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OLHARES CULTURAIS SOBRE GÊNERO E MEIO AMBIENTE NO FILME ERIN
BROCKOVICH – UMA MULHER DE TALENTO
Priscilla Silva de OLIVEIRA1*
Fernanda Amorim ACCORSI2**
RESUMO
O artigo é resultado das discussões do Grupo de Pesquisa “Formação da Consciência
Ecológica em uma perspectiva multidisciplinar”, da Faculdade Metropolitana de Maringá
(FAMMA). Tem como finalidade analisar como o meio ambiente é retratado no filme através
da problemática: Quais formas culturais de preservação do meio ambiente são exibidas no
filme? O nosso aporte teórico está vinculado aos Estudos Culturais, o qual privilegia olhares
particulares e verdades aproximadas, mas nunca cristalizadas. Analisamos como o filme
pode, ou não, reforçar e/ou criar a consciência ecológica através de seus personagens.
Como a atriz principal é uma mulher, problematizamos gênero e cultura. Se os filmes são
considerados pedagogias culturais, é de suma relevância analisar os modo de ver, ser e
pensar exibidos, pois é nesse jogo de imagens, textos e enredos que o cinema, entre outros
meios, é capaz de contribuir com a construção da subjetividade humana. Consideramos que
os filmes nos oferecem representações da realidade, que, muitas vezes, servem de
referência para atitudes e reflexões. Em nossa análise, verificamos o reforço da ideia de que
agir ecologicamente é como uma gota no oceano, mas que pode servir de exemplo para que
outras pessoas comecem a criar a consciência ecológica.
Palavras-chave: Filme. Pedagogias Culturais. Consciência ecológica.
POR UM CINEMA CONSCIENTE: ENTRE FLECHAS E LABIRINTOS
Insatisfeitas com o já sabido, lançamos uma flecha na direção de zonas
fronteiriças. Na divisa, encontra-se: meio ambiente, cultura e gênero, três temáticas
que suscitam várias reflexões e associações por meio do embasamento teórico
ancorado nos Estudos Culturais, o qual contempla as pedagogias culturais, que tem
como ótica os meios informais de produção de informação, contemplando a cultura
como produtora de conhecimento. Nesta perspectiva, a educação não é função
exclusiva das escolas, mas ultrapassa esse limite tornando os filmes, entre outros
meios, uma fonte de pedagogia, de construção de modos de ser, ver e pensar o
mundo. É nesse movimento de pesquisa, que nos jogamos no labirinto, para nos
*Discente do Programa de Iniciação Científica (FAMMA), discente do curso de Publicidade e
Propaganda (FAMMA), [email protected].
**Doutoranda em Educação (PPE/UEM), mestra em Educação (PPE/UEM), especialista em
Comunicação e Educação (FCV), graduada em Comunicação Social - Jornalismo (Faculdade
Maringá), [email protected].
aventurarmos e arriscarmos pelos vários e diferentes caminhos que a análise
midiática pode nos levar.
Entregamos-nos não apenas pelos métodos, estratégias e teorias postas,
mas pelos sentimentos e sensações, já que, ao entrar no labirinto de pesquisa3,
carregamos nossa subjetividade, nossos resquícios históricos, culturais e sociais
construídos pelas práticas e linguagens, o que faz do labirinto um lugar sem
precedentes, que foi moldado ao longo das reflexões, pois paredes foram
derrubadas e outras construídas ao longo da caminhada.
O terreno dos estudos não é uniforme, de um só território ou área do saber,
visto que trafegar em outras áreas é adubar as ramificações do conhecimento,
fazendo com que a pesquisa não tenha visivelmente um ponto de chegada, algo
concreto ou uma verdade absoluta. Para Corazza (2002, p.125), “[é] nesse lugar
silencioso que reside o diferente, que espera aquilo que não se repete, que mora o
que não é costumeiro, que responde o que se recusa a ser escutado
ecolalicamente4”.
Gatti (2005, p.606) articula que o/a pesquisador/a precisa estar posicionado/a
na possibilidade de surpreender, pois têm como desafio as surpresas e reflexões do
estudo e, se não estiver preparado/a para tornar algo surpreendente, para que
pesquisar? Inspiradas nessa colocação, temos consciência que a pesquisa não
culminará em verdades cristalizadas ou em esgotamentos do assunto, mas
tentamos tornar a pesquisa única5, pois queremos sair do “[e]sgotamento das
análises que não acrescentam conhecimento e patinam numa repetição de jargões e
padrões já exauridos” (GATTI, 2005, p.606).
Assuntos tão pertinentes, como meio ambiente, gênero, cultura e mídia
permitem “sair fora da caixa” e do clichê, pois as temáticas escolhidas fazem com
que as reflexões sejam complexas e ao mesmo tempo enriquecedoras, já que
pensar nessas linhas, sem um emaranhado de informações, demanda sensatez e
3
O termo “labirinto de pesquisa” foi emprestado da autora Sandra Mara Corazza, do texto Labirintos
de pesquisa, diante dos ferrolhos (2002).
4
“A ecolalia é a repetição significativa da fala do outro, é a presença de emissões que são repetições,
ou de suas próprias emissões ou de emissões que são repetições do interlocutor” (PRATES, 2009).
5
Única pelo fato que, o mesmo assunto, com outros olhares depositados sobre o mesmo objeto,
proporciona visões e reflexões discrepantes, nenhuma pesquisa é igual, no máximo semelhante,
porque o/a pesquisador/a interfere na pesquisa e oferece um pouco de si nas suas análises.
sentimento. Assim, os Estudos Culturais permitem uma aproximação pessoal do
objeto, pois não há como o/a pesquisador/a ficar imune à pesquisa, pois ele/a é
parte dela, é a visão, a ótica destinada a ela pertence ao/à pesquisador/a.
Conforme Santos (2002, p. 88), a “reflexividade” acerca do objeto de
investigação ocorre de acordo com a “personalidade do cientista social que a
empreende”. Para tanto, se faz indispensável ter a consciência do lugar onde se
encontra e em qual contexto a análise se realiza, bem como compreender que a
mudança de “[...] condições científicas, políticas e sociais, será sempre possível
escrever um novo relatório sobre o que pensei [...]” (SANTOS, 2002, p. 95).
No nosso tempo e espaço, a segunda década do século XXI, ponderamos
que as pesquisas devem estar em constante movimento, mas as práticas
educacionais, sociais, comunicacionais, culturais, econômicas e políticas também
devem “sair do comum” e acompanhar o ritmo da sociedade pós-moderna6, já que
as formas de produção e disseminação do conhecimento ganharam outros espaços.
A mídia7 assume papel de educadora e as instituições tradicionais (família,
igreja, escola) não são mais as únicas responsáveis por transmitir conhecimento,
visto que os filmes, entre outros artefatos culturais, propagam conhecimento sobre
os modos de ser e estar no mundo, construindo identidades e formas culturais de
representações (WAGNER; SOMMER, 2007). Segundo Giroux e McLaren (1995,
p.144), “a pedagogia está presente em qualquer lugar em que o conhecimento seja
produzido”. Dessa forma, os filmes são produtores de pedagogias, já que eles
sugerem para os indivíduos inúmeros sentidos. Sendo assim, a consciência
ecológica pode ser formada, instigada, construída, a partir de um filme que tenha
como temática esse conteúdo, assim como o nosso objeto de pesquisa, o filme Erin
Brockovich – uma mulher de talento.
QUEM ESSE FILME PENSA QUE VOCÊ É?
6
A concepção de pós-moderno não tem consenso, já que o tema é polêmico, pois muitos autores
acreditam que ainda estamos na modernidade e outros defendem que até mesmo estamos passando
do ‘pós’. Dessa forma, usaremos a palavra pós-moderno para pautar a sociedade que estamos
vivendo hoje, na segunda década do século XXI, e também como aquela que é mais desenvolvida,
como a “[e]ra da racionalidade, a qual fundamenta não só conhecimento cientifico, como as relações
sociais, as relações de trabalho, a vida social, a própria arte, a ética, a moral”. (GATTI, 2005, p.597).
7
Entendo mídia como “conjunto dos meios de comunicação” (LAGE, 1999, p.73).
Pesquisar é encontrar outros possíveis, e “somente nessa condição de
insatisfação com as significações e verdade vigente é que ousamos tomá-las pelo
avesso, e nelas investigar e destacar outras redes de significações” (CORRAZA,
2002, p.111). A fim de criar nossa própria rede de significações, utilizamos o Modo
de Endereçamento, de Elizabeth Ellsworth (2001), como metodologia de análise
para depositar os olhares sobre o objeto de pesquisa. O referido método tem como
pergunta norteadora: “Quem esse filme pensa que você é?”. Isto é, os filmes são
produzidos visando determinados públicos e, mesmo que ele não acerte seus reais
e imaginados telespectadores/as, os indivíduos que não foram os alvos imaginados
“têm que assumir as posições que lhes são oferecidas naqueles sistemas – ao
menos durante o tempo de duração do filme, ao menos na imaginação”
(ELLSWORTH, 2001, p.16). Logo, é possível afirmar que a mensagem midiática é
um campo de lutas entre emissor/a e receptor/a.
O Modo de Endereçamento não é visível e/ou palpável, Ellsworth (2001)
defende que as narrativas fílmicas se relacionam com a experiência do/a
espectador/a, logo os filmes são capazes de mudar, sugerir e ensinar modos de
pensar, agir e ser aos sujeitos, conforme a relação que eles/as têm com o filme. Ou
seja, para a autora “essas questões têm a ver com a relação entre o ‘social’ e o
‘individual’ [...] em outras palavras, qual é a relação entre o lado de ‘fora’ da
sociedade e o lado de ‘dentro’ da psique humana?” (ELLSWORTH, 2001, p. 12).
A teoria também tem como referência a experiência, estrutura, interpretação,
contemplação, emoção, identidade e aprendizagem do ser humano que, segundo
Ellsworth (2001), ao entender essas relações – entre o individual (lado de dentro) e o
social (lado de fora) - pode-se contar com um/a telespectador/a envolvido/a pelo
filme. Em outras palavras, cada indivíduo tem as suas próprias experiências e
quando assiste um filme, em que o enredo, cena, vocabulário, narrativa etc.
dialogam com seu repertório cultural, o/a telespectador/a pode ser influenciado/a, ou
não, pelo conteúdo, propiciando a aceitação total, parcial ou discordância daquilo
que lhe é proposto.
Podemos associar esse modo de pensamento de Ellsworth com o sociólogo
Stuart Hall (1992), o qual discute a questão da identidade, levantando a discussão
que o sujeito pós-moderno é plural, não tem uma identidade eterna, imutável ou
única, e sim “transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL,
1992, p.13). Assim os sujeitos assumem identidades de acordo com as suas
experiências culturais e sociais e como Ellsworth afirmou, o indivíduo como
telespectador de um filme age de acordo com a sua bagagem, suas experiências,
sua identidade plural.
Dessa forma, refletimos na vertente de que se o texto, a imagem, o abstrato,
a narrativa - entre outros artefatos fílmicos - do filme Erin Brockovich – uma mulher
de talento possuir relação no espaço entre a experiência individual ou social (ou as
duas) do/a receptor/a, o filme será capaz de criar e transformar a consciência
ambiental. E, ao refletir acerca do destinatário do conteúdo midiático, é possível
visualizar modos de ver o mundo, significados e sentidos criados pela mídia.
Se os filmes são capazes de dialogar com o/a receptor/a, é de suma
relevância utilizar essa metodologia para analisar quais narrativas estão sendo
apresentadas pela mídia e levantar, quem sabe, algumas formas de recepção das
mensagens. Para cada cena do filme analisada, será identificado/a um/a suposto/a
telespectador/a, um/a suposto/a identidade relacionada à recepção do filme. Esse
modo de ver os objetos de pesquisa é indicado para aqueles/as que queiram se
arriscar nas zonas fronteiriças e intencionem refletir, de modo crítico, sobre para
quem e o que é apresentado ao público.
Retomamos aqui à tríade: meio ambiente, cultura e gênero, já que a proposta
da pesquisa é investigar a construção de culturas no filme, precisamente, a cultura
de preservação do meio ambiente, a consciência ecológica, por parte dos indivíduos.
Acreditamos que a temática é uma importante reflexão, tanto no âmbito acadêmico,
como no espaço social, afinal, para que pesquisar sem que o nosso ser seja tomado
de reflexões, indagações e ações? Queremos que a pesquisa motive criticidade por
parte do tema, que ela cause desconforto e ação no/a leitor/a, mas, principalmente,
que haja um cinema consciente pelos/as receptores/as para com os filmes, assim a
leitura e o olhar depositado sobre uma obra cinematográfica não sejam mais os
mesmos - como forma de entretenimento - mas que o filme seja visto como um
artefato educativo, capaz de transformar ações, pensamentos e pessoas.
Concordamos que os indivíduos possuem suas próprias maneiras intelectuais
de enfrentar as formas culturais hegemônicas e trazer à tona outros movimentos e
perspectivas de ser e estar no mundo. É nesse eixo que vislumbramos uma urgência
na discussão sobre o meio ambiente exibido pela mídia, mas também o modo como
os seres humanos agem para preservá-lo. Nas palavras de Guimarães (2012, p.
221), “[a]ssistimos, hoje, a uma imensa proliferação de artefatos que nos colocam
em contato cotidiano com o dispositivo da sustentabilidade [...]”, o que, segundo o
autor, se faz indispensável o exercício da pesquisa e da reflexão acerca da temática.
Investigamos as pedagogias culturais que o filme propõe e observamos o
modo que ele aproxima o/a espectador/a da consciência ecológica. Contudo, o que
significa ser consciente ecologicamente? Para Lima (1998, p. 139), o fenômeno
dessa consciência implica em um indivíduo compreensível e sensível da degradação
ambiental, que saiba as consequências que ela pode trazer para o espaço de
sociabilidade e para a qualidade de vida. Isso permite obter a compreensão de que a
consciência ecológica ultrapassa a dimensão de que ela é apenas uma ideia ou
teoria, mas permite observar que é um modo de estar no mundo, uma vez que ter
consciência ecológica é ser capaz de compreender o espaço de forma holística,
humana, sensível, social.
Classificamos consciência como um atributo pelo qual o sujeito pode
visualizar - e julgar - sua própria realidade e ecológica como as “relações entre os
seres vivos e o meio onde vivem, e de recíprocas influências” (FERREIRA, 2010, p.
193). Com base nessas definições, investigamos se o filme apresenta a consciência
ecológica através das culturas exibidas no cinema, já que entendemos que não há
apenas uma cultura disponível, e elas não podem ser hierarquizadas entre altas e
baixas.
Cultura transmuta-se de um conceito impregnado de distinção, hierarquia e
elitismos segregacionistas para um outro eixo de significados em que se
abre um amplo leque de sentidos cambiantes e versáteis. Cultura deixa,
gradativamente, de ser domínio exclusivo da erudição, da tradição literária e
artística, de padrões estéticos elitizados e passa a contemplar, também, o
gosto das multidões (COSTA, SILVEIRA E SOMMER, 2003, p. 36).
Portanto, investigamos quais culturas são possíveis de serem visualizadas no
referido filme como forma de repensar a educação ambiental que temos acesso por
meio do cinema. Assim, o filme pode ser uma pedagogia no processo da formação
da consciência ecológica, por isso estudar o meio ambiente na obra cinematográfica
traz uma ótica pertinente do assunto que tem como ótica os Estudos Culturais, o
qual, segundo Kellner (2001, p. 42), é um operador interdisciplinar de teorias, que
permite
a
ultrapassagem
mídia/cultura/comunicação
de
são
fronteiras.
intimamente
Ainda
o
autor
interligados
e
argumenta
que
“[n]ão
que
há
comunicação sem cultura e não há cultura sem comunicação” (KELLNER, 2001, p.
53).
Ainda sobre o método escolhido, sublinhamos que o Modo de Endereçamento
é uma coisa de cinema e uma coisa de educação também8, pois o filme pode educar
(ou deseducar) ao exibir sua mensagem e ao sugerir formas de ser e/ou ver o
mundo aos/às espectadores/as. Wortmann (2005) analisa que na
relação entre educação e cinema, os textos convocam ou interpelam os (as)
leitores(as), levando-os(as) a adotar, nem que seja apenas de forma
imaginária e temporariamente, alguns interesses sociais, políticos e
econômicos que funcionam como condições para que o conhecimento se
processe (WORTMANN, 2005, p.49).
Além do meio ambiente como tema central e norteador do filme, os seus
personagens não foram escolhidos aleatoriamente, mas sim intencionalmente,
encarregados de disseminar ideais. Nesse âmbito, é possível visualizar o quanto é
importante à pesquisa a marca cultural do gênero, já que a personagem principal do
nosso objeto de estudo é interpretada pela Julia Roberts, atriz de significativa
influência e história cinematográfica, que pode ser vista como parâmetro, modelo de
estilo, conduta e comportamento da mulher contemporânea.
Esse outro eixo de pesquisa foi instigado pela nossa inquietação pessoal, já
que estudar o gênero e a representação da mulher na sociedade e nos meios de
comunicação, é outro assunto tão pertinente – e discutido atualmente - quanto o
meio ambiente, pois há muitos debates acerca da temática. Debates os quais são
substanciados por tabus, formas hegemônicas, culturais, ideias e discursos
estereotipados, mas também emancipatórios. Ainda há muitos pontos para serem
debatidos socialmente e culturalmente e, nessa pesquisa, debatemos alguns que
rondam, constroem e descontroem o papel da mulher. Para Nicholson (1999), “a
8
Título do capítulo que aqui nos respaldamos, que faz parte do livro “Nunca fomos humanos – nos
rastros do sujeito” (2001). A autora traz que o Modo de Endereçamento além de ser uma coisa criada
pelos teóricos de cinema, é uma questão que também faz intercâmbio com a educação e não fica
imune dessas discussões cognitivas.
sociedade forma não só a personalidade e o comportamento, mas também as
maneiras como o corpo aparece” (NICHOLSON, 1999, p. 01).
É nessa discussão que, ainda, acreditamos que a atriz Julia Roberts possui
uma imagem construída socialmente de bela mulher. Também, em outros filmes
hollywoodianos, a atriz foi sinônimo de atributos físicos, capazes de colaborar com a
conquista dos objetivos de suas personagens. Entretanto, no filme Erin Brockovich –
uma mulher de talento, Julia Roberts não é, apenas, uma bela mulher, mas uma
trabalhadora, mãe, impulsionada a contribuir com a justiça de uma população
marginalizada pelas doenças causadas pela poluição do meio ambiente em que está
inserida. Contudo, não queremos reforçar estereótipos, pois
[s]eria preconceituoso dizer, por exemplo, que a relação entre gênero e
meio ambiente se dá fundamentalmente porque as mulheres são mais
sensíveis, são mais cuidadosas com o meio ambiente e preocupam-se mais
com a natureza do que os homens, como se preocupam mais com os
afazeres domésticos. Isso seria reforçar estereótipos em relação ao papel
da mulher” (GADOTTI, 2005, p.7).
Portanto, a hipótese de pesquisa é que o referido filme desconstrói o papel da
mulher na sociedade e a exibe como ponto de partida para a consciência ambiental.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Intitulamos de considerações iniciais parte do corpo do texto, pois
consideramos que não há um esgotamento da análise. A pesquisa é uma
metamorfose, “a verdade é sempre aproximada e provisória” (SANTOS, 2002, p. 81).
Até mesmo nós, quando nos debruçarmos novamente sobre esse objeto, em algum
outro
momento,
teremos
olhares,
reflexões,
considerações
e
indagações
discrepantes sobre o filme, sobre a problemática, sobre as teorias. É impossível
oferecer afirmações conclusivas, pois não existem verdades.
Contudo, gênero, meio ambiente e cultura podem ser vistos como uma tríade
ou triangulação e as discussões deste artigo
combina simetria e substância com uma infinitiva variedade de formatos, de
substâncias, de transmutações (...) Os cristais crescem, mudam, alteram-se
(...) Cristais são prismas que refletem externalidade e refratam-se dentro de
si mesmos, criando diferentes cores, padrões, exibições, que se lançam em
diferentes direções (RICHARDSON apud DENZIN; LINCOLN, 2006, p.19).
A análise traz nosso ponto de vista com o respaldo, com a ótica, dos/as
autores/as em que nos inspiramos, compreendemos, apreendemos e refletimos.
Esse artigo é um cristal transmutado, que poderá sofrer variações conforme cada
particularidade do/a pesquisador/a, conforme cada viés depositado sobre ele. O
cristal aqui não é fixo e permite que a lapidação seja feita em diferentes direções e
campos interdisciplinares, afinal, a pesquisa qualitativa é por si só uma travessia em
termos, conceitos e suposições.
Nosso objeto de análise - o filme - começa com Erin (Julia Roberts) sendo
ferida em um acidente de trânsito, no qual um médico cruza a sua preferencial, e ela
o processa. Cena que nos possibilita observar a marca cultural entre dominação
social e a resistência sendo delineada, já que a narrativa fílmica começa com a
personagem sendo injustiçada pelo poder penal, já que o “dominante” é um médico
e ela, a princípio, era somente uma mulher, pobre, desempregada, divorciada de
dois maridos e com três filhos diante de uma sociedade hegemônica, construída por
opressores e oprimidos. Contudo, essa foi apenas uma das inúmeras vezes em que
a estrutura de dominação foi demonstrada no filme, pois diante do enredo, acontece
luta e resistência contra a dominação.
Kellner (2001) baliza que essa dominação é “[c]oncebida como um conjunto
hierárquico e antagonista de relações sociais caracterizadas pela opressão de
classes, sexos, raças, etnias [...]” (KELLNER, 2001, p.48). No caso de Erin
Brockovich, é perceptível que isso aconteça pela questão de gênero, cultura e
classe social a qual ela pertence.
Contudo, com o seu discurso no tribunal é notável que Erin tem em sua
ideologia a cidadania: “Eu só queria ser uma boa mãe, uma boa pessoa, uma cidadã
descente e poder cuidar dos meus filhos. Só isso”. Pelo discurso da personagem é
possível notar que Erin é uma pessoa que possui consciência ecológica, uma vez
que a cidadania, entender sobre o mundo a sua volta, é um modo de cuidar de um
patrimônio coletivo, é um modo de ter consciência. Para Lima (1998), o
raciocínio análogo desenvolvemos no tocante à relação entre cidadania e
consciência ecológica. Nesse sentido, as mentalidades tenderão a avançar
à medida que se perceba o ambiente como um direito político, relacionado à
qualidade de vida e ao usufruto de um patrimônio público comum (LIMA,
1998, p. 148).
Com a declaração, é possível visualizar o primeiro resquício de que Erin é
crítica e se acha no direito de usufruir dos direitos civis e políticos do Estado. Ela se
posiciona como cidadã. Na continuação do filme, após Erin perder a causa, o
advogado decide dar-lhe uma chance no escritório de advocacia, no qual ela vai
trabalhar como auxiliar no setor de arquivos. Por meio desse emprego, a
personagem se interessa por documentos arquivados no escritório e se intriga com
laudos médicos e propostas imobiliárias anexadas junto aos papéis dos processos.
Assim, ela decide investigar de forma mais profunda aqueles documentos e segue à
residência de uma das clientes que estava no processo e descobre, por meio de
questionamentos, que ela tem vários tumores. Por meio do diálogo, a moradora
confessa que aPacific Gas and Electric(PG&E)9 tem sempre fornecido um médico,
às suas próprias custas. Erin pergunta por que eles fariam isso e a personagem
responde: "por causa do cromo".
Partindo desse comentário, Erin começa escavar o caso e encontra
evidências de que a água subterrânea em Hinkley10 está contaminada com cromo
hexavalente, que tem ação cancerígena, mas a PG&E tem dito aos residentes que
eles usam uma forma mais segura de cromo. Erin conversa com os/as moradores/as
da região, pedindo para deixá-la fazer mais pesquisas e assim ganha a confiança de
muitos residentes que moram entorno da empresa. Com as suas investigações, ela
encontra muitos casos de tumores e outros problemas médicos nas redondezas e o
que mais a intriga é que todos os/as moradores/as da região têm sido tratados/as
pelos médicos da PG&E. O que parecia uma mera coincidência, para Erin não passa
de vestígios de opressão.
Lima (1998) defende que
o processo de conscientização da crise ambiental e a deflagração de ações
para combatê-la, enfrenta um conjunto de fenômenos que funcionam como
obstáculos à seu crescimento e realização. Entre esses fatores podem ser
elencados: os interesses político-econômicos dos grupos socialmente
hegemônicos, o tipo de ética predominante na sociedade capitalista
indústria, [...] (LIMA, 1998, p.143).
Por muitas vezes, as empresas, principalmente, aquelas que poluem, ficam
reféns ao sistema capitalista, preferindo cuidar dos lucros, diminuindo custos, sem
9
PG&E é uma empresa (companhia de energia e gás) que faz parte do enredo do filme, como
poluidora.
10
Cidade em que se passa o filme.
olhar o impacto socioambiental que certas ações podem causar. É como o filme
apresenta - a empresa usou uma substância indevida para evitar a corrosão das
engrenagens do bombeamento, pois ferrugem significa manutenção e prejuízo e
prejuízo significa diminuir os lucros e o lucro é o que move as empresas. Com essa
ação imprópria, a substância afetou a água e o solo da região da empresa,
comprometendo a saúde de muitos/as moradores/as do entorno.
Para se certificar sobre o que realmente significa o cromo hexavalente e suas
implicâncias, Erin procura a universidade da cidade e conversa com um professor de
química. A personagem não se contentou apenas com os depoimentos dos/as
moradores/as, afinal ela interligou os fatos e desconfiou daquilo que os/as
moradores/as achavam normal e buscou a experiência e conhecimento de um
discurso científico. Ela se porta como uma pessoa crítica, capaz de questionar e
avaliar a sua realidade.
O filme transmite nessa cena um incentivo para o senso crítico dos/as
telespectadores/as. Essa referência de como agir e ver o mundo pode instigar os/as
receptores/as do filme a sempre buscarem referências mais profundas e
esclarecimentos dos seus problemas sociais e até mesmo pessoais. Esse
posicionamento de Erin diante do meio ambiente é uma das formas que as
propostas pedagógicas elencam como chave no processo de mudança de
mentalidade. “a) crítica – que exercita a capacidade de questionar a avaliar a
realidade socioambiental; b) multidimensional – que pauta sua compreensão dos
fatos na integração dos diversos aspectos da realidade” (LIMA, 1998, p.148).
A pedagogia cultural identificada no filme revela que a personagem pode
servir como fonte de inspiração para a busca pela informação. Contudo, como
Ellsworth (2001) aponta, os/as telespectadores/as têm abstrações diferentes e a
mesma cena pode passar despercebida ou então não ser uma pedagogia para
certos indivíduos. Afinal, como campo de luta, a cultura também oferece espaço
para resistência, confronto e discussão, não precisa ser objeto de aceitação e/ou
adoção (SABAT, 2001).
No filme, as pessoas afetadas pela poluição da água, em um primeiro
momento, não acreditavam no contágio que Erin visualizava e nem mesmo na
possibilidade de que a empresa poderia ter afetado o meio ambiente. Em uma cena,
o advogado da PG&E argumentou, em uma das reuniões, que os sintomas das
pessoas afetadas pela poluição não têm a ver com a água e que os problemas de
saúde dos indivíduos poderiam ser oriundos de: “Fase de azar na saúde, dieta
pobre, genes ruins, estilo de vida irresponsável”.
Relacionamos este trecho às lutas de classes, percebemos que há um
discurso pretencioso e preconceituoso para com os marginalizados, já que há
discriminação, um julgamento de valor, no qual se supõe que ser pobre, é comer
mal, é ter genética ruim e ainda, ser pobre é ser descuidado, inconsciente. Esse
discurso vai contra os pressupostos que defendemos neste texto, uma vez que
separa a sociedade entre alta, baixa, melhores e piores, subjugando a minoria à
marginalização, em que ser pobre é ter um estilo de vida, uma cultura inferior, pior e
imprudente.
Essa é a visão particular de um personagem masculino, branco, com
escolaridade superior e que, segundo o filme, aparentemente pertencente a uma
classe com poder aquisitivo considerável. Apesar do discurso desse personagem ser
carregado de pré-conceitos, essa é a realidade que ele, o advogado, convive, são os
seus paradigmas permeados pela sua cultura em que a poluição do meio ambiente
não é capaz de interferir na saúde dos indivíduos. E, como Hall (1992) defende, os
indivíduos agem conforme a sua realidade e a sua cultura, assim a classe não é o
único dispositivo capaz de direcionar os interesses, ou seja, esse modo do
advogado pensar, agir e ver o mundo foi interpelado por vários fatores e também
pelo seu “jogo de identidades”. Hall (1992) define que cada indivíduo se posiciona
pela identidade que mais prevalece naquele momento, naquela situação.
Nessa cena, analisamos que os/as telespectadores/as pobres rejeitaram o
discurso do personagem e a identidade deles/as, de classe social menos privilegiada
pelo dinheiro, foi a que prevaleceu. Como a identidade não é fixa, outros indivíduos,
hipoteticamente negros, também podem se posicionar contra o advogado por ele ser
branco e rico, os brancos com posições relativistas podem se posicionar contra ele
apenas pelo seu discurso. Ou, então, as identidades dos ricos e brancos concordam
com o discurso do personagem, mas podem não concordar que isso foi dito por um
advogado (HALL, 1992).
É válido ressaltar que as análises são suposições e outro/a leitor/a poderá ter
o seu próprio posicionamento de acordo com a sua identidade prevalecente nesse
momento, de acordo com a sua relação interna/externa, cultural e social. Também,
salientamos que “o espectador ou a espectadora nunca é, apenas ou totalmente,
quem o filme pensa que ele ou ela é” (ELLSWORTH, 2001, p.20). Assim esses/as
supostos/as telespectadores/as e posicionamento são mutáveis.
Em contrapartida, em defesa dos oprimidos, existe a Erin, a qual exerce uma
pedagogia do herói, que Fabris (2014) define como “[u]m homem dotado de
características específicas ao qual se atribui poder extraordinário pelos seus efeitos
guerreiros, seu valor, sua bondade, etc. No feminino, o equivalente a heroína”. Com
isso, é possível notar que o filme traz marcas culturais de como é ser uma mulher,
mãe, cidadã impulsionada a lutar por uma causa coletiva que nem mesmo a afeta.
O filme exibe uma personagem que abre mão dos filhos e do namorado para
lutar por uma causa social, trazendo para a personagem uma identidade com
personalidade e bondade. E apresenta pedagogias culturais que, para ser uma
mulher de garra, não basta cuidar dos filhos sozinha, trabalhar e ser bela, no que se
refere ao padrão culturalmente construído, mas tem que lutar por causas sociais,
pelo bem da coletividade, tem que ter consciência ecológica e ser cidadã, já que o
filme ensina uns dos modos de ser mulher, mulher heroína e pode servir de padrão
para quem quer ter o mesmo reconhecimento de Erin: ser heroína.
Por outro lado, é possível identificar trechos no filme em que ser heroína não
basta, pois a narrativa leva a repensar o papel de ser mulher, cidadã e mãe. Di
Ciommo afirma que “a participação das mulheres na cultura através do trabalho não
modificou a estrutura da dominação” (DI CIOMMO, 2003, p.427), isto é, mesmo Erin
indo para o mercado de trabalho, lutando por causas sociais, mesmo sendo
consciente, o seu papel “fundamental” imposto pela cultura é de ser mãe, é de
exercer esse papel com fidelidade às crenças e paradigmas pré-impostos.
A narrativa aponta a grande e heróica mulher que Erin é ao mesmo tempo em
que lembra suas funções principais: zelar, cuidar, dar atenção aos filhos etc. Em
duas cenas é possível perceber essa cobrança de ser mãe.
A primeira é de quando um dos seus filhos se revolta e não quer comer, pois
a Erin não poderia estar presente no jantar. E a outra é quando a sua filha menor diz
a primeira palavra e Erin não está presente nesse momento, pois se encontra em
uma viagem de trabalho e recebe a notícia por telefone. Ela chora. Nesse momento,
que pode até passar imperceptível ou subentendido é possível notar a cobrança por
ser uma mulher heroína, cobrança por ser uma mulher que foi para o mercado de
trabalho e deixou o lar, mesmo que temporariamente.
Essa cultura maternal exibida no filme pode ser vista, por supostas
telespectadoras mães, que não foram para o mercado de trabalho, como uma cena
confortante para a sua escolha de cuidar dos filhos e ser dona de casa. Pode servir
de exemplo apoiador para aquelas que não imaginariam ficar uma noite sem ver os
filhos em detrimento do trabalho. Para outras possíveis telespectadoras, a cena
poderia ser pedagógica no sentido de não ter um filho até ter estabilidade
trabalhista. Ou para outras mulheres, como a de não ter filho, para não passar por
essa experiência de sofrer longe deles.
Sugerimos, ainda, que existam telespectadores/as que não se vêem
representados/as pela cena, para eles/as, a referida cena nada representa. Essa
variação de identidades, entendimento e possíveis posicionamentos, dependem da
relação, interligação, que a telespectadora tem com a sua psiqué, seu social e a sua
cultura. Cada uma dessas hipotéticas mulheres recebem a mensagem e a narrativa
da cena de um modo, de acordo com a sua realidade, não existindo a mulher que
fez a escolha certa ou a que fez a errada (ELLSWORTH, 2001).
Já Louro (2008), argumenta que os filmes tentam demonstrar que existe sim o
certo e o errado, pois esse tipo de artefato imposto no filme é difundido pelo final
feliz que “recompensava as mulheres que escolhiam certo, isto é, o lar, enquanto
que as outras, muitas vezes representadas como “masculinizadas”, duras e
amargas, terminavam sós e infelizes” (LOURO, 2008, p.83). Apesar do filme terminar
com um happy end para Erin, mesmo ela não seguindo os parâmetros, pode-se
visualizar que a mulher, partindo para outros horizontes, que não sejam os triviais,
lutando contra uma sociedade que tem crenças estabelecidas, ainda não consegue
vencer esse embate, essa luta de ser mulher.
Estar inserida no mercado de trabalho acarreta mais uma responsabilidade e
as demais, (de ser esposa, mãe etc.), não se desvincularam, mesmo dispondo de
uma vida que tome outros rumos, cravando novos entraves e resistindo aos
dominantes. O filme retratou e relatou a realidade de gênero na sociedade.
A obra cinematográfica ensina modos de resistências e de lutas, construindo,
educando e preparando o/a telespectador/a para situações em que esse contexto
seja parecido. Podemos dizer que trazer esse enfrentamento feminino para o filme é
uma conquista, quando comparado a obras hollywoodianas que insistem em trazer a
mulher como submissas e passíveis das relações de poder em que elas são
minorias. Para Ellsworth (2001), essa
[r]esistência é não apenas interessante, mas necessária à maior parte dos
projetos políticos da teoria do cinema, os estudos de recepção tendem a se
concentrar nos assim chamados espectadores marginais ou subculturais
(ELLSWORTH, 2001, p. 12).
A autora reforça o cinema como promotor de questões e enfrentamentos
hegemônicos para que os/as telespectadores/as dos filmes se posicionem diante da
cena e tenham criticidade, para que possam ver o filme como uma arma propulsora
de mudanças e comportamentos. Ancoradas nos pressupostos de Ellsworth (2001),
supomos a existência de uma telespectadora que, ao ver a cena, poderá se
identificar com a personagem e com seus atos. Ela também poderá ter a Erin como
o parâmetro para agir em situações futuras ou então repudiar seus atos e achar
“abusados demais”.
Essas variações podem ser vistas por uma feminista como uma luta vencida,
como um espaço feminino, mesmo que ainda pequeno, mas conquistado. Para um
machista, o filme mostrar uma mulher independente como Erin é uma afronta ao seu
conservadorismo patriarcal. Ou seja, um suposto telespectador poderá observar a
cena e resistir àquela luta e reforçar estereótipos. Ellsworth complementa que “[o]s
públicos não são todos iguais e que os diferentes públicos fazem leituras diferentes
e extraem prazeres diferentes, e muitas vezes opostos, do mesmo filme”
(ELLSWORTH, 2001, p. 33). Assim, as identidades assumem papéis dominantes
conforme as ideologias de cada um/a, conforme as identidades.
A personagem Erin é exibida, no filme, como uma profissional de talento –
inclusive levando à ideia ao título do longa – mas, ela também chamava a atenção,
no escritório de advocacia, pelas roupas, as quais incomodavam as pessoas do
escritório, como se fosse impróprio, vulgar ou anti-profissional. Em uma das cenas, o
advogado dono do escritório em que ela trabalha disse: “você tem que repensar no
seu guarda roupa, pois as meninas do escritório ficam desconfortáveis com a sua
vestimenta”. Essa fala confirma o quanto ainda existe o “vestir-se certo”,
“comportada” e “apropriada” para determinadas ocasiões. Isso é: a mulher não pode
se vestir de forma livre, mas tem que pensar em situações, no que pode e não pode
usar. Não bastava Erin investigar, não bastava pesquisar provas, não bastava lutar
pelos direitos dos marginalizados. Ela precisa estar vestida adequadamente. É como
se escolha de suas roupas interferissem na visão que as outras pessoas têm para
com o seu trabalho, ou seja, roupa curta era sinônimo de irresponsabilidade com o
trabalho.
O filme, após 14 anos de sua estreia, continua atual, já que ele representa
que essa realidade ainda não mudou. Mesmo as mulheres conquistando outros
espaços sociais e culturais no mercado de trabalho, dentro da família, no poder de
decisão, na independência financeira entre outros campos, ainda existem culturas
que discriminam pela aparência com base em padrões culturais construídos.
Wortmann (2005, p. 63) analisa que o estereótipo “é só a metade da história.
A outra metade – significado profundo – reside no que não é dito, mas é fantasiado,
no que está implícito, mas não pode ser mostrado”. Essa afirmação remete àquilo
que vemos e classificamos como um fragmento da realidade. Vivemos em uma
cultura que valoriza muito a imagem, mas não o conteúdo e Erin, mesmo em seu
papel, também sofre desse preconceito.
As identidades assumidas para essa cena são dezenas e as pedagogias
variam para cada indivíduo. A cena também pode ser inspiradora para aquelas
mulheres que querem cravar embates em seus trabalhos, porém como Ellsworth
(2001) certifica que os/as telespectadores/as assumem posições de acordo com a
sua experiência “do lado de dentro” e “do lado de fora” e algumas identidades
também podem tomar essa cena como inspiradoras.
Erin Brockovich teve um papel fundamental na luta contra a poluição naquela
cidade, seja no cinema ou fora dele, pois a empresa é uma grande corporação e não
houve receio de enfrentamento a ideia proposta por uma maioria.
De acordo com o filme, a empresa, a todo o momento, tentou ocultar a sua
poluição do solo e, consequentemente, da água da região. Primeiro, tentou comprar
as propriedades no entorno da empresa, depois, pagou médicos para os moradores
e ainda continuou com a calúnia que o cromo que eles usavam não era maléfico
para a saúde humana. A empresa, representada pelo advogado, negava as
acusações, nunca reconhecendo e assumindo seus atos. Essas ações da empresa
foram
superficiais sem tocar nas reais causas que originam os problemas socioambientais [...] Assim, os homens ocupam posições sociais diferentes, e se
relacionam com a natureza e o ambiente diversamente (LIMA, 1998, p.149).
É perceptível que a cultura empresarial é individualista, que se comporta com
“interesses divergentes entre os vários grupos sociais, dentre os quais aqueles em
posição hegemônica decidem os rumos sociais e os impões ao restante da
sociedade” (LIMA, 1998, p.140).
O caso da PG&E, empresa do filme, é possível visualizar, de um lado, os/as
interessados/as na transformação das relações entre sociedade e natureza e de
outro(os/as) interessados/as na conservação da sociedade capitalista industrial e, no
centro, encontra-se os/as prejudicados/as por essa luta: todos/as os/as cidadãos/as.
O filme tem um final feliz e termina com um acordo de 333 milhões de dólares de
indenizações para as vítimas da comunidade, em virtude da responsabilidade civil
por dano ambiental e corporal causados.
CONSIDERAÇÕES PARA UM CINEMA CONSCIENTE
Ao longo do artigo, foi trabalhada a hipótese que o filme poderia mudar e
instigar a consciência ecológica dos indivíduos. Diante disso, é possível afirmar que
sim, o filme Erin Brockovich – uma mulher de talento pode ser visto como um
produtor de conhecimento, uma pedagogia cultural, um instrumento instigante para
fomentar a consciência ecológica. É possível adquirir uma nova visão de ser, agir e
pensar o meio ambiente a partir do filme.
Contudo, os filmes não devem ser vistos como objeto de dominação quando
causa aceitação sem reflexão, mas ainda existe a chance do/a receptor/a resistir ao
enredo do filme, pois não acredita na consciência ecológica. Outra hipótese de
leitura do filme é a aceitação parcial diante do/a receptor/a – ele/a acredita na
consciência ecológica, mas não age, não muda seus atos, o filme não muda
percepções.
Em resposta a nossa problemática: Quais formas culturais de preservação do
meio ambiente são exibidas no filme? Elencamos três formas culturais:
– A cultura empresarial de não assumir e camuflar os seus atos. A sua cultura
capitalista e individualista de não pensar o meio ambiente como um bem comum.
Uma cultura que acha que a poluição não é capaz de afetar dramaticamente muitas
vidas e muitos sujeitos;
– A cultura de Erin Brockovich, consciente do meio ambiente e disposta a
ajudar o meio em que ela convive, mesmo não a afetando;
– A cultura dos/as marginalizados/as e afetados/as que não tinham o mesmo
senso crítico e analítico de Erin em interligar os fatos de saúde com a poluição. Não
imaginavam, não pesquisaram.
O filme reforça que agir ecologicamente é como uma gota no oceano, mas
que tal ação pode servir de exemplo para que outras pessoas comecem a criar a
consciência ecológica. Somente a ação coletiva e a mobilização social conseguem
fazer diferença e o filme serve de ponto de partida para que mais pessoas possam
ter criticidade e consciência do seu entorno. O filme ensina um modo de ver, ser e
pensar o meio ambiente. É no jogo de imagens, textos e enredos que os filmes são
capazes de construir a subjetividade. É por esse motivo que os filmes são
produtores de conhecimento, pois nos oferecem representações da realidade, que,
muitas vezes, servem de referência para atitudes e reflexões.
Contudo, as pessoas são capazes de refletir, os indivíduos podem ser
críticos. Não existe manipulação, existem sugestões, propostas, recomendações.
Isso afirma que o poder pode ser quebrado e que o conflito, a não passividade, a
não aceitação e a luta entre dominantes e dominados pode determinar a resistência
e a criticidade da minoria oprimida, como o próprio filme exibe em seu enredo.
CULTURAL PERSPECTIVES ABOUT GENDER AND ENVIRONMENT ON THE FILM ERIN
BROCKOVICH – A TALENTED WOMAN
ABSTRACT
The article is the result of discussions of the Research Group "Formation of ecological
consciousness in a multidisciplinary perspective", Faculdade Metropolitana de Maringá
(FAMMA) aims to analyze how the environment is portrayed in the film by problematic: What
cultural forms of environmental preservation are shown in the film? Our theoretical
framework is linked to Cultural Studies, which favors particular looks and approximate truths,
but never crystallized. We analyze how the film may or may not enhance and / or create
environmental awareness through their characters. As the leading actress is a woman, we
question gender and culture. If movies are considered cultural pedagogies, it is extremely
important to analyze the way of seeing, thinking and be displayed as it is in this game
images, texts and plots that cinema, among other means, are able to contribute to the
construction of subjectivity human. We consider that the films offer in representations of
reality, which often serve as reference for attitudes and reflections. In our analysis, we see
the strengthening of the idea that act ecologically is like a drop in the ocean, but it can serve
as an example for others to start creating environmental awareness.
Keywords: Film. Cultural pedagogies. Ecological awareness.
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Recebido em 09 de março de 2015
Aceito em 25 de maio de 2015

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