7 Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil

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7 Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
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TRABALHISTA
E PREVIDENCIÁRIA
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1, n. 1, jul. 1989
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Conteúdo Digital: Adriana
Santos
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v. 25, n.Filippini
302, Agosto 2014
Designer: Romulo Diniz
ISSN 2179-1643
1. Direito trabalhista – periódicos – Brasil
CDU: 349.2(81)(05)
340
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Apresentação
Caro Leitor
É com grande prazer que apresentamos o COMPÊNDIO DE ASSUNTOS ESPECIAIS
das Revistas Jurídicas SÍNTESE, que representa a reunião de temas muito relevantes que
foram tratados em nossos periódicos, e que receberam um tratamento editorial diferenciado, conjugando textos doutrinários com íntegras de acórdãos e ementário especializados no tema proposto, como, por exemplo, “Coisa Julgada” em Direito Civil.
Nosso objetivo é viabilizar ao operador do Direito acesso às grandes discussões
travadas sobre os temas propostos nos diferentes ramos do Direito retratados nesta obra,
para que sirvam de instrumentos na consecução da nobre missão que está sobre seus
ombros, que é a de fazer justiça, afinal sem o advogado, não há justiça, como bem pontifica nossa Constituição Federal: Art. 133. O advogado é indispensável à administração
da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos
limites da lei.
Para tanto, a SÍNTESE mantem uma equipe altamente especializada com a missão
de fazer com que nossas Revistas Jurídicas sejam instrumentos que tragam, permanentemente, insumos relevantes para o dia a dia do operador do Direito.
Destacamos alguns assuntos abordados nesta obra:
tões;
• Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil: Coisa Julgada – Algumas Ques-
• Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária: CLT 70 Anos. A Construção de Um
Novo Modelo;
• Revista de Estudos Tributários: Tributação na Importação;
Este produto, como todos os outros do portfólio da SÍNTESE, é desenvolvido com
alto valor agregado editorial, representado por meio de comentários técnicos, remissões
a conteúdos, vinculação de assuntos a trechos de acórdãos importantes, entre outros, a
associados à credibilidade já consolidada em nossas publicações.
Aproveite este interessantíssimo conteúdo e tenha uma ótima leitura!
Sumário
REVISTA SÍNTESE DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
Coisa Julgada – Algumas Questões......................................................................................................
6
1. O Mérito e o Objeto Litigioso do Processo: Reflexos na Coisa Julgada (Fernanda dos Santos Nunes)...........................
7
2. O Valor da Segurança Jurídica da Coisa Julgada em Conflito com Direito Fundamental à Identidade: Critérios e Sugestões para Conformar Valores Fundamentais (Mariana Motta Minghelli)................................................................
16
3. Coisa Julgada: Análise da Declaração de Inconstitucionalidade Como Óbice à Execução da Sentença Transitada em
Julgado (Fabio Alessandro Fressato Lessnau)..............................................................................................................
32
4. Acórdão na Íntegra (STJ).............................................................................................................................................
55
5. Ementário...................................................................................................................................................................
66
REVISTA SÍNTESE TRABALHISTA E PREVIDENCIÁRIA
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo......................................................................................................
71
1. CLT 70 Anos. Legislação Sindical 110 (José Carlos Arouca)...........................................................................................
72
2. A Consolidação das Leis do Trabalho e seus 70 anos: um Diploma Democrático e Eficaz, Fruto e um Clamor e Necessidade Social, Aprimorado pela Constituição da República de 1988 (Cláudio Jannotti da Rocha)................................
87
3. A Criação da CLT..........................................................................................................................................................
101
4. CLT, Setenta Anos, Traça Caminhos e Propõe Desafios .................................................................................................
105
5. Congresso Nacional faz Homenagem aos 70 Anos da CLT............................................................................................
108
REVISTA DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS
Tributação na Importação...........................................................................................................................................
110
1. “Importação por Encomenda” e “Importação por Conta e Ordem” – Os Efeitos Fiscais de Cada Qual Segundo o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (Adolpho Bergamini)........................................................................................
111
2. Importação por Conta e Ordem de Terceiros: Teoria e Prática (Eduardo Navarro Bezerra).............................................
125
3. Acórdão na Íntegra (STF).............................................................................................................................................
133
4. Ementário...................................................................................................................................................................
139
REVISTA SÍNTESE DIREITO DE FAMÍLIA
Penhorabilidade do Bem de Família..........................................................................................................................
142
1. Penhorabilidade do Bem de Família Suntuoso: Garantia do Direito à Moradia x Satisfação do Direito do Credor
(Adriane Medianeira Toaldo e Bibiana Lorenzoni Sauthier).........................................................................................
143
2. Penhorabilidade do Bem de Família “Luxuoso” na Perspectiva Civil-Constitucional (Guilherme Calmon Nogueira da
Gama e Thaís Boia Marçal)..........................................................................................................................................
159
3. Acórdão na Íntegra (STJ).............................................................................................................................................
172
4. Ementário...................................................................................................................................................................
185
3
Sumário
REVISTA SÍNTESE DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário..............................................................................................................
190
1. Maranhão e Seus Presídios (o Brasil em Miniatura) (Luiz Flávio Gomes).....................................................................
191
2. A Nudez do Rei: o Estado Punitivista e a Necessidade Abolicionista (Vera Maria Guilherme).......................................
193
3. A Indelegabilidade da Execução da Pena e a Inconstitucionalidade da Terceirização Prisional no Brasil (Jacinto Teles
Coutinho)....................................................................................................................................................................
200
4. Os Níveis de Dor Intencional e o Holocausto Nosso de Cada Dia: Renúncia aos Discursos de Justificação da Pena e ao
Mito da Ressocialização (Salah H. Khaled Jr)...............................................................................................................
214
5. Política Não Criminal e Processo Penal: a Intersecção a Partir das Falsas Memórias da Testemunha e Seu Possível
Impacto Carcerário (Gustavo Noronha de Ávila)..........................................................................................................
235
6. A Criminologia Atual em Comparação com a Anterior (Humberto Sant’Ana)...............................................................
251
REVISTA SÍNTESE DIREITO IMOBILIÁRIO
Direito de Preferência...................................................................................................................................................
255
1. O Direito de Preferência na Alienação de Quinhão em Imóvel Integrante de Condomínio Necessário (Robson de
Oliveira)......................................................................................................................................................................
256
2. Direito de Preferência na Lei nº 8.245/1991 (Luana Cristina Coutinho Orosco Plaça)...................................................
260
3. O Direito de Preferência e Suas Peculiaridades (Marijane Fernanda Cassarotte)..........................................................
269
4. O Estatuto da Terra Não Garante o Direito de Preferência na Compra do Imóvel Objeto da Parceria Agrícola (Cleiton
Soares de Souza).........................................................................................................................................................
299
5. Direito de Preferência nos Contratos de Locação (Raul Monegaglia)...........................................................................
302
6. Acórdão na Íntegra (STJ).............................................................................................................................................
303
7. Ementário...................................................................................................................................................................
316
REVISTA SÍNTESE DIREITO EMPRESARIAL
Direito Societário...........................................................................................................................................................
321
1. Destinação do Lucro Líquido nas Sociedades Anônimas Brasileiras (Bruno Caraciolo Ferreira Albuquerque)...............
322
2. Modelos de Conselho de Administração na Governança Corporativa (André Fernandes Estevez).................................
346
3. O Dever de Lealdade na Administração da Sociedade Anônima e as Teorias Acerca do Interesse Social (Nikolai Sosa
Rebelo).......................................................................................................................................................................
361
4. Hora e Vez da Sociedade em Comandita Simples (Douglas Genelhu de Abreu Guilherme)..........................................
378
5. Acórdão na Íntegra (STJ).............................................................................................................................................
390
4
Sumário
REVISTA SÍNTESE DIREITO ADMINISTRATIVO
Contrato Administrativo – Extinção e Inexecução..................................................................................................
398
1. Dever de Indenização pela Prestação de Serviços à Administração Pública após o Advento do Termo Contratual e
pela Recusa, Não Devolução, Retenção ou Não Insistência pela Retirada de Bens nos Contratos de Locação de Bens
Móveis (André Saddy).................................................................................................................................................
399
2. Contratos na Administração Pública: Uma Nova Leitura sobre o Fim do Contrato em Face dos Princípios da Juridicidade e da Eficiência (Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas e Carlos Athayde Valadares Viegas)..............................
417
3. Aspectos sobre a Disciplina, Inexecução e Extinção dos Contratos na Administração Pública (Rodrigo Gerent Mattos)
435
4. Extinção e Inexecução de Contratos Administrativos (Elói Martins Senhoras e Ariane Raquel Almeida de Souza Cruz)
460
5. Acórdão na Íntegra (STJ).............................................................................................................................................
465
6. Ementário...................................................................................................................................................................
470
REVISTA SÍNTESE DIREITO PREVIDENCIÁRIO
A Relação Homoafetiva e o Benefício Previdenciário.............................................................................................
475
1. União Homoafetiva Poligâmica (Wladimir Novaes Martinez)......................................................................................
476
2. Acórdão na Íntegra (STF).............................................................................................................................................
484
3. Ementário...................................................................................................................................................................
491
REVISTA SÍNTESE DIREITO AMBIENTAL
Sustentabilidade e Princípios Constitucionais.........................................................................................................
494
1. Breves Notas sobre a Interpretação Jurídica Sustentável à Luz da Função Social das Titularidades (Euzébio Henzel
Antunes).....................................................................................................................................................................
495
2. A Sustentabilidade Como Princípio Constitucional Aplicável aos Direitos Sociais à Previdência e Assistência. Reflexões a Partir dos Fundamentos e Objetivos da Constituição Federal (Brasileira Fabiano Haselof Valcanover)..............
513
3. Hiperprocessualização e Congestionamento Jurisdicional: a Sustentabilidade como Marco Transformador (Marcelo
Garcia da Cunha).........................................................................................................................................................
525
5
Revista SÍNTESE
Direito Civil e Processual Civil
ASSUNTO ESPECIAL
Coisa Julgada Algumas Questões
Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Doutrina
O Mérito e o Objeto Litigioso do Processo: Reflexos na Coisa Julgada
FERNANDA DOS SANTOS NUNES
Advogada, Pesquisadora de Direito do Trabalho na Universidade de Coimbra, Portugal, e na Universidade
de Burgos, Espanha, Pós-Graduada em Processo Civil e Direito Civil com ênfase no Processo Civil, Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Amatra.
PALAVRAS-CHAVE: Processo; mérito; objeto litigioso.
INTRODUÇÃO
Este artigo traz à baila a análise interpretativa do significado do mérito e do objeto
litigioso no atual sistema processual brasileiro que se faz necessária para a compreensão da
coisa julgada.
Senão vejamos. O mérito é relacionado conceitualmente ao termo mérito com o termo
pretensão processual, cuja identificação é feita pelo juiz do processo, por meio dos pedidos
feitos na petição inicial. As análises e divergências do tema serão foco do presente estudo
E mais: além do processo de conhecimento, há existência do mérito na execução e no
processo cautelar, e, seguindo o raciocínio exposto, é cabível a coisa julgada, sendo, portanto, passível da ação rescisória como proposto nesta reflexão processualista.
O MÉRITO E O OBJETO LITIGIOSO DO PROCESSO: REFLEXOS NA COISA JULGADA
Conceito de mérito como objeto litigioso do processo e como pretensão processual
Ao tratar de mérito no processo, é possível perceber inúmeras interpretações e posicionamentos diferenciados pela doutrina pátria e pela doutrina estrangeira, bem como é fácil
notar uma enorme divergência jurisprudencial brasileira.
Destarte, o assunto de o presente estudo ser de suma importância para toda a compreensão processual e principalmente para a eficácia da decisão e a formação da coisa julgada,
necessário, é, para isso, entender o significado de mérito.
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Ainda, pode-se trazer à baila toda a interpretação dada aos diferentes procedimentos
processuais e refletir com clareza sobre a existência do mérito no processo de conhecimento, no processo de execução e no processo cautelar.
Inicialmente é cabível conceituar o mérito baseado no atual Código de Processo Civil,
cuja compreensão define o mérito como sinônimo de lide como bem conceitua Carnelulluti:
O conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência do
outro. O julgamento desse conflito de pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega à outra, constitui uma decisão definitiva
de mérito.1
Ressalte-se que a definição de mérito relaciona, diretamente, o termo mérito ao de
pretensão processual, cuja identificação é feita pelo Magistrado por meio dos pedidos feitos
na petição inicial.
Neste sentido, o ilustre autor Ricardo de Barros Leonel afirma:
A maior amplitude do objeto do processo com relação ao objeto tipificar a pretensão processual como objeto litigioso do processo, concluindo-se ainda no sentido da exclusão da lide
deste conceito, bem como da demanda inicial, que é apenas o instrumento ou veículo pelo
qual aquela é trazida ao conhecimento judicial, para fins de apreciação.2
É fácil perceber a relação direta do mérito com a compreensão da cognição processual, tendo em vista a necessária análise das questões prévias do processo, ou seja, é preciso
superar as preliminares e prejudiciais e logo à frente será detalhado a diferença do mérito
aqui tratado e do mérito a ser superado como já enfrentado.
Ainda neste contexto de conceituação do mérito, José Rogério Cruz e Tucci destaca:
O objeto litigioso também alcança a causa de pedir. Em que pese a polêmica sobre o assunto,
filia-se a doutrina que entende que a coisa julgada atinge apenas o objeto litigioso (pedir e
causa de pedir) idênticos... há necessidade de verificação de objeto litigioso identificado com
a circunstância jurídica concreta deduzida em juízo in statuassertionis, individualizada pela
situação de fato contrária ao modelo traçado pelo direito material.3
Como já dito, há divergência no conceito do mérito, e, nesta esteira, parte da doutrina
entende que o mérito seja a própria demanda, conceito esse que não fica imune das inúmeras críticas. Ao se observarem as lições de Ovídio Baptista da Silva, destaca-se:
1 CARNELLUTI, Francesco. Cosa giudicata e sentenza parziale. Rivista di diritto processuale, Padova: Cedam, v. 1, p.
907-8, 1963.
2 SANTOS, Antonio Fidélis dos. Manual de direito processual civil. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 720.
3 CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 131.
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Os processualistas convertem a respeito da determinação dos chamados limites objetivos da
coisa julgada, que outra coisa não são senão a própria demanda vista depois de definitivamente julgada. A demanda, como se disse, é a res in iudicio deducta ou a resposta sob julgamento, que, depois da sentença, transforma em res iudicata. Sendo assim, é natural que não
se possa interpretar convenientemente uma dada sentença e determinar o campo das questões
decididas se não se puder apreciar as exatas dimensões da lide ou da demanda, julgada pela
sentença. A demanda, em verdade, é a res iudicanda que se transforma em res iudicata, quando julgada.4
O processo tem como finalidade resolver o direito material posto à apreciação jurisdicional, restando ao Estado a obrigação de tutelar o direito, e por meio da cognição é possível verificar o objeto litigioso do processo e a formação da coisa julgada.
Ernani Fidélis dos Santos enfrenta o conceito de mérito e ensina:
[...] a matéria de fundo do processo de conhecimento e do cautelar. No processo de conhecimento, é o próprio litígio, a lide que constitui o seu objeto. A lide é o conflito de interesses,
qualificado por uma pretensão resistida. Duas pessoas têm, por exemplo, interesses antagônicos, no gozo de uma coisa, no recebimento de um crédito, no reconhecimento da existência
ou inexistência de uma relação jurídica, ou na sua constituição, extinção ou modificação. Há
o conflito [...]².
Fica claro, neste estudo, que a lide serve para designar o mérito da causa, ou seja, a
questão material oferecida à jurisdição estatal. Compreende-se, então, o mérito como sendo
a própria demanda.
Já de outro lado, parte da doutrina contraria o entendimento do conceito de mérito
como sendo a demanda em si, pois identifica a terminologia como as questões de fundo
do processo. Nesse aspecto, vale destacar as lições de Liebman: “todas as questões, cuja
resolução pode influir direto ou indiretamente na decisão acerca da proposta, foram em seu
todo o mérito da causa”5.
Logo, é notável que o mérito, neste diapasão, está intimamente ligado à própria pretensão processual, ou seja, o interesse processual é a base substancial para essa conceituação de mérito.
Resta claro que o pedido feito em juízo é a pretensão processual, exemplificando pode-se pensar que a pretensão processual era material e, uma vez provocada à jurisdição,
automaticamente, passa a ser uma pretensão proces­sual.
Neste caso, é importante citar a lições do Professor Cândido Rangel, que delimita o
conceito de mérito:
4 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio; GOMES, Fábio. Teoria geral do processo. 2. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 241-2.
5 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Tocantins: Intelectus, v. 1, 2003. p. 151.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
O vocábulo mérito de uso corrente e empregado muitas vezes no CPC expressa o próprio objeto do processo. A pretensão ajuizada, que, em relação ao processo, é seu objeto, constitui
o mérito das diversas espécies de processos. O mérito do processo de conhecimento é a pretensão trazida com o pedido de julgamento que a reconheça e, portanto, a acolha. O mérito
no processo de execução é a pretensão a receber a coisa pleiteada – e não uma sentença. O
do processo monitório é o mesmo, porque a tutela final que ele pode conceder é de natureza
executiva (entrega da coisa móvel ou do dinheiro).6
Aliás, no entendimento do conceito de mérito, percebemos uma divergência entre a
relação mérito e lide e a relação mérito e pretensão processual, quando a doutrina entra em
conflito ao delimitar o mérito.
Portanto, é possível, nesse prisma, destacar o mérito como objeto do processo que é
identificado como o pedido do autor na inicial, como o pedido do réu na reconvenção, e
também é notado como o pedido do réu na contestação ao tratarmos de ações dúplices,
bem como o pedido do autor/réu na denunciação da lide e nas ações declaratórias. E obviamente que entre outras possibilidades existentes no ordenamento jurídico processual.
Logo, é possível afirmar que o pedido deve enfrentar as chamadas questões de fundo
processual, quais sejam, a análise das preliminares e a análise de mérito.
Ademais, neste aspecto, mister é ressaltar o posicionamento de Carnellutti: “Os contornos da lide podem ser verificados antes mesmo da existência do processo, daí ser possível
falar-se em lide total ou parcial7”.
Assim, realmente, é de suma importância ressaltarmos que, em que pese essa concepção, há grande diferença entre o mérito e as questões suscitadas como já destacado.
Portanto, cabe frisar que as questões preliminares e meritórias influenciam, sim, a
decisão judicial, podendo até mesmo impedir o julgamento do mérito, com fulcro nos arts.
267 e 269 do CPC, cuja previsão legal calca circunstâncias processuais passíveis de extinção processual com julgamento ou sem julgamento do mérito, este assunto será tratado
detalhadamente logo à frente.
Nesta esteira, é oportuno transcrever as lições do Professor Arruda Alvim, que define
claramente esta distinção, ao dizer:
O conceito de questão também pode estar ligado ao objeto litigioso do processo. De fato,
existem questões enfrentadas incidenter tantum e outras, decididas principal iter tantum. Há
que se ter presente que o conceito de lide ou objeto litigioso (ou, segundo alguns, com menos
precisão, o de objeto de processo) distingue-se de conceito de questão. Lide é a própria expressão do conflito de interesses, tal como retratada no processo, ao passo que a questão é a
dúvida, levantada pelas partes, ou originariamente, até pelo juiz, a ser resolvida, para aplicar
a lei à lide. Ou, ainda, para aplicar a lei a uma questão processual.8
6 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, v. 2, 2003. p. 182.
7 CARNELLUTI, Francesco. Sistema di diritto processuale civile. Padova: Cedam, v. 1, 1936. p. 907-8.
8 ARRUDA ALVIM, José Manuel. Manual de direito processual civil. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
v. 2, 2005. p. 87.
10
Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Logo, como já demonstrado, o pedido (objeto litigioso do processo) limita-se a pretensão processual apresentada pelo autor e pelas demais possibilidades exemplificadas anteriormente.
Ainda neste raciocínio, vale refletir que, para haver a análise meritória, necessária é,
antes, a verificação das questões de fundo processual, sendo dever do juiz a verificação
das questões suscitadas pelas partes, ou seja, análise dos pontos que mereçam a análise e a
deliberação judicial.
Ainda nesta reflexão, resta ao julgador, após a análise, o dever-poder, de cada caso
concreto, extinguir o feito com o julgamento do mérito ou sem o julgamento do mérito, cuja
base legal está prevista nos arts. 267 e 269 do Código de Processo Civil.
Logo, é possível concluir que o mérito é compreendido como objeto litigioso no sistema processual civil brasileiro.
De outro prisma, cabe ressaltar a diferenciação entre objeto litigioso do processo e
objeto da cognição judicial. Para facilitar a compreensão do tema, vamos refletir sobre o
assunto, conforme analisado, anteriormente.
O conceito de mérito refere-se claramente ao objeto litigioso do processo, propriamente o judicium, ou seja, trata-se do pedido formulado pelo autor, enquanto a cognição
trata-se do cognitio questões suscitadas.
De acordo com o posicionamento de Ricardo de Barros Leonel:
Embora a matéria não seja absolutamente pacífica, pode-se asseverar que ra­zoável e aceitável
é o entendimento pelo qual o objeto do processo é um conceito mais amplo que o objeto litigioso do processo. Refere-se aquele a todo material ou ainda a todas as questões que são submetidas à cognição judicial no curso da instância, tenham ou não sido declinadas pelo autor
na inicial a título de fatos, fundamentos jurídicos e pedido, mormente considerando todos os
fatos e argumentos invocados em sede de defesa pelo demandado, as questões inerentes aos
pressupostos processuais e condições da ação e ainda outras das quais eventualmente possa o
Magistratura conhecer de ofício.9
Realmente, tal afirmação se afigura plenamente plausível, em que pese divergências
sobre o tema, posto que o objeto do processo trata-se do processo em geral, da amplitude
da questão a ser decidida, enquanto o objeto litigioso faz parte do todo, mas restringe-se às
peculiaridades em concreto.
Aliás, Cândido Rangel atesta que: “Objeto do processo é o conjunto de todo o material
lógico que o espírito do juiz capta e elabora de modo a saber: se julgará o mérito e como
julgará”10.
9 LEONEL, Ricardo de Barros. Objeto litigioso do processo e o princípio do duplo grau de jurisdição. In: CRUZ E TUCCI,
José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Causa de pedir e pedido no processo civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. p. 351-2.
10 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil... cit., p. 182.
11
Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Ainda neste sentido, vale destacar as lições de Araken de Assis:
Objeto da cognição do juiz, que abrange o próprio processo, adquire uma dimensão maior
que o objeto litigioso, ou thema decidendum, ou mérito, em princípio definido, irreversivelmente, como a ação material, ex vi do art. 301, § 2º.11
Portanto, é fácil notar que a interpretação do juiz dá ao objeto do processo a sua amplitude e a sua dimensão, já que o objeto litigioso do processo, específico, é que desperta
no julgador a busca para solucionar o mérito processual.
A questão do mérito como objeto litigioso do processo é defendida por grande parte da
doutrina, e, neste sentido, destacam-se as lições de Jônatas Luiz Moreira de Paula:
A sentença que julga o mérito é aquela que examina os fatos, as provas, as questões de direito,
para aplicação do direito material. Nem sempre uma sentença de mérito vai beneficiar o autor
da ação, posto que ela pode reconhecer a inexistência do fato, a inexistência do proclamado
direito material invocado pelo autor, a existência da decadência [...].12
A relação jurídica processual também é comentada por Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antonio Carlos de Araújo Cintra:
O objeto da relação jurídica processual (secundária), diferentemente, é o serviço jurisdicional
que o Estado tem o dever de prestar, consumando-o mediante o provimento final em cada
processo (esp. sentença de mérito).
Por isso mesmo é que se trata de uma relação secundária, pois tem como objeto um bem que
guarda relação de instrumentalidade para com aquilo que, afinal de contas, é o que deseja o
autor demandar, e que é o objeto da relação de direito material. O provimento jurisdicional
preparado durante todo o curso do processo é a sentença de mérito (no processo de conhecimento) ou o provimento satisfativo do direito do credor (no processo de execução forçada
civil).13
Depois de superadas as questões preliminares, sejam elas questões processuais, sejam
elas questões de mérito, como, por exemplo, o caso da prescrição e da decadência, sendo
que a prescrição pode ser decretada de ofício, ressaltam-se os ensinamentos de Cândido
Rangel Dinamarco sobre o assunto:
[...] enquanto o objeto do processo é colocado estritamente pela demanda inicial e relevância
alguma tem a maneira como se comporta o demandado depois (ressalvado o caso excepcional da reconvenção, que se propõe mediante nova demanda), constitui o objeto do conhecimento do juiz toda massa de questões que no processo surgirem, venham de onde vierem. O
réu suscita questões ao responder, o autor da réplica, ou depois, ambos, a todo o momento,
11 ASSIS, Araken de. Cumulação de ações. 4. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 120.
12 PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Teoria geral do processo. 2. ed. Leme: LED, 2000. p. 306.
13 DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo.
21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 296.
12
Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
no contraditório do processo, dúvidas são levantadas de ofício pelo juiz: e de todas essas
questões o juiz conhece e sobre elas se pronuncia, no momento procedimental adequado.
Existe, naturalmente, uma ordem lógica para o exame das questões que integram o objeto
do conhecimento do juiz e essa ordem se reflete nas normas que traçam o desenho do procedimento: por imposição das coisas, as últimas questões que hão de ser resolvidas (e não
serão resolvidas se tiver solução negativa de alguma questão anterior, ou seja, preliminar)
são as de mérito.14
É importante analisarmos, ainda neste tópico, uma discussão já antiga na doutrina
sobre a possibilidade da existência de mérito ou não no processo cautelar e no processo de
execução.
Pois bem, vejamos. A sentença trata-se de ato processual que reflete as situações previstas no art. 267 e no art. 269 do CPC, seja ela sentença de mérito decidido, seja sentença
sem a análise do mérito, por motivos já aqui tratados, ou seja, por questões de preliminares
e prejudiciais de mérito.
Ainda neste raciocínio, é fácil perceber que o mérito como é representado pela pretensão processual e é delimitado pela causa de pedir será reflexo da composição da lide, pois
está diretamente relacionado aos pedidos, ou seja, pela causa de pedir da inicial.
Neste sentido, contribuem para nossa reflexão os ensinamentos de Marcelo Navarro
Dantas:
Ora, se o mérito é pedido, há mérito na execução, porque nele há pedido. Pede-se, in executis, a satisfação dos direitos do credor. Portanto, os atos praticados, no processo executório,
para a satisfação desse direito, constituem o mérito da execução.15
Portanto, apesar de o mérito estar delimitado pela relação material indicada na inicial,
o mérito no processo de execução é cristalino e notável, pois há necessidade de resolver a
satisfação deduzida na inicial.
Aliás, nesse sentido é mister ressaltar as lições de Rosalina Pereira, que afirma:
[...] se o mérito é pedido individualizado, há mérito no processo de execução, já que nele há
pedido. Quando se pede, na via executiva, a satisfação dos direitos do credor, os atos praticados para a satisfação desse direito constituem o mérito da execução.16
Logo, é possível concluir que há mérito no processo de execução, não o mérito preconcebido, se assim posso dizer, para o processo de conhecimento, mas sim o ligado à
satisfação do pedido no processo de execução.
14 DINAMARCO, Cândido Rangel. O conceito de mérito em processo civil. Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 34, p.
34-5, 1984.
15 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Admissibilidade e mérito na execução. Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 47,
p. 34, 1987.
16 PEREIRA, Rosalina P. C. Rodrigues. Ações prejudiciais à execução. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 94-5.
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Aliás, vale citar Olavo de Oliveira Neto:
Assim sendo, se mérito é sinônimo de pedido e se a execução apresenta pedido, seja imediato, seja mediato, então o mérito da execução é representado pelo pedido ali formulado, que
é a realização de atos de constrição na forma determinada para cada um dos procedimentos
executivos previstos pela legislação.17
Ainda nesta esteira encontramos divergência doutrinária e jurisprudencial quanto à
existência de coisa julgada material e cabimento de ação rescisória de decisão na execução.
Vale citar a conclusão de Araken de Assis, que defende:
Entretanto, convém fugir do excesso, induzido pelo texto transcrito no art. 795, de outorgar a
semelhante sentença força declaratória. Claro está que, neste provimento, haverá tênue carga declarativa, mas convém fugir do excesso, induzido pelo texto transcrito no art. 795, de
outorgar a semelhante sentença força declaratória. Claro está que, neste provimento, haverá
tênue carga declarativa, mas insuficiente para produzir eficácia existe lide – entendida esta,
consoante a conceituação de Carnelutti, como sendo o conflito de interesses qualificado pela
pretensão de um dos litigantes e pela resistência do outro – no processo de execução em que
não foram opostos embargos de devedor, inadmissível, data venia, o cabimento da rescisória.18
Necessário aduzir, por oportuno, a existência do mérito, também no processo cautelar, em que se encontra certa divergência quanto à existência da lide e do mérito, tendo em
vista o objetivo instrumental do referido processo.
Inicialmente, vale citar as lições de Humberto Theodoro Junior ao citar Carnelutti:
Trata-se de processo contencioso, como de cognição e o de execução, pois seu pressuposto
é também a lide. Mas, em vez de preocupar-se com a tutela do direito (composição da lide)
– função principal da jurisdição –, o processo cautelar exerce função auxiliar e subsidiária,
servindo à tutela do processo, onde será protegido o direito.19
Percebe-se, portanto, que há mérito no processo cautelar, assim como ocorre na execução, mérito este diferente do processo de conhecimento conforme já estudado aqui. Na
verdade, o mérito aqui trata da sua condição autônoma, ou seja, possui lide e mérito já que
há processo.
Aliás, Marcelo Lima Guerra ensina: “[...] há existência de mérito próprio na cautelar e
que esse constitui no fumus boni iuris e periculum in mora”20.
Portanto, há mérito no processo cautelar assim como no processo de execução, tornando imutável a decisão, e, sendo assim, passível de ação rescisória.
17 OLIVEIRA NETO, Olavo de. A defesa do devedor e dos terceiros na execução forçada. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000. p. 76.
18TESHEINER, José Maria. Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil. São Paulo: RT, 2002.
p. 225.
19 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo cautelar. 18. ed. São Paulo: Leud, 1999. p. 43.
20 GUERRA, Marcelo Lima. Estudos sobre o processo cautelar. São Paulo: Malheiros, 1995.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Logo, em que pesem as divergências elencadas, consideram-se mérito e lide palavras
ligadas no tange à questão processual, bem como o conceito de mérito ligado à pretensão
processual. Também se ressalta a existência do mérito nos processos de execução e cautelar, além de ser passível de fazer coisa julgada e até mesmo ser cabível a ação rescisória.
REFERÊNCIAS
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Tribunais, v.2 , 2005.
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio; GOMES, Fábio. Teoria geral do processo. 2. ed.
São Paulo: RT, 2000.
CARNELLUTI, Francesco. Cosa giudicata e sentenza parziale. Rivista di diritto processuale, Padova: Cedam, v. 1, p. 907-8, 1963.
______. Sistema di diritto processuale civile. Padova: Cedam, v. 1, 1936, p. 907-8.
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001.
DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Admissibilidade e mérito na execução. Revista de Processo,
São Paulo: RT, n. 47, p. 34, 1987.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed.
São Paulo: Malheiros, v. 2, 2003.
_____. O conceito de mérito em processo civil. Revista de Processo, São Paulo: RT,
n. 34, p. 34-5, 1984.
______; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo;
GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Tocantins: Intelectus, v. 1, 2003.
LEONEL, Ricardo de Barros. Objeto litigioso do processo e o princípio do duplo grau de jurisdição.
In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Causa de pedir e pedido no
processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
SANTOS, Antonio Fidélis dos. Manual de direito processual civil. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
TESHEINER, José Maria. Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil.
São Paulo: RT, 2002.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo cautelar. 18. ed. São Paulo: LEUD, 1999.
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Doutrina
O Valor da Segurança Jurídica da Coisa Julgada em Conflito com Direito Fundamental à
Identidade: Critérios e Sugestões para Conformar Valores Fundamentais
MARIANA MOTTA MINGHELLI
Advogada, Especialista em Direito Processual Civil.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Os direitos fundamentais à identidade e à segurança jurídica; 2 Argumentos contra a
relativização da coisa julgada; 3 Alternativas para resolver a questão.
INTRODUÇÃO
As descobertas proporcionadas pelo exame de DNA, para além de encantar a comunidade científica, produzem efeitos relevantes na área jurídica, mais especificamente no que
diz respeito à matéria de prova pericial.
A absoluta precisão do exame proporciona um grau de certeza altíssimo e, mais do que
isso, “conforma” e “conforta” as partes, pois revela aquilo que sempre se buscou em uma
relação processual e que raríssimas vezes é alcançada, por vezes até chamado de utopia: a
verdade. Apesar disso, o fato é que o exame DNA pode colocar em cheque decisões que se
encontram acobertadas pelo manto da coisa julgada, pois há a possibilidade de ocorrência
do trânsito em julgado de uma ação de investigação de paternidade julgada procedente que
tenha se respaldado em provas temerárias ou até mesmo na ausência de provas.
Não há dúvidas de que, se o exame de DNA for feito dentro do prazo para a ação
rescisória, esta será o meio adequado para se desconstituir a coisa julgada anteriormente
aperfeiçoada. O problema se instala quando a referida prova pericial é feita depois de expirado o referido prazo, surgindo, entre outros tantos, o seguinte questionamento: na colisão
do instituto processual da coisa julgada com o direito fundamental ao reconhecimento da
ancestralidade, qual deve prevalecer?
“Esta é uma problemática possível de ocorrer que gera grande reflexão da doutrina,
sendo ainda uma questão controvertida”1.
No âmbito jurisprudencial, há decisões que preferiram a segurança jurídica e a estabilização das relações por meio da proteção da coisa julgada em detrimento da concretização
do direito ao reconhecimento da paternidade real, conforme se verifica a seguir:
1 MOURA, Cláudia Bellotti; OLTRAMARI, Vitor Hugo. A quebra da coisa julgada na investigação de paternidade: uma
questão de dignidade. Revista de Direito Privado, São Paulo: RT, n. 21, p. 49-68, 2005.
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Ação de negativa de paternidade. Exame pelo DNA posterior ao processo de investigação de p1aternidade. Coisa julgada. 1. Seria terrificante para o exercício da jurisdição que
fosse abandonada a regra absoluta da coisa julgada que confere ao processo judicial força para garantia a convivência social, dirimindo os conflitos existentes. Se, fora dos casos
nos quais a própria lei retira a força da coisa julgada, pudesse o Magistrado abrir as portas
dos feitos já julgados para rever as decisões, não haveria como vencer o caos social que se
instalaria. A regra do art. 468 do CPC é liberadora. Ela assegura que o exercício da jurisdição completa-se com o último julgado que se torne inatingível; insuscetível de modificação. E a sabedoria do Código é revelada pelas amplas possibilidades recursais e, até mesmo,
pela abertura da via rescisória naqueles casos precisos que estão elencados no art. 485. 2.
Assim, a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito com decisão transitada em
julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma
declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada. (STJ, REsp 107.248/GO, Rel. Min. Carlos Alberto
Menezes Direito, DJ 29.06.1998)
Por outro lado, há também decisões que cotejam os referidos bens jurídicos conflitantes, preferindo a concretização da verdade real objetivada na ação de investigação de paternidade, efetivando tal direito fundamental, reconhecendo a paternidade biológica atestada
pelo exame de DNA à preservação de uma decisão transitada em julgado cuja coisa julgada
recai sobre uma verdade jurídica, porém ficta e irreal, conforme julgados colacionados a
seguir:
[...] I – Na fase atual da evolução do direito de família, é injustificável o feiticismo de normas ultrapassadas em detrimento da verdade real, sobretudo quando em prejuízo de legítimos interesses de menor. II – Deve-se ensejar a produção de provas sempre que ela se
apresentar imprescindível à boa realização da justiça. III – O STJ, pela relevância de sua missão constitucional, não pode deter sutilezas de ordem formal que impeçam a apreciação das
grandes teses jurídicas que estão a reclamar o pronunciamento e orientação pretoriana. (STJ,
REsp 4.987/RJ, 4ª T., Rg 90.0008966-2, Ac. por maioria, DJ. 28.10.1991)
[...] Considerando o atual estágio da ciência – que viabiliza a realização de exames genéticos
(DNA) que afirmam ou excluem a paternidade com margem de segurança próxima ao absoluto –, é de se admitir a ação negatória de paternidade, ainda que aforada quando já ultrapassado o prazo previsto no § 3º do art. 178 do CC, notadamente quando, como na hipótese, à
petição inicial foi acostado documento que comprova a esterilidade do autor. (TJSC, 1ª C.Cív.,
AC 99.002588-8, Rel. Des. Newton Trosotto, DJ 22.06.1999)
Como visto, o problema ora trazido destaca a possibilidade de conflito entre o direito
ao reconhecimento da paternidade e a proteção à coisa julgada face à revolução ocasionada pela acessibilidade e precisão do exame de DNA.
De um lado, encontra-se o instituto da coisa julgada cujo objetivo/fim é a segurança
jurídica, no sentido da estabilizar as relações jurídicas e garantir a segurança social, objetivos estes atingidos por meio da constituição da “situação jurídica de indiscutibilidade
judicial do comando contido na sentença”2.
2 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 44.
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Nesse sentido, Eduardo Talamini acertadamente pontua (nota 37, p. 45-46):
[...] A situação jurídica que se constitui com o advento da coisa julgada não concerne ao
direito material, mas ao processo. É a proibição de que se emita novo comando jurisdicional
sobre o mesmo objeto processual e, ainda, a determinação de que se adote o comando anterior como premissa inafastável nos pronunciamentos jurisdicionais proferidos nos processos
subsequentes para os quais o objeto do processo anterior funcione como questão prejudicial.
Em ambos os casos, tratam-se de diretrizes cogentes para os órgãos da jurisdição e para o exercício das garantias jurisdicionais. Nesse sentido, a concepção ora exposta está mais próxima
da teoria “processual” da coisa julgada.
De outro, encontra-se o direito constitucional personalíssimo, indisponível e imprescritível ao reconhecimento da paternidade cujas finalidades são: desenvolvimento da pessoa
com dignidade, garantia da convivência familiar, princípio do melhor interesse da criança e
proteção à família, consoante disposto nos arts. 226, §§ 7º e 8º, e 227, caput, da CF e arts.
3º, 4º, 19, caput, 22 e 27 do ECA.
1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À IDENTIDADE E À SEGURANÇA JURÍDICA
A prerrogativa de saber quem são seus ancestrais é um direito da personalidade que,
segundo o ECA, não se pode dispor nem perder, nos termos do art. 27 do referido estatuto.
Referindo-se ao citado direito, Maria Júlia Kaial Cury, ao atualizar o livro de Munir Cury,
pontua (2008, p. 128)3:
Direito personalíssimo, direito indisponível e direito imprescritível são as três normas essenciais do estado de filiação. É direito personalíssimo porque inerente ao estado de filho. Não
comporta sub-rogados, nem se trata de direito suscetível de ser exercitado por outrem (p. ex.,
por um dos netos), ou mesmo por um espólio. [...] É direito indisponível, não comportando,
assim, nenhuma negociação, inclusive transação (CC 1916, art. 1.035; CC 2002, art. 841). E é
igualdade imprescritível. Enquanto vivo, assiste ao filho o direito de reclamar o reconhecimento de seu status familiae, assim como o genitor o dever de responder pelo seu dever.
Nos arts. 226, §§ 7º e 8º, e 227, caput, a CF assegura a proteção à família, a convivência familiar e a dignidade do menor, demonstrando a preocupação constitucional com
relação ao conhecimento e à manutenção dos laços familiares.
Da mesma forma, os arts. 3º e 4º do ECA reiteram o direito do menor ao desenvolvimento com dignidade e o dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do
poder público de assegurar este direito. O ECA faz ainda referência ao direito do menor de
preferencialmente ser criado e educado no seio familiar, em prestígio do direito à convivência familiar, estabelecendo, de forma expressa, o dever dos pais de sustento, guarda e
educação dos filhos, consoante arts. 19 e 22 do referido Estatuto (Cury, 2008, p. 115-116).
3 CURY, Maria Júlia Kaial. Estatuto da criança e do adolescente comentado – Comentários jurídicos e sociais. Coord.
CURY, Munir. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
De se ver, portanto, que, enquanto, de um lado, encontra-se a proteção da coisa julgada, instituto legal que visa a priorizar a segurança jurídica atribuindo definitividade às
decisões judiciais já transitadas em julgado, como forma de estabilizar as relações jurídicas
e prestigiar a autoridade das decisões judiciais, ainda que versem sobre uma verdade ficta,
presumida, do outro, encontra-se o direito constitucional e personalíssimo ao reconhecimento da paternidade, manifestamente indisponível e imprescritível, que garante a todos o
direito de, a qualquer tempo, saber quem são seus pais, garantindo, assim, sua dignidade, a
convivência familiar, em prestígio da verdade real, material.
Como se sabe, no caso em análise, apresentam-se dois bens jurídicos de relevada importância e de igual previsão constitucional. Diante desta situação, partindo do pressuposto
que nenhum direito é absoluto, deve-se ponderar os valores em jogo de forma que nenhum
deles seja anulado por completo, haja vista a necessidade de maximizar a efetividade das
normas constitucionais.
Prevalecendo a coisa julgada, o direito da pessoa ao reconhecimento de sua paternidade será anulado por completo, restando totalmente tolhido um direito que é dotado de
imprescritibilidade, indisponibilidade, etc. Por outro lado, ao fazer prevalecer o direito ao
reconhecimento da paternidade ante a aquisição do exame de DNA que comprove com
exatidão científica a efetiva paternidade da pessoa por meio de um novo processo (ação
rescisória ou declaratória negativa de paternidade), a coisa julgada não será extirpada, mas
apenas relativizada, pois uma nova coisa julgada irá surgir, coadunando-se com a verdade
material.
De se ver, portanto, que, no cotejo dos sobreditos bens jurídicos em colisão, mais
razoável a prevalência do direito personalíssimo ao reconhecimento da paternidade real sobre a proteção do instituto processual da coisa julgada, sendo esta uma inequívoca hipótese
de relativização deste instituto, face à relevância do direito que com ele colide.
Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
DIREITO CIVIL – AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – PRESUNÇÃO LEGAL (CC, ART.
240) – PROVA – POSSIBILIDADE – DIREITO DE FAMÍLIA – EVOLUÇÃO – HERMENÊUTICA
– RECURSO CONHECIDO E PROVIDO
I – Na fase atual da evolução do direito de família, é injustificável o fetichismo de normas
ultrapassadas em detrimento da verdade real, sobretudo quando em prejuízo de legítimos
interesses de menor.
II – Deve-se ensejar a produção de provas sempre que ela se apresentar imprescindível à boa
realização da justiça.
(STJ, REsp 4987/RJ, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, J. 04.06.1991, DJ 28.10.1991,
p. 15259)
Coadunando-se com o entendimento jurisprudencial anteriormente transcrito, Cláudia
Bellotti Moura e Vitor Hugo Oltramari (2005, p. 59-60):
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
A atuação da vontade da lei e o interesse de toda a sociedade na composição dos conflitos
não podem suplantar o interesse do menor em identificar os seus vínculos familiares, são estes
interesses que, por evidente, se sobrepõem ao instituto da coisa julgada, não se podendo impedir o livre acesso à justiça para o reconhecimento da filiação em face da temporária impossibilidade probatória ou, até, da negligência em subsidiar a formação de um juízo de certeza
para o julgamento.
No mesmo sentido, aduzem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald4:
[...] As regras ordinárias sobre a coisa julgada não podem ir de encontro com a Lex Mater,
nem – o mais importante! – se sobrepor aos direitos mínimos da existência humana, como
a verdade sobre a paternidade. Pensar diferente é trafegar na contramão da história e colidir
frontalmente com a evolução das pesquisas genéticas. Se assim não o fosse, qual a vantagem
do avanço científico, do estudo da genética, por exemplo? A ciência, nesta aérea, está a serviço da verdade e nos impõe usá-la. [...] Não se pode canonizar o instituto da coisa julgada,
de modo a afrontar a propriedade sociedade e o ser humano. Deve se ponderar pelo princípio da proporcionalidade qual dos interesses deve prevalecer no caso concreto: mais vale a
segurança ou a justiça. E afigura-se-nos mais relevante prevalecer o valor justiça, pois sem
ela não há liberdade qualquer. [...] Desse modo, é fácil perceber a necessidade de adaptação
do sistema da coisa julgada nas ações filiatórias, respeitando as garantias constitucionais da
pessoa humana.
De forma complementar, importa destacar que os registros públicos, inclusive o registro
de nascimento, em que consta a filiação da pessoa, prezam e regem-se pela verdade real, devendo atestar situação condizentes com a verdade fática, conforme entendimento do Tribunal de
Justiça do Distrito Federal (1ª T., Ag-In 2446-4/98 de 1999) e do Tribunal de Justiça de São Paulo
(AC 110881).
2 ARGUMENTOS CONTRA A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
Toda a discussão em torno da relativização de coisa julgada material está fundada na
busca de plenitude da justiça, que se contrapõe ao princípio da estabilidade das relações
jurídicas. O princípio da segurança está previsto no art. 5º da CF e é protegido por cláusula
pétrea. Mas, como dizia Montesquieu, a injustiça que se faz representa uma ameaça a todos.
Daí a dificuldade de opção entre justiça e segurança jurídica, deslocando o debate
para o vasto campo filosófico.
Há os juristas que defendem a não relativização da coisa julgada, afirmando que ela
faz sim brotar a insegurança jurídica e que, em razão disso, não se pode argumentar o princípio da justiça como base do direito, impondo-se, em face dele, uma relativização da coisa
julgada. Esse forte argumento impõe aos defensores da intangibilidade da coisa julgada
uma maior fundamentação de suas razões, principalmente no que concerne à natureza de
garantia fundamental. Para os não relativistas, a coisa julgada encontra-se como garantia
essencial à jurisdição eficaz e do perfazimento da noção de processo justo.
4 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALDI, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.
653/654.
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Entendem, ainda, que a coisa julgada é um direito absoluto, de forma que a relativização desse direito traria a sua ineficácia, bem como geraria a insegurança jurídica. Argumentam que a segurança jurídica é um dos principais alicerces do ordenamento jurídico
brasileiro, defendendo, assim, a natureza de garantia fundamental da coisa julgada, indispensável à concreta eficácia do direito de segurança.
Ademais, a coisa julgada é garantia essencial ao direito fundamental de segurança jurídica, segurança essa necessária à tranquilidade social, dado que possibilita o planejamento
futuro de acordo com os efeitos da sentença.
Além disso, os juristas que não comungam com a ideia da relativização da coisa julgada somente aceitam a sua revisão nas hipóteses legais de rescisão e querela nullitatis, pois
acreditam que admitir a ampliação das hipóteses de abrandamento da coisa julgada traria
consequências muito mais maléficas à sociedade do que as “supostas” injustiças de algumas
decisões, se referindo à insegurança jurídica.
Para os adeptos dessa corrente, deve prevalecer a segurança jurídica em detrimento da
justiça perfeita, pois é melhor ter uma justiça imperfeita, mas com segurança, ainda que esta
não alcance totalmente a verdade, a uma justiça utópica, na qual não se teria a segurança
necessária à tranquilidade social.
Ressalta-se que acerca da relativização da coisa julgada ainda não há qualquer regulamentação legal, sendo assim, a relativização poderia ser banalizada, sendo que todos, em
quaisquer casos, poderiam requerer a relativização da coisa julgada em processo em que
não se obteve o êxito esperado.
Mas, apesar de não estar positivada no CPC, no que diz respeito às investigações de
paternidade, a relativização da coisa julgada tem tratamento jurisprudencial.
Todavia, a tese (geral, relativização da coisa julgada) já foi positivada nas execuções
comuns e nas execuções contra a Fazenda, mais precisamente no art. 741, parágrafo único,
e também na impugnação ao cumprimento de sentença, no art. 475, L, § 1º, usada diante
de inconstitucionalidades.
Conhecidos e respeitáveis são os argumentos de Ovídio Baptista contra a tese da relativização da coisa julgada em seu artigo chamado “Coisa julgada relativa?5”. No artigo
em questão, ele refuta a tese, basicamente rejeitando argumentos de dois dos maiores expoentes da Doutrina favoráveis à tese, Humberto Theodor Junior e Cândido Dinamarco, os
quais foram pioneiros em tratar do assunto, tão logo ele tenha surgido por meio do Ministro
José Augusto Delgado, para quem “a coisa julgada não deve ser via para o cometimento de
injustiças”.
Nesse artigo, Ovídio trata mais precisamente de refutar aquele argumento de que é
possível relativizar a coisa julgada quando se tratar de sentença “injusta”, assim dizendo:
5 SILVIO, Ovídio Baptista da Silva. Anuário de Pós-Graduação em Processo Civil. Unisinos, 2003. p. 363 a 378.
21
Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
A objeção que levanto contra essa proposição começa por questionar a perigosa indeterminação do pressuposto indicado pelo Magistrado (se referindo a Delgado), qual seja, o
conceito de “grave injustiça”, análogo àquele proposto por Theodoro Junior como sendo
uma “séria injustiça”. Por duas razões, parece-me impróprio condicionar a força da coisa
julgada, primeiro a que ela não produza injustiça; segundo, estabelecer como pressuposto
para sua desconsideração que essa injustiça seja “grave” ou “séria”. A gravidade da injustiça como condição para “confrontar”, como ele diz, a coisa julgada acabaria, sem a menor
dúvida, destruindo o próprio instituto da res iudicata [...]” “Suponho desnecessário sustentar
que a injustiça da sentença nunca foi e, a meu ver, jamais poderá ser fundamento para afastar o império da coisa julgada. De todos os argumentos concebidos pela doutrina, através de
séculos, para sustentar a necessidade de que os litígios não se eternizem, parece-me que o
mais consistente reside, justamente, na eventualidade de que a própria sentença que houver
reformado a anterior sob o pressuposto de conter injustiça venha a ser mais uma vez questionada de injusta; e assim ad aeternum, sabido, como é, que a justiça, não sendo um valor
absoluto, pode variar, não apenas no tempo, mas entre pessoas ligadas a diferentes crenças
políticas, morais e religiosas, numa sociedade democrática que se vangloria de ser tolerante
e pluralista quanto a valores.
O que Ovídio pretende é questionar que “injustiça” como pressuposto para desconstituir um valor constitucional e de grande importância para a civilização moderna: a coisa
julgada, seja insuficiente para tal fim, pois nos restaria perquirir: “O que seria “grave” injustiça capaz de autorizar que a coisa julgada não fosse observada6”?
Segue ele7: “Afinal, que sentença não poderia ser acusada de ‘injusta’; e qual a injustiça que não poderia ser ‘grave’ ou ‘séria’”? Como seria possível atribuir a uma sentença a
qualificadora de “absurdamente lesiva” ao Estado?
Concluindo por questionar ainda:
Que Tribunal teria o poder de reconhecer essa injustiça, com força para impedir que outro
Tribunal, em julgamento subsequente, liberto da contingência da coisa julgada, viesse a dizer,
ao contrário do que dissera o segundo julgamento, que não houvera injustiça no primeiro julgamento; e muito menos uma “grave”injustiça?
Em síntese, os argumentos contra a relativização se voltam mais especificamente contra a chamada decisão judicial transitada em julgado “injusta”. Para eles, se essa injustiça
decorre da inaplicação do direito positivado, deve-se lançar mão de ação rescisória em
tempo hábil.
Refutando o argumento de que usa a tese da relativização na ação de investigação de
paternidade em que foi negada ou reconhecida a paternidade em função da prova técnica
então apresentada, quando, posteriormente, o exame do DNA demonstrou resultado contrário àquele acolhido pela sentença, costuma afirmar que, se, na época, não existia esse
exame sofisticado, fato que conduziu a uma decisão fora da realidade, é até possível sustentar a contagem do prazo para a rescisória, a partir do momento em que essa prova técnica
6 Idem, p. 369.
7 Idem, p. 370.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
passou a ser utilizada nos meios judiciários, com fundamento em documento novo, assim
entendido o laudo médico elaborado com base em nova técnica de exame.
É importante uma reflexão para ambos os lados, pois passar por cima da autoridade
da coisa julgada, no caso, em nome da justiça seria abrir um precedente perigosíssimo para
a estabilidade das relações jurídicas, porque decisões de outra natureza também poderiam
ser ignoradas em face dos incessantes avanços tecnológicos e da rápida transformação da
realidade social, tornando irreais as decisões proferidas no passado.
Marinoni8, em seu conhecido artigo chamado “Relativização da coisa julgada material?”, de forma semelhante, expõe sua preocupação com a banalização da tese, argumentando:
[...] de nada adianta falar em direito de acesso à justiça sem dar ao cidadão o direito de ver o
seu conflito solucionado definitivamente. Por isso, se a definitividade inerente à coisa julgada
pode, em alguns casos, produzir situações indesejáveis a o próprio sistema, não é correto imaginar que, em razão disso, ela simplesmente possa ser desconsiderada.
Nesse sentido, não parece que a simples afirmação de que o Poder Judiciário não pode emitir
decisões contrárias à justiça, à realidade dos fatos e à lei possa ser vista como um adequado
fundamento para o que se pretende ver como “relativização” da coisa julgada. Ora, o próprio
sistema parte da ideia de que o juiz não deve decidir desse modo, mas não ignora – nem
poderia – que isso possa ser feito. Tanto é que prevê a ação rescisória, cabível em casos tipificados pela lei.O que aconteceu, diante da inevitável possibilidade de comportamentos
indesejados pelo sistema, foi a expressa definição das hipóteses em que a coisa julgada pode
ser rescindida. Com isso, objetivou-se, a um só tempo, dar atenção a certas situações absolutamente discrepantes da tarefa jurisdicional, mas sem eliminar a garantia de indiscutibilidade
e imutabilidade, inerentes ao poder estabelecido para dar solução aos conflitos, como também
imprescindível à efetividade do direito de acesso aos Tribunais e à segurança e à estabilidade
da vida das pessoas. Mesmo sem adentrar em complexos temas da filosofia do direito, pode-se
logicamente argumentar que as teses da “relativização” não fornecem qualquer resposta para
o problema da correção da decisão que substituiria a decisão qualificada pela coisa julgada.
Ora, admitir que o Estado-juiz errou no julgamento que se cristalizou obviamente implica
aceitar que o Estado-juiz pode errar no segundo julgamento, quando a ideia de “relativizar” a
coisa julgada não traria nenhum benefício ou situação jurídica.
Cediço que a descoberta do DNA causou uma revolução no que diz respeito às provas
judiciárias. Antes dele, em razão dos escassos recursos existentes, não era possível apurar,
com o necessário grau de segurança, a exclusão da paternidade daquele que não fora reconhecido. Isto porque os exames de sangue até então realizados eram aplicados de forma a
excluir a paternidade, contudo, não a apontavam com segurança eficiente.
Nos dias atuais, os exames de DNA esclarecem tais dúvidas, haja vista que determinam com uma certeza quase absoluta (99,999%) a paternidade.
8 MARINONI, LUIZ GUILHERME. Relativizar a coisa julgada material? Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/
abdpc/artigos/Luiz%20G.%20Marinoni(4)%20-formatado.pdf>. Marinoni é professor titular de direito processual da
Universidade Federal do Paraná.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Assim sendo, há casos de ações julgadas procedentes em que, expirado o prazo de 2
(dois) anos da ação rescisória, por meio da realização de exames de DNA, verificou-se que
o vencido não era pai do autor da ação. No entanto, fora-lhe reconhecida a paternidade,
da qual advinham diversas obrigações, de natureza patrimonial ou não, como a de prestar
alimentos e as de natureza sucessória.
Do mesmo modo, situação inversa facilmente também se verifica, ou seja, a paternidade não fora anteriormente reconhecida, porém, uma vez submetidos a exame de DNA,
constatou-se que o até então vencedor era o pai do autor da ação, tendo para com este diversos deveres decorrentes da relação de filiação.
Com esse panorama, podem-se perceber injustiças praticadas em alguns processos,
por não haver, à época da decisão, elementos suficientes para caracterização da paternidade, ou pela impossibilidade financeira de as partes o realizarem. Moderna doutrina trata do
assunto concernente à relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade. Cuida-se, como apontado, de uma confrontação da justiça com a segurança jurídica,
ou com a lei propriamente. Vê-se em contraposição o comando legal, determinando seja
respeitada a coisa julgada, e, de outro, uma injustiça patente, posto que se demonstra, por
meio de prova irrefutável, o equívoco da decisão.
Mais do que uma injustiça – até mesmo para que não venhamos nos utilizar desse argumento, frágil e de fácil superação, conforme visto das lições de Ovídio no último capítulo
–, a realidade revelada pelo DNA nos traz uma consequência difícil de “engolir”, por assim
dizer, pois nos lança diante de uma sentença totalmente dissociada da realidade factual e
inconteste do exame genético.
Dada a confiabilidade da prova apresentada, no caso em tela, o exame de ADN, a
comunidade jurídica depara-se, atualmente, com tal entrave justiça x segurança jurídica x
dignidade da pessoa humana.
Uma vez suscitado o conflito, o fundamento utilizado pelos defensores da relativização é o de que a justiça das decisões judiciais deve prevalecer sobre a autoridade da coisa
julgada material, levando-se em conta a relevância do direito referente ao estado da pessoa
a ser tutelado, qual seja, o de se ver ou não declarada a paternidade.
Diante de um erro na decisão que não declara a paternidade, frequentemente verificase a falta de apresentação de provas convincentes como exame de DNA. Já nas sentenças
que reconhecem a paternidade, constata-se, não poucas vezes, um julgamento célere ou
mesmo parcial – sob o aspecto do sentimentalismo – por parte do Magistrado que se compadece da situação de um filho sem pai.
Conforme interessante artigo disponibilizado na Internet acerca do tema9: “[...] Sábias
as palavras de Belmiro Welter: ‘O Poder Judiciário, sob pena de perder a razão de ser, tem
o dever legal de dar o pai, e não um pai ao investigante’”.
9 LINS FILHO, Bartolomeu Bastos Acioli. Justiça x segurança jurídica: a relativização da coisa julgada nas ações de
investigação de paternidade. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 754, 28 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.
br/doutrina/texto.asp?id=7079>. Acesso em: 21 mar. 2012.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Ocorre que, em muitos casos, há apenas indicações no sentido de que o investigado
é o pai do investigante, e o Magistrado, a despeito de conter nos autos elementos robustos
que provem isso, declara ser pai quem, de fato, não é.
A impossibilidade de se realizar o exame de DNA justifica-se por dois motivos: ou não
havia sido inventada a técnica do teste de paternidade, à época do processo, ou as partes
(investigado e investigante) não possuíam condições financeiras para arcar com o custo do
exame, uma vez que este tem um preço elevado para sua realização e na época não havia
disponibilidade de ser realizado pelo Departamento Médico Judiciário, como hoje ocorre.
De qualquer modo, a injustiça é latente e incomoda muito. Mais do que isso, a dissonância entre a realidade estabelecida na sentença e a realidade revelada pelo exame causam
enorme desconforto a quem quer que se lance a pensar no assunto, quem dirá às partes
envolvidas.
Ainda que injusta a decisão, vê-se alguém protegido sob o manto da coisa julgada,
arguindo os defensores desta tese que, durante todo o processo, o investigado dispôs de todos os meios processuais de defesa admitidos pelo ordenamento jurídico brasileiro e, ainda
assim, saiu-se derrotado. Ademais, defendem-se a ordem jurídica vigente e a segurança das
decisões judiciais proferidas, entendendo que um princípio protegido e consagrado pela
Constituição Federal não pode ser desatendido por parte do Judiciário, sob pena de este
Poder perder sua confiabilidade e suas decisões adquirirem o caráter de fragilidade perene.
O intricado problema afigura-se como uma inquietante provocação ao legislador brasileiro, para que solucione um impasse: de um lado, deve ser estabelecido um sistema processual que garanta a efetivação do direito e da justiça da forma mais eficaz possível; de
outro, deve ser garantida a estabilidade das relações jurídicas, a fim de que não se instaure
um verdadeiro caos social.
A solução do problema encontra suas raízes no próprio sentido do direito, fundada na
seguinte premissa: antes do Direito, a justiça. Assim, pode-se considerar como juridicamente razoável a desconstituição desses julgados e, ainda, a modificação da lei, com o intuito
de se adequar a norma à nova realidade. Não se pugna, aqui, pela total desmoralização do
instituto da coisa julgada, uma vez que não se deve conceber a mudança reiterada de sentenças definitivas, por qualquer fato novo. Entretanto, o reconhecimento da paternidade por
meio da realização do DNA representa um caso de evolução tecnológica capaz de se dizer,
com certeza científica, o que pretende o juiz com toda a instrução processual.
Ainda para os defensores da impossibilidade de desconstituição do julgado, a relativização da coisa julgada acarretaria completa anulação da função do juiz, visto que privilegiada a conclusão de um biólogo em detrimento da conclusão do Magistrado.
Tal alegação mostra-se descabida face ao princípio do livre convencimento motivado,
que desvincula o juiz de qualquer perícia realizada no curso do processo, se entender de
modo contrário ao laudo.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Em tese, não haveria razão para que o juiz não julgasse conforme o resultado do teste
de paternidade nas ações investigatórias, uma vez que todo o desenvolver do processo se
dá com vistas exatamente ao que se vai declarar no exame. Além do que a realização do
teste de DNA imprime uma feição de otimismo, posto que o auxílio prestado pela medicina ao deslinde de casos na vida forense mostra-se, atualmente, de grande valia e de muito
conforto.
Para aqueles casos em que há fraude no fazimento dos testes de paternidade, o direito
brasileiro permite ao juiz, sempre que achar prudente, determinar a repetição do exame em
laboratório diferente, como corolário de seu poder de instrução no processo.
Como se não bastassem tais assertivas para rebater a tese de anulabilidade da função
judicial, na quase totalidade dos casos, a ação de investigação de paternidade vem cumulada com pedido de alimentos, e, para determinar o quantum da prestação, é imprescindível
a atuação do Magistrado.
Tratando-se de ação de estado em razão de representar o direito de filiação, a ação de
investigação de paternidade envolve direitos indisponíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis.
Mantendo-se uma decisão que, à vista de todos, é manifestamente injusta, aí sim estar-se-ia
diminuindo a credibilidade dos Poderes Judiciário e Legislativo frente à sociedade.
Embora os opositores da tese de relativização da coisa julgada afirmem que a desconstituição das decisões judiciais proferidas, seguidas de todas as formalidades legais, acarreta
em perda de credibilidade destes Poderes, o que se vê é justamente o contrário, uma vez
que descreditante seria um Poder julgar uma ação, de modo que se mostre, posteriormente,
com certeza científica, o contrário do que se decidiu.
Ataca-se ainda a desconstituição destes julgados com fulcro na alegação de que a
segurança jurídica seria um princípio geral do Direito. De fato, trata-se de um princípio e,
como tal, deve-se sobrepor às leis. No entanto, a tese defensiva da relativização da coisa
julgada também se encontra alicerçada em princípios do direito.
O primeiro deles, considerado como o de maior destaque, é o princípio da justiça das
decisões judiciais, decorrente da garantia constitucional de acesso à prestação jurisdicional,
previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Carta Magna. Além desse, tal tese é corroborada nos
princípios da cidadania e dignidade da pessoa humana, previstos como fundamentos da CF,
em seu art. 1º, incisos II e III. Quando ocorre, portanto, choque entre princípios, deve-se
harmonizá-los, visto que princípios não se revogam.
A segurança jurídica é um dos princípios que norteiam o Direito brasileiro. A questão
ora suscitada é objeto de recentes transformações e contribuições, tanto doutrinárias quanto
jurisprudenciais, sendo que tem-se percebido mudanças acerca de sua compreensão.
Embora não haja vasta doutrina sobre o assunto, as inquietações são perceptíveis pela
injustiça manifesta das decisões contrárias à apuração científica da real paternidade.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Segundo Maria Cristina de Almeida10, a possibilidade de relativizar a coisa julgada
não deve ser descartada, pois, com o advento do DNA, tornou-se possível a verificação da
filiação biológica nas ações de investigação de paternidade. Refere ser uma verdadeira insegurança jurídica a decisão proferida sem embasamento científico, sendo preciso repensar
a aplicação do instituto da coisa julgada para que o Direito não se desencontre da justiça.
Para os adeptos da relativização da coisa julgada, o fenômeno de imutabilidade só
ocorre se no processo de investigação de paternidade tiverem sido produzidas todas as
provas permitidas em lei, inclusive o exame científico de DNA. Em outras palavras, não faz
coisa julgada material a decisão judicial em ações filiatórias nas quais não foram exauridos
todos os meios de prova, seja por falta de condições das partes interessadas, seja por incúria
dos advogados, seja por inércia do Estado-juiz11.
Importante destacar que, mesmo dentre aqueles favoráveis da tese, a relativização
do instituto da coisa julgada é defendida somente em situações excepcionais. As ações de
investigação de paternidade, nas quais não foram exauridos todos os meios de prova, não
tendo ocorrido a edificação da filiação socioafetiva, são um exemplo concreto desta possibilidade.
De se relevar, ainda, que os atributos de não prescrição da ação de investigação de
paternidade e de não disponibilidade dos interesses por ela promovidos revelam-se incompatíveis com qualquer restrição decorrente da coisa julgada.
Como a ação de investigação de paternidade pertence ao rol das ações de estado,
como já dito, são inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis, destinadas a dirimir controvérsias relativas ao status personae, estabelecendo um vínculo de filiação não pacífico,
objetivando acertar o estado familiar. Sendo, ao mesmo tempo, uma ação declaratória, ao
afirmar e convalidar o estado de filiação e a posição do interessado no grupo familiar, comprovando o seu status familiae12.
A imprescritibilidade da ação de investigação de paternidade não atinge, porém, os
efeitos patrimoniais decorrentes da sentença declaratória, como direito a alimentos, herança, entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal com a criação da Súmula nº
14913.
Nesse ponto, podemos colacionar as palavras de Cândido Dinamarco acerca da relativização da coisa julgada14:
10 ALMEIDA, Maria Christina de. Investigação de paternidade e DNA: aspectos polêmicos. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001. p. 58.
11 MOURA, Claudia Belotti. A questão da coisa julgada na investigação de paternidade: novas perspectivas. Passo Fundo:
UPF, 2004. p. 91.
12 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 455.
13 Súmula nº 149 do STF: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a da petição de herança”.
14 Apud LINS FILHO, Bartolomeu Bastos Acioli. Justiça x segurança jurídica: a relativização da coisa julgada nas ações de
investigação de paternidade. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 754, 28 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.
br/doutrina/texto.asp?id=7079>. Acesso em: 21 mar. 2012.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Deve aplicar-se a todos os casos de ações de investigação de paternidade julgadas procedentes
ou improcedentes antes do advento dos modernos testes imunológicos (HLA, DNA), porque
do contrário a coisa julgada estaria privando alguém de ter como pai aquele que realmente o
é, ou impondo a alguém um suposto filho que realmente não o é.
3 ALTERNATIVAS PARA RESOLVER A QUESTÃO
Objetivando contornar, ou ao menos atenuar, o problema, há uma proposta de nova
redação do art. 1.606 do Código Civil, com a inclusão de um parágrafo segundo que estabeleceria que não fazem coisa julgada as ações de investigação de paternidade decididas
sem a realização do exame de DNA.
Advindo do Superior Tribunal de Justiça também se pode notar avanço significativo
neste sentido, conforme se verifica pelos julgados:
[...] Essa decisão é no sentido de que a apresentação do teste de ADN não preclui. DIREITOS
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE – PROVA GENÉTICA –
DNA – REQUERIMENTO FEITO A DESTEMPO – VALIDADE NATUREZA DA DEMANDA
– AÇÃO DE ESTADO – BUSCA DA VERDADE REAL – PRECLUSÃO – INSTRUÇÃO PROBATÓRIA – INOCORRÊNCIA PARA O JUIZ – “PROCESSO CIVIL CONTEMPORÂNEO” – “Na
fase atual de evolução do direito de família, não se justifica inacolher a produção de prova
genética pelo DNA, que a Ciência tem proclamado idônea e eficaz”. Este outro acórdão é de
uma ação de investigação de paternidade julgada improcedente no Juízo a quo, cuja sentença
foi desconstituída pelo STJ. A fundamentação é semelhante à dos casos em que se declara e,
posteriormente, desconstitui-se. “Quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo
DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior” REsp 222445 PR
1999/0061055-5.
Denota-se, em análise à orientação da Turma julgadora do eg. Superior Tribunal de
Justiça, ser sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética, pois
que permite ao julgador um juízo de convincente probabilidade, senão de certeza na solução do conflito. Ademais, há que se considerar como grande progresso da ciência jurídica,
em sede instrutória, a substituição da verdade ficta pela verdade real. Quando os operadores
do Direito passam a questionar a autoridade da coisa julgada em busca da realização de um
processo justo, confronta-se com a segurança prática das relações jurídicas que o instituto
assegura, de onde decorrem as dificuldades que se opõem à sua ruptura.
Dessa forma, ante a ausência de dispositivos legais autorizadores da relativização da
coisa julgada, tal como têm decidido o eg. Superior Tribunal de Justiça, a jurisprudência
deve firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum.
Na ponderação dos referidos bens prepondera o direito personalíssimo ao reconhecimento da paternidade sobre o direito à estabilização da lide, mas também pelo fato de que
a segurança jurídica não pode prevalecer a qualquer custo, reconhecendo a definitividade
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Coisa Julgada - Algumas Questões
de decisões judiciais já transitadas em julgado sem considerar a natureza da verdade formal
sobre a qual a coisa julgada recai, pois a verdade material conhecida após a realização do
exame de DNA deve prevalecer, ainda que isso signifique a desconstituição da coisa julgada, pois, neste específico caso, estar-se-á priorizando direito fundamental anteriormente
referido em detrimento da segurança jurídica e da proteção à coisa julgada.
Não é razoável impossibilitar o filho de buscar o reconhecimento da paternidade de
seu verdadeiro pai simplesmente pelo fato dele já ter exercitado este direito em momento
anterior, tendo o Judiciário atestado a paternidade de forma equivocada. Se a paternidade
atestada pelo Judiciário não condiz com a realidade e isso resta comprovado pela negativa
de paternidade por meio do exame de DNA, nada mais justo do que possibilitar o ajuizamento de ação rescisória ou, na impossibilidade desta, de ação declaratória de negativa de
paternidade.
Deve-se possibilitar, portanto, que o filho ajuíze ação rescisória para fins de desconstituir a coisa julgada anteriormente perfectibilizada, ou, na impossibilidade jurídica de ajuizamento desta ação, face o decurso do respectivo prazo, tornar excepcionalmente possível
o ajuizamento de ação declaratória de negativa de paternidade para o mesmo fim, tendo em
vista a peculiaridade do direito material posto à apreciação do Poder Judiciário, ou ainda
repropor, simplesmente, outra ação de investigação de paternidade.
Cumpre registrar o posicionamento adotado por Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald15 na defesa de que é possível o ajuizamento direto de ação declaratória de negativa de paternidade sem que seja preciso ajuizamento de ação rescisória, sob o argumento de
que, se a ação filiatória anterior não exauriu todos os meios de prova capazes de identificar
com precisão a paternidade ou não do réu, não pode ser acobertada pelo manto da coisa
julgada, posto que, nesta espécie de ação, o instituto da coisa julgada é regido pela técnica
secumdum eventum probationes, segundo a qual a formação da coisa julgada depende do
resultado da produção probatória (2010, p. 654-655).
Nesse ponto, interessante argumentar com os dizeres de Eduardo Couture16: “‘O direito não é um fim, mas um meio’. Na escala dos valores, não aparece o direito. Aparece, no
entanto, a justiça, que é um fim em si, e a respeito da qual o direito é tão somente um meio
para atingi-la”.
Bem com relembrar sua célebre assertiva: “Teu dever é lutar pelo direito; porém, quando encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça”.
A frase é antiga, mas mais do que nunca atual. É contemporânea, pois mais do que
nunca tem se falado em instrumento valorativo, instrumentalidade das formas, instrumentalidade do processo civil ou ainda em constitucionalização dos direitos.
15 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALDI, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.
654/655.
16 COUTURE, Eduardo Juan. Os mandamentos do advogado. Tradução de Ovídio A. Batista da Silva e Carlos Otávio de
Athayde. Porto Alegre: Fabris, 1979. p. 39.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Ora, esses temas poderão ser pensados quando tratamos do assunto da relativização
da coisa julgada. Não basta o direito de acesso ao Judiciário; esse acesso deve ser efetivo,
substancial, garantir e fazer realizar direitos.
Também não é menos verdade que estamos todos preocupados com a celeridade e
com a quantidade enorme de processos em tramitação, mas não podemos ser “contaminados”, por assim dizer, por esses problemas esquecendo direitos fundamentais, nem que para
estes serem realizados tenhamos que lidar com um número grande de processos. Restará,
então, que nos adequemos administrativamente, não misturemos o direito com esse excesso
de trabalho.
Interessante ainda a proposta de Marinoni sobre o assunto, que aduz que Marinoni,
nos casos em que a investigação de paternidade ocorreu na época em que o exame de DNA
ainda não existia, não há dúvida que o laudo de DNA pode ser equiparado a um “documento novo”. Mas alerta tal jurista que ainda haveria um problema: a decisão poderia ter
transitado em julgado antes que fosse possível a realização da prova técnica de DNA. Como
ficaria, então, a contagem do prazo decadencial de propositura da rescisória? Vejamos sua
posição:
[...] se o prazo não pode ser contado a partir do trânsito em julgado da sentença que se quer
impugnar, porque não se trata de algo que já existia na época do processo extinto, mas de
um meio que passou a existir não se sabe quanto tempo após o trânsito em julgado, aparece
uma nova questão: é certo deixar que o vencido na ação de investigação de paternidade, seja
autor ou réu, possa rever a sentença a qualquer tempo, sem subordiná-lo a qualquer prazo?
Será que a biologia não estaria se sobrepondo à própria necessidade da definição da relação
de filiação, a qual é imprescindível para o surgimento do afeto necessário para a vida entre pai
e filho, ou mesmo tornando indefinida a vida das pessoas? Perceba-se que a eterna abertura à
discussão da relação de filiação consistiria algo que sempre estaria a estimular a desconfiança
dos envolvidos. Porém, é claro que, mesmo em relação à investigação de paternidade, o estabelecimento de prazo para a rescisão da sentença é um imperativo da natureza do ser humano
e da vida em sociedade e, assim, da própria necessidade da jurisdição.
Como é óbvio, não se pretende afirmar que a evolução tecnológica não possui importância
para a descoberta da relação de filiação. O que se deseja evidenciar é que a eternização da
possibilidade da revisão da coisa julgada pode estimular a dúvida e, desse modo, dificultar a
estabilização das relações.
Seria correto concluir que a sentença da ação de investigação de paternidade somente pode
ser rescindida a partir de prazo contado da ciência da parte vencida sobre a existência do
exame de DNA. Não obstante, a dificuldade de identificação dessa ciência, que certamente
seria levantada, é somente mais uma razão a recomendar a imediata intervenção legislativa.
Como essa ação possui relação com a evolução da tecnologia, ou melhor, com uma forma
de produção de prova impensável na época em que o art. 485 do CPC passou a reger a ação
rescisória, é imprescindível que esse artigo seja alterado para deixar clara a possibilidade
do uso da ação rescisória com base em laudo de DNA, bem como o seu prazo2. (grifos do
autor)
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Não se deve ter como certo a existência da coisa julgada material nos casos de investigação de paternidade, em que não foi realizado o exame de DNA. Esse pensamento, já
dominante, também está sendo sedimentado nos Tribunais brasileiros e na consciência coletiva. A concepção social do processo não admite a aplicação do sistema da coisa julgada
tradicional nessas ações. Assim, a melhor técnica processual para regular a coisa julgada nas
ações filiatórias não pode ser outra senão a coisa julgada secundum eventum probationes17.
17 Belmiro Pedro Welter (cf. Coisa julgada na investigação de paternidade, p. 113) assevera que “somente haverá coisa
julgada material, nas ações de investigação e contestação de paternidade, quando tiverem sido produzidas, inclusive de
ofício e sempre que possível, todas as provas, documental, testemunhal, pericial e especialmente, exame genético DNA,
e depoimento pessoal”.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Com a Palavra, o Procurador
Coisa Julgada: Análise da Declaração de Inconstitucionalidade Como Óbice à
Execução da Sentença Transitada em Julgado
Res Judicata: Analysis of the Declaration of Unconstitutionality as an Obstacle for the Implementation of
Final Judgment
FABIO ALESSANDRO FRESSATO LESSNAU
Procurador Federal, Mestrando em Direito Processual Civil pela Universidade Paranaense – Unipar, Especialista em Direito Processual Civil, Especialista em Direito Previdenciário, Membro Fundador da Academia
Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst.
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre o conceito constitucional de coisa julgada para
que seja possível extrair a força normativa deste instituto no ordenamento jurídico. A coisa julgada, instituto
consagrado na Constituição Federal com o teor de garantia constitucional, atua na defesa de direitos fundamentais, em especial a segurança jurídica, representando um efeito do comando da sentença, a qual se torna
imutável e indiscutível, não estando limitada ao conceito de regra processual de direito intertemporal. Toda
a matéria relacionada ao julgamento passado resta preclusa, impossibilitando sua reapreciação judicial em
ação posterior com base em novos argumentos. Porém, na hipótese de a matéria constitucional não ter sido
ventilada no curso do processo de conhecimento, o Código de Processo Civil disciplinou duas modalidades para
tornar o título executivo inexigível ao inserir, pela Lei nº 11.232/2005, os arts. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo
único. Cabe ao Poder Judiciário a prestação de tutela jurisdicional justa. Porém, caso seja proferida decisão
extremamente iníqua, deveriam ser utilizados os instrumentos processuais disponíveis para corrigi-las, nem
que para isso fosse necessário superar outros valores consagrados no Texto Constitucional, como a coisa julgada. O estudo demonstra que, na hipótese de haver pronunciamento definitivo anterior pelo Supremo Tribunal
Federal sobre a constitucionalidade da norma, caberia a arguição de inexigibilidade do título judicial. Contudo,
a decisão posterior não teria o atributo de gerar o mesmo efeito, pois não se admite, neste caso, aplicação
retroativa do julgado proferido pela Corte Constitucional.
PALAVRAS-CHAVE: Decisão judicial; coisa julgada; declaração de inconstitucionalidade.
ABSTRACT: The res judicata, institute consecrated by Federal Constitution with the content of the guarantee
constitutional, operates in the defense of fundamental rights, in particular the security legal, representing an
effect of command of the sentence, which it becomes immutable and unquestionable, not being limited to
the concept of procedural rule of law intertemporal. Any matter related to judgment past remains mandatory,
making it impossible-its judicial review in action later based on new arguments. However, in the event of constitutional matters have not been aired in the course of the process of knowledge, the Code of Civil Procedure
disciplined two ways to make the enforceable enforcement to insert through Law 11,232 /2005 articles 475-L,
§ 1 and 741, 2nd paragraph. It is for the Judiciary the provision of jurisdictional tutelage fair. However, if a ruling
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Coisa Julgada - Algumas Questões
extremely unfair, should be used the procedural tools available to fix them, nor that for that would be necessary
to overcome other values enshrined in the Constitutional text, as the res judicata. The study demonstrates
that the hypothesis of previous definitive pronouncement by the Supreme Court on the constitutionality of the
provision, arguing it would be up the judicial enforceability of the title, but the subsequent decision would not
have the attribute to generate the same effect because the retroactive application is not admitted dismissed
the ruling by the Constitutional Court.
KEYWORDS: Court decision; res judicata; declaration of unconstitutionality.
RESUMEN: El presente artículo tiene como objetivo discurrir sobre el concepto constitucional de cosa juzgada
para que sea posible extraer la fuerza normativa de este instituto en el ordenamento jurídico. Se concluye
que la cosa juzgada, instituto consagrado en la Constitución Federal con el tenor de garantía constitucional,
actúa en la defensa de derechos fundamentales, en especial la seguridad jurídica, representando un efecto del
comando de la sentencia, a cual se vuelve inmutable e indiscutible, no estando limitada al concepto de regla
procesal de derecho intertemporal. Todo el materia relacionada al juicio pasado queda preclusa, imposibilitando su reapreciação judicial en acción posterior con base en nuevos argumentos. Sin embargo, en la hipótesis
de la materia constitucional no haber sido aventada en el curso del proceso de conocimiento, el Código de
Proceso Civil disciplinó dos modalidades para tornar el título ejecutivo inexigível al inserir a través de la Ley
11.232/2005 los artículos 475-L, § 1º y 741, párrafo único. Cabe al Poder Judiciario la prestación de tutela
jurisdiccional justa. Sin embargo, caso sea proferida decisión extremadamente inicua, deberían ser utilizados
los instrumentos procesales disponibles para corregirlas, ni que para eso fuese necesario superar otros valores
consagrados en el Texto Constitucional, como la cosa juzgada. El estudio demuestra que en la hipótesis de haber pronunciamiento definitivo anterior por el Supremo Tribunal Federal sobre la constitucionalidad de la norma,
cabría a arguição de inexigibilidade del título judicial. Sin embargo, la decisión posterior no tendría el atributo
de generar el mismo efecto, pues no se admite en este caso aplicación retroactiva del juzgado proferido por
la Corte Constitucional.
PALABRAS-LLAVE: Decisión judicial; cosa juzgada; declaración de inconstitucionalidad.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Disciplina constitucional da coisa julgada; 1.1 Conceito de coisa julgada e coisa julgada material e formal; 1.2 Eficácia preclusiva da coisa julgada; 1.3 Princípios orientadores da coisa julgada;
1.4 Norma, princípios e regras: coisa julgada e busca pelo resultado justo; 1.5 Interpretação constitucional –
Ponderação de interesses, bens e valores; 1.6 Instrumentos processuais de controle da coisa julgada: análise
da aplicação dos artigos 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único; 1.7 Declaração de (in)constitucionalidade posteriormente à sentença transitada em julgado; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O Estado Democrático de Direito objetiva garantir a Supremacia da Constituição Federal brasileira de 1988 como meio exclusivo de assegurar aos cidadãos a tutela da segurança
e da justiça. Nesse sentido, toda produção legislativa deve estar em consonância com o
Texto Constitucional sob pena ser declarado nulo por meio do sistema de controle de constitucionalidade das normas. Por sua vez, o Poder Judiciário, no desenvolvimento de suas
atividades típicas, pode igualmente produzir decisões de interpretação incompatível com a
Carta Constitucional, exigindo-se, assim, um sistema de controle.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Considerando que uma decisão judicial transitada em julgado restou fundamentada
em lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundada em aplicação, interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal, surge a discussão se a sentença poderia
ser avaliada inconstitucional e, portanto, desconstituída.
As decisões judiciais transitadas em julgado são protegidas pelo instituto da coisa julgada, ou seja, tornam-se imutáveis, indiscutíveis e representam a expressão máxima da realização da segurança jurídica. Por meio desse instituto, cria-se, nos cidadãos, uma espécie
de confiança de que a tutela jurisdicional não será alterada.
Portanto, o presente artigo tem como objetivo discorrer sobre o conceito constitucional de coisa julgada, para que seja possível extrair a força normativa deste instituto no
ordenamento jurídico. Mais especificamente, buscou-se estudar a disciplina jurídico-processual, visando ao efeito preclusivo da coisa julgada; compreender as normas e princípios
que regem a coisa julgada, bem como o método de interpretação constitucional que deve
ser aplicado diante da colisão de princípios constitucionais.
Assim sendo, tendo sido formada uma base sólida para o enfrentamento do ponto principal do trabalho, são expostos os instrumentos processuais disponíveis no ordenamento jurídico para a desconstituição da coisa julgada, com especial atenção aos arts. 475-L, § 1º, e
741, parágrafo único, dispositivos inseridos pela Lei nº 11.232/2005 no Código de Processo
Civil e que inauguraram um novo conceito de inexigibilidade do título judicial.
Ainda, busca-se analisar se a declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal de determinada lei ou ato normativo poderia retroagir sobre a coisa julgada
material, representando um obstáculo à execução da sentença. Para tal fim, são analisados
os instrumentos processuais disciplinados nos arts. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único, os
quais representam verdadeiros mecanismos para superar instituto constitucional da coisa
julgada.
A proposição construída tem em vista a identificação da teoria do processo voltada
para a prestação de uma tutela jurisdicional efetiva, justa, eficaz e, principalmente, adequada ao sistema constitucional pátrio, privilegiando-se sempre a supremacia da Constituição
Federal, notadamente os princípios e direitos fundamentais.
1 Disciplina Constitucional da Coisa Julgada
A coisa julgada não está limitada ao âmbito do direito processual, pois pertence originariamente ao direito constitucional1, dispondo do teor de garantia fundamental, não podendo ser modificada e/ou abolida, nem mesmo por meio de emenda constitucional. Tratase de instituto indispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do acesso ao
Poder Judiciário.
1 CF/1988, art. 5º, XXXVI: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (2005).
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O dispositivo encontra-se redigido no Capítulo I – Dos Direitos e Garantias Individuais
e Coletivos – do Título I – Dos Direitos e Garantias Fundamentais – da Constituição Federal
de 1988, dispondo de todas as características naturais a estas espécies de normas, ou seja,
em uma primeira perspectiva, é norma de competência negativa para os poderes públicos,
os quais não podem atuar de maneira desregrada sobre os indivíduos e, em segundo, por
representar o poder de efetivo exercício dos direitos fundamentais (liberdade positiva) e de
instrumento para exigir omissões dos poderes públicos (liberdade negativa)2.
Assim, a garantia constitucional da coisa julgada encontra-se incólume à atuação do
legislador derivado ou, em uma visão mais superficial, de qualquer decisão judicial que
objetive suprimi-la.
Os destinatários dessa garantia são naturalmente o legislador, no sentido de impor
balizas para sua regulamentação, de modo que prevaleça seu conceito originário consistente em conferir definitividade à sentença irrecorrível. Também é norma cogente aos juízes
e Administração Pública3 que são proibidos de exercer jurisdição ou atribuição, naqueles
casos em que a decisão encontra-se estabilizada, ou seja, não podem indefinidamente retornar a decidir questões que já tenham se pronunciado. Por fim, a norma é imperativa para
as partes, a quem não é facultada o direito de ação ou defesa como forma de se rediscutir a
matéria considerada imutável.
A análise aparente dessa norma constitucional levaria o intérprete a considerá-la como
simples regra de direito intertemporal, sendo que sua normatização na Constituição Federal ficaria restrita aos efeitos à nova lei. Esse entendimento encontra respaldo nas lições de
Theodoro Junior e Faria (2002, p. 41), ao afirmarem que “[...] a preocupação do legislador
constituinte foi apenas a de pôr a coisa julgada a salvo dos efeitos da lei nova que contemplasse regra diversa de normatização da relação jurídica objeto de decisão judicial não mais
sujeita a recurso”.
Em sentido equivalente, Machado (2005) explica que
[...] o legislador constitucional, ao tratar da coisa julgada no art. 5º, apenas quis colocá-la a
salvo de lei nova, ou seja, uma sentença transitada em julgado não poderia ser desfeita se uma
lei posterior desse tratamento jurídico diferente àquele dispositivo utilizado pelo julgador, em
sua decisão. É a garantia de irretroatividade da lei no que se refere ao direito adquirido, ato
jurídico perfeito e à coisa julgada. (Machado, 2005, p. 85)
2 Esta dupla função dos direitos fundamentais foi desenvolvida por J. J. Canotilho (1993, p. 541).
3 Importante o esclarecimento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2004, p. 632): “[...] há que se ter em conta que,
sendo muito diversas as funções jurisdicionais e administrativa, pela forma como nelas atua o Estado, não se pode
simplesmente transpor uma noção, como a de coisa julgada, de um ramo, onde tem pleno fundamento, para outro, em
que não se justifica. [...] a expressão coisa julgada, no direito administrativo, não tem o mesmo sentido que no direito
judiciário. Ela significa apenas que a decisão se tornou irretratável pela própria Administração”.
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Ao tratar da garantia constitucional disciplinada no art. 5º, XXXVI, Moreira (2005, p.
14-15) afirma que a “[...] leitura superficial desse texto verá nele simples regra de direito
intertemporal: aí se consagra limitação tradicional à retroeficácia da lei. Todavia, por sob
singelo enunciado, palpita realidade bem mais rica”.
Esclarecendo o sentido dessa realidade bem mais rica e confirmando o entendimento
de que a coisa julgada é garantia constitucional, Nery Junior (2004) evidencia que:
Sua proteção não está apenas na CF, art. 5º, XXXVI, mas principalmente na norma que descreve os fundamentos da Republica (CF, art. 1º). O Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º,
caput) e um de seus elementos de existência (e, simultaneamente, garantia fundamental – CF,
art. 5º, XXXVI), que é a coisa julgada, são cláusulas pétreas em nosso sistema constitucional,
cláusulas essas que não podem ser modificadas ou abolidas nem por emenda constitucional
(CF, art. 60, § 4º, I e IV), porquanto bases fundamentais da República Federativa do Brasil. Por
consequência e com muito maior razão, não podem ser modificadas ou abolidas por lei ordinária ou por decisão judicial posterior. (Nery Junior, 2004, p. 511)
Para Cramer (2008, p. 213), a coisa julgada, “[...] além de garantia constitucional,
prevista no inciso XXXVI do art. 5º da CF/1988, é princípio constitucional e tem como bem
jurídico protegido, a segurança jurídica”.
Demonstrando a intensidade da imutabilidade do instituto da coisa julgada e admitindo, igualmente, sua qualidade de garantia constitucional, Marques (2000) assim se posiciona:
A coisa julgada cria, para a segurança dos direitos subjetivos, situação de imutabilidade que
nem mesmo a lei pode destruir ou vulnerar – é o que se infere do art. 5º, XXXVI, da Lei Maior. E
sob esse aspecto é que se pode qualificar a res iudicata como garantia constitucional de tutela
a direito individual. Por outro lado, essa garantia, outorgada na Constituição, dá mais ênfase e
realce àquela da tutela jurisdicional, constitucionalmente consagrada, no art. 5º, XXXV, para a
defesa de direito atingido por ato lesivo, visto que a torna intangível até mesmo em face de lex
posterius, depois que o Judiciário exaure o exercício da referida tutela, decidindo e compondo
a lide. (Marques, 2000, p. 329)
Portanto, o instituto da coisa julgada está disciplinado na Carta Magna como garantia constitucional, podendo ser considerada, inclusive, como preceito angular do sistema.
Dessa forma, serve como parâmetro de interpretação das demais normas jurídicas, não se
limitando ao conceito de regra relacionado ao direito intertemporal, com aplicação restrita
aos efeitos da nova lei.
1.1 Conceito de coisa julgada e coisa julgada material e formal
Ao proferir decisão de mérito, o Magistrado pacifica o conflito posto ao seu crivo,
sendo que este pronunciamento, quando definitivo, ou seja, não mais sujeito a qualquer
espécie de recurso, é transformado em lei para o caso concreto e verte efeitos para além do
processo em que houve tal pronúncia.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Partindo-se do pressuposto de que por meio da jurisdição a atuação da vontade real da
lei é aplicada ao caso concreto, entende-se que a função jurisdicional importa em utilizarse do processo para alcançar uma solução definitiva e indiscutível para o conflito que deu
razão ao ajuizamento de uma demanda e finalmente proferir ato com força de lei, porém
nos limites da lide e das questões decididas.
Como decorrência lógica da função jurisdicional, o instituto da coisa julgada está diretamente relacionado ao status de imutabilidade – impossibilidade de alteração da sentença
transitada em julgado – e indiscutibilidade – impossibilidade de instaurar-se nova discussão
em torno da mesma lide sobre a qual se solidificou a coisa julgada.
Conclui Liebman (1952, apud Marques, 1999, p. 344-345) que “[...] a sentença não
corre mais perigo de ser impugnada, e, portanto, modificada ou anulada”, de modo que se
torna “inatacável e irrevogável”. Marques (1999, p. 345) finaliza o pensamento ao ressaltar
que o fenômeno da coisa julgada é “[...] a imutabilidade da entrega da prestação jurisdicional e seus efeitos, para que o imperativo jurídico contido na sentença tenha força de lei
entre as partes”.
Moreira de Paula (2002, p. 246) conceitua coisa julgada como “[...] a qualidade do
comando da sentença (efeito imediato) que torna imutável e indiscutível, em virtude do esgotamento de todas as vias recursais ou em virtude da não interposição de recurso”.
A indiscutibilidade da sentença judicial fora do processo – extraproces­sual – se alcançada a realidade social das partes envolvidas no litígio e eventuais terceiros – é definida como coisa julgada material. Por sua vez, a coisa julgada formal verifica-se dentro
do próprio processo – endoprocessual –, consubstanciando-se na impossibilidade de nova
discussão sobre a matéria decidida no âmbito da relação processual em que a sentença foi
proferida.
Com a imutabilidade da decisão dentro do processo, pode-se afirmar que se esgota a
jurisdição, tendo o Estado cumprido seu papel por meio de seu órgão judiciário. Esse conceito leva à ideia de preclusão, notadamente na impossibilidade de reavivar a discussão
em torno da matéria decidida na sentença, por não ser cabível qualquer espécie de recurso.
Em outras palavras, e seguindo o raciocínio de Marques (1999, p. 351-359), “a sentença pode produzir efeitos sob dois aspectos: (i) como ato processual e (ii) como eficácia
do comando dela emergente”. Assim sendo, como ato processual, a sentença gera efeitos
dentro da relação processual em que foi proferida, vinculando o órgão judiciário que a
pronunciou, de modo que o juiz e/ou tribunal fica impedido de modificar ou revogar suas
decisões, salvo exceções dispostas na lei.
Por isso mesmo, para as partes, torna-se inalterada a sentença quando não couber
qualquer recurso, seja porque o último órgão jurisdicional proferiu sua decisão, seja em
razão do transcurso de prazo para interposição de recurso, ou finalmente por sua desistência ou renúncia. Por sua vez, a coisa julgada material está traduzida na imutabilidade do
comando emergente da sentença, ou seja, representa o mais alto grau de indiscutibilidade a
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Coisa Julgada - Algumas Questões
resumir a eficácia da sentença que decidiu o mérito, de tal forma que não será mais possível
novo exame da matéria sobre a mesma relação jurídica entre as mesmas partes.
O Código de Processo Civil limitou a disciplinar a coisa julgada material em seu art.
467 nos seguintes termos: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”. Extraise, assim, da redação deste dispositivo que a res iudicata é efeito especial do julgado e não
qualidade, conforme pretendido por Liebmann (1945, apud Marinoni, 2006, p. 631-632),
ao enfatizar que
[...] esta expressão, assaz abstrata, não pode e não é de referir-se a um efeito autônomo que
possa estar de qualquer modo sozinho; indica, pelo contrário, a força, a maneira com que
certos efeitos se produzem, isto é, uma qualidade ou modo de ser deles.
O Código de Processo Civil não adotou a teoria de Liebmann, muito embora existam
manifestações na doutrina que entendam em sentido contrário4. Portanto, a coisa julgada é
elemento peculiar e característico da função jurisdicional, tendo como objetivo efetivar um
juízo de subsunção do fato concreto à norma jurídica abstrata, buscando-se, ao fim, uma
decisão imutável e indiscutível, representando, assim, o grau mais elevado de estabilidade
da situação litigiosa.
1.2 Eficácia preclusiva da coisa julgada
No curso do processo, surgem situações em que, para ultrapassar uma fase e adentrar
em outra subsequente, independe-se da conformidade e/ou desconformidade com a fase anterior. Configurada uma determinada situação, não existe mais oportunidade, salvo expressa
exceção disciplinada na lei, para o questionamento sobre a situação anterior. Contudo, tal
fenômeno ocorre não em razão da automática transformação do falso no verdadeiro, mas
pelo fato de que, juridicamente, não existe mais a oportunidade para o questionamento.
Há momentos em que o desígnio de buscar uma decisão justa está sujeito ao necessário caminhar do processo para que o litígio não se eternize. A lei processual disponibiliza
às partes amplas oportunidades de expor ao órgão judiciário argumentos, provas, impugnações e recursos para que se busque o direito pretendido5, porém, não o fazendo no momento oportuno e por intermédio do meio processual adequado, as matérias são repelidas.
4 O CPC adota a teoria de Liebmann ao afirmar que, “filiando-se ao entendimento de Liebmann, o novo Código não
considera a res iudicata como um efeito da sentença. Qualifica-a como uma qualidade especial do julgado, que reforça
sua eficácia através da imutabilidade conferida ao conteúdo da sentença como ato processual (coisa julgada formal) e
na imutabilidade dos seus efeitos (coisa julgada material)” (Theodoro Junior, 2007, p. 598).
5 Nesse sentido, José Carlos Barbosa Moreira (2005, p. 12): “Ressalvadas as hipóteses legalmente con­templadas, com a
coisa julgada material, chega-se a um point of no return. Cortaram-se as pontes, queimaram-se as naves; é impraticável
o regresso. Não se vai ao extremo bíblico de ameaçar com a transformação em estátua de sal quem pretender olhar
para trás; mas adverte-se que nada do que puder avistar, nessa mirada retrospectiva, será eficazmente utilizável como
aríete contra a muralha erguida. Foi com tal objetivo que se inventou a coisa julgada material e, se ela não servir para
isso, a rigor, nenhuma serventia terá. Subordinar a prevalência das res iudicata, em termos que extravasem do álveo do
direito positivo, à justiça da decisão, a ser aferida depois do término do processo, é esvaziar o instituto do seu sentido
essencial”.
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Da mesma forma, para a proteção da decisão transitada em julgado, toda matéria
relacionada ao julgamento passado resta preclusa, impossibilitando-se sua reapreciação judicial em ação posterior com base em novos argumentos. Tal orientação está prevista no
art. 474 do Código de Processo Civil: “Passada em julgado a sentença de mérito, reputarse-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim
ao conhecimento como à rejeição do pedido”. O elemento protetor da decisão judicial foi
denominado como eficácia preclusiva da coisa julgada.
Tratando com clareza sobre o tema, Marinoni e Arenhart (2006, p. 645) asseveram
que “[...] apenas as questões relativas à mesma causa de pedir ficam preclusas em função
da incidência da previsão expressa do art. 474. Todas as demais são livremente dedutíveis
em demanda posterior”.
Dessa forma, impede-se a propositura de nova demanda sob a alegação de que surgiram novos argumentos. Por outro lado, não haveria impedimento para a rediscussão em
razão de novos fatos ou direito (nova causa de pedir).
Nery Junior e Nery Andrade (2007) ensinam, de forma didática, qual o alcance da
eficácia preclusiva da coisa julgada:
A eficácia preclusiva da coisa julgada alcança: a) as questões de fato, bem como as de direito
efetivamente alegadas pelas partes ou interessados, tenham ou não sido examinadas pelo juiz
na sentença; b) as questões de fato e de direito que poderiam ter sido alegadas pelas partes
ou interessados, mas não o foram; c) as questões de fato e de direito que deveriam ter sido
examinadas ex officio pelo juiz, mas não o foram. (Nery Junior; Nery Andrade, 2007, p. 709)
Seguindo o raciocínio desenvolvido, a matéria de ordem constitucional alegada no
processo de conhecimento e decidida ou não pelo Magistrado, bem como as razões constitucionais que poderiam ter sido ventiladas, mas não foram, ou, enfim, aquelas que deveriam ter sido analisadas ex officio pelo Magistrado, porém não foram, restam atingidas pela
eficácia preclusiva da coisa julgada. Como consequência, não havendo pronunciamento
expresso pelo Magistrado sobre a matéria constitucional, presume-se que a lei ou interpretação aplicada é constitucional.
Porém, esse entendimento coloca-se em choque com as normas dispostas nos arts.
475-L, § 1º, e 741, parágrafo único do Código de Processo Civil, uma vez que autorizam
que seja alegada na impugnação ao cumprimento de sentença ou na execução contra a
Fazenda Pública a inexigibilidade do título judicial, quando este estiver fundamentado em
lei e/ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal
Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.
A doutrina é bastante discrepante sobre o tema, havendo aparente convergência de
ideias, somente no caso da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em caso de o
controle concentrado de constitucionalidade ser anterior ao comando judicial que se pretende dar cumprimento ou executar. Neste caso, admite-se a relativização da coisa julgada
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diante do surgimento de uma sentença inconstitucional6, pois, no choque entre princípios
protegidos pela Carta Constitucional, um destes princípios, na espécie a coisa julgada, deve
dar espaço à aplicação de uma norma angular de maior valor. Por sua vez, a decisão de
inconstitucionalidade proferida posteriormente pela Corte Constitucional não teria efeito
retroativo apto a quebrar a imutabilidade da coisa julgada.
Especificamente no caso da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal ser anterior, a impugnação que versar sobre inexigibilidade do título judicial, alegando inconstitucionalidade da norma legal que fundamentou o comando judicial, somente poderia ser feita
no prazo de 15 (quinze) dias, conforme disposto no art. 475-J, § 1º, do Código de Processo
Civil.
Uma vez ultrapassado esse prazo, restaria o ajuizamento de ação rescisória (no prazo
decadencial de dois anos), para a desconstituição do título judicial, por violação de literal
disposição de lei, nesta hipótese, a própria Constituição Federal, tomando-se como autorização legal o disposto no inciso V do art. 485 do Código de Processo Civil.
Por conseguinte, caso a matéria constitucional não seja ventilada no curso do processo de conhecimento, haverá necessária preclusão consumativa para sua discussão, de
modo que o comando judicial passará a estar acobertado pela autoridade da coisa julgada.
Entretanto, o Código de Processo Civil disciplinou duas novas modalidades para tornar o
título executivo inexigível, normatizando verdadeiras exceções ao efeito preclusivo da coisa
julgada. O tema merece maior aprofundamento, conforme se verá adiante.
1.3 Princípios orientadores da coisa julgada
O Estado dispõe do monopólio da jurisdição não admitindo a autotutela por parte dos
cidadãos. Por conseguinte, oferece o direito de se recorrer ao Poder Judiciário por meio do
direito de ação. Inicialmente, esse direito era compreendido como uma prerrogativa de obtenção de uma sentença, mas, com o decorrer do tempo, esse conceito foi aperfeiçoado ao
ponto de corresponder a uma resposta jurisdicional tempestiva, efetiva e de acordo com a
Constituição e controle de constitucionalidade.
O direito de acesso à justiça ou ação tornou-se princípio constitucional com teor de
garantia fundamental na medida em que foi disciplinado na Constituição Federal em seu
art. 5º, XXXV, com a seguinte redação: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Portanto, esse princípio manifesta-se com a propositura da
ação, a qual é instrumento para o pronunciamento de uma tutela jurisdicional indiscutível
e imutável.
6 Sobre a possibilidade do surgimento de uma sentença inconstitucional, “é inegável, porém, que uma decisão judicial
pode contrariar um comando constitucional [...]. A mera possibilidade de que decisões que afrontam a Constituição sejam
proferidas torna necessária a existência, no sistema processual, de um mecanismo de controle de constitucionalidade de
tais decisões” (Câmara, 2006, p. 16-17).
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O Magistrado dispõe da atribuição de interpretar a lei aplicável ao caso concreto tendo em vista sua conformação com o Texto Constitucional, ou seja, ao proferir uma decisão
em sede de controle difuso de constitucionalidade, está proferindo um juízo de constitucionalidade. Ao exercer seu direito de ação, o cidadão deposita no Poder Judiciário a confiança
de que será proferida decisão justa, definitiva e conforme as normas postas no Texto Maior.
Assim, essa decisão é corolário do direito fundamental de ação.
Ademais, a busca por essa tutela jurisdicional gera uma expectativa de que haverá
pacificação do conflito, consistente em uma decisão imutável e indiscutível, imprimindo
segurança e estabilidade às relações jurídicas, características de grande importância no Estado Democrático de Direito. Essa estabilidade das decisões é peça essencial para que os
jurisdicionados possam confiar na seriedade e na eficácia do Poder Judiciário.
Nery Junior (2004) esclarece que o instituto da coisa julgada propicia segurança jurídica, conforme abaixo transcrito:
Há determinados institutos no Direito, de natureza material [...] decadência, prescrição) ou
processual (preclusão), criados para propiciar segurança nas relações sociais e jurídicas. A
coisa julgada é um desses institutos e tem natureza constitucional, pois é [...] elemento que
forma a própria existência do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º). (2004, p. 510-511)
Marinoni (2008, p. 67-68) expõe que o princípio da segurança jurídica pode ser analisado em duas dimensões: uma objetiva e outra subjetiva. A primeira atua sobre a ordem
jurídica objetivamente considerada, relacionada à irretroatividade e à previsibilidade dos
atos estatais, utilizando, como exemplo, o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa
julgada. Nesse contexto, a coisa julgada tutela o princípio da segurança jurídica, consolidando a certeza de que as decisões judiciais serão definitivas e imodificáveis. Por sua vez,
a segunda é vista a partir do ângulo dos cidadãos em face dos atos do Poder Público. Nesta
visão, destaca-se a importância do princípio da segurança jurídica, que trata da confiança
que os cidadãos depositam no Estado e na expectativa de que seus órgãos atuarão para a
solução rápida e eficaz do conflito.
Ainda, o Estado deve garantir ao cidadão uma previsibilidade mínima na edição das
normas sobre sua atuação, para que assim possa agir nas relações jurídicas de forma válida
e eficaz, ou seja, propiciar segurança jurídica na atuação estatal. Com efeito, a garantia
constitucional da coisa julgada apresenta-se como fator de realização da segurança jurídica,
impondo estabilidade às decisões judiciais e, consequentemente, garantindo a confiança
dos cidadãos de que a tutela jurisdicional não será alterada.
1.4 Norma, princípios e regras: coisa julgada e busca pelo resultado justo
A doutrina moderna adota o entendimento de que as normas em geral e as normas
constitucionais podem ser classificadas em duas grandes categorias, quais sejam, princípios
e regras.
Resumidamente, pois não é este o foco do trabalho, conceitua-se regra como relatos
objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto restrito de hi-
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Coisa Julgada - Algumas Questões
póteses. A técnica da subsunção é suficiente para aplicação da regra, ou seja, ocorrendo a
hipótese prevista no seu texto, a regra deve incidir. Por sua vez, o princípio contém relatos
com alto grau de abstração, de modo que não é especificada uma conduta a ser seguida,
aplicando-se a um conjunto amplo e indeterminado de situações (Barroso, 2009, p. 353).
Barroso (2009, p. 354), abordando o papel das regras e dos princípios, sustenta que
[...] o sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada de regras e
princípios, nos quais as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica7 – previsibilidade e objetividade das condutas – e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à
realização da justiça do caso concreto.
A tutela jurisdicional tem como predicado a busca por decisões que representem o conceito de justiça. Tal preocupação não passou despercebida pelo legislador constituinte originário, ao consagrar, no Texto Maior, princípios constitucionais processuais que visam a dar
eficácia a este ideal, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa (art. 5º,
LIV e LV, da CF/1988), a publicidade dos atos processuais, o dever de motivação das decisões
judiciais (art. 5º, LX), a celeridade processual (art. 5º, LXXVIII, da CF/1988), entre outros.
Nesse sentido, decisões extremamente injustas não poderiam perpetuar sem que houvesse qualquer instrumento para corrigi-las, nem que para isso fosse necessário ultrapassar
outros valores consagrados no Texto Constitucional, como o caso do instituto da coisa julgada.
Semelhante a esse entendimento, Dinamarco (1999, p. 9) menciona que
[...] a doutrina e os tribunais começam a despertar para necessidade de repensar a garantia
constitucional e o instituto técnico-processual da coisa julgada, na consciência de que não é
legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas.
Seguindo esse mesmo posicionamento, o Ministro José Augusto Delgado firmou sua
posição doutrinária no sentido de não reconhecer caráter absoluto à coisa julgada, declarando ser favorável a determinada corrente que entende ser impossível a coisa julgada, só
pelo fundamento de impor segurança jurídica, sobrepondo-se aos princípios da moralidade
pública e da razoabilidade nas obrigações assumidas pelo Estado (Brasil, 2010).
Concluindo esse pensamento, Hitter (apud Dinamarco, 2002, p. 12) admite a revisão
do caso julgado, especialmente nos casos de sentenças substancialmente injustas; contudo, adverte sobre a necessidade de “[...] buscar uma conciliação entre o enquadramento
7
É possível identificar uma relação entre a segurança jurídica, a estabilidade e a previsibilidade e as regras jurídicas. Isso
porque, na medida em que veiculam efeitos jurídicos determinado, pretendidos pelo legislador de forma específica, as
regras contribuem para a maior previsibilidade do sistema jurídico. A justiça, por sua vez, depende em geral de normas
mais flexíveis, à maneira dos princípios, que permitam uma adaptação mais livre às ínfimas possibilidades do caso
concreto e que sejam capazes de conferir ao intérprete liberdade de adaptar o sentido geral do efeito pretendido, muitas
vezes impreciso e indeterminado, às peculiaridades da hipótese examinada. Nesse contexto, portanto, os princípios
são espécies normativas que se ligam de modo mais direito à ideia de justiça. Assim, como esquema geral, é possível
dizer que a estrutura das regras facilita a realização do valor segurança, ao passo que os princípios oferecem melhores
condições para que a justiça possa ser alcançada (Barcellos apud Barroso, 2009, p. 354-355).
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normativo a sua dimensão sociológica, tendo em vista o culto da justiça e em especial a
equidade, que é a justiça singularizada para o caso específico”.
Portanto, o processo não pode ser entendido como um fim nele mesmo, mas como
um instrumento para alcançar a pacificação social mediante uma decisão justa, mesmo que
para este desiderato seja necessário superar um valor constitucional, sem, contudo, perder
de vista a proteção a outro bem considerado naquele caso concreto como de igual ou maior
grandeza. Tal posicionamento deve ser aplicado com cautela e em caráter excepcional, pois
o sistema processual não pode perder sua confiabilidade, notadamente, representada pelo
princípio da segurança jurídica.
1.5 Interpretação constitucional – Ponderação de interesses, bens e valores
A Constituição Federal brasileira de 1988 é a norma maior, de modo que todas as
demais produções legislativas devem estar em consonância com esse texto dirigente8, que é
o fundamento de validade material e formal do sistema. Ademais, “[...] não basta que a CF
outorgue garantias; tem, por seu turno, de ser garantida” (Miranda, 1996, p. 77). Tal desígnio é alcançado em decorrência do princípio da constitucionalidade.
Como decorrência, toda interpretação deverá considerar o texto constitucional como
um corpo único. Assim sendo, qualquer antinomia será solucionada por meio de uma interpretação sistemática, fundamentada nos princípios constitucionais.
Com efeito, a técnica da subsunção foi adotada, inicialmente, como fórmula suficiente
para a aplicação do Direito ao caso concreto. Resumidamente, trata da incidência da premissa maior – norma – sobre a premissa menor – os fatos –, produzindo-se, como produto
dessa equação, a aplicação do conteúdo da norma ao caso concreto. Contudo, essa técnica
não solucionou grande parte das situações posta ao crivo do aplicador do Direito, como no
caso em que mais de uma norma de igual teor hierárquico tenha aplicação sobre o mesmo
conjunto de fatos. Em uma análise mais simples, a solução da situação estaria na aplicação
imediata de uma das normas e consequentemente na eliminação de outras.
Destarte, a fórmula da subsunção resultaria na violação ao princípio da unidade da
Constituição. O conceito desse princípio interpretativo da Constituição é elucidado por
Canotilho (1993), porquanto,
[...] como ponto de orientação, guia de discussão e factor hermenêutico de decisão, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar
harmonizar os espaços de tensão [...] existentes entre as normas constitucionais a concretizar
(ex.: princípio do Estado de Direito e princípio democrático, princípio unitário e princípio da
autonomia regional e local). (Canotilho, 1993, p. 226)
8 Constituição dirigente representa um projeto histórico pragmático de limitação dos poderes de questionar do legislador,
da liberdade de conformação do legislador, de vinculação deste aos fins que integram o programa constitucional. Nesta
medida, penso que continuamos a ter algumas dimensões de programaticidade: o legislador não tem absoluta liberdade
de conformação; antes tem de mover-se dentro do enquadramento constitucional. Esta a primeira sobrevivência da
Constituição dirigente em termos jurídico-programáticos (Coutinho, 2003, p. 15).
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Em razão do princípio em comento, não existe hierarquia entre as normas angulares
da Constituição, deixando ao intérprete o trabalho de harmonização e/ou ponderação entre
os princípios que protegem valores ou interesses em conflito.
A ponderação firma-se na técnica empregada pelo aplicador do Direito em situações
nas quais a subsunção não se mostra eficaz, devendo, primeiramente, encontrar quais normas poderiam ser aplicadas ao caso, identificando os possíveis conflitos. Posteriormente,
seriam identificados os fatos e as circunstâncias concretas do caso, atribuindo-se pesos aos
diversos elementos em disputa, para a tomada de decisão a respeito dos fatos9.
No fluxo desse pensamento, em inúmeras situações, principalmente quando resta evidente o conflito entre normas angulares da constituição, pode não ser possível encontrar no
sistema a solução mais correta. Assim, somente estudando o caso concreto, o intérprete, no
limite de sua discricionariedade, ao analisar conjuntamente os princípios, normas abertas
e conceitos indeterminados, poderá encontrar a solução que corresponda à intenção da
constituição.
Como ensina Bonavides (2001, p. 587), o princípio cuja aplicabilidade ao caso concreto se viu recusada por ensejo da ponderação estimativa de valores, bens e interesses levados a cabo pelo intérprete “[...] continua a circular válido na corrente normativa do sistema,
conservando, intacta, a possibilidade de aplicação futura”.
Espínola (1999, p. 70) defende que “[...] as testilhas entre princípios não os excluem da
ordem jurídica, apenas as afastam diante das situações que comportam diferentes soluções,
segundo o peso e a importância dos princípios considerados à aplicação do direito”.
Ainda, diante do conflito de direitos fundamentais, não se pode prescindir do princípio
da proporcionalidade, conforme explica Steinmetz (2001):
[...] as colisões de direitos fundamentais são exemplos típicos de casos difíceis ou duvidosos.
Assim se caracterizam porque o que colidem são direitos fundamentais expressos por normas
constitucionais, com idênticas hierarquia e força vinculativa, o que torna imperativa uma
decisão, legislativa ou judicial, que satisfaça os postulados da unidade da Constituição, da
máxima efetividade dos direitos fundamentais e da concordância prática. Na colisão, não se
trata de pura e simplesmente sacrificar um dos direitos ou um dos bens em jogo. Como se
verá, a solução da colisão é impensável com a mera subsunção a normas ou com a estrita
aplicação dos cânones clássicos de interpretação; além da utilização dos princípios ou postulados específicos da interpretação constitucional, exige, sobretudo, a aplicação do princípio
da proporcionalidade – de modo especial, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito
(a ponderação de bens) – e a argumentação jusfundamental. (Steinmetz, 2001, p. 69)
Do mesmo modo, Ávila (1999) aborda o dever de proporcionalidade na aplicação dos
princípios constitucionais aplicáveis à hipótese:
9 Luis Roberto Barroso descreve a técnica de ponderação como um processo de três etapas. Esse processo
pode ser analisado de forma mais detalhada no seguinte artigo específico sobre o tema: BARROSO, L. R. O
começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no Direito brasileiro. Revista
da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional,
n. 5, p. 313-317, set. 2004.
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[...] o dever de proporcionalidade, então, estabelece uma estrutura formal de aplicação dos princípios envolvidos: o meio escolhido deve ser adequado, necessário e não excessivo. [...] O que importa, entretanto, é que não é o dever de proporcionalidade em si que estabelece a medida substancial da excessividade, mas sua aplicação conjunta com outros princípios materiais. (Ávila, 1999,
p. 169-170)
Portanto, no caso de os princípios constitucionais entrarem em tensão, o intérprete,
analisando o caso concreto, poderá avaliar o peso que cada princípio representa e, mediante concessões recíprocas, decidirá qual deverá ser aplicada, sem perder de vista a preservação máxima de cada um.
Observa-se que em inúmeras situações os Tribunais pátrios deparam-se com hipóteses
de efetivos conflitos entre princípios constitucionais, momento em que se torna imprescindível a ponderação de valores. Notadamente, nesse contexto, destaca-se o debate sobre a
relativização da coisa julgada, pois se contrapõe o princípio da segurança jurídica e outros
valores de grande importância, como justiça, direitos de propriedade, direitos sociais, entre
tantos outros.
A ausência de uma hermenêutica fundamentada nos princípios constitucionais, principalmente na técnica de ponderação10, levaria o intérprete a reconhecer como inconstitucional qualquer norma processual que desconstituísse a coisa julgada, uma vez que protegida
pela Carta Magna com o teor de direito fundamental.
1.6 Instrumentos processuais de controle da coisa julgada: análise da aplicação dos artigos
475-L, § 1º, e 741, parágrafo único
O ordenamento jurídico disciplinou instrumentos processuais para a desconstituição
da coisa julgada. Tradicionalmente, a ação rescisória é apontada como o remédio processual extraordinário de infringência da res iudicata, sendo que as hipóteses de sua admissibilidade estão descritas numerus clausus no art. 485 do Código de Processo Civil, não
admitindo interpretação analógica ou extensiva deste rol. Trata-se de ação autônoma de
impugnação que dispõe de natureza constitutiva negativa em relação ao juízo rescindendo.
Mais recentemente, introduziu-se no Código de Processo Civil, por meio da Lei nº
11.232/2005, os arts. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único, inaugurando-se um novo conceito
de “inexigibilidade do título judicial”. A expressão está disposta no art. 475-L, II, e art. 741,
II, do CPC, e dispõe de conteúdo genérico, podendo representar qualquer fundamento que
retire a força executiva do título executado. A situação particular está por conta dos arts.
475-L, § 1º, e 741, parágrafo único.
10 Diversas hipóteses de conflito entre princípios constitucionais são analisadas pela doutrina. Para um estudo mais
aprofundado sobre o tema, remetemos o leitor aos artigos publicados por Luis Roberto Barroso, em que algumas
situações concretas de ponderação são examinadas, entre outras: (i) liberdade de expressão e informação versus
políticas públicas de proteção à saúde (2002, p. 243 e ss.); (ii) liberdade de expressão versus proteção aos valores
éticos e sociais da pessoa e da família (2002, p. 341 e ss.); (iii) livre iniciativa e livre concorrência versus proteção do
consumidor (2003, p. 47 e ss.); e (iv) proteção da honra, imagem e privacidade versus repressão de ilícito (2003, p.
539 e ss.).
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Os mencionados dispositivos extraem a exigibilidade do título judicial quando fundamentado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo
Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.
O título executivo que justifica a execução, nos termos do art. 586 do Código de
Processo Civil, deverá fundar-se em obrigação certa, líquida e exigível. Notadamente, obrigação certa é aquela que não se tem dúvida ou controvérsia sobre sua existência jurídica.
Por sua vez, líquida é a determinação do quantum debeatur ou da natureza da obrigação
(devem revelar, precisamente, o quanto e o que se deve). Enfim, exigível é a obrigação que
não se encontra condicionada a termo ou condição. Uma rápida análise desses instrumentos processuais disponíveis para ultrapassar a intangibilidade do comando judicial levaria o
intérprete a considerá-los violadores do conceito constitucional de coisa julgada.
Nesse sentido é a dicção de Nery Junior (2007, p. 780) ao afirmar que “[...] a ação
rescisória é mecanismo de exceção no sistema jurídico, porque seu objetivo é apagar do
mundo jurídico a decisão acobertada pela autoridade da coisa julgada, em aparente ofensa
à CF, art. 5º, XXXVI”.
Denota-se que nenhuma produção legislativa é insofismável, de modo que o controle
de constitucionalidade objetiva declarar a validade ou não da norma contestada; assim, o
ato legislativo, quando declarado inconstitucional, deve ser entendido como “[...] nulo, írrito, e, portanto desprovido de força vinculativa”11.
Nessa direção, o sistema pátrio de controle de constitucionalidade adotou a teoria da
nulidade, admitindo-se, porém, certa mitigação ao disciplinar a modulação dos efeitos da
decisão12 para que haja adequação da declaração de inconstitucionalidade e, consequentemente, preservarem-se outros valores da Lei Maior como a segurança jurídica, o interesse
social e a boa-fé.
Dessa forma, não assaz qualquer interpretação no sentido de que determinada norma
é aparentemente inconstitucional, pois ou o ato legislativo é válido, eficaz e provido de
força vinculante, ou deve ser expurgado do ordenamento jurídico, não se admitindo posicionamento intermediário.
Retomando a linha de pensamento e conforme já explicitado, a interpretação constitucional deve privilegiar o princípio da unidade da Constituição, adotando-se a técnica da
ponderação diante do conflito de normas angulares do sistema. Com efeito, o legislador originário optou por consagrar o instituto da coisa julgada como garantia constitucional para
que preponderasse a segurança jurídica das relações sociais em detrimento da justiça material, porém podem surgir situações extraordinárias em que a única forma de se preservar
um valor maior seria por meio da relativização do comando judicial transitado em julgado.
11 Entendimento de Buzaid (1958, p. 21).
12A regra geral de mitigação do princípio da nulidade no controle de constitucionalidade está disciplinada no
art. 27 da Lei nº 9.868/1999: “Ao declarara inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de
seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em
julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.
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Marinoni e Arenhart (2006, p. 648) afirmam que há situações em que a decisão judicial, “[...] por meio da coisa julgada, representa injustiça tão grave, e solução tão ofensiva
aos princípios que pautam o ordenamento jurídico, que é necessário prever mecanismos de
revisão da decisão transitada em julgado”.
No conflito entre princípios, a coisa julgada pode consentir que outros valores tenham
prevalência, conforme Marinoni e Arenhart13 (2006):
Em favor da “relativização” da coisa julgada argumenta-se a partir de três princípios: da proporcionalidade, da legalidade e da instrumentalidade. No exame desse último, sublinha-se que o
processo, quando visto em sua dimensão instrumental, somente tem sentido quando o julgamento estiver pautado pelos ideais de Justiça e adequado à realidade. Em relação ao princípio da
legalidade, afirma-se que como o poder do Estado deve ser exercido nos limites da lei, não é possível pretender conferir a proteção da coisa julgada a uma sentença totalmente alheia ao direito
positivo. Por fim, no que diz respeito ao princípio da proporcionalidade, sustenta-se que a coisa
julgada, por ser apenas um dos valores protegidos constitucionalmente, não pode prevalecer
sobre outros valores que têm o mesmo grau hierárquico. Admitindo-se que a coisa julgada pode
se chocar com outros princípios igualmente dignos de proteção, conclui-se que a coisa julgada
pode ceder diante de outro valor merecedor de agasalho. (Marinoni; Arenhart, 2006, p. 663)
Por sua vez, Miranda (apud Dinamarco, 2002, p. 13), abordando a relação entre a
coisa julgada e outros princípios e garantias dispostas na Constituição, afirma que
[...] a primeira não é um valor absoluto e dessa forma deve ser conjugado como outros princípios, bem como o princípio da constitucionalidade fica limitado pelo respeito ao caso julgado
e este também tem de ser conhecido no contexto da Constituição Federal.
Portanto, ao considerar a coisa julgada como um instituto consolidado para a garantia
fundamental e instrumento concretizador da segurança jurídica, não poderia prevalecer indistintamente diante do conflito com outros bens igualmente protegidos e de mesmo nível
hierárquico. Entendimento diverso levaria o intérprete a vulnerar todo o sistema de hermenêutica constitucional, em especial o princípio da unidade da Constituição.
Dinamarco (2002) traduz esse pensamento ao tratar da necessidade de haver equilíbrio na aplicação dos princípios, porém sem renunciar à proteção de bens irrenunciáveis,
porquanto
[...] o valor da segurança jurídica (ou certeza) não pode implicar desprezo ao da unidade federativa, ao da dignidade humana e intangibilidade do corpo etc. É imperioso equilibrar com
harmonia as duas exigências divergentes, transigindo razoavelmente quanto a certos valores
em nome da segurança jurídica, mas abrindo-se mão desta sempre que sua prevalência seja
capaz de sacrificar o insacrificável. (Dinamarco, 2002, p. 22)
13 Confirmando este raciocínio e analisando o caso específico de relativização da coisa julgada na ação de investigação
de paternidade, Marinoni e Arenhart (2006) ressaltam que “[...] o que interessa é perguntar se proporcionalidade pode
ser admitida como critério para ‘relativização’ da coisa julgada. Como é evidente, a proporcionalidade, nesse caso,
não poderia ser pensada como adequação ou necessidade, mas como proporcionalidade em sentido estrito, ou seja,
como regra hermenêutica que seria capaz de solucionar as situações de choque entre a manutenção da coisa julgada
e a proteção de bem que torne indispensável a revisão do julgado. Seria o caso, em outras palavras, de aplicar um
método de ponderação dos bens, e não de simples harmonização, lembrando-se de que ponderar é o mesmo do que
sopesar para definir o bem que deve prevalecer, enquanto que ‘harmonizar’ indica a necessidade de contemporizar para
assegurar a aplicação coexistente dos princípios em conflito” (Marinoni; Arenhart, 2006, p. 677).
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Alguns doutrinadores admitem tão somente a utilização de ação própria – ação rescisória – para a relativização da coisa julgada, sendo que vulneraria a garantia constitucional
da res iudicata os demais instrumentos processuais disciplinados no digesto processual,
como o art. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único. Segundo Greco (2008), ao expor que seria
inconstitucional o parágrafo único do art. 741 no caso de decisões proferidas em controle
concentrado, admite-se a validade desse dispositivo somente no caso de relações jurídicas
continuativas e decisão com efeito erga omnes pelo Supremo Tribunal Federal, conforme
abaixo:
Tanto quanto aos efeitos pretéritos, quanto aos efeitos futuros da decisão proferida no controle
concentrado, parece-me inconstitucional o disposto no referido parágrafo único do art. 741,
que encontra obstáculo na segurança jurídica e na garantia da coisa julgada, salvo quanto
a relações jurídicas continuativas, pois, quanto a estas, modificam-se no futuro os fatos ou
o direito, e, no caso da declaração erga omnes pelo STF, pode ter sofrido alteração o direito reconhecido na sentença, cessará a imutabilidade dos efeitos do julgado, nos termos do
art. 741 do CPC. (Greco, 2008, p. 251-261)
Seguindo essa mesma linha de entendimento, Nery Junior e Andrade Nery (2007)
entendem que o parágrafo único do art. 741 do CPC, instituído pela Lei nº 11232/2005, é
materialmente inconstitucional, pois
não se trata de privilegiar o instituto da coisa julgada sobrepondo-o ao princípio da supremacia da Constituição [...]. A coisa julgada é a própria Constituição Federal, vale dizer, manifestação, dentro do Poder Judiciário, do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput),
fundamento da República. (Nery Junior; Andrade Nery, 2007, p. 1086)
Os autores supracitados evidenciam que, embora haja respaldo em consagrada doutrina de que os dispositivos inseridos no Código de Processo Civil, por meio da Lei nº
11.232/2005 (art. 475-L, § 1º, e art. 741, parágrafo único), seriam materialmente inconstitucionais, bem como o único instrumento processual legítimo para a desconstituição da coisa
julgada equivaleria à ação rescisória, desde que ajuizada no prazo legal, entende-se que
esses novos dispositivos permanecem válidos e eficazes, uma vez que elaborados por meio
do devido processo legislativo, dogma corolário à observância do princípio da legalidade,
assim como a própria ação rescisória, bem como o Supremo Tribunal Federal ainda não se
manifestou sobre a constitucionalidade destas normas14.
Ademais, o instituto da coisa julgada, muito embora protegido pela Constituição, não
pode ser visto como garantia insofismável, pois, diante de outros valores de igual ou superior relevância, é preciso admitir a revisão do julgado, sobretudo, ao tratar de situações que
a injustiça é tamanha e representa vulneração tão grande aos princípios disposto na Constituição Federal, que não existe alternativa senão relativizá-lo. Dessa forma, faz-se necessária
a normatização de instrumentos de revisão da decisão transitada em julgado.
É importante salientar que, após a estabilização da decisão com a consequente atribuição do efeito da imutabilidade, todas as etapas do devido processo legal teriam sido
14 Foi proposta ação direita de inconstitucionalidade (ADIn 2418/3/DF), em que se analisa a constitucionalidade do
parágrafo único do art. 741.
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superadas, inclusive por meio de recursos disponíveis às partes para que a decisão pudesse
ser aferida pelo Supremo Tribunal Federal, não cabendo qualquer alteração posterior em
seu conteúdo. Ainda, aduzir-se que, na lide posta ao crivo do Poder Judiciário, deveriam ser
identificados elementos para suscitar o controle de constitucionalidade, atributo que caberia tanto às partes quanto ao juiz.
De fato, não se pode desconsiderar o “poder-dever” que o juiz singular ou o colegiado dos tribunais têm de controlar a constitucionalidade das demandas, especialmente nas
ações em que há dúvida e/ou divergência acerca da constitucionalidade de determinada
norma na qual o Supremo Tribunal Federal ainda não tenha pacificado a questão. As partes, igualmente, no curso do processo, não podem se desincumbir de alegar vulneração do
Texto Máximo.
Contudo, é fato que, se já houve pronunciamento definitivo sobre a constitucionalidade da norma, mas, por alguma razão, esta não foi aventada no curso do processo, cabe a
arguição de inexigibilidade do título judicial, por meio dos mecanismos criados no sistema
processual (arts. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único) para impedir que a sentença inconstitucional gere efeitos e, nomeadamente, prestigiar o valor maior protegido pelo posicionamento sufragado pela Corte Constitucional. Em verdade, o juízo aplicou ou interpretou
ilegitimamente norma inconstitucional, assim não se pode admitir o cumprimento da sentença ou execução do julgado com base no comando judicial contaminado pela inconstitucionalidade.
Por último, adverte-se que esses instrumentos devem ter aplicação em situações excepcionalíssimas, cabendo ao aplicador do Direito a tarefa de ponderar os princípios constitucionais envolvidos. Só assim é possível admitir ou não a relativização da decisão transitada em julgado. Entender que o instituto da coisa julgada não pode ser superado em
nenhuma circunstância resulta em elevá-lo a uma categoria não pretendida pelo legislador
constituinte originário.
Nesse sentido, Dinamarco (2002, p. 6) evidencia que nenhum princípio “[...] constitui
um objeto em si mesmo e todos eles, em seu conjunto, devem valer como meios de melhor
proporcionar um sistema processual justo, capaz de efetivar a promessa constitucional de
acesso à justiça”.
Para o autor supracitado, o acesso à justiça como obtenção de soluções justas dá
acesso à ordem jurídica justa. Portanto, a garantia constitucional da coisa julgada deve ser
colocada em equilíbrio às demais garantias previstas no Texto Maior, podendo ser relativizada quando em confronto com outros valores que admitiriam renúncia no caso concreto.
Com efeito, o legislador colocou à disposição instrumentos processuais para a produção ou
obtenção de um resultado justo.
Muito embora pareça paradoxal, os efeitos de imutabilidade e indiscutibilidade de
uma sentença não faz desaparecer a inconstitucionalidade presente na decisão, de modo
que se torna imperioso sua relativização. Entretanto, a dúvida persiste no caso da utilização
de instrumentos de impugnação da decisão transitada em julgada em virtude de decisão
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posterior do Supremo Tribunal Federal que julgou a norma inconstitucional ou adotou interpretação de lei ou ato normativo como incompatíveis com a Constituição Federal.
1.7 Declaração de (in)constitucionalidade posteriormente à sentença transitada em julgado
O instituto da coisa julgada encontra-se disciplinado na Carta Constitucional como
garantia fundamental, dispondo de todas as prerrogativas ínsitas a essa espécie de norma.
Porém, não há direito fundamental absoluto, de modo que até mesmo a coisa julgada pode
ser superada quando em colisão com outros valores protegidos pela Constituição, cabendo
ao aplicador do Direito, portanto, a função de fazer uso da técnica da ponderação dos princípios constitucionais envolvidos, para admitir ou não a relativização da decisão transitada
em julgado.
Destarte, para viabilizar a relativização da coisa julgada, o legislador derivado disciplinou instrumentos processuais de exceção, consistentes na ação rescisória e nas hipóteses elencadas nos arts. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único do CPC. Tais mecanismos são
aplicados a situações extraordinárias, objetivando a busca por um resultado justo por meio
do processo. Contudo, esses mecanismos processuais não têm aplicabilidade em qualquer
hipótese de sentença inconstitucional. Assim sendo, Zavascki (2006) admite-os em três situações:
(i)
a plicação de lei inconstitucional, na qual se exige declaração de inconstitucionalidade
com redução de texto;
(ii) a plicação da lei a situação considerada inconstitucional, em que se supõe a declaração
de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto; e
(iii) a plicação da lei como um sentido tido por inconstitucional, por meio da técnica da interpretação conforme a Constituição Federal. (Zavaski, 2006, p. 333)
Seguindo corrente semelhante, Talamini (2005) enfatiza que uma decisão transitada
em julgado pode ser considerada inconstitucional, quando fundamentada em norma inconstitucional ou em interpretação incompatível, porquanto
[...] não se ofende a Constituição apenas quando se aplica uma lei cujo teor literal é francamente inconstitucional. A violação constitucional pode também advir da adoção de uma interpretação incompatível com a Constituição, em detrimento de outra afinada com os desígnios
constitucionais. Há que se buscar sempre a interpretação conforme a Constituição. (Talami,
2005, p. 407)
No Direito brasileiro, a decisão de inconstitucionalidade no controle concentrado possui efeitos ex tunc, ou seja, retroage até o momento de edição da norma, uma vez que sua
natureza é declaratória. Entretanto, admite-se certo abrandamento em situações em que a
segurança jurídica e/ou interesse social exijam, de modo que o Supremo Tribunal Federal
pode modular a sua aplicação. A modulação temporal dessa decisão tem como objetivo
evitar que situações definitivamente consolidadas venham a ser vulneradas.
Por seu turno, no sistema difuso, ao analisar o caso concreto, o juiz dispõe da atribuição para realizar o controle de constitucionalidade da norma que fundamenta sua decisão.
Dessa forma, não é possível nulificar a sentença sob o fundamento de que, posteriormente,
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a Corte Constitucional declarou esta norma inconstitucional. Admitir que a decisão de inconstitucionalidade gerasse efeitos retroativamente sobre a coisa julgada acabaria depreciando o princípio da segurança jurídica a tal ponto que colocaria em risco a confiabilidade
no Poder Judiciário15. É importante salientar, ademais, que a ação direita de inconstitucionalidade visa ao controle da lei, e não da res iuducata.
Greco (2008, p. 228-229), ao analisar os efeitos da decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, enfatiza que tal pronunciamento “não deve ter nenhuma influência sobre anteriores sentenças transitadas em julgado que tenham fundamento em entendimento contrário ao do STF sobre questão constitucional”. Mais adiante, sustenta que “a segurança jurídica, como direito fundamental, é
limite que não permite a anulação do julgado com fundamento na decisão do STF” (p.229).
Analisando a aplicabilidade do parágrafo único do art. 741 do Código de Processo
Civil, Nery Junior e Andrade Nery (2007) discorrem sobre o tema enfatizando que:
Não seria materialmente inconstitucional a norma ora comentada quando aplicada apenas
numa situação: somente a decisão anterior do STF, proclamando a inconstitucionalidade de
lei ou ato normativo ou a aplicação ou interpretação de norma tida como incompatível com
a CF em ADIn [...] é que poderia atingir o título executivo judicial que transitasse em julgado
posteriormente à decisão do STF. Apenas e unicamente neste caso é que teria aplicabilidade a
norma sob análise. (Nery Junior; Andrade Nery, 2007, p. 1086)
A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o parágrafo único do art.
741 do CPC, conforme a redação dada pela Medida Provisória nº 2.180/2001, decidiu, no
EREsp 1.050.129/SP (Brasil, 2011), que a sentença de mérito está protegida pela coisa julgada material, mesmo que a decisão judicial se fundamente em legislação posteriormente
declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, conforme trechos da ementa
abaixo transcrita:
1. Em regra, as modificações legislativas de natureza processual são imediatamente aplicáveis,
inclusive em relação aos processos pendentes.
2. O parágrafo único do art. 741 do CPC, acrescentado pela MP 2.180-35/2001, aplica-se às
sentenças que tenham transitado em julgado em data posterior a 24.08.2001, não estando
sob seu alcance aquelas cuja preclusão máxima tenha ocorrido anteriormente, ainda que
eivadas de inconstitucionalidade. Precedentes.
3. A sentença de mérito, coberta por coisa julgada material, não pode ser descumprida, sob
pena de violação da segurança jurídica, ainda que aquele ato judicial se fundamente em
legislação posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, tanto
na forma concentrada, como na via difusa. Precedente do STF.
15 O Supremo Tribunal Federal manifestou-se no mesmo sentido: “A decisão do Supremo Tribunal Federal que haja declarado
inconstitucional determinado diploma legislativo em que se apoie o título judicial, ainda que impregnada de eficácia ex
tunc, como sucede com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758, RTJ 164/506509, RTJ 201/765), detém-se ante a autoridade da coisa julgada, que traduz, nesse contexto, limite insuperável à força
retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, in abstracto, da Suprema Corte” (RE 603023, Rel. Min. Celso
de Mello, J. 02.06.2010, publ. DJe-109 divulg. 16.06.2010, public. 17.06.2010, RF v. 106, n. 409, p. 415-426,
2010).
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Ressalta-se que se encontra pendente de julgamento a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.418/DF, em que se questiona a constitucionalidade do parágrafo único do art.
471 do Código de Processo Civil.
Portanto, a decisão transitada em julgado fundamentada em lei ou interpretação posteriormente declarada inconstitucional permanece válida, produzindo os efeitos presentes
no título judicial, não se admitindo, assim, a aplicação retroativa do julgado proferido pela
Corte Constitucional, sob pena de vulnerar a segurança jurídica.
CONCLUSÃO
O instituto da coisa julgada está previsto no inciso XXXVI do art. 5º da Constituição
Federal de 1988, dispondo do teor de garantia constitucional, atuando para a tutela de direitos fundamentais e tendo como bem jurídico protegido a segurança jurídica. Em virtude
de sua disciplina constitucional, não se limita ao conceito de regra relacionado ao direito
intertemporal com aplicação restrita aos efeitos na nova lei. Na verdade, o objetivo é proteger direitos fundamentais.
O conceito de coisa julgada está intrinsecamente relacionado à imutabilidade e indiscutibilidade da sentença. Para a proteção da decisão transitada em julgado, toda a matéria
relacionada ao julgamento passado resta preclusa, impossibilitando, portanto, a sua reapreciação judicial em ação posterior com base em novos argumentos. Esse elemento protetor
da decisão judicial é denominado eficácia preclusiva da coisa julgada.
O direito constitucional de acesso à justiça é instrumentalizado por meio do direito
de ação, cabendo ao Magistrado a prestação de tutela em vista do Texto Constitucional e
da defesa dos direitos fundamentais. O cidadão deposita no Poder Judiciário a expectativa
de que o conflito será pacificado por meio de uma decisão imutável e indiscutível. Assim
sendo, a estabilidade das decisões é essencial para que os jurisdicionados tenham confiança
no órgão julgador, para a materialização do princípio da segurança jurídica.
A tutela jurisdicional objetiva a entrega de decisões que sejam justas, pois decisões
extremamente iníquas não poderiam se perpetuar sem que houvesse qualquer instrumento
para corrigi-las, nem que para isso fosse necessário superar outros valores consagrados no
Texto Constitucional. No caso de os princípios constitucionais entrarem em conflito, o intérprete deve analisar o caso concreto e avaliar o peso que cada princípio representa.
Trata-se, portanto, da aplicação do mecanismo interpretativo da ponderação de princípios. A ausência de aplicação deste mecanismo levaria o intérprete a reconhecer como
inconstitucional qualquer norma processual que desconstituísse a coisa julgada, uma vez
que é protegida pela Carta Magna com o teor de direito fundamental.
O Código de Processo Civil inaugurou um novo conceito de inexigibilidade do título
judicial através dos arts. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único, ao considerar como inexigível
o título judicial quando fundamentado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional
pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei, ou ato
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Coisa Julgada - Algumas Questões
normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição
Federal. Tais normas, evidentemente, desconstituem a coisa julgada.
Muito embora a coisa julgada seja visualizada como garantia fundamental e instrumento concretizador da segurança jurídica, não poderia prevalecer indistintamente diante
do conflito com outros bens igualmente protegidos e de mesmo nível hierárquico.
Dessa forma, na hipótese de haver pronunciamento definitivo anterior sobre a constitucionalidade da norma, caberia a arguição de inexigibilidade do título judicial, por meio
dos mecanismos criados no sistema processual (arts. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único),
com o intuito de impedir que a sentença inconstitucional gerasse efeitos e que fosse dada
aplicabilidade à decisão proferida pela Corte Constitucional, enfim, para que se tornasse a
prestação jurisdicional justa.
Por sua vez, no caso de a decisão transitada em julgado ser fundamentada em lei ou
interpretação posteriormente declarada inconstitucional, permaneceria válida e produzindo
os efeitos presentes no título judicial, não se admitindo aplicação retroativa do julgado proferido pela Corte Constitucional, sob pena de vulnerar a segurança jurídica.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Acórdão na Íntegra
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Superior Tribunal de Justiça
Recurso Especial nº 1.345.271 – RJ (2012/0198450-0)
Relator: Ministro Og Fernandes
Recorrente: Município de Cabo Frio
Procurador: Paulo Lage Barboza de Oliveira e outro(s)
Recorrido: Nelson Simis Schver e outro
Advogado: José Leite Saraiva Filho
Advogados: Alba de Oliveira Castro
Nelson Simis Schver (em causa própria) e outros
Gabriela de Lima Neto Torres
EMENTA
PROCESSO CIVIL – AÇÃO ANULATÓRIA – COISA JULGADA – DESAPROPRIAÇÃO – AGRAVO DE INSTRUMENTO
– AUSÊNCIA DE CITAÇÃO – PRAZO PARA IMPUGNAR A DECISÃO LIMINAR – ART. 241, II, DO CPC – CERTIDÃO
DE INTIMAÇÃO – DISPENSADA NO CASO CONCRETO – ANÁLISE DE MATÉRIA NÃO PREQUESTIONADA –
IMPOSSIBILIDADE – ACÓRDÃO RECORRIDO COM FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL – SÚMULA Nº 126/STJ –
DISSENSO PRETORIANO NÃO COMPROVADO
1. Constando do acórdão recorrido a informação de que os agravados ainda não tinham sido citados quando da interposição do recurso, não se cogita da intempestividade do agravo de instrumento, haja vista que, sem a angularização da relação
processual, o prazo para o manejo do recurso deve ser contado na forma do art.
241, II, do CPC, isto é, a partir da juntada aos autos do mandado citatório cumprido. Dessarte, deve-se flexibilizar a exigência do art. 525, II, do CPC – no tocante
à juntada da certidão de intimação da decisão agravada – aplicando-se na espécie o princípio da instrumentalidade das formas. Precedente: REsp 877.057/MG,
4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, DJe 01.12.2010.
2. Não se conhece do recurso especial em relação aos temas que não foram prequestionados na instância de origem. No caso, os argumentos de que houve supressão de
instância e de que a cláusula contratual não foi acobertada pelo manto da coisa julgada – por não constar na parte dispositiva da decisão transitada em julgado – deixaram
de ser apreciados pelo Tribunal a quo, não havendo sequer a oposição de embargos
declaratórios. Incidência das Súmulas nºs 282 e 356 do STF.
3. Na hipótese, o acórdão recorrido reconheceu o descabimento da ação que visava
desconstituir a coisa julgada, acrescentando fundamentação de índole constitucional.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
No entanto, o ora recorrente deixou de interpor o competente recurso extraordinário,
o que atrai o óbice da Súmula nº 126/STJ.
4. Não se admite o apelo assentado na alegativa de dissídio jurisprudencial quando o
recorrente não consegue demonstrar que os arestos confrontados partiram de similar
contexto fático para atribuir conclusões jurídicas dissonantes.
5. Recurso especial a que se conhece em parte e nega-se provimento.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os
Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer em parte
do recurso e, nessa parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator. Os
Srs. Ministros Mauro Campbell Marques (Presidente), Assusete Magalhães, Humberto Martins e
Herman Benjamin votaram com o Sr. Ministro Relator.
Dr(a). José Leite Saraiva Filho, pela parte recorrida: Nelson Simis Schver.
Brasília, 08 de abril de 2014 (data do Julgamento).
Ministro Mauro Campbell Marques
Presidente
Ministro Og Fernandes
Relator
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Ministro Og Fernandes (Relator): O recurso especial foi interposto, com
fundamento nas alíneas a e c do art. 105, III, da Constituição da República contra acórdão
proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro assim ementado (e-STJ, fl.
259):
Agravo de instrumento. Agravo regimental em face da concessão do efeito suspensivo pelo
relator. Decisão liminar que só é passível de reforma no momento do julgamento do AI ou
por reconsideração pelo próprio relator. Inteligência do parágrafo único do art. 527, CPC.
Agravante que se insurge contra decisão que, em sede de ação declaratória desconstitutiva
de coisa julgada, deferiu a liminar para suspender a exigibilidade de precatório já em fase de
pagamento parcelado, expedido em ação indenizatória transitada em julgado.
Ilegitimidade do segundo agravante como assistente litisconsorcial. Interesse meramente econômico. Inteligência do art. 50 CPC. Agravo que traz a lume hipótese de lesão potencial à coisa julgada, contexto onde igualmente restariam vulneradas a segurança jurídica, a obediência
à hierarquia judiciária, e ao devido processo legal.
Alegação de inconstitucionalidade e de ilegalidade da decisão transitada em julgado. Efeito
translativo dos recursos que permite a análise de matérias de ordem pública de oficio pela
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Coisa Julgada - Algumas Questões
instância ad quem. Matéria suscitada pelo agravante que foi objeto de intenso debate e restou
decidida em sentença exaustivamente fundamentada após sendo questionada e prequestionada por todas as vias recursais adequadas.
Reconhecimento de vulneração de coisa julgada. Inteligência do art. 5º, XXXVI, CF. Ato jurisdicional que é passível de controle de constitucionalidade nos casos expressamente previstos
em lei, sob pena de vulneração ao devido processo legal e do estado democrático de direito.
Inteligência dos arts. I’ e 50, LIV da CF/1988. Regimental que não se conhece. Ilegitimidade
do segundo agravante que se reconhece. Agravo de instrumento a que dá provimento. Ação
de origem que se julga extinta, na forma do art. 267 V CPC.
O Município de Cabo Frio/RJ aponta, além de dissídio pretoriano, violação dos arts.
525, I, 267, V, 469, I, II, III e 515, § 3º, todos do Código de Processo Civil.
Afirma que o agravo de instrumento é manifestamente descabido, por não ter sido
apresentada a certidão de intimação do decisório agravado, documento de caráter obrigatório, nos termos da legislação processual.
Salienta que, apesar de o agravo ter se dirigido contra decisão liminar que foi proferida
antes da citação, “os recorridos deveriam ter juntado cópia da aposição de sua ciência nos
autos, a fim de se aferir a eventual tempestividade do Agravo de Instrumento” (e-STJ, fl. 302).
Defende a existência de supressão de instância, pois não poderia a Corte de origem,
ao examinar um recurso contra decisão que apenas deferiu uma liminar para suspender o
pagamento de precatório, invadir a competência do magistrado de piso para extinguir prematuramente a ação com base no art. 267, V, do CPC.
Segundo o recorrente, “antes mesmo da contestação e do despacho saneador, ao invés
de simplesmente ser reformada a decisão interlocutória com a cassação da liminar deferida
na origem, foram alteradas questões que sequer foram suscitadas perante o nobre Magistrado a quo” (e-STJ, fl. 303).
A municipalidade assevera que o acórdão impugnado partiu da errônea premissa de
que a decisão agravada ofendeu coisa julgada formada há mais de 50 anos, não sendo possível alterar as conclusões contidas no título judicial a respeito da ilegalidade da cláusula
terceira do contrato de aforamento, a qual permitia a retomada do bem imóvel pelo ente
público sem qualquer contrapartida indenizatória.
O recorrente explicita que não houve coisa julgada material sobre a invalidade da
referida cláusula do contrato de aforamento, porquanto esse tema não constou da parte
dispositiva do julgado.
Aduz que não se operam os efeitos da coisa julgada sobre os motivos, a verdade dos
fatos estabelecida como fundamento da sentença e a apreciação de questão prejudicial decidida incidentalmente no processo.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Acrescenta que a tese supostamente debatida na ação possessória transitada em julgado em 1951 não se confunde com a questão posta em juízo na demanda indenizatória
ajuizada em 1988 e que ora se pretende desconstituir.
Consoante as razões tecidas no apelo especial (e-STJ, fls. 312-313):
Conclui-se que as origens das ocupações perpetradas pelo Município sobre a área em litígio
ostentam naturezas distintas nas situações de 1948 e 1952:
(1) Na primeira, o Município e o Estado do Rio de Janeiro teriam turbado a posse dos Espólios
através da realização de serviços que acarretaram deterioração de parte do prédio aforado (fl.
16), sendo tal investida repelida pela Ação Possessória transitada em 1951, na qual, sem se falar em declaração de validade ou invalidade da cláusula terceira do Contrato de Aforamento,
cominou-se indenização por perdas e danos e determinou-se a restituição ao foreiro das áreas
desapossadas pelos entes públicos.
Nota-se que a tese vencedora em 1951 foi a de que, independentemente da cláusula terceira,
dever-se-ia respeitar a posse direta do foreiro, mesmo precária, não sendo lícito aos entes públicos desapossarem a área mediante atos de força.
(2) Já na segunda, a posse do Município derivou de imissão judicial na posse lograda no seio
de Ação de Desapropriação instaurada pela Cedae.
Percebe-se que inexistiram nessa segunda circunstância (a partir de 1952) os atos de força dantes vislumbrados pelo Poder Judiciário no bojo da ação movimentada em 1948 e que, naquele
caso, justificaram o deferimento da tutela possessória.
Ora, na inexistência de atos de força, não haveria que se falar em proteção possessória, motivo
pelo qual a tese vencedora em 1951 (Ação Possessória) não se aplica ao caso de 1952 (Ação
de Indenização com sentença transitada em julgado em 2000).
Explicita, por fim, que estão presentes o interesse processual e a possibilidade de relativização da coisa julgada na espécie, devendo-se manter a decisão de primeiro grau que, em
juízo de verossimilhança, apenas suspendeu initio litis o pagamento do precatório judicial.
As contrarrazões foram apresentadas às e-STJ, fls. 351-361.
O recurso foi admitido na origem pela decisão de e-STJ, fls. 373-376.
411).
O Ministério Público Federal opinou pelo não conhecimento do apelo (e-STJ, fls. 406É o relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Ministro Og Fernandes (Relator): O Município de Cabo Frio/RJ ajuizou
demanda para desconstituir decisão judicial transitada em julgado que o condenou a indenizar os espólios ora recorridos, em virtude do desapossamento administrativo de gleba por
eles titularizada.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
A municipalidade alegou a existência de coisa julgada inconstitucional, pois, na origem, o instrumento que conferiu o domínio útil da área em litígio ao particular foi acompanhado de um contrato de aforamento, cuja cláusula terceira previa a possibilidade de o bem
ser retomado pelo ente público sem qualquer direito indenizatório.
Aduziu-se na inicial, em suma, que o município não pode ser condenado a pagar por
uma posse que, de direito, já lhe pertencia.
Em primeira instância, o juiz deferiu liminar para suspender o pagamento do precatório até o julgamento final da causa. Contra esse decisório, houve a interposição de agravo
de instrumento, ao qual se deu provimento para extinguir desde logo o feito, sem resolução
do mérito, com amparo no art. 267, V, do CPC, prevalecendo a coisa julgada.
No apelo nobre, o recorrente sustenta a inadmissibilidade do agravo de instrumento,
porquanto não foi acompanhado da certidão de intimação da decisão agravada, nem de
qualquer outro documento capaz de comprovar a tempestividade do recurso.
Defende a existência de supressão de instância, já que a decisão liminar apenas exerceu um juízo de verossimilhança das alegações, não sendo possível extinguir o feito de
forma prematura, sem que se observe o devido processo legal.
Afirma que não houve coisa julgada em relação à cláusula contratual em debate, pois
esse ponto sequer constou da parte dispositiva do julgado.
Passo ao exame do apelo especial.
A norma constante do art. 525, I, do CPC impõe ao agravante a obrigatoriedade de
formalizar o instrumento com a certidão de intimação da decisão agravada. Todavia, a jurisprudência do STJ tem flexibilizado essa exigência quando é possível constatar-se inequivocamente a tempestividade do recurso.
No caso, a Corte de origem concluiu que, “na data da interposição do presente agravo,
os agravantes ainda não haviam sido citados para ingressar na ação de origem, razão pela
qual não é de se exigir a juntada de tal peça” (e-STJ, fl. 263).
É certo que, tratando-se de agravo interposto contra decisão liminar, isto é, deferida
initio litis, sem a angularização da relação processual, o prazo para o manejo do recurso
deve ser contado na forma do art. 241, II, do CPC, in verbis:
Art. 241. Começa a correr o prazo
(Omissis)
II – quando a citação ou intimação for por oficial de justiça, da data de juntada aos autos do
mandado cumprido;
Assim, constando do acórdão recorrido a informação de que os agravados ainda não
tinham sido citados quando da interposição do recurso, não se cogita da intempestividade
do agravo de instrumento, devendo-se flexibilizar a exigência do art. 525, II, do CPC, em
respeito ao princípio da instrumentalidade das formas.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Nesse sentido:
PROCESSUAL CIVIL – RECURSO – AGRAVO DE INSTRUMENTO – CÓPIA – CERTIDÃO
DE INTIMAÇÃO DECISÃO AGRAVADA – PEÇA OBRIGATÓRIA (ART. 525, I, DO CPC) –
AUSÊNCIA – MITIGAÇÃO – ANTECIPAÇÃO DE TUTELA – DECISÃO LIMINAR INITIO LITTIS – AGRAVO ANTERIOR À JUNTADA DO MANDADO DE CITAÇÃO CUMPRIDO – FLAGRANTE TEMPESTIVIDADE – JUNTADA DE PROCURAÇÃO SEM PODERES PARA RECEBER
CITAÇÃO – COMPARECIMENTO ESPONTÂNEO DO RÉU DESFIGURADO – TEMPESTIVIDADE DO AGRAVO DECLARADA
I – Cabe ao agravante zelar pela observância do art. 525, I, do CPC, diante obrigatória a juntada da cópia da certidão de intimação da decisão agravada para atestar a tempestividade do
agravo de instrumento perante o Tribunal. Caso, todavia, em que a decisão liminar agravada
foi proferida initio littis, atestando-se a tempestividade do recurso através da juntada do mandado de citação cumprido posteriormente, de onde infere-se, de forma cabal, a oportunidade
da interposição do instrumento.
II – O comparecimento espontâneo do réu não tem lugar se a apresentação de procuração nos
autos foi efetuada por advogado destituído de poderes para receber citação, caso em que o
prazo somente corre a partir da juntada aos autos do mandado citatório respectivo (art. 241 do
CPC). Precedentes do STJ.
III – Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 877.057/MG, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, J. 18.11.2010, DJe 01.12.2010)
No que tange aos argumentos de que houve supressão de instância e de que a cláusula
contratual não foi acobertada pelo manto da coisa julgada – por não constar na parte dispositiva da decisão transitada em julgado –, esses pontos não foram objeto de debate pela
instância de origem, o que impossibilita o enfrentamento do tema na instância extraordinária ante a ausência do prequestionamento.
Com efeito, sequer houve a oposição dos embargos declaratórios para apontar a existência de omissão no acórdão vergastado, não sendo possível inaugurar a discussão da matéria no julgamento do recurso especial.
Incide, por seu turno, os óbices das Súmulas nºs 282 e 356 do STF, respectivamente
transcritas:
É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão
federal suscitada.
O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode
ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento.
Em relação ao cabimento da ação para desconstituir a coisa julgada na espécie, temse que o aresto impugnado encontra-se amparado em argumentos constitucionais que não
foram combatidos por meio de recurso extraordinário. A propósito, confira-se a seguinte
transcrição:
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Coisa Julgada - Algumas Questões
A questão da validade da cláusula terceira e se esta desnaturaria a enfiteuse para arrendamento, na forma almejada pelo município, foi muito bem analisada pela sentença proferida nos
autos da ação de interdito proibitório ajuizada por J. Ramos Pesgrave em face do Município
de Cabo frio (fls. 94/95), já referida.
Ressalte-se que as ações posteriores de desapropriação, mandado de segurança para fazer
valer a devolução da posse do bem expropriado e, finalmente, na ação de indenização, passaram ao largo da discussão sobre a validade da cláusula terceira do contrato de transferência
de aforamento, pois tal ponto já restara pacificado judicialmente.
Transparece, então, que a questão não foi “esquecida em um arquivo velho e ressurgida pela
mão de uma paleógrafa”, como quis crer na origem o município agravado.
As partes, como exposto, exauriram os debates no âmbito da ação possessória, em amplo
contraditório, onde foi assegurado o exercício da ampla defesa, recebendo ao final a resposta
jurisdicional no sentido da manutenção dos efeitos do aforamento da gleba, salientado-se,
inclusive, o lúcido fundamento no sentido de que a se pretender fazer valer a cláusula terceira
do contrato de aforamento, estar-se-ia desnaturando o instituto da enfiteuse, ao mesmo tempo
em que se estaria violando a Constituição da época, que assim como a presente, previa a necessidade de se indenizar de forma prévia, e justa, o ato expropriatório do ente público.
Por tais razões, d. v., verifica-se que decisão do juízo a quo vem ancorada numa posição
subjetiva e descolada dos fatos já concretizados no plano de conflito passado entre as partes
pois, na presente hipótese, a manter-se a posição de 1º grau a realidade do mundo da vida
e a necessária estabilização das relações sociais via princípio constitucional da segurança
jurídica acabaria eventualmente afastada, todas as vezes em que, passado certo tempo, novo
juiz exercesse sua jurisdição na comarca e os processos fossem repristinados com novos e/ou
exóticos argumentos.
O processo civil pátrio ainda se alicerça no primado da coisa julgada, embora tenha nascido,
recentemente, a possibilidade de “relativização da coisa julgada”, esta em estritíssimas hipóteses de revisões de ações de investigação de paternidade, julgadas improcedentes no passado
por falta de prova em face do moderno e acurado novel exame de DNA, e considerando a
importância das ações de estado. Por certo tal relativização não se possibilita quanto ao senso
pessoal e subjetivo de justiça do magistrado local.
Relembre-se brevemente o conceito de coisa julgada material, constante da doutrina e da
jurisprudência.
Para Didier Jr.: “Coisa julgada material é a indiscutibilidade da decisão judicial no processo
em que foi produzida e em qualquer outro. Imutabilidade que se opera dentro e fora do processo. A decisão judicial (em seu dispositivo) cristaliza-se, tornando-se inalterável. Trata-se de
fenômeno com eficácia endo/extraprocessual.”
Para Alexandre Câmara: “esta consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo (declaratório, constitutivo, condenatório) da sentença de mérito, e produz efeitos para fora do
processo. Formada esta não poderá a mesma matéria ser novamente discutida, em nenhum
outro processo”.
Para Nelson Nery: “Coisa julgada material (auctoritas rei iudicatae) é a qualidade do que torna
imutável e indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da sentença de mérito não
mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário (art. 467; LICC, art. 6º, § 3º), nem remessa
necessária do CPC, art. 475 (STF, 423: Barbosa Moreira, Temas, 107).
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Ou seja, formada a coisa julgada, para que se garanta o direito fundamental à segurança
jurídica, torna-se impossível a rediscussão das decisões que transformaram o quadrado em
redondo, ou o branco no preto.
Neste sentido, refere Nelson Nery;
“Um efeito especial da coisa julgada material é o substitutivo, decorrente da função substitutiva da jurisdição: a sentença de mérito transitada em julgado substitui todas as atividades
das partes e do juiz, praticadas no processo, de sorte que as nulidades e anulabilidades
porventura ocorridas durante o procedimento terão sido substituídas pela sentença, que as
abarca.
Por exemplo, o processo simulado (nulo – CC, art. 167; CPC, art. 129) a incompetência absoluta do juízo (sentença nula – CPC, art. 113, § 2º), entre outros casos, fazem com que haja
vícios na sentença, que são absorvidos pela coisa julgada material, razão por que, ainda
que ocorra a nulidade (de direito material ou processual), esse vício só pode ser impugnado
por ação rescisória, impugnação ao cumprimento da sentença (art. 475-L) ou embargos do
devedor do CPC, arts. 741 e 745 [...] efeito substitutivo da coisa julgada também ocorre
quando o juiz, por exemplo, reconhece como inexistente uma relação jurídica existente,
ou existente uma relação jurídica inexistente.” (g.n).
Para o STJ, no mesmo sentido:
AgRg-REsp 209235/SC, Rel. p/ Ac. Min. Luiz Fux, 1ª T., DJ 13.12.2007 p. 323 – PROCESSUAL CIVIL – ACÓRDÃO TRANSITADO EM JULGADO EM 2002 – ERRO MATERIAL –
INEXISTÊNCIA – COISA JULGADA
1. O erro material pode ser sanado a qualquer tempo, sem que seja caracterizada qualquer
ofensa à coisa julgada, mormente porque a correção do erro constitui mister inerente à
função jurisdicional. Essa é a inteligência da norma prevista no art. 463, I, do Código de
Processo Civil, que admite que o magistrado altere a decisão tão somente nas hipóteses de
correção de inexatidões materiais ou retificação de erros de cálculo – erro material – ou por
meio de embargos de declaração.
2. In casu, trata-se de hipótese diversa, em que o erro apontado pela Fazenda Nacional
guarda relação com o próprio objeto do juízo de mérito, consubstanciando verdadeiro error in judicando, decorrente da má apreciação da questão de fato e/ou de direito.
3. Nesse diapasão, em consonância com o previsto nos arts. 467 c/c 471, do CPC, operouse a coisa julgada material, que se traduz na imutabilidade do acertamento ou da declaração contida na sentença, no que pertine à definição do direito controvertido, e que decorre
do esgotamento dos recursos eventualmente cabíveis. Seu fundamento, consoante doutrina
abalizada, reside no princípio da segurança jurídica, manifestação do Estado Democrático
de Direito. Nesse sentido leciona Vicente Greco Filho, verbis: “[...] O fundamento da coisa
julgada material é a necessidade de estabilidade nas relações jurídicas. Após todos os recursos, em que se objetiva alcançar a sentença mais justa possível, há necessidade teórica
e prática de cessação definitiva do litígio e estabilidade nas relações jurídicas, tornando-se
a decisão imutável. Não mais se poderá discutir, mesmo em outro processo, a justiça ou injustiça da decisão, porque é preferível uma decisão eventualmente injusta do que a perpetuação dos litígios. (in Direito processual civil brasileiro. 16. ed. Saraiva, v. II, p. 249/250).
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
4. Agravo regimental desprovido.
E, por fim, a posição jurisprudencial do TJRJ:
2009.002.02473, 8ª C. Cív., Des. Luiz Felipe Francisco, Julgamento: 17.02.2009 – AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL, EM FASE DE EXECUÇÃO – COISA JULGADA – A partir do trânsito em julgado material, a sentença que julgar
total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas
(art. 468, CPC). Revelando-se lei entre as partes, a imutabilidade dos efeitos da sentença
incide não somente no processo, como também impede que a mesma demanda volte a
ser decidida em qualquer outro processo, em qualquer juízo ou tribunal, ficando vedada
qualquer nova decisão sobre a mesma questão. Manutenção da decisão agravada. Recurso
a que se nega seguimento, com fulcro no caput do art. 557 do Código de Processo Civil.
Erro material. Corrigido. Agravo inominado. Desprovimento.
2009.001.05238, 16ª C.Cív., Des. Lindolpho Morais Marinho, Julgamento: 10.06.2009 –
PROCESSUAL CIVIL – RESPONSABILIDADE CIVIL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – CONDENAÇÃO PRÉVIA EM JEC EM R$ 2.000,00 – MATÉRIA COBERTA PELA
COISA JULGADA MATERIAL – Tão grande é o apreço da ordem jurídica pela coisa julgada,
que sua imutabilidade não é atingível nem sequer pela lei ordinária, garantida que se acha
a sua intangibilidade por preceito da Constituição da República. Apenas a preocupação de
segurança nas relações jurídicas e de paz na convivência social é que explicam a res iudicata. Pois bem, dessa forma, tem-se, por óbvio, que a discussão agitada neste recurso, não
pode ser resolvida por meio desta estreita via, até porque, não se pode travestir de rescisória
o recurso de apelação, como, em última análise, se está pretendendo fazer. Recurso manifestamente improcedente, ao qual se nega seguimento, com fulcro no art. 557 do Código
de Processo Civil.
Nesta linha, insuficientes os fundamentos subjetivos, e sem lastro no processo primevo entre
as partes e/ou nos subsequentes, que embasaram a decisão recorrida.
No tocante à desconsideração da coisa julgada ao fundamento de inconstitucionalidade, refira-se ainda outra vez a elucidativa lição de do grande processualista brasileiro:
“Fala-se, também, em controle de constitucionalidade, em ‘controle de constitucionalidade’ das decisões judiciais, porque o Poder Judiciário não é imune ao referido controle
de constitucionalidade. Não existe fundamento no ordenamento jurídico brasileiro para o
acolhimento desta tese temerária. São três os momentos em que se pode impugnar os atos
jurisdicionais proferidos contra a CF: a) a sentença pode ser impugnada por apelação (art.
515, CPC); b) o acórdão pode ser impugnado por recurso extraordinário (CF, art. 102, III a
CF); c) a sentença ou acórdão de mérito, transitado em julgado, que tiverem sido proferidos
contra a CF, são impugnáveis por ação rescisória, com fundamento no inciso V do art. 485
CPC. Essas são as três formas de controle ‘jurisdicional’ da constitucionalidade dos pronunciamentos judiciais, pelo próprio poder judiciário. Não é verdade a afirmação de que não
existe controle de constitucionalidade de atos judiciais.
Existe, mas deve ser exercido dentro do devido processo legal. Criar-se impugnabilidade
perpétua de sentença ou acórdão apontados inconstitucionais, como se isto fosse uma espécie de querela nullitatis insanabilis, figura vetusta e banida dos ordenamentos jurídicos
dos povos cultos, é arbitrário e ofensivo ao Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º,
caput) e à garantia constitucional do devido processo legal (CF, art. 5º, caput e LIV).” (g. n.)
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
Por fim, quanto ao dissenso jurisprudencial, o recorrente não logrou demonstrar que
os acórdãos cotejados partiram de similar contexto fático para atribuir conclusões jurídicas
dissonantes, o que impossibilita o conhecimento do apelo também nesse particular.
A ausência de similitude fática entre os julgados confrontados foi muito bem percebida no parecer do Ministério Público, consoante se depreende do trecho a seguir (e-STJ, fls.
410-411):
Quanto ao dissenso jurisprudencial, verifica-se a ausência de similitude fática, uma vez que o
acórdão recorrido atribuiu ao recurso o efeito translativo, nos termos do art. 267, inciso V, do
CPC, para conhecer, de oficio, questão de ordem pública, qual seja a violação à coisa julgada.
Enquanto o Agravo de Instrumento nº 70021683222 do TJRS, trazido pelo recorrente como
paradigma, afastou as questões não veiculadas na origem, com arrimo no princípio do duplo
grau de jurisdição e da impossibilidade de inovação em sede recursal. Da mesma forma, inexiste similitude fática entre o AgRg 995.881/AM, do Superior Tribunal de Justiça e o acórdão
fustigado, posto que o acórdão sob censura considerou desnecessária a falta de intimação da
decisão agravada em razão da ausência de intimação da ação principal, o que não se constata
no caso trazido como paradigma.
Ante o exposto, conheço em parte do recurso especial e, nessa extensão, nego-lhe
provimento.
É como voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
SEGUNDA TURMA
Número Registro: 2012/0198450-0
Processo Eletrônico REsp 1.345.271/RJ
Números Origem: 00470328420098190000 200900245355
20090110162415 470328420098190000
Pauta: 08.04.2014
Julgado: 08.04.2014
Relator: Exmo. Sr. Ministro Og Fernandes
Presidente da Sessão: Exmo. Sr. Ministro Mauro Campbell Marques
Subprocurador-Geral da República: Exmo. Sr. Dr. José Elaeres Marques Teixeira
Secretária: Belª Valéria Alvim Dusi
AUTUAÇÃO
Recorrente: Município de Cabo Frio
Procurador: Paulo Lage Barboza de Oliveira e outro(s)
Recorrido: Nelson Simis Schver e outro
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Advogado: José Leite Saraiva Filho
Advogados: Alba de Oliveira Castro
Nelson Simis Schver (em causa própria) e outros
Gabriela de Lima Neto Torres
Assunto: Direito administrativo e outras matérias de direito público – Intervenção do Estado na
propriedade – Desapropriação indireta
SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr(a). José Leite Saraiva Filho, pela parte Recorrida: Nelson Simis Schver.
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia Segunda Turma, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão
realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
“A Turma, por unanimidade, conheceu em parte do recurso e, nessa parte, negou-lhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).”
Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques (Presidente), Assusete Magalhães, Humberto Martins e Herman Benjamin votaram com o Sr. Ministro Relator.
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Coisa Julgada - Algumas Questões
Ementário
7966 – Ação anulatória – coisa julgada – desapropriação
“Processo civil. Ação anulatória. Coisa julgada. Desapropriação. Agravo de instrumento. Ausência de citação.
Prazo para impugnar a decisão liminar. Art. 241, II, do CPC. Certidão de intimação. Dispensada no caso concreto. Análise de matéria não prequestionada. Impossibilidade. Acórdão recorrido com fundamento constitucional.
Súmula nº 126/STJ. Dissenso pretoriano não comprovado. 1. Constando do acórdão recorrido a informação de
que os agravados ainda não tinham sido citados quando da interposição do recurso, não se cogita da intempestividade do agravo de instrumento, haja vista que, sem a angularização da relação processual, o prazo para o
manejo do recurso deve ser contado na forma do art. 241, II, do CPC, isto é, a partir da juntada aos autos do mandado citatório cumprido. Dessarte, deve-se flexibilizar a exigência do art. 525, II, do CPC. No tocante à juntada
da certidão de intimação da decisão agravada – Aplicando-se na espécie o princípio da instrumentalidade das
formas. Precedente: REsp 877.057/MG, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, Quarta Turma, DJe 01.12.2010. 2. Não
se conhece do recurso especial em relação aos temas que não foram prequestionados na instância de origem.
No caso, os argumentos de que houve supressão de instância e de que a cláusula contratual não foi acobertada
pelo manto da coisa julgada – por não constar na parte dispositiva da decisão transitada em julgado – deixaram
de ser apreciados pelo Tribunal a quo, não havendo sequer a oposição de embargos declaratórios. Incidência
das Súmulas nºs 282 e 356 do STF. 3. Na hipótese, o acórdão recorrido reconheceu o descabimento da ação que
visava desconstituir a coisa julgada, acrescentando fundamentação de índole constitucional. No entanto, o ora
recorrente deixou de interpor o competente recurso extraordinário, o que atrai o óbice da Súmula nº 126/STJ.
4. Não se admite o apelo assentado na alegativa de dissídio jurisprudencial quando o recorrente não consegue
demonstrar que os arestos confrontados partiram de similar contexto fático para atribuir conclusões jurídicas
dissonantes. 5. Recurso especial a que se conhece em parte e nega-se provimento.” (STJ – REsp 1.345.271 –
(2012/0198450-0) – 2ª T. – Rel. Min. Og Fernandes – DJe 02.05.2014)
7967 – Ação rescisória – sentença monocrática – pedido de anulação – ofensa a coisa julgada – não configuração
“Rescisória. Ofensa a coisa julgada. Ação de reintegração de posse. Leasing. Rescisão de contrato. Circunstância prevista no art. 485 do CPC, inciso IV. Procedência da demanda. Tendo sido a questão pertinente à
invalidade do contrato de leasing firmado pelas partes examinada em sentença prolatada anteriormente, com
trânsito em julgado, inadmissível se torna que o aparato jurisdicional seja convocado a reapreciar essa matéria
em sede de recurso de apelação aviado em autos de reintegração de posse, para se considerar válido o contrato de arrendamento mercantil, se se encontra resolvida a questão em caráter definitivo, sob pena de afronta ao
instituto da coisa julgada, preconizado pelo ordenamento jurídico pátrio. A coisa julgada tem o gozo da garantia constitucional que torna imutável a decisão judicial (art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal). Isso
se dá em função da necessidade que a ordem jurídica tem de manter a paz social, a estabilidade, a segurança,
a certeza, a validade e a legitimidade dos atos jurisdicionais e das relações jurídicas. Não se pode perder de
vista o fato de que a coisa julgada é uma garantia fundamental daqueles que litigam perante o Poder Judiciário
e que a sua desconstituição, via ação rescisória, é de caráter excepcionalíssimo e de interpretação restritiva.”
(TAMG – AR 341.541-8 – 2º G.C.Cív. – Rel. Juiz Duarte de Paula – DJMG 05.06.2003)
Remissão Editorial SÍNTESE
• Vide RDC nº 38, nov./dez. 2005, ementas nºs 3574 do STJ e 3649 do STJ; RDC nº 36, jul./ago. 2005,
ementas nºs 3427 do TJGO, 3434 do TJSP e 3485 do TJGO; RDC nº 34, mar./abr. 2005, ementa nº 3308
do TRF 3ª R.
• Vide, também, RDC nº 38, nov./dez. 2005, acórdão na íntegra do STF.
• Vide, ainda, RDC nº 26, jul./ago. 2005, artigo de Hugo Nigro Mazzilli intitulado “Coisa julgada no processo coletivo: notas sobre a mitigação”; RDC nº 33, jan./fev. 2005, artigo de José Carlos Barbosa Moreira
intitulado “Considerações sobre a chamada ‘relativização’ da coisa julgada material” e artigo de Geandro Luis
Scopel intitulado “A coisa julgada sob o enfoque territorial na ação civil pública – Uma visão crítica à Lei nº
9.494/1997”.
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
7968 – Alimentos – revisão – coisa julgada – princípio da proporcionalidade
“Alimentos. Revisão. Princípio da proporcionalidade. Coisa julgada. Fixados os alimentos desatendendo ao
princípio da proporcionalidade, cabível sua revisão, ainda que não tenha ocorrido alteração no binômio possibilidade/necessidade. Não há falar em coisa julgada, quando ocorre desrespeito ao princípio norteador da
fixação do encargo alimentar. Agravo desprovido por maioria, vencido o Relator.” (TJRS – Ag 70011932688
– 7ª C.Cív. – Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos – DJ RS 19.08.2005)
7969 – Coisa julgada – identidade de ações – ausência – não ocorrência
“Direito processual civil. Alegação de ofensa a coisa julgada. Ausência de identidade de ações.
I – Há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por sentença de que não caiba recurso (CPC,
art. 301, § 3º). Uma ação é idêntica a outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo
pedido (CPC, art. 301, § 2º). Se não existe identidade de pedidos, não há que se falar em identidade de ações.
Não ofende a coisa julgada a sentença a respeito do acordo para indenização de benfeitorias que não foi objeto de pedido em nenhuma ação anterior. II – Recurso especial não conhecido.” (STJ – REsp 473.915/DF – 3ª
T. – Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro – DJU 1 03.05.2004)
7970 – Contrato de participação financeira – complementação de ações – valor patrimonial da ação (VPA)
– critério de apuração da diferença acionária – execução – configuração da coisa julgada – aplicação de multa
“Direito comercial e processual civil. Agravo regimental em recurso especial. Brasil Telecom S.A. Contrato de
participação financeira. Complementação de ações. Valor patrimonial da ação (VPA). Critério de apuração da
diferença acionária. Execução. Definição no aresto exequendo. Configuração da coisa julgada. Aplicação de
multa. 2. Tendo sido definido pelo título exequendo que a quantidade de ações a que faz jus a parte agravada
será apurada de acordo com o VPA fixado pelo balanço aprovado em assembleia geral imediatamente anterior
à integralização do capital, essa definição deve prevalecer em respeito ao instituto da coisa julgada (AgRg-REsp
1118364/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, Julgado em 02.12.2010, DJe 10.12.2010). 2.
Agravo regimental não provido, com aplicação de multa.” (STJ – AgRg-AG-REsp 348.059 – (2013/0191364-3)
– 4ª T. – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – DJe 05.05.2014)
7971 – Defesa do consumidor – touring club – associados – relação de consumo – existência; IDEC – legitimidade ativa; taxa de melhoria – deliberação abusiva – nulidade; coisa julgada – efeito erga omnes
“Sociedade civil. Touring club. Relação de consumo com os associados. Existência. Prestação de serviços. Previsão
estatutária. Fornecedor. Definição dada pelo art. 3º e §§ do Código de Defesa do Consumidor. Inexistência de remuneração específica. Irrelevância. Recurso não provido. Ação civil pública. IDEC. Ilegitimidade ativa ad causam,
inadequação da via processual e carência. Não caracterização. Relação de consumo, interesses e direitos coletivos
e difusos. Existência. Inteligência dos arts. 81, 82 e 91 do Código de Defesa do Consumidor e 1º, inciso II, e 5º da Lei
nº 7.347/1985. Recurso não provido. Sociedade civil. Touring club. Taxa de Melhoria Patrimonial e da Contribuição Social Extraordinária. Cobrança. Nulidade. Caracterização. Taxas instituídas em assembleias. Deliberações ilegais e abusivas. Sócios efetivos remidos e beneméritos. Participações inviabilizadas. Aplicação do
art. 51 do Código de Defesa do Consumidor. Recurso não provido. Ação civil pública. Procedência. Limitação
territorial dos efeitos. Inadmissibilidade. Sentença que faz coisa julgada erga omnes. Inteligência do art. 103
do Código de Defesa do Consumidor. Recurso adesivo provido.” (TJSP – AC 105.016-4/3 – 7ª CDPriv. – Rel.
Des. Sousa Lima – DJSP I 13.11.2000)
7972 – Execução – coisa julgada – penhora – adquirente de boa-fé – inexistência de registro – embargos de
terceiro
“Embargos de terceiro. Fraude à execução. Adquirente de boa-fé. Efeitos de decisão judicial anterior que não
atinge a embargante. Coisa julgada material inexistente em relação à penhora. Inexistência de registro. ‘A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando terceiros’ (art. 472
do CPC). Inexistindo registro da penhora sobre bem alienado a terceiro, incumbe ao exequente e embargado
fazer a prova de que o terceiro tinha conhecimento da execução ou da constrição judicial. Precedentes do
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Coisa Julgada - Algumas Questões
STJ. Recurso especial conhecido e provido.” (STJ – REsp 232.218/SP – 4ª T. – Rel. Min. Barros Monteiro – DJU
1 16.05.2005)
7973 – Execução individual – expurgos inflacionários em caderneta de poupança – limites subjetivos da
sentença – coisa julgada
“Processual civil. Embargos de declaração no agravo regimental nos embargos de declaração no recurso especial. Requisitos de admissibilidade. Execução individual de sentença coletiva. Expurgos inflacionários em
caderneta de poupança. Limites subjetivos da sentença. Abrangência nacional da demanda. Coisa julgada.
Regularidade do título. Prosseguimento da execução. Ausência de qualquer dos vícios elencados no art. 535
do CPC. Mero inconformismo. Embargos de declaração rejeitados. 1. Os embargos de declaração somente
são cabíveis quando houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade, contradição, omissão ou erro material,
consoante dispõe o art. 535 do CPC. 2. No caso, a parte embargante apenas suscitou questões que traduzem
o inconformismo com o teor da decisão embargada, objetivando rediscutir matérias decididas. 3. Embargos de
declaração rejeitados.” (STJ – EDcl-AgRg-EDcl-REsp 1.339.592 – (2012/0174855-0) – 4ª T. – Rel. Min. Antonio
Carlos Ferreira – DJe 04.04.2014)
7974 – Juros – cálculo – critérios – discussão – coisa julgada – descabimento
“Processo Civil. Alteração. Critério. Cálculo. Discussão. Descabimento. Coisa julgada. Impossível o exame dos
critérios adotados para o cálculo, sob pena de ofensa à coisa julgada.” (STJ – AgRg-Ag 683.298/RJ – 3ª T. – Rel.
Min. Humberto Gomes de Barros – DJU 1 06.02.2006)
7975 – Mandado de segurança – coisa julgada material – ação ordinária – descabimento
“Processo civil. Mandado de segurança e coisa julgada material. Ação ordinária. Lei nº 1.533/1951. 1. A expressão ‘denegar a segurança’ costuma ser empregada tanto na hipótese de sentença terminativa quanto nos
casos em que julgado improcedente o pedido; verificando-se, quanto a este último caso, a formação da coisa
julgada material, a inviabilizar o manejo da ação ordinária, como se infere da Súmula nº 304 do Supremo
Tribunal Federal. 2. ‘A ação ordinária cabe ao impetrante do mandado de segurança quando este é denegado,
por não se lhe reconhecer direito líquido e certo, não, porém, se o julgado conclui pela inexistência do direito
reclamado, como na espécie ocorreu. Esse o verdadeiro sentido da Súmula nº 304’ (STF, RE 83127/RJ, Rel.
Min. Cordeiro Guerra, Publ. 15.12.1976). 3. Apelação desprovida.” (TRF 2ª R. – AC 2001.02.01.0399963-0 –
8ª T.Esp. – Rel. Des. Fed. Poul Erik Dyrlund – DJU 2 31.01.2006)
7976 – Mandado de segurança coletivo – impetração por associação de classe – existência de coisa julgada
– alegação de entrada de novos sócios – irrelevância
“Recurso em mandado de segurança. Coisa julgada. Associação de classe. Novos sócios. Existência de coisa
julgada tendo em conta que o mandado de segurança coletivo, impetrado por associação de classe no interesse dos seus representados na qualidade de substituta processual, versa sobre questão já decidida em ação
anteriormente proposta pela mesma entidade. Não prospera a alegação da posterior entrada de novos associados nos quadros da associação como justificativa para afastamento dos efeitos da coisa julgada. Recurso
desprovido.” (STJ – RO-MS 9.624-MS – 5ª T. – Rel. Min. Felix Fischer – DJU-e 1 06.09.1999)
7977 – Medida cautelar – perda de objeto – verba honorária – manutenção – bem de família – imó­­vel penhorado – garantia a operação bancária assumida por pessoa jurídica – coisa julgada
“Civil e processual. Embargos de declaração em face de decisão em recurso especial. Caráter infringente.
Recebimento como agravo regimental. Medida cautelar. Perda de objeto. Verba honorária. Manutenção. Bem
de família. Imóvel penhorado. Garantia a operação bancária assumida por pessoa jurídica. Coisa julgada.
Embargos de devedor opostos por terceiro. Impossibilidade. 1. O julgamento do mérito do recurso especial,
que surte efeitos imediatos, causa a perda de objeto da medida cautelar que a ele atribuía efeito suspensivo. 2.
A declaração de inaptidão da hipoteca não provoca a extinção da dívida, que pode ser perseguida por outro
modo, circunstância que deve refletir na verba honorária em prol do devedor. 3. A garantia prestada à pessoa
jurídica não implica renúncia à proteção conferida ao bem de família se não demonstrado que a operação
bancária promoveu benefício em prol de pessoa física garantidora. 4. Não é extensível ao devedor a coisa
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
julgada quanto à inexistência do bem de família ocorrida em embargos de devedor opostos por terceiro, ainda
que seja seu filho. 5. Embargos de declaração do devedor recebidos como agravo regimental, ao qual se nega
provimento, assim como ao recurso do credor.” (STJ – AgRg-REsp 1.398.808 – (2013/0277911-9) – 4ª T. – Relª
Min. Maria Isabel Gallotti – DJe 05.05.2014)
7978 – Registro imobiliário – retificação – jurisdição voluntária – coisa julgada – inocorrência – competência
“Civil e processual civil. Retificação de registro imobiliário. Decisão proferida em procedimento de jurisdição
voluntária. Inocorrência de coisa julgada. Competência da Justiça Federal não configurada. Falta de interesse
processual. Carência de ação. 1. Não faz coisa julgada a decisão proferida em procedimento de jurisdição
voluntária que determina a retificação do registro imobiliário, admitindo-se a discussão da matéria por meio de
processo contencioso, nos termos do art. 216 da Lei nº 6.015/1973. 2. A ausência de impugnação da União no
procedimento de jurisdição voluntária afasta a configuração dos pressupostos legais que determinam o deslocamento da competência para a Justiça Federal. 3. É carecedora de ação, por falta de interesse de agir, a suplicante que, alegando nulidade, não comprova o prejuízo decorrente do ato que considera viciado. 4. Remessa
oficial parcialmente provida e recurso de apelação julgado prejudicado.” (TRF 1ª R. – AC 91.01.14044-2/BA
– 2ª T. – Rel. Conv. Juiz Antônio Sávio Chaves – DJU 2 25.11.1999)
7979 – Sociedade de fato – dissolução – prova – sucessão – litispendência e coisa julgada – inacolhimento
“Sociedade de fato. Ação proposta por três irmãos contra os sucessores de outro. Prova da existência da sociedade. Consentimento das mulheres dos autores casados. Suprimento. Possibilidade. Litispendência e coisa
julgada parciais. Inacolhimento. Pelo princípio da instrumentalidade das formas e dos atos processuais, não se
acolhe a preliminar de incapacidade processual pela falta de consentimento das mulheres dos coautores casados, se as mesmas comparecem ao feito, ratificando os atos praticados. Pas de nullité sans grief. Precedentes
do STJ. Não se cuidando de repetição de demandas idênticas, inocorrem a litispendência ou a coisa julgada
(art. 301, §§ 2º e 3º, do CPC). Quando se tratar, não da prova da existência da sociedade em si, mas de um fato
consumado – a comunhão de bens e interesses –, qualquer meio de prova é admissível. Pretensão de qualificar-se a sociedade de fato como comunhão condominial. Animus dos interessados envolvidos a exigir o reexame de matéria probatória (Súmula nº 7 do STJ). Recursos especiais não conhecidos.” (STJ – REsp 203.929/PR
– 4ª T. – Rel. Min. Barros Monteiro – DJU-e 1 20.08.2001)
7980 – Usucapião – ação rescisória – desconstituição de coisa julgada – ausência de citação do proprietário
do imóvel – prova pericial – transcrição do registro imobiliário cancelamento
“Ação rescisória. Intento de desconstituição de coisa julgada em ação de usucapião. Citação daquele em cujo
nome está registrado o bem usucapido. Imprescindibilidade. Litisconsórcio passivo necessário. Exegese do art.
942 do CPC. Violação de literal disposição de lei. Nulidade do processo. Prova pericial conclusiva. Judicium
rescindens. Cancelamento da transcrição do registro imobiliário oriunda da sentença. Procedência do pleito desconstitutivo. ‘Pela processualística vigente, na ação de usucapião, a falta de citação daquele em cujo
nome o imóvel esta transcrito constitui nulidade insanável, prevista no art. 485, V, do CPC, ou seja, violação à
literal disposição da lei, legitimando a actio e, por consequência, a iudicium rescindens. Desta forma, impõese a anulação do decisum e do processo de usucapião, uma vez não citada a pessoa em cujo nome estava
transcrito o imóvel usucapido, no Registro de Imóveis (art. 5º, § 2º, da Lei nº 6.969/1981)’ (Ação Rescisória
nº 88.042296-4 (734), Itajaí, Rel. Des. Solon d’Eça Neves).” (TJSC – AR 99.002838-0 – 3ª CDCiv. – Rel. Des.
José Volpato de Souza – DJSC 20.04.2005)
Comentário Editorial SÍNTESE
Tratam os presentes autos de ação rescisória proposta para desconstituição de coisa julgada em ação de
usucapião que foi julgada procedente.
Os autores alegaram que a área usucapida pertencia ao espólio do falecido, consoante prova no registro imobiliário, sendo que, deste modo, deveria ter sido citado para contestar o feito, o que não ocorreu.
O TJSC julgou procedente a ação rescisória afirmando que, não tendo sido citado o proprietário do imóvel em
referência, a sentença tem que ser rescindida.
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Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil
Coisa Julgada - Algumas Questões
O Relator ilustrou seu voto com julgados neste sentido e também com o posicionamento doutrinário. Destacou, ainda, o que dispõe o art. 942 do Código de Processo Civil:
“Art. 942. O autor, expondo na petição inicial o fundamento do pedido e juntando planta do imóvel, requererá
a citação daquele em cujo nome estiver registrado o imóvel usucapiendo, bem como dos confinantes e, por
edital, dos réus em lugar incerto e dos eventuais interessados, observado quanto ao prazo o disposto no inciso
IV do art. 232.”
A jurisprudência tem sido no sentido de que a falta de citação de quem é o proprietário do imóvel objeto da
ação de usucapião a nulidade é reconhecida.
Cabe ressaltar trecho da definição de De Plácido e Silva sobre a ação rescisória:
“A ação intentada com o objetivo de ser anulado decisório judicial, que já tenha passado em julgado, porque
tenha sido proferido contra expressa disposição de lei ou porque tenha violado direito expresso, a fim de que
se restabeleça a verdade jurídica, colocando-se o direito ofendido em sua posição anterior.
A ação rescisória assim toma sempre a direção da sentença, inquinada nula, para que seja decretada a sua
insubsistência e se restabeleça a relação jurídica que por ela foi desfeita.” (Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 27)
Cabe, ainda, trazer as lições de André Luiz Menezes Azevedo Sette sobre o instituto da coisa julgada:
“Valor de destacada importância para o Direito, e também para o Estado de Direito democrático, é a segurança jurídica, que encontra na coisa julgada uma de suas faces (fonte de expressão).
A imutabilidade da decisão judicial encontra, pois, sua razão de ser na segurança jurídica, enquanto técnica
para se atribuir maior segurança às relações humanas. A segurança jurídica consiste, assim, no ‘conjunto de
condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas
de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida’.
Para o Código de Processo Civil, ‘denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário’ (art. 467).
Com a publicação, a sentença torna-se irretratável para o julgador que a proferiu (art. 463 do CPC), mas
o vencido pode rebelar-se contra ela, valendo-se dos recursos cabíveis e pedindo a outro órgão superior da
Justiça que reexamine o julgado.
Como a lei estipula prazo certo (e preclusivo) para todo recurso, vencido o termo legal, sem manifestação da
parte vencida, ou depois de decididos todos os recursos interpostos, sem possibilidade de novas impugnações, a sentença torna-se definitiva e imutável.
Assim, enquanto sujeita a recurso, a sentença não passa de uma situação jurídica. Portanto, regra, os efeitos
próprios da sentença só se implementarão no momento em que não mais seja suscetível de reforma por meio
de recursos; ocorrerá, então, o que doutrina e jurisprudência convencionaram chamar de trânsito em julgado,
tornando o decisum imutável e indiscutível (art. 467).
Imutável a decisão, dentro do processo esgota-se a função jurisdicional (coisa julgada formal). É como se diz:
o Estado, pelo seu órgão judiciário, fez a entrega da tutela jurisdicional a que estava obrigado.
Porém, a imutabilidade produz efeitos, também, fora do processo, impedindo as partes de renovarem a discussão da lide em outros processos. Para os litigantes sujeitos à res iudicata, o comando sentencial (e, por
consequência, a imutabilidade de seus efeitos) reflete-se, também, fora do processo em que foi prolatada.
Portanto, a partir do trânsito em julgado material, ‘a sentença que julgar total ou parcialmente a lide tem força
de lei nos limites da lide e das questões decididas’ (art. 468).
Verifica-se que a coisa julgada material, revelando a lei das partes, produz seus efeitos no mesmo processo ou
em qualquer outro, vedando o reexame da res iudicium deducta (pretensão deduzida), por já definitivamente
apreciada e julgada.
E tamanha a importância do instituto em comento que o legislador constituinte optou por incluí-lo no Título
II (Dos direitos e garantias fundamentais), Capítulo I (Dos direitos e deveres individuais e coletivos), da Constituição de 1988 (art. 5º, XXXVI: ‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada’), consagrando-o como verdadeira cláusula pétrea.” (Não prevalência da coisa julgada material que
padece do vício de inconstitucionalidade. Repertório de Jurisprudência IOB, artigo n. 3/20269, 2ª quinz.
maio/2003, nº 10/2003, p. 257)
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Revista SÍNTESE
Trabalhista e Previdenciária
ASSUNTO ESPECIAL
CLT 70 Anos.
A Construção de Um Novo Modelo
Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Doutrina
CLT 70 Anos. Legislação Sindical 110
JOSÉ CARLOS AROUCA
Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho e do Instituto de Direito Social Cesarino Júnior.
SUMÁRIO: I – CLT 70 anos; II – Compreendendo a organização sindical através da história; 1 Era Pré-Vargas;
2 Era Vargas; 3 Era Pós-Vargas: de Sarney a Fernando Henrique Cardoso; 4 Era Lula; III – CLT x Constituição de
1988; 1 Liberdade sindical negativa x positiva; 2 Autonomia sindical x tutela e controle do Ministério do Trabalho e Emprego, do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho; 3 Unicidade x pluralidade sindical;
4 Representação: quadro associativo x categoria; 5 Representatividade; 6 Fins; a) Defesa de direitos individuais
da categoria. Reclamação trabalhista x substituição processual coletiva; b) Defesa de interesses coletivos
trabalhistas; 7 Greve x interdito proibitório; 8 Mediação e arbitragem; 9 Dissídio coletivo x comum acordo; 10
Solução dos conflitos coletivos; 11 Custeio; 12 Garantias e práticas antissindicais; 13 Participação sindical nos
colegiados da Administração Pública; 14 Organização sindical nos locais de trabalho x representação interna
do pessoal; IV – Reforma da legislação sindical; V – Pensando uma lei sindical democrática.
I – CLT 70 ANOS
Quando o Presidente Lula afirmou que a CLT era o AI-5 dos trabalhadores, quis se
referir não ao conjunto de normas de proteção ao trabalho que chega ao marco de 70 anos,
mas a seu Título V, distante da lei sindical de 1903, que, no mês de janeiro de 2013, completou 110 anos. Vale comemorar?
II – COMPREENDENDO A ORGANIZAÇÃO SINDICAL ATRAVÉS DA HISTÓRIA
1 Era Pré-Vargas
A economia no Brasil até o início do século XIX era essencialmente rural. A incipiente
industrialização só se desenvolveu a partir do início do século XX, mas lentamente. A Constituição republicana de 1891 permitiu a organização associativa, permitindo a todos, inclusive, o direito de reunião. A medida rompia com a proibição estabelecida pela Constituição
do Império, de 1824. No ano 1903 foi promulgada pelo Presidente Rodrigues Alves nossa
primeira lei sindical, Decreto nº 979, graças ao apelo da Federação Cristã de Pernambuco
e ao projeto do Deputado Joaquim Inácio Tosta. Restrita ao meio rural, próxima do corporativismo, adotava a autonomia, o registro em cartório, a liberdade negativa de filiação e a
retirada, permitindo a formação de uniões ou sindicatos centrais. Cinco anos depois, com
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
a mesma inspiração e iniciativa, o Decreto nº 1.637 ampliou a sua extensão para permitir
a organização por “profissionais de profissões similares ou conexas, inclusive as profissões
liberais”: autonomia, registro em cartório, organização em federações, uniões e sindicatos
centrais, liberdade negativa de filiação e formação mista entre capital e trabalho para a solução dos conflitos. Inspirada na Encíclica Rerum Novarum priorizava a conciliação das duas
classes antagônicas, às quais atribuía, quando constituídas “com o espírito de harmonia,
como sejam os ligados por conselhos permanentes de conciliação e arbitragem, destinados
a dirimir as divergências e contestações entre o capital e o trabalho”, feição de “representantes legais da classe integral dos homens do trabalho”, podendo, como tais, “serem consultados em todos os assuntos da profissão”. Foi um tempo de agitação, de reivindicações
sentidas, um período rico de protestos e greves. Os imigrantes chegaram para substituir o
trabalho escravo. Foram 220 mil no período de 1871 a 1880, 2 milhões, de 1901 a 1930,
e com eles vieram socialistas e anarquistas já experimentados na organização de classe em
suas terras de origem. O ano 1906 foi marcado pelo 1º Congresso Operário Brasileiro e a
fundação de nossa primeira central – Confederação Operária Brasileira, e, adiante, o ano
de 1917 foi marcado pela greve dos “companheiros de São Paulo”, como foi chamada carinhosamente por Paula Beiguelman1; porém, nos tempos que antecederam a “Era Vargas”,
o sindicato nem sempre era tolerado, sendo bastante lembrar os apelidos de leis repressivas
como “Lei Infame” de 1921 e “Lei Celerada” de 19272. Everardo Dias, condenado ao exílio,
registrou em seu livro: “Pode-se dizer, sem receio de desmentido que de 1902 a 1930, não
houve sindicato que tivesse vida regular e livre sem intervenções policiais”3.
2 Era Vargas
Getúlio Vargas, mesmo derrotado nas urnas, em eleição viciada, como era a regra,
assumiu o poder e, cumprindo o programa da Aliança Liberal, criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio para administrar a “questão social”, antes simples “questão
de polícia”, e também para controlar os sindicatos que passaram a ser disciplinados por
uma nova lei, Decreto nº 19.770, de 1931, escrita por dois socialistas, Evaristo de Morais,
pai, e Joaquim Pimenta. Mesmo assim, deram ao sindicato natureza de órgão de colaboração, subordinado ao Ministério recém-criado, que adotava a unicidade de representação
e admitia a centralização através de uma confederação geral. A partir de então, inúmeras
leis foram aprovadas, entre as mais importantes os Decretos nºs 21.761, sobre Convenção
Coletiva de Trabalho, e 21.396, instituindo as Comissões Mistas de Conciliação. Em 1934,
uma Assembleia Constituinte exclusiva aprovou a Constituição liberal, a qual se seguiu uma
nova lei sindical, o Decreto nº 24.694, que foi nossa experiência pluralista, mas relativa,
pois exigia 1/3 da categoria para o reconhecimento, de modo que o pluralismo esgotava-se
com dois, no máximo três, sindicatos. O ano de 1937 marcou o início da ditadura batizada
como Estado Novo, que só chegaria ao fim sete anos depois, após o término da 2ª Guerra
Mundial. Foi um regime fascista e cruel em que imperou o arbítrio. A Carta outorgada, escrita por um só homem, Francisco Campos, deu ao sindicato feição de órgão de defesa da
categoria de produção em função do sistema corporativista, em que só se admitia um único
sindicato reconhecido pelo Estado, incluído no Conselho da Economia Nacional. A Carta
ampliou a competência da Justiça do Trabalho para resolver os conflitos coletivos. A greve
1 Os companheiros de São Paulo: ontem e hoje. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2002.
2 Decretos nºs 4.269, de 17 de janeiro, e 5.221, de 12 de agosto, respectivamente.
3 História das lutas sociais. São Paulo: Edaglit, 1962. p. 20.
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
foi declarada recurso antissocial, nociva à produção, ou, em outras palavras, proibida. E
veio o Decreto-Lei nº 1.402, de 5 de julho de 1939, escrito por um só homem, Oliveira Viana, que instituiu a tutela repressiva a cargo do Ministério do Trabalho, com penalidades que
iam da intervenção no sindicato à destituição de seus dirigentes. Para completar e dar-lhe
sustentação, foram criados, em 1940, o enquadramento e o imposto sindical. Sem retoques,
entrou na Consolidação, compondo seu Título V, que atravessou a meia democracia do
Governo Dutra até o esgotamento da Ditadura Militar de 1964. A repressão contra ideias
contrárias ao regime fez incluir, no art. 530 da CLT, a exigência de comprovação negativa de ideologia: “Não podem ser eleitos para cargos administrativos ou de representação
econômica ou profissional: a) os que professarem ideologias incompatíveis com as instituições ou os interesses da Nação”, só revogada no ano 19514. Restabelecida a democracia
em 1946, o Presidente Marechal Dutra aproveitou a oportunidade excepcional que lhe
permitia legislar soberanamente para proibir o direito de greve, baixando o Decreto-Lei nº
9.070, embora consagrado no Tratado de Chapultepec, assinado pelo Brasil. Outra ofensa
ao Tratado foi o fechamento da central CTB – Confederação dos Trabalhadores do Brasil
– e a intervenção em todos os seus filiados, cerca de 400. A Constituição, votada por uma
Assembleia exclusiva e democrática, limitou-se a reconhecer a liberdade sindical e o direito de greve conforme disciplinação por lei ordinária. No Governo João Goulart, a ação
sindical desenvolveu-se, surgindo a central Comando Geral dos Trabalhadores, CGT, no
lado esquerdo, e o Movimento Sindical Democrático, à direita. Em 1964, outra ditadura,
agora militar, também brutal, extinguiu o CGT e interveio em 1.565 entidades sindicais5.
Um arremedo de Constituição impôs a obrigatoriedade do voto nas eleições sindicais e,
demagogicamente, a “integração do trabalhador na vida e no desenvolvimento da empresa [...] e, excepcionalmente, na gestão, nos casos e condições que forem estabelecidas”.
O Decreto-Lei nº 229, de 1967, trocou contrato coletivo, até então restrito aos filiados,
por convenção, criando o acordo coletivo, ambos de abrangência geral; dificultou a negociação coletiva, impondo quoruns sabidamente inatingíveis para a assembleia autorizar
a sua celebração: 2/3 da categoria em primeira e 1/3 na segunda convocação. A greve,
outra vez, se não foi proibida, ao menos foi extraordinariamente dificultada com a Lei
nº 4.330, de 1964, tanto que ficou conhecida como “Lei Antigreve”, vedada nos serviços
públicos e nas atividades essenciais.
3 Era Pós-Vargas: de Sarney a Fernando Henrique Cardoso
De novo a democracia e a Assembleia Constituinte formada pela Câmara dos Deputados e Senado Federal aprovaram a Constituição de 1988, que, em seu art. 8º, enfeixou as
regras da atual organização sindical, procurando conciliar autonomia e unicidade. Criou
o artificialíssimo sistema confederativo, logo esquecido, e uma contribuição para o seu
custeio, que perdeu efetividade quando o Supremo Tribunal Federal limitou os seus efeitos
aos associados. Os servidores públicos, afinal, conquistaram o direito de organizarem-se em
sindicato e de defender os seus interesses através da greve. Mas, por medo ou esquecimento, não lhes foi assegurado o direito de negociação coletiva e a solução de seus conflitos
mediante convenção coletiva de trabalho. Fernando Henrique Cardoso, ao deixar o Senado
para assumir a presidência da República, em seu discurso de despedida, decretou o fim da
“Era Vargas”. Assim, passada a “Era dos militares”, que manchou nossa história e tantas bi4 Lei nº 1.667, de 1º de setembro de 1952. Curiosidade, assinada e apoiada por Getúlio Vargas.
5 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil, de 1964 a 1979. Rio de Janeiro: Vozes, 1984. p. 244.
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
ografias, seguiu-se a “Era neoliberal”, que, pretendendo modernizar a legislação trabalhista,
limitou-se aos exercícios das Comissões de Notáveis dos Governos Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, ambas propondo a pluralidade sindical.
4 Era Lula
Em janeiro de 2003, iniciou-se a Era Lula, com a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico, que qualificou a legislação trabalhista, inclusive constitucional, como anacrônica. Todavia, fracassou o propósito de aprovar uma Lei Sindical,
conforme os consensos obtidos no Fórum Nacional do Trabalho. Sobrou a PEC 369, ainda
em tramitação, que revoga o inciso II do art. 8º, trocando unicidade por pluralidade, mas
mantendo a contribuição compulsória aprovada pela assembleia-geral. No seu governo, a
Emenda nº 45, de dezembro de 2004, alterou o art. 114, atribuindo à Justiça do Trabalho
competência para processar e julgar as ações fundadas no exercício do direito de greve,
representação sindical e penalidades administrativas. Finalmente, as centrais foram reconhecidas, se bem que já fossem de fato. Foi anunciada a extinção da contribuição sindical,
mas somente quando for regulamentado por lei o seu substitutivo, de nome contribuição
negocial. Já, no Governo Dilma Rousseff, foi promulgada a Convenção nº 151 para completar os direitos coletivos dos servidores público.
III – CLT X CONSTITUIÇÃO DE 1988
A Constituição de 1988, consagrando, no art. 8º, a autonomia sindical, alterou radicalmente a legislação sindical originária da lei de 1939 transportada para a CLT, a ponto de
não se saber direito o que dela restou na CLT.
1 Liberdade sindical negativa x positiva
A Constituição só pontuou a liberdade negativa no inciso V do art. 8º, como o direito
de não se filiar e de se manter filiado a sindicato. A liberdade positiva ficou restrita ao art.
543, § 6º, da CLT, que veda às empresas, por qualquer modo, impedir que o empregado
se associe a sindicato, organize associação profissional ou sindical ou exerça os direitos
inerentes à condição de sindicalizado. Também a Convenção nº 98 da OIT, que compõe
nosso ordenamento jurídico desde 1953, veda a subordinação do emprego de trabalhador
à condição de não se filiar ou deixar de fazer parte de um sindicato, dispensá-lo ou prejudicá-lo, por qualquer modo, em virtude de sua filiação ou participação em atividades sindicais; fosse melhor conhecida e os componentes dos conselhos fiscais e delegados teriam os
seus empregos garantidos. O Brasil não ratificou a Convenção nº 87 da OIT, que prestigia a
liberdade sindical, considerada como tal o direito de trabalhadores e empregadores, “sem
nenhuma distinção e sem autorização prévia, [...] constituir as organizações que estimem
convenientes, assim como o de filiar-se a estas organizações, com a única condição de observar os estatutos das mesmas” (art. 2º).
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
2 Autonomia sindical x tutela e controle do Ministério do Trabalho e Emprego, do Ministério
Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho
Autonomia não se confunde com liberdade individual, sendo a faculdade de se governar por si mesmo, de se reger por suas próprias normas de conduta. Não se trata de autonomia plena, de soberania, mas relativa, subordinada ao comando da lei; no caso, autonomia
da coletividade organizada de trabalhadores (de empregadores também no sistema brasileiro). Até 1988, não tivemos um mínimo de autonomia, já que o sindicato, como órgão
de colaboração, sujeitava-se à tutela repressiva do Ministério do Trabalho. A Constituição
inscreveu no topo do art. 8º: “É livre a associação profissional ou sindical [...]”, completando no inciso I: “A lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato,
ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a
intervenção na organização sindical”. Só que justamente no governo comandado por um
ex-sindicalista, dos mais expressivos, tendo outros ocupando os seus ministérios, a autonomia começou a ser negada. Primeiro, a Portaria nº 160, de 2004, procurou regulamentar o
inciso IV do art. 8º da Constituição, disciplinando a contribuição confederativa; claro que
a inconstitucionalidade inequívoca determinou liminarmente a sua suspensão por ato do
Ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal. Depois, foi criado o cadastramento
como forma de controle (Instruções Normativas nºs 2, de 2005, 3 e 4, de 2006); seguiu-se
o chamado “Sistema Mediador”, sobrepondo-se à liberdade de negociação coletiva, quase
forma de homologação (Instrução Normativa nº 6, de 2007). O registro sindical, que, segundo o Supremo Tribunal Federal, seria ato vinculado destinado a preservar a unicidade sindical (MI 144/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DO 28.05.1993, p. 10381), foi disciplinado
pelas Portarias nºs 186, de 2008, e 326, de 2013, que deram aos “analistas” do Ministério
do Trabalho e Emprego poder de decisão no processo administrativo, comportando até
audiência de conciliação e ofendendo diretamente a Constituição, permitindo a pluralidade
de federações e confederações. Em 2010, o “Sistema Homologanet”, criado pela Portaria
nº 1.621, impôs aos sindicatos regras e modelos para exercer a prerrogativa de defender
direitos individuais por ocasião do pagamento das verbas rescisórias. E a Portaria nº 2.090,
do mesmo ano, instituiu o Conselho Nacional de Relações do Trabalho, de formação tripartite e paritária, composto de duas Câmaras Bipartites, uma dos empregadores, outra dos
empregados, ambas com participação do Ministério do Trabalho, ensaiado desde o Fórum
Nacional do Trabalho, assumindo competência para determinar o enquadramento sindical
que se acreditava definitivamente extinto.
3 Unicidade x pluralidade sindical
Unicidade constitui o sistema organizativo pelo qual apenas um sindicato é legitimado
para representar uma determinada categoria profissional ou econômica em uma mesma área
geográfica. Foi adotada nas leis sindicais de 1931 e 1939 e transportada para o art. 516 da
Consolidação das Leis do Trabalho; depois, também para o inciso II do art. 8º da Constituição.
Atacada pelos acadêmicos e analistas do sindicalismo por razões diversas, em especial a incômoda posição do Brasil na lista dos pouquíssimos países que não ratificaram a Convenção
nº 87, diante da proliferação de sindicatos frágeis a que teria dado causa, e a origem corporativo-fascista. Os Estados Unidos, a China, a Rússia, a Índia e o Irã também não ratificaram a
Convenção; outros a adotaram, inclusive as ditaduras do Paraguai, do Chile e do Uruguai, que
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
fecharam sindicatos e prenderam trabalhadores ao longo dos regimes de exceção, o que conduz ao entendimento de que a liberdade sindical tem o mesmo tamanho da liberdade política.
A proliferação desenfrea­da de sindicatos deve-se, fora de qualquer dúvida, ao estímulo dado
pela contribuição sindical e ao apoio decisivo do Ministério do Trabalho e Emprego, que registra sindicatos “fantasmas” ou “amarelos”, sem contar com nenhum apoio nas bases, através
de aventureiros, ampliando a dimensão da crise sindical com a criação de sindicalistas “pelegos”, “oficialistas”, “imobilistas” e corruptos. A negociação coletiva nos Estados Unidos é
conduzida pela participação de 200 sindicatos nacionais e um número aproximado de 75.000
sindicatos locais6; em 1993, o Japão possuía cerca de 34.000 sindicatos de empresas7. De
resto, Marx já defendia a ideia da unidade da classe trabalhadora para o enfrentamento com o
capitalismo. Evaristo de Moraes Filho, secundado por Arion Sayão Romita, mostra que, muito
antes do fascismo, a unicidade já era a bandeira dos socialistas, o regime adotado na União
Soviética8. Pluralidade, na trilha da Convenção nº 87 que lhe dá fundamento, ao contrário, é
a liberdade de os trabalhadores e os empregadores, sem nenhuma distinção e sem autorização do Estado, constituir as organizações que acharem mais convenientes. Os defensores da
pluralidade, quase todos, consideram-na um mal, mas inevitável, reconhecendo que o ideal
seria a unidade, porém conquistada pela vontade dos trabalhadores, e não imposta por lei.
Nesta linha, liberdade e pluralidade caminhariam juntas, inseparáveis. A propósito, escreve
Pinho Pedreira: “[...] a pluralidade sindical enfraquece o movimento sindical, desagregando-o
e possibilitando a fragmentação da categoria em muitos sindicatos, dos quais talvez nenhum
suficientemente representativo”9. Mesmo a OIT considera que a pluralidade, quando menos, é
um grave complicador. A liberdade ampla e, assim, também o pluralismo absoluto conduzem,
necessariamente, ao sindicato constituído no âmbito da empresa, elitista, ao sindicato fundado
na profissão efetiva, que atomiza a organização, inviabilizando a negociação coletiva. Por isto
mesmo Éfren Córdova, técnico da OIT, admite que “ninguém pode afirmar que a Convenção
nº 87 e seus organismos de controle têm sido capazes de resolver todos os problemas suscitados em torno da liberdade sindical”10. Enfim, a pluralidade, como exacerbação da liberdade
individual, seria um mal necessário, pois fácil é perceber que desagrega os trabalhadores,
enfraquecendo-os e, por consequência lógica, inviabilizando a sua ascensão como classe. O
pluralismo sempre teve em sua defesa a Igreja Católica a partir dos ensinamentos da Encíclica
Rerum Novarum do Papa Leão XIII, para permitir a formação de sindicatos confessionais, e foi
assim acolhido na Lei Sindical de 1934, Decreto nº 24.694. A liberdade sindical, que vai dar
ou pode dar na organização plural, foi retomada na década de 1970 graças ao empenho da
Igreja Católica e dos sindicalistas, que mais tarde fundariam a Central Única dos Trabalhadores e o Partido dos Trabalhadores, tendo a frente Luiz Inácio Lula da Silva, Olívio Dutra, João
Paulo Pires Vasconcelos, entre outros. Nos Governos José Sarney, Fernando Collor de Mello
e Fernando Henrique Cardoso, cogitou-se da adoção do pluralismo. E o Fórum Nacional do
Trabalho do Governo Lula adotou-o, mas sem excluir a unicidade com nome de exclusividade, reservada para os sindicatos preexistentes, se e enquanto mantivessem 20% de filiados,
sabendo-se, porém, que o índice médio de sindicalização é de 19%.
6 PICARELLI, Márcia Flávia Santini. A convenção coletiva de trabalho. São Paulo: LTr, 1986. p. 128.
7 PASTORE, José. Relações do trabalho no Japão. São Paulo: LTr & OIT, 1994. p. 53.
8 MORAIS FILHO, Evaristo de. O problema do sindicato único no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1978. p. 179 e ss.;
ROMITA, Arion Sayão. O fascismo no direito do trabalho brasileiro. São Paulo: LTr, 2001. p. 39, 67/68.
9 Ensaios de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1998. p. 141 e ss.
10 A organização sindical brasileira e a Convenção nº 87 da OIT. São Paulo: LTr, 1985. p. 13.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
4 Representação: quadro associativo x categoria
O sindicato representa a categoria, profissional ou econômica. Categoria, como expressão do corporativismo fascista, tornou-se palavra amaldiçoada, mas foi democratizada,
já que repetida nos incisos II, III e IV do art. 8º da Constituição, significando grupo, classe,
não se justificando profissão, que designa uma formação técnica, intelectual ou braçal.
O anteprojeto de lei sindical do Fórum Nacional do Trabalho preferiu ramo como mero
sinônimo, que já figurava no projeto de sindicato orgânico da CUT. Categoria possui conceituação própria, dada pelo art. 511 da CLT, sendo a empresarial representada pela solidariedade de interesses econômicos dos exercentes de uma mesma atividade ou atividades
similares e a profissional dos empregados ligados pela similitude de condições de vida
oriunda da profissão ou trabalho em comum na mesma atividade econômica ou em atividades similares; outra, excepcional, a categoria diferenciada, fundada na profissão, quando
disciplinada por estatuto especial ou condições de vida singulares; também a categoria
dos trabalhadores autônomos, na qual se inserem os profissionais liberais e dos servidores
públicos. Não se mantém o sistema de categorias artificiais, criadas pelo Estado. Todavia,
o Ministério do Trabalho tem reconhecido categorias esdrúxulas como a dos cantores sertanejos e a dos empregados em lojas de fast food. No entanto, a PEC 369 exige, para o
reconhecimento do sindicato, a possibilidade de agregação para efeito de negociação coletiva; logo, a mesma correspondência prevista na CLT de uma categoria profissional para
outra econômica. O sindicato não representa apenas os seus associados, mas o conjunto de
trabalhadores ou empregadores que compõem uma categoria ou grupo, tanto na defesa de
direitos individuais como nas negociações coletivas, nas greves, nos colegiados dos órgãos
públicos voltados para questões trabalhistas e previdenciárias. Daí a sua importância, pois
a associação comum só representa os associados (CF, art. 5º, XXI).
5 Representatividade
As associações de classe assumem natureza sindical com o registro no órgão competente, no caso, o Ministério do Trabalho e Emprego. Para tanto, devem comprovar a
sua representatividade e o apoio numérico de aderentes. A CLT, no art. 515, exigia 1/3 da
categoria, tanto dos trabalhadores, inclusive autônomos e profissionais liberais, como dos
empregadores. Só que o parágrafo único autorizava o Ministro do Trabalho a dispensar a
exigência, o que se tornou comum, até porque o índice de sindicalização jamais atingiu
tamanha expressão. Se o dispositivo se mantém ou não, para o Ministério do Trabalho e
Emprego não tem valia. Mas exige, como mandam os arts. 535 e 536, cinco sindicatos para
o reconhecimento de uma federação e três federações, tratando-se de confederação. As
centrais foram legitimadas pela Lei nº 11.648, de 2008, que impôs, entre outras condições,
filiação de sindicatos que representem, no mínimo, 7% do total de empregados sindicalizados em âmbito nacional, cumprindo ao Ministério do Trabalho e Emprego a aferição. Daí o
reconhecimento das centrais CUT, Força Sindical, UGT, CTB e NCST.
6 Fins
a) Defesa de direitos individuais da categoria. Reclamação trabalhista x substituição processual coletiva
O inciso III do art. 8º da Constituição atribui ao sindicato como prerrogativa/dever a
defesa dos direitos individuais da categoria, ou, como já visto, o conjunto de trabalhadores
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que operam em uma mesma atividade econômica ou em atividades similares. A defesa de
direitos individuais pode ser direta, junto ao empregador ou a setores e repartições da Administração Pública, especialmente dos Ministérios do Trabalho e da Previdência Social,
mas pode também ser coletiva, da categoria como um todo ou de parte dela, comumente
dos empregados de uma determinada empresa. Para espanto geral, a coletivização do processo, iniciada com a Lei nº 4.717, de 1965 (ação popular), seguida da Lei nº 7.347 (ação
civil pública) e acentuada com o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 1990),
encontrou barreira para a aplicação justamente na Justiça do Trabalho. Não fosse suficiente
o texto constitucional, o Código, no art. 82, considera legitimadas para a defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e homogêneos “as associações legalmente constituídas”,
e, portanto, também as sindicais. Mesmo assim, o Tribunal Superior do Trabalho negou a
chamada substituição processual, editando a infeliz Súmula nº 310, só cancelada depois
que o Supremo Tribunal Federal a admitiu. Apesar de tudo, a Justiça do Trabalho insiste
em negá-la, a pretexto de os substituídos não serem identificados ou aceitando-a restritivamente, apenas para os trabalhadores filiados ao sindicato e, principalmente, desconsiderando a natureza de direitos homogêneos, embora conceituados acertadamente como “os
decorrentes de origem comum” (Código de Defesa do Consumidor, art. 81, III), logo, do
contrato de trabalho firmado com o mesmo empregador.
b) Defesa de interesses coletivos trabalhistas
Os interesses coletivos podem ser trabalhistas, sociais e políticos, se bem que parcela
majoritária dos acadêmicos só aceita como tais os primeiros. Interesses são aspirações e,
portanto, reivindicações. Tratando-se de interesses trabalhistas, a defesa poderá ser direta
ou indireta: direta, com­preendendo a negociação coletiva e a greve; indireta, através da
mediação, da arbitragem e do dissídio coletivo.
A negociação coletiva constitui procedimento que parte da determinação dos interesses
coletivos pela assembleia-geral ou específica do grupo interessado, ou seja, de uma parcela
da categoria ou dos empregados de uma ou mais empresas. No primeiro caso, supõe a representação concentrada de categorias, permitindo a sua separação, como é comum para fins
negociais. Um procedimento de avanços e recuos, de concessões e renúncias, até chegar a
um consenso a ser formalizado na convenção ou no acordo coletivo de trabalho, ou, como
se diz comumente, a um tratado de paz. A Constituição, no inciso VI do art. 8º, atribuiu ao
sindicato o monopólio da negociação, flexibilizado-o para restringi-la ao sindicato profissional, já que a par da convenção foi reconhecido o acordo coletivo e, portanto, o direito
de negociação da empresa considerada individualmente. Mantém-se, ainda, o modelo da
CLT, alterado pelo Decreto-Lei nº 229, de 1967, que dificultou a negociação em favor do
dissídio coletivo, que permitia maior controle estatal. Grande parte dos acadêmicos e analistas, da imprensa e até dos trabalhadores e empregadores, afirmam que os sindicatos não
sabem negociar e negociam mal, que não temos experiência de negociação, tudo em razão
da fragilidade dos sindicatos; para muitos, culpa do sistema de unicidade. Melhor avaliando nossa legislação, podemos concluir que é a culpada principal. De fato, a “velha” CLT
mantém a data-base, limite que não pode ser ultrapassado, sob pena de, em um eventual
dissídio coletivo, a norma ter aplicação só depois de publicado o acórdão que for proferido.
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Duração rígida de um ano, mitigada pela recente Súmula nº 277 do TST, que distinguiu duração como prazo temporal e eficácia como persistência do ajustado, até que outra norma
substitua a preexistente. Mas já se cuida de modular a Súmula, que, mesmo tendo natureza
de jurisprudência, assumiu feição de lei com vigência a partir de sua edição. Desmentindo
a crítica, deve-se atentar para os levantamentos do Departamento Intersindical de Estatística
e Estudos Socioeconômicos – DIEESE, que apontam centenas de convenções realizadas com
êxito, alcançando aumentos reais, acima da inflação, contemplando mais de meia centena
de cláusulas. Aliás, muitas delas, como atesta o Departamento Intersindical de Assessoria
Parlamentar – DIAP, foram incorporadas à Constituição, como piso salarial, aviso-prévio
proporcional ao tempo de serviço, férias acrescidas de 1/3, etc.
7 Greve x interdito proibitório
Greve foi violência, delito, direito e até meio direito, reprimido pela polícia e pela
Justiça do Trabalho, e também foi subversão nas Ditaduras Vargas e Militar. Foi proibida
pelo decreto de exceção, Decreto nº 9.070, e limitada pela Lei nº 4.030. A Constituição
elevou-a a condição de direito, inscrevendo-a no art. 9º, cabendo aos trabalhadores definir
os interesses a serem defendidos e a oportunidade para a sua deflagração. A regulamentação foi traçada pela Lei nº 7.783, de 1989, que a conceituou no art. 1º como “suspensão
coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador”. A sua eclosão condiciona-se à deliberação de assembleia ou, na falta do sindicato,
de manifestação coletiva e comando por comissão dos trabalhadores interessados, além
de aviso-prévio ao empregador ou a seu sindicato com prazo de 48 horas nas atividades
comuns e de 72 nas essenciais. Serviços ou atividades essenciais foram determinados exaustivamente no art. 10. No caso, o sindicato, os trabalhadores e as empresas obrigam-se, de
comum acordo, a atender às necessidades inadiáveis da comunidade, ou seja, aquelas que
possam colocar em perigo, se não atendidas, a sobrevivência, a saúde ou a segurança da
população. A greve suspende o contrato de trabalho e o empregador só poderá se valer de
mão de obra substitutiva se não houver acordo para manter através de equipes os serviços,
cuja paralisação possa provocar prejuízos irreparáveis e, também, para a manutenção dos
equipamentos necessários à retomada da atividade. Reputa-se como abuso do direito de
greve a sua deflagração na vigência de acordo ou convenção coletiva, exceto no caso de
seu descumprimento de suas cláusulas, da lei, mora salarial. O locaute ou greve patronal é
proibido. A participação do trabalhador, mesmo em greve ilegal, não constitui falta grave.
Primeiro, a greve era obstaculizada pela ação da polícia e do Ministério Público do Trabalho, que ajuizava o dissídio coletivo antes mesmo de sua eclosão, e a Justiça do Trabalho
logo decidia, de modo que ficava inviabilizada, pois a lei, no art. 14, também considerava
abuso do direito mantê-la após o julgamento. Mais recentemente, outro obstáculo foi criado
pela Justiça do Trabalho através do interdito proibitório, cada vez mais comum, que proíbe
a aproximação dos dirigentes e ativistas sindicais, a distribuição de boletins, a ostentação
de faixas e cartazes, os carros de som nas proximidades da empresa, mesmo permitindo o
art. 6º a persuasão e o aliciamento pacífico dos trabalhadores. Já não bastasse a exigência
de impor apenas ao sindicato profissional a manutenção durante a paralisação de um contingente ativo de trabalhadores, por vezes excessivo, ao arrepio do art. 11, que literalmente
acentua a exigência mas de comum acordo com a empresa.
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8 Mediação e arbitragem
Mediação até a pouco era chamada “mesa redonda” e tinha lugar nas delegacias regionais do trabalho, hoje superintendências, sendo supostamente compulsórias para marcar
o propósito de negociação coletiva, exigível para a instauração do dissídio coletivo, como
dispunha o art. 616 da CLT. Modernamente, seguindo os padrões internacionais, a Lei nº
10.192, de 2001, que complementou o chamado “Plano Real”, instituiu a mediação como
forma de intervenção de terceiro para atuar junto às partes em conflito, auxiliando-as na
busca de uma solução amistosa, podendo, inclusive formular propostas com este objetivo. O mediador pode ser qualquer pessoa com experiência comprovada na composição
dos conflitos trabalhistas, possuidora de conhecimentos técnicos de natureza trabalhista,
credenciado junto ao Ministério do Trabalho. A mediação foi disciplinada pelo Decreto nº
1.572, de 28 de julho de 1995. Todavia, não temos mediadores nem prática de mediação
por falta de interesse na sua formação e de confiabilidade no instituto, mantendo-se, assim,
a atuação das superintendências regionais do Ministério do Trabalho, como nos tempos
das “mesas redondas”. Quanto à arbitragem, nada a ver com a Lei nº 9.307, de 1996, que
trata de litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, como enuncia o seu art. 1º, mas
arbitragem de conflitos coletivos do trabalho, com previsão nos §§ 1º e 2º do art. 114 da
Constituição, segundo os quais, frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger
árbitros e, sendo recusadas uma e outra, fica facultado o ajuizamento do dissídio coletivo.
Mais um instituto que não tem nenhum significado prático, por falta de legislação específica
e de árbitros confiáveis diante da natureza eminentemente política do conflito de interesses
que exige neutralidade.
9 Dissídio coletivo x comum acordo
Criação da Ditadura Vargas, inspirada na Carta del Lavoro. O arremedo de Constituição outorgada em 1937, no art. 138, atribuiu à Justiça do Trabalho a solução dos conflitos
coletivos, que foi regulamentada na lei sindical de 1939 e transportada para a CLT nos arts.
856 a 871. A instauração podia ser iniciativa do sindicato profissional ou econômico, e, em
face de movimento grevista, das empresas, do presidente do Tribunal do Trabalho ou do
Ministério Público do Trabalho. Decidindo o conflito, a Justiça do Trabalho exercia o seu
poder normativo de estabelecer normas e condições de trabalho. Logo, um processo que se
tornou o principal complicador das negociações coletivas, pois o seu ajuizamento deveria
se dar até o último dia de duração da norma anterior, sob pena de as novas condições de
trabalho, inclusive o reajustamento salarial, só terem vigência a partir da publicação da sentença do Tribunal, além do que, como regra, a decisão regional era anulada pelo efeito suspensivo fulminante, instituído em 1965 com a Lei nº 4.725, enquanto a revisão recursal não
chegava ao fim antes de passados dois, três ou mais anos. Inicialmente, os seus efeitos não
iam além do quadro associativo, mas podiam ser estendidos aos demais empregados pelo
próprio Tribunal, por solicitação do Ministério Público ou dos empregados e até do sindicato. A Lei nº 10.192, de 2001, reafirmou que só poderia ser instaurado após a frustração da
negociação coletiva, impondo que as reivindicações fossem justificadas e, assim, também
a sentença proferida, sob pena de nulidade, ficando vedada a correção salarial automática
vinculada a índices de preços e aumento real sem amparo em indicadores objetivos; man-
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teve, ainda, o efeito suspensivo. O dissídio coletivo foi combatido pelos juristas e sindicatos
mais atuantes, o que determinou a sua transformação em modalidade de arbitragem judicial
pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que alterou a redação do art. 114, para condicionar o seu ajuizamento ao comum acordo das partes em conflito, com o que reduziu a sua
importância, condenando-o à extinção.
10 Solução dos conflitos coletivos
O conflito coletivo nasce com a resistência patronal em atender às reivindicações dos
empregados. Interessa ao Estado apaziguá-lo para manter a harmonia entre capital e trabalho.
As formas de solução já apontadas podem ser diretas ou indiretas: mediante negociação coletiva e greve ou pela mediação, arbitragem, privada ou jurisdicional. A solução é materializada
no acordo ou na convenção coletiva quando provocada pela negociação, greve ou mediação
ou no laudo arbitral e na sentença normativa nas hipóteses de arbitragem ou dissídio coletivo,
respectivamente. A convenção coletiva constitui o “tratado de paz”, que põe termo ao conflito
ou, na conceituação do art. 611 da CLT, o “acordo de caráter normativo, pelo qual dois ou
mais sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições
de trabalho aplicáveis no âmbito das respectivas representações às relações de trabalho”, ou,
ainda, a lei categorial criada diretamente pelas partes envolvidas no processo negocial, como
expressão da autonomia coletiva privada. Tem como pressuposto a sua aprovação pela assembleia-geral e o seu registro na instância regional do Ministério do Trabalho e Emprego. Contrato coletivo, como simples sinônimo, era a denominação adotada até o advento do Decreto-Lei
nº 229, de 1967, quando passou a ter aplicação geral, abrangendo também os trabalhadores
sem filiação sindical, providência antes atribuída ao Ministro do Trabalho. Conforme determinação do art. 614, o instrumento era depositado para registro; agora, conforme as regras
do “Sistema Mediador”, que assumiu natureza de controle, além de desrespeitar a livre negociação e a autonomia sindical, ajustando a seus padrões, aliás, mal feitos, a disposição das
cláusulas negociadas. A convenção deve dispor sobre o procedimento para a sua prorrogação
e revisão, total ou parcial, início de vigência e prazo de duração de dois anos. Não se pode
afirmar que existe livre negociação se se vincula a uma data-base e ao controle do Estado.
O acordo coletivo de trabalho é a convenção de âmbito menor, celebrada por um ou mais
sindicatos profissional e uma ou mais empresas, na forma do art. 612 da CLT. Até 1967, não
se diferenciava da convenção. A Constituição, no inciso XXVI do art. 7º, reconheceu tanto a
convenção como o acordo. Para alguns autores, na esteira do TST, mantém-se o art. 617 da
CLT, que permite a celebração de acordo coletivo ajustado diretamente pela empresa com
seus empregados, quando a negociação da proposta for recusada pela organização sindical
em seus três níveis: sindicato, federação e confederação, contrariando o inciso VI do art. 8º da
Constituição, que dotou o sindicato profissional de exclusividade para o processo negocial.
Quando a solução vem da arbitragem configura-se em um laudo, se do dissídio coletivo numa
normativa, como substitutivos da convenção e do acordo.
11 Custeio
O custeio da organização sindical compreenderia as contribuições associativa, sindical, confederativa e negocial/assistencial, não sendo cumulativas. A contribuição associa-
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tiva é inerente a toda e qualquer associação; foi primitivamente a única fonte. Cumpre à
assembleia-geral a sua fixação, tendo previsão estatutária como condição do direito de voz e
voto nas assembleias, de elegibilidade e inclusão no colégio eleitoral para escolha da administração. O seu pagamento tanto pode ser direto como depositado em conta bancária, mas o
desconto em folha de salários pelo empregador condiciona-se à autorização do empregado,
como exige o art. 545 da CLT. A contribuição sindical instituída por lei constitui o principal
responsável pela crise que compromete a sua importância diante de sua compulsoriedade,
obrigando a todos, trabalhadores, inclusive autônomos, profissionais liberais e empregadores,
independentemente de filiação. No início, era imposto, criado em 1940 pelo Decreto-Lei nº
2.377, passando à contribuição, em 1967, por força do Decreto-Lei nº 229. Para os empregados, importância igual a uma diária descontada em folha no mês de março e recolhida até final
de abril; para os trabalhadores autônomos e profissionais liberais, valor corresponde a 30% do
maior valor de referência, recolhido diretamente no mês de janeiro; para os empregadores, importância proporcional ao capital social, com recolhimento no mesmo mês. O rateio importa
em 60% do montante para o sindicato, 15% para a federação, 5% para a confederação, 10%
para a central e 10% para a Conta Especial Emprego e Salário do Ministério do Trabalho e Emprego; como os empregadores não se organizam em central, a contribuição destinada à Conta
Especial mantém-se em 20%. A sua extinção foi anunciada pela Lei nº 11.648, de 2008, a ser
substituída pela contribuição negocial. Contribuição confederativa foi inicialmente o propósito de substituir tanto a contribuição sindical como a assistencial, mas, graças ao empenho das
confederações, patronais e de trabalhadores, ficou como meio de sustentação do sistema denominado confederativo, portanto, de sindicatos, federações e confederações, a ser aprovada
pela assembleia dos primeiros. Apesar da literalidade do inciso IV do art. 8º, que se refere à
categoria, o Supremo Tribunal Federal restringiu o seu alcance aos associados, com o que foi
anulada. Já a contribuição negocial foi instituída pela Lei nº 11.648, de 2008, para substituir a
sindical e a impropriamente denominada assistencial. Começou como subsídio extraordinário
para a construção e, depois, manutenção de colônia de férias, obrigando a categoria como um
todo, logo associados ou não. Mas, pouco a pouco, passou a compor a previsão orçamentária,
tornando-se verba de custeio da organização de classe com denominação mais acertada, contribuição de revigoramento ou fortalecimento sindical. Todavia, o TST aprovou o Precedente
nº 119, mais agressivo do que o anterior, nº 74, considerando o desconto por via convencional, quando atingido trabalhador não sindicalizado, ofensivo à liberdade sindical e sendo,
assim, nula a estipulação, tornando passível de devolução os valores descontados. Seguiu-se
a atuação do Ministério Público do Trabalho, impondo a assinatura de termo de ajustamento de conduta para assegurar a quem não fosse filiado o direito de oposição ao desconto.
Enfim, mesmo representado nas negociações e abrangido pelos instrumentos normativos, o
trabalhador sem filiação deixa de contribuir para o custeio de sua organização de classe.
12 Garantias e práticas antissindicais
A atividade sindical nem sempre foi vista com tolerância pelos empregadores e pelo
Estado. Muitas vezes, principalmente nas Ditaduras Vargas e Militar, foi tida como prática subversiva. O controle ou a tutela repressiva era exercido pela polícia política e pelo
Ministério do Trabalho. A proteção dada ao sindicato deve-se à Constituição, que afirma a
liberdade sindical, assegurando a autonomia e vedando a interferência e a intervenção do
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Poder Público, conforme expressão do art. 8º e o seu inciso I. O art. 5º garante o direito
de reunião e, portanto, de assembleia (inciso XVI), e só permite a suspensão de suas atividades por decisão judicial e dissolução por decisão com trânsito em julgado (inciso XIX).
De outra parte, a Convenção nº 98 da OIT contém um elenco de medidas de proteção que
alcançam inclusive a sindicalização e a negociação coletiva. A Convenção também protege
o trabalhador em face de atos que sujeitem o emprego à condição de não se filiar ou de
se desfiliação de sindicato, proibindo que se demita ou prejudique o trabalhador por sua
associação a uma entidade ou por sua participação em atividades sindicais. A sua compreensão bastaria para impedir a demissão de delegados ou membros do Conselho Fiscal.
O art. 543 da CLT é a expressão principal da liberdade sindical positiva, vedando medidas
capazes de impedir o exercício do mandato sindical, inclusive a transferência prejudicial a
suas atribuições sindicais. A estabilidade provisória, já prevista no art. 543, § 3º, da CLT, foi
constitucionalizada no inciso VIII do art. 8º do Diploma Político, de modo que o trabalhador
eleito para participar da administração do sindicato só poderá ser demitido pela prática de
falta grave apurada através de inquérito judicial (CLT, art. 853). É tudo que temos para impedir o cometimento de práticas antissindicais11.
13 Participação sindical nos colegiados da Administração Pública
Restrita aos colegiados dos órgãos públicos em que os interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão ou deliberação, conforme redação do art. 10 da Constituição. A composição foi constituída pelas centrais de trabalhadores e confederações
patronais.
14 Organização sindical nos locais de trabalho x representação interna do pessoal
No sistema brasileiro vigente, os trabalhadores são representados no âmbito da empresa
pelo sindicato de classe, o que não impede formas anômalas de representação, sem natureza
sindical, como as Cipas, as comissões constituídas para negociar participação nos lucros e/ou
resultados, de conciliação prévia, todas de feição paritária, em que a bancada dos trabalhadores é eleita pelo conjunto dos empregados. A organização sindical nos locais de trabalho
implica na interiorização do sindicato no âmbito da empresa, com efetiva representação democrática, o que supõe não só a realização de assembleias, como reuniões internas, negociação coletiva, atuação, inclusive conciliatória, para solução direta dos litígios individuais do
trabalho. Até hoje não foi adotada no Brasil, encontrando forte reação patronal, por significar
restrição ao direito de propriedade. A ação sindical no âmbito da empresa tomou força como
reivindicação por ocasião das greves eclodidas a partir do ABC paulista e conseguiu tornar-se
efetiva em poucas corporações transnacionais. O TST admitiu-a com parcimônia e condicionamentos para permitir o acesso dos dirigentes aos locais de trabalho, nos intervalos destinados à alimentação para o desempenho de suas funções, “vedada a divulgação de matéria
político-partidária ou ofensiva” (Precedente nº 91) e a instalação de quadro de avisos para
afixação de comunicados de interesse dos empregados, com idêntica restrição (Precedente
nº 104). A Constituição brasileira, no art. 11, acolheu forma insignificante de representação
11AROUCA, José Carlos. Organização sindical no Brasil. Passado. Presente. Futuro(?). São Paulo: LTr, 2013.
p. 380 e ss.
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do pessoal, sem nenhuma participação sindical, através de um único empregado, eleito para
intermediar interesses individuais junto ao empregador, restrita às empresas com mais de 200
empregados. Sequer garantiu-lhe o emprego, providência determinada pelo Tribunal Superior
do Trabalho, mas em dissídios coletivos, conforme o seu Precedente nº 86, que determina a
aplicação do art. 543 da CLT. Nem empregadores nem empregados, muito menos os sindicatos, interessaram-se em dar efetividade à medida.
IV – REFORMA DA LEGISLAÇÃO SINDICAL
Possível dizer que, logo após a redemocratização do País, em 1946, cogitou-se de reformar a legislação trabalhista, em especial a sindical. Destacam-se os projetos João Mangabeira (1948), Dorval Lacerda (1955) e Evaristo de Morais Filho (1963), todos mantendo a
unicidade sindical. Por ocasião da revisão constitucional cinco anos após a promulgação,
o projeto do Relator Nelson Jobim substituía unicidade por pluralidade, mas, como se sabe,
nada mudou. No Governo Fernando Collor de Mello, esboçou-se a tentativa de modernização das relações do trabalho a cargo de uma “Comissão de Notáveis”, que redigiu o seu
projeto de lei sindical adotando o pluralismo, arquivado após o impedimento do presidente;
a mesma iniciativa foi tomada no Governo Fernando Henrique Cardoso, com a constituição
de outra comissão, que, em vez de um projeto de lei completo, afirmou princípios, na linha
da anterior, mas perdeu importância quando foi atropelada pela Força Tarefa instituída no
âmbito do Ministério do Trabalho, que produziu a PEC 623 sem chegar à deliberação do
Congresso. No Governo Lula, o anteprojeto saído do Fórum Nacional do Trabalho nem foi
encaminhado ao Congresso Nacional. Seguem tramitando, sem empenho das centrais, das
confederações patronais e do Poder Executivo, a Mensagem do Governo Dutra destinada à
aprovação da Convenção nº 87 e a PEC 369, assinada por Lula.
V – PENSANDO UMA LEI SINDICAL DEMOCRÁTICA
Quando o Presidente Lula afirmou que a CLT era o AI-5 dos trabalhadores, quis se
referir não ao conjunto de normas de proteção ao trabalho, mas a seu Título V, então nossa
lei sindical. Pensar uma lei sindical democrática significa ouvir não só os acadêmicos, por
mais notáveis que sejam, nem apenas as organizações de cúpula, as centrais e as confederações patronais, mas também os trabalhadores e as suas organizações de base, pelo menos as
autênticas, com história de lutas e resistência. Começando pela liberdade sindical, sabendo
que o sindicato é a organização natural da classe trabalhadora – logo, expressão do coletivismo –, não se pode colocar a liberdade coletiva em um plano inferior ao individualismo,
quase sempre egoísta ou quando menos equivocado. Significa dizer que a liberdade coletiva deve ser o princípio fundamental da organização sindical. Mas liberdade democrática
fundamentada na vontade livre e majoritária dos interessados, ou seja, dos trabalhadores,
porque os empregadores têm outras formas de organização. Autonomia de verdade, mediante controle, é claro, mas não de tutela ou intervenção, seja do Ministério do Trabalho,
da Justiça do Trabalho, do Tribunal de Contas ou do Ministério Público do Trabalho, cada
vez mais presentes. O sindicato não é um clube de sócios nem uma associação assistencial
ou prestadora de serviços, representa a classe trabalhadora como um todo, não somente
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nas negociações coletivas e nos movimentos grevistas, mas integralmente, por isto defende direitos individuais e interesses coletivos gerais de associados ou não. Defende direitos
indivi­duais coletivamente, como substituição ordinária e não extraordinária na concepção
civilista, envolvendo todos e quaisquer direitos de origem comum. A defesa de interesses
coletivos determinados pela assembleia-geral supõe, necessariamente, negociações livres e
permanentes, sem os obstáculos de data-base, prazo de início e fim. A greve como garantia
constitucionalizada tem de ser respeitada como direito, e não como subversão, sem o risco do interdito proibitório, sem imposição ao sindicato de atender isoladamente com um
contingente numeroso de trabalhadores e sob pena de multas exorbitantes, as necessidades
inadiáveis da comunidade sem nenhuma contrapartida, como impor aos empregadores o
dever de negociação de boa-fé. Convenção ou contrato coletivo, tanto faz, meros sinônimos, assume natureza de lei grupal quando negociada livremente, em situação de equilíbrio
sem limitações, como a instauração do dissídio coletivo e o efeito suspensivo que, aliás, por
isto mesmo foi condenado à extinção, o que se deu com o pressuposto do comum acordo
entre as partes em conflito. Se a unicidade de categorias, monopolista, é um mal, pior a
pluralidade divisionista. Então já é tempo de repensar a Convenção nº 87, flexibilizada por
seu Comitê de Liberdade Sindical, para admitir a unicidade na pluralidade, ou seja, multiplicidade de associações, mas um sindicato único enquanto for mais representativo. De resto,
se o sindicato representa o grupo como um todo, todos devem contribuir para o seu custeio.
Concluindo, uma reflexão é indispensável: com unicidade ou pluralidade, ou mesmo com o sindicato mais representativo, será possível a ascensão dos trabalhadores na
escala social? Claro que não! Sem democracia, sem a interiorização nas empresas mediante organização nos locais de trabalho, sem a punição de práticas antissindicais, sem
garantia de emprego, o sindicato não terá autonomia suficiente para a realização de seus
fins institucionais. Ainda hoje o pensamento acadêmico, majoritariamente, secundado
pelos analistas, pelos meios de comunicação, determina: o sindicato defende direitos e
interesses, mas apenas profissionais. Refletindo de mente aberta, porém, há que se concluir de outro modo. A Constituição colocou lado a lado trabalho e capital com a mesma
importância, como um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Representando o
trabalho, o sindicato compõe o pluralismo político, outro pilar de nosso sistema e, assim,
não pode ignorar a ordem econômica e social: a primeira, fundada não só na livre iniciativa, mas também na valorização do trabalho humano, tendo, por fim, que assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social; a segunda, tendo como base
o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Logo, o sindicato
defende também interesses sociais, que são aqueles elencados no art. 6º da Constituição:
educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social,
proteção à maternidade e à infância, aos desamparados e, igualmente, interesses políticos, de modo que tem como dever contribuir para a construção da sociedade livre, justa
e solidária, sem pobreza e marginalização, sem desigualdades, preconceitos e discriminação, traçada no art. 3º de nossa Constituição, o que só será possível com a unidade da
classe trabalhadora. Desse modo, por que não pensar em um sindicato geral, de todos,
que prescinda de associados, departamentalizado nos Estados e Municípios? Enfim, um
sindicato único, politizado, democrático, mas não monopolista nem assistencialista, independente, livre e autônomo, desvinculado do Estado, dos partidos e das igrejas.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Doutrina
A Consolidação das Leis do Trabalho e seus 70 anos: um Diploma Democrático e
Eficaz, Fruto de um Clamor e Necessidade Social, Aprimorado pela Constituição da
República de 1988
CLÁUDIO JANNOTTI DA ROCHA
Doutorando e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/MG, Especialista em Direito do Trabalho pela Faculdade Pitágoras/MG, Graduado em Direito pela UVV/ES, Membro do Instituto de Ciências Jurídicas e
Sociais, Professor e Advogado. Bolsista CAPES.
Minha vida é andar por esse país. Pra ver se um descanso feliz. Guardando as recordações. Das terras por onde passei. Andando pelos sertões. E dos amigos que
lá deixei.
Chuva e sol. Poeira e carvão. Longe de casa. Sigo o roteiro. Mais uma estação. E
a alegria no coração.
Minha vida é andar.
Mar e terra. Inverno e verão. Mostre o sorriso. Mostre a alegria. Mas eu mesmo
não. E a saudade no coração.
Minha vida é andar.
Luiz Gonzaga
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise histórica e axiológica da Consolidação das
Leis do Trabalho, para demonstrar que, até a presente data, é um instrumento jurídico eficaz na proteção dos
trabalhadores, muito embora possa ser objeto de melhoramentos específicos para acompanhar as mudanças
no mercado de trabalho (no caminho e efetivando a Constituição da República de 1988).
ABSTRACT: This article aims to analyze historical and axiological Consolidation of Labor Laws, to
demonstrate that to date is an effective legal instrument for the protection of workers, although
it may be subject to specific improvements to track changes in the market work (in the way and
effecting the Constitution of Republic of 1988).
KEYWORDS: Labor Law; Consolidation of Labor Laws; Constitution of Republic of 1988.
PALAVRAS-CHAVE: Direito do Trabalho; Constituição; Consolidação das Leis do Trabalho.
SUMÁRIO: Introdução; 1 O caráter coletivo do Direito do Trabalho; 2 O Direito do Trabalho no Brasil; Conclusão;
Referências.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
INTRODUÇÃO
Certo dia, no ano de 2009, após uma aula de mestrado na PUC/MG, determinada colega de turma indagou um grande professor: “por que as normas trabalhistas recebem maior
proteção comparadas às dos outros ramos do Direito?” Ele a respondeu: “Devido à carga
axiológica e histórica destas leis. E que, para construirmos algo, demoramos anos e anos,
mas conseguimos desconstruir esta mesma coisa em segundos1. Que flexibilizar normas trabalhistas é jogar por terra direitos conquistados paulatinamente através de lutas e sacrifícios
que não podem ser esquecidos”.
No corrente ano, a Consolidação das Leis do Trabalho está completando 70 anos de
vigência, e, paradoxalmente, ao invés de ser uma data comemorativa, ofertando a este diploma sua necessária homenagem, parte da sociedade (empresariado) vem questionando
sua existência, alegando que tal instrumento é um entrave ao mercado produtivo nacional,
devendo ser flexibilizada, adaptando-se ao mercado econômico.
Os discursos empresariais possuem como premissas as mudanças do atual sistema de
produção (toyotista), a internacionalização, o mundo globalizado e a 3ª Revolução Industrial.
Portanto, o presente artigo tem como objetivo realizar uma análise histórica e axiológica da Consolidação das Leis do Trabalho, bem como fazer uma reflexão se este diploma
legal ainda é capaz de regular a relação de emprego no País na presente conjectura econômica.
1 O CARÁTER COLETIVO DO DIREITO DO TRABALHO
O trabalho é a condição objetiva e subjetiva do ser humano, podendo ser entendido
inclusive como a força motriz da civilização.
Hegel entendia que o trabalho possui um papel tão importante na vida do ser humano,
que poderia ser considerado o mediador entre o homem e o mundo2.
Para Santo Agostinho, o trabalho e a reza deveriam ser as atividades gloriosas de todos
os cristãos3.
Luiz Otávio Linhares Renault ensina:
Desde os primórdios da humanidade até a época atual, o trabalho tem sido condição sine qua
non para a sobrevivência e para o crescimento moral, espiritual, religioso, intelectual, cultural,
científico e material do homem.4
1 E assim é em diversas situações: uma árvore, que demora anos para ser crescer e minutos para ser cortada; um
casamento que, após anos de namoro, noivado e casamento, termina rapidamente; uma casa ou prédio que, após um
longo espectro temporal, é implodida em pouco tempo.
2 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na história. São Paulo: Centauro, 2010, passim.
3 SANTO AGOSTINHO. O livre arbítrio. São Paulo: Paulus, 2002, passim.
4 RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Que é isto – O direto do trabalho. In: PIMENTA, José Roberto Freire et al. (Coords.).
Direito do trabalho: evolução, crise, perspectiva. São Paulo: LTr, 2004. p. 46.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Direciona João Batista Martins César:
E assim deve ser porque é a partir do trabalho que o homem consegue interagir socialmente,
bem como manter a si próprio e sua família. É através do processo laboral que a maioria esmagadora dos cidadãos alcança uma vida digna e exerce plenamente a cidadania.5
Quanto ao Direito do Trabalho, deve-se observar carga histórica, tendo em vista que
foi conquistado após muitas lutas, vidas, revoltas, revoluções e greves. Daí porque, inquestionavelmente, pode-se dizer que este ramo jurídico é embrionariamente coletivo, pois seus
princípios e regras possuem fonte material coletiva. Nesse sentido demonstra Maria Cecília
Máximo Teodoro:
Portanto, foram as lutas dos trabalhadores explorados nas grandes indústrias, somadas ao Estado
social, que intervinha na esfera privada e era de índole promocional, que propiciaram maior
regulamentação dos direitos trabalhistas.6
Seguindo a mesma diretriz (o Direito do Trabalho como direito social e coletivo), leciona Jorge Luiz Souto Maior:
Na construção atual e definitiva racionalidade, cumprem papel essencial os ramos do Direito
que, na divisão historicamente produzida, se convencionaram chamar de direitos sociais, notadamente, o Direito do Trabalho e o Direito da Seguridade Social, pois nestes ramos foram
mantidas, por questão de sobrevivência da ordem econômica, as bases do Direito Social,
desenvolvidas por uma teoria alheia aos propósitos únicos das classes dominantes. Os resultados produzidos e a racionalidade progressiva no sentido de solidariedade e da elevação da
condição dos seres humanos, porque atendem ao sentimento de justiça desenvolvido na consciência humana ao longo de seu percurso na terra, e que se mostram essenciais nas relações
sociais sob o manto do capitalismo, tendem a se irradiar – o que de fato tem ocorrido – para
os demais ramos jurídicos, alterando-se, enfim, a raiz do próprio Direito.7
Ao contrário dos demais ramos jurídicos, o Direito do Trabalho e o Previdenciário são
conquistas dos trabalhadores e não mera concessão estatal. Além disso, sua fonte material
(revoltas, revoluções e movimentos sociais) é coletiva e não individual, e por isso sua perspectiva deve ser coletiva e não a individual.
Nesse caminhar, o Direito do Trabalho, em sua essência, é coletivo, conquistado por
meio de muitas lutas dos trabalhadores e dos sindicatos, perdas, idas e vindas, sendo fruto
de muito sofrimento; e, assim, proteger o direito coletivo é necessariamente fortalecer o
direito individual.
5 CÉSAR, João Batista Martins. A tutela coletiva dos direitos fundamentais dos trabalhadores. 1. ed. São Paulo: LTr,
2013. p. 38.
6 TEODORO, Maria Cecília Máximo. O juiz ativo e os direitos trabalhistas. 1. ed. São Paulo: LTr, 2011. p. 74.
7 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Curso de direito do trabalho: teoria geral do direito do trabalho. Parte 1. São Paulo: LTr, v.
I, 2011. p. 231.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
2 O DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL
O surgimento do Direito do Trabalho no Brasil – tema pouco abordado na doutrina
nacional –, também envolveu revoltas, greves, movimentos sociais e até mesmo a forma
mais cruel e violadora em todos os sentidos humanos, a escravidão. Para Ricardo Antunes,
“nossa origem escravista e patriarcal, concebida a partir da casa grande e da senzala, soube
amoldar-se ao avanço das cidades”.
Demonstra Júlio Bernardo do Carmo:
Outra questão significativa para o incremento de nossa legislação trabalhista foi, com a
abolição da escravatura, o processo imigratório idealizado pelo Governo brasileiro para suprir
a mão de obra escrava, a princípio nos meios rurais e depois também nos meios citadinos,
onde começou a ser implantado o polo incipiente de nossas primeiras indústrias.8
O Brasil, no início do século XX, encontrava-se na seguinte situação: por meio da Lei
Áurea veio a abolição da escravatura; entrada de imigrantes; industrialização incipiente e
crescente; final da 1ª Guerra Mundial; desemprego; os salários eram baixos e muitas manifestações sociais contra a situação vivenciada. Em 1919 ocorreram 64 greves na Grande
São Paulo e 14 somente no interior de São Paulo, e os trabalhadores pouco sucesso tinham.
Nesta época, o litígio trabalhista era resolvido diretamente entre empregados e empregador,
pois o Estado não intervinha nestes problemas devido a sua postura era absenteísta.
Carlos Alberto Reis de Paula ensina:
A vinda de imigrantes europeus, principalmente nas regiões sul e sudeste, em nada alterou
esse quadro em um momento, até o final do século XIX, prevaleceu o sistema jurídico liberal,
com a mínima intervenção do Estado, e com extrema desigualdade e hierarquização das relações de trabalho, a industrialização (inda que incipiente) e as atividades empresariais urbanas
criavam um cenário fértil para germinar o Direito do Trabalho.9
Somente em 1923 é que o Estado passou, de forma singela, a participar dos conflitos
entre empregado e empregador. Ilustram Beatriz Bulla, Fabiana Barreto, Mariana Ghirello e
William Maia:
Em 1923 foi criado o CNT (Conselho Nacional do Trabalho) por meio do Decreto nº 16.027,
de 30 de abril, assinado pelo Presidente Artur Bernardes. Mas foi Augusto de Castro, primeiro
presidente do órgão, que sugeriu a instalação de Juntas Industriais dentro das fábricas para
solucionar os conflitos que surgiam entre os patrões e os empregados. Esse foi o primeiro passo
para a criação de um órgão administrativo que pudesse dirimir problemas trabalhistas.10
8 CARMO, Júlio Bernardo. Setenta anos da CLT, uma retrospectiva histórica. Disponível em: <https://www.trt3.jus.br/
download/artigo_julio_bernardo_70anos.pdf>. Site do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais. Acesso em: 12
maio 2013.
9 PAULA, Carlos Alberto Reis de. Palestra proferida em 2 de maio de 2013, na comemoração dos 70 anos da CLT,
cerimônia realizada no Tribunal Superior do Trabalho.
10 BULLA, Beatriz; NUNES, Fabiana Barreto Nunes; GHIRELLO, Mariana; MAIA, William. Justiça do Trabalho: 70 anos de
direitos. São Paulo: Alameda, 2011. p. 28.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Em 1930 aconteceu a Revolução que colocou Getúlio Vargas no poder, encerrando a República Velha e dando origem ao governo provisório. Em 26 de novembro deste
ano foi criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, órgão que tinha entre suas
finalidades a intervenção nos conflitos entre patrões e empregados, e teve como primeiro
presidente Lindolfo Collor, acompanhado de uma equipe formada tanto por base sindical,
Joaquim Pimenta e Evaristo de Morais Filho, como empresarial, com Jorge Street.
Sintetizam, ainda, as mencionadas historiadoras:
Dois anos depois da instalação do Ministério do Trabalho, Lindolfo deixou o cargo e Getúlio
Vargas nomeou Joaquim Pedro Salgado Filho. A gestão dele foi responsável por implantar as
Comissões de Conciliação entre empregadores e empregados e medidas para regulamentar
a jornada de trabalho na indústria e no comércio, bem como o trabalho das mulheres e dos
menores de idade. Em 1932, foram criadas as Comissões Mistas de Conciliação, que tratavam
de divergências coletivas, e as JCJs (Juntas de Conciliação e Julgamento), que tratavam apenas
dos dissídios individuais de empregados sindicalizados e podiam impor soluções às partes,
mesmo enquanto órgãos administrativos.11
Urge destacar que o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio possuía a competência para revogar as decisões das Juntas, diante das medidas avocatórias – um recurso das
decisões exaradas pelo Ministério do Trabalho.
A execução das decisões prolatadas pelas Juntas de Conciliação era feita pela Justiça
Comum, que podia inclusive anulá-las. Portanto, a Justiça do Trabalho não possuía o poder
de coerção, pertencente ao Poder Judiciário, que tanto lhe caracteriza.
Em março de 1932, por meio do Decreto nº 21.175, foi criada a Carteira de Trabalho,
inicialmente de uso facultativo, e posteriormente – com o surgimento da CLT – obrigatória
a todos os empregados.
Já em 1934, inspirada na Constituição de Weimar e na dos Estados Unidos da América12, foi promulgada a Constituição brasileira, sendo o primeiro instrumento constitucional
a instituir normas de ordem econômica e social, como jornada semanal de 48 horas, autonomia e pluralidade sindical, salário-mínimo, férias, repouso semanal não remunerado e
indenização por despedida imotivada, inaugurando a democracia social brasileira.
A Justiça do Trabalho foi criada em 1941, vinculada ao Poder Executivo.
Em 1942, Getúlio Vargas, por meio do Decreto nº 791, designou uma comissão de
10 membros, vinculada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (na época tinha
como Ministro Marcondes Filho), dividida em dois grupos: um responsável pela elaboração
das leis trabalhistas, e outro pela elaboração das leis previdenciárias. A comissão trabalhista
era composta por Rego Monteiro, Oscar Saraiva, Segadas Viana, Dorval Lacerda e Arnaldo
11 Idem, ibidem.
12 Ensina Ingo Wolfgang Sarlet: “No que consistem os traços característicos do constitucionalismo moderno e dos três
grandes modelos que se afirmaram ao longo dos séculos XVII e XVIII (Inglaterra, Estados Unidos da América e França),
será objeto de atenção logo na sequência, ainda que existiam outras experiências e tradições constitucionais, que,
especialmente ao longo do século XX, influenciaram a noção contemporânea de constitucionalismo”. (SARLET, Ingo
Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013, fl. 41)
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Süssekind, e logrou êxito, sendo que, após nove meses de formação, apresentou o anteprojeto, em 9 de novembro de 1942. Este instrumento foi publicado no Diário Oficial da União,
em 5 de maio de 1943, sofreu cerca de 2.000 sugestões (de empregados, empregadores e
entidades de classe) e, em 1º de abril de 1943, em uma cerimônia festiva e pública no Estádio de São Januário, foi aprovada.
Quanto ao contexto, carga histórica da aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho, leciona Carlos Alberto Reis de Paula:
Com sua aprovação, as principais questões trabalhistas, sociais e econômicas tinham sua
origem imediata no complexo de 1930 – com a chegada de Vargas ao poder – vinculava-se ao
processo de formação nacional durante a colônia e o império, até a crise final que culminou
com o fim da república velha, a transição do sistema escravocrata (a mais profunda chaga da
história brasileira), para a lógica do mercado livre, trouxe consigo as multifacetadas contradições e paradoxos quer marcaram a imagem dos escravos do trabalho e dos trabalhadores
do império.13
kind:
No que corresponde às bases do Direito do Trabalho brasileiro, ensina Arnaldo SüsseInspiramo-nos nas teses do I Congresso de Direito Social, a que já me referi, nos pareceres
de Oliveira Viana e Oscar Saraiva, aprovados pela Ministro do Trabalho, criando uma jurisprudência administrativa naquelas avocatórias, na encíclica Rerum Novarum e nas convenções da Organização Internacional do Trabalho. Essas foram nas nossas três grandes fontes
materiais que, todavia, não influenciaram nem a legislação sindical, nem a que deu origem à
Justiça do Trabalho. Por quê? Porque o anteprojeto da CLT, elaborado em 1942, bem como o
seu texto final, de 1943, teriam de observar a Constituição em vigor, a Carta de 1937, em cuja
vigência foi outorgada a legislação sindical, destinada a fomentar ou motivar a configuração
das corporações, que iriam eleger o Conselho de Economia Nacional (previsto na Constituição
de 1937). Todos os decretos-leis expedidos entre 1940 e 1942 foram transplantados para a
Consolidação sem qualquer modificação, uma vez que a CLT deveria ser um complemento da
lei maior. Outro capítulo em que, praticamente, não houve alteração alguma foi o da Justiça
do Trabalho, instalada em 1941, e o seu processo, sobre o que não cabia modificação. No
mais, o que a comissão fez teve por inspiração essas três fontes materiais às quais me referi.14
E quanto à Consolidação das Leis do Trabalho não possuir caráter fascista:
A alegação de que a CLT é uma cópia da Carta del Lavoro, repetida por 99% de pessoas que
nunca leram esse documento de Mussolini, é absolutamente falsa. Desde logo convém lembrar que a CLT tem 922 artigos; e a referida Carta, apenas 30.15
É inquestionável que a Consolidação das Leis do Trabalho foi a maior conquista dos
trabalhadores brasileiros, fruto da luta dos trabalhadores, tendo em vista que constitui um
estuário normativo pautado por normas de equidade, que, de alguma forma, procura tratar
13 PAULA. Carlos Alberto Reis de. Palestra proferida em 2 de maio de 2013, na comemoração dos 70 anos da CLT,
cerimônia realizada no Tribunal Superior do Trabalho.
14 GOMES, Angela de Castro; PESSANHA, Elina G. da Fonte; MOREL, Regina de Moraes (Orgs). Arnaldo Süssekind, um
construtor do Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
15 Idem.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
os desiguais de acordo com sua desigualdade, para assim alcançar (ou pelo menos tentar
alcançar) a igualdade. Estas leis surgiram do princípio basilar do Direito do Trabalho, qual
seja o princípio da proteção.
Carlos Alberto Reis de Paula sintetiza:
O Direito do Trabalho ao longo do seu tempo serviu para a pacificação dos conflitos sociais,
para garantir uma nova realidade nas relações capital e trabalho, buscando preservar o núcleo
mínimo de direitos que está vinculado à própria preservação da dignidade da pessoa humana.
O fundamento deste direito é justamente a preservação do princípio da igualdade, com enfoque na justiça distributiva, ou seja, através de desigualdade formal, prossegue-se a correção de
desigualdades materiais, com a necessária limitação da autonomia privada, seja pela autonomia da vida privada coletiva, seja por normas imperativas que garantem o patamar mínimo.
Assim, pode-se dizer que a existência do Direito do Trabalho no Brasil representa a existência
de preservação da dignidade da pessoa humana.16
Muito embora a Consolidação das Leis do Trabalho receba esta denominação, sua
natureza jurídica é de Código; afinal, trouxe inovações ao ordenamento jurídico brasileiro,
tanto no plano material (a figura do contrato de trabalho, prevista nos artigos 442 e seguintes, que possui características próprias, inerentes e distintas da figura do contrato previsto
no Código Civil), como no plano processual (constituindo diretrizes mais simples, céleres e
eficazes).
Urge destacar que a premissa para a elaboração da Consolidação das Leis do Trabalho
foi o sistema produtivo taylorista/fordista, que prevalecia no Brasil. Este sistema empresarial
pautava-se na empresa setorizada, hierarquizada, verticalizada (entrava a matéria-prima e
saía o produto final, industrializado). A produção era realizada na empresa, do início ao fim.
Cabia ao trabalhador exercer seu labor de forma quase mecânica, podendo ser considerado até mesmo segmento das máquinas, já que sua única função era operá-las. A linha de
montagem estabelecia um ritmo cada vez mais acelerado em busca da maior produtividade
possível.
A importância dos trabalhadores laborando mecanicamente era tamanha que Henry
Ford usava o seguinte lema em suas fábricas: “Reunir-se é um começo, permanecer juntos
é um progresso, e trabalhar juntos é um sucesso”17!
Importante destacar que essa forma de trabalho, paradoxalmente, de um lado aumentou a exploração sofrida pelo empregado, e do outro lado permitiu que os trabalhadores se
identificassem uns com os outros, tendo em vista que, como realizavam o mesmo labor,
passaram a ter os mesmos sentimentos, as mesmas angústias, identidade de necessidades e,
por isso, facilitavam o movimento sindical.
16 PAULA. Carlos Alberto Reis de. Palestra proferida em 2 de maio de 2013, na comemoração dos 70 anos da CLT,
cerimônia realizada no Tribunal Superior do Trabalho.
17 Disponível em: <http://frases.globo.com/henry-ford/9275>. Acesso em: 20 nov. 2012.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Muito embora as Revoluções Industriais tenham ocorrido na Europa, os impactos
destes dois fenômenos atingiram outras partes do mundo, inclusive a América Latina, conforme Ricardo Antunes:
A diversificação das atividades produtivas e a constituição do mercado interno criaram as
condições para a implantação do trabalho assalariado na América Latina. Tal modalidade de
trabalho foi estabelecida apenas ao longo do século XIX, em um comento caracterizado pela
expansão do capitalismo industrial (especialmente o inglês), que passou a exigir a ampliação
do mercado consumidor e a introdução do trabalho assalariado no mundo colonial.18
Entre os anos 1945 e 1988 foram elaboradas muitas normas trabalhistas: a maior em
caráter de melhoria, tanto de legislação extravagante – em 1940 (direito ao repouso semanal remunerado); 1960 (13º salário); 1963 (rurícola); 1967 (criação dos acordos coletivos);
1980 (vale transporte); 2011 (aviso prévio) –, como por meio de legislação específica – lei
dos vendedores, viajantes e pracistas, lei do atleta profissional, lei do motorista profissional.
Lado outro, também foram formuladas normas que podem ser consideradas como
retrocesso, como a criação do FGTS (que esvaziou o sistema estabilitário celetista e foi
universalizado pela Constituição da República de 1988), a promulgação da lei de trabalho
temporário e a terceirização.
Em 1946 a Justiça do Trabalho passou a ser integrante do Poder Judiciário, por meio
de norma constitucional.
Quanto à criação da Consolidação das Leis do Trabalho e suas alterações, demonstra
Márcio Túlio Viana:
Embora Vargas tenha usado a CLT como estratégia de poder, ela se inseria num projeto mais
amplo, voltado para a industrialização do País. Além disso, foi obra de renomados juristas
e incorporou o que havia de mais moderno, na época, no Direito do Trabalho Comparado.
Nesse longo tempo de vida, muitas de suas regras já foram alteradas, mas outras continuam
tão novas que nem foram aplicadas...19
Em 1988 foi promulgada a Constituição, devendo ser considerada um marco civilizatório nacional. Nos dizeres de Ingo Wolfgang Sarlet:
No que diz com seu conteúdo, cuida-se de documento acentuadamente compromissário,
plural e comprometido com a transformação da realidade, assumindo, portanto, um caráter
fortemente dirigente, pelo menos quanto se toma como critério o conjunto de normas impositivas de objetivos e tarefas em matéria econômica, social, cultural e ambiental contidos no
Texto Constitucional, para o que bastaria ilustrar o exemplo dos assim chamados objetivos
fundamentais elencados no art. 3º. Tanto o preâmbulo quanto o título dos Princípios Fundamentais são indicativos de uma ordem constitucional voltada ao ser humano e ao pleno
desenvolvimento da sua personalidade, bastando lembrar que a dignidade da pessoa humana,
pela primeira vez na história constitucional brasileira, foi expressamente guindada (art. 1º, III,
da CF) à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, por sua vez
também como tal criado e consagrado no Texto Constitucional. Não é à toa, portanto, que
18 ANTUNES, Ricardo. O continente do labor. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 18.
19 VIANA, Márcio Túlio. 70 anos da CLT: uma análise voltada para os estudantes e os que não militam na área trabalhista.
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o então Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Deputado Ulysses Guimarães, por
ocasião da solenidade de promulgação da Constituição, batizou a Constituição de 1988 de
Constituição Coragem e Constituição Cidadã, lembrando que, diferentemente das Constituições anteriores, a Constituição inicia com o ser humano.20
Leciona Mauricio Godinho Delgado:
Do ponto de vista da criação de condições favoráveis à mais ampla participação dos grupos
sociais na geração de normas jurídicas a comporem o universo normativo do país, democratizando o sistema de gestão trabalhista vigorante, parece claro que a nova Constituição teve
flagrante intenção de colocar a sociedade brasileira nesse caminho. Já em seu Preâmbulo, a
Constituição fala em exercício de direitos sociais e individuais, faz menção a uma sociedade
pluralista e defende a solução pacífica de conflitos. Nos Princípios Fundamentais, refere-se a
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, uma sociedade livre, justa e solidária, reiterando a noção de solução pacífica de conflitos.21
Portanto, percebe-se facilmente que a Constituição de 1988 ratificou, efetivou e inclusive aumentou os direitos trabalhistas anteriormente previstos na Consolidação das Leis do
Trabalho no Brasil, devendo, portanto, ser considerado o maior instrumento de evolução
dos direitos trabalhistas – tanto na órbita individual como na coletiva.
No entanto, nos últimos anos, a CLT vem sofrendo alguns questionamentos, típicos
ataques, inclusive quanto à sua existência, por meio de um discurso neoliberal, impulsionado pelos seguintes fatores: o mundo globalizado, a terceira revolução industrial e a mudança
do sistema de produção, em que atualmente vigora o sistema toyotista de produção, no qual
a lógica empresarial é horizontalizada, preocupando-se tão somente com a atividade principal e despreocupando-se com as atividades periféricas para pequenas e médias empresas,
e dando ensejo, por exemplo, à terceirização, ocasião em que o trabalhador torna-se um
típico “faz-tudo e mais um pouco”.
Diante destas três premissas, constantemente vem à tona (principalmente nos momentos de crise econômica) o discurso neoliberal no sentido da necessidade de uma reforma
trabalhista, com normas mais flexíveis, menos rígidas, tendo em vista que as normas vigentes engessam o progresso produtivo e empresarial, aduzindo:
A confederação ainda propõe a terceirização de qualquer atividade da empresa, a extinção do
salário-mínimo e dos pisos-salariais regionais. “A burocracia, a sistemática e o engessando da
legislação trabalhista afastam investimentos e fazem com que os empresários fiquem cada vez
mais inseguros”, diz o advogado José Eduardo Pastore, consultor do CNI.22
Ainda não cansados, pretendem que o negociado prevaleça sobre o legislado a
qualquer título e custo, um déjà vu dos séculos XVIII e XIX:
20SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional.
2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, fl. 256.
21 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 12. ed. São Paulo: LTr, 2013, fl. 117.
22
Disponível
em:
<http://noticias.uol.com.br/empregos/ultimas-noticias/2013/05/01/em-proposta-para-alterar-cltindustrias-pedem-novo-fracionamento-de-ferias.jhtm>.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Para reduzir os custos e modernizar as leis trabalhistas, as indústrias sugerem dar mais autonomia aos sindicatos e valorizar a negociação coletiva. A ideia, de acordo com o advogado, é
que sindicatos fortes têm mais condições de decidir sobre quais são as melhores regras para
cada categoria, sem deixar as questões pararem na Justiça.23
O que se percebe na retórica do discurso neoliberal é a utilização da tônica do antigo
nazismo – repetir a mentira mil vezes, no intuito de tomar ar de verdade – para induzir a
nação brasileira de que a existência de normas menos rígidas irá contribuir para a evolução
nacional. Referida tática dificilmente logrará êxito, afinal, palavras por si só, jogadas ao
vento, não constituem direito, e muito menos alteram a realidade social que corresponde à
necessidade da existência de normas protecionistas ao operariado – que é a parte fraca da
relação empregatícia.
Demonstra Márcio Túlio Viana:
No entanto, de tempos em tempos, a mídia insiste na “necessidade” da flexibilização de direitos individuais. Com frequência, o assunto volta à baila, paradoxalmente, no Dia do Trabalhador – quando os jornais e revistas, as TVs e emissoras de rádio insinuam a informação
de que alguns direitos a menos significarão muitos postos de trabalho a mais. Cada nova crise
econômica, mesmo fora de nossas fronteiras, fortalece esse discurso.24
A História, tanto a nacional, como a mundial, comprova: para o crescimento social
e para a preservação da paz, tanto de uma nação, como a do mundo, é imperioso que o
Estado intervenha, por meio de leis, para proteger a parte hipossuficiente, que vende a única coisa que possui, quer seja, sua liberdade (força de trabalho), para assim fomentar sua
própria sobrevivência, bem como a de sua família.
Afirma Magda Barros Biavaschi:
Em boa parte do mundo, os direitos sociais continuam a sucumbir à força bruta. Em nosso
País, certos adeptos do pensamento único continuam a insistir na “quebra” da alegada rigidez
da CLT para que o País seja competitivo e a produtividade aumente, apontando para a negociação coletiva como espaço normativo privilegiado, ao argumento, renovado, de que é nas
brechas do mercado que o Estado deve regular.25
Quanto às flexibilizações requeridas pela classe empresarial, a CNI (Confederação
Nacional das Indústrias) publicou no fim de 2012 um documento que lista 101 reformas que
devem ser feitas no âmbito trabalhista:
– Valorização da negociação coletiva;
– Espaço para negociação coletiva;
23
Disponível
em:
<http://noticias.uol.com.br/empregos/ultimas-noticias/2013/05/01/em-proposta-para-alterar-cltindustrias-pedem-novo-fracionamento-de-ferias.jhtm>.
24 VIANA, Márcio Túlio. Op. cit.
25
BIAVASCHI, Magda Barros. Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/62569/
para+pesquisadora+%22modernizar%22+clt+e+%22canto+de+sereia+desastroso%22.shtml>. Acesso em: 12
maio 2013.
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
– Prazo máximo de 4 anos para negociação coletiva, com intuito de vedar a ultratividade das
normas coletivas;
– Compensação habitual de jornada semanal;
– Redução do intervalo intrajornada mediante negociação coletiva;
– Reconhecimento legal da jornada de 12 horas de trabalho por 36 de descanso;
– Terceirização de qualquer atividade da empresa, desde que garantida a proteção do trabalhador;
– Simplificação dos procedimentos de regularização de trabalhadores estrangeiros no Brasil;
– Flexibilização do trabalho em prazo determinado;
– Contratação de pessoa física em serviço eventual;
– Fracionamento da participação nos lucros e resultados (PLR) em até quatro parcelas anuais;
– Extinção do salário-mínimo regional e dos pisos salariais estaduais;
– Pagamento pelo INSS do salário-maternidade no caso de empresas do Simples;
– Inexistência de estabilidade em contratos por prazo determinado e criação de proteção previdenciária a esses trabalhadores e gestantes;
– Implantação de sistema eletrônico pelo INSS, com uso de certificação digital, para emissão
de atestados médicos;
– Criação de um sistema de emprego para pessoas com deficiência no âmbito do Sistema Nacional de Emprego (Sine);
– Fracionamento de férias em três períodos anuais para todos os empregados;
– Estabelecimento de critérios legais objetivos e adequados para caracterizar o trabalho escravo;
– Redução da alíquota do FGTS de 8% para 2% para micro e pequenas empresas;
– Redução de jornada com consequente redução de salário de modo a permitir ajustes em
tempos de mudanças e dificuldades;
– Obrigatoriedade da Comissão de Conciliação Prévia;
Propõe que as súmulas editadas pelo TST possam ser questionadas no STF.26
Inquestionavelmente, as “flexibilizações” requeridas pela classe empresarial nada
mais significam do que a retirada (desconstrução) de direitos trabalhistas (materiais e processuais), sendo um verdadeiro retrocesso, que viola tanto as normas celetistas, quanto as
constitucionais, passando até mesmo pela inconstitucionalidade. É o que também entende
João Batista Martins César:
26CASALI, Emerson (Coord.). Confederação Nacional da Indústria. 101 propostas para modernização
trabalhista.
Brasília:
CNI,
2012.
Disponível
em:
<http://arquivos.portaldaindustria.com.br/app/
conteudo_18/2012/12/04/2728/20121204160144687771i.pdf>.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Dessa forma, os direitos sociais já realizados estão constitucionalmente assegurados, passando
a configurar uma garantia institucional e um direito subjetivo, sendo inconstitucionais quaisquer medidas legislativas que impliquem sua anulação, revogação ou aniquilação.27
Realizado o estudo histórico e axiológico do Direito do Trabalho, constata-se que é
fruto de muita luta e esforço, de um clamor social, e que até a presente data a Consolidação
das Leis do Trabalho mantém-se vigente e eficaz, ofertando ao trabalhador brasileiro um
manto protetivo, que via de regra possui um único viés para sua inclusão social e melhoria
de sua condição econômica: a venda de sua força de trabalho para, em troca, receber seu
salário (sua fonte de subsistência).
Sendo assim, as flexibilizações que desejam a tônica neoliberal são a violação e o
retrocesso aos direitos trabalhistas, que inclusive é inconstitucional. Neste sentido leciona
Magda Barros Biavaschi:
Tanto as propostas mais recentes de retomada do primado do encontro das “vontades livres”
quanto o projeto de lei que busca regulamentar a terceirização, o PL 4.330 (projeto do Deputado Sandro Mabel, do PMDB-GO, em discussão na Comissão de Constituição e Justiça da
Câmara), são “cantos da sereia” que insistem em que se trilhem caminhos que já se mostraram
desastrosos no final do século 19, sucumbindo à evidência de que as “mãos invisíveis” têm
dono e que os interesses abstratos do dinheiro atuam como uma avalanche quando não há
diques suficientes para detê-los. Esse receituá­rio continua sendo oferecido nesta quadra da
humanidade, ainda que seus destrutivos se tenham mostrado insustentáveis, tornando evidente que ao se atribuir ao mercado a direção dos destinos dos homens se os despoja de suas
instituições, levando-os a sucumbir ao assalto de moinhos satânicos.28
Na mesma diretriz sintetiza Júlio Bernardo do Carmo:
Toda flexibilização que era possível fazer efetivamente já foi feita, inclusive no corpo da Constituição Federal, ao possibilitar a redutibilidade salarial e o aumento da jornada de trabalho,
mediante negociação coletiva. A flexibilização sem peias pretendida pela política neoliberal
não atende aos interesses e direitos da classe trabalhadora brasileira, antes se curva aos interesses econômicos dos fomentadores de capitais que não vacilam entre ferir o mínimo ético
social e garantir a expansão desmesurada de seus mercados de consumo, meta que priorizam
e procuram alcançar a qualquer preço. A constitucionalização dos direitos sociais e o direito
protetivo inserido na CLT continuam sendo o bastião da esperança de melhores condições de
trabalho para o operariado brasileiro.29
Quanto à eficácia e à importância atual da Consolidação das Leis do Trabalho, ilustra
Gabriela Neves Delgado:
27 CÉSAR, João Batista Martins. A tutela coletiva dos direitos fundamentais dos trabalhadores. 1. ed. São Paulo: LTr,
2013. p. 43.
28
BIAVASCHI, Magda Barros. Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/62569/
para+pesquisadora+%22modernizar%22+clt+e+%22canto+de+sereia+desastroso%22.shtml>. Acesso em: 12
maio 2013.
29 CARMO, Júlio Bernardo. Setenta anos da CLT, uma retrospectiva histórica. Disponível em: <https://www.trt3.jus.br/
download/artigo_julio_bernardo_70anos.pdf>. Site do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais. Acesso em: 12
maio 2013.
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CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
A CLT aos seus 70 anos, o período que se iniciou no início do século XX, em 1943, e que descortina a segunda década do século XXI, já em 2013, a CLT mantém a sua importância como
um diploma definitivo dentro da realidade jurídica, política, econômica e social brasileira.
Não estamos dizendo que a CLT não precisa de reparos, mas certamente o avanço lançado
pela CLT no sentido de uma proteção social regulada e econômica da classe que vive do
trabalho, este avanço é significativo e vem no caminho crescente. É só nós pensarmos que a
CLT foi pensada para os trabalhadores urbanos exclusivamente, hoje este nosso instituto, este
nosso diploma jurídico abarcar 40 milhões de trabalhadores, num cenário amplo e complexo
de trabalhadores urbanos, rurais, domésticos, avulsos, que recebem os direitos constitucionais
trabalhistas. Mais do que isso, a CLT mantém-se viva no tempo criador, e regula a relação capital-trabalho, mantendo no centro de sua produção normativa o direito fundamental ao trabalho. Portanto, nos podemos dizer que a CLT não cristalizou com a passagem do tempo, aos 70
anos amparada no vigor da interpretação constitucional, a CLT mantém força e compromisso
social, para a relação protegida de inúmeros de trabalhadores, mais de dezenas de milhões
de trabalhadores no mercado socioeconômico do País. Aos 70 anos, a CLT mantém-se no
tempo da travessia, uma travessia guiada pelos mandamentos constitucionais de proteção ao
trabalho, na travessia CLT retira a ansiedade do tempo, para aproveitar-se dela, ganhando em
maturidade legislativa. Assim, nesse processo, a CLT caminha rumo a um direito do trabalho
constitucionalizado. O tempo, senhor de destinos, tão inventivo, senhor de todos os ritmos,
assegurou à CLT, aos seus 70 anos, o seu maior dinamismo.30
CONCLUSÃO
Paradoxalmente, muito embora a Consolidação das Leis do Trabalho tenha completado 70 anos em 1º de maio de 2013, ainda é um instrumento efetivo, capaz de ofertar aos
trabalhadores brasileiros a devida proteção jurídica, sendo necessários tão somente alguns
reparos e aperfeiçoamentos (e não flexibilizações), efetivando ainda mais a órbita constitucional, assim como foi pensando na época da sua aprovação (que, conforme ensinado por
Arnaldo Süssekind, tinha como objetivo caminhar no sentido da Carta Magna de 1937).
Pequenas e singelas opções para esses reparos e aperfeiçoamentos na CLT, poderiam ser:
vedação ou concessão dos mesmos direitos do empregados das tomadoras na terceirização;
descanso previsto no art. 384 também aos homens; e a regulamentação da dispensa coletiva
(critérios qualitativo, quantitativo e temporal para sua devida caracterização e obrigatoriedade de negociação coletiva prévia – com limites); mudança no âmbito coletivo (especificamente no enquadramento sindical, devendo o sindicato ser pautado pelo ramo da atividade
do empregado e não pela atividade econômica do empregador).
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ricardo. O continente do labor. São Paulo: Boitempo, 2011.
BIAVASCHI, Magda Barros. Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/62569/para+pesquisadora+%22modernizar%22+clt+e+%22canto+de+sereia+desastroso%22.
shtml>. Acesso em: 12 maio 2013.
30 DELGADO, Gabriela Neves. Palestra proferida em 2 de maio de 2013, na comemoração dos 70 anos da CLT, cerimônia
realizada no Tribunal Superior do Trabalho.
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. 2011.
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www.trt3.jus.br/download/artigo_julio_bernardo_70anos.pdf>. Site do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais. Acesso em: 12 maio 2013.
CÉSAR, João Batista Martins. A tutela coletiva dos direitos fundamentais dos trabalhadores. 1. ed.
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CASALI, Emerson (Coord.). Confederação Nacional da Indústria. 101 propostas para modernização
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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na história. São Paulo: Centauro, 2010.
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TEODORO, Maria Cecília Máximo. O juiz ativo e os direitos trabalhistas. 1. ed.
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VIANA, Márcio Túlio. 70 anos da CLT: uma análise voltada para os estudantes e os que não militam na área trabalhista.
Site
http://noticias.uol.com.br/empregos/ultimas-noticias/2013/05/01/em-proposta-para-alterar-clt-industrias-pedem-novo-fracionamento-de-ferias.jhtm
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Acontece
A Criação da CLT
“Todo o Homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que
lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.”
Declaração Universal dos Direitos do Homem.
No dia 1º de maio de 2013, a Consolidação das Leis do Trabalho completa 70 anos. A
CLT foi criada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e sancionada pelo Presidente Getúlio Vargas, durante o perío­do do Estado Novo. A Consolidação foi assinada pelo
então presidente no Estádio de São Januário (Club de Regatas Vasco da Gama), que estava
lotado para comemorar o feito. Dois anos antes, em 1941, Getúlio havia assinado a criação
da Justiça do Trabalho, no mesmo local e mesmo dia do ano.
A Consolidação unificou toda a legislação trabalhista então existente no Brasil e foi
um marco por inserir, de forma definitiva, os direitos trabalhistas na legislação brasileira.
Seu objetivo principal é regulamentar as relações individuais e coletivas do trabalho, nela
previstas. Ela surgiu como uma necessidade constitucional, após a criação da Justiça do
Trabalho.
Em janeiro de 1942 o Presidente Getúlio Vargas e o Ministro do Trabalho, Alexandre
Marcondes Filho, trocaram as primeiras ideias sobre a necessidade de fazer uma consolidação das leis do trabalho. A intenção inicial foi criar a “Consolidação das Leis do Trabalho
e da Previdência Social”.
Foram convidados para fazer parte da empreitada os Juristas José de Segadas Viana,
Oscar Saraiva, Luís Augusto Rego Monteiro, Dorval Lacerda Marcondes e Arnaldo Lopes
Süssekind. Na primeira reunião ficou definido que a comissão seria dividida em Trabalho e
Previdência, e que seriam criadas duas consolidações diferentes.
Entre as fontes materiais da CLT, podem ser citadas três. A primeira, as conclusões do
1º Congresso Brasileiro de Direito Social, realizado em maio de 1941, em São Paulo, para
festejar o cinquentenário da Encíclica Rerum Novarum, organizado pelo Professor Cesarino
Júnior e pelo Advogado e Professor Rui de Azevedo Sodré. A segunda foram as convenções
internacionais do trabalho. A terceira, a própria Encíclica Rerum Novarum (em português,
“Das Coisas Novas”), o documento pontifício escrito pelo Papa Leão XIII a 15 de maio de
1891, como uma carta aberta a todos os bispos sobre as condições das classes trabalhadoras.
101
Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Os pareceres dos consultores jurídicos Oliveira Viana e Oscar Saraiva, aprovados pelo
ministro do trabalho, também foram importantes. O código foi ainda fortemente inspirado
na Carta del Lavoro, do governo de Benito Mussolini, na Itália.
Em novembro de 1942, foi apresentado o anteprojeto da CLT, publicado posteriormente no Diário Oficial, para receber sugestões. Após estudar o projeto, Getúlio Vargas
deu-o aos coautores, nomeando-os para examinar as sugestões e redigir o projeto final,
assinado em 1º de maio de 1943.
Dois fatores tornaram a CLT um código de vanguarda para a época em que foi instituída: a ebulição dos movimentos sindicais dos operários na cidade de São Paulo, inspirados
pelos imigrantes anarquistas vindos da Itália, e o fato de o Brasil ser, à época, um país predominantemente agrário. De acordo com especialistas, o código foi visionário, ao antecipar
a urbanização do País.
Os direitos trabalhistas no Brasil
As discussões sobre direitos de trabalhadores e as formas de solução de conflitos entre
patrões e empregados no Brasil tiveram início com o fim da escravidão, em 1888.
O fim da exploração da mão de obra gratuita e as consequentes contratações de
serviços assalariados impulsionaram os debates que, na época, já eram assuntos em voga
na Europa, a qual vivia os efeitos da Revolução Industrial. Foi justamente o processo de
mecanização dos sistemas de produção implantado na Inglaterra, no século XVIII, que desencadeou os movimentos em defesa dos direitos dos trabalhadores. Na medida em que a
máquina substituía o homem, um exército de desempregados se formava.
As fábricas funcionavam em condições precárias, os trabalhadores eram confinados
em ambientes com péssima iluminação, abafados e sujos. Os salários eram muito baixos e
a exploração de mão de obra não dispensava crianças e mulheres, que eram submetidos a
jornadas de até 18 horas por dia, mas recebiam menos da metade do salário reservado aos
homens adultos.
Foi em meio a este difícil cenário que eclodiram as greves e revoltas sociais. Começavam, então, as lutas por direitos trabalhistas. Os empregados das fábricas formaram as trade
unions (espécie de sindicatos), que desencadearam movimentos por melhores condições de
trabalho. Tais manifestações serviram de inspiração para a formação de movimentos organizados de operários brasileiros.
No Brasil, desde a abolição da escravatura, a fase embrionária da consolidação dos
direitos trabalhistas perdurou por quatro décadas. As primeiras normas de proteção ao trabalhador surgiram a partir da última década do século XIX. Em 1891, o Decreto nº 1.313
regulamentou o trabalho de menores. De 1903 é a lei de sindicalização rural e de 1907 a
lei que regulou a sindicalização de todas as profissões. A primeira tentativa de formação de
um Código do Trabalho, de Maurício de Lacerda, é de 1917. No ano seguinte foi criado o
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Departamento Nacional do Trabalho. E em 1923 surgia, no âmbito do então Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio, o Conselho Nacional do Trabalho.
Mas foi após a Revolução de 1930, com a subida de Getúlio Vargas ao poder, que a
Justiça do Trabalho e a proteção dos direitos dos trabalhadores realmente despontaram. Em
26 de novembro daquele ano, por meio do Decreto nº 19.433 foi criado o Ministério do
Trabalho. No governo Vargas foram instituídas as Comissões Mistas de Conciliação para os
conflitos coletivos e as Juntas de Conciliação e Julgamento para os conflitos individuais.
Nas Constituições
O passo decisivo para a criação da Justiça Trabalhista no Brasil, que passou a aplicar
a Consolidação das Leis do Trabalho, veio com a Constituição de 1934 (art. 122), mas sua
regulamentação só ocorreu em 1940 (Decreto nº 6.596). A Constituição Federal de 1934
incluiu a Justiça do Trabalho no capítulo “Da Ordem Econômica e Social”. A função a ela
atribuída era de resolver os conflitos entre empregadores e empregados. Inicialmente integrada ao Poder Executivo, foi transferida para o Poder Judiciário, o que suscitou acirrados
debates entre parlamentares da época, sobretudo no que diz respeito ao seu poder normativo.
A Carta Constitucional de 1934 trouxe avanços sociais importantes para os trabalhadores: instituiu o salário-mínimo, a jornada de trabalho de oito horas, o repouso semanal, as férias anuais remuneradas e a indenização por dispensa sem justa causa. Sindicatos e associações profissionais passaram a ser reconhecidos, com o direito de funcionar
autonomamente. Da mesma forma, a Constituição de 1937 também consagrou direitos dos
trabalhadores.
A Assembleia Constituinte de 1946, convocada após o fim da ditadura de Getúlio
Vargas, acrescentou à legislação uma série de direitos antes ignorados: reconhecimento do
direito de greve, repouso remunerado em domingos e feriados e extensão do direito à indenização de antiguidades e à estabilidade do trabalhador rural. Outra conquista importante
da época foi a integração do seguro contra acidentes do trabalho no sistema da Previdência
Social.
A Constituição Federal de 1967 trouxe mais mudanças: aplicação da legislação trabalhista aos empregados temporários; a valorização do trabalho como condição da dignidade humana; proibição da greve nos serviços públicos e atividades essenciais e direito à
participação nos lucros das empresas. Limitou em 12 anos a idade mínima para o trabalho
do menor, com proibição de trabalho noturno; incluiu em seu texto o direito ao seguro-desemprego (este, porém, só foi realmente criado em 1986) e a aposentadoria para a mulher
após 30 anos de trabalho, com salário integral. Fez previsão do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), da contribuição sindical e do voto sindical obrigatório.
Com o fim do regime militar e a promulgação da Constituição de 5 de outubro de
1988 pela Assembleia Nacional Constituinte, dá-se início a uma nova era na vida dos tra-
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
balhadores brasileiros. A nova carta, considerada a mais democrática de todas, reforça, em
seu art. 114, § 2º, a legitimidade do poder normativo da Justiça do Trabalho.
Entre os muitos avanços propostos pela Constituição Cidadã, como foi denominada,
destaca-se a proteção contra a despedida arbitrária, ou sem justa causa; piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho prestado; licença à gestante sem prejuízo
do emprego e do salário, com a duração de 120 dias, licença-paternidade; irredutibilidade
salarial e limitação da jornada de trabalho para 8 horas diárias e 44 semanais. Destaque-se,
também, a proibição de qualquer tipo de discriminação quanto a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.
A Constituição de 1988, que hoje vigora, ao incorporar direitos trabalhistas essenciais,
inéditos à época no Texto Constitucional e já incorporados definitivamente ao cotidiano das
relações formais de trabalho, cumpriu com seu mister de assegurar aos brasileiros direitos
sociais essenciais ao exercício da cidadania. A palavra “trabalho”, que na concepção antiga
tinha o sentido de sofrimento e esforço, ganhou, assim, uma roupagem social, relacionada
ao conceito de dignidade da pessoa humana. (Conteúdo extraí­do do site do Tribunal Superior do Trabalho)
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Acontece
CLT, Setenta Anos, Traça Caminhos e Propõe Desafios
Em novembro de 2003, o Jurista Arnaldo Süssekind, ex-ministro do TST e integrante da
comissão que, na década de 1940, elaborou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), foi convidado pelo então Ministro Presidente do TST, Francisco Fausto, a realizar palestra sobre sua história
e suas perspectivas, intitulada “Os 60 anos da CLT: uma visão crítica”. O objetivo era tratar da atualização da legislação trabalhista brasileira. Süssekind faleceu em 2012, no dia do seu 95º
aniversário e a apenas um ano de ver a CLT completar 70 anos. Hoje, 569 propostas parlamentares em tramitação no Congresso sugerem mudanças em seu texto.
Süssekind tinha apenas 24 anos quando ele e mais quatro membros compuseram a
comissão elaboradora da CLT. O convite foi do Ministro do Trabalho do governo Getúlio
Vargas, Alexandre Marcondes Filho, e a ideia inicial era elaborar uma Consolidação das
Leis do Trabalho que harmonizasse, em um só ordenamento legal, três fases distintas do
governo getulista, iniciado com a Revolução de 1930.
A comissão encontrou enormes dificuldades para organizar o texto, pois, segundo
Süssekind, não se queria apenas expor as leis e suas aplicações, mas explicar seus princípios
e fundamentos. “Entendíamos que não seria possível consolidar a legislação do salário-mínimo sem um capítulo sobre o salário, conceito de salário, elementos etc.” Finalmente, em 1º
de maio de 1943, por meio do Decreto-Lei nº 5.452, a CLT foi sancionada.
Defesa
Ainda na solenidade em 2003, Süssekind fez uma defesa enérgica da CLT para aqueles
que a acusavam de ter sido fruto de ideias fascistas, uma cópia da Carta del Lavoro italiana,
de 1923. O jurista citou alguns pontos do documento, como o que prevê que o trabalho
noturno deve ter uma remuneração percentual maior que o trabalho diurno, ou o direito ao
repouso semanal. E retrucou: “É fascismo? Não creio”.
Em 1977, no governo de Ernesto Geisel, outra comissão interministerial foi nomeada
para rever pontos da CLT. “Essa comissão elaborou uma CLT nova, inteira”, lembrou Süssekind. No texto, ficaram estipuladas férias de 30 dias e a possibilidade de conversão de um
terço em abono pecuniário, além da regulamentação das férias coletivas.
Mas o projeto representou poucos avanços, tendo em vista o final de mandato de Geisel. Embora o presidente tenha determinado a publicação do projeto na íntegra, seu sucessor, João Batista de Figueiredo, resolveu arquivá-lo e nomeou outra comissão para fazer o
código de trabalho.
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Desde então, a CLT passou por vários governos, investidas políticas e econômicas,
sem falar na própria dinâmica do trabalho, profundamente alterada pelas novas tecnologias,
levando à automação e, consequentemente, transformando as relações entre patrões e empregados.
Certamente, nenhum documento histórico atravessa 70 anos sem críticas ou reavaliações. Hoje, entre os vários temas em debate sobre a CLT, dois são considerados relevantes
por juristas e parlamentares: a terceirização e a relação sindical.
A questão dos sindicatos
Uma das críticas à CLT em sua elaboração dizia respeito ao direito sindical. Em seu
texto, havia um artigo que declarava que o sindicato deveria ter o monopólio da representação e, portanto, haveria um sindicato único para representar todos os integrantes da
categoria profissional ou econômica – longe da ideia de pluralismo sindical assegurado pela
Constituição Federal de 1988.
O Deputado Assis Melo (PCdoB-RS), com forte ligação com o movimento sindical,
ressalta a importância da CLT. Para Melo, devemos não apenas comemorar e reverenciar a
CLT e seu passado, mas também reafirmá-la como instrumento de garantia de trabalhadores.
O parlamentar concorda, porém, que a legislação precisa avançar em alguns pontos,
como, por exemplo, a estabilidade de dirigente sindical (prevista no art. 8º, inciso VII, da
Constituição Federal). “Não dá para trabalhar com a direção de sete dirigentes sindicais
em base que tem 3 ou 4 mil empresas”, diz ele. “Esse é um capítulo que deveria avançar”,
afirma.
Referência do sindicalismo brasileiro e ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), o hoje Deputado Vicentinho (PT-SP) também propõe avanços quanto à questão sindical. Ele é autor da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 29,
juntamente com o Deputado Maurício Rands (PT-PE), que pretende instituir no Brasil a liberdade sindical plena, por meio da ratificação da Convenção nº 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O objetivo principal é fortalecer as centrais sindicais, que, na Constituição de 1988, sequer são mencionadas. De acordo com a
proposta, as centrais ganhariam natureza jurídica de entidade sindical. Para Vicentinho,
a aprovação da proposta “seria um sonho”.
Flexibilização
Entre as propostas que seguem no parlamento, uma das mais polêmicas se refere à
regulamentação do trabalho terceirizado. Um deles é o Projeto de Lei nº 4.330/2004, de
autoria do Deputado Sandro Mabel (PMDB-GO), para o qual a terceirização representa uma
evolução. Mabel afirma que seu projeto pretende eliminar a figura do mau empregador e
tirar do mercado aqueles que precarizam a mão de obra, e defende a terceirização por especialidades.
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Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Para a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o tema é prioritário. A queixa é que
a prática, embora rotineira, não é regulamentada e gera grande número de conflitos judiciais
e multas milionárias para as empresas. O projeto está em análise desde 2004 no Congresso.
A questão foi tema de audiência pública realizada em 2011 pelo TST. Na ocasião, Vicentinho, autor do Projeto de Lei nº 1.621/2007, que se contrapõe ao de Mabel, defendeu
a proibição da terceirização na atividade-fim da empresa. Seu projeto propõe a igualdade
de condições de trabalho, inclusive de salário, entre empregados diretos e terceirizados, e a
participação do sindicato nos processos de contratação de mão de obra, entre outros pontos.
Atualização
Para o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro Carlos Alberto Reis de
Paula, a CLT não é um “mero agregado” de dispositivos esparsos, mas “um texto com estrutura normativa, axiológica e principiológica”, que orienta o Direito do Trabalho há 70 anos.
Isso, no entanto, não exclui a necessidade de adaptação a novos tempos. “A CLT, como
toda a legislação, deve ser atualizada não apenas para compilar a legislação criada posteriormente, mas também corrigir arcaísmos e se adaptar às mudanças trazidas pela evolução
da sociedade, principalmente por uma lógica produtiva pós-fordista”, afirma.
A atualização defendida pelo presidente do TST, porém, tem de preservar o núcleo de
princípios norteadores do Direito do Trabalho para dar efetividade a princípios fundamentais garantidos pela Constituição Federal. “Deve-se sempre reafirmar a proteção dos direitos
básicos do trabalhador e a busca da efetiva representatividade pelas entidades sindicais”,
propõe. A marca dos 70 anos, para Carlos Alberto, deve servir para a reflexão, voltada para
a construção de uma sociedade “mais humanizada, onde se concilie e convivam a justiça e
a liberdade”. (Conteúdo extraído do site do Tribunal Superior do Trabalho)
107
Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
Acontece
Congresso Nacional faz Homenagem aos 70 anos da CLT
O Presidente do Tribunal Superior do Trabalho e do Conselho Superior da Justiça
do Trabalho (CSJT), Carlos Alberto Reis de Paula, afirmou que a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) tem que ser atualizada: “Não pode parar na história, mas jamais à custa do
sacrifício da pessoa do trabalhador”. Carlos Alberto falou durante sessão conjunta do Congresso Nacional em homenagem aos 70 anos da CLT.
A sessão foi proposta e presidida pelo Senador Paulo Paim (PT-RS). Estiveram presentes
senadores, deputados, representantes de centrais e entidades sindicais, além dos Ministros
do TST Maurício Godinho Delgado e Kátia Magalhães Arruda, do Procurador-Geral do Trabalho, Luís Antônio Camargo de Melo, e do Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Paulo Schmidt.
O presidente do TST disse que a CLT é a expressão daquilo que a Constituição de 1988
consagra. “A Constituição da República diz que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, destacou. Para ele, a CLT não pode parar
na história: “Há de ser atualizada, modernizada, mas jamais flexibilizada. A flexibilização
significa, em última instância, o profundo desrespeito ao valor máximo da República Federativa do Brasil, qual seja, o trabalho humano”.
Carlos Alberto fez um apelo aos integrantes do Congresso Nacional, “que têm oportunidade de discutir o problema”, a fim de que tenham “o máximo de cuidado para que o
trabalho seja preservado e que, ao lado da valorização da livre iniciativa, seja encontrado o
verdadeiro caminho”. Um caminho em que o “cidadão trabalhador encontre o seu lugar no
mundo. Encontre o respeito e a cidadania que o trabalho lhe concede”.
O Senador Paulo Paim (PT-RS) defendeu que a CLT deve “adequar-se aos avanços da
sociedade brasileira nos âmbitos econômico, social e cultural”. No entanto, ele defende não
só a preservação dos direitos adquiridos pelos trabalhadores, mas a necessidade de avanços
concretos. “A modernização que defendemos não representa, de forma alguma, obstáculo
ao desenvolvimento econômico. Ela se posiciona, contudo, contra qualquer forma de retrocesso social”.
O Procurador-Geral do Trabalho, Luís Antônio Camargo de Melo, enalteceu o papel
da CLT em garantir os direitos do trabalhador, e se mostrou preocupado com os desafios
colocados para a sociedade, como o trabalho infantil e escravo, “que tratam o trabalhador
como coisa”. Ele é contra o projeto de lei sobre a terceirização que tramita no Congresso
Nacional, e que jogaria “na lata do lixo os arts. 2º e 3º da Constituição”.
O Presidente da Anamatra, Paulo Schmidt, afirmou que a CLT, nesses 70 anos, tem
“nos ensinado que a Justiça não pode prescindir da conciliação”. Ele afirmou ainda que a
108
Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária
CLT 70 Anos. A Construção de Um Novo Modelo
“CLT é um instrumento que permite a valorização do Trabalho”, um dos princípios básicos
da Constituição.
O ex-presidente da República e Senador Fernando Collor (PTB-Al) lembrou que é neto
de Lindolfo Collor, primeiro Ministro do Trabalho, que participou da redação da CLT. O
Senador disse que se sentia orgulhoso de ter o sangue do avô e da defesa dos direitos dos
trabalhadores. (Conteúdo extraído do site do Tribunal Superior do Trabalho)
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Revista SÍNTESE
Estudos Tributários
ASSUNTO ESPECIAL
Tributação na Importação
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Doutrina
“Importação por Encomenda” e “Importação por Conta e Ordem” – Os Efeitos Fiscais
de Cada Qual Segundo o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo
ADOLPHO BERGAMINI
Advogado, Sócio da área tributária do Bergamini & Collucci Advogados, Professor de Direito Tributário, Juiz
do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo.
INTRODUÇÃO
Conforme é sabido, atualmente há variados instrumentos à mão do empresário para
importar mercadorias do exterior, especialmente: (i) a importação direta; (ii) a importação
por conta e ordem; e (iii) a importação por encomenda.
Cada qual carrega consigo efeitos tributários diversos, seja na esfera de tributação federal ou estadual. Mas os maiores entreveros sempre estiveram relacionados às modalidades
de importação indireta, mais especificamente à importação por conta e ordem de terceiros
e a qual Estado cabe o ICMS devido na operação. Pouco se falou, na jurisprudência, quanto
a este tema (sujeição ativa) relacionado às importações por encomenda.
O propósito do presente ensaio é, pois, examinar exatamente qual Estado é legitimado
a cobrar o ICMS vinculado na importação realizada na modalidade por encomenda, bem
como os pronunciamentos do Tribunal de Impostos e Taxas a respeito.
1 IMPORTAÇÃO POR CONTA E ORDEM VERSUS IMPORTAÇÃO POR ENCOMENDA
1.1 A real incidência do ICMS vinculado à importação
Os fundamentos normativos à cobrança de ICMS vinculado à importação estão no art. 155, §
2º, IX, a, da Constituição Federal, bem como no art. 2º, § 1º, da Lei Complementar nº 87/1996:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
[...]
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações
se iniciem no exterior;
[...]
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
111
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
[...]
IX – incidirá também:
a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica,
ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade,
assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver
situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço.
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 33/2001)
Art. 2º O imposto incide sobre:
[...]
§ 1º O imposto incide também:
I – sobre a entrada de mercadoria ou bem importados do exterior, por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade.
(Redação dada pela Lei Complementar nº 114/2002)
A justificação econômica para a incidência do ICMS na importação de bens e mercadorias
é a equiparação da carga fiscal incidente a essas operações àquelas que têm início no País, ou
seja, cujas mercadorias sejam produzidas no País. Tal justificativa é expressamente reconhecida por alguns Fiscos Estaduais, a exemplo do Estado de São Paulo, que, ao exarar o seu entendimento quanto à incidência do ICMS vinculado à importação sobre bens trazidos ao País via
leasing, assim iniciou os “Considerandos” da Decisão Normativa CAT nº 4/2001:
Considerando que a incidência do ICMS devido na importação tem a função essencial de submeter os bens importados ao mesmo tributo que onera os bens fabricados no País, sob pena
de tratamento privilegiado aos primeiros.
Entretanto, diferentemente do que ocorre com as operações nacionais, nas quais sempre será possível identificar as atividades fabricação, saída e/ou operação mercantil havidas
dentro dos limites do território brasileiro (e dos Estados), nas operações provenientes do
exterior não é possível identificar o evento saída, daí porque o ICMS incide sobre a entrada
de bens importados.
Indo adiante nessa interpretação, se o ICMS da importação incide sobre a entrada,
cuja contraposição ao mercado nacional é o imposto incidente sobre uma saída que, em
regra, decorre diretamente de uma operação mercantil (que pressupõe venda) ou de movimentações físicas de mercadorias entre estabelecimentos que culminarão em uma venda
(venda após transferências de mercadorias entre estabelecimentos), é correto afirmar que a
incidência sobre a entrada em verdade reflete a incidência tributária sobre a aquisição de
mercadoria do exterior. Afinal, a aquisição é o negócio jurídico que se contrapõe à venda
ou aos atos que antecedem a venda (no caso das transferências).
A partir dessas premissas, é correto afirmar também que o art. 12, IX, da Lei Complementar nº 87/1996, segundo o qual o fato gerador do ICMS da importação ocorre no desembaraço aduaneiro, não define o critério material da regra de incidência tributária, mas
o critério temporal, isto é, o momento no tempo em que o imposto será tido como devido.
112
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Além disso, não se pode ignorar que a Lei Complementar nº 87/1996 define, a princípio, que toda e qualquer saída física havida em território nacional deflagra a incidência do
ICMS. Esse elemento aplicado ao ICMS vinculado à importação resulta no fato de que, para
que seja legítima a cobrança do imposto, é necessário que haja uma entrada também física
no estabelecimento do contribuinte que adquiriu a mercadoria no mercado externo.
Assim, em conclusão a este capítulo, afigura-se clara a ideia de que o ICMS vinculado
à importação tem como fato gerador a aquisição de bens do exterior que resulte em uma
entrada física do bem no estabelecimento do contribuinte que o adquiriu.
A correta identificação da incidência do ICMS vinculado à importação é importante
não só para o entendimento e a compreensão da dinâmica do próprio imposto, mas também
(e principalmente) para se identificar a qual Estado cabe a legitimidade ativa para a sua cobrança e arrecadação, especialmente em relação às importações por conta e ordem e por
encomenda, conforme será visto nas linhas seguintes.
1.2 Importação por conta e ordem de terceiros
As operações denominadas “importação por conta e ordem de terceiros” são disciplinadas pela IN SRF 247/2002, valendo destacar, aqui, os seus arts. 12 e 86:
Art. 12. [...]
I – entende-se por importador por conta e ordem de terceiros a pessoa jurídica que promover,
em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria adquirida por outra, em
razão de contrato previamente firmado, que poderá compreender, ainda, a prestação de outros serviços relacionados com a transação comercial, como a realização de cotação de preços
e a intermediação comercial;
II – entende-se por adquirente a pessoa jurídica encomendante da mercadoria importada.
Art. 86. O disposto no art. 12 aplica-se, exclusivamente, às operações de importação que atendam, cumulativamente, aos seguintes requisitos:
I – contrato prévio entre a pessoa jurídica importadora e o adquirente por encomenda, caracterizando a operação por conta e ordem de terceiros;
II – os registros fiscais e contábeis da pessoa jurídica importadora deverão evidenciar que se
trata de mercadoria de propriedade de terceiros; e
III – a nota fiscal de saída da mercadoria do estabelecimento importador deverá ser emitida
pelo mesmo valor constante da nota fiscal de entrada, acrescido dos tributos incidentes na
importação.
§ 1º Para efeito do disposto neste artigo, o documento referido no inciso III do caput não caracteriza operação de compra e venda.
113
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Segundo os Fiscos Estaduais, da análise desses dispositivos chega-se à conclusão de
que existe uma só “operação relativa à circulação de mercadorias”, que é a de importação,
embora dois sejam os seus agentes: um, que empresta o seu nome ao despacho aduaneiro;
e outro, que realmente tem interesse no negócio jurídico que dará origem à “entrada de
mercadoria importada do exterior”.
A corroborar essas afirmações, deve ser dito que quem arca economicamente com a
importação é o adquirente, porquanto é ele quem contrata câmbio e, portanto, remete valores ao fornecedor localizado no exterior para a quitação da obrigação contratual. E é por
essa razão que a invoice é firmada entre o fornecedor estrangeiro e o adquirente, não com
a importadora.
Não é só. Para que uma importação por conta e ordem seja autorizada, é necessário
que o adquirente contrate os serviços da importadora por via de contrato escrito e devidamente registrado junto à Receita Federal do Brasil, conforme dão conta os arts. 1º e 2º da
Instrução Normativa SRF nº 225/2002:
Art. 1º O controle aduaneiro relativo à atuação de pessoa jurídica importadora que opere por
conta e ordem de terceiros, será exercido conforme o estabelecido nesta Instrução Normativa.
Parágrafo único. Entende-se por importador por conta e ordem de terceiro a pessoa jurídica
que promover, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação da mercadoria adquirida
por outra, em razão de contrato previamente firmado, que poderá compreender, ainda, a
prestação de outros serviços relacionados com a transação comercial, como a realização de
cotação de preços e a intermediação comercial.
Art. 2º A pessoa jurídica que contratar empresa para operar por sua conta e ordem, deverá
apresentar cópia do contrato firmado entre as partes para a prestação dos serviços, caracterizando a natureza de sua vinculação, à unidade da Secretaria da Receita Federal (SRF), de
fiscalização aduaneira, com jurisdição sobre o seu estabelecimento matriz.
Parágrafo único. O registro da Declaração de Importação (DI) pelo contratado ficará condicionado à sua prévia habilitação no Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex), para
atuar como importador por conta e ordem do adquirente, pelo prazo previsto no contrato.
Pelo fato de ser um serviço, o Fisco Federal vem se manifestando no sentido de que o
PIS e a Cofins incidentes sobre as atividades da importadora se dão apenas e tão somente
sobre as receitas relativas aos serviços por ela prestados, jamais sobre os valores da importação do bem. Vejamos:
IMPORTAÇÃO POR CONTA E ORDEM DE TERCEIROS – BASE DE CÁLCULO – PRESTAÇÃO
DE SERVIÇO – Na importação por conta e ordem de terceiros, a base de cálculo da Cofins do
importador inclui apenas o valor da prestação do serviço de intermediação. O valor dos bens
importados não compõe a base de cálculo do crédito do importador, mas do adquirente e corresponde ao valor aduaneiro das mercadorias importadas, conforme definido no art. 7º da Lei
nº 10.865/2004.
(Solução de Consulta nº 146/08, 8ª Região Fiscal)
E de tais conclusões há efeitos jurídicos relevantes.
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
É que, em razão de ser uma única operação, o Supremo Tribunal Federal entende que,
nas importações por conta e ordem de terceiros, o contribuinte do ICMS é o adquirente das
mercadorias, de modo que o imposto deve ser pago ao Estado onde ele (adquirente) está
localizado, não ao Estado onde se localiza o importador. Vejamos mais uma vez a decisão
contida no Recurso Extraordinário nº 268.586-1, relatado pelo Ministro Cezar Peluso:
4. A questão é constitucional e radica-se na interpretação da cláusula final do art. 155, § 2º,
IX, a, da Constituição da República, o qual estatui:
“[...] cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do
destinatário da mercadoria, bem ou serviço;”
[...]
O termo destinatário, contido no trecho final do art.155, § 2º, IX, a, da Constituição, deve ser
lido e interpretado em consonância com o preceito que, nesse mesmo texto, combinado com
o disposto no inciso II do caput do art. 155, outorga ao Estado competência para instituir ICMS
na importação. ou seja, destinatário da mercadoria é quem figura como contraente no negócio
jurídico que dá origem à operação material de importação, seja esta realizada diretamente,
seja por intermédio de terceiro, como, p. ex., de prestador de serviço, trading, etc.
[...]
O decisivo é saber a quem, segundo o teor do negócio jurídico subjacente ao ato material da
importação, é destinada a mercadoria que o próprio adquirente ou, por ele, terceiro traz do
exterior. Isto é, quem adquire a mercadoria à importação.
[...]
O destinatário é, pois, sem sombra de dúvidas, para efeitos de incidência do ICMS na importação, a ora recorrente. A emissão de notas fiscais de saída pela empresa importadora, [...] e
o errôneo recolhimento do imposto ao Estado do Espírito Santo não desnaturam o negócio
jurídico realizado entre a recorrente e o exportador. A importadora foi só intermediária na
aquisição, não destinatária da mercadoria.
[...]
6. O Estado de São Paulo, ora recorrido, tem, portanto, legitimidade constitucional para exigir
o ICMS incidente na importação, razão por que nego provimento ao recurso.
É natural que seja assim. Afinal, considerando que as importadoras apenas prestam
serviços a uma outra empresa, que, por sua vez, é a real adquirente das mercadorias (tanto
assim que são titulares dos contratos de câmbio para remessa de valores ao exterior para pagamento do fornecedor e, ainda, figuram como adquirente na Declaração de Importação),
e considerando o que fora demonstrado no item 1.1 supra, no sentido de que a incidência
do ICMS vinculado à importação se dá sobre a aquisição de mercadoria do exterior, então
resta evidente o fato de que o Estado competente a arrecadar o imposto nessas operações é
aquele onde se localiza o adquirente das mercadorias, não onde está a importadora, especialmente se a entrada da mercadoria se dá diretamente no estabelecimento adquirente, e
não na importadora.
115
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
A Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo tem seguido essa
orientação, a exemplo do que se verifica da ementa a seguir transcrita:
ICMS. Importação através do porto de Vitória. Empresa que efetuou a liberação das mercadorias prestou somente esses serviços por conta e ordem da autuada. As DIs e as guias de
importação, bem como os pagamentos foram efetuados diretamente pela autuada. Paradigmas
se prestam ao confronto. Recurso conhecido e provido, para reformar a decisão recorrida e
manter a acusação inicial em sua integridade. Recurso conhecido e provido. Decisão não
Unânime.
(TIT/SP, Câmara Superior, Rel. Francisco Antonio Feijó, Processo DRT-05-227848/2008, Julgado em 20.01.2011)
O Conselho de Contribuintes do Estado de Minas Gerais também vem se manifestando
dessa forma. Vejamos:
IMPORTAÇÃO – IMPORTAÇÃO INDIRETA – FALTA DE RECOLHIMENTO DO ICMS – Constatou-se importação do exterior de barras de aço, arames e outros fios de ferro, por contribuinte localizado em outra Unidade da Federação, com o objetivo prévio de destiná-la
ao estabelecimento da recorrente em Minas Gerais, sem o recolhimento do imposto devido, comprovado por contratos de prestação de serviço, notas fiscais, faturas comerciais,
declarações de importação, dentre outros documentos. Descumprimento do disposto no
art. 155, § 2º, inciso IX, alínea a, da Constituição Federal; no art. 11, inciso I, alínea d, da
Lei Complementar nº 87/1996 e no art. 33, § 1º, item 1, alínea i, subalínea “i.1.3”, da Lei
nº 6.763/1975.
Exigências de ICMS, da multa de revalidação prevista no art. 56, inciso II, da Lei nº 6.763/1975
e da multa isolada capitulada no art. 55, inciso XXXIV, da mesma Lei.
Recurso de revisão conhecido por unanimidade e não provido pelo voto de qualidade.
[...]
Cuidam as acusações fiscais, recorrida e paradigma, de importação de mercadorias realizadas
sob contrato na modalidade “por conta e ordem”, em que os contribuintes mineiros contratam
empresas localizadas em outras Unidades da Federação para importarem, por conta e ordem
das empresas mineiras, mercadorias do exterior.
[...]
Passando-se à análise do mérito propriamente dito, imperioso salientar que a controvérsia
circunscreve-se à questão de determinar a quem pertence a competência para a exigência do
ICMS incidente sobre a importação das mercadorias: ao Estado de Minas Gerais, onde se situa
o real destinatário dos produtos ou a Santa Catarina, onde se processou o despacho aduaneiro
e onde se encontra sediada a empresa eleita como coobrigada, que figurou na documentação
como importadora (“destinatária jurídica”).
Posta assim a questão, cabe, inicialmente, uma análise da legislação pertinente, a começar da
Constituição Federal, que estabelece na parte final da alínea a do inciso IX do § 2º de seu art.
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
155 que, na importação de bem ou mercadoria, o ICMS cabe ao Estado onde estiver situado o
domicílio ou o estabelecimento do destinatário dos mesmos, lembrando ainda que, nos termos
de seu art. 146, compete à lei complementar, dentre outras matérias, dispor sobre conflitos de
competência entre os entes tributantes, bem como definir o fato gerador, a base de cálculo e
o contribuinte dos impostos nela discriminados.
[...]
Depreende-se, assim, que tanto a Constituição quanto a lei complementar e a legislação mineira definem como destinatário da mercadoria, para o fim de determinação da sujeição ativa
da obrigação relativa ao ICMS incidente na importação, o seu real importador, isto é, aquele
estabelecimento a quem a mercadoria realmente se destinar, pouco importando o Estado em
que é realizado o desembaraço aduaneiro.
Ou seja, o critério da destinação física não diz respeito ao local onde se dá a nacionalização
da mercadoria, assim entendido aquele onde deva entrar fisicamente no país para o fim de
processamento do seu regular desembaraço aduaneiro, mas àquele em que situado o domicílio ou o estabelecimento de quem efetivamente promova a sua integração ao ciclo econômico
nacional, isto é, quem promover, direta ou indiretamente, a importação do bem ou mercadoria, com o fim de consumo, imobilização, comercialização ou industrialização, sendo certo
que o desembaraço aduaneiro, relativamente ao ICMS, apenas marca o momento (e o local)
da ocorrência do fato gerador, mas não a sujeição ativa da obrigação decorrente da operação
de importação.
(CC/MG, Acórdão nº 3.806/11/CE, PTA/AI 01.000169588-01)
Tal entendimento vem sendo adotado por alguns Estados como a orientação oficial a ser
seguida. Tenha-se como exemplo o Estado de São Paulo, que expressamente se manifestou
nesse sentido por meio da Decisão Normativa CAT nº 3/09, com os esclarecimentos do Comunicado CAT nº 37/20101. Vejamos o texto da referida Decisão Normativa CAT nº 3/2009:
1 O Comunicado CAT nº 37/2010 esclarece a abrangência da Decisão Normativa CAT nº 3/2009, nos seguintes termos:
1. Dispõem os itens 3 e 9 da Decisão Normativa CAT nº 3/2009 que “embora tivesse deixado a cargo de lei complementar
a fixação do local da operação, o que define também o sujeito ativo da operação, a CF/1988 adiantou-se dizendo que,
na importação, cabe o imposto ao Estado ‘onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da
mercadoria, bem ou serviço’”, de modo que “a pessoa jurídica que promover a ‘entrada de mercadorias importadas do
exterior’ (adquirente), ainda que em nome de terceiro, é o verdadeiro contribuinte do imposto”.
2. A norma supra estabelece situação jurídica em que é irrelevante o local do estabelecimento do importador que
promove a entrada de mercadorias importadas do exterior em nome de terceiro adquirente, fazendo valer a situação
do domicílio deste último (adquirente) para definição da sujeição ativa. Tal norma é aplicável a qualquer que seja a
localização do estabelecimento do importador, inclusive se for na mesma unidade federada em que estiver estabelecido
o adquirente, independentemente do local do desembaraço aduaneiro.
3. Ou seja, muito embora o foco principal da Decisão Normativa CAT nº 3/2009 tenha sido a situação jurídica em que o
importador se localiza em unidade federada diversa daquela do Estado do adquirente – no caso, o Estado de São Paulo,
seus fundamentos são aplicáveis a quaisquer operações de importação de mercadorias oriundas do exterior por conta e
ordem de terceiros.
4. Portanto, uma vez que na importação de mercadorias oriundas do exterior por conta e ordem de terceiros para
adquirente paulista o ICMS sempre é devido para o Estado de São Paulo, o adquirente somente poderá creditar-se do
ICMS pago pela operação de importação mediante a comprovação do recolhimento do imposto a favor do Estado de São
Paulo.
5. Na Decisão Normativa CAT nº 3/2009 também ficou esclarecido que o imposto devido ao Estado de São Paulo deve
ser recolhido mediante guia de recolhimento que deve identificar o adquirente paulista como sujeito passivo.
117
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Fica aprovado o entendimento contido na Resposta à Consulta nº 129/2003, de 8 de fevereiro
de 2006, cujo texto é reproduzido a seguir, com adaptações:
“1. A Constituição Federal de 1988 traçou as principais linhas do ICMS, especialmente seu
critério material e o princípio da não-cumulatividade, deixando para lei complementar outros
aspectos, tais como a definição dos contribuintes, a disciplina do regime de compensação e a
determinação do local do fato gerador.
2. No que diz respeito ao princípio da não-cumulatividade, o inciso I do § 2º do art. 155 da
CF/1988 estabelece que o imposto ‘será não-cumulativo, compensando-se o que for devido
em cada operação relativa à circulação de mercadorias... com o montante cobrado nas anteriores, pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal’.
3. Embora tivesse deixado a cargo de lei complementar a fixação do local da operação, o que
define também o sujeito ativo da operação, a CF/1988 adiantou-se dizendo que, na importação, cabe o imposto ao Estado ‘onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do
destinatário da mercadoria, bem ou serviço’.
4. A Lei Complementar nº 87/1996, por seu turno, estabelece, no inciso I do parágrafo único
do art. 4º, que também é contribuinte ‘a pessoa física ou jurídica que, mesmo sem habitualidade ou intuito comercial, importe mercadorias ou bens do exterior, qualquer que seja a sua
finalidade’. Quanto ao local da operação, tratando-se de mercadoria ou bem importados do
exterior, determina que este é o do estabelecimento onde ocorrer a entrada física (art. 11, inciso I, alínea d).
5. No caso da chamada ‘importação por conta e ordem de terceiros’, o assunto foi normatizado pela Receita Federal por meio da Instrução Normativa SRF nº 247/2004 e suas alterações,
bem como por atos hierarquicamente inferiores, normas essas que não obrigam a Fazenda do
Estado.
6. Segundo os incisos I e II do § 1º do mencionado art. 12 da Instrução Normativa SRF nº
247/2002:
‘I – entende-se por importador por conta e ordem de terceiros a pessoa jurídica que promover, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria adquirida por
outra, em razão de contrato previamente firmado, que poderá compreender, ainda, a prestação de outros serviços relacionados com a transação comercial, como a realização de
cotação de preços e a intermediação comercial;
II – entende-se por adquirente a pessoa jurídica encomendante da mercadoria importada.’
7. Por sua vez, o art. 86 do citado diploma legal estabelece que:
‘Art. 86. O disposto no art. 12 aplica-se, exclusivamente, às operações de importação que
atendam, cumulativamente, aos seguintes requisitos:
I – contrato prévio entre a pessoa jurídica importadora e o adquirente por encomenda, caracterizando a operação por conta e ordem de terceiros;
II – os registros fiscais e contábeis da pessoa jurídica importadora deverão evidenciar que
se trata de mercadoria de propriedade de terceiros; e
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
III – a nota fiscal de saída da mercadoria do estabelecimento importador deverá ser emitida
pelo mesmo valor constante da nota fiscal de entrada, acrescido dos tributos incidentes na
importação.
§ 1º para efeito do disposto neste artigo, o documento referido no inciso III do caput não
caracteriza operação de compra e venda.
[...]’
8. Note-se que existe uma só ‘operação relativa à circulação de mercadorias’, que é a de
importação, embora dois sejam os seus agentes: um, que empresta o seu nome ao despacho
aduaneiro e outro, que realmente tem interesse no negócio jurídico que dará origem à ‘entrada
de mercadoria importada do exterior’, fato gerador do ICMS. Mais, este segundo agente, que
promove a importação por sua conta e risco, é quem a LC 87/1996, com fundamento na alínea
a do inciso III do art. 146 da CF/1988, identificou como contribuinte do ICMS.
De fato, ele arca, também, com os tributos incidentes na importação, ainda que sejam pagos
em nome de outra pessoa jurídica, esta mera facilitadora da ope­ração.
9. Em face de todo do exposto, para fins do ICMS:
– a pessoa jurídica que promover a ‘entrada de mercadorias importadas do exterior’ (adquirente), ainda que em nome de terceiro, é o verdadeiro contribuinte do imposto (art. 121,
I, do CTN);
– terá direito ao crédito pelo ICMS pago pela importação e não pelo simples recebimento da
mercadoria enviada pelo ‘importador por conta e ordem’, situado no outro Estado; o importador por conta e ordem de terceiros situado em outra unidade federada (prestador do
serviço) é responsável solidário pelo pagamento do imposto (art. 124, inciso I, do CTN);
– a entrada física da mercadoria no estabelecimento do adquirente é o fato relevante para
determinação do local da operação (art. 11, inciso I, alínea d, da Lei Complementar nº
87/1996), sendo devido o imposto ao Estado de localização do estabelecimento do adquirente.
10. Esse entendimento foi consagrado no Recurso Extraordinário nº 268.586-1, em processo
originado pela lavratura de AIIM contra o ‘adquirente’, em importação realizada por sua conta
e ordem, no qual assim se manifestou o Ministro Cezar Peluso:
‘4. A questão é constitucional e radica-se na interpretação da cláusula final do art. 155, §
2º, IX, a, da Constituição da República, o qual estatui:
‘[...] cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento
do destinatário da mercadoria, bem ou serviço;’
[...]
O termo destinatário, contido no trecho final do art. 155, § 2º, IX, a, da Constituição, deve ser
lido e interpretado em consonância com o preceito que, nesse mesmo texto, combinado com
o disposto no inciso II do caput do art. 155, outorga ao Estado competência para instituir ICMS
na importação. ou seja, destinatário da mercadoria é quem figura como contraente no negócio
jurídico que dá origem à operação material de importação, seja esta realizada diretamente,
seja por intermédio de terceiro, como, p. ex., de prestador de serviço, trading, etc.
119
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
[...]
O decisivo é saber a quem, segundo o teor do negócio jurídico subjacente ao ato material da
importação, é destinada a mercadoria que o próprio adquirente ou, por ele, terceiro traz do
exterior. Isto é, quem adquire a mercadoria à importação.
[...]
O destinatário é, pois, sem sombra de dúvidas, para efeitos de incidência do ICMS na importação, a ora recorrente. A emissão de notas fiscais de saída pela empresa importadora,... e o errôneo recolhimento do imposto ao Estado do Espírito Santo não desnaturam o negócio jurídico
realizado entre a recorrente e o exportador. A importadora foi só intermediária na aquisição,
não destinatária da mercadoria.
[...]
6. O Estado de São Paulo, ora recorrido, tem, portanto, legitimidade constitucional para exigir
o ICMS incidente na importação, razão por que nego provimento ao recurso.’
11. Na entrada de mercadoria importada por conta e ordem de terceiros em estabelecimento
de adquirente paulista, respeitados os arts. 61 e seguintes do Regulamento do ICMS, aprovado
pelo Decreto nº 45.490, de 30 de novembro de 2000, o adquirente poderá creditar-se do ICMS
pago na importação, desde que tenha comprovante de que o recolhimento do imposto foi feito
a favor do Estado de São Paulo.
12. Nesse caso, para o cumprimento das obrigações acessórias perante o Estado de São Paulo,
o adquirente deverá emitir Nota Fiscal, nos termos do art. 136, inciso I, alínea f, e escriturando-a normalmente no Livro Registro de Entradas. Poderá acrescentar nos livros fiscais outras
indicações de seu interesse, desde que não lhe prejudiquem a clareza (§ 11 do art. 213 do
RICMS). Tal exigência decorre do fato de que o Estado de São Paulo não reconhece como válidas, para efeito do crédito do ICMS incidente na importação, as Notas Fiscais emitidas pelo
importador por conta e ordem, em virtude da supracitada inexistência de convênio celebrado
para esse fim.”
Não é só. Pelo exame do texto supratranscrito, em especial o item 5 da aludida Decisão Normativa CAT nº 3/09, fica bem claro que o Estado de São Paulo reconhece a legitimidade da operação de importação por conta e ordem de terceiros, porquanto disciplinada
por norma da Receita Federal – a Instrução Normativa nº 247/2002. Sua única objeção se
dá quanto à disciplina quanto ao Estado competente a arrecadar o ICMS e quanto ao art.
87 da citada Instrução Normativa, que, em seu inciso IV, alínea b, determina o destaque do
ICMS pela pessoa jurídica importadora (a trading) na nota fiscal emitida para documentar a
remessa da mercadoria à pessoa jurídica adquirente.
Assumindo que são essas as motivações das objeções do Estado de São Paulo, então
deve ser reconhecido, aqui, que o Fisco Paulista está correto. Afinal, se o ICMS é de competência estadual, não poderia a Receita Federal: (i) dispor sobre qual Estado é, ou não,
competente para arrecadar o ICMS nas operações de importação por conta e ordem de
terceiros; (ii) disciplinar a forma como a qual será a emitida a nota fiscal da pessoa jurídica
importadora, em estrita violação aos termos do Convênio Sinief s/nº, de 15.12.1970, que
120
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
disciplina nacionalmente como são emitidos os documentos fiscais em todos os Estados; e
(iii) disciplinar se nesse documento fiscal há, ou não, destaque de ICMS.
No ano de 2009 ficou bem claro que o quanto fora exposto supra de fato é procedente.
Isso porque naquele ano o Estado de São Paulo firmou com o Estado do Espírito Santo o Protocolo ICMS nº 23/09, que, em sua Cláusula Segunda, inciso II, alínea b, dispõe claramente
que “no momento do desembaraço aduaneiro de bem ou mercadoria importada do exterior
por conta e ordem de terceiro, o importadora deverá [...] emitir concomitantemente [...]
documento fiscal relativo à saída, sem destaque do imposto, para fins de acobertar o trânsito
até o adquirente [...]” (grifei).
Do ponto de vista imediato, é possível dizer que, ao acordar com o Estado do Espírito
Santo que as tradings capixabas devem emitir nota fiscal sem o destaque do ICMS, o Estado
de São Paulo deu cabo da situação que o afligia, em razão do que dispõe o art. 87, IV, b,
da Instrução Normativa nº 247/2002, que é o destaque do ICMS no documento fiscal das
importadoras, cujo efeito era o de gerar crédito aos contribuintes paulistas adquirentes que
participassem da operação.
E, do ponto de vista mediato, é possível dizer que, em última análise, o Estado de
São Paulo reconheceu a validade das importações por conta e ordem. Afinal, por meio do
Protocolo ICMS nº 23/09, garantiu que essa modalidade de operação tenha continuidade
jurídica entre tradings capixabas e adquirentes paulistas. O único ponto alterado se refere à
competência do Estado onde está localizado o adquirente para arrecadar o ICMS vinculado
à importação, bem como a impossibilidade de ele (o adquirente) apropriar créditos do imposto nas remessas feitas pelas importadoras.
Apesar de o Protocolo ICMS nº 23/2009 ser aplicável apenas às importações realizadas a partir do Estado do Espírito Santo, fato é que pode ser tomado como um indício das
motivações e das convicções do Fisco paulista, que, por sua vez, estão de acordo com a
interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao art. 155, § 2º, IX, a, da Constituição
da República.
1.3 Importação por encomenda: análise de case julgado no Tribunal de Impostos e Taxas de São
Paulo
Segundo consta da Instrução Normativa nº 634/2006, as importações por encomenda
são realizadas com recursos do próprio importador, jamais com recursos do encomendante,
tanto assim que o fechamento de câmbio e a remessa de numerário ao exterior devem ser
feitos pelo importador, não pelo encomendante. E o importador, por sua vez, remeterá as
mercadorias ao encomendante como revenda, ou seja, é firmada uma relação contratual
de natureza mercantil. Vejamos o que está dito no art. 1º da referida Instrução Normativa:
Art. 1º O controle aduaneiro relativo à atuação de pessoa jurídica importadora que adquire
mercadorias no exterior para revenda a encomendante predeterminado será exercido conforme o estabelecido nesta Instrução Normativa.
121
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Parágrafo único. Não se considera importação por encomenda a operação realizada com recursos do encomendante, ainda que parcialmente.
Disto se pressupõe que o importador, sendo detentor da titularidade jurídica da mercadoria importada (porque a trouxe ao País por sua própria conta), transmite a sua propriedade
ao encomendante mediante o pagamento de um preço. Caso o encomendante arque, ainda
que parcialmente, com a importação, a modalidade não será mais “por encomenda”, quiçá
por “conta e ordem de terceiros”.
Pois bem, recentemente a Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas de São
Paulo julgou caso em que o Fisco paulista entendia lhe ser devido o ICMS vinculado à importação, que, por sua vez, fora contratada pela modalidade “por encomenda” e levada a
cabo por comercial importadora localizada no Estado de Santa Catarina. Mais ainda, glosava do contribuinte paulista o crédito de ICMS apropriado na ocasião da entrada das mercadorias em seu estabelecimento. Vejamos as acusações constantes do Processo DRT-16
nº 1006005/2011:
I – INFRAÇÕES RELATIVAS AO PAGAMENTO DO IMPOSTO
1. Deixou de pagar, por meio de guia de recolhimentos especiais, o ICMS no valor de [...] devido em operação de importação de mercadorias do exterior e exigido nos termos do art. 11,
inciso I, alínea d, da Lei Complementar nº 87/1996. O ICMS é devido ao Estado de São Paulo,
em virtude da comprovação de que o destinatário físico das mercadorias é a encomendante
[...] apesar de constar como importador a empresa [...] localizada no Estado de Santa Catarina. Fica evidente que não ocorreu a entrada física das referidas mercadorias importadas do
exterior no estabelecimento do importador, condição para que o recolhimento fosse devido
ao Estado onde o “importador por encomenda” está estabelecido, Santa Catarina, visto que a
[...] localiza-se em sala comercial, conforme verificado no endereço constante da nota fiscal
de venda [...] portanto, sem condições de armazenagem de tais produtos [...]
Infringência – Art. 115, inciso I, alínea a, do RICMS (Decreto nº 45.490/2000).
Capitulação da multa: art. 527, inciso I, alínea e, c/c §§ 1º e 10º, do RICMS/2000 (Decreto nº
45.490/2000).
II – INFRAÇÕES RELATIVAS AO CRÉDITO DO IMPOSTO
2. Creditou-se indevidamente do ICMS no valor de R$ 19.773,02 (dezenove mil, setecentos
e setenta e três reais e dois centavos), em março/2008, destacado na nota fiscal mod. 1 de nº
5.237, emitida pela empresa [...] escriturada no Livro Registro de Entradas, relativa a importação que tem como destino físico o Estado de São Paulo, sem que o imposto tivesse sido pago
para este Estado no desembaraço aduaneiro [...]
Infringência – Art. 59 e art. 61 do RICMS (Decreto nº 45.490/2000).
Capitulação da multa: art. 527, inciso II, alínea j, c/c §§ 1º e 10º, do RICMS/2000 (Decreto nº
45.490/2000).
Após os trâmites processuais regulares, os autos chegaram à Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas para julgamento. Lá, o juiz relator inicialmente acolheu o en-
122
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
tendimento da Fazenda Pública e equiparou os entendimentos da importação por conta e
ordem à importação por encomenda. Vejamos:
[...] Em suma, apliquei as premissas próprias da importação “por conta e ordem de terceiros”
porque, em última análise, entendi que tal raciocínio seria aplicável a qualquer modalidade de
importação, seja ela direta, por encomenda e/ou por conta e ordem de terceiros.
Para chegar a tal conclusão, a premissa que estabeleci naquela mina primeira manifestação
girava em torno dos seguintes elementos: (i) definição do fato gerador do ICMS vinculado à
importação, que é a aquisição de mercadoria do exterior, não propriamente o desembaraço;
e (ii) embora não explícito no voto da sessão de 15.01.2013, considerei também os elementos que orbitam as regras de planejamento tributário, especialmente o propósito negocial e a
substância sobre a forma.
Realmente, quanto a este último ponto, a norma geral antielisiva disposta no art. 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, e no art. 84-A da Lei nº 6.374/1989, bem como
a regra do business purposetest (ou teste de propósito negocial) pensado pela Suprema Corte
dos EUA no caso Knetsch vs. United Estates, de 1960, oferecem algumas propostas à identificação da legitimidade de planejamentos tributários levados a cabo por contribuintes: se de
uma série de atos jurídicos realizados por um sujeito emerge a existência de uma operação
economicamente unitária, a tributação tomará em conta o resultado econômico final, não a
estrutura formal escolhida pelo particular, de modo a ser homenageada a utilidade negocial
dos atos individuais.
No presente caso entendi que, se em última instância o contribuinte paulista seria o adquirente
das mercadorias importadas (tanto que já consta como tal na Declaração de Importação, conforme arts. 2º e 3º da Instrução Normativa nº 634/2006), então este resultado econômico final
é que deveria ser considerado para se compreender qual a tributação do ICMS incidente sobre
a importação em questão, não os vários atos que o antecederam [...].
Entretanto, posteriormente o mesmo juiz modificou o seu voto em razão das incontroversas diferenças entre as modalidades de importação em questão, e, consequentemente,
entendeu ser indevida a cobrança levada ao fim e ao cabo pelo Fisco paulista. Segue trecho
relevante da decisão aqui comentada:
[...] Ora, se é a importadora quem adquire a propriedade de mercadoria do exterior, então ela
(a importadora) é quem dá cabo do real fato gerador do ICMS. Logo, o resultado econômico
final a ser considerado, na modalidade de importação “por encomenda”, é a aquisição da
mercadoria pela importadora, não sua posterior revenda ao encomendante, porquanto são
fatos geradores distintos e regulamentados por regras de incidências distintas. Admitir o contrário seria negar vigência aos efeitos da própria importação “por encomenda”, o que não é
admissível pelo fato de estar prevista em legislação aduaneira.
Portanto, sendo essas as premissas válidas ao presente caso, é intuitivo concluir que o ICMS
vinculado à importação é devido ao Estado de Santa Catarina, não ao Estado de São Paulo.
Mais ainda, se a relação jurídica estabelecida entre a importadora e a recorrida é de natureza
mercantil, então não há como se manter a glosa do crédito quista pelo Fisco paulista, justamente porque fora apropriado a partir da entrada de mercadoria no estabelecimento decorrente de uma compra para revenda [...].
123
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Tal decisão se saiu vencedora na Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas de
São Paulo e, tudo indica, será o posicionamento a ser firmado em casos semelhantes.
CONCLUSÃO
Apesar de o tema não ter sido enfrentado pelos Tribunais Superiores do Poder Judiciário, tudo indica que a jurisprudência administrativa se inclinará ao fato de que, nas
importações por encomenda, o Estado competente a cobrar o ICMS vinculado à importação
é aquele onde se localiza a comercial importadora, não o adquirente das mercadorias.
Isto se deve às claras e indeléveis diferenças entre os regimes de importação por conta
e ordem de terceiros e por encomenda. Resta saber se a posição firmada pelo Tribunal de
Impostos e Taxas de São Paulo será seguida pelos demais órgãos de julgamento administrativo do País, bem como pelo Poder Judiciário.
124
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Doutrina
Importação por Conta e Ordem de Terceiros: Teoria e Prática
EDUARDO NAVARRO BEZERRA
Advogado, Especialista em Direito Tributário pelo IBET.
RESUMO: O presente artigo possui o objetivo de expor a regulamentação imposta pelo ordenamento brasileiro
em face da modalidade de operação no comércio exterior, na qual os importadores se utilizam de terceiros
(usualmente tradings) para realizar as suas operações. Aborda as características da importação por conta e
ordem de terceiro, enfatiza a tônica do risco envolvido na operação, analisa o critério do adiantamento de
recursos erigido pelo legislador para fazer presumir a operação desta natureza e, ao final, oferece um conceito
ao instituto.
PALAVRAS-CHAVE: Importação; conta e ordem; presunção legal; conceito.
ABSTRACT: This article has aimed to expose the regulations imposed by the Brazilian legal system in light of
the mode of operation in foreign trade, in which importers usually uses a third party (commonly trading companies) to conduct its operations. Discusses the characteristics of import by account and order of third parties,
emphasizes the tonic of the risk involved in this kind of operation, examines the advance resource erected by
the legislature to assume the operation of this nature and, finally, offers a concept to the institute.
KEYWORDS: Import; account and order; legal presumption; concept.
SUMÁRIO: 1 Contextualização do tema; 2 Breve histórico; 3 Importação por conta e ordem de terceiros: construindo um conceito; 4 A norma que estipula a presunção em favor do Fisco; 5 A conclusão crítica.
1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA
Certa vez, recebi em meu escritório um potencial cliente que, ao sentar-se à mesa de
reuniões, passou a descrever o problema que a Receita Federal do Brasil estava causando ao
seu projeto de revender mercadorias importadas. Narrou ser industrial de longa data e que vislumbrou a hipótese de expandir os seus negócios importando alguns produtos que não possui
fabricação própria. Para tanto, foi à China, onde encontrou um fornecedor e, retornando ao
Brasil, ofereceu o produto aos seus clientes, o qual teve grande receptividade no mercado
e de plano foi objeto de diversos pedidos de compra, para os quais foi exigida uma parcela
do valor como sinal de negócio.
Na época em que houve a presença de carga e o consequente registro da primeira
declaração de importação por parte daquela empresa, estava em vigor a IN 206/2002, a
qual prontamente serviu de fundamento para a instauração do procedimento especial de
125
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
verificação aduaneira com lastro em suspeitas de ocultação do real adquirente das mercadorias.
Após ouvir esta breve narrativa, expliquei que, sob os olhos da Receita Federal do
Brasil, por existir antecipação de recursos, a operação dele se qualificaria como “por conta
e ordem de terceiros” e, portanto, estaria sujeita a diversos deveres formais, os quais não
foram cumpridos. E, ainda, que a legislação prevê a pena de perdimento da mercadoria importada para o caso de descumprimento daqueles deveres.
Neste exato momento, este senhor olhou nos meus olhos e perguntou, com aspecto
severo: Você está querendo me dizer que eu não posso vender minhas mercadorias antes
de tê-las no meu estoque? A minha empresa tem mais de 20 anos de mercado e eu nunca
ouvir falar de uma coisa dessas. Você não sabe o que fala... E, com isso, imbuído de uma
indignação extrema, retirou-se do ambiente.
Esta breve história foi narrada com o objetivo de evidenciar que, muito embora não
seja um arcabouço legislativo novo, o tema ainda permanece desconhecido de muitos, ou,
ao menos, carece de um entendimento comum com relação aos seus conceitos e às suas
consequências, com os quais se pretende trabalhar no presente artigo.
2 BREVE HISTÓRICO
É de conhecimento geral que a carga tributária em nosso País é extremamente elevada
e sobreonera tanto o cidadão quanto o empresário, de sorte que há uma tendência natural
pela busca de meios que objetivam reduzir o impacto dos tributos nas operações, sem,
contudo, cair na ilegalidade. É o que se chama, em linguagem comum, de planejamento
tributário “legal” ou elisão tributária.
A busca por caminhos legais para reduzir a carga tributária faz parte de todos os ramos
da sociedade civil, existindo, inclusive, profissionais especializados na busca destes caminhos.
E no comércio exterior nunca foi diferente. O importador sempre procurou uma forma
de abrandar a tributação que sofre, seja para tornar-se mais competitivo com relação aos
concorrentes nacionais, seja simplesmente para acrescer lucratividade ao seu negócio.
No que tange aos planejamentos voltados ao comércio exterior, os importadores foram extremamente felizes na elaboração dos seus projetos, eis que perceberam que, caso
criassem uma segunda pessoa jurídica com o fito exclusivo de importar as suas mercadorias,
interpondo-a entre a etapa de importação e distribuição, lograriam “quebrar” a cadeia do IPI
e, com isso, desonerar a margem agregada na revenda das mercadorias da incidência deste
tributo.
126
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Isso se faz possível em razão de a legislação1 equiparar a industrial, para fins de incidência do IPI, a pessoa do “importador”, o qual se qualifica como a pessoa jurídica que
realiza, em seu nome, a importação de mercadorias. Assim, ao valer-se da interposição de
terceira pessoa como importador e passar a atuar como mero distribuidor de mercadoria
importada, este empresário estaria à margem da equiparação a industrial estipulada pelo
legislador e, com isso, esquivava-se da incidência do IPI na operação de revenda das mercadorias importadas, sem, contudo, infringir qualquer dispositivo legal.
É evidente que a Receita Federal do Brasil, em sua posição de guardiã do Erário, não
se conformou com o planejamento que estava sendo adotado pelos importadores. Especialmente porque se viu de mãos atadas, nada podendo fazer contra esse planejamento, que,
como não infringia a legislação (apenas adicionava mais um interveniente na operação de
comércio exterior), dificilmente era considerara ilegal e inválida tanto pelos julgadores administrativos quanto pelos judiciais.
Diante desta circunstância, o Presidente da República, imbuído no objetivo de estancar a sangria de recursos causada por este planejamento tributário, por medida provisória,
inseriu no ordenamento verdadeira norma antielisiva, por meio da qual inseriu um regramento para a terceirização das importações e determinou a equiparação de ambos, importador e revendedor (adquirente), a industrial para fins de incidência do IPI2.
Assim nasceu a “importação por conta e ordem” no Brasil. Com uma medida provisória
editada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, a qual, com o fito de aniquilar
o planejamento tributário largamente utilizado por corporações importadoras, estipulou a
equiparação a industrial também dos “adquirentes” de mercadorias importadas.
3 IMPORTAÇÃO POR CONTA E ORDEM DE TERCEIROS: CONSTRUINDO UM CONCEITO
O contexto histórico em que o regramento da importação por conta e ordem de terceiros foi inserido em nosso ordenamento faz emergir uma inegável, embora nunca confessada, conclusão: apesar de existir uma vasta gama de argumentos que são lançados para
defender a existência da figura da importação por conta e ordem de terceiros no Brasil, tais
como a transparência e visibilidade dos operadores e intervenientes no comércio exterior,
1 Lei nº 4.502, de 1964:
“Art. 4º Equiparam-se a estabelecimento produtor, para todos os efeitos desta Lei:
I – os importadores e os arrematantes de produtos de procedência estrangeira;
[...]”
2 Medida Provisória nº 2.158, de 2001:
“Art. 79. Equiparam-se a estabelecimento industrial os estabelecimentos, atacadistas ou varejistas, que adquirirem
produtos de procedência estrangeira, importados por sua conta e ordem, por intermédio de pessoa jurídica importadora.
Art. 80. A Secretaria da Receita Federal poderá:
I – estabelecer requisitos e condições para a atuação de pessoa jurídica importadora por conta e ordem de terceiro; e
II – exigir prestação de garantia como condição para a entrega de mercadorias, quando o valor das importações for
incompatível com o capital social ou o patrimônio líquido do importador ou do adquirente.”
127
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
evitar a lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas, reduzir as burlas e aumentar a precisão do processo de parametrização das declarações aduaneiras e habilitação para operar
no comércio exterior, entre outras usualmente empregadas pelo Fisco, a realidade encoberta por trás destas justificas é uma só. Todo o regramento da importação por conta e ordem
de terceiro existe para garantir a arrecadação integral dos tributos aduaneiros. Isto é, para
evitar que os planejamentos impactem na arrecadação do Fisco Federal.
O problema é que a Medida Provisória nº 2.158, de 2001, não definiu o que é “importação por conta e ordem de terceiros”, delegando tal função à RFB, que deveria fazê-lo por
meio de instrução normativa.
Atribuição esta que rapidamente foi exercida pela RFB, a qual imediatamente publicou
a IN SRF 225, de 2002, a qual traz, no bojo o parágrafo único do seu art. 1º, uma definição
da operação por conta e ordem de terceiros, assim vazada:
Art. 1º O controle aduaneiro relativo à atuação de pessoa jurídica importadora que opere por
conta e ordem de terceiros será exercido conforme o estabelecido nesta Instrução Normativa.
Parágrafo único. Entende-se por importador por conta e ordem de terceiro a pessoa jurídica
que promover, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria adquirida
por outra, em razão de contrato previamente firmado, que poderá compreender, ainda, a
prestação de outros serviços relacionados com a transação comercial, como a realização de
cotação de preços e intermediação comercial.
Sobressai, da compreensão e integração deste enunciado regulamentar com o ordenamento, que a tônica dessa modalidade consiste na intermediação do negócio internacional.
Equivale a dizer que, na importação por conta e ordem de terceiro, o importador figura na
operação como mero intermediário que não influi na negociação entre o vendedor e o comprador, apenas procede em seu nome o despacho aduaneiro necessário à nacionalização
das mercadorias, prestando eventualmente outros serviços acessórios à importação, mas
sempre com recursos do adquirente.
Implicação imediata desse conceito ecoa na caracterização do risco como fator determinante para o quadramento da operação de comércio exterior. O risco – aqui entendido
na acepção econômica, administrativa e social – na operação por conta e ordem é exclusivo
da adquirente das mercadorias. Eventuais dificuldades comerciais, à guisa de exemplo, na
revenda das mercadorias em nada afetam a relação do importador, a quem incumbe executar os serviços de auxílio na importação.
Faz-se indispensável, portanto, que o interesse na importação seja exclusivo do adquirente (importação por sua ordem). Isso significa que é o adquirente quem possui contato
com o fornecedor, quem realiza a negociação, decide o preço e a forma de pagamento,
estipula as características do produto, enfim, é o adquirente quem comanda a importação,
de sorte que somente terceiriza a realização dos trâmites burocráticos que envolvem o processo de importação.
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Dito de outro modo, qualquer fator que influa no negócio, desde o perecimento, a
desvalorização, a inflação, a estagnação do mercado, etc., não afetará os negócios do importador, mas somente do adquirente das mercadorias, que é aquele que assume, para si, o
risco da operação.
Além de assumir para si o risco da operação, para que o sujeito seja classificado como
adquirente de uma operação por sua conta e ordem, necessário se faz que a operação seja
arcada às suas expensas. Isto é, mister se faz que o adquirente suporte, mesmo que parcialmente, os encargos financeiros inerentes à importação em voga (câmbio, frete, seguro,
tributos, entre outros).
Por estes trilhos já se faz possível observar a existência de dois fatores preponderantes
para a qualificação desta espécie de operação: tanto o mando e risco quanto o suporte financeiro devem ser provenientes do terceiro adquirente, e não do importador.
É correto concluir, portanto, que a própria expressão “conta e ordem” indica a necessidade da conjunção dos dois fatores para que se caracterize essa modalidade de importação.
Dito de outro modo, não basta que a operação seja por conta do terceiro (suporte financeiro), é indispensável que ocorra também por ordem deste (iniciativa e risco).
Salta aos olhos, portanto, que somente haverá uma importação por conta e ordem de
terceiros na hipótese de estarem presentes, concomitantemente, por um lado as circunstâncias que denotem a existência de que o mando e o risco da operação são exclusivos do
adquirente (ordem) e, por outro lado, for possível verificar a existência de suporte financeiro
proveniente do terceiro.
A síntese conclusiva da qualificação de uma operação por conta e ordem de terceiros
pode ser traduzida na afirmação de que, se ausente a vontade do adquirente, o importador
não teria interesse em promover aquela importação. Isso porque provavelmente não teria
conhecimento da cadeia de produção do bem a ser importado, dos fornecedores e das margens de negociações e, principalmente, porque não possui o conhecimento do mercado
nacional inerente àquele produto que está importando.
4 A NORMA QUE ESTIPULA A PRESUNÇÃO EM FAVOR DO FISCO
Nada obstante a essa realidade, alicerçada exclusivamente na constatação de que a
utilização de recursos do adquirente é prova de que o procedimento se realizou à ordem
de um terceiro, o legislador positivou regra presuntiva, segundo a qual resta configurada a
importação por conta e ordem de terceiro sempre que a operação for realizada com recursos, mesmo que parciais, do adquirente. É o que nos revela a norma jurídica que emerge do
enunciado inserido no art. 27 da Lei nº 10.637, de 20023.
3 “Art. 27. A operação de comércio exterior realizada mediante utilização de recursos de terceiro presume-se por conta e
ordem deste, para fins de aplicação do disposto nos arts. 77 a 81 da Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto
de 2001.”
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Não há como negar, com efeito, que a utilização de recursos financeiros do adquirente
é característica inseparável dessa modalidade, de sorte que, à luz da técnica jurídica, a
presunção consubstanciada nessa norma se revela válida, conquanto que na maior parte
das vezes se mostra verdadeira.
É de suma importância destacar, contudo, que a existência de recursos de terceiros
na operação é indício, e não prova inequívoca, de que se trata de importação por conta e
ordem de terceiro. Vale dizer que é falsa a seguinte constatação logicamente sistematizada:
“Existência de recursos de terceiros é igual a importação por conta e ordem de terceiro”.
Isso porque, na prática, sempre que há operação por conta e ordem, a antecipação de
recursos está presente. No entanto, a existência de antecipação de recursos (por si) denota
uma conta e ordem.
Essa constatação decorre do conceito antes relatado, por meio do qual se verificou que
a importação por conta e ordem é algo mais abrangente do que a simples utilização dos recursos do terceiro. Ela demanda que a operação seja também por ordem deste. Isso significa
que, sem a intenção do adquirente, o importador jamais promoveria a importação, posto
que não possuiria interesse algum nas mercadorias. Ou seja, o ânimo de importar deve ser
originado do terceiro, e nunca do operador de importação.
Não se pretende negar que a prova da existência de antecipação de recursos – que
é prova direta da “conta de terceiro” – autoriza a presumir, por determinação legal, que a
operação também tenha sido realizada também à ordem deste.
O que não pode prevalecer é o entendimento desta regra presuntiva em um caráter
absoluto, que nega o direito do importador de demonstrar que, muito embora tenha recebido recursos dos seus clientes, manteve para si todo o domínio da cadeia de importação, de
sorte que manteve reserva dos seus fornecedores, parâmetros de negociação e formação de
preço e demais fatores determinantes da operação.
Tal constatação é alçada em destaque para esclarecer que a demonstração de que a
operação não transcorreu por ordem de um terceiro possui o condão de derruir a presunção
legal, eis que se consubstancia em prova direta acerca da inexistência de operação por conta e ordem do terceiro.
Denota-se, com isso, a importância de se realizar um corte metodológico durante o
processo de aplicação do direito, para que sejam afastadas as margens de imprecisões que
podem distorcer o resultado e, com isso, evitar que o todo (a importação por conta e ordem
de terceiro) seja definido pela parte (importação por conta de terceiro), exclusivamente em
razão de uma técnica de presunção legal que, em última análise, traduz-se em mera ferramenta probatória, e não definição legal de um instituto muito mais amplo pertencente ao
direito aduaneiro.
Isso porque é perfeitamente possível se deparar com uma operação em que o importador mantém para si todo o risco da operação (sem abrir fornecedor e condições de nego-
130
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
ciação), forma o seu preço de revenda (usualmente com margem de lucro compatível com
a operação comercial), porém, por especificidades do negócio (equipamentos de alto valor,
por exemplo), exige um sinal para iniciar a importação.
Situação desse jaez reflete caso típico em que, mesmo diante de fatos que não denotam uma operação por conta e ordem (porque a operação, muito embora tenha sido suportada parcialmente pelo adquirente, continua sendo por conta exclusiva do importador, que
mantém para si o risco da operação), a importação poderia ser objeto de perdimento com
base na regra presuntiva em tela.
O que é necessário refletir (e por isso analisar a norma de forma crítica) é que se, por
um lado, esta presunção se revela verdadeira em muitos casos, por outro, não se pode perder de vista que ela não é absoluta e deve admitir prova em contrário.
Nada obstante à necessária reflexão e consequente necessidade de aplicação desta
norma de forma comedida, o dia a dia dos operadores do comércio exterior revela uma
situação em que a presunção em tela é aplicada pela Receita Federal do Brasil de forma
absoluta e indiscriminada aos processos em que logra identificar a existência de recursos
antecipados ao importador.
De fato, vige na administração alfandegária entendimento deveras distorcido acerca
do instituto da conta e ordem de terceiros, reduzindo-o em tudo e por tudo à existência de
antecipação, mesmo que parcial, de recursos.
Isso porque a experiência nos evidencia que, no ponto de vista da administração aduaneira, sendo provada a existência de qualquer valor a título de antecipação de recursos (por
meio dos extratos bancários ou anotações contábeis), está provada a operação por conta e
ordem, a qual, se não estiver devidamente declarada, desencadeará o alvejamento da mercadoria pela pena de perdimento.
Cumpre frisar que a aplicação indiscriminada da norma presuntiva em tela simplesmente ignora questões peculiares dos diversos segmentos empresariais e dispensa qualquer
aprofundamento relacionado ao risco da operação, ou a mando de quem a importação estaria ocorrendo, distanciando-se do verdadeiro conceito de importação por conta e ordem
de terceiros.
5 A CONCLUSÃO CRÍTICA
É evidente que a construção interpretativa que generaliza a presunção legal e a alça
ao patamar de prova exclusiva de uma operação por conta e ordem de terceiros contém
equívocos conceituais dotados de elevado poder destrutivo para a classe importadora.
Embora não seja possível generalizar e atribuir a todos os agentes administrativos o
fardo de ter nutrido uma cultura contrária à importação, um dos grandes vetores que impulsionou este cenário consiste no fato de ser dado à autoridade administrativa o poder
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
administrativo de interpretar e aplicar a norma conforme lhe convém. E quando a decisão
é por punir, o importador certamente enfrentará um enorme prejuízo e aguardará um longo
período para, quiçá, ter a decisão anulada pelo Poder Judiciário.
Quando isso ocorre, os danos ao importador são imensos. A começar pelo processo de
investigação, que dificilmente dura menos de 3 meses. Período este em que a mercadoria
fica armazenada em recinto alfandegado, onde os custos são altíssimos, com a armazenagem e eventual demurrage.
Findo o processo de fiscalização, caberá ao importador socorre-se ao Judiciário para
anular a pena imposta pela fiscalização. E, nesta fase, a luta também é inglória. Primeiramente, porque raramente a Justiça Federal defere liminar (ou antecipação da tutela) para
liberar mercadorias sem prestação de garantia em dinheiro. Ou seja, ou o importador possui
lastro para garantir o juízo, ou continuará amargando os prejuízos até uma decisão que lhe
seja favorável.
Lutar por uma suposta ilegalidade ou inconstitucionalidade do sistema que normatiza
a operação por conta e ordem de terceiro (inconstitucionalidade da pena de perdimento,
impossibilidade de regulamento autônomo, por serem normas de conduta criadas por instrumentos infralegais – instruções normativas), também não surtem efeitos em nossos tribunais.
A única chance que o importador possui, para reverter uma situação dessa natureza,
reside em produzir provas extremamente robustas, no sentido de que domina completamente a operação de importação, reservando para si, como segredo de negócio, todas as
cadeias do negócio, desde os dados do fornecedor, a negociação, a formação de preço e
outros fatores determinantes à gestão de uma operação de comércio exterior.
Enfim, como nem sempre é fácil produzir um arsenal probatório com esta profundidade, um vez que muitas vezes as negociações com exportadores são feitas por correspondências eletrônicas ou telefonemas, a recomendação ao importador é a de sempre prevenir-se
e evitar, ao máximo, sujeitar-se à hipótese de incidência da regra que autoriza a presumir a
fraudulência da operação, isto é, nunca receber valores antecipadamente dos seus clientes.
132
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Acórdão na Íntegra
10893
Supremo Tribunal Federal
11.03.2014
Segunda Turma
AgRg no Recurso Extraordinário com Agravo nº 778.586
Minas Gerais
Relatora: Min. Cármen Lúcia
Agte.(s): Telvent Brasil S/A
Adv.(a/s): Tiago Nasser Santos e outro(a/s)
Agdo.(a/s): Estado de Minas Gerais
Proc.(a/s)(es): Advogado-Geral do Estado de Minas Gerais
EMENTA
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO – TRIBUTÁRIO – IMPOSTO SOBRE
CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ICMS – IMPORTAÇÃO – SUJEITO ATIVO – ESTADO DESTINATÁRIO
DO BEM IMPORTADO – PRECEDENTES – AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal
Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência da Ministra Cármen Lúcia, na conformidade
da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade, em negar provimento ao
agravo regimental, nos termos do voto da Relatora.
Brasília, 11 de março de 2014.
Ministra Cármen Lúcia – Relatora
RELATÓRIO
A Senhora Ministra Cármen Lúcia (Relatora):
1. Em 21 de novembro de 2013, neguei seguimento ao agravo nos autos do recurso extraordinário interposto por Telvent Brasil S/A contra julgado do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, o qual manteve sentença que determinara à empresa intermediária o pagamento do
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS ao Estado destinatário do bem
importado. A decisão agravada teve a seguinte fundamentação:
“5. Razão jurídica não assiste à Agravante.
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
6. O Supremo Tribunal assentou que o ICMS é devido ao Estado do destinatário jurídico da
importação:
‘AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO – TRIBUTÁRIO – ICMS – IMPORTAÇÃO – SUJEITO ATIVO – ESTADO-MEMBRO ONDE ESTIVER SITUADO O DOMICÍLIO
OU O ESTABELECIMENTO DO DESTINATÁRIO DA MERCADORIA – ART. 155, § 2º, INCISO IX, ALÍNEA A, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – AÇÃO RESCISÓRIA – PRESSUPOSTOS
– LIMITES DA COISA JULGADA – MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL – OFENSA REFLEXA
– DECISÃO QUE SE MANTÉM POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS – 1. O sujeito ativo
do ICMS é o Estado onde está domiciliado o estabelecimento destinatário do bem importado.
Precedentes: ARE 642.416-AgR, 2ª T., Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 17.08.2011; AI 816.070AgR, 1ª T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Je de 01.02.2011; RE 590.243-AgR, 1ª T., Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, DJe 13.11.2009 e RE 598.051-AgR, 2ª T., Rel. Min. Eros Grau,
DJe 29.05.2009.’
(AI 832.278-AgR, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, DJe 01.07.2013)
[...]
7. O Tribunal a quo concluiu que o Estado do destinatário jurídico da importação é Minas
Gerais.
Concluir de forma diversa da que assentada pelo Tribunal de origem demandaria o reexame do
conjunto fático-probatório constante do processo, o que inviabiliza o recurso extraordinário.
Incide a Súmula nº 279 deste Supremo Tribunal:
‘DIREITO TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL – MANDADO DE SEGURANÇA – DEFINIÇÃO DA AUTORIDADE COATORA – MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL – SÚMULA
STF Nº 279 – ICMS – IMPORTAÇÃO DE MERCADORIA – FATO GERADOR – COBRANÇA
POR OCASIÃO DO DESEMBARAÇO ADUANEIRO – LEGITIMIDADE – SÚMULA STF Nº
661 – 1. O Tribunal de origem, com fundamento no conjunto fático-probatório dos autos,
verificou a ocorrência de equívoco na indicação da autoridade coatora pelo impetrante.
Incide, na espécie, o óbice da Súmula STF nº 279. 2. O Supremo Tribunal Federal entende
que o fato gerador do ICMS sobre a aquisição de mercadorias importadas do exterior é o
desembaraço aduaneiro, o que autoriza a cobrança do ICMS nesse momento. Incidência da
Súmula STF nº 661. 3. O destinatário da mercadoria tem domicílio no mesmo Estado onde
se deu o desembaraço aduaneiro, motivo por que não se aplica o entendimento consagrado
nesta Corte segundo o qual o sujeito ativo da relação tributária do ICMS é o Estado onde está
domiciliado o estabelecimento destinatário do bem, pois essa última hipótese refere-se à definição do local da ocorrência do fato gerador quando o desembaraço aduaneiro é realizado
em Estado diverso daquele onde estiver domiciliado o destinatário jurídico da mercadoria.
4. Agravo regimental a que se nega provimento’
(AI 816.953-AgR, 2ª T., Relª Min. Ellen Gracie, DJe 18.08.2011)
[...]
Nada há a prover quanto às alegações da Agravante.
8. Pelo exposto, nego seguimento ao agravo (art. 544, § 4º, inc. II, alínea a, do Código de Processo Civil e art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal).”
134
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
2. Publicada essa decisão no DJe de 02.12.2013, interpõe Telvent Brasil S/A, em
05.12.2013, tempestivamente, agravo regimental.
3. A Agravante afirma:
“o caso em tela não trata de importação indireta, procedimento em que há um intermediador
que realiza tão somente a circulação física de mercadoria. Definitivamente não! Na presente
demanda, indubitável que o estabelecimento de São Paulo realizou toda operação de importação, deu entrada em seu estoque para depois realizar a saída à Agravante, hipótese prevista
como fato gerador do ICMS, nos termos do art. 12, I, da LC 87/1996. Note-se que são duas
operações bastante distintas. Na chamada importação indireta, existe uma trading que se interpõe ou como prestadora de serviço ou como uma empresa a quem se encomenda certa
mercadoria. Aqui a modalidade é de importação direta com saída interestadual posterior”.
Sustenta:
“o Supremo Tribunal Federal esgotou esse assunto e perfilhou seu entendimento no sentido de
que é devido o ICMS ao Estado em que se situa o estabelecimento importador, por ser esse o
destinatário jurídico da importação, e ainda distinguiu de forma notável, que a operação de
importação não se confunde com posterior operação, que no caso concreto, é de compra e
venda no mercado interno. Nesse sentido, o ICMS da importação destinado aos cofres de São
Paulo pela filial de São Paulo foi corretamente recolhido, não cabendo ao Estado de Minas
Gerais dizer que o ICMS da importação lhe seja devido, sendo que o estabelecimento situado
em seu território adquiriu uma mercadoria já nacionalizada”.
Requer a reconsideração da decisão agravada ou o provimento do presente recurso.
É o relatório.
VOTO
A Senhora Ministra Cármen Lúcia (Relatora):
1. Razão jurídica não assiste à Agravante.
2. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve sentença proferida nos termos
seguintes:
“da cópia do documento de fls. 41, apresentados pela apelante, consta que as mercadorias,
procedentes de Madri/Espanha, destinavam-se ao sistema de controle de tráfego rodoviário de
Belo Horizonte, não havendo dúvidas de que destinavam-se a Belo Horizonte. O ICMS decorrente das mercadorias importadas pela apelante é devido não ao Estado no qual foi realizado o
desembaraço aduaneiro, mas ao Estado de Minas Gerais, destinatário das mercadorias importadas, estando correta a autuação objeto dos presente embargos. [...] Tem-se, portanto, que,
segundo a legislação em vigor, o contribuinte responsável pela obrigação tributária, tratando-se de operação de importação como a descrita nos autos, será aquele ao qual se destina,
fisicamente, a mercadoria importada. No caso, embora as mercadorias tenham sido importa-
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
das pela filial da apelante estabelecida em São Paulo, foram elas imediatamente transferidas
para a embargante, localizada em Minas Gerais. O fato de a filial da apelante estar situada no
Estado de São Paulo é irrelevante, pois atuou como mera intermediária, e, tão logo recebeu
os sistemas importados, remeteu-os à apelante que, desde o início, era a destinatária deles.
Os documentos existentes mostram que a Telvent Brasil S.A. Localizada em São Paulo, não
agiu, no caso dos autos, como comerciante doa de sua vontade, mas sim como intermediária
da apelante, importando as mercadorias para remetê-las ao estabelecimento da executada”
(grifos nossos).
Como afirmado na decisão agravada, o acórdão recorrido está em harmonia com a
jurisprudência deste Supremo Tribunal:
“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO – TRIBUTÁRIO – ICMS – IMPORTAÇÃO – SUJEITO ATIVO – ESTADO-MEMBRO ONDE ESTIVER SITUADO O DOMICÍLIO
OU O ESTABELECIMENTO DO DESTINATÁRIO DA MERCADORIA – ART. 155, § 2º, INCISO IX, ALÍNEA A, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – AÇÃO RESCISÓRIA – PRESSUPOSTOS
– LIMITES DA COISA JULGADA – MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL – OFENSA REFLEXA
– DECISÃO QUE SE MANTÉM POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS – 1. O sujeito ativo
do ICMS é o Estado onde está domiciliado o estabelecimento destinatário do bem importado.
Precedentes: ARE 642.416-AgR, 2ª T., Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 17.08.2011; AI 816.070AgR, 1ª T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 01.02.2011; RE 590.243-AgR, Rel. Min.
Ricardo Lewandowski, 1ª T., DJe 13.11.2009 e RE 598.051-AgR, Rel. Min. Eros Grau, 2ª T.,
DJe 29.05.2009. [...] 5. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(AI 832.227-AgR, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, DJe 01.07.2013, grifos nossos)
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO – TRIBUTÁRIO – IMPOSTO
SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ICMS – IMPORTAÇÃO – SUJEITO ATIVO DA RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA – ESTADO EM QUE ESTABELECIDO O
DESTINATÁRIO JURÍDICO DA MERCADORIA – 2. RESERVA DE PLENÁRIO – AUSÊNCIA
DE CONTRARIEDADE AO ART. 97 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – PRECEDENTES –
AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.”
(RE 601.055-AgR-segundo, 1ª T., de minha relatoria, DJe 13.04.2011, grifos nossos)
“Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. 2. Tributário. ICMS. Importação. 3.
Sujeito ativo. estado-membro em que localizado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário jurídico da mercadoria importada, independentemente de onde ocorra o desembaraço
aduaneiro. 4. Incidência da Súmula nº 279. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(ARE 642.416-AgR, 2ª T., Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 17.08.2011, grifos nossos).
“ICMS INCIDENTE SOBRE MERCADORIAS IMPORTADAS – FATO GERADOR – ELEMENTO
TEMPORAL – CF/1988, ART. 155, § 2º, IX, A
Afora o acréscimo decorrente da introdução de serviços no campo da abrangência do imposto
em referência, até então circunscrito à circulação de mercadorias, duas alterações foram feitas
pelo constituinte no texto primitivo (art. 23, § 11, da Carta de 1969), a primeira, na supressão
das expressões: ‘a entrada, em estabelecimento comercial, industrial ou produtor, de merca-
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
doria importada do exterior por seu titular’; e, a segunda, em deixar expresso caber ‘o imposto
ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria’. Alterações que
tiveram por conseqüência lógica a substituição da entrada da mercadoria no estabelecimento
do importador para o do recebimento da mercadoria importada, como aspecto temporal do
fato gerador do tributo, condicionando-se o desembaraço da mercadoria ou do bem importado ao recolhimento, não apenas dos tributos federais, mas também do ICMS incidente sobre
a operação. Legitimação dos Estados para ditarem norma geral, de caráter provisório, sobre a
matéria, de conformidade com o art. 34, § 8º, do ADCT/1988, por meio do Convênio ICM nº
66/1988 (art. 2º, I) e, consequentemente, do Estado de São Paulo para fixar o novo momento
da exigência do tributo (Lei nº 6.374/1989, art. 2º, V). Acórdão que, no caso, não dissentiu
dessa orientação. Recurso não conhecido.”
(RE 144.600, Redator para o acórdão o Ministro Ilmar Galvão, Plenário, DJ 21.11.1997, grifos
nossos)
3. Ademais, como também afirmado na decisão agravada, concluir de forma diversa
quanto ao destinatário da mercadoria importada demandaria o reexame das provas analisadas pelo Tribunal a quo, procedimento que não pode ser adotado em recurso extraordinário.
Incide na espécie a Súmula nº 279 do Supremo Tribunal Federal:
“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO – TRIBUTÁRIO – ICMS – IMPORTAÇÃO – SUJEITO ATIVO – ESTABELECIMENTO JURÍDICO DO IMPORTADOR – PRECEDENTES – ‘IMPORTAÇÃO INDIRETA’
Súmula nº 279/STF. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de
que o sujeito ativo da relação jurídico tributária do ICMS é o Estado onde estiver situado o
domicílio ou o estabelecimento do destinatário jurídico da mercadoria (alínea a do inciso IX
do § 2º do art. 155 da Magna Carta de 1988), pouco importando se o desembaraço aduaneiro
ocorreu por meio de ente federativo diverso. 2. Incidência da Súmula nº 279/STF. 3. Agravo
regimental desprovido.”
(RE 555.654-AgR, 2ª T., Rel. Min. Ayres Britto, DJe 16.12.2011)
“PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL – AGRAVO – RAZÕES DE AGRAVO DISSOCIADAS DO QUADRO EXAMINADO – INÉPCIA – 1. É inepto o recurso de agravo que narra
quadro incompatível com as premissas fáticas assentadas na inicial, no acórdão recorrido
e nas razões de recurso extraordinário. Possibilidade de erro material considerada, consistente na indicação do Estado do Espírito Santo como local de importação dos bens, enquanto a inicial, o acórdão recorrido e o recurso extraordinário falam no Estado de São Paulo.
CONSTITUCIONAL – IMPOSTO SOBRE OPERAÇÃO DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS
E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO E DE TRANSPORTE INTERMUNICIPAL
E INTERESTADUAL – ICMS – IMPORTAÇÃO – SUJEIÇÃO ATIVA – REAL DESTINATÁRIO
JURÍDICO DA OPERAÇÃO – ART. 155, § 2º, IX, A DA CONSTITUIÇÃO – OPERAÇÃO DE
IMPORTAÇÃO POR ENCOMENDA VERSUS OPERAÇÃO DE IMPORTAÇÃO POR CONTA
E ORDEM DE TERCEIROS – CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA DADA AO QUADRO FÁTICO
COERENTE – RECURSO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO – 2. Nos termos de orientação
firmada pelo Supremo Tribunal Federal, o sujeito ativo do ICMS devido nas operações de
137
Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
importação é o ente federado em que localizado o real destinatário jurídico da mercadoria.
Quadro fático em que evidenciado o Estado de Minas Gerais como sede do estabelecimento
recipiente da mercadoria. Agravo regimental ao qual se nega provimento.”
(RE 445.544-AgR, 2ª T., Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 06.05.2010, grifos nossos)
4. Os argumentos da Agravante, insuficientes para modificar a decisão agravada,
demonstram apenas inconformismo e resistência em pôr termo a processos que se arrastam
em detrimento da eficiente prestação jurisdicional.
5. Pelo exposto, nego provimento ao agravo regimental.
SEGUNDA TURMA
EXTRATO DE ATA
AgRg no Recurso Extraordinário com Agravo nº 778.586
Proced.: Minas Gerais
Relatora: Min. Cármen Lúcia
Agte.(s): Telvent Brasil S/A
Adv.(a/s): Tiago Nasser Santos e outro(a/s)
Agdo.(a/s): Estado de Minas Gerais
Proc.(a/s)(es): Advogado-Geral do Estado de Minas Gerais
Decisão: A Turma, por votação unânime, negou provimento ao agravo regimental, nos
termos do voto da Relatora. 2ª Turma, 11.03.2014.
Presidência da Senhora Ministra Cármen Lúcia. Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Teori Zavascki.
Subprocurador-Geral da República, Dr. Odim Brandão Ferreira.
Ravena Siqueira
Secretária Substituta
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Ementário
10894 – Cofins – importação – PIS – empresa optante pelo Simples – isenção – não cabimento
“Tributário. Agravo regimental no recurso especial. PIS-importação. Cofins-importação. Lei nº 9.317/1996.
Simples. Isenção. Não-ocorrência. Agravo regimental não provido. 1. Consoante proclamou esta Segunda
Turma do STJ, ao julgar o REsp 1.039.325/PR, sob a relatoria do Ministro Herman Benjamin (DJe 13.03.2009),
o fato de as empresas optantes pelo Simples poderem pagar de forma simplificada os tributos listados no art.
3º, § 1º, da Lei nº 9.317/1996 não induz à conclusão de que não se sujeitam a nenhum tributo posteriormente
instituído. As isenções só podem ser concedidas mediante lei específica, que regule exclusivamente a matéria
ou o correspondente tributo (art. 150, § 6º, da Constituição da República). A interpretação extensiva da lei de
isenção, para atingir tributos futuramente criados, não se coaduna com o sistema tributário brasileiro. O art. 3º,
§ 4º, da Lei nº 9.317/1996 deve ser interpretado de forma sistemática com o disposto no art. 150, § 6º, da Constituição e no art. 111 do CTN. As empresas optantes pelo Simples são isentas apenas das contribuições que já
haviam sido instituídas pela União na data da vigência da Lei nº 9.317/1996. Com efeito, firmou-se nesta Corte
o entendimento de que não há isenção do PIS-Importação e da Cofins-Importação, na hipótese de pessoas jurídicas optantes pelo Simples, porque a Lei nº 9.317/1996 não poderia isentar contribuições que foram criadas
por lei posterior, nos termos do art. 177, II, do CTN, que preceitua que a isenção não é extensiva aos tributos
instituídos posteriormente à sua concessão. Ademais, pela interpretação teleológica da Lei nº 9.317/1996,
verifica-se que o legislador não demonstrou interesse em isentar tais pessoas jurídicas do pagamento das
contribuições que custeiam a Seguridade Social, e, com o advento da Lei Complementar nº 123/2006, que
revogou a Lei nº 9.317/1996, ficou expressa a intenção legislativa de tributar as empresas de pequeno porte e
microempresa, mesmo optantes pelo Simples. 2. Agravo regimental não provido.” (STJ – AgRg-REsp 1.434.314
– (2014/0032029-1) – 2ª T. – Rel. Min. Mauro Campbell Marques – DJe 23.04.2014 – p. 646)
10895 – Cofins – back to back – compra e venda – ingresso físico – receita
“Operação back to back é aquela em que a compra e a venda das mercadorias pela pessoa jurídica domiciliada no País ocorrem sem que essas mercadorias efetivamente ingressem ou saiam do Brasil. Essa operação é
composta por duas transações de compra e venda de mercadorias, com emissão de duas faturas, uma recebida
pela pessoa jurídica domiciliada no País, outra por ela emitida; do que decorre celebração de dois contratos
de câmbio. A receita decorrente de operação back to back, uma vez que nela a mercadoria jamais entra e,
assim, jamais sai efetivamente do País, não se caracteriza como receita de exportação e, por conseguinte, não
é alcançada pela não-incidência da Cofins prevista no art. 6º, I, da Lei nº 10.833, de 2003. Assim como a ausência de entrada da mercadoria objeto da operação back to back no País impede cogitar-se da ocorrência de
sua subsequente exportação para o exterior, tal ausência de entrada no País igualmente impede, no que toca à
sua aquisição no exterior, de se cogitar da ocorrência do fato gerador da Cofins-Importação.” (RFB – Solução
de Consulta nº 119/2013 – 8ª Região – DJe 02.08.2013)
10896 –ICMS – importação – local do fato gerador – domicílio do importador – legitimidade passiva do
Secretário de Estado da Fazenda
“Está pacificado nesta Corte o entendimento segundo o qual o ICMS cobrado em caso de importação é aquele
do domicílio do importador, ainda que a mercadoria circule fisicamente no Estado onde o desembaraço tenha
ocorrido.” (TJSC – MS 2012.073720-7 – Grupo CDPúbl. – Rel. Des. César Abreu – DJe 10.07.2013)
10897 – ICMS – importação de equipamentos – imunidade tributária
“A imunidade prevista no art. 150, inciso VI, alínea c, da Constituição Federal alcança a operação de ICMS relativa à importação de mercadoria destinada a integrar o ativo fixo de entidade assistencial sem fins lucrativos.
Precedentes do STF e deste Tribunal. Custas judiciais: A situação é de reembolso de despesas feitas pela parte vencedora, ou seja, hipótese em que a Fazenda Pública não se eximirá do referido pagamento, consoante previsão
do parágrafo único, da Lei Estadual nº 13.471, de 23 de junho de 2010, que deu nova redação ao Regimento de
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
Custas (Lei Estadual nº 8.121/1985). Sentença mantida, em reexame necessário.” (TJRS – Reexame Necessário
nº 70055140974 – 2ª C.Cív. – Rel. Des. João Barcelos de Souza Junior – DJe 10.07.2013)
10898 – ICMS – importação indireta – sujeito ativo – estado do destinatário – destinatário final
“1. Conforme decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, o reconhecimento, pelo STF, da repercussão geral
não constitui hipótese de sobrestamento de recurso que aqui tramita, mas de eventual recurso extraordinário
a ser interposto. 2. Na importação indireta, o ICMS é devido ao Estado onde se localiza o destinatário final da
mercadoria importada. Precedentes do STJ e do STF. 3. Agravo regimental não provido.” (STJ – AgRg-AREsp
298860/SC – 2a T. – Rel. Min. Herman Benjamin – DJe 26.06.2013)
10899 –ICMS – importação por conta e ordem – importação realizada em outro Estado – despacho aduaneiro
“Ambas as questões, pertinentes aos itens I.1, II.2 e III.3 do auto de estão relacionadas com operações de
importação de mercadorias do exterior, desembaraçadas fora do Estado de São Paulo, por importadora localizada no Estado de Santa Catarina, por conta e ordem da autuada. Resta clara a existência de uma só operação
de circulação de mercadorias, que é a importação, embora haja o envolvimento de duas pessoas: a primeira,
que efetua em seu nome o despacho aduaneiro e a segunda que realmente tem interesse no negócio jurídico
que dará origem à ‘entrada de mercadoria importada do exterior’, fato gerador do ICMS. Assim, esta segunda pessoa, que promove a importação, por sua conta e risco, e que, de fato, arca, também, com os tributos
federais e estaduais incidentes na importação, ainda que sejam pagos em nome de outra pessoa jurídica, é a
portadora de capacidade contributiva a qual o legislador constitucional quis tributar pelo ICMS, conforme dispõe o art. 155, § 2º, inciso IX, alínea a, da Constituição Federal. Afasto a alegada duplicidade de exigência nos
itens II.2 e III.3 do auto de infração, uma vez que é possível visualizar no DDF que eles se referem a períodos
distintos. Correta, ainda, glosa do crédito lançado na escrita fiscal, pois a autuada aproveitou-se efetivamente
de créditos, sem ter pago por eles. Daí porque lhe foram imputadas duas infrações distintas. Recurso conhecido e desprovido. Decisão não unânime.” (TITSP – AIIM 3154421-6 – Câmara Superior – Rela Egle Prandini
Maciotta – DJe 18.07.2013)
10900 –ICMS – importação por encomenda – porto localizado em outro Estado – falta de pagamento do
ICMS – importação ao Fisco paulista – crédito indevido
“Recurso especial da Fazenda. No que diz respeito à arguição de nulidade da r. decisão atacada, não conheço
do recurso, isto sem que deixe de registrar que a decisão atacada não sofre dos vícios diagnosticados pela
recorrente. Recurso não conhecido. Decisão não unânime. Vencido o voto do Relator, que conhecia parcialmente do recurso, negando-lhe provimento.” (TITSP – AIIM 3161991-5 – Câmara Superior – Rel. Raphael Zulli
Neto – DJe 23.07.2013)
10901 – Isenção – drawback – Cadin – ADIn 1.454/DF
“Apelação cível. Benefício de drawback na modalidade isenção. Indeferimento. ADIn 1.454/DF. Lei nº
10.522/2002. Atribuição de efeitos impeditivos à prática de determinados atos em razão da inscrição no Cadin. Impossibilidade. 1. Pedido de concessão do benefício de drawback na modalidade isenção, indeferido a
teor do disposto nos arts. 6º, II, e 7º da Medida Provisória nº 1.209/1995, sob o fundamento de inscrição do
nome e CGC no Cadin. 2. A MP 1.209/1995 foi reeditada por diversas vezes, até que sob o nº 1.442/1996 foi
objeto da ADIn 1.454/DF. 3. O col. STF, por ocasião do julgamento da ADIn 1.454 entendeu que a simples
inclusão no Cadin, com a finalidade de consulta, é mero ato informativo que não tem repercussão sobre direitos ou interesses de terceiros, mantendo a vigência do disposto no art. 6º da Medida Provisória nº 1.490/1996,
julgando prejudicada a ação no que concerne ao art. 7º, em face da alteração substancial na redação do
referido dispositivo a partir da reedição da MP sob nº 1.863-52/1999. 4. Atualmente, o Cadin encontra-se
disciplinado pela Lei nº 10.522/2002, que determina que a Administração Pública Federal ao contratar com
particulares, é obrigada a consultá-lo. 5. A atribuição de efeitos impeditivos à prática de determinados atos
em razão da inscrição, previstos originariamente nas medidas provisórias, não foram reproduzidos na Lei nº
10.522/2002, consolidando-se, assim, o Cadin como mero órgão informativo de créditos não quitados para
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Revista de Estudos Tributários
Tributação na Importação
com a Administração Pública.” (TRF 3ª R. – AC 00444825219974036100 – Rel. Des. Fed. Herbert de Bruyn
– DJe 28.06.2013)
10902 – IPI – drawback – modalidade de suspensão – créditos na exportação – prorrogação de prazo
“O fim do drawback é incentivar a exportação, concedido justamente para colocar a indústria nacional em
condições de concorrer com as estrangeiras. 2. Na importação de mercadorias sob o regime de suspensão de
tributos, condicionada à futura exportação dos produtos em que são empregadas, o IPI somente é exigível se
não ocorrer a exportação no prazo fixado, resolvendo-se a obrigação tributária suspensa, não viabilizando o
nascimento do crédito tributário. 3. Não há óbice legal à prorrogação do prazo convencionado, desde que o
beneficiário o requeira dentro do prazo legal, ou seja, antes de esgotado o período concedido inicialmente
(Decreto nº 91.030/1985). 4. Apelação provida.” (TRF 3ª R. – AC 00097983319994036100 – 3ª T – Rel. Des.
Fed. Nery Junior – DJe 20.06.2013)
10903 – IPI – drawback – pagamento a vista – glosa de créditos – parcelamento
“Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI. Período de apuração: 01.01.2003 a 31.12.2004. Procedimento
administrativo fiscal. Ausência de nulidade do acórdão da DRJ. Não é possível decretar, de ofício, a nulidade
do acórdão da DRJ, quanto à matéria não devolvida via recurso para o Carf, principalmente, quando tal suposto
vício implica em reformatio in pejus. IPI. Drawback inadimplido. Glosa de créditos. Ressalvado o entendimento do Relator, o inciso IX do art. 147 do Ripi/1998 somente autoriza o creditamento de IPI quanto ao drawback
inadimplido quando o contribuinte paga à vista o imposto devido na operação, sendo correta a glosa desses
créditos quando o particular parcelou o tributo. Somente depois de findo o parcelamento é que é possível o
creditamento do IPI. IPI. Arbitramento. A ausência de justificativa plausível para afastar o método de arbitramento disciplinado no art. 138, § 1º, do CTN torna improcedente o lançamento, realizado por métodos alternativos, previstos na legislação tributária. IPI. Refazimento da escrita fiscal. Análise de créditos que compõem
pedido de ressarcimento. Ao optar por estornar os créditos de IPI do Livro de IPI, de modo a transferi-los para
um pedido de ressarcimento, a pretensão da recorrente relacionada aos indigitados créditos deve ser apreciada
no âmbito de cada procedimento administrativo de ressarcimento, e não por meio do presente processo, que
aprecia o lançamento de IPI, realizado com base na apuração de créditos de IPI não estornados para compor
PAF específico. Recurso voluntário provido em parte.” (CARF – Ac. 3202-000.697 – Rel. Thiago Moura de
Albuquerque Alver – DJe 28.06.2013)
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Revista SÍNTESE
Direito de Família
ASSUNTO ESPECIAL
Penhorabilidade do Bem de Família
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Doutrina
Penhorabilidade do Bem de Família Suntuoso: Garantia do Direito à Moradia x
Satisfação do Direito do Credor
ADRIANE MEDIANEIRA TOALDO
Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul/RS (Unisc), Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo Instituto Ritter dos Reis, Canoas/RS, Professora de Graduação e Pós-Graduação em Direito
Processual Civil na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), Campus Santa Maria, Advogada.
BIBIANA LORENZONI SAUTHIER
Bacharel em Direito, Graduada na Universidade Luterana do Brasil em Santa Maria/RS.
RESUMO: A impenhorabilidade do bem de família é instituto que possui proteção jurídica. Todavia, em alguns
procedimentos executórios, é questionada sua utilização absoluta. O grande impasse que este estudo traz
é quanto à possibilidade de penhora deste bem, quando este possuir qualidade suntuosa e, portanto, valor
muito maior do que a dívida existente. Por falta de outros bens penhoráveis do devedor e pelo amparo legal
que é dado ao bem de família, cria-se uma insegurança jurídica tornando a relação incerta entre exequente
e executado. Por isso, surge a possibilidade de se aplicar uma relativização da impenhorabilidade do bem de
família quando único e de exacerbado valor. Objetiva-se, portanto, analisar a possibilidade jurídica da penhora
do bem de família no processo executivo suspenso por falta de bens penhoráveis do devedor solvente. Para
tanto, estuda-se a aplicação e a ampliação da penhorabilidade por meio dos princípios gerais do Direito, com
ênfase aos princípios executivos e constitucionais.
PALAVRAS-CHAVE: Penhorabilidade; processo de execução; bem de família suntuoso; falta de bens penhoráveis.
ABSTRACT: The unseizability well family is the institute that has legal protection. However, some procedures
are enforceable questioned its use absolute. The major impasse that this study brings is the possibility of attachment of this asset, when it has sumptuous quality and therefore much higher value than the existing debt.
For lack of other attachable assets of the debtor and the legal support that is given to well family creates legal
uncertainty making the uncertain relationship between creditor and executed. With that comes the possibility
of applying a relativization of the unseizability well family and exacerbated when one value. The objective is
therefore to analyze the legal possibility of attachment of well family in enforcement proceedings suspended
for lack of attachable assets of the debtor solvent. Therefore, we study the application and extension of unseizability through the General Principles of Law, with emphasis on constitutional principles and executives.
KEYWORDS: Unseizability; execution process; well family sumptuous; lack of attachable assets.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Breves considerações acerca da execução por quantia certa contra devedor solvente;
2 A impenhorabilidade do bem de família à luz da Lei nº 8.009/1990; 3 Garantia do direito à moradia: dignidade
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
da pessoa humana x direito do credor; 4 A aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade sobre a
penhorabilidade do bem de família; 5 Bem de família suntuoso: possibilidade jurídica da penhorabilidade à luz
da jurisprudência; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O bem de família foi introduzido no Brasil pelo Código Civil de 1916, sob a forma voluntária. Posteriormente regulou-se, por meio da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973,
que tratava dos Registros Públicos. Nessa modalidade, fazia-se necessário um exame detalhado de todos os requisitos formais para que o beneficiário tivesse direito à impenhorabilidade do bem desejado. Contudo, com a promulgação da Lei nº 8.009, de 29 de março de
1990, o imóvel destinado ao bem de família garantiu-se pela regra da impenhorabilidade,
ressalvadas as exceções contidas na própria lei.
Em 2002, com a entrada em vigor do atual Código Civil, o tema foi tratado na legislação civil, que trouxe, nos arts. 1.711 a 1.722, algumas inovações. Entre elas destacam-se
a possibilidade de o bem de família abranger os valores mobiliários, ser instituído por terceiros e a execução de despesas condominiais, sendo, esta última, exceção à regra da impenhorabilidade.
A Lei nº 8.009/1990, em seu art. 1º, preceitua que o imóvel residencial próprio da
entidade familiar é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída por seus proprietários e que nele
residam. Neste contexto, o único imóvel em que reside o devedor e sua família passa a ser,
automaticamente, impenhorável em relação às dívidas por eles assumidas.
O instituto da impenhorabilidade foi inserido com o intuito de assegurar o mínimo necessário para a existência sólida de uma entidade familiar. Mesmo que para alguns seja um
tema indiscutível e não suscetível de mudanças, operadores do Direito e juristas modernos
vêm trazendo a discussão acerca dos limites impostos pela lei à penhora. Nesse sentido,
muitos entendem que a impenhorabilidade pode acabar afetando os direitos do credor exequente, por priorizar apenas a salvaguarda dos interesses do devedor executado.
Diante de tal conflito, a norma jurídica a ser escolhida para a solução deste impasse
não pode ser aplicada de forma isolada; e a sua interpretação deve cotejar as normas com
os princípios gerais e específicos da execução como o da proporcionalidade, razoabilidade,
exato adimplemento, menor onerosidade e utilidade.
Não se pode afastar a preocupação constitucional de garantir um mínimo de dignidade humana a todos sem se esquecer da pessoa do credor; há de se analisar nessas circunstâncias o que seria mais razoável, tendo em vista que a aplicação engessada da lei não é a
melhor solução para tal situação.
Neste passo, o objetivo do presente artigo é analisar a possibilidade da penhorabilidade do bem de família quando único e de elevado valor, diga-se luxuoso, já que a Lei nº
8.009/1990 vem sendo alvo de críticas por ser omissa nestes casos. Desse modo, debate-se
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
sobre situações em que a lei e o próprio magistrado poderiam abrir exceções à impenhorabilidade de tais bens, sem trazer maiores prejuízos à integridade familiar e à dignidade do
devedor.
Para alcançar o objetivo proposto, a pesquisa é apresentada em três momentos. No
primeiro momento será delineado o instituto da execução por quantia certa contra devedor solvente no ordenamento jurídico brasileiro e a impenhorabilidade do bem de família,
traçando sua conceituação e classificação, bem como suas peculiaridades. No segundo
momento será estudada a ampliação e aplicação da penhorabilidade do bem em questão,
tendo como base o uso dos Princípios Gerais do Direito. Por fim, será abordada a possibilidade da relativização da impenhorabilidade do bem de família, verificando o entendimento
doutrinário e jurisprudencial acerca do tema.
A metodologia a ser utilizada será a dedutiva, por meio da técnica de pesquisa bibliográfica, que permite que se tome conhecimento de material relevante, tomando-se por
base o que já foi publicado em relação ao tema, de modo que se possa delinear uma nova
abordagem sobre este, chegando a conclusões que possam servir de embasamento para
pesquisas futuras.
1 BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA CONTRA DEVEDOR SOLVENTE
A Execução surge quando imposta uma obrigação e seu responsável não a cumpre
espontaneamente. Para que esse direito possa ser exercido por seu titular é necessário que
haja a intervenção do Estado. Nas palavras de Fredie Didier Junior1, “executar é satisfazer
uma prestação devida”.
Neste sentido, para que haja a satisfação do direito do exequente, caso o devedor não
cumpra o dever que lhe é imposto, haverá constrição judicial de seu patrimônio, sempre
respeitando a previsão do art. 620 do Código de Processo Civil, no qual, “quando por vários
meios, o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos
gravoso para o devedor”. Isso ocorre como uma forma de proteção, ou seja, para que o devedor não possa ser reduzido à situação de penúria.
Para tanto, entre as modalidades de Execução, será dado ênfase à Execução por Quantia Certa contra Devedor Solvente, a qual se realiza quando houver condenação ao pagamento de quantia certa em dinheiro. Este tipo de Execução se consuma pela apreensão e
entrega de dinheiro, se encontrado no patrimônio do executado, ou pela apreensão de outros bens, sua transformação em dinheiro mediante expropriação e entrega ao exequente do
valor obtido, sendo que, às vezes, esses próprios bens são dados ao exequente em satisfação
do crédito.
Neste passo, requerida a execução da sentença condenatória ou dos títulos executivos, cumpre ao juiz, imediatamente, determinar a expedição de mandado de penhora e
avaliação dos bens sujeitos à execução, conforme art. 475-J do Código de Processo Civil.
1 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito
processual civil – Execução. 1. ed. Bahia: JusPodvm, v. 5, 2009. p. 28.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Diante disso, instaurado o processo de execução, realiza-se a penhora com a função de
individualizar e apreender efetivamente os bens que se destinam aos fins da execução,
preparando o ato futuro de expropriação, para determinar se aquele bem vai satisfazer ou
não a obrigação.
Luiz Guilherme Marinoni2 ensina que
a penhora é procedimento de segregação de bens que efetivamente se sujeitarão à execução,
respondendo pela dívida inadimplida. Até a penhora, a responsabilidade patrimonial do executado é ampla, de modo que praticamente todos os bens respondem por suas dívidas (art. 591
do CPC e art. 391 do CC). Por meio da penhora, são individualizados os bens que responderão
pela dívida objeto da execução. Assim, a penhora é o ato processual pelo qual determinados
bens do devedor (ou de terceiro responsável) sujeitam-se diretamente à execução. (grifou-se)
A garantia dos credores é o patrimônio do devedor. Em outros termos, quando alguém
não cumpre determinada obrigação, de fundo contratual ou legal, o credor pode executar
seu crédito requerendo em juízo a penhora de tantos bens do devedor quantos bastem à
satisfação do débito.
Nesta seara, surge a problemática quando o executado possui apenas um único bem,
o qual legalmente é determinado impenhorável, qual seja o bem de família.
Fábio Ulhôa Coelho3, ao discorrer sobre o tema, dispõe que
o objetivo do instituto do bem de família é impedir que o devedor seja privado de moradia.
Considera-se que, por mais errado que tenha sido a atitude no descumprimento da obrigação
exequenda, não é justo, senão em hipóteses excepcionais, que fique numa situação tão precária a ponto de perder inclusive a casa ou o apartamento em que mora.
Neste contexto, assevera Carlos Roberto Gonçalves4: “O bem de família é um meio de
garantir um asilo à família, tornando-se o imóvel onde ela se instala domicílio impenhorável
e inalienável”.
Contudo, é de se observar que a maioria dos doutrinadores concorda que a essência
fundamentadora da defesa da possibilidade de penhora do bem de família, na situação
relatada, baseia-se em não permitir que as demandas executivas se tornem impotentes, causando ao exequente um sentimento de frustração e insegurança jurídica.
2 A IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA À LUZ DA LEI Nº 8.009/1990
A previsão estabelecida pelo Código Civil instituiu a impenhorabilidade do bem de família
convencional. Contudo, o presente artigo tem como objetivo a análise acerca da existência
2
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de execução. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 3, 2011. p. 258.
3 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, v. 5, 2011. p. 30.
4 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – Direito de família. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, v. 6,
2011. p. 580.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
de outra modalidade de impenhorabilidade para este bem específico, introduzida pela Lei
nº 8.009/1990.
Esta lei criou o bem de família legal, o qual não exige qualquer condição formal, a
exemplo do registro de escritura pública. Dispõe o art. 1º que “o imóvel residencial próprio
do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de
dívida”.
A característica da impenhorabilidade dada ao bem de família foi criada pelo legislador, no intuito de proteger o patrimônio da maioria das pessoas que possuem poucas ou
somente uma propriedade, a fim de assegurar um patrimônio de reserva.
Nas palavras de Fredie Didier Junior5:
A impenhorabilidade de certos bens é uma restrição ao direito fundamental à tutela executiva.
É técnica processual que limita a atividade executiva e que se justifica como meio de proteção
de alguns bens jurídicos relevantes, como a dignidade do executado, o direito ao patrimônio
mínimo e a função social da empresa. São regras que compõem o devido processo legal,
servindo como limitações políticas à execução forçada. (grifou-se)
Por se tratar de uma técnica de restrição a um direito fundamental, é preciso que sua
aplicação se submeta ao método de ponderação, a partir da análise das circunstâncias em
concreto. Ou seja, as regras de impenhorabilidade devem ser aplicadas de acordo com a
metodologia de aplicação das normas de direitos fundamentais.
Desta forma, por intermédio do art. 649 do Código de Processo Civil, o legislador estabelece o rol de bens impenhoráveis, já fazendo, portanto, um prévio juízo de ponderação
entre os interesses envolvidos, optando pela mitigação do direito do exequente em favor da
proteção do executado.
Não obstante isso, as hipóteses de impenhorabilidade poderiam não incidir em determinados casos concretos, como, por exemplo, em imóvel único de exacerbado valor,
determinado como bem de família, em que se evidencia a desproporção entre a restrição
a um direito fundamental e a proteção do outro. Em suma: o órgão jurisdicional deve fazer
o controle de constitucionalidade a cada caso concreto para a aplicação das regras de impenhorabilidade, e, se a sua aplicação revelar-se inconstitucional, porque não razoável ou
desproporcional, deve afastá-la, construindo a solução devida para a situação apresentada.
A situação abordada afasta a garantia constitucional da dignidade à pessoa humana do
credor, sendo necessária a análise dessa circunstância pelo magistrado para o encontro da
solução mais razoável, tendo em vista que a aplicação imutável da lei não é a melhor para
tal conflito.
Cândido Rangel Dinamarco6 opina a respeito:
5 DIDIER JR., Fredie et al. Op. cit., p. 541.
6 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 1. ed. São Paulo: Malheiros, v. 4, 2004. p. 343.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Não se legitima, por exemplo, livrar da execução um bem qualificado como impenhorável,
mas economicamente tão valioso que deixar de utilizá-lo in executivis seria um inconstitucional privilégio concedido ao devedor. Pense-se na hipótese de um devedor milionário, mas sem
dinheiro visível ou qualquer outro bem declarado, e que viva em luxuosa mansão; esse é o seu
bem de família, em tese impenhorável por força de lei (Lei nº 8.009, de 29.03.1990), mas que,
em casos como esse, não se justifica ficar preservado por inteiro. (grifou-se)
Solução sensata seria penhorar o bem, levá-lo à hasta pública e reservar parte do dinheiro obtido para a compra de uma habitação razoável para esse devedor. A ponderação
refere-se à aplicação da proporcionalidade na interpretação do caso concreto; eis que, se o
valor do bem é excessivo (alguns milhões de reais), seria possível a permissão para a realização da penhora, garantindo ao devedor a aquisição de outro imóvel de menor valor com
parte do produto da hasta pública.
Mesmo que, por meio da lei, seja um tema indiscutível, operadores do Direito e juristas vêm trazendo questionamentos acerca dos limites impostos pela lei à penhora. Nesta
celeuma, muitos entendem que a impenhorabilidade pode acabar prejudicando os direitos
do credor exequente, por priorizar apenas os interesses do devedor executado.
Como exemplifica Fredie Didier Junior7,
o bem imóvel que serve de moradia da família é relativamente impenhorável, conforme será
visto com mais detalhes à frente. Objetiva-se, com essa restrição, proteger o direito fundamental à moradia, conteúdo do direito à proteção da dignidade. Imagine-se um imóvel de
altíssimo valor. Imagine-se, agora, um crédito que corresponda a quarenta por cento do valor
do imóvel. A venda judicial do imóvel, no caso, permitiria não só satisfazer o direito do credor, como, ainda, garantir ao executado, com a sobra, a aquisição de outro imóvel, que lhe
preserve a dignidade. A opção pela interpretação literal da regra, que veda a penhora, protegeria exclusivamente o direito do executado de maneira desnecessária, porque a relação valor
executado/valor do bem permitiria a aquisição de outro imóvel, após a entrega do dinheiro
ao credor. Seria, pois, interpretação em desconformidade com os preceitos da contemporânea
hermenêutica constitucional, que preconiza a necessidade, nos casos de choque entre direitos
fundamentais, de dar a interpretação que mais adequadamente proteja a ambos. (grifou-se)
Hodiernamente, as regras de impenhorabilidade possuem o condão de garantir ao devedor a preservação de um mínimo existencial para sua subsistência. Porém, muitas vezes, a
proteção ao executado ultrapassa os limites de um mínimo justo, acabando por prejudicar o
credor, que se vê impedido de prosseguir na Execução. Logo, o melhor caminho para a mitigação da proteção ao devedor atualmente hipervalorizada é a maior atenção aos interesses
do exequente, dando a necessária operacionalidade ao processo de Execução.
Percebe-se, então, que a impenhorabilidade do imóvel bem de família que tenha altíssimo valor pecuniário poderá acarretar na restrição do direito à tutela executiva, e encontra
justificativa por ser meio de proteção a alguns bens jurídicos relevantes como, por exemplo,
o direito do executado ao patrimônio mínimo, a dignidade da pessoa humana e também o
direito a uma execução da forma menos onerosa.
7 DIDIER JR., Fredie et al. Op. cit., p. 542.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Como se vê, muitos doutrinadores acabam por defender a possibilidade da relativização da impenhorabilidade do bem de família quando único e de elevado valor em prol da
segurança jurídica e razoabilidade entre credor e devedor no ordenamento jurídico processual. Porém, na busca incessante em garantir a estabilidade da ordem jurídica, ao estabelecer a impenhorabilidade do bem de família, o legislador acaba por restringir o direito de
satisfação do credor.
3 GARANTIA DO DIREITO À MORADIA: DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA X DIREITO DO CREDOR
No processo executório, o uso da analogia possui o condão de tornar efetivo o
equilíbrio entre o Princípio da Dignidade Humana e a satisfação do direito do credor. Neste
sentido, Maria Helena Diniz8 ensina que
o processo analógico consiste em aplicar uma disposição legal a um caso não qualificado
normativamente, mas que possui algo semelhante com o fato-tipo por ela previsto. Porém,
para que tal se dê, deve-se considerar como relevante alguma propriedade que seja comum
a ambos.
Tal entendimento corrobora com a tese de que, em razão da impenhorabilidade do
bem de família, a falta de bens penhoráveis do devedor no processo de Execução acarreta
em um obstáculo jurídico para os envolvidos no litígio, principalmente para o credor. Sendo
assim, seria perfeitamente aplicável, por meio da analogia, a relativização da impenhorabilidade deste bem quando único e de elevado valor, tendo o condão de satisfazer o crédito
do exequente bem como o restabelecimento do direito à moradia do devedor, por meio da
expropriação do imóvel e da compra de outro de menor valor, sem ferir o mínimo de sua
dignidade humana.
Em consonância ao Princípio da Menor Onerosidade da Execução, pode ser citado o
respeito à dignidade da pessoa humana, visto que a Execução não pode levar o devedor e
sua família a uma situação de carência de condições para sua sobrevivência. Nesta linha de
raciocínio, o legislador preconiza, por meio do art. 649 do Código de Processo Civil e art. 1º
da Lei nº 8.009/1990, a impenhorabilidade de determinados bens do executado, entre eles,
como já explanado, o bem de família.
Frise-se que, quando os bens jurídicos em choque forem de um lado o crédito e do outro
o direito constitucional de moradia, propriedade ou, em um aspecto ainda mais abrangente,
a dignidade da pessoa humana, não parece haver espaço para qualquer discussão de que
deve este último ser o preponderante, eis que estruturante do Estado brasileiro (art. 1º da
Constituição Federal).
A precaução do legislador quanto à preservação da moradia do devedor é louvável,
todavia, ao se fazer uma análise do art. 1º da Lei nº 8.009/1990, é fácil notar que o dispositivo não faz distinção quanto ao valor do imóvel residencial que está sujeito à proteção legal.
A lei não se preocupa em distinguir bens imóveis de alto valor dos bens imóveis de baixo
valor; não diferencia uma moradia digna de uma moradia suntuosa.
8 DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 142.
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Penhorabilidade do Bem de Família
Diante desta lacuna, é possível que o proprietário de uma luxuosa residência, que não
cumpra com o adimplemento de suas obrigações, tenha o mesmo direito e proteção daquele que não tenha reais condições de quitar suas dívidas.
Neste passo, importante citar que, com a reforma de 2006, o legislador buscou sem
êxito mudar esta realidade. O Projeto de Lei nº 4.497/2004, que trata de algumas alterações
no processo de Execução, pretendia introduzir um parágrafo único no art. 650 do Código
de Processo Civil.
O conteúdo do referido parágrafo único visava tornar absolutamente impenhorável o
imóvel de até mil salários-mínimos, permitindo a penhora daqueles que ultrapassassem este
valor, conforme descrito a seguir:
Art. 650. Podem ser penhorados, à falta de outros bens, os frutos e rendimentos dos bens inalienáveis, salvos se destinados à satisfação de prestação alimentícia.
Parágrafo único. Também pode ser penhorado o imóvel considerado bem de família, se de
valor superior a mil salários-mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até
aquele limite será entregue ao devedor, sob cláusula de impenhorabilidade.
O sacrifício de uma das partes será inevitável, e aplicando o método da ponderação
de princípios ao caso concreto, inegavelmente que quem restará sacrificado será o credor,
que se encontra em uma situação desprivilegiada na relação jurídica formada. Se um direito
vai ser restringido neste caso, que seja daquele que contraiu uma dívida, tendo a obrigação
de honrar seu compromisso, mesmo que para ocorrer o efetivo cumprimento, o seu bem de
família de elevado valor tenha de ser sacrificado.
É natural que com o cumprimento da obrigação creditícia ocorra uma diminuição no
padrão de vida do executado; o que não se pode permitir é que por meio dessas proteções
legais o devedor mantenha o mesmo elevado padrão de vida, restringindo por consequência
o direito fundamental que tem o credor de efetivar o seu crédito. Desta forma, não parece
adequado deixar o credor passar por privações e necessidades no seu sustento e no da sua
família, enquanto o devedor se mantém confortavelmente instalado em sua luxuosa residência que, pela lei, é considerada bem de família, sendo absolutamente impenhorável.
A falta de fixação de quantia máxima e a interpretação literal do art. 1º da Lei nº
8.009/1990 podem gerar o absurdo de paralisar execuções judiciais, exatamente em virtude
da argumentação de que o imóvel é o único, mesmo tendo elevado valor venal. Protege-se
de um lado a instituição familiar e, de outro, sacrifica-se o direito do credor e a efetividade
do processo executivo.
Segundo Marcelo Lima Guerra9,
o direito fundamental à tutela executiva exige um sistema de tutela jurisdicional “capaz de
proporcionar pronta e integral a satisfação a qualquer direito merecedor de tutela executiva”. Mais concretamente, significa: a) A interpretação das normas que regulamentam a tutela
9 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. p. 47.
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Penhorabilidade do Bem de Família
executiva tem de ser feita no sentido de extrair a maior efetividade possível; b) O juiz tem o
poder-dever de deixar de aplicar uma norma que imponha uma restrição a um meio executivo, sempre que essa restrição não se justificar à luz da proporcionalidade, como forma de proteção a outro direito fundamental; c) O juiz tem o poder-dever de adotar os meios executivos
que se revelem necessários à prestação integral de tutela executiva. (grifou-se)
Diante do exposto, verifica-se a intenção de fazer com que sejam repensadas as regras
de impenhorabilidade dispostas no Código de Processo Civil, peculiarmente em relação
aos bens de família, levando em consideração os princípios mencionados junto à garantia
fundamental da execução: a busca pela defesa do melhor interesse do credor. Desta forma,
passa-se a admitir que o magistrado possa contrapor-se à norma processual para determinar
a penhora de determinados bens impenhoráveis por força de lei, garantindo assim a efetivação da execução, sem atingir de forma gravosa a dignidade do executado.
Fredie Didier Junior10 ratifica o posicionamento ao afirmar que
partir da premissa de que existe um direito fundamental à tutela executiva é indispensável
para a solução de diversos problemas oriundos do procedimento executivo, principalmente
aqueles relacionados à aplicação das regras de proteção do executado, como as hipóteses de
impenhorabilidade.
Nesse contexto, seguindo o que preceitua o art. 4º da Lei de Introdução às Normas
do Direito brasileiro, é perfeitamente pacífica a aplicação dos princípios gerais do Direito,
consagrados na Magna Carta e na jurisprudência dos Tribunais superiores.
Com relação aos princípios, conceitua Robert Alexy11 que
os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível,
dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Assim, os princípios são mandamentos
de otimização, caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, e
de que seu cumprimento não somente depende das possibilidades reais, mas também das
jurídicas. (grifou-se)
Reforçando tal entendimento, assevera José Rogério Cruz e Tucci12 que os princípios
atuam como elo de todo conhecimento jurídico com a finalidade de atingir resultados eleitos, tendo natureza hierarquicamente superior às normas comuns, servindo de base axiológica e estruturante do conhecimento jurídico, sendo fontes de criação, aplicação e interpretação. Nesta problemática, entre os princípios previstos na Constituição Federal, deve-se
dar importância ao princípio da dignidade humana que se aplica tanto ao credor quanto ao
devedor.
No que tange à Execução, as profundas transformações pelas quais tem passado o
ordenamento jurídico brasileiro impõe que a impenhorabilidade do bem de família seja interpretada à luz destas inovações. Principalmente à luz do interesse social pela estabilidade
10 DIDIER JR., Fredie et al. Op. cit., p. 47.
11 ALEXY, Robert. Derecho y Razón Práctica. México: Distribuciones Fontamara, 2002. p. 86.
12 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p.
92.
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Penhorabilidade do Bem de Família
das relações jurídicas e até mesmo pela proteção das partes que litigam em homenagem aos
princípios da dignidade da pessoa humana e à garantia do direito de satisfação do credor.
Entende a melhor doutrina e prevalece na jurisprudência o entendimento de que a
execução não pode levar o executado a uma situação incompatível com a dignidade humana. Em contrapartida, não pode a Execução ser imobilizada, podendo vir a servir como
instrumento causador de qualquer situação incompatível com a garantia do direito de satisfação do credor, como se demonstra na questão da insatisfação do processo executivo em
que o credor fica condenado à perda de seu crédito em razão da impenhorabilidade do único bem do devedor. Neste viés, não se demonstra concebível que o patrimônio do devedor
(no caso em tela, muito superior ao valor executado) esteja acima da dignidade do credor.
Ana Paula de Barcellos13 destaca:
Se a sociedade não for capaz de reconhecer a partir de que ponto as pessoas se encontram
em uma situação indigna, isto é, se não houver consenso a respeito do conteúdo mínimo da
dignidade, estar-se-á diante de uma crise ética e moral de tais proporções que o princípio da
dignidade da pessoa humana terá se transformado em uma fórmula totalmente vazia, um signo
sem significado correspondente.
Pelo exposto, entende-se a insatisfação do processo executivo, quando insuficientes
os bens penhoráveis do devedor, como violador do princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que o credor fica submisso a um processo fadado a dar em nada, sem
qualquer resultado prático visualizável, apenas como um obstáculo ao seu exercício pleno
de cidadania, tolerável por certo tempo, mas insuportável enquanto supressor da chance
de retomar o que lhe foi abstraído pela outra parte. O presente caso de impenhorabilidade
viola preceitos fundamentais da Constituição, além de prolongar a ação do Poder Judiciário
com processos predestinados a permanecerem indefinidamente sem eficácia.
Além disso, a proteção a uma razoável duração do processo se aplica perfeitamente à
Execução por Quantia Certa contra Devedor Solvente, visto que esta também tem natureza
de processo, e até mesmo porque de nada adianta ver declarado o direito se não puder usufruir dele. O processo deve ser concreto, célere e efetivo, procurando por meios capazes de
adaptar o direito à realidade individualizada ostentada pelas partes.
Sobre a indeterminável duração de uma Execução, narra José Rogério Cruz e Tucci14:
O tempo pode causar o perecimento das pretensões, ocasionar danos econômicos e psicológicos às partes e profissionais aos operadores do direito, estimular composições desvantajosas e,
consequentemente, gerar descrédito ao Poder Judiciário e ao Estado como um todo.
Por meio do obstáculo surgido pela presença de apenas um bem de família legalmente
impenhorável pelo ordenamento jurídico, a Execução pode se delegar ao tempo, bem como
13 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa
humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 197.
14 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Tempo e processo: uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia
processual (civil e penal). São Paulo: RT, 1997. p. 89.
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Penhorabilidade do Bem de Família
à função estatal de satisfação do direito do credor no processo executório. Ocorre que o
processo deve alcançar seu objetivo em um tempo razoável, não podendo perdurar indefinidamente na busca pela satisfação do credor. Desta forma, incabível sustentar um processo predestinado ao fracasso, tendo em vista não haver bens para constrição.
4 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PROPORCIONALIDADE SOBRE A PENHORABILIDADE DO BEM
DE FAMÍLIA
Diante de tal conflito, em que a exclusão do imóvel de alto valor, protegido pela Lei
nº 8.009/1990, afasta a satisfação do direito do credor, deve ser aplicado ao caso concreto
o Princípio da Proporcionalidade, utilizando-se o método da ponderação de princípios e
valores. Sua aplicação seria a forma mais adequada de solucionar o litígio entre dois direitos
fundamentais em choque, em que se sacrifica um deles dentro dos limites do necessário.
Para Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini15,
o princípio da proporcionalidade é o limite do ônus imposto ao sacrifício de um direito em
detrimento de outro dentro do estritamente necessário.
O princípio da proporcionalidade está implicitamente presente na Constituição pátria
e já é entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência brasileira. A definição deste princípio, em suma, é a maior satisfação da pretensão de um direito por meio da menor restrição
possível de outro, a fim de que exista a melhor ponderação dos valores envolvidos com o
objetivo de harmonizar os direitos que se confrontam.
Para alcançar a proporcionalidade, é preciso relativizar a ordem para que se sacrifique
o mínimo possível de direitos de ambas as partes, tentando harmonizá-los da melhor maneira. Deve-se relativizar tanto em prol do exequente como do executado, resguardando os
princípios da efetividade da execução e o da dignidade da pessoa humana.
Neste ponto, Nelson Nery Júnior16 estabelece que
o princípio da proporcionalidade, também denominado de “lei da ponderação”, na interpretação de determinada norma jurídica, constitucional ou infraconstitucional, devem ser sopesados os interesses e direitos em jogo, de modo a dar-se a solução concreta mais justa. Assim,
o desatendimento de um preceito não pode ser mais forte e nem ir além do que indica a finalidade da medida a ser tomada contra o preceito a ser sacrificado. (grifou-se)
Consequentemente, o princípio em questão proporciona uma melhor escolha do preceito legal que deve ser atenuado, tornando-se um importante instrumento de interpretação
das leis aplicáveis ao caso concreto.
15 WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de processo civil.
6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 2, 2004. p. 141.
16 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 197.
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Penhorabilidade do Bem de Família
Suzana Toledo de Barros17, ao conceituar o princípio da proporcionalidade, explana
que pode ser entendido como um meio de controlar a atividade legislativa, sujeitando-a a
um parâmetro de razoabilidade, cuja função controladora e limitadora é evidenciada pela
expressão proibição do excesso.
Assim, o mencionado princípio é plenamente capaz de proporcionar ao magistrado
meios eficazes para solucionar conflitos de interesses que o ordenamento jurídico não é
capaz de realizar diante do engessamento de suas leis inaplicáveis, garantindo assim que se
atinja equilíbrio nas relações.
Nessa senda, na situação de um processo executório cujo devedor possui apenas um
bem de família e de valor extremamente superior ao débito, surge a submissão do exequente
à impossibilidade do processo executório, acarretando afronta ao princípio da proporcionalidade ante a inexistência de possibilidade de satisfação do credor.
5 BEM DE FAMÍLIA SUNTUOSO: POSSIBILIDADE JURÍDICA DA PENHORABILIDADE À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA
A Lei nº 8.009/1990, como se depreende a partir de sua leitura, instituiu a impenhorabilidade do imóvel residencial único ou de menor valor do casal ou da entidade familiar.
Tal impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam as construções, as
plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de
uso profissional ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados. Excluem-se dela os
veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.
Em relação aos adornos compreendidos na residência protegida pela Lei nº 8.009/1990,
define Luiz Rodrigues Wambier18:
Na jurisprudência, tem havido intensa controvérsia na definição de quais são os bens móveis
e adornos que estariam excluídos da impenhorabilidade. O critério que reiteradamente se
tem procurado usar é o da essencialidade dos bens “a regular utilização de uma casa”. As
conclusões a que os tribunais têm chegado, contudo, ainda são extremamente díspares. Para
evitar isso, propõe-se a consideração do critério ora estampado no inc. II do art. 649 (na
redação que lhe deu a Lei nº 11.382/2006): “necessidades comuns correspondentes a um
médio padrão de vida”. (grifou-se)
Com relação ao imóvel qualificado como bem de família, o Superior Tribunal de Justiça
(STJ), em decisão do final de 2010, ratificou o entendimento de que a proteção independe
de seu valor. O REsp 1.178.46919, entre outros temas, enfrenta a quantificação pecuniária do
bem a ser protegido pela legislação em comento (itens IV e V), in verbis:
17 BARROS, Suzana Toledo de. apud ASSIS, Carlos Augusto de. A antecipação da tutela à luz da garantia constitucional
do devido processo legal. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 63.
18 WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 133.
19
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.178.469/SP, Rel. Min. Massami Uyeda, 3ª
T.,
Julgado
em
18.11.2010,
DJe
de
10.12.2010.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/
p r o c e s s o / j s p / r e v i s t a / a b r e D o c u m e n t o . j s p ? c o m p o n e n t e = AT C & s e q u e n c i a l = 1 3 0 5 7 8 3 8 & n u m _
registro=201000212900&data=20101210&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 19.05.2013.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Para que seja reconhecida a impenhorabilidade do bem de família, de acordo com o art. 1º
da Lei nº 8.009/1990, basta que o imóvel sirva de residência para a família do devedor, sendo
irrelevante o valor do bem. O art. 3º da Lei nº 8.009/1990, que trata das exceções à regra da
impenhorabilidade, não traz nenhuma indicação concernente ao valor do imóvel. Portanto, é
irrelevante, para efeitos de impenhorabilidade, que o imóvel seja considerado luxuoso ou de
alto padrão.
Destaca-se que o STJ entendeu que o simples fato de o imóvel ser considerado de luxo
não autoriza o afastamento da regra da impenhorabilidade do bem de família, dado o seu
caráter de norma de ordem pública e de cunho social. O fato, por si só, de se tratar de imóvel valioso não enseja a descaracterização da impenhorabilidade do bem de família que
efetivamente se destina à moradia da entidade familiar. Em suma, observa-se claramente
dos julgados em análise a preocupação do STJ em conferir efetividade ao benefício legal
instituído quanto ao bem de família.
Ademais, forçoso mencionar que o art. 3º da Lei nº 8.009/1990, ao tratar das exceções
à regra da impenhorabilidade, não traz nenhuma indicação concernente ao valor do imóvel
ou em relação às suas características, quer dizer, se luxuoso ou não. Portanto, é certo que a
referida Lei tem claro intuito protetivo à moradia. Neste passo, Araken de Assis20 esclarece
que “a impenhorabilidade da residência familiar, de acordo com a Lei nº 8.009/1990, alcança tanto o casebre, quanto o palácio”.
Em contrapartida, a norma que institui a impenhorabilidade do bem de família é plenamente passível de flexibilização quando o valor do imóvel penhorado for suficiente para
o pagamento do crédito e a aquisição de uma nova moradia para o executado. Este é o
entendimento da 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT-RJ), conforme se destaca da recente ementa do julgamento do Agravo de Petição nº 014310013.1995.5.01.020321:
FLEXIBILIZAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA – O Judiciário deve buscar um equilíbrio entre o direito ao crédito trabalhista do exequente e o direito à moradia do
devedor, o que impõe a flexibilização da norma que fixa a impenhorabilidade do bem de
família, quando o valor do imóvel penhorado for suficiente para o pagamento do crédito e a
aquisição de nova moradia digna e confortável para o executado. (grifou-se)
A decisão supracitada ratifica o entendimento do Superior Tribunal de Justiça somente
no que tange à qualidade do imóvel bem de família ser incontroversa, já que tal condição
encontra-se fixada no ordenamento civilista. Contudo, levou-se em consideração a análise
da garantia de impenhorabilidade delineada no art. 1º da Lei nº 8.009/1990 ser absoluta ou
pacífica de relativização, por meio da ponderação dos princípios constitucionais envolvidos
ao caso.
O Judiciário deve buscar uma harmonia entre o direito do credor e o direito à moradia
do devedor. Frisa-se que o direito do devedor seria à moradia e não à propriedade do bem.
20 ASSIS, Araken de. Manual da execução. 13. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 280.
21BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, Agravo de Petição nº 0143100-13.1995.5.01.0203,
4ª T., Rel. Juiz do Trabalho convocado Monica Batista Vieira Puglia, Publicado em 27.05.2013. Disponível em:
<http://bd1.tr t1.jus.br/xmlui_por tal/bitstream/handle/1001/485678/01431001319955010203%
2327-05-2013.pdf?sequence=1>. Acesso em: 10 nov. 2013.
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Penhorabilidade do Bem de Família
Pelo exposto, entende-se possível a penhora de um bem de família quando o seu valor for
muito superior ao da dívida.
De um lado, encontra-se o direito ao crédito do exequente. De outro, tem-se o direito
do executado à moradia, embasado no princípio da dignidade da pessoa humana. Um direito não pode confrontar o outro, o que impõe a análise prudente entre os dois princípios
citados. A ideia seria buscar uma forma justa e proporcional de acautelar o direito de ambas
as partes.
Nesta linha de raciocínio não seria justo assegurar como bem de família um imóvel
que vale milhões, enquanto o que se está devendo é uma pequena fração. É preciso encontrar uma solução para isso, para que o credor não tenha apenas uma sentença afirmando
que tem o direito de receber o valor do débito.
No caso em comento, a venda do imóvel penhorado permite que se quite a dívida e,
ao mesmo tempo, seja garantido ao executado o direito de uma moradia digna e confortável. Nesta linha de raciocínio, a jurisprudência já vem admitindo a flexibilização da impenhorabilidade do bem de família, conforme se verifica na decisão do Agravo de Petição nº
0087800-72.1992.5.0422:
IMPENHORABILIDADE – BEM DE FAMÍLIA – A garantia constitucional do direito à moradia
não exclui ponderações concernentes ao seu valor econômico se em causa a satisfação de
direito com idêntica dignidade jusfundamental social. Natureza alimentícia do crédito do exequente e longa duração da execução sem satisfação que atenta contra o primado da dignidade
da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/1988). Ponderação dos direitos fundamentais envolvidos
que autoriza a relativização da garantia legal à impenhorabilidade do bem de família. Precedente do Tribunal. Recurso do exequente provido. (grifou-se)
Diante da existência dos julgados mencionados, de todo o percurso doutrinário relatado, e com base nos princípios aplicáveis ao caso, entende-se cabível um novo entendimento e a aplicação da flexibilização da norma contida no art. 1º da Lei nº 8.009/1990, quando,
em um processo executório, existir um crédito de valor consideravelmente inferior ao bem
de família do devedor protegido pelo instituto da impenhorabilidade.
CONCLUSÃO
O presente estudo teve como objetivo analisar a possibilidade jurídica da penhorabilidade do bem de família suntuoso nos processos executivos suspensos por falta de bens
penhoráveis do devedor solvente, concluindo-se possível por meio do uso dos Princípios
Gerais do Direito, com ênfase aos Princípios Constitucionais aplicáveis à execução, como
forma de suprir a insegurança jurídica resultante da ineficácia do processo executivo gerador do afastamento da satisfação creditória, estabelecendo, assim, um desfecho processual
em tempo razoável.
22BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Agravo de Petição nº 0087800-72.1992.5.04.0014,
Red. Desig. Des. José Felipe Ledur, 1ª T., Publicado em 30.04.2012 no DEJT. Disponível em: <http://www.trt4.
jus.br/portal/portal/trt4/consultas/consulta_lista/ConsultaProcessualWindow?svc=consultaBean&nroprocesso=008780072.1992.5.04.0014&operation=doProcesso&action=2&intervalo=90>. Acesso em: 17 nov. 2013.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Para tanto, vimos a possibilidade da ampliação e aplicação da penhorabilidade destes
bens, e suas particularidades, com base na margem dada pela redação do art. 2º da Lei nº
8.009/1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, determinando que
“excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos”.
Dessa forma, usou-se da aplicação dos princípios ligados à satisfação do processo
executivo, a exemplo de doutrinadores como Freddie Didier Jr., utilizando recente jurisprudência trabalhista que trilha por um caminho aquém do imposto pela letra engessada da
lei, considerando, assim, a possibilidade da flexibilização da impenhorabilidade do bem de
família de alta monta.
Em um processo de Execução, quando o valor do imóvel penhorado for suficiente para
o pagamento do débito e a aquisição de nova residência digna e confortável para o executado, o Judiciário deve buscar um equilíbrio entre o direito ao crédito do exequente e o direito
à moradia do devedor, o que impõe a relativização da norma que fixa a impenhorabilidade
do bem de família.
Logo, perfeitamente aplicável por meio dos Princípios Gerais do Direito, para ampliação e aplicação da penhorabilidade do bem de família aos processos executivos suspensos
por falta de bens penhoráveis do devedor solvente.
Como visto, a procrastinação das demandas executivas atenta contra princípios basilares do direito, tais como a dignidade da pessoa humana, a satisfação do direito do credor,
a duração razoável do processo e a proporcionalidade. Na medida em que se condena o
credor a um processo eterno apesar de inútil, visto que os bens do devedor são legalmente
intocáveis, insurge-se a possibilidade de penhora do bem de família objetivando preservar
a segurança jurídica.
É importante salientar que a penhorabilidade do bem de família não tem como prerrogativa prejudicar o devedor pelo fato da existência de proteção legal que atualmente o
exime de pagar aquilo que efetivamente deve, muito menos proteger o credor. Este instituto
não busca atender a interesses pessoais e individuais das partes, mas sim prestigiar a ordem
pública quanto à finalidade de interesse público, contra o impasse de um conflito jurídico
que pode gerar certa insegurança por seu caráter indefinido e protelatório.
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Penhorabilidade do Bem de Família
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______. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Agravo de Petição
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158
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Doutrina
Penhorabilidade do Bem de Família “Luxuoso” na Perspectiva
Civil-Constitucional
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
Professor Associado de Direito Civil da UERJ, Professor Associado da UGF, Doutor em Direito Civil pela
UERJ, Desembargador Federal do TRF da 2ª Região, Diretor-Geral da EMARF (Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região), Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o biênio 2013-2015.
THAÍS BOIA MARÇAL
Advogada no Rio de Janeiro, Especialista em Direito Público.
RESUMO: Um importante instrumento de tutela do direito fundamental social à moradia instituído pela legislação pátria é a impenhorabilidade do denominado “bem de família”. Porém, há que se privilegiar uma interpretação conforme a Constituição, de modo a evitar excessos ilegítimos, que ferem a interpretação teleológica
da norma.
PALAVRAS-CHAVE: Bem de família; impenhorabilidade; imóvel luxuoso; interpretação teleológica; direito à
moradia.
ABSTRACT: An important tool of social protection of the fundamental right to housing established by the legislation of the country is unseizability called homestead. However, we must favor an interpretation according to
the Constitution, so as to avoid excesses illegitimate, that hurt a teleological interpretation of the norm.
KEYWORDS: Homestead; unseizability; luxury property; teleological interpretation; right to housing.
1 NOÇÕES ACERCA DO BEM DE FAMÍLIA
Entre as fontes históricas do bem de família no Direito brasileiro, aponta-se como pioneiro o Homestead Exemption Act, de 26 de janeiro de 1839, editado pela então República
do Texas, tendo sido concebido o instituto como instrumento de proteção dos interesses da
família no que se referia à pequena propriedade rural, de natureza agrícola e residencial. Contudo, mesmo na sua origem, o bem de família também foi previsto relativamente ao imóvel
urbano. A ideia da criação do instituto no Direito se originou em razão de fatos históricos
ocorridos no período de 1837 a 1839, em que houve grave crise econômica no território
norte-americano, gerando mais de 33 mil falências e déficit de dólares de U$$ 440 milhões1.
Além dos bens de família previstos nas legislações de alguns Estados norte-americanos,
foi também criado o homestead federal pelo Homestead Act, de 26 de maio 1862, assegurando a todo cidadão norte-americano um estabelecimento familiar com 80 acres de terra,
1 Cf. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito civil: família. São Paulo: Atlas, 2008. p. 541-542.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
a preço módico, com o privilégio de não haver execução por dívidas anteriores ao título
definitivo pelo prazo dos primeiros cinco anos a contar do início da residência. Como observou Spencer Vampré2, o instituto constituiu importante instrumento para a colonização
do território norte-americano, a par das vantagens reconhecidas em favor da família. Além
do próprio imóvel, as benfeitorias, as pertenças e outros bens móveis (utensílios e outras
utilidades para cozinha, instrumentos de trabalho agrícola, os utensílios, instrumentos e
livros destinados ao comércio ou outra atividade econômica do devedor), incluindo alguns
semoventes (cinco vacas de leite, dois bois de cargas – ou um cavalo –, vinte porcos) e todas
as provisões necessárias para o consumo de um ano, ficavam livres de execução, em nítida
proteção à família do devedor e, logicamente, dele próprio3.
O Projeto de Código Civil de 1916, em sua redação original proposta por Clóvis Beviláqua, não cuidou de disciplinar o bem de família. Apenas em 1912, ainda em debate o
Projeto no Congresso Nacional, a Comissão Especial do Senado, presidida pelo Senador Feliciano Penna, tratou de inserir a disciplina do bem de família, que culminou por encontrar
assento legal nos arts. 70 a 73 do aludido diploma, em sua Parte Geral4.
Contudo, da maneira como foi estruturado o instituto no bojo do Código de 1916, o
bem de família não atendia às necessidades da família brasileira que, na sua grande maioria,
não era dotada de riqueza imobiliária (e mesmo os proprietários de imóveis não se mostravam interessados em se valer do instituto diante da inadequada regulamentação)5.
Nenhum limite de valor estabeleceu a Lei Civil para o bem escolhido para residência da família. Todavia, o art. 19 do Decreto-Lei nº 3.200/1941 estipulou, inicialmente, o
valor de 100 contos de réis para o imóvel, quantia progressivamente adaptada até a Lei nº
6.742/1979, que deu redação definitiva ao art. 196, o qual deixou de estipular um limite de
valor para o bem de família desde que o imóvel seja residência dos interessados por mais
de 2 (dois) anos7.
A parte processual vinha regulada no Código de Processo Civil de 1939, especificamente nos arts. 647 a 651, que foram mantidos em vigor até que a legislação especial
tratasse da matéria, o que é feito, atualmente, pelos arts. 260 a 265 da Lei nº 6.015/19738.
Com o advento da Lei nº 8.009/1990, foi reconhecido o bem de família legal e involuntário, mantendo-se em vigor o bem de família voluntário previsto no Código Civil,
instituído por meio de escritura pública pela entidade familiar ou por testamento9.
2 VAMPRÉ, Spencer. Interpretação do código civil. São Paulo: Livraria e Oficinas Magalhães, 1919. p. 171.
3 Cf. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit., p. 542.
4 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: Direito de família – As famílias em
perspectiva constitucional. São Paulo: Saraiva, v. 6, 2011. p. 388.
5 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit., p. 542.
6 Art. 19 do Decreto-Lei nº 3.200/1941: “Não há limite de valor para o bem de família desde que o imóvel seja residência
dos interessados por mais de 2 (dois) anos”.
7 ASSIS, Araken de. Manual de execução. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 274.
8 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: Direito da família. 12. ed. São Paulo: Atlas, v. 6, 2012. p. 398.
9 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: Direito de família. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 5,
2012. p. 601.
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Penhorabilidade do Bem de Família
A Lei nº 10.406/2002, atual Código Civil, regulou a instituição do bem de família voluntário nos arts. 1.711 a 1.722.
O Projeto do Estatuto das Famílias10 suprime o instituto do bem de família por entender
o seu absoluto desuso e o fato de aquele introduzido pela Lei nº 8.009/1990 regular suficientemente a proteção e o interesse da família11.
Ultrapassada a análise das origens do instituto, urge tecer algumas considerações acerca da titularidade da propriedade do objeto de estudo. Alguns doutrinadores entendem que
há transmissão da propriedade na instituição do bem, em que o adquirente é a família como
personalidade coletiva, sendo transmitente o instituidor como chefe da família. Contudo, na
esteira do que defende Sílvio de Salvo Venosa, em razão de a família não possuir personalidade jurídica, não se perfilha este entendimento12.
Serpa Lopes, por sua vez, defendia se tratar de condomínio sui generis, segundo o qual
nenhum dos cotitulares possui cota individual13.
Entretanto, considera-se como mais adequada a posição sustentada por Caio Mário da
Silva Pereira, no sentido de que não se verifica, de fato, uma transmissão (salvo constituição
por terceiro), porque a coisa não sai da propriedade do pater familias e não ocorre a criação
de um condomínio, razão pela qual nenhum dos membros do grupo familiar tem uma cota
ideal do imóvel. De modo a comprovar sua tese, o autor ressalta o fato de que, com a morte
dos cônjuges e a maioridade dos filhos, opera-se de pleno direito a sua extinção da mesma
forma que esta pode ser declarada a requerimento dos interessados, se o bem tiver deixado
de preencher o requisito de sua destinação. Conclui-se, portanto, que não sofre a coisa,
como objeto de relação jurídica, uma alteração essencial na sua natureza. É, e continua
sendo objeto do direito de propriedade do instituidor, mas afetado a uma finalidade sub
conditione da utilização como domicílio dos membros da família14.
À guisa de definição da expressão, reúne-se uma série de conceitos que, aglutinados,
formam aquilo que se logrou entender como um complexo absolutamente indispensável à
estrutura de segurança material e moral do sujeito de direito. É o bem que impede ao credor
o acesso às coisas indispensáveis à vida do devedor15.
10
11
12
13
Projeto de Lei nº 2.285/2007.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil..., p. 400.
Idem, p. 399.
SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil – Introdução, parte geral e teoria dos negócios jurídicos. 5. ed. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, v. 1, 2001. p. 404-406.
14 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 600.
15 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012. p. 1438.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Assim, pode-se considerar o bem de família como o bem empregado para assegurar a
sobrevivência digna16 dos integrantes da família17, no mínimo existencial18, já que a família
é a célula menor e fundamental da sociedade.
2 REGRA DA IMPENHORABILIDADE
No presente tópico pretende-se apenas e tão somente analisar a regra da impenhorabilidade positivada na Lei nº 8.009/1990, haja vista que o Código Civil de 2002 traz regras
claras sobre o bem de família voluntário.
Inicialmente, imperioso se faz a fixação de uma premissa: a impenhorabilidade a que
faz menção a Lei nº 8.009/1990 só deve alcançar os bens imprescindíveis para a família19.
Explica-se.
O instituidor da referida impenhorabilidade é o próprio Estado que, por via do seu
poder de império, impõe ao particular a impenhorabilidade de seu único bem imóvel em
defesa da entidade familiar20.
Por isso, estão excluídos do manto da impenhorabilidade todos os equipamentos que
sejam de elevado valor ou que excedam às necessidades correspondentes a um médio padrão de vida (art. 649, II, in fine, do CPC). O art. 2º da Lei nº 8.009/1990 segue a mesma
diretriz ao reconhecer a impenhorabilidade dos bens móveis “suntuosos”21.
16 “Sobrevivência digna implica no respeito à dignidade da pessoa humana, que se trata de qualidade intrínseca e distintiva
reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável” (Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais
na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 62).
17 Frise-se que, “como forma de atender à finalidade social da lei, a doutrina e a jurisprudência reconhecem, como
destinatários desta garantia, o morador individual, a viúva, os irmãos solteiros, a ex-companheira e os filhos, os conviventes
do mesmo sexo, enfim, a pessoa humana de um modo geral” (Cf. REDONDO, Bruno Garcia. A impenhorabilidade da
remuneração do executado e do imóvel residencial à luz dos princípios constitucionais e processuais. Disponível em:
<http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Bruno%20Garcia%20Redondo%20-formatado.pdf>. Acesso em: 13 out.
2013).
18 Mínimo existencial pode ser definido como sendo a garantia das condições materiais básicas de vida, ostentando,
portanto, uma dimensão negativa como uma positiva. Na sua dimensão negativa, opera como um limite, impedindo a
prática de atos pelo Estado ou por particulares que subtraiam do indivíduo as referidas condições materiais indispensáveis
para uma vida digna. Já na sua dimensão positiva, envolve um conjunto essencial de direitos prestacionais (SARMENTO,
Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-jurídicos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira;
SARMENTO, Daniel (Coord.). Direitos sociais – Fundamentos, judicialização e direitos sociais e espécie. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2010. p. 576).
19BRASIL. TJSP, São Paulo, 2ª TACv, 10ª Câmara, Apelação Cível nº 720595-0/9, Rel. Nestor Duarte,
J. 22.11.2011.
20 BREITMAN, Nei. Algumas considerações sobre a (im)penhorabilidade do bem de família: evolução do instituto. Revista
Síntese Direito de Família, v. 14, n. 74, p. 121.
21AMARAL, Paulo Osternack. Impenhorabilidade do bem de família. Revista Dialética de Direito Processual,
n. 115, p. 76.
162
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Destaque-se que a proteção conferida pela Lei não visa assegurar ao executado a manutenção do seu padrão de vida, mas sim garantir ao referido o necessário para fazer frente
às “necessidades” comuns e inerentes a um “médio padrão de vida”, não pairando dúvida
de que tais conceitos variam de lugar para lugar22.
A interpretação deste dispositivo deve levar em conta sua ratio, que é a de garantir
apenas o mínimo necessário à sobrevivência digna do executado. Dignidade, conforme
supradefinido, não significa luxo nem ostentação, que, quando presentes, devem excluir o
devedor do âmbito da incidência da proteção constante da norma23.
Assim, a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida pela Lei nº 8.009/1990
não deve resguardar suntuosas propriedades em que residam o devedor, o qual pode alojar-se em local de menor valor24.
O Código Civil de 2002, no parágrafo único do art. 1.715, ao tratar da hipótese de
ser penhorado o bem de família convencional por dívidas provenientes de tributos relativos
ao prédio ou de despesas do condomínio, dispõe ser devido resguardar quantia suficiente
para o sustento familiar, o que demonstra a opção do legislador em tutelar da moradia e seu
sustento como sendo o ponto nodal da referida regra, a qual pode (e deve) ser transpassada
para a regulamentação do bem de família legal.
2.1 Interpretação teleológica da regra legal
A percepção do significado humano e político das impenhorabilidades impõe uma
interpretação teleológica das disposições contidas nos arts. 649 e 650, ambos do CPC, de
modo a evitar, de um lado, sacrifícios exagerados e, de outro, exageros de liberalização25,
pois é o princípio da dignidade da pessoa humana, portanto, também o responsável pela humanização da execução, recortando do patrimônio o mínimo indispensável à sobrevivência
digna do obrigado26.
É o direito constitucional à moradia27, aliado ao macroprincípio de proteção à dignidade da pessoa humana, que deve ser considerado o fundamento normativo maior da proteção ao bem de família28.
22 Idem, ibidem.
23 REDONDO, Bruno Garcia. A impenhorabilidade da remuneração do executado e do imóvel residencial à luz dos
princípios constitucionais e processuais. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Bruno%20Garcia%20
Redondo%20-formatado.pdf>. Acesso em: 13 out. 2013.
24 DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 298.
25 FARIAS, Cristiano Chaves de. A excepcional possibilidade de penhora de bem imóvel de elevado valor à luz da dignidade
da pessoa humana (uma proposta de nova compreensão da matéria). In: FARIAS, Cristiano Chaves de. Escritos de
direito e processo das famílias: novidades e polêmicas. 2. Série. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 243.
26 ASSIS, Araken de. Op. cit., p. 277.
27 Acerca da relação entre o direito à moradia e à dignidade da pessoa humana, confira-se: MARÇAL, Thaís Boia. Direito
fundamental social à moradia. Rio de Janeiro: LerFixa, 2011. p. 77-118.
28 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 391.
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Penhorabilidade do Bem de Família
Assim, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, a regra destina-se a
excluir do patrimônio penhorável o mínimo indispensável à sobrevivência digna do proprietário e das demais pessoas que vivem com ele29.
Tal raciocínio se coaduna com a tese de Luiz Edson Fachin acerca da necessidade de
tutela do que se convencionou chamar de “patrimônio mínimo”, que deve ser mensurado
segundo parâmetros elementares de uma vida digna e do qual não pode ser expropriado
ou desapossado. Por força desse princípio, independentemente de previsão legal específica
instituidora dessa figura jurídica, e para além de mera impenhorabilidade como abonação,
ou inalienabilidade como gravame, sustenta-se existir imunidade juridicamente inata ao ser
humano, superior aos interesses dos credores30.
De acordo com o autor, a garantia de um patrimônio mínimo, a exemplo do que ocorre
com o denominado “bem de família”, não afeta direta e necessariamente o direito material
de crédito propriamente dito, mas sim retira o bem da órbita da execução, tratando-se de
uma causa que não impugna a regra segundo a qual o patrimônio (leia-se: o patrimônio
disponível) do devedor é a garantia do credor31.
Nesta senda percebe-se que a proteção de um patrimônio mínimo vai ao encontro da
despatrimonialização das relações civis, haja vista que põe em primeiro plano a pessoa e
suas necessidades fundamentais32.
Com isso, em se tratando de bem de elevado valor, não se justificaria a proteção por
não mais encontrar fundamento na tutela da dignidade do devedor33.
Logo, são plenamente penhoráveis os imóveis utilizados para lazer, como casas de
veraneio, na medida em que não consistem na moradia permanente. Também escapam da
proteção legal os barcos residenciais, pois, muito embora possam preencher o requisito da
moradia permanente da família, não constituem prédio34.
Por oportuno, conclui-se com o princípio segundo o qual a impenhorabilidade do
bem de família deve ceder sempre que este for o único bem do executado e seu valor ultrapassar excessivamente aquele que seria condizente com o padrão médio de vida do homem
comum35.
Assim, em casos como o narrado, deve-se poder penhorar o bem, levá-lo à arrematação e reservar parte do dinheiro obtido para a compra de uma habitação razoável para
esse devedor36.
29
30
31
32
33
34
35
AMARAL, Paulo Osternack. Op. cit., p. 69.
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 1.
Idem, ibidem, passim.
Idem, p. 11-12.
FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., p. 235.
AMARAL, Paulo Osternack. Op. cit., p. 69.
MEDINA, José Miguel Garcia. Código de processo civil comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.
754.
36 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: Execução. 3. ed. São Paulo: Malheiros, v. IV,
2009. p. 1541.
164
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
De modo a ratificar tal orientação, insta destacar o tratamento conferido ao bem de
família por ordenamentos jurídicos alienígenas.
No Direito chileno, a impenhorabilidade do bem de família limita-se aos imóveis ocupados efetivamente pelo devedor e por sua família, desde que este bem não tenha valor de
avaliação fiscal superior a 50 unidades tributárias mensais ou quando se tratar de residência
emergencial (art. 445, nº 8, do Código de Procedimiento Civil Chileno)37.
Já no Direito uruguaio não há restrição à penhora de imóveis, mas apenas de bens
móveis ou utensílios de uso pessoal do devedor ou de sua família, e ainda com a condição
de que não sejam suntuosos e de alto valor (art. 381 e 382 do CGP uruguaio)38.
Na Venezuela, o bem de família pode ser constituído pela residência e terras de cultivo, mas com valor máximo de 40 mil bolívares, conforme dispõe o Código Civil venezuelano39.
Da análise exemplificativa do tratamento legislativo dos ordenamentos jurídicos supracitados percebe-se que a maioria dos países, ao tratar da matéria, deixa clara que a
proteção se destina à garantia da sobrevivência da família. Quando não se limita o bem de
família a um valor máximo, estipula-se que deverá dar garantia mínima para que a família
se desenvolva. Com essa finalidade, em geral, torna-se o bem inalienável e protegido de
penhora judicial, constituindo-se um patrimônio cujo valor, quase sempre, procura prover
à família recursos para afastar as imprevistas dificuldades a que possam vir a se sujeitar40.
2.2 Aplicação do princípio da proporcionalidade
Concluir que a Lei nº 8.009/1990 impossibilita a penhora do imóvel luxuoso, ainda
que utilizado como bem de família, afronta a razoabilidade por não guardar proporcionalidade entre o bem jurídico tutelado (o direito a um patrimônio vasto, excedendo o limite do
necessário a um padrão médio de vida digna) e o bem jurídico sacrificado (a pretensão do
credor).
Explica-se.
Não é razoável permitir que o devedor mantenha um alto padrão de vida, com conforto e comodidade excessivos, em detrimento de seus credores que podem vir a sofrer um
comprometimento de sua digni­dade41.
37 ARENHART, Sérgio Cruz. “A impenhorabilidade de imóvel de família de elevado valor e de altos salários”. Disponível
em:
<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CCsQFjAA&ur
l=http%3A%2F%2Fwww.academia.edu%2F220172%2fa_penhorabilidade_de_imovel_de_familia_de_elevado_
valor_e_de_altos_salarios&ei=EwtbUqDCGcnqqQH02ºDQAg&usg=AFQjCNGaorAAK1rP9G3V3ºrG3UDi79uL1A&bvm=bv.53899372,d.aWc>. Acesso em: 13 out. 2013. passim.
38 Idem, passim.
39 BITENCOURT, José Ozório de Souza. Da limitação do valor do bem de família instituído na Lei nº 8.009/1990. Trabalho
monográfico da EMERJ, 1999 (mimeografado) passim.
40 Idem, passim.
41 FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., p. 238.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Entre os direitos fundamentais há uma preferência prima facie dos direitos e liberdades existenciais, dos ligados à garantia dos pressupostos da democracia e das condições
existenciais de vida sobre aqueles de conteúdo meramente patrimonial ou econômico. Esta
prioridade pode também ser inferida do sistema constitucional brasileiro, bem como de uma
teoria moral e política razoável, que privilegia o imperativo de promoção da justiça social,
no cenário de uma sociedade profundamente desigual, o que não seria respeitado diante
desta possibilidade de penhora42.
Há que se lembrar que a propriedade encerra, muitas vezes, notadamente em cumprimento da sua função social, um conteúdo essencial e vinculado diretamente à própria
dignidade da pessoa, como ocorre, por exemplo, com o imóvel que serve de moradia ao
titular do domicílio, não podendo ser utilizada apenas e tão somente como subterfúgio para
conservação da riqueza em detrimento da responsabilidade patrimonial do executado ilegitimamente43.
A legitimidade dessas normas e de sua aplicação está intimamente ligada à sua interseção em um plano de indisponível equilíbrio entre os valores da cidadania, inerentes a
todo ser humano, e os da tutela jurisdicional prometida constitucionalmente, ambos dignos
de maior realce na convivência social, mas nenhum deles capaz de conduzir à irracional
aniquilação do outro44.
Nesta quadra percebe-se que, com a impossibilidade da penhora, visa-se apenas e tão
somente que a execução não leve o executado a uma situação incompatível com a dignidade da vida humana e não permitir padrões de vida luxuosos45.
2.3 Adequação na não previsão do bem “luxuoso”
De modo a não permitir situações incoerentes decorrentes da suposta impenhorabilidade do bem de família luxuoso, concebeu-se um Projeto de Lei – que posteriormente resultou
na Lei nº 11.382/2006 – que, entre outras alterações na execução civil, pretendia inserir um
parágrafo único no art. 650 do CPC, contemplando regra que limitava a impenhorabilidade
ao bem de família que não excedesse 1.000 (um mil) salários-mínimos. Com isso, imóveis
residenciais cujo valor fosse superior a 1.000 salários-mínimos poderiam ser penhorados e
expropriados. Do valor apurado seria entregue ao devedor quantia equivalente àquele limite, sob cláusula de impenhorabilidade. Se o valor do imóvel não atingisse o limite de 1.000
salários-mínimos, permaneceria integralmente protegido pela impenhorabilidade46.
42 SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho.
Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 526.
43 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 90.
44 FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., p. 243.
45 FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p. 206.
46 AMARAL, Paulo Osternack. Op. cit., p. 79. ARAÚJO, José Henrique Mouta. A impenhorabilidade do bem de família:
algumas variáveis. Revista Dialética de Direito Processual, n. 99, p. 50, jun. 2011.
166
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
O Projeto de Lei que alterou parte do processo de execução visava estabelecer este
parâmetro objetivo, ao fixar como penhorável o bem de família acima de 1.000 saláriosmínimos. Contudo, houve veto a esta tentativa de inclusão do parágrafo único ao art. 650
do CPC47.
As razões do veto quanto à fixação de parâmetro objetivo para sua definição foram as
seguintes:
O Projeto de Lei quebra o dogma da impenhorabilidade absoluta de todas as verbas de natureza alimentar, ao mesmo tempo em que corrige discriminação contra os trabalhadores
não empregados ao instituir impenhorabilidade dos ganhos de autônomos e de profissionais
liberais. Na sistemática do Projeto de Lei, a impenhorabilidade é absoluta apenas até vinte
salários-mínimos líquidos. Acima desse valor, quarenta por cento poderá ser penhorado.
A proposta parece razoável porque é difícil defender que um rendimento líquido de vinte
vezes o salário-mínimo vigente no País seja considerado como integralmente de natureza
alimentar. Contudo, pode ser contraposto que a tradição jurídica brasileira é no sentido da
impenhorabilidade, absoluta e ilimitada, de remuneração. Dentro desse quadro, entendeu-se
pela conveniência de opor veto ao dispositivo para que a questão volte a ser debatida pela
comunidade jurídica e pela sociedade em geral.
Na mesma linha, o Projeto de Lei quebrou o dogma da impenhorabilidade absoluta do bem
de família, ao permitir que seja alienado o de valor superior a mil salários-mínimos, “caso em
que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob
cláusula de impenhorabilidade”. Apesar de razoável, a proposta quebra a tradição surgida
com a Lei nº 8.009, de 1990, que “dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família”, no
sentido da impenhorabilidade do bem de família independentemente do valor. Novamente,
avaliou-se que o vulto da controvérsia em torno da matéria torna conveniente a reabertura do
debate a respeito mediante o veto ao dispositivo.48
De início, na esteira do defendido por Sérgio Cruz Arenhart, vê-se a estranheza paradoxal dos motivos apontados no veto, pois, ainda que ali se indique ser razoável a previsão,
entende-se que deve prevalecer a “tradição” jurídica brasileira, de modo a manter-se a proteção indiscriminada de tais bens49.
Ao se analisar esta justificativa, conclui-se, conforme sustentado pelo referido processualista, que o veto em questão é manifestamente inconstitucional50, pois o motivo apontado no veto é a necessidade de maior amadurecimento das propostas contidas naquelas regras, o que não é razão suficiente para autorizar o veto, haja vista que
o espaço para discussão da viabilidade ou não da nova disciplina jurídica se insere na
atividade do Poder Legislativo, não se admitindo que possa o Poder Executivo contro47 Mensagem de Veto nº 1.047/2006.
48 Mensagem de Veto nº 1.047/2006.
49 ARENHART, Sérgio Cruz. “A impenhorabilidade de imóvel de família de elevado valor e de altos salários”. Disponível
em:
<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CCsQFjAA&ur
l=http%3A%2F%2Fwww.academia.edu%2F220172%2fa_penhorabilidade_de_imovel_de_familia_de_elevado_
valor_e_de_altos_salarios&ei=EwtbUqDCGcnqqQH02ºDQAg&usg=AFQjCNGaorAAK1rP9G3V3ºrG3UDi79uL1A&bvm=bv.53899372,d.aWc>. Acesso em: 13 out. 2013. passim.
50Idem, passim.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
lar tais opções. Destarte, observa-se que houve flagrante violação à disciplina constitucional do poder de veto. Com isso, percebe-se que, ao considerar o equilíbrio entre as
garantias da proteção da propriedade privada (art. 5º, XXII, da CF) e da tutela adequada
(art. 5º, XXXV, da CF), o veto presidencial elegeu instrumento inidôneo para realizar esta compatibilização, ao proteger exageradamente a propriedade para além do mínimo essencial para
sua existência, inviabilizando a tutela jurisdicional adequada ao credor, violando a cláusula
da adequação que deveria reger a colisão de direitos fundamentais em questão51.
Ademais, obstar a penhora de bem imóvel de alto valor viola, frontalmente, a efetividade da prestação jurisdicional, na medida em que se confere proteção insuficiente ao
direito fundamental (e constitucionalmente assegurado) – art. 5º, XXXV, da CF – de ação, no
momento em que impede a sua efetividade52.
Assim, a penhora de bens imóveis de alto valor independe do veto presidencial e, por
conseguinte, da ausência de norma legal, haja vista que a ratio essendi reside na aplicação
direta de princípios constitucionais, em especial, a efetivação da dignidade da pessoa humana, da efetivação da atuação jurisdicional e da razoabilidade53.
Somente em cada caso concreto será possível inferir qual é o padrão médio de cada
pessoa, de modo a reconhecer se os seus bens são, ou não, de padrão médio, tendo como
norte o princípio da proporcionalidade54, sendo certo que a determinação de qualquer critério predeterminado de valoração revela-se incompatível com a realidade brasileira, que
possui como traço marcante a diversidade social de cada pessoa. Um exemplo que pode ser
citado é o fato de que um imóvel de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) pode ser considerado como luxuoso em uma área de seca nordestina, mas, nos padrões do Sudeste do País,
atende aos padrões de vida média.
Desta forma, a análise do que é ou não luxuoso deve recair na análise casuística do
magistrado, que, atentando para as situações do caso concreto, sempre pautado pelo princípio da proporcionalidade, logrará o alcance a sua determinação, concretizando os valores
da justiça social.
Destarte, buscando uma interpretação principiológica, partindo-se da força normativa dos princípios (e, em especial, dos princípios constitucionais), é de se refletir quanto à
garantia de acesso à ordem jurídica justa e efetiva, decorrente do art. 5º, XXXV, da CF, permitindo concluir que, inexistindo bens penhoráveis (móveis ou imóveis) pertencentes ao devedor, resta possível penhorar o bem de família de alto valor (ou seja, aquele que ultrapassa
o padrão médio e a vida digna). Do contrário, o Estado abandonaria o credor à míngua, com
a frustração de seu crédito, apesar de seu devedor possuir um vasto patrimônio55.
51Idem, passim.
52 FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., p. 238.
53 Idem, p. 237.
54 Idem, p. 235.
55 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos das famílias. 2. ed. 3. tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010. p. 821-822.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
3 SÍNTESE CONCLUSIVA
1. Em geral, a casa própria é a grande meta econômica dos casais que se unem, pois
constitui uma segurança para a família, a qual pressupõe a habitação para atender a grande
parte de suas necessidades de vida. Adquirindo um imóvel residencial, este passa a ser uma
conquista para a família, a sede de suas relações pessoais, o seu habitat. O bem de família
legal complementa a conquista, classificando o imóvel como bem impenhorável. O imóvel
é apenas o princípio, pois o mobiliário é indispensável aos fatos do cotidiano; daí a sua inclusão como objeto do bem de família e o seu caráter impenhorável56.
2. O ordenamento jurídico pátrio, como forma de manifestar a importância da moradia para o desenvolvimento do núcleo familiar, conferiu especial tutela ao que se convencionou chamar de bem de família, entendido como o bem empregado para assegurar a
sobrevivência digna dos integrantes da família, no mínimo existencial, já que a família é a
célula menor e fundamental da sociedade57.
3. Os benefícios do Código de 2002 e da Lei nº 8.009/1990, priorizando a convivência do núcleo familiar, representam a efetiva segurança para a vida e o desenvolvimento de
seus membros, assegurando a necessidade de uma moradia digna, o que não chancela a
proteção de bens luxuosos58.
4. Assim, não dispondo o executado de outros bens móveis que sejam capazes de
garantir a execução e possuindo seu imóvel residencial valor elevado, que ultrapasse significativamente o médio padrão de vida, deve o magistrado permitir a penhora e a expropriação desse bem, cabendo-lhe entregar ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade
absoluta, uma parcela do produto desta alienação capaz de proporcionar ao executado a
aquisição de outro imóvel, no qual também consiga residir de forma digna59.
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57 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit., p. 543.
58 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 609.
59 REDONDO, Bruno Garcia. A impenhorabilidade da remuneração do executado e do imóvel residencial à luz dos
princípios constitucionais e processuais. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Bruno%20Garcia%20
Redondo%20-formatado.pdf>. Acesso em: 13 out. 2013. passim.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
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171
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Acórdão na Íntegra
7016
Superior Tribunal de Justiça
Recurso Especial nº 1.413.717 – PR (2013/0204788-5)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Recorrente: Bridgestone Firestone do Brasil Indústria e Comércio Ltda.
Advogado: Túlio Freitas do Egito Coelho e outro(s)
Recorrido: A. C. e outros
Advogado: José Roberto Dutra Hagebock
EMENTA
RECURSO ESPECIAL – DIREITO CIVIL – BEM DE FAMÍLIA OFERECIDO EM GARANTIA REAL HIPOTECÁRIA – PESSOA
JURÍDICA, DEVEDORA PRINCIPAL, CUJOS ÚNICOS SÓCIOS SÃO MARIDO E MULHER – EMPRESA FAMILIAR –
DISPOSIÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA QUE SE REVERTEU EM BENEFÍCIO DE TODA UNIDADE FAMILIAR – HIPÓTESE
DE EXCEÇÃO À REGRA DA IMPENHORABILIDADE PREVISTA EM LEI – ARTIGO ANALISADO: 3º, INC. V, LEI Nº
8.009/1990
1. Embargos do devedor opostos em 24.06.2008, do qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 19.08.2013.
2. Discute-se a penhorabilidade de bem de família quando oferecido em garantia real
hipotecária de dívida de pessoa jurídica da qual são únicos sócios marido e mulher.
3. O STJ há muito reconhece tratar-se a Lei nº 8.009/1990 de norma cogente e de ordem pública, enaltecendo seu caráter protecionista e publicista, assegurando-se especial proteção ao bem de família à luz do direito fundamental à moradia, amplamente
prestigiado e consagrado pelo Texto Constitucional (art. 6º, art. 7º, IV, 23, IX, CF/1988).
4. Calcada nessas premissas, a jurisprudência está consolidada no sentido de que a
impenhorabilidade do bem de família, na hipótese em que este é oferecido em garantia real hipotecária, somente não será oponível quando tal ato de disponibilidade
reverte-se em proveito da entidade familiar. Precedentes.
5. Vale dizer, o vetor principal a nortear em especial a interpretação do inc. V do art. 3º
da Lei nº 8.009/1990 vincula-se à aferição acerca da existência (ou não) de benefício
à entidade familiar em razão da oneração do bem, de tal modo que se a hipoteca não
reverte em vantagem a toda família, favorecendo, v.g., apenas um de seus integrantes,
em garantia de dívida de terceiro (a exemplo de uma pessoa jurídica da qual aquele
é sócio), prevalece a regra da impenhorabilidade como forma de proteção à família –
que conta com especial proteção do Estado; art. 226, CF/1988 – e de efetividade ao
direito fundamental à moradia (art. 6º, CF/1988).
172
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
6. É indiscutível a possibilidade de se onerar o bem de família, oferecendo-o em garantia real hipotecária. A par da especial proteção conferida por lei ao instituto, a opção
de fazê-lo está inserida no âmbito de liberdade e disponibilidade que detém o proprietário. Como tal, é baliza a ser considerada na interpretação da hipótese de exceção.
7. Em se tratando de exceção à regra da impenhorabilidade – a qual, segundo o contorno conferido pela construção pretoriana, se submete à necessidade de haver benefício
à entidade familiar –, e tendo em conta que o natural é a reversão da renda da empresa
familiar em favor da família, a presunção deve militar exatamente nesse sentido e não
o contrário. A exceção à impenhorabilidade e que favorece o credor está amparada
por norma expressa, de tal modo que impor a este o ônus de provar a ausência de
benefício à família contraria a própria organicidade hermenêutica, inferindo-se flagrante também a excessiva dificuldade de produção probatória.
8. Sendo razoável presumir que a oneração do bem em favor de empresa familiar beneficiou diretamente a entidade familiar, impõe-se reconhecer, em prestígio e atenção
à boa-fé (vedação de venire contra factum proprium), a autonomia privada e ao regramento legal positivado no tocante à proteção ao bem de família, que eventual prova
da inocorrência do benefício direto é ônus de quem prestou a garantia real hipotecária.
9. Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma
do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e, nesta parte, dar provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Sidnei
Beneti e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Paulo de Tarso Sanseverino. Presidiu o
julgamento o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Dr(a). Mauro Pedroso Gonçalves, pela
parte Recorrente: Bridgestone Firestone do Brasil Indústria e Comércio Ltda.
Brasília (DF), 21 de novembro de 2013 (data do Julgamento).
Ministra Nancy Andrighi
Relatora
RELATÓRIO
A Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto por Bridgestone Firestone do Brasil Indústria e
Comércio Ltda., com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional.
Ação: embargos do devedor, opostos pelos recorridos A. C., D. L. C. e AC Comércio de
Pneus Ltda., na qual sustentaram, no que interessa ao presente recurso, a impenhorabilidade
173
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
de imóvel dado em garantia hipotecária de dívida da pessoa jurídica recorrida. Explicaram
que referido bem, de propriedade do casal recorrido, é o imóvel no qual residem, sendo o
único de sua propriedade.
Sentença: julgou improcedente os embargos do devedor.
Acórdão: reconheceu a impenhorabilidade do bem imóvel dado em garantia, sob o
fundamento de que o casal recorrido nele reside e, ainda, de que o inc. V, do art. 3º, da
Lei nº 8.009/1990 não se aplica à espécie, “porquanto limitada à hipótese da hipoteca ser
instituída em favor dos próprios devedores diretos, não se aplicando quando tal garantia é
prestada em favor de terceiros”, que na hipótese é a pessoa jurídica recorrida. Ementa nos
seguintes termos:
EMBARGOS À EXECUÇÃO – RAZÕES RECURSAIS COM FUNDAMENTAÇÃO DESTINADA À
REFORMA DA SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE E CUMPRIMENTO AO DISPOSTO NO INC. 11 DO ART. 514 DO CPC – IRRELEVÂNCIA DA INCORRETA INDICAÇÃO DE FOLHAS NO RELATÓRIO DA SENTENÇA – PRECLUSÃO SOBRE
A QUESTÃO DO PROCESSAMENTO DA EXECUÇÃO COMO HIPOTECÁRIA – EXECUÇÃO
LASTREADA EM ESCRITURA PÚBLICA DE CONSTITUIÇÃO DE GARANTIA HIPOTECÁRIA
ATÉ DETERMINADO VALOR, AINDA QUE DE DÍVIDA FUTURA, COM VINCULAÇÃO ÀS
OPERAÇÕES MERCANTIS REALIZADAS ENTRE CREDOR E DEVEDOR – REGULARIDADE
DESSA PACTUAÇÃO – LIQUIDEZ, CERTEZA E EXIGIBILIDADE DA ESCRITURA PÚBLICA
VINCULADA ÀS DUPLICATAS SACADAS – ATRIBUTOS DO TÍTULO EXECUTIVO PRESENTES – PENHORA DO IMÓVEL OBJETO DA GARANTIA HIPOTECÁRIA PRESTADA EM
FAVOR DE PESSOA JURÍDICA – SUBSISTÊNCIA DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE
FAMÍLIA E INAPLICABILIDADE DO INC. V DO ART. 30 DA LEI Nº 8.009/1990 – REFORMA
PARCIAL DA SENTENÇA PARA DESCONSTITUIÇÃO DESSA PENHORA
Apelação cível parcialmente provida.
Recurso Especial: sustenta violação aos arts. 1º e 3º, V, da Lei nº 8.009/1990 e dissídio jurisprudencial. Defende que “a lei não restringe a exceção [...] à hipótese de a dívida
garantida hipotecariamente pelo imóvel ter sido contraída diretamente pelo casal/família”.
De qualquer forma, ressalta que “o imóvel foi dado em garantia pelo casal, de livre e espontânea vontade, para garantir dívida contraída por sua própria empresa”.
Prévio juízo de admissibilidade: o recurso foi inadmitido na origem, tendo sido interposto agravo pelo recorrente, o qual foi conhecido para, por decisão unipessoal desta Relatora, ser improvido o recurso especial (fls. 334/335, e-STJ). Contudo, em reconsideração,
foi determinada a reautuação do agravo regimental interposto contra referida decisão, para
melhor exame da matéria.
É o relatório.
174
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
VOTO
A Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relator):
Cinge-se a controvérsia a definir se é penhorável bem de família dado em garantia hipotecária de dívida de pessoa jurídica da qual são únicos sócios marido e mulher que nele
residem.
1 Violação do art. 1º da Lei Nº 8.009/1990 – ausência de prequestionamento
01. O acórdão recorrido não decidiu acerca do art. 1º da Lei 8.009/1990, indicado
como violado, sendo, por isso, inviável o julgamento do recurso especial, face a ausência
de prequestionamento. Incidência do enunciado nº 282 da Súmula/STF.
2 Penhorabilidade de bem de família dado em garantia de dívida de empresa familiar – violação ao
art. 3º, V, da Lei Nº 8.009/1990
02. Quanto à impenhorabilidade do bem dado em garantia hipotecária pelos recorrentes, marido e mulher sócios da pessoa jurídica devedora, assim decidiu o acórdão recorrido:
No caso dos autos, esses requisitos foram atendidos, visto que é possível extrair dos autos que
os apelantes A. e D. são proprietários do imóvel penhorado e nele residem. Note-se, inclusive,
que o Apelado, por meio da impugnação aos embargos, não questiona o preenchimento de
tais requisitos alegando para rejeição da impenhorabilidade invocada a exceção estabelecida
no inc. V do art. 3º da Lei em comento (fls. 122/123).
Entretanto, referida exceção não é aplicável ao presente caso porquanto limitada à hipótese da
hipoteca ser instituída em favor dos próprios devedores diretos, não se aplicando quando tal
garantia é prestada em favor de terceiros.
Embora o imóvel penhorado tenha sido dado em garantia hipotecária pelos apelantes A. e D.,
vê-se que essa garantia foi prestada em favor de pessoa jurídica, a apelante A. C. Comércio de
Pneus Ltda. Nessa circunstância, mesmo que se trate de empresa familiar, o bem de família
dado em garantia hipotecária não pode ser penhorado, não sendo regular a presunção de que
a divida tenha beneficiado a família.
03. Conforme sustenta o recorrente, a lei não restringe a penhorabilidade do bem de
família à hipótese de dívida – garantida hipotecariamente – contraída pelo casal/família
ou em proveito desta. De qualquer forma, ressalta que o imóvel foi dado em garantia pelo
casal, de livre e espontânea vontade, para garantir dívida contraída por sua própria empresa,
ou seja, em benefício da entidade familiar, admitindo-se, assim, segundo sustenta, a penhora sobre o imóvel.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
04. A questão posta em análise impõe cuidadosa interpretação da Lei nº 8.009/1990,
sendo necessário, para tanto, uma sucinta digressão acerca do instituto do bem de família no
âmbito da jurisprudência do STJ.
05. Não é de hoje que o bem de família atrai a atenção desta Corte, sendo paulatina e
longínqua sua evolução no âmbito jurisprudencial e no próprio Direto brasileiro.
06. Merece especial atenção a jurisprudência deste Tribunal, que historicamente reafirma seu compromisso de unicidade na interpretação e conformação da lei federal, ressaltando-se a marcante influência do princípio da dignidade da pessoa humana e dos valores
constitucionais consectários.
07. Nesse compasso, à luz do direito fundamental à moradia, amplamente prestigiado
e consagrado pelo texto constitucional (art. 6º, art. 7º, IV, 23, IX), a jurisprudência do STJ, na
interpretação da Lei nº 8.009/1990, sempre cuidou de enaltecer seu caráter protecionista e
publicista, assegurando-se especial proteção ao bem de família.
08. Há muito se tem reconhecido tratar-se a Lei nº 8.009/1990 de norma cogente e de
ordem pública, destacando-se, por sua notoriedade, as seguintes decisões:
PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL – EXECUÇÃO MOVIDA CONTRA PESSOA
JURÍDICA – IMÓVEL DE SÓCIO DADO EM GARANTIA HIPOTECÁRIA DA EMPRESA – IMPENHORABILIDADE – LEI Nº 8.009/1990, ART. 3º, V – EXEGESE – PRECEDENTE – QUESTÃO
DE DIREITO – SÚMULA Nº 7/STJ – NÃO INCIDÊNCIA – BEM DE FAMÍLIA – ÚNICO BEM –
RENÚNCIA INCABÍVEL – PROTEÇÃO LEGAL – NORMA DE ORDEM PÚBLICA
I – Ainda que dado em garantia de empréstimo concedido a pessoa jurídica, é impenhorável o imóvel de sócio se ele constitui bem de família, porquanto a regra protetiva, de ordem pública, aliada à personalidade jurídica própria da empresa, não
admite presumir que o mútuo tenha sido concedido em benefício da pessoa física, situação diversa da hipoteca prevista na exceção consignada no inciso V, do art. 3º, da Lei
nº 8.009/1990.
II – A proteção legal conferida ao bem de família pelo mesmo diploma legal não pode ser
afastada por renúncia ao privilégio pelo devedor, constituindo princípio de ordem pública,
prevalente sobre a vontade manifestada, que se tem por viciada ex vi legis.
[...]
IV – Agravo regimental improvido.
(AgRg-REsp 1.187.442/SC, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe 17.02.2011)
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – BEM DE FAMÍLIA OFERECIDO À
PENHORA – RENÚNCIA AO BENEFÍCIO ASSEGURADO PELA LEI Nº 8.009/1990 – IMPOSSIBILIDADE
176
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
1. A indicação do bem de família à penhora não implica em renúncia ao benefício conferido
pela Lei nº 8.009/1990, máxime por tratar-se de norma cogente que contém princípio de ordem pública, consoante a jurisprudência assente neste STJ.
2. Dessarte, a indicação do bem à penhora não produz efeito capaz de elidir o benefício assegurado pela Lei nº 8.009/1990. Precedentes: REsp 684.587/TO, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 13.03.2005; REsp 242.175/PR, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de
08.05.2000; REsp 205.040/SP, 3ª T., Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ de 15.04.1999)
3. As exceções à impenhorabilidade devem decorrer de expressa previsão legal.
4. Agravo Regimental provido para dar provimento ao Recurso Especial.
(AgRg-REsp 813.546/DF, 1ª T., Rel. Min. Francisco Falcão, Rel. p/ Ac. Min. Luiz Fux, DJ
04.06.2007)
PROCESSUAL CIVIL – EXECUÇÃO – EMBARGOS – RECURSO ESPECIAL – PREQUESTIONAMENTO INSUFICIENTE – SÚMULA Nº 211/STJ – BEM DE FAMÍLIA – ÚNICO BEM – RENÚNCIA INCABÍVEL – PROTEÇÃO LEGAL – NORMA DE ORDEM PÚBLICA – LEI Nº 8.009/1990
[...]
II – A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/1990 não pode ser afastada
por renúncia ao privilégio pelo devedor, constituindo princípio de ordem pública, prevalente
sobre a vontade manifestada, que se tem por viciada ex vi legis.
III – Recurso especial não conhecido.
(REsp 805.713/DF, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, DJ 16.04.2007)
09. Por corolário, verifica-se a existência de decisões que prestigiam sobretudo o interesse da família, em sobreposição à eventual ato de disposição manifestado por devedor
dela integrante (v.g., REsp 1.059.805/RS, Rel. Min. Castro Meira, 2ª T., DJe 02.10.2008) e,
ainda, que conferem ao rol de exceções à impenhorabilidade do bem de família, previsto no
art. 3º da Lei nº 8.009/1990, a natureza numerus clausus (v.g. REsp 205.040/SP, Rel. Min.
Eduardo Ribeiro, 3ª T., DJ 13.09.1999).
10. Calcada nessas premissas, a jurisprudência hodierna está consolidada no sentido
de que “a impenhorabilidade do bem de família só não será oponível nos casos em que o
empréstimo contratado foi revertido em proveito da entidade familiar” (AgRg-AREsp 48.975/
MG, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª T., DJe 25.10.2013).
11. De notável representatividade afiguram-se os seguintes precedentes:
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – EXECUÇÃO – CÉDULA DE CRÉDITO COMERCIAL
COM HIPOTECA – IMÓVEL HIPOTECADO DE PROPRIEDADE DE PESSOA JURÍDICA – ÚNICO BEM A SERVIR DE MORADA À ENTIDADE FAMILIAR – LEI Nº 8.009/1990 – IMÓVEL
DADO EM GARANTIA EM FAVOR DE TERCEIRA PESSOA JURÍDICA – INTERVENIENTES
HIPOTECANTES NÃO BENEFICIÁRIOS DO EMPRÉSTIMO – BEM DE FAMÍLIA – MATÉRIA
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
DE ORDEM PÚBLICA – BENEFÍCIO QUE NÃO ADMITE RENÚNCIA POR PARTE DE SEU TITULAR – CARACTERIZAÇÃO DO BEM, OBJETO DA EXECUÇÃO, COMO BEM DE FAMÍLIA
– CONVICÇÃO FORMADA COM BASE NO SUPORTE FÁTICO-PROBATÓRIO – SÚMULA
Nº 7/STJ – INCIDÊNCIA
1. “Para que seja reconhecida a impenhorabilidade do bem de família, de acordo com o art.
1º, da Lei nº 8.009/1990, basta que o imóvel sirva de residência para a família do devedor,
sendo irrelevante o valor do bem” (REsp 1.178.469/SP, 3ª T., Rel. Min. Massami Uyeda, J.
18.11.2010, DJe 10.12.2010).
2. A jurisprudência do STJ tem, de forma reiterada e inequívoca, pontuado que a incidência
da proteção dada ao bem de família somente é afastada se caracterizada alguma das hipóteses
descritas nos incisos I a IV do art. 3º da Lei nº 8.009/1990. Precedentes.
3. O benefício conferido pela Lei nº 8.009/1990 ao instituto do bem de família constitui princípio de ordem pública, prevalente mesmo sobre a vontade manifestada, não admitindo sua
renúncia por parte de seu titular. A propósito, entre outros: REsp 875.687/RS, 4ª T., Rel. Min.
Luiz Felipe Salomão, J. 09.08.2011, DJe 22.08.2011; REsp 805.713/DF, 4ª T., Rel. Min. Aldir
Passarinho Junior, J. 15.03.2007, DJ 16.04.2007
4. A firme jurisprudência do STJ é no sentido de que a excepcionalidade da regra que autoriza a penhora de bem de família dado em garantia (art. 3º, V, da Lei nº 8.009/1990) limita-se
à hipótese de a dívida ter sido constituída em favor da entidade familiar, não se aplicando na hipótese de ter sido em favor de terceiros – caso dos autos (AgRg-Ag 1.126.623/SP,
3ª T., Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, J. 16.09.2010, DJe 06.10.2010;
REsp 268.690/SP, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 12.03.2001).
[...]
6. Agravo regimental não provido.
(AgRg-AREsp 264.431/SE, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 11.03.2013)
PROCESSUAL CIVIL – CIVIL – RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO – IMÓVEL – BEM DE FAMÍLIA – IMPENHORABILIDADE – PROVA DE QUE O IMÓVEL PENHORADO É O ÚNICO
DE PROPRIEDADE DO DEVEDOR – DESNECESSIDADE – EXCEÇÃO DO ART. 3º, V, DA LEI
Nº 8.009/1990 – INAPLICABILIDADE – DÍVIDA DE TERCEIRO – PESSOA JURÍDICA – IMPOSSIBILIDADE DE PRESUNÇÃO DE QUE A DÍVIDA FORA CONTRAÍDA EM FAVOR DA
ENTIDADE FAMILIAR – PRECEDENTES – RECURSO PROVIDO
[...]
2. Não se pode presumir que a garantia tenha sido dada em benefício da família, para, assim,
afastar a impenhorabilidade do bem com base no art. 3º, V, da Lei nº 8.009/1990.
3. Somente é admissível a penhora do bem de família hipotecado quando a garantia foi prestada em benefício da própria entidade familiar, e não para assegurar empréstimo obtido por
terceiro.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
4. Na hipótese dos autos, a hipoteca foi dada em garantia de dívida de terceiro, sociedade
empresária, a qual celebrou contrato de mútuo com o banco. Desse modo, a garantia da hipoteca, cujo objeto era o imóvel residencial dos ora recorrentes, foi feita em favor da pessoa
jurídica, e não em benefício próprio dos titulares ou de sua família, ainda que únicos sócios
da empresa, o que afasta a exceção à impenhorabilidade do bem de família prevista no inciso
V do art. 3º da Lei nº 8.009/1990.
5. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 988.915/SP, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, DJe 08.06.2012)
RECURSO ESPECIAL – PROCESSO CIVIL – EXECUÇÃO – BEM DE FAMÍLIA – IMÓVEL DOS
SÓCIOS DADO EM GARANTIA HIPOTECÁRIA DE DÍVIDA CONTRAÍDA EM FAVOR DA
EMPRESA – IMPENHORABILIDADE RECONHECIDA
1. A exceção do inciso V do art. 3º da Lei nº 8.009/1990 deve se restringir aos casos em que
a hipoteca é instituída como garantia da própria dívida, constituindo-se os devedores em beneficiários diretos, situação diferente do caso sob apreço, no qual a dívida foi contraída pela
empresa familiar, ente que não se confunde com a pessoa dos sócios.
2. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 1.022.735/RS, 4ª T., Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe 18.02.2010)
AGRAVO REGIMENTAL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – IMPENHORABILIDADE DE BEM
DE FAMÍLIA – ART. 3º, V, DA LEI Nº 8.009/1990 – BEM DOS SÓCIOS DE EMPRESA – HIPOTECA DE CONTRATO DA EMPRESA – BENEFICIÁRIOS PRÓPRIOS – NÃO CONFIGURAÇÃO
1. Acerca do art. 3º, V, da Lei nº 8.009/1990, esta Corte tem entendido que ele se aplica aos
casos em que os devedores constituidores da hipoteca deram o bem como garantia da própria
dívida, constituindo-se nos próprios beneficiários.
2. Não se pode presumir que o mútuo tenha sido concedido em benefício da família.
3. Agravo regimental não improvido.
(AgRg-Ag 1.126.623/SP, 3ª T., Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 06.10.2010)
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO – BEM DE FAMÍLIA – IMPENHORABILIDADE – EXCEÇÃO – BEM HIPOTECADO EM BENEFÍCIO DA PRÓPRIA ENTIDADE
FAMILIAR – GARANTIA REAL CONCEDIDA EM BENEFÍCIO DE TERCEIRO – IMPENHORABILIDADE MANTIDA – AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO
O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência firmada no sentido de que a possibilidade
de penhora do bem de família hipotecado só é admissível quando a garantia foi prestada em
benefício da própria entidade familiar, e não para assegurar empréstimo obtido por terceiro.
Agravo Regimental improvido.
(AgRg-Ag 921.299/SE, 3ª T., Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 28.11.2008)
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Penhorabilidade do Bem de Família
PROCESSUAL CIVIL – EXECUÇÃO MOVIDA CONTRA PESSOA JURÍDICA – IMÓVEL DE
SÓCIO DADO EM GARANTIA HIPOTECÁRIA DA EMPRESA – IMPENHORABILIDADE – LEI
Nº 8.009/1990, ART. 3º, V – EXEGESE
I – Ainda que dado em garantia de empréstimo concedido a pessoa jurídica, é impenhorável o imóvel de sócio se ele constitui bem de família, porquanto a regra protetiva, de ordem pública, aliada à personalidade jurídica própria da empresa, não
admite presumir que o mútuo tenha sido concedido em benefício da pessoa física, situação diversa da hipoteca prevista na exceção consignada no inciso V, do art. 3º, da Lei
nº 8.009/1990.
II – Recurso especial não conhecido.
(REsp 302.186/RJ, Rel. Min. Barros Monteiro, 4ª T., Rel. p/ Ac. Min. Aldir Passarinho Júnior,
DJ 21.02.2005)
12. Como se pode ver, a construção pretoriana tem prestigiado a entidade familiar
ainda quando presente hipótese de exceção à regra da impenhorabilidade, a exemplo da
“execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real” (art. 3º, inc. V, Lei nº
8.009/1990).
13. Vale dizer, prevalece a compreensão de que a excepcionalidade se submete à
principiologia que deu ensejo à lei do bem de família, curvando-se esta também à sua mens
legis. É que, consoante frisa Luís Roberto Barroso, “o aplicador da norma infraconstitucional,
dentre mais de uma interpretação possível, deverá buscar aquela que a compatibilize com a
Constituição, ainda que não seja a que mais obviamente decorra de seu texto” (BARROSO,
Luís Roberto. A nova interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 361).
14. Nessa tônica, das decisões existentes no STJ, extrai-se que o vetor principal a nortear
em especial a interpretação do inc. V do art. 3º da Lei nº 8.009/1990 vincula-se à aferição
acerca da existência (ou não) de benefício à entidade familiar em razão da oneração do bem
(ainda que, conforme sustenta o recorrente, a lei não disponha exatamente nesse sentido).
15. Em síntese, se a hipoteca não reverte em benefício de toda família, favorecendo,
v.g., apenas um de seus integrantes, em garantia de dívida de terceiro (a exemplo de uma
pessoa jurídica da qual aquele é sócio), prevalece a regra da impenhorabilidade como forma de proteção à família – que conta com especial proteção do Estado; art. 226, CF/1988
– e de efetividade ao direito fundamental à moradia (art. 6º, CF/1988).
16. Contudo, é bem verdade que há decisões no âmbito desta Corte – algumas inclusive citadas acima – afirmando não ser possível presumir o benefício da entidade familiar
mesmo quando o terceiro, titular da dívida garantida pelo bem de família, se trata de pessoa
jurídica cujos únicos sócios são, v.g., marido e mulher, constituindo a chamada “empresa
familiar”.
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Penhorabilidade do Bem de Família
17. Na espécie, apesar de incontroverso tratar-se de bem de família, discute-se exatamente se o benefício à entidade familiar seria evidente, a prevalecer a excepcionalidade
albergada e chancelada pela Lei nº 8.009/1990 em seu art. 3º, inc. V.
18. Tenho, com efeito, a impressão de que a jurisprudência consolidada não alcança
essa particularidade, merecendo o tema maiores reflexões.
19. É indiscutível a possibilidade de se onerar o bem de família, oferecendo-o em
garantia real hipotecária. A par da especial proteção conferida por lei ao instituto, a opção
de fazê-lo está inserida no âmbito de liberdade e disponibilidade que detém o proprietário.
Como tal, é baliza a ser considerada na interpretação da hipótese de exceção.
20. A jurisprudência tem, inegavelmente, prestigiado a essência da proteção especial
conferida ao bem de família, todavia, esse cuidado peculiar não deve se afastar da observância e prestígio a valores comezinhos do Direito, destacando-se, dentre eles, a boa-fé
objetiva.
21. Ora, afigura-se um tanto quanto axiomático que a garantia de dívida de empresa
da qual são únicos sócios marido e mulher reverte-se em favor destes e, consequentemente,
em benefício da entidade familiar. Até mesmo porque, frise-se, o “terceiro” a que alude o
acórdão recorrido é a “empresa familiar” (fl. 263, e-STJ) cujo quadro societário é composto
exclusivamente pelo casal recorrido.
22. Em se tratando de exceção à regra da impenhorabilidade – a qual, segundo o contorno conferido pela construção pretoriana, se submete à necessidade de haver benefício
à entidade familiar –, e tendo em conta que o natural é a reversão da renda da empresa
familiar em favor da família, a presunção deve militar exatamente nesse sentido e não o
contrário.
23. É salutar atentar, conforme faz Dinamarco, que a presunção “é um processo racional do intelecto, pelo qual do conhecimento de um fato infere-se com razoável probabilidade a existência de outro ou o estado de uma pessoa ou coisa. [...] O homem presume,
apoiado na observação daquilo que ordinariamente acontece” (Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, v. III, 2004. p. 113).
24. Imaginar que a família não se beneficie do êxito da atividade comercial de sua
empresa contraria a lógica do natural e do conhecido. Assim, se isso é o que ordinariamente
acontece, não pode ser ignorado pelo Juiz. Esse, aliás, é o comando do art. 335 do CPC,
que autoriza a presunção judicial: “em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará
as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente
acontece [...]”. Mais uma vez, calha a lição de Cândido Rangel Dinamarco:
Atentos e sensíveis às realidades do mundo, eles [os Juízes] têm o dever de captar pelos sentidos e desenvolver no intelecto o significado dos fatos que o circundam na vida ordinária,
para traduzir em decisões sensatas aquilo que o homem comum sabe e os conhecimentos que
certas técnicas elementares lhes transmitem. (Ob. cit., p. 122)
181
Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
25. Nesses termos, sendo razoável presumir que a oneração do bem em favor de empresa familiar beneficiou diretamente a entidade familiar, impõe-se reconhecer que eventual prova da inocorrência do benefício direto à família é ônus de quem prestou a garantia
real hipotecária.
26. Não se pode olvidar, ainda, que a exceção à impenhorabilidade e que favorece o
credor está amparada por norma expressa, de tal modo que impor a este o ônus de provar a
ausência de benefício à família contraria a própria organicidade hermenêutica, inferindo-se
flagrante também a excessiva dificuldade de produção probatória.
27. Assim, em prestígio e atenção à boa-fé (vedação de venire contra factum proprium), à autonomia privada e ao regramento legal positivado no tocante à proteção ao bem
de família, considero salutar, à vista da jurisprudência do STJ, mas também em atenção ao
disposto na Lei nº 8.009/1990, estabelecer que o proveito à família é presumido quando, em
razão da atividade exercida por empresa familiar, o imóvel onde reside o casal (únicos sócios daquela) é onerado com garantia real hipotecária para o bem do negócio empresarial.
28. A propósito, essa particularidade é facilmente extraída da inicial da execução hipotecária (fls. 24/25, e-STJ), verbis:
“13. No exercício de sua atividade social, a Exequente forneceu à Executada AC Comércio
de Pneus Ltda., que se dedica ao ramo de comércio de venda de pneumáticos, câmaras de ar,
e atividades afins, produtos e mercadorias de sua fabricação cujo crédito é representado por
duplicatas formalizadas, bem como por outros documentos representativos do crédito, tais
como notas fiscais, comprovantes de entrega, faturas comerciais, assentamentos em livros e
registros contábeis ou fiscais de quaisquer das duas primeiras Executadas, ou da ora Exequente
(Cláusula III, da Escritura Pública de Hipoteca – doc. 05).
14. Como garantia da venda e do fornecimento de pneumáticos e câmaras de ar, os Executados A. C. e sua esposa D. L. C. outorgaram, como garantes intervenientes, à ora Exequente,
através de escritura pública. devidamente registrada no Assentamento Imobiliário competente,
primeira, única e especial hipoteca sobre 1 (um) imóvel de sua propriedade, localizado em
Curitiba – Estado do Paraná – cuja descrição completa e identificação podem ser verificada na
Cláusula LI, da Escritura Pública de Hipoteca em anexo (doc. 05) inteiramente livre e desembaraçado de quaisquer ônus ou responsabilidade, no valor de R$ 194.000.00 (cento e noventa
e quatro mil reais).”
29. A Min. Isabel Gallotti, em voto-vista no REsp 988.915/SP (Rel. Min. Raul Araújo,
4ª T., DJe 08.06.2012), apesar de vencida, fez pertinentes considerações acerca do tema em
apreço, merecendo destaque os seguintes argumentos:
“Impressionou-me [...] a alegação [...] de que os precedentes deste Tribunal não se amoldariam perfeitamente à hipótese dos autos, porque, embora a hipoteca tenha sido prestada em
benefício de um terceiro, no caso uma sociedade limitada, esta sociedade limitada só possui
dois sócios, e os dois sócios são precisamente o casal que ofereceu a garantia hipotecária em
proveito de empresa, sendo esta 100% (cem por cento) integrante do patrimônio desses dois
sócios.
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
Portanto, penso que não há como afastar a realidade de que a quitação da dívida da empresa
beneficiará direta e integralmente o patrimônio das duas pessoas que prestaram a hipoteca. Se
houvesse outros sócios, a conclusão seria diferente, porque a empresa (e consequentemente
outros sócios além dos dadores da garantia) seria a beneficiária direta da quitação, não revertendo o valor do bem integralmente em proveito do casal, mas apenas na proporção de suas
quotas na empresa.
Assim, nesse caso, dada esta peculiaridade de que as cotas dessa sociedade são 100% (cem
por cento) pertencentes ao casal que ofereceu a garantia hipotecária, penso que, ao contrário
dos precedentes desta Corte, deve-se aplicar o art. 3º, V, da Lei nº 8.009/1990, até em homenagem ao princípio da boa-fé objetiva, uma vez que, se não pretendiam eles que esse imóvel
pudesse a vir a responder pela dívida, não deveriam eles tê-lo dado em garantia hipotecária.
Observo que a jurisprudência, no nobre escopo de proteger o direito à moradia familiar, não
deve descurar do princípio da boa-fé objetiva, basilar no Código Civil. Quanto menos valor
for dado à vontade manifestada pelo devedor, no ato de constituição da garantia hipotecária,
sendo ela invalidada no momento em que chamada a cumprir sua finalidade de garantir o
pagamento da dívida, mais dificuldade terão os microempresários para conseguir crédito para
desenvolver sua atividade econômica. A jurisprudência aparentemente protetiva acaba por
prejudicar aqueles mesmos a quem, em princípio, pretendeu a Lei nº 8.009/1990 resguardar,
assegurando-lhes o direito de contar com bem apto a servir de garantia.”
30. Portanto, diante do exposto, revela-se inescusável a conclusão no sentido de que,
na espécie, a penhorabilidade do bem imóvel dado em garantia hipotecária decorre da literalidade do disposto no art. 3º, inc. V, da Lei nº 8.009/1990, o qual inegavelmente restou
violado diante da conclusão a que chegou o acórdão recorrido.
Forte nessas razões, conheço parcialmente do recurso especial e, nesta parte, dou-lhe
provimento para reconhecer, na espécie, a penhorabilidade do bem de família. Por conseguinte, restabeleço os ônus de sucumbência fixados na sentença.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA
Número Registro: 2013/0204788-5
Processo Eletrônico REsp 1.413.717/PR
Números Origem: 00041615420088160001 201100028042 201302047885 4031999
41615420088160001 4212004 7744974 774497401 774497402 8132008
Pauta: 21.11.2013
Julgado: 21.11.2013
Relatora: Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi
Presidente da Sessão: Exmo. Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Subprocurador-Geral da República: Exmo. Sr. Dr. Maurício de Paula Cardoso
Secretária: Belª Maria Auxiliadora Ramalho da Rocha
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Penhorabilidade do Bem de Família
AUTUAÇÃO
Recorrente: Bridgestone Firestone do Brasil Indústria e Comércio Ltda.
Advogado: Túlio Freitas do Egito Coelho e outro(s)
Recorrido: A. C. e outros
Advogado: José Roberto Dutra Hagebock
Assunto: Direito Civil – Obrigações – Espécies de títulos de crédito – Duplicata
SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr(a). Mauro Pedroso Gonçalves, pela parte Recorrente: Bridgestone Firestone do Brasil Indústria e Comércio Ltda.
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia Terceira Turma, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão
realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Terceira Turma, por unanimidade, conheceu em parte do recurso especial e, nesta parte,
deu provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.
Os Srs. Ministros Sidnei Beneti e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Paulo de Tarso
Sanseverino.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
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Penhorabilidade do Bem de Família
Ementário
7017 – Bem de família – ato ilícito – ação reparatória – acidente de trânsito – pensão alimentícia – penhorabilidade – possibilidade
”Recurso especial. Execução. Ação reparatória por ato ilícito. Acidente de trânsito. Pensão alimentícia. Bem
imóvel. Penhorabilidade. Possibilidade. Inaplicabilidade da Lei nº 8.009/1990. Recurso especial provido. I
– A pensão alimentícia é prevista no art. 3º, inciso III, da Lei nº 8.009/1990, como hipótese de exceção à
impenhorabilidade do bem de família. E tal dispositivo não faz qualquer distinção quanto à causa dos alimentos, se decorrente de vínculo familiar ou de obrigação de reparar danos. II – Na espécie, foi imposta pensão
alimentícia em razão da prática de ato ilícito. Acidente de trânsito. Ensejando-se o reconhecimento de que a
impenhorabilidade do bem de família não é oponível à credora da pensão alimentícia. Precedente da Segunda
Seção. III – Recurso especial provido.” (STJ – REsp 1.186.225 – (2010/0050927-5) – 3ª T. – Rel. Min. Massami
Uyeda – DJe 13.09.2012)
Comentário Editorial SÍNTESE
O recurso especial em epígrafe foi interposto contra decisão que negou provimento ao pedido da recorrente de
penhora de bem imóvel do recorrido. A decisão ficou assim ementada:
“AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO LIMINARMENTE PROVIDO – CUMPRIMENTO DE
SENTENÇA DERIVADA DE ACIDENTE DE TRÂNSITO – IMPENHORABILIDADE DE IMÓVEL RESIDENCIAL
– 1. Impõe-se ratificar a decisão que deu provimento liminar ao agravo de instrumento do executado, para
desconstituir penhora sobre imóvel residencial. 2. As exceções previstas na Lei nº 8.009/1990, por excluírem da proteção o imóvel residencial, devem ser interpretadas restritivamente. Assim, por credor de pensão
alimentícia (art. 3º, III, da Lei nº 8.009/1990) deve-se entender apenas aquele que tem direito à prestação
alimentar em razão de vínculos familiares, não o que faz jus a pensionamento decorrente de condenação por
ato ilícito. Agravo interno improvido, por maioria.”
Segundo a recorrente, a regra constante no art. 3º, III, da Lei nº 8.009/1990, in verbis, não se restringe
apenas às verbas alimentares em decorrência de vínculo parental, logo, também é aplicável aos casos de
pagamento de pensão alimentícia decorrente de ato ilícito.
“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
[...]
III – pelo credor de pensão alimentícia;
[...].”
A 3ª Turma do STJ acolheu o argumento da recorrente, afirmando que realmente o citado dispositivo legal
não traz qualquer distinção no que tange à causa dos alimentos, se decorrente de vínculo alimentar ou de
reparar danos.
Assim, deu provimento ao recurso, restabelecendo a penhora sobre o bem imóvel.
Do voto do Relator destacamos:
“Observa-se, portanto, que a pensão alimentícia é prevista expressamente no art. 3º, inciso III, da Lei nº
8.009/1990, como hipótese de exceção à impenhorabilidade do bem de família. E tal dispositivo não faz
qualquer distinção quanto à causa dos alimentos, se decorrente de vínculo familiar ou de obrigação de reparar
danos.
Na espécie, foi imposta pensão alimentícia em razão da prática de ato ilícito – acidente de trânsito –, ensejando-se, por conseguinte, o reconhecimento de que a impenhorabilidade do bem de família não é oponível à
recorrente, A. M. D. S. R., credora da prestação alimentar. Nesse sentido, registra-se:
‘DIREITO PROCESSUAL CIVIL – BEM DE FAMÍLIA – OBRIGAÇÃO ALIMENTÍCIA DECORRENTE DE ATO
ILÍCITO – EXCEÇÃO À IMPENHORABILIDADE – 1. A impenhorabilidade do bem de família prevista no art.
3º, III, da Lei nº 8.009/1990 não pode ser oposta ao credor de pensão alimentícia decorrente de indenização
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
por ato ilícito. Precedentes. 2. Embargos de divergência rejeitados.’ (EREsp 679.456/SP, Segunda Seção,
Rel. Sidnei Beneti, DJe 16.06.2011. E ainda: REsp 437144/RS, Rel. Min. Castro Filho, DJ de 10.11.2003)
Assim sendo, dá-se provimento ao recurso especial para restabelecer a penhora sobre o bem imóvel.
É o voto.”
Segue julgado no mesmo sentido:
“CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA – DÍVIDA DECORRENTE DE ATO ILÍCITO – ORIGEM ALIMENTAR – SUBSUNÇÃO AO INCISO III DO ART. 3º DA LEI Nº 8.009/1990 – APLICABILIDADE DA EXCEÇÃO – PERMISSÃO – Verifica-se que a obrigação do agravante de pagamento de pensão alimentícia decorre de ato ilícito. Sendo assim, diante da não especificação legal quanto à espécie de alimentos,
e apresentando-se a pensão no presente de natureza gravíssima, pois decorrente de ato ilícito que culminou
na morte de alguém, não há como deixar de reconhecer a possibilidade de penhora de bem supostamente caracterizado como bem de família, aplicando-se a exceção do art.3º, inciso III da Lei nº 8.009/1990.” (TJMG,
AI 1.0024.89.614778-2/002, 13ª C.Cív., Rel. Nicolau Masselli, DJe 01.02.2010) (Disponível em: online.
sintese.com, sob o nº 146000024923. Acesso em: 3 jun. 2014)
7018 – Bem de família – contrato de locação – fiador – exclusão do polo passivo da ação – constrição –
impossibilidade
“Agravo de instrumento. Civil e constitucional. Ação de execução. Cumprimento de sentença. Contrato de locação. Penhorabilidade de bem de família de fiador. Exclusão do polo passivo da ação. Preclusão. Impossibilidade
da constrição. Direito fundamental à moradia. 1. A penhora do bem de família da parte que não mais integra o polo
passivo da ação atenta não só contra o devido processo legal e ao direito constitucional de moradia previsto no
art. 6º da Constituição Federal, mas, sobretudo, à própria Lei nº 8.009/1990, tendo em vista não mais subsistir
a exceção legal que justificaria a constrição, diante da exclusão dos fiadores, no caso especifico dos autos. 2.
Negou-se provimento ao agravo de instrumento.” (TJDFT – AI 20130020250902 – (750897) – Rel. Des. Flavio
Rostirola – DJe 23.01.2014)
7019 – Bem de família – contrato de locação – fiador – impenhorabilidade – exceção
“Apelação cível. Embargos à execução. Bem de família do fiador em contrato de locação. Exceção à impenhorabilidade do bem de família. Inteligência do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/1990. Julgamento com base na análise
da repercussão geral (art. 543-B, § 3º, do CPC). Recurso Extraordinário nº 612360, reconhecendo a existência
de repercussão geral acerca da possibilidade da penhora em tais casos. Jurisprudência pacificada nas Cortes
Superiores. Recurso conhecido, mas para lhe negar provimento. Decisão unânime.” (TJSE – AC 0007/2013 – 2ª
C.Cív. – Rel. Des. José dos Anjos – J. 05.08.2013)
7020 – Bem de família – dívida de pensão alimentícia – penhorabilidade
“Agravo de instrumento. Execução de alimentos. Penhora de imóvel. Manifestação intempestiva. Matéria de
ordem pública. Prescrição e impenhorabilidade do bem de família. Ausência de procuração. Vício sanável.
Execução movida por credor de pensão alimentícia. Penhorabilidade do bem de família. Excepcionalidade.
Art. 3º, III, da Lei nº 8.009/1990. Negado provimento. I – Matérias de ordem pública não se sujeitam à preclusão temporal, já que podem ser examinadas a qualquer tempo, inclusive de ofício, durante o curso do
processo. II – A ausência de outorga de procuração ao advogado dos agravados não importa em nulidade do
feito, muito menos no reconhecimento de prescrição intercorrente, uma vez que trata-se de nulidade sanável
conforme jurisprudência pacífica no Superior Tribunal de Justiça. Portanto, sanado o vício com a outorga de
nova procuração ao causídico, não há que se falar que os atos praticados pelo advogado dos agravados, antes
da regularização da representação processual, seriam nulos ou inexistentes, muito menos que tal circunstância
caracterizaria a inércia dos recorridos quanto ao regular tramite da execução. III – É possível a penhora de bem
de família para pagamento de crédito de pensão alimentícia, nos termos do art. 3º, III, da Lei nº 8.009/1990,
mesmo na hipótese em que os alimentos não sejam considerados atuais, principalmente porque a Lei nº
8.009/1990 não faz distinção, como hipótese de exceção à impenhorabilidade, entre credor de alimentos
atuais ou pretéritos.” (TJMS – AI 4013294-90.2013.8.12.0000 – 4ª C.Cív. – Rel. Des. Josué de Oliveira – DJe
25.03.2014)
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
7021 – Bem de família – imóvel – garantia de empréstimo – penhorabilidade
“Apelação. Embargos à arrematação improcedentes. Insurgência. Alegação de bem de família. Renúncia à
exceção prevista no art. 3º, inciso V, da Lei nº 8.009/1990. Imóvel oferecido para garantia de empréstimo
efetivado em proveito da própria entidade familiar. Penhorabilidade mantida. Precedente. Necessidade de
reavaliação do imóvel arrematado. Preclusão. Preço vil. Não ocorrência. Caracterização da localização do
imóvel. Devida concorrência de licitantes no leilão. Não demonstrada qualquer ofensa ao disposto no art. 686
do CPC. Recurso desprovido.” (TJPR – AC 1025968-4 – 14ª C.Cív. – Rel. Des. Laertes Ferreira Gomes – DJe
08.04.2014)
Transcrição Editorial SÍNTESE
Lei nº 8.009/1990:
“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
[...]
V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
[...].”
7022 – Bem de família – imóvel do fiador – exceção legal – penhorabilidade
“Agravo interno. Decisão monocrática. Prequestionamento. Nada há a modificar na decisão monocrática que negou seguimento ao recurso, haja vista a sua manifesta inadmissibilidade. Decisão recorrida em conformidade com a jurisprudência desta Corte e da instância superior. Agravo de instrumento. Penhorabilidade do imóvel do fiador. Bem de família. Possibilidade. Exceção legal. Precedentes
do STJ e da Corte. É de sopesar que o STF perfilhou o reconhecimento da constitucionalidade do art. 3º,
inciso VII, da Lei nº 8.009/1990 (acrescido pela Lei nº 8.245/1991), bem como entendeu que não há falar em afronta ao direito de moradia, nos termos do que preceitua o art. 6º da Constituição Federal. Não
há falar em impenhorabilidade do bem imóvel pertencente à fiadora, mesmo que se trate de moradia
e seu único bem. Precedentes do STF, STJ e desta Corte. Negado provimento ao agravo interno.” (TJRS –
AG 70058572884 – 16ª C.Cív. – Relª Desª Catarina Rita Krieger Martins – J. 13.03.2014)
Remissão Editorial SÍNTESE
Vide RDF nº 83, abr./maio 2014, ementa nº 6988, no mesmo sentido.
7023 – Bem de família – imóvel mais valioso – aquisição – má-fé – penhora – possibili­dade
“Bem de família. Aquisição de imóvel mais valioso. Insolvência. Má-fé. Possibilidade de penhora. O instituto
do bem de família não se presta à utilização como subterfúgio para dificultar a execução, mas sim para garantir a dignidade da família e o direito constitucional à residência, previsto no art. 6º da CF. A própria Lei nº
8.009/1990 possui dispositivos que demonstram a preocupação do legislador em não oportunizar aos executados o mau uso de suas previsões, como, por exemplo, o art. 4,º que dispõe: ‘Não se beneficiará do disposto
nesta Lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência
familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga’. Na hipótese, não se estende ao imóvel penhorado a proteção legal, porquanto citado para pagamento, o executado permaneceu inerte. Não realizou o pagamento e
não nomeou bens à penhora, mas concretizou a venda do imóvel em que residia e adquiriu outro de maior
valor, o que evidencia a má-fé do executado, que é insolvente na medida em que não paga a dívida, nem oferece bens que garantam sua satisfação. Agravo de petição conhecido e desprovido.” (TRT 9ª R. – AP 029630008.1997.5.09.0022 – Rel. Luiz Celso Napp – DJe 30.05.2014)
7024 – Bem de família – sócio – imóvel oferecido como garantia real – penhorabilidade
“Execução. Hipoteca. Imóvel oferecido como garantia real. Bem de família. Penhorabilidade. É penhorável
imóvel dado pelo sócio em garantia de empréstimo concedido a pessoa jurídica de que é sócio, sobretudo se
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
demonstrado que a dívida contraída com o empréstimo beneficiou ele, sócio, e a entidade familiar. Agravo
não provido.” (TJDFT – Ex 20130020251263 – (750791) – Rel. Des. Jair Soares – DJe 21.01.2014)
7025 – Bem de família – taxas condominiais – penhorabilidade
“Agravo de instrumento. Impugnação à penhora. Cumprimento de sentença. Taxas condominiais. Alegação
de excesso na execução não demonstrado. Bem de família. Penhorabilidade. Recurso desprovido. 1. O provimento de agravo de instrumento tirado contra decisão que rejeita impugnação ao cumprimento, sob o argumento de que há excesso na execução, demanda a comprovação do excesso de forma cristalina. Noutras
palavras: ‘[...]. 1. Não comprovando o agravante a existência de excesso de execução, correto o r. decisum
ao rejeitar a impugnação oposta. 2. Recurso não provido’ (Acórdão nº 642698, 20120020211438-AGI, Rel.
Cruz Macedo, 4ª T.Cív., DJe 10.01.2013, p. 372). 2. Em que pese o agravante aduza excesso na execução,
não junta documentos comprobatórios. 2.1 Por outro lado, em contrarrazões, o exquente, ora agravado, traz
tabelas e planilhas que se representam em harmonia com a decisão agravada. 2.2 Não se desobrigando a parte
agravante do ônus de trazer aos autos elementos probatórios que justifiquem a incorreção dos cálculos impugnados, há de se manter a decisão que não acolhe a impugnação ao cumprimento de sentença. 3. A impenhorabilidade do bem de família prevista no art. 1º da Lei nº 8.009/1990 não tem caráter absoluto, porquanto a
própria lei prescreve no art. 3º o rol de dívida, com relação às quais a impenhorabilidade não será oponível.
3.1 A dívida objeto da execução diz respeito as taxas condominiais do próprio imóvel sobre o qual recaiu a
penhora; este fato afasta a imunidade da impenhorabilidade do bem de família prevista na legislação de regência, tendo em vista a exceção prevista textualmente no art. 3º, IV, da Lei nº 8.009/1990. 4. Noutras palavras:
que ‘a jurisprudência das Turmas integrantes da 2ª Seção do STJ pacificou-se no sentido da possibilidade da
penhora de imóvel que serve de residência à família do devedor para assegurar pagamento de dívida oriunda
de despesas condominiais do próprio bem’ (AgRg-AI 355.145/SP, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior). 5.
Agravo desprovido.” (TJDFT – Proc. 20130020306712 – (770904) – Rel. Des. João Egmont – DJe 25.03.2014)
Destaque Editorial SÍNTESE
Colacionamos a seguinte ementa no mesmo sentido:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO DE SENTENÇA ARBITRAL – NULIDADE PROCESSUAL – AUSÊNCIA
DE PREJUÍZO ÀS PARTES AFASTADA – TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL – DESPESAS CONDOMINIAIS – OBRIGAÇÃO PROPTER REM – DETERMINAÇÃO DE PENHORA – IMÓVEL – BEM DE FAMÍLIA – PENHORABILIDADE – LEI
Nº 8.009/1990 – RECURSO SECUNDUM EVENTUS LITIS – 1. É de ordem legal, ao teor do art. 250, parágrafo único, do Código de Processo Civil, a exigência de que – em não havendo prejuízo as partes – ‘darse-á o aproveitamento dos atos praticados’. Aliás, é essa a exegese do princípio pas des nullités sans grief,
isto é, de que não há nulidade sem prejuízo. 2. As despesas condominiais, por se tratarem de obrigação
propter rem, podem ensejar a penhora da unidade autônoma devedora, ainda que esta sirva de residência
à família (art. 3º, inciso IV, da Lei nº 8.009/1990 e jurisprudência do STJ). 3. O agravo de instrumento é
um recurso secundum eventum litis, ou seja, por meio do qual se aprecia o acerto ou desacerto da decisão
agravada, sendo vedada a análise, por esta instância derivada, de matéria que não tenha sido apreciada pelo
julgador singular, sob pena de supressão de um grau de jurisdição. Agravo conhecido e desprovido.” (TJGO,
AI 201394290403, 5ª C.Cív., Rel. Des. Alan S. de Sena Conceição, DJe 13.03.2014, p. 303) (Disponível
em: online.sintese.com, sob o nº 144000167240. Acesso em: 2 maio 2014)
7026 – Bem de família – vaga de garagem – imóvel residencial locado – penhorabilidade
“Embargos à execução fiscal. Penhorabilidade. Imóvel residencial locado. Vaga de garagem. Bem de família.
Para fins de impenhorabilidade, a jurisprudência vem abrandando essa exigência. Admite-se que alcance o
imóvel, desde que seja único, que esteja locado a terceiros, na medida em que a renda obtida com o aluguel
seja empregada para pagar a locação de outro imóvel residencial. É passível de penhora a vaga de garagem,
não se lhe aplicando a impenhorabilidade da Lei nº 8.009/1990, desde que possua matrícula e registro próprios. Precedentes desta Casa e do STJ.” (TRF 4ª R. – AC 0014223-28.2013.404.9999/PR – 1ª T. – Relª Desª
Fed. Maria de Fátima Freitas – DJe 07.03.2014)
Destaque Editorial SÍNTESE
Em seu voto, a Relatora citou a seguinte passagem da decisão a quo:
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Revista Síntese Direito de Família
Penhorabilidade do Bem de Família
“[...] Já quanto às garagens, matrículas sob o nº 12.147 e 12.148, não merece acolhimento a alegação da
parte embargante quanto à impenhorabilidade destes pode se tratarem de bens de família.
Sobre este assunto, assim dispõe a Súmula nº 449, do STJ, in verbis:
‘VAGA DE GARAGEM QUE POSSUI MATRÍCULA PRÓPRIA NO REGISTRO DE IMÓVEIS – CONSTITUIÇÃO DE
BEM DE FAMÍLIA PARA EFEITO DE PENHORA
A vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis não constitui bem de família para
efeito de penhora.’
Sendo assim, por ter a parte embargante o imóvel (apartamento) tratado no tópico anterior como bem de
família, e por terem as garagens matrículas próprias, não cabe a alegação de impenhorabilidade.
O imóvel de matrícula nº 12.094 é impenhorável, pois restou comprovado se tratar de bem de família. Já
quanto às duas vagas de garagem, com matrículas próprias, estas não se tratam de bem de família.
Portanto, o box de estacionamento, como objeto de circulação econômica, desligado do principal, pode ser
vendido permutado ou cedido a outro condômino, saindo da propriedade de um para o outro, continuando útil
às sua finalidade de uso, visto que não está sob o domínio da comunhão geral, mas identificado como unidade
autônoma. Nessa condição, é possível o arresto, sem as restrições apropriadas ao imóvel de moradia familiar.
Neste sentido, os seguintes julgados:
‘RECURSO ESPECIAL – DIREITO CIVIL E DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PENHORA DE BEM IMÓVEL –
VAGA DE ESTACIONAMENTO COM MATRÍCULA PRÓPRIA – SÚMULAS TJ/83 – APLICABILIDADE – AGRAVO DESPROVIDO – 1. Possível a penhora de vaga autônoma de garagem, com registro e matrícula próprios,
mesmo quando relacionada a bem de família. 2. Precedentes específicos desta Corte. 3. Agravo regimental
desprovido.’ (STJ, AgRg-REsp 931424 SP, 3ª T., Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, J. 24.05.2011)
‘AGRAVO REGIMENTAL – BEM DE FAMÍLIA – VAGA AUTÔNOMA DE GARAGEM – PENHORABILIDADE – 1.
Está consolidado nesta Corte o entendimento de que a vaga de garagem, desde que com matrícula e registro
próprios, pode ser objeto de constrição, não se lhe aplicando a impenhorabilidade da Lei nº 8.009/1990.
2. Agravo regimental desprovido.’ (STJ, AgRg-Ag 1058070 RS, 4ª T., Rel. Min. Fernandes Gonçalves, J.
16.12.2008)
‘Embargos de terceiro. Arresto de vaga de garagem com matrícula autônoma. Inovação recursal. Bem não
atingido pela impenhorabilidade. Súmula nº 449, STJ. Alienação do bem em outro feito. Ausência de prova.
1. É vedado à instância ad quem inovar, conhecendo de outra causa de pedir que extravase aos limites discutidos na lide. 2. ‘A vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis não constitui bem
de família para efeito de penhora’ – Súmula nº 449, STJ. Recurso conhecido em parte e, na parte conhecida,
não provido.’ (TJPR, 8460475,15ª C.Cív., Rel. Hamilton Mussi Correa, J. 07.03.2012)
Diante do exposto, não merece prosperar a alegação da parte embargante quanto à impenhorabilidade das
vagas de garagens das matrículas nº 12.147 e 12.148. [...].”
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Revista SÍNTESE
Direito Penal e Processual Penal
ASSUNTO ESPECIAL
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Doutrina
Maranhão e Seus Presídios (o Brasil em Miniatura)
LUIZ FLÁVIO GOMES
Jurista, Diretor-Presidente do Instituto Avante Brasil.
Nas costas de um dos corpos, de bruços, estão duas cabeças, lado a lado. Elas são
exibidas como troféus. Ao lado, o terceiro decapitado ainda tem a cabeça encostada ao
pescoço. Um dos presos grita: “Bota de frente pra filmar direito”. Outro pede: “Não puxa
a cabeça dele”. Em vão. Um outro colega, também de chinelos, enfia os pés na poça de
sangue, se aproxima e, com a ponta dos dedos, ergue a cabeça, puxada pelos cabelos. A
cabeça escapa, cai no chão, mas é erguida novamente e colocada ao lado das outras. Os
presos mantêm o clima de comemoração.
Tudo isso foi filmado e mostrado pela Folha (07.01.2014, p. C1). É o inferno de Dante
(Divina comédia): “Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno”. Os presídios
maranhenses (com 60 assassinatos no último ano), assim como o próprio governo do Maranhão (há 50 anos nas mãos desgovernadas dos Sarneys), são o retrato (uma miniatura) do
Brasil, um País injusto, classista, racista, violento, corrupto, patrimonialista, nepotista, desdentado, subnutrido e analfabeto (3/4 dos brasileiros não sabem ler ou escrever ou entender
o que leem ou fazer operações matemáticas mínimas – ver relatório do Inaf).
De 1980 a 2011, 1.145.651 pessoas foram assassinadas (ver Instituto Avante Brasil).
Um mar de sangue. Há 400 mil anos (pré-história), 1/3 do Brasil era puro mar. Incluindo o
Maranhão inteiro. Hoje, é tudo sangue. Um mar de sangue. O Brasil não se converteu no
16º país mais violento do planeta (conforme o UNODC-ONU) por acaso. Tem toda uma
história (de violência, de prepotência, de autoritarismo, de desrespeito à vida, de degeneração ética, de domínio classista injusto, desde o colonialismo). O sistema penitenciário
brasileiro constitui uma síntese desse lado do Brasil que deu errado.
Os presídios, com prisões determinadas pelos juízes, são uma invenção da burguesia
capitalista ascendente do século XVIII. Nasceram para disciplinar as pessoas para o trabalho
assalariado. Corpos dóceis e úteis (Foucault). Para eles eram mandados os vagabundos,
carentes, marginalizados, criminosos, etc. Local de educação (se imaginava). Logo se viu
que lugar de educar é na escola. As novas burguesias dominantes, no entanto, continuaram
mandando para as prisões todas as “classes perigosas” (conceito do final do século XIX),
mesmo que não tenham cometido nenhum crime violento. Mais de 50% dos presos, hoje,
não praticaram crimes violentos. Lá estão amontoados, jogados como coisas. O sistema não
ressocializa, ele brutaliza; o sistema não reeduca, ele aumenta o número de soldados para
o crime organizado.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
A política do encarceramento massivo (aumento de 508% nas prisões de 1990 a 2012),
paralelamente à da edição de leis penais novas mais severas (150 reformas de 1940 a 2013),
continua a todo vapor, estimulada pela fascista criminologia populista-midiática-vingativa
(veja nosso livro Populismo penal midiático, Saraiva, 2013), que constitui a fonte de inspiração da burguesia dominante legislativa (que cuida do processo de criminalização primária).
A reforma do Código Penal, fundada no pensamento mitológico (mágico), emocional
e passional (Durkheim), está seguindo exatamente estas duas equivocadas premissas: (a) leis
mais severas; e (b) encarceramento massivo (sobretudo das “classes perigosas”, não violentas). As políticas alternativas (prisão somente para criminosos violentos + sistema da pena
suave, justa e certa – Beccaria) não são consideradas. Reforma penal na contramão da nova
história. Nova história que deve ser construída para o salvamento do sistema capitalista e
das burguesias governantes, se é que querem ser mantidos.
Sugerem-se as seguintes teses:
Tese 1: o sistema econômico capitalista (o pior de todos, com exceção dos demais),
cada vez mais contestado no mundo todo (ocidental e oriental), em razão das
suas fraudes (como a de 2008), denominadas de “crises”, bem como em virtude das suas injustiças e desigualdades profundas (com a consequente divisão
de classes), está cavando seu próprio abismo na proporção em que aumentam
a burrice, a irracionalidade e as improvisações das classes burguesas dominantes e governantes.
Tese 2: é especialmente no campo criminológico e político criminal, hoje inteiramente
dominado pela criminologia populista-midiática-vingativa, fundada na emotividade e passionalidade decorrentes do delito (como descreveu Durkheim), em
que se nota com mais evidência a irracionalidade do pensamento mitológico.
Tese 3: precisamente nos países mais violentos do planeta, a burguesia dominante vem
conduzindo o processo de criminalização primária (produção da legislação
penal) e secundária (atuação seletiva da polícia, Ministério Público, juízes,
etc.) de forma totalmente equivocada. Isso está mais do que evidente, uma
vez mais, no processo de reforma do Código Penal brasileiro, que novamente
está iludindo a população com a oferta de dois produtos fraudulentos (quando
pensamos em efeitos preventivos): (a) endurecimento das leis penais; e (b) encarceramento massivo.
Tese 4: essa política fraudulenta (porque totalmente ineficaz a médio ou longo prazo)
está agravando diária e assustadoramente a situação desses países e dos seus
presídios, vergastados pela violência epidêmica, porque, enquanto ilude a população com cosméticos e placebos charlatões, adia o enfrentamento racional do
problema da segurança e da criminalidade.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Doutrina
A Nudez do Rei: o Estado Punitivista e a Necessidade Abolicionista
Vera Maria Guilherme
Graduada em Educação pela PUC/RJ (1987), Bacharel em Direito (2012), Pós-Graduanda em Direito Penal
e Processual Penal no Uniritter (POA), Pós-Graduanda em Direito de Família Contemporâneo e Mediação
(FADERGS), Mestranda em Ciências Criminais na PUCRS. Autora do Livro Quem Tem Medo do Lobo Mau?
A Descriminalização do Tráfico de Drogas no Brasil – Por uma Abordagem Abolicionista (2013).
Resumo: A autora pretende apresentar algumas contradições presentes na relação Estado brasileiro-sociedade a partir de uma crítica à política antidrogas implementada pelo Governo brasileiro desde 2006, de cunho
punitivista e encarcerador, apoiada por uma mídia essencialmente dependente do Estado e pelo silêncio dos
intelectuais outrora opositores de práticas excludentes. Passa a propor, então, algumas questões levantadas
por autores abolicionistas para que seja possível uma mudança, considerando a sociedade organizada como
personagem central no processo de mudança.
PALAVRAS-CHAVE: Punitivismo; Estado; sociedade; intelectuais; mídia; abolicionismo.
O título deste texto remete a uma história muito conhecida e apreciada pelas crianças
da minha geração. Com o passar do tempo, pode ter caído no esquecimento, razão pela
qual passo a recontá-la a partir de agora.
Era uma vez um rei extremamente vaidoso. Tinha orgulho extremo de suas qualidades,
enxergando inclusive as que não possuía, e comemorava intensamente as suas conquistas
à frente do seu reino.
Próximo a uma data comemorativa que incluiria festejos públicos, apareceu no reino um homem se dizendo um grande alfaiate, capaz de fazer as roupas mais exclusivas e
luxuosas do mundo, e propôs ao governante fazer um traje à sua altura. Como tudo que é
bom custaria caro, mas nada acima do que o rei podia pagar, o rei, extremamente orgulhoso, ficou encantado com a possibilidade de usar uma roupa que fosse inesquecível aos
olhos de seus súditos. O preço elevado só ressaltava a sua condição econômica. Acertaram tudo, e o alfaiate começou seus trabalhos.
Foram tiradas as medidas e o traje começou a ser experimentado no corpo do rei. Na
primeira prova, o rei disse não estar vendo tecido algum. O alfaiate comentou que aquele
traje era tão especial que apenas os inteligentes teriam capacidade de ver o tecido e os
bordados com fios de ouro. Imediatamente o rei passou a ver a beleza e o luxo do traje em
todos os seus detalhes. E assim foi até o dia dos festejos públicos. Segundo o cerimonial, o
rei sairia em desfile pelas ruelas do reino vestindo seu traje exclusivo.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
No dia do desfile, a população estranhou a nudez do rei, e começou um burburinho
por onde ele passava em comitiva. Mas o rei, do alto de sua arrogância, ria da burrice de
seus súditos – eram incapazes de perceber a beleza de seu traje. Estes, por sua vez, com
medo de represália real, se restringiam aos cochichos.
Até que uma criança (como só poderia ser) percebeu a nudez real e gritou: “O rei está
nu!”, e caiu na risada. Em um primeiro momento, o rei manteve seu ar de superioridade,
mas, depois de algum tempo, começou a se dar conta de que, de fato, estava nu, mediante
a insistência e a convicção da criança. E mais, todo o povo começou a rir e a gritar: “O rei
está nu”. Envergonhado por sua própria burrice, o rei saiu em disparada para o seu palácio.
Ouvi versões de que o rei teria chamado o alfaiate e exigido seu dinheiro de volta. O
alfaiate teria alegado a burrice do rei para não devolver o dinheiro, e que tudo teria ficado
na mesma situação (o rei sem o dinheiro e sem a roupa, mas com seu orgulho por poder
pagar intacto). Ouvi, ainda, outra versão, a de que o alfaiate teria devolvido o dinheiro e
sido expulso do reino. Confesso, porém, que nunca me interessei em buscar a “moral da
história”, pois o que me fascinava – e fascina até hoje – é a sagacidade do menino, seu
destemor em dizer aquilo que os adultos (por sua educação, socialização, oportunismo ou
hipocrisia) não tinham coragem de dizer abertamente.
Entre nós, o rei também está nu. Em certas situações tal nudez salta aos olhos de forma
inegável.
As imagens feitas por um preso, através de um celular, depois da decapitação de
colegas de Pedrinhas, no Maranhão, divulgaram bem mais do que alguns chamaram de
“selvageria” dos presidiários, desrespeito à vida humana pelos “marginais” – colocou em
evidência a política encarceradora implementada pelo Governo brasileiro nos últimos anos
e seu descaso frente aos direitos humanos no sistema carcerário nacional1.
No centro de tudo isso, a política antidrogas escolhida pelo Governo brasileiro, expressa na Lei nº 11.343/2006, repleta de normas penais abertas e em branco, delegando a
terceiros (que não os legisladores) a definição da identidade e dos critérios caracterizadores
dos “criminosos”2.
Uma sociedade historicamente excludente, que identifica como sinônimo de progresso a ampliação do consumo, exige uma solução, uma destinação aos improdutivos (não
consumidores)3. Ao seu encontro, um sistema representativo no qual os candidatos, para
obterem êxito, necessitam de propostas políticas e projetos que respondam à vontade dessa
sociedade, muito fomentada pela mídia. Dentro dessa lógica político-eleitoreira, as propostas punitivistas vêm ganhando cada vez mais espaço. Nos últimos anos, as propostas que
visam a criminalizar condutas e movimentos sociais se proliferam a olhos vistos, especial1 Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/120052191/Presidio-Central-de-Porto-Alegre-Representacao-na-ComissaoInteramericana-de-Direitos-Humanos>. Acesso em: 3 fev. 2014.
2 GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalização do tráfico de drogas no Brasil – Por uma
abordagem abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
3 A noção de que “cada um tem seu lugar” se fez bastante presente nos episódios dos chamados “rolezinhos” em diversas
cidades brasileiras.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
mente em resposta a acontecimentos considerados chocantes ou tendo por pretexto eventos
importantes, como agora é a Copa do Mundo.
A sociedade excludente e o Governo que aí está (com seu discurso de inclusão), de
forma curiosa, se complementam. Isso porque cabe a ele, Governo no controle da máquina
estatal, realizar sonhos manifestos pela sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, buscar
manter-se no poder por maior tempo através de reeleições.
O discurso do Governo menciona a inclusão, através da ascensão da classe C, a “nova
classe média”, o desenvolvimento econômico, os avanços na saúde e na educação, o fortalecimento da democracia, a necessidade de um combate à violência (costumeiramente
identificada com o tráfico de drogas) e a ideia de “segurança pública”. Em função da resposta eleitoral às ansiedades sociais quanto aos “criminosos”, a política antidrogas vem
a calhar: aparece como uma solução para os problemas de saúde pública (uso de drogas
tornadas ilícitas)4 e de ordem pública.
Assim, um governo que se autodefinia como de esquerda acabou sancionando e implementando a política antidrogas vigente no país hoje, vem sancionando leis de cunho
autoritário, cooptando intelectuais outrora contestadores da ordem para ocuparem cargos
técnicos (através de concursos ou distribuição de cargos de confiança), investindo cada
vez mais em propagandas governamentais nos meios de comunicação, cooperando para a
implantação das UPPs5, inclusive com o oferecimento da Força Nacional, além de realizar
o que chamo de “faxina social” – o encarceramento e afastamento daqueles que não têm
capacidade de consumir6.
O resultado da soma do silêncio dos intelectuais7, à influência da mídia e aos interesses político-eleitoreiros, combinação esta debatida por Mathiesen8, se apresenta de forma
cristalina no caso brasileiro.
Os intelectuais simpáticos ao Governo brasileiro (e a seus aliados estaduais e distrital)
costumam se dizer contrários à política antidrogas implementada, mas, quando seu posicionamento é questionado, a parte central de suas críticas está na descriminalização do
usuário e na legalização das drogas. Não é por acaso que o presidente uruguaio tem sido
considerado, por sua política quanto ao usuário, autor de uma proposta a ser estudada,
ainda que o uso aprovado em terras uruguaias tenha que seguir critérios de nacionalidade,
quantidade e cadastramento de usuários por parte do Estado9. Ou seja, é uma liberação
vigiada, controlada pelo Estado.
4 KARAM, Maria Lúcia. Escritos sobre a liberdade. Proibições, riscos, danos e enganos: as drogas tornadas ilícitas. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, v. 3, 2009.
5 BATISTA, Vera Malaguti. Paz armada: criminologia de cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
6 GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalização do tráfico de drogas no Brasil – Por uma
abordagem abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
7 MATHIESEN, Thomas. Silently Silenced: essays on the creation of acquiescence in modern society. Winchester:
Waterside Press, 2004.
8 MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI – Abolição, um sonho possível? Disponível em: <http://revistas.pucsp.
br>. Acesso em: 14 maio 2012.
9Disponível
em:
<http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/12/1385863-ativista-que-ja-foi-presa-por-plantarmaconha-critica-lei-que-legaliza-erva-no-uruguai.shtml>. Acesso em: 3 fev. 2014.
195
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Em polo completamente adverso ao dos usuários se encontram os indivíduos considerados traficantes, como se fosse possível imaginar a obtenção das substâncias a partir de
um evento divino – Seriam os traficantes os novos invisíveis, imperceptíveis nesse debate?
Penso que isso ocorre porque os traficantes, em geral, são identificados naqueles indivíduos de nenhuma ou pouca escolaridade, nenhuma ou pouca renda, morador de periferia,
sem perspectiva de consumo. Portanto, social e geograficamente distante dos intelectuais,
diferentemente dos usuários. Além disso, aos traficantes poderá caber o encarceramento,
ao passo que aos usuários o cumprimento de pena a céu aberto. Ou seja, os usuários não
são os principais alvos da política encarceradora proposta pela lei em vigor, embora sejam
criminalizados. Não serão depositados por um bom período de suas vidas no sistema carcerário, não estarão sob a responsabilidade direta do Estado, não terão que sobreviver à
lógica exterminadora do sistema10. Esses desafios caberão aos traficantes. Quando muito,
quando questionados sobre o encarceramento de um grande número de pessoas em função
da acusação por tráfico, esses mesmos intelectuais apresentam como alternativa a decisão
holandesa de fechamento de suas cadeias, considerada avançada, inovadora, um modelo
(quem sabe?). Mas, nesse caso, parecem os debatedores se esquecer de que ainda assim
existe pena; a diferença é que será cumprida a céu aberto. Logo, não há uma ruptura com a
vontade de punir, mas sim uma mudança no espaço em que isso vai se dar.
O mais impressionante de toda essa cooptação dos intelectuais está na sua cegueira e
aparente ingenuidade (?) frente às situações-problema com as quais defrontam: seja na descriminalização do usuário ou na legalização uruguaia (como se a questão das drogas tornadas ilícitas ainda não tivesse recebido um tratamento legal – logo, é legalizada, em sentido
pleno do termo), o Estado continua ditando as regras do jogo, regulando mercados, fiscalizando qualidades e quantidades, definindo o que é tolerável ou não (e, devo dizer, “tolerância” não é o melhor termo nem a melhor política quando se fala em direitos), lucrando com
a atividade. Não conseguem, via de regra, pensar em ações que envolvam a coletividade,
que reconheçam na sociedade a capacidade e o poder de se organizar e definir seus interesses. Os Governos podem até acenar com a possibilidade de, uma vez ocupando os espaços
do poder político, poder haver uma mudança com a participação dos intelectuais. Mas a
mudança que mais salta aos olhos se dá nos ocupantes dos cargos e das funções. Parecem
esquecer suas histórias de vida e suas promessas, alegando que, antes, tudo era ainda pior
do que agora e que agora se trabalha no limite do possível. Essa é a lógica do poder estatal,
apoiada pelo Direito, a proposta da manutenção do status quo.
Mas os intelectuais, isoladamente, não influenciam tantas pessoas nem definem políticas. O trabalho ideológico precisa ser alicerçado, pavimentado por algo mais popular,
mais acessível. Aí entra em cena a mídia, grandemente patrocinada por verbas oficiais para
exibirem publicidade sobre as grandes conquistas do Estado, influenciando inclusive nas
pautas dos noticiários. Canais de televisão e estações de rádio, operantes pelo sistema de
concessão, fomentam a visão do tráfico de drogas como o inimigo número um dos habitantes das grandes cidades, a ideia de que vivemos em um país em que reina a impunidade e
fomentam a busca pela vingança. Seja em programas mais populistas ou nas pautas dos noticiários, o chamado “poder paralelo” ganha força, as UPPs são apresentadas como recon10 PEREIRA, Letícia Meleu; GUILHERME, Vera M. De que morremos apenados durante a execução pena na região
metropolitana de Porto Alegre: genocídio autorizado? In: ÁVILA, Gustavo Noronha de (Org.). Fraturas do sistema penal.
Porto Alegre: Sulina, 2013.
196
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
quista do território outrora ocupado pelos traficantes (atenção ao termo “reconquista” e ao
fato de que as comunidades “pacificadas” sejam grandes desconhecidas do Estado), embora
os moradores, muitas vezes, expressem ter mais medo da polícia do que dos traficantes, e
reclamem das novas contas que têm para pagar11.
A identificação do inimigo possibilita a ignorância de direitos e garantias, em nome da
preservação da paz e da ordem. Paz armada12. Muitas práticas autoritárias se concretizam
em nome do bem da comunidade, da “vida normal”, da tranquilidade dos moradores, ainda
que destruam relações e práticas sociais nas comunidades em que as UPPs se apresentam
como única alternativa para a preservação da ordem13. O combate ao inimigo fomenta ainda uma indústria do medo14 e uma falsa necessidade de vigilância contínua, não só por parte de Governos, como também pela própria sociedade15. Internalizamos a necessidade do
combate e banalizamos violações de direitos e garantias, como se fossem um mal necessário
à vida social16. O que não percebemos é que, diante de normas penais em branco e abertas,
qualquer um de nós pode ser o inimigo, bastando que nos seja atribuída essa condição. E,
em uma sociedade que encontra na crescente criminalização uma resposta à “impunidade”,
em algum momento esse risco passa a ser real. A produção de normas infraconstitucionais
de cunho autoritário17 nos torna, a todos, sujeitos a isso. É mera questão de oportunidade.
E as oportunidades se constroem, principalmente, através das eleições. Período eleitoral significa uma espécie de prestação de contas por parte dos que desejam ser reeleitos e
promessas por parte de todos os candidatos. E tudo isso deve arregimentar o maior número
possível de eleitores, ainda que não sejam cumpridas as promessas durante os mandatos.
Mas essa luta pelos votos revela as mais diversas intenções – sendo a criminalização um dos
pontos fortes nos últimos anos. Redução da maioridade penal, penas mais longas, extinção de
progressão de regime, nacionalização do projeto das UPPs são apenas alguns dos pontos que,
certamente, serão debatidos. Isso para não falar das alianças regionais e nacional, e o peso
que isso tem na formação dos Governos eleitos. Dentro da conjuntura brasileira atual, não
seria surpreendente um congresso mais conservador no âmbito nacional, assembleias menos
progressistas e governos federal e estadual com políticas cada vez mais rigorosas no âmbito
do direito penal. Com raras exceções, campanha política não é momento de convencimento
de novas posições. Em nome da eleição, vale tudo, uma espécie de “toma lá, dá cá”. Por ser
o projeto político partidário movido pelo desejo de ocupar o Estado e lá se manter pelo maior
tempo possível, a lógica aponta para uma concordância com a chamada “opinião pública”18.
A resposta ao punitivismo não está, assim, dentro da esfera do Estado, já que sua
própria existência se consolida através do uso da força e de normas legais que possibilitem
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MORRO dos Prazeres. Direção: Maria Augusta Ramos. Documentário, 2013 (duração 90 minutos).
BATISTA, Vera Malaguti. Paz armada: criminologia de cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
MORRO dos Prazeres. Direção: Maria Augusta Ramos. Documentário, 2013 (duração 90 minutos).
CHRISTIE, Nils. Crime Control as Industry. 3rd. edition. Oxon: Routledge, 2000.
MATHIESEN, Thomas. Towards a surveillant society. Hook, Winchester: Waterside Press, 2013.
PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: ICPC Editora Ltda., 2012.
KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Instituto
Carioca de Criminologia, v. 1, n. 1, jan./jun. 1996. p. 79-92.
18 GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalização do tráfico de drogas no Brasil – Por uma
abordagem abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
o controle da situação. Propor mudanças constitucionais ou legislativas em abstrato é abortar qualquer tentativa de mudança em sentido progressista, caso a representação política
espelhe a “opinião pública”. O que temos até agora, em relação à política antidrogas, é um
recrudescimento de tratamento tanto em relação ao usuário (projeto Osmar Terra)19 quanto
ao traficante.
Faz-se necessário gritar que o rei está nu, mostrar as contradições desse sistema excludente, explicitar os efeitos do punitivismo, exibir os interesses satisfeitos por essa dinâmica
encarceradora20, propor que a sociedade tome para si o projeto de mudanças em direção à
liberdade, exercitando práticas libertárias. É nesse sentido que o abolicionismo penal pode
contribuir nas suas mais diversas vertentes.
Por que temos prazer em controlar o outro? Por que a punição exerce tamanho fascínio
sobre nós? Porque confundimos justiça com vingança? Por que, dependendo da situação, os
fins justificam os meios? Por que naturalizamos tudo aquilo que nos é dito e ficamos inertes
diante dos absurdos do cotidiano? Por que, em nome de uma democracia, aceitamos as
leis como são e só vislumbramos saídas institucionais para os problemas que acontecem?
Acredito serem essas questões a partir das quais podemos avançar.
Pensar o abolicionismo penal hoje não é questão de possibilidade. É uma necessidade.
As respostas apresentadas pelo Estado punitivista não concretizam as promessas feitas. Precisamos de alternativas fundamentadas em outros princípios, que não a prática político-eleitoreira oportunista, a criação de inimigos de ocasião ou a “faxina social” dos indesejados.
A política antidrogas implementada pelo Brasil é um terreno fértil para a provocação
do questionamento sobre as “verdades” apresentadas. A análise dos seus desdobramentos
no cotidiano permite vermos que o rei está nu. Falta apenas conseguirmos mais vozes para
gritarmos, juntos, diante do cortejo...
REFERÊNCIAS
BATISTA, Vera Malaguti. Paz armada: criminologia de cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
CHRISTIE, Nils. Crime Control as Industry. 3rd. edition. Oxon: Routledge, 2000.
GUILHERME, Vera M. Quem tem medo do lobo mau? A descriminalização do tráfico de drogas no
Brasil – Por uma abordagem abolicionista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
KARAM, Maria Lúcia. Escritos sobre a liberdade. Proibições, riscos, danos e enganos: as drogas
tornadas ilícitas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 3, 2009.
MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI – Abolição, um sonho possível? Disponível em:
<http://revistas.pucsp.br>. Acesso em: 14 maio 2012.
______. Silently Silenced: essays on the creation of acquiescence in modern society. Winchester:
Waterside Press, 2004.
19Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/pl-lei-drogas-deputado-osmar-terra.pdfacessadoem>. Acesso em: 3 fev.
2014.
20 CHRISTIE, Nils. Crime Control as Industry. 3rd. edition. Oxon: Routledge, 2000.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
______. Towards a surveillant society. Hook, Winchester: Waterside Press, 2013.
PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: ICPC
Editora Ltda., 2012.
PEREIRA, Letícia Meleu; GUILHERME, Vera M. De que morremos apenados durante a execução
pena na região metropolitana de Porto Alegre: genocídio autorizado? In: ÁVILA, Gustavo Noronha
de (Org.). Fraturas do sistema penal. Porto Alegre: Sulina, 2013.
Filme
MORRO dos Prazeres. Direção: Maria Augusta Ramos. Documentário, 2013 (duração 90 minutos).
Sites
Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/120052191/Presidio-Central-de-Porto-Alegre-Representacao-na-Comissao-Interamericana-de-Direitos-Humanos>. Acesso em: 3 fev. 2014.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/12/1385863-ativista-que-ja-foi-presapor-plantar-maconha-critica-lei-que-legaliza-erva-no-uruguai.shtml>. Acesso em: 3 fev. 2014.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Doutrina
A Indelegabilidade da Execução da Pena e a Inconstitucionalidade da Terceirização
Prisional no Brasil
JACINTO TELES COUTINHO
Especialista em Direito Público pelo CEUT, Habilitado em Direito Penal pela UESPI, Graduado em Direito
pela FAETE, Aprovado no V Exame Nacional da OAB, Agente Penitenciário e Conselheiro Penitenciário
do Piauí (2005-2013), Foi Vereador, Assessor Jurídico da Prefeitura de Teresina, Presidente da CDH da
Câmara Municipal de Teresina, Diretor Jurídico da Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis
– Cobrapol do SINPOLJUSP e Coordenador do Fórum Nacional de Assuntos Penitenciários.
PALAVRAS-CHAVE: Execução penal; regime disciplinar diferenciado; persecução penal; terceirização prisional;
inconstitucionalidade.
SUMÁRIO: Introdução; 1 A execução penal como papel fundamental do Estado; 1.1 A persecução penal como
função indelegável do Estado; 2 A incompatibilidade da terceirização no sistema penitenciário brasileiro; 2.1
Breve histórico acerca da terceirização; 2.2 Natureza jurídica; 3 O princípio constitucional da legalidade como
obstáculo à terceirização e à privatização do sistema penitenciário; 3.1 Ação civil pública (ACP) do Ministério
Público impede terceirização de presídios no Ceará; 4 A omissão do Brasil para com as regras mínimas da
ONU para tratamento dos prisioneiros; 5 A importância da implementação da PEC 308/2004 pelo Congresso
Nacional para o sistema prisional; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Este trabalho objetiva fomentar o debate sobre a execução da pena no Brasil e chamar
à reflexão acerca do fato de que tal instituto é função indelegável do Estado, e que a conclusão da persecução penal ocorre com o efetivo término da execução da pena no estabelecimento penal; ao contrário da posição majoritária da doutrina, que afirma ocorrer essa
conclusão com o julgamento do acusado.
Isso se reflete de várias maneiras, principalmente por meio de propostas de terceirização de penitenciárias, como caminho natural à privatização da execução penal. Tais atitudes ignoram princípios legais e constitucionais, principalmente o da legalidade, expresso
na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988) e o da indelegabilidade do
poder de polícia à iniciativa privada, previsto na Lei nº 11.079/2004, que obstaculizam essa
esdrúxula pretensão.
200
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Enfim, procurar-se-á provar, durante toda a exposição do trabalho, que a execução
da pena é realmente função indelegável do Estado, que a terceirização é essencialmente
incompatível com a execução penal.
1 A EXECUÇÃO PENAL COMO PAPEL FUNDAMENTAL DO ESTADO
Conforme preconiza o art. 1º da Lei Federal de Execução Penal nº 7.210, de 11 de
julho de 1984 (LEP), “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença
ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Efetivar as disposições de sentença ou decisões criminais significa
concretizar as finalidades da pena na sentença, garantindo a retribuição e a prevenção.
A LEP estabelece, ainda, os critérios para a classificação dos condenados, os quais devem
levar em consideração os antecedentes e a personalidade do autor do delito. Tal classificação
será feita por Comissão Técnica que elaborará o programa individualizador da pena privativa de liberdade adequada ao condenado ou preso provisório, cujo texto constante do art. 6º
da citada lei sofreu alteração por meio de Lei nº 10.792, de 01.12.2003, antes previa a pena
restritiva de direitos e autorizava às autoridades competentes a propor as progressões e as
regressões de regimes, bem como as conversões.
Nesse particular, é importante destacar que o exame de classificação se difere do exame
criminológico, porque aquele é mais amplo e genérico, envolve aspectos relacionados à personalidade do condenado, suas características, sua vida familiar social e sua capacidade laborativa, orienta o modo de cumprimento da pena. Já este é mais específico, envolve aspectos
psicológicos, psiquiátricos do condenado, atestando sua maturidade, disciplina, capacidade
de suportar frustrações, enfim, objetiva construir um prognóstico de periculosidade.
De acordo com Minhoto (2000), em seu livro Privatização de presídios e criminalidade, a gestão da violência no capitalismo global, um traço central das modernas democracias
é o postulado do monopólio estatal do uso legítimo da força, segundo a clássica formulação
weberiana.
Nesses termos, o direito de privar um cidadão da liberdade, e de entregar a coerção, que o
acompanha, constitui uma daquelas situações excepcionais que fundamentam a própria razão
de ser do Estado, figurando no centro mesmo do sentido moderno de coisa pública e, nessa
medida, seria intransferível. (Minhoto, 2000 p. 87)
Nessa concepção, para que o Estado execute a pena, é importante destacar os diversos
tipos de regimes previstos no sistema penitenciário, bem como suas diversas classificações
conforme a LEP. O regime fechado, constante do art. 87, é cumprido na penitenciária; o
semiaberto, em colônia agrícola ou industrial (art. 91); o aberto, em casa de albergado (art.
93). Nos diversos regimes aqui mencionados, observadas as suas peculiaridades, há que
se ter como referencial o aspecto do trabalho e do estudo, que devem ser estimulados pela
remição, conforme o art. 126 da LEP, alterado pela Lei nº 12.433/2011, a qual incluiu a
possibilidade da remição também pelo estudo.
201
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
1.1 A persecução penal como função indelegável do Estado
A doutrina tem se manifestado de forma unânime sobre o reconhecimento de que a
persecução penal é função indelegável do Estado. Neste particular, Mirabete (2001) ensina
que, praticado um fato caracterizado como infração penal, surge para o Estado, o jus puniendi, que só pode ser efetivado por meio do processo. Justamente porque é na ação penal
que deve ser procedida em juízo a pretensão punitiva do Estado. A partir daí deverá sair a
aplicação da sanção penal adequada. Para ser intentada a ação penal, é necessário que o
Estado disponha de um mínimo de elementos probatórios que indiquem a ocorrência da
infração, bem como de sua autoria.
Indiscutivelmente, o meio mais comum para a colheita de tais elementos é o inquérito
policial. O Jurista penalista Júlio Fabbrinni Mirabete (2003), citando José Frederico Marques,
autor do anteprojeto do Código de Processo Penal, classifica o inquérito assim: “A apuração
de fato que configure infração penal e respectiva autoria, para servir de base à ação penal
ou às providências cautelares”.
Obviamente que este não é o único instrumento, já que ao Ministério Público, por incumbência constitucional e entendimento majoritário da jurisprudência do Supremo, cabe
também, diretamente, a colheita de provas à instrução da ação penal competente.
Nos termos do art. 4º do CPP, cabe à polícia judiciária, a qual exercida pelas autoridades policiais competentes, a atividade destinada à apuração das infrações penais e da
autoria por meio do inquérito policial, preparatório da ação penal, ou seja, como peça
subsidiária desta. À soma dessa atividade investigatória com a ação penal promovida pelo
Ministério Público ou do próprio ofendido, denomina-se de persecução penal (persecutio
criminis). Com ela se procura tornar efetiva o jus puniendi resultante da prática do crime, a
fim de se impor ao seu autor a sanção penal cabível.
Persecução penal significa, portanto, a ação de perseguir o crime; como diz literalmente o Dicionário Aurélio: “Qualquer violação grave da lei moral, civil ou religiosa; ato
ilícito; contravenção”.
Registre-se que não encontramos na pesquisa bibliográfica para a feitura deste
modesto estudo divergência no sentido de que a persecução penal seja função típica de
Estado. Quase a unanimidade da doutrina pesquisada ensina que sua conclusão deve se
dar com o julgamento do acusado, pois é mínima a posição na doutrina brasileira de que a
conclusão da persecução penal se materialize com o cumprimento da pena, fato que deve
ser repensado pela doutrina dominante dessa área penal e/ou penitenciária.
É fundamental destacar que o direito/dever de punir atribuído ao Estado, data venia
aos contrários, não se conclui apenas com o julgamento do acusado, com a imposição da
pena, em caso de sê-lo considerado culpado, haja vista que, no momento em que o sentenciado é encaminhado ao estabelecimento penal ou a outro órgão para a execução de sua
pena, continua o processo de punição do Estado, agora exercendo o direito/dever de punir
e cuidar, desse que é comprovadamente o autor do delito.
202
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
A nosso sentir, a persecução penal só vai ser exaurida quando do integral cumprimento da pena. Independentemente do regime penitenciário a que esteja submetido o detento,
este poderá vir a ter a persecução interrompida, inclusive por meio da fuga. A partir daí
volta-se a persecução, ou seja, a perseguição do evadido continua até a sua recaptura para
o retorno ao interior do estabelecimento penal.
A renomada penitenciarista Armida Bergamini Miotto (1992) defende, senão explícita,
mas implicitamente, que a persecução penal deva se dar com a devida execução da pena,
quando assegura taxativamente que o direito/dever de punir compete exclusivamente ao
Estado, como parte integrante da persecução penal. Veja-se:
O direito de punir é um direito subjetivo público, estatal. Como todo direito subjetivo público,
não é simples facultas agendi (como é o direito subjetivo privado), mas potesta agendi, poder
de agir. Desdobra-se ele em três fases: a da cominação da pena, a da aplicação e a da execução. A cominação é feita pelo Poder Legislativo, na elaboração das leis (promulgadas pelo
Executivo), constando, pois, de lei, para cada tipo de crime: a aplicação é feita pelo Poder
Judiciário (juiz tribunal), na sentença condenatória, segundo cada caso concreto; a execução
é feita, tendo em vista a pena aplicada na sentença, formalmente pelo Poder Judiciário (juiz
tribunal), formalmente pelo Poder Judiciário (juiz de execução) e praticamente pelo Poder Executivo (Administração Penitenciária). Nesse desdobramento em três fases sucessivas, o exercício do direito de punir compete a adequados órgãos dos três poderes do Estado. Em nenhuma
das três fases pode o direito de punir ser transferido ou delegado a pessoas ou entidades privadas, nem a órgãos paraestatais, autarquias etc. essa exclusividade da titularidade do direito de
punir pelo Estado é uma conquista da civilização, em favor da garantia dos direitos pessoais,
da tranqüilidade e segurança pessoais e sociais, e da justiça da punição. [...]. (Miotto, 1992,
p. 112-113)
Ainda de acordo com Miotto (1992), não colidem com este princípio acima descrito,
o jus querelandi, que é o direito que o Estado confere ao particular para, através de queixa
ou representação, provocá-lo a exercer o direito de punir (jus puniendi). “O Estado ao ser
provocado, procederá por meio de seus órgãos competentes e de acordo com a legislação
penal e processual penal, para ao final aplicar e executar a pena, ou mesmo não aplicá-la,
se assim for o caso”.
Comprovado como está, que verdadeiramente a execução penal é função indelegável
do Estado, como também o é o processo até a fase de julgamento; a conclusão lógica desse
raciocínio é a de que a execução da pena, irrefutavelmente, é a conclusão da persecução
penal. Porque tanto aquela fase como esta são atividades jurisdicionais do Estado, do que
decorre a indelegabilidade dos serviços. A primeira se manifesta por meio do juiz sentenciante; já, a segunda, pelo juízo da execução penal.
Na execução, a persecução penal está intrinsecamente presente, ora na vigilância
permanente dos agentes penitenciários do Estado na rotina da prisão, ora na recaptura do
preso, quando este se evade, situação que advém, principalmente, de um instinto natural de
quem está privado da liberdade, ou mesmo para se livrar de uma situação de humilhação,
como uma espécie de autodefesa, cuja realidade jamais é admitida pelas autoridades do
Estado ou mesmo para voltar a delinquir.
203
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
2 A INCOMPATIBILIDADE DA TERCEIRIZAÇÃO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO
2.1 Breve histórico acerca da terceirização
Terceirização deriva do latim tertius, que seria o estranho a uma relação entre duas
pessoas. Terceiro é o intermediário, o interveniente. No caso, a relação entre duas pessoas
poderia ser entendida como a realizada entre o terceirizante e o seu cliente, sendo que o terceirizado ficaria fora dessa relação, daí, portanto, ser terceiro. A terceirização, entretanto, não
ficaria restrita a serviços, podendo ser feita também em relação a bens e serviços ou produtos.
Com relação ao seu conceito, conforme Martins (2007), não existe na legislação vigente nenhuma definição sobre a denominação de terceirização, trata-se, na verdade, de
uma estratégia na forma de administração das empresas, que tem por objetivo, bem definido, organizar a empresa e estabelecer métodos da sua atividade empresarial. A utilização
da terceirização pelas empresas traz problemas jurídicos que necessitam ser analisados,
mormente no campo trabalhista. É evidente que a empresa deverá obedecer às estruturas
jurídicas vigentes, principalmente às trabalhistas, sob pena de arcar com as consequências
decorrentes de seu descumprimento, o que diz respeito aos direitos trabalhistas sonegados
ao empregado. Visando a ilustrar, para melhor entendimento sobre a tão falada terceirização, transcreve-se a seguir parte do que diz o Jurista Sérgio Pinto Martins:
Consiste a terceirização na possibilidade de contratar terceiro para a realização de atividades
que geralmente não constitui o objeto principal da empresa. Essa contratação pode envolver
tanto a produção de bens como serviços, como ocorre na necessidade de contratação de
serviços de limpeza, de vigilância ou até de serviços temporários. Envolve a terceirização uma
forma de contratação que vai agregar a atividade-fim de uma empresa, normalmente a que
presta os serviços, à atividade-meio de outra. É também uma forma de parceria, de objetivo
comum, implicando mútua e complementariedade. O objetivo comum diz respeito à qualidade dos serviços para colocá-los no mercado. A complementariedade significa a ajuda do
terceiro para aperfeiçoar determinada situação que o terceirizador não tem condições ou não
quer fazer. [...] Na verdade, os empresários pretendem, na maioria dos casos, a diminuição de
encargos trabalhistas e previdenciários, com a utilização da terceirização, podendo ocasionar
desemprego no setor [...]. (Martins, 2007, p. 24)
Como aqui demonstrado, a terceirização é plenamente incompatível com a execução
da pena, haja vista que esta é função indelegável do Estado, justamente por ser atividadefim, já que é por meio do cumprimento da pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos que o autor do delito é devolvido à sociedade na perspectiva de que não retorne ao
cometimento de ilícito penal.
2.2 Natureza jurídica
Difícil é dizer qual a natureza jurídica da terceirização, pois, como visto, existem
várias concepções a serem analisadas. Dependendo da hipótese em que a terceirização
for utilizada, haverá elementos de vários contratos, sejam eles nominados ou inominados.
Sérgio Martins sobre o assunto assim se manifesta:
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Poderá haver a combinação de elementos de vários contratos distintos: de fornecimentos de
bens ou serviços; de empreitada, em que o que interessa é o resultado, de franquia, de locação
de serviços, em que o que importa é a atividade e não o resultado; de concessão, de consórcio,
de tecnologia, knowhow, com transferência da propriedade industrial, como inventos, fórmulas. A natureza jurídica será do contrato utilizado ou da combinação de vários deles. (Martins,
2007, p. 25)
Se a natureza jurídica da terceirização, nos segmentos aceitáveis, é tão difícil de ser
caracterizada, imagine no sistema penitenciário, que não admite tal instituto. Poder-se-ia
estabelecer uma denominação, fosse a terceirização para o fornecimento de alimentação
nos estabelecimentos penais, nesse particular, acredita-se ser compatível com as atividades
do sistema prisional do País. É realmente dificílimo nominar a natureza jurídica da terceirização na execução penal, porque patente é a sua dissociação da desejável ressocialização
do apenado, são institutos visivelmente díspares.
3 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LEGALIDADE COMO OBSTÁCULO À TERCEIRIZAÇÃO E À PRIVATIZAÇÃO DO
SISTEMA PENITENCIÁRIO
O art. 5º, II, da CRFB/1988 consagrou o princípio da legalidade nos seguintes termos:
“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Logo, o princípio da legalidade é corolário do Estado Democrático de Direito, na medida
em que estabelece a obrigação de o Estado, apenas e tão somente, exigir ações dos particulares ante a aprovação de leis em sentido amplo, respeitando o processo democrático e
representativo, previsto no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.
O princípio constitucional da legalidade é o fundamento básico do Estado Democrático de Direito, nesse diapasão somente a lei obriga de forma eficaz e validamente às pessoas
físicas ou jurídicas, a fazer ou deixar de fazer algo. Porque pressupõe que a lei seja a manifestação clara da vontade da maioria, obviamente que tudo deve ocorrer em conformidade
com o devido processo legislativo, indispensável ao Estado de Direito.
Constata-se, assim, que esse importante princípio constitucional é plenamente aplicável ao caso da terceirização ou privatização da execução da pena, isto é, para impedi-la,
haja vista que em nenhum momento o Congresso Nacional, por meio de suas casas legislativas, Câmara dos Deputados e Senado Federal, editou qualquer espécie legislativa visando
a tão falada terceirização ou mesmo a privatização do sistema prisional.
É fato público e notório no meio acadêmico que o princípio da legalidade possui,
ao menos, dois entendimentos de aplicabilidade, ou seja, com relação aos particulares é
permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. Já, no que diz respeito à Administração
Pública, o mesmo fundamento se apresenta ao contrário, pois a garantia para agir em determinada situação só será lícita se amparada no ordenamento jurídico, isto é, se calcada
expressamente em lei.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
A lei para o particular significa pode fazer assim, enquanto que para o Poder Público
significa deve fazer assim. O Estado não pode agir ao arrepio da lei, sob pena de violar a
legalidade constitucional mencionada, além do princípio da segurança jurídica, que, indiscutivelmente, é a base primeira do Estado Democrático de Direito.
Essa conclusão nada mais é do que decorrência lógica do também princípio da legalidade, insculpido no caput do art. 37 da CRFB/1988. Assim, não podendo o administrador
público inovar sem que sua conduta esteja previamente definida e amparada por lei.
Nessa mesma linha, é importante observar o que leciona o Jurista Floriano Peixoto de
Azevedo Marques Neto:
É inegável que o princípio da legalidade assume significado muito especial para o Direito
Administrativo, visto que constitui o pilar de toda ordem jurídica nacional, revelando-se elemento de garantia e segurança jurídica. A partir dai, deve o administrador público conscientizar-se de que não age em nome próprio, mas sim em nome da coletividade representando
uma garantia aos administrados, pois qualquer ato da administração pública somente terá
validade de acordo com a lei, representando desta forma um limite para atuação do Estado
[...]. (Peixoto, 2008, p. 1)
Por outro lado, à luz do que dispõe o inciso III do art. 4º da Lei nº 11.079/2004, que
institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da
Administração Pública, impede a delegabilidade do poder de polícia para pessoa jurídica de
direito privado. O inciso em referência assim disciplina a matéria: “III – indelegabilidade das
funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades
exclusivas do Estado”. Como se observa, essa questão está amparada duplamente, já que a
execução da pena é também reconhecida como função jurisdicional do Estado.
3.1 A ção civil pública (ACP) do Ministério Público impede terceirização de presídios no Ceará
É importante destacar que fatos concretos de terceirização na execução da pena aconteceram em alguns Estados, entre eles os do Paraná e do Ceará, e continuam acontecendo,
agora mais recentemente no de Minas Gerais. Ocasião em que os dois primeiros entes públicos celebraram contratos com a Empresa Humanitas – Administração Prisional Privada
S/C Ltda. Nesta oportunidade, destaca-se o caso do Ceará, cujo contrato visava à terceirização dos serviços necessários ao pleno funcionamento da Penitenciária Industrial Regional
do Cariri.
O Ministério Público do Ceará, após ampla mobilização de segmentos da sociedade,
como Pastoral Carcerária da Igreja Católica, OAB local, Sindicato dos Agentes Penitenciários, Fórum Nacional Permanente de Assuntos Penitenciários, entre outros, ajuizou ação
civil pública por meio da Promotoria de Defesa da Moralidade Administrativa, cuja titularidade à época (dezembro de 2001) estava a cargo do promotor de Justiça, Eduardo Araújo
Neto, visando à anulação do tal contrato administrativo, o qual realizado, nas palavras do
representante ministerial: “À margem da legalidade e de princípios constitucionais básicos”.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Ressalte-se que não somente os serviços de conservação e alimentação dos presos do
estabelecimento penal, mas, inclusive, os serviços de segurança e gerência da administração penitenciária, todos ficaram a cargo da Empresa Humanitas.
Objetivando corroborar com o que aqui se expõe, transcreve-se fragmentos de argumentos lógicos que ajudaram a fundamentar a ACP do Parquet cearense:
João Marcello de Araújo Júnior, ao apresentar a obra coletiva por si coordenada, de nome
Privatização das prisões (São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995), considera, baseado nos
ensinamentos de René Ariel Dotti, “provavelmente, o Professor brasileiro mais autorizado
para falar sobre a lei de execução penal, por ter sido o mais notório dos seus autores”, “que a
administração penitenciária participa da atividade jurisdicional”. O pessoal penitenciário, de
qualquer nível, embora vinculado ao Poder Executivo para fins de gestão financeira e disciplinar, ao praticar os atos de execução são a longa manus do juiz da execução. Estão para este,
assim como estão o Oficial de Justiça e o Escrivão. A administração penitenciária participa,
portanto, da execução de decisões judiciais. Sendo, assim, a execução penal uma atividade
jurisdicional e sendo, como se sabe, a atividade jurisdicional indelegável, devemos concluir
que a administração penitenciária é, também, indelegável e, por isso, somente poderá ser
exercida pelo Estado. [...]. (Ação Civil Pública nº 00810-2006-017-10-00-7, de 18 de dezembro de 2001)
O MP e o Poder Judiciário do Ceará prestaram relevantes serviços ao sistema penitenciário brasileiro, no momento em que, atendendo reivindicações de diversos segmentos
sociais, por meio de ação civil pública, conseguiram expurgar a famigerada terceirização
prisional naquele Estado, na década passada. Essa decisão afastou a famigerada política da
privatização da execução penal na região do Cariri cearense (Juazeiro/Crato). Foi assim defenestrado um modelo retrógrado, mas que já estava se proliferando por outras regiões do
País. Ação como essa é digna de ser difundida, por todas as razões já elencadas.
4 A OMISSÃO DO BRASIL PARA COM AS REGRAS MÍNIMAS DA ONU PARA TRATAMENTO DOS PRISIONEIROS
As Regras Mínimas da ONU para tratamento dos reclusos são fundamentais para a correta execução penal no País. Tais regras foram adotadas no Primeiro Congresso das Nações
Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento dos Delinquentes, realizado em Genebra
(Suíça), em 1955, aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU, por meio da Resolução nº 663, de 31 de julho de 1957, a qual foi aditada pela Resolução nº 2.076, de 13
de maio de 1977.
Em 25 de maio de 1984, por meio da Resolução nº 47/1984, o Conselho Econômico
e Social aprovou 13 procedimentos para a efetiva aplicação das Regras Mínimas supracitadas. Cujo objetivo visava a estabelecer princípios e regras de uma boa organização penitenciária, primando pelo adequado tratamento dos prisioneiros. Tendo como pressuposto
básico fundamental o que está consignado no art. 6º da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que diz textualmente: “Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares,
reconhecido como pessoa perante a lei”.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Esse documento da ONU sobre as prisões, do qual o Brasil é signatário, embasou
substancialmente a LEP de 1984, que, não se tem dúvida, é uma lei bastante avançada, mas
pouco cumprida nos estabelecimentos penais Brasil afora.
Não é necessário conhecer pessoalmente para se ter uma noção da lamentável situação do sistema penitenciário brasileiro, basta que se observe o Relatório da CPI do Sistema
Carcerário de 2009 (Disponível em: http://www.camara.gov.br) para se comprovar que tanto as Regras Mínimas da ONU como a LEP são explicitamente violadas em todo o território
nacional.
O cumprimento dessas Regras Mínimas sempre foi bastante questionado, tanto é verdade que, em 1971, a Assembleia-Geral das Nações Unidas chamou a atenção dos Estados
signatários para o cumprimento de todos os seus dispositivos, e para isso adotou resolução
especial criando procedimentos para regulamentar tal cumprimento. Dos treze pontos procedimentais adotados pela ONU, visando ao efetivo cumprimento das Regras Mínimas,
pelos Países-membros da ONU, destacamos aqui os seguintes:
Procedimento 1 – Todos os Estados cujas normas de proteção a todas as pessoas submetidas
a qualquer forma de detenção ou prisão não estiverem à altura das Regras Mínimas para o
tratamento de prisioneiros, adotarão essas Regras Mínimas.
Comentário: A Assembleia-Geral, em sua Resolução nº 2.858 (XXVI), de 20 de dezembro de
1971, chamou a atenção dos Estados-membros para as Regras Mínimas e recomendou que
eles as aplicassem na administração das instituições penais e correcionais e que considerassem favoravelmente a possibilidade de incorporá-las em sua legislação nacional. É possível
que alguns Estados tenham normas mais avançadas que as Regras e, portanto, não se pede aos
mesmos que as adotem. Quando os Estados considerarem que as Regras necessitam ser harmonizadas com seus sistemas jurídicos e adaptadas à sua cultura, devem ressaltar a intenção
e não a letra fria das Regras.
Procedimento 2 – Adaptadas, se necessário, às leis e à cultura existentes, mas sem distanciarse do seu espírito e do seu objetivo, as Regras Mínimas serão incorporadas à legislação nacional e demais regulamentos.
Comentário: Este procedimento ressalta a necessidade de se incorporar as Regras Mínimas à
legislação e aos regulamentos nacionais, com o que se abrange também alguns aspectos do
procedimento 1.
Procedimento 3 – As Regras Mínimas serão postas à disposição de todas as pessoas interessadas, em particular dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e do pessoal penitenciário, a fim de permitir sua aplicação e execução dentro do sistema de justiça penal.
Comentário: Este procedimento lembra que as Regras Mínimas, assim como as leis e os regulamentos nacionais relativos à sua aplicação, devem ser colocados à disposição de todas
as pessoas que participem na sua aplicação, em especial dos funcionários responsáveis pela
aplicação da lei e do pessoal penitenciário. É possível que a aplicação das Regras exija, ademais, que o organismo administrativo central encarregado dos aspectos correcionais organize
cursos de capacitação. [...].
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
As Regras Mínimas da ONU, de acordo com o Procedimento nº 3 transcrito, deveriam
ser distribuídas a todas as pessoas interessadas, em particular aos funcionários responsáveis
pela aplicação da lei e do pessoal penitenciário, a fim de permitir sua aplicação e execução
no sistema de justiça criminal.
No Brasil, a maioria esmagadora dos juízes da execução penal e dos promotores de
justiça não conhece integralmente as Regras Mínimas da ONU sobre tratamento de reclusos, tampouco o pessoal penitenciário, uma prova inequívoca do descaso com que o Estado
brasileiro trata tão importante questão.
5 A IMPORTÂNCIA DA IMPLEMENTAÇÃO DA PEC 308/2004 PELO CONGRESSO NACIONAL PARA O SISTEMA
PRISIONAL
É importante destacar a necessidade de implementação da PEC 308/2004, haja vista
está inserida diretamente nesse contexto do sistema penitenciário. Cuja proposta já aprovada em todas as comissões temáticas competentes sobre o tema, na Câmara dos Deputados,
que institui a polícia penal, órgão que, entre outras funções, terá as de combater o crime
organizado a partir do interior dos estabelecimentos penais, o Substitutivo aprovado na
Comissão Especial, sob a presidência do deputado Nelson Pelegrino (PT-BA), que discutiu
o mérito da matéria, teve como relator o deputado Alberto Fraga (PTB-SP), que assim se
manifestou:
Substitutivo adotado pela Comissão
Altera os arts. 7º, 21, 32, 39 e 144 da Constituição Federal, criando as polícias penitenciárias
federal e estaduais.
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da
Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao Texto Constitucional:
Art. 1º O caput do art. 7º da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte inciso
XIV-A:
“Art. 7º [...]
[...]
XIV – duração do trabalho de 6 (seis) horas diárias e 36 (trinta e seis) horas semanais, para
o serviço prestado a estabelecimentos prisionais.” (NR)
Art. 2º O inciso XIV do caput do art. 21 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte
redação:
“Art. 21. [...]
[...]
209
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
XIV – organizar e manter a polícia civil, a polícia militar, a polícia penal e o corpo de
bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito
Federal para a execução de serviços públicos por meio de fundo próprio;
[...]” (NR)
Art. 3º O § 4º do art. 32 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 32. [...]
[...]
§ 4º Lei federal disporá sobre a utilização pelo Governo do Distrito Federal das polícias
civil, militar e penal e do corpo de bombeiros militar.” (NR)
Art. 4º O § 3º do art. 39 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 39. [...]
[...]
§ 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto nos incisos IV, VII, III,
IX, XII, XIII, XIV-A, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII E XXX do caput do art. 7º, podendo a
lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.”
(NR)
Art. 5º O art. 144 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido dos seguintes incisos VI
e VII e do seguinte § 10:
“Art. 144. [...]
[...]
VI – polícia penal federal;
VII – polícias penais estaduais.
[...]
§ 10. Às polícias penais incumbe, no âmbito das respectivas circunscrições e subordinadas
ao órgão administrador do sistema penitenciário da unidade federativa a que pertencer:
I – supervisionar e coordenar as atividades ligadas, direta ou indiretamente, à segurança
interna e das áreas de segurança dos estabelecimentos penais;
II – promover, elaborar e executar atividades policiais de caráter preventivo, investigativo
e ostensivo, que visem a garantir a segurança e a integridade física dos apenados, custodiados e os submetidos às medidas de segurança, bem como dos funcionários e terceiros
envolvidos, direta ou indiretamente, com o sistema penitenciário, nas dependências das
unidades prisionais, inclusive em suas áreas de segurança;
210
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
III – diligenciar e executar, junto com os demais órgãos da segurança pública estadual e/ou
federal, atividades policiais que visem a imediata recaptura de presos foragidos das unidades
penais;
IV – promover, elaborar e executar atividades policiais de caráter preventivo, investigativo e
ostensivo, nas dependências das unidades prisionais e respectivas áreas de segurança, que
visem a coibir a prática de infrações penais direcionadas às unidades prisionais, mediante a
instauração de inquérito de polícia judiciária;
V – promover a defesa das instalações físicas das unidades prisionais, inclusive no que se
refere à guarda das suas muralhas;
VI – executar a atividade de escolta dos apenados, custodiados e dos submetidos às medidas de segurança, para os atos da persecução criminal, bem como para o tratamento de
saúde. [...]” (NR)
Art. 6º O quadro de servidores das polícias penais será oriundo, mediante lei específica de
iniciativa do Poder Executivo, de transformação dos cargos, isolados ou organizados em
Carreiras, com atribuições de segurança a que se refere o art. 77 da Lei nº 7.210, de 11 de
julho de 1984.
Parágrafo único. Fica assegurado aos servidores das Carreiras policiais civis, militares e
bombeiros militares do Distrito Federal que exerçam suas atividades no âmbito do sistema
penitenciário o direito de opção entre as Carreiras a que pertencem e a correspondente
Carreira do quadro da Polícia Penal.
Art. 7º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.
Sala da Comissão, em 17 de outubro de 2007. (Brasil, 2007, p. 1)
Com a criação da Polícia Penal no âmbito dos Estados-membros, do Distrito Federal e
da União, haverá substancial alteração no sistema de investigação criminal no País, já que
à polícia penal será incumbida, além de outras, a função de promover, elaborar e executar
atividades policiais de caráter preventivo, investigativo e ostensivo, nas dependências das
unidades prisionais e respectivas áreas de segurança, que visem a coibir o narcotráfico
direcionado às unidades prisionais. Convém destacar que o texto aprovado na Comissão
Especial que discutiu a PEC em referência, sofreu modificações superficiais posteriormente.
No Brasil, o crime organizado é comandado, em grande escala, de dentro dos presídios, mas atualmente os agentes penitenciários não têm poder de investigação criminal, o
que de certa forma favorece as ações criminosas nos estabelecimentos penais. A polícia civil
dos Estados, a quem compete a investigação criminal, não dispõe das condições necessárias
para promover a investigação adequada no interior desses estabelecimentos, aliás, esta instituição já faz além das condições que lhe são propiciadas pelos Governos, e um dos principais motivos por que não conseguem desenvolver a contento suas atribuições é justamente
porque estão a cuidar de presos nas delegacias de polícia, em completo desvio de função.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Recebendo os agentes penitenciários as condições imprescindíveis à investigação,
como investimento no conhecimento técnico, por meio de aparatos de inteligência, como
as demais condições de trabalho, inclusive salariais, nenhuma outra categoria tem mais
condições de investigar o crime organizado no interior dos presídios do que os agentes penitenciários, haja vista que estes abnegados profissionais conhecem mais do que ninguém as
peculiaridades internas dos estabelecimentos integrantes do sistema penitenciário brasileiro.
O que lhes falta é a atenção das autoridades responsáveis pela gestão do sistema prisional, já que esse segmento da segurança pública está submetido ao caos. A aprovação
da PEC 308 traz, inexoravelmente, a perspectiva de um futuro melhor, não somente para
os agentes penitenciários, mas, sobretudo, à população usuária dos serviços públicos de
segurança, que convive no Brasil com setenta por cento dos presos que são colocados em
liberdade, reincidindo na criminalidade.
A propósito, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), Ministro Cezar Peluso, afirmou ao Jornal Valor Econômico, em
05.09.2011, que sete em cada dez presos que deixam o sistema penitenciário voltam ao
crime, uma das maiores taxas de reincidência do mundo.
É melhor também para os que cumprem pena, os detentos, já que os executores da
execução penal (agentes prisionais) serão melhor qualificados, conhecedores, e, consequentemente, respeitadores dos direitos fundamentais da pessoa humana cerceada da liberdade.
Por outro lado, registra-se o fato relevante de retirar das estruturas físicas dos estabelecimentos penais os policiais militares, que ficarão a disposição da população, desenvolvendo suas funções constitucionais, quais sejam, as de atividades preventivas no combate ao
crime e à preservação da ordem pública, medida mais que necessária, já que a população
ressente-se tanto pela falta de efetivo policial no trabalho ostensivo.
CONCLUSÃO
A precariedade aviltante em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro é fato
público, incontestável e estarrecedor. Da mesma forma que está comprovada, a nosso sentir, que sua solução não está na política de terceirização ou privatização do sistema, seja
pelo óbice constitucional e das normas vigentes em nosso ordenamento jurídico, seja pela
própria essência da realidade peculiar à execução penal, que não se amolda às normas de
mercado adotadas por essa política de terceirização.
Os institutos da terceirização e da privatização, com raríssimas exceções, são inaplicáveis e inservíveis aos serviços penitenciários, em especial àqueles relacionados à segurança,
à disciplina e à gerência nos estabelecimentos penais, e ao efetivo acompanhamento ao/a
presidiário(a), além da avaliação da individualização da execução da pena.
É evidente que ainda precisa-se de algumas inovações no ordenamento jurídico acerca
do sistema penitenciário, com a edição de normas legais previstas no art. 59 da CRFB/1988,
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
como leis e emendas constitucionais, entre as quais as que tenham o objetivo de regulamentar a Polícia Penal, essa que, formada e equipada adequadamente, como previsto na
PEC 308/2004, terá grande responsabilidade no combate ao crime organizado no interior
dos estabelecimentos penais do Brasil, reconhecendo constitucionalmente a categoria de
agentes penitenciários, que, não obstante as recomendações da ONU, de que esses profissionais exercem funções de alta relevância para o Estado, padecem à falta de uma política
de valorização adequada.
O que efetivamente falta é o Estado brasileiro tratar o sistema penitenciário com a necessária prioridade e seriedade que a questão requer. Deve ser tratado como função típica e
indelegável, já que o direito/dever de punir atribuído ao Estado não se conclui apenas com
o julgamento do acusado, com a imposição da sanção penal, quando julgado culpado, mas
quando se constata que é no sistema penitenciário que o condenado vai se submeter às regras da execução da pena que representa a conclusão da persecução penal.
REFERÊNCIAS
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gov.br. Acesso em: 20 abr. 2013.
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Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 20 abr. 2013.
______. PEC 308/2004. Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em:
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MARTINS, Sergio Pinto. A terceirização e o direito do trabalho. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo:
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MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 5. ed.
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MIOTTO, Armida Bergamini. A violência nas prisões. 2. ed. Goiânia: Centro Editorial e Gráfico/
UFG, 1992.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Doutrina
Os Níveis de Dor Intencional e o Holocausto Nosso de Cada Dia: Renúncia aos
Discursos de Justificação da Pena e ao Mito da Ressocialização
Salah H. Khaled Jr.
Professor Adjunto de Direito Penal, Criminologia, Sistemas Processuais Penais e História das Ideias Jurídicas da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Professor Permanente do Mestrado em Direito e
Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Doutor e Mestre em Ciências Criminais
(PUCRS), Mestre em História (UFRGS), Especialista em História do Brasil (Fapa), Bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais (PUCRS), Licenciado em História (Fapa), Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e
Ciências Criminais (FURG/CNPq). Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: para Além da Ambição
Inquisitorial (2013).
Resumo: O artigo em questão problematiza a pena privativa de liberdade no Brasil a partir do abolicionismo
de Nils Christie, das teses sobre a história de Walter Benjamin e da teoria agnóstica da pena de Zaffaroni,
indicando a necessidade de rompimento com os discursos de justificação da pena, para que ao menos seja
possível ter a esperança de reduzir os danos da catástrofe penitenciária que chamamos de holocausto nosso
de cada dia.
Palavras-chave: Criminologia; teoria da pena; ressocialização; abolicionismo; modernidade.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Segurança e catástrofe: ardis do discurso moderno; 2 O holocausto nosso de cada
dia: breve relato de uma tragédia brasileira; 3 Minimizar a dor ou justificar a pena como meio de reintegração
social?; 4 A necessária rejeição aos discursos justificantes da pena; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
Em 1993 foi lançada a edição argentina de Indústria do Controle do Delito: La Nueva
Forma del Holocausto? – uma das obras mais expressivas de Nils Christie –, com direito a
prefácio de Zaffaroni. No prefácio, o autor discutiu o argumento central da obra de Christie:
a sociedade industrial conduziu ao Holocausto – como seu ponto máximo de realização –, e
esse parece ser o rumo do sistema penal dos Estados Unidos, que caminha na mesma direção.
Sem discordar completamente de Christie, Zaffaroni afirma que é moderadamente
mais otimista e aponta que existem outras interpretações, que consideram que o Holocausto
foi produto de circunstâncias específicas da Alemanha – que dificilmente se repetiriam em
outro lugar –, não sendo possível estabelecer uma correlação direta entre o sistema punitivo
das sociedades industriais e a emergência do Holocausto. Desse modo, mesmo que o modelo estadunidense possa conduzir a tragédias análogas às que foram cometidas na Alemanha,
fica em aberto o quanto a sua tecnologia punitivista seria exportável para outros países, já
que a situação americana é produto de um contexto muito particular.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Zaffaroni considera que o racismo também é um elemento necessário para a compreensão do Holocausto. Para ele, racismo é um discurso que pretende legitimar o domínio de
um grupo humano sobre outro grupo humano, por razões de ordem biológica que explicariam a superioridade de suas pautas e costumes. Ele destaca que o racismo é extremamente
suscetível de apropriação e instrumentalização política e aponta que o discurso penal já
nasceu racista: a esterilização de anormais se iniciou nos Estados Unidos e se espalhou por
toda Europa, ainda que o Holocausto tenha ocorrido especificamente na Alemanha.
Apesar de concordar em grande medida com Christie, Zaffaroni afirma que não é
apenas o desenvolvimento industrial que provoca o Holocausto, mas o desenvolvimento
industrial em um país com cultura profundamente racista e que tenha certas minorias a
destruir. Nesse sentido, é possível identificar a existência de uma tradição cultural racista
na Alemanha (que contribuiu para o Holocausto) e nos Estados Unidos (o que explicaria a
massiva criminalização da população negra).
Com base nesse argumento, ele sustenta que o modelo estadunidense não seria automaticamente exportável e que não teríamos como ter qualquer coisa semelhante à escala
da “guerra contra as drogas” estadunidense na América Latina. Zaffaroni contrasta a tese de
Christie com a realidade marginal latino-americana e aponta que, no Brasil, as penitenciárias
estão lotadas, mas que é impossível cumprir as ordens de prisão (cerca do triplo da população
carcerária) por falta de espaço, o que favorece a seletividade policial e, consequentemente,
a corrupção. Ele encerra o prefácio insistindo que a parcial dissidência com Christie o leva a
crer em um espaço mais amplo para prevenir um novo Holocausto e a sua extensão, como
também para diminuir a magnitude dos genocídios que já se encontram em curso1.
Mais de vinte anos se passaram desde então. Será que o grande mestre argentino estava certo?
1 SEGURANÇA E CATÁSTROFE: ARDIS DO DISCURSO MODERNO
Por ora vamos manter a pergunta em suspenso e refletir um pouco mais sobre a questão.
Embora Christie introduza a discussão sobre sociedade industrial e o Holocausto a partir de
Bauman, a estratégia de análise aqui proposta tem como ponto de partida as teses sobre a
história de Walter Benjamin.
Benjamin foi um dos espíritos mais sensíveis de seu tempo. De certa forma, soube perceber que a Europa decididamente caminhava para a maior das catástrofes que o homem
já conheceu. Na nona tese sobre a história, Benjamin – em diálogo com P. Klee – evoca
a imagem de um anjo que não vê no passado uma mera cadeia de acontecimentos orientados ao progresso, mas uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre
ruína. O anjo gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos, mas uma
tempestade sopra do paraíso e o impele com força irresistível para o futuro, de forma que
ele não consegue mais fechar suas asas. Enquanto isso, o amontoado de ruínas cresce até
o céu. Benjamin chama a tempestade de progresso2. Como Benjamin intuiu, o progresso
1 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p.
11-20.
2 LOWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incendio. Una lectura de las tesis “sobre el concepto de historia”. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Economica de Argentina, 2002. p. 100-101.
215
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
acabou produzindo a maior das catástrofes: o Holocausto não foi uma mancha na evolução
histórica da racionalidade moderna. Foi a expressão mais extrema de uma grande tragédia
possibilitada pela ênfase desmedida na técnica e que no final acumulou ruína sobre ruína,
com um custo incalculável de vidas humanas ceifadas por um poder punitivo extremamente
seletivo3. E tudo isso em nome da igualdade e da segurança, categorias que por excelência
conduziram ao extermínio massivo da diferença, percebida como obstáculo para o progresso. O direito penal esteve envolvido profundamente no ponto culminante dessa barbárie,
através de um de seus grandes dogmáticos, o penalista alemão Edmund Mezger4.
Embora o Holocausto represente o apogeu dessa doentia racionalidade, isso não significa que o moinho racional-instrumental de trituração da vida humana tenha cessado de
funcionar: o direito penal continua sendo chamado a desempenhar uma missão de destruição. Não é por acaso que Christie procurou denunciar a aceleração punitivista: o moinho
permanece em movimento, legitimado por artifícios discursivos ardilosos que dão a essa
barbárie a aparência de uma técnica racional e civilizada, obtida a partir do avanço progressivo da ciência e do saber jurídico. Trata-se exatamente da racionalidade hegemônica que
urgentemente é preciso combater, pois a promessa utópica de segurança é deliberadamente
empregada como meio de legitimação da guerra empreendida contra o outro pela indústria
do controle do delito5.
É preciso deixar de lado o apego romântico ao projeto civilizatório moderno e reconhecer que a promessa de realização do ideal de segurança absoluta não pode ser mais
do que mera ilusão. Em outras palavras, o elemento violência é constitutivo da própria
vida em sociedade: não é um resto bárbaro do passado que será necessariamente extinto
3
Para Christie, “el exterminio no se considera una excepción, sino una prolongación lógica de nuestro principal tipo de
organización social. Desde este punto de vista, el Holocausto se convierte en una consecuencia natural de nuestro
tipo de sociedad, no una excepción. En lugar de ser una regresión a una etapa anterior de barbarie, el exterminio
se convierte en un hijo de la modernidad. Las condiciones que dieron lugar al Holocausto son precisamente las
que han ayudado a crear la sociedad industrial: la división del trabajo, la burocracia moderna, el espíritu racional,
la eficiencia, la mentalidad científica y, en particular, el hecho de relegar valores de importantes sectores de la
sociedad” (CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto,
1993. p. 166).
4 Mezger nasceu em 1883 e faleceu em 1962. Foi aluno de Beling, Binding, Frank e Von Lizst. Foi discípulo de Beling.
Publicou a primeira edição de seu Tratado de direito penal em 1931. Sucedeu Beling na Universidade de Munique.
A partir de 1933 foi o penalista mais destacado do regime que dominou a Alemanha até 1945. Neste mesmo ano
publicou sua Política criminal sobre fundamentos criminológicos, propondo adaptar o direito penal ao novo Estado,
baseado nas ideias de “povo” e “raça”. Em 1935 foi nomeado chanceler do Reich Adolf Hitler. Quase ao final da Segunda
Guerra Mundial, solicitou visitar campos de concentração, como o de Dachau, pedido que foi inclusive atendido. Entre
as “contribuições” de Mezger, destacam-se o “delinquente habitual” e seu tratamento (projeto de lei “estranhos à
comunidade”); medidas de internamento em custódia de segurança policial; castração para delinquentes habituais
perigosos (associais); analogia como fonte de criação do direito penal “conforme o são sentimento do povo”; a finalidade
por ele atribuída à pena: “ausmerzung”, a eliminação dos elementos prejudiciais para o povo e a raça; culpabilidade
pela condução da vida (aplicada ao erro de proibição) e não somente pelo fato; revelação de atitude de total de desprezo
para com o são sentimento do povo alemão (posição que manteve posteriormente sem referir o povo alemão, o que
motivou críticas de Welzel) (MUNÕZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo: estudos sobre
o direito penal no nacional-socialismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005).
5 Segundo Christie, “en comparación con la mayoría de las industrias, la industria del control del delito se encuentra en
una situación más que privilegiada. No hay escasez de materia prima: la oferta de delito parece ser infinita. También
son infinitas la demanda de este servicio y la voluntad de pagar por lo que se considera seguridad. Y los planteos
habituales sobre la contaminación del medio ambiente no existen. Por lo contrario, se considera que esta industria
cumple con tareas de limpieza, al extraer del sistema social elementos no deseados” (CHRISTIE, Nils. La industria del
control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p. 21).
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
pela civilização6. Portanto, embora a violência possa assumir várias formas, não é possível
concebê-la concretamente como aberração a ser erradicada por completo, mesmo que isso
possa ser desejável: são padrões de comportamento que não estão à margem da cultura,
mas que a compõem, como um de seus elementos nucleares7. Pode ser dito inclusive que
o reconhecimento do caráter constitutivo desses fenômenos é um passo importante para a
desconstrução dos sistemas discursivos de enfrentamento da violência que acenam com a
possibilidade de superá-la e que, em nome dessa promessa, apenas produzem ainda mais
violência: ela simplesmente está para além de qualquer possibilidade de controle embasada
em utópicas promessas de segurança. O progresso não conduziu ao paraíso projetado pelo
homem racional. Produziu o extermínio massivo de populações rotuladas como indesejáveis pelo poder punitivo.
Nesse sentido, até mesmo a pretensão aqui esboçada de contenção da violência institucional deve operar inevitavelmente a partir de uma perspectiva de redução de danos, reconhecendo que historicamente a intervenção jurídico-penal muitas vezes se mostrou mais
apta a maximizar danos do que a contê-los. Afinal, o que representam em termos de custo
social os mandamentos e proibições penais? Temos um sistema que para muitos é voltado
para o combate ao crime, mas que continuamente amplia a esfera do que é classificado
como crime, fazendo com que cada vez mais aspectos da vida humana sejam criminalizados em nome da irrealizável promessa civilizatória. Com isso, a imagem bélica do sistema
penal é continuamente fortalecida, o que legitima o poder punitivo por via da absolutização
do valor segurança, debilitando os vínculos sociais horizontais e reforçando os verticais8.
Embora não exista uma legislação claramente dirigida ao extermínio massivo no contexto contemporâneo, o sistema acaba operando em torno de uma seletividade brutal quando deslocado da generalização da criminalização primária para a secundária: o programa
legislativo “igualitário” é facilmente transformado em prática de persecução ao inimigo, o
que certamente diz algo sobre suas condições de possibilidade9. Como observou Zaffaroni,
o exercício de poder de todos os sistemas penais é conducente à reprodução de violência,
seletividade, corrupção institucionalizada, concentração de poder, verticalização social e
destruição das relações horizontais ou comunitárias: não são características conjunturais,
mas estruturais10. O sistema acaba sempre tendo como alvos preferenciais os protagonistas
das obras toscas da criminalidade, que causam menos problemas por sua incapacidade de
acesso positivo ao poder político e econômico ou à comunicação massiva11.
6
7
8
9
10
11
GAUER, Ruth M. Chittó. Alguns aspectos da fenomenologia da violência. In: GAUER, Gabriel J. Chitto; GAUER, Ruth M.
Chittó (Org.). A fenomenologia da violência. Curitiba: Juruá, 2008. p. 13.
Idem, p. 14.
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p. 59.
Segundo Zaffaroni, “a criminalização primária é um programa tão imenso que nunca e em nenhum país se pretendeu
levá-la a cabo em toda a sua extensão nem sequer em parcela considerável, porque é inimaginável [...] por conseguinte,
considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária apenas como realização
de uma parte ínfima do programa primário” (Idem, p.44).
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 15.
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p. 46.
217
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Temos que perceber urgentemente que isso é constitutivo e que a esperança consiste
na redução da intensidade dos danos que o sistema inevitavelmente provocará aos que
ele preferencialmente persegue, por se enquadrarem nos estereótipos criminais12. É preciso
abandonar a ilusão de que o saber jurídico-penal deve ser elaborado como se tudo ocorresse
naturalmente da forma programada pela criminalização primária, pois dessa forma foi construída uma elaboração discursiva precária a serviço da seletividade, quando ela devia estar
voltada para a contenção de seus níveis13. Logo, é equivocado falar em “crise”, considerada
como contradição entre o discurso jurídico-penal dominante e a realidade operacional do
sistema penal, pois é absolutamente utópico pensar que a realidade possa se aproximar da
programação estabelecida por ele. Como indica Zaffaroni, “crise” é o momento em que a
falsidade do discurso se torna tão evidente que ele desaba, desconcertando o penalismo14.
Sob este aspecto, temos que compreender a “crise” como um momento de oportunidade
para que o discurso jurídico-penal seja finalmente confrontado com a realidade, desvelando
sua particular aptidão para a persecução de pessoas em situação de vulnerabilidade15.
Temos que dar um basta na maximização do controle. Como afirma Christie, vivemos
cada vez mais em uma sociedade povoada por mecanismos de controle, motivo pelo qual
ele considera que não é nem um pouco absurdo traçar um paralelo entre democracias e estados totalitários16. Precisamos parar de cultuar o progresso e celebrar uma mítica igualdade,
como se o esquadrinhamento da realidade em busca da eliminação da diferença garantisse
segurança, quando o que garante é a continuidade da catástrofe percebida por Benjamin.
2 O HOLOCAUSTO NOSSO DE CADA DIA: BREVE RELATO DE UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA
Vamos retomar o argumento deixado em aberto na introdução. Mais de vinte anos se
passaram desde a publicação da obra de Christie na Argentina. Afinal, estávamos ou não
equipados para resistir ao Holocausto que se anunciava nos Estados Unidos, como pensou
Zaffaroni? A condição especificamente americana é ou não um requisito para o encarceramento massivo, para a deflagração de uma guerra contra as drogas e para uma atuação
punitiva claramente voltada para a neutralização de minorias?
Temos que reconhecer que infelizmente o tempo se encarregou de demonstrar que
Zaffaroni subestimou o poder de disseminação dos discursos punitivistas estadunidenses.
Os discursos law and order e zero tolerance penetraram com toda força, sendo amplamente
acolhidos e fazendo do encarceramento seletivo em massa a realidade concreta das práticas
punitivas brasileiras. Ainda que as causas desse fenômeno possam ser objeto de especulação, se a finalidade do sistema penal e em particular da pena é a produção de sofrimento
e a imposição de dor – como apontou Christie –, poucos discordariam da constatação de
que no Brasil chegamos ao estado da arte dos suplícios contemporâneos. A questão penitenciária brasileira retrata um inominável cenário de barbárie que se aprofundou de forma
12
13
14
15
Idem, p. 47.
Idem, p. 65.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 16.
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p. 49.
16 CHRISTIE, Niels. El control de las drogas como un avance hacia condiciones totalitárias. In: Criminologia critica y
control social: El poder punitivo del estado. Rosario: Juris, 1993. p. 152.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
cada vez mais aguda nas últimas décadas. Sem dúvida, se existe algo que se aproxima do
título de Holocausto penitenciário, certamente é a estrutura punitiva brasileira.
É claro que o sentido da expressão Holocausto no âmbito da pena privativa de liberdade requer delimitação. Christie esclarece que não acredita que as prisões contemporâneas
irão se tornar cópias exatas dos campos de concentração: mesmo nas piores condições, nos
sistemas carcerários modernos a maioria dos presos não será morta intencionalmente. Alguns condenados serão executados, mas a maioria será libertada ou morrerá por suicídio,
violência carcerária ou causas naturais17.
No entanto, se considerarmos os níveis de mortalidade do sistema penitenciário brasileiro
– seja em função de violência carcerária ou por doenças como a tuberculose –, ou que a Polícia
Militar do Rio de Janeiro e São Paulo mata mais do que países com pena de morte, fica claro
que nossas práticas punitivas estão para muito além dos medos expressados por Christie18.
Estamos vivendo o apogeu de um estado de guerra permanente, que orienta toda a atuação
do sistema penal em nome de uma imagem bélica que vende a ilusão de segurança, assegurando dessa forma a contínua prosperidade da indústria do controle do delito, que se
encontra em permanente expansão.
Por outro lado, se o racismo é um componente que integra um potencial Holocausto
no âmbito das práticas punitivas, esse requisito parece mais do que preenchido: assim como
nos Estados Unidos e na Alemanha, o racismo também está geneticamente impregnado na
formação da identidade brasileira. No Brasil, o discurso da igualdade facilmente degenerou
em anseio por igualação do não igual, seja através de assimilação ou, pior ainda, da eliminação do diferente19. Portanto, somos historicamente vocacionados para o Holocausto,
o que em alguma medida é confirmado pelo nosso próprio sistema penitenciário: o perfil
social e étnico da população carcerária brasileira é amplamente conhecido. Nosso sistema
penal contemporâneo conforma uma maquinaria que opera com alto nível de seletividade,
17 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p.
170. O emprego da palavra holocausto no contexto das práticas punitivas contemporâneas pode ser motivo de censura
para alguns, uma vez que amplia o sentido de uma expressão que se refere a um conjunto de circunstâncias bastante
específicas, que, no entanto, não se restringem a população judaica, uma vez que ciganos, homossexuais e comunistas
também foram objeto de persecução, assim como todos que podiam ser tidos como estranhos à comunidade. A
expressão é utilizada neste artigo no sentido referido por Nils Christie, que na verdade prefere o termo Gulag, que se
refere ao sistema de campos de trabalho forçado para condenados, presos políticos e opositores do regime stalinista,
na União Soviética. Como se sabe, Stalin conduziu uma política de extermínio em grande escala. Optamos por manter
a expressão holocausto (sem o H maiúsculo), utilizada na tradução argentina. O título original da obra é “Crime Control
as Industry. Towards GULAGS, Western Style?”
18 DUARTE, Alessandra; BENEVIDES, Carolina. Polícia mata cinco pessoas por dia no Brasil. O Globo, Rio de Janeiro, 3
nov. 2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/policia-mata-cinco-pessoas-por-dia-no-brasil-10669947>.
Acesso em: 2 fev. 2014; PRADO, Rapahel. PM do Rio e de SP mata mais que países com pena de morte. Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 28 mar. 2013. Disponível em: <http://www.jb.com.br/pais/noticias/2012/03/28/pm-do-rio-ede-sp-mata-mais-que-paises-com-pena-de-morte/>. Acesso em: 2 fev. 2014.
19 Não temos aqui condições de enfrentar a discussão sobre a questão racial no Brasil, que exige uma pesquisa de fôlego,
incompatível com as dimensões do presente artigo. De qualquer forma, assinalamos nossa posição, que é inteiramente
incompatível com o mito da democracia racial. O racismo faz parte da cultura brasileira, ainda que com algumas
peculiaridades que talvez o tornem distinto de qualquer outro, já que a condição social pesa muito para a aceitação em
certos círculos de pessoas que em outras circunstâncias seriam discriminadas. O fato é que se o racismo é um requisito
para a produção do holocausto, podemos considerá-lo preenchido para efeito da análise aqui proposta. Sobre a questão
da formação da identidade brasileira e o ideal de assimilação, ver KHALED JR., Salah H. Horizontes identitários: a
construção da narrativa nacional brasileira pela historiografia do século XIX. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
movida fundamentalmente para a destruição de certas minorias étnicas e sociais, embora
muitos se iludam com a mítica “democracia racial”20.
Mesmo assim, levando em conta os parâmetros disponíveis vinte anos atrás, não podemos culpar Zaffaroni por não imaginar que a população carcerária poderia explodir de
forma tão impressionante: estamos vivendo a era do grande encarceramento, como referiu
Salo de Carvalho21. Nos últimos quinze anos o Brasil prendeu sete vezes mais do que a
média mundial, sem que tenha havido um esforço correspondente de ampliação de vagas
em um sistema penitenciário que já se encontrava superlotado décadas atrás. Como sintetizou Carvalho, o espetacular incremento no número de presos pode ser explicado por várias
razões22. Um de seus elementos centrais é exatamente a deflagração de uma guerra contra
as drogas, que reproduz os ideais repressivos estadunidenses denunciados por Christie23.
Os números são absolutamente assombrosos e comprovam a falácia do discurso sobre
a impunidade generalizada no Brasil. Estamos prendendo sim. E muito. Como é possível
falar genericamente em impunidade quando, nos últimos vinte anos – o que abrange exatamente o lapso temporal desde a publicação do livro de Christie na Argentina –, a população
carcerária brasileira cresceu 350%24? Para efeito de comparação, Christie demonstrou espanto pelo fato de os Estados Unidos terem dobrado a sua população carcerária entre 1979
e 1989, feito comparável somente à China, enquanto a União Soviética reduziu pela metade
20 Para Carvalho, “o estado atual dos cárceres diz da forma como a sociedade brasileira resolveu historicamente suas
questões sociais, étnicas, culturais, ou seja, pela via da exclusão, da neutralização, da anulação da alteridade. Diz da
violência hiperbólica das instituições, criadas no projeto moderno para trazer felicidade às pessoas (discurso oficial),
mas que reproduzem – artificialmente, embora com inserção no real – a barbárie que a civilização tentou anular”
(CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.).
Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 163).
21 CARVALHO, Salo de. Theories of punishment in the age of mass incarceration: a closer look at the empirical problem
silenced by justificationism (the brazilian case). Open Journal of Social Sciences, v. 1, n. 4, september 2013. Disponível
em:
<http://pt.scribd.com/doc/171925819/Carvalho-Theories-of-Punishment-in-the-Age-of-Mass-Incarceration>.
Acesso em: 27 jan. 2014.
22Carvalho explica que “[...] inúmeros fatores contribuíram para o incremento dos índices de encarceramento:
(a) criação de novos tipos penais a partir do novo rol de bens jurídicos expressos na Constituição (campo penal); (b)
ampliação da quantidade de pena privativa de liberdade em inúmeros e distintos delitos (campo penal); (c) sumarização
do procedimento penal, com o alargamento das hipóteses de prisão cautelar (prisão preventiva e temporária) e diminuição
das possibilidades de fiança (campo processual penal); (d) criação de modalidade de execução penal antecipada,
prescindindo o trânsito em julgado da sentença condenatória (campo processual e da execução penal); (e) enrijecimento
da qualidade do cumprimento da pena, com a ampliação dos prazos para progressão e livramento condicional (campo
da execução penal); (f) limitação das possibilidades de extinção da punibilidade com a exasperação dos critérios
para indulto, graça, anistia e comutação (campo da execução penal); (g) ampliação dos poderes da administração
carcerária para definir o comportamento do apenado, cujos reflexos atingem os incidentes de execução penal (v.g., Lei
nº 10.792/2003) (campo penitenciário)” (CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento.
In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Editora
PUCRS, 2010. p. 153 – grifos do autor).
23 CARVALHO, Salo. Theories of punishment in the age of mass incarceration: a closer look at the empirical problem silenced
by justificationism (the brazilian case). Open Journal of Social Sciences, v. 1, n. 4, september 2013. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/171925819/Carvalho-Theories-of-Punishment-in-the-Age-of-Mass-Incarceration>. Acesso
em: 27 jan. 2014.
24 PITTS, Natasha. Pesquisa revela, em números, realidade carcerária do país. Revista Fórum, São Paulo, 13 nov. 2012.
Disponível
em:
<http://revistaforum.com.br/blog/2012/11/pesquisa-revela-em-numeros-realidade-carceraria-dopais/>. Acesso em: 2 fev. 2014.
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O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
a população carcerária no mesmo período25. Sem dúvida, isso demonstra a extensão do processo de encarceramento que ocorreu no Brasil. O país tem hoje a quarta maior população
carcerária do mundo e marcha triunfalmente em direção ao terceiro posto, que é ocupado
pela Rússia. O primeiro e segundo lugares pertencem aos Estados Unidos e à China, respectivamente. No entanto, a taxa de ocupação brasileira é muito superior à americana (106%) e
russa (91%), atingindo mais de 184% em 201226. A superlotação provoca flagrante violação
aos limites estabelecidos normativamente: por lei cada preso tem direito a 6 metros quadrados de cela, mas na prática acaba tendo apenas 70 centímetros nas prisões mais superlotadas. Apenas Haiti, Filipinas, Venezuela, Quênia, Irã e Paquistão tem uma taxa de ocupação
superior à brasileira. Sem falar que, dos 548 mil presos (depositados em 306 mil vagas), 42%
(230 mil) estão presos provisoriamente, ou seja, sem condenação definitiva, o que retrata o
estado de barbárie do nosso sistema penal27.
Se as estatísticas já chocam, o que dizer da efetiva condição em que são executadas
as penas privativas de liberdade? Confrontando a realidade americana com a brasileira,
não é possível estabelecer qualquer parâmetro de comparação entre as condições a que
são expostas as respectivas populações carcerárias: os níveis de dor intencional submetidos
aos apenados no Brasil são infinitamente mais elevados. Parece difícil escapar de uma conclusão: a indústria de controle do delito assumiu aqui ares de uma indústria de extermínio, o
que é facilmente comprovado pela agonia experimentada por quem se encontra abandonado no depósito de gente que é o nosso sistema penitenciário.
A recente tragédia ocorrida no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, no
Maranhão, não é de modo algum uma exceção, pois representa exatamente a realização
última de uma política criminal irresponsável que chancela o extermínio do outro, como
se inimigo declarado fosse28. Embora a crueldade das execuções tenha despertado atenção
mundial para o drama penitenciário brasileiro, o episódio ocorrido em Pedrinhas não foi
exatamente uma exceção. É um retrato perfeito e cristalizado do Holocausto nosso de cada
dia. Qualquer argumentação reducionista que tenha como eixo central a redução dos espaços catastróficos ao Maranhão só pode transitar nas trevas da insanidade. Por todos os
recantos do país são cometidas violências e atrocidades inimagináveis para instituições que
são administradas pelo Estado, demonstrando que o poder punitivo ainda impera de forma
irrestrita, sem que a normatividade voltada para a redução de danos encontre qualquer
condição de permeabilidade.
Sem aqui ter qualquer intenção de apologia aos ideais justificacionistas, parece indiscutível que o espaço de indeterminação entre direito e realidade encontra na pena privativa
25 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p.
40-41.
26 WASSERMAN, Rogério. Número de presos explode no Brasil e gera superlotação de presídios. BBC Brasil, Londres,
28 dez. 2012. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/12/121226_presos_brasil_aumento_
rw.shtml>. Acesso em: 2 fev. 2014.
27 GOMBATA, Marsílea. Em 15 anos, Brasil prendeu 7 vezes mais que a média. Carta Capital, Rio de Janeiro, 17 jan.
2014. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/populacao-carceraria-brasileira-cresceu-7-vezesmais-que-a-media-mundial-nos-ultimos-15-anos-5518.html>. Acesso em: 2 fev. 2014.
28 SCOLESE, Eduardo. Presos filmam decapitados em penitenciária no Maranhão; veja vídeo. Folha de São Paulo, São
Paulo, 7 jan. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1394160-presos-filmamdecapitados-em-penitenciaria-no-maranhao-veja-video.shtml>. Acesso em: 2 fev. 2014.
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O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
de liberdade a sua ferida mais visível, uma vez que tanto a ideologia de ressocialização da
lei penal (bem como os modestos limites ao poder punitivo que ela estabelece) quanto os
direitos fundamentais são largamente ignorados em instituições que funcionam como verdadeiros matadouros de gente. Os presídios brasileiros ainda não foram colonizados pelo
direito, se é que um dia minimamente serão, pois, ao que tudo indica, nem sequer existe
essa intenção por parte das agências executivas29.
Por outro lado, é importante referir que o espaço potestativo de discricionariedade que
existe entre a previsão legal e a realidade concreta permite a prática de inúmeros abusos,
muitas vezes festejados e comemorados por uma população que aplaude a barbárie, sem
perceber o que realmente está em jogo. Vivemos em um contexto em que o tratamento
penal da miséria é cada vez mais aceito como remédio para as mazelas do corpo social,
fazendo do sistema penal um mecanismo de gestão da pobreza e de avanço totalitário da
indústria de controle do delito. Com isso são possíveis dois efeitos perversos: calabouços
brutalmente desumanos são aplaudidos pela população, que simultaneamente se sujeita à
ampliação de meios de controle antidemocráticos, acreditando que com isso terá mais segurança. Qualquer medida de intensificação da repressão é comemorada, pois a percepção
generalizada é de que o sistema é conivente com a criminalidade.
Sem dúvida, trata-se de um cenário que favorece imensamente a prosperidade da
indústria do controle do delito. Como qualquer indústria, a indústria de controle do delito
visa permanente à expansão, com uma grande vantagem, já que fornece armas para o que
é percebido como guerra permanente contra o crime, o que lhe garante contínuo apoio
popular na luta contra os inimigos do corpo social30. Com isso, o direito penal é cada vez
mais banalizado, transformando-se em um remédio supostamente apto a curar todos os
males, enquanto o Estado se esquiva dos investimentos sociais necessários. Trata-se de um
absurdo, pois, como refere Lopes Jr., “não se edifica uma ordem social apenas com base na
repressão”31.
Desse modo, um sistema penal autofágico – que alimenta a si mesmo através da exclusão reiterada de parcela significativa da sociedade – prospera irrestritamente, legitimado
pela guerra santa exercida em nome da segurança32. A ilusão alimentada pela crença cega
no penalismo acaba provocando o contínuo endurecimento e hipertrofia da legislação penal, com a atribuição de missões que extrapolam qualquer possibilidade de concretização,
29 Como refere Carvalho, “a realidade da punição na estrutura jurídica brasileira constitui-se por assumir, sem pudores, a
posição de que determinadas pessoas simplesmente não servem, são descartáveis, não merecem qualquer dignidade,
são desprezíveis e por isso serão oficialmente abandonadas” (CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande
encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II.
Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 162-163).
30 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p.
21.
31 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005. p. 29.
32 Lopes Jr. sintetiza a questão: “Primeiro vem a exclusão (econômica, social, etc.), depois o sistema penal seleciona e
etiqueta o excluído, fazendo com que ele ingresse no sistema penal. Uma vez cumprida a pena, solta-o, pior do que
estava quando entrou. Solto, mas estigmatizado, volta às malhas do sistema, para mantê-lo vivo, pois o sistema penal
precisa deste alimento para existir. É um ciclo vicioso, que só aumenta a exclusão social e mantém a impunidade dos
não-excluídos (mas não menos delinquentes)” (LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da
instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 16).
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O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
mas que contribuem para o encarceramento massivo, aplaudido pelos empresários morais
da mídia e pelas marionetes das agências de reprodução ideológica33. O controle penal se
expande em espiral, instalando uma lógica de monitoramento constante da vivência humana, sem que as pessoas percebam que estão sendo seduzidas pelo que Zaffaroni chamou de
criminologia midiática. Tudo isso demonstra que os temores de Christie eram mais do que
justificados: a proximidade com o totalitarismo é maior do que se supõe34. Trata-se de uma
dinâmica repressiva inteiramente equivocada em suas premissas básicas, pois não é com
autoritarismo que se alcançará a tão desejada segurança: pelo contrário, são maximizados
os níveis de insegurança, particularmente para quem está em situação de vulnerabilidade35.
A expansão da lógica do controle é mundial. Não é um fenômeno brasileiro, ainda
que aqui tenha características bastante peculiares. Sua disseminação fez, inclusive, com
que a violência se tornasse um produto, que é avidamente consumido por uma população
sedada por um discurso que produz sujeição simbólica: faz com que o próprio público, que
é alvo preferencial da guerra pela segurança, aplauda o contínuo endurecimento do sistema
penal, pedindo e apoiando a implantação de medidas como a pena de morte e a redução
da maioridade penal36. É nesse sentido que a exclusão não é apenas uma palavra, mas uma
verdadeira categoria inteiramente diversa de exploração, por exemplo. Para os excluídos
sequer se prevê exploração, mas gestão da pobreza: é contra eles que o sistema penal preferencialmente atua. O explorado ainda está integrado, ainda que sob o signo da dominação,
ao sistema capitalista. O excluído está fora e por isso deve ser isolado e neutralizado. Dessa
forma, o problema social deve ser “resolvido” com aparato policial. Não chega a ser uma
novidade neste país, pois desde a República Velha já vem sendo dito que “a questão social é
um caso de polícia”37. Não é por acaso que Zaffaroni atentou para a formidável estrutura de
controle que é propiciada pelo espaço deixado em aberto pela criminalização secundária38.
33 Tais empresários não são recentes e já fazem parte da cultura brasileira pelo menos desde a década de 80. Como
observou Nilo Batista, “no Brasil, não temos a pena de morte na legislação, mas ela é aplicada largamente, tolerada
e estimulada por discursos que ou desqualificam o acusado (‘ele é bandido’), liberando-o à sanha dos esquadrões da
morte a soldo de grupos sociais bem caracterizados, ou exercem diretamente a apologia do extermínio (bandido bom é
o morto)” (BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de
hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 103).
34 Segundo Zaffaroni, “o que a criminologia midiática oculta cuidadosamente do público é o efeito potencializador do
controle e redutor do espaço de liberdade social A necessidade de nos proteger deles justifica todos os controles estatais,
primitivos e sofisticados, para prover segurança. Em outras palavras: o nós pede ao Estado que vigie mais a eles, mas
também o próprio nós, pois necessitamos ser monitorados para sermos protegidos” (ZAFFARONI, Eugenio Raul. A
palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 317).
35 Lopes Jr. afirma que, “como consequência desse cenário de risco total, buscamos no Direito Penal a segurança perdida.
Queremos segurança em relação a algo que sempre existiu e sempre existirá: violência e insegurança” (LOPES JR., Aury.
Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
p. 54).
36 Nilo Batista descreveu no início da década de 90 um cenário que permanece atual: “Sempre que ocorre uma onda de
violência, ou um crime particularmente cruel, aparecem políticos oportunistas pregando a pena de morte. [...] algumas
pessoas de boa-fé acabam acreditando que a pena de morte pode ajudá-las, que a pena de morte pode diminuir os
assaltos, os estupros, os homicídios, etc.” (BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e
direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.p. 18).
37 Frase proferida por Washington Luís, último presidente da República Velha.
38 Para ele, “[...] a criminalização secundária é quase um pretexto para que agências policiais exerçam um controle
configurador positivo da vida social, que em nenhum momento passa pelas agências judiciais ou jurídicas [...] este poder
configurados positivo é o verdadeiro poder político do sistema penal” (ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 52 – grifos do autor).
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O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Estamos diante de um encarceramento massivo da miséria, que desafia abertamente todos
que lutam contra a catástrofe que se expande por todos os recantos do país e encontra sua
face mais aguda no Rio Grande do Sul39.
Todas as saídas legais foram tentadas para conter a apoteose do poder punitivo que
representa o Presídio Central de Porto Alegre, restando aos que se insurgem contra a barbárie que lá impera o último recurso legal imaginável: representar contra o Brasil na Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o que foi feito em janeiro de 2013. O Presídio Central é reconhecidamente o exemplo mais pronunciado da condição de degradação
humana a que são expostos os detentos no Brasil: no final de 2013 havia 4,5 mil homens
presos na instituição, cuja capacidade é de cerca de 1,6 mil. O termo superlotação parece
tímido para descrever a situação dos presos. Por isso a provocação: Holocausto nosso de
cada dia, uma tragédia com a qual todos os governos do Rio Grande do Sul foram criminalmente coniventes nas últimas décadas.
No final de 2013, a CIDH da Organização dos Estados Americanos (OEA) reconheceu
a precariedade das condições do Presídio Central e concedeu liminar obrigando o Estado
brasileiro a adotar medidas que ao menos amenizem a condição de flagrante violação de
direitos humanos que caracteriza a referida instituição40. Entre elas estão: medidas necessárias para salvaguardar a vida e integridade pessoal dos internos; garantia de condições
de higiene e de tratamento médico adequado; implementação de medidas para recuperar
o controle de segurança em todas as áreas [...] garantindo que os agentes do Estado sejam
os encarregados das funções de segurança interna e assegurem que não sejam conferidas
funções disciplinares, de controle ou de segurança aos internos; implementação de um
plano de contingência e disponibilização de extintores de incêndio e outras ferramentas
necessárias e, finalmente, ações imediatas para reduzir a lotação41. Obviamente, todas elas
medidas rigorosamente necessárias, ainda que tardias. Parece impensável que a instituição
possa funcionar nas condições em que efetivamente funciona.
No entanto, como tristemente sabemos, não existem mecanismos coercitivos para propriamente impor o cumprimento das obrigações impostas, o que faz com que o déficit de
efetividade dessas determinações restrinja quase que completamente o seu alcance. Resta a
39 Não se trata aqui de relegitimar o sistema penal propondo sua “democratização” com a inclusão massiva de
indivíduos em condição social privilegiada, e sim de conter os danos provocados pelo sistema penitenciário a todos os
eventualmente criminalizados. Eis aí o grande equívoco de certa esquerda punitivista, que acaba compactuando com
discursos inaceitáveis de reversibilidade ideológica dos direitos humanos.
40No mesmo documento, a CIDH diz que, em 2009, quando já havia pedido informações sobre a unidade
prisional de Porto Alegre, a Comissão Parlamentar de Pesquisa sobre o Sistema Carcerário teria recomendado
que o Presídio Central fosse “desativado, em virtude da evidente falta de estrutura” e que, “conforme critérios
de superlotação, insalubridade, arquitetura inadequada, capacidade de ressocialização, assistência médica
e maus-tratos, o presídio seria o pior estabelecimento penitenciário do país” (O GLOBO. OEA notifica Estado
brasileiro para reduzir violações no Presídio Central de Porto Alegre. O Globo, Rio de Janeiro, 3 jan. 2014.
Disponível
em:
<http://oglobo.globo.com/pais/oea-notifica-estado-brasileiro-para-reduzir-violacoes-no-presidio-central-de-porto-alegre-11202528>. Acesso em: 2 fev. 2014).
41 COSTA, Letícia. Resolução de corte internacional solicita que governo adote medidas para resolver problemas no
Presídio Central. Zero Hora, Porto Alegre, 2 jan. 2014. Disponível em: <http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/policia/
noticia/2014/01/resolucao-de-corte-internacional-solicita-que-governo-adote-medidas-para-resolver-problemas-nopresidio-central-4379603.html>. Acesso em: 2 fev. 2014.
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desmoralização do Brasil diante da comunidade internacional, o que certamente não basta
para que as reformas necessárias aconteçam. Não que o Presídio Central possa efetivamente
ser recuperado. Deve ser destruído. As medidas indicadas pela CIDH são apenas paliativos
para uma estrutura irremediavelmente comprometida em todos os sentidos. Ao que tudo
indica a catástrofe continuará a se aprofundar, sem qualquer esperança de reversão ou contenção. Até quando perdurará o Holocausto nosso de cada dia?
3 MINIMIZAR A DOR OU JUSTIFICAR A PENA COMO MEIO DE REINTEGRAÇÃO SOCIAL?
Justificar a pena através da prevenção especial positiva soa como piada de mau gosto, considerando que nosso sistema penitenciário flerta abertamente com o holocausto e
comemora uma catástrofe contínua, acumulando ruína sobre ruína a cada dia que passa.
Mas inevitavelmente ela deve ao menos ser mencionada – ainda que dela só restem escombros –, já que está especialmente vinculada ao horizonte normativo brasileiro, uma vez que
a LEP estabelece, de forma clara, um ideal ressocializador, no que não se difere de outros
países42. A lei espanhola prevê reeducação e reinserção social, a italiana a reintegração social e a lei alemã refere a capacitação do recluso para uma vida sem delitos43.
O que diferencia o Brasil de outros países é a ausência de referência a qualquer teoria
da pena no texto constitucional, que apenas sinaliza com mecanismos de contenção de
danos, sem designar qualquer propósito justificante à execução da pena privativa de liberdade, o que representa um grande avanço em relação à LEP. Para Carvalho, a ausência de
qualquer discurso legitimante na Constituição impõe critérios limitativos à interpretação,
aplicação e execução das penas, negando castigos cruéis e procurando delimitar o “como
punir?”. Com isso a discussão é (ou deve ser) deslocada para os meios, deixando de lado a
fixação obsessiva com os fins e reconhecendo que o poder punitivo por excelência extravasa os limites da legalidade44.
Claro que a ausência de justificação para a pena na Constituição não impede que o
penalismo comprometido com a reprodução ideológica da barbárie continue a professar
sua fé nos vetores legitimantes, o que não deixa de ser plenamente condizente com nossa
cultura de fetiche pela legislação infraconstitucional. Mas apesar de celebrada por grande
parte dos penalistas clássicos e contemporâneos como algo essencial à própria existência da
42 Como refere Carvalho, a LEP de 1984, “[...] inspirada no programa político-criminal do movimento de nova defesa
social, tematiza o projeto punitivo moldando-o a partir da noção de ressocialização (prevenção especial positiva)”
(CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 259).
43 MUNÕZ CONDE, Francisco; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.
179. Como observou Baratta, “derecho penal contemporáneo se autodefine como derecho penal del tratamiento. La
legislación más reciente atribuye al tratamiento la finalidad de reeducar y reincorporar al delincuente a la sociedad”
(BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 357). Importante referir que
Baratta escreveu em outro contexto. De lá para cá algumas coisas mudaram significativamente. O correcionalismo se
encontra em franca decadência a partir dos anos oitenta, ainda que habite o imaginário de inúmeras teorias justificadoras
da pena e permaneça sedimentado nas legislações penais.
44 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 260.
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pena, a prevenção especial positiva encontra-se em profunda crise na realidade carcerária
contemporânea, seja no contexto brasileiro ou internacional45.
O processo de decadência do correcionalismo deve ser apreciado de forma cuidadosa,
uma vez que seu apogeu perdurou durante boa parte do século XX nos Estados Unidos e na
Europa, apesar dos seus pressupostos terem sido colocados em questão desde pelo menos
a década de 4046. A decadência do correcionalismo mudou as regras do jogo: passou a
predominar uma lógica de completo abandono, cujo teor catastrófico é nitidamente visível
quando transposto para o contexto marginal da América Latina, já que aqui sequer tivemos
algo como o welfare state. Os estadunidenses foram os precursores desse deslocamento de
sentido, que logo começou a se estender também pela Europa. Como observa Wacquant,
referindo-se ao contexto europeu, a criminalização da miséria e o enclausuramento dos
marginalizados tomou o lugar da política social47.
Wacquant denuncia que a guerra contra as drogas serviu como pretexto para a
perseguição de componentes da população considerados menos úteis e potencialmente
mais perigosos, como desempregados, sem-teto, vadios e outros marginais. Para ele, a “[...]
superpopulação das prisões tem grande peso no funcionamento dos serviços correcionais e
tende a rebaixar a prisão a sua função bruta de ‘depósito’ de indesejáveis”48. Parece óbvio
que essa “função bruta” é a função por excelência da prisão hoje em dia no Brasil, que está
voltada para a maximização dos níveis de dor intencional. Talvez não possamos sequer falar
em retribuição: a inocuização é o procedimento rotineiro do Holocausto nosso de cada dia,
que faz da realidade americana e europeia um conto de fadas em comparação49.
Claro que no nosso caso nunca sequer houve o apogeu da ideologia correcional que
David Garland chamou de previdenciarismo (ou welfarismo) penal, que, por sua vez, guarda relação com o Estado Social, que também não experimentamos. Mas se na Europa já se
verifica um processo de endurecimento das políticas penais, cada vez mais voltadas para a
45 Como observou Bitencourt, “a grande ocorrência de suicídios nas prisões é um bom indicador sobre os graves prejuízos
psíquicos que a prisão ocasiona, e autoriza a dúvida fundada sobre a possibilidade de obtenção de algum resultado
positivo em termos de efeito ressocializador, especialmente quando se trata de prisão tradicional, cuja característica
principal é a segregação total” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São
Paulo: Saraiva, 2004. p. 197-198).
46Como observa Carvalho, “as formas de compreensão e de orientação das ações realizadas no sistema penal
fomentadas pela gramática do welfarismo penal correcionalista passam, a partir da década de 40, a receber incisivos
questionamentos, desde o discurso jurídico-penal que revela a incapacidade de serem preservados direitos na instituição
carcerária às perspectivas criminológicas críticas, de viés filosófico e sociológico, que questionam os fundamentos e as
reais funções exercidas pelas prisões [...] em perspectiva acadêmica, a densificação da crítica aos fundamentos teóricos
que sustentam o correcionalismo corporificado nas instituições totais (cárceres e manicômios) potencializa a criação de
projetos alternativos de redução dos danos ocasionados pelas agências do controle social burocratizado” (CARVALHO,
Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e
sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 147-148).
47 WACQUANT, Loïc. A tentação penal na Europa. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro: Revan, n. 11/02, p. 9, 2002.
48 Idem, p. 10.
49 Carvalho aponta que “inegável, pois, que, se nos países centrais a reinvenção da prisão adquire funções instrumentais na
nova lógica do capitalismo contemporâneo pós-Welfare State, o seu revigoramento adquirirá potência em grau superlativo
nos países periféricos. Na margem, como é notório, as conquistas do Estado Social foram mero simulacro e, no que
tange especificamente à dimensão do penal, os modelos correcionalistas foram implementados apenas formalmente”
(CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.).
Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 149-150).
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defesa social em detrimento da reinserção, o que dizer do Brasil? Estamos experimentando
a maximização de níveis de dor que já eram insuportáveis, mesmo para nossa realidade
marginal, de modo que o paralelo entre o movimento que a cultura do controle americana
experimentou a partir da década de 80 e o que vivenciamos no Brasil atualmente é assustador, pois os efeitos aqui são muito mais profundos50.
Por mais autistas que possam ser os delírios justificacionistas, não é possível crer que
alguém em sã consciência ainda ouse dizer que entre o ideal normativo que vincula o sistema penitenciário ao cumprimento de metas de reinserção e a realidade concreta experimentada pelos detentos não existe um abismo incomensurável51. Para Pavarini, “após dois
séculos de investigação, todas as pesquisas dizem que não temos provas de que a prisão
efetivamente seja capaz de reabilitar. Isso acontece em todos os lugares do mundo”52.
Diante disso, o tão sonhado êxito na ressocialização soa como mero artifício ardiloso de justificação, ou, na melhor das hipóteses, como promessa utópica irrealizável. As
histórias de “sucesso” daqueles que emergem do sistema penitenciário são histórias de sobrevivência. Não são demonstrações da capacidade da pena para fazer o bem. A prisão
não ressocializa. Ela dessocializa. Ela não integra, mas segrega. Se ela ensina algo, são
estratégias de sujeição e sobrevivência na própria prisão53. O que é a prisão efetivamente
faz é neutralizar seletivamente quem comete crimes como se inimigo fosse, mesmo que isso
coloque em questão o Estado Democrático de Direito, o que é comprovado pelos últimos
séculos de atividade do poder punitivo54. Não seria exagero dizer que a prevenção especial
positiva está rapidamente se tornando prevenção especial negativa na prática, pelo menos
no Holocausto nosso de cada dia: está voltada cada vez mais para a simples inocuização
50 Garland refere que os novos arranjos do controle do crime envolvem alguns custos sociais: “A intensificação das
divisões sociais e raciais; o reforço dos processos criminogênicos; a alienação de muitos grupos sociais; o descrédito
da autoridade legal; a redução da tolerância civil; a tendência ao autoritarismo – estes são os resultados suscetíveis de
serem produzidos pela confiança em mecanismos penais e na manutenção da ordem” (GARLAND, David. A cultura do
controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 429).
51 Como percebeu Baratta, “la cárcel es contraria a todo moderno ideal educativo, porque éste se apoya sobre la
individualidad, sobre el respeto del individuo, alimentado por el respeto que el educador tiene de ella” (BARATTA,
Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 368).
52 PAVARINI, Massimo. Punir mais só piora crime e agrava insegurança (entrevista). Folha de São Paulo, São Paulo,
31 ago. 2009. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3108200916.htm>. Acesso em: 2 fev.
2014.
53 Para Baratta, “las relaciones sociales y de poder de la subcultura carcelaria tienen una serie de características que
las distinguen de la sociedad externa, y que dependen de la particular función del universo carcelario, pero que
en su estructura más elemental no son más que la ampliación en forma menos mistificada y más ‘pura’, de las
características típicas de la sociedad capitalista. Son relaciones sociales basadas en el egoísmo y en la violencia
ilegal, em el interior de las cuales los individuos socialmente más débiles son llevados a desempeñar funciones de
sumisión y explotación” (BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 370371). Como indica Bitencourt, “o recluso adapta-se às formas de vida, uso e costumes impostos pelos próprios internos
no estabelecimento penitenciário, porque não tem outra alternativa. Adota, por exemplo, uma nova forma de linguagem,
desenvolve hábitos novos no comer, vestir, aceita papel de líder ou papel secundário nos grupos de internos, faz novas
amizades etc. Essa aprendizagem de uma nova vida é mais ou menos rápida, dependendo do tempo em que estará
sujeito à prisão, do tipo de atividade que nela realiza, sua personalidade, suas relações com o mundo exterior etc.”
(BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 187).
54 PAVARINI, Massimo. Punir mais só piora crime e agrava insegurança (entrevista). Folha de São Paulo, São Paulo,
31 ago. 2009. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3108200916.htm>. Acesso em: 2 fev.
2014.
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dos detentos, no que se aproxima muito da lógica de segregação e incapacitação dos inimigos, típica da Alemanha nazista.
A suposta vocação da prisão para transformar o anormal em normal, ou seja, para
normalizar é rotineiramente desmentida, sem que sequer seja necessário aprofundar a discussão em torno do que, afinal, é esse ser “normal” que seria tão desejável para o bem-estar
social. Afinal, o que é – ou poderia ser – ressocializar? Ou mesmo socializar? De que forma
o tempo do condenado deve ser utilizado para atingir um padrão de vida aceitável, curando
o indivíduo que padece dessa enfermidade que é a propensão ao crime? Será uma concepção ético-religiosa de expiação apta a concretizar o mito burguês da reeducação e reinserção social do condenado, como provocou Baratta55? Como refere Carvalho, é inegável a (i)
legitimidade das técnicas de individualização da pena moldadas a partir da ideia de ressocialização, assim como a inversão ideológica que ocorre com a contrainstrumentalização
dos direitos dos condenados56.
Como evitar a reincidência se o “tratamento” prescrito visa à pura e simples neutralização? Como impedir que a prisão dessocialize e estigmatize, o que ela inevitavelmente
faz, mesmo nos programas mais renomados e cercados de garantias57? Como educar para
a liberdade em condição de não liberdade? São perguntas que as ideologias (re) não conseguem responder, ou que não respondem de forma minimamente satisfatória, ainda mais
considerando o quanto o direito penal opera de forma seletiva. Como observou Baratta, o
direito penal é o direito desigual por excelência58. Mas, curiosamente, é manejado e vendido como se igualitário fosse. Enfim, são inúmeros os argumentos que demonstram o quanto
a prisão é incapaz de promover quaisquer efeitos benéficos para os apenados59. Isso é tão
óbvio que nem sequer mereceria qualquer discussão, se não fosse pelo justificacionismo de
plantão.
Considerando as condições do sistema penitenciário brasileiro, essas críticas adquirem
um significado ainda maior. Precisamos romper com a ilusão do correcionalismo projetado
pela LEP e reconduzir o problema da pena ao universo constitucional, abrindo mão dos
horizontes justificacionistas conducentes à celebração da barbárie nas práticas punitivas.
55 BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 372-373.
56 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 259.
57 Como aponta Bitencourt, “será possível evitar a produção de danos físicos, e de certos danos psíquicos, com prisões que
contem com uma adequada planta física, com melhores condições de higiene e com tratamento mais condizente com
a dignidade do recluso. No entanto, sempre se produzirão algumas lesões invisíveis, visto que quando se interrompe o
ciclo normal de desenvolvimento de uma pessoa se provoca dano irreparável. O isolamento da pessoa, excluindo-a da
vida social normal – mesmo que seja internada em uma ‘jaula de ouro’ –, é um dos efeitos mais grave da pena privativa
de liberdade, sendo em muitos casos irreversível. É impossível pretender que a pena privativa de liberdade ressocialize
por meio da exclusão e do isolamento” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas.
São Paulo: Saraiva, 2004. p. 160).
58 BARATTA, Alessandro. Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 362.
59 Para Bitencourt, “todos os transtornos psicológicos, também chamados reações carcerárias, ocasionados pela prisão
são inevitáveis. Se a prisão produz tais perturbações, é paradoxal falar em reabilitação do delinquente em um meio
tão traumático como o cárcere. Essa limitação é um das causas que evidenciam a falência da prisão tradicional”
(BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 199).
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4 A NECESSÁRIA REJEIÇÃO AOS DISCURSOS JUSTIFICANTES DA PENA
Diante do Holocausto nosso de cada dia, é inadmissível que o intelectual engajado e
enojado com as práticas punitivas no Brasil tenha a ousadia de aderir a qualquer teoria da
pena. Como demonstrou Zaffaroni, as teorias da pena servem a um propósito político de
justificação do poder punitivo, estranho ao âmbito de um direito penal comprometido com
o avanço do Estado Constitucional de Direito. Portanto, como não interessa aos penalistas
– ao menos aos que estão comprometidos com a contenção do poder punitivo – legitimar
a pena, resta a conclusão de que todas as leituras legitimantes do discurso penológico devem ser rechaçadas60. Todas as teorias que respondem positivamente ao “por que punir?”
conformam construções narrativas que – mesmo indiretamente – produzem continuamente
catástrofes, visto que suas funções latentes garantem o espaço necessário para a prosperidade irrestrita do poder punitivo e afirmação do totalitarismo. Quem não enxerga isso só pode
estar sofrendo de cegueira normativa, que obstaculiza a percepção dos cadáveres produzidos pelo direito penal61.
Diante dessas conclusões, fica claro que qualquer discurso verdadeiramente crítico ao
arbítrio do poder punitivo no âmbito da aplicação da pena privativa de liberdade deve rechaçar todos os vetores das teorias legitimantes da pena62. Não é através de um lamento pela
não realização ou realização parcial de uma dada teoria a que se professa aderência que
avançaremos. É urgente o rompimento com o sonambulismo dogmático que nega a agonia
experimentada pelos recolhidos aos calabouços medievais que chamamos de presídios.
Temos que lutar pela minimização da dor, aceitando que inevitavelmente a pena produzirá
sofrimento, algo do qual podemos ter certeza, diferentemente dos devaneios que ocuparam
a mente dos penalistas nos últimos séculos. Como observou Zaffaroni, não é aceitável que o
discurso jurídico-penal esteja estruturado em torno de falsos dados sociais e que os penalistas permaneçam rechaçando as críticas ao direito penal como sociológicas, preservando o
fetiche normativo63. O direito penal precisa urgentemente dialogar com o mundo, abandonando crenças infundadas e comprometendo-se com a única missão que pode cumprir com
eficácia empiricamente verificável: a contenção da torrente do poder punitivo.64 Temos que
romper com a síndrome do que Zaffaroni referiu como revelação do penalista: será que o
60 Como percebeu Carvalho, o “[...] discurso jurídico, em particular jurídico-penal, em razão de sua tradição metafísica,
acaba neutralizando as formas de enfrentamento da situação, pois, invariavelmente, remete a discussão de problemas
reais ao plano dos fundamentos da punição, dos critérios de definição das penas, do grau de lesão da conduta ao bem
jurídico entre outros temas extremamente caros aos teóricos da pena e do delito” (CARVALHO, Salo de. Substitutivos
penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais
contemporâneos II. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2010. p. 162).
61 ZAFFARONI, Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p.
39.
62 O penalista comprometido com a contenção do poder punitivo deve ter como horizonte de ação o combate sem trégua
contra toda e qualquer teoria justificante da pena. Essa rejeição deve abarcar necessariamente todas as respostas
positivas ao “por que punir?”, o que inclui todas as variantes clássicas e contemporâneas da questão e, logo, vale
também para as construções discursivas de autores contemporâneos como Ferrajoli, Faria Costa, Roxin, Hassemer e
Jakobs, que não ultrapassam os limites narrativos do justificacionismo.
63 ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p. 67.
64 Idem, p. 96.
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O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
teórico penal recebe a visita de alguma entidade misteriosa ou nos sonhos esta o faz chegar
a uma revelação acerca do fim, sentido, objeto ou essência do poder punitivo65?
Não é possível que, enquanto a realidade desmente de forma escandalosa todas as
funções atribuídas à pena, os penalistas permaneçam fazendo desse tópico objeto de fetiche, continuando a indagar qual a resposta mais apropriada à singela pergunta “por que
punir?”, quando o que interessa é limitar os níveis de dor intencional que são impostos aos
que são tragados pelo sistema penal66.
Diante dos estratosféricos níveis de dor provocados pelas nossas práticas punitivas,
novamente temos que enfatizar que não parece exagerado relacionar a condição atual da
questão penitenciária brasileira ao Holocausto: os níveis de sofrimento atingiram patamares
tão elevados que o que estamos vivendo talvez mereça o nome de técnica industrial de extermínio, diante da flagrante disparidade entre pena prevista e castigo vivido. O que impera
é a lógica da guerra, mostrando que Tobias Barreto já havia percebido há mais de um século
atrás o sentido do castigo. O autor enfatizou que o conceito de pena não é um conceito
jurídico, mas um conceito político67. Para ele, quem procura o fundamento jurídico da pena
deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra: a pena
– considerada em si mesma – nada tem a ver com a ideia de direito e isso fica provado pelo
fato de que ela é muitas vezes aplicada e executada em nome da religião, ou seja, do que
há de mais alheio à vida jurídica68.
São argumentos inteiramente condizentes com os que desenvolvemos até aqui, mas
que sem dúvida soam estranhos para quem concebe o direito penal como algo essencialmente normativo. É comum que os penalistas tratem do problema político do pensamento
jurídico-penal a partir de uma perspectiva de legitimação, atuando no âmbito de agências
de reprodução ideológica do discurso sedimentado. Trata-se de uma estrutura de pensamento putrefata e que deve ser posta abaixo sem misericórdia, o que pode ser feito sem
grande dificuldade a partir de uma conexão com a teoria agnóstica da pena, proposta por
Zaffaroni. Ele define a pena como um exercício de poder. Confessa desconhecer sua função
e, logo, abdica de qualquer resposta justificacionista ao “por que punir?”. Com isso Zaffaroni procura legitimar e ampliar o poder jurídico, visando à contenção do poder punitivo e
65 ZAFFARONI, Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p.
403.
66 Como observou Christie, “despues de la muerte, el encarcelamiento es el ejercicio de poder mas severo que el
Estado tiene a su disposicion. Todos nosotros tenemos la libertad limitada de alguna manera: forzados a trabajar
para subsistir, obligados a subordinamos a nuestros superiores, encerrados en clases sociales o aulas, prisioneros del
nucleo familiar . Pero a excepcion de la pena de muerte y la tortura fisica – medidas de uso limitado en la mayoria
de lós paises de los que trata este libro –, nada es tan extremo en cuanto a restricciones, degradacion y despliegue
de poder como la carcel” (CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos
Aires: Del Puerto, 1993. p. 33).
67 BARRETO, Tobias. Algumas ideias sobre o chamado fundamento do direito de punir. In: BARRETO, Tobias. Menores e
loucos em direito criminal. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. p. 143.
68 Idem, p.144. Obviamente não podemos deixar de referir que o processo penal ainda está repleto de categorias religiosas.
A epistemologia dominante continua sendo a delineada por Eymerich no manual dos inquisidores. Sobre o tema, ver
KHALED JR., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas,
2013.
230
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
reconduzindo a questão da pena ao âmbito político69. Segundo Carvalho, “entendida como
realidade política, a pena não encontra sustentação no direito. Pelo contrário, simboliza a
própria negação do jurídico. Pena e guerra se sustentam, portanto, pela distribuição de violência e imposição incontrolada de dor”70.
Com a teoria agnóstica da pena temos subsídios para enterrar os malabarismos narrativos do justificacionismo e especialmente um em particular: o mito da ressocialização.
Afinal, será possível cogitar em alguma medida a vocação para ressocializar através da pena
privativa de liberdade, quando ela é na verdade um exercício de poder voltado para a dor
e capacitado para o extermínio? Para Carvalho, “abandonar quaisquer teorias justificacionistas, sobretudo os modelos ressocializadores, é efeito primeiro da adoção da perspectiva
agnóstica de redução dos danos penais”71.
Portanto, a realidade desmente, de forma flagrante, o delírio alimentado pelo penalismo: a justificação da pena e do suposto direito de punir através de um conjunto de artimanhas discursivas, cujo verdadeiro sentido consiste na legitimação do ilegitimável por
definição. Precisamos enterrar esses espantalhos discursivos urgentemente para impedir que
o direito penal continue sendo um instrumento a serviço do Holocausto72. Desse modo, a
teoria agnóstica da pena pode contribuir decisivamente para a redução de danos, assumindo que a perspectiva de minimização da dor provocada pelas práticas punitivas deve ser o
norteador dos discursos jurídicos. Zaffaroni refere que
se o saber jurídico-penal decidisse ignorar a função do poder punitivo, reconhecendo sua
irracionalidade e sua existência como mero factum, assumiria diante dele a nobre função de
projetar normativamente sua contenção para preservar o estado de direito e prevenir os massacres, e recuperaria a dignidade que, em boa medida, perdeu ao longo da história, ao justificar
os mais horrorosos crimes de Estado.73
Certamente esse é o caminho a seguir, pelo menos para aqueles que estão comprometidos com uma proposta de minimização da dor e redução de danos, que é, afinal, o
que podemos atingir em um horizonte pragmático de atuação. Muitos podem sonhar com a
extinção do direito penal e a abolição da pena, mas convenhamos que, embora isso possa
ser desejável, dificilmente será possível em nosso tempo. Seria inclusive temerário se isso
acontecesse agora, pois é bem provável que algo ainda pior tomaria o lugar do sistema penal. O que podemos fazer é abalar as estruturas do pensamento e ver o que remanesce, o
que se sustenta, o que pode contribuir para fazer com que a realidade concreta deixe de ser
69 ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p.108-112.
70 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 267.
71 Idem, p. 269.
72 Como explica Carvalho, “ao assumir a pena como realidade (fenômeno) da política, a minimização dos poderes
arbitrários exsurge como reação igualmente política. O projeto de redução dos danos decorrentes da punitividade atinge
todas as fases de sua individualização, no esforço de redefinir critérios de sua cominação, aplicação e execução, a partir
da observância dos postulados constitucionais de proporcionalidade, razoabilidade e proibição do excesso” (CARVALHO,
Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 269).
73 ZAFFARONI, Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p.
404.
231
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
o lugar do insuportável, ou, ao menos, fazer com que esse insuportável deixe de ser percebido como suportável, o que é imprescindível para que qualquer mudança ocorra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mas e quanto aos próximos vinte anos? Será que o totalitarismo avançará ainda mais,
com ampliação irrestrita dos níveis de repressão penal? Seria muita ousadia fazer qualquer
previsão. Pode ser que daqui a vinte anos o número de presos no Brasil tenha crescido novamente em 350%, sem que exista um aumento sequer remotamente parecido no número
de vagas. O argumento do Holocausto ganhará muito mais força, sem dúvida. Mas considerando a condição catastrófica em que vivemos, talvez esse seja até um palpite modesto,
motivo pelo qual é melhor nem arriscar. Não seria inteiramente absurdo cogitar que o Brasil
irá perseguir o primeiro lugar no ranking de populações carcerárias.
O que sabemos é que o poder efetivamente jurídico dentro do sistema penal é muito
restrito. Não faz sentido algum que continuemos legitimando a barbárie e, com isso, paradoxalmente reduzindo ainda mais o poder discursivo dos juristas. Nossa tarefa imediata
consiste em deixar de legitimar a catástrofe e minimizar os níveis de dor intencional: rejeitar
os discursos justificacionistas, denunciar o Holocausto nosso de cada dia e lutar pela contenção da indústria do controle do delito. São horizontes práticos, imediatos e nada utópicos. Horizontes com os quais os penalistas minimamente comprometidos com o progresso
do Estado Constitucional de Direito podem e devem se engajar. Contra o Holocausto nosso
de cada dia, um tsunami antipunitivista. Quem sabe assim deixamos de acumular tantas
ruínas? Eu sei de que lado estou. E você, de que lado está?
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234
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Doutrina
Política Não Criminal e Processo Penal: a Intersecção a Partir das Falsas Memórias da
Testemunha e Seu Possível Impacto Carcerário1
GUSTAVO NORONHA DE ÁVILA
Doutor em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Professor de Direito Processual
Penal do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter)/Laureate International Universities, Professor de
Criminologia da Especialização de Direito Penal e Direito Processual Penal do UniRitter/IBCCrim, Professor
de Criminologia da Especialização em Ciências Penais da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Advogado.
RESUMO: A prova testemunhal é uma das mais utilizadas em âmbito processual. Por outro lado, as entrevistas à testemunha podem formar um quadro sugestionável, que pode redundar em falsas memórias. O artigo
pretende discutir as vinculações desta situação processual penal com as políticas criminais contemporâneas.
Para tanto, lançaremos mão de um referencial teórico crítico para pensarmos em formas efetivas de reduzir
a possibilidade de falsas memórias. É necessário discutirmos o próprio catálogo de tipos penais disponíveis,
talvez a principal forma de afastarmos possíveis contaminações a redundarem em privações de liberdade.
PALAVRAS-CHAVE: Falsas memórias; prova testemunhal; política criminal; sugestionabilidade.
SUMÁRIO: Introdução; 1 As falsas memórias como problema do processo penal; 2 Política criminal brasileira:
rumo a um milhão de presos?; 3 Possibilidades de pensar uma política não criminal: por onde?; Considerações
finais; Referências.
INTRODUÇÃO
As sugestionabilidades e suas possíveis resultantes, as falsas memórias, constituem um
dos grandes problemas do processo de criminalização brasileiro. Tal situação encontra seu
ponto nevrálgico na prova testemunhal. Comumente, tem-se trabalhado com propostas de
redução de danos para atenuar possíveis efeitos negativos na liberdade do réu.
1 O presente trabalho constitui atualização, articulada com a política criminal brasileira contemporânea, das seguintes
publicações que convido à leitura: ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal
em xeque. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013; DORNELLES, Guilherme Augusto; ÁVILA, Gustavo Noronha de.
Processo penal, falsas memórias e entrevista cognitiva: da redução de danos à redução de dor: In: ÁVILA, Gustavo
Noronha de (Org.). Fraturas do sistema penal. Porto Alegre: Sulina, 2013. p. 285-314; ÁVILA, Gustavo Noronha de;
GAUER, Gabriel José Chittó; PIRES FILHO, Luiz Alberto Brasil Simões. Falsas memórias e processo penal: (re)discutindo
o papel da testemunha. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Faculdade de Direito de Lisboa, v. 12, p. 71807181, 2012; ÁVILA, Gustavo Noronha de; GAUER, Gabriel José Chittó. Presunção da inocência, mídia, velocidade e
memória – Breve reflexão transdisciplinar. Revista de Estudos Criminais, v. VII, p. 105-113, 2007.
235
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Nestas breves linhas, discutiremos as possibilidades de pensarmos para além das medidas reformistas processuais penais, vinculando a questão também às políticas criminais.
Até qual ponto uma sociedade punitiva influencia na propulsão de sugestionabilidades?
Existe possibilidade de pensarmos em políticas não criminais? Quais seriam os efeitos destas
para as sugestionabilidades?
São algumas das questões que, longe da pretensão arrogante de esgotarmos, pretendemos abordar e problematizar com o nosso leitor.
1 AS FALSAS MEMÓRIAS COMO PROBLEMA DO PROCESSO PENAL
Nos processos que tentam a (re)construção do fato criminoso pretérito, podem existir
artimanhas do cérebro, informações armazenadas como verdadeiras, ou induções dos entrevistadores, de outras pessoas e/ou da mídia que, no entanto, não condizem com a realidade. Estas são as chamadas falsas memórias, processo que pode ser agravado quando da
utilização de técnicas por repetição, exemplificadamente as empregadas de forma notória
no âmbito criminal.
Estas consistem em recordações de situações que, na verdade, nunca ocorreram. A
interpretação errada de um acontecimento pode ocasionar a formação de falsas memórias.
Embora não apresentem uma experiência direta, as falsas memórias representam a verdade
como os indivíduos as lembram2. Podem surgir de duas formas: espontaneamente ou através
de uma sugestão externa.
Alfred Binet conduziu os primeiros estudos específicos sobre falsas memórias. Eles
versavam sobre as características de sugestionabilidade da memória, a saber, a incorporação e a recordação de informações falsas, sejam elas de origem interna ou externa, que o
indivíduo lembra como sendo verdadeiras3.
Para ilustrar tal situação interessante, cita-se o experimento realizado por Walter Lippmann, em 1922, no Congresso de Psicologia em Gottingen, feito, portanto, sob o olhar de
pessoas treinadas e acostumadas à observação:
De um lugar próximo da sala em que acontecia o congresso, havia uma festa, um baile de
máscaras. Repentinamente, uma porta da sala do congresso abre-se abruptamente e um palhaço entra correndo perseguido, loucamente, por um afrodescendente com um revólver na
mão. Eles param no meio da sala brigando. O palhaço cai. O afrodescendente pula sobre
ele e dispara a arma. Ambos saem rapidamente da sala. Todo o incidente dura cerca de 20
segundos.
2
BARBOSA, Cláudia. Estudo experimental sobre emoção e falsas memórias. Dissertação de Mestrado em Psicologia pela
Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: PUCRS, 2002. p. 26.
3 BINET, A. La suggestibilitie. Paris: Scheicher, 1900. Apud NEUFELD, Carmem Beatriz; BRUST, Priscila Goergen;
STEIN, Lilian Milnitsky. Compreendendo o fenômeno das falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias.
Porto Alegre: Artes Médicas, 2010.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
O presidente do congresso pede aos presentes que façam um depoimento sobre o fato, uma
vez que aquilo certamente seria alvo de inquérito judicial e testemunhos seriam necessários.
Quarenta depoimentos lhe chegam às mãos. Apenas um tinha menos de 20% de erros em
relação aos fatos ocorridos. Quatorze tinham de 20 a 40 por cento de erros, doze tinham de
40 a 50 por cento de erros e treze tinham mais de 50 por cento de erros. Em 24 dos reports,
10% dos fatos relatados eram pura invenção. Cerca de ¼ dos testemunhos eram falsos. Não é
necessário dizer que toda cena fora arranjada à guisa de experimento. Toda ela foi fotografa.
Dos falsos reports, 10 poderiam ser classificados como lendas ou contos, 24 poderiam ser
considerados como meio lendários e apenas 6 tinham um valor aproximado a provas.4
Necessário atentar ao fato de o experimento ter contado com participantes treinados
à observação, que, quando colocados em situação de relatar um evento violento, tendem a
trazer informações diversas/equivocadas em relação ao acontecimento.
Chamamos de processo “tudo o que se refere à prova”5 e, etimologicamente, esta palavra evoca um exame ou uma seleção de algo. Os processos são “máquinas retrospectivas”,
logo, baseados em várias hipóteses históricas, propostas pelas partes. É preciso, então, verificá-las. As provas são a maneira pela qual realizaremos essa tarefa6. Para Taruffo7, a noção
de prova reside na fundamentação deste juízo.
A dificuldade de se avaliar a prova e a sua vontade de verdade8, especialmente através
da testemunha, já eram preocupações de Carnelutti. Diz ele que “as provas são, pois, os
objetos mediante os quais o juiz obtém as experiências que lhe servem para julgar”9.
Para além da concepção narrativa, já se percebia a preocupação de que o testemunho
constituísse muito mais do que descrever: constituía, sim, uma verdadeira maneira de transmitir uma experiência10. Como forma de transcender a sua objetificação, seria necessário
também entender menos o conteúdo em comparação ao que poderia ser trazido ao processo e mais a sua vivência e como esta pode influenciar a sua forma de interpretar o mundo.
A possibilidade de ocorrência das falsas memórias também pode atuar de forma precaucional, impedindo ao magistrado que imponha condenações, como corolário dos princípios do in dubio pro reo e estado de inocência.
A qualidade da prova pode estar comprometida também quando da decorrência de
lapso temporal exacerbado entre a coleta dos depoimentos policiais e os testemunhos judiciais, favorecendo a produção de memórias falsificadas. Foi o que reconheceu o Desembargador do Tribunal de Justiça gaúcho, Gaspar Marques Batista: “Parte da prova oral colhida
4 LIPPMANN, Walter. Public opinion. 50. ed. New Jersey: MacMillan, 1991. p. 82.
5 CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Bogotá: Themis, t. II, 2000. p. 4.
6 Em um sentido ultrajurídico, “seria tudo aquilo que nos convence da existência de algum fato, alguma coisa ou algum
ser, seja do presente, seja do passado” (TOVO, Paulo Cláudio. Estudos de direito processual penal. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, v. 2, 1999. p. 202).
7 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. 3. ed. Madrid: Trotta, 2009. p. 327-328.
8 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003. p. 142.
9 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, v. 1, 2004. p. 275.
10 Idem, p. 289.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
em juízo, cinco anos depois, certamente foi prejudicada pela ação do tempo, que opera o
esquecimento dos fatos e até a inclusão de falsas memórias”11.
Sobre a testemunha e a sua memória do evento, os efeitos do tempo são nefastos. O
intervalo entre o depoimento em inquérito e a oitiva, como testemunha no processo, pode
demorar anos. Assim, “a correspondência entre o que a testemunha viu, a imagem que registrou na consciência e o que vão relatar ao juiz sofrem forte influência do tempo”12.
Enxergar através dos olhos da testemunha: eis um dos desafios comuns ao juiz durante
o processo penal. Apesar desta dificuldade e de todas as possíveis “impurezas”, advindas deste tipo de prova, não é possível prescindir de sua existência13. Isto porque existem
crimes, especialmente os materiais, que dificilmente poderão ser analisados de outra forma
que não pela testemunha. O homicídio é um claro exemplo desta situação.
Mas como o juiz poderia utilizar-se desta experiência da testemunha? A resposta, inicialmente, parece-nos bastante complexa. A mera relação causal, base do cartesianismo,
será absolutamente insuficiente para contornar a questão.
O Direito é herdeiro direto da tradição racionalista, que reduz o conhecimento ao
mundo binário da validade/invalidade. Desta forma, a ação será procedente/improcedente,
uma medida legal/ilegal (constitucional/inconstitucional). Com base na naturalizada igualdade, o Direito pretensamente tenta forjar um mundo para além das impurezas, muito além
da verdade, já que o falso só serve de modo a confirmá-la.
Quanto à utopia do “mundo perfeito”, afirma Gauer que “a modernidade disciplinou
não apenas os homens, mas também, todas as coisas que pudessem estar fora do lugar”14.
Todas as impurezas deveriam ser higienizadas, e a razão era a forma de filtrar, binariamente,
os conhecimentos válidos e inválidos. Sendo assim, “o mundo perfeito, utopia dos iluministas, seria totalmente limpo e idêntico a si mesmo, transparente e livre de contaminações”15.
Ao presenciar o fato, certamente a testemunha o interpreta, de acordo com sua própria
vivência, que, na maior parte das vezes, não é a mesma do juiz. Alexandre Morais da
Rosa nos traz uma possibilidade interessante: “A melhor maneira de julgarmos um processo
crime é imaginar o enredo sem o ato violento ou criminalizado”16. É necessário, portanto,
um certo afastamento para consegui-lo17.
11 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Criminal nº 70020430146/RS. Julgamento em: 29.11.2008.
Diário de Justiça do Rio Grande do Sul, em 08.11.2007. Acesso em: 15 nov. 2008. Disponível em: <http://www.tj.rs.
gov.br/site_php/consulta/exibe_documento<.php?ano=2007&codigo=1382594>. Acesso em: 3 fev. 2014.
12 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 51.
13 CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller, v. 1, 2004. p. 292.
14 GAUER, Ruth Maria Chittó. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões em torno do paradoxo moderno.
Civitas, v. 5, n. 2, p. 399-413, 2005. p. 401.
15 Idem, p. 401.
16 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Quando se fala de juiz no novo CPP de que juiz se fala? In: COUTINHO, Jacinto Nelson
de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da constituição (análise
crítica do Projeto de Lei nº 156/2009 do Senado Federal). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 128.
17 Idem, p. 128.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Aqui deixamos bastante evidente que não se trata apenas de avaliarmos as atuações
do órgão acusatório e da magistratura, mas, necessariamente, de todos eles que terão participação ativa na (re)construção do fato passado. Portanto, processos que gerem falsas
memórias não dependerão apenas de quem tem a função de acusar e a quem julga, mas
também daqueles defensores que, em contraditório, lançarão mão das melhores estratégias
para evitar distorções.
O sistema de oitiva de testemunhas, adotado na legislação brasileira, a partir da reforma processual de 2008, é semelhante ao cross examination (ou exame direto e cruzado18)
norte-americano, já que, em ambos, a acusação e a defesa realizam os seus questionamentos diretamente às testemunhas. Neste formato, as partes ficam sujeitas ao contrainterrogatório de seu oponente. Porém, existe importante diferença: o processo penal brasileiro
não limitou a atuação do juiz, no sentido de somente presidir o ato, mas também permitiu a
ele a faculdade de complementar a inquirição acerca dos pontos não esclarecidos19.
O art. 212 do CPP traz algumas limitações às perguntas realizadas. Estas não poderão
induzir resposta, nem ter relação com a causa e importar em repetição, sendo o magistrado
responsável por fiscalizar a inquirição20. Neste ponto, constatamos importante dificuldade
de nosso regramento legal: inexistem definições do que seriam perguntas que induzem à
resposta.
Como possível forma de atenuação do problema se apontam medidas de redução
diante da impossibilidade de outra solução21. Para tanto, são trazidas as seguintes sugestões:
a)a colheita dos depoimentos em um prazo razoável, objetivando a diminuição da
influência do tempo (esquecimento) na memória;
b)a adoção de técnicas de interrogatório e da entrevista cognitivas, com o intuito de
obter informações quantitativas e qualitativamente superiores as das entrevistas
tradicionais, altamente sugestivas;
c)a gravação das entrevistas, permitindo ao julgador de segunda instância o conhecimento do modo como os questionamentos foram elaborados, bem como as
reações dos entrevistados;
d)a realização das perguntas pelas partes após o relato livre do entrevistado (vítima
ou testemunha), complementando, o magistrado, ulteriormente, os questionamentos;
e)a inutilizabilidade dos relatos (depoimentos) contaminados direta e indiretamente;
18 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas. In: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis (Coord.). As reformas no
processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 284.
19 DI GESU, Cristina Carla. Prova penal e falsas memórias. Dissertação de Mestrado em Ciências Criminais pela Faculdade
de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2008. p. 102.
20 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
p. 57.
21 GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Fatores de contaminação da prova testemunhal. In: GIACOMOLLI,
Nereu José; MAYA, André Machado (Org.). Processo penal contemporâneo. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010. p. 23.
239
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
f)
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
a formação multidisciplinar dos profissionais encarregados da realização das inquirições, com atualizações constantes;
g) a exploração de outras hipóteses, diversas da acusatória, por parte do entrevistador, fazendo-se uma abordagem de outros aspectos ofertados pela vítima ou pelas
testemunhas, por ocasião dos depoimentos.22
Primeiramente, trabalhar com a ideia do que seria prazo razoável parece bastante
movediça. O conteúdo dependerá sempre de um referencial, dificultando de forma determinante a aplicação dos postulados universalizantes do Direito.
Quanto ao conteúdo das entrevistas, são necessárias algumas observações. As dez falhas
mais comuns dos entrevistadores forenses foram listadas a seguir: 1) não explicar o propósito da
entrevista; 2) não explicar as regras básicas da sistemática da entrevista; 3) não estabelecer rapport
(a empatia com o entrevistado); 4) não solicitar o relato livre; 5) basear-se em perguntas
fechadas e não fazer perguntas abertas23; 6) fazer perguntas sugestivas/confirmatórias; 7)
não acompanhar o que a testemunha recém disse; 8) não permitir pausas; 9) interromper a
testemunha quando ela está falando; e 10) não fazer o fechamento da entrevista24.
O objetivo principal da entrevista cognitiva é obter melhores depoimentos, ou seja,
ricos em detalhes e com maior quantidade e precisão de informações. Baseia-se nos conhecimentos científicos de duas grandes áreas da psicologia: psicologia social e psicologia
cognitiva. No que concerne à psicologia social, integram os conhecimentos das relações
humanas, particularmente o modo de se comunicar efetivamente com uma testemunha e,
no campo da psicologia cognitiva, somam-se os saberes que os psicólogos adquiriram sobre
a maneira como nos lembramos das coisas, ou seja, como a nossa memória funciona25.
Apesar de as técnicas cognitivas serem importantes aliados em países onde as pesquisas sobre testemunho possuem maior tempo de desenvolvimento, inexiste possibilidade de
afirmar o afastamento dos protagonistas/entrevistadores de concepções punitivistas do sistema e que influenciam também a forma de obtenção dessas informações. Esta observação
também serve para o caráter multidisciplinar da formação dos atores: de nada adiantará
caso inexista comprometimento com garantias fundamentais dentro do processo penal.
Também não se pode ignorar a existência de uma cultura autoritária no tocante às
polícias e à dificuldade de implementação das estratégias de inquirição. Prova disso são os
resultados tímidos da incorporação de valores constitucionais, em que pesem mais de 25
anos de vigência de nossa Constituição Federal.
22 Idem, p. 38-39.
23 Perguntas abertas permitem que a pessoa que está respondendo dê mais informações (e.g., “o que você viu quando
entrou na loja?”. As fechadas, geralmente, somente trazem duas alternativas possíveis de resposta: “sim” ou “não”
(e.g., “era manhã, tarde ou noite quando o crime aconteceu?”) (FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz.
Memória em julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.).
Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010. p. 220).
24 Idem, p. 211.
25 Idem, p. 210.
240
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
A gravação das entrevistas nos parece mecanismo bastante interessante, de forma a
ampliar o debate em segunda instância. Problema fundamental, no entanto, é identificar a
insuficiência do método para as instâncias superiores em função da vigência do paradigma
de relação jurídica de ação penal. Aqui, distinguimos fato e direito, como se fosse possível
o julgamento relativo a apenas uma dessas circunstâncias. Logo, a eficácia da estratégia
também seria limitada.
O relato livre de vítima e testemunhas é fundamental. No entanto, a complementação
dos questionamentos por parte do magistrado revela flagrante ofensa ao princípio acusatório. Não só: é bastante temerária a hipótese, admitindo-se a possibilidade de perguntas de
cunho confirmatório por parte de alguém (ou que deveria ser) visto pelo inquirido como um
terceiro imparcial.
Por outro lado, é necessário que nos perguntemos se uma concepção de política criminal conservadora (como a do Direito Penal do inimigo) não pode permitir um sistema mais
propício à sugestionabilidade ao longo da oitiva de pessoas (em fase policial e judicial) e
que pode se materializar em falsas memórias?
Importante indicativo podemos ter, a partir das pesquisas de Azevedo em relação à
atuação dos promotores públicos no Rio Grande do Sul e dos membros do Ministério Público Federal. Quanto aos primeiros, 54% consideraram que possuíam mais afinidade com a
política criminal da “Tolerância Zero” como forma de responder às altas taxas de criminalidade. A concepção garantista apareceu com apenas 8% de adeptos26.
No tocante à pesquisa realizada com os membros do Ministério Público Federal27, 67,6%
dos entrevistados consideram a legislação penal e processual penal brasileira branda ou excessivamente branda. Ainda: em relação às concepções de política criminal, 34,7% dos membros estão de acordo com os ditames da “defesa social” e 12,6%, com a “tolerância zero”.
Contudo, 13,2% consideram-se adeptos ao garantismo penal e 0,6%, ao abolicionismo penal.
Por certo, estes dados são de grande relevância; todavia, revelam apenas o atuar penal
de uma das partes envolvidas no sistema penal. Provisoriamente, seria possível pensar que
pesquisas neste sentido podem ser importantes não somente para os titulares da ação penal
(por excelência), como também para os juízes, advogados (que igualmente podem justificar
a sua atuação com base em concepções político-criminais conservadoras) e delegados.
As falsas memórias existem, possuem repercussão crucial (inclusive judicial, como
visto) e são de difícil identificação, pois quem relata crê verdadeiramente em sua versão.
Apesar de existirem métodos/técnicas para tentar atenuar seus efeitos, temos que a grande
questão deve ser enfrentada não apenas com a promoção de garantias processuais penais,
mas principalmente por um debate político criminal sobre a necessidade de existência do
26 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Ministério Público gaúcho: quem são e o que pensam os promotores e procuradores
de justiça sobre os desafios da política criminal. Porto Alegre: Ministério Público do Rio Grande do Sul, 2005.
27 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Perfil socioprofissional e concepções de política criminal do Ministério Público
Federal. Brasília: Ministério Público Federal, 2009. Disponível em: <http://escola.mpu.mp.br/linha-editorial/outraspublicacoes/Perfil_ebook.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2014.
241
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
processo de criminalização em si. Apenas desta forma talvez poderemos efetivamente impedir erros judiciais traduzidos em insuportáveis privações de liberdade.
2 POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA: RUMO A UM MILHÃO DE PRESOS?
Se os processos de criminalização são os responsáveis primeiros pela exposição a uma
falsa memória, cabe discutir o papel da política criminal brasileira neste contexto. Para Delmas-Marty, política criminal significa “o conjunto dos procedimentos pelos quais o corpo
social organiza as respostas ao fenômeno criminal”28.
No Brasil, inexiste atualmente estatística de qual seria o número de presos por prova contaminada com falsas memórias. Apesar da dificuldade de comprovar a distorção,
poderíamos pensar na utilização da prova técnica (DNA) para desmentir a construção processual passada.
Esta comparação tem sido feita nos Estados Unidos da América, através de uma ação
denominada Innocence Project. Através de uma ação chamada de “exoneração”, é feita a
comparação entre o material encontrado na cena do crime (para aqueles ocorridos quando
não havia tecnologia disponível) e a da pessoa condenada, não raro a morte.
Atualmente, há 258 casos de exoneração29 nos Estados Unidos, baseados no DNA.
Em média, a pessoa exonerada passa treze anos na prisão antes de ser liberada. Em 70%
dos casos, a pessoa exonerada era um membro de um grupo de minoria racial. Os erros de
identificação das testemunhas oculares contribuem em mais de 75% para os casos de prisão
indevida nos Estados Unidos30.
É possível notar a tendência de uma política criminal expansionista no Brasil. Por mais
que o fracasso histórico das prisões tenha sido exaustivamente denunciado pelos mais diversos setores da doutrina penal, a vontade de segregação continua.
Novos bens jurídicos, aparecimento de novos riscos, institucionalização e sensação
social de insegurança, descrédito das instâncias de proteção, gestores atípicos da mortal
(ecologistas, feministas, consumidores, vizinhos, etc.) e a chamada esquerda punitiva são
frequentemente trazidos31 como uma das causas para políticas criminais repressivas.
A seleção do que proteger nem sempre é clara ou segue critérios minimamente científicos . Exemplo disto é a ausência do homicídio da redação original da legislação de crimes
hediondos33.
32
28 DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. São Paulo: Manole, 2004. p. 16.
29 Ação semelhante a nossa revisão criminal, ou seja, forma de tentar alterar o resultado de um julgamento já transitado
em julgado.
30 INNOCENCE PROJECT. Eyewitness identification reform. Disponível em: <http://www.innocenceproject.org/Content/
Eyewitness_Identification_Reform.php>. Acesso em: 12 jul. 2013.
31 SILVA-SÁNCHEZ, Jesús María. A expansão do direito penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 18.
32 SÁNCHEZ-OSTIZ, Pablo. Fundamentos de política criminal. Madrid: Marcial Pons, 2012. p. 24-48.
33 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 21; PINTO,
Nalayne Mendonça. Recrudescimento penal no Brasil: simbolismo e punitivismo. In: MISSE, Michel (Org.). Acusados e
acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 250.
242
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Editada em 1990, foi uma das grandes responsáveis pelo extraordinário incremento
carcerário que tivemos, juntamente à legislação de drogas (11.343/2006). O processo de
encarcerização ainda demonstra outras finalidades. Ocultas. Nos dizeres de Bauman:
[...] o aumento da prisionização nas sociedades contemporâneas se relaciona à incapacidade
dos excluídos de participarem do jogo do mercado, aqueles cujos meios não estão à altura dos
desejos e aqueles que recusaram a oportunidade de vencer enquanto participavam do jogo
de acordo com as regras oficiais. Bauman salienta que o sistema hoje se resume a separar de
modo estrito o “refugo humano” do restante da sociedade, excluí-los e neutralizá-los. Pois o
refugo humano precisa ser lacrado em contêineres fechados com rigor, e o sistema penal fornece esses contêineres. As prisões que teoricamente funcionavam como mecanismos de correção e ressocialização hoje são concebidas como um mecanismo de exclusão e controle. “O
principal e talvez o único propósito das prisões não é ser apenas um depósito de lixo qualquer,
mas o depósito final, definitivo. Uma vez rejeitado, sempre rejeitado”.34
Vivemos a chamada era do Grande Encarceramento35, época paradoxal por natureza.
Se, por um lado, temos presídios invariavelmente lotados e em condições intoleráveis; por
outro, existe um sentimento social generalizado relativamente às demandas punitivas: penas
mais duras e construção de novos estabelecimentos prisionais. A estes movimentos, inspirados por teorias identificadas com ideias de defesa social (notadamente o “direito penal
do inimigo” e a law and order), tem se dado o nome de populismo punitivo36. Mesmo que
seja considerada superada teoricamente, esta concepção político-criminal ainda encontra
espaço no senso comum. Portanto, por mais que existam resistências, a permeabilidade da
política criminal legislativa acaba fazendo com que tenhamos o movimento como de um
pêndulo37.
Este quadro é fomentado pela transição de um chamado “estado de bem-estar social”
para um “estado policial”, ou seja: “A passagem do modelo de comunidade includente do
‘Estado Social’ para um Estado excludente, ‘penal’, voltado para a ‘justiça criminal’ ou o
‘controle do crime’”38. Dentro do paradigma atual, o sistema penal torna-se “o território
sagrado da nova ordem socioeconômica”39.
Isto se agrava em países como o Brasil, nos quais a desigualdade ainda constitui gravíssimo problema estrutural. Desta forma, as prisões acabam por se constituir em grandes
depósitos, onde os excluídos40 socialmente são abrigados.
34 BAUMAN, Zygmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 107.
35 Neste sentido: BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.
27.
36 LARRAURI, Elena. Populismo punitivo... y como resistirlo. Revista de Estudos Criminais, Sapucaia do Sul: Notadez, n.
25, abr./jun. 2007.
37 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Trad. Mariluz Caso. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica, 1988. p.
71 e 95.
38 BAUMAN, Zygmuth. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 86.
39 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 100.
40 PASTANA, Débora Regina. Estado punitivo e encarceramento em massa: retratos do Brasil atual. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 77, p. 316-317, mar./abr. 2009.
243
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Produto e ao mesmo tempo combustível da lógica punitivista será a cultura do medo41.
Existe um sentimento generalizado de vitimização, reproduzido a partir de um maniqueísmo
social, segundo o qual,
os bons se transformam em vítimas indefesas dos maus, incluído, nesta última categoria os
supostos responsáveis pela segurança de todos. Daí as expressões: impunidade, ineficácia das
normas e do judiciário. A sociedade sente-se vítima do bandido e do Estado incompetente ou
pouco opressor.42
Suspeitas se projetam em privações, especialmente da liberdade. Sintoma deste contexto é a população prisional brasileira. Hoje, estima-se que tenhamos mais de 550.000,00
(quinhentos e cinquenta mil) presos43. E este número apenas cresce. Ainda que existam
medidas político-criminais com fins declaradamente desencarcerizadores, as consequências práticas de sua aplicação são bastante tímidas. Isto porque o subjetivismo44, em certas
categorias-chave (como o requisito da “ordem pública” em sede de prisão cautelar), torna
facilmente reversíveis os objetivos originais.
O Brasil é o quarto país do mundo em população carcerária. Está atrás de EUA, Rússia
e China. Dados trazidos pelo Instituto Avante Brasil45 apontaram o aumento de 508% na
população prisional brasileira entre 1990 e 2012, enquanto a população nacional cresceu
31%. Christie considera o número de presos a cada 100.000 habitantes como um importante dado para medir o nível de punição de determinado país46. No nosso, em 2012, a taxa
de presos foi 283 para cada 100.000 habitantes, levando-se em consideração a população
de 193.946.886 habitantes estimada pelo IBGE para 2012. Enquanto a população cresceu
1/3, a população carcerária mais que sextuplicou47.
41 Utilizamos aqui o medo nos termos trabalhados por Débora Pastana: “Entendemos o medo, neste estudo, como uma forma de
exteriorização cultural, principalmente se levarmos em conta as transformações que ele desencadeia. Como vimos no capítulo
anterior, há uma mudança no comportamento do indivíduo em casa e na rua, um cuidado maior com os bens (consumo de
apólices de seguro, por exemplo), a produção e o consumo dos mais variados produtos de segurança privada (alarmes, vidro
blindado e aulas de defesa pessoal, por exemplo), uma desconfiança generalizada entre os indivíduos” (PASTANA, Débora
Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCrim, 2003.
p. 92). Ver também: Bauman, op. cit., p. 65-66.
42 PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São
Paulo: IBCCrim, 2003. p. 108-109.
43Veja-se: KAWAGUTI, Luis. Brasil tem 4ª maior população carcerária do mundo e déficit de 200 mil vagas.
Disponível
em:
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120529_presos_onu_lk.shtml>.
Acesso
em: 6 jun. 2012. No mundo, estima-se que tenhamos mais de 10 milhões de pessoas presas: INTERNATIONAL
CENTRE FOR PRISION STUDIES. World Prison Population List. Disponível em: <http://www.prisonstudies.org/info/
downloads.php?searchtitle=&type=3&month=1&year=2009&lang=0&author=&search=Search>. Acesso em: 12
jun. 2012.
44 Ver especialmente LOPES JÚNIOR, Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas
cautelas diversas: Lei nº 12.403/2011. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
45INSTITUTO AVANTE BRASIL. Levantamento do sistema penitenciário em 2012. Disponível em: <http://
institutoavantebrasil.com.br/levantamento-do-sistema-penitenciario-brasileiro-em-2012/>. Acesso em: 1º fev.
2014.
46Christie, Indústria do controle, p. 40.
47INSTITUTO AVANTE BRASIL. Levantamento do sistema penitenciário em 2012. Disponível em: <http://
institutoavantebrasil.com.br/levantamento-do-sistema-penitenciario-brasileiro-em-2012/>. Acesso em: 1º fev.
2014.
244
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Apesar da expansão estonteante do número de encarcerados, isto não significa maior
sensação de segurança. Pelo contrário. O primeiro milhão de presos não está distante. Neste
sentido, nunca é demais lembrar Christie: “Nas sociedades modernas, o maior perigo do
delito não é o delito em si, mas que a luta contra ele conduza as sociedades ao totalitarismo”48.
3 POSSIBILIDADE DE PENSAR UMA POLÍTICA NÃO CRIMINAL: POR ONDE?
Talvez a única forma efetiva de diminuição de falsas memórias, durante os processos
de criminalização, seja justamente atingir o catálogo de crimes disponíveis. Daí a necessidade de uma política não criminal. Abordaremos, neste ponto, propostas existentes para (re)
valorização da liberdade ainda considerando os resquícios importantes de uma sociedade
ainda disciplinar49.
As escolhas de política criminal são culturais50, revelam uma área inundada de questões
morais profundas, que não podem se resumir a especialistas e mensageiros da verdade. Ainda com Christie: “Deve haver um coro de vozes que introduzam inúmeras preocupações
de difícil solução e sobre as quais inexiste unanimidade. Quanto mais se vê o campo como
cultural, menos espaço sobra para soluções simplificadas”51.
Existe certo consenso sobre as (im)possibilidades do cárcere. Nos dizeres de Ferrajoli:
Muito mais relevante é saber como castigar, ou seja, o tema da desprisionalização. Cremos que
os tempos tenham amadurecido o suficiente para colocar como centro da discussão a questão
do cárcere. Este, sabemos, foi uma invenção moderna, considerada como grande conquista
dos ideais humanitários da ilustração enquanto alternativa à pena de morte, aos suplícios,
penais corporais, à tortura em praça pública e outros horrores do direito penal pré-moderno.
Com a prisão, a pena se voltou aos ideais de igualdade, legalidade pré-determinada, sempre
suscetíveis à medição e cálculo: privação de um tempo de liberdade, quantificável e graduável
a partir da legislação e por juiz, de acordo com a gravidade – em abstrato e concreto – dos
crimes a serem castigados.
No entanto, o grau de civilização de um país, advertia Montesquieu, se mede de acordo com a
forma como se aplicam as penas. É possível, hoje, darmos um novo salto de civilização: retirar
a pena de reclusão do seu papel central e, se não a abolirmos, ao menos reduzir drasticamente sua duração e transformá-la em sanção excepcional, limitada a ofensas mais graves contra
48 CHRISTIE, Nils. La Industria del Control del Delito – La Nueva Forma del Holocausto? Buenos Aires: Editores del Puero,
1993. p. 24.
49 Não se ignora sobre os novos controles planetários, de menor repercussão no sistema penal, porém de grande
importância para entender a transmutação da biopolítica em ecopolítica. Neste sentido, imprescindível as seguintes
leituras: PASSETTI, Edson. Ecopolítica: procedências e emergência. In: BRANCO, Guilherme Castelo; VEIGA-NETO,
Alfredo (Org.). Foucault, filosofia & política. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, v. 1, 2011. p. 127-141, FOUCAULT,
Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008; DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo:
Editora 21, 2004.
50 CHRISTIE, Nils. Uma quantidade razoável de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 50.
51 Idem, p. 130.
245
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
direitos fundamentais (como a vida, a integridade pessoal e similares), as únicas que justificariam a privação da liberdade pessoal, que também é um direito fundamental garantido.
É necessário reconhecer, por outro lado, que o cárcere tem sido sempre, em desacordo com
seu modelo teórico e normativo, muito mais do que a privação de um tempo abstrato de
liberdade. Inevitavelmente, este modelo conservou múltiplos elementos de sofrimento corporal, manifestada nas formas de vida e tratamento e diferenciadas das penas corporais antigas
somente quando não se considera o tempo, mas que duram durante todo seu cumprimento.52
Como alternativa concreta, Ferrajoli defende a redução do limite máximo da pena
privativa de liberdade, que deveria ser de 10 anos53. Malaguti defende as seguintes propostas:
–
mudança radical na política criminal de drogas, produzindo políticas coletivas de
controle pela legalidade;
–
despenalização de crimes patrimoniais sem violência contra a pessoa, como furto;
–
abrir os muros das prisões para sua comunicação com o mundo, seus amores, suas
famílias, seus amigos, seus cronistas;
–
impedir que os familiares de presos sejam punidos além da estigmatização que já
sofrem;
–
transformar a ideologia do combate em grandes instaurações de mediações horizontais no sentido do desarmamento;
–
diminuir em grande proporção o número de policiais, desarmando-os e transformando-o em agentes coletivos de defesa civil, invertendo o sentido da segurança
pública da guerra contra os pobres para o amparo aos efeitos das ruínas da natureza sob o jugo do capital;
–
legalização do segundo emprego de policiais e bombeiros;
–
ampliação e fortalecimento da Defensoria Pública;
–
fim da exposição dos “suspeitos” para a mídia e restrições ao noticiário emocionalizado de casos criminais, que aniquila o direito a um julgamento por juízes
isentos.54
São políticas concretas e que tem como fim último o cárcere. Talvez possamos transcender à Ferrajoli e pensarmos não apenas no “como?”, outrossim no “por quê?”. Esquecemos nosso número vergonhoso de presos, as cifras ocultas exorbitantes para crimes de
homicídio, os estonteantes níveis de reincidência e o simbolismo (apenas para os clientes
não habituais) do sistema penal.
52 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. 9. ed. Madrid: Trotta, 2009. p. 203-204.
53FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2010.
p. 416-418.
54 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 115.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
É necessária atenção para algumas alterações legislativas. Muitas vezes reformar significa manter como está. Alterar a superfície, sem que o fundo seja tocado. Transcender à
crise presente, já articulando a próxima. Sujeita ao controle. Preferencialmente penal.
Fazer o possível é tão sedutor quanto o populismo punitivo. É a saída. A via de mão
única que justifica a ausência de liberdade do outro com a manutenção da própria liberdade. Paradoxo do próprio sistema penal: a dor sofrida, a dor imposta.
Necessário pensar sobre a possibilidade de alterações estruturais, manifestadas em
uma desejável política não criminal. Esta seria realizável a partir da leitura das categorias do
sistema penal desde a redução de dor. Como? Apenas através de um amplo debate, somente
possível após a conscientização dos atores político-criminais dos efeitos da cultura punitiva
em nosso meio.
Precisamos refletir sobre a real utopia: descriminalização de condutas ou o autofágico
e suicida55 sistema penal (oni)presente?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que estejamos ainda sobre os efeitos de recessão econômica, globalmente falando, causados pela crise do mercado imobiliário, especialmente desde 2007, a indústria
do controle do crime segue em franca expansão. Não só: apresenta-se como lucrativíssimo
negócio.
A segurança é a mercadoria da vez. Impulsionada por nossos medos e nossa falta de
criatividade em respondermos ao desafio de Gustav Radbruch. Esperamos tempo demais.
Vidas foram ceifadas, famílias (de vítimas e ofensores) aniquiladas e o sistema penal segue
sua marcha de expansão em ritmo vertiginosamente acelerado.
Apesar das fraturas do sistema penal, entre elas a fragilidade dos testemunhos em função das sugestionabilidades nas entrevistas policiais e forenses, permanece em pé. Seus joelhos não possuem condições de sustentar o resto do corpo, no entanto a metafísica (na qual
se encontra ancorada grande parte das justificações da pena) faz com que siga espalhando
dor e sofrimento. Até quando?
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque. 1.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
55 No sentido de Zaffaroni: “Se a intervenção do sistema penal é, efetivamente, violenta, e sua intervenção pouco apresenta
de racional e resulta ainda mais violenta, o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquela que,
perigosamente, já produz o injusto jushumanista a que continuamente somos submetidos. Por conseguinte, o sistema
penal estaria mais acentuando os efeitos gravíssimos que a agressão produz mediante o injusto jushumanista, o que
resulta num suicídio” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro –
Parte geral. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2011. p. 78).
247
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
ÁVILA, Gustavo Noronha de; GAUER, Gabriel José Chittó. Presunção da inocência, mídia, velocidade e memória – Breve reflexão transdisciplinar. Revista de Estudos Criminais, v. VII, p. 105-113,
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250
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
Doutrina
A Criminologia Atual em Comparação com a Anterior
HUMBERTO SANT’ANA
Advogado Criminal.
Cresce assustadoramente a função do usuário por culpa da sociedade que vivemos,
sendo coniventes com esses jovens entregues ao vício. Estranha-se diante de tanta negligência é que, tanto nas prisões como fora, o uso e o tráfico de drogas são existentes, pois não
há por parte das autoridades públicas consciência lógica que não seja a busca do material.
Ora, analisando friamente a situação ocorrida no Estado do Maranhão, lamentavelmente temos que informar que nós, seres humanos, exercitamos a nossa educação a pessoas
impróprias para tal, motivo pelo qual esses elementos necessitam de tratamento proporcional à sua extravagância à sociedade.
Como inserem grandes veículos de comunicação, e baseados em dados da ONU,
mostram que, dos 550 mil presos do país, 217 mil estão presos em caráter provisório. Soma-se a isso o fato de que boa parte dos detentos condenados ao regime aberto ou semiaberto cumpre a pena em regime fechado, o que contribui para o quadro de superlotação
dos presídios.
Porém, o governo, na sua ânsia política, se preocupa em abrir presídios para angariar
faturamentos. Não bate de frente com o problema de sua competência, e, ao apostar na
ostensiva contenção de setores marginalizados, o Estado é responsável pela produção de
uma crescente população carcerária, o que, inevitavelmente, leva a uma também crescente
demanda de criação de novos presídios. E não por mera conveniência, a privatização do
cárcere surge como solução atrativa para a construção e prestação dos serviços nas unidades.
As mortes ocorridas no presídio maranhense de Pedrinhas desde o ano passado abalou
a opinião pública e foi pauta de inúmeras chamadas midiáticas nas últimas semanas. Embora foca-se na crueldade dos presidiários que se pretendeu privilegiar em diversos veículos de
comunicação, vale a reflexão mais ampla sobre o sistema penitenciário brasileiro.
Não é de se espantar que se repitam periodicamente massacres e tragédias dentro de
tais unidades. Passados vinte e um anos do evento conhecido por “Massacre do Carandiru”, ocorrido no Estado de São Paulo, onde contabilizou-se a morte de 111 detentos,
não resultou melhoria no sistema penitenciário, pelo contrário, agravaram-se. E piorou,
251
Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
pois, na atualidade, contamos com uma população carcerária de mais de meio milhão de
pessoas.
Paradoxalmente ao objetivo da prisão, que é a educação do detento, não temos isso
em resultado, pois estima-se que, em média, 60% dos presos primários retornam à prisão,
ou seja, a reabilitação proposta não surte o efeito desejado. Leva-se a crer que o Estado não
atua de forma eficiente na e que a estrutura de um sistema criminal calcado no encarceramento das massas vem ruindo.
Independentemente da lógica do encarceramento ou suas prováveis consequências:
ao contrário, quando estas são escancaradas em episódios como o de Pedrinhas, ecoa o
silêncio das autoridades, que se posicionam de maneira superficial em um assunto tão seríssimo. Justificar que o motivo da violência advém da riqueza de seus habitantes culmina em
um estorvo de falsidade.
Não sou defensor da pena de morte, porém, desconsiderando os princípios dos recursos humanos, que, em seus gabinetes, apenas criticam e tecem comentários nocivos às
instituições, deveriam eles cuidar e solucionar esse problema nocivo e monstro, pois, por
experiência na área, não acredito na recuperação de cidadãos tão maldosos.
Ora, não aceitasse a ideia na prática de males tão ignóbeis, como a pedofilia, estupro
ou ato similar, tampouco um assassinato a sangue frio
Faço-me sempre esse questionamento, quando um elemento tão perigoso que pratica
um delito dessa gravidade, ao chegar ao sistema prisional, detém garantias de segurança
que, em tese, a sua vítima não teve, pois, no sistema carcerário, corre risco de vida. Pois o
sistema prisional implanta uma “justiça” do olho por olho, dente por dente.
Assim, as atrocidades ocorridas no Sistema Penitenciário Maranhense não deveriam
causar tanta perplexidade, já era tragédia anunciada. Há evidências da falha governamental
no trato e controle da situação, sem esquecer que estamos em ano de Copa do Mundo e
eleições políticas.
Estamos falando do Estado mais pobre da nossa Federação, no qual faltam recursos
para investimentos básicos, como educação, saúde e transporte. Não demorou tanto, e a
falta de investimentos atingiu também o sistema penitenciário.
Os presídios maranhenses sofrem com a falta de comando do Estado, assim, o domínio
dos presídios recai para duas facções criminais que dominam o Estado. Conflito entre elas
tem gerado esses atos violentos, virulentos e sanguinários.
O poder das drogas é disputado usuário a usuário, no qual quem tiver mais, terá
maiores lucros, terá domínio territorial. O traficante que, em alguns casos, se intitula “comerciante da ilicitude”, quer ganhar mercado, assim, tende a eliminar a concorrência com
mortes violentas, implantando a filosofia do medo tangenciado. O temor domina a sociedade.
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
A violência sexual, os assassinatos e as decaptações vislumbram o poder que um grupo
pode exercer sobre o outro por meio da violência. Assim, questiono-me, pois, profissional
de longa data na área criminal e frequentador do sistema prisional paulista, nunca consegui
passar pelo detector de metal com uma moeda. Como será que esses detentos conseguem
tantos artefatos para esses atos? E as drogas? E os telefones?
A vida mostrou-me caminho árduo, pois desde os 12 anos de idade trabalho para ajudar no sustento da minha família, não tive oportunidade de estudar na cidade do interior do
Estado da Bahia, vim ganhar a vida no Estado de São Paulo. Me objetivei, estudei, constitui
família, sempre consciente de minha obrigação com a sociedade.
O homem que só dá valor aos bens materiais, perde seu senso social. Jamais fui desonesto, corrupto e não aceito a estupidez mental dos nossos governantes, que só pensam
no próximo mandado, esquecendo as principais obrigações do Estado de Direito com seu
povo.
Assim, pela omissão dos nossos governantes, a liberdade impera nas manifestações,
invasões ou rebeliões, na intersecção e aplicação dos seus direitos garantidos pela Constituição.
Nós não podemos estranhar o conchavo político que acontece por trás de todos esses
atos de rebeldia. Assim, nossa atual presidente encaminhou para o Estado do Maranhão o
digníssimo Ministro da Justiça para ajudar na tratativa em coibir a falha da governadora,
pois, fosse esta determinada, tomaria as providências cabíveis e arcaria com as suas responsabilidades como mandatária política.
Temos que procurar com urgência despertar em nossos governantes, modificar a lei
das execuções criminais que tantos benefícios oferecem a marginais indignos de quaisquer
benefícios. Vamos extrair sistema prisional, o povo ainda não está preparado, razão pela qual
tem que ser modificado, pois o elemento cumpre a pena, e, sendo, posteriormente, beneficiado com regime menor, não tendo emprego ou trabalho, imediatamente, volta a delinquir.
A corrida em busca da delinquência é imediata, e isto porque esse elemento sabe que
a pena posteriormente obtida não irá trazer consequências futuras, pois, na somatória aplicada, não irá sofrer acréscimo.
Os nossos governantes, na ambição eleitoral, distribuem secretarias para partidos
políticos aliados, visando unicamente à manutenção no cargo, angariando votos, porém
colocando nesses cargos pessoas sem conhecimento técnico que consigam dirigir essas administrações, simplesmente por ser um detentor de um curral de votos.
Não entra-se no mérito da governança maranhense, porém, como brasileiro e com
setenta anos vivendo nesse País, jamais esqueceria as desavenças causadas por nossos governantes.
Como prova dessas minhas críticas, ressalvo, sem pedir autorização ao senhor Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, que submetendo políticos corruptos, em pro-
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Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal
O Sistema Prisional e o Impacto Carcerário
cesso criminal que, após uma condenação cujos recursos cessaram em todos os tribunais,
sente-se forçadamente a cumprir o que lei manda: prendê-los.
Porém, sua decisão está sendo avacalhada com a falta de respeito ao titular Magistrado
máximo do nosso País.
Há muito me envergonha a situação do meu País, que, em momento como este, está
sofrendo um desrespeito total de uma luta da qual participei para modificação desse País,
pelo movimento das “Diretas Já”, no qual bradávamos a plenos pulmões “o povo unido jamais será vencido” em passeata pelas ruas da Cidade de São Paulo.
Parece que, para nós, tudo que existia naquele momento era fantasia do diabo.
Queríamos mudanças, mudança tivemos. E daí? Fora corrupções, o que mais alcançamos
aqui? O povo continua sem moradia, sem saúde e sem dinheiro, e parte deste está na mão
de canalhas.
Orgulho-me de não pertencer a nenhuma classe política, para que eu não carregue
para meu túmulo essa nódoa, em detrimento ao desgaste do povo desta Nação.
Hoje, temos um INSS falido, cogitando-se aumento da idade do trabalhador para utilização do seu direito. Temos uma Caixa Econômica que angaria do trabalhador fundos para
uso na construção de moradias, porém o que vemos são invasões da população em prédios
abandonados, buscado também pelo seu direito.
Será esse o nosso cotidiano? Viveremos essa constante das situações de barbárie presenciadas no cotidiano das cadeias? Os setores marginalizados seguem sendo o alvo preferencial de nossa política de segurança pública, têm como pano de fundo a demonização de
um perfil idealizado do agente criminoso. Quem encarna a figura do “bandido” pertence à
parcela da sociedade que só entra no sistema jurídico enquanto réu, reincidente, criminoso,
e não como sujeito de direitos, ou seja, o pobre e favelado.
O nosso sistema penitenciário é falido, incapaz de suportar a grande demanda e de
realizar os seus propósitos de ressocialização. São ambientes hostis, selvagens e antros de
oportunidades de aperfeiçoamento da estrutura de um criminoso. Muito embora o cenário
seja de esgotamento, o que se observa é uma cruzada cada vez maior por mais encarceramento e um injustificável escopo da máxima segundo a qual “bandido bom é bandido
morto”.
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Revista SÍNTESE
Direito Imobiliário
ASSUNTO ESPECIAL
Direito de Preferência
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Doutrina
O Direito de Preferência na Alienação de Quinhão em Imóvel Integrante de Condomínio
Necessário
ROBSON DE OLIVEIRA
Advogado, Pós-Graduado em Direito Imobiliário, Militante na Área de Direito Imobiliário do Escritório Demarest Advogados, Especialista em Direito Imobiliário.
Colaboração: Chrystiane Domingos
Militante na Área de Direito Imobiliário do Escritório Demarest Advogados.
Primeiramente, cumpre definir o instituto do condomínio, situação por meio da qual
dois ou mais indivíduos são proprietários do mesmo bem. No entender do ilustre Jurista
Caio Mário da Silva Pereira, define-se condomínio da seguinte forma:
Dá-se condomínio quando a mesma coisa pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada
uma delas igual direito, idealmente, sobre o todo e cada uma de suas partes. [...] A cada
condômino é assegurada uma quota ou fração ideal da coisa, e não uma parcela material desta. Cada cota ou fração não significa que a cada um dos coproprietários se reconhece a plenitude dominial sobre um fragmento físico do bem, mas que todos os comunheiros têm direitos
qualitativamente iguais sobre a totalidade dele, limitados, contudo, na proporção quantitativa
em que concorre com os outros coproprietários na titularidade sobre o conjunto.1
Já no que diz respeito à alienação de quota-parte a terceiros, cumpre observar que,
primeiramente, o coproprietário deverá comunicar sua intenção aos demais consortes, para
que estes exerçam seu direito de preferência, conforme o disposto no art. 504 do Código
Civil Brasileiro, in verbis:
Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se
outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da
venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer
no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência.
Apenas para corroborar tal entendimento, o eg. Superior Tribunal de Justiça manifesta-se no mesmo sentido, conforme se vê:
Civil. Recurso especial. Condomínio. Alienação de parte ideal por condômino. Estado de indivisão do bem. Direito de preferência dos demais condôminos.
1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 175/176.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Na hipótese de o bem se encontrar em estado de indivisão, seja ele divisível ou indivisível, o
condômino que desejar alienar sua fração ideal do condomínio deve obrigatoriamente notificar os demais condôminos para que possam exercer o direito de preferência na aquisição, nos
termos do art. 1.139 do CC 1916.
Precedentes da Quarta Turma.
Recurso especial conhecido e provido.
(STJ, REsp 489.860, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 27.10.2004)
Neste mesmo sentido é o entender do col. Tribunal do Estado do Paraná, in verbis:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE PREFERÊNCIA CUMULADA COM DEPÓSITO JUDICIAL DO
PREÇO – COMPRA E VENDA – CONDOMÍNIO PRO INDIVISO – QUOTA IDEAL – NECESSIDADE DE CONSENTIMENTO DOS DEMAIS CONDÔMINOS E DIREITO DE PREFERÊNCIA – APLICAÇÃO DO ART. 504 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 (ART. 1.139 DO CÓDIGO
CIVIL DE 1916) – SENTENÇA CASSADA – REMESSA DOS AUTOS À ORIGEM – RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO – Em se tratando de condomínio pro indiviso, ou seja, em que os
condôminos são proprietários de porções ideais, que não foram previamente definidas, embora o imóvel seja faticamente divisível (área superior ao módulo rural), para que haja a divisão
da coisa comum faz-se necessário, primeiramente, o consentimento dos demais condôminos,
bem como que seja observado o direito de preferência destes, o que não ocorreu no caso em
tela. Ante a inobservância do direito de preferência, a sentença deve ser cassada, devendo os
autos retornarem à origem para o prosseguimento do feito, inclusive com a citação do terceiro
adquirente do imóvel, o qual é litisconsorte necessário, nos termos do art. 47 do Código de
Processo Civil.
(TJPR, 18ª C.Cív., Rel. Luiz Mateus de Lima, Data de Julgamento: 05.10.2005)
Assim, é de fácil constatação a obrigatoriedade da oferta da quota-parte aos demais
proprietários do bem em condomínio.
Na hipótese de a alienação ocorrer sem que haja a notificação dos demais condôminos
para exercer ou não a preferência, a jurisprudência entende pela nulidade do ato jurídico.
Assim é o entendimento do ilustre Desembargador Luiz César Nicolau, integrante do
eg. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, nos autos da Apelação nº 419.059:
A falta de comunicação/notificação do condômino interessado em alienar a sua cota-parte
na comunhão de qualquer bem imóvel aos demais comunheiros, para que possam exercer o
direito de preferência, via de consequência, importa na nulidade do ato jurídico, bem assim
do próprio documento público formalizador do ato, impondo-se, desse modo, o acolhimento
da pretensão desenvolvida retratada na petição inicial.
Importante observar que, considerando o prazo de 180 dias previsto no art. 504 do
Código Civil, o negócio jurídico deixará de ser nulo e passará a anulável no momento em
que os condôminos interessados tomarem ciência da transação.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Neste momento, os coproprietários terão, no prazo de 180 dias, a liberalidade de
ajuizar uma ação judicial, tecnicamente conhecida por adjudicação compulsória, devendo
depositar o valor estipulado do negócio, com o fim de reivindicar para si a quota-parte alienada a terceiro estranho.
Além disso, na hipótese de a notificação da alienação da quota-parte ser enviada aos
demais coproprietários, estes deverão manifestar seu direito de preferência na aquisição.
Nesse caso, embora o Código Civil, em seu art. 504, não defina prazo específico para tal
manifestação, esta deverá ser realizada em prazo razoável.
Neste sentido é o entender dos atualizadores da obra do ilustre jurista Pontes de Miranda, conforme demonstra-se:
A falta de previsão no Código, a melhor forma de suprir a lacuna do art. 504 está nas seguintes
teses: (a) o condômino-alienante é livre para assinar um prazo de resposta aos outros coproprietários; (b) esse período deveria conferir tempo razoável à reflexão dos afrontados, assim
entendido um prazo não inferior a trinta dias. O efeito da inércia dos demais condôminos é a
perda do direito de preferência que se lhes atribuiu o art. 504.2
Não obstante o quanto anteriormente exposto, importante salientar que o Código Civil
Brasileiro, em diversos temas, considerou como prazo razoável aquele não inferior a trinta
dias, conforme se pode comprovar na leitura dos arts. 303, 592, 1.081, § 1º, 1.109, 1.145 e
1.481 e, taxativamente, o art. 1.807.
Com relação à legislação esparsa, encontramos na Lei nº 6.404/1976 (“Lei das S/A”),
em seu art. 171, § 4º, previsão de que o prazo para exercício do direito de preferência em
caso de venda de quotas é de, no mínimo, 30 dias.
Importante analogia, por fim, encontra-se ainda na Lei nº 8.245/1991 (“Lei de Locações”), a qual prevê, em seu art. 28, o prazo de trinta dias, após ter sido notificado, para
o locatário exercer o seu direito de preferência.
Assim, concluímos que (i) a venda de quota-parte de condomínio tem como premissa indispensável à sua validade a notificação dos demais condôminos para que possam
exercer ou não o seu direito de preferência; (ii) o prazo para resposta, embora não assinalado pela lei deve ser um prazo considerado razoável para que o notificado tenha a
oportunidade de avaliar a proposta recebida pelo condômino, assim como os documentos relativos à proposta venda; (iii) entendem a doutrina e a jurisprudência que um prazo razoável não seria inferior a trinta dias; (iv) a falta de notificação dos demais condôminos para que exerçam o direito de preferência acarreta a nulidade do ato de venda;
(v) o condômino preterido no seu direito de preferência tem o direito de, no prazo de 180
dias após tomar conhecimento da venda, depositar o preço pago pelo terceiro e requerer a
adjudicação compulsória para si do quinhão vendido; e (vi) da data em que o condômino
tomar conhecimento da venda até o final do prazo de 180 dias que se seguem, o ato de
venda passa a ser anulável.
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Direito de Preferência
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Luana Cristina Coutinho Orosco Plaça
Advogada, Aluna da Pós-Graduação no Curso de Direito Civil e Processo Civil das Faculdades Integradas
Antonio Eufrásio de Toledo, de Presidente Prudente.
RESUMO: O Direito de Preferência é um instituto da Lei de Locação, que gera proteção ao Locatário na alienação do imóvel para que ele não seja preterido em seu direito. Por isso, deve ser delimitado e estudado para
que não configure um enriquecimento ilícito por parte do Locador.
PALAVRAS-CHAVE: Direito de Preferência. Alienação do Imóvel. Locatário. Locador.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Evolução histórica; 2 Da especificação do direito de preferência no preceito legal; 2.1 O artigo 27 da Lei nº 8.245/1991; 2.2 Do artigo 28 da Lei nº 8.245/1991; 2.3 Do artigo 29 da Lei
nº 8.245/1991; 2.4 Do artigo 30 da Lei nº 8.245/1991; 2.5 Do artigo 31 da Lei nº 8.245/1991; 2.6 Do artigo 32
da Lei nº 8.245/1991; 2.7 Do artigo 33 da Lei nº 8.213/1991; 2.8 Do artigo 34 da Lei nº 8.245/1991; Conclusão;
Referências.
INTRODUÇÃO
O Direito de Preferência é um instituto previsto na Lei nº 8.245/1991 para resguardar o
direito do inquilino, ora locatário da aquisição do imóvel, quando o locador queira alienar
o imóvel.
Por isso, o locador, pretendendo alienar o imóvel, deve obrigatoriamente realizar a
proposta ao locatário, com todas as suas especificações, como valor, formas de pagamento,
condições do negócio jurídico para que o locatário exerça seu direito, em superioridade ao
de terceira pessoa.
1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA
No Brasil, o Direito de Preferência advém da Lei nº 3.912/1961, a qual estabelecia este
direito na cessão, na promessa de compra e venda e na dação em pagamento, ou seja, era
um instituto da compra e venda. Como as regras de locações não vislumbravam tal instituto,
eram aplicadas subsidiariamente os preceitos legais de compra e venda, para a solução dos
litígios encontrados no momento da alienação do imóvel.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Devido à omissão, aplicava também o Código Civil de 1916 no seu art. 1.149, que
preceituava sobre a perempção e preferência, tendo como principais características a intransmissível, indivisível e com prazo de caducidade, se não exercido no prazo previsto em
lei que eram de 3 (três) dias.
A Lei nº 4.494 especificava em seu art. 16, o instituto da preferência para alienação,
promessa de compra e venda a prazo ou em prestações, cessão de direitos sobre o imóvel,
e caso o locador não desse a devida notificação ao locatário que estava vendendo o imóvel
e alienasse a terceira pessoa, o locatário teria direito apenas as perdas e danos.
De outro modo, a Lei nº 6.649/1979, em seus arts. 24 e 25, trazia como consequência
da não utilização do instituto da preferência mediante o locatário, a possibilidade de este
último ingressar com ação de adjudicação para reaver o imóvel, tornando-se ineficaz o
negócio jurídico realizado entre locador e terceira pessoa, no caso, o adquirente do imóvel
alienado.
Estes artigos desta lei foram criados com base no art. 1.119 do Código de Processo
Civil, no intuito de viabilizar uma maior segurança ao locatário para não ser preterido em
seu direito.
Importante mencionar que o § 5º do art. 24 da Lei nº 6.649/1979 foi também aplicado
ao Decreto-Lei nº 24.150/1934, aplicável também a todas as locações prediais urbanas,
comerciais ou residenciais, e para os estabelecimentos de saúde, ensino, hospitais.
Contudo, este dispositivo legal do art. 24 era omisso em relação ao direito do condômino, a preferência, trazendo a expressão “terceiros”, que era confundida com estranhos, ao
domínio, ao invés de condôminos, aplicando, assim, o art. 1.139 do Código Civil de 1916.
Entretanto, o preceito legal do art. 24 levava a várias interpretações.
Assim, foi feito um projeto de lei acrescentando o § 6º ao art. 24 e os §§ 1º e 2º ao art.
25, impondo a preferência ao condômino em relação à alienação do imóvel e ao direito a
indenização por perdas e danos ao locatário em face do locador pela falta de seu direito.
Logo, encerrando-se a conclusão dos artigos alterados, mais o que já estava especificado em lei, para o locatário ingressar com ação adjudicatória deve seu contrato de locação
estar averbado na matrícula do imóvel há pelo menos 30 dias antes da alienação do imóvel,
posto que, se não, o locatário terá direito apenas a uma indenização por perdas e danos
do locador. Sem o registro do contrato de locação, o direito não será oponível a terceiro,
adquirente.
A modificação trazida pelo § 6º do art. 24 é com relação ao prazo de resposta dado
ao locatário, haja vista que, se o locador notificasse o locatário da alienação do imóvel,
cumprindo com o requisito da preferência previsto em lei, e não houvesse tido resposta,
este silêncio extinguia a preferência do locatário em relação ao imóvel, podendo o locador
continuar com o seu negócio.
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Direito de Preferência
O art. 46 da Lei nº 6.649/1979 mencionava a impossibilidade de renunciar ao direito
de preferência em cláusula no contrato de locação.
Todavia, havia ressalvas em relação a este direito, que não consagrada na venda judicial, permuta e doação. Para Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe (2000, p. 159), o locatário figurava como concorrente de terceiro em igualdade de condições e poderia alegar
o direito de preferência do condômino para se sobrepor ao terceiro.
Com o advento da Lei nº 8.245/1991, o direito de preferência passou a ser disciplinado nos arts. 27 a 34 para todos os tipos de locação, visando um maior resguardo no direito
do locatário em continuar residindo na casa.
Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe (2000, p. 160) trazem as hipóteses em que
não é possível utilizar este instituto:
Mas não abrange os casos de perda da propriedade ou venda por decisão judicial, permuta ou
doação e outros enumerados no art. 32, como integralização de capital, cisão, fusão e incorporação, da Lei das Sociedades Anônimas, entre outros.
Portanto, o locador, querendo vender o seu imóvel, deve primeiramente comunicar ao
locatário da intenção de alienar o imóvel, propondo-lhe um valor sobre o imóvel e mostrando-lhe uma proposta razoável para que possa requerer o imóvel como seu.
2 DA ESPECIFICAÇÃO DO DIREITO DE PREFERÊNCIA NO PRECEITO LEGAL
2.1 O artigo 27 da Lei nº 8.245/1991
O locatário tem direito de preferência sobre a coisa, bem imóvel, sendo um direito
natural dos contratos de locação.
Assim, antes de alienar o bem a terceiro, o locador deve obrigatoriamente oferecer o
bem ao locatário, em igualdade de condições com terceiro, com a proposta concreta do
bem, especificando preço, forma de pagamento, existência de ônus reais, momento para
examinar os documentos relativos ao imóvel.
Inclusive, se o locador possui uma proposta efetiva da venda do imóvel dado por
terceiro, deve dar ciência ao locatário de toda a proposta, como, por exemplo: A (terceiro)
fez uma proposta para alienar o imóvel de B (locador) para pagar 100 mil reais à vista. B
comunica C (locatário) da proposta de A. Mas C faz uma proposta de 100 mil reais divididos
em 4 prestações. Demonstra-se com este exemplo que o locatário não está em igualdades
de condições com o terceiro, devendo haver uma renegociação ou a desistência por parte
do locatário.
A cada proposta de terceiro ao locador este deve notificar o locatário, sob pena de
infringir o direito de preferência estipulado em lei.
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2.2 Do artigo 28 da Lei nº 8.245/1991
A preferência do locatário deve ser exercida em um prazo razoável, não podendo
cercear o direito do locador na venda do imóvel. Assim, após notificado, o locatário tem um
prazo de 30 (trinta) dias para se manifestar sobre a proposta, se continua inerte e não dá a
devida resposta, o seu direito de preferência caducará, podendo o locador realizar a venda
com terceiro, sem o receio de estar infringindo qualquer direito do locatário.
Com a observância de que não poderá fazer contraproposta, esta será uma recusa
expressa.
Nesta seara, salienta a jurisprudência que trata a matéria como uma decadência ao
direito de preferência:
É de decadência o prazo de que dispõe o locatário para exercer o direito de preferência na
aquisição do imóvel locado. Decorrido esse prazo, não pode mais o inquilino obter a adjudicação compulsória, nem mesmo reclamar perdas e danos. (Rel. Adail Moreira, 2º TACivSP,
Ementário nº 14/1991, DOE – Poder Judiciário, de 13.07.1991, p. 86)
Porém, caso o locatário aceite a proposta ofertada pelo locador em relação ao preço,
prazos e questões relacionadas ao negócio, deverá, assim, colocar-se prontamente à disposição do locador, não podendo provocar qualquer empecilho ao seu negócio, fazendo
com que o mais rápido possível possa vir a ser dono da coisa de que era apenas um possuidor, mas sem o poder de alienar, doar.
De outro modo, também poderá o locatário renunciar, ou seja, desistir da compra do
imóvel locado, neste prazo de 30 (trinta) dias, assinando um termo expresso, contendo as
suas declarações de desistência daquele negócio jurídico e renúncia ao seu direito, na qual
expressamente diz que não possui nenhum interesse na venda daquele imóvel.
A contagem desse prazo é conforme o Código de Processo Civil, 30 dias úteis, não
importando se o mês tem 31 dias, e exclui o dia do começo e inclui o dia do final.
Uma questão interessante trazida por Aramy Dornelles da Luz (1992, p. 39) é em
relação à sublocação autorizada de forma escrita pelo locador: poderia este ter o real direito
a ser notificado para exercer o seu direito?
Como se trata de locatário, na forma de sublocatário ele terá direito de exercer essa
preferência, se sublocou totalmente o imóvel ou parte dele, supondo-se a ideia de um condomínio. Em todas as formas, ele terá que exercer seu direito.
2.3 Do artigo 29 da Lei nº 8.245/1991
Com a aceitação da proposta pelo locatário, a desistência do locador neste negócio
pode ocasionar uma indenização por perdas e danos, culminando uma responsabilidade
pré-contratual, desde que o locatário demonstre os prejuízos que realmente ocorreu, para
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Direito de Preferência
que a ação tenha um objeto, uma maneira de ser, nos termos do art. 406 do Código Civil,
enquadrando-se os danos emergentes e os lucros cessantes, aquilo que razoavelmente deixou de ganhar.
O locador somente poderá eximir-se desta responsabilidade se provar caso fortuito ou
força maior, posto que esta norma defende o locatário de um locador que esteja sobre máfé, apenas simulando a realização do negócio para despejá-lo da casa.
Assim, havendo modificações nas cláusulas da proposta, o locatário deve ser novamente notificado para manifestar a sua aceitação íntegra ao negócio para que não haja
nenhum tipo de subterfúgio por parte do locador.
2.4 Do artigo 30 da Lei nº 8.245/1991
Como o imóvel foi locado e sublocado, possuem vários locatários e sublocatários,
todos devem exercer o direito de preferência sobre o todo, o qual, para ser exercido, deve
o contrato de locação estar averbado na matrícula do imóvel há pelo menos 30 (trinta) dias
antes da efetiva alienação.
Entretanto, caso haja a efetiva alienação e os locatários estavam de boa-fé, estes possuem o direito de anular a venda, se não foi exercido seu direito.
Da mesma maneira, acontece no arrendamento rural.
O sublocatário poderá exercer o direito de preferência se o imóvel estiver sublocado
por inteiro a ele, e o locatário não terá direito algum. Apenas se o sublocatário renunciar à
venda do imóvel o locatário poderá exercer seu direito como cedente, posto que o verdadeiro locatário é o sublocatário que está utilizando totalmente do imóvel. Contudo, caso se
trate de sublocação parcial, o direito será exercido pelo locatário. Na sublocação clandestina, o direito de preferência seria do locatário.
Se na venda do imóvel estão interessados mais de um locatário ou mais de um sublocatário, o direito poderá ser exercido por aquele que esteja mais tempo no imóvel, e, no
caso de empate, pelo mais velho. Mas todos os locatários e sublocatários devem ser notificados da proposta de venda do imóvel, pois todos têm em comum o direito de preferência.
Também esse direito de aquisição do imóvel pode ser realizado em conjunto por vários locatários que se tornaram condôminos.
2.5 Do artigo 31 da Lei nº 8.245/1991
Percebe-se aqui um caso muito interessante de venda de um imóvel edificado na qual
há vários locatários, em que o locador pretende vender não só um bem isolado, uma unidade de forma fracionada, mas o imóvel todo. Trata-se, assim, de uma obrigação indivisível
a venda do imóvel a um locatário.
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Direito de Preferência
Desta forma, todos os locatários devem ser notificados da intenção da alienação do
imóvel em sua totalidade, mas não poderão exercer o direito de preferência para adquirir
somente parte dele.
O que se vislumbra não é a formação de condomínio, e sim a alienação a um único
dono.
Importante destacar que, caso um locatário seja preterido ao seu direito de preferência, deve demonstrar o prejuízo e que realmente tinha intenção de alienar o todo e não
apenas parte do imóvel, ou seja, não pode querer apenas a alienação de sua unidade caso
se trate de um prédio de apartamentos, nos termos da jurisprudência a seguir salientada:
Se houver preterição do direito, o inquilino de parte do conjunto imobiliário, que tenha sido
alienado em sua totalidade, deverá pleitear a adjudicação de todo o imóvel, desde que preencha, como é curial, os demais requisitos legais (JTACSP 112/275).
Mais uma vez, Aramy Dornelles da Luz prevê que caso o locador não consiga vender o
imóvel por um todo, poderá vender de forma fracionada, dando novamente a notificação a
cada um dos locatários e sublocatários dessa nova intenção, não podendo preterir o direito
de preferência, mesmo que a lei seja omissa em relação a esta situação.
2.6 Do artigo 32 da Lei nº 8.245/1991
Em alguns casos, o direito de preferência não pode ser exercido por impossibilidade
jurídica do pedido, como nos casos de perda da propriedade (desapropriação, alienação,
renúncia, usucapião, deterioração do imóvel que leva ao perecimento, arrematação em praça de bens, venda judicial, execução, falência), troca, doação e nos casos de integralização
do imóvel.
Na perda da propriedade não há nenhuma possibilidade, troca também não poderia
ser vislumbrada, porque troca por objeto certo, móvel ou imóvel, e a doação contempla
pessoa certa para se tornar um donatário. Somente a simulação, ou seja, fraude nestes negócios jurídicos apenas para não conceber o direito do inquilino que poderá esse direito ser
exercido.
A integralização, fusão, incorporação e cisão são maneiras de formação das pessoas jurídicas, alienações que diferem totalmente da preferência prevista nesta lei para o inquilino.
Denota-se que esta regra adveio para proteger o locador, o qual, nestas hipóteses, não
ficará obrigado a notificar o locatário para realizar o seu direito, que não possui e que a
legislação pertinente sempre o protege.
Portanto, o direito de preferência tem limites essenciais ao qual não pode ser exercido
em nenhum dos negócios jurídicos mencionados no corpo deste artigo, e nem nos casos
de constituição da propriedade fiduciária, perda da propriedade e venda pelas formas de
garantia.
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Direito de Preferência
2.7 Do artigo 33 da Lei nº 8.213/1991
Configura-se o direito do locatário optar por duas soluções caso seja preterido em
seu direito de preferência, requerer as perdas e danos ou reaver o imóvel alienado, com o
depósito do valor do imóvel mais as despesas constantes da escritura do imóvel na venda.
Não poderá haver a renúncia a este direito de exigir perdas e danos ou reaver o imóvel
em uma cláusula do contrato de que estará renunciando a tal direito, a qual estará totalmente nula por se tratar de pleno direito do locatário.
O direito de exigir as perdas e danos é obrigacional, não prescindindo da observância
do prazo de 6 (seis) meses, ao qual sua prescrição é a estabelecida para as obrigações de
mesma natureza de 20 (vinte) anos (vintenária), figurando no polo passivo o alienante, mas
desde que avantajado de importância monetária para a aquisição do bem.
A demanda de reaver o imóvel é denominada de adjudicação compulsória e somente
pode ser proposta desde que presentes alguns requisitos:
Como o contrato de locação deve ser registrado há pelo menos 30 (trinta) dias antes da alienação, este instrumento contratual deve ser assinado pelas duas partes e duas testemunhas
para gerar o efeito para o contrato; propor ação num prazo de 6 (seis) meses a contar do ato
registrado no Cartório; depositar o preço pago pelo adquirente.
Nesta adjudicação compulsória haverá litisconsórcio nos polos ativo e passivo, tendo
como partes o alienante e o adquirente, podendo até constar pedidos secundários, como
perdas e danos. Caso não seja proposta no prazo de 6 (seis) meses, o locatário também não
poderá exigir perdas e danos, porque ele teve a oportunidade de ingressar com a ação para
reaver o imóvel e não o fez por desleixo.
Importante mencionar que Aramy Dornelles da Luz (1992, p. 42) “entende que estes
requisitos só devem estar presentes para a ação de adjudicação compulsória”.
Entretanto, caso não tenha sido registrado o contrato de locação, restará apenas a opção da indenização por perdas e danos.
Silvio de Salvo Venosa (2003, p. 169) salienta que, quando o locatário fica ciente do
desejo que o locador possui em alienar o imóvel, poderá registrar o contrato de locação na
matrícula do imóvel para que possua o direito real. Caso não pratique este devido ato, poderá apenas requerer uma ação de indenização, que será movida contra o alienante, desde
que provados os danos e os lucros cessantes, além de que tinha a quantia devida para a
compra do imóvel. Sem este conjunto probatório, não possuirá êxito a demanda.
Nesta seara, pormenoriza o entendimento jurisprudencial:
Locação. Direito de preferência (art. 33 da Lei nº 8.245/1991). Indenização. Perdas e danos.
Registro do contrato. Desnecessidade.
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Direito de Preferência
A violação ao direito de preferência do locatário, assegurado no art. 33 da Lei nº 8.245/1991,
enseja pedido de perdas e danos, ainda que não registrado o contrato de locação, não se sujeitando ao prazo decadencial de seis meses, aplicável este apenas ao pedido de adjudicação
do imóvel. (Ap. 430.077, 6ª C., Rel. Paulo Hungria, J. em 24.05.1995)
Portanto, existem diversas formas do locatário preterido buscar uma amenização em
seus prejuízos, tanto com o contrato de locação registrado na matrícula como se não estiver,
dando uma eficácia real ao seu direito.
2.8 Do artigo 34 da Lei nº 8.245/1991
O condômino seria um coproprietário do imóvel; mesmo que este esteja locado, aquele terá o direito de preferência em relação ao locatário na aquisição de coisa comum.
Não se trata exatamente de uma preferência, mas sim de uma prioridade em relação à
figura do locatário, que só possui um direito obrigacional, perfazendo em uma primazia de
superioridade. E caso os condôminos não exerçam o seu direito, este passa para o inquilino.
Inobstante a isto, este artigo trata da hipótese de venda de uma parte ideal e não de
uma totalidade, posto que assim os condôminos seriam os próprios alienantes. E não foi
especificado para a figura de condomínios autônomos.
Este artigo existe para proteger os condôminos que não querem terceiros estranhos no
condomínio, na qual preferem alienar dos outros condôminos para se tornar um único dono
e proprietário de todo o condomínio, desfazendo-se, assim, a figura do condomínio, não
trazendo nenhum estímulo à continuidade do condomínio.
CONCLUSÃO
Diante de todas as afirmações correlacionadas anteriormente, vislumbra-se que o direito de preferência é um direito obrigacional exercido pelo locatário em algumas hipóteses
previstas em lei, como na alienação do imóvel locado.
Entretanto, não são em todas as hipóteses que esse direito é exercido, culminando-se,
assim, em uma autonomia do locador em alguns negócios jurídicos que pode realizar com
terceira pessoa.
Portanto, o direito de preferência não é absoluto, prescinde de várias limitações para
que a figura do locador e locatário estejam em igualdades de condições, não preterindo
nem o direito de um, nem o de outro.
REFERÊNCIAS
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Fórum, 2007.
BARBI, Humberto Agrícola. Das locações residenciais e comerciais: doutrina, prática e jurisprudência. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das obrigações: parte especial: contratos. 7. ed. atual. São
Paulo: Saraiva, t. 1, 2004.
LUZ, Aramy Dornelles da. Prática da locação comercial (não residencial) e ações especiais: de
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RESTIFFE NETO, Paulo; RESTIFFE, Paulo Sérgio. Locação: questões processuais. 4. ed. rev., atual. e
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RIZZARDO, Arnaldo. Contratos: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense,
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SANTOS, Gildo dos. Locação e despejo: comentários à Lei nº 8.245/1991. 4. ed. rev., atual. e
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada: doutrina e prática: Lei
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______. Direito civil: contratos em espécie. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
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Direito de Preferência
Doutrina
O Direito de Preferência e Suas Peculiaridades1
MARIJANE FERNANDA CASSAROTTE
Consultora Jurídica Especializada em Direito Material e Processual do Trabalho.
RESUMO: Dada a diversidade de situações, de sua aplicação e a amplitude de cada uma das vertentes deste
tema, vamos nos ater ao direito de preferência como se acha contemplado na Lei do Inquilinato atual (Lei nº
8.245/1991), mesmo porque apenas essas disposições são relativamente inovadoras no Direito brasileiro.
Todas as demais já são sobejamente conhecidas, por este motivo procuraremos ser breves nestas cominações. O art. 27 da Lei nº 8.245/1991, que praticamente repete o disposto no art. 24 da Lei nº 6.649/1979,
outorga a preferência ao locatário para adquirir o imóvel, nos casos de venda, promessa de venda, cessão
ou promessa de cessão de direitos ou dação em pagamento (esta última modalidade excluída da legislação
anterior), devendo o locador (proprietário) dar-lhe conhecimento do negócio, mediante notificação judicial,
extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca. Definitivamente, na hipótese de alienação do imóvel
locado, deve o locador notificar o locatário, por qualquer das formas elencadas no citado dispositivo legal,
a fim de que este possa, querendo, adquiri-lo, exercendo, assim, sua preferência, no prazo de trinta dias,
consoante assinalado no art. 28 da Lei do Inquilinato, sob pena de caducar o seu direito. Deverá, ainda, a comunicação da intenção de venda obedecer ao disposto no parágrafo único do art. 27 (novidade em relação à
legislação anterior), contendo as condições do negócio, do preço, da forma de pagamento, a ocorrência de
existência de ônus reais, bem como indicar local para exame, pelo locatário, da documentação pertinente.
O alugatário preterido na sua preferência poderá pleitear as perdas e os danos do art. 33 ou haver para si o
imóvel, observados, neste último caso, os requisitos contidos no art. 33 da Lei nº 8.245/1991, quais sejam,
depósito do preço e de outras despesas do ato de transferência, desde que o faça no prazo de seis meses,
a contar do registro do ato no álbum imobiliário, e desde que o pacto locatício se encontre averbado à margem da matrícula do bem, pelo menos trinta dias antes da ocorrência da alienação. O parágrafo único do
art. 33 contempla a formalização da averbação do contrato (sem correspondente na legislação anterior). O
inquilino preterido no seu direito de preferência que optar pelo pleito de perdas e danos contra o alienante
gozará desse valor legal, mesmo que o seu contrato locatício não esteja averbado no Registro de Imóveis
e mesmo que nem contrato escrito tenha, bastando que comprove a sua condição de locatário e o efetivo
preterimento de seu direito de preferência. Novidade em relação ao diploma anterior é a responsabilidade
do alugador por prejuízos ocasionados, inclusive lucros cessantes, caso desista do negócio quando já aceita
pelo locatário a proposta a ele feita, conforme dicção do art. 29 da Lei nº 8.245/1991, com respaldo no art.
1.080 do Código Civil, imprimindo, assim, maior seriedade e estabilidade nas relações entre as partes. A
ideia que inspira o legislador é a de possibilitar ao inquilino concorrer em igualdade de condições com terceiros, tornando-se proprietário do imóvel que ocupa. Ora, a venda judicial (sub judice), a permuta (negócio
inter pares) e a doação (intuitu personae) não representam situação de concorrência com terceiros, e,
bem assim, as ocorrências de destinação do imóvel para composição patrimonial de empresas do locador.
1 Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12114>. Acesso em: 17 mar. 2009.
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Direito de Preferência
Assim, a critério do locatário, poderá este pleitear perdas e danos do alienante, o que vinha assegurado
no § 2º do art. 25 da Lei Inquilinária anterior, quando preterido em seu direito de preferência, desde que
demonstre, como já decidido em nossas Cortes, capacidade econômica para aquisição do imóvel, e as
perdas e os danos que a conduta do locador tenha efetivamente causado (RTJAMG 24/266), não obstante
outros entendimentos jurisprudenciais em contrário (Apelação c/ Revisão nº 433.768/00-9, II TAC). Só não
prevalecerá a preferência do locatário sobre a do condômino, em havendo condomínio no imóvel objeto da
alienação, na conformidade do disposto no art. 34, o que já vinha ressalvado no anterior art. 25, § 1º. Estes
são os pontos principais do direito de preferência, os quais tentaremos expor de maneira sucinta e direta
para melhor compreensão do leitor.
SUMÁRIO: Introdução; 1 A história do direito de preferência; 2 Conceito; 3 Natureza jurídica; 4 Pressupostos processuais; 5 As modalidades de preferência; 5.1 Preferência legal; 5.1.1 A preferência do condômino; 5.1.2 A preferência do arrendatário; 5.1.3 Direito de preferência legal nas alienações de prédios
rústicos; 5.1.4 A preferência do locatário; 5.1.5 Na sociedade comercial. Integralização do capital, cisão, fusão e incorporação; 5.1.6 Na desapropriação; 5.1.7 No tombamento; 5.1.8 Na compra e venda;
5.2 Preferência convencional; 6 Distinção de outras espécies; 7 Características; 7.1 Direitos do preferente; 7.2
Obrigações do promitente; 7.3 Denominação das partes; 7.4 Extinção do contrato; 8 Do exercício do direito de
preferência; 9 A ação de preferência; 10 Das perdas e danos; Conclusão; Referências.
A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. (Rui Barbosa)
INTRODUÇÃO
Desde quando comecei a estudar a Lei do Inquilinato, percebi um nítido interesse por
várias de suas ramificações, entre elas chamou-me especial atenção a que se intitula “direito
de preferência”. Por essa razão com o presente trabalho pretende-se oferecer uma modesta
contribuição ao estudo do direito de preferência ligado à ciência jurídica.
O direito de preferência é o instituto que veio transplantado da compra e venda, onde
é peculiar. Originou-se do pactum protimiseos do Direito romano, de origem grega.
Basicamente rege o direito do locatário no momento em que o locador quer se desfazer do imóvel locado. Surge, então, o direito de compra para quem está no imóvel.
A preferência do inquilino na aquisição do prédio locado, para quando o locador
pretender alienar, já se tornou tradicional em nossa legislação do inquilinato, sendo introduzida pela primeira vez pela Lei nº 3.912, de 3 de julho de 1961.
Na natureza do negócio o comprador preterido somente tem uma ação derivada de direito pessoal contra o vendedor. Nosso Código Civil, é francamente expresso a esse respeito
quando diz que responderá por perdas e danos o vendedor que alienar a coisa sem ter dado
ao comprador ciência do preço e das vantagens que por ela lhe oferecem.
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Direito de Preferência
Responderá solidariamente o adquirente, se tiver procedido de má-fé (art. 518, antigo
art. 1.156). Por essa razão, naquilo que a lei de locações for omissa aplicam-se os princípios
tradicionais da preempção, ou direito de preferência, no que couber, tal como secularmente
aplicados à compra e venda.
Nosso trabalho se delimitará a abordar a aplicação do tema no direito moderno, procurando traçar um perfil representativo com o direito clássico.
Dessa forma, tentaremos expor ideias para o conflito atualmente visto neste campo
jurídico.
1 A HISTÓRIA DO DIREITO DE PREFERÊNCIA
A compra e venda é o mais frequente e o mais importante de todos os contratos, porque
aproxima os homens e incentiva a circulação das riquezas. Em virtude da sua importância,
o legislador colocou-a a frente de todas as demais obrigações convencionais, com grande
riqueza de minúcias, tratando também de algumas cláusulas especiais da compra e venda,
que, com o tempo, a maioria tornou-se obsoleta.
Sua origem mais remota encontra-se na permuta. Nos primórdios da civilização, os
homens limitavam-se à simples troca de objetos que lhes sobrassem por outros que ambicionassem. Era esta a única forma de movimentação dos bens.
Inegável reconhecer-se as dificuldades desse penoso sistema econômico, só admissível em uma sociedade rudimentar e com pequeno número de pes­soas. Já, com o aumento
da população, as necessidades também foram aumentando, tornando impossível a manutenção de um sistema tão rudimentar.
Vários inconvenientes foram naturalmente aparecendo, a impedir que a prática se
tornasse rotineira:
1. Encontrar a pessoa que tivesse a mercadoria sobrando que lhe interessasse;
2. Esta pessoa tivesse interesse no objeto oferecido para a troca;
3. Os objetos tivessem igualdade de valores;
4. O transporte dos objetos trocados nem sempre encontrava facili­dades.
Mesmo com a criação de feiras ou mercados de trocas, que ainda hoje são tradições
em algumas comunidades, como o “mercado de Pulgas” da Grécia, por exemplo, algo teria
de surgir mais conveniente e mais cômodo ao desenvolvimento do intercâmbio entre os
homens. Daí surgiu o contrato de compra e venda, quando se descobriu que se poderia
avaliar uma mercadoria convertendo no denominador comum de todas as trocas.
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A princípio, esse valor comutava-se em cabeças de gado (pecus, da qual derivou a
palavra pecúnia). Depois, vieram as pedras e os metais preciosos, até surgir a moeda, o
dinheiro, que não é outra coisa senão uma porção de metal precioso, medido e pesado antecipadamente, sendo dotado de certo poder aquisitivo.
Portanto, o contrato de compra e venda não passa de mera estilização da troca primitiva, aperfeiçoado, a ponto de preponderar uma sobre a outra.
No direito contemporâneo, o contrato de compra e venda pode ser examinado à luz
de três sistemas jurídicos diversos: o francês, o alemão e o sovié­tico.
Pelo primeiro, o contrato cria ao mesmo tempo o vínculo obrigacional e transfere
o domínio da coisa vendida (nudus consensus parit proprietatem). Ou seja, transfere-se o
domínio com o próprio contrato, independentemente da tradição da coisa vendida.
Somente pelo contrato o comprador torna-se o titular do domínio. Vê-se que o sistema
francês apartou-se da tradição romana consagrada pela máxima traditionibus et usucapionibus dominia rerum, non nudis pactis, transferuntur.
Para o sistema alemão, o contrato gera exclusivamente uma obrigação de dar, com o
vendedor assumindo somente obrigação ad tradendum. A transferência do domínio verificar-se-á quando da tradição da coisa vendida.
Já o sistema soviético não se prende ao contrato ou à tradição, exclusivamente, como
princípio geral transmissor da propriedade. Ambos os modos de aquisição são dotados de
igual valor, porque tem cada um deles o próprio campo de aplicação. Quanto às coisas
individualmente determinadas, a propriedade é adquirida no momento da conclusão do
contrato; quanto às coisas determinadas apenas pelo gênero, a aquisição é diferida para o
instante da tradição.
O Código Civil brasileiro filiou-se aos sistemas alemão e romano, isto é, o contrato de
compra e venda, por si só, não opera a transposição do domínio. Ele engendra exclusivamente a obrigação de dar. O art. 1.122 é taxativo: “Pelo contrato de compra e venda, um
dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo
preço em dinheiro”.
Para se efetivar a transferência da propriedade são necessárias a tradição para os bens
móveis e a transcrição para os imóveis. Antes disso, o comprador só tem contra o vendedor
um direito pessoal. A tradição e a transcrição é que dão origem ao direito real.
Vale destacar o referido no art. 620 do Código Civil: “O domínio das coisas não se
transfere pelos contratos antes da tradição”. Na mesma linha reza o art. 533: “Os atos sujeitos à transcrição não transferem o domínio, senão da data em que se transcreverem”. Confirmando o art. 860, parágrafo único: “Enquanto se não transcrever o título de transmissão,
o alienante continua a ser havido como dono do imóvel, e responde pelos seus encargos”.
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Contudo, vale apontar as exceções onde o domínio se transfere tão somente pelo
contrato. Caso do Decreto-Lei nº 3.545, de 22 de agosto de 1941, que regula a compra e
venda de títulos da dívida pública da União, dos Estados e dos Municípios, que dispõe, no
art. 8º, que “a celebração do contrato transfere imediatamente ao comprador a propriedade
do título”. De modo idêntico, o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, pelo seu art.
1º, dispõe que a alienação fiduciária transfere o domínio independentemente da tradição.
Após este rápido introito sobre o contrato de compra e venda, é útil salientar que o
Código Civil não cuidou especificamente deste instituto. Tratou, ainda, de algumas outras
cláusulas especiais, aliás, com grande riqueza de minúcias, a maioria das quais o tempo
tornou obsoletas.
Em seção autônoma do capítulo dedicado à compra e venda, o legislador disciplinou a
retrovenda, a venda a contento, a preempção ou preferência (pactum protimiseos), o pacto
de melhor comprador, o pacto comissário e a reserva de domínio.
De modo que, entre vários fatores, como as elevadas despesas que implicam a compra
e venda de um imóvel, nos dias atuais se ainda excepcionalmente utiliza-se a preferência
em suas diversas formas, quase ninguém mais recorre a uma retrovenda ou a um pacto de
melhor comprador.
O objetivo aqui é focalizar a preferência.
2 CONCEITO
Consoante a melhor doutrina, preferência é o direito de ser preferido em igualdade de
condições com terceiro. Preempção significa “direito a ser preferido como comprador”. Advém do Direito romano, sob a denominação de pactum protimiseos, que a trouxe do Direito
grego protimesis.
Segundo o art. 1.149 do Código Civil de 1916 (dispositivo correspondente no
NCC/2002, art. 513), a preempção, ou preferência, impõe ao comprador a obrigação de
oferecer ao vendedor a coisa que aquele vai vender, ou dar em pagamento para que este
use de seu direito de prelação na compra, tanto por tanto.
Mas não se deve confundir preempção com preferência. Mister se faz diferenciá-las,
para um melhor entendimento.
A preempção é espécie de preferência, sendo a primeira cláusula adjeta ao contrato
de compra e venda que pode criar, para o comprador, a obrigação de quando se decidir a
vender a coisa, notificar ao vendedor o seu preço e as suas condições, para que este, em
igualdade de condições, possa adquiri-la de volta; já, a segunda, preferência, envolve uma
maior amplitude de conceito, pois pode ser definida em lei, quando, preenchidos os seus
pressupostos, independentemente de qualquer declaração de vontade, surge o direito.
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Em outras palavras, a preempção é o pacto adjeto ao contrato de compra e venda
pelo qual o comprador se obriga a oferecer ao vendedor da coisa que lhe comprou, quando queria vendê-la, para que este, a quem foi reservado o direito de preferência, preço por
preço, o exerça em relação a eventuais adquirentes. Há, portanto, duas condições: a) que o
comprador queira vender a coisa; b) que o vendedor queira exercer o direito de preferência.
Também pode a preferência ser estabelecida por outros dispositivos legais e não configurar pacto, gerando, também, efeitos diversos, como veremos mais adiante.
Há, portanto, direitos de preferência que não tem como conteúdo a preempção e direitos de preferência que não derivam de negócios jurídicos com vendedores.
Este instituto não cria ao sujeito passivo a obrigação de vender, mas a de se desejar
vender, o fazer ao preferente, pelo mesmo preço e pelas mesmas condições que receberia
de terceiro.
Gerando para o seu titular o direito subjetivo, pois este tem a faculdade de exercer
um poder sobre alguma coisa, de substituir-se ao terceiro adquirente, em igualdade de
condições.
A contrapartida imediata deste poder é o dever do sujeito passivo imediato, o titular do
domínio do bem, de realizar a afronta, isto é, a previa notificação de seu despejo de alienar
e as condições em que isto deve ocorrer.
Prudente se faz destacar que o direito de preferência é exercitável tão somente quando
houver a venda da coisa ou efetuar com ela uma dação em pagamento. Não cabe, consoante Serpa Lopes, na permuta ou em outra qualquer forma de alienação. Não é possível,
também, a ocorrência do direito de preferência na locação no caso de permuta, pois “esta se
inspira no exclusivo interesse do proprietário, entrosando-se com outra coisa que a substitui
em seu patrimônio que pode nem mesmo ser imóvel”2.
3 NATUREZA JURÍDICA
Serpa Lopes classifica-o como um contrato tipicamente pertencente à categoria dos
contratos preliminares, pelo que os doutrinadores franceses equiparam-no aos contratos
preliminares.
O seu objetivo consiste em estabelecer uma condição preferencial, possibilitar a venda em relação ao preferente, um contrahere futuro, tal como acontece nos contratos preliminares.
Entretanto, segundo ainda Serpa Lopes, pelo nosso direito positivo a teoria francesa
não encontra respaldo, pois o pacto de preferência, essencialmente, se afasta da promessa
de compra e venda de imóveis. O pacto de preferência é unilateral, enquanto a promessa de
2 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. Fontes das obrigações: contratos. 6. ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, v. 3, 1996. p. 256.
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compra e venda é bilateral; a promessa de compra e venda é exequível in natura, enquanto
a preempção é destinada a converter-se em perdas e danos em caso de inadimplemento;
na promessa de compra e venda pode gerar efeitos de direito real, enquanto na preferência
somente ius ad rem.
Discute-se, ainda, quanto à natureza do direito de preferência: se real ou pessoal.
Preferimos continuar a ver o direito de preferência como direito pessoal. Contudo, não
podemos deixar de constatar que o direito pessoal na adjudicação se mescla com o jus in
re – direito real.
4 PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Para o surgimento do direito de preferência é necessário que se observem determinados pressupostos.
O primeiro pressuposto é a existência de uma fonte negocial entre as partes, ou seja,
preferente e preferido, o qual pode gerar obrigações entre as partes.
Trata-se de direito obrigacional, de origem convencional, personalíssimo, pelo qual
o comprador se obriga a oferecer ao vendedor a coisa que lhe comprou, quando a quiser
vender ou dar em pagamento, para que o vendedor exerça ou não o seu direito de preferência.
Tem como pressupostos básicos e fundamentais ser intransferível, indivisível e com
prazo de caducidade.
Além deste, comuns a todas as espécies de preferência, a lei determina outros, em
cada um dos casos em que institui o direito.
Há, portanto, duas condições: a) que o comprador queira vender a coisa; e b) que o
vendedor queira exercer o direito de preferência.
Na hipótese da preferência contratual, a relação é estabelecida pela vontade das parte; na legal, porém, o legislador impõe a existência de um interesse, ligando o preferente à
coisa. Pode ser interesse econômico, como o que se vê na preferência outorgada ao arrendatário rural, ao locatário comercial, ao acionista, ao sócio quotista; pode ser um interesse
social, como o do locatário residencial, do expropriado ou do condômino.
O segundo é a efetivação da alienação voluntária e onerosa, venda ou dação em pagamento do bem objeto da preferência. Como apontado anteriormente, o direito de preferência tem a sua eficácia suspensa, enquanto o titular do domínio não intenta vender ou dar
em pagamento a coisa.
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5 AS MODALIDADES DE PREFERÊNCIA
No direito positivo brasileiro comporta anotar a existência de duas modalidades de
preferência que serão objeto de apreciação deste estudo: a preferência legal, onde particularmente o expropriante não cumpre a obrigação de afrontar, que, ao contrário da preferência convencional, o inadimplemento não acarreta a responsabilidade por perdas e danos,
pois o ex-proprietário tem ação para exigir o bem de terceiro que houver adquirido. E, como
verdadeiramente, ocorre retrocessão, não se realiza novo contrato de compra e venda.
5.1 Preferência legal
Como se pode facilmente presumir da própria denominação, preferência legal é a que
decorre da lei. Daí resulta, logicamente, que não pode a mesma ser derrogada pela singela
vontade das partes, como soe acontecer com a preferência convencional.
As hipóteses conhecidas de preferência legal no ordenamento pátrio são as seguintes: as dos arts. 504 e 1.322 do Código Civil, que preveem a preferência do condômino na
aquisição da coisa comum indivisível; a do art. 27 da Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/1991),
que assegura o direito de preempção ao locatário para efeito de adquirir o imóvel locado;
a do art. 92, § 3º, do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964), que dispõe sobre o direito de
prelação do arrendatário para adquirir o imóvel rural arrendado.
5.1.1 A preferência do condômino
Condômino é toda pessoa que, juntamente com outra, exerce o direito de propriedade
sobre o mesmo imóvel. Relativamente ao condomínio ou à propriedade em comum, a melhor conceituação é a que se contém no art. 1.403 do Código Civil português, verbis: “Existe
propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”.
O direito de preferência do condômino, no ordenamento brasileiro, resulta, inicialmente, do disposto no art. 1.322 do Código Civil, que assim consigna:
Quando a coisa for indivisível, e os consortes não quiserem adjudicá-la a um só, indenizando
os outros, será vendida e repartido o apurado, preferindo-se, na venda, em condições iguais de
oferta, o condômino ao estranho, e entre os condôminos aquele que tiver na coisa benfeitorias
mais valiosas, e, não as havendo, o de quinhão maior.
Trata-se, aqui, da venda da coisa comum na sua totalidade, onde se faz evidente o
direito de preferência do condômino para a aquisição “em condições iguais de oferta”, ou
seja, da oferta apresentada a terceiro. Havendo mais de um condômino interessado, contempla a lei, a preferência recairá sobre aquele que tiver benfeitoria de maior valor ou o
quinhão maior.
Outra hipótese de preempção do condômino é a que se extrai, ainda que de forma presumida, do óbice ou da restrição que sofre o condômino em coisa indivisível, de não poder
vender a sua quota a estranhos, se outro condômino a quiser, ex vi do art. 504.
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Conforme se pode do todo inferir, refere-se o citado dispositivo à restrição de venda,
a terceiro, da parte contida dentro de um todo maior “indivisível”, sem que a mesma seja
antes oferecida ao condômino.
Prosseguindo, veremos uma breve incursão ao direito comparado, releva acrescentar
que o Código Civil argentino, no título que aborda a matéria sobre condomínio, não faz
qualquer menção ao direito de preferência na hipótese da alienação da quota-parte, limitando-se a referir que “cada condômino puede enajenar su parte indivisa, y sus acreedores
pueden hacerla embargar y vender antes de hacerse la división entre los comuneros” (art.
2.677).
Releva notar, pois, que, no que tange ao Direito pátrio, tanto a restrição do art. 504
quanto a do art. 1.322 tem por objeto a venda de coisa tida por “indivisível”, quer a venda
seja total, quer parcial. Porém, cumpre, ab initio, explicitar o que seja coisa indivisível aos
olhos da lei, para efeito do exercício do direito de preferência pelo condômino.
Assim, a teor do arts. 87 e 88 do Código Civil, existem duas categorias de bens indivisíveis: a) a dos que não se podem partir sem alterar a sua substância; b) a dos que, embora
naturalmente divisíveis, se consideram indivisíveis por lei ou vontade das partes.
Relativamente à primeira categoria de bens indivisíveis, a indivisibilidade física, a
mesma decorre do princípio sobejamente conhecido de que a fração deve proporcionar a
mesma utilidade proporcionada pelo todo. Desse modo, se, à guisa de exemplo, uma casa
ou um veículo automotor, por força de herança, vier a pertencer a diversas pessoas, cada
qual tornar-se-á proprietário de tão somente um quinhão ou uma fração ideal, contida dentro de um todo maior, eis que o objeto não comportaria divisão cômoda.
O art. 88 refere-se precipuamente à indivisibilidade decorrente de lei ou da vontade
das partes. Temos, pois, de um lado, a indivisibilidade legal ou jurídica, e, de outro, a indivisibilidade convencional.
A indivisibilidade jurídica tem sua fonte mais copiosa no direito agrário, em razão da
norma proibitiva do fracionamento do imóvel rural contida no art. 65 do Estatuto da Terra
(Lei nº 4.504/1964), que adita: “O imóvel rural não é divisível em áreas de dimensão inferior
à constitutiva de propriedade rural”.
A indivisibilidade convencional, por sua vez, origina-se de acordo ou convenção, por
meio da qual os condôminos podem acordar que a coisa, conquanto possa ser dividida, permaneça indivisa por tempo não excedente a cinco anos, de conformidade com o estatuído
no parágrafo único do art. 1.320 do Código Civil.
Questão que tem sido alvo de dissenso é a que é pertinente à observância do direito de
preferência do herdeiro-condômino na cessão de direitos hereditários feita por qualquer deles. De um lado, uma corrente sustenta que referido direito deve ser respeitado, porquanto
trata-se a herança de coisa indivisível até a partilha, por efeito da lei que a inclui no rol dos
bens imóveis (CC, art. 80). Seguindo nesta esteira, Maria Helena Diniz sustenta que:
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Em caso de cessão onerosa feita a estranho, sem que o cedente tenha oferecido aos co-herdeiros a sua quota ideal para que exerçam seu direito de preferência, tanto por tanto, qualquer deles que, dentro de 6 meses, depositar a quantia, haverá para si o quinhão hereditário cedido. E,
se mais de um co-herdeiro o quiser, preferirá o que tiver benfeitorias mais valiosas, e, na falta
de benfeitorias, o de quinhão maior; e, se forem iguais os quinhões, haverão a parte cedida os
herdeiros que a quiserem, depositando o preço (CC, art. 504 e parágrafo único). Dessa forma,
o cessionário de bens da herança indivisa não poderá ser admitido no inventário sem que a
cessão, que deve ter sido julgada válida, seja intimada aos co-herdeiros, para usarem o direito
de preferência concedido pelo art. 504 do Código Civil, porque a herança, enquanto não se
procede à partilha, é coisa indivisível, não podendo, por este motivo, um dos co-herdeiros
vender a sua parte a estranho se algum dos outros co-herdeiros a quiser, tanto por tanto.
De outra parte, outra corrente defende que
há que distinguir-se entre indivisibilidade fictícia e real. Na primeira, enquadra-se a herança e,
na segunda, a hipótese prevista no art. 504 do CC. Na herança cogita-se da indivisibilidade de
direitos, enquanto que o art. 1.139 se refere expressamente à indivisibilidade da coisa. Nada
obsta, conseqüentemente, a cessão de direitos hereditários para terceiros alheios à sucessão.
Ante a indigitada dualidade, sem embargo de eventuais opiniões em contrário, a nós
se nos afigura que a preferência do herdeiro somente se evidenciará na hipótese de existência de um único bem a inventariar, que esse bem se constituísse em um imóvel e que o
mesmo tivesse que ser partilhado entre diversos herdeiros.
Com o fito de pôr fim à celeuma, houve o legislador, por bem, dar tratamento à matéria
no art. 1.794 do novo Código Civil, que prescreve: “O co-herdeiro não poderá ceder a sua
quota hereditária a pessoa estranha à sucessão, se outro co-herdeiro a quiser, tanto por tanto”.
5.1.2 A preferência do arrendatário
A preempção ou preferência do arrendatário, para efeito da aquisição do imóvel rural
arrendado, encontra respaldo nos arts. 93, § 3º, do Estatuto da Terra e 45 do seu Regulamento (Decreto nº 59.566/1966), os quais conferem ao arrendador a obrigação de notificar
ao arrendatário para que exerça, no prazo de 30 dias, contados do recebimento da notificação, o seu direito de preempção em relação a terceiros, na hipótese de pretender alienar
o imóvel.
Questão até certo ponto controversa, de evidente repercussão prática, é a que é pertinente à extensão do direito de preferência na hipótese de arrendamento parcial do imóvel
rural, tendo-se em linha de conta a advertência do § 1º do art. 46 do Regulamento, no sentido de que “o proprietário de imóvel rural arrendado não está obrigado a vender parcela ou
parcelas arrendadas, se estas não abrangerem a totalidade da área”. Referido direito deve,
necessariamente, ser exercido em relação a todo o imóvel no qual se insere a gleba arrendada ou pode ficar restrito à área arrendada? A propósito, digna de menção a opinião de Athos
Gusmão Carnelro3, que assim preleciona:
3 CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 128.
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Consideram alguns, interpretando o art. 46 do citado decreto, que se o arrendatário manifesta
preferência apenas no tocante à área arrendada, deve ser tido como carecedor de ação, e inclusive seria insuficiente o depósito do preço, porque tal depósito deve corresponder ao preço
da totalidade da área e não apenas ao da parcela objeto do arrendamento.
É tema grave, ligado inclusive à hierarquia das normas jurídicas.
O Estatuto da Terra, no art. 92, § 3º, refere o seguinte: “No caso de alienação do imóvel arrendado, o arrendatário terá preferência para adquiri-lo em igualdade de condições”
(grifamos).
Ora, o “imóvel arrendado” parece ser a própria área arrendada, e não a gleba maior
dentro da qual a área arrendada se situa.
Assim, com fulcro no ensinamento do eminente mestre, o único óbice que o arrendatário enfrentaria para o acolhimento de sua pretensão seria a hipótese de a parcela arrendada possuir área inferior à fração mínima de parcelamento da região.
Nesse caso, a preferência somente poderia ser exercida em relação a todo o imóvel,
como bem elucida o seguinte julgado do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul:
O direito de preempção ou preferência reconhecido pelo Estatuto da Terra tem caráter social,
visando o benefício de quem trabalha na agricultura ou na pecuária. A lei não discrimina e
não afasta a possibilidade de o arrendatário adquirir a totalidade do imóvel vendido, mesmo
ocupando apenas parte dele, máxime quando a área ocupada é inferior à fração mínima de
parcelamento da região. A finalidade é evitar o minifúndio. Inteligência dos arts. 65, caput, e
92, §§ 3º e 4º, da Lei nº 4.504/1964.
Acrescente-se, por fim, que, havendo pluralidade de arrendatários ocupando diferentes parcelas do imóvel rural, e se todos eles manifestarem interesse na aquisição da totalidade do imóvel, entendemos que a preferência recairá sobre aquele que estiver ocupando a
maior área arrendada, adotando-se, para esse fim, o parágrafo único do art. 504 do Código
Civil, por analogia.
5.1.3 Direito de preferência legal nas alienações de prédios rústicos
Pretende-se apurar se a alienação de terreno rústico com área superior ou inferior
à unidade de cultura está sujeita à obrigação de comunicação do projeto de venda aos
proprietários dos terrenos confinantes para que estes possam exercer o seu direito de preferência, ou seja, se os proprietários dos terrenos confinantes têm o direito de preferência na
projetada alienação, bem como as situações em que tal exercício pode/deve ser exercido.
Enquadramento legal/legislação aplicável:
Análise:
1º O âmbito da matéria referente ao exercício do direito de preferência na transmissão da propriedade de prédios rústicos tem como causa última o emparcelamento.
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Segundo o art. 1.380 do Código Civil, este consiste no “conjunto de operações de remodelação predial destinadas a pôr termo à fragmentação e dispersão dos prédios rústicos pertencentes ao mesmo titular, com o fim de melhorar as condições técnicas e econômicas da
exploração agrícola”. O termo “terrenos” aqui usado aponta claramente na restrição do direito
de preferência e do emparcelamento em relação a prédios rústicos, ficando assim excluídos os
logradouros, acessórios ou partes componentes de prédios urbanos.
O emparcelamento tomou pela primeira vez expressão legislativa com o Decreto-Lei nº 5.705,
de 10 de maio de 1919. Este diploma não passou de letra-morta, uma vez que a sua entrada
em vigor dependia de regulamentação, que nunca foi levada a efeito. Só passado quase meio
século é que a questão do emparcelamento voltou a ser retomada com a publicação e entrada
em vigor da Lei nº 2.116, de 14 de agosto de 1962, regulamentada pelo Decreto-Lei nº 44.647,
de 26 de outubro. A vigência de tais diplomas cessou com a entrada em vigor do Decreto-Lei
nº 384/1988, de 25 de outubro, que expressamente os revogou. Este diploma foi publicado no
uso da autorização legislativa constante da Lei nº 79/1988, de 7 de julho, e veio a ser regulamentado pelo Decreto-Lei nº 103/1990, de 22 de março. Hoje em dia as novas perspectivas do
emparcelamento constam do art. 36 da Lei nº 86/1995, de 1º de outubro, que estabelece no
seu nº 1: “Nas regiões onde a estrutura fundiária se apresentar fragmentada e dispersa, em termos de impedir a viabilização econômica do aproveitamento agrícola dos recursos naturais,
devem ser desenvolvidas ações de emparcelamento, prioritariamente quando os respectivos
solos integrarem a Reserva Agrícola Nacional”.
Visa-se, assim, com o emparcelamento, combater a excessiva fragmentação e pulverização
da propriedade rústica e das explorações agrícolas (minifúndios), cujas conseqüências nefastas sobre a produtividade, em muito tem retardado o progresso da agricultura portuguesa,
tendo-se como objetivo a rentabilização dos meios de produção em ordem ao aumento da
competitividade da agricultura portuguesa, recorrendo-se assim, e, para tal, ao redimensionamento dos prédios rústicos.
A Lei nº 2.116, de 14 de agosto de 1962, inspirada pelos propósitos do emparcelamento, veio
conferir aos proprietários confinantes de terrenos com área inferior à unidade de cultura o
direito de preferir na venda, dação em cumprimento ou aforamento destes terrenos, ou seja, a
preferência só podia exercer-se sobre prédios com unidade de cultura inferior e nunca sobre
prédios que atingissem ou excedessem essa unidade.
No entanto, se o prédio beneficiário da preferência fosse também ele de unidade de cultura
inferior, a preferência seria, neste caso, mútua (sobre um prédio de área igual ou superior à
referida unidade é que jamais poderia recair preferência).
Posteriormente, o art. 1.380, nº 1, do Código Civil veio inovar nesta matéria, ao exigir que ambos os terrenos tivessem área inferior à unidade de cultura, imprimidos e assim sempre caráter
recíproco ou bilateral à preferência.
O Decreto-Lei nº 384/1988, de 25 de outubro, repõe a idéia do direito de preferência como
meio conducente à eliminação de minifúndios, prevendo no seu art. 18, nº 1, que: “Os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no art. 1.380 do
Código Civil, ainda que a área daqueles seja superior à unidade de cultura”.
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Destarte, os proprietários dos terrenos confinantes, mesmo que os seus prédios não sejam de
unidade inferior à unidade de cultura, podem preferir, desde que o terreno sobre o qual vai ser
exercida a preferência o seja.
No entanto, não podem ambos os prédios atingir ou transcender os limites da área mínima
de cultura, pois nesse caso estaríamos a contrariar o objetivo da lei, que é o de combater os
minifúndios e não a criação de latifúndios. Existe, todavia, uma particularidade a assinalar:
sendo o direito de preferência consagrado pelo Código Civil um direito recíproco, o direito
conferido por este art. 18 também o é, embora com uma restrição: ele existe apenas no caso
em que um dos terrenos confinantes tenha área superior à unidade de cultura – Acórdão STJ,
13.10.1993).
Na verdade, tem iguais conseqüências de fato, conceder ao titular de terrenos de área superior
à unidade de cultura direito de preferir na alienação de terrenos de área inferior, ou conceder
tal direito a proprietários de terrenos de área inferior à unidade de cultura, na alienação de
terrenos de área superior.
2º Concretamente, o direito legal de preferência do art. 1.380 do Código exige os seguintes
requisitos para que possa funcionar:
– Que o prédio vendido tenha área inferior à unidade de cultura;
– Que o preferente seja dono de um prédio confinante com o prédio vendido;
– Que o prédio daquele que prefere tenha área inferior à unidade de cultura;
– Que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante;
– Que o prédio se destine à cultura agrícola;
– Que estejamos perante um prédio rústico;
– Que a alienação não diga respeito a uma exploração agrícola de tipo familiar.
Assim, este direito não existe quando, porventura, o prédio alienado tenha por destino fim
diferente da cultura agrícola, sendo aqui necessário também a prova (por quem for favorecido
com tal facto impeditivo) da “aptidão funcional” para esse outro fim que não o agrícola (de
igual modo quando estivermos perante um prédio urbano; quando estivermos perante dois
prédios com área superior à unidade de cultura, etc.).
O art. 18 do Decreto-Lei nº 384/1988, de 25 de outubro – contrariamente ao art. 1.380 do
Código Civil – vem conferir o direito de preferência aos proprietários dos terrenos confinantes,
ainda que os seus terrenos tenham área superior à unidade de cultura, desde que os prédios
sobre os quais a preferência vai ser exigida, não ultrapassem esta unidade mínima de cultura.
Ou seja, o que é permitido é que apenas um dos prédios exceda essa área de cultura, pois para
além de este não ser um direito a ser exercido exclusivamente sobre minifúndios (tanto monta
que seja um terreno de área superior à unidade de cultura a preferir um de área inferior, como
um terreno de área inferior a preferir um de área superior) não se descortina na lei qualquer incentivo à criação de latifúndios (o que sucederia se fosse permitido que um prédio com área superior à unidade mínima de cultura pudesse preferir outro que também ultrapassasse essa área).
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Direito de Preferência
3º Vejamos algumas situações práticas sobre a existência ou não do direito de preferência
legal, e conseqüentemente da obrigação de comunicação do projeto de venda do proprietário
do prédio a alienar aos proprietários dos prédios confinantes.
Hipótese A
O prédio rústico a alienar e os prédios confinantes têm ambos área inferior à unidade de cultura prevista para a zona.
Neste caso, existe, desde logo, direito de preferência legal. Como tal existe obrigação de comunicação do projeto de venda por parte do proprietário do prédio a alienar aos proprietários
dos prédios confinantes, para que estes, querendo, exerçam o seu direito de preferência legal.
Hipótese B
O prédio rústico a alienar tem área superior à unidade de cultura prevista para a zona e os
prédios confinantes têm área inferior a essa unidade de cultura, ou vice-versa.
Em qualquer destes casos existe também direito de preferência legal, devendo o proprietário
do prédio a alienar comunicar ao proprietário dos prédios confinantes o projeto de venda,
permitindo-lhes, assim, o exercício do direito de preferência que lhes assiste.
Hipótese C
O prédio rústico a alienar e os prédios confinantes têm ambos área superior à unidade de cultura prevista para a zona.
Neste caso, porque ambos os prédios (a alienar e confinantes) têm área superior à unidade
de cultura, o direito de preferência legal não se verifica, não existido, assim, obrigação de
qualquer comunicação do projeto de venda por parte do proprietário do prédio a alienar aos
proprietários dos prédios confinantes.
Hipótese D
O prédio rústico a alienar independentemente da sua área ou da área dos prédios confinantes
já tem Alvará de Loteamento, aprovado projeto ou concedida licença de construção ou já se
encontra estabelecido/definido no Plano Diretor Municipal (PDM) como área urbanizável ou
ainda quando já está consignado no título aquisitivo como terreno para construção.
Nesta situação o prédio, é considerado como prédio urbano, independentemente da qualificação que constar da descrição predial ou matricial. Assim sendo, o direito de preferência
legal não se verifica e, conseqüentemente, também não haverá lugar a qualquer comunicação
do projeto de venda por parte do proprietário do prédio a alienar aos proprietários dos prédios
confinantes.
Alerta-se, todavia, para o fato que qualquer das situações terá que ser suportada/fundamentada
quer por certidão emitida pela respectiva Câmara Municipal quer pela apresentação do título
aquisitivo do proprietário do prédio em causa.
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Direito de Preferência
5.1.4 A preferência do locatário
Funda-se a preferência do locatário, para aquisição do imóvel locado, no art. 27 da Lei
nº 8.245/1991, que assim prescreve:
No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou dação
em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel locado, em igualdade de
condições com terceiros, devendo o locador dar-lhe ciência do negócio mediante notificação
judicial, extrajudicial ou qualquer outro meio de ciência inequívoca.
Complementa o parágrafo único do citado dispositivo que a comunicação (notificação)
deverá conter o preço, as condições de pagamento, a existência de ônus reais, bem como o
local e o horário em que pode ser examinada a documentação pertinente.
Ressalte-se que, à semelhança do que ocorre com o arrendatário, o direito de preferência do locatário caducará se não manifestada, de forma inequívoca, sua aceitação integral à
proposta, no prazo de trinta dias (art. 28). Cabe, no entanto, advertir que, depois de aceita
a proposta pelo locatário, não é lícito ao locador desistir do negócio, sob pena de ser responsabilizado pelos prejuízos causados ao locatário, inclusive lucros cessantes, ex vi do
art. 29 da Lei inquilinária.
Nada obstante, há que considerar-se, ainda, possível conflito de preferência decorrente do fato de, em relação ao mesmo imóvel, surgirem diversas pessoas detentoras de
preferência legal. É o que se verifica, verbi gratia, na hipótese de o imóvel locado possuir
diversos proprietários, ou seja, quando o imóvel trata-se de um condomínio.
Neste caso, a preferência para adquirir o imóvel será do condômino ou do locatário? A
solução é dada pela própria lei, no art. 34, o qual consigna expressamente que a preferência
do condômino prevalece sobre a do locatário.
Com a preferência do inquilino, a Lei visa não só diminuir os riscos de uma venda simulada,
que rompe na maioria das vezes a locação, como também facilitar a permanência do inquilino
no imóvel, sua moradia ou seu comércio. Aplica-se tanto à locação residencial como à não
residencial.4
No atinente ao concurso de preferência entre o condômino e o arrendatário, em razão
de absoluta falta de previsão legal, a jurisprudência tem se manifestado no sentido de que a
preferência do primeiro também prevalece sobre a do arrendatário, assim como, em nosso
sentir, a preferência legal prepondera sobre a convencional do art. 513 do Código Civil.
Impende, todavia, acrescentar que o art. 27 não admite interpretação extensiva, ou
seja, não permite que se lhe agreguem outras hipóteses de atos de alienação para efeito de
possibilitar o direito de preferência. É o que se pode inferir da leitura do art. 32 da mesma
lei, que, de forma elucidativa, prescreve que “o direito de preferência não alcança os casos
de perda da propriedade ou venda por decisão judicial, permuta, doação, integralização de
capital, cisão, fusão e incorporação”5.
4 VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 161.
5Idem.
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Direito de Preferência
5.1.4.1 Caducidade
Art. 28. O direito de preferência do locatário caducará se não manifestada, de maneira inequívoca, sua aceitação integral à proposta, no prazo de trinta dias.
Na compra e venda, esse direito de preferência decorre da vontade das partes, podendo constar do próprio instrumento de alienação ou de documento à parte.
Tem como características fundamentais ser intransmissível, indivisível e com prazo de
caducidade.
O prazo para exercer esse direito está subordinado à decadência: era de três dias, a
partir da afronta, para as coisas móveis, e de trinta dias, para os imóveis. Não exercendo o
notificado o direito nesse prazo, ocorrerá a caducidade (art. 1.153 do Código Civil). O novo
Código Civil estendeu o prazo para sessenta dias no tocante aos imóveis (art. 516). Isto se
as partes não convencionarem outro prazo, podendo este ser até cento e oitenta dias para
móveis e dois anos para imóveis, mas tais prazos, ainda que permitidos pela lei, não são
vistos com bons olhos, pois a delonga poderia trazer instabilidade aos negócios.
O prazo se inicia na data do efetivo recebimento da proposta e, sendo de caducidade,
não permite suspensão ou interrupção. Se forem vários os locatários, todos devem ser avisados.
5.1.4.2 Desistência do negócio pelo locador
Art. 29. Ocorrendo aceitação da proposta, pelo locatário, a posterior desistência do negócio pelo
locador acarreta, a este, responsabilidade pelos prejuízos ocasionados, inclusive lucros cessantes.6
Tal dispositivo não era contemplado no Código Civil de 1916. Esta inovação visa, sem
dúvida, a evitar o abuso de direito pelo locador.
Segundo Silvio de Salvo Venosa7, “por vezes, engendra ele uma proposta de venda,
sem a real intenção de alienação”. Aguardará a negativa do exercício de preempção do inquilino para quiçá simular uma venda, o que facilitaria, em tese, o despejo.
Para o locador que intentar na desistência, sofrerá uma indenização por perdas e danos,
sendo está uma responsabilidade por dano pré-contratrual. O locador, na ação indenizatória, deverá comprovar prejuízos, sem os quais não haverá suporte para a ação. “Este só se
safará de uma indenização somente se provar caso fortuito ou força maior”.
5.1.4.3 Na sublocação
Art. 30. Estando o imóvel sublocado em sua totalidade, caberá a preferência ao sublocatário
e, em seguida, ao locatário. Se forem vários os sublocatários, a preferência caberá a todos, em
comum, ou a qualquer deles, se um só for o interessado.
Parágrafo único. Havendo pluralidade de pretendentes, caberá a preferência ao locatário mais
antigo, e, se da mesma data, ao mais idoso.8
6 Lei nº 8.245/1991, Lei do Inquilinato.
7 VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 164.
8 Lei nº 8.245/1991, Lei do Inquilinato.
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Direito de Preferência
Neste caso a lei protege primeiramente quem está efetivamente ocupando o espaço
do prédio, dando garantias de preferência ao sublocatário. Há que se observar o início do
caput, onde diz “em sua totalidade”, ou seja, se o imóvel estiver sublocado por inteiro. “Trata-se de sublocatário consentido, bem entendido, porque o sublocatário clandestino não
terá o direito. Nem haverá direito de preferência do sublocatário se a sublocação for parcial,
continuando então preferente o locatário”.
5.1.4.4 Pluralidade de pretendentes
Parágrafo único. Havendo pluralidade de pretendentes, caberá a preferência ao locatário mais
antigo, e, se da mesma data, ao mais idoso.
Havendo mais de um preferente na aquisição do prédio, sejam eles locatários ou sublocatários, o nosso diploma legal trouxe definidamente a ordem de preferência entre eles:
terá primeiro a preferência o locatário mais antigo no local, ou o mais idoso, para caso de
empate, e o mesmo se aplica aos sublocatários.
5.1.4.5 Venda judicial, permuta e doação
Art. 32. O direito de preferência não alcança os casos de perda da propriedade ou venda por
decisão judicial, permuta, doação, integralização de capital, cisão, fusão e incorporação.
Nosso ordenamento anterior não contemplava os institutos da venda judicial, permuta
e doação. “São espécies que não se coadunam com esse direito concedido ao inquilino”9.
A venda judicial novamente foi excluída deste novo ordenamento por razões de muitas dificuldades na prática da aplicação de tal direito.
A permuta trata de exclusivo interesse do proprietário, trocando-se por outros tipos de
coisas que não necessariamente precisam se imóveis.
Já a doação, como negócio gratuito, tem finalidade absolutamente diversa de qualquer outra
forma de alienação por isso mesmo alija o locatário.
Se for comprovada simulação nesses negócios, na troca ou no ato de liberalidade, em ação anulatória do negócio jurídico ou incidentalmente em processo no qual se discute a preferência,
deve ser preservado esse direito do inquilino.10
5.1.4.6 Direito real ou obrigacional
Art. 33. O locatário preterido no seu direito de preferência poderá reclamar do alienante as
perdas e danos ou, depositando o preço e demais despesas do ato de transferência, haver
para si o imóvel locado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar do registro do ato no
Cartório de Imóveis, desde que o contrato de locação esteja averbado pelo menos trinta dias
antes da alienação junto à matrícula do imóvel.11
9 VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 165/166.
10 VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 165.
11 Lei nº 8.245/1991, Lei do Inquilinato.
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Direito de Preferência
O ordenamento atual deixa bem claro quais os direitos que podem emergir de um
direito de preferência preterido.
O locatário deverá garantir o seu direito de preferência registrando o seu imóvel pelo
menos trinta dias antes da alienação, e deve ser proposta dentro de seis meses a contar do
registro do ato da alienação. Não obedecendo o locatário essas condições, estará abrindo
mão do direito com eficácia real. É precisamente o que ocorre nesse dispositivo do inquilinato. O contrato de locação, com o registro imobiliário, permite que o locatário oponha seu
direito de preferência erga omnes, isto é, perante qualquer um que venha a adquirir a coisa
locada.
5.1.4.7 Imóveis Indivisíveis
Art. 31. Em se tratando de alienação de mais de uma unidade imobiliária, o direito de preferência incidirá sobre a totalidade dos bens objeto da alienação.
Se o imóvel possui várias unidades com autonomia, quer se trate de edifício de apartamentos ou outra forma em que fenômeno ocorre, pretendendo o titular alienar todo do bem, o
locatário ou locatários deverão ser notificados com proposta para aquisição da totalidade.
Não podendo exercer o direito de preferência para adquirir somente a parte dele. Ademais, é
sempre intenção da lei evitar tanto quanto possível a criação de condomínio.12
É claro que se por ventura o próprio locador pretender vender o imóvel por unidades,
a preferência será dada para cada um dos locatários.
Se houver preterição do direito, o inquilino de parte do conjunto imobiliário, que
tenha sido alienado em sua totalidade, deverá pleitear a adjudicação de todo o imóvel, desde que preencha, como é crucial, os demais requisitos legais (JTACSP 112/275).
5.1.5 Na sociedade comercial. Integralização do capital, cisão, fusão e incorporação
Art. 1.556. Não havendo título legal à preferência terão os credores igual direito sobre os bens
do devedor comum.
Na disputa travada entre os credores, têm prioridade os títulos legais de preferência,
que são os privilégios e os direitos reais. Não havendo preferência ou privilégios a serem
observados entre os créditos habilitados, todos os credores terão iguais direitos sobre os
bens do devedor. Nesse sentido, é de notar-se que o Código de Processo Civil, ao tratar do
processo de insolvência e, particularmente, sobre a classificação dos créditos no concurso,
dispõe no art. 769:
Não havendo impugnações, o escrivão remeterá os autos ao contador, que se organizará o
quadro geral dos credores, observando, quanto à classificação dos créditos e dos títulos legais
de preferência, o que se dispõe a lei civil.
12 VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit., p. 165.
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Direito de Preferência
Parágrafo único. Se concorrerem aos bens apenas credores quirografários, o contador organizará o quadro, relacionando-os em ordem alfabética.
Não havendo, portanto, títulos legais de preferência que devam figurar em primeiro
lugar no quadro classificatório dos créditos, esse quadro será organizado por ordem alfabética, porque serão iguais os direitos de todos os credores.
No processo falimentar, o quadro de classificação dos credores é elaborado pelo síndico, e não pelo contador.
Art. 1.557. Os títulos legais de preferência são os privilégios e os direitos reais.
Preferência vem a ser a vantagem conferida por lei a determinado credor, pela natureza de seu crédito, não só para haver a coisa, com exclusão dos demais, como de preferir
os concorrentes no recebimento do crédito.
Privilégio é um direito pessoal, de preferência, de ser pago, que o credor desfruta sobre
os outros, por força da qualidade do crédito. O privilégio diz-se geral quando se refere a
todos os bens do devedor; especial, quando se refere somente a determinados bens.
Os privilégios somente se estabelecem por força de lei, não o podendo por convenção.
Os credores privilegiados preferem aos quirografários.
O artigo em estudo equipara aos títulos legais de preferência os direitos reais. É de
observar-se, todavia, que nem todos os direitos reais são títulos legais de preferência, mas
apenas os direitos reais de garantia a que se refere o art. 755, tais como o penhor, a anticrese
e a hipoteca, incluindo-se, ainda, a caução, como modalidade de penhor que grava os títulos de crédito.
O direito de preferência, em suas diversas modalidades, rapidamente incorporou-se
nos acordos de acionistas e, atualmente, constitui um mecanismo seguro que possibilita a
permanência do poder de controle com as partes originais do contrato. A cláusula de direito de preferência para aquisição de ações é igualmente o mecanismo que permite a um
acionista evitar ter como sócio alguém indesejável. Exercendo o direito de preferência convencionado no acordo, a parte que desejar permanecer na sociedade reserva-se ao direito
de escolher o sócio que lhe pareça mais adequado.
5.1.6 Na desapropriação
A thema argumentandum se abre como um leque, ante a grande ramificação do instituto em várias áreas do direito positivo, citando-se, a título de exemplos, o direito de preferência no Estatuto da Terra; preferência decorrente de compromisso de compra e venda;
preferência na desapropriação; preferência do condômino; preferência do locatário na ação
renovatória em reocupar o imóvel reformado; e direito de preferência instituído na Lei Inquilinária.
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Direito de Preferência
Cumpre destacar aqui uma crítica doutrinária comum que se faz contra o legislador.
Dispõe o art. 1.150 do Código Civil que a União, o Estado ou o Município oferecerá ao
ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso não tenha o destino,
para que se desapropriou.
Estranha a inserção desse dispositivo em tal capítulo, pois a matéria talvez melhor ficasse colocada na legislação sobre a desapropriação. Aliás, como a regra impõe obrigações
ao Poder Público, seu assento em código de direito privado pode provocar alguma perplexidade.
A Lei de Desapropriação propositalmente deixou de abordar o problema, por ter o
legislador entendido ser matéria estranha à desapropriação. Apesar de censurar a medida,
alguns doutrinadores entendem que o art. 1.150 não foi revogado pela mencionada lei. Face
à falta de limite legal de tempo, o direito exercita-se, por analogia, pelo prazo de cinco anos,
pelo fato do art. 10 da lei fixar este prazo como tempo de caducidade para a declaração de
utilidade pública, embora haja julgados entendendo não haver limite de tempo.
Curiosa, senão ao menos estranha, é a posição tomada por Silvio Rodrigues, ao se
posicionar para o caso da coisa expropriada não ser destinada ao fim preliminarmente determinado, não se justificando a venda forçada, devendo ser tornada sem efeito pelo próprio
Poder Público e, em caso de silêncio, pela sentença que ordenar a retrocessão.
Ora, não seria no mínimo justo o expropriado, após sofrer a primeira agressão de se
ver obrigado a perder o domínio sobre um bem, novamente se ver obrigado a aceitá-lo de
volta, sem ter a opção da preferência.
Com efeito, não obstante as raras divergências doutrinárias sobre um assunto ou outro
que verse sobre a matéria, a distinção que se faz entre a preempção convencional da preempção legal é que a primeira se constitui mediante pacto adjeto ao contrato de compra e
venda, enquanto a outra verifica-se exclusivamente na desapropriação.
5.1.7 No tombamento
Art. 22. Em face da alienação onerosa de bens tombados, pertencentes a pessoas naturais ou
a pessoas jurídicas de direito privado, a União, os Estados e os municípios terão, nesta ordem,
o direito de preferência.
§ 1º Tal alienação não será permitida, sem que previamente sejam os bens oferecidos, pelo
mesmo preço, à União, bem como ao Estado e ao município em que se encontrarem. O proprietário deverá notificar os titulares do direito de preferência a usá-lo, dentro de trinta dias,
sob pena de perdê-lo.
§ 2º É nula alienação realizada com violação do disposto no parágrafo anterior, ficando qualquer dos titulares do direito de preferência habilitado a seqüestrar a coisa e a impor a multa de
vinte por cento do seu valor ao transmitente e ao adquirente, que serão por ela solidariamente
responsáveis. A nulidade será pronunciada, na forma da lei, pelo juiz que conceder o seqües-
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Direito de Preferência
tro, o qual só será levantado depois de paga a multa e se qualquer dos titulares do direito de
preferência não tiver adquirido a coisa no prazo de trinta dias.
§ 3º O direito de preferência não inibe o proprietário de gravar livremente a coisa tombada, de
penhor, anticrese ou hipoteca.
§ 4º Nenhuma venda judicial de bens tombados se poderá realizar sem que, previamente, os
titulares do direito de preferência sejam disso notificados judicialmente, não podendo os editais de praça ser expedidos, sob pena de nulidade, antes de feita a notificação.
§ 5º Aos titulares do direito de preferência assistirá o direito de remissão, se dela não lançarem
mão, até a assinatura do auto de arrematação ou até a sentença de adjudicação, as pessoas
que, na forma da lei, tiverem a faculdade de remir.
§ 6º O direito de remissão por parte da União, bem como do Estado e do município em que
os bens se encontrarem, poderá ser exercido, dentro de cinco dias a partir da assinatura do
auto da arrematação ou da sentença de adjudicação, não se podendo extrair a carta, enquanto
não se esgotar êste prazo, salvo se o arrematante ou o adjudicante for qualquer dos titulares
do direito de preferência.13
São obrigações do proprietário do bem tombado:
1. Positivas: fazer as obras de conservação necessárias à preservação do bem ou, se
não tiver meios, comunicar a sua necessidade ao órgão competente, sob pena de
incorrer em multa correspondente ao dobro da importância em que foi avaliado
o dano sofrido pela coisa (art. 19); em caso de alienação onerosa do bem, deverá
assegurar o direito de preferência da União, dos Estados e dos Municípios, nessa
ordem, sob pena de nulidade do ato, sequestro do bem por qualquer dos titulares
do direito de preferência e multa de 20% do valor do bem a que ficam sujeitos o
transmitente e o adquirente; as punições serão determinadas pelo Poder Judiciário
(art. 22). Se o bem tombado for público, será inalienável, ressalvada a possibilidade de transferência entre União, Estados e Municípios (art. 11).
2. Negativas: o proprietário não pode destruir, demolir ou mutilar as coisas tombadas nem, sem prévia autorização do IPHAN, repará-las, pintá-las ou restaurá-las,
sob pena de multa de 50% do dano causado (art. 17); também não pode, em se
tratando de bens móveis, retirá-los do país, senão por curto prazo, para fins de
intercâmbio cultural, a juízo do Conselho Consultivo do IPHAN (art. 14); tentada
sua exportação, a coisa fica sujeita a sequestro e o seu proprietário, às penas cominadas para o crime de contrabando e multa (art. 15).
3. Obrigação de suportar: o proprietário fica sujeito à fiscalização do bem pelo órgão
técnico competente, sob pena de multa em caso de opor obstáculos indevidos à
vigilância.
13 Decreto – Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.
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Além do tombamento provisório, que é aquele decretado no início do processo, e que
configura efeitos imediatos equiparados ao tombamento definitivo, exceto no que toca ao
registro no cartório imobiliário e ao direito de preferência reservado ao Poder Público.
5.1.8 Na compra e venda
Art. 27. No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou
dação em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel locado, em igualdade de condições com terceiros, devendo o locador dar-lhe conhecimento do negócio mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca.
Parágrafo único. A comunicação deverá conter todas as condições do negócio e, em especial,
o preço, a forma de pagamento, a existência de ônus reais, bem como o local e horário em
que pode ser examinada a documentação pertinente.14
Na compra e venda, a preempção decorre da vontade das partes, podendo constar
do próprio instrumento de alienação ou do documento à parte. Possui como características
fundamentais ser intransmissível e com prazo de caducidade.
dido:
A seguir, apresenta-se o modelo de notificação ao locatário de que o imóvel será venNOTIFICAÇÃO
Ao Sr. Antonio Aparecido
Rua Gusmão Vianna, 350, ap. 102
Bairro Novo Horizonte
Nesta cidade.
Notifico V. Sa. que pretendo vender o imóvel de minha propriedade, onde reside sob contrato
de locação, já tendo recebido propostas e acertado forma e valor, com a seguinte discriminação:
PREÇO: R$ 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil reais).
FORMA DE PAGAMENTO: R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) à vista, 5 parcelas mensais de R$
8.000,00 (oito mil reais).
A documentação pertinente ao imóvel estará à sua disposição na Imobiliária Acapulco, na Rua
Senador Fonseca, 114, nesta cidade, em horário comercial.
Aguardo sua manifestação de interesse, que terá prioridade sobre terceiros, pelo prazo de 30
(trinta) dias a contar do recebimento da presente, findo o qual, em seu silêncio, darei continuidade a tentativas com outros interessados, nos termos dos arts. 27 e 28 da Lei nº 8.245/1991.
Jundiaí, 14 de junho de 2005.
Joaquim Severino.
14 Lei nº 8.245/1991 Lei do Inquilinato.
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Para ter valor a notificação supra, é necessário que, feita de que forma for, fique com
o locador o comprovante da entrega do aviso, não podendo haver dúvida sobre o recebimento; a promessa de cessão de direito, dação em pagamento, só poderá ser iniciada após
ter o locador a resposta do locatário, ou após ter passado em branco o prazo de trinta dias
do recebimento do aviso.
Não se pode esquecer, nesta comunicação, a informação de que a documentação
relativa ao imóvel (registro no cartório de imóveis ou matrícula do imóvel), estará em determinado local, em determinadas horas do dia, durante o período de resposta do locatário;
não havendo este detalhe, poderá o locatário posteriormente discutir a validade do aviso, já
que há menção expressa, na lei, da necessidade desta complementação.
5.2 Preferência convencional
Preferência convencional, ou preempção, é o pacto adjeto à compra e venda, denominada pelos romanos de pactum protimiseos, em virtude do qual se impõe ao comprador
a obrigação de oferecer ao vendedor a coisa que aquele vai vender, ou dar em pagamento,
para que este use o seu direito de prelação na compra, tanto por tanto (art. 513 do CC).
Importa, desde logo, assinalar que a preferência convencional não se confunde com a
retrovenda em face de dois aspectos: 1º) a preferência convencional abrange bens móveis e
bens imóveis; a retrovenda tem por objeto bens imóveis; 2º) na preferência convencional o
preço que o vendedor da coisa deverá pagar, para recuperá-la, será o mesmo que o comprador exigir de terceiros; na retrovenda, o preço que o vendedor da coisa deverá pagar, para
obter sua restituição, será o preço da venda, acrescido de correção e despesas.
Em consideração ao objeto clausulado, diferentes prazos deverão ser observados para
efeito do exercício do direito de preferência. Assim, segundo estatui o art. 516 do Código
Civil, tratando-se de bem móvel, o direito deverá ser exercido no prazo de três dias e, na
hipótese de bem imóvel, o prazo se estende a sessenta dias, ambos contados da data em que
o comprador oferecer a coisa ao vendedor. Fica, portanto patente que o prazo para o direito
de preferência ser exercitado nada tem a ver com a data em que foi firmado o contrato de
compra e venda, mas tão somente com a data em que o comprador tiver sido afrontado pelo
vendedor.
Frise-se, por último, que, tal como ocorre com a retrovenda, a preferência convencional é direito pessoal e, por essa razão, também não se pode ceder nem transferir aos
herdeiros (art. 520).
6 DISTINÇÃO DE OUTRAS ESPÉCIES
Embora a finalidade da preferência seja possibilitar ao alienante recobrar o domínio
da coisa vendida, não se confunde com o instituto da retrovenda, aparentemente similar,
porque distinguem-se, sob vários aspectos, dos quais vale destacar:
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Direito de Preferência
a) enquanto na retrovenda (o vendedor se reserva o direito de recobrar, em certo
prazo, o imóvel que vendeu, restituindo o preço, mais despesas feitas pelo comprador – art. 1.140) o negócio original se resolve, na preempção há uma nova
aquisição feita pelo vendedor primitivo, ao primitivo comprador;
b) a retrovenda versa somente sobre bens imóveis enquanto a preempção recai
também sobre móveis;
c) na retrovenda o vendedor conserva o direito de readquirir a coisa desde que o
queira e pelo preço que a vendeu, enquanto na preempção o vendedor só pode
recomprar a coisa se o proprietário a quiser vender e pelo preço oferecido pelo
eventual interessado.
Ademais, diferentemente da retrovenda, de onde geram direitos transmissíveis, a
preempção deriva de direitos pessoais, que não ultrapassam a pessoa do titular, conforme
já mencionado anteriormente.
Na realidade, o que aparentemente aproxima o pacto de preferência com as figuras
contratuais da retrovenda e da promessa de compra e venda inicialmente citada é somente
um aspecto comum: uma convenção que antecede a conclusão de um contrato ulterior,
que passa a ser definitivo. Porém, ao passo que, na promessa de compra e venda, o contrato definitivo tem que ser outorgado dentro de um determinado prazo e a retrovenda dever
ser exercitada em um interregno não superior a três anos, a preempção só se torna exigível
quando o obrigado quiser vender a coisa pactuada, sem nenhum limite de tempo.
7 CARACTERÍSTICAS
a) Unilateral: gera obrigações somente para uma das partes, isto é, o comprador terá
de oferecer o bem adquirido ao preferente se um dia pretender vendê-lo;
b) Oneroso: inexiste gratuidade pela sua própria natureza;
c) Forma livre: não exige forma expressa, apesar de ser muito difícil a utilização da
forma verbal;
d) De coisa móvel e imóvel: o objeto do contrato pode ser tanto o móvel como o
imóvel;
e) Temporário: extingue-se com a venda da coisa ou falecimento das partes;
f)
Típico: existe a devida regulamentação legal;
g) Consensual: aperfeiçoa com o simples acordo de vontade.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
7.1 Direitos do preferente
a) Exercer seu direito de compra, quando legitimamente afrontado, tanto por tanto,
em 3 (três) dias se a coisa for móvel e, se imóvel, nos 60 (sessenta) dias subsequentes;
b) Poderá reclamar indenização por perdas e danos quando a alienação se der sem
seu conhecimento ou, declarando, pretender usar o seu direito e a venda assim
mesmo ocorrer;
c) Existindo preferência em favor de mais de uma pessoa, só poderá ser exercido em
relação à totalidade do objeto;
d) Conhecedor de que o promitente irá vender a coisa intimá-lo-á para exercer o seu
direito de preferência.
7.2 Obrigações do promitente
Decidindo alienar a coisa, deverá o preferente afrontar o promitente, comunicando-lhe
as reais condições encontradas, dando-lhe o prazo legal para exercer o direito de resposta.
7.3 Denominação das partes
No contrato de preferência, as partes farão uso de nomes próprios da relação, como,
por exemplo, o vendedor, no caso o locador, poderá também ser chamado de preferente,
credor, promissário. Já o comprador, no caso o inquilino, será denominado de promitente,
devedor.
7.4 Extinção do contrato
A extinção do contrato de preferência poderá se dar por meio de alguns fatos, dos
quais:
a) a morte de qualquer uma das partes;
b) o preferente adquire o bem;
c) o preferente deixa de exercer seu direito de prelação e o bem é vendido a terceiro.
8 DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE PREFERÊNCIA
Ao ser afrontado pelo condômino, pelo locador ou pelo comprador, conforme seja
o caso, ao preferente que pretender exercer o seu direito de preferência não cabe outra
providência senão a de oferecer proposta igual à oferecida pelo terceiro, ou exigida pelo
vendedor, de terceiros, na hipótese de a coisa ter sido posta à venda. Logo, ao mesmo tempo
293
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
em que ao preferente é vedado apresentar proposta inferior, não poderá o mesmo ser compelido a oferecer preço superior ao exigido ou oferecido a terceiros.
Diferentemente deve ser tratada a hipótese da ulterior venda da coisa, a terceiro, por
preço inferior ao anteriormente exigido do preferente. Esta situação se caracteriza quando o
vendedor oferece a coisa ao preferente por preço superior às suas possibilidades de compra,
com o exclusive escopo de forçar a sua desistência do negócio. Configura-se, nesta espécie,
a frau legis, desde que consiga o preferente comprovar que na ocasião da proposta possuía
efetivas condições de adquirir a coisa pelo preço em que a venda foi concretizada.
No que se refere precipuamente à preferência convencional, na eventualidade de o
comprador vir a colocar a coisa à venda, sem comunicar ao vendedor, poderá este, tão logo
venha a conhecer o fato, intimar ao comprador para que este respeite o que foi pactuado,
forte no art. 514. Por outro lado, se a coisa vier a ser vendida a terceiro, sem que o vendedor tenha tido ciência das condições da venda, poderá exigir perdas e danos do comprador
(art. 518). Semelhante providência deverá ser adotada na hipótese de o comprador afrontar
o vendedor, apresentando-lhe condições inexatas ou abusivas que o impeça de adquirir a
coisa.
9 A AÇÃO DE PREFERÊNCIA
A ação de preferência é a ação que compete à pessoa preterida no seu direito de ser
preferido na aquisição de um determinado bem, em face de lei ou de convenção. É o permissivo jurídico para que o beneficiário legal ou contratual possa haver para si a coisa que
tinha prioridade para adquirir e que, no entanto, foi alienada a estranho.
O nosso ordenamento jurídico mostra-se silente quanto a essa ação, ao reverso do
Código Civil português que a ela faz expressa referência no art. 1.410.
No entretanto, consolidou-se na doutrina e na jurisprudência que a pretensão do interessado tanto pode ser exercitada por meio da ação de preferência, propriamente dita, quanto da ação de anulação de venda cumulada com adjudicação compulsória ou simplesmente
ação de adjudicação, porque o que se pretende com a ação, na sua essência, é verdadeiramente obter a adjudicação do bem, ou seja, a transferência judicial do bem que foi alienado
pelo condômino, pelo arrendador ou pelo locador a terceiro em desconformidade com a lei.
Como referido supra, possui legitimidade para a ação de preferência o condômino,
o arrendatário e o locador, porquanto, na preferência convencional oriunda da compra e
venda, o vendedor do bem somente terá direito a exigir perdas e danos.
No pertinente à legitimidade passiva, insta observar que se faz indispensável promover-se, além do alienante, também a citação do adquirente para a formação do litisconsórcio passivo necessário. A falta de citação do alienante, nessa hipótese, é causa nula do
processo.
294
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
É condição sine qua non, para propor a ação, que o autor deposite em juízo o preço
do imóvel. Considera-se, para esse efeito, o valor constante da escritura de compra e venda,
corrigido monetariamente, não se incluindo nesse valor as despesas com escritura e com
imposto de transmissão sobre bens imóveis.
As distintas leis assinalam o mesmo prazo de seis meses para o condômino, o locatário
e o arrendatário ajuizarem a ação de preferência, conforme preceituam, respectivamente, os
arts. 504 (CC), 33 (Lei nº 8.245/1991) e 92, § 4º (Estatuto da Terra).
Conta-se o prazo a partir da data do registro da escritura, desconsiderando-se, pois, a
data da venda perpetrada. Entretanto, em relação ao direito do locatário, uma ressalva se
faz necessária: o contrato de locação deve estar averbado junto à matrícula do imóvel, pelo
menos 30 dias antes da alienação (art. 33 da Lei nº 8.245/1991).
Quando procedente a ação, o juiz proferirá sentença adjudicando o imóvel ao requerente, mandando expedir a respectiva carta. Demais disso, determinará o cancelamento do
registro anterior, ao mesmo tempo em que autorizará o terceiro adquirente a levantar o depósito do valor do imóvel, deduzindo-se as custas processuais e os honorários advocatícios.
Controverte-se a respeito do cabimento, ao vendedor, do direito de promover ação
reivindicatória contra o terceiro adquirente, tendo havido venda com desrespeito ao direito
de preferência. Em nosso sentir, falece ao vendedor referido direito em face da inexistência
de pressuposto legal em nosso ordenamento jurídico. Também perfilham este entendimento
Serpa Lopes e Agostinho Alvim. A contrário sensu, entendem ser pertinente a ação Orlando
Gomes e Arnaldo Rizzardo.
10 DAS PERDAS E DANOS
Releva notar que a ação de perdas e danos constitui-se no único remédio iuris, que
resta ao vendedor do bem contra o comprador que descumprir o pacto adjeto de preferência, isto é, a preferência convencional, ex vi do art. 518 do Código Civil. A ele, portanto,
descabe o direito de reaver a coisa vendida por meio da ação de preferência, direito este
restrito às demais modalidades de preferência por expressa disposição da lei.
No atinente à relação decorrente de contrato de arrendamento, a parte final do art. 47 do
Decreto nº 59.566/1966 cogita da possibilidade de o arrendatário pleitear perdas e danos em
razão do descumprimento da obrigação por parte do arrendador, depois de, na sua parte inicial,
deferir ao arrendatário o direito de promover a ação de preferência, de modo idêntico ao art.
92, § 4º, do Estatuto da Terra. A toda evidência, o dispositivo mostra-se contraditório, de molde
a suscitar dúvidas na sua interpretação. Em decorrência, enquanto Athos Gusmão Carneiro
entende que a resolução em perdas e danos, referida no decreto, poderá, no máximo, ser uma
opção em favor do arrendatário, concedendo-lhe ajuizar, se entender mais conveniente a seus
interesses, a ação indenizatória ao invés da ação de preempção propriamente dita; Oswaldo
Optiz preleciona que
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
o prazo de seis meses é para o exercício do direito de preferência, isto é, para haver o imóvel
arrendado do poder do adquirente e não para a ação de perdas e danos, como parece deixar
ver o final do art. 47 do Regulamento. O direito à entrega da coisa arrendada (imóvel) é real.
Aqui o prazo é decadência e ali é de prescrição. Se o arrendatário deixa decorrer o prazo de
seis meses, caduca seu direito de exigir do terceiro a entrega da propriedade imóvel arrendada, mas subsiste o direito à indenização pela falta de notificação da venda ao terceiro.
Já mais explícito foi o art. 33 da Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/1991), que faculta
expressamente ao locatário preterido no seu direito de preferência reclamar do alienante
perdas e danos ou, depositando o preço e as demais despesas do ato de transferência, haver
para si o imóvel locado.
Frise-se, por último, que, à míngua de disposição expressa, não cabe ao condômino o
direito de requerer perdas e danos, porquanto a lei somente lhe reserva a possibilidade de
reaver o imóvel por meio da competente ação de preferência.
CONCLUSÃO
Vislumbrando nossa breve análise sobre o direito de preferência, podemos constatar
que o legislador conseguiu um grande avanço na lei com claros objetivos sociais com a
disciplina estatuída nas duas últimas legislações inquilinárias. Há que observar-se que, com
a preferência concedida ao locatário, limita o animus do vendedor, obriga-o a uma dependência com o locatário, já que tem que promover a notificação, aguardar o decurso de seu
prazo, e, ainda, observar o preço e as condições contidos na notificação.
É sabido que o mercado imobiliário é criativo e dinâmico; a maioria dos negócios
sofre frequentes alterações quanto ao preço e às condições inicialmente estabelecidas e
aquelas que realmente logram a conclusão dos mesmos. É comum, portanto, que o negócio
oferecido por um valor seja adquirido por outro. Essa consequência é irreversível e reflete
em função do mercado de compra e venda, realidade inafastável e presente nos negócios
imobiliários.
As dificuldades iniciais geradas quanto ao exercício do direito de preferência se dirimiram ao longo do tempo, não oferecendo, atualmente, maiores dificuldades de interpretação,
quer quanto à necessidade de registro do trato locativo ao exercício do pleito adjudicatório
do imóvel, quer quanto à sua dispensa no caso de simples pedido de indenização por perda
e danos, quer ainda quanto à possibilidade de pedido alternativo de adjudicação compulsória ou de perdas e danos (JTA, RT 123/286; 129/257); quer quanto à caracterização da
decadência do pedido de adjudicação compulsória, para o exercício do direito de preferência, extensivo ao pleito de perdas e danos (JTA 80/147, RT 106/282, JTA 138/418); mesmo
no caso de perdas e danos, impende que o alugatário faça prova quanto à sua condição
econômica, colimando adquirir o imóvel in casu – jurisprudência – “o locatário preterido
no seu direito de preferência somente pode pleitear reparação dos prejuízos, mediante demonstração incontroversa de que efetivamente, reúne condições econômicas para realizar
a transação” (Apelação c/ Revisão nº 422.013, 5ª Câmara, Rel. Juiz Alves Bevilacqua, J.
07.03.1995).
296
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Podemos concluir nosso trabalho com regozijo, pois, para nós, futuros operadores
do Direito e também os que já o operam, percebemos nitidamente que nosso legislador foi
feliz ao introduzir mudanças no ordenamento. Sabemos que as dificuldades de decifrar e
solucionar os problemas do meio jurídico têm sido uma constante em meio a leis tão defasadas, vemos cada vez mais que a “criatividade” dos profissionais, que muitas vezes se
aproveitam das lacunas destas leis tão obsoletas para dar interpretações absurdas as nossas
leis, é quem impera. Esperamos, contudo, que mudanças como esta sobejem cada vez mais
nosso ordenamento, pois, assim como a sociedade vive em transformação, precisamos de
leis dinâmicas e atuantes para que possamos acompanhar a evolução da humanidade com
justiça e não com devaneios oportunistas.
REFERÊNCIAS
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Jurídica Brasileira, 1994.
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COMBRE, Nilton da Silva. Teoria e prática da locação de imóveis. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
CORRÊA, Orlando de Assis; CORRÊA, Carlos Cunha. Locação predial. Porto Alegre: Síntese, 1998.
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GOMES, Lúcia Helena de Andrade. Como preparar sua monografia jurídica. 3. ed.
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______. Contratos. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
______. Obrigações. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. Fontes das obrigações: contratos. 6. ed. Rio
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MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações –
2ª parte. 28. ed. São Paulo: Saraiva, v. 5, 1991.
OPTIZ, Oswaldo. Problemas de locação comercial e industrial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro:
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RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda e parcelamento do solo urbano.
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RODRIGUES, Silvio. Direito civil – Dos contratos e das declarações da vontade. 11. ed. São Paulo:
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SIDOU, J. M. Othon. Dicionário jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
VENOSA, Silvio da Salvo. Direito civil. Contratos em espécies. 2. ed. São Paulo: Atlas, 3 v., 2002.
_________. Lei do inquilinato comentada. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
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WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 14. ed. São Paulo: Revista do Tribunais, 2000.
297
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Sites
Disponível em: www.suigeneris.pro.br/preferencia.htm. Acesso em: 24 jun. 2005.
Disponível em: www.jusnavegandi.com.br. Acesso em: 26 jun. 2005.
Disponível em: www.stj.gov.br. Acesso em: 30 jun. 2005.
Disponível em: www. oabjundiai.org.br. Acesso em: 14 jul. 2005.
Disponível em: www.tj.sp.gov.br. Acesso em: 15 mar. 2005, 30 maio 2005 e 20 jul. 2005.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Doutrina
O Estatuto da Terra Não Garante o Direito de Preferência na Compra do Imóvel Objeto
da Parceria Agrícola
CLEITON SOARES DE SOUZA
Advogado, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Plebisteriana Mackenzie.
Muitos afirmam que existe direito de preferência de compra de imóvel no contrato de
parceria agrícola. Contudo, o parceiro outorgado só terá preferência se houver previsão em
seu contrato.
Ao longo dos anos, tem crescido a busca por imóveis rurais localizados próximos às
grandes regiões produtoras. Com as recentes promessas de incentivos ao setor sucroalcooleiro, a procura deve aumentar.
Em um mercado tão concorrido, qualquer tipo de vantagem ou privilégio na compra
é, sem dúvida, essencial para realização de bons negócios.
Por isso, é comum a utilização do “direito de preferência na compra”, que garante ao
contratante não proprietário o direito de adquirir o imóvel objeto do contrato, em igualdade
de condições com terceiros.
Esse direito de preferência é importantíssimo para empresas que atuam no agronegócio, pois garante o direito de compra das áreas arrendadas ou objeto de parceria agrícola,
possibilitando, assim, a manutenção da produção.
Para os novos investidores e empresários com intenção de ampliar os negócios, o direito de preferência de compra é, muitas vezes, um problema, pois, mesmo existindo acordo
entre vendedor e comprador, para concretização no negócio, é imprescindível que o arrendatário ou parceiro outorgado não exerce o direito de preferência que possui.
O direito de preferência na compra normalmente é garantido por meio de uma cláusula contratual.
No caso do contrato de arrendamento rural, o Estatuto da Terra (Lei Ordinária nº
4.504/1964) garante ao arrendador, independente de qualquer previsão contratual, o direito
de preferência na compra do imóvel objeto do contrato. Essa preferência se dá em igualdade
de condições com terceiros. Confira o que diz a lei:
299
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou
tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária,
sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa,
nos termos desta lei.
[...]
§ 3º No caso de alienação do imóvel arrendado, o arrendatário terá preferência para adquiri-lo
em igualdade de condições, devendo o proprietário dar-lhe conhecimento da venda, a fim de
que possa exercitar o direito de perempção dentro de trinta dias, a contar da notificação judicial ou comprovadamente efetuada, mediante recibo.
Em se tratando de contrato de parceria agrícola, o Estatuto da Terra não confere expressamente o direito de preferência na compra do imóvel.
No entanto, o inciso VII do art. 96 do Estatuto da Terra diz que as normas pertinentes
ao arrendamento rural são aplicadas à parceria agrícola. Confira o artigo:
Art. 96. Na parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa, observar-se-ão os seguintes
princípios:
[...]
VII – aplicam-se à parceria agrícola, pecuária, agropecuária, agro-industrial ou extrativa as
normas pertinentes ao arrendamento rural, no que couber, bem como as regras do contrato de
sociedade, no que não estiver regulado pela presente lei.
Assim, muitos têm utilizado o referido dispositivo legal para afirmar a existência de
direito de preferência na compra também no contrato de parceria agrícola. Esse entendimento, em verdade, se difundiu de tal forma que quase não é questionado.
Nossos tribunais, todavia, não têm entendido dessa forma.
É firme, em nossos tribunais, o entendimento segundo o qual o direito de preferência
na compra é garantido apenas para os arrendatários. A seguir alguns julgados que corroboram esse entendimento:
CIVIL – PARCERIA AGRÍCOLA – DIREITO DE PREFERÊNCIA.
O direito de preferência que se confere ao arrendatário rural não alcança o contrato de parceria.
Precedentes.
Recurso conhecido pelo dissídio, mas improvido. (STJ, Recurso Especial nº 264.805/MG,
(2000/0063311-9), 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, Julgamento: 21.03.2002)
PARECERIA AGRÍCOLA – Preempção.
300
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
O contrato de parceria agrícola não atribui ao parceiro o direito de preferência na aquisição
do imóvel.
O disposto no art. 92, § 3º, do Estatuto da Terra aplica-se ao contrato de arrendamento. Precedente.
Recuso conhecido e provido. (STJ, Recurso Especial nº 97.405/RS, (REG. 96.350019), 4ª Turma, Rel. Min. Rui Rosado Aguiar, Julgamento: 15.10.1996)
[...]
EMBARGOS DE TERCEIRO – Penhora de bem imóvel. Contrato de parceria. Direito de
preferência na aquisição do bem. Inexistência. Distinção do contrato de parceria com o contrato de arrendamento rural. O arrendatário se encontra em situação de fragilidade, ao assumir
todos os riscos da atividade, enquanto que o parceiro atua em condições de igualdade com o
outro parceiro, pois divide os frutos e os riscos com ele.
Dispositivos protetivos do Estatuto da Terra aplicam-se apenas ao arrendatário, não se estendendo ao contrato de parceria rural.
Precedentes do STJ. Embargos de terceiro improcedentes.
Recurso desprovido. (TS-SP, Ap. 0048949-46.2009.8.26.0000, 20ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Álvaro Torres Júnior, Julgamento: 27.08.2012)
Vemos, portanto, que, diferente do que diz o censo comum, não é líquido e certo o direito de preferência de compra do parceiro outorgado, ressalvado, no entanto, se o referido
direito estiver previsto em contrato.
É importante registrar que, caso o arrendatário seja pessoa jurídica ou se enquadre na
categoria de empresário, não existindo previsão contratual em contrário, temos elementos
para sustentar a inexistência do direito de preferência na compra até mesmo nos casos de
arrendamento rural.
301
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Em Poucas Palavras
Direito de Preferência nos Contratos de Locação
RAUL MONEGAGLIA
Advogado.
O mercado imobiliário no Brasil está bastante aquecido, razão pela qual os preços dos
imóveis chegaram a valorizar quase 100% em algumas regiões no último ano. Com esse
aquecimento, muitos proprietários se vêem diante de oportunidades irrecusáveis de venda
de seus imóveis, estando alugados ou não. Diante desse assédio de investidores e compradores, como fica o locatário?
A lei que disciplina as relações locatícias, Lei nº 8.245/1991, traz duas formas de proteção do locatário: direito de preferência e cláusula de vigência.
O direito de preferência, disciplinado no art. 27 da Lei de Locações, diz que o locatário terá preferência na aquisição do imóvel locado, em igualdade de preço e condições.
Porém, para que essa preferência seja efetivamente respeitada, deve estar averbado na matrícula do imóvel. Caso o contrato não esteja averbado, o locador poderá vender o imóvel
sem respeitar a preferência do locatário na aquisição, restando ao locatário reclamar perdas e danos. Uma vez averbado o contrato, com pelo menos 30 dias anteriores à venda, o
locatário poderá, depositando o preço e demais despesas do ato de transferência, tomar o
imóvel para si, em um prazo de seis meses a contar do registro da transferência (art. 33 da
Lei nº 8.245/1991).
A cláusula de vigência está disciplinada no art. 8º da referida lei, versando que, se o
imóvel for vendido durante a locação, o adquirente poderá denunciar o contrato, com o
prazo de 90 dias, contados da averbação da transferência, salvo se o contrato for por prazo
determinado e o contrato contiver cláusula de vigência em caso de alienação e estiver averbado junto à matrícula do imóvel.
Ou seja, para que o novo adquirente seja obrigado a respeitar o contrato de locação em
curso, esta situação deve ser prevista no contrato, e o mesmo ser averbado junto à matrícula
do imóvel. Exemplo de cláusula: em caso de alienação, o novo adquirente deverá respeitar
o presente contrato em seus termos e condições, consoante o art. 8º da Lei nº 8.245/1991.
Portanto, os locatários devem se certificar se o contrato de locação assinado traz essas
disposições, e providenciar a averbação do contrato de locação junto à matrícula do imóvel.
Dessa maneira, com a valorização dos imóveis, se os locatários não dispuserem do dinheiro
para adquirirem o imóvel, certamente terão a tranquilidade de permanecerem no imóvel até
o final do prazo contratual.
302
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Acórdão na Íntegra
1500
Superior Tribunal de Justiça
Recurso Especial nº 1.175.438 – PR (2010/0007502-0)
Relator: Ministro Luis Felipe Salomão
Recorrente: José Antônio Lunardelli e outro
Advogados: Guilherme José Carlos da Silva
Marcos Cristiano Carinhanha Castro
Recorrido: Esperança de Souza Fidelix e outros
Advogados: Paulo Joaquim de Araújo
Emílio Luiz Augusto Prohmann e outro(s)
EMENTA
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – ARRENDAMENTO RURAL – VENDA E COMPRA DO IMÓVEL POR TERCEIROS –
FALTA DE NOTIFICAÇÃO AO ARRENDATÁRIO – DIREITO DE PREFERÊNCIA – LEI Nº 4.504/1964, ART. 92, § 4º
– DIVERGÊNCIA ENTRE O VALOR CONSTANTE EM CONTRATO PARTICULAR DE COMPRA E VENDA E NA ESCRITURA
PÚBLICA REGISTRADA EM CARTÓRIO DE IMÓVEIS – PRESUNÇÃO DE VERACIDADE DESTA – PRESERVAÇÃO DA
LEGÍTIMA EXPECTATIVA – BOA-FÉ OBJETIVA
1. Apesar de sua natureza privada, o contrato de arrendamento rural sofre repercussões de direito público em razão de sua importância para o Estado, do protecionismo
que se quer dar ao homem do campo e à função social da propriedade e ao meio ambiente, sendo o direito de preferência um dos instrumentos legais que visam conferir
tal perspectiva, mantendo o arrendatário na exploração da terra, garantindo seu uso
econômico.
2. O Estatuto da Terra prevê que: “O arrendatário a quem não se notificar a venda
poderá, depositando o preço, haver para si o imóvel arrendado, se o requerer no prazo
de seis meses, a contar da transcrição do ato de alienação no Registro de Imóveis” (art.
92, § 4º da Lei nº 4.504/1964).
3. A interpretação sistemática e teleológica do comando legal permite concluir que
o melhor norte para definição do preço a ser depositado pelo arrendatário é aquele
consignado na escritura pública de compra e venda registrada no cartório de registro
de imóveis.
4. Não se pode olvidar que a escritura pública é ato realizado perante o notário e que
revela a vontade das partes na realização de negócio jurídico, revestida de todas as
solenidades prescritas em lei, isto é, demonstra de forma pública e solene a substância
do ato, gozando seu conteúdo de presunção de veracidade, trazendo maior segurança
jurídica e garantia para a regularidade da compra.
303
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
5. Outrossim, não podem os réus, ora recorridos, se valerem da própria torpeza para
impedir a adjudicação compulsória, haja vista que simularam determinado valor no
negócio jurídico publicamente escriturado, mediante declaração de preço que não
refletia a realidade, com o fito de burlar a lei, pagando menos tributo, conforme salientado pelo acórdão recorrido.
6. Na hipótese, os valores constantes na escritura pública foram inseridos livremente
pelas partes e registrados em cartório imobiliário, dando-se publicidade ao ato, operando efeitos erga omnes, devendo-se preservar a legítima expectativa e confiança
geradas, bem como o dever de lealdade, todos decorrentes da boa-fé objetiva.
7. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam
os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul
Araújo (Presidente), Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Brasília, 25 de março de 2014 (data do Julgamento).
Ministro Luis Felipe Salomão
Relator
RELATÓRIO
O Senhor Ministro Luis Felipe Salomão (Relator):
1. José Antônio Lunardelli e Ivone Rodrigues Lunardelli ajuizaram ação de adjudicação compulsória em face de Esperança de Souza Fidelix, Benedita das Graças Fidelis
Biscaia, Noel Francisco Biscaia, Jaime Rodrigues de Oliveira e Helena Maria Moreira de
Oliveira visando ao reconhecimento de seu direito de preferência em razão do contrato de
arrendamento rural entabulado, uma vez que, em 28 de setembro de 2001, os três primeiros
réus venderam imóvel rural aos dois últimos, sem terem previamente notificado os autores,
oportunidade em que depositaram o preço.
Em processo conexo, Jaime Rodrigues de Oliveira e Helena Maria Moreira de Oliveira
ajuizaram ação de cobrança de arrendamento rural em face de José Antônio Lunardelli e
Ivone Rodrigues Lunardelli, haja vista que os réus teriam deixado de efetuar o pagamento da
renda da terra aos autores no importe de R$ 11.907,00 (onze mil, novecentos e sete reais).
O magistrado de piso julgou procedente a adjudicação compulsória, afastando eventual
alegação de ocorrência de notificação verbal, bem como definindo que o preço do negócio
deveria ser aquele constante da escritura pública de venda e compra ora impugnada.
304
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
No tocante à ação de cobrança, extinguiu o feito por não serem os autores legítimos
proprietários diante do reconhecimento da adjudicação forçada.
Interposta apelação, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná deu provimento ao recurso, sustentando que não houve o depósito integral do preço real da venda, apto a ensejar
a adjudicação, nos termos do seguinte acórdão:
APELAÇÃO CÍVEL – ARRENDAMENTO RURAL – COMPRA E VENDA DO IMÓVEL ARRENDADO – AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA PELO ARRENDATÁRIO E DE COBRANÇA PELO ARRENDANTE – JULGAMENTO SIMULTÂNEO – RECURSO DO ARRENDANTE
– PRELIMINAR – NULIDADE DA SENTENÇA – CERCEAMENTO DE DEFESA – INOCORRÊNCIA – DESNECESSIDADE DE PROVA TESTEMUNHAL E DEPOIMENTOS PESSOAIS – NECESSIDADE DE NOTIFICAÇÃO POR ESCRITO DO ADJUDICANTE – ART. 94, § 3º DA LEI Nº
4.504/1964 – MÉRITO – ESCRITURA DE COMPRA E VENDA – VALOR DO IMÓVEL MENOR
QUE O REAL – INTENÇÃO DE BURLAR O FISCO – ADJUDICAÇÃO PELO VALOR A MENOR
– IMPOSSIBILIDADE – VALOR CORRETO QUE DEVERIA TER SIDO DEPOSITADO – MODIFICAÇÃO DA SENTENÇA – IMPROCEDÊNCIA DO PLEITO ADJUDICATÓRIO – SUCUMBÊNCIA – INVERSÃO – RECURSO PROVIDO EM PARTE.
Opostos aclaratórios, o recurso foi rejeitado.
Irresignados, interpõem recurso especial com fundamento no art. 105, III, a e c, da
Constituição Federal, por ofensa ao disposto no art. 92, §§ 3º e 4º, da Lei nº 4.504/1964.
Sustentam que, por serem arrendatários rurais e não terem sido notificados acerca da
alienação do bem, têm direito de preferência à adjudicação do imóvel em questão.
Aduzem que o preço a ser depositado é o de R$ 29.000,00 (vinte e nove mil), “valor
este que consta da Escritura Pública de Compra e Venda (fls. 23-24) como sendo o pago
pela alienação do imóvel” e não o de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais), importância que
– segundo o acórdão – seria a real quantia envolvendo o negócio, por estar prevista em instrumento particular de compra e venda.
Salientam que a escritura pública é documento oficial, firmado em cartório, possuindo
presunção de veracidade, não tendo a mesma serventia um contrato particular de compra e
venda que foi devidamente impugnado.
Alegam que o preço “a qual a lei se refere, é unicamente aquele constante da escritura,
até porque conta-se dela o prazo para requerer a adjudicação, e não de um negócio particular qualquer, firmado entre as partes, do qual, frise-se, os recorrentes não tinham como
ter conhecimento”.
Afirmam que não se pode aceitar a alegação de que o valor a menor constante do registro imobiliário teria sido apenas para fins de burla ao fisco, haja vista que se trata de prática ilegal e pela qual os recorrentes seriam penalizados, até porque não teriam eles “como
saber o valor correto da alienação, em clara afronta à segurança jurídica”, sendo que ao
final seriam beneficiados pela desonestidade.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
TJRS.
Direito de Preferência
Asseveram que há divergência jurisprudencial com a Apelação nº 70008530966 do
Em relação à ação conexa de cobrança, a decisão transitou em julgado.
Contrarrazões ao recurso especial apresentadas às fls. 365-371. Alegam incidência da
Súmula nº 7/STJ; que não teria havido o devido cotejo entre os julgados; e que o contrato de
arrendamento agrícola não teria contemplado o exercício do direito de preferência.
Crivo positivo de admissibilidade na origem, fls. 372-375.
É o relatório.
EMENTA
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – ARRENDAMENTO RURAL – VENDA E COMPRA DO IMÓVEL POR TERCEIROS –
FALTA DE NOTIFICAÇÃO AO ARRENDATÁRIO – DIREITO DE PREFERÊNCIA – LEI Nº 4.504/1964, ART. 92, § 4º
– DIVERGÊNCIA ENTRE O VALOR CONSTANTE EM CONTRATO PARTICULAR DE COMPRA E VENDA E NA ESCRITURA
PÚBLICA REGISTRADA EM CARTÓRIO DE IMÓVEIS – PRESUNÇÃO DE VERACIDADE DESTA – PRESERVAÇÃO DA
LEGÍTIMA EXPECTATIVA – BOA-FÉ OBJETIVA
1. Apesar de sua natureza privada, o contrato de arrendamento rural sofre repercussões
de direito público em razão de sua importância para o Estado, do protecionismo que se
quer dar ao homem do campo e à função social da propriedade e ao meio ambiente,
sendo o direito de preferência um dos instrumentos legais que visam conferir tal perspectiva, mantendo o arrendatário na exploração da terra, garantindo seu uso econômico.
2. O Estatuto da Terra prevê que: “O arrendatário a quem não se notificar a venda
poderá, depositando o preço, haver para si o imóvel arrendado, se o requerer no prazo
de seis meses, a contar da transcrição do ato de alienação no Registro de Imóveis” (art.
92, § 4º da Lei nº 4.504/1964).
3. A interpretação sistemática e teleológica do comando legal permite concluir que
o melhor norte para definição do preço a ser depositado pelo arrendatário é aquele
consignado na escritura pública de compra e venda registrada no cartório de registro
de imóveis.
4. Não se pode olvidar que a escritura pública é ato realizado perante o notário e que
revela a vontade das partes na realização de negócio jurídico, revestida de todas as
solenidades prescritas em lei, isto é, demonstra de forma pública e solene a substância
do ato, gozando seu conteúdo de presunção de veracidade, trazendo maior segurança
jurídica e garantia para a regularidade da compra.
5. Outrossim, não podem os réus, ora recorridos, se valerem da própria torpeza para
impedir a adjudicação compulsória, haja vista que simularam determinado valor no
negócio jurídico publicamente escriturado, mediante declaração de preço que não
refletia a realidade, com o fito de burlar a lei, pagando menos tributo, conforme salientado pelo acórdão recorrido.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
6. Na hipótese, os valores constantes na escritura pública foram inseridos livremente
pelas partes e registrados em cartório imobiliário, dando-se publicidade ao ato, operando efeitos erga omnes, devendo-se preservar a legítima expectativa e confiança
geradas, bem como o dever de lealdade, todos decorrentes da boa-fé objetiva.
7. Recurso especial provido.
VOTO
O Senhor Ministro Luis Felipe Salomão (Relator):
2. O ponto principal da controvérsia é definir qual o preço a ser depositado pelo arrendatário, em ação de adjudicação compulsória de imóvel rural, quando não houver sido
devidamente notificado da venda, com violação ao seu direito de preempção na aquisição
do bem.
O acórdão recorrido entendeu que deveria ser o preço definido em contrato particular
de compra e venda existente entre o proprietário e terceiro:
[...]
Passando então à análise do mérito do recurso, os apelantes sustentam a necessidade de reformar a decisão que concedeu a adjudicação compulsória, porque os apelados teriam conhecimento do negócio e, inclusive, ter-Ihes-ia aconselhado a realizar a compra e venda e, quanto
a este, é de ser dado provimento ao apelo.
Compulsando os autos verifica-se que houve o contrato de arrendamento rural entabulado
entre os três primeiros apelantes e apelados e que este contrato estava em vigência quando da
compra e venda efetuada, o que confere o direito reconhecido pelo art. 92, § 4º do Estatuto
da Terra ao arrendatário de adjudicar o bem imóvel depositando o valor pago pelos compradores, posto que desrespeitada a preferência, havendo, a principio, o direito dos apelados à
adjudicação do bem.
Ocorre que o negócio, segundo consta da escritura pública (fl. 234), se deu pelo valor de R$
29.000,00 enquanto o contrato de compra e venda evidencia que o valor pago pelo casal
comprador foi de R$ 40.000,00 (fl. 44), apontando uma prática muito comum e corriqueira
nos negócios envolvendo transação de imóveis, que é a colocação, na escritura, de valores
inferiores aos reais com o fito de burlar o fisco a pagar um valor menor a título de imposto de
transmissão de bens inter vivos (lTBI).
Não se pode admitir que a adjudicação do bem se dê pelo valor não verdadeiro, sob pena de
se estar premiando o adjudicante pela irregularidade cometida entre vendedor e comprador,
o que não é a medida mais justa a ser adotada, ainda mais porque o adjudicante tinha conhecimento de que o valor do imóvel não era aquele constante da escritura, vez que morava no
imóvel desde 1997 e teria, inclusive, aconselhado os três primeiros apelantes a fazer o negócio
porque seria um bom investimento.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Nesta toada, somente poderia ser admitida a adjudicação pelos apelados, se efetuassem o
depósito não dos R$ 29.000,00, mas sim dos RS 40.000,00 que é o real valor do negocio,
posto que a preferência dada pelo Estatuto da Terra tem por escopo garantir que aquele que
já se encontra em um imóvel trabalhando e retirando o seu sustento possa continuar com a
atividade, mas não tem por escopo propiciar o enriquecimento sem causa.
Daí porque a adjudicação, nos moldes em que pretendida não pode ser procedente, não se
podendo utilizar do Poder Judiciário para obter pretensão indevida, ensejando, desse modo, a
reforma da sentença para dar pela improcedência da adjudicação na forma em que foi proposta. (fls. 269-274)
Dessarte, da leitura do julgado dessume-se que havia um contrato de arrendamento
rural entre as partes, em plena vigência, quando ocorrida a venda da propriedade a terceiros, com desrespeito ao direito de preferência dos arrendatários que não foram devidamente
notificados, surgindo a pretensão à adjudicação compulsória.
Portanto, não se discute mais no presente recurso quanto à falta de ciência do arrendatário – ausência da notificação prévia – e também quanto ao fato de a ação ter sido intentada dentro do prazo decadencial – 6 (seis) meses a contar da escritura de compra e venda
no Registro de Imóveis –, remanescendo apenas a definição do preço a ser depositado para
fins de transferência forçada do imóvel (Lei nº 4.505/1964, art. 92, § 4º).
3. Como instrumento típico de direito agrário, o contrato de arrendamento rural
também é regido por normas de caráter público e social, de observação obrigatória e, por
isso, irrenunciáveis, tendo como finalidade precípua a proteção daqueles que, pelo seu trabalho, tornam a terra produtiva e dela extraem riquezas, dando efetividade à função social
da terra.
Realmente, apesar de sua natureza privada, o contrato de arrendamento sofre repercussões de direito público em razão de sua importância para o Estado, do protecionismo
que se quer dar ao homem do campo e à função social da propriedade e ao meio ambiente,
sendo o direito de preferência um dos instrumentos legais que visam conferir tal perspectiva,
mantendo o arrendatário na exploração da terra, garantindo seu uso econômico.
No que interessa, o art. 92 do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) e o art. 45 do Decreto nº 59.566/1966 (que regulamentou a lei) preveem, no tocante ao arrendamento rural,
respectivamente, que:
Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou
tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária,
sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa,
nos termos desta Lei. [...]
§ 3º No caso de alienação do imóvel arrendado, o arrendatário terá preferência para adquiri-lo
em igualdade de condições, devendo o proprietário dar-lhe conhecimento da venda, a fim de
que possa exercitar o direito de perempção dentro de trinta dias, a contar da notificação judicial ou comprovadamente efetuada, mediante recibo.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
§ 4º O arrendatário a quem não se notificar a venda poderá, depositando o preço, haver para
si o imóvel arrendado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar da transcrição do ato de
alienação no Registro de Imóveis.
Art. 45. Fica assegurado a arrendatário o direito de preempção na aquisição do imóvel rural
arrendado. Manifestada a vontade do proprietário de alienar o imóvel, deverá notificar o arrendatário para, no prazo, de 30 (trinta) dias, contado da notificação, exercer o seu direito (art.
92, § 3º do Estatuto da Terra).
Art. 47. O arrendatário a quem não se notificar a venda, poderá depositando o preço, haver
para si o imóvel arrendado, se o requerer no prazo de 6 (seis) meses, a contar da transcrição
da escritura de compra e venda no Registro Geral de Imóveis local, resolvendo-se em perdas
e danos o descumprimento da obrigação (art. 92, § 4º, do Estatuto da Terra).
Portanto, a norma confere expressamente o direito de preferência, legal e real, outorgada ao arrendatário como garantia do uso econômico da terra explorada por ele, direito
que é exclusivo do preferente em adquirir o imóvel arrendado, em igualdade de condições,
sendo uma forma de restrição ao direito de propriedade do arrendante.
Dessarte, vendendo o arrendador o imóvel sem a notificação do arrendatário, como
no caso em julgamento, aparece a pretensão do arrendatário em ver declarada a invalidade
do negócio entre arrendador e o terceiro, adjudicando o imóvel ao peremptor, desde que
realizada no prazo decadencial de 6 (seis) meses e efetuado o depósito do preço.
Aliás, já definiu o STJ que “a prova do depósito do preço para adjudicação do bem, na
petição inicial, é condição de procedibilidade da ação” (REsp 824.023/MS, 3ª T., Rel. Min.
Sidnei Beneti, J. 18.05.2010, DJe 18.06.2010).
4. Realmente, no tocante ao preço, como se percebe, a lei nem o seu regulamento
foram suficientemente claros sobre qual seria o valor a ser depositado.
A interpretação sistemática e teleológica do comando legal leva à conclusão de que o
melhor norte para definição do preço a ser depositado pelo arrendatário é aquele consignado na escritura pública de compra e venda registrada em cartório.
Isso porque a própria lei estabelece como marco legal para o exercício do direito de
preferência a data da transcrição da escritura pública no registro de imóveis, ou seja, confere ao arrendatário o prazo de 6 (seis) meses para depositar o preço constante do ato de alienação do imóvel a que teve conhecimento por meio da transcrição no cartório imobiliário.
Nessa linha de intelecção, por consectário lógico, o arrendatário, ao tomar conhecimento do ato da alienação no registro de imóveis, verifica o preço lá declarado – constante
da escritura pública – e efetua o depósito (se houver o intento na aquisição do imóvel), exercendo no momento próprio a faculdade que o ordenamento jurídico vigente lhe concedeu.
De fato, caso não fosse assim, como poderiam os preferentes saber o preço verdadeiro
a ser depositado? Deveriam investigar com os réus, justamente as pessoas que almejaram a
sua exclusão do negócio jurídico?
309
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Aliás, o Min. Eduardo Ribeiro, no julgamento do REsp 2.223/RS, tratando de questão
similar – depósito do preço no valor da escritura –, enfatizou em seu voto que:
Igualmente, não me parece lícito fazer com que se tenha, como nele compreendida, importância que não constou da escritura. A ser de modo diverso, estaria aberta a porta ampla para contornar possível direito do arrendatário que não saberia do preço que se pretende verdadeiro, já
que o que dele se há de exigir é a consulta à escritura.
Não se pode olvidar que a escritura pública é um ato realizado perante o notário que revela a
vontade das partes na realização de negócio jurídico, revestida de todas as solenidades prescritas em lei, isto é, demonstra de forma pública e solene a substância do ato, gozando o seu
conteúdo de presunção de veracidade, trazendo maior segurança jurídica e garantia para a
regularidade da compra.
Pontes de Miranda, ao lecionar sobre referido instrumento público, destaca que “se não é nula
a escritura, tem a presunção de ser verdadeiro o seu conteúdo, inclusive quanto à vontade dos
figurantes, e de se terem observadas as regras jurídicas sôbre forma” (Tratado de direito privado: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. 3, 2012. p. 459-460).
Com efeito, referido instrumento é requisito formal de validade do negócio jurídico de
compra de imóvel em valor superior a 30 salários mínimos (CC, art. 108), justamente por
sua maior segurança e por expressar a realidade econômica da transação, para diversos fins.
Ademais, na interpretação dos enunciados do Estatuto da Terra, norma direcionada à
máxima proteção e preservação do trabalhador do campo, não se pode, “por uma interpretação extensiva, restringir a eficácia do direito de preferência do arrendatário rural” (REsp
1148153/MT, 3ª T., Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, J. 20.03.2012, DJe 12.04.2012).
Esse entendimento também é o corroborado pela doutrina especializada, senão vejamos:
O preço que deverá depositar é integrado do valor constante na escritura de compra e venda
firmada entre o arrendador ou parceiro-outorgante e o terceiro, devidamente corrigido, acrescido de juros legais e as despesas da venda, como as de pagamento de impostos, comissão de
corretagem e gastos com a própria escritura.
(BARROS, Wellington Pacheco. Curso de direito agrário. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, v. 1, 2009. p. 134)
[...]
O preço de que cogita o § 4º do art. 92 do ET é o preço da venda, consignado na escritura,
e não outro. Ademais, a referência – igualdade de condições – constante do § 3º, do mesmo
artigo, reforça esse entendimento. [...]
Quando a lei fala nas mesmas condições, quer se referir ao preço fixado na compra e venda e
constante da escritura transcrita, porque o objeto da obrigação é indivisível.
(OPTIZ, Silvia C. B.; OPTIZ, Oswaldo. Curso completo de direito agrário. 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012. p. 322-323)
[...]
310
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Muitas vezes, o terceiro que compra o imóvel arrendado faz contrato preliminar, e, ao registrá-lo, a escritura definitiva fica divergente daquele. Perante o arrendatário, o que vai valer,
podendo gerar seu direito de adjudicação, é o que estiver escriturado no Cartório de Registro
de Imóveis. A eficácia do contrato preliminar ficará apenas perante as partes contratantes.
(RAMOS, Helena Maria Bezerra. Contrato de arrendamento rural. Curitiba: Juruá, 2012. p.
112)
[...]
Para exercer o seu direito, o interessado dever propor a ação judicial competente, fazendo,
desde logo, o depósito do preço constante da escritura pública, condição essa indispensável
para a procedência da ação.
(MACHADO, Antonio Luiz Ribeiro. Manual prático dos contratos agrários e pecuários. 3. ed.
São Paulo: Saraiva, 1991. p. 122)
5. Outrossim, não podem os réus, ora recorridos, se valerem da própria torpeza para
impedir a adjudicação compulsória, haja vista que simularam determinado valor no negócio jurídico publicamente escriturado, mediante declaração de preço que não refletia a
realidade, com o fito de burlar a lei – pagando menos tributo –, conforme salientado pelo
acórdão recorrido:
Ocorre que o negócio, segundo consta da escritura pública (fl. 234), se deu pelo valor de R$
29.000,00 enquanto o contrato de compra e venda evidencia que o valor pago pelo casal
comprador foi de R$ 40.000,00 (fl. 44), apontando uma pratica muito comum e corriqueira
nos negócios envolvendo transação de imóveis, que é a colocação, na escritura, de valores
inferiores aos reais com o fito de burlar o fisco a pagar um valor menor a título de imposto de
transmissão de bens inter vivos (lTBI).
Realmente, estabelece o art. 104 do CC/1916, aplicável à época dos fatos, que:
“Tendo havido intuito de prejudicar a terceiros, ou infringir preceito de lei, nada poderão alegar, ou requerer os contraentes em juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um contra
o outro, ou contra terceiros.”
Asseveram nesse sentido Washington de Barros e Caio Mário, respectivamente, que:
Nessas condições, se a simulação tem por escopo prejudicar a terceiro, os simuladores nada
poderão alegar contra o ato; ninguém será admitido a alegar a própria torpeza (nemo de improbitate sua consequitur actionem). Assim também se a simulação visou a infringir preceito
legal, a parte nada pode argüir ou requerer em juízo no tocante a ela, de acordo ainda com o
mesmo art. 104.
(Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1997. p. 218)
[...]
311
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Visto que, na simulação maliciosa, as pessoas que participam do ato estão movidas do propósito de violar a lei ou prejudicar alguém, não poder arguir o defeito, ou alegá-lo em litígio de
uma contra a outra, pois o direito não tolera que alguém seja ouvido quando alega a própria
má-fé: nemo auditur propriam turpitudinem allegans. Se o ato é bilateral e foi simuladamente
realizado, ambas as partes procederam de má-fé, e nele coniventes ambas, a nenhuma é lícito
invocá-lo contra a eficácia da declaração de vontade. Se o ato é unilateral, foi o próprio agente
quem procedeu contra direito, e não tem qualidade para, propriam turpitudinem allegans ,
pleitear a sua ineficácia.
(Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, v. 1, 1998, p. 340)
A jurisprudência do STJ não destoa desse entendimento, senão vejamos:
CIVIL E PROCESSUAL – ACÓRDÃO ESTADUAL – NULIDADE NÃO CONFIGURADA – VENDA DE IMÓVEL PELO DE CUJUS AO RÉU – NEGÓCIO ALEGADAMENTE SIMULADO, PARA
FUGIR A APREENSÃO DO BEM EM LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL – AÇÃO MOVIDA PELOS HERDEIROS, OBJETIVANDO A REINTEGRAÇÃO DO IMÓVEL AO PATRIMÔNIO DO
ESPÓLIO – IMPOSSIBILIDADE – ÓBICE PREVISTO NO ART. 104 DO CÓDIGO CIVIL ANTERIOR, EM RELAÇÃO AO FALECIDO, QUE NÃO TEM COMO SER SUPERADO EM FAVOR
DOS HERDEIROS – DIREITO À HERANÇA QUE NÃO PODE SER MAIOR DO QUE OS DIREITOS DA PESSOA EXTINTA, SE A SUPOSTA FRAUDE NÃO FOI FEITA EM DESFAVOR DOS
HERDEIROS OU DO ESPÓLIO, MAS CONTRA TERCEIROS
I – Não há omissão, contradição ou obscuridade no acórdão recorrido, apenas entendimento
contrário à pretensão dos recorrentes.
II – Constitui princípio consagrado na lei substantiva civil não poder invocar a nulidade do
ato simulado aquele que o praticou, valendo-se da própria torpeza para desfazer o negócio.
III – Da mesma forma, substituindo o fraudador falecido, seus herdeiros não poderão postular
essa nulidade, uma vez que o direito de herança não lhes confere direitos maiores do que
aqueles herdados da pessoa extinta. Diferente seria se a simulação houvesse sido feita com o
objetivo específico de lesar os herdeiros, o que não é o caso em questão.
IV – Recurso especial não conhecido.
(REsp 296.064/RJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Rel. p/ Ac. Min. Aldir Passarinho Junior, 4ª
T., J. 04.09.2003, DJ 29.03.2004, p. 245)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – SIMULAÇÃO – DOCUMENTO FIRMADO NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 – ALEGAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE
1. A alegação de simulação de documento firmado ainda na vigência do Código Civil de 1916
não pode ser invocada pela parte com intuito de invalidá-lo. Incidência do princípio nemo
auditur propriam turpitudinem allegans (ninguém pode se beneficiar da própria torpeza).
2. Agravo regimental provido para não conhecer do recurso especial.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
(AgRg-REsp 747.953/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 4ª T., J. 23.02.2010, DJe
08.03.2010)
ADMINISTRATIVO – INSTITUTO BRASILEIRO DO CAFÉ – CONTRATO PARA AQUISIÇÃO
NO MERCADO INTERNACIONAL DE CAFÉ – OPERAÇÃO “PATRÍCIA” OU “LONDON TERMINAL” – MANOBRAS ESPECULATIVAS – PRETENSA NULIDADE DO CONTRATO NÃO
AFASTA O DEVER DE INDENIZAR O CONTRATADO DE BOA-FÉ – IMPOSSIBILIDADE DE
PRESUMIR A MÁ-FÉ – SÚMULA Nº 07/STJ – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO –
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE E LEGITIMIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS
[...]
2. Alegação de invalidade pela própria parte que o engendrou, resultando na violação do
princípio que veda a invocação da própria torpeza ensejadora de enriquecimento sem causa
[...].
11. Deveras, é princípio assente no ordenamento que “Tendo havido intuito de prejudicar
a terceiros, ou infringir preceito de lei, nada poderão alegar, ou requerer os contratantes em
juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiros” (art.
104, do Código Civil de 1916), motivo pelo qual, veda-se à União, beneficiando-se da própria
torpeza, consubstanciada na simulação perpetrada com a finalidade de manipular o mercado
do café, alegar a nulidade do contrato sub examine.
[...]
13. Recurso especial conhecido, mas desprovido.
(REsp 547.196/DF, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª T., J. 06.04.2006, DJ 04.05.2006, p. 134, REPDJ
19.06.2006, p. 100)
Na hipótese, os valores constantes na escritura pública foram inseridos livremente
pelas partes e registrados em cartório imobiliário, dando-se publicidade ao ato, operando
efeitos erga omnes, devendo-se, a meu juízo, preservar a legítima expectativa e confiança
geradas, bem como o dever de lealdade, todos decorrentes da boa-fé objetiva.
É de se ver que a doutrina especializada destaca o fato de a simulação referente ao
preço do imóvel não ter valia frente aos parceiros e arrendatários, verbis:
O proprietário do imóvel alienado que fez lavrar a escritura de compra e venda por preço
simulado, isto é, inferior ao real, está ensejando ao arrendatário e ao parceiro que ocupam o
imóvel o exercício do seu direito de preferência com base nesse preço irreal.
Além disso, estará sujeito a indenizar o comprador frustrado pelo preço realmente dele recebido.
Os proprietários de imóveis rurais devem atentar para esse fato, porque é praxe, em nosso
meio rural, tendo em vista o tradicional temor dos encargos fiscais, fazerem lavrar as escrituras
de compra e venda de imóveis rurais por preço sempre inferior ao realmente percebido.
313
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
(MACHADO, Antonio Luiz Ribeiro. Manual prático dos contratos agrários e pecuários. 3. ed.
São Paulo: Saraiva, 1991. p. 124)
Portanto, deve-se reconhecer a ineficácia da alienação do imóvel rural perante os arrendatários.
Assim, restabeleço a sentença para adjudicar aos autores o imóvel objeto da matrícula
nº 7.547, descrito na inicial, pelo preço do depósito constante da escritura pública de e-fls.
27-28.
6. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para, restabelecendo a sentença, declarar a ineficácia da venda e compra efetuada pelos recorridos e adjudicar aos
autores o imóvel objeto da matrícula nº 7.547, descrito na inicial, pelo preço do depósito
constante da escritura pública de e-fls. 27-28.
Custas e honorários de advogado pelos réus, estes que ora fixo em 10.000,00 (dez mil
reais).
É como voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUARTA TURMA
Número Registro: 2010/0007502-0
Processo Eletrônico REsp 1.175.438/PR
Números Origem: 5002442 500244201 500244202
Pauta: 25.03.2014
Julgado: 25.03.2014
Relator: Exmo. Sr. Ministro Luis Felipe Salomão
Presidente da Sessão: Exmo. Sr. Ministro Raul Araújo
Subprocurador-Geral da República: Exmo. Sr. Dr. Hugo Gueiros Bernardes Filho
Secretária: Belª Teresa Helena da Rocha Basevi
AUTUAÇÃO
Recorrente: José Antônio Lunardelli e outro
Advogados: Guilherme José Carlos da Silva
Marcos Cristiano Carinhanha Castro
Recorrido: Esperança de Souza Fidelix e outros
Advogados: Paulo Joaquim de Araújo
Emílio Luiz Augusto Prohmann e outro(s)
Assunto: Direito civil – Obrigações – Espécies de contratos – Compra e venda
314
Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr(a). Marcos Cristiano Carinhanha Castro, pela parte recorrente: José
Antônio Lunardelli
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia Quarta Turma, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão
realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Quarta Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto
do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Raul Araújo (Presidente), Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Ementário
1501 – Arrematação – direito de preferência – prazo
“Agravo regimental em agravo (art. 544 do CPC). Arrematação. Direito de preferência. Prazo para exercê-lo.
Dissídio jurisprudencial. Ausência de indicação de dispositivo que teria recebido interpretação divergente.
Súmula nº 284 do STF. Insurgência do arrematante. 1. Não se revela cognoscível a insurgência, por não ter a
ora agravante apontado o dispositivo legal supostamente violado. É que a indicação do artigo tido como objeto
da divergência jurisprudencial é imprescindível para a correta configuração do dissídio, nos termos do art.
105, III, c, da Constituição Federal. Contudo, esta circunstância não se verifica na espécie, motivo pelo qual
vislumbra-se a incidência da Súmula nº 284 do STF. 2. Agravo regimental desprovido.” (STJ – AgRg-Ag-REsp
61.155 – (2011/0235293-5) – 4ª T. – Rel. Min. Marco Buzzi – DJe 14.05.2013)
1502 – Direito agrário – direito de preferência – aquisição do imóvel – exclusividade do arrendatário – requisitos
“Direito agrário. Processo civil. Recurso especial. Direito de preempção na aquisição do imóvel rural (art.
92, § 3º, do Estatuto da Terra). Exclusividade do arrendatário. Requisitos do contrato de arrendamento rural.
Inocorrência. Ausência de transmissão da posse. Natureza jurídica de locação de pastagem. Matéria fático-probatória. Súmula nº 7/STJ. 1. Não ocorre violação ao art. 535 do Código de Processo Civil quando o
juízo, embora de forma sucinta, aprecia fundamentadamente todas as questões relevantes ao deslinde do
feito, apenas adotando fundamentos divergentes da pretensão do recorrente. Precedentes. 2. ‘Presente a coisa julgada, esta prevalece sobre a declaração de incompetência, ainda que absoluta, em observância aos
princípios da coisa julgada, segurança jurídica, economia e celeridade processual’ (AgRg-CC 84.977/RS, Rel.
Min. Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, Julgado em 11.11.2009, DJe 20.11.2009). 3. O direito de preferência
previsto no Estatuto da Terra beneficia tão somente o arrendatário, como garantia do uso econômico da terra explorada por ele, sendo direito exclusivo do preferente. 4. Como instrumento típico de direito agrário,
o contrato de arrendamento rural também é regido por normas de caráter público e social, de observação
obrigatória e, por isso, irrenunciáveis, tendo como finalidade precípua a proteção daqueles que, pelo seu
trabalho, tornam a terra produtiva e dela extraem riquezas, dando efetividade à função social da terra. 5.
O prazo mínimo do contrato de arrendamento é um direito irrenunciável que não pode ser afastado pela
vontade das partes sob pena de nulidade. 6. Consoante o pacificado entendimento desta Corte, não se faz
necessário o registro do contrato de arrendamento na matrícula do imóvel arrendado para o exercício do
direito de preferência. Precedentes. 7. Na trilha dos fatos articulados, afasta-se a natureza do contrato de
arrendamento para configurá-lo como locação de pastagem, uma vez que não houve o exercício da posse
direta pelo tomador da pastagem, descaracterizando-se o arrendamento rural. Chegar à conclusão diversa
demandaria o reexame do contexto fático-probatório dos autos, o que encontra óbice na Súmula nº 7 do STJ.
8. Não há falar em coisa julgada em relação à natureza jurídica do contrato por se ter reconhecido em ação anterior (ação de obrigação de fazer cumulada com consignação em pagamento) o arrendamento rural, haja vista
que os motivos para o julgamento daquele pleito, não fazem coisa julgada na presente ação de preferência (art.
469 do CPC). 9. A admissibilidade do recurso especial, na hipótese da alínea c do permissivo constitucional,
exige a indicação das circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados, mediante o
cotejo dos fundamentos da decisão recorrida com o acórdão paradigma, a fim de demonstrar a divergência
jurisprudencial existente (arts. 541 do CPC e 255 do RISTJ). 10. Recurso especial a que se nega provimento.”
(STJ – REsp 1.339.432 – (2012/0173718-7) – 4ª T. – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – DJe 23.04.2013)
1503 – Direito de preferência – alienação de imóveis – ilegalidade – inexistência
“Administrativo. Contrato. Permissão de uso. Alienação de imóveis. Direito de preferência. Ilegalidade. Inexistência. 1. Ainda que se admitisse a celebração de contrato de permissão de uso verbal, tal como alegado
pelas partes no decorrer do processo, a autora não faria jus ao reconhecimento do direito de preferência para
a aquisição do imóvel em que reside, de propriedade da RFFSA, nos termos do item 7 do Edital do Procedi-
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
mento de Concorrência Pública de Alienação de Imóveis nº 007/ERJUF/97, por se encontrar inadimplente em
relação ao pagamento das prestações mensais pela utilização do bem, assim como da Taxa de Permissão de
Uso – TPU. 2. Apelação provida.” (TRF 2ª R. – AC 2009.51.19.000088-1 – Rel. Des. Fed. Luiz Paulo da Silva
Araújo Filho – DJe 31.05.2012)
1504 – Direito de preferência – alienação judicial de bem penhorado – inexistência
“Processual civil. Agravo regimental em agravo de instrumento. Legitimidade para postular em nome do locatário. Direito de preferência em alienação judicial de bem penhorado. Inexistência. Nulidade afastada.
Preço vil não caracterizado. 1. A agravante carece de legitimidade para postular a transferência do imóvel à
empresa locatária mediante aceitação do lance por esta ofertado após a lavratura do auto de arrematação. 2.
Inaplicável o direito de preferência do locatário em alienação judicial de bem penhorado. Nulidade afastada.
3. A arrematação efetivada por menos da metade do valor da avaliação será considerada preço vil (precedentes do STJ). 4. Agravo regimental a que se nega provimento.” (TRF 1ª R. – AgRg-AI 2009.01.00.026835-5/
RO – Relª Desª Fed. Maria do Carmo Cardoso – DJe 23.05.2014)
1505 – Direito de preferência – imóvel funcional – aquisição
“Embargos de declaração conhecidos como agravo regimental. Recurso extraordinário. Devido processo legal.
Ausência de prequestionamento. Militar. Imóvel funcional. Direito de preferência na aquisição. Reexame de
fatos e provas. Súmula nº 279. Matéria infraconstitucional. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STF
– EDcl-AI 523.170 – Rel. Min. Joaquim Barbosa – DJe 26.10.2012)
1506 – Locação – ação indenizatória – bem alienado a terceiro – direito de preferência – desrespeito
“Recurso especial (art. 105, III, a e c, da CF). Ação indenizatória. Contrato de locação. Bem alienado a terceiro.
Desrespeito ao direito de preferência do locatário. Averbação do ajuste no registro imobiliário. Prescindibilidade. Perdas e danos. Quantum a ser fixado em liquidação. Recurso especial parcialmente conhecido e provido. 1. Não se conhece da alegação de afronta ao art. 128 do CPC, por suposto julgamento extra ou ultra petita,
quando a matéria deixou de ser debatida nas instâncias ordinárias, padecendo, portanto, do devido prequestionamento. Incidência das Súmulas nºs 282/STF e 211/STJ. 2. A averbação do contrato de locação no registro
imobiliário é medida necessária apenas para assegurar ao locatário o direito real de perseguir e haver o imóvel
alienado a terceiro, dentro dos prazos e observados os pressupostos fixados na Lei nº 8.425/1991. A falta dessa
providência não inibe, contudo, o locatário de demandar o locador alienante por violação a direito pessoal,
reclamando deste as perdas e danos que porventura vier a sofrer pela respectiva preterição. Precedentes. 3.
Uma vez delineados os danos emergentes e lucros cessantes pretendidos pelo demandante na petição inicial
da ação indenizatória, juridicamente viável se afigura o diferimento da apuração e efetiva comprovação das
perdas e danos na fase subsequente de liquidação de sentença. 4. Recurso especial parcialmente conhecido
e, em tal extensão, provido.” (STJ – REsp 912.223 – (2006/0259401-7) – 4ª T. – Rel. Min. Marco Buzzi – DJe
17.09.2012)
1507 – Locação – alienação do imóvel – direito de preferência – não observação – ação anulatória – admissibilidade
“Direito de preferência. Locação. Ação anulatória. Interesse de agir. O inquilino pode promover ação para
anular atos jurídicos que poderiam prejudicar o seu direito de preferência à aquisição do imóvel. Recurso
conhecido e provido.” (STJ – REsp 475.132/PR – 4ª T. – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – DJ 15.12.2003)
Comentário Editorial SÍNTESE
Trata o presente caso do direito de preferência do locatário na ocorrência da alienação de imóvel.
O inquilino ingressou com ação anulatória para que os atos jurídicos produzidos pela adjudicação do imóvel
fossem anulados, alegando serem atos simulados. Os réus intentaram agravo contra a decisão de 1º grau
suscitando inépcia da inicial e falta de interesse de agir.
O Tribunal de Justiça do Paraná acolheu a preliminar de ausência de interesse de agir exclusivamente em
relação à ação anulatória.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Inconformada, a autora ingressou com recurso especial alegando que o acórdão recorrido divergiu de julgado
do 2º TAC SP, que entendeu anulável alienação de imóvel ocorrida antes do prazo legal para o exercício do
direito de preferência pelo locatário. Diz também que, segundo entendimento do STF (RE 113.417/8), é
anulável o ato que viola o direito de preferência. Afirmou, ainda, haver efetivo interesse de agir na ação anulatória, pois não lhe é possível formular o pedido de adjudicação e efetuar o depósito do preço, nos moldes
do exigido no acórdão, uma vez que, no caso, inexistiu compra e venda, mas mera simulação de negócio
jurídico de permutas, por meio da qual se preteriu seu direito de preferência. Esta a razão de estar pleiteando
a anulação do negócio e não a adjudicação do bem.
O STJ conheceu do recurso para que a ação anulatória tivesse prosseguimento. O Relator, assim, se manifestou:
“É que o inquilino que vê seu direito fraudado com procedimento destinado a burlar a regra legal e impedir
o exercício de eventual direito de preferência, no caso a alienação do imóvel locado, tem todo o interesse
em afastar esse empecilho que a malícia teria colocado como obstáculo à sua efetividade. Ao menos para o
fim do direito derivado da locação, os atos viciados podem ter sua validade e eficácia examinadas em juízo.”
José da Silva Pacheco, ao discorrer sobre o direito de preferência do locatário, segundo o art. 27 da Lei nº
8.245/1991, nos ensina que:
“Hipóteses em que se opera a preferência do locatário – o art. 27 da Lei nº 8.245/1991 arrola a venda,
promessa de venda, cessão, promessa de cessão ou dação em pagamento como ensejadoras do direito de
preferência do locatário. Para esse efeito, é preciso que o imóvel locado seja objeto de um dos atos acima
mencionados. Quem for proprietário poderá vender, prometer vender ou dar em pagamento o imóvel, quando
o locatário terá preferência em adquiri-lo em igualdade de condições. Se o locador for apenas promitente
comprador do imóvel, poderá prometer cedê-lo ou ceder os seus direitos sobre o imóvel, quando o locatário,
também, poderá exercer o direito de preferência.” (Tratado das locações, ações de despejo e outras. 9. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 320)
1508 – Locação – compra e venda – direito de preferência – ação anulatória – indenização por perdas e
danos – averbação – desnecessidade
“Civil. Locação. Recurso especial. Ação anulatória de compra e venda de imóvel cumulada com adjudicatória
do imóvel e perdas e danos decorrente de preterição do direito de preferência do locatário. Art. 33 da Lei nº
8.245/1991. Desnecessidade da prévia averbação do contrato para requerer-se perdas e danos. Precedentes.
Dissídio jurisprudencial comprovado. Recurso especial conhecido e provido. 1. É firme a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a não-averbação do contrato de locação no competente cartório
de registro de imóveis, previsto no art. 33 da Lei nº 8.245/1991, impede tão-somente o exercício do direito
de preferência do locatário preterido, sendo desnecessária a averbação quando se tratar de pedido de indenização de perdas e danos. 2. Dissídio jurisprudencial comprovado. 3. Recurso especial conhecido e provido.”
(STJ – REsp 578.174/RS – (2003/0137850-9) – 5ª T. – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – DJU 09.10.2006)
Comentário Editorial SÍNTESE
Trata-se de recurso especial contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, nos autos de
ação anulatória de compra e venda, cumulada com adjudicatória de imóvel e, sucessivamente, indenização
por preterição do direito de preferência, julgou prejudicada a apelação dos recorrentes para declarar extinto o
processo, sem julgamento no mérito.
Sustentaram os recorrentes que o Tribunal a quo divergiu de outros tribunais quanto à interpretação do art.
33 da Lei nº 8.245/1991, uma vez que restaria comprovado serem eles os verdadeiros locatários do imóvel
alienado. Alegaram, assim, que a averbação do contrato de locação no respectivo cartório de registro de
imóveis seria dispensável.
O STJ conheceu do recurso e lhe deu provimento para que o acórdão fosse anulado, o acórdão recorrido determinou o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que o mérito fosse apreciado.
O Relator ainda destacou que, sobre a matéria, a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que o
locatário preterido tem direito de reclamar do alienante perdas e danos, no caso do contrato de locação não
se encontrar inscrito no registro imobiliário.
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
Vale colacionar julgados neste sentido:
“Locação. Direito de recorrer. Sucumbência. Inexistência. Venda do imóvel. Direito de preferência. Incoerência. Contrato não averbado no cartório de registro de imóveis. Carência de ação. Violação. Indenização. Perdas
e danos. 1. A sucumbência é um dos requisitos fundamentais para a parte prejudicada recorrer da sentença.
Só quem sofreu gravame, só quem sucumbiu nas suas pretensões e nos seus pedidos é que pode recorrer.
2. O registro do contrato de locação no cartório de imóveis é requisito essencial ao exercício do direito de
preferência do locatário na aquisição do imóvel locado. 3. Não comprovado o pressuposto indispensável ao
exercício da ação de preferência, impõe-se seja o inquilino declarado carecedor da ação. 4. Para que o locatário possa pleitear, com sucesso, a indenização decorrente da violação de seu direito de preferência na venda
do imóvel locado, cumpre-lhe provar, segura e consistentemente, a capacidade econômico-financeiro e o dano
sofrido.” (TAMG, AP 0398376-4, (81703), Belo Horizonte, 5ª C.Cív., Rel. Juiz Elias Camilo, J. 04.12.2003)
“Locação. Alienação do imóvel. Direito de preferência. Não-observação. Ação anulatória. Admissibilidade. Direito de preferência. Locação. Ação anulatória. Interesse de agir. O inquilino pode promover ação para anular
atos jurídicos que poderiam prejudicar o seu direito de preferência à aquisição do imóvel. Recurso conhecido
e provido.” (STJ, REsp 475.132/PR, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU 15.12.2003, p. 315)
Geraldo Gonçalves da Costa nos traz a seguinte lição:
“Mas, a grande inovação trazida pela lei nova refere-se à garantia do exercício do direito à aquisição do
imóvel (direito real de preferência), mediante a adjudicação compulsória, uma vez que agora a própria lei
regulamentou em seu texto o modo como deve o contrato ser averbado no cartório de imóveis, condição essa
indispensável para a aquisição do imóvel.
Diz o art. 33 da Lei nº 8.245/1991, o seguinte: O locatário preterido no seu direito de preferência poderá
reclamar do alienante as perdas e danos ou, depositando o preço e demais despesas do ato de transferência,
haver para si o imóvel locado, se o requerer no prazo de 6 meses, a contar do registro do ato no cartório
de imóveis, desde que o contrato de locação esteja averbado pelo menos 30 dias antes da alienação junto
à matrícula do imóvel’. Parágrafo único. ‘A averbação far-se-á à vista de qualquer das vias do contrato de
locação, desde que subscrito também por duas testemunhas.’” (Direito de preferência na lei do inquilinato.
Juris Síntese IOB, n. 57, jan./fev. 2006)
1509 – Locação – direito de preferência
“Agravo regimental em agravo (art. 544 do CPC). Locação. Direito de preferência. Decisão monocrática que
não conheceu do reclamo com base na Súmula nº 182/STJ. 1. Razões do regimental que não impugnam especificamente os fundamentos invocados na deliberação monocrática. Em razão do princípio da dialeticidade,
deve o agravante demonstrar de modo fundamentado o desacerto da decisão agravada. Incidência da Súmula
nº 182/STJ: ‘É inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da
decisão agravada’. 2. Agravo regimental não conhecido.” (STJ – AgRg-Ag-REsp 56.064 – (2011/0223558-4) –
4ª T. – Rel. Min. Marco Buzzi – DJe 08.05.2013)
1510 – Locação – direito de preferência – preterição do locatário – inexistência
“Civil. Imóvel locado. Direito de preferência. Preterição do locatário. Inexistência. 1. Cinge-se a questão
sobre a violação ou não do direito de preferência na compra do imóvel, garantido pela Lei de Locações,
implicando na anulação da venda pela CEF ao 2º réu. 2. Pretendendo o antigo proprietário alienar o seu
imóvel, obedecendo ao disposto no art. 27 e seguintes da Lei nº 8.245/1991, procedeu à notificação extrajudicial dos autores informando as condições de venda. Contudo, apesar dos autores alegarem que exerceram
seu direito de preferência, assumindo o saldo devedor na CEF, não comprovaram que de fato adquiriram o
referido imóvel. 3. Ademais, ainda que tivesse restado provado nos autos que os autores exerceram o direito
de preferência por ocasião da alienação do imóvel pelo antigo proprietário, uma vez que não estariam mais
residindo ali a título de locação, mas sim de propriedade, não haveria mais que se falar em direito de preferência, porque findo o vínculo de locação. 4. Apelação improvida.” (TRF 2ª R. – AC 2003.51.01.026312-2
– (372743) – 5ª T.Esp. – Rel. Juiz Fed. Conv. Luiz Paulo S. Araujo Filho – DJe 18.11.2010)
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Revista Síntese Direito Imobiliário
Direito de Preferência
1511 – Penhora – locação – opção de preferência – compra não realizada – posse precária
“Embargos de terceiro. Penhora de imóvel. Locação. Opção de preferência na compra não realizada. Posse precária. Apelação improvida. Intimada a apelante-embargante a apresentar certidão atualizada do Cartório de Registro
de Imóveis referente ao imóvel, por se fazer necessário o exame da cadeia de sucessão dos domínios do imóvel
penhorado. Contudo, a intimada quedou-se inerte, não demonstrando fatos relevantes ao seu direito. A embargante não pode nestes autos reivindicar o direito de preferência por não demonstrar a existência de registro do
contrato de locação na matrícula do imóvel e nem a existência de eventual depósito do preço pago (art. 33 da Lei de
nº 8.425/1991 – antiga lei de locação). Da mesma forma, quanto ao ‘direito de opção na compra’ da embargante firmado pela primeira proprietária com a primeira locatária não resta demonstrado nestes autos, e ainda
que se admita a sua existência, o fato é que a embargante não exerceu este direito, o bem continua a pertencer à executada. Saliente-se que os direitos de retenção ou de perdas e danos pela embargante são alheios
a este processo, devendo ser exercidos entre os contratantes (como mero direito obrigacional), não podendo
ser opostos contra o crédito tributário. Por último, em embargos de terceiro, a embargante deve exercer a
posse e não simplesmente praticar atos de permissão ou tolerância. Dos autos, há de se concluir que a posse
da embargante se tornou precária a partir da notificação do locatário em 06.04.1993, como os embargos de
terceiro foram interpostos em 25.06.1997, não houve o tempo necessário para converter em posse de boa-fé,
para que em seu próprio nome venha se opuser a constrição judicial. Apelação improvida.” (TRF 3ª R. – AC
2001.03.99.030285-6/MS – Relª Desª Fed. Salette Nascimento – DJe 19.07.2011)
1512 – SFH – imóvel arrematado – nulidade contratual – direito de preferência – inexistência
“Direito civil e processual civil. SFH. Ônus da prova. Art. 333, I, CPC. Imóvel arrematado. Nulidade contratual. Arguição extemporânea. Direito de preferência. Inexistência. 1. Quanto à alegada irregularidade na
execução extrajudicial, apesar de facultado às partes especificação de provas para demonstração dos alegados fatos constitutivos de seu direito, permaneceram os autores inertes. Em tal situação, ‘cabe ao juiz,
quando da prolação da sentença, proferir julgamento contrário àquele que tinha o ônus da prova e dele não
se desincumbiu’ (REsp 271.366/MG, Relª Min. Nancy Andrighi, DJ de 07.05.2001, p. 139). 2. É extemporânea a argüição de nulidade do contrato de financiamento por ter sido redigido em ‘caracteres minúsculos e de difícil compreensão’ aos apelantes. Execução extrajudicial concluída com adjudicação do imóvel
pelo agente financeiro. 3. Não há norma conferindo ao mutuário de imóvel financiado pelo SFH, tampouco a terceiro ocupante do bem, direito de preferência na sua aquisição após transferência à CEF em decorrência de processo de execução judicial ou extrajudicial do débito. 4. A Caixa Econômica Federal, na
qualidade de empresa pública federal, está obrigada a observar os ditames da Lei de Licitações nas alienações de imóveis que lhe pertencem (art. 17, I, da Lei nº 8.666/1993). 5. Apelação não provida.” (TRF 1ª R.
– AC 2009.35.00.025193-6/GO – Rel. Juiz Fed. Conv. Marcelo Albernaz – DJe 07.12.2012)
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Revista SÍNTESE
Direito Empresarial
ASSUNTO ESPECIAL
Direito Societário
Revista Síntese Direito Empresarial
Direito Societário
Doutrina
Destinação do Lucro Líquido nas Sociedades Anônimas Brasileiras
BRUNO CARACIOLO FERREIRA ALBUQUERQUE
Advogado em São Paulo e Recife, Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Mestre
em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
RESUMO: O presente artigo busca esclarecer a destinação do lucro líquido nas sociedades anônimas brasileiras, consistindo em revisão crítica das obras e diplomas legais pertinentes ao tema. Inicialmente, faz-se
um breve estudo da proposta de destinação da administração, que deve alocar o lucro líquido apenas entre
reservas de lucro e dividendos. Em seguida, são esclarecidas as peculiaridades de todas as reservas de lucro
previstas em lei, incluindo a atual situação da conta de lucros acumulados. Logo após, o artigo trata dos dividendos, esclarecendo sua natureza jurídica e as espécies de dividendos, entre as quais o lucro não reservado
deve obrigatoriamente ser alocado. Por derradeiro, são feitas breves considerações finais sobre o que fora
exposto e tratado o papel do movimento de governança corporativa neste sentido.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedades por ações; lucro; reservas de lucro; dividendos.
ABSTRACT: This article attempts to clarify the allocation of net profits in Brazilian corporations. The study
is made by legislative and doctrinal analysis, consistent in a critical review. A brief study of the destination
proposal is presented, concluding that the proposal shall allocate the net profits only in profit reserves or dividends. Then, the peculiarities of all profit reserves provided by law are explained, including the current status
of the retained profits account. Moreover the article deals with dividends, clarifying the legal issues of the
institute and the species of dividends on which the not reserved net profits shall be allocate. At the end the
article presents brief final considerations facing the corporate governance movement paper in this perspective.
KEYWORDS: Corporations; profit; profit reserves; dividends.
SUMÁRIO: 1 A proposta de destinação: considerações iniciais; 2 As reservas de lucro; 2.1 Reserva legal; 2.2
Reservas estatutárias; 2.3 Reservas para contingência; 2.4 Reserva de incentivos fiscais; 2.5 Retenção de
lucros: reserva orçamentária e retenção por unanimidade; 2.6 Reserva de lucros a realizar; 2.7 Reserva especial; 3 Dividendos; 3.1 Dividendo obrigatório; 3.2 Dividendos e acionistas preferenciais; Considerações finais;
Referências.
1 A PROPOSTA DE DESTINAÇÃO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Conforme o art. 192 da Lei nº 6.404/1976, que rege as sociedades anônimas brasileiras, junto às demonstrações financeiras, a administração da companhia deve apresentar
à assembleia geral ordinária proposta de destinação do lucro líquido, respeitadas as disposições legais e estatutárias pertinentes.
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Revista Síntese Direito Empresarial
Direito Societário
Apesar de a lei não ser clara nesse sentido, as reversões de reservas à conta de lucros
acumulados ocorridas durante o exercício devem ser acrescidas ao lucro líquido, sendo esse
o saldo para o qual a administração deve propor destinação.
Isto porque a atual redação da lei em estudo não mais admite que figurem lucros acumulados no balanço patrimonial1, como permitia em sua redação original, devendo a conta
de lucros acumulados figurar com saldo negativo (apresentando-se como conta de prejuízos
acumulados), caso o resultado do exercício não seja capaz de absolver todos os prejuízos
acumulados, ou com saldo igual a zero, nulo, quando os prejuízos acumulados forem totalmente absorvidos pelo resultado do exercício.
Tal afirmação fundamenta-se na interpretação conjunta dos arts. 178 e 202 da Lei das
Sociedades Anônimas, o primeiro regendo a estrutura do balanço patrimonial (e, assim, a
estrutura do patrimônio líquido), sem especificar a conta de lucros acumulados, e o segundo
expressamente incluindo as reversões das reservas ao lucro acumulado no cálculo do dividendo mínimo obrigatório.
A proposta da administração, na opinião de Fábio Ulhoa Coelho (2010, p. 341), poderá compreender 3 (três) destinações, quais sejam: I – a apropriação em reservas; II – o
aumento do capital social, mediante a capitalização de lucros e reservas; e III – o pagamento
de dividendos aos acionistas.
Todavia, a destinação de parcela do lucro líquido ao aumento do capital social, mediante capitalização de lucros e reservas, é inconcebível, no que se apresenta equivocada
a posição do renomado comercialista, valendo ressaltar que a opinião ora levada em consideração é exarada em trabalho amplo, que não se destina ao trato específico da questão.
O equívoco se dá porque o direito brasileiro das companhias contempla dois tipos de
assembleia geral com competências distintas e privativas: a assembleia geral ordinária e a
assembleia geral extraordinária.
A definição da competência da assembleia geral ordinária é exaustivamente elencada
no art. 132 da Lei nº 6.404/1976, enquanto que as demais matérias submetidas ao crivo de
assembleia dos acionistas, por exclusão, são da competência da assembleia geral extraordinária.
Nesse sentido, o aumento do capital social mediante a capitalização de lucros e reservas, por não constar da lista em referência, se não for o caso da competência do conselho
de administração prevista no art. 168 da Lei das Sociedades por Ações, competirá exclusivamente à assembleia geral extraordinária, não podendo ser objeto da assembleia geral
ordinária, o que é da opinião do próprio Coelho (2010, p. 206), ao apontar que “é, com
efeito, anulável a deliberação, adotada em AGO, versando sobre matéria estranha à lista do
art. 132 da LSA”.
1 Com exceção das poucas situações que são exploradas e explicadas mais adiante no trato das reservas de lucros, mais
especificamente no estudo das retenções de lucros.
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Revista Síntese Direito Empresarial
Direito Societário
Portanto, a deliberação sobre o aumento do capital social deve ser feita sempre por
meio de assembleia geral extraordinária, que, mesmo no caso de realização cumulativa,
antecede ou sucede a assembleia geral ordinária, competindo à última deliberar sobre a
destinação do lucro líquido proposta pela administração.
Na primeira hipótese (em que a assembleia geral extraordinária antecede à assembleia geral ordinária), não pode haver capitalização de parcela do lucro líquido, pois o
lucro líquido inexiste até que, na assembleia geral ordinária, seja aprovado o resultado do
exercício, feitas as provisões para tributos, absorvidos os prejuízos acumulados e abatidas
as eventuais participações nos lucros de empregados, administradores, partes beneficiárias
e debenturistas.
Na segunda hipótese (em que a assembleia geral extraordinária sucede à assembleia
geral ordinária), não pode haver propriamente a capitalização desse lucro líquido, pois, na
assembleia geral ordinária, já terá ocorrido sua destinação entre reservas ou dividendos, respeitando-se a expressa disposição do § 6º do art. 202 da Lei das Sociedades por Ações, no
sentido de que o lucro líquido não apropriado por reservas e retenções será integralmente
destinado ao pagamento de dividendos.
Certo é, ademais, que não cabe à administração incluir em sua proposta de destinação
aumento do capital social, mediante capitalização de parcela do lucro líquido, posto que a
deliberação sobre o aumento do capital não competiria à assembleia geral ordinária, competindo-lhe, por outro lado, deliberar sobre a proposta de destinação do lucro, de maneira
que, nessa hipótese, para evitar anulabilidades, a assembleia geral ordinária deve rejeitar
a proposta e dar outro destino à parcela do lucro líquido que a administração propôs capitalizar.
Logicamente que, apropriado em reserva ou retido pela assembleia geral ordinária, o
valor correspondente poderá ser utilizado em posterior assembleia geral extraordinária ou
reunião do conselho de administração, conforme for o caso, para aumento do capital social
mediante capitalização.
Portanto, existem apenas duas possíveis destinações ao lucro líquido: I – a apropriação
em reservas de lucro e II – a distribuição na forma de dividendos. Também assim Tatianne
Berzoini Junco (2006, p. 1)2.
A primeira possibilidade representa o autofinanciamento da empresa, que inafastavelmente se contrapõe ao direito aos dividendos de que dispõem os acionistas, não obstante,
em certa medida, proporcione-lhes lucro, posto que, ocorrendo a apropriação em reserva,
o acionista passa a ter participação em uma companhia com um patrimônio líquido maior,
conta da qual é feito o cálculo para eventual exercício do direito de retirada e inúmeros outros cálculos com os quais os economistas, investidores e especuladores determinam o valor
de uma participação societária.
2
Exclui-se o juro sobre capital próprio da destinação de lucro líquido, pois, apesar da peculiar forma de cálculo, esta verba
é uma verdadeira despesa, reduzindo o lucro líquido da companhia antes de sua destinação.
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Direito Societário
Contudo, um patrimônio líquido maior, apesar de acrescer ao patrimônio do acionista
indiretamente, não representa liquidez, o que é proporcionado pelo pagamento dos dividendos, havendo que se excetuar apenas a liquidez que pode proporcionar o aumento do
patrimônio líquido de companhias cujas ações tenham alta liquidez e boa cotação no mercado de capitais, possibilitando que o acionista realize lucro mediante a alienação de ações,
hipótese que não se verifica nas companhias de capital fechado e mesmo em companhias
abertas cujas ações não sejam sensíveis a qualquer aumento do patrimônio líquido.
Por outro lado, a sociedade anônima é o instrumento jurídico que viabiliza a grande
empresa nacional, que efetivamente necessita do autofinanciamento, aliado ao financiamento por capital alheio, para cumprir sua função social.
Nesse toar, não interessa à nação a distribuição da totalidade do lucro líquido verificado em todos os exercícios pelas companhias, pois isso certamente prejudicaria credores
e impediria, ou restringiria, o crescimento da empresa em si, com a geração de empregos,
rendas, pagamento de tributos, estímulo ao mercado de crédito, entre outros elementos de
interesse geral, prejudicando, em certa medida, até mesmo aos próprios acionistas, ao passo
que poderiam ser participantes de sociedade muito mais pujante se parcela dos lucros fosse
retida para autofinanciamento.
Portanto, a distribuição de dividendos, verdadeiro objetivo histórico das sociedades,
concorre com a função social da empresa, havendo limitação recíproca, que deve ser resolvida por meio de normas legais e estatutárias claras que tratem exaustivamente da matéria.
Feitas essas considerações, segue-se à análise das destinações que concorrem com a
distribuição de dividendos, conforme a redação atual da Lei nº 6.404/1976, § 6º, art. 202, o
abastecimento das reservas de lucro.
2 AS RESERVAS DE LUCRO
Nesse ponto, faz-se necessária a análise das reservas, contas do patrimônio líquido
instituídas por disposições legais e estatutárias que, com exceção da reserva de capital, são
abastecidas por destinação de parcelas do lucro líquido e chamadas globalmente por reserva de lucro.
São as seguintes as reservas previstas na Lei das Sociedades por Ações: I – reserva
legal; II – reservas estatutárias; III – reservas para contingências; IV – reserva de incentivos
fiscais; V – retenção de lucros; VI – reserva de lucros a realizar; VII – reserva especial; e VIII
– reserva de capital.
A reserva de capital, por não ser abastecida com parcela do lucro líquido, escapa ao
foco do presente trabalho, motivo pelo qual não tem suas características aqui detalhadas e
estudadas como as demais.
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Direito Societário
Destaca-se, por outro lado, que se inclui a retenção de lucros entre as reservas não por
acaso, mas acompanhando quem a conceitue expressamente como reserva, por considerar
que “juridicamente reserva nada mais é do que lucro não distribuído”, como aponta Rubens
Requião (2009, p. 253) ser a posição do jurista e mestre em contabilidade Erymá Carneiro,
havendo, ademais, disposição legal, no art. 182, § 4º, da Lei das Sociedades por Ações, no
sentido de que todas as contas originadas da apropriação de lucros da companhia chamamse globalmente por reservas de lucros.
Ainda tratando globalmente das reservas, cumpre esclarecer que a constituição e o
abastecimento de reservas estatutárias e por retenções de lucros fundadas em orçamentos
aprovados pela companhia não podem ser feitos em prejuízo do dividendo obrigatório,
ficando todas as reservas de lucro limitadas ao valor do capital social, excetuando-se as
reservas de lucro a realizar, de contingências e de incentivos fiscais, o que consta expressamente dos arts. 198 e 199 da Lei nº 6.404/1976. Feitas essas considerações gerais, passemos
ao estudo detalhado das reservas conforme a ordem acima.
2.1 Reserva legal
A reserva legal é obrigatória e independe de previsão estatutária, devendo apropriar-se
de 5% (cinco por cento) do lucro líquido em todos os exercícios até que alcance 20% (vinte
por cento) do capital social, quando não se pode destinar parcela do lucro líquido para essa
reserva, sendo esse seu limite máximo.
A destinação obrigatória em debate pode, ainda, deixar de ser empreendida quando
a soma da reserva legal e da reserva de capital alcance 30% (trinta por cento) do capital
social, o que, contudo, não impossibilita a destinação, que será realizada se a assembleia
geral não deliberar em contrário, ficando a limitação dependente da vontade do poder de
controle, o que pode gerar discussões quanto ao cálculo do dividendo mínimo obrigatório,
explorado adiante.
Essa reserva, na forma do art. 193, § 2º, da Lei nº 6.404/1976, tem por finalidade
“assegurar a integridade do capital social e somente poderá ser utilizada para compensar
prejuízos ou aumentar o capital”.
Obviamente, no caso de utilização da reserva que se encontra no limite legal, a sociedade deverá, nos exercícios seguintes, recompô-la, passando novamente a destinar-lhe
parcela do lucro líquido até o limite legal, o que, em verdade, gera uma discussão para a
apuração dos dividendos obrigatórios, qual seja: o aumento de capital com a capitalização
da reserva obrigatória.
O desfalque feito em um exercício repercutirá nos exercícios próximos, tanto porque
o capital social foi aumentado, fazendo com que os 20% (vinte por cento) anteriores não
limitem mais a reserva, quanto porque a reserva encontrar-se-á em valor inferior, o que gera
conflito de interesses e põe os minoritários em frágil posição em face do poder de controle.
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Direito Societário
Sobre a matéria, ainda na vigência do Decreto-Lei nº 2.627/1940, que não regulava
expressamente as possibilidades de utilização da reserva legal, Luiz Gastão Paes de Barros
Leães (1969, p. 172) demonstrou a acalorada controvérsia doutrinária, envolvendo os mais
renomados juristas nacionais e estrangeiros, sobre a possibilidade de utilização da reserva
legal para o fim de aumento do capital social, posicionando-se pela ilegalidade da utilização ao anunciar que “subscrevemos a tese de que a reserva legal, no Direito brasileiro,
não pode ser aplicada para aumento do capital”. Atila de Souza Leão Andrade Júnior (2009,
p. 99) aponta que o Banco Central adotou também essa posição, não admitindo o registro
de capitalização de reserva legal por parte de investidores estrangeiros perante o registro de
investimento estrangeiro direito.
A lei atual permite expressamente a utilização, o que, por um lado, é positivo, pois
origina segurança jurídica ao finalizar uma discussão doutrinária antiga, mas, por outro
lado, é negativo, mantendo ponto de conflito de interesses entre os acionistas que poderia
facilmente ter sido eliminado com a expressa proibição.
A solução legislativa não afasta a possibilidade de caracterização do abuso do poder
de controle, que pode ocorrer no caso de excessos na utilização da reserva para esse fim,
verificando-se que os aspectos negativos predominam sobre os benefícios trazidos pela tomada de posição do Poder Legislativo.
Ademais, mesmo não havendo expressa disposição nesse sentido, entende-se que a
reserva legal não poderá ser destinada ao aumento no caso de haver outras reservas ou
capitais dos quais os recursos possam ser retirados, haja vista os interesses de credores e
minoritários que norteiam a interpretação da norma.
De outro giro, discorda-se da posição do Professor Américo Luiz Martins da Silva
(2007, p. 725), que entende ser a destinação de parcela do lucro à reserva legal feita antes
do pagamento das participações de que trata o art. 191 da Lei das Sociedades por Ações.
Isto porque a reserva legal apropria-se já de parcela do lucro líquido, que simplesmente inexiste antes da subtração das tais participações, o que se extrai da combinação dos
arts. 191 e 193 da lei em destaque, conforme detalhado em trabalho de nossa autoria (2011,
p. 2).
A reserva legal, portanto, é uma das contas do patrimônio líquido, abastecida obrigatoriamente com 5% (cinco por cento) do lucro líquido verificado em cada exercício, ficando
excluído esse percentual da apuração do dividendo obrigatório, sendo a reserva limitada,
obrigatoriamente, em 20% (vinte por cento) do capital social, e facultativamente, por maioria assemblear, à soma da reserva legal e da reserva de capital que equivalha ao menos à
30% (trinta por cento) do capital social, podendo ser utilizada apenas para absorção de
prejuízos ou para aumento do capital social, neste último caso, utilizada com razoabilidade
e apenas em não havendo outras reservas ou capitais que possam servir ao mesmo fim, sob
pena de caracterização do abuso do poder de controle.
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Direito Societário
2.2 Reservas estatutárias
As reservas estatutárias, como deixa clara a denominação legalmente instituída, são reservas facultativamente estabelecidas nos estatutos das companhias, não havendo limitação
quanto à quantidade dessas reservas.
Para instituir reserva estatutária, a disposição societária deve obedecer a todos os requisitos do art. 194, que possibilita a previsão, desde que: “I – indique, de modo preciso e
completo, a sua finalidade; II – fixe os critérios para determinar a parcela anual dos lucros
líquidos que serão destinados à sua constituição; e III – estabeleça o limite máximo da reserva”.
No caso de a disposição não observar todos os requisitos acima especificados, entende-se que será nula de pleno direito a aprovação da disposição estatutária pela assembleia geral, por força do art. 166, VII, do Código Civil, posto que a lei, nesse caso, proíbe a
prática sem cominar sanção específica.
Interessa notar sobre o assunto a discussão existente acerca do sistema de invalidade
dos atos sociais na Lei do Anonimato, apontando Miranda Valverde (1959, p. 39) não haver
nulidades, mas apenas anulabilidades, enquanto que Erasmo Valadão (2009, p. 411), Pontes
de Miranda (1984, p. 98) e a maior parte da doutrina nacional defendem a nulidade de alguns atos, sobretudo quando o vício se encontrar em disposição estatutária, restando, hoje,
superada a posição de Miranda Valverde.
A consequência, portanto, tornaria inexistente a reserva, em face da nulidade da norma estatutária em que se fundamentaria, e as deliberações assembleares conexas, quais
sejam, aquelas que, com base na disposição estatutária, tenham destinado parcela do lucro
líquido para a reserva inexistente, o que proporcionaria aos acionistas ação de cobrança em
desfavor da sociedade para dela haverem a distribuição da totalidade dos valores destinados
para a tal reserva na forma de dividendos, já que, por força do art. 202, § 6º, todo o lucro
líquido não apropriado em reservas ou expressamente retido na conta de lucros acumulados
deve ser distribuído.
De outro giro, apesar de a lei não dispor expressamente nesse sentido, entende-se
que, deixando de existir as razões que justificarem a destinação de recursos para reserva
estatutária, estes devem ser revertidos à conta de lucros acumulados, assim como ocorre nas
reservas de contingência.
Cumpre ressaltar, ademais, que a lei nega a possibilidade de retirar-se a parcela destinada à formação de reservas estatutárias da base de cálculo do dividendo obrigatório3, conforme se observa, a contrário senso, do art. 202 da Lei nº 6.404/1976, em que o legislador
permite apenas o abatimento da reserva legal e das reservas de contingência.
3 O que em casos específicos é lastimável, conforme esclarecido no item dedicado às reservas para contingências.
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Com efeito, as reservas estatutárias são contas do patrimônio líquido abastecidas por
parcelas do lucro líquido, não dedutíveis do cálculo dos dividendos obrigatórios, cabendo
ao estatuto dispor sobre a finalidade, percentual do lucro líquido a ser apropriado e limite
máximo, sendo a utilização permitida para absorção de prejuízos e para os fins previstos na
norma estatutária correspondente, podendo a assembleia geral ordinária, nos exercícios em
que for conveniente, deixar de abastecê-las.
2.3 Reservas para contingência
As reservas para contingências são destinadas ao pagamento de prováveis e estimáveis
perdas futuras, usualmente utilizadas para manter na sociedade valores suficientes ao pagamento de perdas com ações judiciais, sobretudo tributárias, sendo comuns em decorrência
da grande insegurança que o confuso sistema tributário brasileiro proporciona, havendo
muitos casos em que a sociedade utiliza crédito tributário tido como existente pelos tribunais em um dado momento, ocorrendo posterior modificação do posicionamento jurisprudencial, o que torna prudente a constituição da reserva, já que a utilização do crédito certamente dará ensejo a retaliações por parte do Fisco.
As reservas para contingências, salienta-se, não são previstas nos estatutos, instituindo-se por aprovação da assembleia geral que deliberar sobre a proposta de sua instituição
feita pela administração.
A administração deve propor a instituição sempre que julgar a perda provável e estimável, sob pena de os administradores se tornarem responsáveis pessoalmente pela
obrigação, caracterizada omissão culposa, do que restarão liberados no caso de a proposta
ser rejeitada pela assembleia geral.
De outra sorte, por força da inserção da teoria do risco da empresa na legislação brasileira, companhias que têm por objeto fornecer bens e serviços ao consumidor podem sempre
fazer essas reservas, já que, em muitos casos, podem, com alguma precisão, calcular a margem de prejuízo que será percebida em face dos vícios das mercadorias e serviços comercializados durante o exercício, sendo preferível, para esse fim, a reserva de contingência à reserva
estatutária, já que a primeira não é computada no cálculo do dividendo mínimo obrigatório.
No caso de o estatuto prever expressamente a reserva, mesmo que tenha a natureza de
reserva de contingência, entende-se que a reserva assume o caráter de reserva estatutária,
não podendo ser deduzida do cálculo dos dividendos obrigatórios.
A impossibilidade de previsão estatutária, contudo, é uma lástima para esse específico
caso das relações de consumo, haja vista que, em todos os anos, os administradores deverão
apresentar a mesma proposta, propondo, por exemplo, a retenção de 1% (um por cento) do
lucro líquido para pagamento das prováveis e estimáveis perdas decorrentes do fornecimento de produto com esse percentual de vício calculado desde a produção.
Também assim é o caso das companhias que se dedicam às atividades potencialmente
poluidoras, que, pelos estudos em que investem, têm ciência da margem de perdas que
terão em decorrência de passivos ambientais.
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Destarte, as reservas para contingência serão revertidas ao lucro acumulado no caso
de não mais existirem as razões de fato que demandaram a constituição, o que se verifica,
por exemplo, quando uma determinada matéria tributária inicialmente julgada pelos tribunais em favor do Fisco seja no caso concreto da companhia julgada em favor do contribuinte, exonerando-a do pagamento.
Conclui-se, portanto, que as reservas para contingência são contas do patrimônio
líquido abastecidas com parcelas do lucro líquido, instituídas facultativamente por meio de
aprovação na assembleia geral ordinária de proposta da administração nesse sentido, não
havendo limitação alguma que não a estimação da perda provável que a companhia poderá
perceber, cabendo a utilização para o fim de pagar a perda, no caso de esta se confirmar,
ou para a absorção de prejuízos acumulados, sendo dedutíveis do cálculo do dividendo
mínimo obrigatório.
2.4 Reserva de incentivos fiscais
As reservas de incentivos fiscais, de denominação notadamente imprópria4, destinam-se à manutenção de doações e subvenções governamentais para investimentos no
patrimônio social, impedindo a distribuição na forma de dividendos, podendo ser excluídas
do cálculo do dividendo mínimo obrigatório, conforme o art. 195-A da Lei nº 6.404/1976.
Essa reserva independe de previsão estatutária, cabendo à administração propor a instituição nos exercícios em que verificar ter a sociedade recebido doações e subvenções
governamentais, que poderão, inclusive, ser excluídas do cálculo do dividendo mínimo
obrigatório.
As subvenções governamentais são investimentos públicos destinados ao fortalecimento da empresa nacional, notadamente das que exploram atividades tidas por estratégicas pelo Poder Público, como energia elétrica, telecomunicação, tecnológica, construção
civil, entre outras.
Comumente, esses recursos não precisam ser devolvidos ao financiador, nem mesmo
parcialmente, cabendo à sociedade comprometer-se à execução de projetos bem especificados para obtê-los, ficando os recursos vinculados ao cumprimento das obrigações assumidas perante o ente público investidor.
Para o caso das subvenções, melhor seria que todas as sociedades fossem obrigadas a
destinar o lucro líquido decorrente para a reserva, que deveria ser utilizada unicamente com
o cumprimento do projeto financiado, o que é mais coerente em face do interesse público
que a questão envolve.
Contudo, o legislador optou por apenas facultar a destinação dessa parcela do lucro
líquido à reserva de incentivos fiscais, possibilitando a distribuição de dividendos e o cálculo dos dividendos obrigatórios com base nesses recursos, o que poderá ser afastado pela
assembleia geral ordinária.
4 A denominação utilizada é imprópria porque doações e subvenções para investimento em regra não se confundem com
incentivos fiscais, ainda que feitas pelo Poder Público.
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Direito Societário
Aos administradores, portanto, caberá propor a destinação, correndo sério risco de
verem-se responsabilizados no caso de não apresentarem a proposta, e a sociedade encontrar-se posteriormente descapitalizada, impossibilitando a execução do projeto para o qual
a subvenção fora recebida, sendo certo que a rejeição da proposta pela assembleia lhes
isentará de qualquer responsabilidade, que poderá eventualmente recair sobre os ombros
dos acionistas que assim deliberarem.
Quanto às doações que podem compor a parcela do lucro líquido destinada à formação
da reserva de incentivos fiscais, não é tão fácil identificar, diferenciando-as das que não podem compor a reserva. Nesse sentido afirmam Eduardo Secchi Munhoz e Bruno Robert (2009,
p. 231)5 que as doações destináveis a essa reserva seriam apenas as provenientes do governo.
Conforme os citados juristas, as doações privadas não podem ser incluídas nessa reserva, haja vista que se deve atribuir algum efeito à denominação utilizada pelo legislador,
levando em conta que o adjetivo fiscal, apesar da impropriedade, só pode estar indicando
uma vinculação ao Poder Público.
A constatação de que as doações privadas não podem integrar a reserva em destaque,
não cabendo o abatimento do dividendo obrigatório, apresenta mais um ponto a ser criticado: a uma porque doação governamental para sociedades empresárias constitui fenômeno
jurídico no mínimo raro, cuja ocorrência não se tem notícia, e de legalidade completamente
discutível, e a duas porque as doações, públicas ou privadas, podem ser feitas com encargos
e condições, a serem satisfeitas pela sociedade sob pena de esta arcar com as penalidades
previstas no contrato correspondente, o que torna ilógica a exclusão das doações privadas,
que, nesse caso, ensejariam problemática similar à verificada no caso de doação governamental, qual seja, a possibilidade de descapitalização da companhia, impossibilitando o
cumprimento do encargo ou condição.
Assim, no caso de doações privadas com encargo, a administração deve propor a retenção de lucros para esse fim, instituindo uma reserva orçamentária, adiante explorada neste
artigo, o que, contudo, não faz surtir o mesmo efeito da destinação à reserva de incentivos fiscais, já que a reserva orçamentária não pode ser deduzida do cálculo do dividendo obrigatório.
A reserva de incentivos fiscais é, assim, destinada ao acúmulo do lucro líquido decorrente de subvenções e doações, todas governamentais, que independe de disposição estatutária, cabendo aos administradores propor a destinação, para que sejam cumpridos os
encargos assumidos pela companhia perante o Poder Público, podendo a assembleia geral
deliberar sobre a aprovação da proposta e sobre a exclusão dessa verba da base para o cálculo dos dividendos obrigatórios, não havendo limite máximo para esse tipo de reserva que
não o montante total decorrente das doações e subvenções governamentais.
5 “A antiga alínea d do § 1º do art. 182, revogada pela Lei nº 11.638/2007, fazia referência a ‘doações’ e ‘subvenções
para investimentos’. O art. 195-A se refere a ‘doações ou subvenções governamentais’. Não há dúvida, em razão da
natureza da reserva de que se trata, de que só podem ser excluídos da base de cálculo do dividendos mínimo obrigatório
os valores decorrentes de doações ou subvenções provenientes do governo. Doações privadas, relacionadas ou não ao
objeto social, condicionadas ou não, devem compor o lucro social e não podem, com fundamento no art. 195-A, ser
excluídas da base de cálculo do dividendo mínimo obrigatório.”
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Direito Societário
Essas reservas, obviamente, ficam vinculadas ao cumprimento das obrigações assumidas perante o Poder Público, sendo revertidas aos lucros acumulados no caso de haver
saldo após o pleno adimplemento, devendo, também, absorver prejuízos dos exercícios
seguintes, ou destinarem-se ao aumento do capital social quando a legislação própria assim
o determinar.
No mais, o estatuto poderá de logo indicar que todas as doações e subvenções governamentais serão ordinariamente destinadas à reserva de incentivos fiscais, ficando excluídas da apuração do dividendo mínimo obrigatório, o que dará maior vigor à destinação
proposta pela administração em cada exercício, ficando clara a política de distribuição de
dividendos da companhia.
2.5 Retenção de lucros: reserva orçamentária e retenção por unanimidade
A retenção de lucros, disposta no art. 196 da Lei das Sociedades por Ações, é o que se
pode chamar de reserva orçamentária, sendo medida de administração prudente a elaboração de um orçamento antes de lançar a sociedade em qualquer projeto.
A lei, neste sentido, possibilita que os administradores submetam ao crivo da assembleia geral um orçamento, com previsão de todos os custos do projeto e das fontes de recursos com que os custos serão satisfeitos, inclusive indicando que esse custeio será feito com
a retenção de parcela do lucro líquido dos exercícios futuros, hipótese em que, aprovado
o orçamento, poderá a assembleia geral reter parcela do lucro líquido, excluindo-a da distribuição de dividendos, exceto para fins de cálculo do dividendo mínimo obrigatório.
O orçamento, como dispõe a lei, deve compreender no máximo 5 (cinco) exercícios,
podendo superar esse limite nos casos de execução, por prazo maior, de projeto de investimento, cabendo à assembleia aprovar o orçamento e, ao final de cada um dos exercícios
contemplados no projeto, deliberar sobre a retenção, promovendo-a ou não, devendo o
orçamento ser revisado sempre ao final de cada exercício, para readequá-lo à realidade
verificada em sua execução, nos casos em que abranja mais de um exercício.
Como a lei não limita materialmente o objeto do orçamento, entende-se que a administração poderá propor a aprovação de orçamento para qualquer tipo de projeto, desde que
o orçamento atenda formalmente ao que exige a disposição legal, de maneira que o projeto
poderá ter qualquer objeto, desde que lícito, possível e congruente com o objeto social,
servindo, portanto, para diversas finalidades.
Outrossim, há que se informar que a denominação reserva orçamentária não é prevista pela legislação ou utilizada na doutrina, servindo ao presente trabalho apenas para fins
didáticos, devendo, portanto, constar das demonstrações financeiras como lucros acumulados, sendo, por força do § 3º do art. 182 da Lei nº 6.404, uma das contas da reserva de lucro.
Com efeito, a reserva orçamentária constitui uma exceção ao exposto no início do presente
artigo, no sentido de que a conta de lucros acumulados deve sempre ser nula ou negativa
ao final de cada exercício social.
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Ainda quanto à retenção de lucros, deliberação que apenas mantém valores na conta
de lucros acumulados, há que se verificar, por fim, a possibilidade prevista no § 3º do art.
202 da Lei nº 6.404/1976, no sentido de que as companhias fechadas, que não tenham
controle por companhia aberta, e as companhias abertas, assim como as fechadas controladas por abertas, no específico caso da emissão de debêntures não conversíveis em ações,
podem, obtida a unanimidade dos presentes na assembleia, computados inclusive os votos
de preferencialistas sem direito geral de voto, deliberar por distribuir dividendo inferior ao
mínimo obrigatório ou mesmo manter a totalidade do lucro líquido na conta de lucros acumulados. Novamente, verifica-se uma exceção à regra de que os lucros acumulados devem
ser zerados ao final de cada exercício.
Ressalta-se, neste diapasão, a diferença entre a retenção de lucros baseada em orçamento aprovado em assembleia e a retenção de lucros unânime em detrimento do dividendo
obrigatório, posto que a primeira só poderá ser utilizada para compensar prejuízos ou para
custear o projeto orçado, constituindo, portanto, verdadeira reserva vinculada, enquanto
que a última simplesmente mantém o valor na conta de lucros acumulados, sem necessidade de uma destinação específica, com o que se conclui que sua utilização poderá ser feita
para qualquer fim, exceto no caso de a própria assembleia que deliberar a retenção aprovar
uma vinculação específica, hipótese em que estará sujeita apenas à vinculação deliberada
e à compensação de prejuízos futuros.
No caso de haver vinculação da retenção unânime ou no caso de criação da reserva
orçamentária, entende-se que, não mais existindo as razões que demandaram a retenção, a
conta deve ser dissolvida, com a manutenção do valor na conta de lucros acumulados, mas
em diante sem qualquer vinculação específica, devendo, portanto, submeter-se ao tratamento normal dos lucros acumulados, ou seja, a verba correspondente deve ser destinada
às reservas ou ao pagamento de dividendos ao final do exercício corrente, zerando a conta
de lucros acumulados.
Quando da não vinculação da retenção unânime, o valor simplesmente deve permanecer nos lucros acumulados até que seja utilizado para qualquer finalidade, valendo
aqui ressaltar a peculiaridade da conta de lucro acumulado neste específico caso, em que
consiste na única reserva sem destinação definida permitida pela legislação do anonimato
brasileiro, sendo, ainda, a única verba sem vinculação da conta de lucros acumulados que
não precisa ser zerada ao final do exercício social.
2.6 Reserva de lucros a realizar
A reserva de lucros a realizar, regulada no art. 197 da Lei nº 6.404/1976, tem por fundamento o regime contábil adotado na legislação brasileira, segundo o qual serão contabilizados como lucros alguns ganhos que serão realizados no futuro, como o resultado positivo da equivalência patrimonial e o resultado da contabilização de ativo e passivo com base
no valor de mercado, lucros esses meramente contábeis, que não se encontram realizados e
não geram caixa para a sociedade no momento em que são contabilizados.
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Direito Societário
Diante desse panorama, a reserva de lucros a realizar procura anular os efeitos da
distorção causada no lucro líquido por força da contabilização de lucros cujo ingresso em
caixa não ocorreu, podendo nunca vir a ocorrer, possibilitando que, nos exercícios em que
se verificar o fenômeno, seja feita uma reserva, para pagamento do dividendo obrigatório
conforme for sendo realizado o lucro contabilizado.
Assim, calculado o dividendo obrigatório, caso não haja caixa suficiente ao pagamento por força desses fenômenos, a administração deve propor à assembleia a destinação
de valor contábil suficiente ao pagamento futuro dos dividendos para a reserva de lucros
a realizar, de modo que, empreendida a destinação, no momento da realização do lucro
contabilizado, seja a reserva revertida ao pagamento dos dividendos, única destinação possível ao valor reservado nesta conta, podendo se dizer que constitui verdadeiro crédito do
acionista desde sua instituição, excetuando-se, contudo, a absorção de prejuízos futuros,
que representa destinação possível para todas as reservas.
2.7 Reserva especial
A reserva especial é prevista no art. 202, § 4º, da lei brasileira do anonimato, sendo a
reserva que mais sujeita o minoritário aos interesses do poder de controle, posto que, sem
qualquer limitação outra, os administradores poderão propor a não distribuição do dividendo obrigatório sempre que entendam não ter a sociedade condições financeiras adequadas
para tanto, cabendo à assembleia aprovar ou não a matéria.
Assim, forma-se a reserva especial com a parcela do lucro líquido que nesse sentido
deixar de ser distribuída, podendo essa reserva ser consumida por prejuízos dos exercícios
seguintes, o que, não ocorrendo, importará na distribuição da reserva especial na forma de
dividendos aos acionistas.
Se instalado, o conselho fiscal deve emitir parecer sobre a proposta da administração
que, nas companhias abertas, devem ser remetidas à Comissão de Valores Mobiliários com
antecedência mínima de 5 (cinco) dias em relação à data de realização da assembleia geral
ordinária.
3 DIVIDENDOS
Para Rubens Requião (2009, p. 257):
O dividendo é a parcela de lucro que correspondente a cada ação. Verificado o lucro líquido
[...] a administração da sociedade deve propor à assembleia geral o destino [...]. Se for esse
lucro distribuído aos acionistas, tendo em vista as ações, surge o dividendo.
No mesmo viés, trata Fábio Ulhoa Coelho (2010, p. 340), ao apontar que “é indispensável que a assembleia geral, atenta às normas sobre destinação do resultado que serão
examinadas a seguir, delibere pela distribuição de dividendos”.
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Revista Síntese Direito Empresarial
Direito Societário
Esses conceitos, como se vê, aparentam vincular a própria existência do direito ao
dividendo à destinação aprovada em assembleia geral ordinária, o que o identifica como
verdadeira hipótese de expectativa de direito6.
Contudo, o direito ao dividendo constitui espécie de direito muito mais complexa,
com diversas peculiaridades, sendo inicialmente expectativa de direito, podendo, em seguida, tornar-se direito expectativo e, ao final, direito adquirido de crédito.
Conforme o § 2º do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil: “Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles
cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a
arbítrio de outrem”.
Ao direito adquirido cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo ou condição preestabelecida inalterável ao arbítrio de outrem, ao qual se refere a norma supra, a doutrina
tem reconhecido o caráter de direito expectativo, existindo desde já o direito de adquirir o
direito expectado, mesmo que o exercício só se efetive com o implemento da condição ou
do termo (Miranda, 1969, p. 70)7.
O direito adquirido, como se sabe, não pode ser modificado nem mesmo pela lei,
que não poderá retroagir para abalá-lo, conforme o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal
vigente.
Esse é justamente o caso do direito ao dividendo de que dispõe o acionista a partir do
término de um exercício social em que a sociedade perceba um lucro líquido (ou seja, resultado do exercício maior que prejuízos acumulados, do qual reste saldo após o pagamento
dos tributos e participações estatutárias), pois nem mesmo a lei, e muito menos a maioria
societária, poderá alterar termos e condições estabelecidas na lei e nos estatutos da companhia para determinação do valor que lhes é devido como pagamento desse direito.
Ou seja, findo exercício social com lucro líquido, os acionistas adquirem direito expectativo, ficando a aquisição do derradeiro direito de crédito sujeita apenas às regras dispostas na lei e no estatuto ao final daquele exercício social, sendo as tais regras inalteráveis
pela vontade de outrem.
Antes do encerramento do exercício, contudo, entende-se que poderá haver modificação de termos e condições suspensivas às quais está sujeito o direito ao dividendo do
acionista, de maneira que, sendo alteráveis, configura-se mera expectativa de direito do
acionista, não se afigurando inconstitucional a lei que assim o fizer, pois não estará retroagindo para alcançar os critérios de determinação de dividendos de exercício findo.
6
Ressalta-se que, nas obras apontadas, os autores não se posicionam especificamente sobre o assunto, por não ser esse
o propósito de suas obras, que buscam apresentar o direito comercial amplamente.
7 “A técnica e a terminologia jurídicas tiveram de distinguir a expectativa, que é simples atitude no mundo fático, e o
direito expectativo, que é como o direito ao direito que vai vir.”
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Direito Societário
Com o término do exercício social, desde que tenha a sociedade experimentado lucro líquido, a expectativa de direito extingue-se, originando direito adquirido do acionista
ao recebimento de dividendos, sujeito tal direito, contudo, a termo e condição suspensiva,
estabelecidos por normas legais e estatutárias, que não podem ser modificadas pelo arbítrio
de outrem, sendo tal direito adquirido ainda de caráter expectativo, haja vista submeter-se
aos elementos acidentais dos negócios jurídicos.
A condição suspensiva em destaque, contudo, é extremamente complexa, sendo evento futuro e incerto dependente de diversas variantes, devidamente especificadas na lei ou
nos estatutos, consistindo basicamente no fato de restar saldo do lucro líquido, somado às
reversões ao lucro acumulado, após as eventuais apropriações em reserva legal, reservas
para contingências, reservas de incentivos fiscais e reserva especial.
Como se viu acima, todas essas contas são constituídas e abastecidas em conformidade com a lei e com os estatutos, não estando sujeitas à simples disposição de vontade do
poder de controle ou da administração da companhia, encaixando-se no conceito do § 2º
do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, pois, ressalta-se novamente, inalteráveis ao
arbítrio de outrem.
Outrossim, como apontam as opiniões doutrinárias citadas, esse saldo deve ser destinado aos acionistas pela assembleia geral ordinária, que, por sua vez, é evento futuro e certo, sendo verdadeiro termo, podendo, no caso de os responsáveis não tomarem as providências necessárias para a realização, ser convocada coercitivamente por qualquer acionista,
conforme o art. 123, parágrafo único, b, da Lei das Sociedades por Ações.
A destinação do saldo do lucro líquido, portanto, não é algo que a administração ou o
poder de controle possam legalmente impossibilitar, havendo termo certo que obriga a realização da assembleia geral ordinária, oportunidade em que obrigatoriamente se deve deliberar sobre a destinação do lucro líquido, implementando-se ou não, nesta oportunidade,
a condição suspensiva, que, se implementada, obriga a destinação do saldo aos acionistas
na forma de dividendos, gerando o direito de crédito.
Com essas considerações, pode-se conceituar dividendo como sendo o direito expectativo do sócio, adquirido no encerramento de exercício em que for verificado lucro líquido,
de receber parcela deste, calculada de acordo com os eventos futuros, certos e incertos, preestabelecidos por normas legais e estatutárias, coincidindo esses eventos, na atual legislação
brasileira do anonimato, com: I – a realização válida da assembleia geral ordinária (evento
futuro e certo); e II – a existência de saldo do lucro líquido após o abastecimento das reservas (evento futuro e incerto).
Sobre o assunto, interessa anotar que a identificação do direito ao dividendo a distribuir como direito expectativo se encontra consagrada na doutrina do Doutor Luiz Gastão
Paes de Barros Leães (1969, p. 352), que apresenta fundamentação robusta e reflexiva sobre
o tema.
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Direito Societário
3.1 Dividendo obrigatório
O dividendo obrigatório é instituto de origem brasileira, não havendo precedente da
espécie na legislação estrangeira, como a maior parte da doutrina nacional afirma ao tratar
do assunto.
Sua previsão consta do art. 202 da Lei das Sociedades por Ações e decorre do interesse
nacional em fortalecer o mercado de capitais, servindo de impulso ao investimento da poupança popular no financiamento das companhias nacionais mediante a aquisição de ações.
No direito comparado, aponta a doutrina apenas uma aparente similitude do dividendo obrigatório com a figura do mandatory dividends, construção jurisprudencial das Cortes
dos Estados Unidos da América do Norte para casos em que dividendos mínimos previstos
nos estatutos sociais de companhias não foram pagos aos acionistas minoritários (Coelho,
2010, p. 341).
A diferença substancial é justamente a seguinte: no direito norte-americano, o instituto
é fruto de disposições estatutárias e de decisões judiciais, não havendo previsão legal que
ordene o pagamento de um dividendo mínimo obrigatório aos acionistas, como é o caso da
legislação brasileira.
A essência dessas decisões, segundo narra Fábio Ulhoa Coelho (2010, p. 341), seria a
assertiva de que, “se a companhia não necessita da totalidade dos lucros gerados, porque
não possui planos de expansão ou de investimentos, e suas reservas são satisfatórias, então
os acionistas têm direito ao recebimento de dividendos”.
Essa construção, não obstante ser inconfundível com a figura do dividendo obrigatório
da legislação pátria, pode e deve ser implementada em nossa cultura, servindo para a verificação do abuso do poder de controle na apropriação de lucro em reservas, mesmo quando o dividendo propriamente obrigatório não seja atingido por essas destinações, servindo
também para balizar os conflitos no âmbito dos demais tipos societários, em que não existe
um dividendo obrigatório.
Sobre a diferença entre o mandatory dividends e o dividendo obrigatório, cumpre
ainda observar a crítica feita por Fábio Ulhoa Coelho (2010, p. 341) a Modesto Carvalhosa,
por entender o último que a destinação de parcela do lucro ao pagamento do dividendo
obrigatório é de competência da administração, como no mandatory dividends das companhias americanas, sendo da competência exclusiva da diretoria a decisão de retenção
desse dividendo para a formação da reserva especial, cabendo à assembleia geral mero ato
de homologação, com efeito declaratório.
Sobre o tema, entende-se que a Lei das Sociedades por Ações estabelece competência privativa e exclusiva da assembleia geral ordinária para deliberar sobre a destinação
do lucro líquido e a distribuição de dividendos, cabendo à administração apenas fazer-lhe
uma proposta, inclusive no caso de retenção do dividendo obrigatório para constituição de
reserva especial, conclusão essa escoimada no § 4º do art. 202 da Lei nº 6.404/1976, que
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Revista Síntese Direito Empresarial
Direito Societário
prevê a retenção para reserva especial, no qual fica claro ser uma faculdade da assembleia
distribuir o dividendo obrigatório mesmo perante a informação da administração no sentido
de que a companhia não reúne condições financeiras para tanto.
Tal conclusão coaduna-se com o disposto expressamente no inciso II do art. 132, no
sentido de que compete à assembleia geral ordinária “deliberar sobre a destinação do lucro
líquido do exercício e a distribuição de dividendos”, não existindo disposição específica em
contrário no trato da reserva especial.
Outrossim, na sistemática atual da Lei brasileira do Anonimato, verifica-se que o dividendo obrigatório é, na verdade, uma mera limitação ao abastecimento das reservas estatutárias e da retenção de lucros prevista em orçamentos.
Isso porque, verificado o lucro líquido do exercício, para cálculo do dividendo
obrigatório podem ser abatidas a reserva legal, as reservas para contingências e a reserva de
incentivos fiscais.
Por outro lado, a reserva de lucros a realizar, a reserva especial e a retenção de lucros
unânime não são dedutíveis da base de cálculo do dividendo obrigatório, a primeira constituindo a parcela do dividendo obrigatório que será paga quando da realização do lucro
contábil apurado, a segunda sendo a retenção de parcela do dividendo obrigatório que, em
face de condições financeiras adversas, fica retida, podendo ser liberada depois para pagamento aos acionistas na forma do dividendo obrigatório que não foi distribuído; a terceira
coincidindo com o interesse unânime dos acionistas em não receber a verba, nas três espécies sendo perfeito e imutável o cálculo do dividendo obrigatório, que apenas não é pago
pela sociedade de acordo com as peculiaridades de cada uma.
O fruto desse cálculo chama-se lucro líquido ajustado, base de cálculo sobre a qual se
aplica o percentual previsto na lei ou no estatuto para se chegar ao dividendo obrigatório,
coincidindo essa base, como já apontado, com o lucro líquido abatido da reserva legal,
das reservas para contingência e da reserva de incentivos fiscais, acrescido da reversão de
reservas. O percentual previsto na lei ou no estatuto é aplicado então sobre o lucro líquido
ajustado, chegando-se ao dividendo obrigatório.
Apenas no caso de restar saldo, após o pagamento do dividendo obrigatório, poderá
então a assembleia destinar-lhe à constituição de reservas estatutárias e à retenção de lucros baseada em orçamento, desde que preenchidos os requisitos legais de cada reserva.
Não havendo reservas estatutárias previstas ou orçamentos aprovados, todo o lucro líquido
ajustado constituirá dividendo obrigatório, na forma do § 6º do art. 202.
Bem pensadas as coisas, não há no direito do anonimato brasileiro hipótese de pagamento de dividendo não obrigatório, haja vista a necessidade de distribuição total do lucro
líquido ajustado não apropriado em reservas ou retido por força de orçamento.
Poder-se-ia cogitar apenas do pagamento de dividendo não obrigatório na peculiar
hipótese de a sociedade ter orçamento aprovado, possibilitando retenção, e/ou previsões de
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Direito Societário
reservas estatutárias e, mesmo tendo a possibilidade de destinar valor para essas contas, não
o fazer, destinando os valores para o pagamento de dividendos.
Essa hipótese, contudo, nunca ocorrerá formalmente, porque se há saldo para ser apropriado por orçamento ou reserva estatutária e a companhia não o faz, a distribuição do restante dar-se-á por obrigação, compondo sempre o dividendo mínimo obrigatório, na forma
da lei.
Outrossim, observa-se que o art. 202 da lei estabelece o percentual de 50% (cinquenta por cento) a incidir sobre o lucro líquido ajustado para o cálculo do dividendo mínimo
obrigatório, mas possibilita, no § 1º, que o estatuto da companhia estabeleça qualquer outro
percentual, que poderá incidir também sobre o valor do capital social, podendo ainda estabelecer outros critérios para o cálculo, conforme for a disposição adotada.
Estabelece, também, o mesmo artigo, em seu § 2º, que a assembleia poderá inserir
a disposição quando for omisso o estatuto, hipótese em que o dividendo obrigatório não
poderá ser inferior a 25% (vinte e cinco por cento) do lucro líquido ajustado, sendo essa disposição teratológica ao tratar apenas da inserção em estatutos omissos, deixando de tratar
sobre a alteração de estatutos que já disponham sobre o assunto. Destaca-se, ainda, que a
alteração do dividendo obrigatório garante direito de retirada ao acionista dissidente, na
forma do art. 137 da Lei das Sociedades Anônimas.
Demais disso, cumpre esclarecer que o dividendo obrigatório aproveita à totalidade
dos acionistas, de forma que todos recebem pagamento dessa rubrica, cada um de acordo
com o direito que suas ações conferem, valendo observar, ainda, que o juro sobre capital
próprio, de acordo com a legislação específica, poderá ser imputado ao pagamento do
dividendo mínimo obrigatório, desde que no valor líquido, descontado de todos os tributos
incidentes.
3.2 Dividendos e acionistas preferenciais
As ações preferenciais, previstas no art. 17 da Lei nº 6.404/1976, conferem aos seus
titulares vantagens patrimoniais em relação aos titulares de ações ordinárias, como contraprestação às desvantagens políticas que lhes representa a perda ou a limitação do direito de
voto que o art. 111 da lei possibilita aos estatutos das companhias instituir, total ou parcialmente.
O estatuto poderá estabelecer tantas vantagens patrimoniais para os preferencialistas
quantas forem pertinentes, estabelecendo a lei apenas o mínimo dessas vantagens, havendo
regramento legal diferenciado conforme seja a ação preferencial admitida à negociação no
mercado de valores mobiliários e com direito de voto restrito ou não.
Esse regramento legal mínimo dos privilégios patrimoniais, apesar de não ser perfeito,
representa um progresso da legislação brasileira, sendo fruto de incessantes manifestações
da doutrina e do mercado, questão bem explorada na obra de Waldírio Bulgarelli (1998, p.
67) dedicada ao regime jurídico da proteção das minorias nas sociedades anônimas.
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Revista Síntese Direito Empresarial
Direito Societário
As ações preferenciais não admitidas a negociação no mercado terão como vantagem
patrimonial mínima: “I – em prioridade na distribuição de dividendo, fixo ou mínimo; II –
em prioridade no reembolso do capital, com prêmio ou sem ele; ou III – na acumulação das
preferências e vantagens de que tratam os incisos I e II”, sendo essa a transcrição da atual
redação dos incisos referentes ao caput do art. 17 da lei comentada.
Já às ações preferenciais admitidas à negociação no mercado e que limitem o direito
de voto do acionista o § 1º do mesmo artigo confere as seguintes vantagens patrimoniais
mínimas:
I – direito de participar do dividendo a ser distribuído, correspondente a, pelo menos, 25%
(vinte e cinco por cento) do lucro líquido do exercício, calculado na forma do art. 202, de
acordo com o seguinte critério:
a) prioridade no recebimento dos dividendos mencionados neste inciso correspondente a, no
mínimo, 3% (três por cento) do valor do patrimônio líquido da ação; e
b) direito de participar dos lucros distribuídos em igualdade de condições com as ordinárias,
depois de a estas assegurado dividendo igual ao mínimo prioritário estabelecido em conformidade com a alínea a; ou
II – direito ao recebimento de dividendo, por ação preferencial, pelo menos 10% (dez por
cento) maior do que o atribuído a cada ação ordinária; ou
III – direito de serem incluídas na oferta pública de alienação de controle, nas condições previstas no art. 254-A, assegurado o dividendo pelo menos igual ao das ações ordinárias.
Vale ressaltar que a lei estabelece dois critérios para que se verifique ser a ação preferencial contemplada por um ou por outro regramento mínimo de vantagens patrimoniais,
quais sejam: I – ser a ação admitida à negociação no mercado de valores mobiliários e II –
conferir limitação ao direito de voto.
Dessa assertiva decorrem outras conclusões. A primeira é que todas as ações preferenciais, limitando ou não o direito de voto do seu titular, estão contempladas com as vantagens patrimoniais mínimas previstas nos incisos do caput do art. 17 da lei; a segunda é que o
simples fato de a companhia ter capital aberto não implica que todas as ações preferenciais
de sua emissão estejam sujeitas ao regramento mais rígido do § 1º, sendo este aplicável apenas à parcela de suas ações preferenciais que sujeitem seus titulares a restrições no direito
de voto, restando os titulares de ações preferenciais com direito de voto pleno admitidas à
negociação no mercado à margem das vantagens mais efetivas estabelecidas pela lei.
Dito isso, cumpre observar que as vantagens patrimoniais mínimas estabelecidas pela
lei, assim como as que adicionalmente sejam estabelecidas nos estatutos, nem sempre guardam relação com os dividendos, conferindo aos titulares das ações preferenciais alguma
vantagem na distribuição em relação aos detentores de ações ordinárias.
340
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Direito Societário
A prioridade no reembolso do capital e o tag along, por exemplo, não oferecem
qualquer vantagem ao preferencialista no que concerne à distribuição dos dividendos, apesar de constituir vantagem patrimonial, motivo pelo qual não são analisadas no presente
trabalho. Assim, trata o presente artigo apenas no inciso I do caput do art. 17, e dos incisos
I e II do § 1º do mesmo artigo.
A primeira dessas disposições trata do privilégio consistente na prioridade no recebimento do dividendo fixo ou mínimo, que, em conjunto, chama-se dividendos prioritários. O
dividendo fixo, como transparece a denominação, é aquele que confere ao titular da ação
preferencial o direito de receber sempre uma importância fixa, que será calculada na forma
disposta no estatuto, podendo essa importância ser determinada ou determinável, como
qualquer prestação obrigacional.
Assim, se o estatuto dispuser que será paga a importância de R$ 1.000,00 (um mil
reais) ao proprietário de cada ação preferencial da classe x, essa será sua única participação
na distribuição de dividendos, não podendo lhe ser paga importância maior, ainda que o
lucro social seja muito superior e proporcione dividendos relativamente exorbitantes aos
proprietários de ações ordinárias ou de ações preferenciais de outras classes.
Da mesma forma, poderá o estatuto dispor que o dividendo fixo será equivalente a
certa percentagem sobre o capital social ou sobre o lucro líquido ajustado, ou sobre outro
dos conceitos contábeis e econômicos de lucro, ou sobre o valor nominal da ação, ou sobre
o preço de emissão da ação etc.
A principal característica do dividendo fixo, portanto, é a limitação, não podendo o
preferencialista com esse direito receber nada mais do que a importância fixada no estatuto,
sendo o restante dos dividendos distribuídos repartido entre os demais acionistas.
Excetua-se, contudo, a hipótese de real verificação bastante rara referida no § 4º do art.
17 da Lei nº 6.404/1976, consistente na possibilidade de o estatuto dispor diferentemente,
o que não afastará a limitação como principal característica do dividendo fixo, posto que,
nesse caso, pago o dividendo prioritário que lhes é devido, os preferencialistas com direito
a dividendo fixo terão participação no restante dos lucros de acordo com a limitação estatutária, sendo certo que a disposição estatutária que lhes garanta participação integral no
restante dos lucros será tecnicamente incorreta, pois estará instituindo dividendo mínimo e
não fixo, nada importando a denominação utilizada.
Por outro lado, é de se observar que o pagamento do dividendo fixo, assim como o pagamento do dividendo mínimo esclarecido adiante, é prioritário, de forma que, se o total do
dividendo distribuído pela assembleia não superar o valor total devido aos preferencialistas
com direito a dividendos fixos e mínimos, nada será pago aos ordinarialistas e aos preferencialistas sem esses direitos.
Conforme ressaltado antes, a principal característica do dividendo fixo é a limitação,
o que se diz porque é justamente essa característica que diferencia o dividendo fixo do
mínimo, haja vista que esse último também tem prioridade de pagamento na distribuição de
dividendos, concorrendo em igualdade de condições com o dividendo fixo.
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Direito Societário
Por outro lado, o proprietário de ação preferencial com direito a dividendo mínimo, no
que se verifica a diferença, concorre junto aos ordinarialistas e preferencialistas sem direito
a dividendo fixo ou mínimo, em igualdade de condições, na distribuição de dividendos que
exceda a importância destinada ao pagamento dos dividendos fixos e mínimos, podendo o
estatuto dispor que a concorrência no recebimento dos dividendos restantes após o pagamento dos prioritários não se dará em igualdade de condições. O dividendo mínimo, assim
como o fixo, poderá ser estabelecido com qualquer parâmetro, cabendo ao estatuto dispor
em minúcias sobre a matéria.
Além disso, é de se observar que tanto o dividendo mínimo como o dividendo fixo, a
critério do estatuto, poderão ser cumulativos ou não. A cumulatividade do dividendo prioritário garante ao acionista receber em exercícios futuros o dividendo que lhe seria devido
em um exercício e não lhe foi pago por qualquer motivo.
Para melhor explicar a questão, interessa utilizar uma situação exemplificativa: se a
ação preferencial confere direito a dividendo fixo cumulativo de R$ 1.000,00 (um mil reais),
o detentor dessa ação deve receber esse valor independentemente do lucro de exercício da
sociedade, só não podendo receber da conta do capital social e da reserva de capital, exce­
tuando-se a hipótese de dividendo prioritário cumulativo em que o estatuto expressamente
possibilite o pagamento à conta de reserva de capital, conforme o § 6º do art. 17.
Constatando a assembleia geral ordinária que a sociedade efetivamente não reúne
condições para o pagamento, porque não houve lucro de exercício e não há reservas
passíveis de distribuição, na tecnologia do dividendo prioritário cumulativo, o acionista
permanecerá com um crédito, de forma que, na próxima assembleia geral ordinária, terá de
receber dividendo de R$ 2.000,00 (dois mil reais), desprezando-se a inflação para facilitar
o exemplo.
Portanto, a cumulatividade confere ao beneficiado o direito de, em exercício futuro,
receber o dividendo prioritário que lhe era devido em exercício passado, mas que não pode
lhe ser pago em razão da inexistência de lucros e reservas suficientes.
Sobre a cumulatividade, apesar de óbvio, vale dizer, só poderá ser instituída em relação
aos dividendos prioritários. Também sobre a cumulatividade é de se ressaltar que apenas
quando o dividendo tiver essa característica poderá ser pago à conta de reserva de capital,
o que também dependerá de disposição estatutária permissiva, que será ilegal no caso de
o dividendo não ser cumulativo, ainda que prioritário. Ainda assim, há que se notar que a
cumulatividade não se presume, devendo o estatuto dispor expressamente nesse sentido;
não o fazendo, o dividendo será não cumulativo.
Com essas considerações, pode-se entender que a vantagem patrimonial disposta no
inciso I do caput do art. 17 abarca dividendo fixo e mínimo, cumulativo ou não. Por outro
lado, para as ações admitidas à negociação no mercado que limitem o poder de voto, as
vantagens patrimoniais relacionadas aos dividendos, dispostas nos incisos I e II do § 1º,
merecem outros esclarecimentos.
342
Revista Síntese Direito Empresarial
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A primeira dessas vantagens é, na verdade, um dividendo mínimo, revestido de algumas especificidades. Primeiramente é de se notar que esse dividendo mínimo não poderá ter
limitada sua participação na distribuição de dividendo que supere o pagamento do mínimo,
devendo, portanto, obrigatoriamente participar em igualdade de condições com as ações
ordinárias e preferenciais sem direito a prioridade alguma, o que diferencia esse dividendo
mínimo da regra geral, já que naquela a participação em referência poderá ser limitada pelo
estatuto da companhia.
Bem assim, esse dividendo mínimo não poderá ser inferior a 3% (três por cento) do
valor patrimonial da ação8, o que também diferencia esse dividendo mínimo da regra geral,
em que a lei não impõe um piso para a prioridade do dividendo mínimo.
Em relação a essas ações, ademais, o dividendo obrigatório nunca poderá ser inferior
a 25% (vinte e cinco por cento) do lucro líquido ajustado, o que obviamente não obriga que
todo esse valor seja prioritário, nem que o dividendo obrigatório da companhia tenha esse
montante em relação a todos os acionistas.
Já a segunda das vantagens ora debatidas não constitui hipótese de dividendo prioritário, não se confundindo com dividendo fixo ou mínimo, nem com outra hipótese de
prioridade inominada.
A vantagem patrimonial de que trata o inciso II do § 1º do art. 17 é simplesmente um
dividendo sempre superior ao atribuído às ações ordinárias, devendo a superioridade ser
igual ou acima de 10% (dez por cento). Nesse caso, o dividendo será simplesmente superior, de acordo com a proporção estabelecida no estatuto, mas sem qualquer prioridade na
ordem de pagamento.
Assim, em exemplo simples, se uma companhia que tenha igual quantidade de ações
ordinárias e preferenciais com esse tipo de direito gerar um dividendo obrigatório de apenas
R$ 1.050,00 (um mil e cinquenta reais), o dividendo dos ordinarialistas será de R$ 500,00
(quinhentos reais), enquanto que o dos preferencialistas será de R$ 550,00 (quinhentos e
cinquenta reais).
De se notar que os exemplos narrados acima são os mais básicos possíveis, podendo
ocorrer de a companhia apresentar quadro extremamente complexo, com ações admitidas à
negociação no mercado, tanto preferenciais como ordinárias, as primeiras de diversas classes que garantam diversas vantagens diferentes, umas com voto pleno e outras não, dependendo o cálculo dos dividendos devidos a cada acionista das peculiaridades e realidades de
cada companhia.
Destarte, o art. 111, § 2º, da Lei nº 6.404/1976 estabelece que o dividendo prioritário
não pago por 3 (três) exercícios consecutivos garante ao preferencialista direito de voto pleno, suspendendo a aplicação da limitação estatutária. Se os dividendos forem cumulativos,
para restabelecer a eficácia da limitação ao voto estabelecida no estatuto, a companhia
8 Valor do patrimônio líquido da companhia no exercício dividido pelo número de ações que formam seu capital social.
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Direito Societário
deve pagar todos os atrasados, enquanto que, na hipótese de dividendo não cumulativo, o
mesmo efeito terá o simples pagamento dos dividendos devidos no próximo exercício.
Essa regra, por certo, representa interessante proteção aos preferencialistas, impondo
ao poder de controle envidar verdadeiro esforço para não ver a relação de poderes da companhia sofrer modificação, o que será mais ou menos eficiente a depender da dispersão do
controle, da quantidade de capital aportado por preferencialistas, da coesão entre estes, e
inúmeros outros fatores, vigorando no ordenamento jurídico brasileiro desde a vigência do
Decreto-Lei nº 2.627, de 1940.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não obstante algumas imprecisões e omissões que permitem alguma margem para
abusos do poder de controle, entende-se, pela pesquisa desenvolvida ao longo do presente
artigo, que a legislação brasileira atual cumpre seu papel satisfatoriamente ao regular as finanças corporativas de forma geral, respeitando as diferentes necessidades de cada setor da
economia e em cada região do País ao se abster de descer em minúcias excessivas, o que
poderia inviabilizar a exploração de empresas tão distintas em suas peculiaridades.
Essas minúcias, todavia, devem ser inseridas nos estatutos sociais, que são instrumentos jurídicos pertinentes para esse fim, ou mesmo em instrumento societário específico,
devendo a companhia eliminar as omissões e imprecisões legais por meio de suas normas
de caráter especial, para que fique clara a política de distribuição de dividendos, o que,
infelizmente, não é feito em grande parte das sociedades nacionais, seja por descuido e
despreparo dos responsáveis pela redação, seja por interesse próprio dos fundadores e controladores, conscientes do proveito que a norma genérica pode lhes proporcionar em determinadas circunstâncias.
Nesse contexto, apresenta-se o movimento conhecido por corporate governance, formalizado no Brasil pelo Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa (Instituto
Brasileiro de Governança Corporativa, 2009) e pelo Regulamento de Listagem no Novo
Mercado (BM&FBovespa S.A. – Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros, 2008), normas de
adesão facultativa que, não obstante os êxitos, poderiam exigir estatutos mais claros sobre a
política de distribuição dos dividendos das companhias ou mesmo instrumentos apartados
dos estatutos em que a exigência pudesse ser cumprida.
Nesse sentido, veja-se que o Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa,
acima referido, dispõe sobre o assunto apenas formalmente, obrigando que as companhias
tenham uma política de distribuição de dividendos definida, mas sem nada dispor materialmente ou objetivamente, deixando de contribuir para maiores esclarecimentos efetivos.
Contudo, entende-se que o amadurecimento do movimento pode trazer grande contribuição para a proteção das minorias societárias, contribuído na busca pela segurança
jurídica que a economia nacional e, mais precisamente, o mercado de capitais brasileiro
demandam.
344
Revista Síntese Direito Empresarial
Direito Societário
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Revista Síntese Direito Empresarial
Direito Societário
Doutrina
Modelos de Conselho de Administração na Governança Corporativa
ANDRÉ FERNANDES ESTEVEZ1
Doutorando em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Privado pela UFRGS, Professor de Direito
Empresarial e Civil na PUC-RS, Advogado.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Modelos de Conselho de Administração; 1.1 Shareholder oriented model; 1.2 Stakeholder oriented model; 2 Questões centrais no Conselho de Administração; 2.1 Composição do Conselho de
Administração; 2.2 Controle de conduta dos conselheiros; 2.3 Remuneração dos conselheiros; 2.4 Empresas
familiares; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Desde o período bizantino do império romano2, é possível tratar de sociedade como
um contrato tipificado, juntamente com compra e venda, locação e mandato3.
As sociedades formadas entre o período romano e a Idade Média basearam-se em pequenos
grupos de pessoas e de capital. As companhias – que são a origem das sociedades anônimas –
passaram a existir somente em 1602 – por meio da Companhia das Índias Orientais, fundada na
Holanda –, como sociedade de capital para fazer frente às grandes navegações. Eram criadas por Decreto Real e podiam captar livremente o dinheiro das pessoas4.
Enquanto a tradicional sociedade existente no Direito romano tinha a característica de
ser uma sociedade de pessoas e atendia apenas à vontade dos sócios, as companhias5 caracterizavam-se por serem sociedades de capital. Não mais importavam diretamente a vontade
ou as características pessoais de cada um dos sócios, mas sim o capital de que dispunham
para exercer uma atividade.
1
2
3
4
Matrícula USP nº 8480407.
Período que durou aproximadamente dos séculos V a XV.
CRETELLA JUNIOR, José. Curso de direito romano. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 190.
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de direito societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, parte II, 2005. p. 0305.
5 Esclareça-se que a companhia não era o único tipo societário existente à época, mas aqui se ressalta como modelo
importante para trazer novos contornos à matéria.
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Revista Síntese Direito Empresarial
Direito Societário
O aperfeiçoamento e uso da sociedade de capital fez com que se aprofundasse, no
século XX, a separação entre propriedade e controle6, o que teve como uma das consequências a criação de duas teorias antagônicas no direito societário, a saber, a contratualista e a
institucionalista.
Pela teoria contratualista, indica-se que a sociedade é uma comunhão dos interesses
dos sócios, não importando o interesse de terceiros, como trabalhadores, fornecedores, entre
outros7. Por muito tempo, a “maximização de lucros e competição selvagem tornaram-se,
supostamente, a única via para o sucesso”8.
Em contraposição, foram criadas teorias institucionalistas que reconhecem a existência
de outros interesses sociais além daqueles atinentes ao sócio9. Entende-se por essas teorias
que o interesse do sócio é, muitas vezes, egoísta e contraposto ao interesse da sociedade.
Dentro deste campo em que a sociedade pode atender a múltiplos e potencialmente
conflitantes interesses, surge a governança corporativa10 como um fenômeno relativamente
recente11, com suas bases rudimentares lançadas logo após a crise de 192912. Originalmente
foi uma tentativa de superação de conflitos de interesses dentro de companhias (agency
conflict)13. No entanto, sua análise não se restringe mais meramente a mecanismos de superação dos conflitos de agência, mas também a preocupações de diversas ordens14, inclusive
ética.
6 LUCHINSKY, Rodrigo S. El sistema de gobierno societario. Una aproximación institucional al corporate governance.
Revista de Derecho Comercial y de las Obligaciones, Buenos Aires, n. 39, p. 413, 2006.
7 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, v. IV, t. I, 2002. p.
03-04; DOBSON, Juan Ignacio. Interés societario. Buenos Aires: Astrea, 2010. p. 50.
8 HOPT, Klaus. Deveres legais e conduta ética de membros do conselho de administração e de profissionais. Trad. Erasmo
Valladão Azevedo e Novaes França e Mauro Moisés Kertzer. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n. 144, p. 107,
2006.
9 DOBSON, Juan Ignacio. Interés societario. Buenos Aires: Astrea, 2010. p. 54; LOBO, Jorge. Princípios de governança
corporativa. Revista da Emerj, Rio de Janeiro, n. 37, p. 209, 2007.
10 Assinala-se que a expressão governança corporativa é uma má tradução de corporate governance. Em tese, a tradução
mais adequada seria governo da empresa ou outra expressão equivalente. No entanto, a expressão restou sedimentada
no Brasil, de forma que parece conveniente usar a terminologia dominante. No mesmo sentido, consta em ROSMAN,
Luiz Alberto Colonna. Governança corporativa. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro, n. 31, p. 132, 2005. O
mesmo problema se verifica na Argentina, como consta em LUCHINSKY, Rodrigo S. El sistema de gobierno societario.
Una aproximación institucional al corporate governance. Revista de Derecho Comercial y de las Obligaciones, Buenos
Aires, n. 39 p. 412, 2006.
11 CASTRO, Rodrigo Monteiro de; WARDE JÚNIOR, Walfrido Jorge. Proselitismo corporativo. Revista de Direito Bancário
e do Mercado de Capitais, São Paulo, n. 60, p. 329, 2013.
12 Ibidem, p. 330.
13 BORTOLI, Andreya de. A função social da empresa e suas implicações na governança corporativa e na gestão de
stakeholders. Revista de Direito Empresarial, Curitiba, n. 09, p. 178, 2008.
14 Conforme Jorge Lobo, governança corporativa visa à realização da justiça e do direito, como consta em LOBO, Jorge. Princípios
de governança corporativa. Revista da Emerj, Rio de Janeiro, n. 37, p. 202, 2007. Relata, ainda a preocupação moral
com companhias como Wal-Mart, que foi acusada de explorar trabalho infantil, levar à falência 31 varejistas americanos
em 10 anos, bem como sacrificar fornecedores com preços asfixiantes, como consta na p. 203; relata igualmente a
preocupação ambiental que atualmente também deve ser considerada pela atividade empresária, como consta na p. 219.
Luiz Alberto Rosman anuncia que a governança corporativa também se preocupa com a rentabilidade dos investimentos,
como consta em ROSMAN, Luiz Alberto Colonna. Governança corporativa. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro, n. 31,
p. 136, 2005. Rosman indica que estudo da Consultoria McKinsey indicou que investidores estariam dispostos a pagar
de 18% a 28% a mais por empresas que adotam regras de governança corporativa, como consta na p. 136.
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Direito Societário
A preocupação central e original da governança corporativa era de regular as boas
práticas de governo da empresa, em especial no tocante ao Conselho de Administração,
órgão este que permanece como o principal instrumento15.
O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), constituído em 1995, é uma
organização que acompanhou os primeiros passos do debate sobre as boas práticas no Brasil e lançou edições do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa nos anos
de 1999, 2001, 2004 e 2009. A primeira edição contou com conteúdo centrado exclusivamente em Conselho de Administração, evidenciando a importância desse órgão societário
para a matéria.
Neste escrito, não se pretende analisar detidamente o formato do Conselho de Administração no Brasil especificamente, mas preocupa-se em analisar os modelos adotados no
mundo em relação ao tema, bem como alguns problemas centrais deste órgão societário na
governança corporativa.
1 MODELOS DE CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
O Conselho de Administração é órgão societário, previsto em diversas legislações societárias16, que possui uma função de conexão entre a Assembleia de Acionistas e a Diretoria.
Em razão de sua localização central dentro da estrutura societária, deve atender aos
interesses da sociedade na gestão e no monitoramento das suas atividades. No entanto, as
teorias contratualista e institucionalista demonstram que os Conselhos de Administração
podem atender a interesses diversos, conforme o modelo adotado.
Alguns autores dissertam sobre a existência de variações nos modelos de governança
corporativa em sua aplicação nos diversos ordenamentos jurídicos17. Inobstante, é possível
resumir as diferenças regionais em apenas dois modelos – que explicariam as diferenças
essenciais aplicáveis ao Conselho de Administração –, denominados shareholder oriented
model e stakeholder oriented model18.
15 SANTOS, Aline de Menezes. Reflexões sobre a governança corporativa no Brasil. Revista de Direito Mercantil, São
Paulo, n. 130, p. 183, 2003.
16 No Brasil, a previsão encontra-se na Lei nº 6.404/1976, arts. 140 e seguintes.
17 CAVALI, Rodrigo Costenaro. Propriedade e controle em estruturas societárias: o agency problem e os modelos de
corporate governance. Revista de Direito Empresarial, Curitiba, n. 06, p. 87, 2006.
18 SANTOS, Aline de Menezes. Reflexões sobre a governança corporativa no Brasil. Revista de Direito Mercantil, São
Paulo, n. 130, p. 188, 2003.
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Revista Síntese Direito Empresarial
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1.1 Shareholder oriented model
O modelo shareholder, também conhecido como anglo-saxão, é adotado na Inglaterra
e nos Estados Unidos19 e indica que o interesse a ser buscado pela sociedade é o lucro dos
sócios20.
Os países que o adotam caracterizam-se por uma elevada dispersão acionária21, embora não seja uma característica intrínseca ao modelo. Segundo Mark Roe, a existência
de acionistas difusos e distantes de uma administração concentrada gera uma profunda
separação entre propriedade e controle, capaz de gerar desde grandes eficiências quanto
quebras recorrentes22. Estas últimas podem ocorrer porque não costuma ter um regulador
próximo e especializado que possa fiscalizar e corrigir a trajetória da companhia23.
A descentralização da propriedade acionária, em tese, favorece uma maior fiscalização
da sociedade, porque haveria maior número de interessados nos resultados societários. No
entanto, isso não se verifica na prática.
Em março de 1964, ocorreu um incidente em Nova Iorque em que uma mulher
voltava do trabalho e foi assaltada às 03h30min da manhã, recebendo três facadas. Embora tenha levado três facadas e gritado por socorro por trinta minutos antes de morrer,
nenhum dos trinta e oito vizinhos que assistiram ao evento chamou a polícia ou tentou
socorrer a vítima. Após inúmeras pesquisas e testes, confirmou-se a hipótese de que o
compartilhamento de responsabilidades reduz drasticamente o senso de responsabilidade
de cada indivíduo24.
Naturalmente, o estudo mencionado não se reporta especificamente a casos societários, mas demonstra um comportamento humano que, em maior ou menor medida, pode
ser generalizado, embora outros fatores influenciem nos resultados e em cada situação25.
Prosseguindo, em tese o modelo shareholder parece simples ao direcionar o Conselho
de Administração a atender apenas aos interesses dos sócios. No entanto, são fartos os ca19 BORTOLI, Andreya de. A função social da empresa e suas implicações na governança corporativa e na gestão de
stakeholders. Revista de Direito Empresarial, Curitiba, n. 09, p. 180, 2008; CAVALI, Rodrigo Costenaro. Propriedade
e controle em estruturas societárias: o agency problem e os modelos de corporate governance. Revista de Direito
Empresarial, Curitiba, n. 06, p. 84, 2006; SANTOS, Aline de Menezes. Reflexões sobre a governança corporativa no
Brasil. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n. 130, p. 189, 2003.
20 HOPT, Klaus. Deveres legais e conduta ética de membros do conselho de administração e de profissionais. Trad. Erasmo
Valladão Azevedo e Novaes França e Mauro Moisés Kertzer. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n. 144, p. 108,
2006.
21 SANTOS, Aline de Menezes. Reflexões sobre a governança corporativa no Brasil. Revista de Direito Mercantil, São
Paulo, n. 130, p. 188, 2003.
22 ROE, Mark J. A inevitável instabilidade da governança corporativa norte-americana. Trad. Rachel Sztajn. Revista de
Direito Mercantil, São Paulo, n. 140, p. 08, 2005.
23 Ibidem, p. 08-14.
24 DAVIDOFF, Linda. Introdução à psicologia. Trad. Auriphebo Barrance Simões e Maria da Graça Lustosa. Makron Books:
São Paulo, 1983. p. 46-47.
25 Ibidem, p. 52.
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Direito Societário
sos em que é possível a disputa entre sócios/acionistas, os quais podem ter como benefício
direto ou indireto o controle ou o lucro. Como exemplos, tem-se supressão de direitos aos
minoritários ou distribuição do patrimônio ao controlador (opressão); emissão de ações
(squeeze-out) para diluir a participação dos sócios minoritários e enfraquecer os seus poderes de voto e veto; privação dos minoritários de direitos e benefícios (freeze-out) para
incentivá-los a vender sua participação por preços aviltantes; paralisação dos órgãos sociais
(deadlock)26.
1.2 Stakeholder oriented model
O modelo stakeholder, também conhecido como modelo nipo-germânico27, centra
suas preocupações no grupo de pessoas que fica no entorno da companhia28, entre eles os
sócios, os trabalhadores, os clientes, os fornecedores e os credores, além da comunidade
que cerca a atividade empresária29.
Os países que adotam esse modelo costumam apresentar como característica uma elevada concentração acionária30, como ocorre na Alemanha, no Japão, na maioria dos países
da Europa Continental, bem como no Brasil, na Argentina, entre outros. Esse predicado não
é essencial ao modelo, mas é fruto de uma coincidência entre os países que o adotam.
Essa busca de interesses protetivos aos stakeholders é associado pela doutrina com a
teoria institucionalista e com a função social da empresa.
Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho reconhecem a existência de interesses interempresariais e extraempresariais, entendidos aqueles como atinentes aos acionistas,
titulares de outros valores mobiliários, empregados e administradores, e estes como ligados
à comunidade local, regional ou nacional. Acrescentam que “a harmonização dos interesses internos e externos à empresa faz-se naturalmente, no sentido da supremacia dos segundos sobre os primeiros na hipótese de conflito”31. Calixto Salomão Filho compreende que a
função social da empresa ultrapassa os deveres com os demais sócios para “impor deveres
positivos perante terceiros (não sócios) afetados pela atividade empresarial”32.
26 BARUFALDI, Luís Fernando Roesler. A governança corporativa nas sociedades anônimas familiares. Revista Síntese
Direito Empresarial, São Paulo, n. 20, p. 117-120, 2011.
27 BORTOLI, Andreya de. A função social da empresa e suas implicações na governança corporativa e na gestão de
stakeholders. Revista de Direito Empresarial, Curitiba, n. 09, p. 180, 2008; SANTOS, Aline de Menezes. Reflexões
sobre a governança corporativa no Brasil. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n. 130, p. 189, 2003.
28 Daí o termo stakeholder, o qual não alcançou tradução adequada para o português.
29 No mesmo sentido, Código de Condutas da Governança Corporativa. 4. ed. IBGC, item 2.15; Ver LOBO, Jorge. Princípios
de governança corporativa. Revista da Emerj, Rio de Janeiro, n. 37, p. 209, 2007.
30 SANTOS, Aline de Menezes. Reflexões sobre a governança corporativa no Brasil. Revista de Direito Mercantil, São
Paulo, n. 130, p. 189, 2003.
31 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2008. p. 365.
32 Ibidem, p. 131.
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Revista Síntese Direito Empresarial
Direito Societário
Em contraposição, Juan Dobson ressalta, com razão, que
la atribución de una función social a las sociedades comerciales es motivo de controversias,
dada la supuesta contradicción que existe entre el cumplimiento de dicha función y el objetivo
de maximización de beneficios afín a la actividad empresarial.33
Dentro de um contexto de governança corporativa, conforme o modelo stakeholder,
pode compreender-se que o lucro dos sócios não é o único, tampouco o principal objetivo
de uma sociedade empresária. No entanto, Klaus Hopt esclarece que mesmo os adeptos
deste modelo admitem que o lucro em longo prazo é uma prioridade34.
Admitindo-se que a sociedade não pode buscar exclusivamente o lucro, o Conselho de
Administração enfrenta sérias dificuldades para saber quais escolhas atendem ao conjunto
de interesses35, inclusive porque muitos deles são ou podem ser contraditórios. Exemplificativamente, Klaus Hopt apresenta relevantes questionamentos sobre a conduta do Conselho
de Administração e seus possíveis conflitos ao indagar se “pode o conselho gastar quanto
dinheiro quiser com caridade ou com coleções de arte maravilhosas? É correto o conselho
vender a empresa a um comprador estrangeiro suspeito de ser um raider?”36. Dependendo
do interesse que seja entendido como preponderante, será possível justificar tanto respostas
positivas quanto negativas para as duas perguntas.
Outra questão delicada envolvendo o Conselho de Administração ocorre com o acordo de acionistas. Alguns ordenamentos admitem a referida convenção, o que, no caso do
Brasil, encontra-se regulada no art. 118 da Lei nº 6.404/1976. Com a reforma introduzida
pela Lei nº 10.303/2001, tornou-se expressa a possibilidade de vinculação de diretores e
membros do Conselho de Administração a este pacto societário37. No entanto, Modesto
Carvalhosa assinala que os membros do Conselho não estão vinculados exclusivamente aos
interesses dos acionistas, de forma que o próprio acordo deverá atender ao interesse social38
– isso porque a Diretoria e o Conselho de Administração não atendem exclusivamente à
vontade dos sócios39.
33 DOBSON, Juan Ignacio. Interés societario

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