador ainda fazer o paralelo entre a integração das valências fundamentais da formação na Companhia: espiritual, apostólica, comunitária e intelectual-afectiva, e cada uma das quatro «semanas» dos Exercícios. A formação na Companhia de Jesus 41 Todas estas perspectivas, no entanto, encontram-se unificadas na identificação com «o nosso sumo pontífice, modelo e regra nossa, que é Cristo nosso Senhor» (EE 344), típica da vocação apostólica. Os três momentos que Santo Inácio assinala não são, rigorosamente, fases sucessivas, mas enfoques de um amadurecimento progressivo, porque sempre cada vez mais profundo. Tal como não podemos desligar cada uma destas três propostas de diálogo: «Que buscais? – Mestre, onde moras? – Vinde ver» (cf. Jo 1, 38-39), também não podemos separar o conhecimento «interno» da pessoa de Jesus de uma certa «forma» de O seguir, assimilando «para sempre» o seu modo de proceder, colaborando, com muitos outros, na sua missão, na Igreja, no mundo de hoje. 1. «Um certo conhecimento de Jesus» Entrar numa Ordem religiosa equivale a dar um salto para dentro de um tempo qualitativo. A «ruptura», o deixar tudo, significa, positivamente, entregar-se a uma Tradição viva. Quem chega ao Noviciado conhece, de maneira informe, o que vai encontrar, e de maneira não-informe a quem e a quê renuncia. A condição para alguém sentir desejo ou desejo de desejo de se formar, é querer informar-se, enformar-se e conformar-se. E para que alguém seja formador, é necessário não querer deformar, para, em diálogo, conseguir transformar. A possibilidade, na educação, de gerar monstros, é real, não fictícia. Se a responsabilidade primeira é a do Espírito Santo, que «sopra onde quer» (Jo 3, 8), então, formador e formando devem colocar-se na mesma escola de escuta e obediência à voz do Espírito. Ainda aqui, os Exercícios nos ensinam a situar-nos 42 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã na procura da vontade de Deus, não só no que «se há de pressupor que todo o bom cristão deve estar mais pronto a salvar a proposição do próximo que a condená-la» (EE 22), mas também, deixando «agir o Criador imediatamente com a criatura, e a criatura com o seu Criador e Senhor» (EE 15). É à luz e ao calor do Espírito Santo que cada um deve aprender a ler a sua história pessoal, o mundo, a Igreja, a comunidade, a Companhia, numa sintonia de amizade com Cristo: «tende entre vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus» (Fil 2, 5). Se qualquer pedagogia da vida religiosa, ajudada pelas ciências humanas, não assentar nesta «pedra angular» da sintonia com os sentimentos de Cristo, resultará vazia de conteúdo, embora pareça exteriormente configurada. Na Companhia de Jesus existem três «provações» ou tempos fortes da formação. A 1ª equivale, podemos dizer, ao Princípio e Fundamento: a abertura, a base e o timbre, a nota dominante. A Casa do Noviciado não é constituída pelas paredes de um claustro, mas por determinadas pedras vivas: a pessoa do Mestre, a do «sócio» seu imediato colaborador, a comunidade formadora, o grupo dos noviços, as Constituições, as regras, costumes, horários, silêncios, trabalhos e recreios. Tudo isto revela uma informação sumária, concreta, sobre «o nosso modo de proceder». Vem depois a 2ª Provação que dura todo o resto do Noviciado, o período dos estudos, normais e especiais, e da prática pastoral que os acompanha, nomeadamente o Magistério (entre a Filosofia e a Teologia) e os primeiros anos do presbiterado ou da vida profissional, para os Irmãos. O sacerdócio explicita uma vocação pessoal que se vai esclarecendo no serviço eclesial e apostólico que dá razão do estudo e da actividade que dele promana e para ele remete. O sacerdócio não aparece de repente, mas cresce e consolida-se, no decurso da formação, A formação na Companhia de Jesus 43 como um horizonte, que, na Companhia, a todos toca, Padres e Irmãos, de maneira adaptada à vocação de cada um. A 2ª Provação, demorada, «sem ter ânsia de passar adiante» (EE 76), enforma o jesuíta, na Igreja e no corpo da Companhia. Equivale, de facto, à 2ª, 3ª e 4ª semanas dos Exercícios. O mistério pascal de Cristo, iluminado pelo estudo da Filosofia e da Teologia, vivido inculturado no mundo, sentindo com a Igreja e na Igreja, saboreado «internamente» (EE 2), consolida e conforta a eleição de vida. «Todas as minhas intenções, acções e operações» deveriam estar agora «puramente ordenadas para serviço e louvor de sua divina majestade» (EE 46). Finalmente, a 3ª Provação, «escola do afecto» (Const. 516), como é nomeada nas Constituições, representa a «Contemplação para alcançar amor» (EE 230-237), a culminância da formação e do itinerário espiritual dos Exercícios. O termo «afecto», e seus derivados, afeição, afeiçoar-se e outros, é caro a Santo Inácio. Bastaria citar, «ponderando com muito afecto» o primeiro ponto da referida Contemplação (EE 234), onde aparece a oração, «Tomai, Senhor, e recebei», para compreendermos melhor a Terceira Provação. O jesuíta, à maneira do discípulo depois de realizar a obra-prima, recebe, do Mestre, que neste caso é a Companhia universal, a licença que lhe permite ensinar em qualquer parte do mundo. Incorporado num grupo apostólico, de modo definitivo, torna-se, finalmente, adulto, «senhor de si» (EE 216), «para que assim alcance maior equilíbrio e ordem sobre a maneira de se haver e governar» (EE 214) em todas as circunstâncias. Até aqui nos conduziu «um certo conhecimento de Jesus». A Companhia, na escola do seu Senhor, não pode propor outro caminho a quem dela se aproxima e nela deseja entrar, senão o convite do próprio Cristo: «Quem quiser acompanhar-me, 44 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã negue-se a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias, e siga-Me» (Lc 9, 23). Santo Inácio formula, a seu modo, a mesma regra, ao afirmar, nos Exercícios: «Pense cada um que tanto aproveitará em todas as coisas espirituais, quanto sair de seu próprio amor, querer e interesse» (EE 189). 2. «Seguirem dalguma forma a Cristo» Para além das indicações e de tudo o que se refere à oração, o livrinho dos Exercícios traz também, como sabemos, outros documentos. Entre eles, os dois grupos de «regras para de alguma maneira sentir e conhecer as várias moções que se causam na alma» (EE 313), constituem um precioso conjunto de grelhas de leitura para avaliar, segundo a vontade de Deus, todas as realidades e precaver-se dos enganos com que podemos desviar-nos do recto caminho. A riqueza destas regras, de que agora não vamos propriamente falar, leva-nos a actualizar, numa exigência de sempre maior progresso na direcção da santidade, «o que mais nos conduz para o fim para que somos criados» (EE 23). No que se refere à formação, poderíamos explicitar que o jesuíta está formado quando consegue pôr em prática, sempre e em todas as circunstâncias, os critérios formulados nestas regras de discernimento. Saber distinguir a consolação e a desolação, o sentido da prudência, da paciência e da fortaleza, as aparências de bem, o modo como se pressente, se sente, se vê e se ouve o agir do bom ou do mau «espírito», as suas intenções e consequências, para discernir a vontade de Deus, encontra-se na base da vivência dos critérios evangélicos que são as Bem-aventuranças, a forma de proceder do próprio Cristo. O jesuíta, alicerçado nas regras de discernimento A formação na Companhia de Jesus 45 das moções espirituais, pretende, como qualquer bom cristão formado na escola dos Exercícios, seguir o caminho de Cristo, obedecer à sua vontade, assinalando-se «em todo o serviço de seu rei eterno e senhor universal» (EE 97). Mas em que se distingue, realmente, o «nosso modo de proceder»? Santo Inácio, na Parte IV das Constituições, ao recomendar que os jesuítas sejam «virtuosos e doutos» (nº 308), e que «os que vêm às universidades da Companhia para se instruir nas letras, juntamente com elas, aprendam os bons costumes cristãos» (nº 481), põe em acção a interior lei da caridade, une o espiritual e o didáctico, assenta a formação intelectual numa base de aplicação prática, na intenção recta, na ordem dos estudos, nos métodos pedagógicos, nas disputas escolares, na formação dos formadores e nos ministérios apostólicos. Toda esta aparente dispersão está integrada numa finalidade sempre presente, expressa, por exemplo, deste modo, ao princípio da Parte II: «Para o fim que a Companhia tem em vista, que é o serviço de Deus nosso Senhor no auxílio das almas, convém conservar e multiplicar os operários que sejam idóneos e úteis para levar adiante esta obra» (Const. 204). Santo Inácio não cai no intelectualismo, porque o apostolado é, de facto, sempre, a alma da intelectualidade. Veja-se a conclusão, admirável, do capítulo VIII, «Formação dos escolásticos nos meios de ajudar o próximo», da Parte IV das Constituições: «De modo geral, devem instruir-se sobre a maneira como há-de proceder um membro da Companhia que nas mais variadas regiões está em relação com pessoas tão diferentes, prevendo as dificuldades que podem surgir e as vantagens que podem aproveitar-se para o maior serviço divino, e utilizando os vários meios. Embora isto só o possa ensinar a 46 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã unção do Espírito Santo e a prudência comunicada por Deus Nosso Senhor aos que confiam em sua divina Majestade, é possível, ao menos, abrir o caminho com alguns conselhos, que ajudem e disponham para o efeito que a graça divina há-de produzir» (Const. 414). O P. Pedro Arrupe, na conferência intitulada «O nosso modo de proceder», proferida em Roma, no Curso organizado pelo Centro Inaciano de Espiritualidade, em 10 de Janeiro de 1979, enumera os traços negativos e os traços positivos dos elementos concretos que nos definem como jesuítas. Que figuras põem a descoberto as moções do mau espírito? A do jesuíta sistematicamente contestatário; a do profissionalista que se deixa absorver excessivamente pelos aspectos seculares da sua profissão; a do irresponsável, para o qual carecem de significado eficaz noções como: ordem, horário, valor do dinheiro, moderação, etc.; a do activista político, que é muito diferente do apóstolo social; a do jesuíta tendenciosamente tradicionalista que exalta, e disso faz bandeira, os símbolos ou realidades exteriores de épocas precedentes. E quais são os traços positivos do nosso modo de proceder, que configuram a forma dinâmica, isto é, o espírito e a letra, de um verdadeiro jesuíta? «Umas tantas atitudes» que, como diz o P. Arrupe, «hoje precisam de ser especialmente purificadas e reactivadas»: o amor a Cristo pessoa que unifica os elementos dialécticos da irradiação apostólica: oração e acção; empenho na perfeição própria e alheia; recurso aos elementos sobrenaturais e humanos; pluralismo e unidade; esforço pessoal e dependência total de Deus; meios eficazes e pobreza; inserção e universalidade. «Viver esse intenso amor a Cristo-pessoa, aspirar a um sensus Christi que nos faça ser, apresentar-nos e actuar à sua imitação, é o primeiro e fundamental traço do nosso modo A formação na Companhia de Jesus 47 de proceder. Para a consecução deste ideal, Santo Inácio acode à Mãe para que o ponha com seu Filho» (Jesuítas para os nossos tempos, A.I./A.O., Braga, 1981, p. 169). Os outros traços, que deste brotam, «como do sol descem os raios, da fonte as águas» (EE 237), são os seguintes: disponibilidade, gratuidade, universalidade, sentido de corpo, sensibilidade para o humano e solidariedade com o homem concreto, rigor e qualidade, amor à Igreja, sentido da «mínima Companhia», sentido do discernimento e delicadeza no que concerne à castidade. «Daqui resulta que, tanto na primeira formação dos nossos jovens, como na formação contínua de todos, o manter e avivar o sensus Societatis seja um objectivo determinante para a manutenção em plena forma jesuítica e em capacidade de resposta aos desafios do nosso tempo. Este sensus Societatis não poderá conseguir-se nem manter-se sem um autêntico sensus Christi» (Ibid., p. 175). A Congregação Geral XXXIV retomou, em 1995, no Decreto 26, «Características do nosso modo de proceder», esta conferência do P. Arrupe e configurou de novo o modo de ser dos jesuítas nestes elementos: profundo amor pessoal a Jesus Cristo; contemplativos na acção; um corpo apostólico na Igreja; em solidariedade com os mais necessitados; companheirismo com outros; chamados a um ministério instruído; homens enviados, sempre disponíveis para novas missões; sempre em busca do Magis. A forma que a Companhia pretende gravar (insignare) no coração de cada jesuíta em formação, repete, inacianamente, a figura do seu santo Fundador. Ninguém como o P. Jerónimo Nadal expressou melhor essa intenção ao afirmar lapidarmente: «A forma da Companhia está na vida de Santo Inácio». «Deus pô-lo como um exemplo vivo do nosso modo de proce- 48 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã der» (cit. no início do Decreto 26, Congregação Geral XXXIV. Documentos, ed. port., Roma/Lisboa, 1995, p. 332). São Paulo escrevia aos cristãos de Corinto: «Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo» (1 Cor 11, 1). Cor Pauli, cor Christi, diziam os Antigos. Santo Inácio pinta o retrato ideal do jesuíta quando, no capítulo II da Parte IX das Constituições, traça o perfil do Geral. Vale a pena destacar a cor básica deste quadro: «Grande união e familiaridade com Deus Nosso Senhor, na oração e em toda a sua actividade» (Const., 723), e o traço dominante: «Nele deve resplandecer especialmente a caridade para com o próximo, e em particular para com a Companhia, assim como a verdadeira humildade, que o tornem amável, tanto a Deus como aos homens» (Const., 725). Oxalá o coração do jesuíta seja sempre assim, como o coração de Inácio: Cor iesuitae, cor Ignatii! 3. «Seguirem para sempre a Cristo nosso Senhor» Chegados aqui, que nos resta senão «o muito servir a Deus nosso Senhor por puro amor» (EE 370), quando «querer servir a Deus, que é o fim» (EE 169), se apresenta diante de nós como um caminho «para chegar à perfeição (para venir en perfección)» (EE 135)? A schola affectus não se aplica só ao tempo da Terceira Provação, à conclusão da formação que o P. Arrupe chamava «primeira»; traduz, igualmente, a exercitação contínua do amor configurado na disciplina da vida religiosa (parece ser este o sentido da palavra schola na Regra de S. Bento). A frase de Santo Agostinho: serva formam et forma servabit te, insere-se também nesse contexto. Utilizamo-la para aprofundar melhor o estádio definitivo da formação: «seguir para sempre a Cristo A formação na Companhia de Jesus 49 Nosso Senhor». Não vou dilucidar em que sentido Santo Agostinho emprega a palavra forma. Cito-o de cor. A sua fórmula adapta-se, porém, à maravilha, para falarmos da finalidade da formação. Estamos formados? Então, é porque somos capazes de viver da formação: «conserva a formação e a formação te conservará a ti». A maturidade humana, como sabemos, não corresponde a uma idade cronológica, mas ao sinal identificativo de um projecto de vida pessoalmente assumido e partilhado com outros em espírito de corpo. A incorporação é um ponto de partida, não de chegada. A incorporação não tem fim, porque corresponde ao trabalho do amor que «se deve pôr mais nas obras que nas palavras» (EE 230) e «consiste na comunicação recíproca» (EE 231). Exactamente porque o affectus incorpora a forma, e a forma é o amor de Cristo nosso Senhor vivido na Companhia, em Igreja, para «ajudar as almas», para o serviço do próximo e o bem mais universal. Por conseguinte, conservar a forma não significa mantê-la inalterável, mas traduzi-la na linguagem inculturada da missão apostólica, a mesma missão de Cristo, na Igreja, no corpo da Companhia, para salvação do mundo. A obediência ao carisma da Companhia resulta, assim, da liberdade, pessoal e comunitária, madura, que aprofunda, em corpo, sempre e cada vez mais, um espírito encarnado, uma forma figurada, um exercício espiritual contínuo na dinâmica sacramental da História do Deus-connosco. Deixar-se afectar, em toda a parte, pela Companhia de Jesus, é estar continuamente a nascer, descobrir a novidade do amor numa disciplina livremente assumida que configura, identifica e promove todos e cada um dos jesuítas. A schola affectus é a forma incorporada que nos conserva unidos, «para sempre», à pessoa de Jesus. Esta é a finalidade da formação, 50 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã de toda a formação, primeira e segunda, na Companhia de Jesus. Mas, em concreto, quê? O Decreto introdutório, «Unidos com Cristo na missão», promulgado pela Congregação Geral XXXIV, «convida toda a Companhia a ler e rezar a renovação do nosso direito e a reorientação actualizada da nossa missão (…) à luz das duas imagens inacianas de peregrinação e trabalho» (ed. cit., p. 33). A primeira destas imagens traz-nos à memória a docilidade permanente de Inácio ao Espírito Santo; a segunda, a colaboração activa, o companheirismo, o espírito de corpo. Formar homens «amigos no Senhor» capazes de partilhar com todos a mesma missão, a missão de Cristo, é a finalidade prática da formação na Companhia de Jesus. O Decreto 26, o último da Congregação Geral XXXIV, sintetiza, desta forma, o ideal do nosso modo de proceder: «uma consagração incondicional à missão, livre de todo o interesse mundano e livres para todos» (ed. cit., p. 338). Eis a intensidade e a intencionalidade da formação: que os jesuítas, como os Apóstolos, estejam aptos e disponíveis para «seguirem para sempre a Cristo Nosso Senhor». A pessoa de Jesus, cativante dos dois discípulos de João Baptista, tornou-se, finalmente, a forma de vida deles, o anélito e o bater ritmado do seu coração, «por compasso» (EE 259), como no terceiro modo de orar. Na carta sobre a Eucaristia que o P. Geral Kolvenbach nos escreveu, datada de 15 de Fevereiro de 2006, fala-se da «respiração da comunidade» como sendo a Igreja que celebra a Eucaristia, e da Companhia como «um corpo de oração, e muito especialmente de oração eucarística». Os votos que os jesuítas pronunciam super hostiam, representam um último traço do nosso modo de proceder: «É o Senhor quem, ao dar-Se, recebe A formação na Companhia de Jesus 51 o desejo daquele que está “pronto e diligente para cumprir a sua santíssima vontade” (EE 91) como servidor da missão de Cristo. É na comunhão eucarística “que o mesmo Criador e Senhor se comunica à alma a Ele devotada, abraçando-a no seu amor e louvor e dispondo-a a seguir pelo caminho em que melhor o pode servir no futuro” (EE 15). Este encontro de Jesus no pão e no vinho eucarísticos conduz-nos à comunhão com o projecto do mesmo Deus, com o mistério pascal, e de uma maneira pessoal, “Ele e eu”. Por esta “sinergia” eucarística, por este encontro com o Ressuscitado, o companheiro que partilha este pão é enviado ao mundo para anunciar, por palavra e por obra, que “ressuscitou verdadeiramente”. É vivendo existencialmente a “memória” eucarística que a Companhia é, nas palavras de Francisco Xavier, “companhia de amor”» (12.01.1549). Citei o P. Geral. Passo ao nosso tema. A eficácia da formação na Companhia, não poderia equacionar-se nos mesmos termos? Parece-me que sim. Estamos situados no coração da Igreja, no centro da missão de Cristo, no pólo irradiador do Evangelho da salvação. É a nossa razão de ser: pregar em pobreza, à maneira dos Apóstolos. Conclusão Quando nos encontramos, cara a cara, com o mistério da vocação, quase podemos tocar, numa espécie de assombro, na liberdade absoluta de Deus. Só a Ele, de facto, pertence «entrar, sair, fazer moção na alma, trazendo-a toda em amor da sua divina Majestade» (EE 330). Santo Inácio sentia-se, nas mãos de Deus, como uma criança, e recomendou aos jesuítas que se comportassem com a mesma docilidade, obedecendo como se 52 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã fossem um pequeno crucifixo ou um bordão nas mãos de um velho, praticando a castidade com a prontidão e a generosidade própria dos anjos e amando a pobreza como mãe. Escreveu, no proémio das Constituições, que a Suprema Sabedoria e Bondade de Deus é que rege «esta mínima Companhia de Jesus» e que «a interior lei da caridade e amor, que o Espírito Santo escreve e imprime nos corações» ajuda mais, para a manter, governar e adiantar em seu santo serviço, do que qualquer «exterior constituição». Contudo, «a suave disposição da divina Providência pede a cooperação das suas criaturas» e, por isso, «parece-nos necessário escreverem-se Constituições que ajudem para melhor proceder» (Const., 134). Talvez a «forma» perfeita seja, de facto, a união convergente da «interior lei» e da «exterior constituição». O que deixamos dito sobre a formação só pretendeu sublinhar esta síntese, abrir o horizonte da compreensão da vida na Companhia de Jesus para um crescimento permanente em fidelidade criativa, «para alcançar amor». Quando Santo Inácio recomenda, por exemplo, no segundo exercício da Primeira Semana, que o exercitante faça «o processo dos pecados» (EE 56), inculca nele um sentido judicial, e não só indagativo. A meditação aparece, no entanto, já inserida num verdadeiro discernimento de espíritos. A progressão dos verbos para aí nos encaminha: ponderar, observar e considerar conduzem ao ambiente escatológico do ponto quinto, que não pretende despertar o temor mas uma «exclamação admirativa com acrescido afecto» (EE 60) que nos introduz no «colóquio sobre a misericórdia» (61). O sentido judicativo torna-se expressão do amor de Deus e da minha acção de graças, «como até agora sempre tem tido de mim tanta piedade e misericórdia» (EE 71). Está aqui, em núcleo, o método pedagógico inaciano «para em tudo amar e servir a Deus, nosso A formação na Companhia de Jesus 53 Senhor» (EE 363). Podemos ver, no texto da meditação dos pecados pessoais, como em tantos outros, o caminho da formação na Companhia: da informação enformativa da pessoa de Jesus, passa-se, com Ele, por Ele e n’Ele, à conformação transformativa em Cristo nosso Senhor no exercício da sua mesma missão. Ser jesuíta, parafraseando São Paulo, não é um título de glória, mas um ministério que foi confiado a alguns cristãos, Irmãos e Padres, como seu «modo de proceder», para que possam, em corpo eclesial e apostólico, conduzir a todos para Cristo. Ou, na expressão orante do Beato Pedro Fabro: «ir em ajuda de muitos, para os consolar, os livrar das suas doenças, os libertar e fortalecer, levar-lhes luz», como servidores da missão de Cristo, de Cristo que socorre, salva, cura, liberta, enriquece e fortifica. A forma da Companhia é o modo como Santo Inácio seguiu Jesus; é, em última análise, o próprio Jesus, «o nosso sumo pontífice, modelo e regra nossa» (EE 344), que o Pai, no Espírito Santo, nos convida a acompanhar: «Este é o meu Filho muito amado. Escutai-O» (Lc 9, 35; Mc 9, 8; Mt 17, 5). 55 A INCORPORAÇÃO DOS LEIGOS NA MISSÃO DA COMPANHIA DE JESUS Teresa Messias I Parte Antecedentes históricos Introdução A participação de leigos nos trabalhos apostólicos da Companhia de Jesus, pese embora ter hoje uma formulação, uma vivência e um suporte conceptual renovados nas fontes do Cristianismo e desenvolvidos à luz da Eclesiologia que se estruturou a partir do Concílio Vaticano II, não é uma novidade radical. Não é, por isso, uma novidade nascida deste último concílio ecuménico, embora, como veremos, tenha aí acontecido um novo impulso e um novo enquadramento eclesial. Ao tratar o tema da incorporação ou colaboração dos leigos na missão da Companhia – título que de algum modo aparenta trazer consigo uma novidade radical – é fundamental olhar para o passado (até porque o título geral desta SEEI nos propõe olhar o ontem, hoje e amanhã), para compreender e situar, desde os dinamismos da origem, o papel e relação dos leigos e da condição laical em geral com a experiência espiritual de Inácio de Loiola, como leigo e como sacerdote religioso, e com o carisma da Companhia de Jesus. É este percurso histórico que tentaremos fazer numa primeira parte. Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 56 1. Inácio de Loiola e a condição laical Íñigo Lopez de Loyola nasceu, segundo apuram os historiadores, no solar da família por volta de 1491. Segundo o hábito da época, deverá ter sido baptizado pouco depois do seu nascimento, em Azpeitia1. Apesar de ter recebido tonsura2 em criança, o seu próprio testemunho3 e os da época atestam o seu carácter requintado, tempestuoso4 e pouco dado a práticas religiosas até aos vinte e seis anos, altura em que é ferido em combate e obrigado a voltar à casa paterna entre a vida e a morte5. Cf. LETURIA, P., El Gentilhombre Íñigo López de Loyola en su patria y en su siglo, Ediciones Labor, 1949, 45. 2 Cf. Ibidem, 95. Íñigo terá sido tonsurado ainda criança. A tonsura era, nesta época, um rito eclesiástico com o qual se dava a pertença à estrutura eclesiástica. Mediante o rito, o tonsurado passava, efectivamente, a pertencer ao clero mas não no sentido que hoje damos à palavra, já que não recebia o sacramento da ordem. Passava a ser, de certo modo, um membro da instituição, sob o poder jurídico da hierarquia da Igreja e dos seus tribunais e podia até receber um benefício eclesiástico (uma espécie de salário) por parta da estrutura hierárquica. Mas esta condição não implicava, por parte de quem a recebia, a decisão pela vida celibatária nem pela futura recepção do sacramento da ordem. Cf. Ibidem, 47. Cf. DIEGO, Luis de, «Ignacio de Loyola sacerdote: de ayer a hoy», in: Manresa 63 (1991), 91. 3 «Era homem dado às vaidades do mundo […] com um grande desejo de ganhar honra» (IGNACIO DE LOYOLA, Autobiografia in: Obras de San Ignacio de Loyola, BAC, Madrid, 1997 6, [1], 100s.). Todas as citações da Autobiografia serão feitas a partir desta edição, com a abreviatura Obras Completas. Indicaremos entre [ ] o número do parágrafo original, seguido do número de página da edição usada. 4 Cf. LETURIA, P., El Gentilhombre Íñigo López de Loyola en su patria y en su siglo, Ediciones Labor, 1949, 85-97. 5 Obras Completas, [2], 101. 1 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 57 Na vida de Inácio, a sua conversão aos trinta anos, durante o longo período de convalescença no solar da família Loiola, a que lhe obrigou a bala recebida na batalha de Pamplona enquanto estava ao serviço do Vice-Rei de Navarra, é certamente um momento charneira, faz a separação entre dois períodos distintos da sua vida. A conversão de Íñigo não trouxe mudança formal no seu estado religioso. O gentil-homem dos Loiola continuou leigo como antes. Contudo, a sua vida irá testemunhar, pela transformação interior, a grandeza da condição laical, já no século XVI, quando a pessoa se entrega de coração rendido e livre à experiência de ser amado, conduzido e modelado por Deus, esse Deus que remete sempre à sua presença nos outros, nos que convivem connosco e andam pelos mesmos caminhos e encruzilhadas. É este percurso laical e as relações que manteve com os leigos, antes de chegar a Roma e nos anos imediatamente posteriores à aprovação da Companhia de Jesus por Paulo III, que nos interessa explorar. 2. Manresa e Barcelona É como leigo que Íñigo passa pelas profundas experiências espirituais de Manresa, aprende a buscar orientação espiritual e a dá-la. A sublime ilustração interior recebida nas margens do rio Cardoner não o fechou num intimismo espiritual. Muito pelo contrário, o que surpreende – muito mais quando visto à distância de cinco séculos – é o dinamismo de saída e esquecimento de si, de gratuidade e serviço que movem este leigo a usar todo o seu ser, sentir e saber para fazer bem às almas. Para servir a Deus nos outros, sendo para eles um instrumento con- Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 58 creto e próximo da bondade do Senhor a quem serve e que o cumula de tanta graça e bem. Nesta intuição carismática tem origem o modo de ser e proceder dos futuros companheiros de Jesus e, ainda, a compreensão da missão a que são chamados. Mas não nos antecipemos. Íñigo é, desde os tempos de Manresa, um leigo com actividade apostólica intensa. Busca a outros para pedir ajuda e deixar-se ajudar (tanto espiritual como materialmente), está atento às suas necessidades. Retribui com gratidão com todo o bem que pode fazer da sua parte a quem bem lhe fez e a quem não o fez, não sabe ou nem pode fazer. Este leigo sem estudos eclesiásticos resolve pôr por escrito a sua experiência de Deus e o que, nela, viu que lhe foi útil, com o fim de poder ser útil a outros6. Passou por desolações intensas e por consolações ainda maiores. Viu-se alvo de tentações e falsas consolações e aprendeu a discernir as verdadeiras7. Deixou-se acompanhar por Deus íntima e directamente e por Deus nos outros.8 O outro, «Depois das suas sete horas de oração, ocupava-se em ajudar algumas almas, que vinham ali buscá-lo, em coisas espirituais. […] Na mesma Manresa, onde esteve quase um ano, depois que começou a ser consolado por Deus e viu o fruto que fazia nas almas tratando-as, deixou aqueles extremos que antes tinha; já cortava as unhas e os cabelos» (Ibidem, [26.28], 117s). 7 Cf. Ibidem, [19-37] 113-122. 8 «Neste tempo conversava ainda algumas vezes com pessoas espirituais, as quais tinham crédito e desejavam conversar com ele […]» (Ibidem, [21] 114). Também no período de Barcelona esta atitude continuou: «Estando um dia ainda em Barcelona antes que se embarcasse [para Jerusalém, via Itália] segundo o seu costume buscava todas as pessoas espirituais, ainda que estivessem em ermidas da cidade, para tratar com elas. Mas, nem em Barcelona nem em Manresa, por todo o tempo que ali esteve, pode encontrar pessoas que tanto o ajudassem 6 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 59 clérigo ou leigo, homem ou mulher, será sempre para Íñigo uma presença próxima do Senhor Jesus Cristo a quem serve e para quem quer ser ajudado a orientar-se.9 Para os outros escreveu os Exercícios Espirituais (EE), pondo por escrito aquilo que em si havia experimentado como proveitoso, para que lhes pudessem servir de ajuda. A experiência de Deus contida nos EE – obra que continuou a enriquecer com notas e experiências pessoais durante mais de vinte anos – apresenta-se como uma metodologia e um carisma. Não é por isso estranho que se possa afirmar que «a inacianidade nasce como um carisma laical, descoberto por um leigo e com uma metodologia – os Exercícios – que foram concebidos desde esta perspectiva»10. como ele desejava; somente em Manresa aquela mulher, de quem acima está dito que lhe dissera que rogava a Deus para que lhe aparecesse Jesus Cristo: só essa lhe parecia que entrava mais nas coisas espirituais» (Ibidem, [37] 122). Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de Loyola», in: Manresa 66 (1994), 344. 9 Inácio não hesitou em ir conversar espiritualmente com uma piedosa mulher, em Manresa, que tinha fama de santidade, recebendo dela conselhos. «Havia em Manresa naquele tempo uma mulher de muitos dias, e muito antiga também em ser serva de Deus, e conhecida por tal em muitas partes de Espanha; tanto, que o Rei Católico a tinha chamado uma vez para comunicar-lhe algumas coisas. Esta mulher, tratando um dia com o novo soldado de Cristo, disse-lhe: – Oh! Rezo ao meu Senhor Jesus Cristo que vos queira aparecer um dia. Mas ele, espantando-se disto, tomando a coisa de modo grosseiro – Como me há-de aparecer a mim Jesus Cristo?» (Obras Completas, [21] 114s.). 10 CABARRÚS, Carlos Rafael, «La espiritualidad ignaciana es laical. Apuntes sobre “ignacianidad”», in: Diakonia 24 (2000), 19s. O mesmo autor acrescenta: «Só passados muitos anos e muitas experiências, os companheiros decidem constituir a Companhia de Jesus, onde se plasma a espiritualidade inaciana quando esta se faz congregação religiosa. Mas a origem do carisma inaciano é laical: em Manresa, em 1522, viveu Inácio a experiência espiritual 60 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã É a partir deste movimento de saída de si, em serviço e amor a Deus, que começam a reunir-se ao seu redor outros leigos, homens e mulheres. O que os atrai? A experiência de Deus que sentem em Íñigo, certamente. Mas para além dela, parecem ser atraídos pela capacidade deste homem levar outros a fazer a mesma experiência, o seu trabalho muito concreto e de cariz social, poderíamos dizer, partindo do acolhimento às situações de pobreza e carência com que se ia deparando. A pobreza escolhida de Íñigo, à imitação de Jesus pobre, expressão de uma confiança oferecida a Deus e abertura a que os outros pudessem ser necessários e úteis foi, sem dúvida, uma causa fundamental para o dinamismo deste movimento de leigos que se lhe foram reunindo. Pobreza de origem e consequências apostólicas e sociais. Em Manresa reuniu-se em redor de Íñigo um grupo de distintas senhoras que o ajudavam e mantinham conversações espirituais. Esse grupo chegou a ser chamado, não sem uma certa malícia11, as «Iñigas»12. Este é o primeiro grupo, do qual mais forte […] e só em 1534, em Montmartre (Paris) faz votos religiosos; quer dizer, durante mais de dez anos viveu a sua espiritualidade como leigo. A Companhia de Jesus dá um modelo de como se faz corpo um carisma, mas não o esgota, por princípio. O carisma inaciano pode ser vivido – e é vivido – em pessoas e em instituições não jesuítas, com pleno direito» (Ibidem, 20). 11 Em carta a Íñigo, em 1524, uma deste grupo, Inês Pascual, mostra que estava desanimada, entre outras coisas, pelo que alguns diziam das «Íñigas». Cf. Obras Completas, Introdução à Carta a Inês Pascual, 717. Cf. MI, Epistolae I, 71-73. A sigla MI significa Monumenta Ignatiana, nome da série de volumes pertencentes à colecção mais vasta com o título Monumenta Historica Societatis Iesu (MHSI), publicada em Madrid (1903-1911) pelo Instituto Histórico da Companhia de Jesus (IHSI), onde se encontram publicados em edição crítica os documentos relativos às origens da Companhia de Jesus. A seguir à sigla MI indica-se o título dado ao volume citado, seu número e a página. 12 Conhecem-se os nomes de algumas das senhoras que faziam parte deste grupo: Inês Pascual, Ângela Amigant, Micaela Canyelles, Inês A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 61 há registo, que se juntou ao redor do futuro fundador da Companhia de Jesus: um grupo de mulheres leigas. Pela pobreza assumida em Cristo, Íñigo pode aceitar ajuda e oferecer ajuda. Soube ser canal de graças espirituais e de bens materiais. Foi despoletando todo um movimento de caridade prática ao qual estava unido o ministério da palavra, em serviço da fé. Já aqui, estrutura-se um perfil carismático: serviço da fé e promoção da justiça. Em Barcelona, quer durante o mês de espera pelo barco que o haveria de levar a Itália para daí seguir para Jerusalém quer, mais tarde, durante os dois anos de estudo que aí realizou quando se viu expulso da Terra Santa contra a sua vontade, surge também um grupo de mulheres leigas, da alta nobreza catalã, que colaboram apostolicamente com o Peregrino13. Uma dessas mulheres, Isabel Roser, na altura casada com Juan Roser, haveria de protagonizar mais tarde, já viúva, acontecimentos de grande impacto na história inicial e futura da Companhia de Jesus. Mas no grupo de Barcelona não havia só mulheres. Íñigo privava também com alguns homens leigos, um primeiro intento de criar um grupo de companheiros «que fossem como Calavera, Jerónima Calavera, Brianda Paguera. Cf. Obras Completas, 121; Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de Loyola», in: Manresa 66 (1994), 344. Cf. MI Scripta Ignatii II, 360-365. 13 Nesse grupo conta-se Estefânia de Requesens, filha do Conde de Palamós e descendente da mais antiga nobreza catalã. Por essa altura estava prometida a Juan de Zúñiga y Avellana, grande comendador de Castela. Através destes vínculos pode ver-se como a fama e as relações de Íñigo com este grupo de leigas repercutiam sobre a nobreza de Espanha e abriam contactos e possibilidades apostólicas mais vastas. Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de Loyola», in: Manresa 66 (1994), 345. Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 62 umas trompetas de Jesus Cristo»14: Calixto de Sá, Lope de Cáceres e Juan de Arteaga15. Que relações tinha Íñigo com este grupo de pessoas? Basicamente o mesmo que desenvolveu em Manresa. Recebia apoio material para os seus estudos, mantinha conversas sobre assuntos espirituais com algumas pessoas, orientando e deixando-se orientar, aceitava a colaboração apostólica nas diversas obras a que se dedicava ao serviço dos pobres e necessitados. 3. Alcalá de Henares e Salamanca: congregando um grupo de leigos Terminados os primeiros estudos de latim e humanidades, o filho dos Loiola decide ir-se para Alcalá de Henares, a fim de continuar a sua formação, começando estudos em artes liberais ou filosofia. Juntamente com os estudos desenvolve-se a vertente apostólica e o trato espiritual com um grupo variado de pessoas. Íñigo faz-se acompanhar do manuscrito dos Exercícios Espirituais. Continua a sua opção de pobreza, pedindo esmola, travando conversas espirituais com quem o buscava. Também aqui um grupo de mulheres se forma em redor do Peregrino. Desta vez nãos serão senhoras da alta nobreza mas mulheres de classe média e até algumas de comportamento algo duvidoso16. POLANCO, Sumario de las cosas más notables, in: MI Font. narr., I, 170s, notas 8, 9 e 10. 15 Haveriam de segui-lo para Alcalá e ao grupo se juntaria mais um: Juan Reynalde. Cf. Obras Completas, [56] 134, nota 6. 16 Maria da Flor, Beatriz Ramírez, Isabel Sánchez, entre outras. As fontes são as actas dos processos inquisitoriais movidos contra Íñigo em 14 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 63 Este leigo, vestido com burel grosseiro, rodeado de alguns homens e várias mulheres, falando de assuntos religiosos sem ter estudado teologia (e com afluência de muita gente17), orientando na experiência de Deus homens e mulheres, dando os Exercícios Espirituais a alguns, trabalhando para socorrer e prover aos pobres, chamando a atenção pelo seu modo de viver e subsistir por meio de esmolas, não podia senão cair sob a suspeita de ser alumbrado aos olhos da Inquisição e de alguns rivais. Tanta originalidade, unida a alguma singularidade, acaba mais uma vez por levá-lo ao cárcere, agora em Alcalá, donde saiu ilibado. No entanto, recebeu como sentença a impossibilidade de poder falar sobre coisas de fé enquanto não estudasse mais quatro anos18. Pareceu a Íñigo que, com tal sentença, se lhe fechava a porta para «aproveitar às almas», não por algum motivo sério senão, apenas, porque não tinha estudado o suficiente, resolveu pedir conselho ao Bispo de Toledo sobre o que fazer. Este basco é homem que pede conselho, que se deixa conduzir, que não tem vergonha da sua dúvida ou incapacidade para ver o caminho. E aqui está, também, muita da sua grandeza de alma. A um homem assim, o Espírito Santo pode conduzir. E, por meio do Bispo, o Senhor leva-o a decidir estudar em Salamanca. Aqui repete o mesmo modelo de vida anterior: vive com companheiros, relaciona-se com benfeitoras e benfeitores que o ajudam no auxílio aos pobres, tem conversas espirituais e dá os seus Exercícios. Resultado: novo processo movido pela InquisiAlcalá. Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de Loyola», in: Manresa 66 (1994), 345. 17 Cf. Ibidem, [57] 135. 18 Cf. Ibidem, [62] . Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 64 ção, com passagem pela prisão e respectiva sentença favorável. Mas com a sentença vem a proibição de, daí em diante, estarem impedidos de definir o que era pecado mortal e pecado venial. Tal impedimento convence rapidamente o leigo Íñigo a ir da cidade. O motivo de tanta rapidez é este: sem condená-lo a coisa alguma, ao impedirem-no de falar às pessoas sobre o que era pecado mortal e venial, fechavam-lhe a boca, o que o impede de ajudar os próximos nas coisas de Deus. Sem ajudar os outros para Deus, Íñigo não consegue ver sentido para o seu trabalho, não consegue ser nem viver. É também esta visão do serviço e do amor a Deus que ele partilha com estes grupos de leigos e leigas que o rodeiam. 4. A experiência de Paris A vida em Paris abre uma nova e indelével página na experiência laical de Íñigo. Só e a pé19, deixando para trás os anteriores grupos de leigos e leigas que com ele colaboravam e partilhavam ideais apostólicos – os companheiros de Alcalá não o seguem20 – inicia-se nas margens do Sena uma nova aventura de colaborações. O facto de em Alcalá Íñigo ter sido preso por causa do desaparecimento de duas mulheres que frequentavam o seu círculo, Cf. Ibidem, [73], 145. Mais tarde, Polanco, ao referir-se aos intentos de Inácio para reunir em torno a si um primeiro grupo de companheiros leigos, discípulos de Cristo, por terras de Espanha, dirá: «esta sua companhia, como parto primeiro (prematuro?) não prosperou nem conservou muito». POLANCO, Summarium hispanum, in: MI Font. narr., I, n. 35, p. 171. 19 20 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 65 acrescido de não falar francês, de aumentar muito o tempo dedicado ao estudo e de a Universidade excluir a presença de mulheres parece, em conjunto, explicar21 que Íñigo tenha reduzido as suas relações iniciais a homens que falavam castelhano. Por outra parte, quer aproveitar nos estudos e para isso aceita reduzir as suas actividades, o que também reduz os seus contactos22. Continuará, contudo e apesar de tudo, fiel aos grandes traços que marcam o seu estilo de vida laical e apostólica: dar os Exercícios, manter conversas espirituais para fazer bem às almas, pedir esmola como pobre e, desde essa situação, confiar-se à providência de Deus, partilhar os seus projectos apostólicos com aqueles que lhe saem ao caminho e «ganhar» para Deus, para a sua maior glória e serviço. É com este estilo de vida, com este «modo de proceder» que começará a ganhar forma e corpo o grupo dos primeiros de Paris23, os primeiros companheiros que vieram a fundar juntos a Companhia de Jesus. Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de Loyola», in: Manresa 66 (1994), 347; cf. SOTO, Wenceslao, «Ignacio de Loyola y la mujer», in: Proyección 44 (1997), 306. 22 «Naquele tempo [em Paris] não o perseguiam como dantes. E a este propósito, uma vez disse-lhe o doutor Frago que se maravilhava de que andasse tão tranquilo, sem que ninguém o incomodasse. E ele respondeu-lhe: – A causa é porque eu não falo com ninguém das coisas de Deus; mas, terminado o curso, voltaremos ao mesmo de sempre» (Obras Completas, [82] 155). 23 Título do óptimo artigo de José Garcia de Castro: «Los primeros de París: amistad, carisma y pauta», in: Manresa 78 (2006), 253-275. 21 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 66 A comunidade de Paris: que traços característicos? A época de Paris (1528-1535) é das mais analisadas da história da Companhia de Jesus. Para o tema em apreço interessa-nos analisar as características do grupo que se formou: quanto ao modo como ele foi constituído, o tipo de relações estabelecidas, ideias e objectivos, estado de vida das pessoas que o integram, motivações. Em Paris forma-se um grupo de amigos todos leigos24 primeiro, e depois com alguns sacerdotes, estudantes, marcados não só pelo trato pessoal com Inácio (em Paris, Íñigo resolve mudar o nome para Inácio) mas, sobretudo, pela experiência de fazerem sob a sua orientação os Exercícios Espirituais de mês e partilharem juntos o mesmo objectivo de vida: estudo e serviço. Que rasgos os marcam, sobre os quais se estabelecem estas vinculações pessoais que desembocam no compromisso comum dos votos? Pedro Fabro foi ordenado presbítero em 30 de Maio de 1534, depois de ter feito, entre Janeiro e Fevereiro do mesmo ano, Exercícios de mês com Inácio (cf. GARCÍA DE CASTRO, José, Pedro Fabro, la cuarta dimensión: orar y vivir, Editorial Sal Terrae, Santander 2006, 133.) Significa então que, desde a chegada de Íñigo a Paris em Fevereiro de 1528, haviam passado cerca de seis anos durante os quais se foi plasmando a relação de amizade, camaradagem, serviço apostólico e estudo, sem que nenhum deles fosse presbítero embora, sem dúvida, essa opção estivesse presente como possibilidade de serviço a Deus e aos outros. Fabro é disso a prova. Mas a opção pelo sacerdócio como ministério não pode, de modo algum, absorver ou reduzir a componente laical dos anos de Paris. Alguns dos primeiros companheiros de Paris que fizeram o voto de 1934 haviam recebido a tonsura (Inácio, Xavier e Bobadilla; ver GARCÍA DE CASTRO, José, «Sacerdócio en ejercicio. Los primeros sacerdotes jesuitas», in: Manresa 74 [2002], 342ss.). Esse facto, tecnicamente, fazia deles 24 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 67 1. Atracção por uma personalidade singular que motiva para Deus Inácio exerceu uma atracção, não um fascínio, sobre os companheiros. Atracção desenvolvida lentamente e fundada na sua experiência espiritual e humana, nas lutas, consolações e provações por que já havia passado. A vida peregrina de Inácio, cheia de peripécias e bênçãos, deve ter sido, em si mesma, um atractivo não pequeno. A liderança espiritual de Inácio vai surgindo naturalmente, ao mesmo tempo que se desvela a sua genuína vontade em ajudar os outros a orientarem-se para Deus e a sua capacidade de discernimento25. O nobre basco é homem de ideais, levado pelo desejo de se deixar conduzir segundo o projecto de Deus. Tem horizontes apostólicos rasgados: a ida a Jerusalém está-lhe marcada na alma. É desde aí que ele que ser enviado por Jesus a trabalhar com Ele no mundo. clérigos. Mas naquela época, como se disse, esse rito significava sobretudo uma certa dignidade e o direito a um benefício pecuniário. Não implicava de si a opção discernida da futura ordenação presbiteral. A importância destes anos de «comunidade laical» para o perfil apostólico do grupo fica patente quando se considera que, apenas dois meses e meio depois da ordenação de Fabro, em 15 de Agosto de 1534, o grupo dos primeiros fazia em comum os seus votos em Montmartre. E nos testemunhos que temos desse voto e do seu contexto, reina um impressionante silêncio sobre o tema do sacerdócio como decisão individual ou colectiva. Este silêncio não significa que o desejo de se ordenarem esteja ausente. Simplesmente não ganha protagonismo. Do que não há dúvidas é que queriam «gastar a sua vida a ajudar as almas» (cf. Ibidem, 347-350). 25 Segundo Simão Rodrigues, Inácio «como a pessoa já mais experimentada em trabalhos, sempre os outros companheiros o tiveram como pai e guia em todas as coisas, e depois o elegeram por Geral» (MI Font. narr., III, 10). Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 68 Por outro lado, o filho dos Loiola tem a capacidade de congregar gente em torno a si e ao seu estilo de vida. É simultaneamente acolhedor e dinamizador. Está interessado em ter companheiros e esforça-se por isso. «Ganha-os para Deus» que é como quem diz, recebe-os como dom e fruto do seu serviço ao Senhor. Mas ganha-os com gratuidade, com genuína amizade nascida da disponibilidade pobre de si. Mas ganha-os também partilhando com eles as suas fraquezas: a ignorância, a fraqueza, a pobreza e a doença. Inácio deixa-se ajudar nos estudos, não esconde a sua necessidade material e de saúde, aceita o conselho dos companheiros quando estes o aconselham a regressar à sua terra natal por causa da saúde26. Mais importante que a história passada do Peregrino, Inácio surge em Paris com um projecto de vida assumido: viver em pobreza, em castidade, em atitude de serviço (estudar para poder ajudar as almas), numa mística de seguimento apaixonado de Jesus mas vivida no coração das preocupações quotidianas e das tribulações dos seus irmãos, numa abertura criativa àquilo que Deus lhe vai propondo ou sugerindo desde os acontecimentos. 2. Experiência humana de camaradagem e partilha As experiências de partilha e de amizade requerem condições. Antes de mais, tempo. Em Paris, Inácio permaneceu sete anos. Neste espaço de tempo puderam desenvolver-se laços de amizade. A amizade (como todos os processos humanos profundos) requer tempo. Necessita da mediação do quotidiano 26 Cf. Obras Completas, [85], 157. A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 69 partilhado, da prova dos altos e baixos, da fidelidade repetida em cada gesto de interesse e atenção, em cada pedido de perdão. A partilha do ambiente de trabalho, a universidade, os professores, o esforço do estudo com os seus sucessos e revezes, a ajuda mútua que se prestavam, partilhando os bens (chegando alguns a partilhar habitação, estudo e a bolsa27) materiais e aprendendo a conhecer, apreciar e integrar os temperamentos dos companheiros, com os seus dons e limites. Em Paris partilham-se descanso e actividade, perseguição e provações, ideais e meios concretos para os levar à prática. 3. Uma forte experiência de Deus com traços comuns Os Exercícios Espirituais são, sem qualquer dúvida, o berço da «inacianidade» que se gera na comunidade de Paris. Eles oferecem uma forma de olhar Deus e mundo. Permitem uma proximidade vital à pessoa e à humanidade de Jesus que cria intimidade e compromisso. Enraízam na humildade através dum conhecimento próprio do pecado e da infinita misericórdia de Deus. Abrem para uma resposta de amor concreto, dada através de um discernimento sério e comprometido com o mundo Inácio e Fabro partilhavam não só o mesmo quarto (também com Xavier), mas ainda «a mesma mesa e a mesma bolsa». Com o fruto das peregrinações de Inácio à Flandres e a Londres, de onde trazia esmolas com as quais podia subsistir em Paris, chegou a ajudar Fabro. Cf. MI Fabri Monumenta, Mem. [8], 493. Cf. GARCÍA DE CASTRO, José, «Los primeros de París: amistad, carisma y pauta», in: Manresa 78 (2006), 257s. Laínez dirá que esse tempo se caracterizava por «termos especial amor uns aos outros e ajudar-nos temporalmente no que podíamos» (Ibidem, 262s.). 27 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 70 tal como ele é, porque aí é o lugar onde Deus trabalha por Ele e quer ser servido nos outros. Cristo Crucificado e Ressuscitado é o centro dos Exercícios. É Ele, servidor passivo e activo, carregado com a Cruz e glorificador do Pai, a pessoa que congrega, aceita e envia em missão pelo mundo. É este sacerdócio da cruz de Cristo que motiva mais que tudo. Aqui está o modelo da disponibilidade à missão, da pobreza evangélica, da retribuição amorosa e operosa de si. Pelos Exercícios todos são introduzidos numa gramática espiritual, numa mesma espiritualidade e nas suas implicações práticas. Ganham um vocabulário comum, um modo específico de relação com Deus (contemplação de Cristo e discernimento desde o mundo interior e exterior), um meio para se deixarem conduzir para aquilo que Deus há-de vir a querer de cada um deles e do grupo como um corpo. Têm todos o mesmo desejo e decisão: ajudar às almas. 4. Um oferecimento apostólico comum: o voto de Montmartre A resultante do modo de ser e viver em comunidade de discípulos plasma a decisão de se entregarem a Deus através de um voto comum a todos28. É a primeira deliberação do grupo com consequências a longo prazo. As opiniões não são unânimes logo de início mas chegarão a uma decisão comum. Nela está, mesmo se ainda não têm disso consciência, a origem da futura ordem religiosa que formarão. Tal decisão fundamenta-se no seguimento radical de Jesus ao modo dos apóstolos, com o propósito de gastar a vida ao serviço de Deus e ajuda das almas. 28 Cf. MI Fontes narr., VII, 184. A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 71 O voto, feito em 15 de Agosto de 1537 pelos sete primeiros, tem um horizonte temporal, isto é, entra em aplicação depois que tenham terminado os estudos em Paris. Ou seja, a matéria do voto consta em que, acabados os estudos: a) Irão em peregrinação a Jerusalém para aí se gastarem ao serviço de Deus e das almas; este voto tem uma cláusula condicional: caso não consigam passagem para Jerusalém no espaço de um ano, irão oferecer-se ao Papa para que este, conhecendo melhor que ninguém as necessidades e urgências da Igreja, os envie para onde forem mais necessários e o serviço de maior glória de Deus; b) Viverão em pobreza; também este voto tem uma cláusula: não obrigará em consciência enquanto não terminarem os estudos em Paris. Surpreendentemente, as fontes não falam em nenhum voto para se fazerem sacerdotes nem num voto de castidade29. Sobre este silêncio textual relativo à opção do ministério ordenado ver GARCÍA DE CASTRO, José, «Sacerdocio en ejercicio. Los primeros sacerdotes jesuitas», in: Manresa 74 (2002), 347ss. Alguns autores consideram que a opção pelo voto de castidade está implícita no voto de se dedicarem ao serviço de Deus e da ajuda às almas e que a decisão comum de se dedicarem ao serviço apostólico tem implícita, já aqui, uma decisão pelo sacerdócio ordenado, precisamente em função do serviço (cf. Ibidem, 347; cf. O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero – Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 50; cf. KOLVENBACH, Peter Hans, «En el 450 aniversario de los votos de Montmartre», in: Selección de escritos (1983-1990), Madrid 1992, 33; Cf. DIEGO, Luis de, «Ignacio de Loyola sacerdote: de ayer a hoy», in: Manresa 63 [1991], 91). 29 72 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã O certo é que durante o tempo de Paris, até que partem para Itália, nenhum deles – excepto Fabro – foi ordenado presbítero. Será apenas depois de um encontro com Paulo III em Roma, a quem vai um grupo pedir autorização para irem como peregrinos a Jerusalém que, juntamente com aprovação e a bênção papal, recebem apoio económico e a autorização para serem (os que podiam) ordenados presbíteros pelo Bispo que escolherem30. Em Veneza, ordenados pelas mãos do Bispo de Arbe em 24 Junho de 153731, assumem então como grupo a sua identidade sacerdotal e fazem votos de castidade e pobreza32. Paris é, podemos dizer, a experiência de entrega radical a Cristo e à sua missão, uma disponibilidade comprometida com o futuro para gastar a vida, no que for maior glória de Deus O P. Luís Gonçalves da Câmara, ao descrever no seu memorial o processo da deliberação de Paris, afirma que o modo concreto como o grupo se haveria de entregar ao serviço de Deus não foi logo decidido, chegando o grupo a concluir que haveriam de continuar esse discernimento diante de Deus quando estivessem em Jerusalém. E se não chegassem aí, então haveriam de pedir ao Papa que os aconselhasse e encomendasse sobre o modo de concretizar a sua decisão de servir a Deus. E se o Papa aprovasse este seu oferecimento, então lhe pediriam (para isto se poder melhor fazer) licença para pregar e ministrar os santíssimos sacramentos da confissão e comunhão por todo o mundo. Este texto pode, eventualmente, deixar em aberto a questão sobre uma clara decisão tomada por todos a respeito da ordenação sacerdotal. O mesmo afirma Polanco em Summarium hispanum, in: MI, Font. narr. , VII, 185. 30 Cf. O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero – Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 51; cf. HIRSCHFELD, José García, «Origen de la comunidad en la Compañía de Jesús», in: Manresa 63 (1991), 404. 31 Cf. GARCÍA DE CASTRO, José, «Los primeros de París: amistad, carisma y pauta», in: Manresa 78 (2006), 270. 32 Cf. Obras Completas, [93], 167. A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 73 e sob o seu discernimento, uma opção comum de pobreza e castidade vivida por um grupo composto maioritariamente por leigos. Leigos que vislumbravam no seu horizonte, com grande probabilidade, o ministério sacerdotal como meio de ajuda aos outros. Vendo por este prisma, pode-se dizer que não foi o Sacerdócio ministerial que lhes conferiu as características profundas da sua disponibilidade para a missão. Foi, antes, o oferecimento incondicional de si mesmos a Jesus e à sua missão de bem-fazer que os configurou e orientou, individualmente e como corpo, para o exercício do ministério ordenado. 5. Itália: ordenações e a escolha do nome Companhia de Jesus O fim dos estudos trouxe um incremento na actividade apostólica do grupo, juntamente com a ordenação presbiteral. No Véneto, repartidos em pequenos grupos para preparar a sua ordenação como sacerdotes ou já depois de ordenados, esperando barco para Jerusalém, o grupo desenvolve um amplo leque de actividades apostólicas, sobretudo em hospitais: faz limpezas, ajuda os doentes e serve os pobres, prega a palavra de Deus, ouve confissões e entabula conversas espirituais com os que se lhe deparam, dá os EE, chegando a conseguir mais uns candidatos33. Vivem pobremente. Pedem esmola para se sustentar. É neste momento que tomam uma decisão marcante: decidem dar-se a si próprios um nome, uma forma de exteriorizar Cf. HIRSCHFELD, José García, «Origen de la comunidad en la Compañía de Jesús», in: Manresa 63 (1991), 402. 33 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 74 uma identidade própria que sentiam ser já parte da sua vida de grupo. Já depois de ordenados, em Veneza, antes de se dispersarem em pequenos grupos pelo Véneto, decidem escolher um nome para o grupo, pois já começam a ser conhecidos por Iñigistas34. Daí o motivo para a deliberação sobre o nome. Acabam por escolher Jesus como referência do grupo: a Companhia será de Jesus. A primazia do grupo não tem nenhum dos seus membros mas só Jesus é a Cabeça, o líder e o Chefe. É Ele quem atrai e envia cada um. A visão de La Storta – na qual Inácio se sente recebido ao serviço do Pai e oferecido por Este ao serviço de Jesus que carrega com a Cruz, recebida a certeza de que o Pai lhes será favorável em Roma – será considerado por Inácio como uma confirmação decisiva do nome «Jesus» para centro e Chefe do grupo35. 6. O termo companhia e a sua importância no séc. XVI Ao contrário de algumas interpretações de carácter militarista36, a expressão companhia era nesta altura bastante usada para significar apenas a reunião de um grupo de pessoas, dando-lhe um certo carácter institucional e público. Pode considerar-se como sinónimo de confraria, irmandade, associação ou congregação37. Cf. ITURRIOZ, J., «Compañía de Jesús. Sentido histórico y ascético de este nombre», in: Manresa 27 (1955), 51. 35 Cf. Ibidem, 48-51. 36 Cf. Ibidem, 45-48. 37 Cf. O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero – Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 52. 34 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 75 Por esta altura abundavam por toda a Europa e também em Itália38 compagnie de toda a sorte, dedicadas aos mais variados fins, instituídas com o fim de reunir esforços e meios com os quais se pretendiam realizar determinados objectivos práticos, assistenciais (sociais) ou espirituais. Tinham uma importante repercussão na vida religiosa e social. Apresentavam-se numa «variedade quase infinita de modelos de piedade, nas “obras” que empreendiam para os seus próprios membros e para outros, nas suas relações com as instituições civis e eclesiásticas e na composição social e económica dos seus membros»39. O quadro que configura uma «companhia» é o de uma associação laical, com forte motivação religiosa, destinado a dar apoio e ajuda mútua aos seus membros, permitindo uma maior motivação e acção para o exterior do grupo, realizando e financiando actividades de carácter social ou religioso. A partir desta realidade surgiram as Ordens Terceiras, relacionadas com os Dominicanos e Franciscanos, que se enquadravam nesta realidade das confrarias de leigos piedosos e desejosos de perfeição. Vale a pena ler uma descrição da situação em Itália na época em que o grupo de Paris resolve dar-se um nome: «Quando Inácio e os seus companheiros chegaram pela primeira vez a Itália deveram encontrar-se com o facto de que O papel das Confrarias na Idade Média encontra-se tratado em ampla bibliografia. Cf. Ibidem, 239, nota 151. J. Iturrioz afirma que nesta altura «em quase todas as cidades de Itália havia uma ou várias Companhias» (ITURRIOZ, J., «Compañía de Jesús. Sentido histórico y ascético de este nombre», in: Manresa 27 [1955], 46). 39 O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero – Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 240. 38 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 76 as confrarias eram uma realidade tão numerosa e bem estabelecida que, de um certo ponto de vista, às vezes pareciam definir a Igreja italiana; de outro ponto de vista, pareciam instituições cívicas ou municipais, com motivação religiosa; distinções praticamente sem sentido no século XVI. Contudo, olhem-se por onde se olhem, não eram sucursais nem da Paróquia, nem do Município, mas sim entidades autónomas no seu governo e nas suas decisões que trabalhavam para o “bem comum” de modos muito bem definidos por elas mesmas»40. As companhias eram, portanto, associações laicais de profunda raiz religiosa, destinadas a fazer bem aos outros, recolhendo meios materiais e ajudas, com fins específicos. É neste enquadramento que os primeiros companheiros de Inácio decidem chamar-se «Companhia de Jesus». Analisando o contexto histórico parece poder concluir-se que, ao fazer tal escolha, o grupo se situava, na sua dinâmica de vida e acção, mais próximo da realidade associativa religiosa laical do que outra qualquer forma de associação. O que certamente ainda não se entendiam era como Ordem religiosa. Para além de serem a matriz sobre a qual o grupo dos companheiros se auto-identificou, as companhias tiveram ainda um outro tipo de influência, com repercussões importantes, no modo como os primeiros companheiros de Jesus serviam Deus e as almas e concebiam a missão. Desde o princípio, os Jesuítas estabeleceram relação com estas associações, chegan- 40 Ibidem, 241. A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 77 do mesmo Inácio e alguns outros a filiarem-se nelas41. Com o tempo, a tendência para a afiliação neste tipo de associações foi abandonada, com receio de que a pertença a tais instituições pudesse diminuir a disponibilidade apostólica que se requeria dos membros da Companhia de Jesus42. Mas para além de se associarem a Companhias já existentes ou que surgiam nesses primeiros tempos, Inácio e os companheiros constituíram eles mesmos novas Companhias com o fim de realizarem as obras apostólicas que entendiam ser serviço de Deus. Faziam-no através da colaboração com leigos que não só integravam os corpos dirigentes da associação como ajudavam ombro a ombro na recolha de bens materiais, na difusão das práticas de piedade e na realização das tarefas concretas de ajuda social. «Em 1540, Inácio promoveu por carta, na sua Azpeitia natal, a Confraria do Santíssimo Sacramento, fundada em Roma pelo Dominicano Tommaso Stella, apenas dois anos antes. En 1541, ele e outros cinco jesuítas afiliaram-se a essa mesma Confraria na Igreja de Santa Maria da Estrada, onde fica hoje o Gesú. Mais ou menos por esse tempo, Inácio ingressou na Confraria do Espírito Santo, agregada ao hospital do mesmo nome e pagou dinheiro suficiente para garantir a sua filiação durante os seguintes vinte anos. […] Os Jesuítas não só colaboraram com as Confrarias existentes de maneiras muito variadas, inclusive ajudando a reformá-las, mas ainda se responsabilizaram directamente pela fundação de muitas novas « (Cf. Ibidem, 241; 243). 42 Cf. Constituições da Companhia de Jesus, 651. É interessante a leitura que faz John O’Malley desta mudança de atitude: «Esta política [de dissuadir a que os Jesuítas se filiassem nas companhias] indicava também que os Jesuítas acreditavam que os seculares eram capazes de dirigi-las por si mesmos» (O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero – Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 242). 41 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 78 Assim, surge entre muitas outras existentes à época43, a Compagnia della Grazia, uma associação criada para apoiar e manter a Casa de Santa Marta, uma obra apostólica destinada a recolher e reorientar as mulheres que praticavam a prostituição na cidade de Roma em meados do século XVI44. Em 1540, em Parma, Pedro Fabro funda uma das primeiras associações de que os Jesuítas se responsabilizaram, exclusiva para homens, que admitia tanto sacerdotes como leigos e que tomou o nome de Compagnia di Gesú, acabando por ser uma fonte de vocações para a nova Ordem religiosa.45 Mas nem sempre as Congregações fundadas eram exclusivas para homens ou senhoras ou para uma classe sócio-profissional. Também as havia mistas e abertas a um leque variado de proveniências, englobando nobreza e gente simples do povo. A ênfase dada aqui à realidade das companhias tem uma finalidade: mostrar como tanto o ser como o agir dos primeiros companheiros sintoniza, no seu modo de estar, com a realidade também laical do seu tempo. O estilo de actividade apostólica e Inácio também iniciou a Compagnia dei SS XII Apostoli e os Jesuítas fundaram bastantes outras. Cf. ITURRIOZ, J., «Compañía de Jesús. Sentido histórico y ascético de este nombre», in: Manresa 27 (1955), 46. 44 Daqui haveriam de surgir as primeiras mulheres Jesuítas da história, lideradas pela viúva catalã Isabel Roser. Apesar de ser uma experiência de muito curta duração, as peripécias do processo – que começou por desejo e ordem do Papa Paulo III, o qual deu ordem ao P. Inácio para receber os votos religiosos dessas senhoras – deixaram em Inácio a convicção de que a Companhia de Jesus nunca poderia no futuro ser obrigada a aceitar mulheres com votos de obediência feitos ao Padre Geral. 45 E este não foi caso único: Silvestre Landini fará o mesmo criando uma associação para estudantes, com o mesmo nome, em 1549. Cf. O’MALLEY, John W., Los primeros Jesuitas, Ediciones Mensajero – Editorial Sal Terrae, Bilbao 1993, 243. 43 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 79 até organizativa dos inícios está, não só próxima mas aberta e em relação de colaboração com todos, particularmente dos leigos. 7. Roma de 1540 e a colaboração com os leigos na missão da Companhia de Jesus Por alturas de 1543, poderia ser traçado o quadro seguinte, sobre relações entre os Jesuítas e os leigos. Inácio e os seus companheiros entendem claramente que a sua missão apostólica não se reduz a administração de sacramentos, embora também a inclua. Muito para além desta componente especificamente vinculada ao ministério sacerdotal, há uma multiplicidade de tarefas apostólicas ligadas à moral e à justiça social que se lhes apresentam como componente inseparável do serviço a Deus. Há que cuidar das almas e dos corpos e isso requer envolvimento em tarefas «temporais», em estruturas da sociedade. A maior eficácia na missão pede uma estratégia que recorre aos recursos da época: usar a tendência para formar associações. Para garantir os recursos necessários criam-se grupos, idoneamente reconhecidos pela Igreja, providos de um número suficiente de benfeitores que colaboram com dinheiro, com o prestígio pessoal e os seus contactos, com os seus bens, casas, tempo e disponibilidade pessoal. Confiam-se grandes responsabilidades a leigos e leigas46 das mais variadas condições e proveniências. Estas últimas chegam Cf. ITURRIOZ, J., «Compañía de Jesús. Sentido histórico y ascético de este nombre», in: Manresa 27 (1955), 46; Cf. CHAUVIN, Charles, «La maison Sainte-Marthe. Ignace et les prostituées de Rome», in: Christus 149 (1991), 120s. 46 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 80 a ser incumbidas por Inácio de dirigir obras apostólicas47. Estamos, sem qualquer dúvida, numa experiência de colaboração apostólica na missão da Companhia de Jesus48. Por sua vez, estes leigos são acompanhados pelos Jesuítas, de quem recebem apoio, conselho e amizade, têm acesso aos sacramentos, a ajuda espiritual (incluindo os EE) e material. Fazem ainda juntos o discernimento e avaliação dos trabalhos empreendidos. São chamados e estimulados a um alto e radical seguimento de Cristo a partir do estado e situação em que se encontram49. Com as fundações de colégios jesuíticos veio a aplicação do potencial deste tipo de associações ao mundo estudantil. Nesta opção pastoral está a origem do que virão a ser as Congregações É o caso de Isabel Roser e de Leonor Osório, esposa de Juan de Vega, embaixador de Carlos V em Roma e do próprio Embaixador, entre outras. Cf. GARCÍA MATEO, Rogelio, «Mujeres en la vida de Ignacio de Loyola», in: Manresa 66 (1994), 347. O caso da Princesa Joana de Áustria, a única mulher que foi recebida por Santo Inácio e morreu, efectivamente, com estatuto formal de Jesuíta mas viveu como leiga, tem também contornos interessantes para o tema da colaboração na missão, até pelo muito que ajudou a Companhia de Jesus em momentos difíceis. Mas, até porque morreu como religiosa Jesuíta embora vivesse no seu contexto, tal incursão sairia fora do âmbito deste trabalho. 48 Cf. CHAUVIN, Charles, « La maison Sainte-Marthe. Ignace et les prostituées de Rome», in: Christus 149 (1991), 120s. 49 «Para Inácio, não é tão decisiva a distinção de estados na Igreja (distinção que certamente não ignora), quanto a preocupação por ajudar a conseguir que nos distintos estados e variadíssimas situações em que cada um se encontra (por eleição divina, claro) busque o maior serviço divino. Isto implica sempre a atenção ao existencial, não partindo nunca de uma concepção “essencialista” e “descendente”, mas antes “existencialista” e “ascendente”. O mais decisivo é, uma vez feita a eleição de estado, ter a 47 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 81 Marianas, cuja origem remonta a 1563 (sete anos depois da morte de Inácio), ao ambiente estudantil do Colégio Romano e ao rasgo apostólico do jesuíta belga Jean Leunis. O traço mais característico e que distinguia estas associações das outras onde os jesuítas também se empenhavam era o uso específico dos Exercícios Espirituais como matriz do processo espiritual do grupo50. Pode agora ver-se como o surgimento das Congregações Marianas tem a sua origem numa atitude apostólica de abertura e colaboração entre Jesuítas e os leigos através de um dinamismo associativo capaz de delegar responsabilidades organizativas que precede, no tempo e na capacidade de intervenção social, aquele que viria a surgir com as Companhias fundadas por Leunis. As Congregações Marianas, vistas por este prisma histórico, não são a origem da atitude estruturada de colaboração da Companhia de Jesus com os leigos. São, antes, uma consequência. É este contexto histórico que levou Howard J. Gray, S.J., a 1 de Julho 2001, ao discursar no dia da tomada de posse de capacidade de ler desde a realidade de cada um e desde ela tratar de servir ao Senhor. E, dentro desta perspectiva, descobre-nos elementos que ainda hoje não se têm suficientemente em conta ao desenhar a figura do leigo cristão. Além disso, dá-nos também recursos para uma mistagogia do secular» (RAMBLA, José Maria, «Ignacio de Loyola y la vocación laical», in: Manresa 67 [1995], 12). 50 Em 1564, no Colégio Romano, sob orientação do Jesuíta belga Jean Leunis, será formada uma congregação de estudantes, sob o patrocínio da Virgem Maria. Rapidamente a experiência foi levada para outros colégios dos Jesuítas. A Congregação do Colégio primário será, bastante depois (em 1584) considerada por Gregório XIII a primeira Congregação Mariana da história e origem da actual CVX. Cf. Ibidem, 245ss. Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 82 John J. DeGioia como primeiro leigo Reitor da Universidade Jesuíta de Georgetown, (Washington D.C.), nos duzentos e doze anos da sua existência, a afirmar: «Desde os primeiros inícios da Companhia de Jesus, os leigos tiveram um papel muito importante na dinâmica de crescimento da Companhia. A sua resposta e inspiração, a sua dedicação e efectiva integração na missão, mostrou aos Jesuítas o que estavam fazendo, quem eram e como podiam agir. E é essa parceria que suporta o contexto da história que nós identificamos como Companhia de Jesus. Nós não estamos trazendo os leigos para dentro. Eles estiveram dentro desde o princípio. O que estamos fazendo agora é reconhecer, de um modo bastante mais profundo, que eles têm a liderança nessa parceria»51. * Procurámos dar um quadro, sucinto e compacto, da existência de uma relação apostólica entre Jesuítas e Leigos que remonta à origem e ao carisma de Inácio. Iremos agora ver como este impulso à mútua colaboração Jesuítas-Leigos se recuperou no século XX e abriu a novas e criativas dimensões apostólicas e de serviço à missão de Cristo. GRAY, Howard J., Documento Lay-Jesuit Collaboration in Higher Education: http://woodstock.georgetown.edu/publications/report/rfea68.htm) 51 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 83 II Parte A mudança operada desde o Concílio Vaticano II 8. A Companhia de Jesus sob o efeito do Concílio Vaticano II Tendo percorrido, com algum pormenor, os primeiros anos da Companhia de Jesus, podemos agora dar um salto cronológico desde o século XVI até ao século XX. Durante estes anos, os leigos foram ganhando espaço de actividade na Igreja, embora com altos e baixos. No início do século XX, ocorre uma certa regressão do quadro que acabamos de traçar. O papel dos leigos vai perder protagonismo dentro da Igreja. Esta mudança permite compreender que o Papa Pio X (1903-1914) faça a seguinte afirmação: «A Igreja é por essência uma sociedade desigual compreendendo duas categorias de pessoas; os pastores e o rebanho, os que ocupam um lugar nos diferentes graus da hierarquia e a multidão dos fiéis; e estas categorias são de tal modo distintas entre si, que, somente no corpo dos pastores, residem o direito e a autoridade necessárias para promover e dirigir todos os membros em direcção ao fim da sociedade. Quanto à multidão, ela não tem outro direito senão o de se deixar conduzir e, como rebanho dócil, seguir os seus pastores»52. Influenciada, como é natural, pela crescente estratificação eclesial e eclesiástica que aconteceu desde o Concílio de Tren52 Pio X, Encíclica Vehementer nos, ASS 39 (1906), 8-9. 84 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã to até ao início do Concílio Vaticano II em 1962, também a Companhia de Jesus foi incorporando uma noção ou modelo de missão algo vertical e hierárquica. Apresentamos em seguida um esquema a que chamamos Modelo 1. Ilustra uma certa compreensão teórica e prática da Modelo 1 Jesus Papa CJ Clero Leigos Religiosos Não cristãos missão da Companhia de Jesus prévia a 1962. Note-se que o esquema é vertical ou piramidal: a altura a que estão situados os diferentes elementos eclesiais diz da sua importância e actividade. Repare-se ainda no sentido das setas: a missão é uma acção que brota da Companhia de Jesus e é recebida passivamente A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 85 pelos demais. Os não-cristãos são um alvo de missão presente no horizonte da Companhia. Com a chegada dos anos 60 do século XX, a Companhia de Jesus vai, tal como todas as outras instituições da Igreja, receber influxos do Concílio Vaticano II e da visão que nele se plasma sobre o lugar e a missão dos leigos da Igreja. Tal visão sobre a vocação laical é uma das mudanças mais significativas que o mundo e a comunidade católica vem assistindo desde meados do século passado. A renovada consciência da incorporação de todos os cristãos ao Mistério Pascal de Jesus pelo Baptismo e da sua participação na condição real, sacerdotal e profética de Cristo, estão na base de um novo modelo de Igreja: uma Igreja enraizada num mistério trinitário de comunhão, onde cada um dos membros faz parte de um povo, é co-responsável da vida e da missão, por virtude dos carismas próprios. Uma tal compreensão da Igreja tem consequências práticas relevantes. Os leigos vêem ser-lhes reconhecida uma importância e uma acção específica dentro do crescimento do corpo de Cristo, no qual não são tidos por inferiores ou subordinados aos estados de vida mas antes em íntima e recíproca colaboração, no discernimento e na acção. Desta nova Eclesiologia verão a luz noções como co-responsabilidade e sinodalidade, duas das noções mais importantes e de maior impacto, tanto na vida como na organização jurídica da Igreja53. Co-respon- O Código de Direito Canónico de 1983 é uma consequência jurídica da nova compreensão da Igreja nascida do Concílio Vaticano II. O direito de associação dos fiéis, entre outros muitos cânones que se poderiam citar, ilustra bem o novo estatuto dos leigos dentro da orgânica institucional. 53 86 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã sabilidade na vida e na missão da Igreja porque fundada na comum participação da vida de Jesus Cristo, do seu mistério e missão. A renovada consciência de si e da sua missão que os leigos receberam, como discípulos de Cristo ao serviço de Deus e do mundo, trouxe um – para muitos inesperado – despontar de associações, comunidades, movimentos eclesiais, de novas formas de viver o mistério do baptizado no mundo. Uma dessas novas formas, certamente suscitada pelo Espírito Santo, foi o aparecimento, nos anos pós-conciliares, de grupos de leigos que se foram sentindo chamados a partilhar a espiritualidade e o carisma de associações (Ordens, Congregações, Associações de Fiéis, Sociedades de Vida Apostólica, etc.), de Vida Religiosa, já reconhecidas e aprovadas pela Igreja. Sentiram-se chamados a viver a espiritualidade que lhes é própria mas segundo a sua situação e estado laicais. Quem conhece a história da Igreja diria que isto não é grande novidade. A novidade é o estatuto, reconhecido pelo próprio ensino magisterial, com que o fazem, a partir da sua inserção no Mistério de Cristo e da Igreja. 9. Os Leigos e a Companhia de Jesus: Congregações Gerais 31 a 34 Também a Companhia de Jesus, por alturas do Concílio Vaticano II, movida por um dinamismo criativo de renovação nas suas fontes, redefiniu a sua missão apostólica e tomou consciência de um chamamento feito por Deus aos leigos, e por estes discernido, a participarem mais intimamente na espiritualidade e na missão do Instituto. A Congregação A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 87 Geral [CG] 31, reunida precisamente no momento em que decorriam as últimas sessões do Concílio Vaticano II54, tem consciência de que os leigos irão, progressivamente, entrando cada vez mais na actividade apostólica da Igreja55. Os seus decretos apresentam várias indicações importantes no que respeita à colaboração entre Jesuítas e não-Jesuítas na missão da Companhia. Antes de mais, afirma que «qual seja a natureza e qual o carisma peculiar da nossa vocação se deduzirá sobretudo do processo dinâmico com que se iniciou a história da Companhia» (d.1, n.1). Esta declaração dá peso ao estudo e análise da relação com os leigos na origem e primeiros anos da instituição. Contudo, o mais interessante de observar é a mudança mental que se começa a operar. Para isso indica-se uma linha orientadora no que respeita à selecção de ministérios: a colaboração e cooperação no apostolado com os não-Jesuítas, religiosos(as), sacerdotes e leigos(as)56. São os decretos 33 e 34 desta CG que mais interessam ao nosso tema. É dito que é preciso mudar de atitude interna dos A CG 31 da Companhia de Jesus reuniu-se para a primeira sessão de 24 de Maio a 15 Junho 1965 e para a segunda sessão de 8 Setembro a 17 de Novembro de 1966. O Concílio Vaticano II foi oficialmente encerrado a 8 de Dezembro de 1965. 55 Cf. CG 31, d.33, Introdução. 56 «Recomenda-se uma ampla e sincera colaboração com os leigos. Nas obras da Companhia os seculares devem associar-se de algum modo à nossa própria responsabilidade de animá-los, orientá-los e dirigi-los» (CG 31, d.21, n.9); «A CG […] deseja uma maior colaboração com os leigos no apostolado» (GC 31, d.23, n.8); «fomente-se entre nós a mútua cooperação […] também com os outros religiosos, com os sacerdotes diocesanos e com os leigos […].» 54 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 88 Jesuítas, a partir do ensino da Igreja57: reconhece-se que os leigos têm uma parte própria na missão da Igreja (d.33, n.2). Mas sobre a possibilidade de poderem participar na missão da Companhia de Jesus como numa missão comum, não são feitas afirmações explícitas. Não há dúvida que o tema da colaboração com os leigos foi um tema relevante nesta CG. A Companhia entende que pode prestar vários serviços aos leigos, sobretudo o de formá-los para a vida cristã e o apostolado. Deve ajudá-los no seu apostolado (n. 6). E já se declara: «convém que fomentemos a colaboração de seculares nas nossas obras apostólicas» (idem), dando-se a responsabilidade na organização, gestão e até direcção das nossas obras […] (idem) e «deve a Companhia examinar se devem ser confiadas a seculares algumas obras começadas por nós para assim conseguir o bem da Igreja» (idem). Apresentamos em seguida uma nova figura, a que chamamos Modelo 2. Procura ilustrar o modo novo de conceber e Modelo 2 Jesus Não cristãos Clero Religiosos Papa CJ Leigos «O que o Concílio Vaticano II ensinou [sobre a índole dos leigos] exige da nossa Companhia um novo exame da atitude para com os leigos e o seu apostolado» (d.33, n.1). 57 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 89 realizar a missão da Companhia de Jesus neste contexto de profunda renovação eclesial. Neste modelo já não sobressai a verticalidade de posições. Pelo contrário, nota-se uma mudança de posições, ficando os diversos agentes mais ao mesmo nível, numa disposição mais circular, isto é, mais igualitária. As setas que ilustram as relações estabelecidas pela Companhia de Jesus no exercício da sua missão são, agora, de duplo sentido: admite-se um movimento de duplo sentido. A missão da Companhia é, neste modelo, uma acção que implica um dar e um receber apostólicos. É realizada com o contributo de «co-actores». 9.1. Um modo especial de colaborar com a Companhia de Jesus É na CG 31 que surge pela primeira vez registo escrito da existência de uma forma de colaboração dos leigos com a Companhia de Jesus que se reveste de características especiais. O último número do decreto reservado à relação com o laicado regista: «Entre nós e aqueles dos seculares que se fizeram participantes de uma maneira mais íntima no nosso modo de sentir e de actuar surge uma comunicação e consociação mais estreita; sem perder nunca a justa liberdade apostólica saibam os Jesuítas dar expressão à dita comunicação e consociação guardando-lhes cuidadosa fidelidade, cultivando uma sincera amizade e demonstrando-lhes da nossa parte fraterna hospitalidade» (CG 31, d.33, n.6). Que quererá isto dizer na prática? Quem se fez participante de «maneira mais íntima no modo de sentir e actuar»? O que distingue esta «maior intimidade» das outras formas de relação com os leigos? Há um véu de silêncio que os decretos não Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 90 rasgam. Antes parecem deliberadamente colocar, talvez pela novidade e complexidade da questão. O decreto seguinte, d.34, dá mais algumas informações: «Em algumas regiões há seculares desejosos de que a Companhia de Jesus os una a si com vínculos mais estreitos, em ordem a realizar melhor a sua vocação laical na Igreja» (d.34). Interessa-nos reter os factos: naquele ano de 1966 existiam já várias pessoas58 espalhadas por várias regiões do mundo que viviam experiências de maior colaboração apostólica com a Companhia, movidas pelo desejo de qualquer coisa que não se diz claramente o que é, nem se sabe como a vivem, de tal modo é vaga a formulação. Sobressai porém a raiz dessa experiência: desejam (um desejo discernido, supõe-se) que a Companhia os una a si. Escrito assim, parece que movimento de atracção é como que do exterior para o interior59. Com a prudência que nestas coisas se impõe, a CG confia ao P. Geral o estudo de como pode conseguir-se esta «vinculação e colaboração mais estreita e íntima» (Idem). É a primeira vez que se fala em «vinculação» e o adjectivo «jurídica» não aparece. Em que contexto surge este facto? Temos de ir às introduções dos decretos da Congregação e ao discurso que o Padre Geral P. Arrupe proferiu à Congregação sobre a «Relação da O texto da CG 31ª não acrescenta outros pormenores. Assim não é possível, por esta fonte, saber se são homens ou mulheres, o seu estado civil, se membros de comunidades de espiritualidade inaciana, assalariados em obras da Companhia, etc. 59 A expressão «que os una a si» parece indicar que não está ainda desenvolvida nesta época, pelo menos ao nível dos documentos, uma consciência de reciprocidade neste tipo de união apostólica. Para isso deveria também constar o desejo explícito da Companhia se unir a esses leigos, como resposta recíproca ao movimento que surge do exterior. 58 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 91 Companhia com o Laicado». Aí afirma que discursa movido pela necessidade e actualidade do tema e porque este lhe «interessa muito»60. É um discurso clarividente e que não perdeu, com os anos, a sua acutilância na clareza de análise sobre a questão. Afirma: «É de suma importância o tema da nossa atitude para com os seculares no apostolado da Companhia; mas talvez não fácil de entender pela sua novidade e complexidade. Por outro lado pode exercer um grande influxo na Companhia e na sua actividade, já que abre novas portas às nossas obras e pode aconselhar profundas transformações nas mesmas actividades apostólicas ou nas estruturas tradicionais. […]. A solução para o problema dos leigos, no que respeita à nossa atitude para com eles, pode criar múltiplos problemas à nossa actividade. Mas devemos enfrentá-los com audácia e encontrar-lhes solução, com o auxílio divino»61. Neste discurso o P. Arrupe introduz um aspecto-chave: a relação do laicado com os Jesuítas não se joga apenas numa «prestação de serviços avulso». A questão de fundo é a da integração desta colaboração dos leigos nas estruturas da Companhia62. Trata-se de discernir o caminho: «Aqui está a questão: aos leigos que sob a nossa direcção conceberam o ardente desejo de perfeição laical, deveremos enviá-los a outra parte, isto é, aos institutos seculares para ARRUPE, Pedro, «Discurso del P. General sobre “Relación de la Compañía con el Laicado”», in: Congregación General XXXI. Documentos, Editoral Hechos y dichos, Zaragoza 1966, 279. 61 Ibidem, 279s. 62 Cf. Ibidem, 280s. 60 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 92 que possam conseguir o seu ideal ou devemos prestar-lhes nós mesmos a ajuda que pedem, ainda que introduzindo novas formas?»63 A esta questão fulcral, a CG 31 respondeu encarregando o Padre Geral de estudar como se poderia conseguir «esta vinculação e colaboração mais estável e íntima» (d.34), tendo em conta as experiências existentes. Esta decisão será recuperada pelos Jesuítas em 1995. Procuremos agora clarificar o modelo de colaboração Jesuítas-Leigos que parece desenhar-se destes documentos. Antes de mais, há uma clara consciência do um novo fundamento cristológico e eclesial para o protagonismo apostólico dos leigos no mundo e na Igreja. Esse facto urge, obriga64 os Jesuítas a esforçarem-se por reajustar, mudar, a sua atitude para com os leigos. Surpreende, contudo, que praticamente não utilize um termo central – «missão» – para caracterizar o quadro da colaboração Jesuítas-Leigos. Não considera a partilha da missão da Companhia nem a missão de Cristo65. Os termos usados Ibidem, 281. «A Companhia está obrigada por dever de serviço para com o Laicado, e deve-o exercer segundo a mente do Concílio e dos Bispos» (Ibidem, 279). 65 No conjunto formado pelos decretos 33 e 34 e pelo referido discurso do P. Arrupe, usa-se em quatro situações o termo «missão»: 1) os leigos têm parte própria na missão da Igreja; 2) os Jesuítas recebem ajuda dos leigos para sentir mais vivamente a sua missão; 3) é preciso formar os leigos para que eles possam cumprir a sua missão; 4) a fraternidade apostólica dos Jesuítas com os Leigos está fundada na unidade da missão da Igreja. 63 64 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 93 são, antes: «apostolado» ou «obras apostólicas». Mas enuncia-se um princípio eclesiológico fundamental: a fraternidade apostólica dos Jesuítas com os Leigos está fundada na unidade da missão da Igreja, o que pressupõe o Baptismo como vínculo comum. Que paradigma temos aqui? Parece subsistir ainda uma separação de missões entre a Companhia e os leigos, se bem que ambas estejam fundadas na missão da Igreja. Os leigos têm a sua missão e a Companhia a sua. Os leigos desejam participar mais intimamente nesse apostolado, da Companhia, no «modo de sentir e actuar»66 com que os Jesuítas actuam no mundo. Estão-se a colocar as bases mentais e teológicas para uma partilha e comum laboração apostólica mais efectiva e estruturada. Procura-se rasgar caminhos pastorais a partir duma reflexão eclesiológica que estava ainda por fazer e amadurecer. Nisto, como em tudo o mais, a vida antecipa-se à reflexão teológica. 9.2. Da CG 31 à CG 34: mudanças profundas A primeira coisa que chama a atenção quando se lêem os documentos da CG 32 é o facto de, ao percorrer o índice temático de todos os decretos, não se encontrar a palavra «leigo» ou «colaboração»67. Não existe um decreto sobre a relação da Companhia com os leigos. É um silêncio impressionante que CG 31, d.33, n.7. Os índices consultados são da edição COMPAÑÍA DE JESÚS, Congregación General XXXII de la Compañía de Jesús, Editorial Razón y Fe, Madrid 1975. 66 67 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 94 pode ter a sua explicação nas circunstâncias históricas que se viveram durante esta congregação68. Contudo, a CG 32 elaborou uma impressionante refontalização criativa acerca da missão da Companhia, ligando intimamente fé e justiça, chegando a definir a missão do Corpo como luta, sob o estandarte da Cruz, no serviço da fé do qual a promoção da justiça é parte integrante69. Estar em missão é participar nessa luta70, qualquer que seja a tarefa concreta na qual esta luta se possa concretizar. A noção de missão está no centro da intuição carismática de Inácio71, por isso o jesuíta é essencialmente um homem enviado a e com uma missão que realiza não sozinho mas «em companhia», numa comunidade de amigos no Senhor – o Corpo de Companhia universal – em comunhão. Missão que o jesuíta realiza em amor, pobreza e em obediente humildade72. A CG 32 ficou marcada por uma tensão profunda entre os Padres congregados e o Papa Paulo VI a propósito da discussão da possível extensão do 4º voto a todos os Jesuítas, incluindo o Irmãos. Este tema foi, de facto, fulcral e a sua discussão terminou com uma ordem expressa do Papa para que o assunto não fosse discutido. Recusava-se assim aos não sacerdotes a profissão de quatro votos. Talvez tenha sido a importância deste tema e o seu desenvolvimento a causa de uma certa saliência do aspecto «sacerdotal» da Companhia de Jesus, com o respectivo silêncio sobre a relação com os leigos. 69 CG 32, d.2, n.3 a n.9. 70 CG 32, d.2, n.3. 71 Decreto 2, n.13. 72 «Em humildade: sendo conscientes de que na Igreja e no mundo há hoje muitas tarefas de grande valor e importância, que nós, como sacerdotes e religiosos, inspirados por um carisma peculiar, não podemos assumir. E inclusivamente naqueles trabalhos que podemos e devemos tomar damo-nos conta de que devemos estar prontos a trabalhar com os demais, com os cristãos, com os que têm outras crenças, com todos os 68 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 95 No decreto 4 sobre A nossa missão: ontem e hoje estão plasmadas as linhas que centram todo o Corpo da Companhia na missão: do olhar de Deus ao mundo nasce a missão de Cristo, de onde nasce a missão comum dos cristãos, membros da Igreja enviada a todos os homens73. Mas o grande critério jesuítico de entrega à missão é a disponibilidade para serem enviados a realizar tarefas concretas. É esta atitude de disponibilidade que está na base do quarto voto ao Papa, sobre as missões. A renovada compreensão que a Companhia de Jesus faz na CG 32 da sua missão coloca as bases para o futuro enquadramento (que irá ser dado pela CG 34) da relação de colaboração com outros nessa mesma missão que é partilhada por todos os cristãos. A CG 33 também não acrescentou notas significativas ou marcantes em relação à colaboração da Companhia com os leigos. Em todo o decreto 1, praticamente o único, fala-se duas vezes dos leigos. A última delas para reiterar ao Corpo universal a ideia de que «de um modo especial devemos avançar numa colaboração mais estreita com os leigos, reconhecendo e fomentando a sua própria responsabilidade e vocação na Igreja e no mundo. A experiência dos últimos anos ensina-nos o muito que podemos contribuir […] e o muito que podemos receber deles para fortalecer a nossa vocação e a nossa missão»74. Pode ver-se o pouco que se avançou nos documentos produzidos pelas Congregações Gerais, entre 1966 e 1995, sobre homens de boa vontade. Prontos a desempenhar um papel subordinado, de apoio, anónimo. Prontos a aprender a servir, de aqueles mesmos a quem servimos» (CG 32, d.2, n.29). 73 CG 32, d.4, n.13. 74 CG 33, d.1, n.47. Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 96 o tema da colaboração apostólica com os leigos. Quase como se após a explosão de abertura gerada pelos documentos do Concílio Vaticano II correspondesse um segundo movimento de retraimento ou desconfiança. Contudo, a vida não parou. A CG 34 irá abrir novos horizontes e introduzir um novo paradigma na colaboração Jesuítas-Leigos. 10. A colaboração na missão na CG 34 e desde então para cá É na CG 34 que se dá uma mudança paradigmática, ao nível dos documentos escritos, sobre o modo de conceber a missão da Companhia de Jesus e o seu exercício na vida concreta. O primeiro aspecto marcante seria este: a Companhia, mais do que ter (com o respectivo possessivo implicado) uma missão, serve uma missão: é servidora da missão de Cristo75. Serve algo que não possui, de que não se pode apropriar, que antes humildemente partilha com Cristo por pura graça do chamamento e do acolhimento do seu Senhor. É toda uma mudança radical. Dentro desta atitude, a própria existência de um Decreto sobre a Colaboração com os leigos na missão (como vimos, desde 1966 que não se fazia um decreto sobre a relação com os leigos) destina-se a orientar o exercício da missão numa «atitude de escuta e intercâmbio com os que serão companheiros imprescindíveis no nosso serviço a Deus e à sua Igreja»76. A missão da Companhia universal – o serviço da fé e promover a justiça que dela brota – recebida e partilhada é a missão 75 76 Cf. CG 34, d.1, n.1, n.3. Cf. CG 34, d.1, n.1. A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 97 da Igreja toda. Sendo um serviço ao Senhor Crucificado e Ressuscitado e à sua missão, é complexa, mas única. Desde a sua unicidade desdobra-se numa multiplicidade de ministérios77 ou formas78 que abrem a diversas dimensões de ser e fazer: testemunho de vida, proclamação, conversão, inculturação, criação de Igrejas locais, diálogo e promoção da justiça querida por Deus79. Faz parte integrante da missão e da sua credibilidade o modo ou a atitude com que é realizada: ser feita em obediência, em humildade e em pobreza, partilhando a vida dos pobres e sendo capaz de realizar um acolhimento de Cristo sofredor e pobre presente80. É a partir da atitude de partilha da única missão, comum a todos, em atitude de recíproca colaboração a Cristo e à Igreja, que se dá um novo enquadramento ao lugar e à participação dos leigos (e dos religiosos, e dos Padres diocesanos) na missão da Companhia81. 10.1. O Decreto 13 da CG 34 e as suas consequências Como pano de fundo do decreto 13 sobre A colaboração com os leigos na missão está toda uma teologia do laicado que, entretanto, se foi desenvolvendo, apesar de se sentir ainda a necessidade de uma maior reflexão eclesial sobre o tema. Como linha principal deste documento encontra-se a certeza de que os leigos têm, por direito e dever do seu estado e vocação, Cf. CG 34, d.1, n.2. Cf. CG 34, d.1, n.3. 79 Cf. Ibidem. 80 Cf. CG 34, d.2, n.7-13. 81 Cf. CG 34, d.13, n.3; d.26, n.15-17. 77 78 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 98 uma participação própria na missão de Cristo e da Igreja. Eles são chamados por Jesus e têm uma missão a desempenhar que ninguém pode realizar no seu lugar. A missão é intrínseca ao seu ser e viver. O espaço e a actividade apostólica que desenvolvem não são devidos, de raiz, nem à falta de vocações sacerdotais e religiosas nem ao contexto cultural em que nos movemos. É pela positiva – pelo seu valor missionário intrínseco – e não pela negativa que os leigos se vão afirmando nas actividades apostólicas. Ao ganhar protagonismo apostólico, as leigas e leigos não estão a «roubar» o lugar de ninguém nem estão a ocupar um lugar indevido. A sua existência em atitude de serviço e o seu labor apostólico, mesmo se vêm adjectivados como «missão dos leigos», também, radicalmente, não lhes pertencem. É a missão de Cristo, na qual participam, sob a orientação e o discernimento da Igreja nas suas variadas instâncias. A CG 34 tem na sua base a convicção profunda que o testemunho dos leigos no mundo, enquanto enviados por Cristo e participantes da sua missão, é não só imparável como decisivo para o futuro da Igreja82. Por isso, ao colocar-se ao serviço dos leigos «na sua missão», na realidade, a Companhia de Jesus está formulando, de modo criativo e inculturado, uma nova forma de se colocar ao serviço de Cristo e, assim, de actualizar a sua própria missão de servir a fé e promover a justiça. Os leigos já não são vistos como adolescentes na fé83 mas sim como adultos Cf. CG 34, d.13, n.1. Expressão que foi usada por P. Arrupe na CG 31: «O laicado moderno é como um adolescente: não é uma criança; mas também não é um adulto; mas quer ser considerado e tratado como um adulto» (ARRUPE, Pedro, «Discurso del P. General sobre “Relación de la Compañía con el Laicado”», in: Congregación General XXXI. Documentos, Editoral Hechos y dichos, Zaragoza 1966, 279). 82 83 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 99 e parceiros num labor comum pelo Reino ao serviço do mesmo e único Senhor. Nesta reviravolta mental está grande parte das causas porque ainda é difícil para muitos, Jesuítas e leigos, trabalhar como parceiros e ao mesmo nível. Visto desde este posicionamento teológico, mais sentido faz a abertura e a disponibilidade da Companhia a ser companheira de todos os que servem Cristo, cooperando com eles e abrindo-se à cooperação com eles dentro das suas obras apostólicas e fora delas. 10.2. Um novo paradigma: cooperar numa missão comum Trata-se de cooperar numa missão comum84. Comum não porque seja o mesmo ser Jesuíta e ser religioso e/ou ser leigo. Comum porque é una e complexa a missão de Cristo, desdobrável numa imensidade de dimensões e ministérios, com diferentes modos de testemunhar o dom de Deus ao mundo. A Companhia serve os leigos na sua missão e é servida por estes na sua (da Companhia) missão, através da mútua disponibilidade para colocar em comum ser, saber e fazer, segundo a No mesmo discurso de Howard J. Gray, citado anteriormente, faz-se uma confidência interessante sobre a génese do Dec. 13 da CG 34. Afirma que durante a produção do decreto, ao tentarem delinear o texto sobre a participação laical, sentiam que lhe faltava qualquer coisa. Algo não batia certo. E diz: «Nas conversas finais alguns diziam: nós estamos tratando sobre o tema de os leigos nos ajudarem mas não é aí que está o futuro. É se os leigos nos deixarão ou não a nós ajudá-los a eles. Essa é a Igreja do futuro que, de muitos modos, tal como o documento delineia, será a Igreja das leigas e dos leigos» (GRAY, Howard J., Lay-Jesuit Collaboration in Higher Education: http://woodstock.georgetown.edu/publications/report/ r-fea68.htm). 84 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 100 identidade, o temperamento e a situação pessoal de cada uma das partes. Ambas recebem, são enriquecidas, aprendem e são necessárias para a realização mais plena, concreta e universal da missão de Cristo. É por isso que este movimento da colaboração é duplo: saída desde as obras da Companhia para trabalhar em obras e associações dirigidas pelos leigos85 mas também abertura à presença de leigos em obras da Companhia e, sempre que oportuno e necessário, em lugares de liderança86. Esta parceria na missão implica a vivência da co-responsabilidade no discernimento e orientação pastoral de obras e ministérios apostólicos. Isso mesmo afirmou o P. Geral P. H. Kolvenbach, em 2004: «Os Jesuítas precisam não só de ser amigos e companheiros do Senhor e uns dos outros, precisamos de ser amigos e companheiros dos nossos parceiros na missão. Esta reciprocidade de presença pessoal é central para a nossa identidade de Jesuítas. É a chave para cooperar uns com os outros na missão que é requerida para o futuro»87. Recolocada num quadro eclesiológico de co-responsabilidade na missão comum de Cristo e da Igreja, toda uma linguagem usada frequentemente surge agora necessitada de uma nova compreensão. Os adjectivos possessivos, com que Cf. CG 34, d.13, n.6, n.14-16. Cf. CG 34, d.13, n.20. 87 Este discurso foi realizado no dia 7 de Outubro de 2004, na Universidade de Creighton. KOLVENBACH, Peter Hans, «Cooperating with each other in Mission: celebrating 125 years of Jesuit–Lay Partnership in Omaha», in: CIS 107 (2004), 12. 85 86 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 101 habitualmente os Jesuítas se referem aos seus trabalhos apostólicos – à «nossa» missão e às «nossas» obras – têm, a esta luz, uma outra amplitude e complexidade. É nesse sentido que o P. Kolvenbach afirma ainda: «Para que haja um parceria em igualdade, a questão deixa de ser “Como podem as leigas e leigos assistir os Jesuítas nos seus ministérios?” Uma nova questão surge: “Como podem os Jesuítas servir as leigas e os leigos nos seus ministérios?” Para que isso aconteça, os Jesuítas precisam de pensar na “nossa” paróquia, “nosso” centro de retiros, ou na “nossa” escola de um novo modo. É “nosso”, agora, referido a um grupo mais vasto, porque é uma missão da qual todos nós – Jesuítas e Leigos – somos co-responsáveis»88. Esta mesma desapropriação tem de ser vivida e aprendida pelos leigos. Os «seus» trabalhos apostólicos, a «sua» missão laical é, em definitiva, também «nossa», é a missão de Cristo da qual somos reciprocamente co-responsáveis numa comunhão mútua, vivendo o envio desde as nossas identidades distintas89. Como base para nova relação à missão está uma mudança de paradigma mental. Há uma desapropriação do serviço prestado, referindo-o a Cristo. Assim ele pode ser encarado como algo não exclusivo, não pertença ou posse do servidor mas pode ser vivido por todas as partes envolvidas como campo inclusivo. Ibidem. Cf. RAPER, Mark, Collaboration with Laity in Mission, Discussion Paper for the Congregation of Provincials in Loyola, Spain, November 2005. O P. Raper, à época Provincial da Austrália, apresentou neste documento de trabalho o estado da questão na sua província no que respeita à colaboração Jesuítas–Leigos. 88 89 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 102 É um paradigma da inclusividade na missão, desde a distinção dos agentes. Tal inclusividade ajuda a compreender que se possa falar da incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus. Não porque os Leigos passem a fazer, formalmente ou institucionalmente, parte da instituição. Mas porque são incluídos no Corpo Apostólico novo que é formado pela colaboração na missão de Cristo. Neste sentido, há uma mútua e recíproca incorporação. O desenho legendado Modelo 3 procura ilustrar o novo paradigma de missão desenvolvido a partir da concepção do serviço co-responsável de todos à única missão de Cristo. Modelo 3 MISSÃO DE CRISTO Religiosos Clero Não cristãos Incorporação na missão comum Não crentes PAPA Institutos Seculares Leigos Companhia de Jesus A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 103 Pode, por isso, da parte da Companhia de Jesus, começando a usar uma nova terminologia, ainda não muito divulgada nem esclarecida90, falar-se do aparecimento de um novo sujeito apostólico, em paralelo com uma nova relação à missão. Novo sujeito porque já não são unicamente os Jesuítas os actores e agentes da missão que Cristo lhes confia. Essa missão é partilhada, realizada e avaliada em comum, por um sujeito que é um grupo, uma comunidade que engloba pessoas de todos os estados: Jesuítas, religiosas e religiosos, sacerdotes diocesanos, leigos, não-cristãos e não-crentes91. Contudo, uma colaboração ou missão comum implica que cada pessoa colabore nela segundo um determinado perfil ou grau. Há variados graus de envolvimento na missão. Esta variedade de graus de colaboração – que não torna uns melhores que outros mas antes é uma forma de responder a um chamamento do Senhor – ajuda a compreender o aparecimento de um tipo especial de relação Jesuítas-Leigos: o vínculo jurídico (ou associação jurídica) à missão ou a Associação. As recomendações feitas pela Congregação de Procuradores reunidos com o P. Geral Kolvenbach, em Loyola, em 2005, e tendo em vista a próxima CG 35, no que respeita às relações Jesuítas-Leigos pediram, entre outros aspectos, que se esclarecessem alguns aspectos terminológicos (tais como «novo sujeito apostólico») e os diferentes tipos de relações com os colaboradores. Cf. Carta do P. Geral aos Superiores Maiores 2006/01. 91 Cf. IVERN, Francisco, «Al servicio de la vocación laical», in CIC 107 (2004), 22. 90 104 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 10.3. A situação particular: a união de leigos à Companhia por um laço mais estreito Dentro da colaboração Jesuítas-Leigos há ainda uma participação com características próprias pelo grau de estabilidade no compromisso a que ambas as partes se comprometem. É o chamado Vínculo Jurídico ou Associação Jurídica com a Companhia de Jesus. É um apelo que tem vindo a ser sentido e discernido por leigos já antes de 1966, como vimos. Trata-se de pessoas leigas com grande heterogeneidade entre si (pelo estado de vida, pela profissão, pela idade e formação, pelos interesses e culturas de onde provêm). A ligação institucional provém de um chamamento, discernido em conjunto com a Companhia de Jesus, a uma entrega apostólica à missão de Cristo em colaboração estruturada e assumida, com maior envolvimento e estabilidade, do que a colaboração laical normalmente envolve. A característica principal desta opção apostólica é a de requerer uma verdadeira e efectiva disponibilidade para aceitar ser enviado em missão, através de um diálogo e discernimento com quem tem na Companhia de Jesus a tarefa de dar a missão. Requer, por isso, a prestação real de um serviço, o assumir de novas responsabilidades, o ser acompanhado no decorrer das actividades, participar na avaliação e responder pelos resultados em conjunto com a Companhia de Jesus. Uma tal associação é adjectivada «jurídica» não porque tenha validade jurídica civil. Na verdade, o mais correcto será dizer que é uma associação apostólica de «tipo jurídico». O termo jurídico faz contudo sentido, por um lado, porque o corpo legislativo da Companhia de Jesus (as Normas Complementares) A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 105 acabaram por incorporar no número 31092, o reconhecimento e a constituição formal de um especial «vínculo jurídico», estritamente individual, de algumas pessoas para se alcançarem finalidades apostólicas para ambas as partes93. Por outro lado, procura expressar que o compromisso não é meramente oral ou afectivo mas assumido de forma estável sob a forma de um documento onde ambas as partes se comprometem de forma estruturada e discernida, nessa parceria apostólica. O carácter genérico desta declaração deixou uma grande indefinição sobre o que é, deveria ser e como realizar, de facto, a vinculação jurídica apostólica destes leigos e leigas. Para dar alguma orientação e homogeneidade aos vários passos que cada Província foi tendo de dar por si, ao sabor da Graça, o P. Geral escreveu duas cartas aos Superiores Maiores da Companhia, datadas de 1999 e 2003. Nessas mesmas cartas são clarificados alguns aspectos que podem ajudar a compreender melhor este compromisso. Sobressaem os seguintes aspectos: • Implica uma decisão estável, um compromisso estruturado e discernido em diálogo com os Superiores da «A Companhia de Jesus considera como uma forma de colaboração dos leigos na missão, entre outras possíveis, a constituição de um especial “vínculo jurídico” pessoal de algumas pessoas leigas, estejam ou não associadas entre si, que as una estreitamente com ela, em ordem a conseguir determinadas finalidades apostólicas. Recomenda-se que, seguindo as orientações dadas pela Congregação Geral, se façam experiências neste sentido e que se avaliem no futuro» (Normas Complementares da Companhia de Jesus, n. 310). 93 Cf. NC, 310. 92 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 106 • • • • • • Companhia e requer uma disponibilidade real para servir a missão de Cristo. Não é entrada no Corpo Institucional mas é um compromisso institucional. É estritamente individual. Não é vinculação a uma pessoa, a um trabalho específico e único, a uma terra. É fruto de uma abnegação de si que, por sua vez, é participação da Cruz de Jesus e está na base da disponibilidade para o envio. Não é uma proximidade devocional à Companhia de Jesus e, muito menos, a algum ou alguns dos seus membros, comunidades ou obras. É uma entrega a um trabalho específico, discernido e recebido pelas mesmas vias de recepção de missão que tem qualquer Jesuíta. É um trabalho concreto que requer formação prévia e permanente, bem como avaliação regular. Destina-se a pessoas com certa maturidade (humana e espiritual) e com um discernimento vocacional «trabalhado», de clara espiritualidade inaciana e marcadas pelos EE como forma de olhar e ser olhadas por Deus e o mundo. Abrange variados estados de vida: casados (o casal ou só um cônjugue), solteiros, viúvos. Esta relação apostólica estruturada não implica nenhum tipo de votos ou promessas devocionais ou quaisquer outras formas de compromisso pessoal com Deus. Contudo, existem pessoas em distintos países, que se sentiram chamadas a viver esta disponibilidade apostólica juntamente com a profissão privada de votos ou conselhos evangélicos. Ainda aqui, a variedade é grande. Fique claro, contudo, que não é a existência ou inexistência destes votos que caracteriza a opção apostólica em causa. A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 107 Por todas estas circunstâncias é uma opção pela pobreza de Cristo e em pobreza: ausência de uma maior estruturação e clarificação sobre o que a Companhia pretende dos leigos associados, a indefinição e carácter experimental da situação, a consciência das resistências e dificuldades internas e externas, etc. 11. Sucessos, dificuldade e desafios da co-responsabilidade na missão As últimas duas décadas, durante as quais a colaboração Jesuítas-Leigos se tem intensificado, mostram como primeira meta alcançada uma maior maturidade, de ambas as partes, acerca da importância e identidade do serviço a Jesus e ao mundo. Para além desta maturidade, os leigos receberam formação específica (espiritual, humana e profissional) e a possibilidade de uma dedicação efectiva (em muitos casos realizadora) ao trabalho apostólico. Por sua parte a Companhia, graças à capacidade de se colocar quer em atitude de serviço aos leigos quer em atitude de acolhimento à sua disponibilidade, tem visto expandir o alcance, a qualidade e eficácia real de muitas das suas obras próprias e de outras em que colabora fora dos seus limites institucionais. Creio, contudo, que o grande sucesso desta realidade nascente reside na experiência mesma da comunhão com o outro, o diferente: o outro que é leiga e leigo, que é Jesuíta novo ou com mais idade, o outro que é religiosa ou religioso. Um dos alcances notáveis deste novo modelo apostólico é, precisamente, a desapropriação – difícil e lenta – do nosso próprio centro: Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 108 «sair do nosso próprio amor, querer e interesse»94. O serviço de Deus ao mundo não se mede, não pode nunca ser apenas medido, por critérios de eficácia desligados da avaliação do modo como se opera. Não basta fazer, é preciso saber como fazer. Nem todos os modos servem o Reino de Deus. O modo de agir requerido nesta colaboração é a comunhão. A atitude de comunhão, ela própria evangélica e apostólica, faz já presente uma certa presença do Cristo que todos somos chamados a levar e tornar próximo. É a comunhão que somos todos chamados a anunciar. É a comunhão que nos salva. É ela que nos resgata. É ela o futuro que nos espera quando Deus nos introduzir, como Corpo Uno do Filho, na consolação eterna. A partir deste critério de avaliação – a qualidade da comunhão conseguida no exercício da missão – tem ainda mais sentido olhar e agradecer o enriquecimento, humano, técnico, estrutural, de amizade e competência, que estas colaborações têm suscitado um pouco por todo o mundo95. Os Jesuítas ganham um maior estímulo no exercício da sua missão, ao mesmo tempo que ganham uma humildade prática ao ver a generosidade de tantos leigos e leigas que dispõem de si e dos seus bens de forma tão radical ou, ainda, apresentam uma formação e preparação técnica ou profissional que supera a sua própria. Quanto aos leigos, recebem por esta via uma real possibilidade de enriquecimento (formativo, eclesial, comunitário), a confiança e o reconhecimento da importância do seu com«Porque pense cada um que tanto aproveitará em todas as coisas espirituais, quanto sair de seu próprio amor, querer e interesse» (EE, 189). 95 Cf.RAPER, Mark, Collaboration with Laity in Mission, Discussion Paper for the Congregation of Provincials in Loyola, Spain, November 2005. 94 A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 109 promisso na missão de Cristo, partilham das riquezas da vida apostólica das comunidades religiosas, a possibilidade de pôr a render os seus talentos no lugar onde se sentem melhor preparados e motivados. Fazem ainda – e isto é muito importante – a experiência de serem considerados ao mesmo nível (dentro da sua identidade própria e diferente), eclesial e apostolicamente falando, na relação com um Corpo sacerdotal, numa Igreja hierárquica que tem muitos mais séculos e hábitos de relegar os leigos para uma posição menor do que de os tratar como parceiros. Toda esta novidade tem, como tudo o que é humano, o seu lado de dificuldades e tensão. Por parte da Companhia de Jesus desde logo, onde confluem no mesmo espaço das Províncias e Comunidades pessoas de todas as idades, formações e modos de pensar, é inevitável que nem todos sejam tão favoráveis a estas transformações. Depois, ainda, porque há uma tradição dentro da Companhia de verdadeira qualidade, rigor e eficácias pastorais. Como consequência, alguns Jesuítas (falo de atitudes gerais e nem sequer limitadas ao espaço português) estão mais habituados e preparados para mandar e liderar do que para colocar em comum, discernir em conjunto com outros e aceitar que um trabalho de colaboração é geralmente mais lento e sinuoso do que quando uma só pessoa decide tudo por si. Deixar de ser líder para ajudar outros a sê-lo é uma mudança exigente que, sabemo-lo todos, não vai sem a graça de Deus e sem uma profunda abnegação pascal. Há também o medo, por vezes inconsciente, de que as leigas e leigos venham «invadir» a Companhia de Jesus, tirando trabalho e lugares de destaque ou serviço aos que, afinal, são o Corpo Apostólico jesuítico, juridicamente falando. 110 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Por outro lado, a partilha de uma missão comum exige uma firmeza renovada na identidade de cada parceiro. Pode haver o perigo de certo esbatimento das identidades em relação. Torna-se necessária uma releitura da identidade Jesuíta e leiga neste novo contexto. Com abertura para incorporar novas dimensões dessa identidade. Acresce ainda que a colaboração na missão não é meramente espiritual: implica espírito e corpo. O que significa que o espaço físico das casas, comunidades, cúrias, universidades, etc., passa a ser cada vez mais um espaço não exclusivo aos Jesuítas mas também partilhado de algum modo com os seus parceiros. Surgem as reuniões, os almoços, as viagens em conjunto e todas estas coisas exigem estruturas, coordenação, etc., nem sempre fáceis de realizar e coordenar. Estas pessoas querem acompanhar activamente a missão da Companhia e pedem para ser acompanhadas e integradas nos processos de discernimento e avaliação dos trabalhos que realizam juntas. Todo este diálogo implica um exigente diálogo de sensibilidades e disponibilidades materiais. Também a nível económico, esta colaboração tem os seus custos. A colaboração com leigos em algumas tarefas nem sempre poderá ser gratuita. Contudo, as maiores dificuldades poderão situar-se, por parte da Companhia, ao nível das necessárias mudanças nas relações de domínio, liderança e poder a que muitos Jesuítas estão habituados. Por parte dos leigos, as maiores dificuldades poderão estar na falta de formação específica em algumas áreas (nomeadamente teológicas), em insegurança em agir sem ser sob a orientação pastoral e as respostas de fé dadas por outros e sem ter as certezas todas para o caminho apostólico por onde avançam. A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 111 Dentro destas dificuldades poderia contar-se também a falta de objectivos claros daquilo que se pretende com algumas colaborações: por exemplo, no caso dos Leigos Associados juridicamente. O silêncio, quando prolongado, às vezes de ambas as partes, poderá ser entendido como frieza, desinteresse ou um certo mal-estar institucional. Também é verdade que há experiências que não resultam por uma variedade de motivos. Esse é um elemento integrante da vida em todas as suas dimensões e há que prestar atenção a estes casos e avaliá-los com toda a atenção. Parece, no entanto, ser opinião das Províncias que se têm aventurado a dar passos na colaboração com os Leigos na missão96 que o resultado global é francamente positivo e as experiências positivas ultrapassam largamente as situações negativas. 12. Quadro final: Lava-pés e contemplação para alcançar amor Desde os primeiros momentos das origens do carisma inaciano, o chamamento ao serviço de Cristo e com Ele é nota marcante da Companhia de Jesus. Um serviço feito sob o sinal da Cruz e da Consolação Pascal. O lava-pés de Jo 13, 1-17 dá-nos uma composição de lugar para situar todo o serviço prestado com Jesus: dá-nos uma acção concreta a contemplar e o modo como ela é realizada. Este momento do mistério da Foi possível aceder a testemunhos de províncias tão distintas como Brasil Central, Austrália, Castilla, Bética, Oregon, Grã-Bretanha, Portugal que, no geral, fazem uma avaliação positiva da sua colaboração com leigos, apesar de serem experiências relativamente recentes. 96 112 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã entrega de Jesus por nós oferece-nos um referente para toda a vida cristã. Creio que esta imagem é particularmente válida no tema da colaboração Jesuítas-Leigos. Temos todos de voltar a este mistério uma e outra vez. E, talvez, aceitar que é Ele quem nos lava primeiro e que Ele está no outro: no Jesuíta como no Leigo. Nos religiosos como nos Padres diocesanos. «Se eu não te lavar, não terás parte comigo» (Jo 13, 9) – diz Jesus a Pedro. É sempre difícil aceitar que os outros nos lavem. Mais difícil é reconhecer neles a presença de Jesus. É este mistério que temos de trazer para a nossa comunhão apostólica na missão comum. Converter o olhar, o coração para poder oferecer o corpo que somos e temos a Cristo, no outro. Sabendo que Ele nunca nos irá tirar o lugar nem a vez de O servir. Jesuítas e Leigas(os) e religiosas(os) e padres diocesanos, aceitando ser servidos uns pelos outros, servindo uns aos outros, aceitando ver no outro Jesus realizar uma comunhão com a qual serve Deus no mundo. A mesma comunhão na missão pode ser enquadrada e orientada para outro horizonte de leitura: a contemplação para alcançar amor. É esta a proposta que nos é dada, no final dos EE, a fim de a levarmos à vida em todos os momentos e actividades da nossa existência. «O amor deve-se pôr mais nas obras que nas palavras»; «consiste na comunicação recíproca, a saber, em dar e comunicar a pessoa que ama à pessoa amada o que tem ou do que tem ou pode; e, vice-versa, a pessoa que é amada à pessoa que ama; de maneira que, se um tem ciência, a dê ao que a não tem, e do mesmo modo quanto a honras ou riquezas; e assim em tudo reciprocamente, um ao outro» [EE 230, 231]. A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus 113 E «considerar como Deus trabalha e opera por mim em todas as coisas criadas sobre a face da terra, isto é, procede à semelhança de quem trabalhasse» [EE 236]. Colaborar na missão é também amar ao Senhor mais em obras do que em palavras, na comunicação recíproca do que temos e somos, podemos e fraquejamos, certos de que essa comunhão produzirá algo novo mas belo. Colaborar na única missão dando reciprocamente uns a outros, o que tem ao que não tem. Partilhando êxitos e abundância, a falta e a carência. Também isso é amor feito obra. E nessa obra contemplar como Deus opera por nós, em todas as coisas criadas à face da terra. Contemplar como Deus trabalhou para nos fazer chegar aqui. E ousar levantar os olhos para o horizonte, para os trabalhos que se avizinham. Sem medo. Porque a comunhão é sempre criadora de vida. 115 A COMPANHIA DE JESUS E O BINÓMIO FÉ-JUSTIÇA Hermínio Rico, S.J. «Fé e justiça», este slogan, ou, numa fórmula menos condensada, «o serviço da fé e a promoção da justiça», tornaram-se expressões habituais, regulares, quase omnipresentes, no discurso da Companhia de Jesus – e também sobre a Companhia de Jesus – desde 1975, ano da Congregação Geral 32. Foi aqui, no seu posteriormente famoso «Decreto IV», que se cunhou esta expressão que, de imediato, deu muito que falar e, se calhar, ainda continua a dar. Sobre ela se concentraram e polarizaram imediatamente a maioria das valorizações da evolução e do estado da Companhia de Jesus, vindas tanto de dentro dela mesma, como de fora, feitas por terceiros, mais ou menos interessados, mais ou menos bem informados. Todos se focavam neste ponto emblemático da Companhia contemporânea, seja para o condenar, seja para o enaltecer. Dum lado, opunham-se os que resistiam ou rejeitavam este desenvolvimento, por o acharem algo perigoso, ideologicamente demasiado marcado, para lá dos limites aceitáveis do apostolado duma ordem religiosa, etc. Do outro, os que viam aí uma recuperação do carisma original, uma proposta mais adequada para a vivência do Cristianismo, sugestiva até para um novo posicionamento da Igreja nas sociedades e no mundo. É normal que obtivesse grande atenção dentro da Companhia, mas porquê esta notoriedade fora dela? Os Jesuítas não foram os primeiros a falar desta temática, é importante que 116 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã se diga. Mas, como é frequente, acabaram por ser eles a dar nas vistas e a chamar a atenção, sobretudo por causa da acção, claramente inspirada nesta doutrina, que desenvolveram nos anos 1970, na América Latina. O seu envolvimento directo nos movimentos eclesiais e sociopolíticos ligados à produção da teologia da libertação e à acção pastoral e de consciencialização social inspirada por ela deram proeminência ao trabalho dos Jesuítas junto dos pobres e às suas actividades em prol da justiça, sobretudo porque, dum modo geral, até aí, associava-se a Companhia de Jesus com apostolados que serviam primordialmente as classes dominantes. O impacto mediático das opções muito radicais de certos destes jesuítas (mesmo se rapidamente ex-jesuítas) e o facto de alguns terem acabado mártires por causa do seu envolvimento nestas lutas ajudaram à descoberta e à notoriedade deste Decreto IV. Nesta exposição, pretende-se apresentar o que diz esse documento de 1975, com o recurso à leitura dos trechos mais significativos dele. Tratar-se-á, em seguida, da análise da sua ligação à inspiração original da Companhia de Jesus e aos antecedentes desenvolvimentos teológicos na compreensão da missão social da Igreja vindos do Vaticano II. Finalmente, considerar-se-ão os desenvolvimentos propostos pelas Congregações Gerais 33 e 34 (sobretudo esta) sobre a doutrina do serviço da fé e da promoção da justiça. 1. O Decreto IV da Congregação Geral 32 Como é óbvio, para perceber a Congregação Geral 32, importa olhar a situação da Companhia de Jesus nessa altura, especialmente desde a Congregação anterior, a 31, que tinha tido A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 117 lugar em 1965-66, mesmo no final do Concílio Vaticano II. Os dez anos a seguir foram marcados pelas tensões do pós-concílio: aqueles que achavam que as coisas deviam acelerar e andar ainda mais para a frente começavam a sentir-se frustrados; os que queriam abrandar ou travar o processo começavam a recuperar poder de influência. Mais ainda, foi uma década de experiência dramática e traumática na Companhia: uma queda abrupta das vocações, um enorme número de jesuítas, sobretudo entre os mais jovens, a deixar a vida religiosa. Chega-se a 1975 com uma grande crise de identidade: «Quem somos nós? Para que somos nós? Qual é a nossa razão de ser e a nossa missão no mundo e na Igreja de hoje?» Estas perguntas sobre a identidade e a missão da Companhia de Jesus eram as questões mais vivas e foram lançadas à Congregação Geral. Os dois decretos mais emblemáticos que dela saíram assumiram esses desafios: o Decreto II, «O jesuíta hoje», e o Decreto IV, «A nossa missão nos dias de hoje». Se é claro o que deu origem às perguntas, importa também indagar donde veio a inspiração para as respostas, sobretudo naquilo que tiveram de mais inovador, inesperado, nomeadamente a formulação da missão actual da Companhia em termos do serviço da fé e da promoção da justiça. Por detrás de todo este processo, há uma figura jesuíta muito importante, o Padre Pedro Arrupe, eleito geral em 1965. O seu papel pessoal é determinante. O seu biógrafo, Pedro Miguel Lamet, considera este ponto da relação entre a fé e a justiça «a grande opção», uma opção que ele foi maturando durante longo tempo, e remete muito do impulso para este avanço da Companhia à influência pessoal deste Geral, basco de origem como Santo Inácio. Foi algo em que a sua experiência e o seu pensar pessoais influenciaram decisivamente a Companhia toda. Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 118 Em termos mais práticos, o influxo dos jesuítas que trabalhavam na América Latina nesta altura, muitos deles missionários enviados das províncias espanholas, terá sido também determinante. A fórmula O Decreto IV, à questão qual é a nossa missão nos dias de hoje, responde concisamente: A missão da Companhia de Jesus, hoje, é o serviço da fé, do qual a promoção da justiça constitui uma exigência absoluta enquanto faz parte da reconciliação dos homens, exigida pela reconciliação dos mesmos com Deus (2). A formulação define a missão da Companhia hoje. É importante esta qualificação temporal. É uma resposta ao presente, aos sinais dos tempos, à realidade do mundo como ela estava a ser vista em 1975. Essa missão é definida como «serviço da fé, do qual...». A missão é o serviço da fé como sempre foi, mas, hoje, percebe-se como «uma exigência absoluta» desse serviço da fé a promoção da justiça. É preciso ainda ter em conta que o decreto não é sobre a justiça, ou sobre promoção da justiça. É sobre a missão dos Jesuítas no mundo de hoje, sobre o modo como a tarefa de evangelização que define a natureza e missão da Companhia, o anúncio de Jesus Cristo, exige ser realizado no contexto actual. O resultado é fruto de exercício de discernimento sobre a missão, feito pela atenção aos sinais dos tempos, no confronto entre aquilo que é o carisma da Companhia, o seu fim, a sua tradição, por um lado, e as realidades presentes que os jesuítas espalhados por A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 119 todo o mundo enfrentavam. Neste exercício de discernimento descobre-se, ilumina-se e torna-se incontornável este nexo fundamental entre fé e justiça: Não há, por conseguinte, promoção propriamente cristã da justiça integral sem um anúncio de Jesus Cristo e do mistério da reconciliação que Ele levou a bom termo. É Cristo, de facto, quem abre o caminho a esta libertação total e definitiva, à qual o homem aspira no mais íntimo do seu ser. Inversamente, não há verdadeiro anúncio de Cristo, não há verdadeira proclamação do seu Evangelho, sem compromisso decidido de promover a justiça. (27) Basicamente, o que percebem os Jesuítas nessa altura é que não há verdadeiro anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, se não se faz, ou não se procura fazer, algo pela promoção da justiça neste mundo em que se vive. Donde vem este nexo indissociável? Agora, teologicamente vamos procurar fundamentos. Esta interpenetração não é mais do que um corolário da união entre o amor de Deus e o amor do próximo, algo que está claríssimo no Novo Testamento, pelo menos: Não há conversão autêntica ao amor de Deus sem conversão ao amor dos homens e, consequentemente, às exigências da justiça. A própria fidelidade à missão apostólica requer, portanto, que proponhamos a salvação cristã integral, quer dizer, que, em primeiro lugar, devemos introduzir os homens no amor do Pai e, por Ele, no amor do próximo e da justiça. A evangelização é proclamação da fé que opera o amor aos homens: não se pode realizar a sério sem promoção da justiça. (28) 120 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã A «fé que actua pelo amor», como diz a Carta aos Gálatas (5, 6), não se pode anunciar a sério sem promoção da justiça, ou então transforma-se em palavras vazias. Fundamentação bíblica há muita mais. Basta lembrar a parábola do Bom Samaritano (Lucas, 10), a parábola do juízo final em Mateus, 25, a 1ª Carta de S. João 4, 20 («aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê»), a Carta de S. Tiago, etc. Serviço presbiteral da fé E continua a ficar claro que a missão da Companhia de Jesus é o serviço da fé, o anúncio de Jesus Cristo. Não se trata de deixar a evangelização como fim primeiro da acção da Companhia, da sua natureza, portanto da sua identidade e missão. A missão da Companhia continua a ser espiritual, «presbiteral», não uma missão de assistente social ou duma ONG... A missão da Companhia hoje é serviço presbiteral da fé, quer dizer, tarefa apostólica destinada a ajudar os homens a abrirem-se a Deus e a viverem segundo todas as dimensões e exigências do Evangelho. (18) No entanto, é claro que entre estas exigências do Evangelho resplandece dum modo particular, nos tempos de hoje, a justiça, o respeito e a promoção da dignidade humana. Neste sentido, o serviço presbiteral da fé inclui, como parte integrante, a promoção da justiça. (18) A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 121 Este qualificativo «presbiteral» chama a atenção para o facto de os Jesuítas não deixarem, agora, de ser religiosos e padres, para se transformarem em sociólogos, politólogos, activistas sociais. É de dentro do seu serviço presbiteral ao Evangelho, daí, dessa essência, da exigência que o anúncio da Boa Nova põe, que a necessidade da promoção da justiça sai. Portanto, se o serviço da fé continua a ser primordial, vê-se agora mais claramente que a promoção da justiça dimana como exigência absoluta desse anúncio do Evangelho, é particularmente indispensável nas condições do mundo de hoje. Até porque – e aqui faz-se a ligação com outro aspecto importante da definição da missão da Companhia, o mandato transmitido por Paulo VI, na Congregação 31, de combater o ateísmo – a injustiça, ou a indiferença perante a injustiça, constitui um dos grandes obstáculos à fé. Duma dupla maneira: muita gente encontra tropeço para acreditar ao confrontar-se com as realidades do mal e da injustiça no mundo; e muita outra gente põe em causa a credibilidade do anúncio cristão precisamente pela falta de compromisso pela justiça, ou por um pactuar pouco incomodado, pelo menos tácito, com estruturas de injustiça. Essa desilusão ou acusação promove ou, pelo menos, ajuda a suportar o ateísmo. A insensibilidade para a injustiça é um dos grandes obstáculos à fé. Também o ateísmo se alimenta da injustiça. Promover a justiça é selo de credibilidade para o anúncio da fé. Em termos que não estão no Decreto, o que está em causa é tomar-se consciência que anunciar-se o Céu, só, e preparar as pessoas para o Céu, só, não chega. É pouco credível. Ninguém consegue, hoje em dia, ficar à espera apenas da outra vida. O Céu, o Reino de Deus, não pode esperar, tem que se começar a construir aqui, já. Temos que começar de imediato a promover Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 122 os valores que são próprios dessa experiência última que nos está prometida. A promoção da justiça é a condição da fecundidade de todas as nossas tarefas apostólicas, em particular se queremos ser coerentes no combate contra o ateísmo. (29) Por isso, A promoção da justiça é parte integrante da evangelização. (30) Também por uma questão de credibilidade. O anúncio evangélico ganha força se o que se diz está também, ao mesmo tempo, a ser posto em prática. Mais uma aplicação da frase mais ouvida hoje aqui: «o amor consiste mais em obras do que em palavras». No fundo, trata-se de entender a evangelização numa nova luz, implicando necessariamente e sempre a luta pela justiça. Não se pode anunciar com coerência e eficácia o Reino dos céus sem empenhamento em construir o reino já na terra. o anúncio evangélico (...) será melhor ouvido se for acompanhado dum compromisso efectivo pela promoção da justiça e pela antecipação do Reino que há-de vir. (41) Esta é a grande constatação e a directiva de maior alcance traduzida pelo Decreto IV. Factor integrativo de todos os apostolados Uma outra chamada de atenção. Não se trata de eleger um novo campo de apostolado, ou sequer de dar prioridade A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 123 particular a um sector concreto da actividade apostólica da Companhia de Jesus. O que este decreto faz é colocar toda a missão da Companhia, todo e qualquer apostolado, toda e qualquer tarefa realizada por jesuítas ou instituições da Companhia de Jesus, sob esta obrigação intrínseca de promover a justiça. A promoção da justiça para nós não constitui somente um campo apostólico como tantos outros, o do apostolado social; deve ser uma preocupação de toda a nossa vida e constituir uma dimensão de todas as nossas tarefas apostólicas. (47) O Decreto 2 da mesma Congregação 32 diz isto ainda mais claramente: Mais, o serviço da fé e a promoção da justiça não podem ser para nós simplesmente um ministério entre outros. Deve ser o factor integrativo de todos os nossos ministérios; e não só dos nossos ministérios mas da nossa vida interior como indivíduos, como comunidades, como fraternidade universal. É isto que a nossa Congregação quer significar com uma escolha básica. É a escolha que subjaz e determina todas as outras escolhas que se vão incorporar nas suas declarações e directivas. (9) O serviço da fé e a promoção da justiça implicada por esse serviço são algo constituinte, essencial, constitucional, de tudo aquilo que é jesuíta, a começar em cada jesuíta e a terminar nas instituições e na Companhia toda. Trata-se não de meras opções apostólicas ao nível da acção, mas da descoberta de dimensões transversais a toda a missão da Companhia, presentes necessariamente em todos os apostolados: 124 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã A promoção da justiça, a apresentação da nossa fé e o encaminhamento para o encontro pessoal com Cristo constituem (...) dimensões constantes de todo o nosso apostolado. (51) É, assim, um foco comum para centrar a acção de todo o jesuíta. Cada jesuíta deve viver o seu compromisso apostólico, qualquer que seja a forma que ele assuma, faça o que estiver a fazer, mas em tudo o que estiver a fazer, tendo sempre diante dos olhos, como objectivo único e constante, o serviço da fé e a promoção da justiça. (7) Isto traz consigo uma exigência para toda a Companhia. Não que todos se dediquem ao apostolado social, mas que todos, em todos os sectores de apostolado, levem a sério a solidariedade com os pobres, opções de estilo de vida que aproximem dos pobres e façam caminhar ao lado deles (ver 50). Não é só para alguns, é para todos. A solidariedade com os homens, que levam uma vida difícil e estão, colectivamente, oprimidos, não pode ser assunto de alguns jesuítas apenas. É solidariedade que deve marcar a vida de todos, tanto no plano pessoal como no comunitário e até institucional. Impor-se-ão mudanças nas nossas formas e estilos de vida. (48) Acção sobre as estruturas O Decreto IV faz uma revisitação das Constituições, na sua parte VII e, na medida em que caminha para uma maior concretização, propõe uma clarificação dos tradicionais critérios principais de discernimento da missão da Companhia, da esco- A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 125 lha de ministérios: a prioridade ao mais universal, à necessidade maior. Fá-lo à maneira duma questão posta ao próprio pensar de Inácio: Para a maior glória de Deus e a salvação dos homens, queria Inácio que os seus companheiros fossem para onde se esperasse um bem mais universal e para onde vivessem aquelas pessoas que, votadas ao abandono, se encontrassem em maior necessidade. Mas onde se encontra hoje a necessidade maior? Onde se encontra a esperança dum bem mais universal? (39) Isto tanto em termos da evangelização, como em termos do maior serviço às pessoas concretas. Como as estruturas sociais (...) contribuem para moldar o mundo e até o homem (...) a acção para transformar essas estruturas, em vista da libertação tanto espiritual como material do homem, fica assim, para nós, estreitamente ligada à obra da evangelização. (40) Há uma nova sensibilidade, um olhar desperto para um tipo de injustiça que não se combate só por virtudes individuais: injustiça não só entre pessoas, mas também encarnada nas instituições e estruturas sócio-económicas e políticas. (6) É muito típico daqueles anos acreditar fortemente que tudo se muda mudando primordialmente as estruturas sociopolíticas, embora se abrissem já qualificações. Veremos como mais tarde tudo é mais matizado. 126 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã A acção sobre as estruturas é indispensável, mas não pode tornar-se também unilateral por aí. Num mundo em que hoje se conhece a força das estruturas sociais, económicas e políticas, em que se conhecem também os seus mecanismos e leis, nele não pode o serviço evangélico deixar de exercer acção adequada sobre tais estruturas. (31) Mas não chega: Ao mesmo tempo, hoje como ontem, não basta – ainda que seja muito necessário – trabalhar na promoção da justiça e na libertação do homem só no plano social ou no plano das estruturas. A injustiça deve ser atacada por nós nas suas raízes, que estão no coração do homem. Precisamos portanto de trabalhar na mudança das atitudes e tendências, que geram injustiça e alimentam estruturas de opressão. (32) Concluindo esta parte, esta é a definição da missão da Companhia, para hoje, dada pela Congregação Geral 32, no seu Decreto IV. Mas é isto novo? Trata-se de uma invenção dos finais do século XX. É uma nova Companhia, como alguns que não se reviam nestas novas formulações a acusaram de ser, ao ponto de terem tentado conservar separadamente a Companhia «velha», deixando esta «nova» seguir os seus caminhos sem eles? 2. Mais que novidade, regresso às fontes Não é novo na Companhia. É dizer outra vez o mesmo, numa forma que faz sentido e responde às condições de hoje. Não é inflexão, mas aggiornamento: volta às fontes, à inspiração A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 127 original do carisma e do fim da Companhia, em conjunto com uma atenção aguda às necessidades do nosso tempo. O próprio decreto diz, logo no início, isso mesmo: Foi sempre esta a missão da Companhia, embora em modalidades diferentes; mas hoje reveste sentido novo e urgência muito especial, devido às necessidades e aspirações dos homens do nosso tempo. A esta luz, queremos considerá-la com um olhar novo. (3) A prática apostólica dos primeiros jesuítas é disso prova. O apostolado social esteve presente desde sempre, não em linguagem de transformação das estruturas, o que seria anacrónico, mas facilmente discernível em iniciativas concretas que tomaram. Fazendo apenas referência, sem desenvolver nem explicar, por exemplo: a preocupação de reforma social dos costumes que Inácio teve na sua visita a Loiola antes de seguir para Itália; o que os primeiros jesuítas faziam no norte de Itália em 1538. As obras de misericórdia (corporais também!) estiveram sempre muito presentes no dia-a-dia apostólico da Companhia nascente, até mesmo como mandato para aqueles que são enviados como peritos teológicos para o Concílio de Trento... Na Fórmula do Instituto Os ministérios típicos da Companhia, como são definidos pela Fórmula do Instituto [1550], agrupam-se em três áreas: o ministério da palavra; os ministérios sacramentais, com especial ênfase na confissão; e, finalmente, as obras de caridade, as obras de misericórdia espirituais e, sobretudo, corporais. 128 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã [A Companhia] foi instituída principalmente para a defesa e a propagação da fé e o aperfeiçoamento das almas na vida e na doutrina cristãs, por meio de pregações públicas, lições e qualquer outro ministério da palavra de Deus, Exercícios Espirituais, formação cristã das crianças e dos rudes, e Confissões e administração dos outros Sacramentos, buscando especialmente a consolação espiritual dos fiéis cristãos. Foi ainda instituída para pacificar os desavindos, piedosamente ajudar e servir os que se encontram presos nas cadeias e enfermos nos hospitais e exercitar as outras obras de caridade conforme se julgar conveniente para a glória de Deus e o bem universal. (FI 1) As confrarias que os Jesuítas fundaram, a que aderiram ou com quem trabalharam, naqueles primeiros anos antes e depois da fundação da Companhia, todas elas tinham muito claramente esta dinâmica: ajudar as pessoas a praticar as obras de misericórdia temporais. É claro que, então, não fazia sentido falar em «apostolado social» ou em transformação das estruturas sociais e político-económicas. Isto é linguagem dum paradigma que só aparece muito mais tarde, depois das revoluções. Naquela altura, a mundividência das pessoas é que as coisas sempre tinham sido assim e sempre seriam assim, e fazia-se o que se podia para aliviar a sorte dos mais desfavorecidos – as obras de misericórdia. Transpondo a mesma atitude de compaixão e de serviço para os conhecimentos e a mentalidade de hoje, aquilo que faz o Decreto IV, obtemos o apelo à promoção da justiça. Para continuar a preencher o encadeamento histórico, mostrando que o Decreto IV não é uma novidade extrínseca na Companhia, bastaria pegar em exemplos como as Reduções na América do Sul, os trabalhos de promoção humana nas missões A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 129 por todo o mundo, as escolas, a tradição de apostolado social jesuíta... Novidade existe apenas na aplicação. O que está sempre presente, aquilo que dá continuidade, é este modo de proceder apostólico da Companhia, este discernimento apostólico constante na busca, em cada tempo e em cada lugar, de qual é o bem mais universal, qual é a maior necessidade. Foi essa, aliás, a razão do Quarto Voto: porque o Papa teria melhor conhecimento de toda a Igreja, poderia mais facilmente perceber onde estava a maior necessidade e para aí enviar os Jesuítas. É também esta visão, este olhar sobre o mundo, que encontramos na contemplação da Encarnação dos Exercícios Espirituais, e o mesmo é suscitado, alimentado e confirmado na Meditação do Chamamento do Rei e na experiência mística de La Storta. Sempre o chamamento a colaborar na acção de Deus no mundo, que vem, ao fim e ao cabo, desta posição de partida que vê Deus a agir em tudo, presente e, mais do que presente, trabalhando nas coisas, como o segundo e o terceiro ponto da Contemplação para Alcançar Amor nos dizem. 3. Antecedentes Mas será que os Jesuítas inventaram toda esta doutrina e linguagem do Decreto IV só por eles? Claro que não. Há antecedentes e um contexto teológico e eclesial que permite que a Congregação Geral 32, mais do que inventar, recolha, sistematize e ponha em forma de programa de acção, com o colorido específico da espiritualidade e do carisma apostólico jesuíta, a exigência do trabalho pela justiça. 130 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã O impulso primeiro tem que ser procurado no Vaticano II, como a Congregação Geral 34 virá a afirmar: Respondendo ao Concílio Vaticano II, a Companhia iniciou um processo de fé, ao comprometer-se na promoção da justiça como parte integrante da sua missão. (Dec. 3, 1) O Concílio, sobretudo com a Gaudium et Spes, faz uma mudança fundamental na legitimação da missão social da Igreja. Apesar do desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja, desde Leão XIII, em 1891, com a Rerum Novarum, através das encíclicas sociais que foram marcando paulatinamente o século XX, só no Vaticano II houve um enquadramento eclesiológico, em termos da natureza e da missão da Igreja, que deixou de remeter a missão social, ou a dimensão social da missão da Igreja, para a margem, apenas como uma extensão, um corolário ético, mas não como fazendo parte do núcleo essencial da natureza da Igreja. O Concílio, ao resolver os problemas pendentes, com mais de 150 anos, da relação da Igreja com Mundo, tanto em termos políticos e doutrinais (o entendimento das relações Igreja-Estado, que a Dignitatis Humanae clarifica); como em termos mais teológicos (o posicionamento da Igreja, sistematizado pela Gaudium et Spes), posicionou a Igreja numa atitude aberta, construtiva, optimista, colaborativa na sua relação com as sociedades e o mundo. Fica, assim, desimpedida uma visão diferente da presença da Igreja no mundo e do seu papel na transformação deste mundo, já aqui. A Igreja apresenta-se como parte interessada, comprometida na transformação do mundo. Com a Gaudium et Spes, a defesa e promoção da dignidade da pessoa humana ganhou o A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 131 centro da eclesiologia, tornou-se a razão de ser da Igreja, movendo assim a missão social da periferia para o âmago da vida e do trabalho da Igreja. É da defesa e da promoção da pessoa que vem a missão social da Igreja, deixando de ser algo de segunda ou terceira ordem, porque ancorada no âmago da missão evangélica. Esbateu-se a divisão entre ganhar o Céu e transformar a terra, entre a evangelização e a promoção humana e social. O papel da Igreja na arena política, na promoção dos direitos humanos e na protecção da dignidade humana tornou-se central, desafiando-a no meio desta intervenção a manter a sua identidade e carácter religiosos. A Igreja definiu para si mesma um papel no mundo que é religioso na sua natureza e finalidade mas não deixa de ser politicamente significante nas suas consequências (cf. Gaudium et Spes 40-42). Daqui se abre o caminho para a teologia da libertação e a teologia política dos anos 70. A Conferência de Medellin, em 1968, é um marco determinante, que, de alguma maneira, inaugura de forma institucional a teologia da libertação. As consequências doutrinais mais explícitas desta viragem teológica vêm a culminar em dois documentos resultantes dos sínodos dos bispos da década de 70 (referidos no nº 22 do Decreto IV), A Justiça no Mundo, de 1971 e a Evangelii Nuntiandi, de 1975. Ficam algumas breves citações destes dois documentos, para percebermos quanto o que o Decreto IV diz já estava aqui afirmado pela Igreja universal. É impossível aceitar «que a obra da evangelização possa ou deva negligenciar os problemas extremamente graves (…) no que se refere à justiça, à libertação, ao desenvolvimento e à paz no mundo. Se isso porventura acontecesse, seria ignorar a doutrina do Evangelho sobre o amor para com o próximo que sofre ou se encontra em necessidade». (EN, 31) 132 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da Igreja em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações de opressão. (JM, 6) A missão de pregar o Evangelho requer, nos tempos que correm, que nos comprometamos com a libertação integral da pessoa, já desde agora, na sua existência terrena. Se, efectivamente, a mensagem cristã sobre o amor e a justiça não mostra a sua eficácia na acção pela justiça no mundo, muito dificilmente ela será aceitável para as pessoas do nosso tempo. (JM, 36) A Igreja não é a única responsável pela justiça no mundo; cabe-lhe, no entanto, uma responsabilidade própria e específica, que se identifica com a sua missão de testemunhar diante do mundo a exigência de amor e de justiça contida na mensagem evangélica. (JM, 35) Sublinhe-se apenas que a acção pela justiça é afirmada «dimensão constitutiva da pregação do Evangelho», não opcional, ou marginal. A construção da justiça terrena, já, neste mundo, é um selo de garantia e marca de coerência quando se anuncia a justiça que é mais do que terrena. 4. Desafios e dificuldades O Decreto IV foi um documento revolucionário e inesperado até, talvez, para a maioria dos jesuítas. A Congregação Geral tem consciência disso e antevê, no próprio decreto, desafios e dificuldades. A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 133 Para muitos, certamente, ter-lhes-á aparecido como uma mudança muito grande e radical, ao afirmar a necessidade duma revisão dos nossos tradicionais métodos apostólicos, das nossas atitudes e das nossas instituições, para tudo adaptar às novas exigências da nossa época.(9) Esta opção deve levar-nos a rever as nossas solidariedades e preferências apostólicas. (47) Tanto mais que isso exigiria vencer resistências, temores e apatias, que impedem a compreensão verdadeira dos problemas sociais, económicos e políticos. (42) E pediria, ao mesmo tempo, rigorosa análise social e política, que requer estudos profundos e especializados (n. 44). A Companhia foi aprofundando o novo caminho, habituando-se à linguagem, as oposições mais agudas venceram-se e o Decreto IV foi sendo cada vez mais aceite e integrado nos raciocínios e nas escolhas. Hoje é, dum modo geral, pacificamente visto e aceite como a definição da nossa missão. Do lado oposto, os perigos surgiam dos riscos de uma atracção por um activismo social exagerado, uma unilateral opção pelo trabalho com os pobres, recusando, por exemplo, a continuidade das grandes instituições (colégios e universidades, nomeadamente). A Congregação não antecipava facilidades no caminho por diante: Com efeito não trabalharemos na promoção da justiça sem que isso muito nos custe. Mas este trabalho tornará mais 134 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã significativo o anúncio do Evangelho e mais fácil o seu acolhimento. (46) Posteriormente, surgiram outras dificuldades levantadas ao Decreto e às consequências da sua aplicação. Já mais de fora da Companhia que de dentro dela. O ponto comum assentava numa denúncia e recusa ideologicamente muito marcadas, consubstanciadas, nas suas manifestações extremas, em acusações à Companhia de se ter vendido ao marxismo, apontando jesuítas como comunistas, etc. Acusava-se a Companhia de unilateralismo, de pôr em causa a sua missão espiritual de ordem religiosa em nome de um activismo social mais próprio da acção política. Outras reservas, mais de nível teórico, e mais de dentro da Companhia, também se levantaram: sobre as possibilidades de articulação entre o discurso teológico e catequético, por um lado, e a análise político-social, por outro; sobre as relações entre a espiritualidade e a sociologia e a política; sobre a ligação teológica entre o serviço da fé e a promoção da justiça. Outro tipo de debates questionava o significado do conceito de «justiça»; justiça pode-se entender de muitas maneiras, que justiça é que promove o Decreto IV? Num contexto mais largo que a própria Companhia, aquilo que, para abreviar e simplisticamente, podemos designar como o «ataque à teologia da libertação», que teve lugar nos anos 80, pôs em causa também algum do discurso e da acção referenciados ao Decreto IV. Na Companhia, tivemos a «crise Arrupe», de 1981. O P. Arrupe pedia insistentemente permissão para convocar uma Congregação Geral para renunciar ao seu cargo. O papa não autorizou e, depois da doença súbita do P. Arrupe, interrom- A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 135 peu os processos ordinários do governo e nomeou um seu delegado pessoal para liderar a Companhia. Em todo este processo, naquilo que moveu as atitudes e as decisões, a maior parte, senão todas as questões polémicas que envenenaram o relacionamento giravam à volta do empenhamento de muitos jesuítas no trabalho pela promoção da justiça, sobretudo na América Latina, com todos os relatórios altamente críticos que dessa actividade chegavam a Roma e que contribuíram, unilateralmente, para fazer chegar o problema à dimensão que atingiu. Mas, distanciando-nos um pouco de querelas historicamente mais conjunturais, a grande dificuldade, daquele tempo e de agora, e que se calhar continuará por muito tempo, o grande desafio continua a ser uma conversão real e verdadeira da Companhia de Jesus a este novo modo de ver, conversão que crie a indiferença para agir coerentemente e nos faça ultrapassar definitivamente qualquer rasto de insensibilidade perante aqueles que sofrem injustiça. 5. Congregação Geral 33 Em 1983, teve lugar a CG 33, a Congregação que o Papa João Paulo II finalmente, dois anos depois, autorizou que se reunisse para eleger um novo Geral, retomando assim a ordem normal do governo da Companhia. Em circunstâncias ainda muito sensíveis, não iludindo a pressão que se sentia sobre a Companhia, mas com total liberdade, os jesuítas congregados reafirmaram e confirmaram plenamente o Decreto IV: A Congregação confirma a missão da Companhia de Jesus tal como se expressa nas CG 31 e 32, e particularmente 136 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã como se propõe nos decretos 2 e 4 desta última. Estes decretos são a aplicação actual da Fórmula do Instituto e do carisma do N. P. Santo Inácio e expressam a nossa missão hoje com tal claridade que, no futuro, os devemos ter como guia na selecção dos nossos trabalhos. (38) Não ficam quaisquer dúvidas: a Companhia não recuou, em 1983, naquilo que tinha afirmado em 1975, no Decreto IV da Congregação Geral 32. 6. Congregação Geral 34: nova definição da Missão As coisas foram-se pacificando bastante e rapidamente, depois de 1983. Até que chegamos a 1995, à Congregação Geral 34, que volta a assumir como uma das suas tarefas principais «orientar a nossa missão para os tempos de hoje» (Dec. 1, 1). Respondia, assim, aos pedidos que voltaram a ser feitos pelos jesuítas de todo o mundo. A motivação continua a ser sempre a mesma: «enfrentar os desafios e oportunidades do mundo de hoje» (Dec. 1, 3). A resposta vem em quatro decretos que constituem um apartado, intitulado «A Nossa Missão». Um primeiro decreto de enquadramento («2. Servidores da Missão de Cristo»), que eu considero um dos documentos mais importantes da Companhia recente, porque define a missão da Companhia de Jesus e sobretudo reposiciona a Companhia, ao descentrá-la, face à missão – missão que lhe é dada, não criada por si, e que é sempre a missão de Jesus Cristo, nunca pode ser apropriada; por isso, os Jesuítas definem-se como servidores da missão de Cristo. E, na parte final A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 137 deste decreto, pega novamente nesta questão da promoção da justiça. Depois, vêm mais três decretos, mais parcelares, mais focados: «3. A Nossa Missão e a Justiça»; «4. A Nossa Missão e a Cultura»; «5. A Nossa Missão e o Diálogo Inter-religioso». À primeira leitura, pode parecer que os jesuítas, então, deixaram a justiça, ou, pelo menos, arranjaram-lhe Companhia. Dantes era o serviço da fé e a promoção da justiça. Agora, é o serviço da fé e a promoção da justiça, mais o diálogo com a cultura e o diálogo inter-religioso. Justiça e cultura já estão ao mesmo nível, o que abre a porta aos que se sentem menos atraídos pelo discurso sobre a justiça para se dedicarem apenas à cultura. Mas isto não é verdade. Não é um recuo, não é uma viragem. É um aprofundamento e ampliação do serviço da fé e promoção da justiça. Se, em 1975, a experiência marcante para a Companhia situava-se na América Latina, na prática de um enorme envolvimento com comunidades de base, num combate com estruturas extraordinariamente injustas e extraordinariamente violentas. Era este o contexto mais influente sobre a visão da Companhia sobre a sua própria missão. Em 1995, há um novo contexto que começa a tomar peso na acção da Companhia, o contexto asiático. Aqui, o grande desafio para os jesuítas que lá vivem e trabalham é precisamente o encontro com culturas muito diferentes, mas muito desenvolvidas, e com tradições religiosas muito fortes e muito estabelecidas, no seio das quais o Cristianismo, e muito mais o catolicismo e muito mais os jesuítas são ultra-minoritários. Como é que isto se compagina com a missão da Companhia? E esse desafio começa a ser sentido por toda a Companhia. Os Jesuítas reunidos em Congregação Geral, ao olharem para a missão da Companhia, têm que levar em conta esta 138 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã nova experiência, aquilo a que o seu ministério de promoção da justiça, de promoção da dignidade humana, realizado em muitos locais do mundo os está a desafiar: ao diálogo com as outras culturas, ao diálogo inter-religioso. Mas a mesma afirmação continua a ser feita. Não haja dúvidas. De acordo com o nosso carisma e a nossa tradição e com a aprovação e o apoio dos Papas ao longo dos anos, a missão actual da Companhia é o serviço da fé e a promoção, na sociedade, daquela «justiça do Evangelho que é a encarnação do amor e da misericórdia salvífica de Deus». (Dec. 2, 3) A missão actual da Companhia – afirma-se mais uma vez, sublinhe-se – é o serviço da fé e a promoção da justiça. Mas há que integrar nesta missão novas dimensões, há que dar conta daquilo que está a ser a experiência da Companhia. O objectivo das novas formulações é a fundamentação da inseparabilidade das diferentes dimensões da nossa missão. E se a «Justiça» aparece qualificada, isso não é para a diminuir, mas para a distinguir de concepções ideológicas ou absolutizações reducionistas do Evangelho. Então, a Congregação Geral 34, neste seu segundo decreto, propõe uma definição algo complicada para sistematizar o equilíbrio entre as várias dimensões da missão de evangelização integral: proclamação da fé, promoção da justiça, diálogo com as culturas e as religiões. A «finalidade» da nossa missão recebida de Cristo, como se apresenta na Fórmula do Instituto, é o serviço da fé... A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 139 Este é o objecto da missão da Companhia. O seu fim é a evangelização, o anúncio do Reino de Jesus Cristo, a pregação do Evangelho. O «princípio integrador» da nossa missão é o vínculo inseparável entre fé e promoção da justiça do Reino. Há um princípio integrador, aquilo que está presente em todos os apostolados, em todas as missões de cada jesuíta. Não há anúncio da fé integral, fiel, sem preocupação pela justiça. Nesta Congregação Geral queremos aprofundar e estender, de forma explícita, a consciência que tem a Companhia das dimensões integrais da nossa missão, que o decreto 4 da Congregação Geral 32 nos apontou e que agora estão a amadurecer na nossa experiência e nos nossos ministérios. Demo-nos conta de que, quando os nossos ministérios se desempenham com mais fruto, estes elementos estão sempre presentes. (Dec. 2, 14) Alcança-se uma nova síntese, mais complexa porque mais aprofundada e ampliada: Assim, o fim da nossa missão (o serviço da fé) e o seu princípio integrador (a fé dirigida à justiça do Reino) estão dinamicamente relacionados com a proclamação inculturada do Evangelho e o diálogo com outras tradições religiosas, como dimensões integrais da evangelização. O princípio integrador flui para essas dimensões que, como ramos de um tronco comum, formam uma matriz dos traços integrais da nossa única missão do serviço da fé e da promoção da justiça. (Dec. 2, 15) 140 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Mais uma vez, chega-se aqui a partir da experiência, da leitura da realidade concreta nos sítios onde a Companhia está a viver e a trabalhar, tentando cumprir o Decreto IV. Na nossa experiência desde a Congregação Geral 32, caímos na conta de que o nosso serviço da fé, dirigido à justiça do Reino de Deus, não pode prescindir dessas outras dimensões de diálogo e presença dentro das culturas. (Dec. 2, 16) E chega-se aqui percebendo que a exigência da justiça obriga, nesses contextos, e na Companhia em geral, a alargar esta perspectiva da promoção da justiça a outras dimensões. A justiça pode florescer somente na transformação da cultura, já que as raízes da injustiça estão incrustadas tanto nas atitudes culturais como nas estruturas sócio-económicas. (Dec. 2, 17) Passa-se, assim, do binómio fé e justiça a uma matriz de quatro por quatro. Não pode haver um serviço da fé sem promoção da justiça, penetração das culturas, abertura a outras experiências religiosas. Isto é, o serviço da fé exige estas três outras coisas. Não pode haver promoção da justiça sem comunicar a fé, transformar as culturas, colaborar com outras tradições. A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 141 Se falha qualquer uma destas coisas, já não é a promoção da justiça do Reino, da justiça do Evangelho, da justiça que é parte integrante da missão da Companhia. Não pode haver inculturação sem comunicar a fé aos outros, dialogar com outras tradições, compromisso com a justiça. Não pode haver diálogo religioso sem partilhar a fé com outros, avaliar as culturas, compromisso pela justiça. (Dec. 2, 19) Obtém-se, então, esta conclusão discernida, mais complexa: À luz do decreto 4 e da nossa experiência actual, podemos afirmar explicitamente que a nossa missão no serviço da fé e da promoção da justiça se abre para incluir, como dimensões integrais, a proclamação do Evangelho, o diálogo e a evangelização da cultura. (Dec. 2, 20) E, portanto: À luz destas reflexões, podemos agora dizer da nossa missão actual, que a fé que busca a justiça, é, inseparavelmente, a fé que se compromete no diálogo com outras tradições e a fé que evangeliza as culturas. (Dec. 2, 21) Na Congregação Geral 34, vai-se mais às raízes e às causas morais e culturais da injustiça. Um outro ponto que aparece mais sublinhado é a proximidade com os pobres. 142 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã A nossa experiência diz-nos que a promoção da justiça surge da nossa fé tornando-a ainda mais profunda. Por isso, tentamos caminhar para uma maior integração da promoção da justiça na nossa vida de fé, na companhia do pobre e de tantos outros que vivem e trabalham pela vinda do Reino de Deus. (Dec. 3, 3) Assim como também se sublinha a preocupação de reforçar a ligação à fé, porque Por vezes separámos a acção em favor da justiça, da sua autêntica fonte: a fé. (Dec 3, 2) A noção de justiça que nos guia está intimamente unida à nossa fé. Tem as suas raízes na Sagrada Escritura, na tradição da Igreja e na nossa herança inaciana. Transcende as noções de justiça que procedem dos âmbitos da ideologia, da filosofia ou de movimentos políticos particulares. Nenhuma delas poderá ser uma expressão adequada da justiça do Reino pela qual fomos chamados a lutar ao lado do nosso Companheiro e Rei. (Dec. 3, 4) 7. Conclusão Foi este, contado duma forma muito rápida, o percurso feito pelo Companhia de Jesus, ao longo de mais de vinte anos, tentando compreender melhor e formular mais claramente a sua missão. Procurou-se lançar alguma luz sobre o que está por trás e sustenta o conteúdo da fórmula «serviço da fé e promoção da justiça». É tempo agora, encerrando, para algumas conclusões e sublinhados. A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 143 Uma primeira nota. A questão aqui não é, primordialmente, a questão da justiça, mas a questão do discernimento da missão da Companhia de Jesus e como essa missão vai sendo buscada e encontrada em cada tempo e em cada contexto. O grande desafio, assim, é continuar permanentemente este exercício. O desafio não é manter o resultado formulado em 1975 ou 1995. Trata-se de fazer crescer sempre esta disponibilidade para responder contextualizadamente às necessidades das pessoas, às maiores necessidades das pessoas, buscando sempre e encontrando onde e como Deus está a trabalhar, trabalha no mundo e colaborando com Ele aí, servindo aí, encarnadamente, a missão de Cristo. Este é um desafio a que a Companhia continua a tentar responder, escutando, acolhendo, para continuar a desenvolver e aprofundar a sua identidade, para ser capaz de dizer em cada tempo: «ser jesuíta hoje é...». Ser jesuíta é sempre estar disposto a entregar a sua vida ao serviço da missão da Companhia e esta missão é discernida hoje confrontando o que é o carisma e a tradição jesuíta com os desafios dos tempos e dos lugares onde a Companhia foi enviada. Deste modo, a própria identidade da Companhia e do jesuíta vão sendo desenvolvidas à medida que a missão vai sendo encontrada e precisada. Se não mantemos esta abertura, esta atitude de busca permanente, corremos o risco de «fé e justiça» vir a ficar apenas um slogan vazio, a cristalização duma afirmação despojada da paixão da actualidade. A missão da Companhia nunca pode ser um slogan, tem que ser sempre uma resposta. E uma resposta dá-se a uma pergunta ou a uma necessidade. A missão da Companhia é uma resposta encarnada, não é um programa, criado no geral abstracto, para depois se aplicar no concreto. O serviço da fé e a promoção da justiça não é o projecto da Companhia 144 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã agora, mas a resposta que a Companhia se sente chamada a dar às necessidades do nosso tempo. A identidade jesuíta é, por isso, uma identidade responsável, de resposta, em segundo tempo; primeiro somos solicitados e, depois, respondemos. Uma identidade dada pela missão, a Companhia é um corpo para a missão. É a missão que a define, que a constitui como corpo e que determina a sua organização para melhor servir essa missão. A Companhia deve funcionar sempre em resposta, fresca, noiva, diariamente renovada, a contextos! O seu estilo de vida, a escolha dos seus apostolados, as prioridades que estabelece... são determinadas pela missão que a Companhia percebe em cada circunstância. Este modo de discernir a missão, de a procurar nas realidades concretas, implica um compromisso com o mundo como ele é e como está, não rompendo com ele, não o rejeitando, não fugindo para mundos alternativos ou procurando refúgio em enclaves protegidos ou condomínios fechados. Onde e como o mundo é, aí é que se trabalha. A vocação da Companhia é, precisamente, ser a concretização duma espiritualidade encarnada, segundo a visão da contemplação da encarnação dos Exercícios Espirituais e segundo o movimento da encarnação de Jesus, que se faz homem e vive connosco, partilha da nossa experiência. Vivendo esta espiritualidade, a partir desse olhar sobre o mundo e da integração nesse mundo, que nos encontramos com o Cristo agente, que aí actua, e é aí que colaboramos na sua missão. Por isso, a definição da missão da Companhia tem tudo a ver com a nossa compreensão do mundo, com o modo como percebemos o Reino de Deus e a missão de Jesus. A resposta da Companhia é configurada sobretudo pelos Exercícios Espirituais, como ferramenta primordial para o discernimento, e também pelas Constituições e toda a sua A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça 145 tradição. Mas os Exercícios Espirituais não são exclusivos da Companhia nem servem só para os jesuítas, são uma proposta da Igreja e para a Igreja. Aqueles não-jesuítas que se sentem identificados com o método, a linguagem e a espiritualidade dos Exercícios poderão, provavelmente, sentir-se também movidos pelo mesmo olhar sobre o mundo e pela mesma atitude face ao mundo. Caberá, depois, a cada um dar a sua resposta pessoal, perceber onde está o chamamento, qual é a necessidade para eu responder. Quando cada um o fizer, e na medida em que o fizer, encontra também a sua identidade, a partir da inspiração dos Exercícios Espirituais, e, junto com a Companhia de Jesus, também pode dizer: «a minha missão hoje é...» isto ou aquilo. Não interessa copiar a missão dos Jesuítas, ir atrás deles só porque certamente eles discerniram bem... O discernimento só vale se for pessoal. O que importa mais neste processo todo não é esta missão concreta assim formulada, mas a abertura e o método, este modo de proceder que permite à Companhia – esperemos! – continuar disponível para ir reformulando, redescobrindo, aprofundando, alargando a consciência da missão a que é chamada em cada momento e em cada sítio e respondendo a essa responsabilidade do melhor modo que é capaz. 147 PEDRO FABRO: IGREJA E COMPANHIA DE JESUS ENTRE REFORMA E CONTRA-REFORMA D. Manuel Clemente Um século, só por si, é questão de calendário. Os fundadores da Companhia não o fizeram por serem do «século XVI», mas porque respondiam a conjunturas e questionamentos que se punham na altura: quase tudo vinha de trás e prolongou-se adiante. A Europa da altura vivia transformações «estruturais», anunciadas nos últimos séculos medievais. Socialmente falando, a re-urbanização progressiva e o incremento comercial, retomados desde o século XII. Mas também a grande perturbação trazida pela Peste Negra (1348) e outras epidemias que afectaram, não só a vida normal das populações, mas também as suas expectativas quanto à sobrevivência, à convivência e ao futuro. Eclesialmente, o Cisma do Ocidente (1378-1415) golpeou profundamente o consenso europeu (centro-ocidental) sobre a tutela do papado em relação à Cristandade, sem que tal se resolvesse em benefício do Sacro-Império, mas sim dos Estados modernos, então emergentes. Estes últimos, efectivamente, recolheram para os respectivos soberanos as prerrogativas que o antigo Direito Romano aplicara aos seus césares. Desde o século XV, geralmente falando, será em torno de cada rei e de cada Estado que a vida europeia girará, também por aqui passando as distintas «reformas» eclesiais, seguindo em grande parte a decisão dos seus governantes. Da Genebra de Calvino à Inglaterra de Henrique VIII, passando pelos principados luteranos da Alemanha ou pelos reis que permaneceram ligados a 148 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Roma, tudo ganhou conotação política, por mais religioso que realmente fosse. Não foi certamente por acaso que Inácio e os seus companheiros eram súbditos de soberanos católicos e com estes colaboraram no fortalecimento ou restabelecimento do tão ameaçado catolicismo da altura. Mas não é isto obviamente o essencial, no desafio feito ao catolicismo pré-tridentino, nem da resposta protagonizada pelos primeiros jesuítas. O repto era sobretudo íntimo e espiritual, em todos aqueles que as referidas perturbações do final da Idade Média realmente abalavam. À debilidade do centro institucional da Cristandade – o papado – correspondiam a inquietação e a busca interiores de cada um e de cada comunidade eclesial e religiosa estabelecida. Também não foi por acaso que Martinho Lutero era frade agostinho e professor universitário de Teologia. Bem antes dele, aliás, já a mística refluíra para a experiência pessoal e a devoção se centrara no «coração» crente e piedoso. Ao mesmo tempo também, as serenas sínteses da grande escolástica do século XIII perdiam consistência diante das primeiras divisões entre a fé a razão, que a Modernidade alargaria mais e mais. Ou seja, no começo do século XVI, já se desconfiava da aproximação racional da verdade divina, como se punha em causa a concretização eclesial da proposta evangélica. Para mais, a agitação sócio-cultural do tempo aguçava crises de sensibilidade e consciência em muitos espíritos. A intensidade de comportamento e proposta dum homem como Lutero, especialmente entre 1517 e 1520, é muito devedora da sua luta íntima por conseguir alguma certeza de salvação, entre a objectividade dos preceitos divinos, a incapacidade sentida em cumpri-los e a ausência duma resposta realmente apaziguadora. Lendo e relendo a Escritura, render-se-ia exclusivamente à graça divina, que só por ela o justificaria, quase Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 149 sem o seu próprio concurso. Consequentemente, uma valorização tão exclusiva da graça, relativizaria o papel de qualquer colaboração humana, ainda que fosse o da instituição eclesial e dos seus actos sacramentais. Muito mais, se diminuídos por concretizações dúbias, como acontecia na altura com alguma pregação de indulgências, que quase ligava a libertação das almas do purgatório à esmola oferecida para tal1. Cf. CLEMENTE, Manuel – A Igreja no tempo. História breve da Igreja Católica. Lisboa: Grifo, 2000, pp. 75-78: «Junte-se a descrença na capacidade humana para a compreensão de Deus e para a colaboração na obra da própria salvação; a relevância da Escritura, considerada como veículo exclusivo para trazer, ao homem angustiado e pecador, a certeza da sua justificação por Deus […]; e a espiritualidade […] pouco ou nada eclesial, que vimos expandir-se no final da Idade Média. Ter-nos-emos aproximado das raízes da ruptura luterana, entre 1512 e 1520. Destas raízes brotaram as suas três afirmações fundamentais. O homem só é justificado pela acção de Deus em Jesus Cristo, mediante a adesão da fé; a Palavra de Deus é o único veículo dessa mensagem salvífica; não há na Igreja outro sacerdócio que não seja o do louvor comum dos fiéis […]. Estas três proposições foram entendidas pela Igreja Católica como unilaterais. Certamente que é Deus quem justifica o homem pecador, […] mas não é menos verdade que Deus, nem é totalmente incompreensível, pois deixou nas criaturas a marca da sua grandeza, nem dispensa o homem de participar na própria salvação: o mérito sobrenatural vem da graça, mas supõe a acção do homem. […] A Palavra foi escrita pela Igreja, divinamente inspirada, e com o entendimento da Igreja. Testemunha uma fé que é comum, e, por isso, não pode ser captada, nem muito menos interpretada, pela opção de cada qual; só o será no contexto eclesial da Tradição. […] O sacerdócio comum dos fiéis resulta da santificação que o sacerdócio de Cristo, também presente nos ministros ordenados, lhes proporciona. […] Estas as principais respostas que a teologia e o magistério católicos deram a Lutero – e, por semelhança, aos outros reformadores protestantes no Concílio de Trento (1545-1563). Nos nossos dias, felizmente, o diálogo ecuménico tem podido aproximar católicos e protestantes, mesmo no ponto fundamental do entendimento da salvação (justificação)». 1 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 150 Acontecia também – e pela primeira vez acontecia – que tais casos individuais se podiam tornar rapidamente causas gerais, pelo uso novo da imprensa. E pelo concurso do novo poder político, acima referido, quando obtivesse a sua concordância e interesse. Lembro isto, antes de mais, em relação às várias reformas que cortaram com Roma; mas posso dizê-lo também em relação à própria reforma que Roma promoveu, antes, durante e depois do Concílio de Trento (1545-1563). Também esta, como reforma católica, ou contra-reforma em relação às protestantes, contou com os novos meios de transmissão do pensamento, assim como contou com o concurso, mais ou menos activo, dos governantes católicos2. Atenda-se ao seguinte trecho de Bedouelle, resumindo o pensamento dum notável historiador da Igreja: «Hubert Jedin (+ 1980) accepte les deux vocables de Réforme catholique et de Contre-Réforme […]. La Reforme catholique, comme Selbstbesinnung (reprise par l’Église catholique de ce qu’elle est) comprenait pour lui plusieurs phases. La première trouve ses racines à la fin du Moyen Age avec la devotio moderna et le retour à l’observance des ordres religieux. À partir de 1540, c’est la préparation plus rapprochée avec la fondation des Jésuites et l’affermissement du dessein réformateur de la papauté. La troisième coïncide avec la réunion du concile de Trente, et la quatrième, qui débute avec la mise en oeuvre des décisions conciliaires, s’étend ensuite sur la longue durée. La Contre-Réforme est un phénomène d’autodéfense (Selbsbehauptung), qu’on peut faire débuter dès 1520 avec les controverses contre Luther, puis la création de l’Inquisition roainde en 1542 et le développement de l’Index des livres prohibés» [BEDOUELLE. Guy – La Réforme du catholicisme (1480 –1620). Paris: Cerf, 2002, p. 17]. E à sugestiva síntese de Pierrard: «Ora, a ideia de reforma, tão velha como a Igreja, tinha no século XV mergulhado nas profundezas da sociedade cristã. Depois da ruptura entre católicos e protestantes, a reforma foi prosseguida “nos dois lados da barricada por um bom número de almas sinceras e pacíficas preocupadas em cumprir a mensagem de Jesus Cristo […]” (A. Willaert). Por isso, verificou-se ao 2 Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 151 Mas, porque de reforma se tratava, também neste caso católico, procurava, antes de mais, recuperar a fonte e a forma autênticas da vida cristã, em termos pessoais e comunitários, não subvalorizando estes últimos, ou seja, o concurso eclesial e sacramental. Tal recuperação aconteceu muito principalmente em homens e mulheres que redescobriram a vida cristã na autêntica comunhão com Cristo, em termos de conversão e disponibilidade diante de Deus e da sua vontade. Reformadores católicos, reformavam-se antes de mais a si mesmos, ainda que isso mesmo os levasse a reformar a vida eclesial , ampliando a experiência e a exercitação pessoal. Só que, sendo católicos, tal não os levava a relativizar o ambiente de graça que encontravam na Igreja, suas determinações e práticas. Muito pelo contrário, reavaliavam-nas e promoveram-nas, para que melhor proporcionassem a si mesmos e a todos a autêntica convivência cristã e salvífica. Foi certamente este o caso de Inácio e dos seus companheiros, quer na exercitação espiritual, quer na fundação da Companhia, quer na colaboração com os papas e o Concílio. Mas também foi o seu caso na metodologia reformista e contra-reformista que seguiram, na Europa e fora dela. Para ilustrar o que vai dito, bastarão três notas, como a incidência eclesial dos Exercícios Espirituais, a vinculação eclesial da Companhia e a aplicação dos primeiros jesuítas aos campos mais urgentes do catolicismo de então, fosse a (re)fundamentação doutrinal, nos colégios e na catequese, fossem as missões internas e externas. mesmo tempo a “reforma católica”, enriquecimento de uma fonte desde há muito alimentada, e a “contra-reforma”, recurso católico destinado a colmatar as brechas feitas pelo protestantismo, quase mesmo para reconquistar as zonas submersas» (PIERRARD, Pierre – História da Igreja Católica. Lisboa: Planeta Editora, 1992, p. 211). Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 152 Quanto à incidência eclesial dos Exercícios, basta adiantar que Santo Inácio não quis «lutar» sozinho; o antigo soldado de Pamplona formou uma milícia em torno de outra bandeira. O exercício que o levou a isso, fê-lo por si e pela graça; mas ofereceu-o a outros, que chegassem à mesma conclusão verdadeiramente eclesial e militante. Os objectivos do novo combate foram igualmente eclesiais, definidos pelo Sucessor de Pedro. Entre os companheiros de Inácio, destacou-se Pedro Fabro (Villaret, Sabóia, 1506 – Roma, 1546). Como ele próprio conta no seu precioso Memorial, conheceu Inácio em Paris, no Colégio de Santa Bárbara, em 1529. Ajudando-o nos estudos, acabou por beneficiar muito mais, quando o fundador da Companhia o ajudou espiritualmente a ele: «Acabou por ser meu mestre em matéria espiritual, dando-me regra e método para me elevar ao conhecimento da vontade divina» (Memorial, 8). E nisto mesmo Fabro se tornaria excelente, avultando até à morte como gentil e eficaz educador de almas3. A sua vida é relativamente simples: criado numa Sabóia rural e católica, segue estudos em Paris, no colégio de Santa Bárbara; sacerdote e particularmente próximo de Santo Inácio e S. Francisco Xavier é um dos primeiros jesuítas; a sua actividade apostólica incide, como se disse, no acompanhamento espiritual de muita gente, de França à Itália, à Alemanha, à Bélgica, à Espanha e até ao nosso Portugal, com grande aceitação Cf. CERTEAU, Michel de – Introduction. In FAVRE, Bienheureux Pierre – Mémorial. Paris: Desclée de Brouwer, 2006, p. 74: «Il y a là toute une propédeutique spirituelle où Favre excelle, car il a le charisme de la direction spirituelle. […] Mais toutes ces “méthodes” se ramènent à l’objet essentiel de cet apostolat, les Exercices. Provoquer une réforme dans l’Église par une réforme personnelle dont les Exercices seront le moyen et le fondement, voilà ce qu’est pour Favre “notre manière de procéder”». 3 Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 153 e repercussão. O seu Memorial dá-nos particularmente conta duma sensibilidade «católica», naquele contexto onde reformas díspares (protestantes e romanas) e atitudes de contra-reforma se verificavam também. Alguns exemplos tirados do Memorial, mostram bem o seu sentimento e atitude. Fabro é, de facto, tão «católico», na compreensão sacramental da Igreja e da Tradição, que se torna difícil escolher nas suas páginas um ou dois trechos apenas, para o ilustrar. Escolho a seguinte, porque responde de modo particularmente sugestivo a alguns motivos que tinham estado na origem da reacção de Lutero. Fabro está em Espira, em Agosto de 1542, e abre-nos a sua alma nas seguintes linhas: «Nas primeiras vésperas da Assunção, alcancei muita devoção e grandes moções espirituais na catedral de Nossa Senhora de Espira, onde estava: as cerimónias, as luzes, o órgão, o canto, a magnificência das relíquias e da decoração, tudo me inspirava uma devoção tão grande que não conseguiria explicar. Sob esta moção, bendizia o que tinha trazido e acendido os castiçais, o que os tinha ordenado, o que tinha deixado uma renda com essa intenção. O mesmo a respeito do órgão, dos organistas e dos benfeitores; o mesmo ainda a respeito da decoração que eu via pronta para o culto divino, do coral, do canto e dos pequenos cantores; o mesmo a respeito das relíquias, dos que as tinham ido buscar ou que as tinham adornado depois de as terem encontrado. Em suma, era levado por essa moção espiritual a estimar mais a menor dessas acções ou outras análogas, feitas com uma fé simples e católica, do que mil medidas dessa fé ociosa tão preconizada por aqueles cujos pensamentos estão pouco concordes com os da Igreja hierárquica. Sentia também que Cristo Nosso Senhor estava cheio de misericórdia e bondade para com Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 154 todos e cada um dos que trazem algo de seu ao seu culto exterior, seja o trabalho das próprias mãos, seja a dádiva do seu dinheiro, sejam as suas directivas, ou qualquer outra coisa» (Memorial, 87)4. O passo é a vários títulos muito interessante, para definir a posição de Fabro naquele contexto; até por acontecer em Espira, lugar importante das controvérsias católico-luteranas5. Uma questão de sensibilidade, certamente. Mas, ainda mais, a Cf. o comentário de Michel de Certeau a este passo: «La fee ociosa, foi sans les oeuvres. C’est là un thème de la polémique antiluthérienne; Luther s’était pourtant refusé à ce que l’on conclue de la fides sola une négation des oeuvres […]; mais il s’en prenait violemment aux chrétiens obdurati ceremoniis, férus et enragés de cérémonies» (FAVRE – Mémorial, p. 182, nota 4). Todas as citações do Memorial são traduzidas desta edição. Retenha-se também o que escreveu um dos historiadores católicos que mais estudou a época e as ideias em causa: «Cependant ce serait une injustice à l’égard de Luther et du protestantisme que d’en conclure que le réformateur n’a accordé à aucune bonne oeuvre aucune valeur religieuse et morale. […] La vraie foi doit d’elle-même conduire à la vraie vie chrétienne. Mais ici commence la difficulté: la doctrine de la justification par la foi seule semble bien faire de la morale un moyen accessoire de salut. Luther a eu bien se plaindre qu’on faussât souvent sa doctrine et qu’on ait fait une libération des contraintes morales, il n’en reste pas moins que, quand on l’entend affirmer que la concupiscente est invincible, on peut se demander quelle peut être l’utilité de nos efforts» (LORTZ, J. – Histoire de l’Église des origines a nos jours. Paris: Payot, 1956, p. 220). 5 Cf. ibidem, pp. 208-209: «La formation d’Églises territoriales consacre la rupture entre les deux credos. En 1526 a lieu la première diète de Spire, où il est déclaré que chacun doit agir comme il se croit responsable devant Dieu, la majesté impériale et l’Empire. […] Une nouvelle diète de Spire [1529] annule la première: on interdit toute nouveauté. On permet le culte catholique dans toutes les régions, d’uò protestation de cinq territoires et de quatorze villes. (C’est de là que vient le nom de “protestants”)». 4 Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 155 compreensão e a experiência da realidade sacramental da Igreja (em sentido amplo), onde os gestos valem, as atitudes exteriores contam, as ofertas significam e avalizam uma salvação, que sendo essencialmente graça divina, não dispensa o concurso humano, por comezinho que seja ou pareça. Fé em obras, digamos, e por isso não «ociosa». Obras que não deixariam de tocar o coração divino, por serem afinal, simples, generosas e confiantes. Em Outubro desse ano, Fabro está em Mogúncia. Numa noite em que rezava, corriam-lhe no pensamento vários motivos de reconhecimento e acção de graças. Vejamos como se reforça a convicção já testemunhada, podendo até admirar-nos um elenco tão particularizado de realidades diversas, só aproximáveis como expressão de um todo, de sensibilidade e convicção já marcadamente católicas, sobretudo em contraste com a protestante: «Nesta revisão de tantos benefícios [divinos], mas também de tantos pecados cometidos até ao presente, incluía os frutos da terra, a paz do país, a fé católica, as igrejas, as imagens, os ministros dos sacramentos e os próprios sacramentos, a água benta, as relíquias dos santos, os lugares onde são recolhidos os ossos dos mortos; o facto de os habitantes terem desde há muito tempo uma sucessão de príncipes que lhes asseguraram a paz e a prosperidade; que tenham tido padres, bispos e pregadores. Desejava-lhes bens ainda maiores: que aprendam a conhecer todos estes dons; que aprendam a descobrir o tesouro que possuem no seu Deus, em Cristo Jesus incarnado, nascido, circunciso, morto, etc., na Virgem Maria, nos anjos e santos, nas coisas sagradas, nos mortos que estão no purgatório, nas Escrituras, etc.» (Memorial, 147). 156 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Denota-se a prática dos Exercícios, com a aplicação detalhada da mente e da devoção aos vários passos de vida de Cristo, alargados também à vida da Igreja, militante, padecente e triunfante, bem como às vicissitudes do mundo. Era com certeza o que Fabro também induzia a fazer aos que instruía e acompanhava espiritualmente. Uma fé mais comprovada, uma salvação mais experimentada e, por isso mesmo, mais propensa à comprovação pelas obras da fé ou da caridade. Visando com isto uma certa totalidade de culto e de prática, em que nada realmente sobrasse à graça e à vida, pessoal e colectiva. Mas o que o definia absolutamente como cristão «católico» era a certeza de que a graça divina se derrama no mundo através de mil vidas e gestos, propriamente ministeriais, sacramentais, eclesiais. Oiçamo-lo, pouco adiante: «Com grandes luzes sobre os méritos de Jesus Cristo, apelava à sua graça, pois foi por ela que para todos os homens […] mereceu (com abundância além de qualquer expressão) todos os bens […] para chegarmos à salvação […]. Mas ele quer […] que a distribuição a todos de todos estes bens não se faça apenas por ele mesmo ou pelo Espírito Santo, mas por intermediários que estabeleceu, que são diversos entre si e diversamente repartidos segundo os homens» (Memorial, 149). Neste ponto, tão necessária é a compreensão particular como a geral das coisas. Porque Fabro insiste na graça conferida a cada um para o cumprimento do seu próprio dever, imprescindível: «Alguns (e isto aconteceu muitas vezes) inquietam-se em procurar graças para cumprir obras universais, e ao mesmo tempo negligenciam as tarefas particulares para as quais lhes seria fácil encontrar a graça. Numerosos são os que sonham Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 157 com coisas quase impossíveis, sem se preocuparem com “a obra das próprias mãos”» (Memorial, 153). Aqui encontramos já a regra essencial dos propósitos limitados e adequados ao tempo e à condição de cada um, para, pouco a pouco, se chegar ao último fim. E nisto também encontramos a modernidade de Fabro, insistindo na circunstância pessoal, mesmo para que a graça vá permitindo a obra concreta que cada um aceita e realiza, correspondendo à vontade divina. Também em Lutero encontraríamos a densidade pessoal da religião, como aconteceu tão dramaticamente no caminho que trilhou e abriu, quase exclusivamente na fé. Mas no «católico» Fabro, o caminho, sendo tão pessoal e particularizado, encontrava nas obras – apostólicas as suas – a realização da fé e igualmente o seu mérito, ganho de Cristo mas intrinsecamente apropriado pelo crente. Uma última alusão ao Memorial de Pedro Fabro, leva-nos ao grande discernimento que, ainda antes do Concílio de Trento, um católico particularmente lúcido já conseguia fazer sobre as fronteiras mentais e espirituais que tragicamente se abriam na altura. Não nos fixemos no tom apologético, mas na perspicácia da análise, obviamente relativa: «Notei então e senti de que modo alguns cristãos chegam a separar-se da Igreja: começam por executar com frouxidão crescente as obras e as práticas que respondem às diversas graças e aos variados dons de Deus; assim são levados a julgar negligenciável e sem valor tudo o que não reconhecem como aquisição do seu próprio juízo. Procuram então razões para a sua fé, a sua esperança, começando por duvidar de tudo; esbanjam os dons difundidos pelo Espírito Santo, e perdem a fé verdadeira, fundada na fé da Igreja e na comunhão dos Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 158 santos. E quando dissiparam tudo, querem estabelecer e procurar eles mesmos uma fé que repouse sobre o seu próprio juízo; procuram razões e examinam-nas, cada um por sua conta; perscrutam as Escrituras e as suas interpretações, e decidem do sentido a adoptar. E com tudo isso formam a sua fé – ou antes as suas opiniões e erros» (Memorial, 218). E assim, também por contraste, Pedro Fabro definia o seu catolicismo, que ajudava a restabelecer na Igreja do seu tempo: exercitando muito o seu discernimento, mas incluído este na tradição eclesial mais vasta, sem nada perder do que a experiência crente foi acrescentando, como teologia, devoção, prática e magistério. Um exercício de realismo, pode dizer-se, porque objectivava o seu próprio caminho no terreno sólido da vida eclesial, sem se perder no subjectivismo já pressentido na Europa quinhentista. E assim pôde servir também de companheiro e guia para muitos que o procuraram então6. Diga- Ainda que Fabro tivesse clara consciência das fraquezas do campo católico e insistisse na reforma interna. Cf. BERTRAND, Dominique – Pierre Favre. In Ignace de Loyola, François Xavier, Pierre Favre. Namur: Fidélité, 2005, p. 80: «On le lit, ce que Favre retient dans sa fervante intention, c’est non pas un simple retour au bercail des protestants, mais, à l’occasion du schisme qui est en train de se perpétrer, il désire la reforme réelle de l’Église dans ses ministères les plus largement humains et sociaux. On a là un des traits constants de son diagnostic: c’est la faiblesse spirituelle et le manque de charité vraie des catholiques qui font le lit de l’hérésie. C’est jusqu’à ces deux points qu’il faut mener la réforme et donc prier pour le concile». De facto, mais do que retomar um estádio anterior do Cristianismo europeu, tratar-se-ia de o realizar finalmente. Assim o quereriam católicos e protestantes: «L’hypothèse que nous voulons présenter ici à titre de direction de recherche est alors la suivante: à la veille de la Réforme l’Occidental 6 Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus... 159 mos, para terminar, que na grande e nova geografia apostólica que Inácio desenhava em Roma, Xavier foi o imenso desbravador territorial e Fabro o muito lúcido definidor mental7. moyen n’aurait été que superficiellement christianisé. Dans ces conditions les deux Réformes, celle de Luther et celle de Rome, n’auraient été que deux processus apparemment concurrents, mais finalement convergents de christianisation des masses et de spiritualisation du sentiment religieux» (DELUMEAU, Jean; COTTRET, Monique – Le Catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris: Presses Universitaires de France, 1996, p. 329). 7 Cf. KOLVENBACH, Peter-Hans – Carta a todos os Superiores Maiores. In Acolher o dom. Promover a missão. Nos Centenários de Inácio, Fabro e Xavier. Lisboa: Província Portuguesa da Companhia de Jesus, 2005, p. 6: «Com efeito, sem os dotes de governo de Inácio e sem a garra de um Francisco Xavier para levar por diante grandes empresas, Fabro dedica-se ao acompanhamento espiritual de muitos que buscam a Deus, pelo menos através desta trilogia de ministérios: confissões, conversas e Exercícios». 161 SENTIR A IGREJA Vasco Pinto de Magalhães, S.J. ESQUEMA Qual é a questão? O «sentir» inaciano . na espiritualidade de Inácio . na sua história pessoal . no contexto sócio-religioso da Reforma e do Humanismo renascentista . «dão-se Regras» para «sentir» . uma pertença obediencial, em disponibilidade para a missão . a partir de Roma Em Pedro Fabro (e Companheiros) . a Igreja que está em toda a parte . pensar globalmente, agir localmente . adaptação/incarnação da vivência da fé em corpo eclesial . acolhimento e chamamento O sentido de Família como paradigma . como se adquire o sentido de pertença, o sentido de corpo . à roda da mesa. Poder dizer «meu», «a minha casa» . processos de identificação: o laço afectivo, o conhecimento, a participação 162 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã . ser-se e sentir-se amado. As convicções fundantes e fundamentais Duas histórias . uma pessoal . outra bíblica: a casa do Pai Sentir e assumir a pertença à Igreja no séc. XXI . o paralelo com o tempo de Inácio . a explosão das «espiritualidades» individuais, sem Igreja . o laicismo (anticlerical) na cultura, na educação, nos valores . os crentes que oscilam entre o desencanto e os movimentos de reforma elitista . o apelo: uma linguagem, uma incarnação e participação personalizadas A Eucaristia como resposta que desafia e faz participar . é à mesa da palavra e do pão que se refaz o corpo e a identificação . a Igreja faz a Eucaristia, a Eucaristia faz a Igreja . bem-vindos à vossa casa! Lavem os pés! Recebam a bênção para testemunhar! Dão-se «Regras para se sentir Igreja», em discernimento e missão, segundo o E.S. . louvar tanto a viola como o órgão (depende!) . louvar tanto as missas domésticas como o grande pontifical (conforme!) Sentir a Igreja 163 TEXTO SENTIR A IGREJA Sentir a Igreja pressupõe a experiência agradecida de ter recebido a fé de uma comunidade histórica, concreta e universal, real, com nomes próprios, que para além das suas virtudes e defeitos mantém o Evangelho vivo. E supõe que nos convertamos em sujeitos activos na comunidade, tomando a Igreja como um «nós». «Sentir a Igreja» supõe ainda, primeiro, o «sentir com a Igreja» e, depois, o «sentir em Igreja». Qual é a questão? A questão desdobra-se em duas: a da (nossa) identidade cristã e a de como fazer despoletar o amor à Igreja. A primeira, a questão da identidade, tem três vertentes, dependendo da resposta que se dê às seguintes interrogações: Como se interioriza o sentido de pertença, sem perder a capacidade crítica? Como se interioriza a co-responsabilidade de um modo interpessoal? Como se interioriza uma obediência adulta? E a questão complica-se, pois toda a identidade é fruto de uma relação. Assim, da parte da mãe (da hierarquia): a Igreja mete-nos no seu regaço? Vai ao encontro dos crentes (todos) como de filhos amados? Da parte do filho (dos fiéis): a Igreja aprecia os valores e a história da estrutura e da autoridade? Deseja participar? A segunda questão, a do amor à Igreja, remete para âmbitos ainda mais afectivos. Atrai-me e completa-me? Seduz e faz bem 164 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã a todos? A sua beleza, serviço e compreensão são credíveis como libertação, começando pelos mais fracos e convidando-me a dar de mim? Eis, em termos humanos, o desafio. O «sentir» inaciano Começando pelo nosso primeiro paradigma, a experiência e processo espiritual de Santo Inácio, o «sentir» tem uma conotação muito própria no seu vocabulário que aponta metas, objectivos de identificação com Cristo e com a sua vontade na Igreja. Alcançar a graça de sentir internamente ou do sentido interno, eis o objectivo. Objectivo que é «trabalho» e é «dom» que não busca experimentar sentimentos e emoções, mas interiorizar convicções – é esse o nível! – que reestruturam a vida e as opções. Trata-se de identificar e libertar os desejos profundos que nos põem em comunhão com Deus e a sua missão. A história pessoal de Inácio, quer no seu percurso individual desde a conversão, quer no ideal que comunicou aos seus companheiros é um modelo certo para conduzir cada um no seu «sentir» em ordem à missão, hoje. E o primeiro reparo é o de ter em consideração o contexto sócio-religioso. O de Inácio era o da Reforma protestante, por um lado. E por outro, o movimento ascendente do Humanismo renascentista. O segundo reparo é pedagógico. Embora, de si, «bastasse a lei da caridade», mas da caridade discernida ou inteligente, como diríamos hoje, é necessário «dar Regras», conhecendo a natureza humana e os seus labirintos, para chegar ao tal «sentir». Só assim essa experiência como decisão amadurecida se Sentir a Igreja 165 tornará uma «pertença obediencial», em disponibilidade para a missão que a Igreja venha a confiar à pessoa ou ao grupo. Uma vez que este «sentire cum ecclesia» tem no horizonte a missão e esta, em última análise, há-de vir de Deus, só nos chega mediada pela comunidade enviada. Há-de incluir e entender-se a partir de Roma, isto é, do vigário de Cristo. Em Pedro Fabro (e Companheiros) Este «sentir» foi parte integrante e estruturante das decisões que levaram Inácio de Loiola e seus companheiros a entregar a sua disponibilidade ao Papa, dando origem à Companhia de Jesus. Este «cuidado» característico desta nova forma de vida apostólica foi particularmente vivido por Pedro Fabro (a figura que hoje, neste colóquio, privilegiamos). Fabro, cumprindo as missões que recebera, percorreu a Europa a pé, mas sempre atento a cada caso, a cada terra, nas suas pregações e ajudas, em discernimento personalizado. Os escritos do seu Diário Espiritual revelam características essenciais desse «Sentir»: antes de mais, viver consciente de que «a Igreja está em toda a parte» e, depois, ter como atitude «pensar globalmente, agir localmente»! Santo Inácio reconhecia e apreciava de tal modo as suas qualidades de relação humana, discernimento e sentido de Igreja que fez tudo para que ele integrasse o grupo que ia mandar ao Concílio de Trento. Apesar da sua pouca saúde e de não ter o brilho teológico dos outros dois escolhidos como teólogos do Papa, Laynez e Salmeron, fê-lo vir de Espanha, mesmo que chegasse tarde. Nas suas «Instruções para os delegados a Trento», Inácio escreveu, expressamente: «seja lento em falar, ponderado e amoroso», sobretudo se vierem à colação defini- 166 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã ções ou temas, tratados em Concílio. Tenha todo o cuidado «em sentir e conhecer os entendimentos, afectos e vontades dos que falam, para melhor responder ou calar». Na discussão, quando é possível, arguir a favor ou contra «não deixando ninguém descontente». Eis a arte, arte de «sentir em Igreja», eis o retrato de Pedro Fabro. Santo Inácio conhece-o. A Instrução tem três capítulos: 1) Para conversar. 2) Para ajudar as almas. 3) Para mais nos ajudarmos (in Recuerdos espirituales, n. 21 da Colecção Manresa, pág. 98). Tudo isto faz parte do inaciano «Modo de proceder» e está explícito nas «Regras para sentir com a Igreja». Abrindo o Diário de Fabro são imensos os exemplos. Certa vez, visitando a cidade de Espira, Agosto de 1542, escreve: «em vésperas da Assunção experimentei muita devoção… as cerimónias, as velas, os cantos, o órgão, as relíquias… tudo me dava uma devoção que não sabia explicar. Louvava e bendizia. Tudo me levava a ter mais em conta essas pequenas obras de uma fé católica e simples do que os subidos graus da fé ociosa dos que subestimam a Igreja jerárquica». Por entre este zelo quase excessivo dos primeiros tempos e próprio da época, passa uma linha perene de espiritualidade marcada pelo sentido teológico da adaptação, da inculturação (diríamos hoje), como incarnação da vivência da fé em corpo eclesial, traduzida em gestos de acolhimento e chamamento. O sentido de família como paradigma O protótipo do «sentido de Igreja» e de «sentir-se Igreja» continua a ser dado pela narrativa da vida da primeira comunidade cristã, nos Actos dos Apóstolos, saída da certeza «compro- Sentir a Igreja 167 vada» da Ressurreição. Mas ela representa mais uma utopia e um horizonte que uma realidade quotidiana conseguida. Daí a busca de um paradigma mais próximo. «Como se adquire o sentido de pertença, o sentido de corpo?» «À roda da mesa», primeira resposta. Ou, no poder dizer «meu», ou é «a minha (nossa) casa». A primeira Regra para «sentir» a Igreja é falar dela em primeira pessoa. Os processos humanos de identificação, como sabemos, são primeiramente afectivos. Não são as ideias que nos separam (ou reúnem), mas os sentimentos que para além delas e por elas nos envolvem. As identificações vão do laço afectivo ao conhecimento e deste à participação. São as experiências pré-conceptuais, como a de estar sentado à mesa a repartir o pão, que me permitem sentir-me em minha casa e que me vinculam. Tem razão Santo Inácio quando diz que os Exercícios «são para ordenar afectos»; e tem razão a teologia quando põe a Eucaristia como o «lugar» teológico onde nasce (continuamente) a Igreja. Daí também que a Evangelização não se possa resumir à pregação, mas é esta acompanhada de todo o modo que leva o outro a saber-se e a sentir-se amado. Assim florescem as convicções fundantes e fundamentais de se «estar e permanecer no sítio próprio». Duas histórias As histórias ajudam a aterrar, «incarnar». Duas breves histórias, uma pessoal e real, e outra bíblica, já bem conhecida. 168 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã A primeira: em certa família numerosa, o filho mais novo, queixoso, quis falar com o pai. «Nesta casa todos mandam, menos eu», disse. «O pai manda em todos, a mãe manda na casa, a mana mais velha manda em nós, o mano a seguir manda no quarto dele,… e assim por diante. Só eu não tenho em quem mandar». «Está bem», disse o pai, pensativo, «vou ver o que posso fazer». Nessa tarde, o pai chegou a casa trazendo uma gaiola com o respectivo passarinho e chamou o Joãozinho. «Pronto, neste mandas tu, tratas tu». Passados alguns dias, o pai entra no quarto do miúdo e… que vê? Janela aberta, gaiola vazia, e o João, entre atento e satisfeito, olhava o céu. «Então, João, o passarinho?» «Mandei-o voar!» … Haverá maior autoridade que gere comunhão e obediência do que aquela que liberta e faz voar? A segunda história está no capítulo 15 de S. Lucas. Um pai tinha dois filhos e o mais novo disse ao pai… Todos conhecemos bem a parábola do Pai. Não a vou repetir, mas apenas lembrar a questão que ela levanta: Afinal, quem está na casa do Pai? Quem a sente como sua? O filho mais velho que estava, mas não permanecia? O mais novo, que finalmente a desejava? Como e quem nos faz «sentir na casa do Pai»? Sentir e assumir a pertença à Igreja no séc. XXI Sentir-se Igreja num mundo paradoxal e onde parece ter desaparecido um horizonte comum de convergência, sem «para quê», nem futuro, eis o desafio actual. Por um lado, crescem em profusão as ditas «espiritualidades», individualistas, de conveniência e até sem Deus, substituindo a ideia e o compromisso que faz a comunidade por grupos voláteis Sentir a Igreja 169 de empatia emocional. Por outro lado, surgem, na tentativa de enquadrar a sociedade, organizações radicalmente laicistas, apostadas em demolir o passado «clerical», bem como movimentos de opinião pró-liberalismo moral de consumo individual. Desafio à criatividade, à espiritualidade pessoal, ao renascimento de um saudável e adulto sentido de corpo, renovado na linguagem e no respeito. Como primeira ajuda, reparemos nas muitas semelhanças deste tempo com o de Santo Inácio. Também, então, se multiplicavam as espiritualidades e até as «religiões» despoletadas pelo «livre exame» protestante. Hoje renasce o laicismo ateu, então surgia a corrente do Humanismo desligado da Igreja. Há diferenças, mas se, então, se encontrou o caminho, também hoje se pode encontrar. Então, multiplicavam-se as Igrejas; hoje, põe-se em causa a própria ideia de Igreja: a sua imagem de contrapoder e de ordem, sobretudo no campo moral, gera rancores e agressividades, nem sempre subliminares, acompanhada, no pólo aposto, de impulsos ultra-conservadores, também violentos. E, contudo, sente-se um desejo – subjacente – de unidade e de paz, de diálogo e cooperação na justiça, levados por diante, de modo concreto e eficaz, por grupos de voluntariado, quando é claro que as políticas tradicionais e até aqui endeusadas, não são capazes de respostas credíveis. Pelo contrário, consomem-se em lutas internas de poder. De tudo isto resulta, também, como que uma outra via, o desencanto pessimista que fala de «fins dos tempos» e toma posições extremadas de desistência ou de terrorismo. Por onde seguir? Como prosseguir, por entre estes fluxos de «cisma emocional» que vão desde um vazio, como é hoje a cha- 170 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã mada «sociedade de espectáculo», até às «doentes ortodoxias» restauracionistas? Com olhos de ver, há sinais de esperança, de renascimento da Igreja, Mãe e Mestra, corpo de salvados para salvar, em torno da Eucaristia. Creio que passa por aí a luz que precisamos. Está no ar o apelo que já não se pode calar a uma linguagem, uma inculturação (incarnação e participação) personalizadas. Está no ar o apelo a viver na inter-religiosidade. Se a Igreja perde credibilidade social é, também, porque não mostra suficientemente a sua capacidade de inclusão. A Eucaristia como resposta que desafia e faz participar A resposta proposta é a recuperação e renovação da vivência da Eucaristia. Sem restauracionismos rituais saudosistas, mas indo discernidamente ao encontro do futuro. É à mesa da palavra e do pão que se refaz o corpo e a identificação. É à mesa, «no repartir do pão», que a família se encontra e reencontra; é esse o mais antigo sinal de humanização, o «comer juntos» como nenhum animal o faz; é nessa troca que a amizade e a reconciliação acontece. Só pode ser esta a saída da diluição e a entrada a sentir em Igreja. Já a teologia o afirma: «A Eucaristia faz a Igreja, a Igreja faz a Eucaristia». Sentir a Igreja: bem-vindos à vossa casa! Lavemos os pés uns aos outros… Recebam a bênção (o mandato e a força) para testemunhar. Mandemos voar! Sentir a Igreja 171 Este é o grande desafio que a Igreja enfrenta: mais que celebrar eucaristias, tornar-se eucarística. Isto é, a Igreja como comunidade dos crentes que inclui a hierarquia, não acima, mas por dentro, como seu esqueleto e guia inspirador, há-de aparecer, em todo o seu viver, como gratuita e agradecida. Ou seja, eucarística. Cabendo a todos, nesse «sentir», a responsabilidade de a conservar e apresentar como mãe universal, inclusiva, como corpo de Cristo, espaço e relação de salvação: porto de abrigo, casa da paz, da comunhão e da festa… Guardem-se «Regras para sentir a Igreja», em discernimento e missão, segundo o Espírito Santo Para pôr em prática tudo o que fica dito, embora bastasse «a lei do amor inteligente», segundo o Espírito, que nos faz ser (e sentirmo-nos!) Igreja, a nossa condição de pecadores reconhece a necessidade de Regras e pedagogias para quem está em construção. Assim o fez Santo Inácio. E começou, com um sentido profundo de fidelidade à Tradição, por «mandar», insistentemente, que a primeira atitude fosse a de se alegrar e ver o lado positivo de tudo. Isto é: louvar. Com o mesmo espírito de fidelidade que é o de «dar futuro e expressão actualizada» à riqueza recebida, também, hoje, as Regras que têm a sabedoria de promover grandes Princípios através da atenção às coisas pequenas, poderiam começar assim: . Louvar tanto a viola como o órgão, dependendo do bom senso litúrgico! 172 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã . Louvar tanto as missas domésticas como os grandes pontificais, conforme as situações de lugar e tempo, aferindo a linguagem para uma nova evangelização! . Louvar!... 173 PEDRO FABRO E O CARISMA DA COMPANHIA DE JESUS Luís Rocha e Melo, S.J. Introdução Toca-me falar, esta tarde, de Pedro Fabro, o menos conhecido dos três que celebramos neste centenário, e do carisma da Companhia de Jesus, o mais conhecido da maioria dos presentes. Podemos ligar os dois temas sem dificuldade. O carisma de fundador da Companhia foi dado por Deus a Inácio de Loiola como único, exclusivo e intransmissível, tanto quanto também Inácio é único e irrepetível; mas esse inclui outro não menos importante: o da capacidade de comunicar a outros o que ele mesmo viveu e experimentou, por dom e por graça. O carisma de fundador transforma-se assim em carisma fundacional, compartilhado a seguir por seis companheiros da Sorbona e pouco depois por mais três. Pedro Fabro, rapaz piedoso e bem formado no seio de família profundamente cristã, foi o seu primeiro companheiro de quarto, no colégio de Santa Bárbara, no quartier latin de Paris, juntamente com Francisco Xavier. Um acaso ou uma coincidência que, não só à distância de cinco séculos, levantam uma questão pertinente: há acasos e coincidências, ou nada acontece por acaso? Um vem de Xavier, da Província de Navarra, outro de Villaret, uma aldeia perdida na Sabóia, em França, e outro de Loiola, no País Basco, convencido de que, para «ajudar as almas», tinha de estudar e que, depois de más experiências em Alcalá e Salamanca, decide procurar a capital da cultura de então, Paris. Não se conheciam 174 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã de parte nenhuma. Também lá estava um português, Simão Rodrigues, enviado pelo Rei D. João III. Acaso, coincidência? Certamente que sim, mas com a assinatura divina, bem legível poucos anos depois. Para responder à pergunta, no entanto, de forma adequada, tínhamos de entrar no mistério de Deus que não manipula os acontecimentos da história, mas deixa em todos a sua assinatura. Está escondida, como todo o mistério. É preciso lê-la e discerni-la, sem a pretensão de descodificar o mistério: o Senhor nosso Deus transforma o acaso em desígnio de amor, e o desígnio de amor transforma-se em acaso. Inácio e os primeiros Companheiros insistiam que a criação da Companhia era obra de Jesus Cristo e não deles. Tinham toda a razão: Ele, o Senhor, os juntou misteriosamente em Paris, sem que fosse violada a história e a liberdade de cada um. Já experiente nos caminhos de Deus, no discernimento e no aconselhamento espiritual, Inácio não propôs logo a experiência dos Exercícios a Pedro Fabro, porque o encontrou enredado em tremenda crise de escrúpulos. Não estava em condições de enfrentar uma experiência tão forte como a de um mês na solidão, face a face com o Criador e Senhor de todas as coisas. Aguardou quatro anos, até que a crise estivesse resolvida, para lhos propor. Dele diria mais tarde o próprio Inácio que, de entre os companheiros, era Fabro quem melhor entendera os Exercícios e quem melhor os dava a outros. 1. Carisma e instituição Não é fácil, talvez seja impossível definir um carisma. É dom de Deus particular, mas como dom que vem do alto, pertence ao âmbito do mistério e da linguagem inefável, aquela Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 175 que não é exprimível em palavras humanas. É mais fácil falar do antes, nas origens, e do depois, ou dos efeitos que ficam. Em si próprio, não podemos dizer muito mais do que isto: é energia de santificação pessoal e grelha de leitura do Evangelho que lança a pessoa em missão. É uma óptica particular que penetra o multifacetado mistério de Cristo através de um ponto específico ou de uma porta de entrada, que dará a quem o vive um modo de ser e de estar em Igreja, ou um modo de proceder também específico. Não desvia quem o vive do essencial do mistério; a porta de entrada permite, pelo contrário, a sua compreensão mais profunda. Não esqueçamos que o carisma é dom do Espírito Santo que tudo penetra até às profundidades de Deus (1 Cor 2, 10). Tomado neste sentido, o carisma foi dado por Deus a Inácio de Loiola. Como o de todos os fundadores, é contagioso por dom de Deus e por empatia saudável no contacto, na convivência, no confronto. A tal ponto, no caso dos nossos primeiros companheiros, que André Ravier começa o seu livro «Inácio de Loiola funda a Companhia de Jesus» com estas palavras: «Um título que teria feito Bobadilha rugir – e, como ele, os demais Primi Patres1, embora com vozes menos fortes, mas igualmente firmes! Simão Rodrigues, com certeza; mas também o humilde Fabro e até mesmo o amigo de Inácio, Xavier. Não só: o próprio Inácio teria protestado». Duas razões os teriam levado ao protesto: a primeira era o facto de a Companhia ser obra de Jesus Cristo, como já disse, bem mais do que dos «Os Primeiros Padres»: os primeiros seis companheiros de Inácio de Loiola: Pedro Fabro, Francisco Xavier, Simão Rodrigues, Tiago Laynez, Afonso Salmerón, Nicolau Bobadilla. Algum tempo depois, juntam-se ao grupo Cláudio Jay, Pascual Broet e João Codure. 1 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 176 homens; a segunda provinha da história: todos se consideravam co-fundadores: juntos tinham feito, de facto, o voto de Montmartre; todos se tinham oferecido ao Papa para os enviar para onde fosse preciso e todos tinham resolvido, em 1539, depois da famosa Deliberatio Patrum2, constituir-se em ordem religiosa; todos também, finalmente, tinham eleito o primeiro superior Geral, na pessoa de Inácio. A comprovar a tese da co-fundação, acrescenta o mesmo autor que Inácio dava particular atenção, no governo da Companhia como Geral, aos primeiros companheiros. Embora sejam fortes os argumentos em seu favor, e tenhamos de aceitar a participação de todos os companheiros na criação da Companhia, a tese não é sustentável na totalidade. O carisma da Companhia veio de Deus que o infundiu em Inácio. Não lho manifestou desde Loiola, Manresa ou Jerusalém, mas estava lá desde a sua conversão. Os Exercícios, experiência determinante da espiritualidade dos primeiros companheiros e da nossa, nasceram em Manresa por inspiração de Deus, confirmaram-se talvez na iluminação do Cardoner, e completaram-se pela vida fora na pessoa de Inácio. Mesmo que a nova ordem religiosa, aprovada em 1540, fosse obra de todos os companheiros, aquilo a que chamamos o carisma fundacional ou a linha de rumo espiritual que dá forma a um estilo de vida evangélico e a um modo de proceder particular pertence a Inácio. O «A Deliberação dos Padres»: foi um discernimento comunitário feito pelos dez companheiros, em oração, penitência e reuniões, que durou cerca de três meses (de Março a 24 de Junho de 1539); chegaram, por unanimidade, à conclusão que deviam permanecer juntos e fazer voto de obediência a um deles. Era esse o objectivo da deliberatio. Aí nasce a Companhia de Jesus, aprovada depois por Paulo III. 2 Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 177 Senhor nosso Deus, pródigo nos seus dons, terá dado também aos outros o dom de se identificarem com o carisma de Inácio e de o compartilharem num estilo de vida próprio, na amizade de uns pelos outros e na missão comum que todos assumiram. Talvez possamos então concluir: a criação da Companhia de Jesus e a sua institucionalização como ordem religiosa na Igreja do século XVI é obra dos dez primeiros companheiros. Mas o carisma fundacional é exclusivo de Inácio de Loiola. Permitam-me que clarifique a noção de carisma, se for possível clarificar o dom de Deus que é, por natureza, inefável e indizível. A palavra, usada por S. Paulo, vem de karis, que significa graça. Graça é dom de Deus. Continuando em S. Paulo, o carisma é dom de Deus particular, dado a algum ou alguns, em função do bem comum. «A cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito comum» (1 Cor 12, 7). Assim sendo, de particular, o carisma é universalizado ao ter em vista o bem da Igreja, sinal do Reino de Deus. Não existe por si próprio nem para si próprio, mas em função da salvação de todos. Visa a caridade fraterna e nada vale sem ela, no dizer do mesmo S. Paulo no capítulo 13 da carta citada. Concretiza-se no serviço dos irmãos. Podem, infelizmente, corromper-se, se faltar o essencial. Um dos sintomas de perda da sua energia aparece quando os que o vivem se voltam sobre si e o tomam como fim para si mesmos. «O vento sopra onde quer, não sabemos de onde ele vem nem para onde vai», diz o Senhor a Nicodemos (Jo 3, 8). Na admirável Providência de Deus, o Espírito age quando quer e muito bem entende, para o maior bem dos fiéis e do mundo. É, por isso, imprevisível, espontâneo e não está dependente nem da vontade nem das estruturas feitas pelos homens. Não pode ser manipulado; pode e deve ser acolhido em atitude de Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 178 reverência, acatamento, amor e acção de graças. Também a Igreja é por essência carismática; basta ler com atenção os Actos dos Apóstolos para conhecer o agente principal da sua expansão no primeiro século. Os apóstolos vão atrás do Espírito Santo e nunca à sua frente. Pouco a pouco, no entanto, um novo dom é dado à Igreja, já previsto por Jesus Cristo ao constituir a Pedro como Pastor do seu rebanho: o carisma, de facto, não se perpetua no tempo, se não for apoiado pela instituição que existe para sua protecção: para o conservar, o preservar de possíveis desvios, para o discernir dos falsos carismas e dos falsos profetas que sempre existiram, e o estimular caso perca o seu vigor inicial. O mesmo acontece na Companhia: a «deliberatio patrum»3 deu como resultado uma decisão unânime: para que não se perdesse a unidade do corpo e, diríamos nós agora, para que não se perdesse o carisma fundacional, era necessária a criação de uma estrutura ou de uma instituição, e que todos se vinculassem em obediência a um deles. O Espírito Santo iluminou a mente de todos com um novo dom: o da institucionalização do carisma, com a criação de uma nova ordem religiosa. Tendo em conta o pensamento de S. Paulo que dá importância à Presidência, não vejo por que não entender a instituição também como carisma. Há complementaridade indispensável e não oposição entre carisma e instituição. É verdade que há sempre tensão entre um e outro e pode acontecer, nalgum caso, que a instituição abafe o carisma, a criatividade e a espontaneidade que lhe são próprias. Pode ter acontecido isso à Companhia, depois sobretudo da sua supressão e da sua restauração, que surge 60 anos mais tarde, a 7 de Agosto de 1814, em plena 3 Cf. nota 2. Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 179 época jansenista. Os da antiga Companhia eram poucos e de idade avançada. Os novos de então não podiam não estar aculturados na mentalidade do seu tempo. De há 50 anos para cá, penso que a Companhia vai retomando cada vez mais o equilíbrio entre carisma e instituição, embora a perfeição não seja deste mundo. 2. O carisma da Companhia Qual será essa grelha de leitura que levou Inácio a ser o que é e a comunicar aos outros o que ele próprio viveu? A resposta não é fácil, mas arrisco um ponto de vista: é o próprio Cristo, Rei e Senhor universal, cujo eixo fundamental de vida, à volta do qual se movem todas as suas decisões e todos os seus passos, é a vontade do Pai. «O meu alimento é fazer a vontade daquele que Me enviou e consumar a sua obra» (Jo 4, 34). «Desci do Céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que Me enviou» (Jo 6, 38). Na kenose de todo o seu ser divino, o homem Jesus de Nazaré, unido ao Pai, com o qual é um só, vive continuamente em atitude de escuta e de discernimento dessa vontade. A sua liberdade é total para a seguir, a ponto de dar a vida livremente (Jo 10, 18). Acrescento, como parte integrante do carisma de Inácio, a experiência dos sentidos espirituais na contemplação e, por isso, na assimilação do mistério de Cristo. «Não é o muito saber que farta e sacia a alma, mas o sentir e gostar as coisas internamente» (EE 2). Quem saboreia as coisas por dentro, mais facilmente se entusiasma pelo seguimento de seu Senhor. E quanto mais se entusiasma, mais deseja conhecê-Lo internamente para mais O amar e seguir. A contemplação inaciana 180 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã termina sempre com a «aplicação dos sentidos», que torna a experiência de Cristo vivencial e desperta o apetite e o desejo de estar com Ele, de ser como Ele, e de ser enviado em missão. É o saborear contemplativo de um ponto ou de um todo, em que a pessoa é convidada a repousar, para que a vida seja impregnada pela matéria contemplada. Como a gota de água que entra numa esponja, o espírito de Jesus contemplado nos mistérios da sua vida, morte e ressurreição, vai embebendo todos os poros espirituais do contemplativo. Inácio de Loiola, os primeiros companheiros e a Companhia de Jesus são carisma dado por Deus à Igreja. Não é por acaso que pertence à sua essência ser um corpo de homens em atitude de serviço: «Todo aquele que pretender alistar-se sob a bandeira da cruz, na nossa Companhia, que desejamos se assinale com o nome de Jesus, para combater por Deus e servir somente ao Senhor e à sua esposa, a Igreja, sob a direcção do Romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra, depois dos votos solenes de pobreza, castidade e obediência, persuada-se que é membro da Companhia» (Fórmula do Instituto de 1550, aprovada por Júlio III). O quarto voto de obediência ao Papa que fazem todos os professos da Companhia, não apenas vincula o companheiro de Jesus à pessoa do Vigário de Cristo, como também simboliza toda a atitude espiritual de um corpo em missão, em Igreja, ao seu serviço e ao serviço do Reino, onde e como o entender o Vigário de Cristo na terra. As regras que nos deixou o fundador, nos Exercícios Espirituais, sobre o sentir com a Igreja, traduzem a sua espiritualidade eclesial. Foi assim que Xavier e Simão Rodrigues partiram para Portugal e o primeiro para aquelas terras a que chamavam Índias, e que Pedro Fabro percorreu as terras da Alemanha, como teólogo católico, na tentativa de Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 181 procurar consensos com a reforma protestante, no Colóquio de Worms e na Dieta de Ratisbona. Naturalmente, nessas viagens, não se limitou a dialogar com os protestantes. Deu Exercícios a muita gente, atendeu em direcção espiritual gente rica e gente pobre, acudiu aos hospitais e socorreu os desamparados, como é próprio também do carisma da Companhia. 2.1. Os exercícios espirituais Pedro Fabro era especialista em dar os Exercícios. Aproveito esse dado para dizer que o carisma de Inácio e o da Companhia têm neles a sua raiz. Devemos procurá-lo, em primeiro lugar, na própria pessoa de Inácio e no seu itinerário espiritual, desde a conversão em Loiola, depois dos ferimentos em Pamplona, até ao primeiro Geral da Companhia; a sua autobiografia e o seu diário espiritual, as Constituições que deixou para este corpo em missão, além dos milhares de cartas que chegaram até nós, dão-nos a ideia da sua personalidade espiritual. Não é possível, nesta conferência, abordar todos esses campos. Gostava de me limitar aos Exercícios para ir à fonte. Quando os aprovou, Paulo III deixou esta afirmação: Digitus Dei est hic, «está aqui o dedo de Deus». Não podia não ser verdade, se olharmos para os 466 anos de História da Companhia e para o presente, onde os Exercícios continuam a ser dados com toda a potência espiritual que contêm. Surgem de uma experiência de Inácio, vivida por acção do Espírito Santo, ele que se considerava, em Manresa, como menino conduzido pelo Mestre-escola, seu Senhor e seu Deus. Não são mais nem menos do que um modo e uma ordem ou um método (EE 2), ou ainda uma pedagogia que ajuda a levar o Evangelho para a vida. Supõem, por parte de quem os faz, «grande ânimo e liberalidade 182 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã para com seu Criador e Senhor, oferecendo-Lhe todo o seu querer e liberdade» (EE 5), ou um grande desejo de amar e servir a Jesus Cristo e ao seu Reino. Sem esse pressuposto, não vale a pena fazê-los, embora esse desejo possa eventualmente surgir depois de começados. Mas que haja ao menos desejo de ter desejo. 2.2. Os efeitos que ficam Também não é possível, neste contexto, descrever os Exercícios, como fonte primeira do carisma de Inácio. Esse trabalho foi feito, aliás, em sessões destas anteriores que estão publicadas. Gostava de comunicar apenas, se for capaz, os efeitos que ficam nas pessoas que os fazem, os assimilam e os tomam como linha de rumo. Os Exercícios, a formação que a Companhia nos transmite na sua longa experiência, a missão que se assume em obediência e tudo o mais que faz parte da vida de um jesuíta, deixam marcas bem definidas na pessoa de cada um. Por outras palavras, criam identidade que, não sendo nem melhor nem pior do que outras, é uma identidade bem definida que se expressa, naturalmente, no que Santo Inácio chamava «o nosso modo de proceder». Apesar disso, ou talvez por isso e porque tocamos o inefável da acção de Deus na pessoa humana e todo o mistério que a envolve, sinto-me sempre atrapalhado para definir em termos claros e distintos a identidade do carisma inaciano, no que ele tem de mais profundo. Ao darem rumo e sentido ao exercitante, convidado desde o início a centrar o coração no essencial, ao proporem o ordenamento da vida pondo no seu lugar as afeições desordenadas; ao libertarem assim a liberdade de quem os faz para que procure e encontre a vontade de Deus e tome decisões por ela, Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 183 os exercícios dão a quem os vive uma coluna vertebral direita, sem escolioses, embora extremamente flexível. No essencial, homem de carisma inaciano sabe o que quer e para onde vai, mesmo que tenha imensas dúvidas pelo caminho. 3. O discernimento dos espíritos A flexibilidade da coluna vertebral direita vem do discernimento como atitude de vida e do humanismo que também pertence ao carisma de Inácio de Loiola. A sua pessoa, em primeiro lugar, o ambiente renascentista que absorveu em Paris, a maneira como Deus o conduziu no meio de tudo isso, tornou-o humano, capaz de entender o ser humano e de ler os acontecimentos a partir de dentro. O discernimento, como ele o entende e de acordo com as regras que para isso nos legou, não pode não ser humano. É sabedoria que vem do Alto, mas que se instala no centro da alma para lhe dar a compreensão das alegrias e dos sofrimentos dos outros seres humanos. O discernimento inaciano é amoroso; inteligência e amor fundem-se misteriosamente e criam, por acção do Espírito Santo, uma corrente de sabedoria comparável à da Palavra de Deus, eficaz e mais afiada do que espada de dois gumes: penetra até à divisão da alma e do corpo, das articulações e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções do coração (Heb 4, 12). O discernimento leva à compaixão e à misericórdia, no seu sentido etimológico: leva a sofrer com quem sofre (maneira exclusiva de entender o sofrimento alheio), ou a ter coração perante o miserável, que o mesmo é dizer, a meter-se na sua pele e sentir o que ele sente. A inteligência da vida é a capacidade de a ler por dentro, a própria e a alheia; mais do que as 184 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã ideias ou as estruturas, é o amor que tem um «dentro», imensamente inteligente para acolher e compreender, e encontrar a palavra certa no momento certo para humanizar as situações e os desafios que a vida oferece. Homem de discernimento vê em profundidade, em primeiro lugar, as maravilhas de Deus em si e nos outros que dele se aproximam e se abrem, e vê também as suas deficiências, debilidades ou desvios com realismo, as próprias e as alheias, mas não para julgar e condenar as pessoas e colocá-las na prateleira dos inúteis ou dos pecadores incorrigíveis; pelo contrário, olha para tudo com o olhar com que Deus o olha, que é de acolhimento, compreensão e misericórdia. O discernimento dos espíritos, enquanto dom do Espírito Santo, enumerado por S. Paulo na primeira Carta aos Coríntios (12, 19), envolve o homem todo até ao mais profundo de si mesmo e dá-lhe um modo de ser e de estar no mundo: como a Balaão, transforma-o «em homem de olhar penetrante» (Nm, 24, 3.15), capaz de ver e de ajuizar, não segundo os seus próprios critérios, mas segundo os critérios de Deus. 3.1. A unidade interior Aí nos levam os Exercícios, segundo o dom de Deus e a maneira de ser de cada um, única e irrepetível. Neste sentido, podemos falar do carisma da Companhia, no de cada jesuíta, e no de cada pessoa que vive a espiritualidade inaciana como leigo ou leiga. Usei há pouco uma metáfora para tentar descrever os efeitos que ficam na pessoa que vive os Exercícios na missão concreta do dia-a-dia. Disse que o seu dinamismo interno gera pessoas de coluna vertebral direita, mas flexível. Gostava de acrescentar mais um dado para explicitar a metá- Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 185 fora: os exercícios, aparentemente divididos em quatro partes, com um prólogo e um epílogo, são um todo, uno e indivisível, como a túnica de Cristo, feita de uma só peça, sem costuras. São ordem e método que trazem para a vida a história da salvação ou o desígnio de Deus a respeito do homem que, revelado e comunicado no tempo, introduz o ser humano, frágil e limitado, no mundo de Deus. Ser homem de Exercícios não é mais nem menos do que ser cristão. É-se cristão quando, por desígnio do Pai e na energia do Espírito Santo, a pessoa se vai tornando conforme à imagem de Cristo, ou reproduz a forma Christi, como gostavam de afirmar os padres antigos. Assim o diz também S. Paulo na Carta aos Romanos (8, 29). A unidade do humano e do divino, que se encontra em perfeição na pessoa de Cristo, é transmitida ou comunicada a quem se deixou alcançar por Ele, e deseja identificar-se cada vez mais, no amor, com quem sabe que tanto o ama. A pessoa recebe, por dom e por graça e em colaboração com ela, a própria unidade do Verbo encarnado. A vida de Deus, eterna por definição, foi derramada nos corações pelo Espírito Santo. O eterno, por sua vez, é uno, sendo trino. Desse modo, a unidade de Deus vai preencher, pouco a pouco, todos os espaços deste ser humano, dividido, limitado, sujeito ao tempo e à dispersão. O homem é então convidado a viver, no presente, uma centelha de vida eterna, a plena unidade de Deus. Na sua unidade e sinteticamente oferecidos em trinta dias, os Exercícios são um percurso que representa a caminhada espiritual da pessoa, desde o seu baptismo até ao último instante da vida, para desabrochar na plenitude do Reino. A unidade de que falo, como parte integrante do percurso, vai emergindo naturalmente e pouco a pouco, ao longo dos anos, na alma fiel. É corolário existencial do dom de Deus que encontra 186 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã terreno fértil. A pessoa nem sabe como ela aparece e nada fez de concreto que se possa apresentar como causa. Permite-lhe estar presente, toda inteira onde está, sem pressa existencial de passar adiante, como se o presente lhe não agradasse e quisesse fugir dele. Pelo contrário, compreende então o gosto pela vida. Está simultaneamente em si e fora de si, presente ao outro, capaz de lhe abrir a interioridade e, reciprocamente, de entrar na dele, se lhe for permitido. Dessa forma, unidade e discernimento dão-se as mãos. Em ambos reside a liberdade dos filhos de Deus que compreende ser o sábado para o homem e não o homem para o sábado (Mc 2, 27). Liberdade também para estar em campos de fronteira e assumir os riscos inerentes a quem vive para dar a vida. 3.2. O dom do conselho Homem disperso e problematizado não está em condições de ler o que se passa no centro da alma de quem o procura. Homem amadurecido na pedagogia dos Exercícios supera os problemas pessoais; as possíveis desolações espirituais vão sendo progressivamente substituídas pela paz profunda que o Espírito Santo infunde nos corações. Terá sofrimentos e contrariedades que a vida lhe oferece, mas saberá enfrentá-las sem perder a cabeça. No Horto das Oliveiras, houve angústia e pavor, mas não descontrolo. Faço notar, neste contexto, que Santo Inácio não fala em desolações espirituais nas regras do discernimento de segunda semana. Distingue as consolações verdadeiras das falsas e dá-nos critérios para as distinguir. Mas a partir de certo ponto do caminho, não há, em princípio, desolações espirituais propriamente ditas. Há dificuldades, certamente. Mas a robustez da estrutura interior adquirida pelo exercitante acusa, Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 187 naturalmente, as dificuldades ou problemas que adiante possam surgir, mas mais dificilmente entrará em crise propriamente dita. Como as etapas da vida espiritual não são compartimentos estanques e não costumam ser completamente superadas nas seguintes, não é de forma alguma impossível que apareça alguma desolação espiritual em fases adiantadas do itinerário. Da mesma forma acontece ou pode acontecer que, em altos níveis de união com Deus, seja a pessoa sujeita ainda a tentações de primeira semana. Homem não problematizado, na unidade do presente, está preparado para ser conselheiro espiritual, acompanhante espiritual, ou director espiritual, conforme os gostos na terminologia. O discernimento dos espíritos é corolário dos dons de Sabedoria e de Conselho. A primeira acção destes dons, em ordem lógica, não necessariamente temporal, é a de desproblematizar e unificar quem é chamado ao dom da direcção espiritual. De facto, pessoa com problemas por resolver, mais facilmente passa ao outro os seus problemas do que o ajuda a libertar-se dos seus, para que possa discernir serenamente a vontade de Deus e capacitar-se para a escolher. Também neste ponto, não vamos esperar a perfeição da unidade interior e da ausência de problemas, para dizer a alguém que já pode ser director espiritual. Se assim fosse, ninguém podia ser conselheiro de ninguém. Também não é definível o grau de amadurecimento espiritual, e de consequente liberdade interior, a partir do qual se está apto para prestar a outros esse serviço. Recomendemos, antes, a quem começa, que tenha consciência da necessidade de prosseguir, com a graça de Deus, no caminho de libertação pessoal e no fortalecimento/consolidação da unidade interior. 188 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Um dos dons mais notáveis de Pedro Fabro foi precisamente o dom do discernimento e conselho. Como já referi, atravessou uma grave crise de escrúpulos que durou, tanto quanto sabemos, pelo menos quatro anos. Inácio também passou por isso, em Manresa, a ponto de pensar no suicídio, tal o sofrimento a que foi sujeito. Essas crises, desse ou de outro género, fazem parte do caminho espiritual de toda a gente. Deus permite-as, dizemos nós porque nos falta sempre vocabulário apropriado quando falamos de Deus. Permite-as ou pretende-as. Em leitura de fé, não há acasos na vida, nem estados de alma que passem despercebidos ao seu amor providente. O Senhor nosso Deus serve-Se das crises, das fragilidades, das angústias com um fim bem determinado: a purificação da alma; «para que não façamos ninho em propriedade alheia, levantando o nosso entendimento a alguma soberba ou vanglória», diz o livro dos Exercícios (EE 322, 3ª causa). Pedro Fabro viveu quatro anos em angústias, provocadas, assim o suspeito, por causas puramente humanas. Talvez uma formação religiosa severa, dada por seus pais com a melhor das intenções, ou uma catequese pouco esclarecida, recebida em Villaret, na Sabóia, sua terra natal, tenham dado origem a essa crise. Mas para Deus não há acasos. O grande homem dos Exercícios e o grande director espiritual tinha de passar por essa crise, para que o seu coração se centrasse e abandonasse exclusivamente nas mãos de Deus. O seu temperamento amável, acolhedor e compreensivo, aliado ao dom de simpatia com que o Senhor tinha adornado a sua natureza, foi o espaço fecundo para a acção da graça. Essa simpatia e cordialidade atraíam naturalmente as pessoas. O dom da Sabedoria e do discernimento que encarnavam nesse dom natural e o «olhar penetrante» que daí resultava, liam a acção de Deus e as componentes humanas na profundidade das almas. Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus 189 Tinha compreendido o percurso dos Exercícios e vivia-o no quotidiano da sua acção apostólica. Por isso os dava tão bem e com tantos frutos. Era homem de oração contínua na intensa actividade que exerceu pela Europa fora. 3.3. Contemplativos na acção A união com Deus no mistério de Cristo morto e ressuscitado fazia parte do modo de ser e de proceder de Fabro. Viveu em alto grau a unidade entre a acção e a contemplação e dele se poderia dizer o que Nadal dizia de Inácio: era in actione contemplativus. A unidade de que falámos acima, como manifestação do carisma da Companhia, está presente na actividade mais intensa. A pedagogia dos Exercícios desemboca na contemplação para alcançar amor, como rampa de lançamento para a vida: tudo é dom e tudo vem do alto; Deus está presente e actuante em todas as criaturas e particularmente no homem em quem habita como num templo. Não há dois andares, um por baixo e outro por cima. Há uma nova criação: o homem divinizado, à imagem do Deus humanizado, é um todo, presente no mundo como testemunha da Aliança nova e eterna, estabelecida em Cristo. A intenção sobrenatural, em que antigamente se insistia, já lá está na própria forma Christi, como embrião que cresce. A intenção do apóstolo é sempre sobrenatural, como em Cristo são sobrenaturais todas as situações humanas que viveu, quer pregasse as bem-aventuranças, quer se sentasse à mesa com fariseus ou pecadores. Homem dos Exercícios é homem de oração que se prolonga em cada momento da sua vida e está, por isso, permanentemente referenciado à fonte. Encontra a Deus em todas as coisas e a todas as coisas em Deus. 191 XAVIER AO ENCONTRO DO NOVO MUNDO Francisco de Sales Baptista, S.J. Introdução O tema geral desta Semana de Estudos é «a Companhia de Jesus ontem, hoje e amanhã». É dentro deste «ontem, hoje e amanhã» que nos toca tratar, de modo especial, «Xavier ao encontro do novo Mundo», ou do novo no Mundo. Não tanto do novo geográfico desse Novo Mundo, que outros se adiantavam a descobrir antes dele, mas do novo humano, novo cultural e novo religioso desses povos descobertos. Não esqueçamos que ele era missionário. E, acima de tudo, Núncio apostólico ou «embaixador» da Santa Sé para todos os reinos descobertos e a descobrir no Oriente. Creio mesmo que a melhor «chave de leitura» da acção missionária de Xavier é o seu papel de Núncio, que nele se sobrepôs, logo de começo, às suas responsabilidades de evangelizador. Não contava com esta missão da Santa Sé. Foi uma surpresa para ele quando, nas vésperas da partida para a Índia, o Rei lhe entregou os documentos pontifícios que o creditavam como embaixador da Igreja junto de todos os reinos do Oriente já conhecidos e outros que se viessem a descobrir1. É isso que explica, a meu ver, os Cf. S. F. XAVIER, Obras completas, A.O., Braga 2006: Xavier-doc 121. (Citaremos sempre XAVIER-doc e o número do documento). Sobre os quatro Breves pontifícios de nomeação e correspondentes encargos, cf. SCHURHAMMER, Francisco Javier, su vida y su tiempo, v.I, pp. 931-934 e respectivas notas. Porque se esquece o seu papel de Núncio, é que se critica a sua vasta mobilidade; e porque se esquece que era Núncio em relação com o 1 192 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã peculiares interesses das suas descobertas, a incessante mobilidade da sua acção missionária e o apoio a estratégias apostólicas que ia descobrindo em equipe com outros missionários. Daí, as três partes em que vamos distribuir o nosso trabalho: I – Xavier e a descoberta missionária do novo Mundo II – Xavier e a expansão missionária por esse novo Mundo III – Xavier e a inovação missionária nesse novo Mundo I – Xavier e a descoberta missionária do novo Mundo Provavelmente as suas descobertas do novo Mundo, no que se refere ao Oriente, começaram já em Paris, no contacto com Diogo Gouveia e os bolseiros portugueses do colégio de Santa Bárbara2. Depois, com os sonhos estranhos3, antes ainda de ter sido designado – ele ou qualquer outro – para a Índia. Se não, como se explicam sonhos com índios às costas, quando o horizonte próximo dos seus projectos era apenas a Palestina? Ele mesmo, ao embarcar em Lisboa, relaciona estes sonhos com a missão para onde então partia. Padroado real, é que se procura ocultar a sua preocupação de pedir credenciais do Vice-Rei e do Bispo de todo o Oriente, para as missões em países estrangeiros ainda não contactados por missionários (Japão e China). 2 Diogo de Gouveia teve, de facto, vários encargos de política ultramarina que o traziam várias vezes a Portugal (cf. SCHURHAMMER, ib. p. 129 e nota 205). 3 Cf. SCHURHAMMER, ib. pp. 440; 504 e nota 92; 951. Estes indícios fazem presumir que a designação de Xavier para a missão da Índia, à última hora, não terá sido tão improvisada como parece. Inácio, como seu confidente íntimo, devia saber algo destes sonhos. Xavier ao encontro do novo mundo 193 A seguir aos sonhos começam as descobertas reais. É sobretudo na última etapa da viagem, a partir da ilha de Moçambique, que se revelam os peculiares interesses missionários nas descobertas de novas terras que ia conhecendo: em Melinde, o que o encanta é a descoberta do primeiro padrão de sinais cristãos a marcar naquelas paragens os descobrimentos portugueses4; em Socotorá é a cristandade, abandonada mas promissora, que aí contacta5; ao chegar a Goa é a cidade cheia de evocações cristãs, em igrejas, ermidas, conventos e instituições eclesiais de toda a espécie que ele visita logo à chegada e descreve, na primeira carta, com todo o entusiasmo6: a Sé; o Paço do Bispo que preside a todo o Padroado missionário do Oriente; o Colégio internacional de S. Paulo fundado em 1541 para a formação de clero indígena, catequistas e intérpretes para todas as línguas; as Irmandades de leigos cristãos comprometidos em todas as obras XAVIER-doc 15, n. 6: «Junto desta cidade (Melinde), ergueram os portugueses uma cruz grande de pedra, dourada, muito formosa. De vê-la, Deus Nosso Senhor sabe quanta consolação recebemos – conhecendo quão grande é a virtude da cruz, vendo-a assim sozinha e com tanta vitória entre tanta mouraria». Refere-se ao padrão aí erguido por Vasco da Gama em 1498. O monumento actual é de época mais recente. 5 XAVIER-doc 15, n. 9-11. Já queria lá ficar: «Disse ao senhor Governador que me desse licença, que eu queria ficar ali, pois achava messe tão preparada. Mas, porque a esta ilha vêm turcos, e não é habitada de portugueses, para não me deixar em perigo de que me levassem preso os turcos, não quis o senhor Governador que me ficasse naquela ilha de Socotorá» (ib. n. 10). 6 XAVIER-doc 15, nn. 5, 12, 13. «Chegamos à Índia, a Goa, que é uma cidade toda de cristãos, coisa para ver. Há um mosteiro de muitos frades da Ordem de S. Francisco e uma Sé muito honrada e de muitos cónegos e outras muitas igrejas. Coisa é para dar muitas graças a Deus Nosso Senhor em ver que o nome de Cristo tanto floresce em tão longínquas terras e entre tantos infiéis» (ib. n. 5). 4 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 194 de Misericórdia; o clero local, etc.7 Não lhe atrai a atenção a intensa actividade portuária de construção naval, de partida e chegada de naus... Passados meses é a partida para a costa da Pescaria8, a primeira missão em terra estrangeira, com língua diferente, sujeita a reis e guerras fora da influência portuguesa9; na costa de Travancor são as primeiras experiências de negociações de paz com reis estrangeiros10 e a surpresa das conversões em massa; depois, as notícias do massacre duma cristandade noutra terra estrangeira, que o levam a pedir em vão a intervenção militar das autoridades portuguesas11. É neste primeiro contacto com reinos estrangeiros, por um lado, e a falta de apoio militar colonial, por outro, que Xavier tem as primeiras desilusões do Império português no Oriente12. Não percebia ainda, nessa altura, como perceberá mais tarde, a Cf. XAVIER-doc 15, n. 12-13; 16, n. 1-4. XAVIER-doc 15, n. 14. Leva consigo as primícias de clero nativo formado no colégio internacional de S. Paulo: dois já diáconos e outro seminarista maior apenas com ordens menores: «Agora me manda o senhor Governador para uma terra, aonde todos me dizem que tenho a fazer muitos cristãos. Levo comigo três daquela terra: dois são de epístola e evangelho (diáconos), sabem a língua portuguesa muito bem e, melhor, a sua natural; o outro não tem senão ordens menores» (ib. 14). Cf. XAVIER-doc 19; 20; 21-45. 9 Cf. XAVIER-doc 23; 26-28; 30-43. 10 Cf. XAVIER-doc 44-45; 46, n. 9; 48, n. 2. 11 Cf. XAVIER-doc 46, n. 9 nota 3; 51, n. 1; 68, n. 3 nota 6; 48, n. 3-4; 61, n. 1-9. 12 É conhecida a longa desilusão por não conseguir castigo militar aos perseguidores de Jaffna que fizeram o massacre da cristandade da ilha de Manar (Cf. nota anterior). Foi essa desilusão, depois duma ronda inútil pelas fortalezas a pedir protecção para os cristãos do Malabar, que o levou a fazer uma pausa de discernimento no Santuário de S. Tomé de Meliapor. 7 8 Xavier ao encontro do novo mundo 195 política13, que era a de um Império marítimo e não territorial; de um império comercial e não colonial; de um Império com fortalezas e feitorias baseadas em tratados de amizade com os reinos em que estavam situadas e não conquistadas (algo assim como as actuais bases americanas espalhadas por várias nações). Conquistadas, eram só as consideradas estratégicas por Albuquerque e os organizadores do Império: Goa, Ormuz e Malaca, além de outras que se foram justificando posteriormente (Diu, etc.) e alguns pequenos enclaves adquiridos por oferta doutros reinos em troca de protecção naval (Baçaim, Macau, etc.). Mesmo Cochim, principal base naval do comércio entre Portugal e todo o Oriente, era uma fortaleza negociada. A política estabelecida pelos primeiros Governadores da Índia, D. Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque, era muito clara. Escrevia D. Francisco de Almeida ao Rei por alturas de 1505: «Acerca da fortaleza, lá em Coulão, quantas mais fortalezas tiverdes, mais fraco será vosso poder: toda vossa força seja no mar, porque se nelle nom formos poderosos – o que Nosso Senhor defenda – tudo logo será contra nós e, se o Rey de Cochim quisesse ser desleal, logo seria destroído, porque as guerras passadas eram com bestas (no norte de Africa), agora a temos com Venezeanos e Turcos do Soldão… Entendamos com o que temos no mar, que são estes novos inimigos – que espero na misericórdia de Deus que se lembrará de nós – que tudo o mais é pouca coisa. Sabei certo que enquanto no mar fordes poderoso, tereis a Índia por vossa; e se isto nom tiverdes no mar, pouco vos prestará fortaleza na terra. Percebera intuitivamente, logo de princípio, que era um Império apoiado na força marítima (cf. XAVIER-doc 17, n. 6). Mas não conhecia as bases políticas em que assentava. 13 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 196 E no lançar dos Mouros bem lhe achei o caminho, mas é longa história que se fará quando Nosso Senhor quiser e for servido»14. Para amenizar estas primeiras desilusões de Xavier, começaram-lhe a chegar então as notícias doutros reinos onde não havia bases navais portuguesas, mas donde os comerciantes traziam já primícias de conversões: Maldivas, Celebes, Molucas15... Precisamente nas Molucas ainda há-de ter outra desilusão: a falta de apoio às suas grandes esperanças na substituição do rei local por Jordão de Freitas16. E quando mais tarde voltou a insistir na ocupação de Socotorá, para libertar dos mouros aquela cristandade oprimida17, será precisamente o seu grande amigo Martim Afonso de Sousa que aconselhará o Rei a não fazer tal. Citado e comentado por SILVA REGO, História das Missões do Padroado Português do Oriente, vol. I, pp. 47-49. Os portugueses, no Oriente, distinguiam os Mouros adaptados à Índia e os Turcos, inimigos mais temíveis. Ver nesta obra a história de cada fortaleza e as negociações ou tratados que estiveram na sua origem. 15 Cf. XAVIER-doc 48, n. 5; 50, n. 2-3; 52, n. 1; 54, n. 1; 55. 16 Cf. XAVIER-doc 55, n. 3; 56, n. 1. Nessa altura, as Molucas poderiam ter sido colonizadas por Jordão de Freitas e talvez chamadas as Joaninas de D. João III, antes das chamadas Filipinas de D. Filipe II. Mas não era essa a política portuguesa no Oriente. 17 Cf. XAVIER-doc 73, n. 5-6 e notas; 79, n. 8. Sobre a história anterior da ilha e a passagem de Xavier por lá, cf. SCHURHAMMER, ob. cit. II, pp. 145-167; sobre a resposta do Governador Martim Afonso de Sousa ao Rei, cf. SCHURHAMMER, ob. cit. II, 686-687: «Se V.A. tivesse aqui permanentes 15.000 ou 20.000 homens, poderia mandar estas coisas tão em absoluto. Mas até para Embaixadores somos poucos». Vale a pena ler aí toda a carta. 14 Xavier ao encontro do novo mundo 197 É com estas desilusões que começa a perceber a política predominantemente negocial e diplomática do Império marítimo português no Oriente e a descobrir que o Padroado missionário português nesse espaço geográfico não é um Padroado colonial (de ocupação), mas um Padroado internacional (de negociação)18. Por isso começa a agir por credenciais de embaixador. Para o Japão19 e para a China20 é a primeira vez que pede credenciais ao Governador da Índia e ao Bispo do Padroado do Oriente e age claramente como Núncio apostólico. Já não pede protecção militar, mas apoio diplomático em aliança com os mercadores portugueses que vão ser os seus grandes benfeitores e protectores no terreno. Com a experiência do Japão vai descobrir até as vantagens deste tipo de império não colonial e deste modo de Padroado missionário para além fronteiras. Em todas estas descobertas, como vemos, é o aspecto missionário que o interessa: as portas que se abrem ou fecham à evan- Cf. Bula de erecção da diocese de Goa em 1533, que estendia a sua jurisdição eclesiástica «desde o Cabo da Boa Esperança, até à Índia inclusive e desde a Índia até à China, com todos os lugares quer em terra firme quer de ilhas das regiões descobertas e a descobrir…» (Clemente VII, cf. MHSI, Mon. Ind. I, Introdução pp. 10-11). E para tirar dúvidas, Gregório XIII em 1579 declarou que estavam sob a jurisdição de dioceses do Padroado português todas as terras «para Oriente, relacionadas com o Rei de Portugal, quer por direito de domínio, quer de conquista (como lhe chamam), quer de comércio, quer de navegação» (ib. p. 11). 19 Cf. SCHURHAMMER, ob. cit. IV, pp. 277-282; MHSI-Doc.Jap. (1547-1557), doc. 41, n. 10; XAVIER-doc. 96, n. 16; 83, n. 3; 84, n. 2; 124, n. 1. 20 XAVIER-doc. 121; 122, n. 3; 125, n. 4; 136, n. 7; SCHURHAMMER, ob. cit. IV, pp. 721-727. 18 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 198 gelização, a geografia humana e religiosa dos novos mundos. Não a geografia física nem as rotas comerciais21. II – Xavier e a expansão missionária por esse novo Mundo Antes de Xavier, já a expansão missionária tinha chegado, não só às fortalezas e feitorias portuguesas desde Ormuz até às Molucas, mas também extrapolado para territórios estrangeiros desde Socotorá e Costa da Pescaria, Ceilão e Maldivas até às Celebes22. Depois de Xavier, porém, ganhou novo dinamismo, que foi testemunhado quer no Oriente quer na Europa. No Oriente, confessam os próprios Governadores e outros responsáveis a força explosiva impressa à evangelização em relação ao andamento anterior, devido sobretudo à mobilidade dos Jesuítas23. Só nas Molucas se detém a descrever aspectos físicos: vulcões, maremotos, fauna e flora (Xavier-doc 55, n. 11-16; 59, n. 4-6; interessam-lhe mais as populações, costumes, meios de subsistência e, sobretudo, a abertura à evangelização. 22 S. F. XAVIER, Obras completas, A.O., Braga, 2006: Introdução Geral (Mário Martins) e bibliografia aí citada. 23 «Frades encerrados serão eles muito bons, assim para si como para ornamento dos mosteiros; e serviço farão muito neles a Deus. Mas cá, servem mais os da regra de Jesus Cristo para andarem pelas terras e pregarem e baptizarem» (COSME ANES ao Rei 1547. Cf. MHSI-Mon.Ind. I, p. 220); «Por experiência acho não haverem vindo a esta terra homens de mais fervor e de mais cuidado e diligência para o caso da cristandade e conversão dos infiéis, que os padres da Companhia de Jesus… Toda a Índia queria ver cheia de Apóstolos (jesuítas), pelo que tenho dito. Porque se aí os houvera, já estivera povoado deles Chaul e Cochim e as fortalezas, e feito muito grande fruto e no desejo de V.A.; porque eles andam pelo Cabo de Comorim e nesta cidade e agora vão 21 Xavier ao encontro do novo mundo 199 Na Europa, espalha-se como nunca a ideia missionária, sobretudo a partir da correspondência de Xavier. As suas cartas e as dos seus missionários eram lidas por toda a Europa com tanto ou maior entusiasmo que as notícias das descobertas geográficas e sociológicas24. Dá-se então uma onda de expedições missionárias cada vez mais numerosas e qualificadas. Foi certamente esta sedução missionária que levou a Igreja a proclamar Xavier como Padroeiro de todas as Missões. De facto, ele espalhou como poucos a causa missionária e ainda actualmente se sente a sua chamativa influência vocacional. III – Xavier e a inovação missionária nesse novo Mundo Se a expansão missionária se deveu sobretudo à sua acção de Núncio apostólico, a inovação missionária tem de ser atribuída às equipes de missionários a trabalhar no terreno. O mérito de Xavier foi ter-lhes deixado espaço de iniciativa (apesar das Insquatro para Socotorá… São mui leves de armar para as coisas espirituais; não são carregosos à cleresia, nem lhe tomam trintários nem missas, nem enterram corpos de mortos, nem andam com as cruzes pelas casas levando os defuntos com seu Venite» (BISPO ao Rei 1548, ib., pp. 329-330). «Particularizar suas obras e fruto que fazem nas almas não me atrevo a escrevê-lo por pena, nem me abastaria tempo para relatá-lo, segundo as minhas ocupações. Digo, por final, que foram tochas acendidas nestas partes para alumiar tão escura noite que nelas jazia» (BISPO ao Rei 1550, ib., vol. II, pp. 119-120); «Destes padres apostólicos devem vir quantos puderem, que não ocupam lugar e aproveitam muito. Frades, servem em suas casas e, fora, não tanto; e são maus de contentar, que a despesa mui bem se emprega neles; lá vão, nestas naus, dez ou onze franciscanos, não vindo nenhum; e, estes, mancebos, com licenças, e não ficam, fazendo muita míngua» (COSME ANES ao Rei 1548, ib., p. 445). 24 Cf. MHSI-EX I, Introd. Gener., pp. 15-18; S. F. JAVIER, Cartas y escritos, BAC, Madrid 1979: Introd. Gener., pp. 30-34; MHSI-Mon. Ind. I, Introd. Gener., pp. 53-55. Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 200 truções que lhes dava), sabê-los ouvir (montando uma boa rede de inter-comunicação entre eles e consigo) e apoiando as boas experiências que iam fazendo (em línguas, costumes, inserção social, sistemas de ensino, etc.). Desse trabalho em equipe, a partir das bases e não propriamente do trabalho individual de Xavier, foi nascendo um método de inovação missionária que pouco a pouco se iria esclarecendo – o método da adaptação missionária. Podemos ver já nesse método os começos do diálogo inter-religioso, inter-cultural e inter-social consumado nos documentos mais recentes da Igreja para as Missões25. Começos apenas, é claro, pois naqueles tempos ainda não se falava destes diálogos com tanta clareza como agora! Vejamos, portanto, as primeiras aportações desta múltipla equipe missionária de Xavier: 1º para o diálogo inter-religioso: fé-religiões; 2º para o diálogo inter-social: fé-justiça; 3º para o diálogo inter-cultural: fé-cultura. 1º Aportações ao diálogo inter-religioso: fé-religiões Comecemos por aqui, porque foi a partir deste que se foi sentindo a necessidade de abrir caminho aos outros. Até para os tratados políticos inter-sociais, anteriores à chegada de Xavier, foi o inter-religioso que fez sentir a sua necessidade. VATIC. II, Nostra Aetate; JOÃO PAULO II, Redemptoris missio; Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso / Congregação para a Evangelização dos Povos, Diálogo e anúncio (1991). 25 Xavier ao encontro do novo mundo 201 São conhecidos na nossa história os choques inter-religiosos do Cristianismo na convivência com as outras religiões da Índia, ainda muito vivos à chegada de Xavier, quer em Goa, território nacional, quer na Pescaria e noutros territórios estrangeiros. Em Goa, ia-se impondo o princípio europeu e universal em voga cuius regio eius religio – «a cada região sua religião» –, porque era território nacional; na Pescaria, território estrangeiro, já não se podia enveredar por esse caminho de não tolerar os templos, ídolos e culto público das religiões locais. Xavier não viu logo essa diferença e, por isso, é tão criticado. Mas os missionários que ele deixou no terreno foram descobrindo pouco a pouco que era preciso conhecer mais a fundo as religiões locais, dialogar com elas e, para isso, aprender a língua e linguagem em que entender-se directamente. Foi o que levou a aprender a língua, logo de princípio, o P. António Criminali26, cujo martírio não lhe deu tempo para ir mais longe e, sobretudo, o P. Henrique Henriques27, o primeiro a dominar bem a língua tamil, a fazer a primeira gramática, a montar escola de línguas da região e a dialogar a fundo com as religiões locais. Mérito de Xavier foi ter apreciado o seu trabalho e ter-lhe dado todo o apoio28. Graças ao domínio da língua conseguiu corrigir muitos erros na transmissão da doutrina católica através de intérpretes e de catecismos mal traduzidos e também compreender mais a fundo as outras religiões por conversa directa com pessoas Cf. MHSI-Mon.Ind. I (1540-1549), doc. 45, n. 3. Cf. MHSI-Mon.Ind. I (1540-1549), doc. 45, nn. 13-16; doc. 85, n. 8-13. Escreve ele em 31. Out. 1548: «Naquele tempo abandonou-me o topaz (intérprete)… Determinei então aprender a língua e assim, dia e noite, não fazia outra coisa» (doc. 45, n. 13). 28 Cf. MHSI-Mon.Ind. I (1540-1549), doc. 45, n. 14-15; XAVIERdoc 70, n. 12. 26 27 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 202 competentes29. Esta desconfiança de intérpretes vai servir de lição no Japão. Aí Xavier, experimentando por si as más traduções de conceitos cristãos, já funda escola de língua logo desde o princípio. 2º Aportações ao diálogo inter-social: fé-justiça Com o diálogo inter-religioso está muito ligado o diálogo inter-social fé-justiça. Viram-no logo os primeiros navegadores ao tentar obter bases navais em território estrangeiro: Cochim, Cananor, Chale, Cranganor, Coulão (cf. Silva Rego). Já o próprio Vasco da Gama tem a primeira surpresa ao querer comprar carne de vaca para os seus marinheiros. Logo que soube que era animal sagrado, teve cuidado de ver que terreno pisava30. Mas foi sobretudo ao formarem-se pequenas comunidades cristãs de portugueses e nativos à volta das fortalezas e outras instituições das bases navais que viram a necessidade de estabelecer tratados de convivência social entre cristãos e hindus. O Cf. MHSI-Mon.Ind. I (1540-1549), doc. 45, n. 16.19-21; doc. 85, n. 14; Mon.Ind II (1550-1553), doc. 40, n. 6; doc. 64, n. 6. «Henrique Henriques foi o primeiro jesuíta a compreender dalgum modo as teorias do hinduísmo, acolhendo simpaticamente em casa os yogis ou ascetas hindus» (WICKI, Mon.Ind. I, Introd., p. 46; cf. doc. 85, n. 11 e 14). Esforço semelhante começou-o a fazer o próprio Xavier no Japão e, depois, outros missionários com experiência da Índia: Baltasar Gago, Fróis, Rodrigues Tsuzu, etc. Sobre as primeiras tentativas de traduzir a doutrina cristã em linguagem religiosa de outras línguas orientais (tamulica, malaia, japonesa) cf. MHSI-EX II, Apêndices VII-IX, pp. 581-599. 30 Cf. SILVA REGO, História… I, p. 113. 29 Xavier ao encontro do novo mundo 203 sistema social de castas punha muitos problemas à igualdade de trato cristão. Como se deviam portar os cristãos em território estrangeiro, no trato e direitos das diversas castas? E, vice-versa, estas, em território da base naval, como portar-se no trato e direitos dos cristãos? E nos conflitos de direitos, a quem competia fazer justiça? Estes e outros problemas deram origem a vários tratados e «concordatas» exemplares31 que abriram caminho à convivência respeitosa das diversas religiões e à possibilidade de um diálogo social fé-justiça mais aprofundado. Os missionários talvez não conhecessem esses tratados, mas conheciam a prática e costumes por eles criados. Foi isso que facilitou os métodos de adaptação missionária que se foram desenvolvendo depois. Antes da adaptação missionária já tinha havido a adaptação política e social. Num sistema de castas tão enraizado na religião, mal imaginamos a dificuldade da opção preferencial pelos pobres, da ausência da acepção de pessoas nas assembleias litúrgicas de que tanto fala S. Tiago, da reivindicação de direitos humanos e justiça igual para todos, etc. Também aqui, o P. Henrique Henriques conseguiu criar uma convivência inter-social mais pacífica na Pescaria, com a separação de jurisdições no religioso e social dos conflitos locais, aproveitando-se da instituição oficial do «Pai dos cristãos»32 para defender os seus direitos civis e a criação duma Cf. Ibid, I, p. 354; 406-409. Cf. XAVIER-doc 99, n. 20; SCHURHAMMER, Francisco Javier, su vida y su tiempo, vol. II, p. 296; III, pp. 135 e 337. Sobre o cargo de «Pai dos cristãos» ver DALGADO, Glossário Luso-Asiático, Coimbra 1919-21, vol. II, 130-140. Eram uma espécie de Provedores de Justiça para defender os direitos das pessoas contra as autoridades do Estado. 31 32 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 204 espécie de «pré-diáconos permanentes» leigos (com maiores atribuições que catequistas) para presidir às comunidades sem Padres33. A experiência destes pré-diáconos abrirá caminho aos futuros dogicos (dôjuku) no Japão34. 3º Aportações ao diálogo inter-cultural: fé-cultura Se foi o diálogo de convivência inter-religiosa que abriu caminho ao diálogo de convivência inter-social, foi um e outro que fizeram sentir a necessidade dum diálogo mais profundo de convivência inter-cultural fé-cultura. Só quando os missionários começaram a dialogar sem intérpretes com as outras religiões (na Índia e no Japão) e a distinguir a importância das castas na Índia e da jerarquia social no Japão, é que perceberam a necessidade de ir às raízes culturais. Cresceu então o diálogo inter-cultural. Caminho para isso foi não só a elaboração de Gramáticas e a criação de escolas elementares da língua, mas a elaboração de Vocabulários com a colaboração de pessoas das duas línguas em questão. Este processo ir-se-á aperfeiçoando desde o P. Henrique Henriques na Índia até às equipes inter-linguistas promovidas mais tarde no Japão. A importância do conhecimento da Gramática e estrutura duma língua e da riqueza do seu Vocabulário é jus- Cf. MHSI-Doc.Ind. I (1540-1549), doc. 33, n. 3, pp. 579-580 (doc. 85, n. 5); Mon.Ind.II (1550-1553), doc. 40, n. 2; doc. 64, n. 4; doc. 88, n. 1; doc. 93, n. 3; doc. 94, n. 2. 34 Cf. MHSI-Doc.Jap. (1547-1557), Apêndice 3, pp. 750-752. Também nisto, a Índia foi laboratório de experiência missionária para o Japão. 33 Xavier ao encontro do novo mundo 205 tamente realçada pelos historiadores da cultura35. Por exemplo o Vocabulário da Língua Japónica (1603) do jesuíta Rodrigues Tsuzu (o Intérprete), inclui umas 30.000 palavras e dá informações sobre os seus diversos usos em linguagem regional, em linguagem baixa, em sentido religioso, literário e poético36. Este missionário português, assim como o P. Fróis e o Irmão Luís de Almeida (médico), dominavam perfeitamente não só a língua mas a cultura do Japão. Foi com eles que trabalhou o P. Valignano, quando chegou ao Japão, mais de 16 anos depois deles. Fruto do contacto mais directo e profundo com as outras religiões e sociedades foi o valor atribuído à prática das boas maneiras e costumes na convivência civil e dos cerimoniais próprios do trato com os religiosos das outras religiões. Foi este interesse que levou o P. Barzeu e Henrique Henriques na Índia a descobrir a importância das boas relações com os religiosos jogues (Yogis) tão influentes nos crentes hindus e que levou, no Japão, os missionários a prepararem com cristãos japoneses o célebre «Cerimonial» de relações inter-culturais. Este Cerimonial foi organizado pelo P. Valignano, a pedido dos próprios cristãos japoneses mais responsáveis37. Cf. CARNEIRO R. / MATOS T. (Ed.) O século cristão do Japão – Actas do Colóquio Internacional comemorativo dos 450 anos de amizade Portugal-Japão (1543-1993), Lisboa 1994: «A questão da língua na estratégia da evangelização – as missões no Japão» (A. P. LABORINHO); «O dicionário das três línguas» (M. L. C. BUESCU). 36 Ib. BUESCU, p. 444. 37 Ib. RADULET, «O “Cerimonial” do P. Alessandro Valignano – encontro de culturas e missionação no Japão», p. 59. Sumário dos temas tratados, p. 62. Passos para a sua elaboração: 1º as «Consultações» (Bungo 1580-1581) a pedido de vários nobres cristãos; 2º as «Risolutioni» redigidas por Valignano (6. Jan. 1582); 3º os «Advertimentos e avisos acerca dos costumes e catangues do Japão», enviados a Roma para aprovação do 35 206 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Também passou da Índia para o Japão a instituição de clero nativo, à imitação do colégio internacional de S. Paulo para sacerdotes de todas as línguas e do colégio franciscano de Cranganor para vocações de cristãos de S. Tomé, ambos fundados antes da chegada de Xavier. Foi pena que no Japão não tivesse começado mais cedo o seminário de clero nativo. Mas tinha de ser preparado por todo o trabalho inter-cultural anterior. Conclusão Na descoberta missionária do novo Mundo, Xavier teve o mérito de estar atento à sensibilidade religiosa dos diversos povos e culturas de que ia tendo notícias e procurar levar lá a presença da Igreja quanto antes. Na expansão missionária, teve o mérito de acelerar o ritmo de evangelização, dotando em breve tempo de missionários todos os pontos estratégicos até às portas da China. Na inovação missionária, teve o mérito de apoiar as primeiras aportações de outros ao diálogo inter-religioso, inter-social e inter-cultural. Ele, pessoalmente, neste tríplice diálogo, como vimos, não foi pioneiro mas animador de outros. O mesmo se tem de dizer também de Valignano38. P. Geral; 4º as «Segundas Consultações» (Katsusa, Agosto 1590) para atender às observações feitas pelo P. Geral; 5º as «Terceiras Consultações» para a redacção corrigida a reenviar a Roma «Adiciones del sumario de Japon» (Nagasaki, Jan. 1592); 6º as «Regulae Provinciae Japoniae» definitivas. 38 Valignano encarregou Fróis de escrever a História do Japão em 1583, mas não lhe achou interesse em a publicar (cf. O século cristão do Japão. Xavier ao encontro do novo mundo 207 De facto, no diálogo pessoal inter-religioso (fé-religiões), Xavier foi mais controversista à maneira da Contra-reforma, do que ecuménico à maneira moderna39. Neste ponto, pouco o influenciou o seu grande amigo Pedro Fabro que não acreditava nada nos debates teológicos a que assistiu entre teólogos católicos e luteranos. Dizia ele que muito desejava conversar com os luteranos, «não para meter-me a combater com eles in spiritu contradictionis, nem para exasperar a nenhum, ou impedir doutra maneira o fruto que se pretende com os convocados»40. O que pretendia era, como diria mais tarde a Laínez: «cativálos para que nos amem e nos tenham em boa conta dentro dos seus espíritos; isto se faz conversando com eles familiarmente em coisas que nos são comuns, a eles e a nós, evitando qualquer controvérsia»41… Xavier podia aproximar-se desta maneira de agir, pois aconselhava tanto o «fazer-se amar». Mas preferia a con- Actas: H. FELDMANN), «Os seus (de Fróis) interesses de observador são mais empíricos e menos dogmáticos ou ideológicos» (pp. 72-73). Nem também se interessou por publicar-lhe o célebre «Tratado em que se contêm… algumas contradições e diferenças de costumes entre a gente de Europa e esta província de Japão» (1585) (cf. ib. RADULET, p. 57, nota 5). 39 As controvérsias entre Xavier e os monges budistas eram quase como um torneio, para ver quem saía vencedor (cf. FELDMANN, ib., pp. 74-77). 40 MHSI-Fab-Mon. 48-49. Sobre o método e resultados dos debates oficiais entre teólogos católicos e luteranos, cf. A. ALBUQUERQUE, En el corazón de la Reforma, Mensajero, Bilbao 2006, pp. 43-58. 41 MHSI-Fab-Mon. 400. Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 208 trovérsia e pedir para o Japão missionários que fossem bons dialéticos42… No diálogo pessoal inter-social (fé-justiça), também não foi pioneiro na negociação diplomática com as castas na Índia nem no combate à escravatura. Aliás, a escravatura era geral em todas as civilizações do seu tempo e não só na civilização cristã ou colonial: por exemplo, o primeiro japonês convertido ofereceu-lhe como prenda um escravo, o «Joane, meu filho» a quem escreveu mais tarde essa bela carta de libertação e promoção social43. No diálogo pessoal inter-cultural é acusado de certos apoios à destruição de ídolos e templos. Mas reparemos que no próprio Japão a destruição de templos budistas e cristãos também era frequente em guerras civis e perseguições. Mas teve o mérito de descobrir, pouco a pouco, as vantagens que lhe oferecia um tipo de Império predominantemente marítimo (mais comercial e negociador que conquistador, como era o de Portugal no Oriente), e que lhe oferecia também um tipo de Padroado missionário internacional e não colonial, para desenvolver estas experiências de adaptação missionária, que, no interior da Índia, Japão e China, foram as primeiras aportações à moderna missionologia de diálogo inter-religioso, inter-social e inter-cultural. Prova de que descobriu as vantagens deste tipo de Império e de Padroado internacional é que ele foi o primeiro a avisar Espanha que não viesse para o Japão ou China Basta ler as suas cartas sobre o Japão. Às vezes era tão frontal que até os seus companheiros pensavam que andava a provocar o martírio (cf. SCHURHAMMER, ob. cit. IV, p. 201) 43 XAVIER-doc 128. Cf. estrutura social do Japão em MHSI-Doc.Jap (1547-1547), Introd., pp. 24-26. 42 Xavier ao encontro do novo mundo 209 com mentalidade colonial. A Espanha só tinha experiência de padroado em colónias suas; nunca a teve em países estrangeiros com os quais tivesse apenas relações diplomáticas e comerciais. Por isso, quando o Padroado português passou para mãos de Espanha, com a perda da independência em 1580, reacendeu-se o receio que tivera Xavier. Daí que Valignano e os missionários do Padroado português no Japão se opusessem à vinda de missionários do outro Padroado através da colónia espanhola das Filipinas44. Cf. O século cristão do Japão – Actas: J. P. OLIVEIRA E COSTA, «A rivalidade luso-espanhola no Extremo Oriente e a querela missionológica no Japão». O próprio Xavier já temia esta mentalidade colonialista de Espanha em relação ao Japão, quando mandou avisar o Imperador Carlos V que os seus descobridores não viessem para estes lados com intenções de conquistas: «Esta conta vos dou, irmão meu Mestre Simão, para que digais a El-Rei nosso senhor e à Rainha que, por descargo de suas consciências, deviam dar aviso ao Imperador (Carlos V) ou reis de Castela, que não mandasse mais armadas por via da Nova Espanha a descobrir Ilhas Platáreas (Japão), porque tantos quantos forem, todos se hão-de perder. Porque, ainda que no mar não se perdessem, se tomassem as ilhas de Japão, é a gente de Japão tão belicosa que, por muitos navios que viessem da Nova Espanha, a todos os tomariam; e por outra via é tão estéril a terra de Japão de mantimentos que morreriam de fome…» (XAVIER-doc 108, n. 3). O mesmo avisou Valignano em 1582 ao Governador das Filipinas (cf. Ib. nota 10). 44 210 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Bibliografia TSUZZU, João Rodrigues, sj – História da Igreja do Japão (1622). Edição da 1ª parte, preparada por João Amaral Abranches Pinto. A 2ª parte continua inédita. Notícias de Macau, 1954-1955. – Vocabulário da Língoa de Japam. Nagasaqui, Colégio S.J. 1603. – Arte da Língoa de Iapam. Nagasaqui, Colégio S.J., 1604. – Arte Breve da Língoa Iapõa pera os que começam a aprender os primeiros princípios della. Nagasaqui, Colégio S.J. 1620. Edição facsímil preparada por Hino Hiroshi, Tokyo 1993. – Arte del cha. Edição de J. Alvarez-Taladriz, Tokyo 1954. COOPER, Michael, sj – Rodrigues, o Intérprete – Um jesuíta no Japão e na China. Quetzal Editora, Lisboa 1994. FRÓIS, Luís, sj – Luís Fróis, Tratado em que se contêm muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças de costumes entre a gente da Europa e esta província de Japam (…). Apresentação de José Manuel Garcia. Fixação de texto e notas de Raffaella D’Intimo. Comissão Nacional das Comemorações dos Descobrimentos, Lisboa 1993. – História de Japam (1549-1593). Edição de J. Wicki (5 vols.). Lisboa, Biblioteca Nacional, 1976-1984. – Tratado dos embaixadores iapões que forão de Iapão à Roma no anno de 1582. Inédito. SANDE, Duarte de, sj. – Diálogo sobre a missão dos embaixadores japoneses à Cúria Romana (Macau 1590). Tradução e comentário de Américo da Costa Ramalho. Macau 1997. – MHSI-Documenta Indica (18 vols) (sobretudo os 3 primeiros volumes). – MHSI-Documenta Iaponiae (3 vols). – MHSI-Documenta Malucensia (3 vols). Instit. Hist. S.I., Roma 1948 sgs. REGO, A. da Silva – Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente – Índia (12 vols). Agência Geral das Colónias, Lisboa 1947 sgs. Xavier ao encontro do novo mundo 211 SÁ, A. Basílio de – Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente – Insulíndia (5 vols). Agência Geral das Colónias, Lisboa 1954 sgs. REGO, A. da Silva – História das Missões do Padroado Português do Oriente – Índia (I vol.). – O Padroado Português do Oriente – Esboço histórico. Agência Geral das Colónias, Lisboa 1949. Para a História das Missões anterior à chegada de Xavier (1500-1542) FARINHA, A. Lourenço – A expansão da fé no Oriente – Subsídio para a história colonial (3 vols). Agência Geral das Colónias, Lisboa 1943. BESSE, Léon – La Mission du Maduré – Historique de ses pangous. Trichinopoly 1914. WESSELS, C. – Histoire de la Mission d’Amboine 1546-1605 (Molucas). Louvain 1934. BOURDON, Léon – La Compagnie de Jesus et le Japon. La fondation de la mission japonaise par François Xavier (1547-1551) et les premiers résultats de la prédication chrétienne sous le supériorat de Cosme de Torres (1551-1570). Centre Culturel Portugais de la Fondation Calouste Gulbenkian, Lisboa-Paris 1993. BOXER, Charles R. – The Christian Century in Japan (1549-1650). Berkeley (California) 1951. – O império Marítimo Português (1415-1825). Edições 70, Lisboa 1992. COSTA, J. P. Oliveira – Portugal y Oriente – El proyecto indiano del rey Juan. Mapfre, Madrid 1992. – Portugal e o Japão – O século Namban. INCM, Lisboa 1993. CARNEIRO, R. / MATOS, T. (Ed.) – O século cristão do Japão – Actas do Colóquio Internacional (Lisboa 1993). Comissão Nacional para a comemoração dos descobrimentos, Lisboa 1994. AA.VV. – Missionação portuguesa e encontro de culturas – Actas (4 vols). Comissão Nacional para a comemoração dos descobrimentos, Lisboa 1993. 213 A COMPANHIA DE JESUS, HOJE E AMANHÃ Miguel de Almeida, S.J. Introdução Expor um tema como «A Companhia de Jesus, hoje e amanhã» é, por si só, pretensioso. Apresentar dados históricos do passado pode ser muito trabalhoso e interpretá-los pode ser sempre arriscado. Mas, pelo menos, há elementos concretos nos quais basear a investigação. Pelo contrário, falar do presente é um enorme risco, pois os dados que possuímos, para além de serem necessariamente escassos, estão todos em aberto. E do futuro, que podemos afirmar com alguma certeza? Esta será uma conferência confusa. Mas os tempos em que vivemos são muito confusos e por isso agrada-me proporcionar-vos uma certa confusão. É sempre mais interessante propiciar que se reflicta nas confusões, do que dar respostas que nunca serão definitivas. A «Companhia de Jesus, hoje e amanhã»… O que é? Como foi dito logo na primeira noite, o que constitui a Companhia de Jesus como corpo é a missão. O corpo nasce porque há uma missão. Não é um corpo à procura de uma missão, mas surge primeiro uma missão que, depois, obriga a que o grupo dos primeiros companheiros se constitua como corpo1. De facto, a Companhia adquire a sua mais profunda identidade, não a partir de dentro, mas a partir da missão que lhe é Cf. a conferência de abertura desta SEEI, do P. António Costa e Silva, nesta edição. 1 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 214 confiada pela Igreja. Foi assim com os primeiros companheiros que, depois de frustrada a tentativa de irem à Terra Santa, se apresentaram ao Papa Paulo III, que logo lhes foi conferindo missões concretas, afirmando que Roma poderia ser a sua Jerusalém2. Esta missão, juntamente com a observação do mundo concreto em que vivemos e suas necessidades, o discernimento sobre a vontade de Deus para a Companhia e a busca do que é mais universal, mais urgente e mais necessário (e, preferencialmente, ir a lugares e trabalhos onde mais ninguém vai) têm sido os critérios de actuação da Companhia de Jesus ao longo da sua história. E, dado que a sua actuação/missão – como foi dito – lhe dá a sua identidade mais profunda, estes têm sido também os critérios de avaliação da fidelidade dos Jesuítas ao que são chamados a ser. Daí que a Companhia de Jesus foi ontem, é hoje e será amanhã o que a missão exigir que ela seja. Esta é a melhor maneira ser fiel à sua própria identidade: acolher e levar avante a missão que lhe for confiada. Podemos, deste modo, falar de uma Companhia responsável, no sentido em que responde às necessidades do mundo3. Assim, a Companhia de Jesus envolverá sempre algo de indefinível, na medida em que dependerá do que o mundo for e do que o mundo precisar. Ou não será a verdadeira Ordem fundada por Inácio de Loiola e os primeiros companheiros. Afirma o Concílio Vaticano II que, em ordem a servir a humanidade, é absolutamente «necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, Cf. John W. O’Malley, Os Primeiros Jesuítas. Trad. Domingos Armando Donida, S. Leopoldo, ed. Unisinos & EDUSC, 2004, p. 62. 3 Cf. conferência do P. Hermínio Rico nesta edição. 2 A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 215 e o seu carácter tantas vezes dramático» (Gaudium et Spes, 4). Assim, para abordar a temática que me foi proposta de forma minimamente coerente, tentarei, antes de mais, caracterizar o mundo em que vivemos. Conhecendo as pessoas – principalmente as gerações mais novas, que nos possibilitarão adquirir mais dados para um futuro mais ou menos próximo –, o que pensam, o que sentem, a perspectiva de vida que têm e a mundividência actual, poderemos ao menos tocar a raia do que será a Companhia de Jesus. Assim, iremos de fora (mundo) para dentro (Companhia), do agir (que é muito diferente do simples fazer) ao ser, dado que o nosso modo de proceder é o melhor modo de conhecer quem somos. Um mundo entre o hoje e o amanhã A composição vendo o lugar Primeiro ponto é ver as pessoas, umas e outras. E, primeiro, as da face da terra, em tanta diversidade, assim em trajes como em gestos: uns brancos e outros negros, uns em paz e outros em guerra, uns chorando e outros rindo, uns sãos e outros enfermos, uns nascendo e outros morrendo, etc. [EE 106]. A contemplação da Encarnação que Santo Inácio nos propõe nos Exercícios Espirituais [EE 101-109] é o pano de fundo – e o desafio – desta reflexão. Um desafio a vermos este mundo como Deus o vê e a encarnar nele como o Verbo encarna. À maneira de Deus, ver as pessoas, ouvir o que dizem, observar o que fazem. E reflectir sobre tudo isto para tirar proveito espiritual. Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 216 Um mundo entre a Modernidade e a Pós-Modernidade Seria muito ingénuo da minha parte ter qualquer pretensão de definir ou sequer descrever globalmente a complexidade do mundo em que vivemos. Pretendo aqui, apenas, oferecer algumas luzes sobre o que me parece ser a realidade concreta – e o modo como ela é vivida e experienciada – das gentes hodiernas. Fala-se hoje, a cada passo, de Pós-Modernidade. Mas o que significa, afinal, este palavrão? Muito se discute e muita tinta corre por infindáveis quantidades de livros espalhados por qualquer livrariazeca, opinando e disparando em todas as direcções. Na realidade, parece que o único acordo a que os autores têm chegado… é que não é possível haver acordo sobre o que é a Pós-Modernidade. Paradoxalmente, este facto diz já muito do que é a Pós-Modernidade. Característica fundamental da mente pós-moderna é o evitar (ignorar?) toda a definição acabada acerca do que quer que seja. Vivemos hoje uma época da longa transição entre a Modernidade e a Pós-Modernidade. Ao jeito de uma pincelada de superfície, podemos atestar que a Modernidade corresponde a um longo processo na história humana caracterizado pelo antropocentrismo. Este antropocentrismo superava o teocentrismo próprio da Idade Média e o cosmocentrismo característico da Antiguidade. «A proposição cartesiana “penso, logo existo” explicitou que o pensar moderno, centrado no ser humano livre… é condição da existência humana»4. Paulo Sérgio Lopes Gonçalves, Por uma nova razão teológica. A teologia na Pós-Modernidade. S. Leopoldo, ed. Unisinos, 2005, p. 6. 4 A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 217 Saindo da Modernidade… A grande característica que dá o tom à Modernidade é este antropocentrismo em que o ser humano passa a estar no centro de toda a realidade. Ele é a medida de todas as coisas. Deus deixa de ser o recurso normal para explicar o inexplicável. A religião, que oferecia uma visão global da realidade, bem como a definição dos valores e dos comportamentos correctos a nível individual e social, dá lugar a uma concepção secular da vida, muito mais plural e diversificada. A razão humana começa a acreditar em si mesma e na sua capacidade de explicar a complexidade da vida. O ser humano será feliz por si próprio. Embora a religião faça parte da vida e tenha o seu lugar específico, o “penso, logo existo” de Descartes é esse grito emblemático da racionalidade e da razão humana acima de tudo. Inicia-se, então, a secularização. É bem conhecida a resposta de Laplace a Napoleão I quando este, admirando o sistema de mecânica celeste do grande matemático e físico francês, lhe pareceu assaz estranho que numa obra tão completa não se encontrasse um único lugar específico para Deus em todo o sistema do universo. A tal admirada estranheza, Laplace terá respondido: «Senhor, não tenho qualquer necessidade de uma tal hipótese [a existência de Deus]». O universo passara a ser explicável sem se recorrer ao Deus misterioso de antigamente. Este processo de secularização vai abrangendo as diferentes esferas da vida humana que começam a gozar da sua própria autonomia. A arte, a ciência, a política vão-se emancipando e deixam de estar sob a alçada da autoridade religiosa. A arte começa a deixar de ser exclusivamente uma arte sacra para ser a arte da gente comum. A política ganha a sua autonomia e Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 218 começam a nascer os estados modernos como nós os conhecemos hoje. Já não é o Papa que detém a autoridade última sobre as nações, autoridade que se vai transferindo, de facto, para os chefes de estado. Então, a secularização é este processo que começa com o Humanismo Renascimental onde, por vezes exageradamente, a pessoa humana vai realmente tomando o lugar central, anteriormente reservado a Deus5. Este boom da «descoberta» da razão humana é ilusoriamente exacerbado pelo Iluminismo do século XVIII, que abre as portas ao Positivismo do século XIX, que vem a desembocar, desafortunadamente, nas duas Grandes Guerras Mundiais do século XX. O ser humano todo-poderoso na sua razão era, afinal, capaz de destruir o mundo e os seus semelhantes. A razão, que prometera a tão esperada felicidade do género humano, revelara-se enfim perigosa e objecto de grande desilusão. Os grandes projectos racionais, as grandes instituições e a organização matemática do universo vieram a tornar-se matéria de perene desconfiança. Apesar desta enorme desconfiança, não podemos deixar de observar em nós, já inseridos na Idade Pós-Moderna, algumas das tendências próprias da Modernidade que teimam em resistir na nossa mentalidade. De facto, das muitas características da Modernidade que persistem hoje muito sublinhadas distingo duas ou três existentes em nós, seja por estarem presentes pela positiva, seja por reacção, dependendo da geração a que pertencemos e do ambiente em que vivemos. Apesar de tantas vezes mal entendida, no fundo a secularização é a ponte que permite à Igreja dialogar com o mundo, dialogar com a cultura, dialogar com a arte, dialogar com a política. Secularização, bem entendida, é o que o Concílio Vaticano II vem posteriormente afirmar, que as realidades temporais gozam da sua própria autonomia (cf. Gaudium et Spes, 36). 5 A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 219 O primado da razão científica sobre qualquer outra área do saber é uma destas características. Na prática, defendemos uma omnipotência da razão experimental e da razão instrumental. Honestamente, para nós a verdade não é a verdade objectiva? E o que é a verdade objectiva? É aquela que é mensurável, empiricamente comprovável e cientificamente provada. A cada esquina das nossas conversas é habitual ouvir-se diálogos do tipo: «Como é que sabes que isso é assim? Está cientificamente provado! Ah bom! Se é cientificamente provado, acredito». O que não é cientificamente provado… até pode existir, mas há que ser remetido ao foro privado ou mesmo à fantasia de cada um. A existência de Deus e a possibilidade de relação com Ele? Se faz bem, se ajuda a ser mais feliz… óptimo. Mas não tem o peso da Verdade como o têm as verdades objectivas, cientificamente provadas. Outra característica é a ideologia do progresso baseado na tecnologia. Basta observar a publicidade. O que nos é oferecido, ou mesmo garantido, não é meramente a segurança de um bom carro ou o conforto de uma moderna cozinha. Diante de um eficaz anúncio publicitário, nós temos a certeza absoluta de que, se adquirirmos o dito carro ou montarmos a referida cozinha, estamos realmente mais perto da felicidade. Se comprarmos o telemóvel «do último grito» somos mais felizes! Somos verdadeiramente mais felizes! E se não o possuirmos, somos mais infelizes! A tecnologia parece, de facto, ter a chave da felicidade. E todos nós acabamos por ser influenciados – cada um na área dos seus próprios interesses – por esta ilusão: a ilusão de que a tecnologia me dá a felicidade. Outra tendência fruto da grande descoberta da Modernidade é o individualismo. A grande descoberta da Modernidade foi a do sujeito individual, do indivíduo. O antropocentrismo 220 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã acima mencionado foi a grande viragem de perspectiva e de leitura sobre o lugar do ser humano no universo. Esta viragem proporcionou que as pessoas se tornassem de facto mais livres, mais autónomas. Hoje, à partida, a pessoa humana pode escolher muito mais facilmente o estilo de vida e o conjunto de valores ao qual aderir. Mas, incrivelmente, esta valorização do indivíduo levou a um individualismo tal que as pessoas se sentem anónimas no meio de uma multidão. Nunca se falou tanto de solidão como se fala hoje. As pessoas vivem no meio de grandes multidões, rodeadas de «amigos» em grandes palcos, mas vivem sozinhas e sofrem o drama da solidão. Afinal, a descoberta – em si boa – do sujeito, a valorização da pessoa individual levou a um exagero exacerbado do individualismo que fecha a pessoa em si mesma e a torna mais infeliz! …Entrando na Pós-Modernidade Toda esta situação conduz-nos a uma tentativa de resposta. A Pós-Modernidade é essa tentativa de responder à Modernidade. Já nos questionámos atrás: o que é realmente a Pós-Modernidade? E já vimos que definir é, por si só, uma atitude pré-Pós-Modernidade. Dar definições concretas da realidade faz parte do paradigma da Modernidade. Na (nossa) era pós-moderna, não é a definição concreta que importa, mas o contexto. Na realidade, o que hoje é verdade ou é bem, amanhã poderá já não o ser tanto, porque o contexto mudou. Competindo ao contexto definir o que é a verdade e qual o bem agir, e sabendo que os contextos se alteram no espaço e no tempo, está-se a ver que o que é verdade para mim aqui e agora não o é necessariamente para ti (dado o teu contexto ser diferente do meu), nem o será necessariamente para mim amanhã ou noutro lugar. A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 221 Naturalmente que uma mentalidade assim, levará a um fosso maior entre gerações. Mais ainda, a dificuldade de comunicação e entendimento já não se verifica só de pais para filhos, mas inclusivamente dos irmãos mais velhos para os irmãos mais novos. Aqueles já têm dificuldade em entender estes. «Que mal é que tem, mãe?» O mundo em que vivemos é este que, a todo o momento, procura pontes de entendimento mas que sente cada vez mais que os alicerces dessas pontes se movem, dando a entender que tais pontes vão ruir. Os mais velhos querem saber onde assentam os pilares e quais são concretamente os valores que nos guiam, ao passo que os mais novos parecem estar confortáveis numa certa indefinição, vivendo cada momento com intensidade. Contra o império da razão de outrora, o sentimento vai assumindo e imperando sobre o campo das decisões. Já não é tanto o pesar de cada pró e cada contra pela razão que me dá a certeza da decisão a tomar. Em momentos de indecisão, o clic do coração tem a última palavra. Que mal é que tem? É uma pergunta que ouvimos a cada esquina, principalmente dos filhos para os pais: «Que mal é que tem, Mãe?» E a mãe – para quem o mal e o bem se desenham bastante óbvios – continua a falar em termos de certo ou errado. Ora, esta é uma linguagem completamente ultrapassada. Hoje o importante não é propriamente o certo ou o errado. Há bom e mau, há agradável e desagradável, há bonito e feio. A experiência que hoje as pessoas mais novas vivem é uma experiência vivida numa chave de interpretação muito mais estética do que ética. É verdade que é uma estética muito particular… Mas o realmente valorativo é o que me faz sentir 222 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã hoje bem. Com respeito, sim. Mas se me sinto bem, se me dá paz, não pode haver mal. Qual mal é que tem? Não faz mal nenhum! Assistimos, então, à passagem de uma moral objectiva e clara, que ditava regras comportamentais para todas as circunstâncias e pessoas, a uma ética baseada em elementos estéticos. O que realmente conta é o sentimento de bem-estar e de beleza que os acontecimentos e as acções produzem. Tenta-se que o quotidiano seja, acima de tudo, saboreado, desfrutado. Desde o mais simples, como a roupa (cuidadosamente amarrotada ou rasgada), o carro, o tempo livre, a música, o entretenimento em geral… até ao mais profundo das relações humanas mais íntimas ou à relação com Deus. Tenta-se que tudo tenha o selo da beleza, da aventura, da emoção, da sensação agradável. Após algum evento a pergunta chave é incontornavelmente: «Gostaste?». Este é o grande critério de avaliação para tudo. Até se pode formular a questão em termos aparentemente éticos: «Correu bem?»; «Foi bom?»… Mas por detrás deste bem ou bom não está propriamente a questão ética do crescimento como pessoa, do dar frutos ou não… Está sempre o conceito de gostar ou não. Então, contra um conjunto de regras fixas e frias, abstractas e puramente objectivas (i.e., centradas no objecto), reage-se com o calor da emoção, com o pesar do contexto concreto em que se vive e com o valor da experiência pessoal e subjectiva (i. e., centrada no sujeito) aos quais a regra se submete. Apesar de encerrar muitos perigos, esta perspectiva de vida traz consigo inúmeras características positivas que só têm que ser bem aproveitadas e bem conduzidas por todos quantos se preocupam com a formação das novas gerações. Mais ainda, esta mentalidade questiona-nos nos nossos pressupostos que tantas vezes se tornaram preconceitos. Obriga-nos a rever e A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 223 repensar as nossas certezas absolutas. Força-nos a buscar novas respostas para questões que são eternas. Em termos de vida de Igreja, esta alteração de perspectivas torna-se evidente. Outrora era tudo muito claro: o que é pecado é pecado. Ponto final. Roma locuta causa finita. Se faltas à missa ao domingo cometes pecado grave e não deves comungar; se tens relações com a tua namorada, cometes um pecado gravíssimo e deves confessar-te, arrependido, imediatamente. Se não aceitas as regras do jogo, estás fora. Não percebes o que é a Igreja e considera-te em perigo de condenação eterna. Esta atitude provocou que se fizesse de Deus um conjunto de regras. Se cumpres estás bem com Deus, se não cumpres estás mal. Foi-se relegando a relação pessoal e íntima com Deus para um plano menor (o tal plano do subjectivo), acentuando a necessidade do cumprimento das leis. As leis deixaram de ser as «muletas» para o Caminho, para irem assumindo o papel de essencial. Naturalmente, Deus e o cumprimento das regras foram-se fundindo. O Cristianismo foi-se tornando, assim, para muitos, um infantil e oco moralismo. Ora, Deus é muito maior do que a minha consciência e o cumprir da lei. Para tanto, basta ler a Carta de S. Paulo aos Romanos. Deus é Alguém que me convida a uma relação pessoal – e comunitária, obviamente. O que as gerações actuais procuram é esta relação total com Deus. Uma relação que implique a pessoa toda e não só a sua mente. Por isso questionam, trazem a própria vida, tal como é vivida, para a arena da esfera espiritual. A nível moral, o argumento de autoridade deixou de ter valor para as novas gerações. Argumentar o ter que ir à missa ao domingo ou o não poder ter relações pré-matrimoniais com expressões como «é mal porque a Igreja/o Papa diz que é mal» ou «é pecado porque está escrito e sempre foi mal» hoje não fun- Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 224 ciona. As pessoas precisam de entender o porquê da escolha de determinados valores, estes têm que fazer sentido para as suas vidas. A simples pergunta «qual é o mal?» posta por um filho a um pai obriga-nos a irmos além da simples intuição de que há mal, ou do que nos foi dito e ensinado na catequese. Para sabermos responder a esta pergunta temos, também nós, que nos perguntar: «qual é o mal?». A mero título de exemplo, sabemos responder aos nossos filhos porque é que – se é que – é mal faltar à missa ao domingo ou ter relações pré-matrimoniais? Se em nós subsiste unicamente o referido argumento de autoridade (porque a Igreja assim o ensina), então provavelmente isto quer dizer que ainda não reflectimos o suficiente sobre o bem e o mal e a questão pode ser um convite a desinstalarmo-nos6. Se optarmos por nos mantermos onde estávamos, o resultado está à vista. Falamos uma linguagem ininteligível para o mundo, temos menos pontes de comunicação e afastamo-nos progressivamente. Se a Igreja continua a falar deste modo – dizem os mais novos – nós não a percebemos, não nos traz nada de relevante para a nossa vida, é cada vez mais desadequada à nossa realidade, não precisamos dela. Vamos bater a outras portas. E temos a proliferação de uma pseudo-espiritualidade fácil, que repleta as estantes de qualquer livrariazita barata, a colmatar as lacunas de comunicação da Igreja que não conCom isto, não quero menosprezar minimamente a autoridade do Magistério da Igreja em matéria de moral ou qualquer outra. Apenas afirmo que as questões postas pelas gerações mais novas, às vezes superficialmente contestatárias, acabam por ser um apelo a também nós irmos mais longe, questionando e procurando perceber não só o que a Igreja diz, mas o porquê dos seus ensinamentos. Não será isto «estar sempre pronto a dar a razão da nossa esperança com suavidade e respeito» (1 Pd 3, 15)? 6 A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 225 segue chegar às pessoas do nosso tempo. A atitude de a Igreja querer chegar às pessoas não é, obviamente, uma operação de marketing que visa um angariar de clientes para a sua empresa. Trata-se de desejar profundamente dar de graça o que de graça recebemos (cf. Mt 10, 8). Se sabemos que Cristo é a resposta aos anseios mais profundos da pessoa humana, não podemos ficar quietos à espera que venham ter connosco. Somos obrigados a ir ao encontro das pessoas, tal como Jesus que percorria todas as cidades e aldeias ensinando nas sinagogas e pregando o Evangelho do Reino (cf. Mt 9, 35). Elementos positivos da mentalidade Pós-Moderna Como afirmado acima, é inegável que este modo de ver a vida aporta muitos elementos positivos que seria ingénuo e irresponsável menosprezar. Ao jeito de resumo deixo, em tópicos, estes elementos que fui referindo: i) ii) recuperação do belo e do simbólico da vida; recusa de que o ser humano é, acima de tudo, um ser produtivo. O trabalho é essencial, mas a vida é para ser vivida, saboreada, fruída; iii) desenvolvimento da sensibilidade humana (nomeadamente um despudor cada vez maior na exposição da sensibilidade por parte dos homens); iv) valorização do subjectivo/sujeito: rejeição do anonimato e da obediência a regras abstractas «só porque sim»; v) busca de relações humanas realmente significativas; vi) procura de uma vivência de fé mais autêntica, que faça e dê sentido à vida concreta. 226 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Mas, como em tudo, também nesta atitude de vida existe uma outra face da moeda que apresenta perigos graves e que, também estes, não podem ser ignorados. Perigos da mentalidade Pós-Moderna Os perigos são, geralmente, fruto de uma degeneração, por defeito ou por excesso, das características positivas. Assim, todas as facetas positivas desta nossa era transportam consigo o perigo da sua própria corrupção: – da autonomia do sujeito é fácil cair-se num subjectivismo exacerbado; – da diferenciação das várias dimensões da vida humana (economia, arte, política, ciência, fé…) resvala-se muito facilmente para uma fragmentação da vida; – a consciência de uma maior tolerância para com o diferente está a um passo da indiferença ao próximo; – o tomar em verdadeira conta o contexto em que se vive provoca o espontâneo absolutizar do momento presente, tolhendo a capacidade de compromisso a longo prazo; – a recuperação do ser humano como ser afectivo (e não só ser racional) leva facilmente a tomar as opções de vida tendo por base unicamente o sentimento; – a busca de uma fé mais autêntica que dê sentido à minha vida e experiência pessoal conduz com frequência a um intimismo e a uma privatização da vida espiritual… Todas estas dimensões constituem o dia-a-dia real da nossa existência. A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 227 A fé deixa de ser alguma coisa de transversal à vida, mas passa a ser algo de particular que uso só em determinadas circunstâncias da vida. É uma gaveta, entre muitas outras, que abro e utilizo, fechado no meu quarto, um assunto privado só entre mim e Deus. Em vez de a minha fé se manifestar quando trabalho, quando me divirto, quando me relaciono com os outros, isto é, na esfera pública-social da vida, ela torna-se uma dimensão puramente interior que não tem – nem deve ter – nenhuma manifestação pública, a não ser nos seus foros próprios (igrejas, templos, etc.). Se o acento deixa de estar na lei objectiva para estar no sujeito, o perigo é que o que eu vivo aqui e agora se torne absoluto. Tudo gira em volta do eu e do meu contexto presente. Se só o que é belo e agradável conta, eu faço a gestão da minha vida com base no sentimento pessoal de fruição da vida. Ora, sendo o sentimento enormemente oscilável, o melhor é investir tudo e entregar-me totalmente neste momento, pois não sei o que me reserva o dia de amanhã. A nível religioso, este facto manifesta-se na busca incessante de experiências sempre novas e diferentes, emocionantes ou agradáveis. Um pouco de Budismo, um bocadinho de New Age, um capítulo do Novo Testamento e um cursozinho de meditação Zen. Comprometer-me com uma religião ou instituição para toda a vida? Porquê? Para quê? Da sua vida espiritual, cada um é que sabe o que o ajuda mais. E, quanto a instituições… basta olhar à volta e ver como todas as grandes instituições tradicionais faliram. Esta atitude de fundo provoca uma vontade de tirar todo o proveito do momento presente, das coisas ou das pessoas que, aqui e agora, «possuo» (pragmatismo e consumismo). Mesmo que isso signifique amanhã fazer o contrário ou defender os valores opostos. Daí que a própria linguagem seja cada vez mais Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 228 superficial, rápida e hermética (basta pensar nas «conversas» por sms ou chat), ininteligível para quem não pertence ao grupo7. Esta é a fragmentação a que me referia. A pessoa deixa de ser um todo para ser uma amálgama de dimensões que valem cada uma por si, sem que haja necessariamente coerência entre elas. A Companhia de Jesus: fiel ao passado e ao presente Perante esta realidade, e inserida neste mundo, neste mundo concreto que nos é dado, convivendo com estas definições que nos fogem, como é que a Companhia pode ser o que é? Quem é a Companhia de Jesus, o que é que ela é e como é que pode agir? Como deve a Companhia de Jesus assumir a sua missão? Para ilustrar esta característica da formação de novas linguagens a todo o momento e da sua hermeticidade, basta referir que há uns tempos ouvi uma expressão muito curiosa de uma ofensa de um rapaz a outro. Tinham cerca de 12 anos e apanhei a conversa entre eles num estado já muito avançado, ao ponto de um gritar para o outro: «És um tecla 3!» Ao que, naturalmente, o outro se preparava para responder a esta ofensa verbal em termos de igual ou maior violência, mas agora física. Não fosse eu estar por perto e a coisa teria acabado mal. De facto, jamais eu chegaria ao ponto de ser tão ofensivo! Tecla 3!? Não se chama a ninguém, pois não? O meu palavreado calão é grande, e é muito variado o meu espectro adjectival… mas chamar «tecla 3» a alguém, não, isso não. Certamente, toda a gente sabe do palavrão a que me refiro… Não?! Então proponho que vão ao vosso telemóvel e que vejam as letras que encontram na tecla com o nº 3. Se mesmo assim não for inteligível, então estão completamente out. Se alguém, por acaso, não tem telemóvel, não há mesmo nada a fazer: «Pré-histórico, cota, já deu…». Como é possível viver sem telemóvel? Comece a cavar a sua própria cova porque, verdadeiramente, já não está vivo… pelo menos neste mundo! 7 A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 229 Princípio e Fundamento Penso que a primeira atitude de um jesuíta, para ser jesuíta, é a atitude do Princípio e Fundamento: uma visão positiva do mundo. Deus ama este mundo. O mundo é bom. A nossa época é boa! Os nossos tempos são tão bons ou tão maus como os tempos passados ou os tempos futuros. Ou melhor, são tempos óptimos porque são tempos de Graça. Afirmar que lá para trás é que era bom, fazer a apologia do «antigamente», é absolutamente anticristão. O Espírito Santo que pairava sobre as águas na Criação, que inspirou todos os Profetas, que estava no baptismo de Jesus, que guiou os apóstolos e que tem conduzido a Igreja ao longo dos séculos da história humana é o mesmo Espírito Santo que está aqui. Toda a história é História de Salvação, estamos a evoluir. O mundo não vai de mal a pior, mas de bem a melhor! E não acreditar nisto, é ter a nossa fé tolhida. É, de alguma forma, desconfiar da presença, da ternura e do poder de Deus. Não é por acaso que a Bíblia começa num jardim, e acaba na Nova Jerusalém, que é uma cidade. Trata-se de um processo de evolução. Somos convidados a uma visão optimista da vida. Se não a temos, perdemos um valor essencial da vida: tentar ver o mundo como Deus o vê. Os jesuítas são optimistas por natureza8. Não resisto a contar mais uma pequena história. Quando estava nos EUA, fui, com outros jesuítas, visitar as antigas missões da Califórnia. Quando apreciávamos a «Missão de San José», onde um Franciscano nos proporcionava uma visita guiada, cruzámo-nos com um artista que tinha vindo de Nova Iorque. Era amigo pessoal do nosso guia Franciscano, o qual nos apresentou naturalmente como um grupo de cinco Jesuítas. Para nosso espanto, a reacção do dito artista foi hilariante! «Jesuítas??!! – exclamou ele – Não pode ser! Adoro Jesuítas!!!» Ficámos logo com o ego em cima, claro! 8 230 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Não há propriamente bons nem maus momentos; cada novo momento é uma nova Graça. A Companhia de Jesus, para ser ela própria, ontem como hoje como amanhã, há-de manter o que lhe é próprio: o discernimento aos sinais dos tempos e a disponibilidade para mudar – ou não – segundo a vontade de Deus. A resistência à mudança é fruto do medo do desconhecido. E o medo é próprio de quem não confia nem discerne a presença/vontade de Deus. Fidelidade criativa O que constitui a Companhia de Jesus é, antes de mais, a fidelidade ao carisma Inaciano. Como Jesuítas, tentamos respeitar e seguir as grandes intuições de Santo Inácio. Naturalmente, esta fidelidade não é o repetir hoje o que Santo Inácio fez ou propôs fazer no séc. XVI. Esta não é a atitude da pessoa fiel, mas do papagaio. Para se ser verdadeiramente fiel a Deus e à Igreja como o foi o fundador da Companhia de Jesus, há que conhecer internamente as suas intuições mais profundas para poder agir hoje como ele agiria hoje (e não como ele agiu «Mas porquê essa “adoração” toda pelos Jesuítas?» – perguntou o Franciscano, genuinamente curioso e sem qualquer mágoa ou ponta de inveja. «É pá – justificou o artista Nova Iorquino – o jesuíta é aquele homem a quem nos vamos confessar, convencidíssimos de que estamos atulhados até ao pescoço em pecado mortal, pecado que nos conduziria directamente ao inferno e… saímos da confissão completamente convencidos de que o nosso pecado era, afinal, um acto da Graça de Deus!». É natural que ele gostasse dos Jesuítas… Somos optimistas por natureza. Claro que convém irmo-nos lembrando de que, quando há pecado, há mesmo pecado! E que o pecado é mesmo mau. Mas também não nos esquecermos que, de facto, Deus pode transformar tudo em Graça! A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 231 há quinhentos anos). Deste modo, o apelo de cada jesuíta e da Companhia em geral é o de olhar para o mundo e ver onde e como somos chamados a trabalhar pelo Reino (i.e, discernimento) e ter disponibilidade para mudar, para mudar radicalmente se for preciso. Daqui a feliz expressão «fidelidade criativa», adoptada pelo P. Peter-Hans Kolvenbach (Geral da Companhia de Jesus). O Padre Geral pede-nos para sermos radicais na fidelidade às fontes Inacianas e radicais na atenção ao mundo contemporâneo: fiéis e criativos. Esta fidelidade criativa exprime-se na fidelidade ao carisma Inaciano e às fontes jesuíticas, no revisitar a história de Santo Inácio e ver como Deus o inspirou, no continuar a ser fiéis aos Exercícios Espirituais e ao modo de proceder da Companhia de Jesus… tudo isso juntamente com a criatividade discernida sobre a missão que nos é dada hoje pela Igreja e pelas necessidades do mundo actual. Acreditamos profundamente no diálogo com a cultura actual e na colaboração com os leigos na transformação do mundo. Cremos que o caminho do ecumenismo e do diálogo inter-religioso é um caminho sem retorno. Assumimos que o modo de estar da Companhia de Jesus hoje, e que alicerça toda a sua missão, é o serviço da fé e a promoção da justiça. Mas sabemos que, como Jesuítas, não teremos nada a oferecer à cultura actual, que não poderemos proporcionar um verdadeiro diálogo ecuménico ou inter-religioso, ou que não seremos capazes de proporcionar qualquer critério de justiça evangélica se não formos beber à fonte do Evangelho como o fez Santo Inácio. Santo Inácio, nas Constituições da Companhia de Jesus, apresenta normas gerais mas depois, quanto ao modo de concretizar a missão, é muito aberto, usando expressões como «faça-se segundo o tempo e lugar onde os da Companhia de 232 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã Jesus se encontrarem». Mas, afinal, o que identifica a Companhia de Jesus? Como será a Companhia de Jesus hoje e amanhã (que era o tema desta nossa conversa)? Na prática, como é que viverá a Companhia de Jesus esta fidelidade criativa? A resposta mais correcta é: não sabemos. (Muito pós-moderna esta resposta) Porquê? Porque há um factor de peso que, em grande parte, definirá a acção da Companhia e que não depende directamente dela: a Companhia de Jesus, para ser fiel a si mesma, agirá segundo as necessidades do mundo e do tempo em que viver, porque, como já vimos, o que a define é a missão. Claro que, se isto é verdade, também o é que há critérios e princípios que caracterizam a Companhia e que não podem ser negligenciados. A união com Cristo na oração e meditação do Evangelho, a fidelidade ao carisma Inaciano e o discernimento nos tempos actuais (criatividade) são as características que identificarão sempre a Companhia de Jesus. Além disso, temos algumas intuições e caminhos a percorrer. Porque, de facto, o mundo está-nos a oferecer algumas mensagens se não mesmo pedidos ou gritos de socorro! Se os perigos da nossa era, acima referidos, da fragmentação da vida, do individualismo, da absolutização do momento presente, da sobrevalorização do sujeito, se estes perigos estão bem identificados, então parece ser possível traçar algum percurso ou alguns elementos que certamente (já fazem e) farão parte da vida da Companhia, hoje e amanhã. Algumas pistas para caminhar em direcção ao futuro A Companhia de Jesus, para ser ela própria, tem que continuar a aceitar dialogar com a cultura. Dialogar seriamente com o mundo exige humildade. Primeiro, humildade para reconhe- A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 233 cer que temos dons de Deus para oferecer ao mundo (a humildade é a verdade, dizia Santa Teresa de Ávila). Sim, temos uma tradição e uma história que nos possibilita possuir riquezas de que o mundo necessita urgentemente. Não o reconhecer seria falsa humildade. Depois, humildade para verdadeiramente reconhecer que temos muito a aprender e a receber do mundo. Da atitude de fundo que me parece ser identificativa da Companhia de Jesus hoje e amanhã apresento alguns traços possíveis e prováveis. i) ii) Levar a sério e valorizar o subjectivo, o sujeito individual. A regra objectiva continua a ter todo o valor, mas o «sábado é para o homem» e não vice-versa. A Companhia de Jesus, para ser a Companhia hoje e continuar a sê-lo amanhã, há-de ser fiel à intuição de Santo Inácio e dos Primeiros Companheiros. Para eles era absolutamente essencial a relação pessoal, o diálogo cara-a-cara, o levar cada um a confrontar-se, o ajudar ao discernimento pessoal. Trata-se não só de passar da lei geral ao caso particular, mas mais ainda, de passar do caso à pessoa. Quando ajudamos alguém no discernimento, não estamos a tratar de um caso, mas estamos diante de uma pessoa concreta, com uma história e uma vida pessoal irrepetíveis. Esta valorização do sujeito, levar-nos-á com mais verdade a ter em conta que «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no 234 iii) iv) Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã seu coração» (Gaudium et Spes, 1). Deste modo a Companhia há-de comprometer-se em estar atenta também – e talvez especialmente – àqueles e àquelas que, sentindo-se parte da Igreja, não se sentem em casa na Igreja. Daqui brota a necessidade – e a coragem – de uma nova relação com as instituições. As grandes instituições tiveram o seu papel, mas hoje é clara a sua rejeição, seja pelo descrédito em que caíram, seja principalmente pelo anonimato que provocam. É grande o sentimento de solidão no meio da multidão de uma igreja cheia de gente que não se conhece nem tem o mínimo de relação. E é claro o afastamento a que convida a inflexibilidade própria das grandes instituições que, para funcionarem, não podem ter em conta as circunstâncias individuais. Contra esta frieza, a Companhia irá certamente investir cada vez mais em pequenas comunidades que proporcionem criar laços afectivos. Comunidades onde as pessoas se sentem identificadas, onde conhecem e são conhecidas, onde se sentem acolhidas. Uma Igreja assim combaterá mais facilmente o sentimento de uma identidade frágil e uma falta de auto-estima que assomam tantas pessoas do nosso tempo. Uma Igreja assim será realmente uma Igreja-Mãe. A Companhia do presente e do futuro promoverá modos de celebração nos quais a vida das pessoas tenha realmente lugar. A celebração litúrgica é a celebração da vida. Não pode não existir uma relação entre vida e liturgia; as celebrações não podem ser algo à parte que funcionem como um parêntesis ou um escape à vida. A Companhia de Jesus, hoje e amanhã v) 235 A noção generalizada de que Jesuítas e liturgia é uma combinação que não funciona tem algo de verdade. Mas também é verdade que alguma causa desta combinação supostamente frustrada está no facto de, em geral, não nos identificarmos com uma liturgia que «não diga nada às pessoas». Entre continuar a promover ritualismos ou exprimir-se de forma inadequada e uma liturgia realmente renovada, os Jesuítas vão caminhando às apalpadelas tentando, também nas celebrações, chegar às pessoas. A liturgia é a linguagem do povo ou não é liturgia. Neste campo, há que ir ao encontro da sensibilidade actual e recuperar o cuidado estético dos espaços e das acções litúrgicas. Não ter medo do sentimento, que tem todo o lugar… porque pode ser uma porta de excelência para nos conduzir ao sentido. No mundo actual a Companhia não pode deixar de investir na promoção dos leigos e do seu papel na Igreja. A Congregação Geral (CG) 34 (dec. 13) é clara em afirmar que a Companhia de Jesus é colaboradora dos leigos na missão (e não o contrário). Esta colaboração é, segundo a CG, «ao mesmo tempo um elemento constitutivo do nosso modo de proceder e uma graça que pede renovação pessoal, comunitária e institucional. Convida-nos a servir os leigos no seu ministério, a buscar maneiras de participar com eles na missão e a estar abertos a formas criativas de cooperação futura. O Espírito chama-nos, enquanto homens para e com os outros, a partilhar com os leigos o que cremos, o que somos e o que temos, em atitude de companheirismo criativo, para ajuda das almas e Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã 236 vi) maior glória de Deus» (CG 34, dec. 13, n. 26). Esta colaboração há-de ter inúmeras concretizações, tais como a formação de leigos para darem Exercícios Espirituais, a sua preparação para assumirem a direcção de obras da Companhia ou, mais genericamente, para assumirem a liderança de cada vez mais comunidades sem padre. Finalmente, a Companhia continuará a facilitar a relação pessoal e íntima de cada um com Deus através dos Exercícios Espirituais. Esta é a grande herança que ela tem para oferecer à Igreja e à humanidade. Conclusão Enfim, a Companhia de Jesus, contra todos os profetas da desgraça, continuará a acreditar e aceitar as pessoas como e pelo que são. Acolhe as pessoas porque são pessoas… pelo que são, pelo que sonham e desejam, pelo que esperam. E não pelo que possuem, fazem ou produzem. O jesuíta de amanhã será um homem frágil e pecador, com grande experiência de pecado! Mas que faz a experiência do amor de Deus Misericordioso na sua vida concreta. Pecador perdoado e reconciliado com Deus, o jesuíta será um homem de reconciliação. Será alguém que valoriza cada pessoa como é porque Deus assim o faz com cada um. Mas não esconderá que o amor é exigente e que quem ama também sofre. De cabeção ou de camisa às flores, o jesuíta será um homem de Igreja. Com espírito crítico até à medula, mas com um desejo enorme de se sentir sempre e cada vez mais – e de levar os outros a sentirem-se – Igreja. Por isso, acolhe de braços abertos, A Companhia de Jesus, hoje e amanhã 237 tentando imitar Jesus que de braços abertos morreu na cruz por nós. Por isso também, será eternamente agradecido à Igreja por ser sua Mãe, mas sente a necessidade de pedir perdão, em nome da Igreja que ama, a todos quantos ainda se sentem excluídos da casa do Pai. Será um homem nunca satisfeito com o estabelecido, com o conhecido, com o provado ou o já existente. Está-lhe no sangue buscar sempre o para lá do que se vê. Aceita a vida, as dificuldades, as fronteiras, os medos, tentando sempre que não sejam obstáculos ou pontos de paragem, mas desafios que apontam para o Magis. Pode ser cardeal na Cúria Romana ou trabalhar num circo; pode assumir a postura de um monge hindu na Índia, ou de um executivo em Nova Iorque. Mas terá sempre a sua vida em nome do serviço da fé e da promoção da justiça, rasgando horizontes e fazendo pontes entre as diferentes tradições e culturas. O jesuíta possuirá sempre ao mesmo tempo alguma coisa de louco e de uma enorme normalidade. A loucura é a própria de um apaixonado por Jesus Cristo e que o levará a agir como Santo Inácio de quem se dizia que era louco por Cristo. A normalidade é própria de alguém que será um homem no meio dos homens e mulheres do seu tempo e lugar. Com o optimismo realista e com a esperança que lhe são próprios, penso que a Companhia de Jesus poderá unir-se ao Padre Pedro Arrupe numa das suas incisivas expressões, pouco tempo antes de morrer: Para o hoje: Ámen! Para o amanhã: Aleluia! HOMILIA DA EUCARISTIA DE ENCERRAMENTO Nuno da Silva Gonçalves, S.J. O tom das leituras dos últimos dias do ano litúrgico é muito semelhante ao das leituras dos primeiros dias do novo ano litúrgico. Num caso e noutro, a palavra de Deus fala-nos de expectativa, de espera e de vigilância porque a salvação está próxima. A expectativa ou a espera fazem parte da nossa vida. É verdade que podemos ter sentimentos contrapostos quando pensamos no futuro, com tudo o que implica de desconhecido: confiança ou receio, esperança ou cepticismo, entusiasmo ou indiferença. No entanto, o tempo de espera que iniciamos no 1º Domingo de Advento não é uma espera qualquer; sobretudo não é uma espera do desconhecido; bem pelo contrário, renovamos a nossa atenção, aprofundamos o nosso desejo de encontrarmos Aquele que já conhecemos, que continua actuante e que quer estar cada vez mais actuante na vida de cada um e na vida do mundo. Não fazemos de conta que o Senhor ainda não veio; sabemo-lo já presente mas, ao mesmo tempo, nunca totalmente acolhido, nunca totalmente caminho, verdade e vida de cada um de nós. Esta espera é, por isso, uma espera alicerçada na confiança. E, bem vistas as coisas, a confiança é a única maneira cristã de esperar. Uma confiança activa, que nos leva ao compromisso e à acção. E que, por isso, nada tem a ver com ficar de braços cruzados, no conformismo ou na resignação. Não nos limitamos a esperar passivamente o futuro mas, na medida das nossas poucas forças, aceitamos a missão de o construir com os critérios do Evangelho. 240 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã No Advento, não fazemos de conta que o Senhor ainda não nasceu. Mas podemos treinar-nos e exercitar-nos para o reconhecermos melhor. S. Paulo indica-nos um programa concreto e exigente: «crescer e abundar na caridade uns para com os outros»; «progredir ainda mais». O Advento pode ser o tempo para este mais, para esta caridade em crescimento superabundante. Um tempo, diz-nos o Evangelho, para a vigilância e para a oração; podíamos acrescentar, um tempo para a atenção às situações e às pessoas em que Deus, no silêncio e na pequenez, continua a encarnar. Um tempo propício, podíamos ainda dizer, para a contemplação e para a acção. Com esta Semana de Espiritualidade Inaciana e com a Eucaristia de hoje, encerramos o ano jubilar, tempo em que, de maneira mais intensa, aprendemos com Sto. Inácio, S. Francisco Xavier e o Beato Pedro Fabro. Damos graças a Deus pelo seu legado e pela forma festiva, inspiradora e profunda como os celebrámos. Foi tudo XL; não apenas a impressionante caminhada nocturna pelas ruas de Lisboa (a Noite XL), mas tantas outras iniciativas: After Xav; peregrinações; encontros, conferências; e inúmeras publicações. Ao longo deste «ano XL», recordámos muitas vezes que Inácio, Xavier e Fabro eram amigos no Senhor e que as distâncias não constituíam obstáculo para que se sentissem corresponsáveis pela missão uns dos outros. Nós Jesuítas, sobretudo nos dias de peregrinação a Xavier, aprofundámos o nosso desejo de sermos mais fiéis a este mesmo chamamento. Mas aprofundámos também a responsabilidade e o desejo de partilharmos e vivermos com outros, na Igreja, uma herança que não é só para nós. Esta possibilidade de partilha e de comunhão na missão esteve bem patente ao longo dos últimos quatro dias. É verdade que há, ainda, um longo caminho a percorrer mas a partilha e a comunhão serão tanto Homilia da Eucaristia de encerramento 241 mais reais e visíveis quanto mais todos nos sentirmos servidores da missão de Cristo. É Ele o único protagonista que queremos seguir e servir, Aquele que nos pode fazer «crescer e abundar na caridade uns para com os outros», como amigos no Senhor que todos somos chamados a ser. ÍNDICE Sessão de abertura – A. da Costa Silva, S.J. ...................................... 5 Inácio de Loiola e a Companhia de Jesus: A Companhia de Jesus em tempo de mudança – António Vaz Pinto, S.J. ....................... 11 Esclarecimento prévio....................................................................... 11 1. Inácio de Loiola – O contexto familiar e pessoal........................ a – De Loiola a Jerusalém – de cavaleiro a peregrino .................... b – De Jerusalém a Paris – de peregrino a estudante ..................... c – De Paris a Roma – de estudante a homem da Igreja ................ 11 13 15 20 2 – O contexto histórico................................................................. a – Político-Social ...................................................................... b – Cultural............................................................................... c – Eclesial ................................................................................. 24 24 25 28 3 – O Espírito Santo, Inácio de Loiola, a Companhia e a Igreja ... Continuidade e inovação ............................................................ 34 34 A formação na Companhia de Jesus – Mário Garcia, S.J. ............. 39 1. «Um certo conhecimento de Jesus» ........................................... 2. «Seguirem dalguma forma a Cristo» .......................................... 3. «Seguirem para sempre a Cristo nosso Senhor».......................... 41 44 48 Conclusão........................................................................................ 51 244 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã A incorporação dos leigos na missão da Companhia de Jesus – Teresa Messias ......................................................................... 55 I Parte – Antecedentes históricos Introdução................................................................................... 55 1. Inácio de Loiola e a condição laical ......................................... 2. Manresa e Barcelona ............................................................... 3. Alcalá de Henares e Salamanca: congregando um grupo de leigos . 4. A experiência de Paris ............................................................. A comunidade de Paris: que traços característicos?....................... 1. Atracção por uma personalidade singular que motiva para Deus 2. Experiência humana de camaradagem e partilha................. 3. Uma forte experiência de Deus com traços comuns ............... 4. Um oferecimento apostólico comum: o voto de Montmartre .. 56 57 62 64 66 67 68 69 70 5. Itália: ordenações e a escolha do nome Companhia de Jesus .... 6. O termo companhia e a sua importância no séc. XVI .............. 7. Roma de 1540 e a colaboração com os leigos na missão da Companhia de Jesus ...................................................................... 73 74 79 II Parte – A mudança operada desde o Concílio Vaticano II 8. A Companhia de Jesus sob o efeito do Concílio Vaticano II .... 9. Os Leigos e a Companhia de Jesus: Congregações Gerais 31 a 34 . 9.1. Um modo especial de colaborar com a Companhia de Jesus.. 9.2. Da CG 31 à CG 34: mudanças profundas ......................... 83 86 89 93 10. A colaboração na missão na CG 34 e desde então para cá ..... 96 10.1. O Decreto 13 da CG 34 e as suas consequências ............... 97 10.2. Um novo paradigma: cooperar numa missão comum ......... 99 10.3. A situação particular: a união de leigos à Companhia por um laço mais estreito ............................................................. 104 11. Sucessos, dificuldade e desafios da co-responsabilidade na missão 107 12. Quadro final: Lava-pés e contemplação para alcançar amor.... 111 Índice 245 A Companhia de Jesus e o binómio fé-justiça – Hermínio Rico, S.J. ........................................................................................ 115 1. O Decreto IV da Congregação Geral 32..................................... A fórmula .................................................................................. Serviço presbiteral da fé............................................................... Factor integrativo de todos os apostolados ..................................... Acção sobre as estruturas.............................................................. 116 118 120 122 124 2. Mais que novidade, regresso às fontes......................................... 126 Na Fórmula do Instituto............................................................. 127 3. Antecedentes .............................................................................. 4. Desafios e dificuldades................................................................ 5. Congregação Geral 33 ................................................................ 6. Congregação Geral 34: nova definição da Missão ....................... 7. Conclusão .................................................................................. 129 132 135 136 142 Pedro Fabro: Igreja e Companhia de Jesus entre Reforma e Contra-Reforma – D. Manuel Clemente ............................................. 147 Sentir a Igreja – Vasco Pinto de Magalhães, S.J. ........................... 161 Esquema ......................................................................................... 161 Texto .............................................................................................. 163 Qual é a questão? ...................................................................... O «sentir» inaciano.................................................................... Em Pedro Fabro (e Companheiros)........................................... O sentido de família como paradigma ....................................... Duas histórias ........................................................................... Sentir e assumir a pertença à Igreja no séc. XXI......................... 163 164 165 166 167 168 246 Companhia de Jesus: Ontem, Hoje, Amanhã A Eucaristia como resposta que desafia e faz participar .............. 170 Guardem-se «Regras para sentir a Igreja», em discernimento e missão, segundo o Espírito Santo .............................................. 171 Pedro Fabro e o carisma da Companhia de Jesus – Luís Rocha e Melo, S.J. ....................................................................................... 173 Introdução ...................................................................................... 173 1. Carisma e instituição .................................................................. 2. O carisma da Companhia........................................................... 2.1. Os exercícios espirituais ........................................................ 2.2. Os efeitos que ficam ............................................................. 174 179 181 182 3. O discernimento dos espíritos .................................................... 3.1. A unidade interior............................................................... 3.2. O dom do conselho............................................................... 3.3. Contemplativos na acção...................................................... 183 184 186 189 Xavier ao encontro do novo mundo – Francisco de Sales Baptista, S.J.................................................................................... 191 Introdução ...................................................................................... 191 I – Xavier e a descoberta missionária do novo Mundo .................... 192 II – Xavier e a expansão missionária por esse novo Mundo............. 198 III – Xavier e a inovação missionária nesse novo Mundo ................ 199 1º Aportações ao diálogo inter-religioso: fé-religiões ....................... 200 2º Aportações ao diálogo inter-social: fé-justiça .............................. 202 3º Aportações ao diálogo inter-cultural: fé-cultura.......................... 204 Conclusão........................................................................................ 206 Bibliografia ..................................................................................... 210 Índice 247 A Companhia de Jesus, hoje e amanhã – Miguel de Almeida S. J. 213 Introdução ...................................................................................... 213 Um mundo entre o hoje e o amanhã .............................................. A composição vendo o lugar......................................................... Um mundo entre a Modernidade e a Pós-Modernidade ................ Saindo da Modernidade….......................................................... …Entrando na Pós-Modernidade ............................................... «Que mal é que tem, mãe?»......................................................... Elementos positivos da mentalidade Pós-Moderna......................... Perigos da mentalidade Pós-Moderna .......................................... 215 215 216 217 220 221 225 226 A Companhia de Jesus: fiel ao passado e ao presente....................... 228 Princípio e Fundamento ............................................................. 229 Fidelidade criativa ..................................................................... 230 Algumas pistas para caminhar em direcção ao futuro...................... 232 Conclusão........................................................................................ 236 Homilia da Eucaristia de encerramento – Nuno da Silva Gonçalves S.J. ................................................................................ 239 Índice ............................................................................................. 243