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MEMÓRIA, IDENTIDADE, TERRITÓRIO: A FICÇÃO COMO MONUMENTO NEGATIVO1 Rogério LIMA2 RESUMO: Neste artigo faço o relato de uma etapa da minha pesquisa pós-doutoral sobre a relação entre ficção e pós-ditadura. Do conceito de anti-monumento presente na obra de Jochen Gerz, artista alemão, desenvolvi a seguinte tese: a obra de arte literária pós-ditadura pode ser lida como um monumento negativo. PALAVRAS-CHAVE: Literatura e memória, Literatura sul-americana, Ficção e pós-ditadura Pretendo fazer aqui um breve relato dos meus interesses na pesquisa em Letras, particularmente sobre a pesquisa realizada no âmbito do meu Estágio Sênior no Exterior, patrocinada pela CAPES, na Universidade de Rennes 2, junto à equipe ERIMIT, com a colaboração dos professores Rita Godet e Nestor Ponce. No período de setembro de 2012 a agosto de 2013 trabalhei junto à Equipe de Recherches Interlangues “Mémoires, Identités, Territoires”/Université Rennes 2/Département de Portugais ERIMIT, em Rennes 2, com o suporte da CAPES, por meio do seu programa Estágio Sênior no Exterior, destinado a pesquisadores com mais de 8 anos de doutoramento. Ao longo deste período desenvolvi pesquisa voltada para a relação existente entre literatura, memória e ficção pós-ditadura. Trabalhei com obras dos autores brasileiros 1 Este artigo é parte da pesquisa pós-doutoral intitulada A transgressão das fronteiras e do território das formas narrativas contemporâneas na memorialística ficcional pós-ditadura na América Latina: Mercado, Fernandes, Manguel, Coelho, realizada durante Estágio Sênior no Exterior com bolsa concedida pela CAPES, no período setembro 2012 a agosto 2013, junto à equipe PRIPLAP/ERIMIT, Université Rennes 2, França. 2 Universidade de Brasília, Campus Darcy Ribeiro, Departamento de Teoria Literária e Literaturas. Brasília – DF, Brasil, CEP 70900-910. [email protected] GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 300 Ronaldo Costa Fernandes e Teixeira Coelho, e dos argentinos Alberto Manguel e Tununa Mercado. O problema: Inicialmente, o problema proposto na pesquisa estava circunscrito à seguinte questão: Quais os elementos que a partir dos anos 1990, restaurado o regime democrático no continente sulamericano, levaram ao surgimento e à configuração estética de uma literatura memorialística pós-ditatorial na América Latina? Hipóteses: As hipóteses com as quais tenho trabalhado para orientar as investigações propostas nesse estudo sobre a ficção pós-ditatorial latino-americana são as seguintes: a) Os processos de revisão histórica e jurídica envolvendo atos cometidos pelos agentes dos Estados autoritários latino-americanos abriram caminho para a interação e interlocução entre memória individual e a memória coletiva. b) O surgimento da memorialística pós-ditadura no Brasil representa uma reação silenciosa contra a patrimonialização da memória, contra a memória institucionalizada do discurso de poder vigente, seus símbolos, sua influência sobre a memória individual e seu reflexo sobre a narrativa. c) A narrativa pós-ditatorial promove a confrontação das memórias. Estimula práticas de memória e de esquecimento. Favorece o discurso dissidente contra os abusos da memória, a denúncia dos “assassinos da memória”, o silêncio, a amnésia, os “graus” de esquecimento e o esquecimento seletivo. Objetivo: O objetivo estabelecido para a etapa inicial da pesquisa era: Refletir sobre as formas e estruturas de construção estética da memorialística ficcional pós-ditatorial da América Latina, no âmbito do MERCOSUL, especificamente na produção ficcional de dois GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 301 autores brasileiros e argentinos, e sobre os temas abordados por ela: a memória dos estados de exceção; o exílio latino-americano e transatlântico, o sentimento de pertencimento patriótico; o afastamento de forma hostil da nação, a fragmentação da identidade; a dificuldade de inserção numa nova cultura e a convivência com a melancolia, recordações dolorosas e ressentimentos, que surgem sob a forma de fragmentos, restos narrativos irreconciliáveis. A Meta: A meta de desenvolvimento da pesquisa era elaborar uma análise crítico-teórica e terminológica de um segmento da cultura literária latino-americana, em particular da literatura produzida no Brasil e Argentina, pelos quatro autores elencados na nossa proposta de estudo. Faríamos isso tomando como ponto de partida o acervo do pensamento crítico-cultural da própria América Latina, num esforço para construir uma crítica original; centrada nas relações culturais SulSul. Para a realização dessa empreitada investigativa contavamos com a colaboração de colegas pesquisadores situados em centros de pesquisa europeus, valorizando as já históricas trocas intelectuais e científicas, transatlânticas, institucionais estabelecidas entre a Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Literatura, e a Universidade de Rennes 2, equipe PRIPLAP/ERIMIT. Objetivos Específicos: Como se tratava da realização de estudos avançados na área de Letras sob a temática geral “Pensar as Américas Latinas e suas representações estéticas em meio aos trânsitos culturais globais”. Especificamente, a proposta era executar um estudo sobre a memória ficcional pósditadura e suas representações estéticas na literatura sul-americana, com enfoque particular na produção ficcional dos autores brasileiros Ronaldo Costa Fernandes e Teixeira Coelho e argentinos Tununa Mercado e Alberto Manguel. Estes são quatro autores do chamado pós-boom da literatura latinoamericana dos anos 1970/1980. O pós-boom apresenta uma literatura GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 302 mais uma vez renovada, mais próxima do cotidiano, dos conflitos urbanos, das questões referentes às subjetividades emergentes e aos atores sociais do agora. No momento que segue ao luto pós-ditadura, dentre as características dessa nova ficção é possível atestar a ocorrência de: multiplicidade de modelos, a existência de um forte sentido de presente, a superação do trauma histórico, a revisão do moderno e a sintonia com as diversas mídias e formas narrativas do seu tempo. Para a sistematização do trabalho desdobrei a pesquisa em objetivos específicos que foram propostos da seguinte forma: A) Produzir uma análise crítica dos fundamentos alegados por produtores de textos (literários, teóricos, críticos) dos séculos XX e XXI sobre sua própria escrita chamada escrita memorialística pósditatorial latino-americana, considerando a perspectiva implícita e explícita que os escritores produzem sobre sua própria escritura em suas respectivas obras; a perspectiva de críticos e teóricos sobre a produção literária destes escritores; a perspectiva de críticos e teóricos sobre a produção de crítica e teoria, a fim de discutir a emergência de novos sentidos sobre o contexto e as bases materiais em que se configura esta produção. B) Estudar a ficção de temática pós-ditatorial dos escritores sulamericanos Ronaldo Costa Fernandes, Um homem é muito pouco; Teixeira Coelho, História natural da ditadura; Tununa Mercado, Estado de memória, e Alberto Manguel, Todos os homens são mentirosos. C) Investigar o fato de os autores latino-americanos contemporâneos, diferentemente de importantes ficcionistas dos anos 1970/1980 da mesma região, não se sentirem seguros em relação a nada e não acreditarem mais que o escritor possa vir a ser a voz daqueles que não têm voz ou a testemunha privilegiada de seus sonhos. D) Pensar sobre as estratégias de incorporação e interação de discursos artístico-culturais narrativos não-literários aos processos de construção da ficção: tais como a política, a moda, a filosofia, a fotografia, o cinema, as artes de forma geral. Método de realização dos estudos: GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 303 Quanto à natureza: A metodologia adotada no estudo proposto foi o da Pesquisa Básica (leitura, análise e escrita): objetivando gerar conhecimentos e pontos de vista novos, aplicáveis ao entendimento da produção literária latinoamericana contemporânea, e que viessem a também contribuir para o avanço dos Estudos Literários no Brasil e para a abertura de novas linhas de pesquisa e/ou o fortalecimento de linhas já existentes, de relevância para o desenvolvimento da área de Letras no país. Quanto à forma de abordagem do tema: Como se trata de pesquisa descritiva onde o processo e seu significado são os focos principais de abordagem do problema proposto a pesquisa tem caráter Qualitativo: levando-se em consideração que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito produtor de literatura, ou seja, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em números. A interpretação do fenômeno literário e a atribuição de significados são básicos no estudo proposto, requerendo a adoção do processo de pesquisa qualitativa. Quanto aos objetivos: Quantos aos objetivos, trata-se de estudo avançado de caráter exploratório: visando proporcionar maior familiaridade com o problema proposto, com vistas a torná-lo explícito ou a construir hipóteses. Envolve levantamento bibliográfico; entrevistas com membros da equipe EREMIT que tiveram experiências práticas com a temática e/ou problema a ser pesquisado; análise de exemplos que estimulem a compreensão do problema proposto. Trata-se de pesquisa de caráter indutivo que assumiu a forma de Pesquisa Bibliográfica e de Estudo de caso. GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 304 Embasamento teórico: Tomando a perspectiva da crítica cultural como ponto de partida entendemos que a proposição teórica da crítica da cultura e da semiologia crítica serviria perfeitamente ao propósito da minha investigação que era o de buscar identificar quais são os processos criativos utilizados na elaboração da narrativa ficcional pós-ditadura sul-americana. O aporte teórico do qual fizemos uso ao longo do nosso estudo envolveu a integração e diálogo entre diversas áreas do conhecimento tais como a: semiologia crítica do texto literário, filosofia, economia, política, história, teoria literária, estudo das mídias. A pesquisa e seus desdobramentos: a ficção como monumento negativo No transcorrer da pesquisa, e devido a uma das vertentes de análise das obras estudadas e suas relações com diversas formas de manifestação artística, desenvolvi a tese de que as obras ficcionais estudadas pudessem vir a se configurarem como monumentos artísticos, mais precisamente como anti-monumentos ou monumentos negativos. A ideia da percepção e estudo da ficção como antimonumento ou monumento negativo teve seu início a partir do meu contato com a obra e os textos de Jochen Gerz, artista alemão que trabalha o tema das memórias de guerra e genocídio em sua obra. Ao tomar conhecimento do trabalho de Gerz percebi a relação entre a sua obra e a temática de pesquisa que eu estava desenvolvendo: formas de registro da dor e sofrimento gerados por acontecimentos políticos ao longo do século XX. Acredito que podemos pensar a ficção memorialística que trata de períodos ditatoriais como anti-monumentos ou monumentos negativos contra o sofrimento e a dor — propositadamente não utilizei a classificação romance para essas obras, devido às diversas características e métodos de construção ficcional utilizados nas diversas obras ficcionais que tratam do tema abordado na pesquisa. Passei a considerar essas obras de ficção como anti-monumentos literários por identificar nelas um princípio motivador: que é o de GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 305 manter viva a memória de tempos obscuros da história política recente da América do Sul, que permitiram a instalação de ditaduras militares com todas as suas consequências para o exercício dos direitos civis e das liberdades individuais. Essas obras são uma espécie de partilha de memórias de histórias de violências extremas cometidas pelos agentes dos Estados autoritários. São também memórias de ações de destruição de todas as espécies de vozes políticas discordantes: ações que se materializaram em extermínios, violência em massa, genocídios. O caráter antimonumental ou negativo que associei a elas se deve ao fator de que, devido às características e interesses culturais e políticos do tempo presente, elas tendem a desaparecer, a se tornarem invisíveis, caindo em total esquecimento. Atingindo uma “existência desaparecida”, a invisibilidade. O monumento A definição tradicional da palavra monumento é de obra de escultura ou arquitetura destinada a conservar a memória de uma pessoa, de um acontecimento histórico etc. Os monumentos se caracterizam por serem objetos tridimensionais em materiais sólidos e duráveis, construídos para preservar a memória coletiva. A obra monumental tem por finalidade poder ser vista por todos: visitantes e transeuntes. Este é um fator determinante da sua localização e das suas dimensões. Consagrado à lembrança de alguém ou a um fato histórico, o monumento está sempre em estreita ligação com aquilo que se comemora.3 A ideia do monumento e seu papel cultural, social e político estão em discussão, em diversos campos da arte, por diversos artistas e pensadores. Sobre estes sujeitos a historiadora Annette Becker e o antropólogo Octave Debary propõem a seguinte questão: se certas exposições, museus ou memoriais, que têm por definição serem lugares destinados à preservação da memória e portadores de uma 3 http://www5.ac-lille.fr/~clgflandres/HIDA/3HDA-APla-Monument.pdf, consulté le 15/10/2013. GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 306 missão pedagógica e cívica, pretendendo mostrar as violências extremas não estariam escondendo aquilo que eles pretendem revelar? Expor não seria somente mostrar, mas frequentemente seria também uma ação de velar/esconder. Trata-se menos de duvidar da intencionalidade de exposição do que interrogar seu poder, sua capacidade de desvelamento. Pretendendo mostrar, transmitir as violências extremas como as violências de guerra, afirmamos que é possível olhar para elas, vê-las; ver aquilo que paradoxalmente assinala o desaparecimento do olhar, a destruição dos indivíduos e por vezes dos lugares onde eles encontraram e viveram o seu sofrimento4. Na nossa pesquisa utilizamos para a obra literária de Teixeira Coelho, História natural da ditadura, — assim como para as outras obras ficcionais com as quais trabalhamos —, o conceito de antimonumento ou monumento negativo, que tomamos emprestado da definição do trabalho artístico de Jochen Gerz, feita por Annette Becker e Octave Dubary. Na obra de Gerz a monumentalidade é “a existência desaparecida” quase uma inexistência, é invisível. Gerz emprega seu tempo construindo “anti-monumentos”, fazendo desaparecer os objetos, os memoriais, os nomes, as questões. Tudo o que as nossas sociedade pretendem reter do passado ou guardar na memória, cultivar como lembrança, tudo o que elas pensam nos mostrar através da atestação de uma presença material, Gerz interroga de maneira inversa numa função de remexer o passado, um passado considerado “sob vigilância”5. Na sua obra 2.146 pavês, Monumento contra o racismo, Sarrebruck, 1988/1993, Gerz utilizou 2.146 pedras do piso da praça do parlamento da cidade de Sarrebruck, que foram “clandestinamente retirados para serem recolocados nos seus lugares, gravados cada um deles, em suas bases, com o nome de um cemitério judeu da Alemanha. Em seguida, a praça foi rebatizada com o nome de “Praça do monumento invisível”, uma vez que o trabalho de Gerz foi 4 BECKER A. ET DEBARY O., op. cit., p. 5. 5 BECKER A. ET DEBARY O., op. cit., p. 123. GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 307 retroativamente aprovado e financiado pelo parlamento do Land de la Sarre”. 6 Pedras para o Monumento contra o Racismo (Foto Jochen Gerz) Monumento contra o Racismo (Foto Jochen Gerz) Na narrativa ficcional História natural da ditadura a arte, em forma de monumento, desempenha um papel importante que é o de guardar a memória das violências cometidas pelos aparelhos políticos do Estado, durante a Segunda Guerra Mundial ou durante o período ditatorial na América do Sul. Seja pelo monumento construído em 6 « clandestinement descellés pour être replaces, gravés chacun à leur base du nom d’un cimetière juif d’Allemagne. La place [a été] ensuite rebaptisée ‘ Place du Monument Invisible’, une fois le travail rétroactivement approuvé et commandée par le parlement du Land de la Sarre ». (Tradução do autor) BECKER A. ET DEBARY O., op. cit., p. 124. GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 308 homenagem a Walter Benjamin, na cidade espanhola de Portbou, seja pelo caderno do artista do argentino León Ferrari (1920 — 2013). Na narrativa de Teixeira Coelho a arte assume como sua função guardar os traços da violência cometida pelo Estado e denunciar a existência dos atos arbitrários. No capítulo Sur, de História natural da ditadura, o narrador protagonista conta a sua experiência com León Ferrari e seu caderno de artista intitulado Nosotros no sabíamos: Sob um céu azul de doer na memória, em agosto de 2004, Buenos Aires, León Ferrari deu-me um caderno espiralado de grande formato reunindo cópias Xerox de notícias de jornais datados de 28 anos atrás. Vinte e oito anos, um quarto de século e algo mais. O título do caderno, em três linhas superpostas: Nosotros no sabíamos. Nós não sabíamos. Claro que sabíamos. León Ferrari sabia, óbvio todos sabiam muito bem, bem demais. León sempre fez da ironia uma linha central do seu trabalho. O título, era evidente, aludia ao que os alemães, ao que muitos alemães haviam dito finda a segunda guerra mundial. Nosotros no sabíamos. Claro que sabíamos.7 Nosotros no sabíamos, é uma coleção de recortes de jornais sobre a repressão política durante o ano de 1976, editado por Ferrari de 1976 a 1994.8 7 COELHO T., História natural da ditadura, São Paulo, Iluminuras, 2006, p. 69. 8 FERRARI sabiamos/ L. http://www.leonferrari.com.ar/index.php?/series/nosotros-no- GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 309 (León Ferrari / Nosotros no Sabíamos) No livro de poemas Desapariencia no engaña, do poeta argentino Néstor Ponce recolhi 37 epígrafes colocadas sobre cada um dos poemas que integram o livro. « Campo de concentración Club Atlético, 1978, junio Campo de concentración Campo de mayo, 1979, septiembre Campo de concentración Campo de mayo, 1977, agosto Río de la Plata, Avión militar 1977, septiembre Campo de concentración La Escuelita, Bahía Blanca, 1977, noviembre Campo de concentración Club Atlético, 1980, mayo Campo de concentración Comisaría Quinta, 1979, marzo Campo de concentración GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 310 Puesto Vasco, 1979, diciembre Campo de concentración Pozo de Quilmes, 1979, julio Campo de concentración Mansión Seré, 1978, julio Campo de concentración La Ribera, 1977, marzo Campo de concentración ESMA, 1977, enero Campo de concentración Pozo de Quilmes, 1977, diciembre Campo de concentración Olimpo, 1976, diciembre Campo de concentración La Perla, 1979, mayo Campo de concentración El Banco, 1976, invierno Campo de concentración La Cacha, 1978, febrero Campo de concentración Coti, 1976, agosto Campo de concentración La Cueva, 1976, mayo Campo de concentración El Vesubio, 1980, enero Avión Río de La Plata, 1977, febrero Campo de concentración Puente doce, 1978, marzo Campo de concentración Automores Orletti, 1976, septiembre Campo de concentración Escuelita de Famaillá, 1976, junio Campo de concentración Comisaría Segunda, 1980, marzo Campo de concentración El Motel de Tucumán, 1978, diciembre GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 311 Campo de concentración Hidráulica de Córdoba, 1978, mayo Campo de concentración Policlínico Posadas, 1976, noviembre Campo de concentración Campo de Mayo, 1978, enero Campo de concentración La Perla, 1979, octubre Campo de concentración El descanso, 1978, octubre Campo de concentración Pozo de Arana, 1979, enero Campo de concentración Automores Orletti, 1976, julio Campo de concentración ESMA, 1977, abril A Rodolfo Walsh Campo de concentración Polígono de Campana Campo de concentración cerca de tu casa, mañana por la mañana La plata, Mar de Ajó, Buenos Aires, Humaitá, Asunción, San Pablo, Rio de janeiro, Muriqui, Fontenay S/Bois, Ivry S/Seine, Paris, Rennes, Saint-Jacques de La Lande, 1976-2009 »9 Cada uma das epígrafes se refere a um centro de detenção e tortura mantido pelo sistema de repressão política que se instalou na Argentina a partir de 1976; salvo a última epígrafe onde o poeta inscreveu o seu percurso em direção à liberdade e ao exílio transatlântico na Bretanha. Utilizando as epígrafes Ponce reconstruiu o percurso dos centros de horror político do governo militar, de 1976 a 9 PONCE N., Désapparences. Brest, Les Hauts-Fonds, 2013, p. 8 – 91. GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 312 1983. A estes percursos, podemos chamá-los percursos geográficos da memória, da dor e de sofrimento. Com o recolhimento das epígrafes sob a forma de estrofes é possível ler um primeiro ou último “poema” na obra de Ponce. Esse novo “poema” é uma espécie de anti-monumento erigido em memória de cada um daquele, homem ou mulher, que foi enviado, involuntariamente e forçadamente, para esses lugares de produção de dor e sofrimento. Fernando Aínsa registra que as memórias desses lugares de sofrimento são referências de uma história pessoal que dialoga, quando elas não estão em confrontação, com a memória oficial. Devido à confrontação de memórias é possível descobrimos que as lembranças não são somente pessoais, mas pertencem a um tempo que nos impõe os paradigmas de uma memória coletiva elaborada como um verdadeiro sistema de reconstrução histórica e de justificação do presente do qual nós somos prisioneiros, ainda que não tenhamos plena consciência disso.10 As referências aos lugares de tortura e aprisionamento ilegal, as lembranças de histórias pessoais, são trabalhadas por Néstor Ponce como foram trabalhadas as pedras da praça do parlamento em Sarrebruck por Jochen Gerz para construir seu Monumento contra o racismo, o monumento invisível. Se Gerz gravou o nome de cada um dos 2.146 cemitérios judeus existentes na Alemanha na base de 2.146 pedras do calçamento da praça do parlamento de Sarrebruck, Ponce inscreveu sobre cada um dos poemas de Desapariencia no engaña uma parte da história sombria da Argentina sob a ditadura da junta militar que a governou. A poesia de Ponce com suas epígrafes faz reviver os corpos e as almas daqueles que foram injuriados, este é o caráter purificador da palavra poética, a palavra modifica a nossa lembrança.11 As inscrições das epígrafes sobre os poemas são como as inscrições sobre o Monumento contra o fascismo que Gerz construiu 10 AINSA F., « Les gardiens de la mémoire », Amerika [En ligne], 3 | 2010, mis en ligne le 22 décembre 2010, consulté le 29 octobre 2013. URL : http://amerika.revues.org/1708 ; DOI : 10.4000/amerika.1708 11 BOSI A. Entre a literatura e a história, São Paulo, Editora 34, 2013, p. 16 – 23. GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 313 na cidade de Hamburgo, Alemanha. Este monumento, uma coluna recoberta de chumbo, foi criado para receber assinaturas dos habitantes e dos visitantes da cidade de Hamburgo. O monumento foi construído também para desaparecer ao final de dez anos. Após dez anos ele desapareceu completamente, enfiado no solo, por conta de solução de engenharia especialmente projetada para esse fim. Hoje, no lugar da coluna resta o convite inicial e a inscrição: « Rien ne peut se dresser à notre place contre l’injustice », — “nada pode se dirigir em nosso lugar contra a injustiça”.12 (Monument contre le fascisme – Photo Studio Gerz) Esta mesma questão pode ser encontrada na obra Tout sera oublié [Tudo será esquecido], romance gráfico sobre a guerra da exIugoslávia, de Mathias Énard e Pierre Marques (2013): a ideia de um monumento — que não seja nem sérvio, nem bósnio, nem croata — sobre o qual os habitantes da cidade Saraievo: sérvios, bósnios e croatas, possam inscrever algumas palavras. O narrador protagonista 12 GERZ J., “Montrer les violences de guerre: partages du non-vecu (paroles de temoin) in BECKER A. ET DEBARY O., Montrer les violences extrêmes. Creaphiseditions, Vérone (italie), 2012, p. 133. GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 314 de Tout sera oublié expõe para sua amiga Marina o seu projeto para o monumento que lhe fora encomendado; ele pensa em aproveitar uma antiga pista de bobsleigh — o esporte de inverno praticado com trenó — transformando-a em lugar de memória, um lugar onde cada pessoa possa nele inscrever uma palavra sobre os muros em ruínas, desenhar um signo, escrever um comentário. Um lugar deixado em estado selvagem. O narrador acredita que são os habitantes do lugar que devem contar a história da guerra. Do ponto de vista do narrador um monumento é algo que se impõe do exterior, e para ele não isso serve a nada. Do seu ponto de vista, é suficiente assinalar o lugar do monumento e deixar que as pessoas se apropriarem dele. Deixar a destruição falar por ela mesma até a sua desaparição.13 Enquanto ouve a descrição que o amigo faz do seu projeto para o monumento, Marina pensa num outro monumento que ela tem presente em sua memória: Passagens construído em homenagem a Walter Benjamin, na cidade de Portbou, na Catalunha, criado pelo artista israelense Dani Karavan. (Foto : Nina Blondet/Jean-Marc Noël/Patrick Perrotte)14 13 ÉNARD M. ET MARQUÈS P., Tout sera oublié, Vérone, Actes Sud BD, 2013, p. 101 – 115. 14 PERROTTE P., http://pedagogie.acmontpellier.fr/Disciplines/arts/arts_plastiques/bacdoc/karavan/index.html GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 315 O monumento batizado com o nome “Passagem” se refere à última obra inacabada de Walter Benjamin As passagens, começada em 1927. (Foto : Nina Blondet/Jean-Marc Noël/Patrick Perrotte)15 O monumento é composto de um túnel formado por placas de aço com a aparência de enferrujadas. Instalado em Portbou, em meio a uma paisagem rochosa e acidentada, batida pela Tramontana, o vento que sopra em direção ao norte com grande fúria. (Foto : Nina Blondet/Jean-Marc Noël/Patrick Perrotte)16 15 PERROTTE P., http://pedagogie.acmontpellier.fr/Disciplines/arts/arts_plastiques/bacdoc/karavan/index.html GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 316 À medida que o visitante desce através do túnel ele sente os efeitos da solidão nos seus vestígios até que finalmente percebe no fim a luz, um belvedere impressionante sobre a baia e o mar furioso de Portbou. 17 Este é o mesmo monumento que o narrador de Teixeira Coelho, em História natural da ditadura, visita. Monumento que o narrador chama de monumento negativo. Comparo-o a outro trabalho que considero também como um anti-monumento ou monumento negativo, construído pelo artista fotográfico argentino Gustavo Germano a partir do seu projeto Ausências Operação Condor : ausências (Argentina) e ausências (Brasil). “Ausências” é um projeto expositivo que, partindo de material fotográfico de álbuns familiares, mostra quatorze casos através dos quais se dá rosto ao universo dos que aqui já não estão: trabalhadores, militantes de bairro, estudantes, operários, profissionais, famílias inteiras; elas e eles, vitimas do plano sistemático de repressão ilegal e desaparecimento forçado de pessoas instaurado pela ditadura militar na Argentina entre 1976 e 1983.18 16 PERROTTE P., http://pedagogie.acmontpellier.fr/Disciplines/arts/arts_plastiques/bacdoc/karavan/index.html 17 COSTA BRAVA : http://blog.costabravas.fr/le-monument-walter-benjamin-aportbou-et-ii/ 18 GERMANO G., http://www.gustavogermano.com GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 317 Ausências Operação Condor: Ausência (Brasil) / Foto : Alex Paula Xavier Ausências Operação Condor: Ausência (Brasil) / Foto : Alex Paula Xavier GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 318 Ausências Operação Condor: Ausência (Argentina)19 Foto 2 : Orlando René Mendez/Letícia Margarita Oliva Essas são manifestações artísticas sobre a memória do desaparecimento, do sofrimento e da violência. São anti-monumentos, monumentos negativos, pois devido às circunstâncias do tempo presente tendem a “desaparecer” do campo de visão do homem do nosso tempo. Penso que esta monumentalidade é criada pelo vazio, pela ausência, pela inversão de uma presença negativa de exposição da memória — a presença daquele que falta —, pelas lembranças, pelos vestígios e restos de tudo que foi vivido. Conclusão Em cada uma das narrativas ficcionais, sobre as quais temos tratado na nossa pesquisa, não há herói no sentido tradicional. Os heróis dessas narrativas são os sobreviventes que têm a chance de poder rememorar os fatos e as experiências vividas. Ter sobrevivido é o grande feito dos protagonistas de narrativas como Um homem é muito pouco, de Ronaldo Costa Fernandes, História natural da ditadura, de Teixeira Coelho, K. relato de uma busca, de Bernardo Kucinski. O ato heróico desses personagens é terem sobrevivido ao sistema de valores imposto pelas políticas militares autoritárias na América do Sul durante os anos 1960 e 1980. Conforme anotou Hermann Broch: “Todo sistema de valor ao qual o homem é submetido é por sua vez uma reflexão teórica que pretende o absoluto, e um fato empírico, por consequência “histórico”, sujeito a todas as insuficiências do empírico, exposto à mudança e ao desaparecimento.”20 Cada uma dessas narrativas representa a constatação de que todo sistema de valor pode ser submetido a uma mudança. Valère Novarina 19 GERMANO G., http://www.gustavogermano.com 20 BROCH H., Logique d’un monde en désintégration: six essais philosophiques. Traduit de l’allemand par Christian Bouchindhomme et Pierre Rusch, Paris – TelAviv, Éditions de L’Éclat, 2005, p. 19. GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 319 nos diz que a verdade é anamnese: é movimento, ela chega por acaso, ela opera, ela faz aparecer, não é um ser diante de si, é o ato de um drama. Para os gregos não havia nada de fixo, nada de estável, nada de imóvel, a verdade era a mutação de uma cena, a transfiguração de uma figura, um processo. A verdade era um drama.21 Podemos dizer que a verdade incômoda do terror, imposta pelo Estado autoritário-financeiro, industrial-militar e ditatorial, foi vencida por uma mudança em direção a uma verdade mais humana; a verdade daqueles que não querem ser cúmplices das atrocidades cometidas pelo Estado algoz e anti-democrático, a verdade daqueles que viveram e que foram tocados pela violência do terror do Estado. Tudo tem um preço, a economia está por todo lado. Nós temos uma economia financeira, do tempo, das relações de amizade e de afinidades, das relações intelectuais. Existe uma economia da pesquisa, temos também uma economia da memória e do esquecimento. A economia está presente em todos os lugares, não podemos esquecer! Eu diria que hoje, na América do Sul, vivemos numa nova economia moral. Uma economia moral corresponde à produção, à repartição, à circulação e à utilização das emoções dos valores, das normas e das obrigações no espaço social.22 As obras literárias: as narrativas, poemas; as obras fotográficas, que utilizamos no nosso estudo são testemunhos da mudança dos sistemas de valores políticos, econômicos e morais no continente sul-americano, que está sendo tocado pela vontade da nossa época: que é a vontade de fazer “o inventário das nossas feridas e de nossos recursos”23, de revisar o passado recente. Para concluir, creio que o que revivemos será o que definirá a nossa época. É por isso que a literatura e as artes, de modo geral, têm um papel importantíssimo no processo da lembrança. 21 NOVARINA V., L’Envers de l’esprit, Paris, P.O.L, 2009, p. 158. 22 FASSIN D. ET EIDELIMAN J-S., Économies Morales contemporaines, Paris, Éditions La Découvert, 2012, p. 12. (Collection « Recherches », Bibliothèque de L’Iris). Tradução do autor. 23 WORMS, F. Revivre : éprouver nos blessures et nos ressources. Paris : Flammarion, 2012, p. 7 et 151. Tradução do autor. GUAVIRA LETRAS, n. 18, jan.-jul. 2014 320 ABSTRACT : In this article I make the report of a stage of my postdoctoral research about the relation between fiction and postdictatorship. From the concept of anti-monument present in the work of Jochen Gerz, german artist, I developed the following thesis: the artwork literary post-dictatorship can be read as a negative monument. KEYWORDS : Literature and memory, South american literature, Fiction and post-dictatorship REFERÊNCIAS: AINSA F., « Les gardiens de la mémoire », Amerika [En ligne], 3 | 2010, mis en ligne le 22 décembre 2010, consulté le 29 octobre 2013. URL : http://amerika.revues.org/1708 ; DOI : 10.4000/amerika.1708 BECKER A. ET DEBARY O., Montrer les violences extrêmes. Creaphiseditions, Vérone (italie), 2012, p. 133. BOSI A. Entre a literatura e a história, São Paulo, Editora 34, 2013, p. 16 – 23. BROCH H., Logique d’un monde en désintégration: six essais philosophiques. Traduit de l’allemand par Christian Bouchindhomme et Pierre Rusch, Paris – Tel-Aviv, Éditions de L’Éclat, 2005, p. 43. COELHO, T. História natural da ditadura. São Paulo: Iluminuras, 2006. ÉNARD M. et MARQUÉS P., Tout sera oublié. Vérone : Actes Sud BD, 2013, p. 12 – 13. FASSIN D. ET EIDELIMAN J-S., Économies Morales contemporaines, Paris, Éditions La Découvert, 2012, p. 12. (Collection « Recherches », Bibliothèque de L’Iris). 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