Material Didático para o Canto Popular: discussão e

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Material Didático para o Canto Popular: discussão e
Material Didático para o Canto Popular:
discussão e proposta
Monografia apresentada para a conclusão do curso de Especialização em Educação
Musical do Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro – outubro de 2001
por Diana Goulart
Este arquivo contém parte da minha Monografia.
Pode ser reproduzido com finalidades
exclusivamente educacionais, desde que seja
sempre citada a fonte.
Introdução
Um aluno que decide estudar canto lírico no Brasil encontra diversas opções para
alcançar seu intento: pode entrar para uma faculdade de canto, pode procurar cursos
livres em diversas escolas e conservatórios ou pode optar entre vários cantores eruditos
que atuam também como professores autônomos. Ele também terá fácil acesso ao
repertório que lhe for recomendado pelo professor, tanto em partituras impressas como
em gravações em áudio e em vídeo de cantores consagrados. E, na maior parte das vezes,
não terá dúvidas quanto à definição do seu objeto de estudos - dificilmente alguém vai
começar a estudar canto lírico buscando interpretar peças eruditas contemporâneas, ou
o canto religioso medieval. É senso comum que canto lírico é o que se ouve nas óperas, nos
recitais, nos concertos, e que segue os preceitos estéticos do Bel Canto (1), que vigoram
há muitos séculos.
A situação do canto popular é totalmente diferente. Em primeiro lugar, a própria
definição de canto popular pode gerar confusão: podemos associá-lo ao folclore, aos
cantos étnicos, às cantigas de trabalho, às serestas, às modinhas. Há também
(infelizmente) quem o associe a músicas descartáveis e sem nenhum compromisso com
refinamento musical, revelando assim desconhecerem a música de Tom Jobim, Edu Lobo,
Gershwin e tantos outros grandes compositores populares. Nosso objeto de estudo é o
canto popular que tem por referência as sonoridades vocais surgidas no século XX, e que
tem no uso do microfone um dos seus elementos estruturais (2). A título de ilustração,
podemos citar como exemplo de cantores que usam este tipo de sonoridade Elis Regina,
João Gilberto, Frank Sinatra, Dick Farney, Lúcio Alves, Leila Pinheiro, Ella Fitzgerald,
Sarah Vaughan, Agostinho dos Santos, Marisa Monte, Milton Nascimento, Bob McFerrin
e tantos outros.
Por motivos que vão desde o desejo de abraçar a carreira de cantor profissional até a
simples procura de diversão, alívio do stress e aperfeiçoamento pessoal, muitas pessoas
se dedicam à prática do canto popular, e percebem que podem (ou precisam) recorrer à
1
Conforme discutido no capítulo “Canto popular e canto erudito”, a partir da p. 9
2
Idem
2
orientação de um professor. No entanto, dentro da realidade da educação musical no
Brasil, eles encontram duas barreiras: a escassez de professores especializados em
canto popular e a quase inexistência de material didático em português voltado para este
tipo de educação vocal.
A única solução possível, durante muito tempo, foi recorrer a um professor de canto
lírico. Os exercícios vocais oriundos do Bel Canto são usados de forma sistemática há
alguns séculos e são claramente benéficos para a voz, aumentando sua potência,
extensão, longevidade, etc. No entanto, exatamente por suas origens, eles estão
conectados à estética e ao modo de cantar erudito. O aluno com esta opção convive então
com duas realidades sonoras distintas: nas aulas, ele treinava a técnica erudita, fazendo
vocalises (3) e desenvolvendo um repertório lírico, com o acompanhamento de um piano,
sem ter contato com qualquer tipo de amplificação para instrumentos ou voz. Na sua
prática musical, ele se via às voltas com bandas que usavam instrumentos eletrônicos ou
acústicos amplificados por microfone tendo que aprender, quase sempre por tentativa e
(muito) erro, a gerenciar a emissão vocal dentro deste outro contexto sonoro.
Somente a partir das últimas décadas do século passado os cantores populares, no Brasil,
começaram a poder contar com a ajuda de professores que estão se especializando em
pesquisar e desenvolver técnicas mais diretamente voltadas para as suas necessidades
estéticas. No entanto, constata-se que estes professores, em sua maioria, ainda
continuam a repetir os mesmos vocalises e exercícios tradicionais do Bel Canto,
introduzindo pouca ou nenhuma modificação naquilo que aprenderam durante sua própria
formação. A diferença básica é que eles aceitam trabalhar o repertório popular do aluno
(muitas vezes a capella e quase nunca usando um microfone). Continua, portanto, a haver
um abismo separando a voz usada nos exercícios de técnica vocal e a voz que se quer
ouvir cantando música popular.
3
Exercícios que utilizam uma melodia cantada (seja um único compasso, uma única nota ou uma
canção completa) para o treinamento e aperfeiçoamento vocal.
3
Como lidar com esta questão? Que competências este cantor precisa desenvolver? Quais
estratégias pedagógicas deve o professor adotar? Até que ponto o material didático
tradicional consegue ser um suporte adequado para preparar o cantor popular?
O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre os materiais didáticos existentes
na área do canto, analisando sua aplicabilidade e adequação ao canto popular
(principalmente dentro da música popular brasileira) e propondo alternativas. Dentro
desta perspectiva, fomos investigar o que havia disponível na literatura especializada:
logo percebemos que na área do canto popular brasileiro praticamente não existe
bibliografia. Por isso lançamos mão de outros recursos: a consulta à literatura
estrangeira (sobretudo a norte-americana, que oferece maior quantidade de material) e a
consulta a biografias de cantores populares, que permitem inferências sobre o
aprendizado informal do canto, além de nossa própria vivência como cantora, aluna e
professora de canto popular.
Na primeira parte, após nos situarmos quanto ao referencial teórico que fundamenta
nossa visão da Educação Musical, procuramos caracterizar o canto popular e o canto
erudito, apresentando alguns conceitos básicos e discutindo semelhanças e diferenças em
diversos aspectos. Na segunda parte, fazemos um levantamento do material didático
disponível para os professores de canto, considerando-se como material didático todas as
estratégias e procedimentos práticos (inclusive os vocalises e outros exercícios)
indicados pelos autores consultados. Na terceira parte, ao analisar os dados recolhidos
nas duas anteriores, discutimos a adequação/eficiência/suficiência destas estratégias
para estilos de canto diferentes do clássico, trazendo a questão da necessidade de
material didático específico para o aperfeiçoamento do cantor popular, lançando então
algumas sugestões e propostas.
4
Educação Musical
Ainda hoje encontramos muitas pessoas que pensam em Educação Musical como sinônimo
de teoria musical. De fato, o domínio da leitura e da escrita, bem como dos conceitos e da
terminologia, são pontos importantes para quem quer explorar mais profundamente o
universo da música. No entanto, fazer música é bem mais do que simplesmente adquirir
tal conhecimento: liga-se à esfera da criação, da invenção, do prazer estético, do
encantamento. Ao educador musical cabe criar condições para que o aluno descubra e
revele a sua própria musicalidade. Pensamos (4) que o aprendizado é um processo ativo no
qual os alunos constróem novas idéias ou conceitos a partir do conhecimento que eles já
trazem, e que foram adquiridos através de diferentes situações e experiências. O aluno
então seleciona, re-elabora e transforma as informações, constrói hipóteses e toma
decisões baseadas numa estrutura cognitiva (esquemas ou modelos mentais que organizam
e dão sentido às experiências e permitem que o indivíduo vá além da informação
recebida). Neste contexto, o papel do professor é o de mediador, organizador,
facilitador, ajudando o aluno a dominar as ferramentas essenciais do próprio aprender.
Um exemplo da aplicação destas idéias à educação musical é descrito por SCHAFER em
“O Compositor na Sala de Aula”(5): o autor usa os conceitos dos próprios alunos sobre
diversos elementos da música para provocar reações de interesse e re-estruturar estes
mesmos conceitos, ampliando-os e aprofundando-os. Em nenhum momento SCHAFER
rotula os comentários da turma como “certos” ou “errados”: ele aproveita cada palavra do
que é dito pelos alunos para comentar, discutir, fazer a turma pensar sobre suas
concepções de melodia, ritmo, timbre, dinâmica, textura sonora, etc. Nenhuma destas
noções é apresentada como verdade pré-estabelecida - ao contrário, são vivenciadas
pelos alunos:
“Vamos pegar apenas duas notas. Um mundo todo pode existir na relação entre
duas notas. Podem ser suaves ou fortes, agudas ou graves, curtas ou longas; e, porque são
duas, podem contrastar dramaticamente uma com a outra.” (6) Aos poucos, os alunos se
4
Nossa visão do processo educacional tem como referência Freire, Bruner, Piaget, Negroponte e
outros autores ligados ao construtivismo.
5
SHAFER, O Ouvido Pensante (1991), p.19-65
6
SHAFER, op.cit., p.53
5
descobrem compondo, improvisando, regendo: vão aos poucos experimentando sua própria
capacidade de usar os sons e organizá-los de forma estruturada e significativa,
traduzindo sentimentos, expressando situações afetivas.
Dentro desta ótica, podemos afirmar, citando GAINZA, que
“a educação musical deveria
proporcionar ao indivíduo a oportunidade de explorar livremente o mundo dos sons e de
expressar com espontaneidade suas próprias idéias musicais” (7), usando para isto as fontes
sonoras de que ele possa dispor a cada estágio do seu desenvolvimento. Como a voz é
justamente uma das possibilidades mais precoces e imediatas de se ter contato com a
produção sonora, parece-nos natural esperar que as aulas de canto sejam utilizadas como
veículo da educação musical, embora nem sempre esta possibilidade seja concretizada nas
escolas de música (seja em cursos livres, seja em cursos técnicos e até superiores). É
raro encontrar um programa onde o canto e a técnica vocal estejam a serviço da
compreensão e da expressão musical: o mais comum é que se volte o foco das aulas para o
aperfeiçoamento técnico stricto sensu (8). Porque criar uma separação entre o canto e o
fazer musical, quando se pode aproveitar a prática vocal para promover ou aprofundar o
entendimento das relações entre ritmo, melodia, harmonia, forma, texto, gesto e
expressividade? Já no início do século passado, grandes educadores da área da música,
como por exemplo Dalcroze, Orff e Kodály, apontavam a importância de se manter este
vínculo entre a execução e a expressão musical criativa.
No aprendizado do canto lírico é bastante comum usar a leitura musical como forma de
aprender o repertório, já que este tipo de aprendizado induz a uma maior fidelidade
rítmica e melódica, traços extremamente valorizados dentro deste contexto estético.
Ornamentos, dinâmica, pausas, ralentandos e outros detalhes interpretativos indicados
pelos autores devem ser seguidos à risca. O cantor erudito procura reconstruir tanto
quanto possível as intenções artísticas do compositor. São também parte de sua educação
musical, portanto, as pesquisas sobre História da Música e sobre as biografias dos
grandes compositores e intérpretes. Mas um dos objetivos mais enfatizados nas aulas é
7
GAINZA, La Improvisación Musical (1983), p.11
8
Usamos a expressão para nos referir ao trabalho vocal desvinculado de qualquer estética musical.
6
adquirir pleno domínio da técnica vocal – ela deve ser burilada em minucioso trabalho,
geralmente envolvendo vários anos de estudo com professores experientes.
Já o cantor popular tende a aprender “de ouvido” não só as canções de seu repertório
mas também a forma de cantar. A imitação pura e simples é o único recurso usado por
muitos cantores populares no seu aprendizado. No Brasil não é comum que os cantores
populares saibam ler música. Por um lado, isto representa uma lacuna no conhecimento
teórico, podendo significar igualmente um empobrecimento na cultura musical, já que a
tendência é que se restrinja o repertório àquelas músicas a que se tem fácil acesso. Por
outro lado, há um grande treinamento da intuição e da memória musical, pela necessidade
de usar estes mecanismos como único recurso de aprendizado. Muitas vezes o cantor é
levado a praticar a criatividade para suprir um lapso de memória na letra ou na melodia, o
que acaba por trazer maior flexibilidade às interpretações. É verdade que isto também
ocorre no canto lírico, mas certamente com menor freqüência.
A própria técnica vocal costuma ser desenvolvida intuitivamente e por imitação. Tomemos
o exemplo de um ícone da canção americana, Frank Sinatra: jamais teve qualquer aula de
canto, mas descobriu logo no início da sua carreira a importância da boa respiração. Ele
percebeu que o líder da orquestra em que cantava, o trombonista Tommy Dorsey, era
capaz de fraseados muito suaves (legato) porque não precisava interromper a melodia
para respirar a todo instante. Passou a observar detalhadamente a maneira como ele
respirava e começou a imitá-lo (9).
Dentro deste quadro, a tendência geral é que falte ao cantor popular conhecimento
técnico e teórico, e que falte ao cantor erudito fluência na criatividade e na livre
expressão de novas idéias musicais.
Para reverter esta situação e proporcionar aos cantores uma formação mais plena, é
necessário que o professor de canto (seja ele erudito ou popular) atue como agente da
educação musical. Que ele seja um educador, não um treinador. Para isso, ele deve
possuir as competências ligadas à técnica vocal stricto sensu (fisiologia do aparelho
9
MORA, Sinatra – o Homem e a Música (2001), p.33
7
fonador, processos de produção vocal, etc.), mais aquelas ligadas à música e suas
estruturas (teoria, harmonia, domínio de um instrumento, vivência como cantor) e ainda
as que pertencem à área da pedagogia (processos de ensino/aprendizagem, seus aspectos
psicológicos, etc.). Este tema será examinado com mais profundidade nas págs. 29 a 31
deste trabalho.
Um fator que pode enriquecer o dia-a-dia da sala de aula, contribuindo para que as
turmas tenham maior motivação e melhor desempenho, é o material didático. Este
material, quando adequado aos objetivos pedagógicos, facilita a interação entre
professor e alunos, que ao se envolverem nas atividades propostas estarão explorando
caminhos que vão em direção da musicalidade, da criação e da expressão artística. É
desta convicção que se originou o nosso interesse pelo assunto objeto desta pesquisa.
8
Canto popular e canto erudito
Se estamos propondo a utilização de um material didático adequado às necessidades
específicas do cantor popular, precisamos investigar quais são estas necessidades e
discuti-las. Mas antes, vamos caracterizar este canto popular a que nos referimos.
A música popular brasileira reflete, como é natural, as feições multiculturais do nosso
país. Ela é de tal forma diversificada que seria impossível tentarmos, neste trabalho,
detalhar todas as variações que caracterizam cada um dos seus estilos. Cantar samba é
diferente de cantar baião, que é diferente de cantar música sertaneja. Cada estilo
dentro da música popular brasileira possui um elenco de características distintivas
próprias, que vão desde a exigência de determinada atitude ou postura corporal até a
formação da banda que acompanha o cantor, passando pelo sotaque regional e pela forma
de emissão vocal. Exemplificando: o ritmo do afoxé, com suas origens nas festas de rua,
sugere cantores que se movimentam, dançando e animando o público; a bossa nova, com
sua sofisticação urbana e influenciada pelo cool jazz (10) remete a uma voz intimista, sem
grandes variações de dinâmica, e uma postura de palco menos expansiva.
O mesmo acontece com o canto erudito – ele é igualmente rico em variedade de subestilos, cada um com seu próprio conjunto de características estéticas ligadas a
diferentes situações históricas e culturais.
Sem jamais perder de vista esta pluralidade, vamos usar, neste trabalho, o termo “canto
lírico” para designar as formas de canto associadas ao Bel Canto, incluindo neste grupo as
diversas escolas (Italiana, Francesa, Alemã, Russa) e os diferentes períodos (Barroco,
Clássico, Romântico etc.). O termo “canto popular” será aqui usado para designar as
formas de canto associadas ao repertório e às sonoridades musicais surgidas a partir do
século XX, graças principalmente a duas inovações tecnológicas: o microfone, que define
novas possibilidades de estética sonora, e o rádio, que cria as condições para o
10
Um tipo de jazz que surge na década de 50, caracterizado por usar uma linguagem comedida,
cerebral e elaborada, com notas longas e muitas pausas.
9
surgimento de uma cultura de massa, ao atingir platéias que jamais tinham tido acesso
aos teatros, e ao mesmo tempo criando novas demandas e novas ofertas culturais.
Com esta conceituação, estamos conscientes de que nossa análise vai abrigar uma
assimetria em termos históricos: as referências estéticas do canto lírico, tal como é
ensinado na maioria das escolas brasileiras, se situam nos séculos XVI-XIX, ao passo que
o canto popular de que falamos é contemporâneo, está em construção no presente. Não
teríamos, porém, outra alternativa, uma vez que a música erudita contemporânea é ainda
muito pouco explorada nas escolas de canto. É uma realidade ainda desconhecida, nova e
que causa certa estranheza aos ouvidos da maioria dos alunos acostumados à sonoridade
tradicional. Seria interessantíssimo fazer um estudo comparativo entre os cantos
contemporâneos, levando em conta o momento histórico atual, o panorama sonoro,
verificando as tendências de aproximação e afastamento entre estes universos
estilísticos. Isto porém seria assunto para outro trabalho.
Vamos examinar a seguir algumas semelhanças entre os cantores populares e eruditos.
Uma semelhança fundamental é que ambos produzem som a partir do mesmo instrumento:
seja qual for o seu estilo, o cantor faz música usando o seu próprio corpo (11). Este
excepcional instrumento tem características muito peculiares: é capaz de unir melodia e
texto, é inseparável do executante e por isso se confunde com ele e reflete sua
identidade. A voz expõe, de maneira mais explícita do que qualquer outro instrumento,
uma fabulosa quantidade de informação sobre o cantor – seu estado de espírito, sua
idade, origem cultura, disposição física. Estas características independem da opção por
um ou outro estilo e portanto os mecanismos físicos de produção da voz (como por
exemplo o controle da respiração, relaxamento e postura corporal) são basicamente
idênticos em qualquer dos casos. Também os mecanismos psíquicos, as expectativas,
11
“Normalmente, sob o título “fisiologia da voz”, estuda-se apenas um dos componentes do
instrumento vocal: o componente vibratório imediato, qual seja, a laringe. O instrumento vocal, no
entanto, é formado pelo conjunto do corpo humano.” COELHO, Técnica vocal para coros (1994),
p.11
10
ansiedades, sentimentos que influenciam a produção vocal, são aqueles comuns a todos
nós, humanos (12).
Mas ao lado de tais semelhanças há também diferenças muito claras, facilmente
perceptíveis até por ouvidos não treinados. Quais seriam, então, as principais
características que diferenciam o canto erudito do popular? O que é que torna o
resultado sonoro tão distinto?
12
“A voz é também um código de expressão da alma, pois revela nossas impressões mais profundas
através de seu timbre, seu volume, sua forma de emissão, enfim. Quando trabalhamos com a voz de
alguém, colocamos em jogo o seu esquema de valores, toda a sua filosofia de vida e toda a sua
cosmovisão.” (COELHO, op. cit., p. 11)
11
Aspectos da técnica vocal
O microfone é um elemento estrutural no timbre do canto popular: vozes de caráter
intimista e coloquial como as de João Gilberto ou Nana Caymmi, por exemplo, seriam
inaudíveis sem amplificação – mesmo que o palco tenha uma acústica primorosa. É esta
uma das características mais marcantes da voz popular: ela incorpora o microfone,
adotando-o como parte ou como extensão do seu instrumento. Diz Gene Lees:
“...o fraseado naturalista, contudo, requer o uso do microfone. Jornalistas
costumavam rir de [Frank] Sinatra em seus primórdios, pelo manuseio do
microfone, com as mãos em volta da base, bem embaixo do microfone
propriamente dito. Diziam que estava se apoiando nele. Não entenderam que
ele estava “tocando” o microfone. Ele tinha abandonado completamente a
abordagem anterior do microfone, aquela de ficar bravamente estático diante
do pedestal, usando as mãos apenas para ênfase dramática. Sinatra estava
movimentando o microfone de acordo com o que estava cantando. E foi ele
que desenvolveu esta técnica... o microfone tornou possível o canto no nível da
fala. Restaurou a naturalidade ao canto”. (13)
O cantor popular usa portanto dois tipos de controle de volume: um é acústico (a sua
própria emissão/projeção vocal) e o outro, eletrônico (pela regulagem da mesa e do
amplificador aos quais se conecta o microfone). É o controle acústico da voz que propicia
a maior parte dos efeitos de dinâmica - em todas as gamas possíveis, desde os sussurros
de um crooner (14) de boate, passando pelo vigoroso entusiasmo vocal dos puxadores de
samba, até os gritos de um cantor thrash metal (15). O controle por via eletrônica tem a
função de ajustar o volume da voz ao ambiente físico e ao volume dos instrumentos que
acompanham o cantor. Por esta razão, raramente a pouca intensidade se torna um
problema. Isto ocorreria talvez na improvável eventualidade de um cantor com a voz
13
GENE, Lees, Singers and the song II, in MORA, Sinatra – o homem e a música, p. 87
14
O termo tem origem no verbo “to croon”, em inglês, que significa falar ou cantar baixinho.
15
Gênero que mistura as guitarras pesadas do rock “heavy metal” com a atitude feroz do punk e
que atinge ensurdecedora intensidade sonora.
12
muito pequena querer cantar rock pesado. Neste caso, para fazer frente a todos os
decibéis gerados pela banda, a potência do microfone teria que ser tão dramaticamente
aumentada que apareceriam interferências indesejáveis como distorção e microfonia (16).
O cantor lírico, ao contrário, precisa desenvolver uma técnica que projete sua voz de tal
forma que ela seja claramente ouvida e entendida por toda a platéia. E muitas vezes o
cantor solista tem o acompanhamento de uma orquestra sinfônica! Por esta razão, boa
parte da técnica vocal para o canto lírico é dedicada a conseguir dar volume à voz ao
mesmo tempo em que cuida de protegê-la contra o desgaste causado por tamanha
exigência.
Quanto à proteção, ela é também necessária para o cantor popular, pois embora na
maioria das situações haja uma menor exigência vocal, muitas vezes as condições de
trabalho são extremamente desgastantes (ar condicionado muito forte, ambiente
enfumaçado e barulhento, horários de trabalho prolongados, equipamento inadequado
para amplificação da voz).
O controle respiratório é fundamental em qualquer estilo (17); no canto erudito, o
treinamento é mais intensivo, já que se exige mais pressão sobre as cordas vocais.
Nenhuma partícula de ar deve ser desperdiçada, não se admitindo uma voz “soprosa” ou
“sussurrante” no canto erudito (18). As vozes populares, por outro lado, podem explorar
tais características como recurso estilístico (Maysa, Laura Fyji, Lisa Ono).
16
17
Convém lembrar que existem bandas que incorporam estes ruídos à sua proposta sonora.
“A voz só existe a partir do momento em que a expiração pulmonar fornece uma pressão
suficiente para fazer nascer e manter o som laríngeo. Aprender a cantar é, inicialmente, aprender
a respirar, ou seja, treinar para obter uma respiração adaptada ao canto.” DINVILLE, A Técnica da
Voz Cantada (1993), p.51
18
“Ser capaz de transformar cada partícula de ar em som musical e de controlar a respiração de
forma a não gastar nada além do absolutamente necessário para cada som - este deveria ser o
objetivo de todo cantor.” FUCITO, Caruso and the Art of Singing (1995), p.107
13
Um dos aspectos mais importantes a se considerar é a ressonância, que é fator decisivo
para definir o timbre, o volume e a inteligibilidade, e portanto a qualidade vocal e o
resultado estético.
Este é um conceito nem sempre explicitado com clareza: é tratado como se fosse um
termo auto-explicativo, algo de que todos têm conhecimento. Ele freqüentemente se
entrelaça ou mesmo se confunde com outros conceitos, como os de registro vocal ou
impostação. DUEY (19) fala sobre os ressoadores, indicando que as cavidades devem ser
bem aproveitadas para dar qualidade ao som. YOUNG (20) não define a ressonância, mas
menciona que “o palato mole ou faringe é responsável pela ressonância ou qualidade do
som”. DINVILLE (21) descreve detalhadamente a anatomia das cavidades de ressonância,
e relata que:
“... é no nível destas cavidades que os harmônicos são filtrados – alguns serão
aumentados e outros diminuídos. É por um automatismo acústico-fonatório
controlado pelo ouvido, pelas modificações muito sutis, muito finas, que se
pode obter uma grande variedade de sonoridades e adaptar o conjunto destes
mecanismos às exigências do texto, da música e da expressão.”
A autora relaciona a seguir, na mesma obra, as noções de ressonância e registro (voz de
peito, voz mista, voz de cabeça). Citando:
“Comumente estes termos [voz de peito, mista e de cabeça] designam
sensações vibratórias percebidas no nível dos diferentes órgãos ressonadores,
que determinam variados modos de emissão”
POPEIL (22) descreve, classifica e atribui nomes como “Cara-de-peixe”, “O Tubo” e
“Água-na-boca”
às diferentes maneiras de se usar os ressoadores, associando-as a cada
estilo na música popular norte-americana e mostrando que estas fôrmas são responsáveis
pela mudança no timbre.
19
DUEY, Bel Canto in its Golden Age: a Study of its Teaching Concepts (1951), p. 102-111
20
YOUNG, Singing Professionally (1995), p. 8
21
DINVILLE, op. cit., p.39
22
POPEIL, The Total Singer Workshop and Pedagogy of Styles (2001), p. 10
14
BEZZI também faz considerações sobre o uso da ressonância para se dar ao som da voz a
qualidade desejada. Citando a autora:
“[ressonância] ...é a relação entre dois corpos que vibram na mesma
frequência. [...] O som laríngeo é muito modificado pelas cavidades
supraglóticas, principalmente faringe e boca, que mudando sua forma fazem
ressoar, mais ou menos, determinados harmônicos, de onde resultam as
variações de timbre da voz”.(23)
COELHO (24) também define a ressonância como fenômeno físico observável pelo
“reforço na intensidade de uma onda mecânica qualquer – reforço este sobre seu som
fundamental e/ou seu(s) son(s) harmônico(s) – ao atingir um sistema oscilante cuja
freqüência seja igual à sua”. E a seguir, faz a conexão entre este conceito originário da
Física e sua aplicabilidade ao processo do canto:
“No contexto da voz, a ressonância é o efeito resultante das modificações que
as cavidades de ressonância humanas imprimem às vibrações laríngeas
transmitidas pela coluna de ar (propagação em gases) e pelos ossos e músculos
(propagação em sólidos). No processo de modificação, cada cavidade de
ressonância, por sua anatomia ou por seu uso, provocará alterações no som
original produzido pela vibração das cordas vocais.”
Este é portanto um aspecto fundamental para a diferenciação entre as vozes líricas e
populares: a maneira como se usa a ressonância (25). A forma que se dá aos ressoadores, a
consciência e o controle que se tem deste processo, tudo isto influi decisivamente na
maneira como os harmônicos se combinam, se amplificam ou se amortecem, o que por sua
vez determina o resultado tímbrico, ou seja, a própria identidade sonora da voz. É esta
identidade um dos fatores que nos revelam se o cantor é popular ou erudito.
23
BEZZI, Técnica Vocal (1983), p. 85-90.
24
COELHO, op. cit., p. 59
25
“As vozes cantadas com treinamento de canto clássico produzem emissões com uma maior
riqueza de harmônicos”. RUSSO & BEHLAU, Percepção da Fala: Análise Acústica do Português
Brasileiro (1993), p.29
15
Podemos observar esta diferença através da audição e também pela análise
espectrográfica – procedimento que nos fornece uma espécie de “retrato” do som. Nos
registros espectrográficos dos cantores líricos
“pode aparecer o formante do cantor, na faixa de 2.500 a 3.000 Hz, criando
uma ampliação intencional de 2 cm de comprimento no trato vocal logo
acima da laringe (laringe expandida). Esse formante pode ser 12 a 15 dB
mais intenso do que os níveis da orquestra e melhora significativamente a
relação sinal/ruído para altas freqüências, atingindo níveis sonoros de 105 a
115 dB NPS.”(26)
O fato de estas vozes usarem tipicamente as regiões mais agudas e a chamada “voz de
cabeça” (“registro de cabeça”, “voz condensada” ou “mecanismo leve”) também contribui
para a diferenciação no timbre. O compositor erudito pode contar com extensões
maiores, e não é raro encontrar peças que exigem do cantor o domínio de duas oitavas ou
mais. Muitas composições eruditas valorizam as regiões mais agudas das vozes, as quais,
ao lado de outras características de estilo, têm maior audibilidade. Há também uma
busca de virtuosismo vocal, uma espécie de desafio técnico, onde o cantor é levado a
exibir sua extensa tessitura. No canto popular, uma voz especialmente aguda ou
especialmente grave pode ser valorizada pela originalidade, como um estilismo pessoal;
mas a regra é dar preferência a explorar o “centro” da voz ou “melhor oitava”, que é
geralmente a região mais confortável e/ou favorável para cada cantor, evitando-se os
riscos de desafiar limites.
A articulação é outro aspecto diferencial: no canto erudito, ela segue regras que por
vezes tornam artificial a pronúncia na maioria das línguas, inclusive em português. Isto se
deve em parte à influência das escolas tradicionais, que se inspiram no texto cantado em
italiano, e em parte devido à já mencionada necessidade de aumentar ao máximo a
intensidade e a projeção da voz. No canto popular, a letra da canção é veículo primordial
da expressão do sentimento – por isso deve ser dita com clareza, com emoção e da forma
mais próxima ao natural ou coloquial. O ouvinte deve entender cada palavra cantada, sem
necessariamente recorrer ao texto escrito; por isso não se admitem distorções na
26
RUSSO, Acústica e Psicoacústica Aplicadas à Fonoaudiologia (1999), p.239
16
pronúncia. Os exercícios de articulação para o cantor popular devem buscar esta estética
da clareza, da fala, da compreensão imediata do texto.
17
Aspectos da interpretação
Para os autores eruditos, como por exemplo DINVILLE, a classificação das vozes é um
passo fundamental e delicado (27). Também BEZZI dedica toda atenção à descrição dos
múltiplos fatores que devem ser usados como critério classificatório – tessitura,
extensão vocal, características acústicas do timbre natural, usando-se bases anatômicas,
morfológicas e acústicas. O professor de canto erudito precisa classificar o aluno o mais
precocemente possível, pois sem este dado ele não pode sequer começar a construir um
repertório. Os compositores eruditos escrevem peças para cada tipo de voz, e não é
desejável que se modifique esta sonoridade.
No canto popular, a escolha do repertório é determinada basicamente pelo gosto pessoal
e limitada pelos recursos vocais do cantor. A tonalidade da peça é modificada livremente
para atender à proposta de cada intérprete.
A interpretação na música erudita procura valorizar a intenção original do autor,
preservando os ornamentos, a dinâmica, os movimentos rítmicos e a tonalidade em que foi
escrita a peça. A perfeição está em cuidar de cada detalhe da execução e na
reconstituição
da
sonoridade
da
época.
Fidelidade
ao
autor
é
indispensável.
Evidentemente isto não significa que todos os arranjos sejam iguais: cada intérprete é
único, cada orquestra tem uma sonoridade, a emoção do cantor se renova a cada
apresentação e isso se reflete na sua voz e em todo o espetáculo.
No canto popular, ao contrário, espera-se justamente que o cantor apresente uma versão
diferente da original ou das versões já apresentadas antes (fala-se em fazer uma
releitura da música). Busca-se a novidade, o surpreendente. Em alguns gêneros, esta
releitura pode incluir a improvisação, entendida aqui num sentido bem amplo que engloba
desde ligeiras variações em uma ou outra frase melódica até a invenção de uma melodia
inteiramente nova, apenas baseada nos acordes da canção interpretada. Grandes
27
DINVILLE op. cit., (p.10): “[a classificação] é um problema sério, pois dela vai depender a
carreira do cantor”.
18
improvisadores como por exemplo Dizzie Gillespie e Charlie Parker chegavam mesmo a
gerar uma nova composição (ou mais de uma) a partir da interpretação de um tema – isto
era comum na época do be-bop (28).
Em certos períodos como o Barroco ou o Romantismo era comum que os compositores
reservassem um espaço para a improvisação do executante (as cadenzas). No entanto,
esta prática era restrita aos trechos pré-determinados pelo autor na partitura, e
destinava-se mais frequentemente aos instrumentistas – os cantores não costumavam
improvisar. Também na música popular, é mais freqüente encontrarmos improvisadores
entre os instrumentistas do que entre cantores; além disso, a maioria dos cantores que
se destacam pela fluência na improvisação têm formação instrumental pelo menos
razoável. Alguns cantores fazem justamente da improvisação a sua marca: Sarah Vaughn,
Ella Fitzgerald, Louis Armstrong, George Benson, Leni Andrade, Johnny Alf e Bob
McFerrin são alguns exemplos que merecem destaque especial.
Existem muitos métodos escritos para improvisação na guitarra, no piano, nos sopros, no
contrabaixo, mas não conhecemos nenhum método voltado especificamente para o
improviso vocal. Por isso, os cantores que dominam um segundo instrumento além da voz
têm procurado cursos e métodos de improvisação instrumental para desenvolver e
fundamentar os seus improvisos. Mais uma vez, o cantor popular se vê diante do desafio
de criar adaptações para técnicas e procedimentos.
Falamos acima sobre a improvisação melódica, mas queremos sublinhar que na música
popular brasileira é muito mais comum encontrarmos o improviso rítimico. Ele está de tal
maneira presente em nossa cultura que o cantor às vezes faz isto sem se dar conta de
que está improvisando. É esta liberdade rítmica que está na base do suíngue (ou ginga, ou
bossa) característico da música popular. Esta questão será aprofundada a partir da
página 26 deste trabalho.
28
Uma das vertentes do jazz, surgida em torno dos anos 40. Caracterizava-se por ser mais
sofisticado, dissonante e difícil de tocar do que o dançante swing, que o precedeu.
19
Vemos portanto que o cantor erudito tem liberdade de usar recursos que enriquecem a
interpretação pessoal (pode alterar o andamento de algumas passagens de uma música
para lhe dar maior expressividade, pode criar efeitos de dinâmica que acrescentem
colorido próprio à sua interpretação, pode dar menos ou mais ênfase a um adorno vocal
recomendado pelo autor, etc.); mas estas interferências não podem modificar o desenho
rítmico ou melódico da composição. Já o cantor popular tem uma liberdade que é limitada
somente pelos critérios do estilo e dos seus recursos técnicos. Mesmo sem ser um
improvisador no sentido mais radical do termo, todo cantor popular tem a possibilidade
de modificar, na sua interpretação, as figuras rítmicas da frase e/ou a relação entre elas
(a “divisão rítmica”), bem como modificar a construção melódica – mudar as notas a serem
cantadas. Naturalmente, espera-se que ele exerça a sua liberdade com responsabilidade é preciso ter desenvolvido um alto grau de consciência musical para que se faça isto de
maneira a enriquecer a música, e não a deformá-la ou desfigurá-la.
20
O cantor popular: competências básicas
Que competências, então, precisam ser desenvolvidas pelo cantor popular? Quais serão
os objetivos que o seu professor de canto vai buscar atingir nas aulas?
Antes de prosseguir, gostaríamos de sublinhar que em nenhum momento sugerimos que
qualquer dos gêneros musicais deva ser considerado “melhor” ou “mais difícil” ou “mais
artístico” do que outro. Todos os estilos de canto demandam estudo,
dedicação,
persistência, apuro técnico, sensibilidade e talento. Várias das competências aqui
apresentadas como necessárias ao cantor popular são comuns a todo e qualquer cantor,
independente de seu estilo.
No que se refere ao domínio da técnica vocal, além dos objetivos de desenvolvimento
continuado, é importante que o cantor popular tenha consciência dos seus processos
fonatórios: ele precisa estar atento à sua sonoridade, seu timbre, buscando dentro das
suas possibilidades estabelecer uma identidade vocal que constitua a sua “marca”, sua
personalidade individual. Ele vai procurar realçar alguma característica pessoal que torne
sua voz facilmente reconhecível. Evidentemente, ele deve também aperfeiçoar e expandir
seus limites vocais, e ser capaz de proteger seu aparelho fonatório, identificando
fatores de stress excessivo, evitando o esforço desnecessário e garantindo sua
longevidade profissional.
Cabe ao cantor popular (e naturalmente ao seu professor) escolher a melhor tonalidade
para cada música do repertório. Como não existe qualquer regra determinando que uma
composição deva ser executada sempre no tom “original”, é preciso estar apto a
identificar o melhor tom para cada música para cada cantor.
Um ponto importante (que se aplica exclusivamente ao cantor popular) é que tenha
familiaridade
com
os
diversos
equipamentos
de
amplificação
vocal
(microfone,
equalizador, reverb, compressor). Assim ele poderá administrar as diferentes formas de
emissão vocal em cada situação: por exemplo, num piano-bar, acompanhado por piano e
contrabaixo acústicos, contando com uma boa mesa de som operada por um técnico
competente, o cantor pode usar uma sonoridade vocal bem intimista, onde cada sutileza
21
de interpretação estará realçada. Num show, acompanhado por uma banda que inclui
percussão e metais, ele poderá usar um discurso musical mais dinâmico, com grandes
variações de intensidade vocal, explorando os extremos de sua tessitura. Os exemplos
poderiam se multiplicar - um baile com grande orquestra e poucos recursos para
amplificação da voz, um estúdio de gravação onde o acompanhamento é todo eletrônico,
uma apresentação de voz e violão num shopping-center onde o público participa cantando
e batendo palmas, etc. O importante é que o cantor identifique as diferentes situações e
saiba usar a emissão mais adequada a cada uma delas.
Como não existe regra para determinar qual a postura cênica correta para o cantor
popular, é preciso que ele tenha consciência da sua movimentação no palco, buscando
adequá-la ao gênero de música apresentado e ao espaço onde o show acontece. Suas
próprias características pessoais têm que ser levadas em conta, sendo fundamental
conhecer suas limitações (que devem ser respeitadas) e suas potencialidades (que devem
ser realçadas). Assim, a competência de executar uma coreografia complexa é
fundamental para um cantor que pretenda integrar o elenco de um musical como os da
Broadway; o vigor físico é requisito básico para um cantor que aspire cantar, dançando,
num Trio Elétrico durante o carnaval; um cantor intimista precisa desenvolver a
expressão facial que vai sublinhar suas interpretações, dando o peso exato a cada frase
pronunciada. A competência comum a todos eles é a disponibilidade física e afetiva para
viver integral e verdadeiramente um personagem a cada canção.
A interpretação no canto popular, como vimos, chega às vezes a influir na própria
essência da composição. O cantor deve portanto ter a sua percepção musical (ou “ouvido”
musical) bastante desenvolvida. Dentro deste conceito, incluímos:
A questão rítmica - Por um lado, é preciso saber manter firme a pulsação da música (o
pulso, ou tempo, ou beat), enquanto, por outro lado, é preciso variar a divisão rítmica e a
acentuação dentro da frase. Este é um ponto de diferenciação do cantor lírico, que não
pode modificar as figuras rítmicas da melodia mas tem licença para alterar o tempo. O
cantor popular que cante obedecendo exatamente o desenho rítmico da partitura corre o
risco de soar “quadrado”, “duro”, sem suíngue ou fora de estilo. O suíngue (ou bossa) tão
necessário ao cantor popular consiste entre outras coisas em variar, de maneira pouco
22
previsível, a acentuação e a forma de dividir as frases sem perder a pulsação. Portanto,
se na partitura se lê
é possível, por exemplo, cantar assim:
ou talvez assim:
ou ainda:
É preciso também conhecer algumas convenções da linguagem da música popular – por
exemplo, no samba e no choro há acentos que não estão escritos mas são executados; da
mesma forma, as colcheias no jazz são sempre “suingadas”, ou seja, onde estão escritas
duas colcheias deve-se cantar uma quiáltera onde a primeira nota é uma semínima e a
segunda, uma colcheia. Ou seja:
Onde está escrito
deve-se sempre tocar
A questão melódica e harmônica – Uma competência básica a ser desenvolvida (mas nem
por isto menos importante) é a de saber começar a música na tonalidade correta a partir
de uma introdução instrumental não previamente combinada. Em muitas situações do
cotidiano do cantor popular, como em bailes ou em trabalhos em casas noturnas, a
introdução é criada na hora pela banda. Na verdade, o arranjo todo é criado na hora,
23
geralmente de ouvido ou com base em partitura com a harmonia cifrada (29). Não é raro
haver substituições imprevistas dentro da banda, e há casos em que o cantor só vai
conhecer os instrumentistas na hora do show. É preciso, portanto, conhecer (ainda que só
intuitivamente) os princípios que norteiam estes arranjos instantâneos, ter familiaridade
com as cadências harmônicas mais comuns, reconhecer as sonoridades de tensão/repouso,
identificar os acordes que conduzem às diferentes partes da canção para não ficar
perdido no arranjo. Saber onde, quando e como começar a música, ceder espaço para os
improvisos instrumentais, voltar a cantar na parte apropriada e saber finalizar o tema,
todas estas são competências indispensáveis para o cantor popular.
A competência para improvisar está ligada à compreensão internalizada da estrutura
musical e do sentido de cada frase melódica, o que inclui perceber a sua inserção na
harmonia que acompanha esta frase (ou seja, como se estrutura a relação de cada nota
com a harmonia do momento), antecipar mentalmente o caminho melódico e harmônico que
se seguirá (ouvido interno), inventariar as alternativas possíveis dentro daquele contexto
e escolher apropriadamente uma delas. Tudo isto se processa em frações de segundos.
Adquirir esta capacidade exige evidentemente intensa prática, onde (30) se elaboram e se
integram a absorção ou internalização das formas (processo de alimentação) e a
expressão ou externalização das idéias musicais que um indivíduo já possui.
29
Como já vimos na pág. 21.
30
Conforme GAINZA, op. cit., p.15
24
O Professor de canto popular: competências básicas
A partir da segunda metade do século XX, as sociedades têm passado por notáveis
transformações: a velocidade com que surgem a todo instante novos saberes que logo
passam a ser indispensáveis enquanto outros se tornam obsoletos não poderia deixar de
influir no perfil do educador e na sua formação. Não se pode mais considerar a obtenção
de um diploma superior como o encerramento dos estudos – ao contrário, ele marca a
abertura de uma gama de possibilidades apontando sempre para a continuidade da
pesquisa. Cada ciclo de aprendizagem encaminha para outros nódulos da rede de
conhecimentos. Mudam os paradigmas da sociedade e da educação, o papel do aluno é
repensado, o papel do professor é questionado.
A formação do professor de canto não pode desprezar este contexto de mudanças. Como
já foi apontado ao longo deste trabalho, não podemos conceber o canto desvinculado da
música. Consequentemente, não vemos sentido na aula de canto que deixe de lado a
educação musical. A ênfase, a ótica, os objetivos específicos e os meios de atingi-los
podem ser diferentes – mas não vemos como nem porque desvincular o professor de
canto do educador musical. Qual seria, então, a formação profissional necessária para o
professor de canto popular? Que competências deve ele desenvolver? Buscamos em
Perrenoud (31) algumas referências que fundamentam as nossas reflexões a seguir.
Uma competência cada vez mais prioritária é que o professor possa gerir sua própria
formação contínua, fazendo seu balanço de competências e elaborando um programa
pessoal de estudos e projetos de pesquisa.
“O professor deve tornar-se alguém que concebe
sua própria prática para enfrentar eficazmente a variabilidade e a transformação de suas
condições de trabalho”, diz Perrenoud (32).
Fundamental é também desenvolver a capacidade de trabalhar num modelo colaborativo.
Não existe mais o professor onisciente – quem acha que sabe tudo deve estar mal
31
PERRENOUD, Formar Professores em Contextos Sociais em Mudança (1999), p. 5 – 21
32
Idem, p. 11
25
informado. A preparação de um cantor requer esforço multidisciplinar, com a
participação de equipe que inclui entre outros o professor de canto, o arranjador, os
instrumentistas, o fonoaudiólogo, o otorrinolaringologista, o cenógrafo, o técnico de
áudio, o assessor de marketing.
Sem sombra de dúvida o professor de canto deve ter pleno domínio dos saberes ligados
especificamente à técnica e aos mecanismos de produção vocal, já amplamente
comentados aqui. A familiaridade com as estruturas musicais, em toda a sua sutileza e
complexidade, são igualmente fundamentais para que ele possa intermediar a aquisição
das competências musicais que esperamos ver desenvolvidas pelos alunos, conforme
discutimos no capítulo anterior. Tentaremos exemplificar algumas destas competências:

sólido conhecimento de todas as questões envolvidas na produção do som vocal

sólido conhecimento de teoria musical e harmonia funcional

vasto repertório que inclua diversos estilos dentro da música popular, capacidade
de observação e comparação entre estes estilos

ouvido treinado e atento para detectar problemas musicais e/ou vocais específicos
nos alunos ou nos grupos

criatividade para construir as soluções para cada caso

sensibilidade para identificar as nuances vocais do aluno, analisando-as dentro do
contexto de cada estilo
Outro requisito básico dentro da área musical é a vivência como cantor popular nos seus
diversos segmentos de atuação (shows, casas noturnas, bailes, grupos vocais, gravações
etc.), prática que a nosso ver deveria ser incentivada nas faculdades e que julgamos
comparável à residência nos cursos de Medicina.
Há competências ligadas à operacionalização das aulas. Não estamos ainda nos referindo
aos saberes pedagógicos propriamente ditos, mas sim àqueles que constituem recursos
práticos para gerar atividades didáticas e trazer maior dinâmica à própria aula:
26

saber tocar, pelo menos em nível de ferramenta, um instrumento harmônico, para
acompanhar os alunos na aula e/ou para criar este acompanhamento num
sequenciador e gravá-lo para utilização nas aulas

conhecer, pelo menos em nível de operação, os equipamentos básicos de
amplificação usados para a voz como os diferentes tipos de microfones, caixas
acústicas, equalizadores, reverberadores, compressores etc.

ter fluência tecnológica, pelo menos em nível de usuário, para tornar mais atraente
e agilizar a produção de material para as aulas (por exemplo, usar um software
editor de partituras para criar e imprimir exercícios que serão distribuídos na
turma, usar diferentes fontes num processador de texto para enfatizar
determinada frase ou trecho da letra de uma canção, usar um software editor de
HTML para disponibilizar material didático via Internet etc.)
Há ainda competências básicas diretamente ligadas às ciências do saber, aos processos
de construção do conhecimento, ao enfoque psico-pedagógico das situações de aula.
Entre estas, destacamos as competências de:

envolver os alunos em sua aprendizagem e seu trabalho, motivando-os, suscitando
neles o desejo de aprender e favorecendo a definição de projetos pessoais

gerir a heterogeneidade no interior do grupo classe, desenvolvendo a cooperação
entre alunos e promovendo atividades de ensino mútuo

gerir a progressão das aprendizagens, observando e avaliando os alunos nas
situações de aprendizagem, fazendo balanços periódicos, concebendo e gerindo
situações-problema adequadas aos níveis e possibilidades dos alunos
Em suma, espera-se que o professor esteja em constante processo de atualização,
incluindo-se aí a busca de informações e de parcerias multidisciplinares. Não há razão
para que o professor se limite a repetir, sem questionar, as lições que recebeu dos seus
próprios mestres. No caso do canto popular, esta repetição do que foi aprendido (e que
geralmente se situava dentro da linha do Bel Canto) só vai perpetuar a inadequação dos
métodos usados em sala de aula à preparação do cantor popular, aumentando assim o
distanciamento entre a educação e a prática musical. A busca de recursos e materiais
27
didáticos complementares que sejam coerentes com a estética da música popular é parte
essencial deste processo de formação continuada do professor.
28
Bibliografia
BEZZI, Maria Helena – Técnica Vocal (1983), Conservatório Brasileiro de Música do Rio
de Janeiro
CALDWELL, J. Timothy: Expressive Singing – Dalcroze Eurhythmic for Voice –
Englewood Cliffs, New Hersey, Prentice-Hall, Inc (1995)
COELHO, Helena Wöhl: Técnica Vocal para Coros – São Leopoldo, RS – Ed. Sinodal (1994)
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DELANO, Cris: Mais que Nunca é Preciso Cantar – Rio de Janeiro, 1999 (edição
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MORA, Renzo: Sinatra - o homem e a música – São Paulo, Lemos Editorial & Gráficos
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OLESON, Karen: I’m not Crazy, I’m Singercising! – Seattle, WA, Voice Tech (1991)
PANOFKA, Heinrich: 24 Vocalizzi, Op. 81 per contralto, baritono o basso - Milano, Casa
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PERRENOUD, Philippe: Formar Professores em Contextos Sociais em Mudança, in Revista
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29
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30

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