desafios da atenção à anorexia nervosa em adolescentes
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desafios da atenção à anorexia nervosa em adolescentes
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA DESAFIOS DA ATENÇÃO À ANOREXIA NERVOSA EM ADOLESCENTES: UMA PESQUISA ETNOGRÁFICA EM SERVIÇO DE SAÚDE DO RIO DE JANEIRO TESE DE DOUTORADO PRISCILA DA SILVA CASTRO VIANEZ RIO DE JANEIRO | OUTUBRO 2015 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA PRISCILA DA SILVA CASTRO VIANEZ DESAFIOS DA ATENÇÃO À ANOREXIA NERVOSA EM ADOLESCENTES: UMA PESQUISA ETNOGRÁFICA EM SERVIÇO DE SAÚDE DO RIO DE JANEIRO TESE DE DOUTORADO ORIENTADORA: PROFESSORA DRA. ELAINE REIS BRANDÃO TESE DE DOUTORADO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA, INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA, UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, COMO REQUISITO PARCIAL À OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM SAÚDE RIO DE JANEIRO | COLETIVA. OUTUBRO 2015 PRISCILA DA SILVA CASTRO VIANEZ V615 Castro-Vianez, Priscila da Silva. Desafios da atenção à anorexia nervosa em adolescentes: uma pesquisa etnográfica em serviço de saúde do Rio de Janeiro / Priscila da Silva Castro Vianez. – Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2015. 244 f.: il.; 30 cm. Orientadora: Elaine Reis Brandão. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, 2015. Referências: f. 190-209. 1. Anorexia nervosa. 2. Transtornos da alimentação. 3. Adolescente. 4. Sistema de saúde. 5. Etnografia. 6. Pesquisa qualitativa. I. Brandão, Elaine Reis. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. III. Título. CDD 362.25 iii DEDICATÓRIA Para Marisa e Arthur, por todo o amor e incentivo. A eles quero dedicar ainda muitas conquistas. iv AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, pela minha vida e por seu amor. Tenho a certeza de que, sem o seu cuidado constante não teria chegado até aqui. A Ele agradeço pela força que tem me permitido transformar meus sonhos em realidade. Aos melhores pais do mundo, Marisa e Arthur, por me educarem, me amarem incondicionalmente, me ensinarem a valorizar a família e por me fazerem ter a certeza de que sempre estarão ao meu lado. Devo a eles a pessoa que sou hoje. Ao meu irmão, Leonardo por ser meu exemplo, por seu amor e sua amizade. Agradeço ao meu esposo, João Lídio, por todo apoio, amor e compreensão que teve comigo durante os últimos anos. Ao Pakkun, que tem tornado meus dias mais leves e que devolve o meu sorriso quando estou em dificuldades. A Elaine, que aceitou o desafio de me orientar e possibilitou a concretização dessa tese. Agradeço a ela por toda sua dedicação a esse trabalho, por toda a sua paciência comigo e por sempre me acalmar nos meus momentos de desespero. Agradeço também aos membros da banca examinadora, Jaqueline Ferreira, Miriam Ventura, Octávio Bonet, Simone Peres, Neide Silva e Rosana da Costa pela leitura do meu trabalho, pela disponibilidade em participar e pelas contribuições realizadas. Agradeço a todos os colegas do mestrado e doutorado do IESC pela estimulante troca de conhecimentos durante as aulas. No último ano, em especial, a convivência com cada um deles me fez muita falta: Sabrina Paiva, Luiza Lena, Iolanda Szabo, Alan Camargo, Patricia Barbosa, Ângela Sperone, Rosângela Rosa, João Vinicius Dias, Gabriel Waichert e Joyce Flores. Agradeço às nutricionistas do meu coração, grandes presentes que a nutrição UFRJ me deu: Ana Beatriz Siqueira, Elisa Bernardes, Flávia Sessa, Júlia Ramalho, Marília França, Michelle Bento e Mirani Barros, pela amizade, pelo amor e pelo companheirismo que começou em 2003-2 e que me acompanham até hoje. A elas agradeço também pelos muitos momentos inesquecíveis repletos de choros e gargalhadas sem os quais a vida não seria a mesma. v Agradecimento especial às amigas Júlia e Marília, por me presentearem com Caio e Sofia, que me fizeram despertar para a delícia que é ser “titia”. Agradeço aos amigos, Amanda Freitas, Claudia Ramos, Gabriella Sant`Ângelo, Letícia Campos e Rafael Leite, pela sua amizade que nem o tempo ou mesmo a distância são capazes de mudar. Agradeço aos meus professores durante o doutorado, pela concretização de mais essa etapa na minha formação, e por serem um exemplo da profissional que desejo ser. Agradeço aos meus amados tios e tias, primos e primas, por, mesmo morando tão longe, me fazerem sentir pertinho, principalmente nas datas especiais. Agradeço às funcionárias da secretaria de pós-graduação Fátima e Nadja, e aos funcionários da biblioteca Roberto Unger e Sheila Ferreira, por toda a disponibilidade para ajudar ao longo do doutorado e especialmente nessa reta final em que eu já estava residindo fora do Rio de Janeiro. Agradecimento especial as/os adolescentes do Programa de Transtornos Alimentares, por dividirem comigo um pouco de suas vidas. Sem elas/eles essa tese não existiria. Agradeço também a direção do Serviço de Saúde Adolescente e a coordenação do Programa de Transtornos Alimentares por me franquearem o campo de realização da pesquisa. E por fim, agradeço a CAPES pela bolsa de doutorado que possibilitou a concretização desse trabalho com mais tranquilidade. vi EPÍGRAFE “O que o homem perdeu pode lhe ser restituído; o que nele entrou, pode sair. Mesmo se a doença é sortilégio, encantamento, possessão demoníaca, pode-se ter a esperança de vencê-la. Basta pensar que a doença atinge o homem para que nem toda esperança esteja perdida.” Georges Canguilhem, 2000, p. 19 vii RESUMO CASTRO-VIANEZ, Priscila da Silva. Desafios da Atenção à Anorexia Nervosa em Adolescentes: Uma Pesquisa Etnográfica em Serviço de Saúde do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. Tese (doutorado em Saúde Coletiva) - Programa de pós-graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. A presente tese buscou, por meio de uma pesquisa etnográfica, conhecer do ponto de vista socioantropológico, a dinâmica de funcionamento cotidiano de um serviço público de saúde especializado no atendimento aos transtornos alimentares, bem como o processo de adoecimento vivenciado por adolescentes que enfrentam publicamente a anorexia nervosa. O Programa de Transtornos Alimentares que acolheu a pesquisa oferta atendimento ambulatorial e a possibilidade de internação hospitalar aos adolescentes gravemente adoecidos. O trabalho de campo durou aproximadamente 22 meses e incluiu a observação participante da assistência à saúde e a realização de entrevistas semi-estruturadas com os adolescentes. A observação participante das reuniões da equipe multiprofissional de saúde, da sala de espera e de alguns atendimentos clínicos e de nutrição propiciou o conhecimento sobre a atenção prestada aos adolescentes e seus familiares, bem como permitiu uma maior aproximação com os adolescentes atendidos. Em um segundo momento, onze adolescentes foram entrevistados sobre sua experiência de adoecimento e de convivência com os transtornos alimentares, em especial, a anorexia nervosa. As narrativas evidenciam como a doença e seu tratamento se articulam à fase específica da vida na qual os entrevistados se encontram, onde o apoio familiar é central, mas nem sempre possível. Também são discutidas as mudanças que o processo de adoecimento traz na vida escolar, o afastamento dos grupos de pares e as dificuldades de interação social em razão da vigilância que sofrem por parte daqueles que se preocupam com sua saúde. Por sua vez, os desafios enfrentados pelos profissionais de saúde que acolhem tal demanda e buscam tratá-la são imensos, desde a dificuldade de se obter um diagnóstico preciso, o manejo delicado dos conflitos familiares que eclodem a partir da doença de um filho adolescente, as muitas ocasiões em que os pacientes abandonam o tratamento, com recaídas e novas internações, até o enfrentamento dramático das tentativas de suicídio adolescente. A abordagem teórica do problema da anorexia nervosa privilegiada na tese destaca seu curso crônico e a possibilidade do processo de adoecimento ser apropriado pelo sujeito que sofre como uma via de constituição de si. Valorizar a autonomia adolescente, viii mesmo em um momento complexo de sua vida, impõe desdobramentos práticos para os profissionais de saúde e seus familiares. A convivência mais estreita no Programa de Transtornos Alimentares, bem como visitas realizadas em outros espaços de saúde voltados aos transtornos alimentares no Rio de Janeiro possibilitou a identificação de uma realidade difícil, com falta de recursos e estrutura precária para acolher uma demanda cuja prevalência permanece ainda desconhecida. Há ausência de condições adequadas de trabalho, desmotivação de alguns profissionais, falta de formação especializada para atender adolescentes, dentre outros obstáculos. O acolhimento de adolescentes e de seus familiares precisa contar com o desenvolvimento de atividades de apoio que ultrapassem a dimensão mais estrita da atenção à saúde e auxilie a troca de experiências para melhor enfrentamento dos conflitos e dificuldades do tratamento. Busca-se salientar a importância dessa temática no campo da Saúde Coletiva no Brasil, com o desenvolvimento de diretrizes para orientar os serviços de saúde, bem como de políticas públicas que promovam a criação de programas, ações e atividades visando dar visibilidade e assegurar os direitos, especialmente no atendimento em saúde, aos portadores de transtornos alimentares no país. Palavras-chave: anorexia nervosa; transtornos da alimentação; adolescente; sistema de saúde; etnografia; pesquisa qualitativa. ix ABSTRACT CASTRO-VIANEZ, Priscila da Silva. Desafios da Atenção à Anorexia Nervosa em Adolescentes: Uma Pesquisa Etnográfica em Serviço de Saúde do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. Tese (doutorado em Saúde Coletiva) - Programa de pós-graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. This thesis sought, through an ethnographic research, meet from the socio-anthropological point of view, the dynamics of everyday operation of a public service specialized in health care for eating disorders and the disease process experienced by teenagers who publicly face anorexia nervosa. The Eating Disorders Program who received the survey offer outpatient care and the possibility of hospitalization for severely diseased teenagers. Fieldwork lasted about 22 months and included participant observation of health care and carrying out semistructured interviews with adolescents. Participant observation of the meetings of the multidisciplinary team of health, the waiting room and some clinical care and nutrition brought to knowledge the attention paid to adolescents and their families and allowed a closer relationship with the treated. In a second moment, eleven teenagers were interviewed about their experiences of illness and living with eating disorders, especially anorexia nervosa. The narratives emphasizes how the disease and its treatment are linked to a specific stage of life in which respondents are, where family support is central, but not always possible. Also are discussed the changes that the disease process brings into school life, the removal of peer groups and difficulties in social interaction because of the suffered surveillance by those who care about their health. In turn, the challenges faced by health professionals who receive such demand and seek to treat it are immense, from the difficulty of obtaining an accurate diagnosis, the delicate handling of family conflicts that erupt from the illness of a teenage son, the many occasions when patients drop out of treatment, with relapses and new admissions, till the dramatic confrontation of teen suicide attempts. The theoretical approach to the problem of anorexia nervosa privileged in the thesis highlights its chronic course and the possibility that the disease process be appropriated by the subject who suffers as a way of establishing themselves. To recognize the adolescent autonomy, even in a complex moment in his life, imposes practical consequences for health professionals and their families. A closer coexistence in the Eating Disorders Program, as well as visits to other health spaces dedicated to eating disorders in Rio de Janeiro led to the identification of a difficult reality, with lack of x resources and poor structure to accommodate a demand whose prevalence remains unknown. There is lack of adequate working conditions, lack of motivation of some professionals, lack of specialized training to attend teenagers, among other obstacles. The care of adolescents and their families must rely on the development of support activities that go beyond the narrower dimension of health care and assist the exchange of experiences to better confront the conflicts and difficulties of treatment. The aim is to highlight the importance of this theme in the field of Public Health in Brazil, with the development of guidelines to orient health services as well as public policies that promote the creation of programs, actions and activities aimed at giving visibility and ensure rights, especially in health care, to people with eating disorders in the country. Keywords: anorexia nervosa; eating disorders; adolescents; health care system; ethnography; qualitative research. xi LISTA DE TABELAS TABELA 1. Características sociodemográficas e econômicas das/os adolescentes 240 entrevistadas/os. Rio de Janeiro, Brasil, 2015......................................... TABELA 2. Informações gerais sobre o tratamento das/os adolescentes 242 entrevistadas/os. Rio de Janeiro, Brasil, 2015......................................... TABELA 3. Informações antropométricas das/os adolescentes entrevistadas/os. Rio 243 de Janeiro, Brasil, 2015............................................................................ xii LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES AN Anorexia Nervosa APA American Psychiatric Association BN Bulimia Nervosa CEP Comitê de Ética em Pesquisa CID Classificação Internacional de Doenças CNS Conselho Nacional de Saúde DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ECA Estatuto da Criança e do Adolescente HU Hospital Universitário IESC Instituto de Estudos em Saúde Coletiva IMC Índice de Massa Corporal INCA Instituto Nacional do Câncer OMS Organização Mundial da Saúde ONG Organização Não Governamental PTA Programa de Transtornos Alimentares SSA Serviço de Saúde Adolescente SUS Sistema Único de Saúde TA Transtornos Alimentares TANE Transtornos Alimentares Não Especificados TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UPA Unidade de Pronto Atendimento xiii SUMÁRIO RESUMO.................................................................................................................................................. vii ABSTRACT.............................................................................................................................................. ix LISTA DE TABELAS............................................................................................................................. xi LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES.................................................................................................. xii APRESENTAÇÃO................................................................................................................................... 15 CAPÍTULO 1. UM OLHAR SOCIOANTROPÓLICO SOBRE OS TRANSTORNOS ALIMENTARES....................................................................................................................................... 19 1.1 A EXPERIÊNCIA DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES PARA A CONSTITUIÇÃO DE SI. 28 1.2 ANOREXIA NERVOSA COMO DOENÇA CRÔNICA NA ADOLESCENCIA............................ 33 1.3 PORQUE ETNOGRAFAR UMA INSTITUIÇÃO QUE OFERTA ATENDIMENTO AOS TRANSTORNOS ALIMENTARES EM ADOLESCENTES?................................................................ 37 CAPÍTULO 2. ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS DA INVESTIGAÇÃO.......................... 43 2.1 DESENHO DO ESTUDO................................................................................................................... 43 2.2 POPULAÇÃO DE ESTUDO.............................................................................................................. 48 2.3 LOCAL DE ESTUDO........................................................................................................................ 54 2.4 ENTRAVES METODOLÓGICOS E ÉTICOS DO FAZER ETNOGRÁFICO................................ 59 2.4.1 ENTRAVES RELACIONADOS À ENTRADA EM UM SERVIÇO DE SAÚDE........................ 59 2.4.2 ENTRAVES RELACIONADOS À REALIZAÇÃO DE UMA ETNOGRAFIA EM UM SERVIÇO DE SAÚDE............................................................................................................................. 60 2.4.3 ENTRAVES RELACIONADOS AO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA............................... 65 2.4.4 ENTRAVES RELACIONADOS AOS SUJEITOS DE PESQUISA.............................................. 66 CAPÍTULO 3. AS ADOLESCENTES ATENDIDAS NO PROGRAMA DE TRANSTORNOS ALIMENTARES....................................................................................................................................... 71 3.1 CONHECENDO-AS MELHOR......................................................................................................... 75 3.2 O INÍCIO DO TRANSTORNO ALIMENTAR: COMO TUDO COMEÇOU.................................. 82 3.3 O PERCURSO NA BUSCA DE TRATAMENTO ATÉ O PROGRAMA DE TRANSTORNOS ALIMENTARES....................................................................................................................................... 90 3.4 O PESO DO DIAGNÓSTICO RECEBIDO....................................................................................... 96 3.5 VIVENDO COM UM TRANSTORNO ALIMENTAR: “JÁ SOFRI MUITO POR CAUSA DA COMIDA”................................................................................................................................................. 101 3.6 AS ADOLESCENTES E SUAS FAMÍLIAS..................................................................................... 113 xiv CAPÍTULO 4. ATENÇÃO À SAÚDE DE ADOLESCENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES....................................................................................................................................... 121 4.1 O PROGRAMA DE TRANSTORNOS ALIMENTARES................................................................. 121 4.2 A EQUIPE DE SAÚDE...................................................................................................................... 123 4.3 DINÂMICA DE ATENDIMENTO AO PÚBLICO........................................................................... 126 4.4 A CONSTRUÇÃO DO DIAGNÓSTICO........................................................................................... 134 4.5 DESAFIOS NO MODO DE ORGANIZAÇÃO DA ATENÇÃO À SAÚDE DE ADOLESCENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES.............................................................. 141 4.6 DIFICULDADES E DESAFIOS NO ATENDIMENTO AOS ADOLESCENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES E SEUS FAMILIARES................................................................. 145 CAPÍTULO 5. A INTERNAÇÃO: UMA AMEAÇA CONSTANTE NO TRATAMENTO.................. 158 5.1 A ENFERMARIA NÃO É PARA TODOS........................................................................................ 159 5.2 A EXPERIÊNCIA DA INTERNAÇÃO............................................................................................. 161 5.3 INTERNAÇÃO: REFORÇO NO TRATAMENTO OU UMA FORMA DE COERÇÃO?.............. 170 CAPÍTULO 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: CONTRIBUIÇÕES À ASSISTÊNCIA À SAUDE DE ADOLESCENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES.............................................................. 176 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................................... 190 ANEXOS................................................................................................................................................... 210 ANEXO 1. CASTRO, P.S.; BRANDÃO, E.R. Tomando a anorexia nervosa como objeto de estudo socioantropológico: aproximação com os sujeitos da pesquisa. Demetra, v.1, n.9, p.3-22, 2014............ 211 ANEXO 2. Roteiro de Entrevista.............................................................................................................. 232 ANEXO 3. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido....................................................................... 235 ANEXO 4. Convite para Pesquisa............................................................................................................ 239 ANEXO 5. Tabela 1. Características sociodemográficas e econômicas das/os adolescentes entrevistadas/os. Rio de Janeiro, Brasil, 2015.......................................................................................... 240 ANEXO 6. Tabela 2. Informações gerais sobre o tratamento das/os adolescentes entrevistadas/os. Rio de Janeiro, Brasil, 2015...................................................................................................................... 242 ANEXO 7. Tabela 3. Informações antropométricas das/os adolescentes entrevistadas/os. Rio de Janeiro, Brasil, 2015.................................................................................................................................. 243 15 APRESENTAÇÃO Inicio minha tese de doutorado tratando de minha aproximação ao objeto de estudo, a anorexia nervosa. Em meu primeiro encontro com minha orientadora já havia delineado um tema de pesquisa, fruto das inquietações que acumulei durante o mestrado, onde trabalhei com a abordagem epidemiológica do consumo alimentar em gestantes. Naquela pesquisa, pude constatar que a grande maioria das mulheres que integravam a coorte ingressava na gestação acima do peso e, dessa forma, corriam o risco de desenvolver uma série de complicações associadas à obesidade, bem como deveriam ter cuidado e repouso redobrados. O fato de poderem estar em risco ou colocar a saúde de seus filhos em risco desencadeava algumas implicações na vida dessas mulheres que eu não via serem consideradas. No diálogo com minha orientadora, o tema da anorexia nervosa surgiu. Na verdade, fui estimulada a ir além de algo que é sempre muito debatido na nutrição, a obesidade, e pensar em seu “extremo oposto”, muitas vezes desconsiderado. A sugestão do tema me fez retomar o material da graduação para tentar relembrar sobre os transtornos alimentares e a anorexia nervosa. Mesmo estando formada há quase três anos nunca havia atendido um paciente com esse transtorno. Adicionalmente, comecei a conversar com pessoas próximas e a ler sobre o tema, não mais restrita à temática da nutrição. Em dado momento, preocupou-me meu quase desconhecimento sobre o assunto, mesmo sendo nutricionista. Tal preocupação também encerrava o desafio de realizar um estudo socioantropológico (proposta totalmente nova para mim), abordando um tema vinculado à minha formação profissional original. No entanto, eu me sentia completamente fora da minha zona de conforto. O incômodo foi positivo, para não dizer norteador. Passei a me sensibilizar com uma certa “invisibilidade” desses indivíduos. Eles existem, mas onde são acolhidos? Porque a dificuldade em escutá-los? Como adoecem? Esses questionamentos me auxiliaram na formulação do conteúdo apresentado ao longo deste trabalho. Assim, minha tese de doutorado tem como objeto de investigação a anorexia nervosa na adolescência. Ao realizar uma pesquisa etnográfica de um serviço público de saúde especializado no atendimento aos transtornos alimentares, situado na cidade do Rio de Janeiro, pude me aproximar do objeto de estudo, conhecê-lo melhor e mergulhar nos dilemas e desafios que acometem usuários, seus familiares e profissionais de saúde. 16 Um serviço público de saúde considerado como centro de referência para o tratamento dos transtornos alimentares (TA) constitui-se na face legitimada, visível, lugar onde os TAs obtêm reconhecimento oficial, acolhimento e tratamento e seus portadores uma identidade social como tal. A assunção pública deste adoecimento pelas adolescentes e suas famílias, ao buscarem ajuda no serviço, tem especial importância para ser acolhida e considerada. Certamente, muitos padecem desse mal sem conseguir enfrentá-lo pública e socialmente. A imersão no universo do sujeito anoréxico implica em uma aproximação à realidade de sofrimento e angústia, enquanto uma dimensão importante da doença, que tem sido subaproveitada (Giordani, 2009). A realidade dos serviços de saúde voltados à atenção aos transtornos alimentares no Brasil também merece destaque neste trabalho. Para além de um simples alerta sobre um contexto de atendimento em saúde que está muito aquém do necessário para cuidar/tratar dessa parcela da população de modo adequado, com as peculiaridades que a patologia imprime, esta tese condensa um esforço de análise socioantropológica do fenômeno da anorexia nervosa em adolescentes que pode contribuir para a reflexão sobre a oferta de atenção aos TA no país. A realização de um estudo etnográfico nesse cenário representa um trabalho pioneiro sobre os transtornos alimentares, tendo em vista que os demais estudos produzidos no âmbito das ciências sociais e humanas ou da saúde coletiva abordavam histórias de vida de portadoras desse TA, etnografias de blogs/sites na internet para o público com Anorexia Nervosa (AN) e Bulimia Nervosa (BN), uma delas realizada exclusivamente com homens, e mesmo uma etnografia de um grupo de profissionais que se dedicam à abordagem psicanalítica dos transtornos. Mas havia nesses trabalhos a sinalização para a importância em se realizar uma etnografia em instituição multidisciplinar de atenção ao TA, tarefa realizada no presente trabalho. Assim, esta investigação teve por objetivos conhecer, do ponto de vista socioantropológico, a dinâmica de funcionamento cotidiano de um serviço público de saúde especializado no atendimento aos transtornos alimentares, bem como o processo de adoecimento vivenciado por adolescentes que enfrentam publicamente a anorexia nervosa. Busquei captar as normas, representações e práticas sociais existentes na instituição de saúde em foco, no intuito de apreender como os transtornos alimentares, em especial, a anorexia nervosa, são concebidos, diagnosticados, tratados e enfrentados no cotidiano do serviço. No intuito de compreender de modo mais abrangente as relações sociais que permeiam o cotidiano de adolescentes que sofrem de TA, procurei reconstruir os eventos que antecederam 17 a sua chegada ao serviço de saúde observado e conhecer as relações sociais que o/a adolescente mantém com sua família, rede de amigos, parceiros afetivo-sexuais, escola e demais serviços de saúde. Desse modo, busco preencher algumas das lacunas atualmente existentes na literatura científica sobre o tema, bem como problematizar certas questões latentes em estudos anteriores sobre a atenção em saúde aos adolescentes com transtornos alimentares. Trata-se de uma contribuição no sentido de estimular o conhecimento e o debate sobre esse transtorno no campo das ciências sociais em saúde no Brasil. A tese está organizada em cinco capítulos, acrescidos das considerações finais. O capítulo inaugural, ao resgatar o estado da arte do objeto de estudo, busca discutir duas dimensões teóricas menos exploradas na literatura científica internacional sobre os TA, que se revelaram fecundas à análise dos dados empíricos. A primeira perspectiva encerra o modo como os sujeitos se constituem em meio à experiência do TA e a segunda, a dimensão da AN enquanto uma doença crônica que se desenvolve ou inicia na adolescência, com todas as implicações que isso representa para adolescentes, seus familiares e profissionais de saúde. O segundo capítulo considera os aspectos metodológicos e éticos imbricados em uma pesquisa etnográfica realizada em uma instituição de saúde voltada a atenção aos transtornos alimentares em adolescentes. O terceiro capítulo se detém na aproximação aos adolescentes que conheci no Programa de Transtornos Alimentares (PTA), retratando sua convivência cotidiana com um TA, o processo de adoecimento e tratamento até a chegada ao Programa observado. Os quarto e quinto capítulos tratam especificamente da atenção à saúde no PTA. No quarto, abordo a assistência ambulatorial prestada aos adolescentes e seus familiares, discutindo os imensos desafios que se interpõem à equipe de saúde para tratar e recuperar a saúde destes adolescentes. O capítulo cinco centra-se no recurso à internação hospitalar para os adolescentes gravemente adoecidos pelos TA, como uma importante dimensão do tratamento, para salvaguardar a vida em risco de muitos adolescentes. No entanto, a internação também representa um “choque”, um confronto com a realidade do adoecimento para familiares e adolescentes, bem como sua possibilidade costuma ser utilizada pela equipe de saúde como dispositivo de controle social dos pacientes. 18 O capítulo de encerramento, que reúne algumas contribuições para os serviços de saúde que ofertam atendimento aos TA, centra-se na importância da sociabilidade adolescente como recurso terapêutico complementar no tratamento. Discute-se a necessidade de se considerar as especificidades desta etapa da vida para organização da atenção à saúde moldada às necessidades adolescentes e de seus familiares. 19 CAPÍTULO 1. UM OLHAR SOCIOANTROPOLÓGICO SOBRE OS TRANSTORNOS ALIMENTARES Os Transtornos Alimentares1 são doenças graves, descritos como quadros psiquiátricos que atingem, principalmente, adolescentes e adultos jovens do sexo feminino, podendo gerar consequências biológicas e psicológicas com morbidade e mortalidade elevada (FERREIRA; VEIGA, 2010; BORGES et al, 2006; PINZON et al, 2004). Esses distúrbios são caracterizados pelo medo mórbido de engordar, desejo persistente de emagrecer e distorção da imagem corporal (NUNES et al, 2001; MORANDÉ et al, 1999). São doenças com curso crônico, de difícil tratamento, com desdobramentos para o estado nutricional do indivíduo, podendo favorecer tanto a desnutrição quanto a obesidade (CORDÁS, 2004). São expressivamente mais comuns em mulheres (90%) do que em homens (10%) (TEIXEIRA et al, 2009; BOSI et al, 2008), e se relacionam à maneira como o sujeito vivencia seu corpo e (re)organiza sua imagem corporal (ANDRADE; SANTOS, 2009). Perdas afetivas, separações familiares, doenças orgânicas, depressão, ansiedade e, até mesmo, traumas de infância, como abuso sexual, vem sendo apontados como fatores desencadeantes destes transtornos (PAXTON, 1998). Possuem origem difusa, com múltiplos aspectos psicológicos, biológicos, socioculturais, genéticos e familiares relacionados a sua gênese (BORGES et al, 2006; CORDÁS, 2004; APPOLINÁRIO; CLAUDINO, 2000). Entre os principais transtornos alimentares, encontram-se a anorexia nervosa e a bulimia nervosa, sendo a bulimia mais frequente que a anorexia, embora essa apresente maior morbimortalidade (APA, 2000). Ambos possuem psicopatologia comum, caracterizada pela preocupação excessiva com o peso e a forma corporal (FERREIRA; VEIGA, 2010; BORGES et al, 2006). Devido as suas origens multifatoriais, há diferentes questões que favorecem o desenvolvimento e manutenção da AN e da BN (MUSSELL et al, 2000). Assim, Murray 1 “Transtorno Alimentar” será muitas vezes utilizado no decorrer da tese como um termo amplo que engloba a Anorexia Nervosa. 20 (2003) destaca que o tratamento deve ser abrangente o suficiente para lidar com a natureza complexa desses TA. A AN apresenta a maior taxa de mortalidade dentre todos os distúrbios psiquiátricos no mundo, em torno de 0,56% ao ano na população mundial. Este valor é cerca de 12 vezes maior que a mortalidade das mulheres jovens na população em geral (APA, 2000). É caracterizada pela recusa do indivíduo em manter um peso adequado para a sua estatura, medo intenso de ganhar peso, recusa alimentar associada a uma distorção da imagem corporal, e negação da própria condição patológica. Há também uma busca incessante pela magreza e amenorreia (SCHMIDT; MATA, 2008; BORGES et al, 2006; APA, 1994). Pelo modo como foi concebida na literatura científica, tornou-se mais usual abordar a dimensão da feminilidade como um fator de predisposição à doença e a masculinidade como uma proteção contra a AN (TILL, 2011), fato que não deve ser generalizado, mas considerado com cautela. A AN engloba uma série de comorbidades psiquiátricas, incluindo distimia, transtornos de ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo, transtornos de personalidade e alguns tipos de dependências (LENOIR; SILBER, 2006). O diagnóstico geralmente é cogitado primeiro pela família, amigos e/ou mesmo na escola, nos casos de adolescentes, antes do envolvimento de um profissional de saúde (MORRIS; TWADDLE, 2007). Como em todos os TA, há uma diversidade de desordens gastrointestinais, neurológicas e endócrinas (PATRICK, 2002) relacionadas ao seu desenvolvimento, que em maior ou menor grau acabam por agravar a condição dos pacientes. O medo mórbido de engordar e a forma peculiar de realizar a restrição alimentar são apontados como centrais, e utilizados na distinção entre a AN e outros tipos de anorexia secundárias à doenças clínicas ou psiquiátricas (GIORDANI, 2006; APPOLINÁRIO; CLAUDINO, 2000). A distorção da imagem corporal pode agravar-se de tal forma que, mesmo muito emagrecidos, os indivíduos podem sentir-se “gordos” (GIORDANI, 2006). Muitas vezes, os familiares só se dão conta do problema quando o emagrecimento torna-se acentuado, pois a realização de dietas em muitos contextos é valorizada (NUNES et al, 1994). No entanto, os sintomas sugestivos de TA e a insatisfação com a imagem corporal podem representar fatores de risco importantes para o desencadeamento da AN e da BN (VALE et al, 2011; BURGIĆ-RADMANOVIĆ et al, 2009; FERREIRA; VEIGA, 2010). Além disso, as formas parciais dos TA podem chegar a ser duas vezes mais prevalentes do 21 que as síndromes completas, com consequências relevantes em termos de sofrimento para o sujeito e seus familiares (NUNES et al, 2006). Dos principais TA, a AN foi a primeira a ser descrita e, igualmente, a pioneira a ser adequadamente classificada e ter critérios diagnósticos reconhecidos (CORDÁS, 2004). A partir de 1960, a AN foi definida como síndrome psiquiátrica, e na década de 1970, surgiram critérios padronizados para o seu diagnóstico (CORDÁS; CLAUDINO, 2002). Desde a sua definição, os campos médico e/ou psicológico têm a legitimidade para diagnosticar, tratar e pesquisar a respeito, mantendo a soberania sobre o conhecimento da temática durante décadas, deixando à margem as questões socioculturais nele envolvidas (SILVA, 2004, BORDO, 1993). De acordo com o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders V (DSMV/APA, 2014), existem dois tipos de apresentação clínica da AN: no primeiro, o “tipo restritivo”, os pacientes fazem uso de comportamentos restritivos associados à dieta. Nesse subtipo, a perda de peso é alcançada através de dietas, jejuns e/ou atividades físicas para perder peso. No segundo, o “tipo purgativo”, associado à restrição dietética ocorrem episódios de compulsão alimentar e/ou vômitos auto-induzidos, uso abusivo de laxantes, diuréticos e/ou enemas. Já a Classificação Internacional de Doenças – 10ª Edição (CID-10; OMS-1993) não faz distinção entre os tipos de AN, podendo os pacientes anoréxicos que apresentam episódios bulímicos receber tanto o diagnóstico de AN quanto de BN (BORGES et al, 2006; GIORDANI, 2006; APPOLINÁRIO; CLAUDINO, 2000). A AN afeta majoritariamente adolescentes, principalmente do sexo feminino (BROWN; MEHLER, 2000). Os adolescentes do sexo masculino tendem a aceitar melhor a sua imagem corporal, mesmo apresentando um estado nutricional inadequado, enquanto as meninas parecem mais preocupadas com sua imagem corporal, mesmo quando possuem um peso adequado para a altura (BRANCO et al, 2006). Justamente por ser incomum no sexo masculino, os profissionais de saúde que trabalham com adolescentes devem estar sempre atentos à AN quando identificam desnutrição grave sem causa aparente, pois sua identificação e rápido início do tratamento são fundamentais para o bom prognóstico. O diagnóstico de AN pode demorar mais tempo para ser feito no sexo masculino, ou mesmo não ser realizado, dadas às dificuldades dos critérios para classificação desse TA (SANTOS et al, 2012). Há alguns anos, o reconhecimento de que as questões socioculturais também contribuem para o desenvolvimento da AN vem crescendo (FERREIRA; VEIGA, 2010). 22 Contrastando-se ao reconhecimento dos TA como sendo fundamentalmente de natureza psiquiátrica, alguns autores afirmam que tais patologias são sintomas de um problema social, chegando a ser considerada uma “epidemia social” (GIORDANO, 2002; HESSE-BIBER et al, 2006). De todos os transtornos psiquiátricos, os TA vem recebendo destaque pelo grau em que são associados aos fatores sociais e culturais (CHANDRA et al, 2012). A partir da segunda metade do século XIX, período de início do diagnóstico da AN, a magreza é estabelecida como um sinal de prestígio e status social, o que desqualificou o corpo gordo e pesado, que passou a representar a vulgaridade (DARMON, 2006). A referência para o corpo no ocidente, em especial, o feminino, é aquele que é magro, leve, flexível e livre de flacidez. Trazemos no corpo as nossas marcas sociais identitárias e é na aparência física junto a outras características como tonicidade, juventude e magreza que revelamos quem somos. Assim, a obesidade passa a representar uma “não adesão anatômica e funcional à sociedade contemporânea” (SANTOS, 2008, p.30) e estar acima do peso é amplamente indesejável. Segundo a socióloga D. Lupton (2013), pessoas gordas são mais propensas a viver na pobreza, ter menor renda, estar desempregada, ter menor escolaridade, ser empregada em trabalhos de menor status e experimentar padrões de vida mais baixos estatisticamente. Em termos sociais, as pessoas gordas recebem menos respeito de assistentes de loja, são menos propensos a se casar e muitas vezes são submetidos a humor depreciativo e comentários pejorativos em diferentes contextos sociais. Os profissionais de saúde admitem serem "repelidos" por pessoas gordas. Ao contrário de outros atributos que atraem discriminação e marginalização, as pessoas gordas são vistas como merecedoras de seu destino por sua aparente falta de autocontrole (LUPTON, 2013). Por outro lado, o autocontrole das pessoas magras desperta respeito e admiração. Nosso corpo é um signo imediatamente compreendido por todos de nosso atendimento àquilo que é valorizado socialmente e de nossa lealdade às regras da distribuição e da reciprocidade de bens de consumo presentes em nossa sociedade (FISCHLER, 1995). Atualmente, o corpo e a beleza padronizados servem como referência para saúde e qualidade de vida, disseminando a noção de que por meio de um corpo belo se obtém também a realização individual (ADAMI et al, 2005). A visualização de corpos magros e/ou musculosos no cotidiano, veiculados pelos meios de comunicação, faz com que os indivíduos tenham dificuldade em reconhecer a beleza em sua singularidade e diversidade, sem se atrelar a padrões estéticos inatingíveis (BENDER et al, 2009). 23 Por todas as modificações de que é alvo, Rodrigues (2006) compara o corpo a uma massa de modelar, no qual a sociedade imprime diferentes formas e padrões segundo sua vontade. De acordo com Le Breton (2003), não se pode mais aceitar o corpo que se tem, é preciso completá-lo ou transformá-lo naquilo que se quer que ele seja. Sem essas alterações, o autor afirma que o corpo representaria uma forma decepcionante e incapaz de acolher as aspirações daquele que o porta (p.22). Mas as adaptações às exigências do mundo moderno podem tornar-se uma tarefa impossível, que exige trabalho constante sobre o corpo em um percurso sem fim (p.29). A busca por esse ideal, inatingível para muitos, tem conduzido principalmente as mulheres à adoção de comportamentos alimentares anormais e práticas inadequadas de controle de peso (BENDER et al, 2009). Para Le Breton (2010), a atenção desmedida que dedicamos ao corpo não é, de forma alguma espontânea, mas sim resposta aos imperativos sociais, pois o corpo ocupa na modernidade o lugar privilegiado do discurso social. Porém, do ponto de vista socioantropológico, caberia um estranhamento em relação ao poder que imagens de magreza feminina teriam como modelos ideais de beleza capazes de promover mudanças nos comportamentos femininos para a adoção a qualquer custo desses padrões (SILVA, 2011). Embora seja recorrente no meio científico ou no senso comum atribuir os TA aos contextos socioeconômicos privilegiados, Vale et al, (2011) chamam a atenção para esses transtornos como um problema de Saúde Coletiva mesmo em áreas pobres do Brasil. No estudo por eles conduzido, comer e restringir a alimentação foram utilizados como estratégias para lidar com situações de conflito e de instabilidade emocional. Está claro que os alimentos e os hábitos alimentares não estão simplesmente relacionados a "alimentar-se", aliviar a fome, ou ter sensações gustativas de prazer. A comida e o comer são fundamentais para a nossa subjetividade (LUPTON, 2013) e o corpo magro da pessoa anoréxica apresenta-se como uma caricatura do ideal contemporâneo de magreza para as mulheres, um ideal que, apesar das diferenças socioeconômicas, raciais e étnicas, tornou-se a norma. Mas magreza é apenas a ponta do iceberg, e a própria magreza requer interpretação dos motivos de valorização desse ideal que é capaz de produzir múltiplas leituras (BORDO, 1993). No Brasil, bem como em muitos outros países, ainda são poucos os estudos de base populacional que conseguem estimar a incidência e prevalência de AN em sua população e 24 isso se deve a algumas questões metodológicas. Também há carência de serviços públicos especializados para o tratamento de TA (MOYA et al, 2005). Como a AN é uma doença rara, para se obter uma amostra maior, alguns estudos utilizam pessoas em risco aumentado de ter um TA, como estudantes. A dificuldade na detecção de casos é outro problema, pois nas sociedades ocidentais a doença não pode ser detectada em seus estágios iniciais devido a sua semelhança com a dieta não-patológica. A dieta e a prática de exercícios físicos fazem parte de um estilo de vida cotidiano bem aceito. Nas pesquisas que têm os hospitais como espaços de investigação, a dificuldade está na baixa procura por tratamento (TORRES et al, 2012). Assim, os diferentes critérios aplicados nos estudos limitam a capacidade de comparação e a generalização dos resultados para o conjunto da população (WEAVER et al, 2005). Durante a revisão de literatura que embasou a construção desse trabalho, foi possível identificar alguns temas de maior recorrência entre aqueles que se dedicam a estudar os TA, como a AN. Na ocasião do exame de qualificação do projeto de tese de doutorado, em 22 de fevereiro de 2012, apresentei um balanço da literatura científica sobre o tema dos transtornos alimentares, o qual foi posteriormente publicado e pode ser consultado no Anexo 1 (CASTRO; BRANDÃO, 2014). Com o percurso da investigação nos anos subsequentes, decidi priorizar neste capítulo da tese a abordagem mais detida de duas perspectivas teóricas de compreensão do objeto de estudo que me pareceram mais fecundas à discussão dos dados empíricos que apresento a partir do trabalho de campo. Assim, faço abaixo uma breve sistematização das muitas vertentes de estudo e de abordagem do problema dos TA e da AN existentes na literatura, que considero balizas das tendências de investigação presentes no campo, as quais reúnem disciplinas biomédicas, sociológicas e psicológicas. Alguns estudos têm se dedicado a compreender a implicação das questões de gênero no desencadeamento dos TA, abordando especificamente duas questões: a primeira, trata da AN e sua prevalência desproporcional em mulheres, que ocupam cerca de 90% dos casos diagnosticados, com as possíveis explicações para essa prevalência. Há uma gama de pesquisadoras feministas se dedicando a essa temática (SILVA, 2004; SILVA 2011; AUSTIN et al, 2011; BORDO, 1993; TIERNEY; FOX, 2011; TILL, 2011; BENNINGHOVEN et al, 2007). Na segunda, as questões de gênero se articulam aos estudos sobre a ocorrência de TA em homens, com suas respectivas dificuldades de identificação dos casos e diagnósticos. Buscam elucidar se entre os homens a prevalência é de fato baixa, ou eles são ainda considerados “protegidos” de desenvolverem esses transtornos, dado que desde a identificação dos TA, a AN foi delineada como uma entidade patológica feminina 25 (ANDRADE; SANTOS, 2009; RAEVUORI et al, 2009; SANTOS et al, 2012; ANDERSEN, 1999; ANDERSEN; HOLMAN, 1997; YOUNIS; ALI 2012; CARLAT et al, 1997; MELIN; ARAÚJO 2002). Há outro conjunto de estudos que se dedicam às formas ou estratégias particulares de sociabilidade estabelecidas entre os sujeitos portadores de TA, que são os chamados Movimentos/Comunidades Pró-ana (pró-anorexia) e Pró-mia (pró-bulimia), encontrados em comunidades virtuais da internet. Em relação a essa temática, alguns pesquisadores optam por “defender” tais comunidades como espaços de trocas interpessoais e a modalidade de apoio que elas representam àqueles que padecem dos TA. No entanto, outros destacam que tais ambientes, livres de censura e recriminações, acabam por reforçar comportamentos patológicos e afastam os adeptos das possibilidades de recuperação (SILVA, 2011; HAAS et al, 2010; HAMMERSLEY; TRESEDER, 2007; GAVIN et al, 2008; DIAS, 2003; BOERO; PASCOE, 2012; BROTSKY; GILES, 2007; NORRIS et al, 2006; RAMOS et al 2011). Outros autores têm se dedicado a discutir o paralelo entre a AN e a histeria, passando pelas chamadas “Santas Jejuadoras” ou “Santas Anoréxicas”, mulheres que por meio de uma série de sacrifícios, dentre eles os jejuns, buscavam uma forma de estarem mais próximas a Deus. Nesses trabalhos busca-se ainda estabelecer um paralelo entre as patologias antigas e a AN, como se esta representasse uma reformulação de algo já existente na história, desconsiderando as influências modernas do meio em que as mulheres vivem atualmente (SILVA, 2004; MARINI, 2013; WEINBERG, 2010; WEINBERG et al, 2005; CORDÁS; CLAUDINO, 2002). Muitos estudos sobre os TA buscam avaliar a influência das “marcas culturais” (ocidentais) em seu desencadeamento. Por serem patologias de origem multicausal e não haver o reconhecimento de como cada fator pode ser determinante para o início da doença, ainda há muitas especulações e esses estudos permanecem inconclusivos (SILVA, 2011; LAI, 2000; MORANDE et al, 1999; BECKER, 2004; OLIVEIRA; HUTZ, 2010; BECKER et al, 2002; PARKER et al, 1995; YOUNIS; ALI, 2012; ALEGRIA et al, 2007; CHAN; MA, 2003; SIMPSON, 2002; PIKE; BOROVOY, 2004; QADAN, 2009; LAI, 2000; LEE, 1995; LEE, 2004; LESTER, 2007; LITTLEWOOD, 2004; MA, 2005; KATZMAN et al, 2004; HOSTE et al, 2012; BENNETT et al, 2004; GONZAGA; WEINBERG, 2005; GVION, 2008; CHANDRA et al, 2012). 26 Os trabalhos que se dedicam à fase da adolescência como segmento geracional mais atingido pelos TA buscam atribuir o adoecimento às características próprias da idade, como a importância atribuída à avaliação dos pares e a necessidade de aceitação social, como aspectos predisponentes para desenvolver tais patologias (LENOIR; SILBER, 2006; OMMEN et al, 2009; NILSSON et al 2007; PENTEADO et al, 2012; ROOTS et al, 2009; WENTZ et al, 2009; BACALHAU; MOLEIRO, 2010; WEAVER; LIEBMAN, 2011). Há ainda os estudos sobre a influência da mídia e da propagação de padrões de beleza, responsáveis por causar insatisfação/infelicidade, o que levaria algumas pessoas a adotar comportamentos pouco saudáveis para perder peso, podendo assim desenvolver um TA. Mas nessa vertente há também quem questione uma influência tão direta de tais padrões de beleza para o desencadeamento dos TA, afinal tal exposição atinge a todos, homens e mulheres, independente da idade. O que caberia refletir seria porque algumas pessoas tornam-se mais susceptíveis a sentirem-se infelizes com a imagem corporal que têm de si, passando a investir em comportamentos inadequados para perda de peso (MARINI, 2013; BOSI et al, 2006; FERRIS, 2003; WHITEHEAD; KURZ, 2008; BECKER et al, 2002; TYLER; WILKINSON, 2007; NIEMEYER; KRUSE, 2008; MURRAY, 2003; CARNEY; LOUW, 2006; FREITAS et al, 2010; HESSE-BIBER et al, 2006). Outra vertente interessante de estudos busca traçar um contraponto entre obesidade e AN. Alguns pesquisadores propõem que ambas são faces do mesmo problema. Outros estudos avaliam a relação que a sociedade desenvolve com pessoas obesas e anoréxicas, buscando ressaltar que o estigma atinge ambas as condições de maneiras distintas. No caso da AN, a “culpa” recai sobre a condição da doença em si, enquanto na obesidade ela recai sobre seu portador, merecedor do descrédito do qual se torna alvo (MARINI 2013; FERRIS, 2003; EBNETER et al, 2011; CORDÁS et al, 2004; YOSHINO, 2007; WOLTER et al, 2009; WILSON, 2010; MARTINS et al, 2010; WARIN, 2003; LOZANO, 2008; COOPER et al, 2007). Há uma série de estudos que se dedicam às famílias dos portadores de TA e abordam desde terapias familiares, passando pela culpabilização ou não do ambiente familiar como desencadeador do TA e também os que se dedicam ao impacto para os familiares de conviver com alguém com um TA (FISHMAN, 2006; CHAN; MA, 2002; CHEN et al, 2010; COBELO et al, 2004; DALLOS; DENFORD, 2008; DIMITROPOULOS et al, 2008; EISLER, 2005; EISLER et al, 2007; ESPÍNDOLA; BLAY, 2009; GODART et al, 2012; 27 HONEY; HALSE, 2006; HONIG, 2005; KRAUTTER, LOCK 2004; KYRIACOU et al, 2009; LOCK et al, 2010; TURKIEWICZ et al, 2009; TREASURE et al, 2005; VILELA E SOUZA; SANTOS, 2009; SMITH; COOK-COTTONE, 2011; SCHOLZ et al, 2005; RHODES et al, 2009). Sobre a abordagem estritamente biomédica dessas condições, há estudos sobre as avaliações dos diferentes tipos de tratamento, com o destaque para a terapia familiar. Alguns autores tem seu foco voltado para as complicações médicas/clínicas dos TA, que envolvem desde a desidratação, passando pelo desequilíbrio de eletrólitos e chegando à falência de múltiplos órgãos. E há ainda aqueles que se dedicam a problematizar a validade, a importância ou mesmo o emprego cotidiano dos critérios diagnósticos, dadas as dificuldades de utilizá-los nos serviços de saúde (CARNEY et al, 2006; HERPERTZ-DAHLMANN; SALBACH-ANDRAE, 2008; FERNANDES, 2007; FITZPATRICK et al, 2010; TAN et al, 2010; RUSSELL, 2001; WARIN, 2005; YARZÓN; GIANNINI, 2010; KRAUTH et al, 2002; BROWN; MEHLER, 2000; LENOIR; SILBER, 2006; PATRICK, 2002; MARINI, 2013; FAIRBURN; COOPER, 2011; MILOS; SPINDLER, 2005). Por fim, pelas inúmeras dificuldades de se realizar o diagnóstico para AN e BN, pela escassez de centros especializados e de indivíduos em tratamento para TA nos serviços de saúde, muitos autores tanto no Brasil quanto no exterior, optam por trabalhar com os ditos “comportamentos de risco/sintomas sugestivos” para o desenvolvimento dos TA, buscando apontar por esse meio que o problema pode ser muito maior do que os critérios diagnósticos conseguem identificar e os sistemas de saúde têm capacidade de acolher (BOSI et al, 2006; BOSI et al, 2008; VALE et al, 2011; ALVES et al, 2008; BURGIĆ-RADMANOVIĆ et al, 2009; FERREIRA; VEIGA, 2010; NUNES et al, 2006; PENTEADO et al, 2012; SOUZAKANESHIMA et al, 2006; VILELA et al, 2004; WINGFIELD et al, 2011; ALVES et al, 2008; FIATES; SALLES, 2001). A importância dos temas acima apontados é indiscutível, alguns deles contemplados em Castro e Brandão (2014), inserido no Anexo 1. No entanto, optamos por privilegiar neste capítulo algumas questões que se revelaram fundamentais em campo e que suas implicações não têm recebido a devida atenção entre os estudos sobre os TA. São elas, o modo como o sujeito se constitui em meio à experiência do TA e a compreensão da AN enquanto uma doença crônica que se desenvolve especialmente na adolescência. Considero tais perspectivas 28 teóricas de compreensão do fenômeno dos TA fecundas para a discussão que pretendo fazer nos capítulos subsequentes. 1.1 A EXPERIÊNCIA DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES PARA A CONSTITUIÇÃO DE SI Embora em perspectivas diferentes, alguns autores têm buscado argumentar que para além de uma doença mental que retira a autonomia dos sujeitos, a AN pode ser interpretada também como um “estilo de vida” ou, na definição de M. Darmon (2009; 2006), que faz um paralelo ao trabalho de Goffman, como uma “carreira” - a “carreira anoréxica”. A autora considera a noção de trajetória biográfica em relação à AN. Em tais concepções, os sujeitos portadores de AN reivindicam essa compreensão, buscando se afastar da imagem de “adolescentes sugestionáveis”, em sua grande maioria, ou que são meramente “controlados” pela patologia ou “vitimados” por um padrão rígido de beleza, não havendo espaço para agência na experiência anoréxica (SILVA, 2004). Nesse sentido, Silva (2004) se apropria da definição de “perturbação físico-moral” formulada por Dias Duarte (1994), para designar os TA, por acreditar que essa formulação remete à experiência de aflição dos sujeitos afetados, sem reduzi-la à noção de “doença” e sem se apropriar diretamente das definições biomédicas. A compreensão dos sentidos que as pessoas anoréxicas imprimem à experiência do adoecer e do viver com este TA tem sido obtida quase que exclusivamente pelo olhar das disciplinas da saúde (ALLEN, 2008; RICH, 2006). Para realizar essa tarefa, um único olhar nunca será suficiente, é necessária a “tríplice consideração” de Mauss (1974), onde o biológico, o psicológico e o sociológico são indissociáveis. O problema é que tal triangulação de saberes ainda não vem sendo considerada em relação aos TA. Assim como qualquer outro fato social (Durkhein, 2007), pode-se interpretar uma doença como algo característico da sociedade particular em que se encontra. Em quase todos os contextos sociais a recusa alimentar é um fato preocupante e Littlewood (2004) salienta que em muitas sociedades a restrição alimentar é particularmente utilizada na gestão de conflitos sobre a autonomia feminina. 29 Sem entrar no mérito de defender ou condenar as comunidades virtuais pró-ana/prómia, cabe destacar que essas comunidades desempenham um papel fundamental fornecendo auxílio, reconhecimento e apoio aos portadores de TA inexistentes fora da esfera “virtual”. Por meio desses espaços é possível o desenvolvimento de laços de amizade e trocas de experiências. É o “lugar” onde encontram referências sobre como manter os TA e como agir quando as pessoas com quem se relacionam presencialmente as indagam sobre o seu comportamento (RAMOS et al, 2011). Silva (2004) define as comunidades Pró-ana e pró-mia (referindo-se respectivamente a AN e BN) como: ... uma postura ideológica que se difundiu pela internet nos últimos anos e que, de maneira geral questiona o caráter patológico da anorexia e da bulimia nervosa, considerando-as estilos de vida que podem ser voluntariamente adotados... Para os pró-ana/mia, os comportamentos que os profissionais de saúde classificam como patológicos e sintomáticos de um TA são apenas medidas extremas para atingir um fim maior. (SILVA 2004, p.12) O fato dos TA serem médica e socialmente considerados como doenças mentais, conduz a uma tensão entre aqueles que reconhecem o papel ativo do doente no desencadeamento e manutenção da doença e aqueles que concebem tais transtornos como entidade específica, encarnada, que retira do doente a posição de sujeito consciente e responsável (SILVA, 2004). Os que atribuem a responsabilidade ao sujeito por sua condição o concebem como culpado. Por outro lado, se a ênfase está na destituição de sua agência pela doença, o doente-vítima é considerado passível dessa entidade separada que é a doença e torna-se incapaz de agir sobre a perturbação que o atinge. O mesmo sujeito pode mobilizar uma ou outra condição a seu respeito dependendo da representação que deseja passar em determinado contexto social (SILVA, 2004). Nas comunidades pró-ana/mia, os comportamentos condenáveis pela medicina e pela sociedade se mantêm imunes e as praticantes conseguem apoiar-se reciprocamente. Nesses espaços é possível serem honestas sobre seus anseios e vontades, mas tal honestidade não pode estar presente nos seus relacionamentos interpessoais com amigos e familiares, pois, muito provavelmente, seria alvo de condenações (RAMOS et al, 2011). Desse modo, a internet se tornou um importante veículo de expressão para aqueles que vivenciam a próanorexia em suas vidas (DIAS, 2003). 30 Os sites pró-ana/mia nesse sentido representam um refúgio dos mecanismos de vigilância e de regulamentação de que os TA são objeto na esfera pública. No estudo de Dias (2003), as narrativas de mulheres com AN que criaram e/ou visitaram essas “ilhas de proteção” foram entendidas como transgressoras ou desafiadoras em relação aos discursos hegemônicos biomédico e psiquiátrico que buscavam patologizar e medicalizar suas experiências. É importante destacar que muitos grupos pró-ana/mia não estão em busca de novos membros, querem apenas o direito de defender aquilo que acreditam. O significado que atribuem ao corpo como construção cultural, bem como de sua imagem social desempenha um papel determinante na construção da identidade das pessoas anoréxicas. Nessas comunidades a noção de que o emagrecimento está associado à doença é condenada, por outro lado, concebem o emagrecimento como uma necessidade estética, desejada por aqueles que buscam uma vida saudável (RAMOS et al, 2011). Creio que a posição desses grupos e de todos que padecem dos TA reside justamente na dificuldade de reconhecer suas práticas como inadequadas, posto que se enquadram no sistema de crenças e práticas sociais do que é considerado “normal”, “saudável” e até “recomendável” para o emagrecimento (SILVA, 2004). O limiar entre o normal e o patológico (CANGUILHEM, 2009) relativo às práticas alimentares atuais é separado por uma linha muito tênue, abrindo espaço para que as comunidades pró-ana/mia reivindiquem a posição de que os TA advêm de uma escolha individual adotada de modo consciente e voluntário em oposição à noção biomédica que reafirma a destituição da capacidade de ação voluntária. Não obstante, mesmo entre os pró-ana/mia, há o reconhecimento de uma possível “perda de controle”, que pode levar ao risco de vida, causando dor, sofrimento e o sentimento de perturbação (SILVA, 2004). Mesmo com a própria vida em xeque, o projeto das pessoas anoréxicas continua sendo emagrecer. Os riscos são conhecidos, mas ignorados. Uma vez que a alimentação é um laço tão poderoso de vínculo social, a AN chega a ser encarada como uma forma de transgressão social (GIORDANI, 2006). Ao abordar o sofrimento adolescente, Le Breton (2012) fala sobre condutas de risco relacionadas à exposição deliberada do indivíduo a situações de risco como colocar sua saúde em perigo. Nesse sentido, o autor cita os TA que, mais do que um ato passageiro, podem permanecer, tornando-se um modo de vida. Por sua vez, M. Darmon (2006) nomeia de “carreira anoréxica” aquilo que ela entende essencialmente por uma carreira de modificações corporais, envolvendo um corpo que é 31 “produzido” e transformado individualmente, embora não seja alheio às representações socialmente valorizadas. Em outro trabalho, por meio de sua pesquisa etnográfica realizada na França, Darmon (2009) argumenta que o conjunto de práticas e orientações/disposições adquiridas através de uma “carreira anoréxica” baseiam-se em práticas e orientações claramente identificados com o status das classes média e alta. No entanto, a autora propõe a compreensão da AN como uma carreira desviante, que se traduz na conversão em um conjunto de práticas e orientações anoréxicas que podem ser entendidas como um tipo peculiar de habitus no sentido de Pierre Bourdieu (1972). A compreensão de que pessoas diagnosticadas com AN são psicologicamente “desadaptadas" é recorrente no senso comum. Assim, as experiências e práticas das pessoas anoréxicas são consideradas separadas do contexto social e cultural em que se situam, o que acaba por negar a complexidade da prática anoréxica (ALLEN, 2008). No estudo de Boughtwood e Halse (2010) realizado na Austrália, as pacientes com AN internadas tinham consciência da dominação do discurso médico no contexto hospitalar mas negavam que tal discurso definia ou delimitava as construções que tinham de si mesmas, da anorexia, do tratamento e mesmo de suas relações com os médicos. Ficou claro também que, ao contrário do que se espera, as adolescentes criavam diferentes formas de resistência para subverter a autoridade médica, exercendo agência considerável e ativamente contestando as relações de poder nos hospitais. Os autores destacam a importância de se reconhecer as diferenças individuais, respeitando os significados que as pacientes atribuem a sua doença. Algo que incomodou as adolescentes no estudo de Rich (2006) realizado no Reino Unido era justamente a redução de suas condutas a uma posição de patologia ou irracionalidade. Embora as entrevistadas desenvolvessem relações contraditórias com a anorexia, sentindo seu poder, mas conscientes de que era algo destrutivo, eram capazes de negociar vários discursos que lhes oferecessem subjetividades alternativas. Assim, elas gerenciavam a anorexia ora como uma doença/condição patológica e ora como identidade social. Ao focar em um ponto de vista medicalizado sobre esse TA, Rich (2006) afirma que se está minimizando as dimensões humana e social das experiências individuais desses transtornos. Em sua pesquisa realizada na Holanda, Mol identificou que a primeira recomendação para uma pessoa que deseja perder peso é ignorar os desejos do seu corpo e colocar a mente numa posição soberana para fazer "boas escolhas" sobre o que comer. Embora seja reconhecido que a comida é para nós um combustível a ser queimado pelo corpo, ela é 32 também fonte de prazer. É nesse prazer proporcionado pela alimentação que está a grande dificuldade daqueles que buscam perder peso (MOL, 2012). Muitas vezes, as pessoas desejam emagrecer por meio de dietas mas não têm força de vontade suficiente para abdicar da satisfação que comer e beber ofertam (VOGEL; MOL, 2014). De fato, na anorexia, o medo de engordar é maior do que a fome. A fome e a vontade de comer existem, mas há o domínio sobre este desejo e a sensação de empoderamento nesta convicção prevalece (GIORDANI, 2009). Controlar a ingestão de alimentos envolve o esforço da vontade sobre a carne, a mente e as emoções. Embora tais comportamentos em relação à comida, à subjetividade e ao corpo sejam evidentes em sua forma mais extrema em pessoas diagnosticadas com TA, eles são característicos da relação da maioria das pessoas com alimentos, em maior ou menor grau. Lupton (1996) afirma que a comida é fonte de culpa, frustração e raiva e que em nossa cultura consumista existe uma dialética permanente entre os prazeres do consumo e a ética do ascetismo como meio de construção do self, onde um não tem sentido sem o outro. Vogel e Mol (2014) destacam que na lógica do controle, o sujeito é um centro cognitivo apto a tomar decisões. Ele recebe informações sobre o que comer e recolhe informação que lhe permitirá fazer suas próprias escolhas. Por essa lógica, a ingestão de alimentos não deve ser baseada em sentimentos, mas em seguir as diretrizes nutricionais ou um cálculo adequado das necessidades nutricionais individuais. O cuidado de si, ao contrário, inclui aprender a sentir o que você precisa. Sentimento exige treinamento e as necessidades corporais podem variar de um dia para o outro. Alimentar-se é uma experiência intensamente emocional que entrelaça sensações e sentimentos fortes que vão do espectro da aversão, ódio, medo ou raiva até o prazer, satisfação e desejo. Essas sensações são fundamentais para a subjetividade do indivíduo e seu senso de distinção dos outros (LUPTON, 1996, p.36). O que ocorre na AN é que o indivíduo se vê preso, pois a experiência da recusa alimentar é inebriante, mas esse poder tão intensamente sentido, é profunda e perigosamente ilusório (BORDO, 1993). O perigo está no fato de que a auto-inanição, a perda de peso, os exercícios físicos intensos e a capacidade de tolerar a dor corporal têm se tornado metáforas culturais para a autodeterminação e força moral (SANTOS, 2008), causando admiração pelo comportamento de quem é capaz de se privar de tal forma para atingir um ideal estético, socialmente valorizado. A adequação das pessoas anoréxicas ao padrão corporal e estético vigente lhes confere o sentimento de 33 realização, que não é coerente com o grave adoecimento com o qual são classificadas e que, de fato, padecem. O reconhecimento da própria patologia nesses termos torna-se quase impossível para elas. 1.2 ANOREXIA NERVOSA COMO DOENÇA CRÔNICA NA ADOLESCENCIA As doenças crônicas têm sido reconhecidas como as patologias dominantes em nossas sociedades e as que com mais frequência levam as pessoas a procurarem por recursos médicos (BASZANGER, 1986; MOL, 2008). Uma de suas características mais importantes é seu início insidioso (BURY, 2011, p.44), embora o fato de serem consideradas crônicas envolva especialmente o seu tempo de duração (BURY, 2011; BASZANGER, 1986; CASTELLANOS, 2007). Em se tratando de doenças crônicas, o tempo de duração inclui de meses a anos, podendo prolongar-se por toda a vida do doente (BASZANGER, 1986). Além disso, o impacto nas atividades cotidianas do doente e muitas vezes de seu ciclo social, o tempo de hospitalização e o grau de dependência que estes passam a ter em relação aos serviços de saúde também são considerados na definição dessas patologias (CASTELLANOS, 2007). Embora possuam realidades distintas, as doenças crônicas possuem algumas características em comum. Jones et al, (2007, p.58) enumeraram o que consideram as sete características definidoras das doenças crônicas: 1. 2. 3. 4. 5. 6. Pela natureza, são de longo prazo; São incertas, em vários sentidos, inclusive a respeito dos prognósticos; Requerem esforços de cuidados paliativos para o paciente e seu entorno; São múltiplas enfermidades, pois tendem a multiplicar-se com o tempo; São desproporcionalmente intrusivas nas vidas dos pacientes e de seus familiares; Requerem uma ampla variedade de serviços auxiliares para serem tratadas corretamente - além de equipes multiprofissionais, em muitos casos, fazem-se necessários os grupos de autoajuda; 7. Seu tratamento tem um custo elevado. Baszanger reforça o caráter de incerteza que acompanha as doenças crônicas e a nomeia como “uma situação social mal definida” que envolve não apenas o doente, mas 34 também seus familiares, amigos e equipe de saúde (BASZANGER, 1986). Castellanos destaca que nem todas as condições crônicas se referem a doenças específicas e bem definidas, pois há que se considerar os agravos à saúde e conjuntos de alterações corporais e mentais que não necessariamente possuem um fundo orgânico, como no próprio caso da AN. Para o autor, esses casos estariam associados a questões biológicas, psicológicas e sociais que acabam por impactar a saúde dos indivíduos (CASTELLANOS, 2007, p. 61). Nesse sentido, cabe destacar que a AN é considerada um problema de saúde mental que pode impedir seriamente o desenvolvimento físico, social e psicológico de seus portadores. Infelizmente, as expectativas de recuperação, mesmo entre os que se propõem a seguir o tratamento recomendado, não são necessariamente promissoras e a dificuldade de se manter os doentes em tratamento após recorrentes recaídas torna-se um fator adicional que contribui para a cronicidade dessa doença (TREASURE, 2008; TIERNEY, 2008). Em relação às doenças crônicas, o tratamento não conduz à cura (BASZANGER, 1986; CASTELLANOS, 2007; MOL, 2008), mas ao gerenciamento dos agravos decorrentes do adoecimento (BASZANGER, 1986; CASTELLANOS, 2007). Essa é uma dimensão importante do cuidado com esses pacientes que não pode ser negligenciada (MOL, 2008). O caráter crônico põe ainda em questão o trabalho dos profissionais de saúde, pois impossibilita seus maiores objetivos: a cura e o retorno dos indivíduos doentes plenamente reestabelecidos para a sociedade (CASTELLANOS, 2007). O caminho esperado seria a identificação do sintoma, fechamento de um diagnóstico, estabelecimento do tratamento adequado que então conduziria à cura (ou a morte em alguns casos), mas nas doenças crônicas esse ciclo não se fecha, o futuro é incerto (BASZANGER, 1986). A doença crônica se estende por todas as esferas da vida social, mas as suas consequências sobre a organização da vida cotidiana variam de acordo com a gravidade da condição e idade do paciente. A necessidade de reorganização das rotinas diárias parece afetar a todos os pacientes e pessoas próximas a eles (PIERRET, 2003; BASZANGER, 1986). As doenças crônicas afetam a existência temporal dos sujeitos, sendo comum ao pedir que um doente crônico narre seu adoecimento, a existência de referências de tempo em relação a momentos considerados significativos, seja em relação à biografia pessoal ou a evolução da doença. Na AN, é comum que a doença tenha uma apresentação clínica cíclica, com períodos de estabilidade seguidos de outros de instabilidade. Por ser rodeada de incertezas, “a experiência da doença crônica afeta projetos diários, presentes e futuros dos 35 doentes crônicos”, e isso se reflete em suas narrativas (MASANA, 2013, p.231-2). As próprias adolescentes do estudo por mim realizado declararam sentir-se em uma “montanharussa” ou definiram seu corpo e seu peso após o surgimento da AN como um “io-io”, remetendo às constantes recaídas entre engordar e emagrecer. O estabelecimento de um diagnóstico é essencial para a atividade médica, pois permite o planejamento das intervenções, mas também é central para o paciente, pois por meio do diagnóstico se introduz uma nova situação, onde o paciente é reconhecido como “doente”, em bases amplamente aceitas, o conhecimento biomédico. De um modo geral, a definição do diagnóstico é mais um passo no percurso da doença, mas em se tratando de doenças crônicas, chegar a um consenso entre médico e doente torna-se um longo processo, em que o paciente participa ativamente fornecendo informações para que o médico chegue a uma definição conclusiva (BASZANGER, 1986, p.13-4). Um aspecto importante a ser analisado ao se considerar doenças crônicas ou de curso crônico é a “experiência da enfermidade”, ou seja, o modo como os indivíduos e grupos sociais respondem à ocorrência de uma doença. Talcott Parsons (1951) foi um dos pioneiros a utilizar essa categoria analítica e de acordo com o autor a doença constitui um desvio e deve ser pensada como resultante da inter-relação entre o médico e o doente. Ao se colocar no papel de doente, o indivíduo deixa de ser culpabilizado por sua condição e torna-se socialmente isento de suas obrigações, desde que busque ajuda competente e siga o tratamento recomentado (ALVES, 1993). Em trabalho considerado clássico, M. Bury (2011[1982]) trata a doença crônica como uma experiência disruptiva, pois as estruturas da vida cotidiana e as formas de conhecimento que as sustentam se rompem. Ocorre que ao vivenciar uma doença crônica o indivíduo entra em contato com uma realidade de dor, sofrimento, e mesmo morte, que até então só vislumbrava como algo distante. Aquilo que considerava para o futuro precisa ser reconsiderado. O autor argumenta que o desenvolvimento de uma doença crônica deve ser compreendido como uma forma de ruptura biográfica (BURY, 2011, p.43). A doença crônica vai além da dor e do sofrimento e da esfera das instituições biomédicas, e torna-se uma realidade social (ALVES, 1993), devendo ser considerada em todos os lugares da vida social (BASZANGER, 1986, p.9). A experiência do adoecimento crônico representa um desafio para a autonomia dos sujeitos, podendo repercutir de modo crítico na produtividade diária destes, com implicações 36 para o seu lugar em uma sociedade que valoriza sobremaneira o trabalho e o auto-cuidado (GREEN, 1998). No caso dos adolescentes e adultos jovens, a doença crônica afeta profundamente os seus relacionamentos, seja na escola ou no lazer, ficando o sujeito na dependência do grau de flexibilidade que as instituições formais e os relacionamentos informais podem permitir (BURY, 2011, p.50). Em relação às adolescentes deste estudo, foram comuns os relatos de perda de ano letivo, mudança de escola, afastamento de atividades extracurriculares em razão do adoecimento pela AN. Assim, a solidão e o isolamento social, decorrentes do estigma ao qual estão sujeitos tendem a figurar entre os principais medos que podem acompanhar aqueles que vivenciam a experiência da cronicidade (MASANA, 2013, p.247). A doença crônica requer a reorganização da vida do indivíduo, mas não apenas deste, também de seu ciclo familiar mais íntimo. Mas e quando essa doença ocorre na adolescência? Em um período em que a adolescente deveria estar se preparando para escolher uma carreira, ganhar mais autonomia e ingressar no mercado de trabalho, ela torna-se ainda mais dependente de seus familiares do que quando era criança (WHITNEY et al, 2005). São poucos os estudos que têm considerado as implicações da AN enquanto doença crônica e seus desdobramentos para a dinâmica familiar (DIMITROPOULOS et al, 2008; WHITNEY et al, 2005; ESPÍNDOLA; BLAY, 2009; WEAVER, LIEBMAN, 2005). Assim como ocorre com a criança gravemente doente, o adolescente também mobiliza as dinâmicas familiares, pois seu adoecimento implica rupturas nos projetos de vida de todos os membros da família envolvidos (CASTELLANOS, 2011). A família precisa se reorganizar às novas condições que a doença e o tratamento impõem, dentre elas o contato com procedimentos médicos como consultas, exames, tratamentos e em muitos casos com o ambiente da internação hospitalar (ESPÍNDOLA; BLAY, 2009). Os indivíduos que sofrem de AN precisam contar com seus familiares para o seu sustento, cuidado e apoio emocional. Mas, às vezes, devido à dedicação aos filhos doentes, os cuidadores enfrentam dificuldades financeiras, alguns acabam perdendo o emprego e experimentam doses significativas de culpa, medo, hostilidade, fracasso, raiva e angústia (DIMITROPOULOS et al, 2008; WHITNEY et al, 2005). Nesse contexto é comum o desgaste da dinâmica familiar desencadeando conflitos que não possuem solução de curto prazo (ESPÍNDOLA; BLAY, 2009; WHITNEY et al, 2005). 37 Tem sido destacado em todas as doenças crônicas que o descrédito de possuí-la ultrapassa o paciente e tem repercussões sobre os cuidadores e até mesmo em outros membros da família (PIERRET, 2003, p.9). No estudo de Dimitropoulos et al, (2008), realizado no Canadá com familiares de pacientes anoréxicas o estigma direcionado para a família foi um importante preditor de desgaste familiar. Os autores chegam a nomear de “estigma de cortesia”, por compreender que o estigma que atinge o doente estende-se também aos seus familiares mais próximos. Assim, sobre a abordagem social e biomédica do processo de adoecimento, alguns autores (ESPÍNDOLA; BLAY, 2009; CASTELLANOS, 2007; WHITNEY et al, 2005) sugerem que o olhar deve se voltar para além do doente, para seu cuidador. Castellanos (2011, 2007) ressalta a importância de não apenas o doente, mas também seus cuidadores tornaremse foco de atenção dos profissionais de saúde, pois todos estão implicados no processo de saúde-doença-cuidado no atendimento clínico. Whitney et al, (2005) sugerem que os cuidadores devem ser encorajados a procurar os serviços de saúde, bem como grupos de apoio. Infelizmente, pela realidade observada, os portadores de TA não recebem a atenção adequada às suas necessidades e nesse contexto, a perspectiva de atenção aos familiares é quase inexistente. 1.3 PORQUE ETNOGRAFAR UMA INSTITUIÇÃO QUE OFERTA ATENDIMENTO AOS TRANSTORNOS ALIMENTARES EM ADOLESCENTES? Ao iniciar o levantamento bibliográfico que possibilitou encontrar os caminhos para elaboração dessa tese, não tinha conhecimento sobre a realidade dos atendimentos em TA no contexto internacional e mesmo no Brasil. De fato, não havia no Brasil uma pesquisa que abordasse esses serviços voltados aos TA, independente da faixa etária atendida. Silva (2011) chegou a trabalhar como antropóloga na construção do serviço de TA da Unicamp e em sua tese faz uso constante das experiências vivenciadas nesse período. Mas ela deixa claro que seu propósito na época não era realizar uma pesquisa etnográfica, embora destaque a importância da execução dessa empreitada. Até chegar ao espaço que acolheu a minha pesquisa, passamos por outros, todos no Rio de Janeiro, descobertos por meio de buscas na internet ou pela indicação de alguém que 38 sabia de meu interesse em pesquisar TA. Nossas tentativas nesses espaços já revelavam uma situação difícil, por vezes fiquei esperando mais de uma hora para ser atendida mesmo havendo marcado a visita e nessas oportunidades já estava trabalhando um olhar curioso sobre o modo de funcionamento desses espaços. De fato, alguns autores no Brasil e no exterior têm apontado para essa carência de dados etnográficos em instituições voltadas à atenção aos TA (SILVA, 2011; KRAUTH et al, 2002; BECKER, 2004; BOSI; ANDRADE, 2004; WARIN, 2005). As lacunas são muitas e os impactos dos TA para a Saúde Coletiva têm sido largamente inexplorados, embora avalie-se que seja substancial devido às características desses transtornos (BECKER, 2004). Sabe-se que a AN e BN são doenças que atingem especialmente adolescentes ou adultos jovens do sexo feminino, e mesmo sendo de ocorrência rara, se comparadas a outras patologias, Krauth et al, (2002) afirmam que deveriam ser de grande interesse da sociedade em função dos altos custos financeiros para os sistemas de saúde e do impacto para a saúde da população. Embora a pesquisa de Krauth et al, (2002) tenha sido realizada na Alemanha, as características dos TA apontadas são muito similares ao que encontramos no Brasil. Os autores reafirmam a questão dos custos devido à prevalência maior em jovens, aos altos gastos de saúde devido à internação, aos serviços de reabilitação e os custos indiretos relacionados com a incapacidade para o trabalho e mortes prematuras. Os autores destacam que o custo médio por paciente com AN é extremamente alto devido ao longo período de internação necessário e chegam a fazer um paralelo entre a média de dias de internação na AN, algo em torno dos 50 dias, em comparação à internações por outros motivos que ficou em torno dos 10,7 dias (KRAUTH et al, 2002). No estudo de Walsh (2011), realizado nos Estados Unidos a média de internação ficou em torno dos 2 a 3 meses, mas além dos custos o autor salienta para outra difícil realidade. Embora o ganho de peso dos pacientes tenha sido substancial, assim como apresentaram melhora significativa em seu estado psicológico, a abordagem terapêutica empregada nessas internações com controle absoluto de calorias ingeridas na alimentação e gramas de peso ganhos a cada dia faz com que os comportamentos alimentares "espontâneos" de indivíduos com AN permaneçam bastante anormais após os tratamentos intensivos e demorados. Assim, mesmo com todo esforço das equipes de saúde, dos familiares e dos próprios pacientes as taxas de recuperação permanecem baixas (WARIN, 2003). Além disso, na AN as reinternações são comuns e a doença cursa com comorbidades médica e psiquiátrica graves. Por afetarem especialmente adolescentes deve-se considerar 39 ainda o impacto nas condições de vida e saúde da família, pois todos estarão implicados nesse processo de adoecimento e busca pela recuperação (BECKER, 2004). Uma vez que esses transtornos estejam instalados, seus portadores apresentam difícil adesão ao tratamento, reforçando a necessidade de intervenções de caráter preventivo voltadas, sobretudo, para os grupos de maior risco. Entretanto, no Brasil, são raros os estudos que dimensionam o problema na população sob-risco e quando existem, a metodologia aplicada não propicia sua ampliação ou comparação a outros contextos sociais (BOSI; ANDRADE, 2004). Outra perspectiva que se revelou pouco explorada foram as abordagens qualitativas sobre as perspectivas de tratamento dos TA por usuários dos serviços de saúde, o que poderia contribuir para melhor informar sobre o processo terapêutico e proporcionar um maior entendimento das possibilidades de recuperação (REID et al, 2008). Além disso, pouco esforço tem sido feito para estabelecer os significados que os jovens com AN atribuem ao seu comportamento anoréxico e sua relação com o tratamento (NORDBO et al, 2006; TIERNEY, 2008). A voz dos adolescentes pouco tem ecoado embora sejam eles os mais afligidos pelos TA (WALSH, 2011). Nesse sentido, Warin (2005), que realizou uma pesquisa etnográfica no Canadá, em centros de tratamento, associações comunitárias e na residência dos sujeitos adoecidos, afirmou que apenas por meio de uma abordagem que permita o envolvimento mais íntimo com as pessoas se é capaz de compreender a AN. No Brasil, outro ponto a ser destacado é a escassez de serviços públicos de saúde voltados aos TA (BOSI; ANDRADE, 2004; GONZAGA; WEINBERG, 2005). Sobre esse fato, embora seja observada forte relação entre os TA e o nível socioeconômico dos sujeitos, sinalizando uma maior incidência desses transtornos nas classes sociais médias e altas, a falta de centros especializados em transtornos alimentares faz com que os serviços públicos existentes recebam pacientes de todas as classes sociais. Gonzaga e Weinberg (2005) ressaltam que na realidade nacional não há a prevalência de uma ou outra classe social em relação a essas patologias. Bosi e Andrade (2004) chamam a atenção para uma realidade ainda mais dura no contexto brasileiro. De acordo com as autoras, os TA não vêm recebendo a devida atenção enquanto questão relevante de Saúde Pública. Para elas, as nomeadas síndromes parciais que são os comportamentos precursores dos TA, e que possuem prevalências bem superiores às das patologias instaladas deveriam constituir o foco das ações de prevenção. Infelizmente, não parece haver ações preventivas sendo implementadas no país. 40 Para as autoras, há um somatório de questões como a diversidade e severidade dos sintomas, a ausência de intervenções preventivas e a escassez de serviços especializados com formação multidisciplinar capaz de dar conta da atenção a esses transtornos, o que acaba gerando demandas importantes para os serviços de saúde. Além disso, casos são subdiagnosticados e sub-notificados devido à ausência de informações e de programas de formação profissional nesta área. No Brasil, não se tem a dimensão deste problema de saúde na população, e os modelos teóricos disponíveis não dão conta da gravidade, tampouco da complexidade dos quadros (BOSI; ANDRADE, 2004). Mesmo em estudos internacionais é apontada a escassez de informações disponíveis para orientar os profissionais no tratamento da AN (WHITNEY et al, 2005). Os estudos que se dedicam ao ponto de vista dos doentes apontam que para estes a anorexia não significa exclusivamente uma preocupação com a alimentação e o peso, mas uma forma de lidar com a complexidade das relações sociais, sendo surpreendente que os programas institucionais para tratamento ainda invistam em uma perspectiva individualista de cuidado (WARIN, 2005). No trabalho de Tierney (2008) com jovens ingleses com AN, os participantes se ressentiam do fato que os profissionais de saúde muitas vezes os viam como pessoas manipuladoras e que exploravam os recursos de saúde. Esse tipo de hostilidade foi experimentada por todos os jovens que participaram do estudo. Assim, os entrevistados reconheceram na equipe de saúde variações sobre a competência para tratar e compreender a anorexia. Os profissionais que buscavam conhecer seus pacientes, serem solidários e que os ouviam ao invés de tratá-los exclusivamente como doentes resistentes ao tratamento foram mais valorizados. Algumas evidências sobre a inadequação dos modelos de atenção e a falta de capacitação dos profissionais de saúde já vêm aparecendo. Há muita informação circulando na sociedade (mídias sociais) sobre o que são os TA, mas pouco é veiculado sobre onde se pode buscar ajuda. Grande parte dos estados brasileiros não dispõe de centros especializados de atenção que sirvam de referência para a população. Cabe comentar também que há uma lacuna no currículo dos cursos de graduação da área da saúde, pois em muitos casos não são contemplados conteúdos técnicos de modo a capacitar os profissionais e as equipes de saúde para lidar com a complexidade do problema, bem como fazer a identificação precoce e desenvolver ações de prevenção (BOSI; ANDRADE, 2004). Por meio de uma busca sistemática nos documentos do Ministério da Saúde (BRASIL, MS, 2013a; BRASIL, MS, 2013b; BRASIL, MS, 2010; BRASIL, MS, 2009; BRASIL, MS, 41 2008; BRASIL, MS, 2007; BRASIL, MS, 2005a; BRASIL, MS, 2005b), procurando por parâmetros normativos que pautassem as diretrizes institucionais de atenção aos TA, o que encontramos no material produzido é insuficiente. Mesmo no documento intitulado Caminhos para uma Política de Saúde Mental Infanto-Juvenil (BRASIL, MS, 2005b), os TA ou a AN sequer são citados. Apenas no documento intitulado Matriz de ações de alimentação e nutrição na atenção básica de saúde (BRASIL, MS, 2009) há uma sinalização para que os profissionais de saúde atentem para o desenvolvimento de ações de prevenção e diagnóstico precoce dos TA em adolescentes. Mas o documento não orienta, além disso, não faz referência alguma a que ações seriam necessárias e nem mesmo onde os profissionais de saúde poderiam buscar mais informações sobre o assunto. Também no Manual de Atenção à Saúde do Adolescente (São Paulo: SMS, 2006), publicado pela Prefeitura Municipal de São Paulo, há um tópico dedicado aos transtornos alimentares com exatas quatro páginas, inserido no capítulo de Agravos à Saúde, onde são encontradas informações muito gerais sobre os diferentes transtornos alimentares, tratamento e exames. Onde estaria então o marco normativo/institucional para organização da atenção aos TA, em especial em adolescentes? As diretrizes para atenção e para organização de serviços de saúde voltados ao público adolescente existem (BRASIL, MS, 2010; 2007). Orientações para o local dos atendimentos, a formação da equipe, como atrair a atenção dos adolescentes e jovens estão disponíveis, mas o atendimento a um adolescente com TA agrega uma série de especificidades que precisam ser consideradas. Uma vez que não há diretrizes definidas para esse atendimento específico, cada serviço/espaço de atenção em saúde age a seu modo, de acordo com as suas possibilidades. Os profissionais de saúde atuam com insegurança, pois não têm formação específica para realizar esses atendimentos. Esperamos que uma das contribuições deste trabalho seja a sensibilização de gestores públicos no tocante à assistência aos TA em adolescentes enquanto uma questão relevante de saúde que merece e necessita de uma atenção mais específica. A formulação de políticas públicas de saúde que coloquem os TA na agenda das ações preventivas para a saúde do adolescente nos parece fundamental. A literatura científica sobre o tema da AN ainda é quase exclusivamente dominada pelas disciplinas de saúde mental. Assim, essa doença é muitas vezes concebida como sendo fruto da natureza patológica do indivíduo, de seu desequilíbrio psíquico, sem considerar o contexto social no qual estes se inserem. Essa concepção tem se revelado claramente 42 insuficiente por não reconhecer a multiplicidade de discursos (saúde mental, saúde pública e mídia) que se entrelaçam para moldar o sujeito anoréxico (ALLEN, 2008). Para enfrentar a questão, faz-se necessário um olhar que seja capaz de articular o biológico com o social (BOSI; ANDRADE, 2004). No entanto, Becker (2004) destaca que uma crítica integração entre as perspectivas psicológica, epidemiológica e socioantropológica necessárias para fazer o campo de estudos em TA avançar ainda não vem sendo feita. O cenário encontrado indica a relevância do tema para a Saúde Coletiva, em especial, para o campo da Saúde do Adolescente no Brasil (RAMOS et al, 2011). Sinteticamente, podemos reunir em quatro grandes tópicos as principais lacunas encontradas na literatura científica nacional que terminaram influenciando a construção desta pesquisa: 1. Falta de estudos em instituições de saúde que ofertam atendimentos aos TA; 2. Falta de estudos que abordem a perspectiva do adolescente adoecido; 3. Inexistência de um marco normativo para organização da atenção ao adolescente com TA no país e; 4. Trabalhos que utilizem a perspectiva socioantropológica sobre os TA no Brasil ainda são escassos. Embora minha pesquisa de tese tenha se desenvolvido em um serviço público de saúde na cidade do Rio de Janeiro, outros serviços na cidade foram visitados e neles busquei entender ainda que superficialmente como era o funcionamento desses espaços, as equipes que os compunham e o público acolhido. Também pesquisei sobre outros serviços de saúde voltados aos TA no Brasil. Acredito que este trabalho sinalize para um contexto institucional de atenção dramático, pois através de um estudo de caso, da etnografia de uma instituição, é possível pensar mais amplamente no modo de organização da atenção à saúde. Há que se destacar a existência de uma atenção ao adolescente com TA e seus familiares bastante pulverizada. São escassos os documentos oficiais do Ministério da Saúde que sequer mencionam os TA. No Brasil, a obesidade em adolescentes tem sido uma preocupação maior do que os TA. Embora se reconheça que no país essas patologias sejam recentes, com sua identificação apenas a partir da década de 70, e que se constituam um fenômeno aparentemente inexpressivo do ponto de vista epidemiológico, parece-nos que são patologias delicadas e que seu estabelecimento é permanente (ou seja, não nos parece que os TA vão desaparecer) e, portanto, carecem de atenção adequada. 43 CAPÍTULO 2. ASPECTOS METODOLÓGICOS E ÉTICOS DA INVESTIGAÇÃO 2.1 DESENHO DO ESTUDO Trata-se de um estudo socioantropológico que utilizou o método etnográfico (MENEZES, 2006; BONET, 2004; FERREIRA, 2003.; FERREIRA, 2011; CHAZAN, 2005) para conhecer a dinâmica de funcionamento de um Programa de Transtornos Alimentares (PTA), voltado ao atendimento de adolescentes, situado em um hospital público do Estado do Rio de Janeiro, com trabalho de campo realizado entre novembro de 2011 e setembro de 2013. Nesse período, participei das atividades diárias de assistência às adolescentes, conforme autorização concedida para o estudo. Minha proposta foi observar as reuniões da equipe de profissionais que integram o Programa, as consultas médicas e da nutrição e a sala de espera, onde adolescentes e seus familiares aguardam o atendimento, de modo a captar a dinâmica de funcionamento do PTA ou, segundo Malinowski (1986), “os imponderáveis da vida real”, para posteriormente entrevistar usuários contatados nesse espaço. A decisão pelo método a ser utilizado em uma pesquisa não ocorre aleatoriamente, mas depende do objeto de estudo, do enfoque teórico-metodológico e de que lugar se deseja abordá-lo. A abordagem escolhida pode abrir novas possibilidades de conhecimento do objeto de pesquisa, de modo que o pesquisador se defronte com questionamentos antes sequer vislumbrados. Dalmolin et al, (2002, p.21) afirmam que o saber técnico, enquanto profissionais da área da saúde, muitas vezes nos restringe o acesso e nos fecha a possibilidade de percebermos o pesquisado como o "outro", nas suas dimensões sociais e culturais. Silverman (2010, p.128) defende a aplicabilidade prática do trabalho qualitativo, pois uma boa etnografia pode acessar fenômenos que escapam ao escrutínio da pesquisa quantitativa, ao revelar o “que” e o “como” dos processos estudados. Desse modo, a etnografia é uma forma de olhar, de apreender e interpretar a realidade que envolve a contextualização das falas e dos atores sociais, a consideração dos “não ditos” e a apreensão não estática da realidade social, tendo como intuito atingir a “profundidade” que a pesquisa 44 qualitativa busca evidenciar (KNAUTH, 2010, p.110). Nesse sentido, a realização de uma etnografia em um serviço de saúde é relevante não apenas por permitir apreender noções de corpo, saúde e doença, mas também contextos mais amplos podendo revelar fatos sociais totais (FERREIRA; FLEISCHER, 2014). Para atingir os objetivos propostos pelo estudo, foram utilizadas duas técnicas para coleta de dados, constitutivas do método etnográfico: a observação participante da sala de espera, dos atendimentos de saúde e das reuniões da equipe de saúde do Programa de Transtornos Alimentares e as entrevistas semi-estruturadas com as adolescentes ali atendidas. De início, planejava-se que o PTA fosse um primeiro ponto de encontro com as adolescentes, e que estas fossem posteriormente contatadas, caso concordassem em participar da investigação. Supunha que a realização da entrevista no próprio serviço de saúde não propiciasse um ambiente acolhedor à conversa, fundamental ao desenvolvimento da interação pesquisadora-adolescentes. Assim, inicialmente foi proposto ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) que as entrevistas fossem realizadas em local escolhido pelas adolescentes, para favorecer a aproximação pesquisadora-entrevistadas. Tal sugestão foi recusada, então solicitamos a realização das entrevistas na residência das adolescentes, o que foi consentido pelo CEP. No entanto, a ideia de realização das entrevistas na casa das adolescentes não foi bem aceita pelas próprias, que preferiram ser entrevistadas no espaço do serviço de saúde. Nossa intenção inicial era justamente poupá-las de algum possível constrangimento que a realização da entrevista dentro do Programa, próximas à equipe de saúde que as atendia, pudesse lhes trazer. Algumas hipóteses podem ser pensadas para essa recusa: o fato de o ambiente do PTA ser conhecido e apresentar certa “segurança”; o fato de o convite ter sido feito direto à adolescente longe de seus pais ou responsáveis e a mesma não ter se sentido capaz de autorizar a presença da pesquisadora na casa de seus pais sem antes comunicá-los e; possivelmente elas não queriam um estreitamento de laços ou contato antes de melhor conhecer a pesquisadora. Em geral, o que ouvia durante os convites iniciais em que tentava marcar uma visita nas residências é que elas moravam muito longe e preferiam ser entrevistadas no serviço de saúde. Assim, observava o cotidiano do atendimento no PTA, registrando tudo minuciosamente em um diário de campo e, em um segundo momento, as adolescentes foram formalmente entrevistadas, mediante um roteiro semi-estruturado (Anexo 2). As entrevistas ocorriam ao final dos turnos de atendimento, quando alguns dos consultórios já estavam vazios. Assim, este espaço podia ser tranquilamente utilizado, sem correr o risco de interferir 45 na rotina de atendimentos do Serviço de Adolescentes e da entrevista ser interrompida. Dessa forma, pudemos garantir a privacidade e as condições adequadas a uma boa entrevista. A maioria das entrevistas foi realizada em uma das salas ao fundo do prédio do Serviço, utilizadas principalmente pelos residentes (os profissionais de saúde mais antigos tinham consultórios fixos no prédio principal, os mais novos se revezavam nas salas vazias nesse mesmo prédio). Por serem mais escondidas e ficarem vazias mais cedo, praticamente só eu as ocupava por volta das 11:00 – 11:30 h. da manhã, as entrevistas ocorriam de modo bastante tranquilo. Essas salas embora tivessem a mesma estrutura das salas do prédio oficial com maca, biombo, mesa, cadeiras, armários e ar-condicionado, ninguém deixava nada guardado nelas, nem mesmo jalecos, pois embora as chaves dessas salas ficassem em poder da equipe de enfermagem, elas nunca estavam fechadas, o que para mim foi um facilitador. Por serem pequenas, o ar ligado deixava o ambiente extremamente frio. Assim, sempre que eu entrava para realizar as entrevistas questionava sobre manter ou não o mesmo ligado e em todas as vezes a opção foi por desligá-lo. Lembro que essas adolescentes tem pouquíssima reserva de gordura e, não raro estão sempre usando casacos, mesmo em dias de sol forte. A utilização de muita roupa cobrindo o corpo nesses casos recebe outras interpretações que não apenas o frio, como esconder marcas ou cortes espalhados pelo corpo, disfarçar o emagrecimento dos responsáveis, dos amigos e mesmo dos profissionais de saúde, ou ainda por se acharem gordas e terem vergonha do próprio corpo, fazendo uso de roupas sempre maiores que o seu tamanho. Apenas duas entrevistas foram realizadas no prédio principal, a de uma adolescente que não tem uma das pernas e, portanto ficava mais confortável para ela, pois para se chegar às salas dos fundos era preciso subir uma pequena escada, e outra onde a médica clínica me cedeu a sala onde estava atendendo e a “vez” com a adolescente para realizar a entrevista enquanto ela conversava com os pais de uma outra usuária. Embora ficassem no prédio principal, tais salas não eram adequadas para realização das entrevistas, pois nos fundos das mesmas que davam para a lateral do prédio, ficava um reservatório de oxigênio que, de tempos em tempos fazia um barulho que, além de desconcentrar a adolescente, impedia que o gravador captasse de forma audível esses momentos. A entrevista pode ser compreendida como o complemento indispensável da observação participante, e o pesquisador pode optar por se apoiar mais em uma ou outra técnica (BEAUD; WEBER, 2007) a depender de seus objetivos. Em sua etnografia realizada 46 em um CTI no Rio de Janeiro, Menezes elegeu a entrevista como “instrumento privilegiado para a compreensão dos fatos observados concernentes às práticas sociais e à produção de discursos sobre estas” (MENEZES, 2006). Da mesma forma, Silverman (2010, p.188) nomeia a entrevista como sendo a “tecnologia predominante da pesquisa qualitativa”. A utilização das entrevistas em uma pesquisa qualitativa se justifica por algumas vantagens que essa técnica agrega como: o favorecimento da relação intersubjetiva entre pesquisador e participante, que em virtude das trocas verbais e não verbais decorrentes das interações que ocorrem durante sua realização permitem ao pesquisador uma melhor apreensão dos sentimentos e experiências vividas (FRASER; GONDIM, 2004) e o fato de ser um instrumento flexível, não obedecendo a regras técnicas muito estritas, em que o entrevistado ocupa um papel de destaque na construção da interpretação do pesquisador, conferindo ao resultado final de uma entrevista a particularidade de ser um texto negociado (FRASER; GONDIM, 2004; MENEZES, 2006). Por ser o entrevistado protagonista é essencial que este esteja disposto e confortável para falar de seus pensamentos e emoções (SILVERMAN, 2010, p.189) com o pesquisador e é a qualidade dessa interação que vai decidir o desenrolar da entrevista (MENEZES, 2006). Portanto: ... a entrevista dá voz ao interlocutor para que ele fale do que está acessível a sua mente no momento da interação com o entrevistador e em um processo de influência mútua produz um discurso compartilhado pelos dois atores: pesquisador e participante (FRASER; GONDIM 2004, p.140). Ao todo foram realizadas 11 entrevistas, 10 com adolescentes do sexo feminino e uma com adolescente do sexo masculino. Dez dessas entrevistas foram feitas com adolescentes atendidos pelo Programa e uma com uma adolescente atendida por outro Serviço de Atendimento aos TA, voltado para a população adulta (a partir de 18 anos), também instalado no mesmo hospital onde a pesquisa foi feita. Todas as adolescentes que estavam em acompanhamento regular na ocasião das entrevistas foram convidadas. Houve apenas uma recusa, de um adolescente de 12 anos que, na entrega do convite para participação na pesquisa, na sala de espera, se recusou a conversar comigo. Na pesquisa realizada por Menezes, um único profissional se negou a conceder entrevista e todos os que participaram disseram ter gostado muito da conversa, dando à pesquisadora a impressão de que tinham muito a falar (MENEZES, 2006). Da mesma forma, cheguei a ser posteriormente parada pelos 47 corredores para ouvir o quanto haviam gostado da experiência de “ser entrevistada”. Avalio que a maior dificuldade para a realização das entrevistas não foi, de fato, o constrangimento por estarem dentro do serviço de saúde, mas sim o cansaço após a “maratona” de atendimentos pelos quais já haviam passado durante a manhã. Quando solicitei que as entrevistas fossem realizadas no prédio do PTA, minha intenção foi prontamente aceita pela equipe, talvez porque já houvesse instalada uma curiosidade sobre como seriam, mas fui alertada de que eu não deveria atrapalhar o fluxo de atendimentos da adolescente com os profissionais para os quais estivesse agendada naquela manhã. Assim, a adolescente chegava entre 8 e 9 horas da manhã e a entrevista só ocorreria após às 11 horas. O critério para o convite e posterior realização da entrevista era que essa adolescente estivesse em acompanhamento no Programa. Assim, algumas adolescentes que cheguei a acompanhar e, que eu gostaria de entrevistar não o foram, pois abandonaram o tratamento antes do convite ser feito. A dinâmica de aproximação e abordagem ocorria da seguinte forma: a adolescente chegava ao serviço de saúde, iniciava os atendimentos, eu observava/participava das reuniões de equipe onde os casos eram discutidos, observava suas interações e vínculos na sala de espera, tentava acompanhar um ou mais de seus atendimentos clínicos e, então, me apresentava ou reaproximava dela e, muito provavelmente, também abordava o familiar acompanhante. Explicava sobre a pesquisa, fazia o convite e no caso de uma resposta positiva, já tentava agendar a entrevista para a ocasião seguinte em que a adolescente voltaria ao Programa. No dia em questão, abordava-a na sala de espera e, ao final de seus atendimentos, a própria adolescente ou às vezes o último profissional de saúde por quem ela havia passado me procuravam para que pudéssemos ir até a sala onde a entrevista seria realizada. Nem sempre eu acompanhava o atendimento da adolescente que seria entrevistada no dia da entrevista, então era possível que eu estivesse em outro atendimento, convidando alguém na sala de espera ou mesmo observando as interações nesse espaço. Sabendo que o “sucesso” do trabalho de campo etnográfico está muito ligado à relação social que o pesquisador estabelece com seus informantes, sendo a qualidade dos dados obtidos muito dependente dessa relação (MENEZES, 2006; SILVERMAN, 2010), embora cada adolescente tenha sido entrevistada uma única vez, o fato de encontrá-las semanalmente no PTA permitiu a consolidação de uma relação próxima e de confiança. Cada entrevista teve a duração média de uma hora. 48 2.2 POPULAÇÃO DE ESTUDO Este estudo foi desenvolvido com adolescentes com idades entre 12 e 18 anos2, de ambos os sexos, contatados por meio de uma instituição pública de saúde que possui um Serviço especializado no atendimento a essa faixa etária, com diversos ambulatórios específicos (cardiologia, clínica médica, ginecologia, nefrologia, etc.), incluindo o Programa de Transtornos Alimentares, como a Anorexia Nervosa, na cidade do Rio de Janeiro. Majoritariamente, o Programa atende adolescentes do sexo feminino, mas tive oportunidade de conhecer alguns rapazes e entrevistar um deles que frequentam o serviço para se tratar. O conceito de “adolescência” é muitas vezes naturalizado e comumente associado exclusivamente ao desenvolvimento biológico. Desde meados do século XX, a Sociologia tem trabalhado com o conceito de “juventude” compreendida como o processo social de entrada na vida adulta. Tal categoria ganhou reconhecimento político e social, porém o jovem ficou por vezes restrito às abordagens que o ressaltavam como um “problema social” (FERREIRA, 2009; LEITE, 2009). Já a aproximação ao adolescente, especialmente no campo da psicologia, permaneceu ocorrendo pelo destaque ao desenvolvimento biológico e fisiológico, sendo a “adolescência” utilizada em alguns contextos como sinônimo de “puberdade”. Compreender as especificidades do ser adolescente implica em, antes de tudo, diferenciar esses dois conceitos (FERREIRA, 2009; LEITE, 2009; SÃO PAULO, SMS, 2006). O Manual de Atenção à Saúde do Adolescente, publicado pela Prefeitura de São Paulo, define a puberdade3 como: ... conjunto de modificações biológicas que transformam o corpo infantil em adulto, constituindo-se em um dos elementos da adolescência. A puberdade é um parâmetro universal e ocorre de maneira semelhante em todos os indivíduos. (SÃO PAULO, SMS, 2006, p.17) Assim, a puberdade juntamente com os fatores psicológicos e sociais característicos dessa fase de desenvolvimento estariam inseridos na adolescência. Mas se as modificações 2 Os nomes utilizados para tratar os adolescentes nesta tese são fictícios, para manter o anonimato dos participantes preservado. 3 O Programa Saúde do Adolescente (MS, PROSAD, 1996, p.15) define a puberdade como: “ O conjunto de modificações biológicas da adolescência é denominado de puberdade e engloba, segundo Marshall e Tanner (1974), os seguintes componentes: aceleração e desaceleração do crescimento esquelético, alteração da composição corporal, desenvolvimento dos sistemas respiratório e circulatório, desenvolvimento das gônadas, órgãos de reprodução e caracteres sexuais secundários”. No entanto, considerei mais adequada a definição proposta pelo Sistema Municipal de Saúde de São Paulo, embora ambas sejam similares. 49 corporais decorrentes da puberdade podem ocorrer entre todos os indivíduos, o modo como transcorre a adolescência de cada um é vivido de modo único, pois está sujeito a influências sociais e culturais distintas (SÃO PAULO, SMS, 2006). Leite (2009) afirma que a utilização do termo adolescência é relevante para o reconhecimento da própria categoria “especial” por meio da qual a sociedade qualificou os indivíduos nessa condição como grupo específico da população. Ainda de acordo com a autora, os termos “adolescência” e “juventude” são utilizados em trabalhos de diferentes disciplinas para se referir a este grupo populacional. As diferentes possibilidades de nomear essa fase da vida refletem o quão difícil é tentar classificá-la e apreendê-la. Brandão (2003, p.73) esclarece que a adolescência tem sido comumente considerada como “um período de acentuada dependência das instâncias de socialização como a família e a escola, em contraste com a juventude, considerada uma fase de crescente relativização desta”. As adolescentes que foram entrevistadas, bem como todas que frequentam o Programa, residem ainda na casa de seus familiares, não trabalham e todas estudam, ainda que por um período ou outro tenham se afastado da escola em virtude da gravidade da doença. Também por estarem dentro de um serviço de saúde voltado para o cuidado adolescente, é com esta denominação que trabalharemos nesta tese. A existência de uma fase da vida marcada por particularidades biofisiológicas, psicológicas e sociais, é uma elaboração histórica e social que desde o século XX passou a se delinear e atualmente é amplamente reconhecida como adolescência, correspondendo na nossa sociedade a um período de passagem da infância à vida adulta (LEITE, 2009; LEITE, 2012). Philppe Ariès é um dos autores que apontam a adolescência como uma invenção recente. De acordo com o autor, na sociedade medieval não existia a consciência de uma particularidade infantil, que distingue a criança do adulto. Dessa forma, quando a criança desenvolvia independência suficiente para não depender dos cuidados constantes da mãe era introduzida na sociedade dos adultos, passando a integrá-la como qualquer um de seus membros (ARIÉS, 2012, p.99). Com o tempo, as classes de idade foram ganhando importância em nossa sociedade e gradativamente se organizaram em torno das instituições (ARIÉS, 2012, p.123). 50 Conforme já apontamos, definir “adolescência” não é fácil, mas ela vem sendo concebida em nossa sociedade como uma etapa de crescimento e desenvolvimento do ser humano, situado entre a infância e a idade adulta e marcada por transformações de ordem biológica, física, psíquica e social. A Organização Mundial da Saúde (OMS) delimita etariamente essa fase como a faixa dos 10 aos 19 anos de idade, e a juventude seria o período que se estende dos 15 aos 24 anos, com distinção entre adolescentes jovens (de 15 a 19 anos) e adultos jovens (de 20 a 24 anos). A faixa etária determinada pela OMS para definir a adolescência é a mesma adotada pelo Ministério da Saúde no Brasil (SÃO PAULO, SMS, 2006). Por outro lado, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera adolescente o indivíduo de 12 a 18 anos (BRASIL, LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990). Apesar de procurar abranger os diferentes aspectos que estão presentes na adolescência, a definição proposta pela OMS enfatiza a maturação sexual e define a adolescência como uma passagem entre infância e a vida adulta (LEITE, 2009). Muito mais do que uma “passagem” ou uma etapa do desenvolvimento humano é durante a adolescência que o indivíduo começa a se relacionar de forma mais independente dos pais e da escola com o mundo que o cerca, sem, no entanto, necessitar assumir integralmente as responsabilidades de um adulto. Assim, o adolescente é tomado como um ser ambivalente, pois, se não lhe é exigido assumir as atribuições da vida adulta também não lhe é permitido agir como uma criança (RUZANY, 2008). Por estar se preparando para ser um indivíduo completamente autônomo, com valores éticos e morais próprios, a adolescência pode ser considerada um período difícil, com uma série de expectativas relacionadas ao corpo em modificação, à capacidade reprodutiva, à identidade sexual, às mais diferentes responsabilidades a serem plenamente assumidas, ao fato de tornar-se independente, à maturidade emocional, à escolha profissional, dentre outras que fazem essa fase ser vivenciada de forma conflituosa por muitos (SÃO PAULO, SMS, 2006; BRASIL, MS, 2010; RUZANY, 2008). Leite (2012) nomeia a adolescência como um fenômeno heterogêneo, e considera a existência de diferentes adolescências, atravessadas por marcadores sociais de diferença como classe social, gênero e raça (LEITE, 2012). Da mesma forma, Brandão (2003, p.66) afirma ser impossível pensar a adolescência em sentido genérico, diante da diversidade social e cultural dessa transição. De acordo com a autora, especialmente no Brasil, embora haja uma exposição a situações e vivências comuns, há ethos culturais díspares, relacionados às distinções de 51 escolaridade e contextos de socialização. Assim, o processo de individualização que ocorre na adolescência, se dá de modo distinto para cada indivíduo (BRANDÃO, 2003, p.66). Como já salientamos, é difícil precisar os limites etários da adolescência, sendo considerada um período de duração variável nas sociedades ocidentais modernas. No entanto, parece haver um consenso de que se trata de um período de busca de autonomia e de maturação biológica e sociocultural (LEITE, 2009). Há algum tempo a “idade” tem perdido sua notoriedade enquanto categoria classificatória da organização social (BRANDÃO, 2003). Assim, a Sociologia vem nos convocando a examinar as divisões entre as idades como classificações arbitrárias, que impõem limites e acabam por fixar cada indivíduo em seu lugar (BOURDIEU, 1983). De acordo com Bourdieu (1983), embora seja um “dado biológico” a idade pode ser socialmente manipulada e manipulável e o fato de buscarmos fixar a adolescência como uma unidade social cujos componentes possuem as mesmas características e interesses e relacionálos à idade biológica já constitui uma clara manipulação. Cabe destacar, no entanto, que a aquisição de autonomia e independência permanecem seguindo a escala cronológica, em detrimento do desenvolvimento físico, mental e social. Isso ocorre embora o modo como cada fase da vida é dividida e a determinação das características associadas a cada uma delas seja variável, de acordo com os grupos sociais em uma mesma sociedade (FERRARI et al, 2008; DEBERT, 1998). Mesmo com a constatação de que se trata de uma construção cultural, que varia historicamente, não significa dizer que as categorias etárias não tenham efetividade, pois atuam no estabelecimento de direitos e deveres diferenciais em uma população, estabelecendo relações entre as gerações e distribuindo poder e privilégios (DEBERT, 1998, p. 53). A categoria idade é essencial para o estabelecimento de laços entre grupos bastante heterogêneos e, enquanto a categoria geração é relevante para estruturar a família e o parentesco, as idades são institucionalizadas política e juridicamente. (DEBERT, 1998). Uma geração começa a construir a sua identidade durante a adolescência (ATTIAS-DONFUT; DAVEAU, 2004). A principal característica definidora de uma geração é o fato de que seus membros compartilham a mesma visão de mundo, ou seja, sofreram as mesmas influências e possuem mais ou menos a mesma idade. Mas ainda assim não se trata de um grupo homogêneo (ATTIAS-DONFUT, 1988; ATTIAS-DONFUT; DAVEAU, 2004). 52 A consciência de pertencimento a uma geração surge durante a adolescência quando o indivíduo desenvolve um interesse crescente em participar de modo mais ativo da vida social e política que o cerca (ATTIAS-DONFUT; DAVEAU, 2004). Essa tomada de consciência nos leva a vislumbrar a existência de outras gerações as quais a geração a que pertencemos se diferencia e se opõe (ATTIAS-DONFUT, 1988). A identificação com uma geração atua também na modificação das relações entre pais e filhos, com o desejo adolescente por obter autonomia e o início dos conflitos intrafamiliares (ATTIAS-DONFUT; DAVEAU, 2004). De Singly (2000) refere que o indivíduo moderno somente se sentirá livre ao alcançar plenamente as duas dimensões do processo de individualização, a autonomia e a independência, sendo a distância na obtenção das mesmas o que mais diferencia o adolescente do adulto. De acordo com autor, a socialização que se inicia na infância e adentra a adolescência culmina com o processo de individualização em que a independência, especialmente econômica, entendida como a dependência cada vez menor dos próximos graças a recursos adquiridos com a atividade pessoal, e a autonomia, entendida como a capacidade de viver em sociedade pela apreensão das regras pessoais e de relacionamento interpessoal, estão reunidas. De Singly (2000) salienta que a criança se torna autônoma em uma relação de dependência e que aprende a ser um ser individualizado no seio de sua família de origem. Durante o século XVII, deixar a infância estava atrelado a sair da dependência parental. Atualmente vivenciamos o “prolongamento da juventude”, pois a independência financeira do adolescente/jovem em relação a sua família de origem e o ingresso na vida adulta (atuação no mercado de trabalho, residência própria e criação de família de constituição) está ocorrendo cada vez mais tardiamente. Mesmo permanecendo dependentes dos pais, existe a possibilidade de construção da autonomia dentro da família, porém tal possibilidade ocorre quase sempre atrelada ao desencadeamento de conflitos na relação de filiação (ARIÉS, 2012; BRANDÃO, 2003). Cabe destacar que com as recentes modificações nas relações familiares o desenvolvimento da autonomia e a satisfação pessoal tem se sobreposto a anteriormente valorizada obediência (DE SINGLY, 2000). Volpi (2004, p.8) aponta que a visão predominante e estereotipada de nossa sociedade sobre adolescência revela um olhar preconceituoso do adulto que vê o adolescente por aquilo que ele não é: não é maduro, não é responsável, não é paciente, não é obediente. Em paralelo, 53 Bourdieu (1983) coloca a adolescência como sendo um período de irresponsabilidade provisória, em que são considerados adultos para algumas questões e crianças para outras. A visão ambígua e preconceituosa da adolescência coopera para que seja abordada por uma ótica reducionista, como a “fase da explosão de hormônios, das tensões e conflitos por afirmação da identidade, da inquietude e da contestação dos valores dos adultos” (VOLPI, 2004, p.8). Embora tais características façam parte da adolescência, uma observação mais atenta revelará que não corresponde a sua totalidade. Ao se aproximar do adolescente apenas pela ótica dos problemas, significa reprimir as inúmeras possibilidades criativas e construtivas presentes nesta fase da vida (VOLPI, 2004). Embora Leite (2009) ressalte o quão autoritária e tutelar nossa sociedade tem sido com as crianças e adolescentes, a autora acredita que a construção de uma agenda positiva em relação ao conjunto de aspectos de suas existências, seja o caminho para tratá-los como sujeitos de direito. Entre os principais fatores etiológicos da AN, a idade e o sexo se destacam, remetendo ao início mais acentuado na adolescência e a prevalência nove vezes mais comum em mulheres do que em homens (ALVES et al, 2008; CASTRO; GOLDENSTEIN, 1995). A adolescência é um período do desenvolvimento humano que exige uma readaptação à nova imagem corporal, acompanhada de transformações corporais, sociais e preocupações com o novo formato e peso do corpo (ANDRADE; SANTOS, 2009; CASTRO; GOLDENSTEIN, 1995). Nesse período, é comum se observar elevada prevalência de insatisfação com a imagem corporal e aumento no número de casos de AN e BN (ALVES et al, 2008; NUNES et al, 2001). A adolescência é tida como a faixa etária mais vulnerável também por aparentemente ser mais influenciada pelos padrões estéticos corporais vigentes (NUNES et al, 2001). A visão da adolescência como um período de transição ou uma etapa do desenvolvimento humano, tem corroborado para o esquecimento das necessidades desta população, o desrespeito com relação a seus direitos, e uma cobrança por vezes exagerada quanto ao cumprimento de seus deveres como cidadão (RUZANY, 2008). Especificamente nos serviços de saúde, as ações de saúde voltadas para adolescentes devem respeitar a diversidade de vivências, considerando as singularidades relativas a gênero, raça, classe social, cultura, desenvolvimento emocional, entre outros aspectos. No entanto, o caráter 54 universalizante em que os serviços de saúde foram organizados provoca dificuldades para se lidar com a multiplicidade de adolescências que coabitam os seus espaços (BRANCO, 2002). O fato de os adolescentes serem quase sempre indivíduos saudáveis contribui para agravar essa dificuldade, pois eles acionam pouco os recursos de saúde disponíveis, impossibilitando a realização de ações preventivas. No entanto, quando adoecem, é essencial que o adolescente seja atendido em um espaço próprio, respeitando sua privacidade e autonomia e com profissionais capacitados, interessados e que estejam disponíveis para atender suas demandas, nem sempre exclusivamente ligadas à saúde (BRASIL, MS, 2010). Assim, destacamos a importância de se realizar a proposta do presente estudo em um espaço dedicado à saúde adolescente. 2.3 LOCAL DE ESTUDO A instituição pública na cidade do Rio de Janeiro que oferta atendimento aos TA selecionada para realização do estudo é um Serviço de Saúde Adolescente (SSA) pertencente a uma universidade pública, que existe há 41 anos, e é responsável pela atenção integral à saúde de adolescentes, funcionando como unidade docente-assistencial nos níveis de atenção primária, secundária e terciária. Está ligado a um Hospital Universitário (HU) e se localiza em um prédio ao lado deste. O Serviço em questão têm recebido destaque por suas articulações com instituições nos âmbitos universitário, comunitário, governamental e não-governamental, tornando-se um exemplo para novos empreendimentos na área de saúde integral do adolescente. Teve início em 1974 e sua equipe é formada, atualmente, por um corpo docente e técnico-administrativo de 76 profissionais. O Programa de Transtornos Alimentares (PTA), por meio de uma abordagem interdisciplinar, vem atendendo adolescentes de ambos os sexos que sofrem de AN e/ou BN. O Programa, criado em 2005, funciona semanalmente às quartas-feiras e conta com uma equipe formada por psicólogos, clínicos gerais, psiquiatra e nutricionista, além de residentes destas especialidades. Destaca-se a importância desse espaço dentro de um serviço exclusivamente voltado para saúde adolescente, público reconhecidamente mais atingido 55 pelos TA. A pesquisadora recebeu autorização da direção do SSA para a realização da pesquisa. O acesso ao Programa ocorre por duas entradas, uma compartilhada com o HU e outra, a principal, independente. A entrada compartilhada com o HU nem sempre está aberta, há um corredor com um portão que separa a comunicação entre o prédio do hospital e o Serviço onde se localiza o PTA. Próximo a esse portão, quando o mesmo está aberto, sempre fica um vigilante/segurança da universidade sentado numa cadeira que, por vezes indaga para onde se quer ir quando se tenta cruzá-lo. O SSA possui três andares e em relação à entrada principal, o PTA está localizado no subsolo, ou seja, é preciso descer um lance de escadas para ter acesso à sala de espera. As escadas conduzem à parte posterior desta sala, e o usuário precisa cruzar o espaço da mesma para ir entregar o cartão de marcação de consultas na recepção de enfermagem, protegida por vidro para que a comunicação com os usuários seja feita pelo local indicado. Pela passagem do HU, ao cruzar um pequeno pátio externo, já se está no nível da sala de espera e chega-se pela parte da frente da sala, logo à direita da entrada encontra-se a recepção da enfermagem por essa perspectiva. A sala de espera é ampla, no formato retangular. A parte anterior é ocupada por cadeiras enfileiradas, cada fileira com cinco cadeiras, com pouco espaço de circulação entre as fileiras. Na parte posterior, há um espaço com uma estante com livretos educativos sobre saúde do adolescente (tanto de campanhas do Ministério da Saúde, quanto materiais produzidos pela própria equipe de saúde que trabalha com os adolescentes) e revistas em quadrinhos, e uma mesa quadrada branca (em tamanho infantil, do tipo das utilizadas em jardins da infância) com quatro cadeiras pequenas. Nessa mesa, às vezes é possível encontrar lápis, canetinhas coloridas e papel. Acima do balcão de recepção, tem uma televisão que fica quase todo o tempo ligada em canais de desenhos animados. A organização da sala de espera com todos os aspectos que a envolvem (TV passando desenho animado, revistinhas em quadrinhos, livros infantis, cadeiras e mesas de tamanho infantil, lápis e canetinhas coloridas) são indícios de como os adolescentes e essa fase da vida podem ser infantilizados e não considerados sujeitos autônomos nesse Serviço. Enquanto aguardavam atendimento, grande parte dos adolescentes digitava no celular, dormia ou escrevia algo em caderno pessoal. Raros os que conversavam entre si ou mesmo com seus responsáveis. 56 Com o decorrer da pesquisa, o espaço da sala de espera sofreu algumas modificações ganhando um mural onde se divulgavam projetos para adolescentes como: escolinha de futebol, aulas de dança, aulas para aprender a tocar um instrumento musical, etc... Além de concursos como o de histórias em quadrinhos promovido pelo SSA, cuja inscrição deveria ser feita na enfermagem. Também havia nesse mural alguns desenhos feitos pelos adolescentes (fruto de um concurso de desenhos também promovido pelo Serviço). A parede do fundo da sala, antes branca, foi ocupada por um desenho estilo grafite com a temática da importância do uso de preservativo e havia alguns colados por toda a parede, que a/o adolescente poderia retirar e levar para casa, sem ter que solicitar na recepção ou durante uma consulta. A estante de livros foi atualizada com uma coleção da enciclopédia Larousse. Também livros-texto de inglês, geografia, português, ciências naturais... Revistas semanais antigas (“Veja”), jornais velhos, livros do Sherlock Homes, livrinhos da coleção “Para gostar de ler”, livros de histórias do Asterix, livretos sobre adolescência, ex: “Como ser jovem”, etc... Colocaram também uns avisos na estante pedindo para não levarem os livros para casa. Cromack et al, (2004) salientam que é comum os adolescentes optarem por uma sala de espera que seja exclusiva para sua utilização nos horários de atendimento. De acordo com as autoras, esse espaço deve ser acolhedor e confortável, bem ventilado e limpo, com espaço suficiente para a realização de atividades de grupo. Além disso, a disponibilidade de materiais educativos (livros, revistas, vídeos, programas de informática) é destacada como essencial por servirem como atrativo enquanto esperam o atendimento, propiciar a troca de informações e permitir o desenvolvimento de autonomia nas escolhas. Também destacam a importância de se ter de forma clara e visível os serviços disponíveis para essa população. A sala de espera não é exclusiva dos usuários do PTA, pois às quartas-feiras pela manhã também há atendimento de clínica médica e ginecologia (que também ficam no subsolo do prédio), cujo volume de consultas e de profissionais de saúde atendendo é maior. Nesse espaço, procurava observar os gestos, as conversas, os silêncios, as posições do público presente (se sentados ou em pé). Procurava um lugar pelo meio ou ao final das cadeiras e havia dias em que a observação era difícil, pois a sala ficava cheia, com grande parte das pessoas em pé. Como iniciei as observações da sala de espera após observar por um período as consultas e reuniões da equipe, já conhecia muitas das adolescentes e seus responsáveis pelos atendimentos e também pela visão dos profissionais de saúde, por meio das discussões de equipe. Assim, a sala de espera se tornou um complemento essencial para as observações e anotações que já havia feito no meu diário de campo. 57 Embora seja reconhecida a importância do envolvimento direto do adolescente no planejamento, implementação e avaliação das ações em saúde direcionadas a sua faixa etária, contribuindo para elevação da auto-estima, estímulo ao desenvolvimento de sua autonomia, e melhora na qualidade de vida, nem sempre o adolescente é protagonista dessas ações, o que acaba por afastá-los desses espaços e contribui para deslegitimação do trabalho do setor saúde junto a outros adolescentes (BRANCO, 2004). Pelo menos nas reuniões do Programa, não se chegou a discutir as mudanças que ocorreram na sala de espera, que se tornou um lugar mais colorido e aconchegante, porém ainda permaneceu como um ambiente infantilizado. Durante a transição, também não vi os adolescentes serem consultados sobre o que achariam interessante de ser modificado nesse espaço para tornar sua permanência, por vezes longa, mais agradável. Acredito que tais mudanças ocorreram por decisão dos profissionais de saúde, pensando é claro, estar agradando e atendendo a uma demanda que eles sequer consultaram aos adolescentes se existia. O comportamento dos usuários não se modificou com a reforma da sala de espera. Não houve entrosamento maior entre as adolescentes e o celular permanecia sendo a grande distração enquanto aguardavam sua vez de serem atendidas. Além da sala de espera, há um pequeno pátio externo, onde se localizam o bebedouro e os banheiros utilizados pelo público atendido nos consultórios do subsolo. Nesse espaço, há dois bancos como os de praça e uma árvore. Por ser localizado a céu aberto, não é muito utilizado nos dias frios e/ou chuvosos. Pela sala de espera se tem acesso à sala de enfermagem, à sala de reuniões, à parte interna do serviço e aos consultórios de nutrição, psicologia, serviço social e ginecologia. No fundo dessa sala há ainda outra passagem (no lado oposto a escada por onde se tem acesso ao subsolo ao se entrar no prédio pela entrada principal) com uma pequena escada que dá acesso a outros consultórios que ficam em anexo ao prédio, e só se chegam a eles por essa escada. Creio que tenham sido construídos depois, para atender a demanda de residentes disponíveis para atuar em cada turno. Nesse espaço, os consultórios não são destinados a uma dada especialidade, sendo de uso comum e utilizados conforme a necessidade. No dia do ambulatório do PTA, uma psicóloga atende em um deles e também os residentes de psicologia, enfermagem e medicina. Grande parte das entrevistas foram realizadas nessas salas, que são menores que as do prédio principal, contam com uma mesa de ferro pintada, duas cadeiras, uma para o profissional de saúde e outra para o adolescente (não há cadeira para os responsáveis), um biombo, uma maca, uma janela com persiana e ar-condicionado (algumas possuíam armários de ferro). 58 No prédio principal, todos os consultórios têm duas portas, uma que dá para a sala de espera e outra para o corredor interno do serviço. Os consultórios são de tamanhos razoáveis, em sua maioria, comportam um armário ou uma estante, uma mesa de escritório e cadeiras para o profissional de saúde, o adolescente e seus pais (as salas fixas utilizadas pela nutricionista e pela coordenadora psicóloga, além do que foi citado possuem uma mesa com computador e não possuem maca e biombo, as outras salas são o inverso, sem o computador e com a maca e biombo). A parte interna do serviço é formada por um corredor em forma de “L”, o qual possui em sua parte maior uma bancada com três computadores, um bebedouro, um banheiro, um armário de medicamentos, um carrinho de curativos, quadros de avisos e cartazes de campanhas do Ministério da Saúde. Na parte menor do corredor, há uma balança com estadiômetro e uma estante grande, onde a equipe de enfermagem organiza prontuários e os cartões de marcação de consulta por ordem de chegada. Ao lado da sala de enfermagem situa-se a sala de reuniões. Nela há uma estante onde existem diversos livros sobre medicina e algumas revistas científicas e onde são organizados os prontuários e a agenda de atendimento do TA, uma bancada onde as pessoas colocam bolsas e mochilas e um telefone com ramal. Há também uma mesa redonda com número de cadeiras variável a cada semana, dois cabideiros onde já ficam alguns jalecos, quadros de avisos nas paredes e, ao fundo da sala, uma bancada com dois computadores. É neste espaço que são realizadas as reuniões de equipe para discutir os casos de TA antes dos atendimentos, nesse horário a sala fica lotada e geralmente algumas pessoas dividem as cadeiras, enquanto outras acabam por ficar em pé. É importante destacar que todos os prontuários de adolescentes e as agendas de marcação dos outros ambulatórios ficam na sala de enfermagem e são organizados pelas enfermeiras e técnicas. Apenas o ambulatório do Programa de Transtornos Alimentares fica responsável por manter e organizar seus prontuários e agenda. No entanto, uma organização sistemática não era feita, pois a gaveta constantemente estava lotada de modo que alguns prontuários caíam no fundo da estante e era preciso remover a gaveta para recuperá-los, outros sumiam e começava-se a anotar as informações da adolescente em folhas soltas. A gaveta contava com separação das letras em ordem alfabética, mas ao retornarem os prontuários os profissionais não respeitavam essa organização o que dificultava o trabalho de encontrá-los no retorno das usuárias. Além disso, embora a gaveta fosse larga e bastante funda e estivesse lotada de prontuários, havia no máximo 20 adolescentes em atendimento regular e esse número era variável a cada mês. 59 O PTA não dispunha de dados sistematizados sobre os atendimentos ali realizados desde a sua inauguração, embora com frequência eu questionasse a respeito. Tive conhecimento de um pôster apresentado pela estagiária da psicologia com esses dados atualizados até 2012, bem como de uma publicação em um manual de pediatria, mas não consegui ter acesso a ambos, embora tivesse insistido. 2.4 ENTRAVES METODOLÓGICOS E ÉTICOS DO FAZER ETNOGRÁFICO Discuto, a seguir, algumas peculiaridades envolvendo a pesquisa etnográfica em instituições de saúde,4 desde a seleção do campo, a realização da pesquisa em si, passando pela apreciação do Comitê de Ética e por fim, as dificuldades da pesquisa com populações consideradas “vulneráveis”. 2.4.1 ENTRAVES RELACIONADOS À ENTRADA EM UM SERVIÇO DE SAÚDE Em instituições de saúde, as questões éticas, importantes em todo trabalho de campo, ganham um lugar de destaque, com peculiaridades ligadas ao campo. Em síntese, as tentativas e negociações para entrada em campo de minha pesquisa de doutorado se iniciaram em 21 de março de 2011 e foram até 21 de novembro de 2011, dia da minha primeira visita a esse serviço de saúde. O percurso para seleção de uma instituição envolveu certas dificuldades, pois a realização do campo nesses espaços precisava satisfazer algumas condições prévias: alguns serviços de saúde também se constituíam em espaços de pesquisa para os profissionais que ali atuavam, de modo que não estavam abertos a investigações de terceiros ou “exigiam” a atuação da pesquisadora como “estagiária”, integrando a equipe local de profissionais, diante da escassez de recursos humanos disponíveis. Alguns deles ainda promovem cursos não gratuitos de atualização em TA e obesidade, para o qual recomendam a participação dos profissionais interessados em realizar pesquisas 4 Também publicado em: CASTRO-VIANEZ, P. S; BRANDÃO, E. R. Desafios éticos, metodológicos e pessoais/ profissionais do fazer etnográfico em um serviço público de saúde para atendimento aos transtornos alimentares na cidade do Rio de Janeiro. Saúde & Sociedade. São Paulo, v.24, n.1, p.259-72, 2015. 60 em suas dependências. Na pesquisa de Marini (2013), que também abordou os transtornos alimentares, a exigência de participação nesses cursos também esteve presente e a autora afirma que ainda conseguiu contar com a compreensão das coordenadoras de que ela ainda era uma aspirante ao mestrado e conseguiu negociar o pagamento do curso, não em redução de valor, mas em facilidade para o pagamento. Em um dos serviços de saúde que visitei e fui inicialmente recebida com entusiasmo pela coordenação, o fato de afirmar que já estava fazendo um curso semelhante em outro espaço e, portanto não via a necessidade de cursá-lo novamente, foi o suficiente para deixar de ser respondida via e-mail ou atendida ao telefone. As pessoas que me receberam não possuíam a compreensão do que seja uma pesquisa etnográfica e não entendiam minha posição de observadora, bem como a necessidade da observação distinta e não concomitante à atuação como profissional de saúde. Em mais de um serviço visitado, a observação das consultas de psicologia não seria permitida, pois, segundo destacado, os usuários são muito “resistentes a iniciar e dar seguimento ao tratamento” e há um trabalho intenso para ganhar a sua confiança, o que poderia ser prejudicado pela presença de um observador. Sabemos dos limites existentes para pesquisas etnográficas em instituições de saúde (LUNA, 2007; MACEDO, 2008; MACHADO, 2008) e os cuidados necessários para se conhecer melhor a assistência ali prestada. 2.4.2 ENTRAVES RELACIONADOS À REALIZAÇÃO DE UMA ETNOGRAFIA EM UM SERVIÇO DE SAÚDE Na etnografia, é necessário um tempo para que haja familiarização com o local e as pessoas, além do convívio cotidiano e de sistematização do material empírico coletado de fontes diversas. Sabe-se que a formação de um antropólogo exige um longo tempo para treinar “um olhar para ver aquilo que não está tão aparente” (RIBEIRO, 2010, p.86, 87). Knauth (2010, p.110) ressalta o tempo exigido para a realização de uma etnografia como uma das maiores dificuldades na área da saúde coletiva. Não tenho dúvidas quanto à boa receptividade entre a equipe, mas há uma dificuldade em compreender o “modus operandi” de uma pesquisa etnográfica, que deixa os profissionais um pouco inquietos. Ao longo dos quase dois anos participei dos eventos de recepção dos residentes, das festas de final do ano, dos cafés da manhã e de um amigo-oculto. Embora fossem raros, pois a 61 rotina era bem corrida, esses momentos de descontração eram extremamente proveitosos e me permitia conhecer a equipe para além de sua atuação profissional. Durante as reuniões de equipe passei a ser consultada, nos mais diferentes aspectos fosse relativo às adolescentes, à estratégia de atendimentos ou à organização do SSA como um todo. Machado (2008) destaca que em inúmeras situações foi convocada a emitir suas opiniões. Assim, afirma que a etnografia remete, portanto, à reflexão sobre os limites entre o “observar” e o “participar”. Minha ajuda para organizar os prontuários do dia, antes da reunião se iniciar, também passou a ser solicitada, assim como a leitura de determinado caso, com um resumo das últimas consultas para que os profissionais pudessem discuti-lo. O meu auxílio passou a ser requisitado cada vez com mais frequência, entre os diferentes membros da equipe, revelando a boa receptividade quanto a minha presença. Outra dificuldade destacada por Knauth com a qual me identifico é a da inserção dos pesquisadores nas consultas das diferentes especialidades da saúde (2010, p.111). Nesse sentido, cabe destacar que em todos os serviços visitados houve um incômodo ao saber da possibilidade de observação nas consultas. Em nenhum momento me pareceu algo tranquilo, embora a observação apenas tenha sido negada para as consultas da saúde mental, pois se ressaltava que o vínculo formado com o paciente poderia ser prejudicado pela minha presença no espaço reservado do consultório (como se o vínculo não fosse necessário e também construído entre os demais clínicos e a adolescente). A presença de um estranho, o pesquisador, nem sempre é permitida e quando o é, é acompanhada de uma série de restrições que acabam por limitar e condicionar os dados a que se tem acesso. Quando a coordenadora do Programa me recebeu pela primeira vez, além de liberar minha participação5 nas reuniões de equipe, me permitiu observar a sala de espera e acompanhar as consultas da nutrição e dos clínicos. O acesso às consultas de saúde mental (psicologia e psiquiatria) foi-me vedado, pois fui informada que os profissionais dessas áreas trabalham muito para estabelecer um vínculo com as usuárias e isso poderia ser abalado pela presença de uma terceira pessoa na consulta. Essa questão apresenta algumas implicações que suscitam reflexão: os residentes de ambas as áreas ficam presentes nas consultas durante seu treinamento. Não estariam eles também influenciando a relação entre profissional de saúde e paciente? A presença dos pais das adolescentes também não interfere no estabelecimento do 5 Digo participação, pois era exatamente isso que era esperado de mim. Eu tanto lia os prontuários de atendimento do dia em algumas semanas para que os profissionais de saúde comentassem, como me era questionado se eu lembrava desse ou daquele caso, ou minha opinião sobre o atendimento. Nas ocasiões em que houve discussão entre a equipe ou entre um dos membros da equipe e alguém de fora, fui posteriormente advertida pela coordenadora por não ter me posicionado e auxiliado na discussão. 62 vínculo? Os profissionais de saúde das outras áreas não necessitam também ter um vínculo com o usuário para o êxito do tratamento? No caso desses outros profissionais, a presença de alguém de fora não seria um problema? Creio que essa questão não tenha muita relação com o vínculo em si, mas com a forma pela qual se estruturaram as disciplinas de saúde mental. A impossibilidade de acompanhar as consultas de saúde mental também estava presente em dois dos serviços que visitei anteriormente quando estava buscando um lugar para a realização da pesquisa. No trabalho de Marini (2013), a ela foi permitido apenas acompanhar as reuniões da clínica e a entrevista de triagem dos pacientes que chegavam à instituição (único momento em que tinha acesso às pacientes, embora não pudesse interagir diretamente com elas). Como na instituição onde realizou sua pesquisa havia exclusivamente atendimento psicológico, psicanalítico, ser impedida de assistir às sessões limitava em muito suas observações e as interações entre as psicanalistas e as pacientes. Assim, na pesquisa de Marini (2013), o não acesso às pacientes acabou por modificar os rumos da pesquisa. Embora inicialmente tenha deixado clara a intenção de entrevistar algumas usuárias, que seriam sugeridas pelas psicanalistas, buscando compreender as concepções, sentidos e usos do corpo pelos sujeitos com transtornos alimentares (o contato direto além do discurso psicanalítico era essencial), um evento após entrevistar apenas duas pacientes a fez não dar prosseguimento às entrevistas. Uma das psicanalistas achou que as entrevistas e a possível aproximação da etnógrafa com suas pacientes estaria atrapalhando o seu trabalho, afirmando que a “técnica antropológica” de Marini (2013, p. 27) estaria esbarrando em sua “técnica psicanalítica”, o que levou a autora a crer que a psicanalista estaria confundindo o papel de um antropólogo com o de um psicanalista, mas optou por abandonar a estratégia das entrevistas com as pacientes. Em minha pesquisa, não cheguei a ser indagada pelas psicólogas sobre o conteúdo das entrevistas, mas sabia pelas adolescentes sobre a curiosidade das profissionais com relação ao conteúdo de nossas conversas, fosse da entrevista propriamente dita, ou do que costumávamos conversar na sala de espera. Paiva e Brandão (2014) salientam que os entraves metodológicos e éticos também implicaram em modificações nos objetivos da pesquisa e no aprofundamento do olhar que dirigiam às drogarias. O processo de entrada em campo durou cerca de um ano e foi permeado 63 por questões específicas do jogo de forças existente no seio das drogarias, em função da disputa mercadológica com a concorrência. O processo de entrada no campo ganha outros contornos quando se trata de instituições de saúde. Para Menezes (2004) iniciar sua observação, foi necessária a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Nacional do Câncer, que veio acompanhada de restrições: duração de dois meses e acesso apenas às atividades de equipe, não incluindo entrevistas gravadas. Em campo, a autora percebeu que necessitava prolongar sua observação, então precisou entrar novamente com um pedido de autorização, dessa vez incluindo a autorização para gravar entrevistas com os profissionais mediante o consentimento informado. Mas a nova aprovação não foi obtida facilmente. Foi permeada por uma série de percalços burocráticos, onde a cada etapa novas exigências se apresentavam e esse trajeto levou mais de seis meses até o projeto ser finalmente aprovado (MENEZES, 2004). Luna (2007) observa que o nível de exigência entre os três serviços de saúde investigados foi diferenciado quanto à autorização para pesquisa, protocolos de consentimento informado e acesso aos pacientes. No terceiro hospital de São Paulo, assim como no caso de Menezes (2004), a autorização se deu por meio de um árduo processo burocrático. Depois de conversar com o diretor da unidade, ele a encaminhou ao CEP. Após o envio do material necessário, o comitê local remeteu um dos formulários a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde. Tal procedimento levou cinco meses e quando finalmente a autorização saiu, não havia no regulamento do hospital um “título” no qual a pesquisadora se enquadrasse, visto que não era profissional de saúde. A solução foi pedir um crachá de “visitante”, mas esse processo levou mais dois meses (LUNA, 2007). Na presente pesquisa, não houve dificuldades na recepção e autorização da direção do Serviço e nem por parte da coordenação do Programa, em razão de eu ter sido encaminhada por uma renomada médica da Universidade, no entanto, o processo de obtenção da aprovação do CEP levou cerca de sete meses (maio a dezembro de 2012). Da mesma forma, Toniol (2014) afirma que mesmo que o início da pesquisa tenha sido pautado por dificuldades relativas às exigências dos CEP aos quais o projeto foi submetido, no âmbito do Ambulatório, a aceitação da pesquisa ocorreu prontamente. A boa aceitação foi relacionada pelo autor ao próprio contexto de legitimação das terapias alternativas/complementares no SUS cujo fortalecimento está relacionado com a 64 produção de pesquisas sobre o tema. E os profissionais de saúde do Ambulatório perceberam na realização da pesquisa uma possibilidade de afirmar a validade dos tratamentos que empregavam. A presença de Toniol chegou a ser destacada pela coordenação do ambulatório como sendo a responsável por mostrar que o trabalho exercido era “científico” (TONIOL, 2014). Ao buscar sua inserção em campo, Marini (2013) temia não ser aceita, pois já havia sido recusada anteriormente, durante sua graduação, em outra instituição para transtornos alimentares. No local onde realizou seu estudo, afirma ter recebido uma recepção positiva e a autora chegou a formular algumas hipóteses como, por exemplo, a confiança no trabalho realizado; a abordagem psicanalítica poderia ser mais aberta e tolerante a olhares externos, em comparação à psiquiatria; ou ainda haveria um interesse na contribuição que as Ciências Sociais e Antropologia poderiam trazer para os transtornos alimentares, reconhecidamente ligados à dimensão social, com influência da mídia, pressão social e padrões de beleza. A autora destaca ainda que, por se tratar de uma instituição ainda recente, que buscava seu espaço, poderiam julgar interessante ter alguém que se dispusesse a pesquisá-la. No PTA algo semelhante se deu, mesmo estando inserido em uma universidade, o espaço não possuía uma vocação expressiva para pesquisa, fora um ou outro trabalho levado para congressos médicos com apresentações de casos clínicos de adolescentes. Assim, minha presença atendeu a uma dupla demanda da coordenação e equipe de saúde: condensar na figura da doutoranda a dimensão científica necessária a um Programa em ambiente universitário e, ao mesmo tempo, atribuir reconhecimento e legitimidade ao trabalho por eles desenvolvido. Ao contrário do que vivenciei em outros serviços de saúde que possuíam pesquisadores, ainda que restritos ao olhar biomédico, no PTA minha presença foi vislumbrada como um símbolo de prestígio e distinção para todos os envolvidos. Embora a recepção inicial tenha sido positiva, Menezes (2006, p.24) destaca que aos poucos os profissionais começaram a questionar o motivo das suas observações. Inicialmente minha presença era destacada nas reuniões como um diferencial na equipe, algo que eles tinham de especial: uma pesquisadora! Ao perceberem que o meu trabalho era basicamente observar e anotar, o lugar de destaque foi sendo diluído. A partir de então passei a ser constantemente questionada sobre o andamento da pesquisa, sobre quando as entrevistas seriam finalizadas, se já estava perto da pesquisa terminar, quanto tempo faltava para minha defesa. Sentia que a cada semana, a agonia pela minha presença aumentava, o que me levou a tomar a decisão pelo encerramento do campo. 65 2.4.3 ENTRAVES RELACIONADOS AO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA A regulamentação ética das pesquisas científicas no Brasil e no exterior foi fortemente influenciada pelas disciplinas biomédicas, mas são reconhecidas as disparidades entre os modos de produção de pesquisa nas áreas sociais e biomédicas, o que torna tão difícil a normatização dos procedimentos éticos partindo de uma única tradição disciplinar (SCHUCH, 2013). Em um contexto etnográfico essas dificuldades crescem, pois é preciso lidar com uma estrutura rígida que não conhece ou compreende a dinâmica de uma pesquisa antropológica. Assim, as áreas do conhecimento que trabalham com métodos qualitativos têm reivindicado respeito às suas especificidades, para que sejam considerados os dilemas éticos envolvidos nas pesquisas que se desenvolvem com bases epistemológicas diversas do campo biomédico (GUERRIERO; DALLARI, 2008; BIANCO, 2013). A exigência do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) é um dos grandes entraves, pois em uma pesquisa etnográfica onde a priori não está definido com quem se vai conversar, que situações serão observadas ou mesmo o que vai ser alvo de observação, esse modelo de consentimento está inadequado (KNAUTH, 2010; SCHUCH, 2013). Ao assistir uma consulta, não é certo ainda que aquele/a adolescente será procurado/a posteriormente para uma entrevista. Na pesquisa antropológica, o consentimento informado é compreendido como um processo de negociação a ser desenvolvido durante todo o trabalho de campo, e envolve diversos fatores que só serão revelados ao longo do estudo (TELLO, 2013). Dessa forma, Schuch (2013, p.60) nos lembra que “um dos pilares da autorrepresentação antropológica é, justamente, o respeito, valorização e compromisso com o ponto de vista dos sujeitos e/ou comunidades pesquisadas”. Assim, consentir e ser informado implica em considerar o trabalho de campo como uma situação social que excede a explicação da procedência institucional do investigador bem como dos objetivos de sua pesquisa, influenciando nos contatos éticos que serão acordados (TELLO, 2013, p.177). Na pesquisa em foco, o projeto foi encaminhado à Plataforma Brasil, para apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC/UFRJ) e, aprovado em 20 de dezembro de 2012 (CAAE: 04846312.6.0000.5286). Embora a legislação 66 atual que regulamenta as normas para a pesquisa envolvendo seres humanos seja a Resolução 466 (CNS, 2012), atendendo à Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 1996), vigente à época, foi solicitado a cada participante que nos desse sua concordância em participar do estudo, por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo 3). Além dos obstáculos a serem vencidos para realizar uma pesquisa etnográfica em uma instituição de saúde, há que se considerar as dificuldades adicionais de se lidar com sujeitos adolescentes que não são detentores plenos de sua autonomia para a tomada de decisões concernentes a sua vida e saúde. 2.4.4 ENTRAVES RELACIONADOS AOS SUJEITOS DE PESQUISA No Programa, a grande maioria das adolescentes tem menos de 16 anos de idade, portanto consideradas “vulneráveis”. Sendo assim, o CEP solicitou que os responsáveis deveriam assinar o consentimento para a participação de suas filhas. A vulnerabilidade ocorre quando os participantes têm menor poder em comparação aos pesquisadores, assim estariam sob maior risco de sofrerem danos devido a uma capacidade reduzida de proteger seus interesses. Para que isso não ocorra, os adolescentes precisam ter informação suficiente e compreensão adequada tanto da pesquisa quanto de sua participação (ROGERS; BALLANTYNE, 2008). A própria questão da adolescência dentro do campo da saúde pública tem sido abordada a partir da ótica do risco ou da vulnerabilidade, o que também se reflete nos programas e pesquisas dirigidas a este grupo social (LEITE, 2012, p. 98). Nesse sentido, cabe destacar que a maioria das adolescentes frequenta as consultas acompanhadas pelos responsáveis, os quais ocupam o lugar das filhas na interação com os profissionais de saúde. A isenção do TCLE dos responsáveis pode ser essencial nesse contexto específico em que o poder decisório desses indivíduos já está extremamente comprometido pela presença de alguma doença e/ou mal estar. Uma parcela razoável daquelas que recebem atendimento não o fazem por vontade própria, a inclusão dessa adolescente em uma pesquisa qualitativa sem que seja de seu interesse participar certamente comprometeria os dados obtidos nas entrevistas. É previsto que para um adolescente receber tratamento médico, segundo a lei, seus responsáveis devem firmar um termo de consentimento. No cotidiano dos serviços de saúde 67 frequentemente isso não ocorre, pois os espaços destinados a dar atenção especial ao adolescente precisam se valer da oportunidade de sua vinda e atendê-lo sem esta formalidade. O consentimento nesses casos deve, no entanto, incluir o diálogo entre profissional e adolescente para que o desejo deste de ser examinado ou não por ocasião da consulta seja plenamente respeitado (RUZANY, 2008). Caso a determinação da lei seja seguida, é necessário destacar ainda que, algumas vezes, o adolescente não deseja revelar informações confidenciais na presença de seus pais, gerando um impasse ético, pois é exigido que os pais autorizem que seus filhos sejam atendidos com sigilo e confidencialidade garantidos (TAQUETTE et al, 2005). No documento Saúde do Adolescente: Competências e Habilidades lançado pelo Ministério da Saúde (MS, 2008) é destacado que no caso da realização de pesquisas científicas com a população adolescente, o pesquisador deve buscar a aprovação de seu protocolo de pesquisa, nos CEP disponíveis, protegendo os sujeitos de sua investigação de possíveis danos. Mas destaca como relevante o envolvimento de um familiar na pesquisa, pois tendo acesso aos detalhes do protocolo, eles poderão decidir pelo consentimento ou não da participação do adolescente. Sobre esse aspecto, existe uma grande ambiguidade com relação ao consentimento livre e esclarecido para adolescentes. Compete ao pesquisador procurar, em cada situação, a melhor forma de conduzir seu trabalho, sem promover riscos desnecessários, e com a apresentação expressa das vantagens do estudo para melhoria da qualidade de vida ou da atenção à saúde desta população. Na adolescência, é recorrente o desencadeamento de situações conflituosas em que as normas previstas não conseguem responder com clareza às interrogações éticas. Toda pesquisa a ser realizada com menores de 18 anos necessita de consentimento por escrito de seu responsável. A obrigatoriedade deste, muitas vezes, é dificultada pela ausência dos pais ou porque o jovem não se sente à vontade ou simplesmente não deseja lhes revelar suas informações confidenciais (TAQUETTE et al, 2005). Assim, valorizamos sobremaneira que a entrevista com as portadoras de AN fosse feita sem a presença de seus responsáveis, com relativa autonomia destes sujeitos de pesquisa, e não dependessem do consentimento dos pais, que poderiam intervir no contexto de pesquisa de modo desfavorável à manifestação espontânea de suas filhas. Atendendo aos nossos argumentos, nesta pesquisa, o CEP aprovou a supressão do TCLE dos pais ou responsáveis, sendo o contato, autorização e vínculo da pesquisadora estabelecidos diretamente com as 68 adolescentes, dimensão que se revelou crucial para a aproximação, interação e imersão no universo social destas usuárias. O recrutamento para participação nas entrevistas foi feito na sala de espera, enquanto as adolescentes aguardavam o atendimento. Assim, longe da presença da equipe de saúde, evitava-se o constrangimento caso não houvesse interesse em participar da pesquisa. Por outro lado, esse convite era feito com a televisão ligada, equipe de enfermagem dando avisos ou confirmando a chegada de algum usuário, profissionais chamando para atendimento, conversas paralelas, entre outras distrações. Em relação a essa questão, buscou-se uma forma alternativa e mais factível nesse espaço da sala de espera. Para esse recrutamento, desenvolveu-se um modelo simples de convite (Anexo 4), contendo resumidamente os objetivos da pesquisa, a forma de participação na mesma e diferentes possibilidades de contato com a pesquisadora, como celular, e-mail. Nesse momento, também eram requeridos os contatos das adolescentes para posterior agendamento da entrevista, embora apenas uma entrevista tenha sido agendada por telefone, todas as outras foram agendadas pessoalmente com as adolescentes. Geralmente, combinávamos para a ocasião de seu próximo atendimento no Programa. Nesta ocasião, o TCLE era lido com calma e a decisão sobre o desejo de ser entrevistado/a podia ser tomada de forma consciente. Como determinação do CEP, a equipe de saúde do PTA assinou um termo concedendo anuência para a realização da pesquisa no local e, se comprometendo a dar apoio clínico e/ou psicológico caso a adolescente necessitasse após a realização das entrevistas. Tal recurso nunca necessitou ser utilizado. Em uma pesquisa etnográfica em que o período de permanência do pesquisador em campo e, consequentemente em contato com os sujeitos de pesquisa, é extenso, torna-se essencial considerar os vínculos estabelecidos entre a pesquisadora e os sujeitos participantes da pesquisa, que vão além de um vínculo estritamente ligado ao interesse científico (SILVA, 2011). Silva (2004) salienta que o conhecimento íntimo da experiência de um transtorno alimentar, que só pode ser alcançado por quem passa por essa experiência, só pode se tornar acessível, seja ao profissional de saúde, seja ao pesquisador, por meio do estabelecimento de uma relação de cooperação mútua. Assim, a autora pontua que priorizar o bem estar dos sujeitos de pesquisa não é apenas um imperativo ético, mas uma questão metodológica. A experiência do adoecimento de uma perturbação psiquiátrica como um TA tem um elevado potencial causador de sofrimento, o que exige do pesquisador um cuidado para compreender e 69 respeitar os limites de seus informantes, pensando em seu bem estar antes dos interesses de pesquisa (SILVA, 2011). Além de aguardar o momento mais adequado para fazer o convite e realizar a entrevista, pois havia momentos críticos no processo de adoecimento com desencadeamento de tentativas constantes de suicídio, internação, iminência da internação ou logo após a alta hospitalar, procurava deixar claro que, a qualquer momento poderiam retirar sua participação na pesquisa. Assim, como as deixei à vontade para falarem de acordo com seus limites e interromperem caso julgassem necessário, buscando que, de fato, a entrevista ocorresse como uma conversa para que de modo algum se sentissem pressionadas. A convivência com um TA é muito instável e, mesmo fazendo o convite em uma semana e agendando a entrevista para a semana seguinte, poderia acontecer da adolescente não estar bem e da entrevista dever ser reagendada. Em apenas uma das entrevistas, senti que esperar mais para sua realização seria o mais adequado, pois resgatar o início da AN e o recente período em que esteve internada foi muito doloroso, mesmo para a pesquisadora. No entanto, a adolescente insistiu em falar e chegou a agradecer posteriormente pela oportunidade concedida. Como estava gravemente adoecida e sua história de vida era desde muito cedo permeada por sofrimento e dificuldades, a adolescente vivia cercada pelos profissionais de saúde do local, mas apesar de todo o cuidado com ela, a oportunidade de falar livremente e de expressar a dor que sentia não lhe era concedida de modo rotineiro. Rogers e Ballantyne (2008) afirmam que toda pesquisa tem o potencial de causar danos e, portanto, todo participante é potencialmente vulnerável. No entanto, a vulnerabilidade em questão diz respeito às desigualdades na relação de poder entre o pesquisador e o participante. Nesse sentido, as autoras destacam que populações vulneráveis assim o são, não somente em relação aos pesquisadores e a pesquisa, mas também em outras relações e contextos sociais. Ao se apropriar da experiência do outro, o pesquisador deve estar atento para fazê-lo da forma mais responsável e ética possível, buscando abordar questões relevantes para a sua saúde. Quando é feita a opção pela não inclusão de sujeitos vulneráveis em sua investigação o pesquisador estará colaborando para a manutenção da invisibilidade dessa população, pois a participação em uma pesquisa científica deve ser compreendida como um bem social e uma experiência valiosa que não deve ser negada, mas facilitada e estimulada (VÍCTORA, 2013; ROGERS; BALLANTYNE, 2008). 70 Considerando os riscos e benefícios quanto à participação de adolescentes como voluntários no projeto em questão, cabe salientar que esses sujeitos constituem parcela importante do público que sofre de TA, sendo fundamental conhecer o seu processo de adoecimento, bem como reconstruir o percurso dos mesmos até chegarem ao serviço de saúde para tratamento. No Brasil, segundo nosso conhecimento, não há pesquisas que tenham investigado, sob a perspectiva teórico-metodológica socioantropológica, a dinâmica de funcionamento de um serviço público de saúde especializado no atendimento aos TA, buscando compreender como a AN e o tratamento dado pela equipe de saúde ao problema interfere na vida dos adolescentes que a enfrentam publicamente. 71 CAPÍTULO 3. AS ADOLESCENTES ATENDIDAS NO PROGRAMA DE TRANSTORNOS ALIMENTARES Nunca havia trabalhado com adolescentes e confesso que fiquei apreensiva quando o campo da pesquisa começou a se delinear no PTA. Talvez se tivesse a oportunidade de escolhê-las, eu não o faria. Lembro-me bem da minha adolescência, eu conversava nas aulas, não prestava atenção no que “os adultos” falavam, meu grupo de amigos e eu vivíamos fazendo bagunça no colégio, meus pais sempre recebiam reclamações nas reuniões. Eu sabia que não seria fácil conquistar as adolescentes, fazê-las confiarem em mim, me darem sua atenção e entenderem que, mesmo sendo uma total desconhecida, eu queria verdadeiramente ouvi-las e na medida do possível ajudá-las (dentro da empatia possível em uma pesquisa antropológica). Em campo, aos poucos, todos os meus medos se dissiparam. Hoje, sinto uma grande saudade, além de gratidão por cada uma delas e pelo Vinícius. Cada uma de suas histórias verdadeiramente me tocou, fui então surpreendida pelo anthopological blues (DA MATTA, 1978). Voltava pra casa, após visita ao campo, todas às quartas-feiras, já desejando que a semana passasse depressa para encontrá-las mais uma vez e saber como estavam. Compartilhar de certa forma do universo cultural mais amplo das minhas entrevistadas - ser mulher, jovem, de classe média, carioca, o gosto por músicas, filmes e seriados - me serviu como facilitador do encontro etnográfico (SILVA, 2004). Por outro lado, o trabalho de Velho (1978) lido ainda no primeiro semestre de doutorado ressoou durante todo o trabalho de campo. A necessidade de me colocar no lugar do outro para captar vivências e experiências particulares e, ao mesmo tempo, conseguir o que Velho nomeou como “um mergulho profundo”, me fez perder noites de sono sem saber se estava conseguindo alcançá-lo. O autor destaca ainda que o fato de o pesquisador estar acostumado com uma certa paisagem social onde a disposição dos atores seja familiar, não significa que ele compreenda a lógica das relações sociais desses indivíduos: “O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos, situações” (VELHO, 1978, p.45). Estar apoiada por um referencial teórico foi um fator de 72 extrema relevância para avançar com a pesquisa etnográfica e vencer minhas inseguranças e incertezas. Meu percurso em campo no trato com a equipe de saúde teve momentos de aproximação e acolhimento e de tensão, quando a permanência se estendeu ao longo do tempo e as perguntas sobre a finalização da pesquisa começaram a se avolumar. Houve uma época em que senti que deveria encerrar a pesquisa, pois não havia adolescentes novas ingressando no Programa, as que estavam em acompanhamento já haviam sido entrevistadas. Mas nunca tive qualquer dificuldade com nenhuma das adolescentes. Umas eram mais afetuosas, entusiasmadas, outras mais tímidas, mas, cada uma me fez querer continuar mesmo sabendo que já era hora de concluir a pesquisa de campo. Sarti (2010) ressalta que os estudos antropológicos que têm como objeto de estudo questões relativas ao corpo, saúde, doença e sofrimento, apresentam como diferencial a irremediável aproximação com o campo biomédico, por se tratarem de temáticas multi/interdisciplinares. Para a autora, é o olhar que cada uma dessas áreas confere a esses objetos de estudo que diferenciam seus respectivos campos de conhecimento científico. Um dos traços marcantes do contexto etnográfico em que essa pesquisa se desenvolveu é o grau relativamente elevado de medicalização das adolescentes entrevistadas e a forte influência das disciplinas de saúde na regulação de suas vidas. Assim, o uso de termos técnicos fazem parte do vocabulário dessas adolescentes, sendo adotados muitas vezes de modo re-significado e não com o sentido original em que foram cunhados (SILVA, 2004). O fato de conviverem desde muito cedo e de modo tão intenso em meio a consultas, exames, internações e diferentes tratamentos, faz com que essas adolescentes adquiram novas categorias de percepção do corpo e se apropriem do vocabulário técnico biomédico para formular a noção de pessoa tal como se reconhecem (SILVA, 2004; BOLTANSKI, 1984; MARINI, 2013). Elas aprendem a identificar aquilo que os profissionais de saúde atribuem valor, ou seja, o que pode ser considerado um sintoma legítimo, e passam a se familiarizar com esse contexto biomédico de acordo com seus meios materiais e culturais próprios (BOLTANSKI, 1984). No entanto, aquelas que detêm maior conhecimento sobre o saber biomédico e destreza para acioná-los durantes os atendimentos, são vistas como pacientes “mais difíceis” pelos profissionais de saúde do PTA, pois nem sempre o saber acumulado pelas adolescentes ao longo de sua doença é encarado como legítimo por esses profissionais (MARINI, 2013). 73 Logo que comecei o campo tinha um grande receio de não conseguir estabelecer uma relação mais próxima com minhas pesquisadas. Primeiro, porque estavam quase que o tempo todo acompanhadas de seus responsáveis, fosse na sala de espera, ou nos atendimentos onde nem havia espaço para uma tentativa maior de aproximação. Segundo, porque havia uma imagem de que elas seriam fechadas ao estabelecimento de novas relações, muitas vezes pelo fato de estarem em atendimento a contragosto. De fato, o início não foi tão fácil, mas escolhi começar as entrevistas e a aproximação na sala de espera por aquelas que percebia serem mais falantes e, aos poucos, minha presença passou mesmo a ser requisitada para conversar enquanto aguardavam atendimento, consolidando minha aceitação pelo grupo que estava acompanhando. Destaco que nunca senti ou percebi má vontade delas em falar comigo, embora pudesse sentir que em alguns dias estavam mais “cansadas” da rotina de atendimentos do que em outros e então procurava respeitar os limites para a aproximação. Em minha primeira visita ao campo, a coordenadora do Programa chegou a me confundir com uma das adolescentes e assim, passei a considerar que não apenas ela poderia me tomar como uma paciente, como as próprias adolescentes da pesquisa. O que não creio ter sido recorrente, ouvi apenas de uma das adolescentes que pensou que eu também ia ser atendida, pois sempre me via na sala de espera. No entanto, algumas delas disseram que eu era muito nova para estar no doutorado. Outra, sem saber exatamente do que se tratava perguntou o que eu ia cursar de faculdade quando terminasse a pesquisa. Então expliquei que já havia me formado na faculdade e que, após isso, tinha feito mestrado, para então chegar ao doutorado, e a reação de surpresa se manteve. Minha aparência jovial também provocou reações de identificação como: “ah! você entende né?!” dita por uma adolescente ao relatar as complexas relações sentimentais pelas quais dizia estar passando. Alguns temas próprios da juventude também eram tratados comigo sem maiores explicações ou constrangimentos. Algumas usuárias tornam-se amigas na sala de espera. Mas grande parte delas aguarda pelo atendimento sem interagir umas com as outras. Inicialmente minha relação com elas ocorria quase que exclusivamente na sala de espera, pois sempre procurei interferir minimamente quando estava observando uma consulta. As mais falantes, mais desinibidas, costumavam conversar, interagir, tirar dúvidas sobre mim e minha formação. Para estas, a presença ou não dos pais não parecia fazer diferença. As mais tímidas ficavam nervosas ao serem por mim abordadas na ausência dos pais, falavam pouco, respondiam apenas ao que 74 fora consultado e muitas vezes não me olhavam nos olhos, tão grande a postura de submissão que possuíam. Como mencionado no capítulo anterior, ao abordar as adolescentes, entregava um convite para participarem da pesquisa e explicava que tal participação consistiria em uma entrevista. Anotava seus dados (nome, telefone e e-mail) e, na maior parte dos casos, a aproximação se deu na presença dos pais. A reação destes a mim interferia diretamente no modo como a adolescente me tratava naquele momento. Às vezes, a adolescente sequer lia o convite e apenas olhava a reação do responsável. Por vezes, entregava logo o convite para o responsável e esperava a leitura para me dar atenção. Com as entrevistas e com nossos encontros pelos corredores, sala de espera e mesmo nas consultas, me tornei mais próxima. De todo modo, aquelas que tinham um perfil mais introspectivo pouco falavam. Por residir relativamente próximo ao PTA, ainda que sem querer, cruzava com algumas adolescentes na rua, no ônibus, numa pracinha do bairro, em um restaurante e mesmo dentro do meu condomínio e esses encontros eram muito interessantes, pois quase sempre elas me percebiam primeiro e vinham falar comigo, contrariando a ideia de que não estavam dispostas a estabelecer novas relações. Comigo eram falantes, felizes, talvez porque eu não as via como crianças, dependentes e controladas por uma doença, para mim eram adolescentes como tantas outras. A adolescente com quem mais me aproximei e que sabia da minha formação como nutricionista, pois havia me perguntado durante o campo, chegou a me convidar para falar sobre alimentação saudável e também sobre TA para sua turma no colégio. Essa era uma demanda de sua professora que, sabendo que a adolescente frequentava um serviço de saúde para TA, pediu que ela levasse alguém para conversar sobre o tema. Apesar de ter toda uma equipe a acompanhando há mais de um ano, o convite foi feito a mim. Esse encontro acabou não se concretizando, por questões de agenda da professora. Essa mesma adolescente ao me encontrar na rua corria ao meu encontro gritando meu nome e me abraçava. Assim, posso afirmar que mesmo após todo o temor que eu tinha de não conseguir vencer o cerceamento da equipe de saúde e dos familiares em torno dessas adolescentes, aos poucos, minha relação com elas finalmente se concretizou e pudemos ir além das poucas palavras trocadas nas cadeiras da sala de espera. Posso dizer que verdadeiramente as conheci, o tanto que elas me permitiram conhecer, assim como elas conheceram um pouco de mim. 75 Mas essa identificação me fez perder um pouco o rumo. Durante uma aula no doutorado, recebi como recomendação de uma das professoras que era importante relativizar algumas atitudes da equipe de saúde e entender que a realidade dos atendimentos é difícil e que a falta de preparo por vezes pode levá-los a cometer erros mesmo tendo o objetivo de acertar. Acho que foi um dos conselhos mais valiosos que recebi durante esse trabalho. Percebi que comecei a “tomar partido” pelas adolescentes em diferentes situações, não abertamente, mas em meu diário de campo. E isso ficava evidente quando eu falava sobre a pesquisa informalmente com alguém. Desde então passei a adotar uma postura mais flexível, tanto com os profissionais de saúde do PTA e também do SSA, como com os familiares. Talvez, sem essa modificação do olhar, ainda que no meio do caminho, eu não teria o distanciamento necessário para finalizar a etnografia, e não teria conseguido seguir em campo por tanto tempo mantendo uma relação de cordialidade e reciprocidade com todos os envolvidos. Neste capítulo, além de identificá-las, apresento algumas das experiências vividas por essas adolescentes que convivem com um TA e frequentam o serviço de saúde observado. 3.1 CONHECENDO-AS MELHOR Em sua tese de doutorado em que trabalhou com histórias de vida de mulheres com transtornos alimentares, Silva afirma que: As histórias de como os sujeitos se constituem em meio à experiência de transtorno alimentar podem revelar, portanto, elementos fundamentais dos processos contemporâneos da produção de sujeitos no seio de relações sociais atravessadas por múltiplos dispositivos de poder, e no contexto específico em que o corpo adquire especial relevância, não apenas por sua centralidade na problemática dos transtornos alimentares, como também por configurar uma interface privilegiada nos processos contemporâneos de assujeitamento (SILVA, 2011, p.7). Resgatar brevemente alguns traços de identificação social dos entrevistados nos permite compreendê-los melhor. Abaixo, há um pequeno resumo de suas histórias para que se possa apreender o contexto em que suas narrativas se desenvolveram. Como informações adicionais, na tabela 1 (Anexo 5) são apresentadas as características sociodemográficas e econômicas das adolescentes entrevistadas. Na tabela 2 (Anexo 6) são apresentadas 76 informações sobre o tratamento por elas realizado e a tabela 3 (Anexo 7) agrega as características do estado nutricional das adolescentes ao chegar ao PTA e na ocasião da entrevista. Ana Laura, 14 anos, parda, cabelos escuros alisados pouco abaixo dos ombros, cursa o oitavo ano do ensino fundamental (repetiu o último ano devido à internação e a estar muito fraca para frequentar as aulas). Mora na Praça Seca, no bairro de Jacarepaguá, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, com seus pais e avó materna. Tem um casal de irmãos mais velhos que não moram com ela, são irmãos por parte de pai e ela só os conheceu quando tinha entre 7 e 10 anos, mas não convive com eles. Chegou ao Programa de Transtornos Alimentares (PTA) em outubro de 2012, já buscando sua internação, por um encaminhamento do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), onde sua mãe trabalha. Atribui o fato de ter parado de comer e seu consequente emagrecimento a uma dor de estômago muito forte que a impede de se alimentar. Logo em sua segunda consulta já foi internada por um mês e em grande parte do tempo usou sonda para se alimentar. É bailarina, faz ballet, jazz e sapateado há sete anos, das 15:30 às 19 horas de segunda à sábado e diz que gosta muito de dançar, é o que faz para se divertir. Entrou na dança obrigada pela mãe porque tinha “uma postura muito feia” e só começou a gostar depois. A dança ocupa lugar de destaque na sua vida e, segundo a psicóloga que a atendia, ficou um tanto perdida na internação por não estar dançando. A residente de nutrição afirma que ela dançava escondida no banheiro. Personalidades citadas como tipos ideais de beleza: as cantoras Beyoncé e Cristina Aguillera. Alice, 15 anos, negra, cabelos crespos acima dos ombros. Filha única, mora com os pais no município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Veste roupa infantil para 10 anos. Convive com o problema desde os 13 anos. Está cursando o primeiro ano do ensino médio. Faz uma refeição ao dia, e mesmo assim vomita depois. Fazia de 3 a 4 horas de exercícios físicos por dia: caminhada, bicicleta, abdominais, agachamentos e levantava pesos de academia que tem em casa. Hoje em dia frequenta duas vezes por semana o ballet clássico e uma vez a dança contemporânea. Diz que a dança a tem ajudado muito a pensar em outras coisas que não seja emagrecer. Quer ser nutricionista. Está sempre acompanhada pelo pai, que abandonou o emprego para se dedicar à filha. A mãe, por ser dona da própria loja e ganhar 77 mais que o pai, continuou trabalhando e mantendo a casa. Ficou internada por três semanas e diz que foi um período horrível. É evangélica e tem uma relação forte com a religião, diz que tem medo de morrer dessa doença porque enxerga a AN como uma forma de suicídio e não quer ir para “o lugar ruim” (inferno). Personalidade citada como tipo ideal de beleza: Anahí, atriz mexicana que também tem AN e é fonte de “inspiração” para várias meninas. Bruna, 12 anos, branca, cabelos castanhos compridos e cacheados, olhos verdes. Está no oitavo ano do ensino fundamental e mora no município de Casemiro de Abreu, Região dos Lagos, no estado do Rio de Janeiro, com a mãe e a irmã mais velha. Os pais são separados e seu pai mora com a mãe dele (avó da Bruna) em Copacabana, bairro da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Ela afirma ser católica praticante e frequenta o grupo de jovens da igreja. A mãe, que é enfermeira, fala por ela na maior parte do tempo durante as consultas. Bruna faz brigadeiro duas vezes por semana e come quase tudo sozinha. Nesses dias não come mais nada o dia inteiro. Diz gostar de passar muito tempo na frente do espelho se arrumando, pensando na maquiagem que irá usar. E também de sair com os seus amigos e de ficar em casa vendo filme. Chegou ao PTA porque estava “passando por... um distúrbio alimentar...” e a tia dela conhecia alguém que trabalha no Serviço de Saúde de Adolescentes, o que facilitou obter uma vaga. Reconhece que até hoje é muito preocupada com seu peso, mas não vomita mais. Afirma mentir para seus familiares dizendo que está tudo bem e que está comendo tudo direito apenas para “disfarçar”. Em agosto de 2012 decidiu que ia emagrecer, se “sentia gorda”. Perdeu 17 kg desde então, mas não se sente bem, não se acha bonita e quer ficar mais magra. As piadinhas sobre seu peso a perseguem desde que ela era criança. Personalidades citadas como tipos ideais de beleza: o cantor Justin Bieber e Demi Lovato, cantora americana que confessou sofrer de BN e faz tratamento há anos. Ester, 13 anos, cabelos loiro natural e crespo, extremamente branca, olhos azuis. Está no sétimo ano do ensino fundamental. Mora no bairro de Vila Isabel, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, com a mãe. É filha única e não conhece o pai. A mãe é parda, muito magra e parece desnutrida. Mãe e filha são muito diferentes fisicamente e em dado momento de uma das consultas, a mãe falou sem que lhe fosse questionado que o pai da adolescente tem descendência alemã, é loiro, alto e de olhos azuis. A família é muito pobre. Ester diz não sentir fome. Não gosta de almoçar porque “tem preguiça”, embora a mãe deixe seu almoço 78 pronto antes de ir trabalhar. O que mais gosta de fazer é ver animes6 na TV TOKYO7. Passou a afirmar que está com “uma praga”. Desde então não entra mais na cozinha de casa por conta da tal praga. Também tem dito que o quarto dela tem bichos. Que a cama “fica tomada por lacraias que a mordem”. Faz corrida e salto em um projeto esportivo perto de sua casa. Chegou ao PTA encaminhada pelo Hospital do Andaraí, que a encaminhou à pediatria do ambulatório de adolescentes e de lá ela foi para o Programa. Diz que tudo começou em uma viagem que fez em 2010 de ônibus com uma tia para o Nordeste, onde passou três meses. Voltou ao Rio com 20 kg a menos. Resolveu mudar e voltar a comer quando viu uma menina na sala de espera que, segundo ela “parecia uma caveira”. Isabel, 15 anos, negra, cabelos curtos e crespos. Está cursando o primeiro ano do ensino médio e mora em Ramos, zona da Leopoldina, na cidade do Rio de Janeiro, com os pais e dois irmãos. Ela é a filha do meio, tem um irmão de 11 anos e o mais velho de 17 anos tem autismo. A mãe tem lúpus e desenvolveu uma depressão. Por conta do problema de seu irmão mais velho, quem acompanha Isabel no serviço de saúde é sempre seu pai. Quando chegou ao Programa estava já muito debilitada e foi internada direto na enfermaria de adolescentes. Num dado momento do tratamento, Isabel declarou que queria sair do atendimento. Nessa época, tornou-se uma dificuldade mantê-la, pois dizia estar ótima e que não precisava mais das consultas. Em outro momento, começou a fazer um apelo por ajuda falando que queria se suicidar. Há uma suspeita entre a equipe de saúde e sua mãe de que ela esteja sendo abusada sexualmente pelo pai de uma colega. Disse que não saberia escolher algo para mudar em seu corpo, pois teria que nascer de novo. Atualmente permanece tomando laxante, mas diz que não está mais funcionando porque seu organismo criou “anticorpos” para isso. Personalidades citadas como tipos ideais de beleza: as atrizes Angelina Jolie e Carolina Dickman e as cantoras Link Minage e Cristina Aguilera. Kamila, 18 anos, parda, cabelos escuros, medianos e lisos. Mora no município de Mesquita, na Baixada Fluminense, com seus pais e um irmão de 16 anos. Ela e a família são evangélicos. Foi reprovada no último ano do colégio por ter faltado muito em detrimento da 6 Anime é uma animação originalmente do Japão, mas não restrita somente àquela região. A palavra anime tem significados diferentes para os japoneses e para os ocidentais. Para os japoneses, anime é tudo o que seja animação, seja ele estrangeiro ou nacional. Para os ocidentais, a palavra se refere aos desenhos animados vindos do Japão (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Anime). 7 Canal Japonês que pode ser acessado pela internet e tem todo o tipo de programação, com desenhos, filmes, música, esportes, etc. Ester inclusive afirma acompanhar novelas japonesas e coreanas por esse canal. 79 doença e disse que retomaria os estudos em meados de 2013 para cursar o terceiro ano do ensino médio. Kamila tem comportamento bulímico e tem vomitado diariamente. É uma jovem que refere “uma dor, um vazio...” Diz que em seu tempo livre gosta de dormir, é o que afirma mais gostar de fazer. Desde criança a chamavam de “gordinha” e tem problemas de relacionamento com sua mãe, pois comenta que ela não a entende. Não tem muitos amigos e sim colegas. Afirma que o namorado a ajuda muito, cobra que ela coma direito, diz que ela está linda. Come uma vez ao dia e sozinha em seu quarto. Bebe bastante água e masca muito chiclete para ajudar a perder o apetite. Para ela nenhum dos tratamentos está funcionando até agora, mas acredita que a culpa seja sua, pois depende mais dela do que da equipe de saúde. Personalidades citadas como tipos ideais de beleza: a modelo brasileira Gisele Bundchen. Natasha, 16 anos, branca, cabelos bem curtos pintados de preto. Ao longo do tratamento, Natasha mudou a cor e o tamanho do cabelo algumas vezes. Está no segundo ano do ensino médio e mora no bairro da Tijuca, zona norte da cidade do Rio de Janeiro com a mãe, uma irmã de 30 anos e um irmão de 12 anos. Seus pais são separados e o pai mora sozinho. Ela chegou ao PTA no meio de 2012, pesando 33 kg, e com um derrame pericárdico devido ao seu emagrecimento extremo. O pai descobriu o Programa pela internet. Sua família tem boas condições financeiras e embora tenha sido internada no PTA apenas uma vez, já havia sido internada diversas vezes em hospitais privados por conta da AN. A adolescente demonstra devoção pelo pai e sua opinião a influencia muito. Por outro lado, tanto nas consultas observadas como na entrevista, ela fala que desde a infância sentia sua mãe ausente e, por conta disso sempre fez de tudo para chamar sua atenção. A família (o casal de pais e filha) costumava brigar muito e gritar pelos corredores do serviço de saúde e também nos consultórios, evidenciando a dificuldade de administrar seus conflitos. Na entrevista, ela afirmou já ter tentado se matar mais de 20 vezes desde os seus 12 anos. Está namorando há 7 meses e afirma que seu relacionamento é maravilhoso e que seu namorado a ajuda muito. Foi a única que gostou da internação e achou esse período positivo, pois assim obteve o reconhecimento de sua condição por seus pais. Personalidades citadas como tipos ideais de beleza: a modelo britânica Twiggy e a atriz da mesma nacionalidade Audrey Hepburn. Silvia, 16 anos, branca, cabelos crespos pintados de preto. Está no segundo ano do ensino médio, fazendo curso técnico em mecânica. Mora no bairro de Cascadura, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, com a mãe, a avó e o tio. Os pais são separados e o pai mora 80 sozinho. Chegou ao ambulatório de adolescentes porque seu pai buscou ajuda psiquiátrica para ela. Apenas depois veio para o PTA. Diz que tudo começou porque sempre teve problemas com a mãe e chegou a entrar em depressão. Parou de comer, só chorava por dias, não conseguia sair de casa e ficou sem ir à escola. Apesar de morar com a mãe, relata que elas brigam muito. Vive passando “uns tempos” com o pai. Na casa do pai ela diz se alimentar melhor. Comenta que na casa da mãe come-se muita fritura e que sua mãe faz sempre bolos, não respeitando o fato que ela tem compulsão alimentar, precisando se controlar. Culpa sua mãe pela ansiedade que sente, a qual a leva a ter compulsões. Silvia tem também uma devoção pelo pai. Já tentou se matar, mas o que faz com muita frequência é se cortar (automutilação), com qualquer coisa que esteja por perto, desde clips, anel, brinco, régua até gilette e tesoura. Recentemente tem evitado se ferir porque prometeu ao pai parar de fazê-lo. Diz que é lésbica, mas no momento está ficando com um menino e acha que está gostando dele. Suas amigas a chamam de “lésbica encubada”, porque ela não sabe o que quer. Personalidade citada como tipo ideal de beleza: a cantora canadense Avril Lavigne. Tatiana, 16 anos, branca, cabelos lisos castanhos de tamanho médio e olhos verdes. Teve um osteosarcoma (é o segundo tipo mais recorrente de câncer ósseo, sendo muito comum em crianças e adolescentes) aos 10/11 anos e por conta disso uma de suas pernas foi amputada. Está no segundo ano do ensino médio, e mora no Itanhangá, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, com a mãe e duas irmãs mais novas (de 2 e 10 anos). Possui ainda uma irmã mais velha de 20 anos que não mora mais com a família pois foi expulsa pela mãe por ter orientação homossexual. Há algum tempo o pai faleceu e ela desenvolveu AN. Sua mãe verbaliza claramente que ela atrapalha sua vida e não a visitava durante sua internação. A maior parte do tempo, ela ficava sozinha e se queixava de solidão. Naquela ocasião, ela fazia uso de muitos medicamentos prescritos tanto pela clínica quanto pela psiquiatria. Ela se queixa de fortes dores fantasmas (que sente no membro amputado que não existe mais). Diz ouvir vozes e não tem vontade de comer. Reclama do abandono da mãe, passou a buscar constantemente a presença da residente da psicologia que a acompanha. Costuma dormir para “se divertir” e afirma dormir quase 12 horas por dia. Personalidade citada como tipo ideal de beleza: a atriz brasileira Grazi Massafera. 81 Vinícius, 12 anos, branco, cabelos pretos e curtos. É introspectivo e tímido a princípio. Está no oitavo ano e mora no bairro do Tauá, Ilha do Governador, Rio de Janeiro, com a madrinha, a prima, o namorado da prima, uma tia e a bisavó. Os pais são separados, seu pai mora com os avós do adolescente e sua mãe mora com o atual esposo, o filho dele, a mãe do esposo, a mãe dela e os filhos pequenos do atual casamento. Ele cresceu numa casa cheia de adultos e idosos e dormia na mesma cama que a bisavó (hoje dorme num sofá). Acha os alimentos nojentos. A madrinha diz que ele está se tornando um “mercenário”, que quer dinheiro em troca de tentar se alimentar. Ela também expressa que ele só quer ir à missa se ganhar algo em troca. Ela assinala suas barganhas, mas diz não ceder e que seus filhos nunca fizeram isso. Vinícius afirma ter muitos amigos no colégio, mas só convive com eles na escola. Não conhece outras pessoas da sua idade perto de casa e nem em outro lugar que não seja o colégio. Sua madrinha não o deixa sair de casa. As únicas coisas que faz para se divertir é ouvir músicas e ficar no computador o dia todo, mesmo nos finais de semana. Personalidades citadas como tipos ideais de beleza: as cantoras americanas Lady Gaga e Lana Del Rey e a cantora inglesa Marina, do grupo Marina and the Diamonds. Yasmin, 17 anos, parda, cabelos na altura dos ombros, lisos e pintados de vermelho. Está no segundo ano do ensino médio, mora na cidade de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, com os pais e é filha única. É evangélica. É bulímica e sempre conviveu com a obesidade. Diz ser acompanhada por médicos por conta do peso desde a infância. Afirma que seu problema maior é a ansiedade e usar “a comida como válvula de escape”. Com o tempo, veio a compulsão alimentar e com isso a obesidade. Para compensar, vomitava e ficava sem comer, tinha hipoglicemia e passava mal com frequência. Mas hoje se considera mais madura para lidar com essa questão e tenta ao máximo estipular metas possíveis no tratamento para não se frustrar. Diz que sua mãe foi quem mais a ajudou nesse tempo todo, mas hoje em dia ela tem deixado Yasmin se guiar por conta própria e ela até tem ido sozinha aos atendimentos. Contou que tem tido problemas com os pais ultimamente, principalmente por conta do namorado. Diz que estão juntos há seis meses e que ele a apoia no tratamento, mas querem casar e seus pais não concordam. Personalidade citada como tipo ideal de beleza: a cantora americana Beyoncé. 82 3.2 O INÍCIO DO TRANSTORNO ALIMENTAR: COMO TUDO COMEÇOU... Os motivos para o desencadeamento de um TA ainda não estão estabelecidos, mas a hipótese mais aceita é a da multicausalidade, em que fatores biológicos, psicológicos e socioculturais atuariam para a gênese desses fenômenos. Mesmo assim, ainda é comum a crença na existência de um certo “grupo de risco” (formado por adolescentes e jovens do sexo feminino, brancas, com nível socioeconômico elevado), embora essa discussão envolva cada vez mais divergências (DARMON, 2006; BORDO, 1993; GONZAGA; WEINBERG, 2005), que podem ser confirmadas pelo grupo de adolescentes que encontrei em um espaço voltado para o tratamento dos TA. Aceitar a existência de fatores “predisponentes” significa que, em parte, a adolescente não teria como lutar contra o desencadeamento desses TA. Da mesma forma, se considerarmos a influência da cultura e daquilo que é socialmente valorizado como algo inconscientemente introjetado, é difícil pensar em ações voluntárias conscientes. Nos grupos pró-ana e pró-mia, estudados por Silva (2004) em sua dissertação, há também divergências sobre o livre arbítrio dos sujeitos em relação aos TA. Apesar das divergências sobre a volição dos sujeitos na trajetória da doença – se a AN é socialmente construída como uma identidade em busca de reconhecimento social ou se há predisposições que ultrapassam a capacidade do sujeito de reagir à doença - é fascinante como cada uma das histórias das entrevistadas é singular. Embora, muitas vezes, os indivíduos com TA possam ser todos tomados por um grupo homogêneo, com questões pré-definidas e bem delineadas, suas motivações para se abster dos alimentos são extremamente distintas. Pode ser algo aparentemente simples, como uma dor de estômago que levou Ana Laura a parar de comer e ficar sem forças sequer para andar, necessitando de cadeira de rodas. Há comentários maldosos sobre o excesso de peso recebidos, muitas vezes, ainda na infância ou início da adolescência, ditos por familiares e amigos, como no caso de Bruna, Yasmin e Kamila. Há também “uma dor”, “um vazio”, “uma depressão”, que pode ter tido início com uma briga com a mãe, como no caso de Silvia, ou um sentimento de ausência materna que sempre existiu, como na história de Natasha, ou mesmo a adolescente afirmar que sempre foi “triste”, sem conseguir nomear o motivo, como Isabel e Kamila. 83 Alice é um exemplo emblemático do que poderia ser chamado de influência da mídia no desenvolvimento dos TA. Afirma ter desejado emagrecer após se tornar “muito fã mesmo” de uma atriz e cantora mexicana, integrante da novela voltada ao público jovem, que ficou mundialmente famosa, chamada “Rebeldes”, exibida e atualmente sendo reexibida pelo canal SBT. A atriz em questão assumiu publicamente lutar há anos contra a AN, revelando o sofrimento envolvido nesse processo. Mesmo assim, é comum que ela sirva de “inspiração” para adolescentes em busca do “corpo perfeito”, sua imagem é amplamente disseminada em sites e blogs pró-anorexia. Eu queria ficar com um corpo igual o dela... Eu achava o corpo dela lindo e queria ficar com um corpo igual o dela, aí eu comecei a restringir coisas, comer bem pouco e depois eu parei de comer. (Alice, 15 anos) Por meio da aquisição do corpo desejado, construímos também a nossa identidade, assim, a aparência e a essência se confundem, como revela o desejo de Alice, que visual e fisicamente em nada parecia à atriz que tanto desejava imitar. Para a adolescente, transformar, remodelar e cuidar de seu corpo passou a ser um dos espaços mais importantes de realização pessoal (GIDDENS, 2002) e para isso dedicava grande parte de sua vida. Além de um consumo abusivo de laxantes, das cerca de sete vezes em que se pesava por dia na farmácia perto de sua casa e da única refeição que fazia por dia, ela ainda se exercitava por 3 ou 4 horas diariamente, restando pouco espaço em seu dia para qualquer outra atividade. Ester revela em narrativa com algumas incertezas o seu emagrecimento inicial. Afirma ter viajado por três meses com uma tia para conhecer a família no Nordeste e nessa viagem, teve dificuldade para se alimentar nos locais onde o ônibus parava, achava as comidas “pesadas”. Em casa de seus parentes, não foi diferente, considerou a comida “forte”. Diz que comia, enjoava e vomitava, mesmo sem querer. Mas começou a colocar o dedo na garganta para vomitar “tudo de uma vez” e com isso retornou ao Rio de Janeiro 20 quilos mais magra. Viu um programa sobre modelos na televisão e se identificou. Depois daquilo [da viagem para o Nordeste] aí eu vi que eu tava emagrecendo, aí eu vi um negócio [um programa no canal Record sobre a vida das modelos], aí eu achei aquilo, alguma coisa bonita. Agora eu não acho mais! Você achou bonito o que? Emagrecer?: (Respondeu afirmativamente com a cabeça) E aí você começou a forçar o vômito pra emagrecer?: (Respondeu afirmativamente com a cabeça). (Ester, 13 anos) Na época da entrevista, Ester contou que já havia recuperado o peso perdido e que não desejava mais emagrecer, pois viu uma das adolescentes do PTA na sala de espera e achou que ela parecia “uma caveira”, achou “horrível” tal fisionomia, decidiu voltar a comer. Não 84 sei de que adolescente ela falava mas, pouco tempo depois da entrevista, soube pela psicóloga que ela havia parado de comer novamente. A mãe de Ester era empregada doméstica, antes de ir para o trabalho deixava a refeição da filha arrumada, apenas para ela esquentar e comer quando voltasse do colégio, mas a adolescente dizia “ter preguiça” e ficava o dia todo sem se alimentar. A história de Vinícius também começou em uma viagem, quando ele tinha apenas três anos, segundo o que contam a ele. Sua madrinha, quem o cria no momento, também contou a mesma história na consulta. Nessa viagem, uma amiga da mãe levou as filhas gêmeas e as crianças não comiam quase nada. Vinícius passou a imitá-las e não consegue se alimentar “direito” desde então. A história revela episódios difusos e o adolescente parece não aguentar mais falar sobre ela: Já me disseram que isso começou depois de uma viagem pra Marataízes [Espírito Santo] quando eu tinha três anos... E eu não lembro de nada, não lembro nem da viagem. Eu tinha três anos! (Vinícius, 12 anos) O caso de Vinícius se enquadra em uma condição conhecida como TANE (transtorno alimentar não especificado), não se trata de AN, muito menos de BN. O adolescente tem baixo peso e estatura para a idade, come apenas quatro tipos de alimentos no almoço e no jantar todos os dias (arroz branco, inhame e a proteína é sempre processada, variando entre Nuggets e hambúrguer). Não come frutas, nem verduras, de legume apenas o inhame. Não consegue beber água, apenas se colocar açúcar, pois afirma que a água tem gosto amargo. Toddynho®, iogurte e refrigerante são ingeridos em excesso ao longo do dia. Afirma ter nojo dos alimentos e não gosta do sabor de fritura. Diz já ter se esforçado muitas vezes para comer, e vomitou sempre que tentou algo novo. Que já o deixaram um dia inteiro sem sua comida habitual para que ele experimentasse o que estavam oferecendo e, mesmo assim passou o dia inteiro sem comer e sem beber nada. Bruna, assim como outro adolescente homem que conheci no Programa, mas não o entrevistei, contaram como os comentários das pessoas próximas podem ser decisivos para o desencadeamento do TA. O adolescente a que me refiro, parou de comer depois de ter ganhado uma bermuda no natal e o presente ter ficado apertado, o que gerou comentários de alguns familiares de que ele estava “gordinho”. Para Bruna, os comentários a acompanhavam desde a infância: Antes, eu era muito mais gorda do que eu sou agora. Muito gordinha mesmo, eu era igual a um botijão de gás, e na minha escola sempre ficavam me zuando, falando 85 que eu tava gordinha. Até as pessoas da minha família ficavam falando que eu tava gorda. E eu não gostava, eu ficava chateada com isso... Até que um dia eu coloquei na minha cabeça que ninguém mais ia falar isso de mim, que eu ia mudar e aí as pessoas iam parar de falar. Aí eu comecei a fazer umas coisas erradas. Eu não comia, quando eu comia, eu fazia vômito. Erhhh... Pra não engordar! (Bruna, 12 anos) Essa falta de sensibilidade/cuidado, aliada às “brincadeiras” feitas por pessoas próximas em relação ao peso e a forma corporal, foram citadas algumas vezes ao longo do trabalho de campo e podem ser a primeira “fonte de sofrimento”, anterior ainda ao desenvolvimento do TA (MARINI, 2013). Isabel afirma que certa vez no parque da praça perto de sua casa, o balanço arrebentou enquanto ela estava usando e seus amigos e amigas começaram a chamá-la de “elefante”. Obviamente, o balanço da pracinha devia estar sem manutenção há anos e se não fosse com ela, teria arrebentado com qualquer outra criança ou adolescente que o estivesse usando, mas ela conta como ficou magoada com essa situação. Ela narra que o início de seu processo de adoecimento foi com uma depressão: Ah, foi quando eu fiquei muito triste, eu fiquei com depressão. Aí eu olhei no espelho e falei: ‘Caraca, eu to uma bola, tenho que emagrecer!’ Aí eu perdi o controle, né?! Eu comecei a ficar sem comer, eu cheguei a ficar até cinco dias sem comer, só bebendo água... E você não sentia fome?: Sentia mas eu controlava e isso assim virou costume. Às vezes assim, eu pegava, chegava da escola e não comia nada porque já estava acostumada. Aquilo de fazer e eu nem me ligava. E aquilo ali eu fui perdendo peso aí cheguei nos... 30 quilos. (Isabel, 15 anos) Kamila também foi alvo de comentários sobre seu peso e seu corpo, e diz que sempre deu muito valor à opinião dos outros, por isso esses comentários a magoaram tanto. Mas há outras questões em sua compreensão sobre o desencadeamento de seu sofrimento: Mas acho que foram várias coisinhas sabe? Tipo, desde pequena me chamavam de... Falavam que eu era gordinha, sabe? Eu sempre me importei muito com o que as pessoas diziam, dizem... Meus pais também brigavam muito... Acho que essas coisinhas levaram a isso!/ Quando você era criança você se achava gordinha?: Não, eu era normal, mas eu ficava chateada com isso, eu não gostava/ Como é que foi o início?: Eu comecei a vomitar primeiro... E eu tomava (risos)... Vinagre pra vomitar. Qualquer horário do dia. (Kamila, 18 anos) Aquelas que foram “gordinhas” durante a infância e início da adolescência permanecem carregando consigo o estigma (Goffman, 1988) moral da gordura mesmo quando esta não existe mais. A gordura assume a marca distintiva de uma falha de caráter, que é visível em qualquer lugar que se vá e o emagrecimento não liberta as adolescentes desse fantasma que se torna uma característica considerada intrínseca à personalidade (Silva, 2011). 86 Lupton (1996) aponta para uma resignificação dos corpos nas sociedades ocidentais, onde de um lado estaria o corpo "civilizado", aquele que é auto-contido, disciplinado e está em conformidade com as normas dominantes de comportamento e aparência. Em oposição estaria o corpo "grotesco" que é incontido, indisciplinado e menos controlado por noções de decoro e boas maneiras. A distinção entre esses corpos privilegia a concretização de uma exibição externa, e está diretamente ligada à aparência. De acordo com a autora: “A ênfase atual sobre o auto-conhecimento e o auto-controle é um resultado da sensibilidade moderna para maneiras e formas de comportamento na esfera social” (LUPTON, 1996, p.19). A ideia de estar fora dos padrões corporais socialmente desejados em uma fase da vida em que a aceitação dos pares é central, torna-se inaceitável, ainda que não se esteja acima do peso de acordo com os padrões de avaliação biomédicos. É a avaliação social que ganha relevância. A mãe de uma adolescente de quinze anos que não chegou a aderir ao acompanhamento no PTA contou logo na primeira consulta que a filha parou de comer após a avó materna afirmar que ela estava bonita e magra, e que deveria tentar a carreira de modelo. Nesse caso, não houve crítica ou comentário negativo, mas o incentivo da avó para uma possível carreira levou a adolescente a se comparar com as modelos que via na televisão, o que a fez crer que estava “gorda”, necessitando perder alguns quilos para se adequar ao padrão do mercado da moda. A mãe conta inclusive que negociou com a filha sua inscrição em um curso de modelo, caso ela voltasse a se alimentar, mas a proposta não surtiu efeito. O exemplo dessa adolescente, embora houvesse a intenção de ingressar na carreira de modelo, ainda não parecia ser algo grave. Ela era muito alta para a idade, o que reforçava sua magreza e, além disso, sua dieta era extremamente restrita, mas nada diferente da alimentação de muitos adolescentes de sua idade, que ao saírem da infância e experimentarem um pouco de liberdade para escolher aquilo que desejam comer, optam por cortar de suas refeições todo o tipo de frutas, legumes e verduras, que comiam anteriormente “obrigados” pelos pais. A predileção dos adolescentes por fast-foods e a rejeição ainda que temporária de alimentos saudáveis parece ser usual. Mesmo entre adolescentes gravemente adoecidas pela AN, por vezes a única refeição que fazem ao dia para depois vomitar é um alimento extremamente calórico, como o açaí com coxinha para Alice, o brigadeiro (com uma lata de leite condensado inteira) semanal de Bruna e o hambúrguer na barraquinha da esquina de casa de Isabel. Controlar a ingestão de alimentos envolve força de vontade sobre o corpo, a mente e as emoções, que se torna extrema no caso de pessoas diagnosticadas com transtornos 87 alimentares. No entanto, esse auto-controle é uma característica da relação da maioria das pessoas com os alimentos, em maior ou menor grau. Entre os adolescentes, na maioria dos casos, com o tempo, o paladar tende a se ajustar e encontra-se um meio termo. No caso da adolescente citada, como ela não mais compareceu ao serviço de saúde, não sabemos se houve evolução para um TA ou não. As questões familiares também estão presentes na história de Natasha, que afirma ser muito exigente consigo mesma desde a infância, buscando a perfeição para conseguir o amor e a atenção de sua mãe. Contudo, o emagrecimento, a princípio, não trouxe a atenção desejada, mas despertou outros sentimentos. A adolescente conta que sempre lutou com o peso, entre o excesso de peso, fruto dos constantes episódios de compulsão alimentar, e a normalidade, quando conseguia fazer dieta e voltar ao peso habitual. Mas perder peso tornouse mais uma de suas obsessões, despertando o prazer e a satisfação. Assim, as questões com a mãe tornaram-se secundárias. Natasha, mais do que qualquer outra adolescente entrevistada, explicita como faz uso de seu corpo como um instrumento (MAUSS, 1974), utilizando-o desde muito cedo para lidar com tristezas, ansiedades e frustrações: Eu tenho uma mania de... lidar com as minhas tristezas no corpo, eu coloco tudo no corpo. E com 11 anos eu comecei a comer compulsivamente. E no final dos 11 pros 12 eu comecei a querer emagrecer, só que eu não levava muito a sério... Emagrecia um pouco, engordava um pouquinho... Mas eu nunca fui gorda não, sempre fui o meu normal, mas sempre queria ser mais magra. Eu sempre tive uma... exigência muito forte com o corpo. Desde pequena eu sempre quis ser perfeita, digamos assim, em todos os sentidos, em escola, com notas... Com tudo! E aí com uns 13, 14 anos eu comecei a querer parar de comer, a fazer dieta, a caminhar... Depois que eu comecei a caminhar eu tinha momentos de compulsão, de vômito, mas eu... Comia. Aí teve uma época que eu comia, mas eu caminhava daí então eu mantinha. E depois eu parei de comer e caminhei até não aguentar mais caminhar... Nesse vai não vai eu comecei a perder peso, emagreci muito, muito, muito, em um ano eu perdi mais de 20 quilos, menos de 1 ano na verdade, uns 6 meses. E nisso, eu já tava no peso normal então eu já..., eu fiquei com 33 quilos, sei lá e foi com muita dificuldade por que... Por que... Meus pais não levavam muito a sério porque é uma coisa difícil de entender mesmo. (Natasha, 16 anos) Uma forte exigência pessoal também está presente no relato de Yasmin, que lida com o excesso de peso desde a infância, evoluiu para episódios de compulsão alimentar e depois bulimia: Antes eu sempre fui compulsiva, ansiosa ao extremo! Desde criança eu tinha a comida assim... Como uma válvula de escape, sabe? (risos) Uma terapia alimentar... Que não deu certo, de forma nenhuma! Assim, eu sempre gostei de comer, eu gosto até hoje! Só que antes eu não tinha maturidade suficiente pra... ‘ah, eu to gorda, eu tenho que fechar a boca, senão eu vou... Me estragar toda!’ Foi o que aconteceu, eu precisei estragar o meu corpo, ficar com estria, excesso de gordura localizada... 88 Celulite eu não tenho muito não! Minha genética, em relação a isso, graças a Deus é boa... Mas as estrias (risos) em compensação!... (Yasmin, 17 anos) Yasmin avalia seu corpo como “estragado”, e hoje, afirma estar mais madura para buscar reaver o corpo desgastado após anos com tentativas frustradas de emagrecimento, seguidas de recaídas com períodos de ganho excessivo de peso. Seus relatos datam desde os seus sete anos de idade e hoje com quase 18 anos, consegue avaliar sua evolução nessa “luta”. Houve momentos em que desistiu, quis viver uma vida sem consultas médicas, mas diz que seu corpo sofreu as consequências dessa decisão. Yasmin permanece com sobrepeso, mas afirma ter parado de vomitar e, sempre que tem compulsão alimentar consegue chegar ao serviço de saúde e falar sobre isso. Antes, geralmente mentia sobre o assunto. Silvia não relaciona o início de seu adoecimento com o TA, mas sim com a depressão e os problemas com a mãe. É extremamente articulada para falar e seus relatos são recheados de detalhes e datas. Ela faz questão de datar quase todos os acontecimentos que narra: Quando eu tinha 13 anos eu fiquei um ano sem ver a minha mãe e... Eu sempre, sempre tive problema com a minha mãe, desde pequena. Nesse um ano, eu fui procurar a minha mãe, porque ela não veio atrás... Eu passei 2009 todo morando com meu pai, aí em 2010 eu lembro até a data, por que assim, marcou muito, eu não consegui esquecer. Dia 02 de março, foi uma terça-feira e eu ia ter prova no inglês. No dia 05, o professor de inglês me deu uma bronca do nada e, sabe quando você tenta ler uma coisa e você não consegue entender? Aí eu fiquei sem entender nada e eu comecei a chorar. Fiquei chorando, chorando e fui pra casa chorando e sozinha. Meu pai tava trabalhando e, eu pensei que tinha fechado a porta de casa, eu não fechei. Eu só fiquei chorando, eu não conseguia fazer nada. E eu fui perdendo peso, eu acho que eu tava pesando 42 ou 44... E você tem uma ideia de por que você ficou assim?: ... (pausa longa) Eu acho que também pelo problema de relacionamento com a minha mãe. Isso influenciou muito, agora, ideia, ideia mesmo eu não tenho. E, eu cheguei, porque eu vi que eu tava precisando e, eu não queria ir pra escola, eu não queria fazer nada. Eu só queria ficar em casa chorando e, nessa época que eu ainda não tinha atendimento, eu virava a noite (chorando)! (Silvia, 16 anos) Tatiana declara claramente que parou de comer porque se achava gorda, foi a mais direta em sua explicação. Mas conta os momentos que foram emblemáticos para a percepção de que algo havia fugido do controle: Se considerou doente em algum momento desde que você começou a emagrecer?: Uma vez sim… O que aconteceu nesse dia?: Foi um dia que todo mundo comeu pizza, menos eu… (ficou com a voz triste ao falar sobre isso). A gente saiu pra Parmê [pizzaria] e todo mundo comeu pizza, menos eu porque eu não queria engordar... Também teve uma vez que eu não quis comer bala... E eu gosto muito, mas não queria engordar… (Tatiana, 16 anos) 89 A residente da psicologia por quem Tatiana se afeiçoou, explicou que sempre há algo que funciona como desencadeamento do problema. Para ela, no caso dessa adolescente, quatro perdas importantes contribuíram para o início da AN, embora Tatiana não as relacione diretamente à doença. Ela perdeu uma perna aos 11 anos de idade em decorrência de um câncer em 2007, perdeu o pai também com câncer há menos de um ano, “perdeu” a irmã mais velha e melhor amiga que no dia do velório do pai foi expulsa de casa pela mãe por ter orientação homossexual e foi morar com a companheira. E ainda “perdeu” a própria mãe que entrou em depressão, por ter que sustentar a casa sozinha, viúva, com três filhas ainda dependentes dela (Tatiana tem duas irmãs mais novas, uma de dez anos e outra de apenas dois anos). Sua mãe dizia inclusive que Tatiana “atrapalhava” sua vida. Mesmo sendo tão nova, a adolescente passou por muito sofrimento e a dedicação à restrição alimentar e à perda de peso a ajudavam a não pensar nos eventos tristes de sua vida. Quando não estava estudando ou buscando maneiras de emagrecer, Tatiana estava dormindo. Quando questionada o que costumava fazer para se divertir, ela respondeu “dormir”. Para ela, uma adolescente de 16 anos, dormir era o que fazia de mais divertido. Em seu cotidiano emagrecer representa uma conquista, em meio a tantos dissabores que a realidade lhe apresenta. Seu esforço para silenciar o grande incômodo que é a fome representa um ato heroico, como afirma Santos (2008, p.169), nessa batalha que é travada no próprio corpo. Esse esforço para se manter o máximo de tempo com o “estômago vazio” é possível por meio do sono. Passar grande parte do dia dormindo é uma estratégia relatada por algumas adolescentes, que além de salientarem a falta de interesse em outras atividades que as mantenham acordadas, fazem do sono um artifício para seguirem com o emagrecimento. Como já destacado, os comentários públicos sobre a forma e o peso corporais podem servir como “incentivo” para o início de dietas restritivas, exercícios extenuantes, uso de laxantes e diuréticos e do vômito como tentativa de emagrecimento. Não se trata de atribuir responsabilidade ou culpa aos familiares e amigos, mas sim entender aquilo que as adolescentes nomeiam como o início da insatisfação com o peso e a forma corporal. Também não se pode demonizar a mídia pela divulgação de dietas e práticas alimentares que podem ser usados de forma radical, mas de pensar sobre como há uma valorização exacerbada da magreza a qual é relacionada com satisfação pessoal e felicidade em oposição à lipofobia (FISCHLER, 1995) nas sociedades contemporâneas. Fenômeno para o qual a mídia corrobora (MARINI, 2013). 90 Nem sempre o desejo de emagrecer e a vontade de ter um corpo magro e esguio estão entre as razões para que elas estejam em acompanhamento no PTA. Isso não parece estar claro para elas, que nem sempre conseguem explicar ou entender porque estão naquele serviço de saúde, além do fato de que foram levadas por seus responsáveis. Alguns elementos inerentes à fase de vida em que se encontram, tais como conflitos familiares com os pais, perdas afetivas, busca do amor dos pais, da aceitação no grupo de pares, críticas sociais sobre o peso, circulação na família 8 (FONSECA, 2006), dentre outros, podem gerar muito sofrimento ao longo da infância e adolescência. Tais eventos terminam por se associar a praticas alimentares e hábitos de vida (caminhar, dançar e malhar em excesso) que comprometem a saúde destas adolescentes, sem que elas tenham a dimensão de toda complexidade desse processo. Mesmo estando em um serviço de saúde e em tratamento para TA, com a consequente medicalização de seus comportamentos e a comunicação de um diagnóstico, a nomeação de uma patologia reconhecida no campo biomédico, essas etapas não são apreendidas de modo automático, e pode levar algum tempo até que elas tenham a dimensão sobre o que representa seu adoecimento, mesmo que não concordem com a concepção fornecida. Assim, algumas entrevistas poderiam ter acontecido perfeitamente sem que as palavras AN, BN ou mesmo TA fossem por elas citadas. 3.3 O PERCURSO NA BUSCA DE TRATAMENTO ATÉ O PROGRAMA DE TRANSTORNOS ALIMENTARES Buscar resgatar o percurso trilhado pela adolescente e sua família até o PTA, por meio das entrevistas, não foi uma tarefa fácil e, em alguns casos, frustrante, embora tal dificuldade tenha evidenciado um traço recorrente na relação entre adultos e adolescentes. O não reconhecimento de sua condição de sujeito capaz de discernir a respeito da própria vida fez com que essas adolescentes tenham sido levadas pelos familiares de um lugar ao outro sem que lhes fossem dadas maiores informações ou esclarecimentos. Por outro lado, por não se tratar de uma demanda pessoal, tendo em vista que elas não se consideravam doentes (elas não haviam explicitado que queriam ajuda), embora diga respeito a sua vida, seu corpo e sua 8 Vinícius ainda na infância foi doado pela mãe a outra família, mas sua mãe adotiva veio a falecer e ele foi repassado a uma tia da família de sua mãe. Essa pessoa ainda o entregou para a madrinha, com quem Vinícius vive até hoje. No entanto, o adolescente destaca que nunca perdeu contato com seus pais biológicos e é comum passar com eles os finais de semana. Ora com a nova família de sua mãe, ora com seu pai e seus avós paternos. 91 saúde, a adolescente não reteve o trajeto percorrido à sua revelia, porque muitas vezes nem desejava estar no PTA, ou em qualquer outro serviço onde tenha passado anteriormente. A chegada ao Programa geralmente ocorre na companhia da mãe, embora durante os atendimentos seguintes Isabel e Alice estivessem sempre com o pai. Silvia, além da mãe e do pai, que se revezavam, às vezes ia acompanhada pela avó materna. Natasha quase sempre contava com a presença do pai e da mãe. Vinícius sempre ia com a madrinha, quem cuida dele e com quem ele mora. Yasmin era a única que ia sozinha, pois dizia que seus pais já haviamna acompanhado muito e agora era a hora dela “caminhar com as próprias pernas”. Por não serem as protagonistas dessa busca por atendimento em saúde, os caminhos percorridos até o SSA nesta universidade pública revelou-se com lacunas e situações desconexas. É o caso de Ana Laura, que antes de chegar ao PTA, recorria durante a madrugada, quando estava com muita dor de estômago ou fraqueza, à emergência do posto de saúde perto de sua casa, onde recebia soro. Ao tentar explicar sua chegada, sente-se confusa: “É porque eu comecei a... Ficar emagrecendo, parar de comer, aí a minha mãe conhece uma moça que trabalha com um negócio que... Que... Que tinha alguma coisa aqui, que ela conhece aqui... Aí ela só me indicou aqui aí ela (a mãe) me trouxe pra cá.” (Ana Laura, 14 anos) Comumente, diziam não saber o que aconteceu anteriormente àquele serviço, assim como não saber por que estavam em atendimento naquele local, talvez por não se sentirem implicadas nessa busca por ajuda, pois não se tratava de uma demanda pessoal. Vinícius diz estar lá porque o levaram, sem saber explicar a respeito: Não sei (como chegou ao PTA)... Mas você passou por outros atendimentos antes?: É, eu.... Vou numa psicóloga. Há quanto tempo?: Não sei dizer ao certo. Desde que eu vou na psicóloga deve ter uns 5 anos... Você sabe se foi ela que te encaminhou pra cá?: Não sei… Porque você começou o atendimento com essa psicóloga?: Também ninguém me disse... Levaram e você foi?: É... Aqui a mesma coisa! (Vinícius, 12 anos) Na adolescência atravessa-se um período de busca de autonomia, onde é comum se questionar a autoridade, seja médica ou familiar, ignorando as limitações impostas por seu problema de saúde. Esta postura pode levar a atitudes de negação da doença e não adesão ao tratamento (GROSSMAN et al, 2008), o que já são características comuns aos portadores de AN. Durante a adolescência a imagem corporal é extremamente importante, se houver o entendimento por parte da adolescente de que o tratamento ou os medicamentos utilizados podem levá-las a uma imagem corporal insatisfatória, é muito difícil que se consiga a 92 aderência à proposta terapêutica com consequente retardo do tratamento e possível agravamento da doença (GROSSMAN et al, 2008). No caso de Vinícius, como não é consultado ou envolvido nas decisões sobre seu tratamento de saúde, o adolescente também não se sente estimulado a seguir as recomendações dos profissionais que o atendem. Entra nas consultas, assenta na cadeira, ouve o que lhe dizem, responde o que lhe perguntam e depois vai pra casa, sem que aquele contato tenha alterado sua relação com a sua rotina diária. Parece ser uma estratégia (adotada não apenas por ele, mas partilhada com outras entrevistadas) desenvolvida para não entrar em conflito com os pais ou responsáveis e com a equipe de saúde. Ao invés de resistir, se recusar a ir às consultas ou algo nesse sentido, ele não discute, apenas deixa-se levar sem se implicar com o tratamento. No caso de Silvia, embora não tenha sido uma decisão sua buscar ajuda, afirma ter aceitado de bom grado quando o pai sugeriu que ela fosse acompanhada por uma psiquiatra, que a ajudaria com as questões mal resolvidas com a mãe. Nesse caso, o TA não foi o motivo alegado para a busca por atendimento e sim sua depressão. A adolescente começou a ser atendida pela psiquiatra do Serviço de Adolescentes, que também atuava no PTA e, depois de algum tempo, quando desenvolveu o TA, passou a ser atendida pelos profissionais de saúde do Programa: “E meu pai vendo que eu ficava acordada virando noite ele procurou atendimento e procurou uma psiquiatra, ele falou com a médica (psiquiatra do PTA) e eu, vendo que estava precisando, eu aceitei na hora.” (Silvia, 16 anos) Quem também chegou ao PTA por intermédio da busca do pai foi Natasha que, em razão do TA já havia sido internada em clínicas privadas, recebia acompanhamento psicológico, mas afirma que começou a melhorar no Programa, e sempre se mostrou colaborativa nas consultas, pois afirmava querer melhorar: No período que eu viajei (para visitar a família do pai em Buenos Aires), meu pai aproveitou pra procurar um lugar e aqui não tinha vaga... Você não viajou com ele?: Fui com meu irmão. E aí meu pai conversou... Chamou a minha mãe... Meu tio lá de Buenos Aires falou com a minha mãe que o caso era sério, que se ela não colaborasse... Que ela não podia fechar os olhos. Porque a minha mãe sempre foi muito desleixada. Ela nunca foi muito perceptiva. E aí nesse período, o meu pai solicitou à psicóloga do PTA, , implorou, mostrou o meu caso, insistiu e... Acabou cedendo a vaga pra cá... E... Eu sempre tive uma coisa desde o início que era querer muito melhorar. Eu sempre quis muito, muito, muito... Muito! Tanto é que, em Buenos Aires, eu comia só uma vez por dia e comecei a comer quatro de novo! Pra mim era um absurdo de muito, mas eu pensava ‘não posso fazer nada, tenho que comer’... Você sabe como seu pai chegou aqui até o serviço?: Sei... Cara, deixa eu 93 lembrar... Meu pai pesquisou lugares aqui no Rio, provavelmente na internet. (Natasha, 16 anos) A mãe de Tatiana também descobriu o PTA pela internet, mas usou de um recurso disponível para não correr o risco de ter o atendimento à filha negado por ausência de vagas: Foi encaminhamento do INCA. Tive câncer, em 2007. Aí você veio direto pra cá?: Não, eu só vim esse ano. Então sua mãe voltou a procurar o INCA esse ano, aí te mandaram pra cá?: Isso. Porque sua mãe foi procurar o INCA?: Porque eu tava muito magra… (...) É que ela queria um encaminhamento pra anorexia. Ela já sabia que tinha esse serviço?: Aham! Como ela descobriu?: Internet... (...) Informaram pra ela que com o encaminhamento era mais fácil... (Tatiana, 16 anos) Em razão da não prevalência do direito universal de atenção à saúde, os responsáveis acabam por encontrar estratégias alternativas e acionar a rede de contatos pessoais com outros profissionais de saúde e solicitação de encaminhamentos, buscando cumprir requisitos que garantissem a vaga e provável acolhimento dos filhos no serviço de saúde. Além de Tatiana, muitas outras chegaram também por encaminhamentos de outros serviços de saúde, como Ester e Isabel. No caso de Ester, o início da busca por atendimento partiu de sua mãe: Eu fui mandada do [hospital] Andaraí pra cá. Porque eu tava passando mal. Aí eles disseram que não era com eles e me mandaram aqui pra... Pra aquela coisa de criança (pediatria do Serviço de Adolescentes). Aí daquela coisa de criança eu vim pra cá. Mas porque você começou a ir pro [hospital] Andaraí?: Não, era por causa de, coisa de enjoo... Só que aí eles (profissionais de saúde do Hospital do Andaraí) falaram, que era alguma coisa de... Bulimia, um negócio assim. Por que eu tava muito magrinha. E você estava enjoando com o que?: Não... Oh, é que eu tava, muito magrinha. Isso aqui meu (pulso) tava bem, bem... Fininho. Tudo que eu comia, eu jogava pra fora. Eu não aguentava no meu estômago. Foi sua mãe que procurou atendimento ou foi alguém do colégio que falou?: Foi minha mãe! (Ester, 13 anos) Já com Isabel, foi uma professora das aulas de circo que ela frequentava quem primeiro identificou que havia algo errado e recomendou que os pais da adolescente buscassem ajuda: É que eu, que eu cheguei até aqui adoentada, magrinha aí eles... Eu tava mais magrinha, muito magrinha... Aí eles me encaminharam pra internação, aí depois quando eu saí de lá da enfermaria, aí eu comecei a fazer tratamento aqui no ambulatório. (...) Ah, [antes] eu tava sendo atendida num postinho perto da minha casa. (...) Eu fazia circo, numa ONG, é no Afroreggae, aí quando eu fiquei adoentada eles procuraram um hospital, eu primeiro fui até no Hospital Geral de Bonsucesso, aí lá não tinha vaga, aí fiquei no postinho... Aí depooois (com ênfase), eu recebi um papel pra vir pra cá, um encaminhamento. (Isabel, 15 anos) 94 Esse encaminhamento pode vir também de um único profissional de saúde que estava acompanhando a adolescente, como ocorreu com Alice e Kamila. Com Alice, o percurso que se iniciou com uma busca da mãe, contou com alguns profissionais e sucessivos encaminhamentos até chegar ao PTA: Ah, eu não sei... É por que a minha mãe, ela me levou num outro médico aí, aí ela... Ai, (risos sem graça) não sei... A minha mãe queria saber o que eu tinha... Aí esse médico mandou minha mãe pra cá. Não... É... Primeiro minha mãe me levou num gastro, aí lá ele falou que tinha anorexia nervosa. Aí depois ela me levou num outro, aí ele falou umas outras coisas lá, e ele quis se consultar comigo depois, mas... Ele tinha botado um, ele tinha me mandado tomar um remédio, sendo que não podia, no caso, tinha que ser um psiquiatra pra passar... Depois eu fui num outro que me encaminhou pra cá... (Alice, 15 anos) A adolescente não sabe nomear as especialidades dos médicos pelos quais passou, nem mesmo porque ela, ou no caso, a mãe, decidiu parar sua busca e seguir o tratamento no PTA. Kamila chegou ao PTA com o encaminhamento de uma psicóloga que já a acompanhava há anos, mas que, segundo a adolescente não estava funcionando mais: Ah eu, antes de vir pra cá eu me tratava com uma psicóloga amiga do meu pai. Aí, depois eu vim pra cá, ela me deu encaminhamento, (porque) minha mãe descobriu aqui, aí me trouxe... (Kamila, 18 anos) Bruna também passou pelo hospital de sua cidade, mas foi o conhecimento de uma pessoa da família que a levou ao PTA. A adolescente se esforça para tentar reconstruir os eventos que antecederam sua chegada ao Programa: Eu tava passando por... Um distúrbio alimentar... E aí eu, tive que parar no hospital. Aí minha mãe nem desconfiava... Minha mãe já sabia o que estava acontecendo comigo, só que ela não sabia que era tão grave. Aí eu tinha até brigado com a minha mãe nesse dia, eu tava reclamando que eu tava com muita dor nesse dia, aí ela tava achando que era mentira minha. Mas como a gente tinha brigado, pra não ficar com a consciência pesada ela disse, ‘então vamos lá no hospital’. Aí quando chegou no hospital eu não lembro, eu tava na sala de espera, aí quando eu acordei eu já tava na cama cheia de... Eu não sei, tava na sala de espera. Aí depois a minha mãe... Aí me deram um troço pra dormir... Sei lá, uma injeção eu acho. É porque eu tinha passado mal, aí lá eles falaram que tava com uma infecção, num negócio lá que eu não sei o que é e que todos os meus índices estavam baixíssimos... Minha tia conhece uma moça que trabalha aqui, aí ela conseguiu uma vaga pra eu ser atendida. Porque aí todo mundo da família já sabia o que tava acontecendo... (Bruna, 12 anos) Yasmin, por todo o seu histórico com a questão de seu peso corporal e também por ser um pouco mais velha, foi a que melhor conseguiu resgatar o caminho percorrido: 95 Oh, desde que eu me entendo por gente eu sou acompanhada por médico por conta dessa questão do peso. Primeiro foi na Santa Casa de Misericórdia, eu fiquei um tempão lá com uma equipe. Eu era novinha, devia ter uns 7 ou 8 anos... Ou até antes, eu era bem novinha! Isso é mesmo desde que eu me entendo por gente... Aí depois eu quis chutar o balde, porque eu sempre fazia... E lá é um centro universitário, é cheio de estudante e eu... Fiquei saturada da exposição! Porque eu entrava numa sala, tinha que ficar pelada, todo mundo olhava minha periquita: ‘ah, vamos contar os pelinhos dela?’ Era muito constrangedor, aí eu quis parar com isso! (risos). Aí eu saí de lá e fiquei assim, com endocrinologistas e nutricionistas particulares, pelo plano de saúde. Fui a várias, com diversas especializações, diversos métodos e etc e tal... Até que eu fui na doutora que coordena... Não sei se ela ainda coordena aqui... Aí ela foi e me indicou pra cá! Aí eu comecei e to aqui até agora! (risos). (Yasmin, 17 anos) A exposição da qual Yasmin se queixa, também estava presente entre as adolescentes do PTA. Eu mesma me sentia constrangida em presenciar os exames físicos das consultas dos clínicos, embora não houvesse nudez total da adolescente, a exposição e manipulação do corpo magro e quase sem forças me causava um terrível incômodo. Por vezes as partes mais emagrecidas, onde os ossos ressaltavam de forma mais proeminente, eram fotografadas e depois comentadas entre a equipe. Os próprios residentes sentiam dificuldade (SOUZAMUÑOZ et al, 2011) com esses momentos e ficavam escondendo-se uns atrás dos outros para não serem os escolhidos para realizar o exame. Cabe destacar que na maioria das vezes fui convidada a aguardar a finalização do exame físico no corredor junto com os demais residentes, deixando apenas o encarregado de realizar o exame junto com a médica. Algumas adolescentes negavam-se a se despir, outras abaixavam a cabeça e pareciam torcer para que tudo acabasse logo. Nos momentos que presenciei, mesmo entre as adolescentes mais desinibidas, o constrangimento era evidente e a alegria que carregavam parecia se apagar por alguns minutos. Em se tratando de uma doença em que o corpo é o elemento central e que, suas portadoras tentam a todo custo escondê-lo, esse momento de serem expostas a olhares estranhos, a cada vez com pessoas diferentes, e terem aquilo do que mais se envergonham colocado à amostra tem um poder muito grande e é causador de um grande incômodo. Caberia pensar em privilegiar o conforto dessas adolescentes. Mesmo sabendo que é um espaço de aprendizagem dos conhecimentos biomédicos e que tal etapa é parte integrante da consulta, a paciente não deveria sentir-se obrigada a algo que não deseja ou deveria ao menos ser consultada sobre a melhor forma de se fazer, para que mais uma vez não se reforce o sentimento de punição ao frequentar o tratamento. 96 Uma vez acolhidas em um serviço público de saúde, um diagnóstico começa a ser atribuído a essas adolescentes. Se, em alguns casos, enfrentar um atendimento de saúde contra a vontade é difícil, aceitar o diagnóstico dado neste espaço, que passa a acompanhá-las onde quer que estejam, torna-se ainda mais problemático. 3.4 O PESO DO DIAGNÓSTICO RECEBIDO Neste trabalho há um entendimento de que os TA envolvem dor física, nem sempre compreendida ou mesmo considerada e dor psíquica, por vezes minimizada em detrimento de um comportamento momentâneo atribuído à etapa da vida em que se encontram (DUARTE, 1994). A necessidade de um diagnóstico reside no fato de que estão inseridas em um serviço de saúde que se orienta por padrões biomédicos, no caso, por critérios diagnósticos psiquiátricos para organizar e direcionar seu trabalho. Embora, como será abordado mais adiante, o PTA não restrinja a oferta do tratamento apenas às adolescentes com diagnóstico preciso de TA. Cabe destacar que nos manuais diagnósticos a AN e a BN são TA distintos, mas na prática as similaridades entre eles podem confundir os profissionais de saúde, ocasionando um diagnóstico errôneo que a adolescente ainda assim passa a carregar consigo (MARINI, 2013). Ao receberem um diagnóstico, o TA passa a não mais ficar escondido, ele é reconhecido não apenas no serviço de saúde, mas em todos os círculos sociais dessa adolescente. A partir daí, esconder os sintomas não é mais tão fácil, pois todos ao redor tornam-se seus vigias, resta-lhes o isolamento e os momentos de lazer e confraternização tornam-se períodos de solidão. A intromissão de diferentes pessoas buscando ajudá-las é destacada por elas como um dos maiores infortúnios. Ester afirma esconder-se no banheiro da escola para que não seja obrigada a almoçar pelo diretor do colégio e professoras. Algumas adolescentes reclamam das professoras que as colocam no centro das atenções perante a turma para falar de seu adoecimento gerando constrangimento, dos familiares buscando dar conselhos sobre a importância da alimentação para o desenvolvimento saudável, das amigas e amigos próximos que acabam acompanhando de perto a rotina de “perversões” alimentares e as ameaçam de denunciá-las aos seus pais ou 97 professores. Assim, as dificuldades de se sofrer um TA multiplicam-se quando ele se torna de domínio público. Durante o trabalho de campo, apenas dois adolescentes do sexo masculino estavam em acompanhamento regular, um deles, Vinícius, foi entrevistado, o outro, Gabriel, não quis participar da entrevista, embora tenha aceitado bem minha presença durante as consultas que assisti. No dia em que o convidei havia esquecido meu estojo de lápis em casa e estava com uma caneta emprestada. A caneta era lilás e o adolescente se negou veementemente a preencher seus dados com caneta daquela cor. Exigiu uma caneta azul ou preta, então sugeri que ele me falasse e eu mesma anotaria seus contatos, só assim ele aceitou. Para tal adolescente, o diagnóstico de AN, doença reconhecidamente mais presente entre mulheres e homossexuais (CARLAT et al, 1997; ANDERSEN, 1999; ANDERSEN; HOLMAN, 1997), o deixava ainda mais confuso e angustiado. Sua sexualidade parecia estar sob suspeita e atrelada ao diagnóstico de AN, o que era agravado pelo seu atraso no desenvolvimento dos caracteres sexuais. Gabriel tinha 13 anos, mas sua voz ainda era fina, não haviam lhe crescido os pêlos próprios da transição do corpo de criança para o de adolescente. Sua pela era branca, lisa, sem qualquer sinal de acne. Mas o que mais lhe incomodava é que ele permanecia pequeno, enquanto os primos mais ou menos da mesma idade já eram grandes e desenvolvidos. No PTA ele era considerado um adolescente infantil, “chato” e, para uma das profissionais de saúde que o atendia, “meio viado”. Como não costumava aceitar a imagem que a equipe me passava dos adolescentes, fui conversar com ele mesmo sabendo que seria uma abordagem mais difícil. Para mim, Gabriel era um adolescente muito ansioso. Durante suas consultas ficava inquieto o tempo todo, como se algo o incomodasse constantemente. Por vezes levantava da cadeira para andar pela sala e certa vez ficou desenhando bonecos no quadro de avisos da nutricionista enquanto respondia as questões que lhe eram direcionadas. Ao contrário da visão da equipe sobre sua infantilidade, creio que Gabriel buscava meios de sobreviver com toda a responsabilidade que tinha que assumir com tão pouca idade. Sua mãe ainda jovem desistiu de um casamento semanas antes do evento, pouco depois foi estuprada pelo pai de Gabriel, o qual foi assassinado na frente dela quando o adolescente tinha apenas dois anos. Desde essa época, a mãe faz acompanhamento psiquiátrico e parece não ter conseguido se reestabelecer do trauma vivido. Segundo a equipe do PTA, a mãe do adolescente foi diagnosticada com esquizofrenia. 98 Sempre moraram com os avós maternos, mas quem assume os cuidados com a saúde de mãe e filho é seu tio, irmão de sua mãe, que é casado e tem dois filhos com os quais Gabriel se compara constantemente. O tio geralmente os acompanha nas consultas, arca com o colégio e os medicamentos de Gabriel e vive em conflito com sua esposa que não compreende essa ajuda desmedida com a irmã e o sobrinho, por vezes deixando os próprios filhos em segundo plano. Sarti (2011), assim como Fonseca (1987), destacam a importância do papel do “irmão da mãe”, que passa a ocupar o lugar da autoridade masculina, um substituto do marido, mediando a relação da mulher com o mundo externo, garantindo a respeitabilidade de seus familiares, especialmente quando o pai da mulher já não tem mais idade para cumprir esse papel. Com a morte de sua avó, Gabriel e a mãe permaneceram na casa com o avô. Recentemente se mudaram para o andar de cima da casa do avô, buscando ter mais independência, o que segundo o tio seria bom para ambos. Mas Gabriel só piorou com essa mudança. É um excelente aluno no colégio, faz as tarefas domésticas, cuida dos gastos financeiros, ou seja, ele assume precocemente, e tem cada vez mais noção disso, as responsabilidades de um adulto, na falta do pai e da mãe. Contrastivamente aos comentários no serviço, infantilidade não parece ser o problema desse adolescente, muito ao contrário. Ao final do trabalho de campo, parecia menos preocupado com a questão da alimentação, perguntando menos sobre como perder peso e até chegou a engordar um pouquinho, por outro lado a angústia por exteriorizar o homem que ele já era dentro de casa, assumindo tantas responsabilidades só aumentava. Assim, compreensivelmente, procurava negar e afastar de si tudo o que o tornasse mais frágil ou menos masculino, inclusive o diagnóstico de AN. O diagnóstico é fundamental para os profissionais de saúde, pois permite o planejamento de todo o tratamento. É por meio dele também que uma nova situação social se estabelece, onde o doente é reconhecido pelos conhecimentos médicos, que são amplamente aceitos e então redefine sua identidade social. O estabelecimento de um diagnóstico torna-se uma etapa do processo de cuidado, onde profissionais de saúde e pacientes buscam um consenso sobre a causa da doença. Em se tratando de doenças crônicas, a concordância sobre o diagnóstico pode se tornar um processo demorado, e o paciente deve participar ativamente auxiliando o médico na definição deste (BASZANGER, 1986). No caso dos TA, em que há uma dificuldade em se aceitar o diagnóstico recebido, é incomum o médico contar com o auxílio do paciente nessa “etapa do processo da doença” (BASZANGER, p.14, 1986). Em se tratando de adolescentes com AN e BN, quem faz a mediação fornecendo as informações 99 necessárias e auxiliando a equipe de saúde a formular hipóteses diagnósticas são os familiares, que estão intimamente imbricados no processo de adoecimento de seus filhos. No serviço observado, na maioria das vezes o diagnóstico recebido não era aceito pelos adolescentes, simplesmente pelo fato de não se perceberem doentes. Nas entrevistas, ao questionar o que tinham, algumas me comunicavam o diagnóstico “oficial” recebido no Programa ou em algum serviço de saúde anterior, mas, ao refazer a pergunta sobre o que elas/ele achavam que tinham, a resposta mudava. Ana Laura (14 anos) demonstra como o diagnóstico fornecido no serviço de saúde não foi por ela incorporado: Eles (profissionais de saúde) falaram que eu tinha anorexia nervosa. Ah, quando eu soube disso eu já fui logo internada! É, na segunda consulta eu internei. Ao nomear que “eles falaram” ao invés de dizer “eu tenho”, a adolescente expressa sua dificuldade em aceitar tal diagnóstico dado pela equipe, não o assumindo para si. Isabel (15 anos) segue o mesmo caminho, mas deixa claro que não concorda com diagnóstico recebido: Ah, o pessoal fala que é transtorno alimentar e anorexia. (...) Não... é só um desejo de ficar magra. É só uma coisa assim... Pra gente ficar magrinha, sabe? Com o corpo bonito. Tatiana é direta sobre o diagnóstico recebido: Mas você concorda que tem anorexia?: Não concordo! (...) Ninguém nunca te explicou?: Falou que é quando a pessoa se recusa a comer… Só isso. Você já procurou saber em livros ou na internet? Não. O que você acha que tem?: Nada! Só não gosto de comer... (Tatiana, 16 anos) Vinícius reproduz algo que ouve nos consultórios e em sua família desde a infância e a ausência de uma explicação formal de um profissional de saúde, dirigida ao adolescente, seja no PTA ou em algum serviço de saúde anterior, também se revelaram comuns, contribuindo para a não aceitação de algo que eles sequer compreendiam o que era. Muitas vezes as adolescentes não têm clareza desse diagnóstico, e como nem sempre recebem uma explicação esclarecedora sobre a questão, quando a recebem, se mostram um tanto confusas. Natasha tem a sua versão de seu problema, mas ao ser questionada sobre o diagnóstico do PTA, o assume mesmo confessando que sofreu muito ao descobrir que tinha 100 AN. Mais uma vez resgata a falta de apoio inicial de seus pais como um adicional em seu sofrimento e angústia: Olha, eu acho que eu tenho um quadro depressivo muito forte e isso acaba desencadeando outras coisas. Eu também já desencadeei TOC, claro que no corpo... É que eu tenho mania de fazer tudo no corpo e... É isso! Eu acho que eu tenho depressão e isso desencadeia outras coisas! Quando você chegou aqui recebeu algum diagnóstico?: Anorexia Nervosa. Como você recebeu essa notícia?: Ah eu já sabia! Pra você não era, ou você já achava que tinha?: Já, eu já sabia que tinha. Assim, no começo eu chorava muito porque as pessoas me falavam que eu tinha e eu ainda não acreditava... Eu nem era muito magra, eu era normal, mas as pessoas, os meus amigos à minha volta já notavam que eu tinha dificuldade com comida né?! Eles me falavam “você tem problema” e eu “cara, não tenho!” Mas não demorou muito não, com uns 5 meses eu já sabia que eu tinha. Eu sabia que eu tava mal, eu sabia que eu tinha anorexia nervosa. E você descobriu como?: Na internet, com a psicóloga, ela me dava livros sobre isso, a gente falava sobre isso, mas meus pais não aceitavam! (Natasha, 16 anos) A presença das adolescentes no serviço as torna objeto de atenção médica, sendo muitas vezes observadas e examinadas, sem que lhes seja dada a oportunidade de falarem por si mesmas. Parece haver um entendimento de que por vezes os pacientes são tratados como objetos e assumidos como seres passivos, alvo de constantes intervenções, o que no caso de adolescentes sofrendo de TA (onde se acredita que as pessoas que sofrem dessas condições perdem o discernimento sobre o que seria bom ou ruim para sua saúde) parece ser uma postura assumida em quase todos os atendimentos por onde passam. Mol (2008) chama a atenção para o quão danosa essa postura dos profissionais de saúde pode ser, e salienta a importância de que os pacientes sejam ouvidos e respeitados como sujeitos que têm o direito de fazer as escolhas centrais sobre suas vidas. Mas a autora também chama a atenção para os casos em que os pacientes tornam-se incapazes de fazer escolhas e tomar decisões devido à gravidade do adoecimento, no entanto, o direito a escolha deve ser avaliado individualmente, pois nem toda a doença retira do paciente sua capacidade de decisão, e mesmo assim, há casos em que o paciente torna-se apenas temporariamente incapaz de decidir, mas com a melhora do quadro pode ser continuamente estimulado a participar das decisões de seu tratamento. O ponto a ser retido é que o fato de alguns casos justificarem uma postura mais diretiva dos profissionais de saúde, não deve ser motivo para negar a possibilidade de escolha a todos os pacientes (MOL, 2008). Não se reconhecer doentes e a elas ser imposto um diagnóstico não contextualizado em seu universo socio-afetivo mais amplo, que as deixa confusas sem que se explique detidamente do que se trata, as faz buscar entender por conta própria o que estão falando a 101 respeito de seu “problema”. Elas se assustam com o que descobrem sobre a AN ou BN, sentem medo de ficar como as adolescentes das imagens que veem nos sites, blogs e reportagens sobre os TA, sem ter com quem falar sobre seus sentimentos sem serem julgadas. Embora queiram estar cada vez mais magras, a magreza vista nas outras adolescentes parece deixá-las assustadas e confusas, pois sabem que o quadro pode levar à morte e com a distorção da imagem corporal não conseguem saber como realmente estão. Chega a ser difícil qualificar e mesmo quantificar os conflitos que envolvem essas adolescentes e o quão penoso é para elas digerir tudo isso. A tristeza, a angustia, o medo da morte, as dores estomacais, os episódios de compulsão, de purgação, de restrição, as alterações de peso, os conflitos familiares, as doenças de entes familiares, a falta de alternativas de sociabilidade que as apoiem em uma fase de transição da infância para a adolescência na qual estão se construindo como pessoas separadas da família de origem também pesam muito. São muitas imposições e exigências a pessoas que precisam de apoio, afeto, carinho, atenção e cuidado, o que nem sempre encontram em suas breves trajetórias de vida, e tentam à sua maneira lidar com esse emaranhado de sentimentos e problemas. Ainda assim, espera-se que essas adolescentes compareçam dispostas e entusiasmadas para os atendimentos e mais do que isso, espera-se que elas melhorem! 3.5 VIVENDO COM UM TRANSTORNO ALIMENTAR: “JÁ SOFRI MUITO POR CAUSA DA COMIDA” A aproximação à temática dos transtornos alimentares na adolescência implica em se deparar com uma realidade de dor e sofrimento nem sempre relacionada a uma fase tão precoce da vida. A AN e a BN, assim como outras doenças crônicas, evocam intensas emoções, em quem as sofre e em seu ciclo social, assim como em quem as trata, pois estão diretamente relacionadas à vida e também à morte. Por um lado, os TA estão intimamente ligados à alimentação (ou ausência dela), combustível necessário à vida, por outro se convive cotidianamente com a morte, dor e sofrimento (MIRANDA, 2007, p.126). A experiência social da doença e do sofrimento alteram o nosso modo de estar no mundo (BALLESTAS, 2013). Mas em se tratando de adolescentes que querem descobrir qual é o seu lugar no mundo, essa experiência pode acarretar outros desdobramentos. Le Breton (2012) compara o sofrimento adolescente com um abismo, que não se compara ao sofrimento 102 de um adulto que acumulou um saber que o leva a relativizar as dificuldades, sabendo que o tempo atenuará sua intensidade. Na adolescência, vive-se o sofrimento de modo intenso e as reações a ele são sem meias-medidas e sem recuos. O autor destaca que os adultos geralmente minimizam o sofrimento adolescente, por exemplo, classificando como “fúteis” os “motivos” que levam a uma tentativa de suicídio. Tal postura configura um adulto-centrismo, que seria uma falha na compreensão da subjetividade do jovem (LE BRETON, 2007). Tentar captar a “experiência da doença” implica em compreender os meios pelos quais essas adolescentes têm respondido ao desenvolvimento dos TA, por vezes (re)produzindo os conhecimentos biomédicos recém inseridos em seu universo sociocultural. Assim, o entendimento dos TA não deve ser reduzido a um estado de sofrimento, mas sim à realidade social em que vivem (ALVES, 1993). Mesmo que o sofrimento seja essencial à experiência humana, deve-se evitar a naturalização ou sentimentalização dessa vivência. Não há uma única maneira de sofrer, assim cada indivíduo sofrerá a seu modo, mesmo passando pelas mesmas experiências (KLEINMAN; KLEINMAN, 1996). Por mais que haja um esforço daqueles que as cercam, apenas as adolescentes, cada uma em sua individualidade, saberá o que é viver com um TA. Não é por acaso que alguns grupos pró-anorexia e pró-bulimia se referem a esses TA como ANA e MIA, respectivamente, como se fossem pessoas, uma amiga na verdade, que as ajuda e está sempre por perto quando as coisas parecem difíceis. Tatiana, de 16 anos, conta que ter AN é “Ruim, muita pressão em cima de mim… Todo mundo fica me mandando comer, comer, comer… Ninguém liga pro que eu to sentindo”, mas mesmo se sentindo abandonada por aqueles que ama, a AN nunca a deixa sozinha. A preocupação constante com o peso, com o que comer, quando comer, em que quantidade, quando será a próxima refeição, são algumas das indagações que estão presentes 24 horas por dia. Yasmin conta que passou tanto tempo dos seus dezessete anos se preocupando com o peso que essa preocupação a bloqueou: Cara... é dificílimo! É um saco! Porque assim, isso já passou pra um estágio mais psicológico sabe? É que eu fiquei tanto tempo com isso de “tenho que emagrecer, tenho que emagrecer” que a minha mente parece que criou um bloqueio que eu não consigo de jeito nenhum... Não sei explicar, o negócio não funciona, parece que trava, eu fiquei traumatizada com a exposição toda. Mas agora é mais psicológico do que tudo, entendeu? É uma coisa muito engraçada... (Yasmin, 17 anos) 103 Ter um TA é um exercício diário e, Natasha, que já passou por alguns momentos de melhora, seguidos por outros onde acredita ter ficado pior, conta sua experiência: Eu me boicotava sabe?! Não era uma coisa... Era uma coisa que tipo, “ah vou comer mais no almoço”, mas o meu comer mais era uma colher a mais de tomate, tipo “eu vou comer mais uma colher de tomate”. Aí eu achava que comia certo, mas depois eu ficava nervosa “não! tenho que compensar”, aí na janta eu não comia... Ou não comia tanto, comia menos... Aí eu dormia com a consciência tranquila e antes de dormir eu contava todas as calorias... Era uma coisa que... Hoje em dia ainda é difícil porque eu ainda sou neurótica com isso. Aí ano passado eu fui internada, aí eu consegui recuperar o peso, só que nisso como meu metabolismo tava muito desacelerado eu comecei a comer muito compulsivamente porque eu tava nervosa, aí eu engordei muito. Uns 13 quilos, e eu comecei a comer muito, muito, muito e eu não conseguia para de comer e isso começou a me incomodar... E eu comecei a emagrecer de novo. Até que eu to aqui agora, mas assim, eu choro todo dia, passo o dia contando as coisas... Você ainda não consegue comer normalmente?: Não, eu como normal, mas eu não como nada que não esteja na dieta... (Natasha, 16 anos) As sensações que envolvem o comer e a comida são fundamentais para a subjetividade do indivíduo e seu senso de distinção dos outros. A partilha dos alimentos é uma parte vital de redes de parentesco e de amizade em todas as sociedades. Assim, a alimentação e os momentos das refeições são parte importante da nossa sociabilidade (LUPTON, 1996, p.37), mas para essas adolescentes esses passam a ser momentos de angústia, nervosismo, medo, frustração. Durante os anos de colégio lembro que o horário do recreio era extremamente divertido, conversar, fazer brincadeiras e comer, é claro, fazem parte das minhas lembranças. Mas e quando não se consegue comer na frente dos outros? Em alguns anos, tudo o que Natasha e outras entrevistadas provavelmente se lembrarão é de estarem fugindo e se escondendo dos olhares dos professores, coordenadores, diretores e especialmente dos colegas. Natasha tornou-se prisioneira de sua “dieta”, nada além é permitido, seus padrões para o que é aceitável ou não, tornam-se cada vez mais restritos, mas ainda assim avalia que está muito melhor do que em outras épocas quando sequer comia. Viver assim para ela é estar saudável, sente-se distante dos momentos em que ficava dias sem comer, mas quando se permite algum “deslize”, o arrependimento aparece e a vontade de restringir mais a alimentação o acompanha. Algumas das adolescentes entrevistadas falam de viver com um TA como se fosse uma “montanha-russa”: querer ser magra, querer ser mais magra, perceber que emagreceu muito, tentar comer um pouco melhor, se achar gorda porque engordou um pouquinho, voltar a querer ser muito magra. Isabel, de quinze anos, retrata: 104 Assim, eu sou assim, engordo, emagreço, engordo, emagreço, um ioiô (risos). Alice, que permanecia extremamente adoecida, se julgava bem melhor do que em outros momentos, fazendo um balanço de como é conviver com a AN: Bom... A pior parte é que o tempo todo eu me acho gorda. Eu não posso ver ninguém magro que eu já fico... Maluca! Aí, sei lá... Eu faço muito exercício. Às vezes eu fico sem comer, às vezes eu vomito... Almoçar mesmo nunca foi muito minha praia não. Desde pequena, minha mãe fazia comida né?! Daí botava comida pra mim, aí eu não queria comer... Essas coisas. Mas nunca fui tão radical não (risos). Mesmo se não mudou (o peso)... Eu já fico maluca, tipo assim, ai daqui a pouco vai aumentar, e não sei o que. Aí eu acabo vomitando. Como é que está a sua alimentação agora? Eu tenho tido umas recaídas, eu tenho vomitado às vezes, então eu não to tão bem como eu deveria, mas em comparação ao começo, tá bem melhor. (Alice, 15 anos) Alice não estava melhor e permanecia querendo ter o peso que chegou ao serviço de saúde, ainda vomitava e tomava laxantes. Ela não tinha se dado conta que, em pouco tempo, é provável que ficasse magra como desejava, mas novamente correria risco de vida e teria que ser internada, onde engordaria e em pouco tempo receberia alta, já desejando perder o peso duramente obtido nesse período. Nos relatos de Yasmin sobre a trajetória nada linear com seu peso corporal, mais uma vez o nível elevado de exigência pessoal, compartilhado por muitas delas aparece: Até que eu cheguei numa idade, eu to com 17 agora, que eu decidi que eu precisava fazer algo por mim. Demorou sabe?! Eu tive várias recaídas... Foi muito difícil, por que me cobro muito. E tudo que eu faço eu estipulo metas meio surreais, entende? “oh, eu tenho que fazer isso em tal tempo, se em tal tempo eu não conseguir fazer isso, vai ser o fim do mundo!” E era o que acontecia... Botava metas assim... Inalcançáveis, e acabava me frustrando. Aí com isso acabou acarretando no transtorno alimentar, no negócio lá da bulimia e com isso eu aumentava cada vez mais os períodos sem comer. Aí quando dava a fome eu queria comer até a parede se pudesse eu comia! E aí eu vomitava... Só que aí a minha mãe descobriu porque até então ela não sabia. E eu não sei como ela descobriu, porque eu vomitava como todas, tentando esconder até da própria sombra que fazem isso (risos). Enfim... Eu tinha hipoglicemia direto! Nossa! Assim de ficar branca, desmaiando... Eu lembro que o banheiro era a minha fuga! Eu ficava sentada no vaso, às vezes de madrugada. Se minha mãe acordava eu ficava desesperada, suando frio... Parece que eu to vendo a cena... Mas eu sempre arrumava uma desculpa “ah, to com dor de barriga, to com isso, ...” sempre dava um jeito. Mas eu depois acabava comendo, mas enfim... (Yasmin, 17 anos) Esse ciclo se repete, por dias, meses, anos, poderá se repetir pelo resto de suas vidas. O banheiro passa a ocupar um lugar de destaque na rotina dessas adolescentes, é nele que elas passam horas após terem tomado laxantes ou diuréticos, é o local onde elas vomitam, é onde jogam fora a comida escondida em seus quartos. É onde se escondem dos questionamentos 105 familiares. Não raro o banheiro dos colégios também se torna um lugar de alívio e refúgio. Silvia conta que o banheiro foi o lugar escolhido quando tentou dar fim a sua vida. Por ser um local onde se pressupõe que se vá sozinha, elas acabam por elegê-lo o local onde passam mais tempo quando não estão sozinhas em casa. Até que comecem a ser vigiadas, passam muito tempo também em seus quartos, espaço em que as adolescentes fazem suas próprias regras, onde adquirem autonomia, mesmo em uma situação de dependência familiar (DE SINGLY, 2000). Quando o TA torna-se público, estes espaços deixam de ser locais seguros para estarem consigo mesmas. Geralmente, os familiares não as deixam mais ter chaves para trancar o quarto ou só as deixam ficar em seus quartos se as portas estiverem abertas. Essa perda de privacidade e da confiança das pessoas próximas é mais uma característica de quem convive com a AN. Bruna, assim como tantas outras, buscou ao máximo esconder da família que estava vomitando e sem comer, mas acabou sendo descoberta. Desde então, sua mãe a mandava ficar na casa da avó após o colégio para ter alguém que pudesse vigiá-la enquanto trabalhava. De todo modo, a adolescente ainda encontrava seus meios de buscar o emagrecimento: Aí eu comecei a fazer escondido, só que todo mundo acabou percebendo... Até hoje eu não vi diferença nenhuma, por isso que eu to... continuando. (...) Eu acho que tenho que emagrecer mais ainda. Eu não vomito mais, mas eu fico uns dois dias sem comer pra... Emagrecer. (Bruna, 12 anos) A maioria estava em atendimento, seja no PTA ou em outro lugar há cerca de dois ou três anos, mas contam que sempre houve algo em suas vidas que, um dia, as levaram a desencadear o TA, ainda que tal constatação não seja plenamente consciente. Natasha fala sobre uma tristeza, que sempre carregou, mas que em um momento a fez pensar que já era hora de ser um pouco mais livre, ainda que por pouco tempo. “já sofri muito por causa da comida”... Houve uma época em que resolveu tentar melhorar e pediu ajuda: E aí, eu..., eu pedi ajuda. Eu tinha psicóloga na época, mas ela também não comunicava aos meus pais e, quando eu fiz 15 anos... Meu pai... Eu já tava muito mal, eu tava com 33 kilos, eu tava com edema no pericárdio, tinha tirado a vesícula e eu tenho pedra nos rins e aí, eu fui pra Buenos Aires porque eu tenho família... Toda a família do meu pai mora lá (o pai dela é argentino), e eu passei um mês lá e nesse mês eu engordei 500 gramas mais ou menos, mas eu passei a comer, eu comia de três em três horas, lá foi uma terapia digamos assim em família. Todo mundo me ajudando. Claro que era muito arriscado porque eu estava extremamente mal ... (Natasha, 16 anos) É esperado que as relações familiares forneçam apoio emocional duradouro e contínuo. A refeição em família é um momento importante para a construção e reprodução da 106 "família" contemporânea nas sociedades ocidentais e das relações emocionais e de poder dentro da família (LUPTON, 1996, p.38). A tendência atual, devido a um ritmo de vida cada vez mais corrido, de que os membros da família façam suas refeições em momentos diferentes pode prejudicar a coesão familiar e, no caso da adolescência, esse comportamento de isolamento no momento das refeições é comum, seja por atividades na escola que não permitam estar em casa a tempo para as refeições, seja por fazer essas refeições em frente ao computador, tablet, televisão ou ainda por estar digitando no celular ainda que sentados à mesa com a família. Nas adolescentes que entrevistei, o isolamento ocorria para evitar os conflitos e as cobranças, mas quando tinham a oportunidade de estar com a família longe de julgamentos sobre seu comportamento alimentar, falavam desses momentos com entusiasmo. Os pratos saudáveis que o pai de Silvia se esmerava em fazer para ela, os almoços na casa da avó que Bruna participava com mais frequência e as animadas refeições em família que Natasha vivenciou durante sua viagem para a Argentina fazem parte desses relatos. Para Natasha, seus altos e baixos são permeados por períodos de críticas e de apoio familiar. Em toda sua trajetória, a presença ou ausência dos pais, bem como do restante da família, se revelam cruciais. Em seu caso, ter a AN publicamente reconhecida aparentemente foi favorável. Se por um lado, foi a adolescente mais magra que vi, sendo considerada um caso de “AN clássica”, dessas que se enquadra nos critérios diagnósticos do DSM e do CID10, por outro, foi a única que demonstrou verdadeiramente interesse em estar em tratamento e em melhorar. Tirava dúvidas, ia regularmente às consultas, cumpria tudo o que lhe pediam e relatava as dificuldades quando não estava conseguindo sozinha. Conhecê-la e poder acompanhá-la foi uma verdadeira aula sobre tudo que havia lido e visto sobre AN, incluindo a migração que fez da magreza extrema para o sobrepeso. Permitir que os outros saibam que se enfrenta um TA não é fácil, ainda que não exista a clássica negação de ajuda, tão destacada ao se falar em AN e BN. No caso de Silvia, havia de fato uma dificuldade dela em reconhecer seu TA, mas ela sabia que havia algo diferente e, mesmo confusa sobre isso, queria ser ajudada. Mesmo assim, não se sentia confortável que todos ao seu redor tivessem conhecimento de seu problema: Às vezes me incomoda um pouco eu ter essas coisas. Às vezes eu sinto como se tudo já estivesse escrito em mim, e quando uma pessoa me olha, ela já sabe que eu tenho essas coisas. E isso me deixa muito mal às vezes. Inclusive porque a minha mãe fala que eu sou doente... Eu to no Serviço desde 2010 e depois eu comecei a ter alguns surtos, eu via coisas, ouvia, sentia. Eu tinha medo de sair de casa. Eu só me 107 sentia bem no escuro porque eu me escondia e ninguém me via. Assim, eu não sei explicar muito bem o que eu sinto, porque cada hora eu sinto uma coisa, cada hora é um problema diferente... É tanto problema junto! Tem o problema do meu relacionamento com a minha mãe, que me estressa. Aí eu desconto na comida. (Silvia, 16 anos) Silvia também foi diagnosticada com síndrome do pânico e ficou alguns meses sem sair de casa. Era conhecida no PTA por andar constantemente com uma boneca “Emília”, personagem do “Sítio do Pica-pau Amarelo”. Em seus momentos de crise, se identificava com a boneca, cortava os cabelos, rasgava os pulsos, rabiscava no rosto. Tentava assim extravasar um sofrimento que não aguentava carregar sozinha, mas mesmo essa atitude não surtiu o efeito esperado. Ela não recebia a atenção, o apoio e o carinho que esperava. O sofrimento, assim como a doença, também representa uma ruptura na vida dessas adolescentes, é um problema que precisa de soluções, um modo de ultrapassar as tristezas do dia-a-dia que obscurecem as perspectivas de futuro (GREEN, 2008). Assim como outras adolescentes entrevistadas, Silvia cortava-se semanalmente, pelos mais variados motivos, buscando o alívio para as tristezas, ao fabricar uma dor deliberada que retivesse provisoriamente seu sofrimento (LE BRETON, 2012). Para esconder as marcas de seus cortes, usava uma munhequeira esportiva nos pulsos e estava sempre com calça jeans. Mas era comum que usassem roupas largas e compridas, mesmo durante o verão. Assim, além de esconderem os cortes, disfarçavam o emagrecimento e escondiam seus corpos dos quais algumas tinham vergonha. Silvia me contou como tentou se matar: Eu te falei que tentei me enforcar? Sabe aquele negócio de roupão? É fraco! Pelo menos eu acho. Se eu tivesse dado mais voltas... Eu fico pensando, pra pessoa querer se matar, ela tem que ser inteligente também! (risos) Você tava sozinha em casa? Não, eu tava no banheiro e minha mãe tava desesperada batendo na porta e eu quase desmaiei. Eu só abri a porta porque eu tava perto do celular e eu vi meu pai ligando. Isso foi quase meia-noite. E a pessoa também tem que ser inteligente, porque pra pessoa se cortar, ela tem que saber onde se corta... Eu tava com raiva e quando eu fazia, eu não sentia dor na hora... Também não sentia prazer não! (risos) Eu tenho amigos que sentem prazer se cortando... E eu sinto raiva e desconto em mim! (Silvia, 16 anos) Silvia, Natasha, Isabel e Kamila já haviam tentado suicídio algumas vezes. Le Breton (2012) afirma que nas tentativas de suicídio das adolescentes, há uma busca de letargia, de um coma não premeditado, porém internamente desejado como um porto, no qual se pode reconstituir-se. Segundo o autor, essas tentativas de suicídio são, antes de tudo, tentativas de 108 viver. Natasha conta que sua primeira tentativa foi aos 11 anos de idade, sempre em casa, quando estava sozinha. Mas já havia tentado mais de 20 vezes desde então. Você já tentou suicídio... (me interrompeu): Já! Várias vezes! Várias, várias vezes mesmo, mas a mais séria foi no ano passado depois da internação. Um mês e meio depois da internação que eu parei na sonda pra tirar os remédios. Você tem ideia de quantas vezes já tentou suicídio? Mais de 20! Na minha vida toda... Desde os onze anos. Aos 12, 13 eu já bebia muito. Mas não bebia fora de casa, eu bebia dentro de casa quando minha mãe saía. Misturava com remédio, mas nunca deu muito certo, até o ano passado... Porque você acha que começou a tentar tão cedo? Tristeza mesmo! Meu quadro depressivo começou a se apresentar desde que eu era muito nova! Eu me corto muito! Até hoje, mas menos sabe? Uma vez por mês, mas eu penso bem antes. Mas é difícil me conter. Mas, antes era todo dia. Tinha alguma coisa que te motivava? Tristeza! Você usava o que? Qualquer coisa! Anel, lâmina ... Sua família sabia? Sabia... Eles te ajudavam com isso? Não, na época não. Só brigavam!... (Natasha, 16 anos) Essa tristeza referida por Natasha era compartilhada pelas outras entrevistadas, mas o apoio familiar recebido variava dentre elas. Isabel, mesmo com toda sua tristeza nunca perdeu o apoio e a compreensão de sua família. Alice, que também era reconhecida por ter um pai muito presente e preocupado – o acordo familiar previu que o pai deixasse seu emprego para acompanhar a filha no tratamento, enquanto sua mãe permaneceu cuidando da empresa de confecção de roupa feminina que possuía - diz que nunca tentou se matar, nem se cortar. Alguma vez durante esse processo de adoecimento ou alguma vez na sua vida você teve vontade de se matar ou se cortou? Eu sempre tive muito medo dessas coisas... Eu tenho medo de agulha! (risos). Eu sempre tive muito medo disso... Tipo, medo de morrer, inclusive dessa doença. Porque... eu vejo essa doença como um suicídio... Porque é um suicídio na verdade. Você fica sem comer... Você, sei lá, fica fazendo mal a si próprio, então no caso, se eu morresse disso, por exemplo, com certeza eu não iria pro céu. Então, eu não quero ir... Pro lugar ruim (inferno)... (Alice, 15 anos) Alice utiliza sua crença religiosa para formular aquilo que foge a sua compreensão sobre a AN (DURKHEIM, 1996). Ao falarmos de seu vínculo religioso, evangélica, conta que ninguém em sua igreja sabe de seu problema, mas que pede ajuda a Deus para sair dessa situação. Destaca a credibilidade do potencial terapêutico das religiões, esclarecendo que o saber biomédico não é o detentor da verdade absoluta sobre a vida e a saúde (TAVARES, 2012; SILVA; VASCONCELOS, 2013). Ela tem cogitado romper com o silêncio sobre ser portadora de AN em prol da ajuda espiritual dos pastores de sua igreja, a qual ela atribui valor. 109 Alice conta que chegou a melhorar um pouco e, como Natasha, achou que era hora de se permitir ser mais livre em termos alimentares. A data escolhida foi o seu aniversário de 15 anos, quando ganhou uma festa com os amigos e a família. Você fez aniversário há pouco tempo... Teve comemoração dos 15 anos? Sim, foi aí que tudo (re)começou... Por que? Porque até essa época eu não tava mais vomitando... Aí eu pensei “pô um dia não vai me fazer mal!” Só que aí eu passei mal de verdade, não fui eu que forcei o vômito. Eu passei dois dias inteiros vomitando, eu vomitava tanto que não tinha mais nada pra vomitar, eu ficava vomitando verde assim... Entendeu, aí eu ficava fraca, ficava deitada, aí vinha vômito toda hora... (...) Acho que foi o doce... Fazia muito tempo que eu não comia doce. (Alice, 15 anos) O aniversário de quinze anos, mesmo não tendo o sentido de outrora, ainda é considerado um evento importante na vida de muitas adolescentes. Alice pensou poder vivenciar esse dia como uma adolescente “normal” e se arrependeu da experiência que teve. Mesmo depois de melhorar dos sintomas gastrointestinais que a levaram a vomitar após a festa, acabou voltando a utilizar dos vômitos forçados para tentar manter-se magra. Silvia também contou sua experiência em um evento familiar, onde esse ciclo de autovigilância alimentar é momentaneamente afrouxado e seguido de arrependimento, de ganho de peso que a levou a mais privação para voltar a emagrecer. Se por um lado, as pessoas anoréxicas são reconhecidas por um autocontrole extremo, no contraponto estão as bulímicas com a total falta de controle alimentar (SANTOS, 2008, p. 176): Agora recente, teve o aniversário do meu avô... E eu falei “pai, eu não vou! eu já troquei de roupa sete vezes, eu baguncei o guarda-roupa todo, eu baguncei o quarto todo, minha mãe já brigou comigo e continuo feia”. Eu fui! Porque meu pai disse “não você vai, você tem que se animar!” e chegando lá era pizza! Mas eu comi... Eu comi pizza até dizer chega. Mas eu não me arrependi não, nesse dia eu não me arrependi porque eu não comia pizza há muito tempo! Mas eu comi muito... Eu só parei de comer quando o garçom parou de servir. Mas depois eu fiquei triste porque eu ganhei peso... (Silvia, 16 anos) Além de ficar dias sem comer e do uso de diuréticos, laxantes e chás, recorrer aos vômitos na tentativa de emagrecer permanece como um recurso amplamente usado entre aqueles que sofrem dos TA. Para isso, elas usam os dedos, cabo da escova de dente, haste dos óculos, ou qualquer outro objeto que possa ser introduzido até o fundo da garganta. Embora o recurso aos vômitos para emagrecer seja um mito (SILVA, 2004), além de não emagrecer, pode-se provocar um grave desequilíbrio hidroeletrolítico, entre outros problemas. Na vida de Kamila, vomitar tornou-se algo tão comum que, mesmo querendo, ela não consegue mais parar: 110 Ah, eu não sei… É difícil ficar sem vomitar... A maioria das vezes eu não quero fazer, mas eu faço! Não sei, eu acho que virou rotina, pra mim é tão normal que eu faço todo dia! Então não tem mais diferença... (Kamila, 18 anos) Com os laxantes, a história é semelhante, o organismo se torna dependente do medicamento, sem eles as adolescentes não conseguem mais “ir ao banheiro” espontaneamente. Por outro lado, cada vez mais o organismo necessita de mais unidades para se obter o efeito desejado. Isabel chegou a tomar 20 unidades de laxante por dia e relatou que seu intestino “não estava funcionando...” Nas pacientes bulímicas ou com AN do subtipo purgativo, que fazem uso do vômito como uma das estratégias para emagrecer, havia alguns sinais que poderiam ser facilmente identificados por aqueles que trabalham com TA: Descalcificação dos dentes (com consequente aumento no número de cáries) e danos no trato gastrointestinal pelo ácido estomacal dos constantes vômitos, machucados nas costas das mãos provocados pelos dentes quando se tentava forçar os vômitos, queda ou enfraquecimento das unhas, e edema de glândulas salivares (especialmente das parótidas). Como na BN o emagrecimento necessariamente não acontece, esse último sinal, a hipertrofia das glândulas salivares era um dos mais utilizados, pois era o mais visível e de fácil identificação. O termo anorexia vem do grego orexis (apetite/desejo) precedido pelo prefixo de negação an, assim, anorexia nervosa significa uma perda de apetite de origem nervosa (IDA, 2008; MIRANDA, 2007). Tal nomenclatura não está totalmente adequada a esta condição, visto que, apenas em estágios avançados da doença é que se perde de fato o apetite. Até então, é exigido um elevado grau de autocontrole para sentir fome e ignorá-la. Dessa forma, as adolescentes constroem para si a naturalidade de sobreviver com a carência alimentar imposta em seus espaços sociais (FREITAS, 2003) mas, para perder o apetite havia também alguns truques utilizados tanto pelas adolescentes anoréxicas quanto pelas bulímicas, como: beber vinagre, chupar limão, mastigar algodão com acetona ou beber acetona, mascar chicletes sem açúcar, dentre outros. Uma das adolescentes abordada comprava seringa e agulha e tirava o próprio sangue, mas, nesse caso não creio que haja relação com o emagrecimento, pois também tirava sangue de seus gatos e de seu irmão mais velho que é autista. Não sabia explicar porque começou a fazê-lo, mas sentia que era algo prazeroso. 111 Ela não falou a respeito na entrevista, creio que ainda não havia descoberto essa nova forma de satisfação, o fato foi por ela mencionado na consulta clínica que assisti e na reunião de equipe pela psicóloga. Na entrevista, contou um pouco da sua rotina: E quando você ficou esses cinco dias sem comer, alguém da sua família percebeu?: Percebeu! Minha mãe... “Come garota! Você vai passar mal aí...” Aí eu: “Ah não mãe...”. No colégio davam comida?: Davam, mas eu não comia não... Ah, eu ia, tomava laxante... Fazia um monte de coisa pra emagrecer (risos), eu era terrível! Mas você ficava indo ao banheiro toda hora no colégio?: Só saía água... E depois, em relação ao corpo, eu comecei a perceber assim que eu tava ficando muito cansada. Eu tava com anemia, eu fiquei ressecada! Aí foi muito ruim... (Isabel, 15 anos) Mesmo reconhecendo que se sentia mal, ela não pensava em comer para melhorar. Green (2008) ressalta que por estarem sempre cansados e com dor, portadores de doenças crônicas, muitas vezes expressam frustração ou culpa por estarem grande parte do tempo sem energia para fazer suas atividades e que quando estão mais dispostos se envolvem em atividades destinadas a se recuperarem de sua doença. Em paralelo, Castellanos (2007) salienta que há uma pressão moral e social contemporânea que obriga o doente, ao assumir o seu “papel de doente”, a estar ou procurar estar saudável. (CASTELLANOS, 2007, p.92, 93). Mas em se tratando de TA, estar mais disposta não significa buscar estar mais saudável, e a pressão sentida de maneira mais contundente não é externa (familiares, professores, amigos, profissionais de saúde, entre outros), é uma pressão interna, que as instiga a seguir buscando a perfeição como ideal a se atingir. É nisso que investem seu esforço, mesmo quando acreditam estar mais “saudáveis” e se sentem capazes de discernir entre o que as colocará em risco de vida ou não. A presença de sono constante foi relatada por quase todas as adolescentes. Sobre isso, Le Breton (2012) afirma que para muitas trata-se de uma forma de regressão, uma vontade de retornar à infância para não lidar com as tensões e responsabilidades que a passagem para a vida adulta lhes impõe. Seria um alívio simbólico, uma busca da ausência, um apagamento momentâneo. Uma rotina rigorosa de exercícios físicos também faz parte da vida de quem convive com um TA, especialmente a AN. Por isso, muitas vezes os profissionais de saúde do PTA as proibiam de praticar esportes ou qualquer atividade física de lazer. Orientavam às famílias a importância de seguir essa recomendação, posto que qualquer gasto energético desnecessário poderia comprometer o sucesso do tratamento. 112 Quando Alice recebeu alta da internação, mesmo sem a autorização dos profissionais de saúde que a atendiam, entrou nas aulas de ballet e defendia com firmeza sua permanência nessas aulas. Quase todas têm uma “meta” estipulada para perda de peso e, uma vez atingida, escolhem outra meta ainda mais ambiciosa. A maioria não se acha bonita e quase todas modificariam a barriga se pudessem, deixando-a mais “pra dentro”, “mais lisinha” ou a cintura mais fininha. Algumas jovens atrizes, cantoras e modelos são referências de beleza para tais adolescentes. Dentre estas celebridades, algumas também enfrentam ou enfrentaram um TA. A possibilidade que algumas pessoas têm de comer sem engordar, como acredita Natasha, é algo que a machuca profundamente: Na verdade eu tenho inveja, tenho inveja de todas as meninas da minha escola que comem muito e não engordam. Sabe, é muito triste, porque é a única coisa que você pediria se tivesse um desejo e tem pessoas que já nasceram com isso! Eu tenho uma amiga modelo que é extremamente magra e se entope de gordura. E é muito triste pra mim isso por que... Ah! é difícil porque quando você vê as pessoas que têm tudo que você queria ter, porque é só isso que eu queria se eu tivesse um desejo. Seria poder comer de tudo e... Continuar magra. (Natasha, 16 anos) A exigência pessoal é algo forte e marcante na trajetória dessas adolescentes, alcançar a perfeição nas mais diversas áreas de suas vidas é uma ambição comum. Com uma doença que exige tanto tempo e dedicação, ainda mais quando se torna pública, atingir esses objetivos pode se tornar praticamente impossível, o que só contribui para elevar o grau de insatisfação, frustração e tristeza que sentem com elas mesmas. O depoimento de Natasha ilustra tal sofrimento: Olha, é muito difícil, mesmo porque eu não aceito, eu tenho culpa, porque eu perdi quase um ano de escola. Por exemplo, hoje eu estou perdendo aula. (...) E eu sou a única pessoa com transtorno alimentar na escola e eu vejo eles bem e comendo e eu assim. E eles me apoiam muito, mas mesmo assim, é uma culpa interna... É muita culpa porque eu queria ser uma filha normal, não queria trazer problema sabe? Porque eu sempre tive essa busca pela perfeição e eu acabei assim, meio que piorando as coisas né?! (Natasha, 16 anos) Mais uma vez Natasha resgata aquilo que marca toda sua trajetória de vida, mesmo antes do desencadeamento da AN, a preocupação em ser uma filha perfeita. Além disso, carrega consigo uma preocupação que também apareceu em outras entrevistas e também nas consultas, a comparação com os adolescentes de sua idade. Esse sentir-se deslocada entre os adolescentes tidos como “normais”, que conseguem comer a qualquer hora, em qualquer lugar 113 e na frente de qualquer pessoa sem que isso seja uma preocupação constante é o elemento central do isolamento dessas adolescentes. No capítulo final, voltarei a essa dificuldade em se relacionar que elas expressam. O que parece mais chocar àqueles que convivem com essas adolescentes é a maneira como se lançam para atingir seus objetivos sem se importar com as consequências de seus atos que, grande parte das vezes, coloca suas vidas em risco. Trago aqui o trecho de um texto de Le Breton (2012) que pode auxiliar a compreender essa postura: “O termo condutas de risco é um dos mais complexos e engloba uma série de comportamentos díspares que expressam, simbólica ou realmente, a existência do perigo. Ele é comumente relacionado com a exposição deliberada do indivíduo a situações de risco de se ferir ou morrer, de alterar seu futuro pessoal ou de colocar sua saúde em perigo.” (LE BRETON, 2012, p. 34) Como exemplo, o autor cita os transtornos alimentares. A propensão a agir assim, que caracteriza a adolescência, está ligada a processos identitários inacabados, à dificuldade de mobilizar em si próprio os recursos de sentido para lidar com os problemas de um outro modo (LE BRETON, 2012) A dificuldade de aprender a lidar com as decepções e frustrações, inerentes à vida em sociedade, é o que motivava Silvia a se cortar ao brigar com uma amiga, ao tirar uma nota baixa ou ao ser contrariada pelos pais. De acordo com o autor (LE BRETON, 2012, p. 34,35), as condutas de risco são, antes de tudo, tentativas dolorosas de ritualizar a passagem para a idade adulta. São formas de resistência contra a violência vinda da família e/ou da sociedade, pois, controlando o seu corpo, o adolescente busca tomar posse de sua vida. Assim, estes comportamentos são formas de vivenciar um período ou situação dolorosa. São formas de apelo à vida, são pedidos de ajuda de adolescentes em sofrimento buscando adultos que lhes amparem e os ajudem a recuperar o gosto pela vida. 3.6 AS ADOLESCENTES E SUAS FAMÍLIAS Ariés (2012) aponta que, na Idade Média, cabia à família a função de assegurar a transmissão da vida, dos bens e dos nomes, mas esta não se aprofundava na sensibilidade. Foi a partir do século XVII que a família assumiu uma função moral e espiritual, passando a 114 formar os corpos e as almas. Os membros da família passaram então a se unir não apenas pelo nome, mas pelo sentimento, o costume e o gênero da vida. Mas foi a valorização do cuidado com as crianças que passou a inspirar sentimentos novos, consolidando o sentimento moderno da família. O modelo de família nuclear tal qual conhecemos, normalmente associada à unidade doméstica composta de pai, mãe e filhos nascidos do casal, se estabeleceu pelo pensamento científico após a Segunda Guerra Mundial por meio das teorias formuladas por Talcott Parsons para analisar a vida familiar nas camadas médias dos Estados Unidos. A banalização dessa análise propiciou a formulação de que o modelo de família nuclear, além de ser o mais “natural”, seria a única forma de estruturação familiar adequada. Assim, concepções de família paralelas a esse ideal colocariam em risco a saúde mental de seus membros mais jovens (FONSECA, 1999). Contrariando a existência de um único modelo ideal, encontrar atualmente uma definição para “família” está cada vez mais complexo devido à pluralidade de formas familiares existentes, embora permaneça a valorização dos laços familiares e, especialmente nas famílias brasileiras, a proeminência dos laços de sangue (FONSECA, 1999; KELLERHALS et al, 1989, p.8). Além disso, a reconhecida “crise da família” no mundo “pós-moderno”, tem levado a concepção de que a família teria gradualmente deixado de exercer suas funções originais para se tornar “uma unidade de realização afetiva e de companheirismo”. (FONSECA, 1999; KELLERHALS et al, 1989, p.95). As transformações nas estuturas e dinâmicas das relações familiares, decorrentes das mudanças relativamente recentes como a introdução da mulher ao mercado de trabalho, o controle da reprodução, pela contracepção, a regulamentação do divórcio, o aumento da expectativa de vida da população, a banalização da sexualidade como idioma social, as novas tecnologias reprodutivas (BRANDÃO, 2003, p.46), dentre outras, traz à tona o conflito enfrentado pelas famílias no mundo contemporâneo: de um lado, há a afirmação crescente da individualidade de cada um de seus integrantes (central nos dias de hoje) e do outro, o respeito às responsabilidades próprias das relações familiares (DE SINGLY, 2000; SARTI, 2011, p.19). No Brasil, foi a partir das mudanças ocorridas na estrutura da sociedade desde as décadas de 50 e 60 que se desencadeou a reconfiguração das relações sociais, dentre elas as familiares (BRANDÃO, 2003). De Singly (2000) afirma que a educação familiar se 115 modificou de tal modo que passou a menosprezar a obediência e a sobrepor a iniciativa, a autonomia e a satisfação pessoal. Tendo em mente que a relação entre pais e filhos se estabelece conforme as estruturas e funções da família numa dada sociedade, nos últimos anos, essas relações têm sido alvo de grandes transformações, tendo os pais cada vez mais deveres para garantir o bem-estar de seus filhos (KELLERHALS et al, 1989, p.102-4). A despeito de todas as transformações e das dificuldades de relacionamento em sua gestão, a família permanece ocupando um lugar central em nossa constituição como sujeitos, ela se mantém como uma fonte de equilíbrio, reforçando, mais do que laços de sangue, os laços de solidariedade entre seus membros, bem como a singularidade de sua constituição (BELHADJ, 2000, p. 66). A interface entre os TA e as relações familiares que os ensejam recebe destaque na literatura sobre o assunto, especialmente nas áreas de psiquiatria, psicologia e psicoterapia familiar, psicanálise, pesquisa feminista e de gênero (SILVA, 2011). Em seu trabalho, Silva (2010) nos convida a buscar compreender os TA para além de uma patologia psicológica individual, ressaltando a íntima relação entre os “sintomas” e os sentidos que estes adquirem nas diferentes relações sociais, com destaque para as relações familiares, que fazem parte da constituição do sujeito. Os acontecimentos mais marcantes da vida são exatamente os eventos familiares e/ou pessoais (AVENEL, 2000, p.37). Em se tratando de adolescentes, econômica e sentimentalmente atreladas aos seus familiares, a presença de um TA nesse contexto ganha outros desdobramentos. Assim, considerar somente a abordagem biomédica do tema tem se revelado insuficiente e ineficaz (GROSSMAN et al, 2008). Fazendo um paralelo com o trabalho de Brandão (2003, p.31) sobre a gravidez na adolescência, também no caso da AN é preciso considerar o modo como toda a família é atingida pelo desencadeamento do TA, ocasionando a remodelação das relações conjugais e parentais, que nem sempre são consideradas. Ter um/a filho/a com um TA implica uma série de adaptações na vida dos envolvidos, que incluem modificações de ordem familiar, econômica e afetiva. Embora esteja abordando o relacionamento das adolescentes e suas famílias nesse tópico, esse tema percorrerá toda a tese, revelando o lugar central atribuído por elas à família (SILVA, 2011). Em vários momentos de minha convivência no campo com Natasha, ela dizia ser muito difícil para a família entender e aceitar ter entre seus integrantes alguém com um TA. Afinal, se uma pessoa parou de comer, da mesma forma pode voltar a fazê-lo, basta querer. 116 Como se o ato de alimentar-se fosse “apenas” uma necessidade vital e ao comermos, estivéssemos atendendo ao imperativo de sobrevivência, sem considerar que a alimentação humana é também um fenômeno social, que propicia o encontro entre natureza e cultura (MACIEL, 2005). Em seu caso, carregava consigo a culpa por não conseguir melhorar, ser uma filha melhor e motivo de orgulho, ao invés de preocupação, para seus pais. Mas essa “culpa” também está muito presente no discurso dos familiares. Por estarem ligados à melhora do estado de saúde e às recaídas, os relacionamentos interpessoais passam a fazer parte da intervenção terapêutica, buscando o estabelecimento de relações que possam transmitir segurança e que sejam promotoras de satisfação pessoal. Mas intervir no relacionamento de uma família, ainda que tal estratégia integre a proposta terapêutica, não é uma tarefa simples, posto que pode ser interpretada como se a equipe de saúde estivesse impondo outras normas sociais, reprovando ou “ensinando” os pais a educar seus filhos. Tal iniciativa corrobora o agravamento da culpa já sentida pelos pais, que por vezes trazem um sentimento de que falharam na educação de suas/seus filhas/os (SILVA, 2011). Não se pode afirmar que os pais estejam diretamente envolvidos no desencadeamento de um TA, mas é comum apontá-los como principais responsáveis pelo cuidado com seus filhos, atribuindo-lhes a função de “salvá-los” (MARINI, 2013). Somada a essa responsabilidade, as separações conjugais mal administradas, conflitos intrafamiliares constantes ou ainda a coabitação de várias gerações na mesma casa, com necessidades específicas e distintas, são considerados fatores para piora do prognóstico da doença (PINZON; NOGUEIRA, 2004). Mesmo entre adolescentes não portadores de TA, os profissionais de saúde identificam a necessidade de atuar aliados às famílias. Salientam a importância dessa parceria na melhora da efetividade dos tratamentos, pois reconhecem que os vínculos familiares são muito mais poderosos e promotores de mudanças do que qualquer outro vínculo que a equipe de saúde possa firmar com o/a adolescente (BRANCO, 2002; GROSSMAN et al, 2008). Especialmente nessa fase da vida, o êxito no tratamento está diretamente relacionado ao estabelecimento de um ambiente doméstico que forneça mensagens saudáveis e em consonância ao esperado pelas equipes de saúde. Assim, a conduta dos pais deve entrar em acordo com o preconizado pela equipe de saúde para o tratamento de suas filhas (SILVA, 2011). Mas, além de seguirem as recomendações que a equipe de saúde fornece nos consultórios, os familiares passam a ser 117 responsáveis por se enquadrar em uma estrutura familiar específica, reforçando o modelo conservador da família nuclear “normal/funcional” (MARINI, 2013). Pela perspectiva antropológica, não existe um modelo "natural" de família, as relações familiares são socialmente construídas e a noção de família pode variar de acordo com o contexto. Por isso, tem havido um esforço dedicado a "desnaturalização" da família, embora nas sociedades ocidentais contemporâneas é impossível negar a sua importância (FONSECA, 2005). Na modernidade, os membros de uma família constroem suas próprias histórias (DE SINGLY, 2008), mas em relação ao tratamento dos TA, há um esforço em se resgatar o modelo de família nuclear, unidomiciliar e funcional (MARINI, 2013), como o tipo ideal a ser adotado pelas adolescentes e seus familiares. O quanto mais afastado desse modelo as famílias se encontram, mais se reforça a necessidade de adequação para a melhora de suas filhas. Frente à instalação da doença nos filhos, os familiares, geralmente os pais, reagem de duas maneiras distintas, por vezes migrando de uma a outra. Na primeira, é comum associarem o comportamento anoréxico e bulímico dos filho/as à tentativa de chamar a atenção para si, desconsiderando que tais comportamentos poderiam ser eventuais sintomas de uma doença. Assim, tampouco se busca tratamento (SILVA, 2004; MARINI, 2013). Nesses casos, julgam que a adolescente está se portando como “criança”, fazendo “manha/pirraça” e que a qualquer hora podem voltar a comer. Nesse modo de compreensão do problema, os pais podem reprimir suas filhas, colocá-las de castigo ou simplesmente ignorar seus comportamentos alimentares desviantes, como vômitos, jejuns, uso de laxantes, chás, diuréticos, etc. Acreditam que agindo dessa forma, suas filhas venham a desistir da “pirraça”, voltem a comer e a ter uma rotina como antes. Os pais de Natasha, as mães de Bruna e Kamila e o pai de Isabel pensavam assim, no início do tratamento. Essa atitude pode retardar muito a busca por ajuda, pois o problema de saúde em si não é identificado, ou seja, o TA não chega a ser reconhecido. Observem os comentários de Natasha a respeito: A psicóloga, ela me dava livros sobre isso, a gente falava sobre isso, mas meus pais não aceitavam! Eu era desesperada porque eu queria mostrar pra eles que eu tava sofrendo e pra eles era só comer, pronto! E eu não conseguia mostrar pra eles que era algo além disso. E como está sua relação com eles agora?: É boa, agora tá melhor... Agora que eu não to mais tão doente ta melhor! E quando você tava muito doente como era?: Quando eles perceberam que eu de fato estava doente, começou a melhorar. Porque antes eu tinha muita dificuldade, não só com a família, mas com todo mundo porque ninguém entendia... O que seus pais falam sobre a 118 sua alimentação agora?: Ah, eles acham que eu como bem. Eles se preocupam porque eu fico meio neurótica, mas... Eles sabem que eu não vou parar de comer de novo! Eles têm valorizado seu esforço pra tentar melhorar?: Sim. (Natasha, 16 anos) Ao chegarem ao PTA, os pais das adolescentes acompanhavam os atendimentos, constatavam o sofrimento de suas filhas, mas simplesmente não conseguiam compreender por que elas não comiam, afinal, tomavam tal ato como básico, essencial. Nesse sentido, a internação, especialmente se acompanhada da temida “sonda” alimentar, funcionava como um “choque de realidade” não apenas para as adolescentes, mas também para seus pais. Nessa primeira modalidade, embora os pais resistissem no início a acreditar nas filhas, quando a doença ganhava veracidade, o enfrentamento da mesma e do tratamento pareciam ser mais tranquilos para as adolescentes, pois afinal conseguiam ter o “apoio” de seus familiares, ainda que nem sempre aquele desejado. A segunda maneira de reação das famílias ocorre quando os pais se preocupam com o isolamento de suas filhas, buscam informações a respeito dos TA na internet, assistem documentários sobre o tema, interagem com outros familiares ou amigos próximos e/ou buscam por si mesmos entender o que está acontecendo e decidem procurar ajuda. Quando têm suas suspeitas confirmadas, a família “adoece/padece” como um todo. Os pais se sentem culpados pelo adoecimento dos filhos e não conseguem lidar com tal situação. As mães, em especial, entram em depressão e não conseguem mais acompanhar e ajudar no tratamento de suas filhas. Os pais (homens) tentam da melhor forma possível conciliar os cuidados com a esposa, a filha adoecida e outros possíveis filhos, mas se torna muito complexo dar conta de todo esse arranjo. Para as adolescentes inseridas nessa configuração familiar, enfrentar o tratamento é ainda mais difícil e a recuperação parece estar mais distante. Assim ocorreu com Isabel, cuja mãe não suportou a dramaticidade do diagnóstico de sua filha. Quando a conheci no serviço de saúde que acompanhei, Isabel já havia sido internada, recebido alta e passado um tempo longe dos atendimentos. Estava retornando ao serviço, sem a mãe ao seu lado dessa vez. O pai da adolescente esclareceu que estava cuidando da casa, dos filhos e da esposa e que estavam passando por um período muito difícil. Disse ainda que a filha deixou de frequentar o PTA após sua internação porque ele achou que ela estava melhor e resolveu priorizar os cuidados com a esposa. 119 Nesses contextos, a dinâmica familiar pode estar fortemente afetada pela possibilidade de perder a filha gravemente adoecida, aliada a sentimentos de culpa, impotência, frustração e mágoas. Os pais inicialmente ficam muito confusos e ansiosos por agir de alguma forma, o que pode levar a cobranças e controle excessivo com as filhas, elevando o nível de estresse no núcleo familiar. Nesses casos, a equipe de saúde pode auxiliar esclarecendo dúvidas e acolhendo essa família, inclusive sugerindo a assistência específica por profissionais de saúde mental e assistentes sociais, caso necessário (GROSSMAN et al, 2008). Por se considerar uma pessoa responsável, Yasmin esperava que seus pais, com os quais afirma ter tido um relacionamento muito tranquilo até pouco antes de ser entrevistada, lhe concedessem o direito de sair para se divertir e reconhecessem a importância de suas relações de amizade e sentimentais (CICCHELLI, 2000, p. 126). Na adolescência a conquista da autonomia passa pela prática de projetos pessoais distintos dos da família e por uma abertura maior para atividades fora de esfera familiar e escolar. Yasmin fazia questão de ressaltar que estava “praticamente com a maioridade” e, portanto, julgava-se apta a seguir seu próprio caminho, longe dos olhos atentos de seus pais. Mas a noção de maioridade não é uma questão de idade nem de estatuto social e grande parte dos pais considera que seus filhos só se tornam adultos quando saem de casa para formar sua própria família (BELHADJ, 2000, p.724). Assim, a adolescente se frustrava por ainda ter de convencer os pais a deixá-la gastar seu pouco tempo livre com atividades de interesse fora do grupo familiar. Muitas vezes, os comentários críticos dos familiares acabam por atrapalhar mais que ajudar e as adolescentes criam suas próprias estratégias para não entrar em conflito, isolandose em demasia. Yasmin resume com clareza o que se passa em relação às adolescentes e as tentativas de ajuda vindas dos pais e parentes: Porque eu acho que só quem vive isso pode saber. Porque eles estão vivendo, mas é só na periferia, de fora... Aí eles falavam “bla, bla, bla, bla, bla”... Não adiantava muita coisa. De um tempo pra cá, eu já vi o que eu quero e o que eu não quero pra mim. Vi que eu tenho que fazer alguma coisa, então não adianta cobrar! Quem não ia gostar de trocar a sexta feira livre. Porque sexta feira é o único dia que eu saio do colégio e tinha o dia livre! O único dia! Tirando domingo! E fazer alguma coisa ao invés de vir pra cá? E de onde eu moro tem que pegar metro, ônibus... Vou falar que é bom? Não é! Eu já me acostumei, tenho assim pra mim que isso é uma coisa que vai me ajudar, mas não é bom... (Yasmin, 17 anos) Mesmo convivendo com o TA todos os dias, a compreensão dos familiares sobre o sofrimento envolvido é diferente da adolescente que vive em seu corpo a experiência do adoecer. Embora aqueles que sofrem com os TA muitas vezes acabem se isolando, é 120 reconhecido que, especialmente entre adolescentes, o apoio familiar ao longo do tratamento são essenciais, conforme já foi destacado. Alguns autores (KYRIACOU et al, 2009; SMITH; COOK-COTTONE, 2011; SCHOLZ, 2005) discutem que, sem a família, a recuperação pode nunca chegar e a doença torna-se crônica. Dessa forma, os protocolos de tratamento adotados nos maiores centros de tratamento em TA do mundo incluem a terapia familiar (CHEN et al, 2010; EISLER et al, 2007; GODART et al 2012; HONIG, 2005; RODES et al, 2009) como um dos modos de auxiliar na resolução de conflitos, diminuir a carga de estresse enfrentada pela família, ajudar os pais a lidarem com a culpa e a compreender suas filhas e o momento delicado pelo qual estão passando, bem como ajudá-las a se entenderem e a encontrar um meio de se deixarem ajudar. No PTA não havia qualquer tipo de terapia em grupo, fosse um grupo de suporte aos pais (tão necessário), um grupo com os familiares e as adolescentes ou entre as próprias adolescentes. Esse fato foi ressaltado por elas como um dos pontos fracos do serviço de saúde e é algo que elas considerariam essencial caso fossem estruturar um programa de atenção em saúde ao adolescente com TA. Após ter situado o processo de adoecimento vivenciado pelas adolescentes e suas famílias, no próximo capítulo, passo a tratar a dinâmica de funcionamento do serviço de saúde observado, revelando os imensos desafios postos para fazer face à complexidade da atenção aos transtornos alimentares. 121 CAPÍTULO 4. ATENÇÃO À SAÚDE DE ADOLESCENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES Nos tópicos que se seguirão, buscarei apresentar o Programa de Transtornos Alimentares (PTA), sua equipe e dinâmica de atendimento, além de abordar os enormes desafios implicados na atenção pública à saúde de adolescentes que sofrem de transtornos alimentares, captados durante aproximadamente dois anos de observação participante no Programa. Assim, muitas concepções ou pré-concepções que detinha sobre o tema foram se modificando ao longo desse tempo. 4.1 O PROGRAMA DE TRANSTORNOS ALIMENTARES Minha primeira visita ao PTA ocorreu em 21 de novembro de 2011. Como dito no capítulo II, as tentativas e negociações para entrada em campo de minha pesquisa de doutorado se iniciaram em março de 2011, com contatos e visitas a outros quatro locais que ofertam atendimento aos transtornos alimentares na região metropolitana do Rio de Janeiro. Por especificidades do atendimento ofertado ou exigências para a realização da pesquisa, tais espaços foram descartados. Até essa ocasião, não tinha conhecimento da existência do Programa de Transtornos Alimentares. Em 29 de setembro de 2011, recebi por e-mail um convite para um evento de lançamento de um programa para atendimento aos TA em adultos em uma policlínica de uma universidade pública no Rio de Janeiro, que me interessou sobremaneira. Na época da minha graduação, havia participado de outro evento em comemoração ao “Dia do Nutricionista” nessa policlínica e desde então passei a integrar sua lista de e-mails, sendo alertada sobre eventos e publicações na área de nutrição. No dia da mesa de lançamento, senti que tudo era ainda muito incipiente, a nova equipe do serviço que se iniciava parecia ser inexperiente no assunto, mas durante o debate, o diretor do Serviço de Saúde do Adolescente da mesma universidade se apresentou e divulgou o PTA, que ao contrário do serviço que se inaugurava, atendia menores de 18 anos. A partir da oportunidade deste evento, do conhecimento sobre outro espaço voltado para adolescentes, um contato com uma antiga diretora do Serviço de 122 Saúde do Adolescente foi feito, a qual mediou um encontro com a então coordenadora do PTA que não mediu esforços para me franquear a realização deste trabalho. O PTA foi organizado no ano de 2005 como desdobramento do atendimento de uma adolescente com AN, internada na enfermaria do SSA no Hospital Universitário (HU). Derivou de iniciativa pessoal de uma profissional de saúde, sensibilizada pela necessidade de congregar esforços para o atendimento destes males, antes atendidos de modo disperso pelos vários ambulatórios existentes no SSA. Embora sua criação date de 10 anos atrás, tais transtornos já vinham sendo ali atendidos há mais tempo. O PTA situa-se então no âmbito de um Serviço mais amplo para adolescentes, com oferta de atenção à saúde em várias especialidades, que por sua vez está inserido em um HU. A sua designação como “Programa” e não somente um ambulatório de certa especialidade médica está relacionada à possibilidade de internação 9 das usuárias na enfermaria de adolescentes, caso haja necessidade. Essa possibilidade de congregar diferentes dimensões do cuidado à saúde, em âmbito ambulatorial e hospitalar, torna a proposta de atenção do PTA bastante interessante. Acredito que seja seu grande diferencial em relação aos outros espaços visitados, que ofereciam apenas o atendimento ambulatorial. Assim, quando havia a necessidade de internação (o que é frequente nos TA), muitas vezes não tinham sequer um espaço disponível para fazer os encaminhamentos e os usuários destes serviços acabam por não dar seguimento aos atendimentos, mesmo no ambulatório. Devido a sua inserção no contexto universitário, o PTA reúne as dimensões de ensino, pesquisa e extensão, aspectos que respondem por especificidades relativas à composição de sua equipe de profissionais, uma parte flutuante ou temporária, composta por profissionais de saúde em formação (graduação) e treinamento (residência médica e multiprofissional). Embora situado no espaço acadêmico, o foco do PTA para a pesquisa científica não é preponderante. Sua dimensão assistencial ganha importância frente à demanda que recebe e ao perfil dos profissionais que nele atuam. Assim, com frequência fui apresentada como “pesquisadora” do Programa aos visitantes que chegavam para dar algum informe ou perguntar algo durante as reuniões de equipe. “Temos até uma pesquisadora” foi uma frase muito pronunciada nos primeiros meses do campo em relação à minha presença dentre a equipe (TONIOL, 2014). Curiosamente, em outros serviços públicos onde busquei realizar 9 A questão da internação de adolescentes gravemente adoecidas pelos TA será abordada no próximo capítulo, pela sua importância e complexidade envolvida para equipe de saúde do PTA, as adolescentes, seus familiares e para o SSA como um todo. 123 meu trabalho de campo, minha entrada foi recusada para não ser mais uma “especialista” a competir com a equipe de profissionais de saúde existente no local, os quais também acumulavam a função de pesquisadores. No Brasil, há escassez de serviços públicos de saúde que tenham uma estrutura voltada para oferta de atendimento aos TA. O fato do PTA não constar do website do SSA me chamou a atenção, posto que a divulgação na internet aumentaria a sua visibilidade, podendo auxiliar um número maior de adolescentes e familiares que possam estar em busca de tratamento. Decerto sua divulgação publica na web poderia aumentar muito a demanda para atendimento no Programa, que possui equipe pequena e número de atendimentos semanais limitado. Ao longo do trabalho de campo, ficou claro que o atendimento de ampla demanda, não era o foco desse serviço, talvez por isso a omissão de sua existência no website do SSA. No entanto, o Programa de Obesidade em Adolescentes, que é mais antigo, mais conhecido dentro do SSA e com uma equipe maior, também não consta no site, que possivelmente não deve ser atualizado periodicamente quanto à estrutura de serviços ofertados e os profissionais que nele atendem. De todo o modo, a sinalização da existência do PTA dentro de um espaço voltado à saúde do adolescente, é algo que deveria ser avaliado pela equipe que almeja se tornar reconhecida pelo trabalho que desenvolve no âmbito da atenção aos TA no Brasil.de 4.2 A EQUIPE DE SAÚDE A equipe de saúde do PTA sofreu algumas alterações durante o período em que estive realizando a observação. Inicialmente era composta por 2 profissionais de psicologia, 1 de psiquiatria, 1 de nutrição e 2 de clínica médica. Faziam também parte da equipe 1 estagiária da psicologia, 1 residente de nutrição, 2 residentes de psicologia e alguns residentes de medicina. A rotatividade semestral ou anual dos residentes e estagiários é constante. Também havia uma única assistente social para todo o Serviço de Saúde de Adolescentes, o que a impedia de participar das reuniões de equipe do Programa. Quando finalizei o campo, o SSA estava sem assistente social e a equipe do PTA não contava mais com a profissional de psiquiatria. A psiquiatra passou a integrar outro grupo, interrompendo os atendimentos no SSA e se deslocando para o HU. No entanto, seus pacientes adolescentes mais antigos com TA que ainda necessitavam de acompanhamento, passaram a ser atendidos por ela na 124 psiquiatria do HU, geralmente em dia diferente do ambulatório do PTA. Por algum tempo, a coordenadora do PTA buscou um psiquiatra para atender aos adolescentes com TA, sem êxito. A chegada de nova psiquiatra, designada pela Direção do Serviço de Saúde do Adolescente e Coordenação de Psiquiatria do HU levou mais de seis meses, período no qual os pacientes novos ficaram sem atendimento psiquiátrico. Em minha primeira visita ao campo, procurei pela coordenadora do Programa, que já sabia da minha ida. Quando me apresentei, ela se sentiu aliviada, por temer que eu fosse uma nova paciente!10 Ao me apresentar, falei do projeto de pesquisa e seus objetivos, da importância do meu distanciamento para conseguir realizar a pesquisa, não atuando como nutricionista, e dos serviços antes visitados. Ela foi extremamente receptiva, atribuindo o fato de eu ter procurado o PTA para desenvolver minha pesquisa como sinal de seu reconhecimento e legitimidade no âmbito acadêmico. No mesmo dia que cheguei ao Programa fui apresentada ao restante da equipe e percebi que havia obtido boa acolhida em campo para fazer a etnografia. Para iniciar o campo, foi necessário providenciar alguns documentos de autorização firmados entre o PTA e o SSA e o IESC/UFRJ. A formalidade e a submissão às regras sociais eram valores sempre ali exaltados, por vezes incompatíveis com o comportamento adolescente. Quando finalizei o trabalho de campo e apresentei uma carta de agradecimento à instituição, fui elogiada publicamente diante de outros alunos, com destaque à minha postura sempre muito educada e respeitosa com a hierarquia local. Não foi à toa, que outros pedidos de aprovação de pesquisa no PTA foram recusados, sempre por não terem acatado o devido ritual de primeiro se dirigirem à coordenação do PTA. Dentro de um hospital, a medicina ocupa posição de destaque na concepção hegemônica sobre processo de saúde e doença e os médicos, enquanto categoria profissional, ocupam uma posição de soberania sobre as profissões ao redor (CARAPINHEIRO, 1998). Assim, o fato do PTA ser coordenado por uma mulher psicóloga, e não por um médico é sempre ressaltado. No entanto, a diferença de gênero e de formação na coordenação de um programa de saúde, se conjuga com “mãos de ferro” para governar, conforme o apelido de “general”, recebido dos colegas do SSA. A subordinação de sua posição como mulher nãomédica em um espaço rígido e socialmente demarcado como um hospital termina sendo compensada com o rigor excessivo com o qual PTA é coordenado. 10 Reforçando minha imagem jovial e magra, como tantos outros que ali aguardam. 125 Nessa equipe havia um único homem, um médico clínico, que fazia residência em psiquiatria e também o único profissional de saúde que oferecia resistência às determinações da coordenadora, discordando dela com frequência. O atrito entre o clínico/psiquiatra e a coordenadora/psicóloga a incomodava sobremaneira, a ponto de eu ter recebido a recomendação de não conversar muito com ele, pois sua conduta profissional não estava em acordo com os parâmetros adotados no PTA e não deveria ser abordada na pesquisa. Conflitos públicos que envolvessem as relações de hierarquia e de gênero sempre desestabilizavam a coordenação do Programa. Por ter se estruturado em decorrência do esforço e iniciativa pessoal de um profissional de saúde, a equipe do PTA, apesar de agregar profissionais com diferentes competências e tempo de trabalho na instituição, não se sentia apta a tomar qualquer decisão, sem o conhecimento da coordenação. A equipe não possuía autonomia para tomada de decisão, a presença da coordenadora era sempre necessária. Em sua ausência, não havia substitutos ou vice-coordenação, nenhuma decisão sobre agendamento de consultas ou alta de usuárias poderia ser tomada. Na etnografia realizada por Carvalho (2014) em um Centro de Atenção Psicossocial, o autor se refere à tensão entre a divisão de tarefas e as hierarquias dentro de uma equipe multidisciplinar. Embora os acordos fossem estabelecidos e negociados, as divergências permaneciam entre o tipo de terapia mais adequada aos usuários e o que poderia ou não ser considerado terapêutico. Esses conflitos acabam por exacerbar a necessidade de defesa da legitimidade de cada área profissional. A coordenação do PTA tem um cariz centralizador, uma postura pouco flexível, mas é preciso entender melhor esse jogo de forças e hierarquias que estão em atuação nessa equipe multiprofissional. Considera-se que o poder médico no hospital se localiza no serviço, mais especificamente em sua dimensão assistencial. Por isso, o atendimento em saúde é o lugar principal para se analisar o regime disciplinar do saber médico, e estudar a relação dos poderes-saberes médicos com o poder administrativo, podendo revelar quais formas cada um desses poderes assume (CARAPINHEIRO, 1998). O hospital é uma instituição mantida e governada pelos profissionais, onde estes se reúnem a fim de concretizar seus respectivos projetos. Em cada profissão, destacam-se não apenas uma diversidade de treinos e competências, mas também uma diversidade de ideologias relativas à etiologias e tratamentos das doenças, elementos base para o desencadeamento de múltiplos processos de negociação. Sendo também uma organização burocrática, é controlado por grupos que desempenham as 126 tarefas mais difíceis e críticas e são as características destes grupos que determinam as políticas, regras e os objetivos organizacionais (CARAPINHEIRO, 1998; STRAUSS et al, 1963). Em toda equipe de saúde, a posição ocupada pelo coordenador é delicada, pois cabe a ele assegurar a objetividade profissional do grupo e a firmeza nas condutas terapêuticas. Geralmente, o tempo de atuação profissional também interfere no estabelecimento da hierarquia dentro da equipe, de modo que, antes de qualquer decisão referente aos usuários, o coordenador é consultado, mesmo que seja necessária a interrupção da consulta (SILVA, 2011). Assim, é preciso relativizar as práticas sociais destes agentes, contextualizando-as no cenário institucional onde ocorrem, em suas limitações e precariedades, no que se refere aos recursos disponíveis para atuar de modo muitas vezes “improvisado”. No panorama da atenção pública aos TA no Rio de Janeiro, bastante restrito, a missão da coordenação de manter funcionando um Programa que não recebe o necessário apoio institucional tem sido árdua, bem como dos componentes da equipe, que precisam se manter motivados para atuar em um Programa com todas as dificuldades que enfrentam. 4.3 DINÂMICA DE ATENDIMENTO AO PÚBLICO O PTA possui atendimento ambulatorial semanal e, se necessário, é possível acionar o hospital, em casos graves de internação, embora a enfermaria voltada para adolescentes nem sempre possua vagas disponíveis. São atendidos adolescentes de ambos os sexos, embora a maioria seja do sexo feminino, entre 12 e 18 anos e os cuidados não se limitam a pacientes com diagnóstico de AN concluído. Isso quer dizer que, mesmo a equipe não fechando os critérios clínicos para o diagnóstico de AN (como previsto no DSM), o adolescente será absorvido para acompanhamento ambulatorial. No PTA são atendidos casos de anorexia e bulimia nervosa. Os casos de compulsão alimentar que cursam com obesidade são atendidos no Programa de Obesidade, o qual tem ambulatório em outro dia da semana. Há casos de usuárias com AN que migraram ou estão migrando para o sobrepeso ou obesidade, nessa situação continuam no PTA com a mesma equipe que já a conhece. A entrada no serviço de saúde se dá por inúmeras maneiras: encaminhamento de outros hospitais, da rede de atenção básica, por alguma possível reportagem do serviço na 127 mídia, pelo boca-a-boca, demanda espontânea, etc... Ao chegar ao PTA, a usuária primeiramente passa pelo atendimento da saúde mental (psicologia). Depois ela circula no Programa sendo atendida pelos outros profissionais de saúde. Geralmente, é a própria coordenadora quem faz essa “escuta inicial” e, em seguida, apenas apresenta a adolescente à nutricionista, que atende no consultório ao lado, para fazer uma primeira aproximação. O primeiro atendimento ocorre em um dia e a usuária é marcada para iniciar o acompanhamento no PTA na semana seguinte. Primeiro, ela será encaminhada à clínica, depois à psicologia e por último à nutrição. Essa ordem, no entanto não é fixa. Os atendimentos ocorrem todas as quartas-feiras pela manhã, das 8:30 às 12:30 horas (geralmente por volta das 11:30 horas já havia encerrado). As usuárias devem chegar cedo, pois a entrega do cartão de marcação de consultas deve ser feita na recepção da enfermagem entre 8:00 e 9:00 horas. A equipe de enfermagem organiza esses cartões por ordem de chegada na bancada da estante que fica no corredor interno do serviço de saúde. Ao final da reunião de equipe, os profissionais pegam os cartões e vão chamando na ordem. A agenda para marcação de consultas de clínica médica do PTA, bem como os prontuários ficam guardados na estante da sala de reuniões. A equipe de saúde se reúne entre 8:00 e 8:30 horas para discutir os casos que serão atendidos naquele dia e informes de algum possível paciente do PTA que esteja internado na enfermaria de adolescentes. Assim, a mesma equipe que atende os pacientes no ambulatório permanece acompanhando-o em caso de internação, embora haja uma equipe que é exclusivamente da enfermaria de adolescentes e que faz o cuidado diário. Desse modo, há um feed-back para todos da equipe sobre como está sendo o tratamento na internação. Ao término da reunião, cada profissional de saúde segue para sua sala. Essas reuniões me ajudaram muito no início do campo a conhecer melhor a equipe e também as adolescentes. Aproximando-me da compreensão deste processo de adoecimento por parte da equipe, pude contrastá-la posteriormente com a da própria adolescente. Avalio como positiva para a equipe a existência dessas reuniões, pois ao longo do turno de atendimentos era difícil conseguir reunir todos para falar sobre as usuárias. No entanto, quando finalizei o campo, elas praticamente não ocorriam mais, talvez pelos desgastes entre a equipe ou desmotivação dos profissionais. A cada quarta-feira são atendidos no máximo 5 pacientes no ambulatório de TA, 4 subsequentes e um de primeira vez. Na agenda da clínica médica havia espaço para o número do prontuário, nome do usuário, telefone e passou-se a colocar “P” para presença e “F” para 128 os adolescentes faltosos. Na verdade, trata-se de uma pasta transparente que permite a retirada e o acréscimo de folhas avulsas impressas do computador. Minha rotina de observação participante no Programa foi se definindo da seguinte forma: acompanhava a reunião de equipe e posteriormente me dividia entre observar os atendimentos da nutrição ou da clínica médica e a sala de espera. Mesmo reforçando antes de cada atendimento que eu estava ali como pesquisadora para observar, quase sempre fui apresentada aos adolescentes e seus responsáveis pelos profissionais do serviço ou pelos residentes como nutricionista. Mas ainda assim, durante as entrevistas ou mesmo conversando na sala de espera, percebia que as adolescentes haviam esquecido essa informação (possivelmente pelo número e diversidade de profissionais, residentes, estagiários que as circundam). Nos consultórios, geralmente ficava assentada em uma cadeira no fundo da sala, ou mesmo em pé. Na consulta de nutrição, apenas eu observava, na de clínica quase sempre havia algum aluno ou residente de medicina. Na nutrição quem faz a maioria dos atendimentos é a residente, e a nutricionista apenas assiste para depois que o paciente sai da sala orientar a aluna. Nas consultas em que observei, ela não ficou na sala justificando que seriam muitas pessoas e isso poderia assustar as adolescentes. De fato, nas consultas de medicina que eram sempre cheias, era comum que as adolescentes ficassem acanhadas. A princípio, uma das residentes de nutrição ficava insegura por eu estar observando. Quando a adolescente saía do consultório, a residente costumava se desculpar por ter feito algo de errado, perguntava minha opinião e dizia que esperava ter me ajudado. No início, eu tinha dificuldade com essas consultas, porque formulava condutas diferentes e pensava numa série de intervenções possíveis. Eu tinha vontade de intervir ou de complementar. Sentia a “dualidade identitária” abordada por Zambrano (2010, p.64) ao iniciar sua pesquisa de mestrado. Embora no início do campo não estivesse clara minha formação como nutricionista para todos os membros da equipe do Programa, sempre esteve claro que eu era também uma profissional de saúde, o que serviu como um elemento facilitador para as observações das reuniões, consultas (FERREIRA, 2014; FERREIRA, 2011) e mesmo para melhor aceitação de minha presença entre a equipe. 129 O fato de ser nutricionista tinha outra implicação para a pesquisa, a necessidade de exercer um olhar antropológico (estranhar, me distanciar) em um contexto relativamente familiar. Seria possível observar e descobrir fatos novos que me obrigassem a desconstruir ideias pré-concebidas (FERREIRA, 2014)? Na verdade, o desafio estava em apreender essa realidade e considerar como dado de pesquisa todas as concepções inerentes a minha formação. Oliveira (1998) afirma que um dos pontos mais difíceis de sua pesquisa foi separar o médico clinicando do antropólogo em campo. Até deixar o papel de nutricionista, embora em verdade nunca o tenha deixado, e me colocar no lugar de observadora levou certo tempo, mas nunca opinei sobre as condutas, sempre reforçava o quanto as observações eram importantes e procurava deixar o profissional o mais confortável possível com a minha presença. Essa dificuldade em lidar com a chamada “dupla identidade” de nutricionista e pesquisadora também foi relatada nos trabalhos de Ferreira (2011), Menezes (2006) e Chazan (2005). Durante as minhas observações, deixava claro que estava observando a dinâmica do atendimento e não a postura ou conduta profissional. Do mesmo modo que Ferreira (2014), quando estava assistindo a uma consulta, procurava ser o mais discreta possível e apenas opinava quando era solicitada, embora isso tenha se tornado cada vez mais frequente. Como nutricionista nunca havia atendido um caso de TA e tinha uma curiosidade profissional sobre como seria a terapêutica utilizada nesses casos, o que me fazia formular questões e pensar em atitudes diferentes das que via sendo apresentadas às adolescentes e seus familiares. Assim, percebia de forma mais contundente nas consultas de nutrição a pouca sensibilidade para se adequar a conduta nutricional às necessidades e possibilidades da adolescente e seus familiares. Como exemplo, havia uma adolescente cuja família possuía precárias condições socioeconômicas, mesmo assim, foi sugerido pela jovem residente comprar Sustagem® e barrinhas de cereal, além de adquirir uma garrafinha de água que andava na moda entre os frequentadores de academia e tinha o custo de R$20,00 a R$30,00. Se, tal como se cogita, a AN se inicia após uma dieta que perdeu os limites na busca por atingir um certo padrão corporal de beleza, a sugestão da residente em incluir na rotina diária e alimentar da adolescente, itens comumente usados, porém caros para ela e sua família, poderia contribuir ainda mais para que ela se sentisse fora dos padrões que tanto persegue. Por vezes, não há uma sensibilidade social para adequar as prescrições às condições materiais de existência das jovens e suas famílias. 130 Assim como descrito por Chazan (2005) em sua etnografia com gestantes, minha presença nas consultas sempre pareceu incomodar aos profissionais de saúde e não as adolescentes atendidas. Logo que cheguei em campo a nutricionista conversou comigo buscando me ajudar e também entender o que eu estava procurando junto ao PTA. Fez questão de falar o tempo que trabalha “na casa”, há mais de 25 anos, e sempre que podia se referia a mim e aos clínicos que atendem TA como “crianças”, dando a entender que ainda nos falta muito em experiência para chegar à compreensão que ela tem sobre o Programa e a AN. Nessa conversa inicial, a nutricionista minimizou a atuação da nutrição no PTA em prol da atuação psicológica, assinalando o desequilíbrio mental das adolescentes (“cabeça podre”), exemplificado pela interrupção da ingestão de água para não inchar, o que ela considera absurdo. Destacou as inúmeras limitações da intervenção profissional do nutricionista frente a uma compreensão da doença como transtorno mental e não propriamente alimentar. Essa concepção fica muito clara também em sua participação durante as reuniões de equipe. Sobre as consultas que acompanhei na clínica médica, a profissional sempre nos questionava (residentes e eu) se queríamos contribuir e costumava me perguntar questões relacionadas à nutrição. Como as perguntas e comentários eram feitos na ausência da usuária, costumava responder e interagir com quem estava na sala. A médica tem uma postura firme com as adolescentes e, de início, eu sentia pena ao ver uma adolescente chorando e dizendo que comeu tudo direitinho durante a semana e que ninguém acreditava nela. Com o tempo, percebi que se a médica acreditasse numa adolescente que perdia cada vez mais peso a cada semana, mesmo dizendo que não estava se exercitando e comendo todos os alimentos nas quantidades prescritas, ela estaria sendo conivente e não as ajudaria no tratamento. É difícil não se deixar levar pelos apelos adolescentes, mas a médica clínica sabia discernir a gravidade dos fatos e os choros das adolescentes não a fazia esmorecer em suas condutas. Por se tratar de um serviço de saúde ligado a uma universidade, portanto, voltado à formação discente, a convivência entre residentes e adolescentes apresenta contornos interessantes. O atendimento realizado pelos médicos residentes desencadeia em ambos os lados reações de insegurança. No caso do residente, por ainda estar em treinamento e ser muitas vezes desafiado em seu “saber” durante as consultas. Quanto à adolescente, por desejar 131 alguém que aparente maior experiência e maturidade para exercer tal função. Creio que o constrangimento maior se deva ao fato de ambos serem igualmente jovens. Um relato elucida bem tal estranhamento. Durante três semanas, um brasileiro, estudante de medicina na Alemanha, que estava de férias no Rio, acompanhou as atividades no PTA como parte de um trabalho acadêmico que estava fazendo. Um dia, ao aguardar comigo no corredor para assistir uma consulta revelou que ficava apreensivo, pois sentia que sua presença causava desconforto. Esclareceu que a consulta anterior que havíamos assistido foi com uma adolescente de 17 anos e ele, por ter apenas 19 anos, percebia que não deveria “fazer sentido” para essas meninas o ver no consultório, pois ele ainda era “um menino”. Do mesmo modo, muitos residentes se passariam por adolescentes e talvez por isso também ficassem inseguros. Especialmente durante o exame físico na consulta médica (conforme destacado no capítulo anterior), por vezes realizado em uma sala com 3 ou 4 pessoas observando, as adolescentes sentiam-se bem constrangidas. Quando comecei a participar das reuniões de equipe, inicialmente as pessoas não pareciam curiosas com a minha presença e não entendiam bem o que eu estava fazendo lá. Com o tempo, no entanto, diferentes profissionais de saúde do PTA começaram a questionar se eu estava gostando, se minhas idas estavam sendo úteis e se poderiam me ajudar de alguma forma. Da mesma forma, Faria (2008) afirma que mesmo sem compreender exatamente o que ela buscava, a equipe da unidade de saúde se esforçava para ajudar em seu trabalho. Poucos meses após o início das observações, a coordenadora clínica do SSA apareceu na reunião do PTA para dar um recado e houve uma roda de apresentações, pois havia novos residentes e algumas pessoas ainda não se conheciam. Na minha vez, percebi que algumas pessoas que já me conheciam, julgavam que eu era psicóloga e nem mesmo sabiam meu nome. Houve espanto quando falei que era nutricionista, no entanto sempre ficou claro que eu tinha formação na área da saúde e isso era um dado importante que me fazia por vezes ser tratada como membro da equipe. Machado (2008) buscou afirmar seu lugar de pesquisadora e, portando, alguém de fora da equipe de saúde do local onde realizou seu campo. No entanto, o fato dela ser psicóloga era algo importante e que marcava o seu lugar naquele espaço. Nessa ocasião ficou claro que as pessoas tinham muita curiosidade em saber mais sobre o que eu estava fazendo, mas não me perguntavam diretamente. Expliquei que na época estava fazendo um período de observação, mas que posteriormente passaria às entrevistas com as adolescentes. Disse que estava muito grata pela oportunidade de estar lá e que estava 132 aprendendo muito. A resposta pareceu satisfatória e a próxima pessoa começou a se apresentar. O fato de estar observando nunca foi bem compreendido. Por vezes, os profissionais de saúde me abordavam na sala de espera e perguntavam o que eu estava fazendo lá. Ou quando abriam a porta do consultório para chamar um usuário e me viam sentada correspondiam com um “sorriso amarelo”. Após uma reunião de equipe, a coordenadora me perguntou se eu queria continuar naquela sala e eu disse que iria para a sala de espera. Nesse dia ela passou por lá diversas vezes me observando. Na semana seguinte questionou o que eu havia feito sentada em meio aos usuários por toda a manhã e o que eu estava escrevendo. Procurava dar a mesma resposta a todos, afirmando anotar detalhes da rotina, observando as interações entre as pessoas e essa resposta era sempre bem aceita. Algumas das situações que observei ocorreram precisamente porque eu estava observando, especialmente nas reuniões de equipe. Tais situações se repetiam diversas vezes e em alguns casos ainda recebia uma recomendação: “Isso é legal você anotar para colocar na sua pesquisa”. Menezes (2006, p.24) destaca que mesmo sabendo que ela estava junto à equipe observando com o propósito de realizar seu estudo, muitos profissionais não conseguiam se comportar com espontaneidade e havia uma preocupação da equipe em “passar” a melhor imagem. O Programa no qual a pesquisa foi realizada apresenta um importante diferencial em relação aos outros serviços de saúde visitados anteriormente pelo fato de estar voltado para a população adolescente. A AN é uma doença grave com curso crônico, cujo início normalmente se dá com um jejum progressivo e, muitas vezes, os familiares só percebem ou identificam o problema quando o emagrecimento torna-se acentuado (ESPÍNDOLA; BLAY, 2009; APA, 2000). Pessoas com AN demandam acompanhamento intenso, com participação de uma equipe multidisciplinar e apoio constante da família (NICOLETTI et al, 2010). Devido à gravidade dos casos, a internação invariavelmente se faz necessária (GUIMARÃES et al, 2002). Dentre os serviços visitados, apenas este conseguia ofertar a atenção ambulatorial e a internação hospitalar. Nos outros serviços, não havia a possibilidade de internação e esses espaços não podiam manter os usuários mais graves apenas com cuidados ambulatoriais. No entanto, ao longo do período de observação pude constatar que a questão da internação não é balizada apenas pela necessidade ou gravidade do caso, tema a ser discutido no capítulo seguinte. 133 No PTA ocorreram dois casos de óbito de adolescentes, ambas com AN. Uma delas chegou bastante grave, foi logo internada, mas ao deixar a internação sumiu dos atendimentos e, quando retornou, já estava muito debilitada e faleceu em poucos dias. O PTA, mesmo sabendo que costuma ser comum as pacientes com TA terem resistência a iniciar e seguir o tratamento e que tais ausências especialmente em estágios avançados da doença são correntes, não possui condições para buscá-las quando há abandono do tratamento. Se uma adolescente em acompanhamento no Programa desaparece e depois de algum tempo retorna ainda mais grave, o PTA não costuma investigar a fundo tal ausência, que talvez pudesse revelar sobre as muitas ambiguidades do tratamento. Ao retornar de um período de abandono do tratamento, a adolescente e seus responsáveis podem ser passíveis de críticas e repreensões. A frase “elas (as adolescentes) tiram férias quando querem, mas nós não podemos tirar férias delas!” dita em uma das reuniões de equipe, é bem representativa do quanto o PTA está ciente de que essa postura instável é comum, mas isso não deveria de modo algum ser banalizado ou negligenciado. A outra adolescente que veio a óbito faleceu no mesmo dia em que foi internada no Serviço de Adolescentes. Era atendida em outro serviço público de psiquiatria, sem condições para internação e foi encaminhada para o PTA quando seu quadro se agravou. Sua mãe havia primeiro buscado ajuda em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), antes de levá-la direto ao PTA. Ao chegar na internação da enfermaria de adolescentes, a mesma faleceu poucas horas depois de internada. Acredito que muitos casos sigam por esse caminho, porque há desinformação e eventualmente omissão por parte dos profissionais, dos serviços de saúde e inicialmente até mesmo dos pais que acreditam que a filha esteja renitente em se alimentar, conforme presenciei algumas vezes no Programa. De fato, há carência de serviços de saúde estruturados, com ambulatório e internação disponíveis para atender os casos de TA e, especialmente profissionais capacitados e sensíveis para acolher essas adolescentes com TA no Brasil.11 11 Em 2012, haveria um simpósio no Estado do Rio de Janeiro para reunir os diferentes serviços que ofertam atendimento em saúde aos TA, no sentido de promover a troca de experiências e intercâmbio institucional. Seu cancelamento evidencia a dificuldade de articulação institucional, o que acaba por comprometer a formulação de estratégias coletivas para melhor acolher aqueles que padecem desses transtornos na região. 134 4.4 A CONSTRUÇÃO DO DIAGNÓSTICO No PTA o diagnóstico fechado para anorexia e bulimia nervosa não é um pré-requisito para o atendimento aos adolescentes e há discordâncias na equipe quanto a tal aspecto. Um dos profissionais de saúde afirma que se os critérios do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM) fossem seguidos à risca, mais de 50% dos pacientes acolhidos no Programa estariam excluídos. Por não adotarem rigidamente tais critérios diagnósticos, ele questiona se o Programa pode ser considerado de fato um serviço especializado em atendimento aos TA. No trabalho de Marini (2013) a autora esclarece que a instituição etnografada não possui sede própria, e cada profissional atende em seu próprio consultório, assim as psicanalistas se reúnem uma vez por semana em um lugar específico para discutir os casos, triagens e burocracias, mas as pacientes fazem o contato inicial por e-mail ou telefone e, uma vez que se identifique uma possível necessidade de atendimento há o encaminhamento para triagem. No entanto, a triagem ainda não garante o atendimento, uma vez que esse só ocorrerá se o diagnóstico for de AN ou BN, qualquer outro diagnóstico ou a ausência de uma hipótese diagnóstica não será acolhido para atendimento. O espaço escolhido por Marini (2013) apresenta outras peculiaridades: é uma instituição psicanalista que se baseia em critérios diagnósticos psiquiátricos para orientar seu atendimento e trabalha exclusivamente com TA cuja abordagem legitimada demanda uma equipe multiprofissional. A adoção dos diagnósticos fechados apresenta uma contradição, pois nesse estágio de adoecimento, além da necessidade da equipe multiprofissional, a internação é indicada na maioria dos casos e a instituição não oferece nenhum dos recursos. Assim, o que fazem é indicar para as pacientes o acompanhamento de outros profissionais, geralmente psiquiatras e nutricionistas, alguns indicados pelas psicanalistas, chegando a se recusarem a atender a paciente caso ela opte por não fazer os acompanhamentos paralelos. Esse exemplo ilustra a realidade brasileira em relação à atenção aos TA. A escassez de instituições com formação e estrutura adequada, aliada à precariedade de recursos a serem investidos para a formação de novos espaços ou melhoria dos existentes, estimula os profissionais com interesse em trabalhar nessa área a ofertarem soluções paliativas ou particulares para o problema. Aqueles que padecem dessas doenças se tornam reféns de 135 exigências muitas vezes descabidas para que sejam atendidos em determinados locais. No caso dessa instituição, apenas os sintomas sugestivos de TA não eram suficientes para acolher o paciente no atendimento. Paradoxalmente, ao “aguardar” a consolidação do TA tal como descrito nos manuais psiquiátricos, a paciente já retorna com um quadro grave instalado, no qual a estrutura oferecida não contempla o acompanhamento necessário. Acredito que o fato do PTA não exigir o diagnóstico totalmente concluído para então absorver um usuário é um ponto positivo. Em relação aos TA, o prognóstico é considerado muito pior quando todos os critérios estão instalados. No entanto, não são todos os serviços de saúde que têm essa concepção e o diagnóstico preciso ainda tem um peso muito grande estando, por vezes, acima da saúde e bem-estar do paciente. Nos outros serviços de saúde em que busquei realizar a pesquisa, se a paciente fosse diagnosticada com AN clássica, ou seja, a que preenche os critérios para fechar diagnóstico, ela não seria atendida. Parece contraditório, mas devido à gravidade do quadro e à impossibilidade de internação, os serviços optavam por não tratar o caso apenas com atendimento ambulatorial. No entanto, nenhum encaminhamento era feito para a paciente, até porque não há no estado do Rio de Janeiro um local que seja referência para atendimento de TA, a ponto de acolher a demanda não absorvida dos outros serviços de saúde, podendo oferecer a essas pessoas o tratamento com uma equipe multiprofissional, acompanhamento ambulatorial e internação. Ou seja, profissional algum soube me explicar para onde iam essas pessoas que, uma vez chegando ao serviço de saúde em risco de vida e, não recebendo a devida atenção, não tinham mais a quem recorrer. A chamada AN atípica, ou seja, aquela que “é grave, mas não é tanto”, essa sim era atendida. Em um dos serviços de saúde havia inclusive um ponto de corte do Índice de Massa Corporal (IMC) e somente acima daquele valor era atendido. Assim, uma pessoa poderia chegar para atendimento e, após ter o valor do seu peso em quilogramas dividido pela sua altura ao quadrado em metros, se o valor fosse inferior ao estipulado, precisaria abandonar os atendimentos. O outro lado da moeda é também cruel. Como visto, uma pessoa poderia ir buscar atendimento em um serviço de saúde e, uma vez que não está ainda tão adoecida a ponto de se enquadrar nos critérios diagnósticos previstos e utilizados em todo o mundo, não poderia ser atendida pela equipe. Essa questão de fechar ou não os critérios para diagnóstico da AN é discutida não apenas no Brasil, mas em todo o mundo entre aqueles que se dispõem a atuar e pesquisar nesse campo. Por um lado, se defende a existência dos critérios para reconhecer a 136 doença, produzir dados estatísticos, intervenções e comparações entre os casos e contextos. Por outro, sabe-se que são critérios muito rígidos e nessa etapa em que a doença já está instalada tem grandes riscos de se tornar crônica, quando não leva a óbito. No website de um serviço ligado a uma universidade pública em São Paulo, constam somente quatro outros serviços em São Paulo, um na Bahia, um no Rio Grande do Sul e um no Rio de Janeiro, para atendimento aos TA no Brasil. A AN possui um claro viés de gênero. Alguns autores sugerem que a AN se inicia mais ou menos na mesma idade nos meninos e nas meninas (WOODSIDE et al., 1990), mas o mais comum é afirmar que o quadro em homens se inicia mais tardiamente do que nas mulheres, entre 18 e 26 anos (BRAMON-BOSCH et al., 2000; CARLAT; CAMARGO JÚNIOR, 1991). Como tem sido uma doença associada com a adolescência e as mudanças peculiares dessa fase, o fato de homens iniciarem o quadro mais tarde estaria ligado à puberdade mais tardia nos meninos (MELIN; ARAÚJO, 2002). Há ainda quem aponte que a adolescência para as meninas representa um período mais traumático e com maiores mudanças, repleta ainda de alterações hormonais que propiciam o acúmulo de gordura corporal, o que não acontece nos rapazes e, por conseguinte, reduziria as chances destes desencadearem o TA (BRAUN et al, 1999). Na AN a utilização do determinismo biológico termina por reafirmar o viés de gênero amplamente disseminado. A discussão sobre sexo e gênero na vida social pode ser problemática devido ao uso indevido da palavra “natural”, de modo que, por vezes, as diferenças entre mulheres e homens são tomadas como originárias da biologia (MOORE, 1997). Mas os significados simbólicos associados às categorias “mulher” e “homem” são socialmente construídos e, portanto, não poderiam ser considerados naturais, fixos ou predeterminados. No entanto, na nossa cultura, a indicação do sexo biológico ainda é um aspecto fundamental que orienta a nossa percepção do gênero (SCOTT, 1995). A questão da amenorréia foi, durante algum tempo, essencial para o diagnóstico da AN, o que em si, já excluía os homens da possibilidade de desenvolverem tal transtorno. Ela estava presente nos principais protocolos adotados para diagnóstico nos serviços de saúde em todo o mundo, a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) da American Psychiatric Association (APA). 137 No DSM-IV-TR (APA-2000b) prevalece um critério exclusivo para mulheres: “No que diz respeito especificamente às mulheres, a ausência de pelo menos três ciclos menstruais consecutivos, quando é esperado ocorrer o contrário (amenorréia primária ou secundária)”. No CID-10 (OMS, 1993), criou-se o que seria o equivalente à amenorréia feminina em homens: impotência e falta de desejo sexual. “Um transtorno endócrino generalizado envolvendo o eixo hipotalâmico-hipofisário-gonadal é manifestado em mulheres como amenorréia e em homens como uma perda de interesse e potência sexuais” (CORDÁS, 2004). Assim, profissionais de saúde e pesquisadores de diferentes áreas, que formam o grupo responsável por avaliar e definir os critérios pensavam estar resolvendo as marcas de gênero envolvidas no diagnóstico da AN. Com a alteração endócrina, ocorrida em ambos os casos, tem-se a amenorréia em mulheres, colocando em xeque sua capacidade reprodutiva, em homens, por outro lado tal alteração envolve a perda de interesse sexual (que também ocorre em mulheres, mas não é ressaltada) e a impotência sexual, que é destacada como o grande problema entre os homens que sofrem desse TA. Embora seja falsa a ideia de que os homens possuem uma “aptidão natural” para o sexo, pois o conhecimento sobre o ato sexual não é inato aos homens, mas precisa ser aprendido, a sexualidade permanece como característica central da masculinidade dominante, somada à atividade sexual heterossexual, à virilidade, a capacidade de penetração durante o ato sexual. Além da sexualidade, também recebem importância a capacidade de prover uma família, a força física, a pouca preocupação com a saúde e a estética (este último especialmente ligado ao reforço do não reconhecimento da AN em homens heterossexuais), dentre outros (RIBEIRO et al, 2013). Apenas em 2013, com a publicação da atual versão do DSM12, o DSM-V13 – que permanece apontando adolescentes e jovens do sexo feminino como grupo prioritário ocorreu a exclusão do critério D, que preconizava a presença de amenorréia. Tal exclusão se deveu ao fato de que uma série de estudos comprovou que as mulheres reuniam todos os critérios para diagnóstico de AN, porém conservando alguma atividade menstrual. Tal critério também não contemplava meninas pré-menarca (cabe destacar que a AN tem se iniciado cada vez mais cedo), mulheres na pós-menopausa, mulheres que fazem uso de contraceptivo oral de uso contínuo e, especialmente os homens (COZER; PISCIOLARO, 2011). 12 13 Para saber mais sobre o DSM-V: http://www.dsm5.org/Pages/Default.aspx As principais alterações relacionadas a AN no DSM-V podem http://www.dsm5.org/Documents/Eating%20Disorders%20Fact%20Sheet.pdf ser consultadas em: 138 Mas a ocorrência de TA em homens apresenta algumas características peculiares. Os homens estão mais satisfeitos com seus corpos e os percebem com menos distorção (MELIN; ARAÚJO, 2002), relatam maior preocupação com a forma física e a massa corporal (e não com o peso em si), e não fazem uso tão frequente de laxantes e pílulas para emagrecer quanto as mulheres. Tal fato tem sido relacionado ao metabolismo masculino, que faz com que os homens tenham maior facilidade para perder peso sem necessitarem recorrer a tais artifícios. Eles também não apresentam retenção hídrica como as mulheres em alguns períodos do mês (BRAUN et al, 1999; CARLAT; CAMARGO JÚNIOR, 1991). Um exemplo de como concepções arraigadas sobre o gênero orientam as condutas terapêuticas pode ser dado pela não inclusão de um adolescente diagnosticado com depressão, que chegou ao Programa com queixa de privação alimentar. Segundo avaliação da equipe, não havia um transtorno alimentar. Questiono se fosse com uma adolescente, o mesmo caso não seria visto de forma contrária: uma menina com um TA e que por consequência desenvolveu uma depressão. Por ser um homem, a “falta de apetite” é interpretada como consequência da depressão. Há que se ter muito cuidado para certas associações não serem feitas com base em estereótipos de gênero. Nesse caso, o adolescente foi encaminhado para acompanhamento com a psiquiatria do Serviço de Saúde do Adolescente e não admitido no PTA. É reconhecido que, desde a genealogia das definições biomédicas dos TA, e especialmente da AN, estes são concebidos como transtornos eminentemente femininos (SILVA, 2011). Mas uma série de estudos (YOUNIS; ALI, 2012; SANTOS et al, 2012; RAEVUORI et al, 2009; ANDRADE; SANTOS, 2009) vem apontando a ocorrência de casos em homens com características muito próximas ao que ocorre em mulheres, o que deveria chamar a atenção para a vulnerabilidade do gênero masculino em relação a esses transtornos (MELIN; ARAÚJO, 2002). Desde a publicação de 1994, os critérios diagnósticos do DSM foram alvo de críticas e novos possíveis TA foram descritos na literatura científica. Assim, a 5 a revisão teve como premissa a adequação a essas novas descobertas (COZER; PISCIOLARO, 2011). Mas os critérios diagnósticos do DSM são baseados em ideais ocidentais sobre a forma do corpo e o medo mórbido de engordar (chamado de “fat fobia” ou “lipofobia”) é aceito pela biomedicina como a questão central da AN (sem ele o diagnóstico de AN é impensável), o que pode representar um ponto de vista culturalmente tendencioso, impedindo uma compreensão mais profunda dessa doença (ALLEN, 2008; LEE, 1995). 139 As limitações dos manuais utilizados para diagnóstico, tanto do CID-10 quanto do DSM-V, são inúmeras. Tratando-se especificamente do atendimento de adolescentes seria inadequado utilizá-los, pois, em ambas as situações as definições dos critérios foram baseados em casos ocorridos em adultos, mesmo sendo reconhecido que o início do quadro atinge uma proporção considerável de adolescentes e há a recente identificação do transtorno também em crianças. O estabelecimento de um ponto de corte no IMC para a definição do diagnóstico também seria inadequado aos casos de crianças e adolescentes que ainda estão em desenvolvimento (MARINI, 2013). No atendimento em nutrição não é usual considerar esse parâmetro para fechar o diagnóstico nutricional em crianças e adolescentes justamente por não ser ainda algo definitivo e as mudanças nesses grupos populacionais ocorrerem de modo rápido, sendo uma opção inadequada para definição de tratamento. Nesses casos, a estagnação da estatura pode representar algo muito mais significativo que o IMC. Normalmente, mudanças do diagnóstico de anorexia para o de bulimia nervosa e viceversa são consideradas. Milos et al, (2005) avaliaram a migração entre os diagnósticos de AN, BN e TANE (Transtorno Alimentar Não Especificado) em 192 mulheres durante 30 meses e encontraram mudanças frequentes das pacientes entre os diagnósticos o que, de acordo com os autores, reforçaria a corrente de que esses transtornos apresentam uma série de características comuns e poderiam ser vistos como uma entidade única. A identificação de um número cada vez maior de casos de TANE tem sido avaliada em função dos critérios diagnósticos para AN e BN serem rigorosos, excluindo desse modo os estados muito semelhantes (FAIRBURN; COOPER, 2011). “Aparentemente, nada pode ser tão distante, ou sugerir tanto uma oposição clínica, quanto pacientes com AN de um lado e pacientes com obesidade mórbida do outro” (CORDÁS et al, 2004, p.564). No entanto, começam a aparecer os primeiros casos de adolescentes obesas que migraram para AN. Embora a adolescente em questão não pudesse receber o diagnóstico de acordo com o CID-10, pois não atingiu o nível de perda de peso “necessário” para tanto, trata-se de um caso da chamada “AN atípica” onde o medo mórbido de engordar, a distorção da imagem corporal e até mesmo a amenorréia estão presentes em alguns casos (WOLTER et al, 2009). No programa americano “Say Yes To The Dress” (transmitido pelo canal Discovery Home & Health, em abril de 2014) sobre a busca do vestido ideal para o casamento, foi contada a história de uma mulher que havia emagrecido impressionantes 75 kg, sem fazer cirurgia para isso. Ao longo do programa apareceram fotos da moça durante sua infância, 140 adolescência e início da vida adulta. Parecia tratar-se de outra pessoa. Apesar de todo esse emagrecimento, a mulher ainda se sentia insegura, culpabilizando os anos que a gordura a perseguia e dizendo que não conseguia ver-se bonita e confiante. Durantes as provas na busca pelo “vestido ideal”, costelas, escápulas e uma série de ossos, inclusive os da face se revelavam e para mim pareceu claro que aquela moça estava doente, sua magreza era tão agressiva que eu já não conseguia ver beleza em seu corpo, embora se tratasse de uma mulher bonita. Mas o grupo de amigas que a acompanhava não cansava de elogiá-la e valorizar todo o esforço que teve para emagrecer, dizendo o quanto estava mais bonita. Todo o incentivo e valorização do emagrecimento quando se trata de uma pessoa obesa, podem acabar contribuindo para essa perda de limites e reconhecer o adoecimento pode ser ainda mais difícil. Afinal, quem pensaria que uma mulher que foi obesa a vida inteira poderia se tornar anoréxica? Nem mesmo os familiares e amigos próximos se dão conta da gravidade da questão. Em paralelo, com a crescente indicação das cirurgias bariátricas no tratamento da obesidade, relatos de evolução pós-cirúrgica para AN também começam a ocorrer e, embora ainda muito raros, o risco da sua ocorrência também deve ser lembrado pelos profissionais de saúde. Cordás et al, (2004) apontam que os indivíduos que passaram pela cirurgia bariátrica apresentaram TA que não preenchiam todos os critérios para AN ou BN, no entanto, exibiam um quadro com importantes alterações no comportamento alimentar, com preocupação excessiva com a perda de peso associadas a uma distorção da imagem corporal. No PTA houve uma adolescente com AN clássica, ou seja, todos os critérios do DSM e do CID-10 se encontravam presentes, que após algum tempo de tratamento migrou progressivamente para o sobrepeso e atingiu a obesidade. Essa dificuldade de se adaptar às regras alimentares para um peso “ideal” (nem obesa, nem anoréxica) das adolescentes parecia ser frequente no cotidiano da atenção aos TA. A adolescente em questão chegou a reclamar que não estava conseguindo “se comportar” com relação a sua alimentação e relatou ter exagerado em um rodízio de comida japonesa, sua comida preferida e também em uma festa de aniversário. O pai da menina também chegou a pedir ajuda em um dia que não havia atendimento do PTA, dizendo que sua filha estava “em surto”. Na ocasião, a adolescente foi examinada pela clínica médica, pois se queixava de uma forte dor de estômago, o qual se apresentava distendido ao exame clínico. 141 Mesmo pedindo “socorro” a cada semana, nada vinha sendo feito para frear seu ganho de peso, que deixava a adolescente tão aflita. Em sua entrevista, ela afirmou que, se pudesse escolher, gostaria de ser como eu, embora eu esteja longe da magreza propagada pela mídia e idealizada por aquelas que sofrem de AN. Além disso, disse que seu maior desejo era poder comer sem se preocupar, ou seja, mesmo não estando mais gravemente emagrecida, seu peso, seu corpo e sua alimentação ainda são centrais em sua vida. Creio que, por estar “fora de perigo”, a equipe de saúde relativizava os constantes apelos que a adolescente fazia e talvez por isso a AN se torne crônica em alguns casos. A questão dos critérios diagnósticos também é apontada como uma limitação para realização e comparação entre os estudos realizados. De acordo com Hay (2002) há uma série de problemas recorrentes nos estudos sobre TA. Em primeiro lugar está a dificuldade de recrutar um número suficiente de indivíduos com AN, posto que a prevalência do transtorno é relativamente baixa e existe uma dificuldade em identificar os casos utilizando instrumentos de avaliação de boa qualidade. A autora ressalta que essas dificuldades vêm sendo contornadas por meio do aumento da amostragem de indivíduos em risco de desenvolver um TA; pela utilização de critérios diagnósticos mais amplos que os determinados pelo DSM; e pela combinação com estudos maiores sobre saúde em geral. Apesar dos problemas citados, os estudos realizados não parecem demonstrar que a incidência de TA seja crescente, exceto, por um leve aumento de AN em mulheres jovens (HAY, 2002). 4.5 DESAFIOS NO MODO DE ORGANIZAÇÃO DA ATENÇÃO À SAÚDE DE ADOLESCENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES Como destacado, atuar nesse Programa certamente representa um desafio profissional e por vezes pessoal, posto que se torna difícil lidar com as histórias de vida e de adoecimento dessas adolescentes. Muitas vezes, o desânimo e a desmotivação imperavam entre a equipe. Há uma série de dissensos na maneira de organizar o atendimento em saúde aos adolescentes que sofrem de TA que se tornaram visíveis ao longo das observações. Pretendo discutir alguns deles, tomando-os como importantes desafios para o aperfeiçoamento dos serviços de saúde: 1) a adoção de uma única agenda para marcação de consultas dos vários profissionais de saúde da equipe; 2) a compartimentalização do atendimento às adolescentes 142 entre as diferentes especialidades; 3) os limites etários para inclusão de usuários em um programa de saúde voltado para adolescentes e 4) a definição do diagnóstico da AN. 1) A adoção de uma única agenda para marcação de consultas dos vários profissionais de saúde da equipe: O PTA não dispunha de uma agenda única para marcação de consultas das adolescentes, estando o agendamento do atendimento clínico separado do atendimento psicológico e nutricional. Os argumentos existentes na equipe a favor da agenda única apontavam que se todos profissionais tivessem os mesmos pacientes para atender em uma mesma manhã, isso facilitaria as discussões no grupo, bem como também seria melhor para as usuárias que não teriam que se deslocar em semanas diferentes ao Programa. Como são adolescentes, a presença no serviço de saúde implica em faltar à escola ou minimamente perder algumas horas de estudo, além dos afazeres/trabalho dos familiares que obrigatoriamente as acompanham. Como a triagem inicial para entrada no PTA é feita pela psicologia, reivindica-se que ao menos a clínica médica e a nutrição deveriam manter o atendimento no mesmo dia. No entanto, entre os que defendem que a agenda se mantenha em separado, argumentam que as adolescentes apresentam “tempos” diferentes em relação aos profissionais, e em alguns casos necessitam de um espaçamento maior entre as consultas. Por exemplo, o argumento mais forte residia na resistência que costumeiramente as adolescentes apresentavam em relação às consultas de nutrição. Assim, nesses momentos de maior resistência a nutrição deixava de atender a adolescente por algumas semanas, enquanto a clínica, a psicologia e muitas vezes a psiquiatria seguia com o espaçamento que julgava adequado ao caso. Duas alternativas estão em questão: o livre agendamento de consultas pela recepção de enfermagem para o atendimento no PTA, acolhendo a livre demanda que aporta ao Serviço de Adolescentes ou o maior controle da entrada no PTA, exercido pela “escuta” inicial da coordenação/psicologia. Nessa segunda opção, então vigente, o modelo de atenção preconizado prioriza o agendamento de adolescentes gravemente adoecidas. 143 2) A compartimentalização do atendimento às adolescentes entre as diferentes especialidades: Em algumas reuniões de equipe, um ou outro profissional de saúde se queixava da adolescente se recusar a falar durante o atendimento por já ter dito tudo o que tinha/queria dizer no atendimento com o profissional de saúde anterior. Nas entrevistas com as adolescentes, elas destacavam a maratona de atendimentos pelos quais tinham que passar em uma mesma manhã. Para elas, não fazia sentido ficar repetindo as mesmas coisas a cada atendimento com cada um dos profissionais, posto que as questões eram relativamente semelhantes. Ao mesmo tempo, referiam se sentir mais à vontade com um profissional do que com outro e por isso, às vezes, optavam por revelar suas questões a um ou outro integrante da equipe. Em qualquer equipe de saúde, os desafios de se respeitar as especificidades do fazer profissional dos seus diferentes integrantes e somar esforços para uma abordagem mais totalizante do usuário se coloca. Uma proposta acionada para enfrentar o problema reforçava que os profissionais não deveriam ouvir além de suas competências profissionais: “Se a adolescente começar a falar de dieta comigo [saúde mental], eu travo ela na hora. Olha, dieta você fala aqui com a minha colega ao lado, que é especialista em dieta e estudou para isso.” Alguns profissionais eram acusados de ouvir “além” do que deveriam, “esvaziando-se a escuta” do outro colega. Certos profissionais se posicionavam fortemente contrários a essa determinação, justificando que o momento em que a adolescente se sentia confortável para revelar algo importante e íntimo poderia ser único e, ao ser interrompida, isso poderia deixá-la desconfortável e prejudicar seu atendimento. Essa postura da equipe se relaciona com a racionalidade científica moderna, que segmenta o processo saúde-doença em partes isoladas, o cuidado é dividido em etapas sem inter-relação, separando doente e doença, ora buscando alcançar um e ora buscando tratar do outro. Em “O nascimento da clinica”, Foucault (1986), nos fala de realidades que ainda hoje estão presentes: por ter a função de distinguir os sintomas reais da doença, o médico acaba por abstrair o doente para conseguir identificar a doença. Dessa forma, não só o médico, mas todos os profissionais de saúde terminam por se manter distantes do doente, para focar o olhar na doença, naquilo que se consegue identificar para então tratar. O autor chega a declarar que quem desejasse conhecer a doença, precisava subtrair o indivíduo, com suas características e qualidades, para que a patologia pudesse adquirir sua forma. 144 Assim, ainda hoje é possível identificar essa postura profissional. A medicina ocidental permanece isolando o individuo e singularizando a doença. É a reconhecida “predominância do olhar” em detrimento dos outros sentidos. Priorizar o olhar na relação profissional de saúde x usuário implica uma distância que objetiva paciente e doença (GAGNON; SAILLANT, 1999). O Programa observado carece de uma proposta que privilegie a atenção integral às necessidades das adolescentes de forma compartilhada pela equipe, pois não havia um momento de atendimento conjunto dos profissionais que tornassem as manhãs menos cansativas, tanto para as adolescentes e seus familiares, quanto para a própria equipe. 3) Os limites etários para inclusão de usuários em um programa de saúde voltado para adolescentes: Outro tema delicado, relacionado à avaliação diagnóstica, recai sobre a idade máxima do adolescente a ser atendido pelo PTA. O Serviço de Saúde do Adolescente, no qual o Programa se situa, tem como proposta atender idades entre 12 e 20 anos, porém na mesma universidade pública que os abriga, um serviço paralelo de atendimento aos TA para adultos foi criado em uma policlínica. Acordou-se então que pacientes até 18 anos e 11 meses continuariam no PTA e aqueles acima dessa faixa etária seriam encaminhados para o novo serviço. No entanto, esse novo espaço foi estruturado dentro de um serviço de psiquiatria e somente recebe pacientes com diagnóstico fechado para TA, ou seja, muitas pacientes que estão atualmente em acompanhamento no PTA, ao atingirem a idade limite não poderiam ser encaminhadas pela incompatibilidade dos critérios diagnósticos de ambos serviços. Além disso, ao se firmar esse acordo institucional, algumas poucas pacientes em acompanhamento no Programa já estavam acima dos 18 anos e 11 meses e continuaram a ser ali atendidas. Embora a aproximação da idade limite suponha o afastamento do PTA em algum momento, essas pacientes tinham por opção continuar sendo atendidas por um médico do Hospital Universitário, vinculado ao Serviço de Saúde do Adolescente, que sempre as recebia e as acompanhava. Tal recurso continuou vigente. No período de observação, nenhuma usuária próxima ou acima dos 18 anos de idade chegou até o PTA e aquelas existentes nessa faixa etária, geralmente já estavam sendo atendidas há muito tempo e só deveriam comparecer para acompanhamento a cada seis meses. Dessas poucas usuárias (aproximadamente quatro), apenas uma mantinha o atendimento 145 semestral, as outras não mais compareceram. Essa usuária foi o único encaminhamento realizado entre ambos os serviços de atenção aos TA na universidade, não havendo troca de informações para acompanhamento do caso. Em conversa com a nutricionista do serviço da policlínica, soube que a jovem foi recebida e iniciou o tratamento, mas precisou fazer uma cirurgia de grande porte (segundo ela nada relacionado ao TA) e estava desde então afastada dos atendimentos. 4) A definição do diagnóstico da AN: Em geral, os serviços de saúde precisam ter regras claras para inclusão e exclusão de pacientes, frente ao público que demanda atendimento, estabelecendo critérios diagnósticos para orientar tal seleção. No PTA o diagnóstico fechado para anorexia e bulimia nervosa não era um pré-requisito para o atendimento aos adolescentes. Comportamentos alimentares considerados “desviantes” tais como o uso de laxantes, diuréticos e chás visando emagrecimento, vômitos forçados e mesmo passar horas sem se alimentar eram tomados como um sinal de que algo não estava bem, independente da classificação nosológica que recebessem. Assim, mesmo que não houvesse um diagnóstico preciso e conclusivo de AN ou BN, alguns sintomas de transtornos alimentares já eram suficientes para que as adolescentes pudessem ser admitidas no Programa e seguir com acompanhamento da equipe. Esse posicionamento gerava tensão na equipe, que por vezes não avaliava ser um caso ou outro pertinente ao PTA. No entanto, o fechamento do diagnóstico na AN é questão complexa não apenas no serviço observado, mas em todos os outros Programas, nacionais ou não, que atendam TA, sendo considerado uma limitação importante em estudos sobre o tema. 4.6 DIFICULDADES E DESAFIOS NO ATENDIMENTO AOS ADOLESCENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES E SEUS FAMILIARES De modo geral, a relação entre a equipe de saúde e as usuárias era mediada pelos familiares. Era comum que eles entrassem no consultório acompanhando as filhas, embora isso não ocorresse com todos os profissionais. Por exemplo, a escuta inicial feita pela psicologia envolvia a adolescente e seu responsável. Nas consultas de nutrição, a adolescente 146 era indagada sobre a presença dos pais na sala, mas nunca vi alguma recusa. Na consulta de clínica médica, isso era variável, havia paciente que entrava sozinha e depois da consulta, a médica chamava os pais para conversar e também aquelas adolescentes que já entravam com o responsável. Nos atendimentos subsequentes da psicologia, a adolescente entrava sozinha. Nem sempre os pais participam, ou apenas entravam depois. Na sala de espera, ouvi mais de uma mãe se queixar de não poder acompanhar a filha nas consultas da psicóloga, pois sabiam que as adolescentes não falariam “toda a verdade” e esconderiam “as coisas”. É reconhecido que a avaliação da saúde das crianças é frequentemente baseada nas respostas dos pais (BARRETO et al, 2010). Por estarem acostumados aos atendimentos em pediatria, em que estavam sempre presentes, ou mesmo por não confiarem que suas filhas adolescentes estariam aptas a estabelecer uma relação médico-paciente de forma autônoma, os responsáveis não aprovavam a postura profissional de serem ouvidos em momento distinto do atendimento de suas filhas. Muitos sentiam necessidade de falar à equipe o que ocorria com suas filhas, acreditando que detinham conhecimento profundo sobre o que se passava e, por vezes, deixando pouco espaço no atendimento para as adolescentes. O espaço do atendimento era usado por alguns familiares como um momento de acusação e desabafo de suas frustrações. Por exemplo, muitas vezes os familiares se queixavam do “desleixo” das filhas quanto à aparência, quando esperavam que elas se cuidassem mais, se interessassem por assuntos de moda, beleza (maquiagem, pele, cabelos). Mas, era comum que as adolescentes usassem tênis rasgados e sujos, roupas rasgadas e casacos de moletons velhos, cabelos pintados de cores que variavam e visivelmente maltratados, o que deixava os familiares frustrados, com críticas às adolescentes durante os atendimentos. Goffman (2010) afirma que um dos meios indiscutíveis utilizados por um indivíduo para demonstrar que está situacionalmente presente é o cuidado disciplinado de sua aparência pessoal. Assim, quando o indivíduo se torna “negligente” em relação à sua aparência e higiene pessoal, toma-se como um sinal típico do desencadeamento de uma desordem mental, daí a preocupação parental. Na presença dos responsáveis, muitas vezes as adolescentes não se expressavam no consultório, mesmo quando as questões eram nomeadamente dirigidas a elas. Pareciam tentar evitar o contato com o mundo que as cerca, embora seu silêncio enunciasse mais a respeito de sua condição do que se tentassem responder aos questionamentos dos profissionais de saúde (GOFFMAN, 2010). Ao contrário, seus responsáveis costumavam ser bastante participativos, fornecendo detalhes íntimos da 147 vida das adolescentes, que talvez demorassem a ser por elas revelados. As mães, especialmente, falam dos motivos que levaram as filhas a parar de comer, embora as adolescentes nem sempre concordem ou não abordem o assunto. Os pais costumam tirar mais dúvidas do que as filhas e opinar intensamente sobre o tratamento. As adolescentes mais passivas ouvem e nada falam, nem contradizem os pais. Mas há casos de adolescentes que gritam e se exaltam na tentativa de serem ouvidas e de terem o reconhecimento de sua autonomia em questões relacionadas a seu corpo e saúde. A equipe de saúde costuma desaprovar tais atitudes adolescentes, ocorrendo comentários com tom de reprovação nas reuniões do grupo. Nesses casos, o profissional pode pedir aos pais para deixarem apenas a adolescente seguir na consulta, respeitando o direito dela ser ouvida, sem mediadores, ou pedir a todos para se retirarem e só retornarem à consulta após terem resolvido o conflito, ou ainda o profissional pode se retirar da sala, em um breve intervalo, dando oportunidade à família e adolescente para se entenderem, sugerindo que, ao retornar ao consultório, gostaria de dar seguimento “normal” ao atendimento. O desafio da equipe é considerar ambos adolescente-filho/a e pais/familiares responsáveis como uma díade que se complementa, sem menosprezar o relato e o vínculo com quem está adoecido e necessitando receber tratamento. Essas usuárias, por serem duplamente vulneráveis – pela idade e pela doença – tinham limitado poder decisório sobre suas vidas, saúde e tratamento. Há alguns aspectos que sugerem que as adolescentes eram ali tratadas e vistas como crianças, tanto pelos familiares, quanto pela equipe de saúde que as acolhe. Isso pôde ser observado no dia a dia da pesquisa de campo: a TV da sala de espera só exibia desenhos animados voltados ao público infantil, essa mesma sala ao ser reformada ganhou um espaço para “recreação”, com mesinha baixa e 4 cadeirinhas, em tamanho infantil onde ficam canetinhas e lápis para colorir. As ameaças de internação, usadas como “castigo” em caso de desobediência ao profissional de saúde ou ao tratamento, também são indícios dessa infantilização. Durante as consultas, embora as adolescentes fossem as usuárias do atendimento ofertado pelo Programa, elas não tinham sua voz reconhecida. Sobre essa questão, Leite (2013) afirma que há uma permanente tensão entre autonomia e tutela que faz parte das discussões sobre atenção à adolescência. De um lado, há uma afirmação do lugar do/a adolescente como sujeito de direitos, do outro, surgem uma série de questionamentos acerca da real capacidade de resposta aos possíveis desdobramentos da autonomia a eles conferida. 148 Muitos dos avanços feitos no tratamento da AN eram baseados em acordos travados entre o profissional de saúde e a adolescente. Strauss et al, (1963) destacam que o processo de negociação dos pacientes com os profissionais de saúde é um aspecto significativo para o entendimento acerca da organização hospitalar. Mas há ainda as negociações dos profissionais com as usuárias e suas famílias. Assim, o serviço de saúde pode ser visualizado como um lugar onde numerosos contratos são continuamente rescindidos ou esquecidos, mas também criados, renovados, revistos e revogados. A cada semana, no âmbito do acompanhamento terapêutico das adolescentes, pequenas mudanças eram duramente negociadas e por menores que fossem, as usuárias anunciavam que não iriam conseguir cumpri-las, revelando o grau de sofrimento envolvido no enfrentamento da doença e nas atitudes necessárias a sua recuperação. Diante das dificuldades de adesão ao tratamento, os profissionais lidam de modo diferenciado, mas embora seja um serviço de saúde voltado aos adolescentes, o despreparo para lidar com certos comportamentos próprios dessa etapa da vida eram latentes. Alguns dos profissionais de saúde sentiam-se impotentes, coniventes com o agravamento de uma situação que poderia se prolongar por semanas, diante da recusa ou incapacidade da adolescente em alterar sua alimentação, rotina e ingestão de medicamentos. Outros profissionais, talvez por desespero ou aflição diante do que não podem mudar, rompiam com a paciente justamente nesses momentos. Nesses casos, diante do fato da adolescente não tomar a medicação ou acatar suas prescrições, o profissional declarava não querer mais atendê-la. Na verdade, os pacientes “difíceis” de tratar impõem enormes desafios e impasses na relação profissional de saúde x usuário. Cabe refletir se esses entraves não se devem também, em parte, pelas dificuldades do profissional de estabelecer vínculos ou mesmo pela inabilidade para lidar com pacientes adolescentes. Em reuniões de equipe, reforçava-se uma mensagem do Programa dada às adolescentes logo em seu contato inicial: “nós não somos um spa, não estamos aqui para cuidar da sua beleza e sim da sua saúde”, anunciando que não iriam compactuar com o desejo de emagrecer a qualquer custo. As negociações eram bem sucedidas quando havia um interesse da adolescente, fosse para retomar momentos de lazer ao lado dos amigos, indicando o quanto a sociabilidade entre pares é central nesse momento de vida, ou uma atividade física que fazia antes da doença.14 Nesses casos, as usuárias aceitavam o acordo proposto pela 14 Isso porque, com o agravamento do TA qualquer gasto energético desnecessário deveria ser evitado, assim como qualquer oportunidade que permitisse a adolescente dissimular sobre o seguimento adequado do seu tratamento. 149 equipe de saúde. Com o decorrer do tratamento e estabilização da doença, as adolescentes passavam a ser agendadas a cada cinco ou seis meses, apenas para acompanhamento. No entanto, adolescentes em estado grave costumavam se ausentar e ficar meses sem aparecer, voltando posteriormente ainda mais adoecidos. Também havia desencontros entre exigências da equipe e as condições sociais da adolescente e de sua família para cumpri-las. Como exemplo, citarei o caso de Isabel que nunca conseguia comparecer aos atendimentos dentro do horário previsto e rotineiramente chegava por volta das onze horas, quando os profissionais de saúde já estavam prestes a finalizar seus atendimentos. A adolescente em questão chegava mesmo atrasada, faltava muito, sumia dos atendimentos, mas no meio do turbilhão de questões pessoais próprias da adolescência, a loja de estofados de seu pai, fonte de sustento de sua família, localizada no térreo de sua casa em Ramos (zona da Leopoldina) pegou fogo e eles perderam tudo o que tinham. Mas a equipe não considerava o esforço desse pai e da própria adolescente em, na medida do possível, permanecer frequentando os atendimentos. Ela apresentava um quadro grave, achava que estava ótima e não queria mais frequentar o PTA. Alguns profissionais não queriam mais atendê-la porque ela não fazia o que era “combinado” e não tomava os remédios. O comentário de um dos membros da equipe de saúde a respeito das “férias” adolescentes do PTA revela o quanto as idas e vindas no processo de tratamento são frequentes, esperadas e integram o cotidiano da atenção aos TA e como tais “desistências” e recuos são difíceis de serem compreendidos pela equipe, incumbida da missão de tornar a recuperação possível. A opinião de que as adolescentes do PTA “cansam” do tratamento é compartilhada por toda a equipe, sendo também corrente a ideia de que elas condensam a doença “da família”: “Sempre tem alguma maluquice na família e justamente o membro mais perfeitinho, melhor aluna, melhor filha... melhor em tudo, acaba explodindo e ficando doente”. Essa frase evidencia a complexidade do problema, o que também corrobora para a compreensão das recaídas e abandonos temporários do tratamento. Com frequência surgiam queixas sobre o comportamento das adolescentes que padeciam de transtornos alimentares, por serem consideradas “teimosas”, por não obedecerem às prescrições necessárias a sua melhora. Uma residente assim expressa: 150 “eu acho que só o que funciona com elas é a psicoterapia. Tem que envolver a família dessas garotas, porque o que aparece aqui é só a ponta do iceberg! E a minha felicidade é quando elas ficam podres, porque aí a gente vai conseguir internar e aí sim nós conseguimos fazer funcionar. Porque é um choque de realidade. Tanto pra elas, quanto para os pais!” Diante de tal complexidade para a intervenção da equipe e de tamanha impotência profissional, a internação chega a ser cogitada como recurso eficaz, o que se torna ainda mais dramático. Havia casos em que a relação dos pais com o profissional era tão intensa que, em dado momento, se desgastava e a adolescente se via obrigada a trocar de profissional ou ficar um tempo sem aquele atendimento porque a mãe, o pai ou ambos não se entendiam mais com ele. Os conflitos familiares, sempre presentes às consultas, permeando a relação entre pais e filhos e entre famílias e equipe consomem emocionalmente os profissionais de saúde. Ora vêm à tona os conflitos entre os pais (mãe x pai), com acusações mútuas e disputas pela guarda da filha, os quais interferem na gestão da sua doença e tratamento; ora a excessiva ansiedade e preocupação desses responsáveis em saber mais sobre a saúde de suas filhas atropela a conduta do profissional na tentativa de construção de um vínculo com a portadora do TA. Há que se ter muita habilidade para escutas diferenciadas – para pais e para as filhas adoecidas – em momentos distintos ou em conjunto, quando a consulta necessita da presença de ambos. Exigir serenidade, maturidade e equilíbrio emocional das famílias frente à gravidade do adoecimento das filhas também pode ser muito além do que eles podem dar. Tal equação torna o desafio de tratá-los mais penoso para quem está na linha de frente, preocupados com rotinas alimentares, ganho de peso, equilíbrio do organismo, sem muito poderem alterar as dinâmicas familiares que presenciam. A dificuldade em conseguir exercer sua autoridade diante os filhos, sem se darem conta da gravidade do que estava acontecendo, ou confundindo o comportamento de privação alimentar da filha com “pirraça”, também eram comuns. A internação da filha sempre acabava, de fato, sendo um choque para a família, que muitas vezes não conseguia suportar a dramaticidade da situação. Como aceitar que sua filha esteja doente, em risco de vida, a ponto de ser preciso interná-la, se a princípio pensavam se tratar de uma desobediência parental, capricho da idade ou “pirraça”? Como visto no capítulo anterior, a mãe de uma adolescente caiu doente em depressão frente à gravidade da doença da filha, que passou a frequentar as consultas acompanhada do pai ou da avó materna. Seu pai passou a cuidar da casa, dos outros filhos e da esposa, disse que a filha se ausentou do atendimento após a internação, porque ele 151 achou que ela estava melhor e resolveu priorizar os cuidados com a esposa. O “sumiço” da adolescente e sua família após o duro período de internação eram comuns, nesses casos a adolescente retornava para buscar atendimento apenas quando o emagrecimento voltava a ameaçar sua vida e saúde. As usuárias desenvolvem relações diferenciadas com os profissionais da equipe. Como a rotina as impõe circular entre todos os profissionais, acabam por falar o que desejam para uma dada pessoa e na consulta seguinte expressam não desejar falar novamente o que já foi dito a outro. Às vezes, contam para algum profissional que não estão tomando a medicação, mas pedem segredo para o restante da equipe e para a família. Algumas usuárias tentam manipular os profissionais que as atendem, utilizando a opinião de outros membros da equipe. Mas há responsáveis que alertam a equipe sobre as “manipulações” da adolescente, “que faz de tudo para não comer”. Os próprios responsáveis assumem que, muitas vezes, são “enrolados” pelas filhas. A sinceridade dos responsáveis é premiada com a credibilidade da equipe, que passa a dar total apoio ao “responsável-vítima”, deixando a adolescente em segundo plano. Já a adolescente passa a ser vista com desconfiança, mesmo sem necessariamente ter feito algo para merecê-la, tornando o estabelecimento de um vínculo com essa equipe ainda mais difícil. O grande poder de manipulação de indivíduos com TA é consensual entre os profissionais de saúde, embora as famílias por vezes condenem moralmente tal atitude. Cabe à equipe de saúde salientar que essa postura adolescente não é uma falha moral, de caráter, mas sim um dos sintomas do quadro dos TA (SILVA, 2004). No PTA convivi com algumas adolescentes que atribuíam o próprio comportamento, tido como inaceitável pela família, professores e mesmo por alguns profissionais de saúde, a uma voz que diziam ouvir dentro de suas cabeças e que as controlava e não as deixava comer (TIERNEY, FOX; 2011). A presença dessa “voz interior” também tem sido descrita como um dos componentes do quadro de AN, o que contribui para que muitas vezes as adolescentes se sintam mais incompreendidas. Mesmo não sendo claro, todos estamos envolvidos em representações durante nossos encontros e relacionamentos sociais, pois procuramos atuar de forma a passar a impressão que desejamos (GOFFMAN, 1985). De forma claramente premeditada ou não, todo o tempo estamos nos deslocando do papel de ator para o de personagem e vice-versa em nosso cotidiano (GOFFMAN, 1985). A “manipulação” exercida pelos portadores de TA em relação 152 àqueles que os cercam parece extrapolar os limites do que seria socialmente aceitável na postura de uma pessoa enferma daí a condenação moral que sofrem. Por vezes é difícil para os profissionais de saúde compreender os conflitos inerentes à adolescência, o que acaba por comprometer a relação entre ambos. Os adolescentes são um grupo com necessidades e expectativas próprias, reconhecidos pela baixa procura de recursos profissionais em seus processos de busca de ajuda e também pela baixa adesão aos programas de prevenção e tratamento de agravos à sua saúde (CLARO et al, 2006; MARTÍNEZHERNÁEZ; MUÑOZ GARCÍA, 2010b). Martínez-Hernáez e Muñoz García (2010a) apontam que o modelo explicativo formulado por adolescentes para suas aflições envolve a interação com o mundo social que os cerca e, por isso, a restituição do seu bem-estar deve ser fruto desse meio e de forma independente do mundo adulto. Por terem um modelo explicativo distinto dos profissionais de saúde ou de outros adultos, é comum sentirem-se indiferentes às intervenções que não os envolvem como agentes ativos. Por estarem em busca de autonomia, considerar ou aceitar o auxílio adulto pode ser entendido pelo adolescente como uma inabilidade para resolver seus problemas sozinhos. Natasha demonstrou sentir algo semelhante ao saber que seria internada, pois não parava de dizer o quão fracassada estava se sentindo, por não conseguir demonstrar que conseguia voltar a ganhar peso sozinha. Ocorre também que os adultos muitas vezes identificam um problema na vida do adolescente que para este não necessariamente representa um incômodo. Ao contrário, as queixas dos adolescentes podem ser assumidas pelos adultos como secundárias, subjetivas, irrelevantes e fruto de uma “fase difícil” do ciclo de vida (MARTÍNEZHERNÁEZ; MUÑOZ GARCÍA, 2010b). Nos serviços de saúde, além do despreparo em atender aos adolescentes, há também o juízo de valor da equipe para com este grupo, considerado “mal-educado” e “permissivo” entre seus pares, aumentando as dificuldades de relacionamento e da criação de vínculos (FERRARI, 2006). O profissional de saúde estabelece uma relação de poder com o paciente. Esse poder pode ser usado de forma positiva, mas também negativa, quando o profissional de saúde resolve usá-lo para defender valores e condutas, baseado em seu entendimento moral e em suas crenças pessoais, de modo contrário à proposta de acolher as diferenças e respeitar a autonomia. É difícil avaliar se um profissional de saúde possui ou não a capacidade de acolher 153 a diversidade e respeitar as atitudes dos adolescentes. Mas independente de seu posicionamento pessoal é preciso reforçar a necessidade de se manter uma postura enquanto profissional da saúde (CROMACK et al, 2004). No trabalho de Ferrari et al (2006), sobre a percepção dos médicos e enfermeiros sobre a atenção à saúde do adolescente na Estratégia de Saúde da Família, as autoras identificaram que as ações de prevenção e promoção da saúde quando desenvolvidas no serviço ocorriam de modo individual e apenas as ações realizadas na escola ou na comunidade tinham como enfoque o grupo. Além disso, os médicos e enfermeiros se referem à necessidade da equipe de participar de cursos de formação/capacitação sobre essa fase da vida, pois muitos verbalizaram as dificuldades em lidar com esse grupo etário e o conhecimento limitado sobre a adolescência. Talvez por essa falta de compreensão, os profissionais de saúde tenham destacado que seus esforços em organizar algo para este grupo terminam em vão, deixando a equipe de saúde frustrada, desmotivada e mesmo irritada, quando os adolescentes não compareciam ao serviço de saúde. Em campo, acompanhei alguns casos de TA difíceis de serem tratados em que as tentativas de suicídio e os cortes corporais eram frequentes. Por vezes, essas situações eram identificadas como formas dos adolescentes atraírem a atenção dos adultos, banalizando-as: “no fundo é pra chamar a atenção”. Tal compreensão revela além do despreparo profissional, o quão duro é para uma equipe que não foi “treinada” para atender transtornos alimentares, e talvez não tenha desejo e/ou habilidade para trabalhar com a população adolescente, ter que fazê-lo. Por se tratar de um serviço público, os profissionais têm uma capacidade limitada para se recusar a atender esse ou aquele caso, ainda que não esteja seguro para fazê-lo. No Serviço de Adolescentes a rotatividade de profissionais era intensa, no PTA não, pois não havia outros profissionais de saúde dispostos a “substituir” aquele que desejava se afastar. Quando a médica psiquiatra necessitou sair do PTA para integrar outra equipe, o Programa ficou mais de seis meses sem atendimento psiquiátrico e, mesmo assim, só recebeu uma nova psiquiatra após apelos da coordenadora ao diretor do Serviço de Adolescentes. O Manual de Atenção à Saúde do Adolescente (SÃO PAULO, SMS, 2006) da Secretaria de Saúde da cidade de São Paulo traz como um dos temas as “Características do profissional e a relação médico-adolescente” e fornece as recomendações abaixo, que acredito, podem ser estendidas a todos os profissionais de saúde: “Atender adolescentes requer interesse, tempo e experiência profissional. Para obter uma consulta frutífera, é fundamental o bom relacionamento médico/adolescente, 154 unicamente possível se o médico GOSTAR de trabalhar com jovens, pois estes têm uma sensibilidade apurada e logo percebem falta de interesse ou empatia. O profissional deve mostrar competência, firmeza e autoridade sem, no entanto, parecer autoritário. O médico deve escutar mais do que falar e não julgar ou dar palpite. Mas deve esclarecer e informar onde for necessário, sempre com retidão, honestidade e veracidade, o que é diferente de advertir. Como para qualquer idade, o médico deve mostrar respeito e consideração pelo paciente e sua família... É importante ter em mente que não há uma fórmula pronta e única para trabalhar com adolescentes... Cada jovem é diferente e cada um acrescenta em vivência e experiência que permitem aos profissionais a reavaliação constante. Condições relevantes para este tipo de atendimento incluem saber ouvir e interpretar, sem julgamentos. O adolescente deve identificar-se como sendo ele o cliente, mas, por outro lado, pais e/ou responsáveis não poderão permanecer à margem do atendimento, pois poderão beneficiar-se com informações e esclarecimentos.” (SÃO PAULO, SMS, 2006, p.86) Pela quantidade de “regras” e “detalhes” preconizados para o bom atendimento ao adolescente, não é incomum a insegurança dos membros de uma equipe de saúde em atendêlos. Nesse sentido, cabe destacar a importância das definições dentro do serviço de saúde serem tomadas de modo coletivo pela equipe. Com as incertezas que envolvem questões morais, legais e éticas, a insegurança se intensifica se o profissional de saúde é obrigado a arcar sozinho com as decisões (CROMACK et al, 2004). Ocorre ainda que no serviço de saúde quando o adolescente está acompanhado pelos pais, ele é tratado como criança e quando parece mais velho, é tratado como adulto, dificultando uma escuta mais atenta as suas especificidades. Por serem considerados um grupo saudável, os adolescentes não são um público normalmente esperado nos serviços de saúde e suas questões não recebem a atenção necessária, com exceção de assuntos relacionados à sexualidade e saúde reprodutiva (BRASIL, MS, 2010). Diferentes documentos (CROMACK et al, 2004; BRASIL, MS, 2010; SP: SMS, 2006) voltados aos profissionais de saúde que atendem adolescentes apresentam a mesma recomendação: atividades em grupo, visando proporcionar um espaço de troca de vivências, onde o adolescente possa sentir-se seguro para trazer suas dúvidas e compartilhá-las. Num grupo, cada participante torna-se menos frágil, menos solitário e suas ideias, dúvidas, sentimentos e experiências podem ser valorizados pelo outro (SP, SMS, 2006). Além disso, as atividades em um programa para adolescentes devem apresentar um enfoque amplo, retirando o foco dos aspectos técnicos e biológicos, envolvendo também questões psicossociais, sociais, culturais, políticas, lembrando que o profissional de saúde deve sentir-se apto para lidar com esta complexidade de saberes (FERRARI et al, 2008.). 155 Aliado às dificuldades de alguns profissionais para lidar com aspectos peculiares do atendimento aos adolescentes, existe o enorme desafio de tratar e buscar a recuperação de uma pessoa acometida por TA. AN é uma doença complexa que impõe grandes desafios a cada estágio do tratamento. Os indivíduos com esse transtorno são descritos como resistentes às intervenções, o que contribui para um dos mais altos índices de recusa e desistência prematura do tratamento (ABREU; CANGELLI FILHO, 2004), o que reforça a necessidade de intervenções de caráter preventivo voltadas, sobretudo, para os grupos de maior risco (BOSI; ANDRADE, 2004), como os adolescentes. Uma das razões para a resistência no tratamento é o fato de que muitas pessoas com AN negam estar doentes, pois consideram que buscam o emagrecimento por “conta própria”. Assim, tratar a anorexia pode ser difícil, pois os pacientes identificam aspectos positivos na manutenção da doença. Por outro lado, em determinado momento do adoecimento podem conseguir identificar as implicações negativas sobre a sua saúde, sobre sua vida e de pessoas próximas provocando sentimentos de perda de controle (WILLIAMS; REID, 2010). Assim, a ambivalência sobre a recuperação é uma característica central desse TA. Pacientes com AN raramente procuram tratamento por iniciativa própria, possuem pouca motivação para mudar e o resultado dos tratamentos geralmente ficam abaixo do esperado pela equipe de saúde (NORDBO et al, 2006). Além disso, é comum o paciente reconhecer no profissional de saúde um inimigo que quer engordá-lo (GIORDANI, 2006). Porém, nem sempre significa que eles não desejem ser tratados, mas a patologia em si os leva a sentimentos de conflito entre o desejo de ficar bem e o medo de engordar. Por isso, ter o consentimento do paciente não deve ser visto como evento estável no tratamento, mas deve ser preciosamente mantido (MOREIRA; OLIVEIRA, 2008). O tratamento utilizado na AN é, via de regra, multidisciplinar e agrega em alguns casos terapia farmacológica, mas de um modo geral é composto por atendimento nutricional, clínico, psicológico e psiquiátrico. O tratamento nutricional envolve o restabelecimento do peso, normalização do padrão alimentar, da percepção de fome e saciedade e correção das sequelas biológicas e psicológicas da desnutrição (APA, 2000). Visa à promoção de hábitos alimentares saudáveis, a interrupção de comportamentos inadequados e a melhora na relação do paciente para com o alimento e o corpo (LATTERZA et al, 2004). Mas, alguns autores apontam que o modelo de intervenção nutricional utilizado na AN é, por vezes, inadequado. As metas terapêuticas se reduzem a forçar hábitos alimentares saudáveis, por meio de uma dieta ideal que é administrada quase como um medicamento 156 (ARNAIS, 2009). Cabe ressaltar que o ato de se alimentar está muito além de ingerir nutrientes e manter um organismo funcionando com peso adequado. É uma questão complexa exigir das adolescentes o reconhecimento sobre o que é uma alimentação adequada e saudável, e quais pensamentos, sentimentos e sensações corporais são “distorcidos” ou “adequados”. Embora a recomendação para a atenção aos TA seja o acompanhamento por uma equipe multiprofissional, é preciso que os profissionais estejam alinhados para evitar que mensagens contraditórias sobre o que é saudável ou não sejam repassadas às adolescentes (SILVA, 2011). Em relação à psicoterapia nos TA, sua função primordial é propiciar ao paciente um espaço seguro e confiável para que ele possa compartilhar seu mundo e encontrar outras expressões para o sintoma (GROOT; RODIN, 1998) e o psicoterapeuta tem a função de ajudar o paciente na identificação dos seus sentimentos (ABREU; CANGELLI FILHO, 2004). Bonet e Tavares (2007, p.7) nomeiam o espaço do encontro terapêutico como um espaço “entre”, porque tanto o profissional de saúde quanto o paciente põem suas certezas em questão. De acordo com os autores, esse é o espaço entre os discursos, entre duas percepções do corpo e também o espaço das possibilidades de negociações. É um espaço entre duas visões de mundo, o que por vezes torna o estabelecimento de acordos e de metas terapêuticas tão difícil para os dois lados. O desafio a ser enfrentado pelos profissionais de saúde inclui reconhecer as diferenças entre as adolescentes, sempre respeitando os significados que elas atribuem à sua doença. Para isso, precisam compreender que as experiências e as perspectivas das adolescentes sobre o adoecimento e o tratamento podem ser radicalmente distintas do ponto de vista que a equipe de saúde se sente confortável para atuar (BOUGHTWOOD; HALSE, 2010). Em se tratando de adolescentes com AN, os objetivos do tratamento devem incluir também a orientação para que elas aprendam a identificar e lidar com emoções e os desafios de se estar em desenvolvimento (FITZPATRICK et al, 2010). Silva (2011) destaca não ser suficiente que o conhecimento seja racionalmente aprendido, é necessário que seja incorporado e exercitado pelas pacientes, até que se torne um hábito e modifique sua percepção da realidade de “distorcida” e “patológica”, para “adequada” e “saudável”. Nesse processo, a vontade dos pacientes é considerada um recurso essencial para o sucesso ou fracasso do tratamento (SILVA, 2011) e a equipe de saúde deve estar aberta para acolher e estimular a adolescente a buscar sua recuperação. Por todas as 157 dificuldades apresentadas, cabe pensar também que todo o relacionamento é uma “via de mão dupla”. O cotidiano da equipe de saúde do PTA é de muita dedicação e esforço sem, no entanto, receberem um estímulo positivo sobre o seu trabalho. De um modo geral, o paciente que se recupera de uma doença demonstra gratidão pela equipe que o atendeu, mas, no caso dos TA, a recuperação envolve que ganhem peso e isso acaba por desmotivá-las a prosseguirem nos atendimentos e as afastam ainda mais da equipe de saúde, que precisa estar constantemente estimulada, mesmo com a realidade tão adversa dos atendimentos. No próximo capítulo, abordarei a temática da internação hospitalar de adolescentes com transtornos alimentares e os inúmeros obstáculos a vencer nessa difícil e delicada empreitada. 158 CAPÍTULO 5. A INTERNAÇÃO: UMA AMEAÇA CONSTANTE NO TRATAMENTO O SSA possui uma enfermaria de clínica geral localizada no terceiro andar do HU. Essa enfermaria possui 16 leitos, oito femininos e oito masculinos. Em sua entrada, há uma porta balcão (funciona com dobradiças presas nas laterais e as folhas podem abrir para dentro ou para fora, são muito comuns em hospitais) que a separa do restante do andar, com o símbolo/logotipo do Serviço acima. Adentra-se em um corredor largo, de tamanho médio, que termina na recepção da enfermagem. Neste corredor, à esquerda, há uma sala de reuniões espaçosa para os profissionais de saúde (uma mesa, várias cadeiras, sofás, estantes com livros, mesinha com cafeteira, um quadro na parede com nomes dos pacientes e descrições resumidas dos casos) e dois quartos para os adolescentes (um maior, com 5 leitos e outro, com apenas 3). À direita, há mais três quartos (com 3, 3 e 2 leitos, respectivamente) e uma copa para os funcionários. A distribuição dos adolescentes nos quartos se dá por sexo e idade. À esquerda da recepção há um banheiro, e logo depois um pequeno corredor que finda em uma sacada espaçosa, com uma mesa e banquinhos de cimento e mais três bancos grandes de cimento. Esse espaço é utilizado para algumas atividades da psicologia com os pacientes e também para os adolescentes tomarem sol. Os profissionais de saúde que trabalham nesta enfermaria costumam se preocupar com a possibilidade de ocorrência de casos de suicídio entre adolescentes portadores de TA, pelo fato deles terem acesso a tal área livre, localizada no terceiro pavimento de um edifício. Ainda nesse pequeno corredor, há uma porta que permite o acesso a uma sala de convivência para os adolescentes. Essa sala, cujas paredes são divisórias de madeira e vidro, permite a observação do seu interior por quem está na recepção e também pelos que porventura ali passam. Há uma televisão grande, mas velha, um computador também velho, várias caixas de jogos, sofás encostados nas paredes e uma mesa grande no centro com cadeiras. Esse espaço também é utilizado para os adolescentes internados estudarem. 159 5.1 A ENFERMARIA NÃO É PARA TODOS... A AN tem uma taxa de mortalidade de cerca de 20% entre os casos que se tornam crônicos, sendo as principais causas o suicídio, a inanição, falência de diferentes órgãos e a morte súbita devido a problemas cardíacos. Mas há ainda que se considerar as comorbidades psiquiátricas, como a distimia, transtornos de ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo e transtornos de personalidade que são comuns em pacientes com TA (LENOIR; SILBER, 2006a). Mesmo sendo considerada uma doença crônica e de difícil tratamento, quando diagnosticada em crianças e adolescentes a recuperação da AN é possível, mas para isso, a identificação e tratamento precoce são essenciais (LENOIR; SILBER, 2006b). O adoecimento provocado pelos TA pode tornar a internação hospitalar necessária para o rápido reestabelecimento do peso quando esse está muito abaixo do esperado para altura e/ou para recuperar o desequilíbrio hidroeletrolítico comum aos casos de bulimia nervosa (BN) ou anorexia nervosa (AN) do tipo purgativa. Há ainda os casos em que o emagrecimento extremo leva ao risco de falecimento de um ou mais órgãos e a internação torna-se um imperativo. No entanto, há certa dificuldade entre os médicos clínicos para acolher esses casos, pois eles são classificados como “transtornos mentais” e por isso não se adequariam às enfermarias de clínica geral. Argumenta-se haver necessidade de vigília permanente aos adolescentes internados com TA, alegando-se risco de suicídio, além da probabilidade deles permanecerem burlando as prescrições médicas, ou seja, vomitando, jogando a comida fora e se exercitando fisicamente. Paradoxalmente, nas enfermarias psiquiátricas, os adolescentes portadores de TA também não são bem-vindos por serem considerados “casos simples”, se comparados à complexidade dos pacientes ali internados, não sendo um espaço adequado para pacientes de TA. Goffman (2012, p. 91) destaca que, em hospitais psiquiátricos, é comum que os pacientes sejam separados pelo grau de “doença mental”. Assim, faria todo o sentido manter os pacientes separados pelo grau de violação às regras cerimoniais do intercurso social mas, não havendo essa possibilidade na enfermaria do SSA, a qual não se constitui em uma enfermaria psiquiátrica, os profissionais de saúde que atuam nesse espaço tinham dificuldades em receber as adolescentes com TA. 160 Assim, os pacientes internados com TA eram constantemente estigmatizados (GOFFMAN, 1975) pelos profissionais de saúde que atuam na enfermaria para adolescentes. É preciso um esforço grande por parte da equipe técnica do Programa de Transtornos Alimentares (PTA) para convencê-los da necessidade da internação e do risco à vida do adolescente, caso ela não aconteça. Como a enfermaria fica localizada no terceiro andar do prédio e não há redes de proteção nas janelas, bem como não há vigilância na parte externa, o temor é generalizado quanto à possibilidade de tentativas de suicídio. Uma situação ocorrida durante o campo pode elucidar os temores alegados. Os familiares de uma adolescente apresentando emagrecimento importante, em acompanhamento psiquiátrico privado, buscaram atendimento no PTA, pois a adolescente possuía uma diarreia crônica, que já durava cerca de nove meses, sem diagnóstico. Devido às dificuldades derivadas dos critérios diagnósticos para definição do quadro de AN e a inadequação deste mal-estar que se situa no limiar entre “caso clínico/caso psiquiátrico”, os pais da adolescente alegaram que ela estava “em surto”, para obter atendimento. Até aquele momento, ela passava os dias num hospitaldia psiquiátrico e a noite dormia no Instituto Philippe Pinel/SMS-RJ, situação que se mostrou insustentável, piorando o estado de saúde da adolescente. A família (em especial, o pai) buscava então sua internação em enfermaria de clínica médica, avaliando ser essa uma experiência menos traumática para a filha. No entanto, a adolescente não foi aceita naquele serviço público, devido à alegação da enfermaria estar situada no terceiro andar, sendo imprópria à sua integridade física. Havia um episódio anterior da adolescente de ter sofrido um “surto” em sua casa, no qual ela teria quebrado objetos, fez diversos cortes pelo corpo e tentou se jogar do prédio onde mora. Os familiares estavam muito assustados com a situação, mas como não foram acolhidos naquele espaço, em pouco tempo deixaram de frequentar o PTA. É comum que nas enfermarias especializadas em TA as pacientes recebam atenção constante da equipe, sendo as refeições rigorosamente supervisionadas para que seja certificada a ingestão de uma quantidade mínima das calorias recomendadas. Caso a paciente se negue a comer e permaneça perdendo peso, ela pode ser forçada a receber suplementos hipercalóricos ou mesmo ser alimentada via sonda nasogástrica (SILVA, 2004; YARZÓN; GIANNINI, 2010), o que também ocorre na enfermaria do SSA. As características principais que diferem essas enfermarias especializadas das enfermarias comuns são o fato das refeições serem monitoradas e mesmo após se alimentarem as pacientes continuam um certo tempo sob os olhares atentos da equipe de saúde, até para irem ao banheiro são acompanhadas (SILVA, 161 2004). Na enfermaria do SSA não há disponibilidade de recursos humanos para dar a essas adolescentes a atenção necessária para fornecer cuidados tão específicos. Os usuários do Programa são internados apenas caso haja algum comprometimento clínico grave em sua condição de saúde (geralmente um desequilíbrio hidroeletrolítico, muito comum devido ao emagrecimento acentuado e aos constantes vômitos). Uma vez que esse comprometimento seja resolvido, ainda que o paciente esteja gravemente adoecido pelo TA, ele recebe alta e volta a ser acompanhado em nível ambulatorial. A decisão pela internação é tomada em equipe, mas só ocorre de fato se houver vaga e se o diretor da enfermaria entender que o “caso” se enquadra em uma enfermaria de clínica geral. A tensão inerente ao fato do não enquadramento dos TA em critérios clínicos precisos para sua definição diagnóstica e evolução também pode ser observada no exemplo de Natasha. Já tendo sido internada no PTA antes, ao sofrer uma recaída, ela solicitou ser novamente internada, pois não estava conseguindo se “controlar sozinha”, porém seu pedido não foi atendido. Como a adolescente ganhou peso e não estava mais “clinicamente em perigo”, “apenas” a justificativa do quadro de TA não foi suficiente. Assim, não são todas as pacientes com AN que conseguem a internação, na verdade pouquíssimas, embora a equipe do Programa reconheça que a internação poderia beneficiar essas adolescentes. Na situação de Natasha, a equipe chegou a considerar sua internação em clínica privada, o que também não foi possível, pelo mesmo risco alegado de suicídio e necessidade de monitoramento constante. Assim, ela seguiu sendo acompanhada semanalmente no ambulatório, mas as tentativas de suicídio não cessaram. Nem houve reavaliação da equipe médica da enfermaria de clínica para adolescentes quanto à possibilidade dela ser ali acolhida. 5.2 A EXPERIÊNCIA DA INTERNAÇÃO Pelo fato da adolescência estar associada no imaginário social coletivo ao pleno vigor físico, a experiência do adoecimento e mesmo de uma internação durante tal fase de vida não é esperada. Na internação, há uma ruptura na vida das adolescentes, afetando sua vivência e relacionamento com os amigos, familiares, ambiente escolar e mesmo com a equipe de saúde que as acolhe ambulatorialmente. Nessas situações, cabe justamente à equipe de saúde da 162 enfermaria a primazia dos cuidados e da comunicação com a adolescente internada (CARONI; GROSSMAN, 2012). Das onze entrevistas realizadas, seis adolescentes estiveram internadas em razão do TA, cinco delas no Programa observado (uma também com internação prévia em clínica privada) e uma em serviço de saúde privado. O objetivo do tratamento nos TA de um modo geral é adequar as pacientes aos comportamentos socialmente esperados (SILVA, 2004). Tal finalidade, no entanto, não está de acordo com a metodologia empregada, que muitas vezes reforça o caráter patológico desses transtornos. O tratamento envolve o controle minucioso do peso e das calorias ingeridas visando acompanhar a evolução das pacientes. O rigor no tratamento pode diminuir ou aumentar em função do peso observado na balança (SILVA, 2011) e, embora seja do modo inverso, as adolescentes também se autoimpõem maior ou menor rigor na dieta e nos exercícios físicos em razão de seu peso. Nos protocolos de tratamentos da maior parte dos serviços de saúde que ofertam internação aos TA, o diário alimentar funciona como um grande aliado terapêutico (SILVA, 2011; MARINI, 2013). Tal instrumento é preenchido pelas próprias pacientes e verificado em períodos de tempo determinados pela equipe, especialmente pelas nutricionistas. Existem diferentes modelos de “diário alimentar”, mas a grande maioria inclui colunas para “Data”, “Horário”, “Local”, “Alimento/preparação” e “Pensamentos” relacionados à refeição (SILVA, 2011; MARINI, 2013). O objetivo do diário alimentar é que a paciente reflita sobre suas escolhas alimentares, identifique quando sente fome e quando está satisfeita e busque ter uma relação positiva com o momento das refeições. No entanto, Silva (2011) destaca que tal metodologia apenas reforça características consideradas “típicas” do TA, como a necessidade de um controle minucioso quanto a todos os aspectos da alimentação, o que acaba reforçando a preocupação constante com o corpo e o que se está comendo. No PTA os diários não eram utilizados no ambulatório e nem durante a internação. A equipe não acreditava nessa metodologia como promotora de autonomia em relação às escolhas alimentares e estabelecimento de um comportamento alimentar socialmente esperado para as adolescentes. As dietas pré-definidas também não eram adotadas em ambos os contextos (ambulatório e internação), mas não havia um estímulo para além do que era ofertado nos atendimentos (seja ambulatorial ou hospitalar). Ou seja, ao retornarem para casa após a alta da internação hospitalar ou após o atendimento ambulatorial, as adolescentes não 163 tinham uma orientação para seguir ainda que inicialmente e, sentindo-se perdidas, era mais fácil retornar à rotina de restrição com a qual já estavam familiarizadas. Embora o peso das adolescentes fosse uma questão central para o tratamento, tanto no ambulatório quanto na internação, havia um reforço da equipe de saúde do PTA em valorizar pequenas mudanças na rotina e mesmo alterações positivas de humor ainda que houvesse uma pequena perda de peso de uma semana para outra. Na internação, a pesagem era diária e de responsabilidade apenas da nutrição, evitando-se que a adolescente fosse pesada várias vezes no mesmo dia, por diferentes profissionais de saúde. Também não se revelava o valor à paciente, para não estimular sua angústia em relação ao peso, considerada um sintoma do quadro patológico (SILVA, 2011). Assim, o “sucesso” do tratamento no PTA não estava diretamente relacionado ao peso da paciente. Essa era a mensagem transmitida à adolescente e sua família. Natasha foi a única adolescente em todo o período de observação em campo que pediu para ser re-internada, julgando a internação positiva, pois nesse momento obteve o reconhecimento de seu problema de saúde pelos pais, que passaram a acreditar nela e a apoiála. Mas não foi sempre assim. Logo que chegou ao Programa assisti uma de suas primeiras consultas médicas, na qual sua vaga para internação foi obtida. Embora a adolescente afirmasse que estava seguindo a dieta, tinha parado de vomitar e de fazer os 4.000 exercícios abdominais por noite, havia perdido meio quilo em uma semana e a médica a lembrou que na última consulta já havia avisado que se ela voltasse mais magra ficaria internada 15. Seu desespero foi tamanho que, a todo o momento havia a tentativa de se justificar. Disse que ficava muito frustrada e triste porque as pessoas estavam perdendo a confiança nela. Não acreditavam no que ela falava e nem que estava se esforçando. Afirmou que ficar internada seria um fracasso, e que queria provar que conseguia sozinha: “não quero sentir que perdi o controle”. A questão da “perda de controle” é algo que a incomoda e a acompanhou por toda a vida. Não conseguir ter o controle sobre seu próprio corpo era algo que Natasha considerava o 15 A internação da Natasha foi obtida pois ela chegou ao Programa com um derrame pericárdico que, após um tempo de investigação, concluiu-se que era em decorrência de seu emagrecimento acentuado. De fato, Natasha foi a adolescente mais magra que já vi. Como esse derrame não era algo comum de ocorrer em pacientes com AN, seu caso foi apresentado em uma sessão clínica do HU pela médica responsável, o que lhe conferiu visibilidade e lhe permitiu conseguir uma vaga para internação sem maiores argumentações. O trabalho sobre o adoecimento de Natasha foi apresentado no Congresso Brasileiro de Adolescência (2012) e no mesmo ano também publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Pediatria (SOPERJ) e na revista do Serviço de Adolescentes. 164 maior de seus fracassos. Embora quando a conheci estivesse muito magra, ela lutou a vida inteira contra a compulsão e o ganho de peso. Seu descontrole era com o excesso de comida até que decidiu emagrecer e levou sua escolha às últimas consequências. E assim, mais uma vez perdeu o controle, dessa vez com a quantidade de peso perdida. Ainda durante essa primeira consulta, a médica saiu para conversar com a equipe, mas a decisão pela internação foi unânime. Natasha colocou que não era pela internação, pois ela havia sido antes internada em uma clínica privada 16 e contou que foi confortável, com TV e que ela gostou. Mas ela não sabia como seria agora. A médica se manteve firme e chamou os pais da adolescente para informar da sua primeira internação no PTA, enquanto ela permanecia chorando e com a cabeça baixa. A médica informou que o período de internação seria longo, que a assistente social da enfermaria entraria em contato com a escola e que os professores poderiam aplicar as provas durante a internação se necessário. Ainda assim, a adolescente ficou preocupada com suas provas, pois costumava ser uma excelente aluna. Sobre sua dedicação aos estudos, ela e seu pai solicitaram uma sala reservada por duas horas todos os dias para que ela conseguisse se concentrar para estudar durante a internação. Esse pedido foi anunciado para a equipe de saúde em uma reunião em tom crítico por uma das profissionais de saúde que atendia Natasha. A questão é que a equipe tinha uma certa reserva com a família dessa adolescente pois, por terem melhores condições financeiras e poderem frequentar um serviço de saúde privado, não se submetiam às regras previstas no serviço público, aparecendo a qualquer horário e dia da semana e exigindo atendimento, discutindo as condutas dos profissionais que atendiam a filha. No fundo, para a equipe de saúde, parecia absurdo haver em uma enfermaria voltada para os adolescentes, um espaço calmo e tranquilo (que não fosse o mesmo onde se tem televisão, jogos e outras distrações) onde esses pudessem estudar no período em que estivessem internados. Assim, o pedido dessa família não foi recebido como algo que pudesse ajudá-los a pensar a atenção prestada aos adolescentes. Seria mesmo tão difícil criar uma sala de estudos nessa enfermaria? A sala de reunião/convivência dos profissionais de saúde que atuam na enfermaria é grande e poderia facilmente ser dividida para as adaptações que atendessem essa demanda que, muito provavelmente não era exclusiva de Natasha e seu pai. Com o tempo, a 16 A família de Natasha tem um bom poder aquisitivo, a adolescente fazia todos os exames pedidos pelo plano de saúde privado e seu pai continuamente comparava a qualidade do serviço público com a rede privada de assistência à saúde. 165 preocupação inicial com a manutenção dos estudos durante a internação foi dissipada e a adolescente se sentiu bem acolhida por toda sua escola durante esse período. Embora tenha dito que não possuía amigos, ao falar sobre sua internação, chegou a se emocionar com a mobilização de sua turma na escola durante sua ausência. Como esteve internada durante um mês, os colegas se revezavam nas visitas e aqueles que não podiam visitá-la mandavam cartas. Minha escola toda me apoiou. Até hoje apoia. Eles sempre me perguntam se tá tudo bem. Minha coordenadora do técnico sempre pergunta se eu to precisando de alguma coisa, me manda e-mail... Eles são muito atenciosos, sempre foram! Meus amigos, eles vinham me visitar e traziam a matéria. (Natasha, 16 anos) Nem todas as adolescentes recebem esse apoio da escola ou mesmo dos amigos em seu processo de tratamento. Entre as entrevistadas há relatos de perda do ano letivo devido às faltas para comparecer ao ambulatório todas as quartas-feiras e também pelo período da internação. Mas as ausências escolares ocorrem não apenas por isso, há um momento no processo de adoecimento em que a fraqueza é tão grande que a adolescente não tem forças para sair de casa e ir estudar. A questão nunca foi repetir o ano por receber notas baixas ou falta de concentração nas aulas e sim pelo número de ausências à escola. Os pais de Silvia optaram por trocá-la para um colégio público, pois pagavam caro em uma escola privada e a filha faltava sempre devido à doença. Kamila preferiu trancar sua matrícula na escola antes que a reprovação por faltas se concretizasse. Alice pediu aos pais para mudar de escola, pois durante sua internação, como sua turma não sabia o motivo de seu desaparecimento, quando retornou às aulas soube de um boato de que estaria grávida. Segundo conta: “não tinha mais cara de estudar lá” e por isso transferiu-se para uma escola nova. Com exceção de Natasha, os períodos de internação são relatados como difíceis para as usuárias e seus pais. A equipe do Programa ressalta que as adolescentes são internadas muito fracas, mas rapidamente comem de tudo e não vomitam para serem logo liberadas para retorno à casa e assim voltarem às práticas de restrição alimentar, exercícios, vômitos, etc. O período de internação das entrevistadas durou cerca de um mês. O momento das refeições para alguém que sofre de TA é bastante delicado. Geralmente elas preferem comer sozinhas em um lugar reservado, longe dos olhares e do controle sobre aquilo que comem, seja por parte dos familiares ou dos colegas de escola. 166 Durante a internação não lhes era ofertado a opção de não comer, de escolher o que comer ou mesmo de se isolarem para se alimentarem. Assim, Alice descreve: Comia... Porque eles chegavam... No primeiro [dia] eu não comi e no segundo também não... Aí eles chegaram e falaram que se eu não comesse, eles iam me “sondar” [colocar sonda] aí eu fiquei... apavorada né?! Que eles falaram que a sonda descia pela... boca ou uma coisa assim... aí eu fiquei maluca, na hora que eles falaram isso. Aí eu comecei a comer, mas eu ficava toda hora assim pensando... Ai meu Deus... porque eu tava engordando... Aí eu tinha uma calça lá que sempre deixava pra ver se ela entrava ou não. Teve um dia que ela não entrou e eu fiquei... tipo assim eu devo ter engordado muito... Na verdade, eu engordei, né?! (Alice, 15 anos) Na impossibilidade de se pesar sete vezes ao dia como era seu costume, Alice desenvolveu uma técnica, vestir sempre a mesma calça comprida para ter noção de quanto peso estava ganhando. A adolescente que tem quinze anos vestia roupa de tamanho infantil adequada para dez anos de idade. Como era o momento das refeições?: Na hora... cara, era uma fome terrível! Não sei o que eles colocavam na comida! Porque assim, era café da manhã, lanche da manhã, almoço e lanche, jantar e o jantar vinha com uma ceia. Aí seguia sempre essas 3 em 3 horas, aí o organismo acostumava. Aí quando dava umas 10 [22] horas todo mundo já tava com fome de novo! Cara, aí ia ter que esperar até amanhã... (risos) E no almoço? Eu já cheguei a jogar comida fora, porque eu queria ficar magrinha... E depois ficava com fome! (risos) (Isabel, 15 anos) Durante o tratamento ambulatorial, Isabel deveria tomar os medicamentos recomendados pela psiquiatria, mas nunca o fez. Seu pai costumava rir sobre o fato durante as consultas, afirmando mandar a filha tomá-los, mas essa não o obedecia. Apenas na internação, sob a vigilância da equipe da enfermaria, ela mantinha-se medicada e assim sentiu seu apetite se modificar. Por não relacionar diretamente o aumento do apetite com o uso da referida medicação, chegou a cogitar que colocassem algo em sua comida. Em geral, até as adolescentes internadas se darem conta de que não irão ter alta hospitalar e voltar para casa se não ganharem peso, todas tentam burlar a vigilância e não comer ou se exercitar. Como exemplos, Isabel jogava a comida na lixeira ou dentro do vaso sanitário, Alice esperava o pai ir almoçar ou jantar e não ter ninguém da equipe no quarto para fazer flexões e exercícios abdominais e Ana Laura se trancava no banheiro para dançar. As estratégias variavam, mas os motivos eram os mesmos, se manterem magras e fugir da vigilância cerrada. 167 De uma maneira geral, as adolescentes referem que o período na enfermaria foi muito ruim, pois além de perderem o autocontrole sobre a quantidade de alimentos ingeridos e o peso corporal, ainda eram submetidas a uma série de procedimentos invasivos, próprios de uma internação que, para além da vigilância constante, era o que mais as incomodava. Embora os relatos adolescentes sobre a angústia de estar engordando tenham aparecido, elas tinham a certeza de que, ao saírem do hospital, voltariam a perder o peso adquirido, mas o trauma pela utilização da sonda ou pela quantidade de vezes em que eram “furadas” com agulhas parece ter sido o que mais as marcou. Sobre a experiência da internação, algumas delas contam: Ai.., era horrível... toda hora eles não achavam minhas veias, era muito fina e não tinha sangue... Aí eles me furavam toda hora. E era no braço, no pé... Ai (risos), uma coisa horrível. Eu acho que eu tinha mais medo da agulha, porque eu sempre fui muito apavorada com agulha... ai era toda hora... e eu já acordava com uma agulha bem na minha frente... (Alice, 15 anos) Eu fiquei assim ó [fez cara de assustada], levei um baque. Eu lembro que eles me furavam todinha! Eu fiquei muito ressecada né? Aí eu tinha que levar soro... Soro na veia. Mas não tinha veia! Tava tudo ressecado! Aí quando achava uma, estourava... Aí toda hora ficava mudando! E ficavam me furando até achar uma... Até que uma bendita achou uma lá dentro! (Isabel, 15 anos) Assentadas na sala de espera do atendimento ambulatorial no PTA, as adolescentes pouco conversavam entre si, apenas falavam com os pais ou ficavam assistindo televisão ou digitando no celular, mas durante a internação hospitalar, os laços de amizade entre elas pareciam ser mais facilmente construídos. Ana Laura afirmou ter voltado à enfermaria nos dias em que tinha consulta no ambulatório para rever as colegas e saber como estavam. Assim que foi internada, estava muito fraca e não conseguia sair da cama, até os banhos eram tomados na cadeira de rodas. Com o passar dos dias, foi ficando mais forte e passou a frequentar a área de recreação onde criou laços de amizades. Ela relata esses momentos de integração com as colegas como prazerosos. Para Natasha, além da experiência da internação ter lhe proporcionado o reconhecimento de sua doença pelos pais, também lhe proporcionou fazer novas amizades: Foi ótima! Foi muito positiva, eu conheci muita gente legal, eu mudei muito a minha cabeça, não foi uma coisa triste! Foi feliz na verdade, todos os momentos que eu lembro de lá são felizes! Foi divertido com as pessoas de lá, foi tranquilo, foi muito tranquilo. (Natasha, 16 anos) 168 A vivência de Natasha é singular. A magreza de Natasha ao ser internada assustava. Para alguém que havia se dedicado com tanto empenho ao emagrecimento, parecia ser difícil fazê-la se recuperar. Mas creio que o que ela mais queria e precisava naquele momento era receber ajuda. A princípio, ela não queria ser internada, mas uma vez na enfermaria, nunca foi resistente. Mesmo muito emagrecida não precisou usar sonda, pois comeu como prescrito, não se exercitou, respeitou o período inicial sem se movimentar muito em deslocamentos para fora do quarto para poupar energia. Ficou um mês internada, ganhou sete quilos nesse período e saiu feliz. Sua felicidade, no entanto durou pouco. Por ter passado tanto tempo se autoimpondo a desnutrição, ao voltar à rotina regular de alimentação, o organismo de Natasha passou a acumular o máximo de calorias possíveis, como uma forma inteligente de se preservar para um possível período futuro de privação. Tal consequência é reconhecida como provável de ocorrer em pacientes de desnutrição grave, mas a adolescente não teve o acompanhamento necessário para impedi-la de migrar para a obesidade, o que de fato ocorreu. Natasha passou a se ver numa “montanha russa”, não apenas em relação ao seu peso corporal, mas a seus sentimentos, que estavam intimamente ligados à forma como se via diante do espelho, ou seja, sua auto-imagem corporal. Na internação e no período pós-internação, os sentimentos das adolescentes pareciam se confundir. Parecia difícil avaliar se a experiência havia acrescentado algo de bom, ou mesmo se elas desejavam tentar mudar seus hábitos e rotina de restrições. Tatiana ficou mais de um mês internada e nesse tempo foi praticamente abandonada pela família, mas ainda assim encontrou em alguns membros da equipe de saúde o apoio e carinho de que precisava: Foi ruim [o período da internação]. Só… Não tem mais o que falar… Foi muito ruim, mas também às vezes foi bom porque eles me ajudaram a me entender, a tirar o peso que eu tinha... De ser gorda… Foi isso, teve o lado bom e o ruim… (Tatiana, 16 anos) Tatiana nem chegou a passar pelo atendimento ambulatorial no PTA, foi logo internada mediante um encaminhamento do INCA, onde havia se tratado anos antes. A adolescente estava deprimida e muito confusa, dizendo ouvir vozes dentro da sua cabeça que a mandavam parar de comer. Lamentava todo o tempo por estar sozinha, chorava constantemente e seus familiares pouco visitavam-na. Assim, mesmo com o desconforto de ter usado a sonda, de estar longe de casa, sozinha em um ambiente estranho, a adolescente encontrou motivos para ver o lado positivo de seu período internada. Após sua alta, afirmava 169 sentir falta do cuidado que recebia da equipe, especialmente da residente de psicologia que a acompanhava. Alice foi uma das adolescentes que mais ganhou peso durante a internação, nove quilos e meio. Foi acompanhada o tempo todo no hospital pelo pai, mãe ou uma tia. Sua família aparentava ser muito cuidadosa com ela e, ao sair da internação, a adolescente já fazia planos para perder o peso conquistado. Mas o medo de ser reinternada a fazia considerar novas opções para conseguir essa perda de peso. Eu quando eu voltei já voltei pensando... Ai meu Deus, eu vou fazer uma dieta pra emagrecer tudo isso... Já voltei pensando as mesmas coisas... Mas tipo assim, com uma mentalidade melhor. Eu não pensava, ah... Eu vou vomitar, eu vou parar de comer... Eu pensava, vou fazer uma dieta. Porque eu não queria voltar a ser internada. (Alice, 15 anos) Na ocasião da entrevista, Alice já havia perdido dois quilos e meio do peso que ganhou na internação, não estava conseguindo seguir o plano alimentar da nutricionista, nem tomando os medicamentos prescritos. Ao contrário, permanecia em restrição alimentar e fazendo uso de laxantes. As internações em TA são geralmente mal sucedidas e costumam ser recorrentes. Boughtwood e Halse (2008) destacam que o principal motivo se relaciona com a forma reducionista como o tratamento é conduzido, sendo ainda hoje muito centrado no ganho de peso, com as pacientes sendo obrigadas a engordar sem que sejam considerados os aspectos psíquicos da AN. Embora os autores não neguem que a alimentação “forçada” possa ser necessária como um passo inicial, e que a internação é importante para salvar a vida de muitas pacientes acometidas pela AN, esse recurso não deve ser estender por muito tempo. Quanto mais tempo envolvidas pela rotina hospitalar, mais difícil pode ser o retorno para o convívio em sociedade. No hospital, pacientes de diferentes patologias referem perda de apetite por não se habituarem à rotina e à alimentação do local. Em se tratando dos TA, essa dificuldade em sentir fome é ainda mais crítica. Boughtwood e Halse (2008) referem que o alimento é apresentado de forma redutora nas internações e as pacientes são privadas de todas as condições que despertam a fome, como o cheiro de boa comida, a apresentação atraente, boa companhia e atividade física que auxilia no aumento do apetite. Engordando nessas condições, sem que seja criado um desejo por estar bem e saudável, é difícil que ao receberem alta as adolescentes busquem melhorar. 170 Embora a notícia da alta hospitalar fosse recebida com alegria por todas, esse retorno à rotina doméstica, da escola e alimentar após a internação era vivenciado com dificuldade. O período de um mês fazia muita coisa mudar, a determinação para perder peso já não era a mesma, mas o encontro com o espelho as aterrorizava. Estar novamente livre para fazer o que bem entender com a memória recente sobre as dificuldades que passaram para ganhar um pouco de peso as fazia relutar por um tempo em buscar o emagrecimento, ou tentar maneiras mais “saudáveis” para obter seus objetivos, mas o impulso para emagrecer acabava as vencendo (BOUGHTWOOD; HALSE, 2008; YARZÓN; GIANNINI, 2010). 5.3 INTERNAÇÃO: REFORÇO NO TRATAMENTO OU UMA FORMA DE COERÇÃO? A notícia da internação ou possível reinternação era geralmente acompanhada por choro e súplica adolescente pela alternativa da internação domiciliar ou para obter mais uma chance da equipe para nova tentativa de acompanhamento ambulatorial. Aquelas que por muitas semanas descumpriam os acordos firmados com a equipe de saúde, passavam a receber a “ameaça” da internação, onde poderiam ser constantemente vigiadas e perderiam sua liberdade. Nesses casos, a possibilidade da internação era adotada como uma maneira de puni-las, como um dispositivo disciplinar no sentido de restaurar a ordem social anterior comprometida (FOUCAULT, 1987). A equipe do Programa agia de forma conjunta buscando manter uma dada impressão para atingir seus objetivos, no caso, forçar a adolescente a comer e/ou tomar a medicação sem que estas e seus familiares percebessem de que se tratava de uma “encenação”, pois a internação dificilmente seria obtida (GOFFMAN, 1985, p.83). Parece estabelecido que a internação hospitalar involuntária para AN seja benéfica, pelo menos, em curto prazo, até que se recupere um pouco de peso, embora um período mais longo de permanência possa ser necessário. Com pacientes internados, as metas são quase sempre atingidas, pois a internação compulsória permite formas mais rigorosas de fiscalização (RUSSELL, 2001). No entanto, o tratamento obrigatório de indivíduos com AN permanece sendo um tema controverso, pois estes não são totalmente incapazes, mas o comprometimento de seus pensamentos, percepções, julgamentos e comportamentos os colocam sob alvo de intervenção compulsória (APPELBAUM; RUMPF, 1998). Muitos pacientes que recusam o 171 tratamento parecem ter o discernimento adequado para decidir sobre o fato, mas geralmente estão tão doentes que não conseguem buscar ajuda (WATSON et al, 2000). Tan et al. (2010) sugerem que muitas vezes os pacientes são alvo de coerção e tratamento compulsório, mesmo sem ordens formais para esse tipo de atitude. Em seu estudo, 29 mulheres jovens foram entrevistadas para compreender suas opiniões sobre o tratamento coercitivo da AN e elas pareceram concordar com a necessidade de tratamento compulsório, em situações em que a vida estava em risco. Ocorre que a equipe de profissionais que lida com essas pacientes geralmente não se dá conta de que seus atos são coercitivos (MOREIRA; OLIVEIRA, 2008), e agem de fato primando pela saúde das adolescentes. Isabel, quando chegou ao PTA estava muito debilitada e foi logo internada na enfermaria por mais de duas semanas, considerando tal período ruim. A adolescente nunca apresentou uma melhora real em seu quadro e houve épocas do tratamento em que estava muito confusa, era comum jogar fora as medicações e muitas vezes pediu para sair do atendimento, pois se considerava “ótima” e não queria mais frequentar o PTA. Nessas ocasiões, ela era constantemente ameaçada com a internação e o uso de sonda alimentar, um pavor entre as adolescentes. Mesmo considerando as dificuldades antes relatadas para efetivar a internação, a ameaça da internação era sempre acionada como dispositivo para provocar medo e obter obediência das usuárias às recomendações do tratamento ambulatorial. Alice precisou ficar internada e se dizia “traumatizada”, pois na ocasião foi ameaçada com o uso da sonda. Não queria de modo algum ser internada novamente e falava isso sempre nas consultas, mas seus exames voltaram a apresentar uma grave depleção de potássio. Ou seja, ela havia voltado a usar laxantes 17 e vomitar e, em seu caso, era bem provável se conseguir a vaga para internação. A adolescente era sempre acompanhada pelo pai no ambulatório e ninguém sabia o motivo de sua mãe ter deixado de acompanhá-la nos atendimentos. Na entrevista ela contou que quando ficou doente, sendo filha única, o pai pediu demissão do emprego para acompanhá-la nos atendimentos e sua mãe, por ser dona de uma confecção no bairro onde moram, permaneceu trabalhando para sustentar a casa. Como o peso da adolescente vinha diminuindo a cada semana e seus exames de sangue permaneciam com a questão da depleção de potássio, a hipótese da internação era sempre cogitada como 17 Assim que Alice foi internada, ela usava 22 unidades de laxantes por dia. Comprava na farmácia perto de sua casa a R$1,22 a cartela com 4 unidades que pegava em uma gôndola, sem precisar pedir ao balconista. Depois da internação, disse que havia parado, mas seus exames de sangue revelavam o contrário. Então, ela reconhecia estar tomando apenas 2 por dia. Na entrevista, questionei como ela fazia para estudar tomando tanto laxante. Ela contou que a maior parte tomava à noite e levantava várias vezes para ir ao banheiro. 172 estratégia deliberada para “assustá-la”, o que a deixava de fato amedrontada. Alice não chegou a ser internada novamente, mas parou de tomar os laxantes. Ana Laura, encaminhada por outro serviço de saúde, onde sua mãe (obesa) trabalhava, também chegou buscando internação e após um ou dois atendimentos no ambulatório foi para a enfermaria. A adolescente, bailarina, tem a dança como algo central em sua vida. Não comia nada, dizendo não conseguir se alimentar por conta de uma dor epigástrica muito forte. Nas reuniões da equipe, ouvi vários outros casos de portadoras de AN que referem essa dor epigástrica como impeditiva para comerem. Foi internada justamente para investigar essa dor e, constataram que a adolescente cursava com uma gastrite muito leve, que normalmente causaria apenas um pequeno desconforto após as refeições. Por se negar a comer, a adolescente foi sedada e lhe colocaram sonda. Ana Laura tinha certa dificuldade em expressar suas emoções, ficou internada um mês, mas não questionava nada. Sua mãe respondia por ela, opinava por ela e, mesmo durante a entrevista de sua filha, a mãe entrou na sala nos interrompendo e se surpreendendo em tom de deboche pelo fato da filha estar assinando o TCLE como “se fosse uma adulta”. Aparentemente, não havia entre ambas, mãe e filha, muitos conflitos, mas eles ficavam implícitos. A mãe queria e a filha fazia. Mesmo a dança, que Ana Laura colocava como a coisa mais importante de sua vida, ela começou a praticar obrigada pela mãe que achava sua postura feia. Assim, a coerção também pode advir do interior da família, espaço de forte opressão em alguns casos adolescentes, nos quais os sintomas são tomados como “palhaçadas”. Uma das adolescentes que foi internada logo que chegou ao PTA, com a qual conversei na sala de espera (ela não chegou a permanecer em atendimento, portanto não houve tempo para que eu a entrevistasse), sentia-se culpada por estar no mesmo quarto que uma adolescente com câncer e por estar ocupando a vaga de alguém que, de fato estivesse doente. Após a alta, a adolescente sumiu sem que ninguém do serviço buscasse saber dela ou tentado fazê-la aderir ao atendimento ambulatorial. Seus irmãos (uma irmã e um irmão) também não a ajudavam e falavam o tempo todo que ela assim se comporta para chamar a atenção especialmente dos pais. Essa adolescente dizia que o horário das refeições era um pesadelo, pois havia meninas internadas que não podiam comer devido à patologia e ela não comia porque não queria. Essa adolescente estava se cortando muito e falava que sentia uma dor que só passava com os cortes. Alegava precisar sentir a dor desses cortes para a dor que sentia na alma passar. Achei essa expressão bem forte para alguém com apenas 15 anos. Mesmo com toda essa complexidade, ao receber alta a adolescente desapareceu do PTA. 173 A invisibilidade da doença somada à incapacidade de satisfazer as expectativas sociais e pessoais pode ser promotora de muito sofrimento para as pessoas portadoras de TA. A falta de uma evidência física da doença pode levar mesmo os familiares a terem dificuldade de legitimar/reconhecer o papel de doente. Embora os sintomas visíveis tornem a doença pública, o que também representa uma série de complicações, entre elas a limitação de novas oportunidades de emprego e relacionamento, a visibilidade proporciona o reconhecimento social ou legitimação social do sofrimento. No entanto, os pacientes cuja doença é invisível, mas em função dela não podem ser produtivos, ou no caso das adolescentes não conseguem mais frequentar a escola, sentem a censura decorrente dessa inatividade sendo sua experiência da doença considerada questionável e seu sofrimento não legitimado (GREEN, 1998). Saber constantemente seu peso durante a internação é sempre uma angústia para essas pacientes. Em casa, geralmente têm uma balança caseira a qual frequentam várias vezes ao dia. Uma das adolescentes, que não possui balança em casa, afirmou ir à farmácia próxima cerca de sete vezes por dia, mesmo nos finais de semana, apenas para se pesar. A possibilidade de saber que o peso está aumentando é algo inaceitável para elas. Natasha chegou ao Programa quase sem forças para andar e com o tempo e algumas internações (apenas uma no PTA) foi ganhando peso ao ponto de chegar ao sobrepeso, sem parar o ganho de peso nessa etapa. Ao longo dessa jornada entre a desnutrição grave e a quase obesidade, Natasha era pesada em todas as consultas no ambulatório e esse momento de subir na balança era acompanhado por seu pai que sempre fazia a “brincadeira” de colocar o pé junto com a filha no equipamento, fazendo seu peso parecer muito mais alto do que realmente era. Ambos (pai e filha) riam e ele então tirava o pé para que o peso “verdadeiro” pudesse ser obtido. Como engordou e deixou de correr risco de vida, as consultas da adolescente tornaram-se cada vez mais espaçadas. Permanecia indo semanalmente apenas para acompanhamento psiquiátrico. Assim, após algum tempo sem as consultas de rotina na clínica e na nutrição, ela compareceu no dia marcado e, na hora da pesagem, Natasha sorriu mais uma vez dizendo: “Pára pai! Tira logo o pé!” No dia em questão, o pai da adolescente não estava com o pé apoiado na plataforma, ela havia engordado surpreendentemente. E, por ser muito disciplinada e ter cumprido a promessa de não ficar se pesando toda hora, deixando as pesagens apenas para as consultas médicas, a adolescente entrou em choque e passou o resto da manhã chorando descontrolada, quase não acreditando que aquele peso era real. 174 Na internação, para muitas delas, essa angústia com relação ao peso só aumenta, pois são “forçadas a comer”, caso contrário são colocadas na sonda, não podem se exercitar e nem mesmo vomitar (embora burlar essas “regrinhas” não tenha sido tão difícil segundo algumas delas). Mudando totalmente sua rotina quase sabática para perda de peso, o ganho ponderal acontece rápido e a recuperação do equilíbrio hidroeletrolítico também. Com a pesagem ocorrendo apenas uma vez ao dia e, quase nunca sendo revelado a adolescente o seu peso, para alguém que costumava se pesar várias vezes ao dia, a situação beira o insuportável. Como ressaltado, com frequência a paciente com AN não procura voluntariamente tratamento e como a doença em geral tem seu início na adolescência, essa decisão fica a cargo dos pais que, não raro, têm dificuldade em entender o que se passa com a filha (MOREIRA; OLIVEIRA, 2008). O tratamento utilizado na AN muitas vezes é coercitivo e supostamente retira a pouca autonomia da doente mas, a natureza da patologia exige em graus variados o exercício de poder. Quando o tratamento voluntário não é aceito e a vida do paciente está em risco, os profissionais de saúde julgam necessário recorrer à lei para submeter o paciente com AN ao tratamento obrigatório a fim de que o peso corporal seja recuperado. Nesses casos a resistência ao tratamento costuma ser ainda mais comum (MOREIRA; OLIVEIRA, 2008). No Brasil não tivemos conhecimento de algo semelhante, mas na Austrália, bem como Estados Unidos e Reino Unido (ROOTS et al, 2009; CARNEY et al, 2006), há casos em que devido à alta mortalidade por AN os médicos chegam a considerar as vias legais para coagir pacientes a permanecer em tratamento ou em programas de realimentação. A afirmação é que muitos desses pacientes não têm discernimento para a gravidade de sua condição psicológica ou médica, mas a coerção foi mais provável de ocorrer nos casos de existirem internações prévias para TA, se o IMC fosse muito baixo ou se houvessem co-morbidades psiquiátricas associadas. Se por um lado, as metas de ganho de peso eram atingidas, por outro, a construção de uma aliança terapêutica era quase inviável (CARNEY et al, 2006). No trabalho de Tan et al (2010), a percepção da coerção ocorreu de modo complexo e não esteve relacionada com o grau de restrição de liberdade. As participantes não pareceram ressentir da coerção se esta fosse realizada em um contexto de confiança junto aos familiares e profissionais de saúde, de modo que o relacionamento coercitivo podia mesmo ser percebido como cuidado e ajuda, e não necessariamente experimentado de forma negativa. Assim, o desafio estaria em criar uma rotina de cuidados que fosse bem recebida, mesmo em um contexto onde as adolescentes estejam contra a vontade. 175 Nas considerações finais da tese, procuro assinalar algumas contribuições importantes à oferta de assistência à saúde aos adolescentes com TA, possíveis graças à escuta privilegiada junto aos adolescentes entrevistados e à observação cotidiana do serviço de saúde. 176 CAPÍTULO 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: CONTRIBUIÇÕES À ASSISTÊNCIA À SAUDE DE ADOLESCENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES Tentei demonstrar até aqui o quanto a trajetória de vida desses adolescentes foi marcada pela presença do TA. A adolescência é uma fase da vida em que muitas vezes há um afastamento da família e uma aproximação com os pares. O ganho gradativo de autonomia dessa fase, possibilitando optar pelo que fazer com seu tempo livre, é geralmente preenchido pela presença do grupo de amigos que, ao término das aulas, vão juntos ao shopping, ao cinema, fazer um lanche, ou seja, se encontram para fora dos muros da escola, mesmo nas férias ou finais de semana. Além de também existir a aproximação com pessoas próximas ao local de moradia, nos espaços de sociabilidade em clubes, cursinhos, etc. Com exceção de Bruna, que embora afirmasse não ter amigos na escola, os tinha no grupo da igreja que frequentava, de Alice que tinha nas primas suas grandes amigas e Ana Laura que tinha as amigas do ballet onde passava a maior parte de seu tempo, as outras adolescentes e Vinícius, ainda que tivessem um ou outro colega se diziam solitários. Essa solidão estava relacionada ao fato de não levarem uma vida “normal”, de viverem tentando esconder seu TA ou, quando já descoberto, tentando fugir das investidas externas para que se esforçassem em comer qualquer alimento que fosse. No entanto, essa solidão autoimposta nem sempre era relatada com tristeza. Na verdade, o fato de passarem muito tempo sozinhas as permitia concentrar a atenção em atingir seus objetivos e muitas delas diziam não sentir falta de ter amigos. O início da minha “conversa” com elas, era sempre buscando conhecê-las melhor, saber do que gostavam de fazer com seu tempo livre e para se divertir e, não raro ouvi que gostavam de dormir e/ou de estudar. Em uma das fases da vida na qual a sociabilidade entre pares adquire caráter central, escolher deliberadamente dormir e/ou estudar como fontes de prazer as destacavam dentre os outros adolescentes, chamando a atenção de seus pais, do restante da família e dos professores. Por meio dos relatos adolescentes, entendi que esse isolamento social e a quietude que mantinham também faziam os pais temerem que houvesse alguma relação com o uso de drogas ilícitas, usualmente mais temido pelos pais nessa etapa 177 da vida dos filhos. Embora a adesão ao uso de drogas não tenha se mostrado realidade entre os entrevistados, os conflitos familiares provocados por tal temor parental aumentavam, tornando-as alvo de desconfiança e cobranças familiares. Nas entrevistas, ao pedir para falarem sobre si, eles narravam seu adoecimento, o convívio com a AN ou como transcorria sua rotina diária. Vinícius relatou seu dia desde a hora que acordava até ir dormir, demonstrando tédio por ter uma vida sem muitas novidades quando desejava claramente o contrário. Em seu caso, ele vivia em uma casa apenas com adultos e idosos, impedido de sair pela madrinha, que o considerava ainda muito novo. Restava então a Vinícius passar todo o tempo em que não estava na escola em frente ao computador. A descrição da vivência particular de cada um com a AN, quando indagados a falar mais sobre si mesmos, demonstra o quanto a doença se apossava da vida dos entrevistados, deixando pouco espaço para que se sentissem existindo a despeito do TA. Essa sensação da doença preencher toda a existência social dos sujeitos acabava por minar suas relações com o mundo que os cerca. Silvia contou sobre o motivo do seu afastamento tanto dos seus familiares (com exceção do pai), quanto das amigas de infância, afirmando manter apenas amigos no colégio. Às vezes, me incomoda um pouco eu ter essas coisas. Às vezes eu sinto como se tudo já estivesse escrito em mim, e quando uma pessoa me olha ela já sabe que eu tenho essas coisas. E isso me deixa muito mal às vezes. (Silvia, 16 anos) Conforme destacado em capítulos anteriores, o apoio que a escola ofereceu durante a internação e tratamento de Natasha a deixou emocionada. Ela verbalizou algumas vezes nas consultas e mesmo na entrevista este fato, sempre demonstrando surpresa pela acolhida e o quanto isso a fazia se sentir querida por aqueles que ela não acreditava serem seus amigos. Minha escola toda me apoiou. Até hoje apoia. Eles sempre me perguntam se tá tudo bem. Eles vinham me visitar [na internação] e traziam a matéria./Como é sua relação com outros adolescentes?:Boa. Normal, eu não tenho muitos amigos, mas é normal. A maior parte dos seus amigos é de onde...? (me interrompeu): Não, eu não tenho muitos amigos! Tenho tipo uns 3, 4... 3 no máximo! No colégio eu ando sozinha. E como é isso pra você?: Ah, normal, eu sempre fui assim... Eu tenho colegas, sempre tem gente pra bater papo, mas amigo não... Como você se sente sobre isso?: Diferente! Porque isso muda um pouco né? Eles fazem uma festa numa pizzaria eu não vou! E eu sou a única pessoa com transtorno alimentar na escola e eu vejo eles bem e comendo e eu assim. E eles me apoiam muito, mas mesmo assim, é uma culpa interna... E no recreio, você consegue comer perto das pessoas?: É muito engraçado porque eu não... depende da pessoa, as mais próximas eu até consigo comer perto, outras eu tenho vergonha. (Natasha, 16 anos) 178 Era recorrente que fizessem distinção entre ter colegas e não ter amigas/os. Grande parte do tempo diziam estar sozinhos. Também procuravam destacar que não eram como os outros adolescentes, embora não citassem o TA como motivo para essa diferenciação, mas sim o fato de se sentirem mais maduros, com interesses diferentes dos comuns à fase da adolescência, por isso preferiam estar sozinhos. Yasmin (17 anos) foi uma das que dizia não se identificar com os adolescentes de sua idade, se definia como sendo uma pessoa adulta, precoce e, portanto, considerava os assuntos adolescentes “uma bobeira”. Bruna (12 anos), mesmo sendo muito nova, afirma ter tido a compreensão de que o seu comportamento e de seus amigos era errado, pois passavam muito tempo dedicados a “julgar os outros pela aparência”. Assim, decidiu mudar e afastar-se deles, o que a fez limitar seu ciclo de amizades no colégio onde estudou a vida toda. Silvia vive uma situação atípica em sua escola, afirma não ser a única com TA e isso implica que ela vivencie a sociabilidade adolescente de modo mais próximo ao esperado para essa fase. Fala abertamente sobre seus problemas com seus amigos e encontra apoio quando se sente triste. Por outro lado, afirma ter rompido com as amigas próximas a sua casa, justamente por essas terem tentado ajudá-la com o problema de relacionamento que tem com sua mãe. Meu pai até falou que na minha escola tinha que abrir um centro de tratamento, de terapia mesmo! Eu tenho um amigo que tem esquizofrenia, uma amiga que tem anorexia, outra com bulimia, outra se corta, outra com depressão... é muita coisa lá! Eles me ajudam. Esses amigos que também têm problemas a gente vai se ajudando. Parece que a gente esquece dos nossos pra ajudar os outros. Parece que a gente supera os nossos pra ajudar os outros... E é por isso que eu gosto tanto de lá, eu passo o dia todo lá. (Silvia, 16 anos) Kamila estava afastada do colégio há quase seis meses, diz que quando ficou muito fraca seu pai foi ao colégio explicar a situação e buscar alternativas para que a filha não fosse reprovada por faltas, mas o apelo não surtiu efeito. Desde então, vivia em casa na expectativa de retomar as aulas. A adolescente pontua que a maior diferença entre si e os outros adolescentes é o fato deles não ligarem para o que “as pessoas pensam”, para ela, a opinião alheia sempre fez muita diferença em seu julgamento pessoal. É na adolescência também que começam a se desenvolver os primeiros relacionamentos afetivo-sexuais e, além das preocupações com a autoimagem corporal, devese considerar o despertar para o desejo e a necessidade de se fazer desejar em redes de 179 sociabilidade, o que implica em aprender estratégias de sedução em que o corpo ocupa lugar de destaque. Todo esse processo é vivenciado de formas distintas, pelos próprios jovens e pelas instâncias sociais com que lidam quotidianamente (FERREIRA, 2009). As adolescentes que já haviam experimentado um relacionamento afetivo atribuíam muito valor ao apoio que recebiam de seu/sua parceiro/a. Yasmin chegou a romper com os pais, dos quais sempre recebeu apoio, em prol de seu relacionamento ainda muito recente. Ela namorava há 4 meses e já fazia planos de se casar, o que gerou um conflito familiar na ocasião da entrevista, quando a adolescente permanecia sem falar com os pais. Os conflitos familiares em razão dos relacionamentos amorosos das filhas não foram incomuns. Bruna, que tinha 12 anos, estava namorando pela segunda vez, sendo os dois rapazes com os quais se envolveu mais velhos, o primeiro com 18 e o segundo com 17 anos. O conflito com a mãe não residia no namoro em si, mas na diferença de idade entre a adolescente e seus parceiros. A mãe tentava demonstrar que eles seriam “má influência” à filha, e a adolescente começava a atribuir valor à opinião de sua mãe. Você está namorando no momento?: É... porque assim, eu acho que eu não posso ficar desobedecendo a minha mãe, ela acha que a gente terminou, mas eu ainda vejo ele de vez em quando... Mas eu acho que não to fazendo o certo então eu acho que... Eu vou cortar essa ligação, porque talvez isso que ela esteja fazendo seja bom pra mim mesmo... (Bruna, 12 anos) Natasha, que já havia namorado meninas e também meninos, estava há sete meses com um colega de colégio e destacava o fato dele ter se apaixonado por ela enquanto ela estava com 33 quilos. Além de seu pai, era nele que ela encontrava apoio para seguir com o tratamento. Ele é tranquilo, ele sabe, ele não tem problema com isso, ele me ajuda. Ele conversa muito comigo. Por exemplo, quando eu cortei o cabelo eu fiquei triste porque eu achei que ficou feio, aí ele cortou muito o cabelo dele e disse que qualquer pessoa pode ser bonita com cabelo curto [ela cortou o cabelo bem curtinho, um corte masculino]. Ele faz essas coisas pra me deixar bem, ele é legal, muito legal... Você consegue comer perto dele?: Claro! A gente sempre almoça junto. É engraçado, ele come muita besteira... (risos) E você não fica regulando o que ele come?: Não! Eu quero mais é que ele seja feliz! (Natasha, 16 anos) Silvia era uma das adolescentes mais falantes, mesmo após a entrevista me procurou algumas vezes para falar de seus conflitos sentimentais. Não conseguia entender seus sentimentos, assim como Natasha, também dizia gostar de meninos e meninas, por quem tinha 180 preferência, mas recentemente acreditava estar apaixonada por um menino e isso não parecia fazer muito sentido para ela. Assim, lidar com mais essa “novidade”, ou seja, a atração pelo mesmo sexo e não o sexo oposto era difícil tanto para os familiares quanto para as próprias adolescentes. O PTA não ficava alheio aos conflitos que surgiam em razão dos namoros adolescentes, reforçando o fato de que os cuidados ali prestados necessitam ir além da dimensão da saúde. Os depoimentos pessoais sobre a própria adolescência ou sobre os cuidados com os filhos adolescentes eram utilizados pela equipe de saúde constantemente como exemplo, buscando tranquilizar a família sobre as questões próprias ao início dos relacionamentos afetivos-sexuais, as quais eram novas para os pais e as filhas. Havia uma tentativa de tornar o assunto “mais leve” para que pudesse ser posteriormente discutido pela família com calma. Sobre a sociabilidade no mundo virtual, embora tivessem conhecimentos sobre os blogs e sites que incentivavam a propagação dos TA na internet e também forneciam apoio aos seus portadores, nenhuma das entrevistadas assumiu ter criado e/ou mantido um site ou blog com esse fim, nem mesmo se consideravam suas frequentadoras assíduas. Na verdade, buscavam ao máximo se afastar das pessoas que escreviam nesses “diários virtuais”. Yasmin as nomeava como “malucas”, dizendo que usavam o seu TA como um “troféu”. Alice afirmou achar “horrível” o que via, mas ao mesmo tempo dizia que eram todas as “maluquices” que ela mesma praticava e que, vistas de fora, “não era legal”. Bruna disse que nas vezes em que entrou rapidamente nestes sites pró-ana/pró-mia teve vontade de sair, pois achou “chato”. Isabel considerava “aquilo lá que é doente, eu não!”, embora não tenha conseguido explicar a diferença entre suas práticas e as propaladas no ambiente virtual. Kamila foi sincera ao dizer que, além de entrar e constatar que se tratavam de meninas “iguais” a ela, ensinando outras a se tornarem anoréxicas ou bulímicas, fez uso das técnicas ensinadas para conseguir vomitar. Em todo caso, para as entrevistadas, parecia ser confuso esse contato visual, ainda que apenas virtual, com outras pessoas que tem um TA. Conforme antes destacado, é possível desenvolver uma postura ativa em relação a esses transtornos, afastando a sua concepção de doença e lidando como algo que é adotado deliberadamente como uma carreira em construção (DARMON, 2009; 2006). No entanto, o confronto com a realidade do adoecimento e o sofrimento dele decorrente parece minar essa pró-atividade, causando desconforto, medo e não-identificação com outras pessoas também doentes. 181 Yasmin, ao final de sua entrevista, ao ser questionada se teria algo mais a acrescentar, pegou o gravador da mesa e disse: “Ajudem! Ajudem as meninas! Não a mim, porque eu já to bem... Mas ajudem a quem precisa, porque elas são maluquinhas... (risos)”. (Yasmin, 17 anos) Embora não se vejam ou se sintam doentes grande parte do tempo, isso pode variar de um momento ao outro, afinal os TA são doenças de curso crônico, onde pequenas melhoras e posteriores recaídas são comuns. Ao entrarem nesses sites ou blogs ou ao verem uma adolescente gravemente adoecida na sala de espera, elas têm dificuldades em aceitar sua própria condição de doentes. Ao mesmo tempo, não sabem ao certo como estão, pois sempre se veem mais “gordas” do que realmente são e desejando estar mais magras do que estão. Nesses momentos de confusão quanto à sua autoimagem corporal, elas demonstram mais precisar de amigos, de apoio, de carinho. O apelo de Yasmin, em minha opinião, representa o maior desafio enfrentado por essas adolescentes, qual seja, reconhecer nelas mesmas o problema, para então buscar forças para vencê-lo. Não raro elas se assustavam com o emagrecimento de uma colega na sala de espera ou quando viam algo sobre AN na televisão, nos jornais, revistas ou na internet, afirmando que “aquilo sim era doença”. Na verdade, elas não estabeleciam relação direta entre o que se passava com elas e o que tanto as chocava. Ainda assim, reconhecer que estão doentes nem sempre é um sinal de que vão melhorar. Podem reconhecer que estão doentes e se acharem bem assim, pois referiam ser melhor estar no “controle” do que serem “saudáveis”. Em ambos os lados, reconhecendo-se doentes ou não, viver com um TA representa um sofrimento infinito, e a falta de reconhecimento de que isso é um problema grave, tanto pelos familiares quanto pelos amigos, só contribui para que essas adolescentes adoeçam ainda mais. Nas oportunidades de contato com os adolescentes, sempre procurei saber o que consideravam desejável em um serviço para atendimento aos adolescentes. Durante a etnografia, apesar do Programa observado estar inserido em um Serviço voltado para a saúde do adolescente, nem sempre a forma como a atenção/assistência à sua saúde estava organizada se moldava as suas necessidades e aspirações. Quando indagadas na entrevista, a maioria das adolescentes avalia bem o PTA. Dentre as entrevistadas, apenas duas tiveram o Programa como sua primeira experiência em 182 atendimento aos TA. Todas as outras já haviam sido levadas pelos familiares em um ou mais serviços/profissionais de saúde. Assim, podiam compará-lo com os locais anteriormente visitados. Duas entrevistadas disseram que embora estivessem satisfeitas com os atendimentos, demoraram a confiar nas pessoas que as atendiam, o que fazia com que não tivessem vontade de ir às consultas e esconder “a verdade” sobre seus comportamentos. Dentre os motivos destacados para avaliação positiva do atendimento em saúde, encontram-se o fato de tê-las ajudado a perceber que o que faziam era prejudicial e a completa infraestrutura de atendimento com espaço físico, profissionais de saúde e exames disponíveis. A única adolescente que afirmou achar “chato” ter que ir aos atendimentos atribuiu sua opinião ao fato de ter que “ficar conversando”. Na verdade, sua queixa residia no fato de que, na mesma manhã, precisava repetir quase as mesmas coisas por três ou quatro vezes, uma vez em cada um dos atendimentos que passava, o que tornava esse fluxo exaustivo. Assim, além de repetitivo, as consultas se tornam desmotivantes. Quando eles repetem a mesma pergunta sempre, aí eu não sei por que eu fui lá... (Ana Laura, 12 anos) Uma proposta possível à resolução dessa queixa seria um atendimento coletivo por parte da equipe de saúde, em que um ambiente acolhedor fosse criado e a adolescente pudesse se sentir estimulada a falar e acolhida pela equipe como um todo, evitando o desgaste evidente para elas e seus familiares. Tal proposta, no entanto, nunca chegou a ser cogitada e consequentemente discutida. Ao serem questionadas sobre as dificuldades no tratamento dos TA, destacavam o seguimento das recomendações da nutrição, a demora para confiar na equipe, para construir um vínculo, o medo dos médicos, a vergonha e o constrangimento de ter que se despir para o exame físico clínico, sempre observadas pelos residentes. Kamila diz que sua maior dificuldade tem sido ficar sem vomitar. O questionamento médico “Você não consegue pensar em um modo mais adulto de resolver isso?!” é ilustrativo de como é difícil ser adolescente. Por um lado, elas estão no serviço de saúde, levadas pelos familiares e muitas vezes atendidas na presença deles, completamente tuteladas, sem voz, sendo a todo o tempo delas exigido a submissão e a obediência às regras da instituição. De outro, querem que elas se comportem como adultas, que encarem os problemas típicos dessa etapa da vida como adultas, sendo que comumente ainda são tratadas como crianças. 183 A indagação acima surgiu quando uma adolescente chegou para atendimento com ferimentos advindos dos cortes que provocou em seu corpo. Ela explicou que se cortou em razão de uma discussão com uma amiga, ao chegar em sua casa, percebeu que sua amiga estava certa e se sentiu culpada pelo ocorrido. Ao ser questionada se não conseguiria ser “mais adulta” frente aos conflitos interpessoais, a adolescente respondeu negativamente em tom de deboche. Descrita pela equipe como “sistemática”, para ela, controlar seu corpo, fosse pelos cortes, fosse pela privação alimentar, era o máximo de autonomia que conseguia ter e, por isso, realizava tais atitudes com tanto rigor. É preciso muita sensibilidade para lidar com esses casos e muitas vezes a família não está preparada, não é algo simples de se compreender e os familiares também ficam perdidos e não encontram esse amparo no Programa, posto que não há uma atividade prevista para acolher os pais. Nesse sentido, Natasha valorizou sobremaneira o apoio aos pais: Eu acho que tem que focar muito nos pais também, porque eu acho que os pais são muito responsáveis por isso, eu acho que sem os pais não dá pra fazer, tanto é que eu só comecei a melhorar quando meus pais se tocaram. Acho que a parte mais difícil é porque é muito complicado explicar pra um pai um transtorno alimentar. Não é fácil de entender, nenhuma doença psicológica é... Não é igual a você ter um câncer... Não é a mesma coisa! (Natasha, 16 anos) Esse comentário de Natasha se relaciona com o de uma adolescente internada na enfermaria do SSA com AN. Além do sofrimento por toda cobrança que tinha consigo mesma em relação ao seu corpo, tal adolescente sofria por não conseguir melhorar. Ela estava internada no mesmo quarto que uma adolescente com câncer, que tomava morfina e, ainda assim gritava de dor grande parte do tempo. A adolescente com AN sofria por “poder se curar”, afinal segunda ela, sua doença implicava em “não comer”, se comesse estaria curada, mas mesmo assim não conseguia. Enquanto isso, a colega de quarto tinha uma “doença de verdade”, incurável. Em um de seus relatos, afirmou estar ocupando o lugar de alguém que poderia estar “precisando mesmo”, assim, sentia-se envergonhada com a presença da família da outra adolescente e de estar na enfermaria reclamando de “gordurinhas” e da quantidade de comida enviada pela cozinha, enquanto outras adolescentes estavam morrendo ao seu lado. Esse sentimento também revela como a AN é minimizada enquanto doença pelas próprias pessoas que padecem desse mal e como pode ser foco de sofrimento e dor para as mesmas. Muitas vezes, essa minimização de sua gravidade e/ou complexidade ocorre pelos próprios 184 profissionais de saúde que as atendem, talvez por falta de capacitação e manejo para lidar com tais patologias. Ao pedir que qualificassem o “bom atendimento” recebido, as adolescentes destacaram a quantidade de informação fornecida, demonstrando que valorizam o profissional de saúde bem capacitado, ou o simples fato deste ter “se preocupado, tentado ajudar, feito alguma coisa”. Poder expressar o que sentem é por elas valorizado: “Aqui! Aqui é muito legal... Ah... porque aqui eles conversam... eles... eles se preocupam com o que a gente pensa... com o que a gente está sentindo...” Ter autonomia para falar o que se deseja em um atendimento voltado para os adolescentes (e não para os adultos!) era algo que as surpreendia positivamente, quando na realidade deveria ser a norma. Silvia ressalta a importância de ser compreendida pela equipe de saúde que atende ao adolescente: “Um bom atendimento eu acho que é quando a pessoa te escuta. Ela fala o que você tem que fazer, mas ela não te julga, ela não te critica... Ela sabe que você tá errada, mas ela vai te orientar, não te criticar! E eu demoro a confiar, eu demorei aqui no transtorno... Aqui no transtorno todas as consultas são boas... Quando eu comecei com a nutrição, eu falava pra ela, você vai me mandar fazer as coisas e eu vou continuar vomitando, restringindo... Até eu entender que aquilo era importante. Só que agora eu me descontrolei. Agora eu preciso é confiar mais em mim, porque em vocês eu já confio. Senão eu nem vinha nos atendimentos... e eu fico ansiosa pra vir.” (Silvia, 16 anos) Além das perguntas repetitivas, elas também avaliaram como prejudicial no atendimento recebido o fato do profissional de saúde ficar constantemente condenando as atitudes adolescentes e não as “escutar direito”, ao não dar voz aos pacientes e não basear seu atendimento naquilo que está sendo por elas relatado. Mais de uma adolescente sinalizou que “muita pressão” seria a pior coisa para o tratamento. Natasha explica de forma clara como avalia tal situação: (respira fundo) eu acho que quando você começa a querer obrigar “você tem!”, é ruim! Pressionar... Porque a gente já sente uma pressão da gente, porque a gente sabe que é ruim! A gente vê as outras pessoas na rua... A gente vai na escola e vê que todo mundo é normal, a gente já tem a pressão de não ser normal. Tem a pressão de ser magra, porque a gente tem que ser bonita, tem que ser magra, por que senão o outro... então, tem uma pressão das pessoas, da sociedade e a gente ser pressionado pra melhorar uma coisa que a gente não controla, já é mais difícil. É muita pressão!” (Natasha, 16 anos) 185 Silvia descreve uma situação pela qual passou no SSA, em que se sentiu pouco acolhida e desestimulada a retornar: Quando eu era atendida pela doutora [ginecologista] eu usava cordão de caveira, né?! Que eu gosto dessas coisas, aí eu até parei de usar... Ela falou “ai você tá magra! você está horrivelmente magra! você quer ficar magra igual a essa caveira no seu pescoço?” Quando eu saí da consulta eu disse “eu nunca mais quero ser atendida por essa mulher!” Aquele atendimento pra mim foi horrível, ela não atende bem. Ela, eu acho que tentou ajudar, mas piorou tudo!” (Silvia, 16 anos) Por fim, pedi aos adolescentes entrevistados que me ajudassem a pensar a organização de um programa para atendimento aos TA, me dando dicas de como eles gostariam de ser atendidos. Foi quase unânime a sugestão de realização de atividades conjuntas entre os pacientes, que promovam a sociabilidade entre adolescentes que sofrem de TA. Citaram atividades grupais para se conhecerem, a promoção de peças teatrais para se discutir o que é a AN (que nem sempre está claro pra elas), a realização de um curso ou outra atividade lúdica para conhecerem outras pessoas que já enfrentaram a mesma doença e se recuperaram. Trago abaixo alguns trechos de suas recomendações: Eu acho legal quando você coloca pessoas que já passaram por isso... Porque eu lembro na minha primeira consulta, na sala de espera tinha uma garota que já tava aqui há 4 anos, já teve até alta... E eu vi o corpo dela, eu achei perfeito e ela já tava fazendo musculação e eu queria muito fazer esporte! ... É a primeira consulta, você já tá com medo, aí você vê uma pessoa que melhorou! Já é uma esperança sabe? Você vê que não é só você que sofre com aquilo... Lá embaixo [na sala de espera] ficam os pais conversando e eu também acho isso muito importante, os pais se unirem não só as pessoas [com AN]... (Natasha, 16 anos) Seria legal ter umas meninas assim que já passaram por isso e se curaram, estão bem, seguindo com a vida, sem se preocupar com a aparência... Tipo, alguns encontros também com pessoas com obesidade, seria legal juntar todo mundo pra conversar e trocar ideia. Pode ajudar um ao outro... E pessoas também que tiveram obesidade e que conseguiram se curar. Que foram capazes! Pra gente ver que é possível! (Silvia, 16 anos) Por exemplo, juntar todos eles e fazer uma atividade. Com todos os adolescentes e mostrar, assim... Eu vi uma garota aqui uma vez, aquela garota parecia uma caveira de verdade! Assim, eu tenho um problema, mas talvez eu ajude ela... (Ester, 13 anos) Não sei, no início é chato mesmo… (risos), Ai não sei… Não sei o que seria legal... Não sei talvez assim uma reunião pra gente conhecer a situação dos outros seria legal... (Kamila, 18 anos) 186 Acho que o que funcionaria era não fazerem do tratamento uma forma de punição. De ter aquilo como “ah você está aqui porque está fazendo um tratamento, você está doente, minha filha! Se você não se cuidar você vai morrer!” Tinha que ser uma coisa mais leve, mais lúdica sabe? Que ajuda muito! Porque, no fundo, as pessoas que têm isso... Eu falo por mim mesma, elas têm isso como um escape, porque têm outras coisas por trás! Então elas têm que ter aquilo como uma coisa mais lúdica. Porque elas já estão passando por problema, se elas vieram pra cá e for uma série de perguntas, uma coisa séria, um ambiente hostil, não vai funcionar! Tem que ter conversa entendeu?! Ter intimidade, tem que ter uma troca... (Yasmin, 17 anos) Tatiana, cuja história pessoal é muito triste, embora tenha apenas 16 anos, já passou por muito sofrimento em sua vida. Resumiu o atendimento que gostaria de receber com apenas três palavras: “Carinho, amigos, atenção”. Simples assim, mas é tudo aquilo que falta em sua vida, sua grande reclamação é a solidão. Apesar disso, foi a única entrevistada que não gostou da ideia de conhecer outras adolescentes com AN. Tatiana não tem uma das pernas e seu desconforto é tanto por ser vista desse modo, como por ver outras adolescentes tidas como “normais”, que ela a princípio não deseja interagir com outros adolescentes que também sofrem com a AN. Mesmo na internação, ela não saía de seu quarto durante todo o tempo em que esteve na enfermaria de adolescentes. Sua dupla condição de portadora de uma deficiência física e de anorexia nervosa, sem apoio familiar e amor filial, tornava sua existência triste e solitária. Ao refletir sobre algumas recomendações para melhorar a assistência à saúde prestada aos adolescentes com transtornos alimentares, os grupos de apoio seriam uma estratégia certamente bem-vinda, tanto pelos familiares que verbalizavam o quanto estavam perdidos, quanto pelas adolescentes que buscavam compartilhar sua experiência com outras adolescentes passando pela mesma situação. No entanto, o exemplo de Tatiana é importante para assinalar que as características peculiares a cada um sejam identificadas e suas dificuldades respeitadas. Assim, além de serem consultadas sobre a participação nestas atividades grupais, elas não podem ser implementadas de modo padronizado, posto que há uma diversidade imensa nas maneiras de se vivenciar a adolescência. Silva (2011) destaca outro cuidado a ser considerado com a oferta de grupo de portadores de AN nos serviços de saúde. O contato com pessoas que convivem com um TA há muito tempo, com marcas visíveis dos danos causados pela doença, faz com que as novas integrantes do grupo identifiquem nesses casos a imagem de um futuro provável para si mesmas. O apoio psicológico complementar à participação no grupo pode ajudá-los a minimizar o sentimento de desesperança comum aos que padecem de doenças crônicas. 187 Na AN, como em outros TA, é comum a pessoa sentir uma dualidade entre o desejo de se curar e a manutenção dos sintomas que o leva a atingir seus objetivos. Dessa forma, a ajuda na quase totalidade dos casos vem do exterior, de um familiar ou amigo que percebe o problema e busca o tratamento. Com as adolescentes do PTA, não foi diferente. Todas estavam no serviço de saúde levadas pelos familiares e, inicialmente não desejavam permanecer no atendimento. Muitas tinham essa visão mesmo após alguns meses de tratamento, pois se achavam “ótimas” e julgavam não precisar de ajuda, afinal, não se viam doentes. Assim, é preciso ir além da atenção em saúde no sentido estrito para atrair esse público, pois eles não se julgam com problemas de saúde. A proposta de uma atividade mais estimulante que promova a integração em uma fase da vida onde o desenvolvimento das relações de sociabilidade é central é o que almejam. Um programa que se volte a esse público não pode minimizar a criação de vínculos entre suas usuárias e entre seus pais (BARRETO et al, 2010; COBELO et al, 2004; EISLER, 2005; GODART et al, 2012), como forma de propiciar redes de ajuda mútua, grupos de apoio terapêutico para assim estimularem e atraírem o interesse das adolescentes em seguir com os atendimentos. Já foi demonstrado que, especialmente entre adolescentes, o envolvimento da família proporciona um estímulo ao seguimento do tratamento e melhores resultados (HONIG, 2005). Além disso, muitas vezes essa família também necessita ser acolhida pela equipe de saúde (VILELA E SOUZA; SANTOS, 2009), até mesmo para sentirem-se seguros e confiantes para prosseguir com os cuidados com os filhos. Assim, buscando reunir algumas propostas dos adolescentes entrevistados, seria interessante integrar novos objetivos ao tratamento, aliados à promoção da sociabilidade entre eles, retirar o foco da recuperação do peso corporal, das calorias, das gorduras e atribuir importância ao que eles destacam como necessário, como a construção de uma boa relação terapêutica, atenção aos aspectos emocional e psicossocial das pacientes, a transferência gradual da atenção para outras atividades da vida cotidiana, ligadas aos estudos, diversão, lazer... Eles reivindicam cada vez mais responsabilidades que os possibilitem exercitar diferentes níveis de autonomia. Seria importante que o serviço de saúde buscasse um equilíbrio entre as dificuldades e os pontos fortes de cada adolescente, além de se preocupar com os abandonos intermitentes, fazendo com que elas verdadeiramente saibam que a recuperação é importante para a equipe de saúde (OMMEN et al, 2009). 188 Esses são alguns aspectos a serem trabalhados pela equipe do PTA, que necessitaria também passar uma capacitação/especialização para fornecer o cuidado adequado a este grupo de adolescentes. Levando-se em consideração a realidade nacional de atenção aos transtornos alimentares, posto que as recomendações acima poderiam ser implementadas em outros serviços de atenção aos TA, esses espaços muitas vezes sequer têm condições de remunerar financeiramente a equipe de saúde que nele atua, comumente formada por profissionais de saúde que atuam voluntariamente, motivados por interesse em ensino e pesquisa nessa área de conhecimento, o que incrementa as dificuldades em se estruturar uma equipe de saúde estável e competente (SILVA, 2011; MARINI, 2013). Grande parte dos serviços de saúde destinados aos TA estão alocados em universidades públicas, cuja distribuição orçamentária muita vezes inviabiliza a contratação de profissionais especializados apenas para atuarem nesses espaços. Esta é a realidade que estamos lidando. Muitos desses serviços surgem em meio ao interesse acadêmico de se conhecer melhor tais transtornos e pela mobilização de profissionais sensibilizados com a falta de atenção especializada para atender a demanda nacional por tratamento (SILVA, 2011). Às dificuldades de se manter os serviços disponíveis e de criar novos centros para tratamento, soma-se a inexistência de qualquer diretriz ou política pública voltada para a assistência aos TA (SILVA, 2011), bem como qualquer esforço por parte dos governantes para se determinar a prevalência destes transtornos no país (ALVES et al, 2008). Destaca-se a relevância de inserir os TA na agenda de discussões sobre a atenção à saúde adolescente e a definição de um plano de atuação futuro, contemplando o investimento em formação de pessoal especializado. Torna-se necessária a implementação do debate nacional, posto que este permanece incipiente, sobre a definição de políticas públicas de saúde que tenham como foco a garantia de acesso aos portadores de TA a um serviço de saúde voltado as suas necessidades, com estrutura física adequada e profissionais de saúde capacitados. A possibilidade de realizar uma etnografia em um espaço privilegiado para problematizar o modelo de atenção, bem como a estrutura que vem sendo oferecida aos adolescentes e seus familiares é uma das contribuições diferenciais desta tese. A eleição do método etnográfico como meio para acessar o modo como a AN era concebida e recriada no espaço do PTA pela triangulação de atores envolvidos - profissionais de saúde, familiares e adolescentes – nos permitiu captar uma dimensão mais totalizante do problema. Uma série de 189 questões relevantes foram aqui destacadas e muitas mudanças são ainda necessárias. Para isso, é preciso que haja sensibilização pública para que os TA se tornem tema de interesse da Saúde Coletiva, para que o investimento necessário à capacitação e contratação de equipes multiprofissionais possa ocorrer, a ampliação dos ambulatórios existentes e criação de novos espaços para abarcar a demanda ainda “invisível”. Os espaços de sala de espera precisam ser melhor adequados aos seus usuários e ainda a estruturação de enfermarias para atender esse público específico, dado que, sem a internação muitas vezes não se avança em direção à recuperação. Temos que valorizar o trabalho que vem sendo realizado, com todas as dificuldades apontadas, que são correntes em outros serviços de saúde, e marcas características do contexto nacional de cuidados aos TA. Mas é preciso fazer muito mais. Desde a busca pelo espaço que abrigaria a pesquisa, essa realidade de atenção aos TA já se revelava dramática. Sabia da existência daqueles que padecem dos TA mas não os via, eles não eram absorvidos para atendimento, não se tinha notícias do caminho percorrido pelas pessoas que sofrem destes males. A construção de uma pesquisa etnográfica foi especialmente fecunda nesse campo, onde foi possível atribuir centralidade àqueles adolescentes que muitas vezes não eram ouvidos, permaneciam mudos mesmo tendo muito a dizer. A aproximação à realidade cotidiana desses adolescentes possibilitou uma compreensão de suas aflições que por vezes foge àqueles que convivem mais diretamente com eles e mesmo aos que se dedicam aos cuidados à sua saúde. Assim, embora nosso entendimento nunca seja o mesmo que o que eles compartilham sobre a experiência do adoecer de um TA, foi possível ir além da/o portador/a de uma doença cujo “grupo de risco” possui características bem demarcadas, muitas vezes negativas, e encontrar adolescentes passando pelas dificuldades inerentes a essa fase da vida, com conflitos afetivos, buscando autonomia a seu modo, e que, apesar de todo o sofrimento imposto pela doença, são muito carinhosos, receptivos e cheios de planos futuros. Essa apreensão jamais seria obtida somente por meio da literatura sobre os TA, ou mesmo pelo olhar singular da equipe de saúde, foi preciso atravessar a barreira das minhas pré-concepções para então conseguir “encontrar” de modo pleno as/os adolescentes do PTA. 190 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, C. N.; CANGELLI FILHO, R. Anorexia nervosa e bulimia nervosa: abordagem cognitivo-construtivista de psicoterapia. Revista de Psiquiatria Clínica, v. 31, n. 4, p.177183, 2004. 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ROTEIRO DE PERGUNTAS PARA ENTREVISTA DA PESQUISA Instituto de Estudos em Saúde Coletiva Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Doutorado em Saúde Coletiva www.iesc.ufrj.br ROTEIRO DE ENTREVISTA DA PESQUISA “Etnografia de um serviço de saúde: a face visível da Anorexia Nervosa” Pesquisadora Responsável: Priscila da Silva Castro. Data:____/____/______ Dia da Semana:_____________________________ Horário início:_____________ Horário término:_______________________ Local da entrevista:__________________________ Identificação Nome Completo: ______________________________________________________ Idade: ______________ Data de Nascimento: ____/____/______ Escolaridade: _________________ Está estudando atualmente: Sim Não Se sim, qual ano está cursando: _______________________________________________ Cidade e bairro onde mora: __________________________________ Mora com quem? Fale sobre sua família (pais, irmãos, ocupação dos pais, escolaridade dos pais, religião da família, se houver, outra pessoa importante do circulo familiar, etc.) Renda familiar: ____________________________________________ 233 Raça/Cor da pele: __________________________________________ 1. Iniciando a conversa Fale-me um pouco de você? Do que gosta de fazer... Conte-me como chegou até aquele serviço de saúde no qual eu lhe conheci. O que ocorreu antes? Como começou a procurar atendimento? O que fez? Onde se consultou? O que você tem? Como recebeu o diagnóstico? Quem deu? Quem ofereceu a melhor explicação sobre o assunto? Considera-se doente? Quando se considera doente? Se considerava doente antes de chegar ao serviço? Como é conviver com esse problema? Quem mais lhe ajudou a entender essa situação? Há quanto tempo tem esse problema? 2. Contato com outras pessoas com anorexia nervosa Você conhece outras pessoas como você? Como é sua relação com elas? Você conhece os sites/ blogs que abordam o assunto? Você gosta do seu corpo? Mudaria alguma coisa nele? Você se acha bonita/o? Pode me dar um exemplo de alguém que você acha bonita/o? Porque? Qual o seu peso e a sua altura (quando chegou e atualmente)? 3. O papel dos familiares, amigos e colegas e as relações sociais Como é sua relação com a sua família (pais, irmãos, avós,...)? O que seus familiares dizem sobre o seu comportamento alimentar? Como você se sente sobre isso? Como é sua relação com os professores na escola? E com as/os suas/seus colegas na escola? 234 Como se sente em relação aos outros adolescentes da sua idade? O que você costuma fazer para se divertir? Você tem colegas próximos a onde você mora? Come é sua relação com eles? Você está namorando no momento? Fale-me um pouco do seu relacionamento? 4. O tratamento médico Há quanto tempo iniciou o tratamento? Já esteve internada/o? Como foi essa experiência? O que tem achado dos serviços de saúde que frequenta? Como tem sido recebida? Já se sentiu discriminada em algum deles? Quais os tratamentos você já fez? Quais “funcionaram” ou não, concorda com eles, porque? O que é um bom atendimento, um mau atendimento, como seria um programa ideal para este tipo de situação? Dificuldades? 5. Encerrando a conversa Gostaria de acrescentar alguma coisa? O que achou da entrevista? Muito obrigada pela sua participação! Instituto de Estudos em Saúde Coletiva/IESC/UFRJ: Praça Jorge Machado Moreira, 100. Cidade Universitária – Ilha do Fundão/Rio de Janeiro – RJ Tel: (21) 2598-9274www.iesc.ufrj.br 235 ANEXO 3. TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Resolução nº 196/96 – Conselho Nacional de Saúde TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO “Etnografia de um serviço de saúde: a face visível da Anorexia Nervosa” Você está sendo convidada/o a fazer parte de uma pesquisa que tem por objetivo entender melhor o processo de adoecimento vivenciado por jovens que enfrentam publicamente a anorexia nervosa; conhecer o percurso dos jovens que chegam até o ambulatório e suas relações sociais com a família, amigos, parceiros afetivo-sexuais, escola e serviços de saúde. Você não é obrigada/o a participar da pesquisa e, se aceitar poderá desistir e retirar o seu consentimento a qualquer momento. Sua recusa em participar do estudo não lhe trará nenhum prejuízo com qualquer profissional de saúde, inclusive, com as pesquisadoras ou no seu atendimento neste serviço de saúde. Sua participação é voluntária e não está relacionada ao seu atendimento no programa de transtornos alimentares. Como participar? Você responderá a algumas perguntas na forma de uma entrevista em data e horário que desejar em sua residência, para que você se sinta mais à vontade. Será uma conversa, onde falaremos sobre sua vida, suas atividades diárias, sua relação com pessoas próximas, sobre seu corpo e sua saúde. O tempo aproximado desta atividade é de 60 minutos, mas este 236 tempo pode variar conforme o ritmo de nossa conversa. Se for preciso, poderemos interromper a entrevista e continuá-la em outro dia, conforme sua conveniência. As entrevistas serão gravadas para posterior transcrição. Todo o material produzido pela pesquisa será guardado pelo período de cinco anos e serão incinerados após esse prazo. Todas as informações que você nos fornecer serão mantidas em segredo e utilizadas apenas para a pesquisa. Ninguém de sua família, amigos, ou profissionais de saúde que lhe atende terá acesso ao conteúdo das informações. Somente as pesquisadoras que trabalham nesta pesquisa terão acesso às suas respostas. Quando divulgarmos os resultados deste trabalho, seu nome e qualquer outra informação que possa identificá-la/o serão ocultados, de forma a garantir que ninguém saiba que se trata da sua história. Sua participação na pesquisa se restringe a responder livremente as perguntas que lhes serão feitas. Nenhum outro procedimento ou atividade que implique em riscos para sua integridade física e psicológica serão realizados. Você apenas pode sentir algum tipo de desconforto ao abordar assuntos de sua vida e saúde em uma entrevista ou ficar aborrecido pelo tempo gasto com essa atividade. Se ocorrer qualquer desconforto e você necessitar de auxílio psicológico ou médico, nós acompanharemos você até o serviço de saúde para atendimento. Avisaremos aos participantes quando concluirmos a investigação e se você desejar poderá ter acesso aos resultados da pesquisa. Quais as vantagens? Embora você não tenha nenhum benefício direto e imediato com este estudo, você terá a oportunidade, por meio da sua história de vida, de ajudar-nos a entender como é o processo de adoecimento designado como anorexia nervosa. Assim, os resultados obtidos poderão colaborar para a criação e/ou aperfeiçoamento de medidas que auxiliem outras/os jovens que 237 passam por esta condição no futuro. Além disso, o serviço de saúde receberá o retorno da pesquisa, e poderá aperfeiçoar o atendimento com este conhecimento que você nos trará. Se você entendeu perfeitamente a pesquisa e deseja participar dela, precisamos que assine este termo nos autorizando a entrevistá-lo(a) e utilizar suas informações em nosso estudo. Este termo de consentimento é um documento importante e você irá receber uma cópia na qual consta o telefone e o e-mail da pesquisadora responsável, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora ou a qualquer momento. Meu consentimento: Estou totalmente esclarecida/o dos objetivos, riscos e benefícios desta pesquisa. Li este documento e ouvi as explicações da pesquisadora. Minha participação é de livre e espontânea vontade, não fui pressionada/o por ninguém para responder a esta pesquisa. Sei que tenho a liberdade para continuar ou recusar, em qualquer momento, a participar da pesquisa, e que minha identidade será preservada. Também sei que meu atendimento no ambulatório de transtornos alimentares não será, em momento algum, afetado se quiser me retirar da pesquisa. Desta forma, concordo em participar e assino este documento. ________________________________ data Nome e assinatura do pesquisador ________________________________ Nome do sujeito da pesquisa 238 _______________________________ data Assinatura do sujeito da pesquisa Contato das coordenadoras da pesquisa: Professora Dra. Elaine Reis Brandão - Orientadora Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva – IESC Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva Telefones: (21) 25989274 E-mail: [email protected] Priscila da Silva Castro – Pesquisadora Responsável Doutoranda IESC/ UFRJ Telefones: (21) 35024980/ (21) 81666729 E-mail: [email protected] Comitê de Ética em Pesquisa/IESC/UFRJ: Praça Jorge Machado Moreira, 100. Cidade Universitária – Ilha do Fundão/Rio de Janeiro – RJ Tel: (21) 2598-9293 www.iesc.ufrj.br; [email protected] 239 ANEXO 4. CONVITE PARA PARTICIPAÇÃO NA PESQUISA Instituto de Estudos em Saúde Coletiva Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Doutorado em Saúde Coletiva www.iesc.ufrj.br Pesquisa: Etnografia de um serviço de saúde: a face visível da anorexia nervosa Bom dia! Meu nome é Priscila Castro, sou aluna de doutorado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e gostaria de convidá-la/o a participar da pesquisa que estou realizando com as/os adolescentes atendidas/os pelo Programa de Transtornos Alimentares. A pesquisa tem por objetivo conhecer melhor o processo de adoecimento daqueles que enfrentam publicamente um transtorno alimentar. Quero conhecer seu percurso até chegar a este serviço de saúde e as relações sociais que mantém com sua família, amigos, escola e serviços de saúde. Para deixar mais claro, sua participação será na forma de uma entrevista, onde conversaremos sobre diversos assuntos relacionados a sua vida e saúde. Inicialmente gostaria de ter seus contatos para que eu possa lhe procurar em outro momento, caso concorde em participar, e também quero deixar com você os meus. Peço que me procure em caso de dúvidas ou se tiver interesse em participar! Priscila Castro e-mail: [email protected] celular: (21)8166-6729 Espero que possamos conversar em breve! Sua participação é muito importante! Muito obrigada! 240 ANEXO 5. Tabela 1. Características sociodemográficas e econômicas das/os adolescentes entrevistadas/os. Rio de Janeiro, Brasil, 2015. IDENTIFICAÇÃO Ana Laura Alice Bruna Ester Isabel IDADE ESCOLARIDADE COR *** 14 Oitavo ano do ensino Parda fundamental (particular) 15 Primeiro ano do ensino Morena médio (pública) 12 Oitavo ano do ensino Morena fundamental (particular) 13 Sétimo ano do ensino Amarelo fundamental (pública) 15 Primeiro ano do ensino Parda médio (pública) RENDA FAMILIAR ESCOLARIDADE DOS PAIS PROFISSÃO DOS PAIS RELIGIÃO Mãe secretária no Não sabe, IPUB/UFRJ Evangélica esqueceu Pai cabeleireiro Mãe dona de uma loja no bairro onde Não sabe Evangélica mora Pai desempregado Ambos com Mãe ensino enfermeira Mãe recebe “3 superior Pai trabalha na mil e pouco”, pai completo empresa do Católica ela não sabe padrinho da Bruna COM QUEM RESIDE BAIRRO ONDE MORA Pai, mãe e avó Praça Seca (Jacarepaguá, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro) Pai e mãe Jardim Primavera (Duque de Caxias, Baixada Fluminense) Mãe e irmã mais velha Bairro das Palmeiras (Casemiro de Abreu, Região dos Lagos do estado do Rio de Janeiro) Mãe Vila Isabel (Zona norte da cidade do Rio de Janeiro) Mãe, pai e dois irmãos. Ela é a do meio. Ramos (Zona da Leopoldina, cidade do Rio de Janeiro) - Não sabe Não sabe 1 salário mínimo e meio Mãe não completou a faculdade de fisioterapia Pai fez até o sétimo ano Mãe doméstica Pai ela não Não tem tem contato O pai é dono de uma estofadora e a Não tem mãe trabalha com ele 241 IDENTIFICAÇÃO Kamila Natasha IDADE ESCOLARIDADE 18 Vai retornar ao terceiro ano do Amarela ensino médio (particular) 16 Silvia 16 Tatiana 16 Vinícius* Yasmin** Segundo ano do ensino médio (pública, federal) Segundo ano do ensino médio (pública, federal) Segundo ano do ensino médio (pública) COR *** Caucasi ana Branca meio morena Branca 12 Oitavo ano do ensino Branca fundamental (particular) 17 Segundo ano do ensino Parda médio (particular) RENDA FAMILIAR Não sabe, “meu pai ganha tão não” ESCOLARIDADE DOS PAIS mas Mãe terminou não o ensino mal médio. Pai ela não sabe Ambos com ensino Não sabe. “É boa” superior completo PROFISSÃO DOS PAIS RELIGIÃO Mãe não trabalha Evangélica Pai trabalha numa empresa de tinta Mãe professora Pai trabalha Não tem numa empresa de engenharia R$800 da mãe, Terminaram o Mãe ela não R$1700 do pai, 1 ensino médio sabe salário mínimo da Pai trabalha no Não tem avó, o tio não tem NEPAD/UERJ salário fixo Mãe até o Mãe é quarto ano do doméstica R$1000,00 Não tem ensino Pai é falecido fundamental Mãe é doméstica Madrinha R$5000,00 Católico auxiliar administrativa na UFRJ Ambos com Mãe é Até 3 salários ensino bancária Evangélica mínimos superior Pai é motorista completo COM QUEM RESIDE Pais e irmão mais novo BAIRRO ONDE MORA Santa Teresinha (Mesquita, Baixada Fluminense) Mãe, uma irmã Tijuca (Zona mais velha e um norte da cidade do irmão mais novo Rio de Janeiro) Mãe, avó e um tio Cascadura (Zona norte da cidade do Rio de Janeiro) Mãe e duas irmãs mais novas Itanhangá (Zona oeste da cidade do Rio de Janeiro) Madrinha, prima, namorado da prima, bisavó e tia-avó Tauá (Ilha do Governador, cidade do Rio de Janeiro) Pais Bairro da Luz (Nova Iguaçu, Baixada Fluminense) Nota: *Único adolescente do sexo masculino a ser entrevistado. **Entrevista realizada em outro serviço de saúde, onde a adolescente em questão era atendida. ***Autoclassificação 242 ANEXO 6. Tabela 2. Informações gerais sobre o tratamento das/os adolescentes entrevistadas/os. Rio de Janeiro, Brasil, 2015. Ana Laura RESPONSÁVEL ACOMPANHANTENO SERVIÇO DE SAÚDE Mãe Alice Mãe IDENTIFICAÇÃO Ester Mãe ou pai. Às vezes a irmã vai junto. Mãe ou sozinha Isabel Pai Kamila Silvia Tatiana Vinícius* Mãe Sozinha ou com os pais, que chegam separados e entram em momentos diferentes na consulta Mãe ou pai ou avó materna Mãe ou a tia Madrinha Yasmin** Sozinha Bruna Natasha INTERNAÇÕES NO SERVIÇO DE SAÚDE INVESTIGADO Sim, uma vez Sim, uma vez. Mas sempre está na iminência de ser internada novamente. TEMPO DE TRATAMENTO EM TRANSTORNO ALIMENTAR Em torno de 1 ano e 5 meses TEMPO DE TRATAMENTO NO SERVIÇO DE SAÚDE INVESTIGADO 8 meses Menos de 2 anos 6 meses Não 1 ano 7 meses Não 2 anos Sim, uma vez. Mas sempre está na iminência de ser 2 anos internada novamente. Não 3 anos Uma vez no serviço. Diversas vezes em hospitais 3 anos privados Não Sim, uma vez Não Sim, mas não no serviço onde foi entrevistada 1 ano 1 ano e meio 1 ano 1 ano e meio 1 ano*** 2 meses*** 5 anos 1 ano 2 meses 5 meses 9 anos 1 ano Nota: *Único adolescente do sexo masculino a ser entrevistado. **Entrevista realizada em outro serviço de saúde, onde a adolescente em questão era atendida. *** Não buscaram ajuda anteriormente. 243 ANEXO 7. Tabela 3. Informações antropométricas das/os adolescentes entrevistadas/os. Rio de Janeiro, Brasil, 2015. IDENTIFICAÇÃO ALTURA (m) Ana Laura Alice** Bruna*** Ester Isabel Kamila Natasha**** Silvia Tatiana Vinícius Yasmin 1,63 1,56 1,61 1,54 1,58 1,56 1,70 1,60 1,55 1,50 1,53 IMC* AO CHEGAR PESO AO CHEGAR AO PESO NA OCASIÃO DA AO SERVIÇO DE SERVIÇO DE SAÚDE (kg) ENTREVISTA (kg) SAÚDE (kg/m2) 35 45 13,2 33 40 13,6 48 50 18,5 49 30 48 12,0 54 33 72 11,4 42 52 16,4 24 32 ***** 48,6 70,1 - IMC* NA OCASIÃO DA ENTREVISTA (kg/m2) 16,9 16,5 19,3 20,7 19,2 22,2 24,9 20,3 ***** 21,6 29,9 * O IMC é um método fácil e rápido para avaliação do nível de gordura corporal. É um preditor reconhecido internacionalmente para classificação de obesidade e adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O IMC é determinado pela divisão da massa do indivíduo pelo quadrado de sua altura, onde a massa está em quilogramas e a altura em metros. O resultado é comparado com uma tabela que indica o estado nutricional do indivíduo. O peso é considerado adequado para altura quando o IMC se encontra na faixa entre 18,5 – 24,9 kg/m2; abaixo dos 18,5 kg/m2 já se considera baixo peso para estatura, acima dos 24,9 kg/m2 é considerado sobrepeso e a partir dos 30,0 kg/m2 já se classifica como obesidade. Fonte: World Health Organization. Physical status: the use and interpretation of anthropometry. Report of a WHO Expert Committee. Geneva: World Health Organization; 1995. (Technical Report Series, 854). ** Alice saiu da internação pesando 42,5 kg, conseguiu emagrecer, mas gostaria de pesar 35 kg e trabalha para atingir essa meta pessoal de peso. ***Bruna tem 45 kg como meta pessoal de peso. **** Natasha foi internada com 35 kg e saiu da internação com 42 kg. ***** Tatiana não tem uma das pernas, portanto a interpretação do IMC não é válida em seu caso. ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES DOI 10.12957/demetra.2014.6635 Tomando a anorexia nervosa como objeto de estudo socioantropológico: aproximação com os sujeitos da pesquisa Taking anorexia nervosa as an object of socio-anthropological study: approach with the research subjects Priscila da Silva Castro1 Elaine Reis Brandão2 Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 1 2 Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Correspondência / Correspondence Priscila da Silva Castro E-mail: [email protected] Resumo A anorexia nervosa é um transtorno alimentar que atinge principalmente adolescentes e jovens do sexo feminino. Embora a relação com o corpo e os alimentos esteja sempre presente ao se abordar a doença, por ser concebida como um transtorno de ordem psiquiátrica, muitas vezes sua compreensão fica restrita ao campo da saúde mental. Por meio de um estudo etnográfico com adolescentes em tratamento para anorexia nervosa em um serviço público de saúde de referência na cidade do Rio de Janeiro, pretende-se conhecer o funcionamento cotidiano dessa instituição e demonstrar como a compreensão da doença pode ser enriquecida por outros olhares disciplinares e das próprias adolescentes. O artigo apresenta uma primeira aproximação ao campo e aos adolescentes pesquisados, perpassando a construção do campo da pesquisa e “conversão” da nutricionista em antropóloga. Tal conversão se fez necessária para, dentre outras questões, captar a tensão existente dentro do serviço de saúde eleito entre profissionais de saúde, familiares e adolescentes. Palavras-chave: Anorexia Nervosa. Adolescente. Serviços de Saúde do Adolescente. Ciências Sociais. Saúde Coletiva. Etnografia. Antropologia Cultural. Abstract Anorexia nervosa is an eating disorder that mainly affects adolescents and young women. Although the relationship with body and food is always present when addressing the disease, as Demetra; 2014; 9(1); 3-22 3 Demetra: alimentação, nutrição & saúde it is conceived as psychiatric disorder, often their understanding is limited to the field of mental health. Through an ethnographic study with adolescents in treatment for anorexia nervosa in a public health reference service in the city of Rio de Janeiro, it is intended to meet everyday functioning of the institution and demonstrate as understanding the disease can be enriched by other disciplinary viewpoints and by adolescents themselves. This paper presents a first approach to the field and adolescents surveyed. It also deals with the construction of the field of research and the “conversion” of nutritionist in anthropologist. Such a conversion was needed for, among other issues capture the tension within the health service chosen among health professionals, families and adolescents. Key words: Adolescent. Adolescent Health Services. Social Sciences. Public Health. Ethnography. Anthropology Cultural. Introdução Os transtornos alimentares (TAs) são doenças graves e por vezes são descritos como quadros psiquiátricos que atingem sobretudo adolescentes e adultos jovens do sexo feminino, podendo gerar consequências orgânicas e psíquicas com morbidade e mortalidade elevada.1,2 São doenças crônicas, de difícil tratamento, com desdobramentos para o estado nutricional do indivíduo, podendo favorecer tanto a desnutrição quanto a obesidade.3 Expressivamente mais comuns em mulheres (90%) do que em homens (10%),4 relacionam-se com a maneira como o sujeito vivencia seu corpo e (re)organiza sua imagem corporal.5 Embora não se saiba ao certo como esses fatores vão atuar no desencadeamento dos TAs, sabese que possuem origem múltipla, com aspectos psicológicos, biológicos, socioculturais, genéticos e familiares relacionados a sua gênese.1,3,6 Nos últimos anos, vem ocorrendo um crescimento importante tanto na prevalência quanto na incidência desses transtornos na América Latina, com coeficientes superiores aos encontrados nos EUA.7 No Brasil, ainda são escassos os estudos de base populacional que consideram o problema na população sob risco. As poucas evidências científicas disponíveis procedem de estudos clínicos, os quais, por suas características, não permitem análises epidemiológicas que auxiliem a compreensão dos determinantes e que propiciem comparações com outros contextos sociais de modo a possibilitar a orientação de intervenções.7 4 Demetra; 2014; 9(1); 3-22 Tomando a anorexia nervosa como objeto de estudo socioantropológico Entre os principais transtornos alimentares, encontra-se a anorexia nervosa (AN), que apresenta a maior taxa de mortalidade dentre todos os distúrbios psiquiátricos no mundo, em torno de 0,56% ao ano na população. Este valor é cerca de 12 vezes maior que a mortalidade das mulheres jovens na população em geral.8 A AN é caracterizada pela recusa do indivíduo em manter um peso adequado para sua estatura, medo intenso de ganhar peso, recusa alimentar associada a uma distorção da imagem corporal e negação da própria condição patológica. Há também uma busca incessante pela magreza e amenorreia.1,9 A distorção da imagem corporal pode agravar-se de tal forma que, mesmo muito emagrecidos, os sujeitos podem sentir-se “gordos”.10 Muitas vezes, os familiares só se dão conta do problema quando o emagrecimento torna-se acentuado, pois a realização de dietas em muitos contextos é valorizada.11 No entanto, os sintomas sugestivos de TA e a insatisfação com a imagem corporal podem representar fatores de risco importantes para o desencadeamento da AN. Além disso, as formas parciais dos TAs podem chegar a ser duas vezes mais prevalentes do que as síndromes completas, com consequências relevantes em termos de sofrimento para o sujeito e seus familiares.12 Anorexia nervosa na contemporaneidade O culto ao corpo e à beleza não são exclusividades do mundo pós-moderno, pois sempre estiveram presentes nos diferentes períodos da história e nas diversas culturas, diferenciando classes sociais, modos alimentares, vestuários e cuidados com o corpo e a saúde.13 A partir da segunda metade do século XIX, que é o período de início do diagnóstico de AN, a magreza é estabelecida como um sinal de prestígio e status social, o que desqualificou o corpo gordo e pesado, que passou a representar a vulgaridade.14 A beleza varia de acordo com etnia, idade, nível social, sociedades, culturas e também com o “gosto” individual. Hoje, porém, a beleza corporal tem sido vinculada a um padrão estético propagado pelos meios de comunicação, que conferem ao corpo magro um valor simbólico.15 Nesse contexto, cabe ressaltar que as dietas alimentares, os exercícios físicos e as cirurgias plásticas são amplamente estimulados pelos diferentes meios de comunicação, que informam qual é o corpo socialmente aceito, o que vestir em cada corpo, o que fazer para estar na moda e assim obter sucesso e admiração de todos.16 Atualmente, o corpo e a beleza padronizados servem como referência para saúde e qualidade de vida, criando a crença de que por um corpo belo se obtém também a realização individual.15 A Demetra; 2014; 9(1); 3-22 5 Demetra: alimentação, nutrição & saúde visualização de corpos magros ou musculosos no cotidiano, veiculados pelos meios de comunicação, faz com que os indivíduos tenham dificuldade em reconhecer a beleza em sua singularidade e diversidade, sem se atrelar a padrões estéticos inatingíveis.17 Assim, “sentir-se gorda” tem sido muito comum entre as mulheres, independentemente da existência ou não de um TA, pois com um padrão corporal tão difícil de ser alcançado é crescente o número de mulheres insatisfeitas com a própria imagem corporal.18 Na modernidade, o corpo torna-se o foco do poder, que o submete à disciplina interna do autocontrole, produzindo “corpos dóceis”. Esse corpo dócil pode ser submetido, utilizado, transformado e manipulado.19 Por todas as modificações de que é alvo, Rodrigues20 compara o corpo a uma massa de modelar, no qual a sociedade imprime diferentes formas e padrões segundo sua vontade. De acordo com Le Breton,21 não se pode mais aceitar o corpo que se tem, é preciso completálo ou transformá-lo naquilo que se quer que ele seja. Mas as adaptações às exigências do mundo moderno podem tornar-se uma tarefa impossível, que exige trabalho constante sobre o corpo num percurso sem fim. Sobre toda a pressão de que os indivíduos são alvo, salienta-se que a mídia muitas vezes se insere no contexto cultural de promoção dos TAs.22 Além disso, há um mercado em crescimento que sobrevive da valorização e manutenção da aparência, com uma infinidade de produtos e estratégias que transformam o corpo em um cartão de visitas ambulante.23 As pessoas procuram melhorar sua própria identidade atingindo aquilo que é culturalmente valorizado, e o tempo e trabalho investido reproduzem o valor desses bens.24 A busca por esse ideal, inatingível para muitos, tem conduzido principalmente as mulheres a adoção de comportamentos alimentares desviantes e práticas inadequadas de controle de peso.17 Para Le Breton,23 a atenção desmedida que dedicamos ao corpo não é, de forma alguma espontânea, mas uma resposta aos imperativos sociais, pois o corpo ocupa na modernidade o lugar privilegiado no discurso social. Os TAs recebem destaque pelo grau em que são associados aos fatores socioculturais.25 As crenças relacionadas à AN podem diferir entre as culturas e seus portadores podem explicar a sua auto-inanição conscientemente, por meio de diferentes normas culturais e sistemas de crenças.26 Além disso, a AN já não pode ser restrita às mulheres de raça/etnia branca e classe média/alta, pois há um aumento de casos notificados entre mulheres negras,27 classe socioeconômica e grupos étnicos diferentes, bem como em homens nas sociedades ocidentais.28 No entanto, não se pode negar a influência da mídia, incluindo a internet,27 e sua relação com a ocorrência de AN com motivações similares às do Ocidente em outras culturas (com fat fobia, desejo de atingir um ideal de magreza/beleza), antes tidas como protegidas por suas crenças culturais.25 6 Demetra; 2014; 9(1); 3-22 Tomando a anorexia nervosa como objeto de estudo socioantropológico Lee29 ressalta que o papel dos meios de comunicação em relação aos TAs devem ser estudados em conjunto com as rápidas mudanças socioeconômicas que configuram a vida e preocupações diárias dos jovens. No Brasil, Gonzaga & Weinberg28 demonstraram ser crescente o número de pacientes com TA entre a população de baixa renda, que utilizam os ideais de beleza das classes mais elevadas para se inspirar. Para Weinberg,30 essa constatação reflete a realidade brasileira e demonstra que a AN está se modificando, contrariando posições clássicas de que ela teria uma relação direta com riqueza e abundância. Homens e mulheres são bombardeados diariamente por apelos dos diferentes meios de comunicação. No entanto, cada gênero reage aos apelos de modos distintos, embora exista um número maior de informações direcionadas ao público feminino. As mulheres, de uma maneira geral, são mais vulneráveis à aceitação das pressões sociais, econômicas e culturais associadas aos padrões estéticos.31 No entanto, preocupações relativas à imagem corporal também estão ocorrendo entre os homens.32 Mas em geral, os homens percebem seus corpos com menos distorção. Alguns trabalhos vêm mostrando a extrema preocupação dos jovens com a forma física e a massa corporal, e não propriamente com o peso.33 No entanto, alguns grupos de homens apresentam maiores chances de desenvolver um TA, destacando-se aqueles cujas profissões estão ligadas a uma preocupação exagerada com o peso ou a forma corporal e os homossexuais. Andersen34 destaca que a magreza, a forma do corpo e os músculos trabalhados são muito valorizados pelos homossexuais, o que pode torná-los mais susceptíveis a esse transtorno. Inserido entre os aspectos que contextualizam a AN como um fenômeno da modernidade está o movimento pró-ana (ana é o apelido dado à AN em comunidades da internet) ou pró-anorexia. Giles35 destaca que a comunidade pró-ana é um fenômeno social exclusivo da era da Internet, e que sem a mesma não poderia existir, não tendo equivalente off-line. Sites pró-anorexia são um espaço para divulgação de informações sobre os TAs (onde é possível aprender técnicas para perda de peso, como esconder o transtorno dos pais e profissionais de saúde, e apoiar aqueles em dietas de privação), principalmente a NA, e possuem o objetivo de criar uma comunidade em que o senso de coletividade é construído precisamente através do corpo.36 Esses sites oferecem apoio aos indivíduos, permitindo a perpetuação do TA, na ausência de supervisão e tratamento.37 Para as participantes dos grupos “pró-ana”, a condição de anoréxica representa uma forma de estabilidade e controle, e um estado a ser mantido.38 É um estilo de vida, ao qual qualquer um pode aderir, realizado intencionalmente como parte de uma identidade e uma maneira de vencer a resistência às teorias médicas e sociais acerca da doença.37 Demetra; 2014; 9(1); 3-22 7 Demetra: alimentação, nutrição & saúde Os participantes desse movimento muitas vezes vivenciam conflitos domésticos com seus familiares acerca de seus hábitos alimentares, o que resulta em baixos níveis de apoio social dentro de casa, e assim passam a buscar apoio em comunidades on-line.39 Cabe lembrar que os frequentadores de sites pro-ana descrevem sua identidade de forma positiva e são mais resistentes à recuperação; a visita a esses sites também se correlaciona com uma demora na procura de tratamento.37 Ainda há muito a esclarecer e os resultados encontrados nos diferentes estudos em diversas culturas podem parecer confusos, mas já são suficientes para questionarmos se a AN é uma doença do mundo ocidental, da Modernidade ou decorrente de um único fator.30 Anorexia nervosa e adolescência: vulnerabilidade e autonomia Embora o perfil dos indivíduos que desenvolvem AN esteja cada vez mais heterogêneo, com diagnósticos realizados em pré-adolescentes, em pessoas de níveis econômicos mais baixos, em países em desenvolvimento e em diferentes grupos sociais,1,3 os adolescentes continuam recebendo destaque. Segundo a Organização Mundial da Saúde40 (OMS, acesso em 2012), adolescente é a fase da vida entre 10 e 19 anos de idade. A nomeação de uma fase definida do desenvolvimento humano, demarcada por transformações biofisiológicas, psicológicas e sociais, é uma construção histórica e social que se consolidou durante o século XX.41 A adolescência é reconhecida como o período de transição entre a infância e a idade adulta.16 A literatura aponta que a AN atinge principalmente adolescentes do sexo feminino e mulheres jovens.1,6 De acordo com Appolinário & Claudino6 e Schmidt & Mata,9 em sua forma mais esperada, a doença ocorre sobretudo na faixa etária entre 14 e 17 anos, podendo surgir, tanto precocemente (aos 10 ou 11 anos), quanto tardiamente. A adolescência é um período de grandes mudanças físicas, emocionais e intelectuais, bem como de mudanças nos papéis sociais, relações e expectativas, que são muitas vezes confusas para os adolescentes e também para sua família. As rápidas mudanças físicas que ocorrem neste momento podem gerar preocupação com a imagem corporal, tendo como consequência um alto nível de descontentamento e insatisfação com o corpo.42 Assim, adolescência é um período que exige uma readaptação à imagem corporal, acompanhada de transformações e preocupações com a nova forma e o novo peso do corpo.5 Nesse período, além de ser comum a elevada prevalência de insatisfação com a imagem corporal, há também um aumento no número de casos de AN e BN.43 A adolescência é a faixa etária mais vulnerável também por ser mais influenciada pelos padrões estéticos corporais vigentes.43 As adolescentes insatisfeitas com seus corpos frequentemente adotam 8 Demetra; 2014; 9(1); 3-22 Tomando a anorexia nervosa como objeto de estudo socioantropológico comportamentos alimentares desviantes e práticas inadequadas de controle de peso, ficando expostas a um maior risco para o desenvolvimento de TA quando comparadas às adolescentes satisfeitas com sua imagem corporal.44 De acordo com Taquette e colaboradores,45 observamos atualmente um prolongamento da adolescência, que pode ser evidenciado pelo início precoce da puberdade, por um maior tempo de escolarização e pelo adiamento da entrada no mercado de trabalho. Segundo os autores, os adolescentes que procuram os serviços de saúde são socialmente distintos e impõem ações específicas que podem gerar conflitos bioéticos, éticos e legais. É reconhecido que os indivíduos com AN não costumam procurar tratamento,46 mas em se tratando de uma doença que atinge especialmente adolescentes, essa questão ganha outros desdobramentos. Os adolescentes constituem uma faixa etária reconhecida por pouco considerar os recursos profissionais em seus processos de busca de ajuda.47 Os adolescentes formulam um modelo explicativo que entende as aflições como produtos do mundo social. Assim, se as causas de desconforto são resultado de interações sociais, a restituição de bem-estar deve-se dar sobre essas mesmas relações e de modo independente do mundo adulto. Em estudo de Martínez-Hernáez & Muñoz,47 os adolescentes percebiam que os aspectos que os adultos consideravam problemáticos em suas vidas necessariamente correspondiam às preocupações dos próprios adultos (pais, mães, professores/profissionais), não considerando as questões e os anseios dos adolescentes. Da mesma forma, os discursos médicos no hospital não necessariamente definem as construções das adolescentes sobre si mesmas, sobre a AN, o tratamento ou suas relações com a equipe de saúde. No contexto hospitalar, o discurso médico é dominante. Assim, as estratégias utilizadas pelas adolescentes incluem seguir o tratamento corretamente para conseguir alta e então poder voltar às práticas da anorexia; ou resistir à ajuda e ao discurso dominante, tentando reafirmar suas ações anoréxicas. Reconhecer as diferenças individuais entre as pacientes, respeitando os significados que atribuem a sua condição, é central para a aliança terapêutica no tratamento da AN.48 Diversas questões na atenção ao adolescente com AN são controversas e faltam evidências para tratamentos clinicamente eficazes. Portadores de TA têm sido reconhecidos por representar um grupo de consumidores de cuidados de saúde entre os quais a insatisfação tende a ser elevada, o que pode ser agravado pela postura do usuário em relação à doença, pois em geral há ambivalência entre querer se tratar ou não, o que pode determinar a oposição ao tratamento. Os pais, no entanto, são geralmente relatados como sendo mais satisfeitos com o tratamento recebido do que suas filhas adolescentes, mesmo quando os resultados são bons.46 O aspecto mais difícil da gestão da AN é provavelmente envolver a pessoa em um tratamento. Isto porque o sujeito não aceita que algo está errado, o que está em contraste às preocupações das Demetra; 2014; 9(1); 3-22 9 Demetra: alimentação, nutrição & saúde pessoas próximas,49 e também porque são relutantes devido aos aspectos positivos que recebem da doença.50 Por um lado, a anorexia é vista como um caminho para alcançar os resultados desejados e por outro, como uma doença, que afeta negativamente a saúde e a vida da pessoa e de sua família. Assim, pessoas com anorexia muitas vezes se sentem ambivalentes sobre se desejam mantê-la ou recuperar-se.50 Os TAs costumam ser entendidos pelo público leigo e por vezes pelos profissionais de saúde como uma dieta de emagrecimento que passou dos limites por questões de vaidade.49 É surpreendente que indivíduos que aceitam o tratamento muitas vezes se sintam incompreendidos pelos profissionais de saúde que os atendem e busquem apoio e conforto das únicas pessoas que sentem que podem entendê-los, ou seja, aquelas com AN.51 O tratamento da AN por meio da internação é por vezes malsucedido, com muitos pacientes abandonando o tratamento ou tendo repetidas admissões. Tais regimes são apontados como sendo reducionistas porque se centram, em grande parte, no aumento de peso, sem considerar outros aspectos relacionados à doença.48 Muitas vezes, os indivíduos com AN não buscam tratamento justamente por medo de serem obrigados a ganhar peso ou ter seu sentimento de autocontrole removido. A hospitalização é o principal modo de tratamento da AN quando o indivíduo está medicamente comprometido, e a realimentação é vista como o passo inicial e essencial nesse processo. Porém, muitas vezes os adolescentes perdem o peso que ganharam no hospital logo após a alta.48 Nesse sentido, os profissionais de nutrição tem papel central, pois às vezes o alimento é apresentado de forma redutora no hospital. Os indivíduos hospitalizados são privados de todas as condições que deixam as pessoas com fome: o cheiro de boa comida, sua apresentação atraente, boa companhia e atividade física para aumentar o apetite. A contradição da realimentação hospitalar é que ela impede justamente o objetivo final que o tratamento busca alcançar: Fazer com que os portadores de anorexia tenham um comportamento alimentar “normal”. Boughtwood & Halse48 não negam que algumas meninas estão fisicamente comprometidas ao entrar no hospital e que a rigorosa realimentação seja talvez o primeiro passo desse tratamento; salientam, no entanto, que não é desejável que essa estratégia continue indefinidamente, o que ocorre em muitos casos. Nos cuidados de saúde com pacientes adolescentes, a história clínica, os hábitos alimentares, os traços de personalidade e a percepção da imagem corporal devem servir de alerta para a equipe de saúde. A intervenção precoce pode reverter o processo da doença, pois, ao contrário do que se acredita, a maioria das crianças e adolescentes com AN se recupera, mesmo entre os que são considerados cronicamente doentes.52 10 Demetra; 2014; 9(1); 3-22 Tomando a anorexia nervosa como objeto de estudo socioantropológico A anorexia nervosa na adolescência e a abordagem socioantropológica Existem ainda muitas lacunas no que se refere ao estudo dos TAs, mais especificamente da AN, no campo das ciências sociais e da saúde coletiva, no Brasil. O aumento da incidência de AN em todo o mundo53 evidencia sua importância como problema de saúde coletiva e até o momento, as políticas públicas de saúde no país não dão conta de sua gravidade e abrangência na população brasileira.7 A diversidade e severidade dos sintomas, a ausência de intervenções preventivas e a insuficiência de serviços especializados geram demandas importantes para os serviços de saúde, com gastos desnecessários, ações frequentemente ineficazes e tratamentos isolados, que negligenciam os elementos simbólicos e o entorno social. Para enfrentar a questão, faz-se necessário um olhar que seja capaz de articular os pressupostos biomédicos com os sociais.7 Poucos esforços têm sido empregados para se estabelecer empiricamente os significados que os sujeitos com AN atribuem a seu comportamento,54 bem como aos processos sociais de circulação e recepção dos padrões corporais, e de como estes estariam envolvidos no desenvolvimento e manutenção da AN.55 Destaca-se, ainda, que há poucas etnografias sobre os diferentes aspectos que envolvem a AN.56 Pretende-se desvelar os sentidos que os indivíduos imprimem a uma experiência tão intrigante, e por vezes assustadora, como a AN. Trata-se de uma contribuição no sentido de avançar o conhecimento sobre esse transtorno no campo das ciências sociais em saúde no Brasil. A pesquisa em curso tem como tema de estudo a anorexia nervosa entre adolescentes, ao envolver uma etnografia de um serviço público de saúde especializado no atendimento aos TAs na cidade do Rio de Janeiro como um primeiro momento de aproximação ao objeto de estudo. Neste artigo, discutem-se alguns aspectos da aproximação ao campo, a partir de uma perspectiva etnográfica. Considera-se que um serviço público de saúde de referência constitui a face legitimada, visível, onde os TAs obtêm reconhecimento oficial, acolhimento e tratamento, e seus portadores, uma identidade social como tal. A imersão no universo do sujeito anoréxico implica uma aproximação à realidade de sofrimento e angústia, enquanto uma dimensão importante da doença, que tem sido subaproveitada.57 A pesquisa tem por objetivos conhecer, do ponto de vista socioantropológico, a dinâmica de funcionamento cotidiano de um serviço público de saúde especializado no atendimento aos transtornos alimentares, bem como o processo de adoecimento vivenciado por adolescentes que enfrentam publicamente a anorexia nervosa. Trata-se de um estudo socioantropológico que inclui uma etnografia de uma instituição de saúde, o que exige longo acompanhamento deste serviço, por meio da observação participante.58,59 Isso inclui a participação nas atividades diárias de assistência às adolescentes, conforme autorização concedida para o estudo. Demetra; 2014; 9(1); 3-22 11 Demetra: alimentação, nutrição & saúde De acordo com tal abordagem, os comportamentos humanos só podem ser compreendidos e explicados se tomarmos como referencial o contexto social onde eles atuam. Cabe ao pesquisador examinar os diferentes aspectos da vida do grupo social estudado, por meio do trabalho de campo intensivo, auxiliado por observações diretas, de modo que seu conhecimento seja baseado no confronto entre suas hipóteses e observações.59 Essa metodologia permite ao pesquisador compreender as práticas culturais dentro de um contexto social mais amplo, estabelecendo ligações entre fenômenos específicos e uma dada visão de mundo.59 Para Malinowski, antropólogo fundador do método etnográfico, era necessário viver com as pessoas que estavam sendo estudadas e participar o máximo de suas vidas. Nesse método, a permanência no campo era essencial para que o etnógrafo se familiarizasse totalmente com o modo de vida local.60 No contato com as usuárias dentro do serviço de saúde, os procedimentos habituais que integram uma etnografia estão sendo utilizados: conversas informais, observação participante, registros de saúde, dentre outras documentações.58,59 A observação na pesquisa compreende o “exame” de uma pessoa ou grupo de pessoas dentro de um contexto específico, com o objetivo de descrevê-los. Difere de qualquer outra observação por ser direcionada para a descrição de uma problemática anteriormente definida, exigindo treinamento específico59. A observação participante é considerada a principal ferramenta de uma pesquisa etnográfica, onde se busca captar o ponto de vista dos pesquisados.60 A importância da observação no trabalho de campo reside no fato de que um número considerável de elementos não poderia ser apreendido unicamente pela fala ou por documentos escritos, mas precisam ser observados em sua plena realização.61 Este estudo foi aprovado (CAAE: 04846312.6.0000.5286) pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CEP/ IESC/UFRJ) e está sendo desenvolvido com adolescentes e jovens com idades entre 12 e 20 anos, de ambos os sexos, contatados por meio de uma instituição pública de saúde na cidade do Rio de Janeiro. Na investigação, em um segundo momento, tem sido realizada a aproximação com algumas adolescentes contatadas no serviço de saúde, para realização de entrevistas. A escolha das adolescentes se deve ao fato de ser o grupo etário mais atingido, onde a incidência da AN vem aumentando.28,53 Nesse contato com as adolescentes, elas são formalmente entrevistadas, mediante um roteiro semiestruturado, em sala reservada no serviço de saúde, fora do espaço de circulação da equipe e sem a presença de familiares ou responsáveis, para manter privacidade e condições adequadas a uma boa entrevista. Em uma etnografia, as entrevistas não podem ser consideradas de forma isolada, fora do contexto da pesquisa; é preciso ficar claro que elas devem sempre dialogar com a observação participante e com a documentação escrita. Elas são longas, aprofundadas e gravadas com consentimento dos entrevistados.58 12 Demetra; 2014; 9(1); 3-22 Tomando a anorexia nervosa como objeto de estudo socioantropológico Em geral, as adolescentes frequentam o serviço de saúde onde o estudo acontece acompanhadas de seus familiares, pais ou responsáveis. Mas tem-se notado grande constrangimento e silêncio destas frente aos profissionais de saúde que as atendem na presença dos pais. Na adolescência, verifica-se uma incidência significativa de situações conflituosas, em que as normas estabelecidas se revelam insuficientes para responder com clareza às interrogações éticas. Toda pesquisa a ser realizada com menores de 18 anos necessita de consentimento por escrito de seu responsável. A obrigatoriedade deste é muitas vezes dificultada pela ausência dos pais ou porque o jovem não se sente à vontade ou simplesmente não deseja revelar informações confidenciais.45 Assim, valorizou-se sobremaneira que a entrevista com as portadoras de AN fosse feita sem a presença de seus responsáveis, com relativa autonomia dos sujeitos de pesquisa, e que não dependessem do consentimento dos pais, que poderiam intervir no contexto de pesquisa de modo desfavorável à manifestação espontânea de suas filhas. Salienta-se que, após longo debate entre as autoras e o CEP, o argumento de que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deveria ser assinado pela/o adolescente e não pelos responsáveis foi acatado, favorecendo o vínculo pesquisadora-sujeito de pesquisa, sendo o contato, autorização e entrevista realizados pessoalmente com as adolescentes. O recrutamento é feito diretamente com as adolescentes na sala de espera, enquanto aguardam o atendimento. Assim, longe da presença da equipe de saúde, evita-se o constrangimento caso não tenha interesse em participar da pesquisa. Caso a adolescente aceite participar, a entrevista é feita no mesmo dia, ao final de seus atendimentos com a equipe de saúde ou em sua próxima visita ao serviço. São realizadas em sala reservada, onde conversam apenas a pesquisadora e a entrevistada. A entrevista transcorre como uma conversa e, embora haja um roteiro de questões, essas não são fixas, de modo que as adolescentes tenham liberdade para falar daquilo que é importante para elas e não fiquem preocupadas em dar “respostas corretas”. Nesse momento, são inicialmente abordados aspectos que visam delinear suas características sociodemográficas, como: escolaridade, composição e renda familiar, cor da pele autorreferida, local de moradia e religião. Ao iniciar a conversa, a adolescente tem liberdade para falar sobre si mesma, o que gosta de fazer, como chegou até o serviço de saúde, dentre outras questões que buscam compreender como essa adolescente entende o que tem acontecido com seu corpo e sua saúde e como se relaciona com o diagnóstico recebido a partir de sua entrada e tratamento num serviço de saúde que é referência em transtornos alimentares. O roteiro incorpora ainda questões sobre relações da adolescente na escola, na família, com parceiros afetivo-sexuais e em outras redes de sociabilidade por ela valorizadas. Demetra; 2014; 9(1); 3-22 13 Demetra: alimentação, nutrição & saúde Pesquisadora em campo A realização desta pesquisa etnográfica tem sido um exercício árduo, pois foi preciso conciliar duas identidades: a de pesquisadora – que se inicia no método antropológico – e a de nutricionista. A rotina da pesquisadora no ambulatório foi se definindo pela reunião da equipe de saúde logo cedo (onde são discutidos os casos do dia) e, posteriormente, a alternância entre observação da sala de espera e assistir a consultas dos clínicos e da nutrição. O fato de estar observando o atendimento até hoje não é bem compreendido. Por vezes, os profissionais de saúde foram até a pesquisadora na sala de espera e perguntaram o que ela estava fazendo lá. A mesma esclarece que está anotando detalhes da rotina, observando as interações entre as pessoas e a resposta é sempre bem aceita. Como as observações da sala de espera se iniciaram mais tarde, a pesquisadora já conhecia muitas das adolescentes e seus responsáveis pelas consulta,s e também pela visão dos profissionais de saúde, por meio das reuniões de equipe. Assim, a sala de espera se tornou um complemento essencial para as observações e anotações que já havia feito em seu diário de campo. Uma questão que preocupou a pesquisadora inicialmente foi sua identificação como nutricionista. Mesmo ressaltando a importância de ser reconhecida como pesquisadora, os profissionais nunca a apresentam aos adolescentes como tal. Sua formação profissional pode muitas vezes ser interpretada negativamente, pois a relação dos usuários com as profissionais de nutrição nem sempre é amigável, havendo casos de pacientes que fogem da consulta, que choram para não entrar no consultório ou que simplesmente afirmam só aceitar o tratamento se não precisar passar pela nutrição. Ao mesmo tempo, a pesquisadora assume a dificuldade que possui de sair dessa posição. Tanto nas reuniões, quanto nas consultas, é difícil modificar o tipo de escuta que é preciso ter ou identificar o que deve ser observado62, fundamentalmente nas consultas de nutrição. A convivência da pesquisadora com a equipe de saúde do ambulatório de TA é amigável, embora a relação com eles se resuma mais especificamente ao contexto das reuniões e consultas, pois não existem muitas oportunidades de conversas informais com os profissionais durante o período de atendimento. Todos estão cientes da sua formação profissional e do fato de ela ser uma doutoranda fazendo uma pesquisa com adolescentes que sofrem de AN. De modo geral, não a questionam muito, embora transpareça que alguns membros da equipe se sintam curiosos. O trabalho de campo e o contato com as adolescentes nesta investigação duram mais de um ano e meio, no intuito de consolidar o vínculo construído na interação no serviço de saúde. O “sucesso” do trabalho de campo etnográfico está muito ligado à relação social que o pesquisador estabelece com seus informantes, sendo a qualidade dos dados obtidos muito dependente dessa relação. Por isso, o pesquisador deve buscar estabelecer uma relação próxima, de confiança e baseada em princípios éticos com seus pesquisados.59 14 Demetra; 2014; 9(1); 3-22 Tomando a anorexia nervosa como objeto de estudo socioantropológico Acredita-se que gradativamente, na convivência que o trabalho de campo faculta, o pesquisador pode ir se aproximando dos profissionais de saúde e das usuárias, conhecendo a dinâmica de atendimento da instituição, suas regras, para então apreender como o fenômeno da AN é apropriado e recriado naquele espaço.63,64 De fato, com o desenrolar das atividades em campo e com o seguimento da pesquisa, a relação entre pesquisadora e pesquisados está se construindo e se fortalecendo. O tempo no campo também tem auxiliado a pesquisadora a ganhar experiência na realização de uma etnografia. Assim, por meio de questões que vão sendo respondidas, relações construídas e um processo constante de reflexão, o pesquisador pode chegar ao cerne de sua questão: captar a visão de mundo de seus “nativos”. Considerando os riscos e benefícios quanto à participação dos adolescentes como voluntários na pesquisa em questão, cabe salientar que esses sujeitos constituem parcela importante do público que sofre com os TAs, sendo fundamental conhecer o seu processo de adoecimento, bem como reconstruir o percurso dos mesmos até chegarem ao serviço de saúde para tratamento. No Brasil, segundo nosso conhecimento, não há pesquisas que tenham investigado, sob a perspectiva teóricometodológica socioantropológica, a dinâmica de funcionamento de um serviço público de saúde especializado no atendimento aos TAs, buscando compreender como a AN e o tratamento dado pela equipe de saúde ao problema interfere na vida dos adolescentes que a enfrentam publicamente. Relações interpessoais: equipe de saúde x familiares x adolescentes De modo geral, a relação entre a equipe de saúde e as usuárias é mediada pelos responsáveis legais. É comum que eles entrem no consultório acompanhando os filhos, embora isso não ocorra com todos os profissionais. Por exemplo, a escuta inicial feita pela psicóloga coordenadora envolve o adolescente e seu responsável. Nas consultas de nutrição, o adolescente é consultado sobre a presença dos pais na sala, mas não foi observado até o momento algum que a recusasse. Na consulta de clínica isso é variável, há paciente que entra sozinho e, depois da consulta, a médica chama os pais para conversar; e também há adolescentes que já entram com o responsável. Na psicologia, o adolescente entra sozinho. Nem sempre os pais entram, ou apenas entram depois. Mas a consulta inicial do programa geralmente inclui os pais e o(a) filho(a). Na sala de espera, é comum as mães se queixarem de não poder acompanhar a filha nas consultas da psicóloga, pois sabiam que as adolescentes não falariam “toda a verdade” e esconderiam “as coisas”. Na presença dos responsáveis, muitas vezes os adolescentes sequer abrem a boca. Ao contrário, os responsáveis costumam ser bastante participativos, dando desde o início detalhes íntimos da vida dos filhos, que talvez demorassem a ser por eles revelados. As mães, especialmente, falam dos motivos que levaram as filhas a parar de comer, embora as adolescentes nem sempre concordem, ou não abordem o assunto. Os responsáveis costumam tirar mais dúvidas do que os Demetra; 2014; 9(1); 3-22 15 Demetra: alimentação, nutrição & saúde filhos e opinar intensamente sobre o tratamento. Os adolescentes mais passivos ouvem e nada falam, nem contradizem os pais. Mas há casos de adolescentes que gritam e se exaltam na tentativa de serem ouvidas e de terem o reconhecimento de sua autonomia em questões relacionadas a seu corpo e saúde. Os profissionais não reagem bem a esse tipo de atitude, o que gera comentários com tom de reprovação nas reuniões de equipe. Nesses casos, já aconteceu de o profissional pedir aos pais para deixarem apenas o adolescente seguir na consulta, ou pedir a todos para se retirarem e só retornarem após terem resolvido o conflito; ou ainda o profissional se retirar da sala dizendo que, ao retornar, gostaria de dar seguimento “normal” ao atendimento. Alguns traços sugerem que os adolescentes são ali tratados e vistos como crianças, tanto pelos responsáveis, quanto pela equipe de saúde que os acolhe. Isso pode ser observado no dia a dia do campo: a TV da sala de espera só passa desenhos animados voltados ao público infantil; essa mesma sala, ao ser reformada ganhou um espaço para “recreação”, com mesinha baixa e quatro cadeirinhas, em tamanho infantil, onde ficam canetinhas e lápis para colorir. Na estante localizada nesse mesmo espaço, além de livros escolares (de inglês, biologia, geografia, etc.), enciclopédias e material educativo sobre questões de saúde (como por exemplo, saúde bucal, alimentação saudável, higiene pessoal), há revistas em quadrinhos voltadas ao público infantil. Durante as consultas, embora os adolescentes sejam os usuários do atendimento, eles não têm sua voz reconhecida. Sobre essa questão, Leite41 afirma que há uma permanente tensão entre autonomia e tutela que faz parte das discussões sobre atenção à adolescência. De um lado, há uma afirmação do lugar do/a adolescente como sujeito de direitos, do outro, surge uma série de questionamentos acerca da real capacidade de resposta aos possíveis desdobramentos da autonomia a eles conferida. Muitos dos avanços feitos no tratamento da AN são baseados em acordos travados entre o profissional de saúde e o adolescente. Strauss et al.65 destacam que o processo de negociação dos pacientes é um aspecto significativo para o entendimento da organização hospitalar. Mas há ainda as negociações dos profissionais com os usuários e suas famílias. Assim, o hospital pode ser visualizado como um lugar onde numerosos contratos são continuamente rescindidos ou esquecidos, mas também criados, renovados, revistos e revogados. A cada semana, no âmbito do acompanhamento dos adolescentes, uma pequena mudança é duramente negociada e, por menores que elas sejam, os usuários anunciam que não vão conseguir cumpri-las. Diante das dificuldades de adesão ao tratamento, os profissionais lidam de modo diferenciado. Alguns se sentem impotentes, coniventes com o agravamento de uma situação que pode se prolongar por semanas, diante da recusa ou incapacidade do adolescente em alterar sua alimentação, rotina e ingerir medicamentos. Outros profissionais rompem com o paciente justamente nesses momentos. Diante do fato de o adolescente não tomar a medicação ou acatar suas prescrições, o profissional declara não querer mais atendê-lo. Na verdade, os pacientes “difíceis” 16 Demetra; 2014; 9(1); 3-22 Tomando a anorexia nervosa como objeto de estudo socioantropológico de tratar impõem desafios e impasses na relação profissional de saúde x usuário. Cabe refletir se esses entraves não se devem em parte pela incapacidade do profissional de estabelecer vínculos, ou mesmo pela inabilidade para lidar com adolescentes. As negociações são bem-sucedidas quando há interesse do adolescente, seja para retomar momentos de lazer ao lado dos amigos ou uma atividade física que fazia antes da doença. Nesses casos, as usuárias aceitam o acordo proposto pela equipe de saúde. Com o decorrer do tratamento e estabilização da doença, os adolescentes passam a ser agendados a cada cinco ou seis meses, apenas para acompanhamento. No entanto, adolescentes em estado grave costumam sumir e ficar meses sem aparecer, voltando posteriormente ainda mais adoecidos. Há também casos em que a relação dos pais com o profissional é tão intensa que em dado momento se desgasta e o adolescente se vê obrigado a trocar de profissional porque a mãe, o pai ou ambos não se entendem mais com o mesmo. Os conflitos familiares, sempre presentes às consultas, permeando a relação entre pais e filhos e entre famílias e equipe, consomem emocionalmente os profissionais de saúde. Ora os conflitos entre os pais (mãe x pai), com acusações mútuas e disputas pela guarda do filho, interferem na gestão da sua doença e tratamento; ora a ansiedade e preocupação desses responsáveis em saber mais sobre a saúde de seus filhos atropela a conduta do profissional na tentativa de construção de um vínculo com o portador de TA. Os períodos de internação são difíceis para as usuárias e seus responsáveis. A equipe ressalta que as adolescentes são internadas muito fracas, mas rapidamente comem de tudo e não vomitam para serem logo liberadas para casa. Todas referem que o período na enfermaria (exclusiva para adolescentes) foi muito ruim. A notícia da internação ou da reinternação é geralmente acompanhada por choro, súplica por parte da adolescente, pedido para internação domiciliar ou para ter mais uma chance. Aquelas que por muitas semanas descumprem os acordos firmados com a equipe de saúde passam a receber a “ameaça” da internação, onde poderão ser constantemente vigiadas e perderão sua liberdade. Nesses casos, a internação é adotada como uma maneira de puni-las.19 Alguns responsáveis parecem não conseguir exercer sua autoridade diante os filhos, rindo sem se dar conta da gravidade do que está acontecendo, ou confundindo o comportamento da filha com pirraça. A internação da filha acaba sendo um choque para a família, que muitas vezes não consegue suportar a dramaticidade da situação. Uma adolescente que frequenta as consultas acompanhada do pai e da avó teve a mãe doente, em depressão, frente à gravidade da doença da filha. Seu pai, que está cuidando da casa, dos outros filhos e da esposa, disse que a filha se ausentou do atendimento após a internação, porque ele achou que ela estava melhor e resolveu priorizar os cuidados com a esposa. Os usuários desenvolvem relações diferenciadas com os profissionais da equipe. Como a rotina lhes impõe circular entre todos os profissionais, acabam por falar o que desejam para uma dada pessoa e na consulta seguinte expressam não desejar falar novamente o que já foi dito a outro. Às Demetra; 2014; 9(1); 3-22 17 Demetra: alimentação, nutrição & saúde vezes, contam para algum profissional que não estão tomando a medicação, mas pedem segredo para o restante da equipe e para a família. Alguns usuários tentam manipular os profissionais que os atendem, utilizando a opinião de outros membros da equipe. Não há, por parte da equipe, nenhuma estratégia de atendimento conjunto da clínica, psicologia e nutrição para evitar esse percurso exaustivo do adolescente, de passar por todos os profissionais de saúde, um subsequente ao outro, numa mesma manhã. Há responsáveis que alertam a equipe sobre as “manipulações” do usuário, “que faz de tudo para não comer”. Os próprios responsáveis assumem que, muitas vezes, são “enrolados” pelos filhos. A sinceridade dos responsáveis é premiada com a credibilidade da equipe, que passa a dar total apoio ao responsável-vítima, deixando o adolescente – alvo do atendimento – em segundo plano. Considerações finais Durante o tempo de observação do cotidiano do serviço de saúde, foi possível compreender na prática o que era descrito na literatura cientifica, e confrontar as informações obtidas a partir de terceiros com o que está ocorrendo a cada semana diante dos olhos. Sentir a tristeza, a alegria, o desânimo, a euforia e uma série de emoções, que só o contato com o campo e com o grupo que o pesquisador deseja estudar pode proporcionar, não tem preço. É reconhecido que a observação participante pressupõe a interação entre o pesquisador e seus pesquisados. Dessa forma, as informações que o pesquisador obtém ao final de seu trabalho dependerão do seu comportamento e das relações que desenvolve com o grupo objeto de suas observações. No caso desta pesquisa, satisfazer essa condição básica tem sido um desafio, pois o grau de interação com a equipe de saúde e com os pais ou responsáveis legais é por vezes maior do que com os adolescentes. O fato de serem adolescentes e não terem sua autonomia reconhecida, somado à gravidade da doença, que os torna ainda mais vigiados, tem influência decisiva no silêncio observado e na falta de interesse em se relacionar e em se posicionar mediante as questões que se apresentam. Tal fato não pode ser ignorado ou tomado como fracasso; pelo contrário, está sendo apreendido como um dado importante. Em campo foi preciso aprender a controlar o desejo de intervir, de ajudar, de se posicionar e deixar emergir alguém que está ali com claro interesse em pesquisar, observar e aprender com o outro. Para apreender uma realidade social não é suficiente estar lá; é necessário lembrar seus objetivos, mas ao mesmo tempo se manter atento para o que o campo tem para revelar e estar aberto às modificações que certamente vão ocorrer ao longo do percurso. É uma tarefa difícil, mas possível, e enriquecedora pessoal e profissionalmente. 18 Demetra; 2014; 9(1); 3-22 Tomando a anorexia nervosa como objeto de estudo socioantropológico Referências 1. Borges NJBG, Sicchieri JMF, Ribeiro RPP, Marchini JS, Santos JE. Transtornos alimentares: quadro clínico. Medicina (Ribeirão Preto). 2006; 39(3):340-348. 2. Pinzon V, GONZAGA AP, Cabelo A, Labaddia E, Belluzzo P Fleitlich-Bilyk B. Peculiaridades do tratamento da anorexia e da bulimia nervosa na adolescência: a experiência do PROTAD. Rev. Psiq. Clin. 2004; 31(4): 167-169. 3. Cordás TA. Transtornos alimentares: classificação e diagnóstico. Rev. Psiq. Clin. 2004; 31(4):154-157. 4. Teixeira PC, Costa RF, Matsudo SMM, Cordás TA . 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