Janeiro – Março/2015

Transcrição

Janeiro – Março/2015
EDITORIAL
Sobre hipertensão arterial e pé diabético
On arterial hypertension and diabetic foot
Nesta edição, são abordados dois temas passíveis de ser
diagnosticados e receber orientação adequada no contexto
do atendimento primário – Hipertensão Arterial (1) e Pé
Diabético (2).
Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) é um problema
grave de saúde pública no Brasil e no mundo. É um dos
mais importantes fatores de risco para o desenvolvimento
de doenças cardiovasculares, cerebrovasculares e renais. A
HAS é responsável por aproximadamente 40% das mortes
por acidente vascular cerebral, 25% das mortes por doença arterial coronariana e, em combinação com o diabetes,
50% dos casos de insuficiência renal terminal. Com o critério atual de diagnóstico de hipertensão arterial (PA 140/90
mmHg), a prevalência na população urbana adulta brasileira varia de 22,3% a 43,9%, dependendo da cidade onde o
estudo foi conduzido (3).
Modificações de estilo de vida são de extrema importância no tratamento e na prevenção da hipertensão. Redução no consumo de sal, controle do peso, prática de atividade física, tabagismo e uso excessivo de álcool são fatores
de risco que devem ser controlados, sem o que, mesmo
doses progressivas de medicamentos não resultarão alcançar os níveis recomendados de pressão arterial.
Apesar dessas evidências, hoje, incontestáveis, esses fatores relacionados a hábitos e estilos de vida continuam a
crescer na sociedade, levando a um aumento contínuo da
incidência e prevalência da HAS, assim como do seu controle inadequado. A despeito da importância da abordagem individual, cada vez mais se comprova a necessidade
da abordagem coletiva para se obter resultados mais consistentes e duradouros dos fatores que levam à hipertensão
arterial (3).
É preciso ter em mente que a manutenção da motivação do paciente em não abandonar o tratamento é, talvez,
uma das batalhas mais árduas que profissionais de saúde
enfrentam em relação ao paciente hipertenso. Para complicar ainda mais a situação, é importante lembrar que
um grande contingente de pacientes hipertensos também
apresenta outras comorbidades, como diabetes, dislipidemia e obesidade, o que traz implicações importantes em
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 1-3, jan.-mar. 2015
termos de gerenciamento das ações terapêuticas necessárias para o controle de um aglomerado de condições
crônicas, cujo tratamento exige perseverança, motivação
e educação continuada (3).
Pé Diabético é o termo empregado para nomear as diversas alterações e complicações ocorridas, isoladamente ou
em conjunto, nos pés e nos membros inferiores dos diabéticos. A abordagem do membro inferior do paciente diabético
não é desvinculada dos cuidados gerais (controle da glicemia, hipertensão, obesidade, dislipidemia, tabagismo, atividade física, alimentação), que são decisivos para melhorar a
qualidade de vida e aumentar a sua sobrevida. O pé diabético
é uma entidade com fisiopatologia complexa e de prevalência elevada. Sua prevenção e controle dependem de ações
educativas e interações multidisciplinares (4).
O objetivo fundamental da atuação relativa ao pé diabético é evitar a amputação, através do reconhecimento do
risco e da intervenção imediata.
O estabelecimento de programas e projetos que privilegiem a educação dos profissionais de saúde, dos pacientes e
seus familiares tem importância primordial nas estratégias
de controle da hipertensão arterial e da redução das internações e amputações de diabéticos com complicações nos
membros inferiores.
RENATO B. FAGUNDES, MD PhD
Editor Executivo
REFERÊNCIAS
1. Nakashima L, Trevisol FS, Sebold FJG, Della Jr AP, Pereira MR,
Trevisol DJ. Prevalência da Hipertensão Arterial Sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC). Rev AMRIGS 2015; 59(1):4-9.
2. Thomazelli FCS, Machado CB, Dolçan KS. Análise do risco de Pé
Diabético em um Ambulatório Interdisciplinar de Diabetes. Rev
AMRIGS 2015; 59(1):10-14.
3. Hipertensão arterial sistêmica para o Sistema Único de Saúde/Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de
Atenção Básica. Cadernos de Atenção Básica 16;2006.
4. CaiafaI JS, CastroII AA, Fidelis C, Santos VP, da Silva ES, Sitrângulo Jr CJ. Atenção integral ao portador de pé diabético. J Vasc Bras
2011; 10 (4) supl 2.
3
ARTIGO ORIGINAL
Prevalência da hipertensão arterial sistêmica
em adultos do município de Tubarão (SC)
Prevalence of systemic arterial hypertension in adults in the municipality of Tubarão, SC
Leandro Nakashima1, Fabiana Schuelter Trevisol2, Fábio Jean Goulart Sebold3,
Afonso Possamai Della Júnior4, Márcia Regina Pereira5, Daisson José Trevisol6
RESUMO
Introdução: A hipertensão arterial sistêmica (HAS) é um dos problemas de saúde pública mais importante em todo o mundo.
O diagnóstico precoce e a baixa adesão ao tratamento farmacológico continuam sendo os principais desafios no controle da doença.
O objetivo deste estudo foi identificar a prevalência da HAS e os principais fatores associados em adultos do Município de Tubarão,
Santa Catarina. Métodos: Estudo transversal com indivíduos adultos, de ambos os sexos, residentes no município. Os participantes
foram submetidos à entrevista, antropometria e aferição da pressão arterial sistêmica. Resultados: Foram avaliados 367 indivíduos,
adultos e a prevalência da HAS foi de 29,4%. Os fatores associados à HAS de forma independente foram idade avançada [RP = 2,32
(1,56-3,45) p<0001], obesidade [RP=2,29 (1,80-2,90) p<0001] e história familiar de HAS [RP=0,58 (0,40-0,84) p<0,001]. Dos entrevistados, 12,8% faziam uso de medicação anti-hipertensiva, entretanto não tinham controle pressórico satisfatório, e 15% dos
participantes tinham o diagnóstico de HAS, porém não faziam uso de nenhum tipo de medicamento. Conclusão: A prevalência da
HAS no estudo corrobora com os números do Ministério da Saúde quando comparados com outros estudos nacionais, indicando
a necessidade de rastreamento e controle dos níveis pressóricos da população para reduzir as complicações relacionadas à doença.
UNITERMOS: Prevalência, Hipertensão, Adulto.
ABSTRACT
Introduction: Systemic arterial hypertension (SAH) is one of the major problems of public health worldwide. Early diagnosis and poor adherence to drug
treatment remain key challenges in controlling the disease. This study was designed to identify the prevalence of hypertension and associated factors in adults
in the municipality of Tubarão, Santa Catarina. Methods: Cross-sectional study of adults of both sexes living in Tubarão. Participants were submitted to
an interview, anthropometry, and blood pressure measurement. Results: A total of 367 adults were assessed and the prevalence of hypertension was 29.4%.
Factors independently associated with hypertension were older age [OR = 2.32 (1.56-3.45) p <0.001], obesity [PR = 2.29 (1.80-2.90) p <0.001] and
family history of SAH [OR = 0.58 (0.40-0.84) p <0.001]. Of the respondents, 12.8% were taking antihypertensive medication but had no satisfactory blood pressure control, and 15% had a diagnosis of SAH but did not use any medication. Conclusion: The prevalence of hypertension in the study
corroborates the figures from the Ministry of Health as compared with other national studies, indicating the need for tracking and control of blood pressure
levels in the population to reduce the complications related to the disease.
KEYWORDS: Prevalence, hypertension, adult
1
2
3
4
5
6
4
Médico.
Doutorado (Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde – UNISUL – e Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital Nossa
Senhora da Conceição.)
Médico Residente em Anestesiologia.
Médico.
Mestrado pela Universidade do Extremo Sul de Santa Catarina. (Médica Cardiologista. Professora da UNISUL.)
Doutor em Cardiologia e Ciências Cardiovasculares pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (Professor do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Saúde da UNISUL e Coordenador do Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital Nossa Senhora da Conceição.)
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 4-9, jan.-mar. 2015
Prevalência da hipertensão arterial sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC) Trevisol et al.
INTRODUÇÃO
A Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) é provavelmente um dos problemas de saúde pública mais importantes nos
países desenvolvidos e que apresenta uma grande magnitude
nos países em desenvolvimento (1). A HAS tem alta prevalência, geralmente é assintomática, facilmente detectável, na
maioria das vezes facilmente tratável e, muitas vezes, quando não tratada, acarreta complicações fatais (2). Em 90-95%
dos casos, sua fisiopatologia é desconhecida, sendo tratada
de forma inespecífica. Isso resulta em um grande número
de efeitos colaterais menores e uma taxa relativamente alta
(50-60%) de não adesão ao tratamento farmacológico (3,4).
A HAS associa-se frequentemente a alterações funcionais e/ou estruturais de órgãos-alvo (coração, encéfalo, rins e vasos sanguíneos) e alterações metabólicas, com
consequente aumento do risco de eventos cardiovasculares
fatais e não fatais (5,6). Os principais fatores de risco para
o desenvolvimento da HAS são a idade avançada (homens
após os 55 anos e mulheres após os 65 anos); o tabagismo;
as dislipidemias; diabetes mellitus e história familiar prematura de doença cardiovascular (1). Níveis elevados de pressão
arterial (PA) são prejudiciais para todas as pessoas, independentemente da idade (5,6).
No mundo, estima-se que a HAS acometa mais os homens. Há uma prevalência global de 37,8% em homens
e 32,1% em mulheres (1,3). No Brasil, de acordo com o
Ministério da Saúde, a HAS é o principal fator de risco para
as doenças cardiovasculares, e sua prevalência varia entre
22,3% e 43,9% entre adultos (7).
O tratamento da HAS baseia-se em uma abordagem
multiprofissional. A abordagem medicamentosa tem como
principal objetivo a redução da pressão arterial sistêmica
(PAS), a fim de diminuir a morbidade e a mortalidade por
eventos cardiovasculares. É importante lembrar que apenas
o tratamento medicamentoso não é suficiente para o tratamento e controle da HAS. A mudança no estilo de vida continua sendo fundamental para a diminuição da morbidade e
mortalidade causada por eventos cardiovasculares (4,6).
A importância deste estudo é decorrente da crescente prevalência da HAS em países em desenvolvimento. É
uma doença silenciosa, que não manifesta sintomas em
seus estágios iniciais e, quando não tratada nem controlada
adequadamente, pode causar sérios riscos à saúde. A HAS
é responsável por grandes índices de morbidade e mortalidade, e parte da população desconhece o diagnóstico da
doença, não procurando auxílio médico adequado (2,5).
Este estudo teve por objetivo identificar a prevalência
da HAS e fatores associados em adultos em um município
do Sul de Santa Catarina.
MÉTODOS
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da UNISUL sob protocolo 11.130.4.01.III, em 24
de maio de 2011.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 4-9, jan.-mar. 2015
Estudo epidemiológico com delineamento transversal,
de base populacional, para determinar a prevalência de HAS,
bem como os fatores associados a esta doença, na população adulta residente do Município de Tubarão, Santa Catarina. Este projeto está aninhado no estudo ESATU (Estudo
da Saúde de Adultos de Tubarão), em uma parceria entre o
Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital Nossa Senhora da
Conceição (HNSC), Universidade do Sul de Santa Catarina
(UNISUL) e Secretaria de Saúde de Tubarão. Os dados foram coletados entre novembro de 2011 e maio de 2012.
Para o cálculo do tamanho da amostra, levou-se em
consideração a população adulta do município, com 62.537
habitantes, uma prevalência média de 20% de HAS, com
um nível de confiança de 95% e margem de erro de 1%,
resultando em amostra mínima de 245 participantes.
Foram incluídos indivíduos entre 18 e 59 anos, de ambos os sexos, residentes no referido município e que aceitaram participar de estudo mediante anuência do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. Foram excluídos indivíduos impossibilitados de se deslocar ao Hospital Nossa
Senhora de Conceição para coleta de dados e realização de
exames laboratoriais.
Os participantes foram selecionados a partir de amostragem aleatória simples, segundo os números da residência cadastrados em cada uma das 250 microáreas do município, registradas nas 27 unidades de estratégia de saúde da
família (ESF). Cada microárea possui um agente comunitário de saúde para realizar visitas domiciliares periódicas,
e a taxa de cobertura é estimada em 90% da população
residente. A partir do sorteio da residência, o agente comunitário de saúde convidava o residente a participar do
estudo, de acordo com os critérios de inclusão e exclusão.
A coleta de dados aconteceu aos sábados, no período
matutino, em ambulatórios médicos nas dependências do
Hospital Nossa Senhora da Conceição, em consultas pré-agendadas aos participantes sorteados. Foi solicitado o
comparecimento do paciente em jejum de 12 horas, e que
se evitasse o consumo de bebida alcoólica nas 72 horas anteriores à consulta. Os pacientes também foram orientados
a não fumar e ficar 20 minutos sentados antes da aferição
da PA.
Os participantes, após consentimento, foram submetidos à entrevista, e o instrumento continha dados sociodemográficos (idade, sexo e escolaridade), dados comportamentais (sedentarismo, alcoolismo e tabagismo) e clínicos
(histórico de doenças cardiovasculares e uso de medicamentos). Foram considerados como tabagistas os indivíduos que fumaram 100 ou mais cigarros durante toda sua
vida (8). Entre os adultos que afirmaram consumir álcool,
foi aplicado o questionário CAGE (9). Para aferição do nível de atividade física, utilizou-se o Questionário Internacional de Atividade Física, versão curta (10,11).
Foi realizada a aferição das medidas antropométricas
(altura, peso) para determinação do índice de massa corporal (IMC), sendo considerados obesos indivíduos com
IMC ≥ 30kg/m2.
5
Prevalência da hipertensão arterial sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC) Trevisol et al.
A hipertensão arterial sistêmica (HAS) foi avaliada
utilizando os critérios propostos pela Sociedade Brasileira de Cardiologia, em sua Diretriz da Hipertensão do ano
de 2010 (4), que consiste na realização de três medidas de
PA com intervalo de um minuto entre cada aferição, com
o equipamento OMRON HEM-742INT. Pacientes com
HAS foram classificados quando apresentaram a média
das aferições de pressão arterial sistólica e diastólica com
resultados ≥140 ou ≥90 mmHg, respectivamente, ou em
uso de medicamentos anti-hipertensivos.
Para o cálculo de tamanho de amostra, utilizou-se o
programa OpenEpi versão 2.3.1. Os dados coletados foram inseridos no programa Epidata versão 3.1 (EpiData
Association, Odense, Denmark), e a análise estatística foi
realizada no software Statistical Package for Social Sciences
(SPSS for Windows v 19; Chicago, IL, USA). Os dados
foram descritos com emprego da estatística descritiva, frequência e medidas de tendência central e dispersão. Para
se verificar associação entre as variáveis de interesse, foi
utilizada a razão de prevalência, sendo realizada análise
multivariada pelo emprego da regressão de Poisson, com
estimador robusto para controle dos fatores de confusão,
com nível de confiança de 95%.
RESULTADOS
Dos 419 indivíduos convidados a participar do estudo, 376 compareceram ao local de coleta de dados. Destes, 9 foram excluídos. Assim, a taxa de não resposta foi
de 12,4%. Foram avaliados 367 participantes, sendo 64%
mulheres. A prevalência de HAS no estudo foi de 29,4%.
Houve maior prevalência de HAS entre homens (39,4%)
do que em mulheres (36,2%), mas a diferença não foi estatisticamente significativa.
A Tabela 1 descreve as características da amostra e sua
associação com HAS.
Verificou-se que ocorreu o predomínio de adultos jovens, do sexo feminino, com situação conjugal estável. A
raça branca também foi predominante na amostra. A grande maioria não fumava nem consumia bebidas alcoólicas.
Referente à análise bivariada, houve associação entre HAS
e as seguintes variáveis: faixa etária, situação conjugal, escolaridade, tabagismo, alcoolismo, obesidade e história familiar de HAS.
Em relação à escolaridade, da população com oito anos
ou menos de estudo que tinham o diagnóstico de HAS, 56
indivíduos (69,1%) faziam o uso regular de anti-hipertensivo contra apenas 25 (45,5%) que tinham mais de nove anos
de escolaridade. Além disso, 12,8% usavam medicação
anti-hipertensiva, entretanto não tinham controle pressórico satisfatório. Dos participantes que tiveram diagnóstico
HAS, 15% não faziam uso de nenhum tipo de medicamento por desconhecer a doença ou por opção própria.
A Tabela 2 apresenta a análise multivariada dos fatores
associados à HAS.
6
DISCUSSÃO
Foram considerados hipertensos os indivíduos que
apresentaram pressão arterial sistólica maior que 140
mmHg, ou pressão arterial diastólica maior que 90 mmHg,
ou faziam uso de algum medicamento anti-hipertensivo,
independentemente da classe do fármaco. Ficou evidenciado que 29,4% da população estudada tinham HAS. Esses
dados corroboram com os números da VI Diretriz sobre
Hipertensão da Sociedade Brasileira de Cardiologia (4),
com os dados do Ministério da Saúde (7) e com dados de
outros estudos de base populacional do Sul do país (12).
Em relação à prevalência da HAS quanto à faixa etária,
a idade avançada foi considerada um fator associado de
forma independente para o desenvolvimento da HAS. A
prevalência aumentou de modo linear quanto maior a idade: 18% dos adultos entre 50 e 59 anos tinham o diagnóstico da doença, dados semelhantes ao estudo também de
base populacional conduzido no Maranhão (13).
A história familiar também foi considerada fator associado de forma independente à ocorrência de HAS. Sabe-se que a doença hipertensiva ocorre devido à expressão de
diversos genes, os quais se manifestam diante da exposição
ambiental (14,15). Pessoas de diferentes etnias apresentam
grupos de diferentes genes que podem causar a hipertensão, atuando de maneira distinta para causar a HAS (16).
Tudo isso é influenciado pelos hábitos dos grupos sociais
em que convivem os indivíduos. Por isso, a importância
de um tratamento individualizado, particularmente quando
estamos falando de HAS em um país que mistura diversas
etnias, como o Brasil.
A obesidade também se associou de forma independente com a HAS. Pessoas com IMC maior que 25kg/m²
apresentaram associação direta com a elevação dos níveis
de PAS e PAD, e essa relação parece ser mais evidente em
pessoas do gênero masculino (17,18). O mecanismo pelo
qual o aumento da massa corporal interfere na alteração
dos níveis de pressão arterial não é totalmente elucidado.
Entretanto, sabe-se que não se trata apenas de um evento
único e isolado e, sim, de uma associação de fatores relacionados à obesidade e à HAS, como aumento do consumo de sódio, redução da prática de exercícios físicos, resistência à insulina e outras alterações endocrinológicas (18).
A raça, neste estudo, não foi considerada um fator
associado à HAS, ao contrário de outros trabalhos que
apresentam esta relação (6,12,13). É sabido que indivíduos afrodescendentes apresentam algumas particularidades
quanto à captação, recaptação e excreção de eletrólitos,
principalmente do sódio e do potássio (16). Isso também
influencia na forma e eficiência da ação dos fármacos anti-hipertensivos (6). A inexistência da associação entre raça e
HAS no presente estudo pode ser explicada pela pequena
parcela de “não brancos” participantes do estudo devido à
colonização europeia predominante na região, o que pode
gerar pouco poder de estudo para encontrar diferença estatisticamente significativa.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 4-9, jan.-mar. 2015
Prevalência da hipertensão arterial sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC) Trevisol et al.
Tabela 1 – Características sociodemográficas e sua associação com HAS entre os participantes do estudo. Tubarão (SC), 2012.
Variável
n(%)
% de HAS
RP (IC95%)
Sexo
Mulher
235 (64,0)
85 (36,2)
1,0
Homem
132 (36,0)
52 (39,4)
1,09 (0,83-1,43)
151 (41,1)
30 (19,9)
1,0
Idade
18-39
p
0,537
0,002
40-49
110 (30,0)
41 (37,3)
1,87 (1,25-2,80)
50-59
106 (28,9)
66 (62,3)
3,13 (2,20-4,46)
Sem companheiro
115 (31,3)
29 (25,2)
1,0
Com companheiro
252 (68,7)
108 (42,9)
1,70 (1,20-2,4)
>8 anos
187 (51,0)
56 (29,9)
1,0
0-8 anos
180 (49,0)
81 (41,0)
1,50 (1,14-1,97)
Branco
316 (86,1)
117 (37,0)
1,0
Não Branco
51 (13,9)
20 (40,0)
1,08 (0,75-1,56)
Sim
243 (66,2)
85 (35,0)
1,0
Não
124 (33,8)
52 (41,9)
1,20 (0,92-1,57)
Nunca fumou
254 (69,2)
82 (32,3)
1,0
Fumante
113 (30,8)
55 (48,7)
1,51 (1,16-1,96)
Não
337 (91,8)
122 (36,2)
1,0
Sim
30 (8,2)
15 (50,0)
1,38 (0,94-2,03)
Não
269 (73,3)
70 (26,0)
1,0
Sim
98 (26,7)
67 (68,4)
2,63 (2,06-3,35)
Não
95 (25,9)
20 (21,1)
1,0
Sim
272 (74,1)
117 (43,0)
2,04(1,38-3,08)
Situação Conjugal
<0,001
Escolaridade
0,003
Raça
0,681
Trabalho
0,186
Tabagismo
0,002
Alcoolismo
0,100
Obesidade
<0,001
HAS familiar
0,001
Outros fatores de associação conhecida com a HAS,
como tabagismo, alcoolismo, baixa escolaridade e atividade
física, não se mostraram significativos neste estudo. Isso
pode ter ocorrido devido ao fenômeno de casualidade reversa ou por influência do tamanho amostral, pois, com a
inclusão de diversas variáveis na análise multivariada, perde-se o poder do estudo.
Quanto à situação conjugal, as pessoas que viviam
acompanhadas demonstraram uma maior prevalência de
HAS. Em um estudo publicado em 2005, foram analisadas
mulheres chinesas nos anos de 1991 e 1997. As mulheres
que permaneceram casadas neste período apresentaram
uma menor prevalência de doenças cardiovasculares, e as
mulheres que se casaram ou se separaram tiveram maior
prevalência para HAS (15). Em outro estudo publicado
também no ano de 2005, concluiu-se que homens que nunca se casaram têm uma prevalência maior de HAS devido
ao fato de se exporem mais a fatores de risco como IMC
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 4-9, jan.-mar. 2015
elevado, fumo e alcoolismo (19,20). Contudo, após o ajuste
dos fatores de confusão, esta variável não se associou de
forma independente ao desfecho no presente estudo.
O tabagismo não foi considerado um fator associado
de forma independente para a doença hipertensiva. Apesar
de não apresentar um efeito direto para o desenvolvimento
da HAS, o cigarro contribui para uma maior rigidez das
artérias de grande calibre, diminuição da complacência dos
vasos sanguíneos e lesão endotelial (21). Mesmo após o
uso do primeiro cigarro, é possível identificar tais alterações, que ficam cada vez mais evidenciadas em fumantes
crônicos. Também não podemos descartar a relação direta
do cigarro como fator de risco para outras doenças cardiovasculares como infarto agudo do miocárdio e acidente
cerebral encefálico (22).
Apesar do resultado divergente em relação a diversos trabalhos existentes (12,13), a baixa escolaridade não foi um
fator de risco independente para HAS no presente estudo.
7
Prevalência da hipertensão arterial sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC) Trevisol et al.
Tabela 2 – Fatores de risco para HAS entre os participantes da
pesquisa. Análise multivariada dos fatores independentes. Tubarão SC, 2012.
Variável
Razões de
prevalência
ajustada* (IC95%)
Faixa Etária
<0,001
18 - 39 anos
1,0
40 - 49 anos
1,63 (1,09-2,46)
50 - 59 anos
2,32 (1,56-3,45)
Situação Conjugal
0,421
Sem companheiro
0,88 (0,64-1,21)
Com companheiro
1,0
Escolaridade
0,727
>8 anos de estudo
1,0
0-8 anos de estudo
0,95 (0,74-1,24)
Tabagismo
Nunca fumou
Fumante
Valor de P
0,281
1,0
1,15 (0,89-1,49)
Alcoolismo
0,531
Não
1,0
Sim
1,13 (0,77-1,64)
Obesidade
<0,001
Não
1,0
Sim
2,29 (1,80-2,90)
História Familiar
0,004
Não
1,0
Sim
0,58 (0,40-0,84)
*Ajustada para faixa etária, situação conjugal, escolaridade, tabagismo,
alcoolismo, obesidade e história familiar de HAS.
A faixa etária, obesidade e história familiar de HAS se associaram de
forma independente ao desfecho.
res, o etilismo dificulta a manutenção da normotensão em
pacientes hipertensos que fazem uso de algum fármaco
anti-hipertensivo.
Entre as limitações do presente estudo, destaca-se a
possibilidade do fenômeno de causalidade reversa, que é
implícita a estudos transversais. Há o potencial viés de seleção, já que os sujeitos sorteados precisavam se deslocar até
o hospital para a coleta de dados. Contudo, a taxa de não
resposta ficou dentro dos limites aceitáveis.
Este estudo apresenta resultados importantes sobre
dados populacionais de HAS em adultos da cidade de Tubarão - SC, que podem auxiliar os gestores na implementação de políticas públicas quanto aos programas de saúde.
Além disso, serve como estudo comparativo para outras
regiões brasileiras. Independentemente do fator causal, é
indiscutível que devem ser realizados programas de saúde
pública acessíveis a toda a população, independentemente
da faixa etária ou classe social, para prevenir não somente
a HAS, mas também todas as comorbidades que ela pode
gerar. É necessário melhorar o rastreio de indivíduos ainda
sem o diagnóstico, principalmente aqueles que apresentam
fatores de risco, e tratá-las de forma mais eficiente. Os gastos para prevenção e tratamento da HAS são custo-efetivas
quando comparadas às complicações dela decorrentes.
CONCLUSÃO
O presente estudo permite concluir que a prevalência
da HAS foi de 29,4%. Os fatores associados à HAS de forma independente foram idade avançada [RP = 2,32 (1,563,45) p<0001], obesidade [RP=2,29 (1,80-2,90) p<0001] e
história familiar de HAS [RP=0,58 (0,40-0,84) p<0,001].
AGRADECIMENTOS
Outros autores mostram que a menor escolaridade está associada à menor compreensão sobre a doença e a adesão ao
tratamento, fato não identificado no presente estudo.
Não houve uma relação entre a situação profissional e
ocorrência de HAS (p=0,186). Alguns estudos concluem
que o desemprego poderia ser um fator de risco para a
HAS devido a uma série de fatores, como menor acesso
aos planos de saúde, a serviços médicos especializados, a
um maior estresse psicológico e menores condições de adquirir medicamento para tratar as doenças (13,23). Porém,
outros estudos defendem que estar empregado seria um
fator de risco devido à tensão e às responsabilidades impostas pela profissão ou até mesmo atuar em uma área com
a qual não se identifica (24,25).
Foram aplicados os critérios de CAGE para determinar a dependência do consumo de bebidas alcóolicas nos
participantes da pesquisa. Do mesmo modo que o tabagismo, o etilismo não demonstrou se associar de forma
independente à HAS, apesar de influenciar de maneira
indireta o sistema cardiovascular (6). Dentre outros fato8
À Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina pelo suporte financeiro. Ao Centro de
Pesquisas Clínicas do Hospital Nossa Senhora da Conceição e à UNISUL, que deu suporte técnico para realização
deste estudo.
REFERÊNCIAS
1. Yusuf S, Reddy S, Ounpuu S, Anand S. Global burden of cardiovascular diseases: part I: general considerations, the epidemiologic
transition, risk factors, and impact of urbanization. Circulation.
2001;104(22):2746-53.
2. Fuster V, Voute J, Hunn M, Smith Jr SC. Low priority of cardiovascular and chronic diseases on the global health agenda: a cause for
concern. Circulation. 2007;116(17):1966-70.
3. Pereira M, Lunet N, Azevedo A, Barros H. Differences in prevalence, awareness, treatment and control of hypertension between
developing and developed countries. J Hypertens. 2009;27(5):96375.
4. Sociedade Brasileira de Cardiologia. VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão. Arq Bras Cardiol 2010;95(1 supl 1):1-51.
5. Palatini P. Role of elevated heart rate in the development of cardiovascular disease in hypertension. Hypertension. 2011;58(5):745-50.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 4-9, jan.-mar. 2015
Prevalência da hipertensão arterial sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC) Trevisol et al.
6. Chobanian AV, Bakris GL, Black HR, Cushman WC, Green LA,
Izzo JL, Jr., et al. Seventh report of the Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation, and Treatment of High
Blood Pressure. Hypertension. 2003;42(6):1206-52.
7. Brasil. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Básica. Hipertensão Arterial Sistêmica para o Sistema Único de Saúde. Brasília, Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: http://dab.saude.
gov.br/docs/publicacoes/cadernos_ab/abcad15.pdf. Acesso em
9 fev 2015.
8. Organización Panamericana de la Salud, Guías para el Control y
Monitoreo de la Epidemia Tabaquica. In: Instituto Nacional de
Câncer (INCA). Abordagem e tratamento do fumante: consenso
2001. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer (INCA); 2001.
9. Masur J, Monteiro MG. Validation of the CAGE alcoholism screening test in a Brazilian psychiatric inpatient hospital setting. Braz J
Med Biol Res 1983; 16:215-8.
10. Craig CL, Marshall AL, Sjöström M, Bauman AE, Booth ML,
Ainsworth BE, et al. International physical activity questionnaire: 12-Country reliability and validity. Med Sci Sports Exerc.
2003;35(8):1381-95.
11. Matsudo S, Araújo T, Matsudo V, Andrade D, Andrade E, Oliveira LC, et al. Questionário internacional de atividade física (IPAQ):
estudo de validade e reprodutibilidade no Brasil. Rev Bras Ativ Fis
Saude. 2001;6(2):5-18.
12. Fuchs FD, Moreira LB, Moraes RS, Bredemeier M, Cardozo SC.
Prevalência de Hipertensão Arterial Sistêmica e Fatores Associados
na Região Urbana de Porto Alegre. Estudo de Base Populacional.
Arq Bras Cardiol. 1994;63(6):474-9.
13. Barbosa JB, Silva AAMd, Santos AMd. Prevalência da Hipertensão
Arterial em Adultos e Fatores Associados em São Luís - MA. Arq
Bras Cardiol. 2008;91(4):260-6.
14. Caulfield M, Lavender P, Farrall M, Munroe P, Lawson M, Turner
P, et al. Linkage of the angiotensinogen gene to essential hypertension. New Engl J Med. 1994;330(23):1629-33.
15. Tsezou A, Karayannis G, Giannatou E, Papanikolaou V, Triposkiadis F. Association of renin-angiotensin system and natriuretic peptide receptor A gene polymorphisms with hypertension in a Hellenic
population. J Renin Angiotensin Aldosterone Syst 2008;9(4):202-7.
16. Lopes AA. Revisão/Atualização em Hipertensão Arterial: Influência de fatores étnicos e raciais na hipertensão arterial. J Bras Nefrol.
1999;21(2):82-4.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 4-9, jan.-mar. 2015
17. Gus M, Fuchs FD. Obesidade e Hipertensão. Arq Bras Cardiol.
1995;64(6):565-70.
18. Wong ND, Moran AE. The U.S. Prevention of Cardiovascular Disease Guidelines and Implications for Implementation in LMIC. Glob
Heart. 2014;9(4):445-55.
19. Wang H. Effects of Marital Status and Transition on Hypertension
in Chinese Women: A Longitudinal Study March 2005 Haijiang
Wang. Johns Hopkins Bloomberg School Public Health. 2005. Disponível em: http://paa2005.princeton.edu/papers/51669. Acesso
em 14 jan 2015.
20. Lipowicz A, Lopuszanska M. Marital differences in blood pressure
and the risk of hypertension among Polish men. Eur j Epidemiol
2005; 20(5):421-7.
21. Mahmud A, Feely J. Effect of smoking on arterial stiffness and pulse pressure amplification. Hypertension. 2003;41(1):183-7.
22. Piegas LS, Feitosa G, Mattos LA, Nicolau JC, Neto JMR, Timerman
A. Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre Tratamento
do Infarto agudo do Miocárdio com Supradesnível do Segmento
ST. Arq Bras Cardiol. 2009;93(6 Supl 2):e179-e264
23. Driscoll AK, Bernstein AB. Health and Access to Care Among Employed and Unemployed Adults: United States, 2009-2010. NCHS
Data Brief 2012; 83:1-8.
24. Levenstein S, Smith MW, Kaplan GA. Psychosocial predictors of
hypertension in men and women. Arch Intern Med. 2001; 161
(10):1341-6.
25. Alves MG, Chor D, Faerstein E, Werneck GL, Lopes CS. Estresse
no trabalho e hipertensão arterial em mulheres no Estudo Pró-Saúde. Rev Saúde Pública. 2009;43(5):893-6.
 Endereço para correspondência
Fabiana Schuelter Trevisol
Av. José Acácio Moreira - 787
88.704-900 – Tubarão, SC – Brasil
 (48) 3621-3363
 [email protected]
Recebido: 2/1/2015 – Aprovado: 26/2/2015
9
ARTIGO ORIGINAL
Análise do risco de pé diabético em um
ambulatório interdisciplinar de diabetes
Risk of diabetic foot in an interdisciplinary outpatient clinic of diabetes
Fúlvio Clemo Santos Thomazelli¹, Caroline Boeira Machado², Kalinka Sana Dolçan²
RESUMO
Introdução: Pé diabético é uma complicação crônica do diabetes mellitus e sua prevalência é de 4 a 10%. É definido como infecção, ulceração e/ou destruição de tecidos moles associadas a alterações neurológicas e doenças arteriais periféricas nos membros
inferiores. O objetivo deste estudo foi caracterizar os pacientes com risco para o pé diabético e avaliar os fatores envolvidos no
desenvolvimento de lesões. Método: Estudo quantitativo transversal, realizado em Ambulatório Interdisciplinar de Diabetes. Dados
coletados do prontuário e exame físico dos pés entre dezembro de 2013 e março de 2014. Resultados: De um total de 299 pacientes,
76 (25,4%) apresentavam risco para o desenvolvimento do pé diabético. Esse grupo apresentou associações significativas nos seguintes parâmetros: sexo masculino (34,17 versus 19,55%); idade média de 61,02 anos; média do tempo de diagnóstico de 14,95 anos, em
uso de insulina (28,98 versus 9,26%); presença de hipertensão arterial sistêmica (28,78 versus 18,09%); acometido por complicações
macrovasculares (52,63 versus 19,01%) e microvasculares (39,58 versus 22,71%). Conclusão: No presente estudo, pacientes do sexo
masculino, com idade superior a 60 anos, com diagnóstico há mais de 15 anos, em insulinoterapia, hipertensos, associados a complicações macro e microvasculares do diabetes mellitus apresentaram maior risco para o pé diabético. A estratificação dos pacientes em
graus de risco é de extrema importância para acompanhamento e manejo adequado.
UNITERMOS: Diabetes Mellitus, Pé Diabético, Úlcera de Pé
ABSTRACT
Introduction: Diabetic foot is a chronic complication of diabetes mellitus and its prevalence is 4-10%. It is defined as infection, ulceration and/or destruction of soft tissue associated with neurological disorders and peripheral arterial disease in the lower limbs. The aim of this study was to characterize patients
at risk for diabetic foot and evaluate the factors involved in the development of lesions. Methods: Cross-sectional quantitative study conducted in an Interdisciplinary Outpatient Clinic of Diabetes. Data collected from medical records and physical examination of the feet from December 2013 to March 2014.
Results: From a total of 299 patients, 76 (25.4%) were at risk for developing diabetic foot. This group showed significant associations in the following
parameters: males (34.17 versus 19.55%), mean age 61.02 years, average time from diagnosis = 14.95 years, use of insulin (28.98 versus 9.26%), presence
of systemic arterial hypertension (28.78 versus 18.09%), macrovascular (52.63 versus 19.01%) and microvascular (39.58 versus 22.71%) complications.
Conclusion: In this study, male patients older than 60 years, diagnosed for more than 15 years, in insulin therapy, with high blood pressure associated with
macrovascular and microvascular complications of diabetes mellitus were at a higher risk for diabetic foot. Stratification of patients by degree of risk is of
utmost importance for monitoring and proper management.
KEYWORDS: Diabetes Mellitus, diabetic foot, foot ulcer
1
2
10
Médico Endocrinologista e Docente da Disciplina de Endocrinologia da Universidade Regional de Blumenau, Santa Catarina.
Acadêmica de Medicina da Universidade Regional de Blumenau, Santa Catarina.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 10-14, jan.-mar. 2015
ANÁLISE DO RISCO DE PÉ DIABÉTICO EM UM AMBULATÓRIO INTERDISCIPLINAR DE DIABETES Thomazelli et al.
INTRODUÇÃO
O diabetes mellitus (DM) é um grupo heterogêneo de
doenças metabólicas que têm em comum a hiperglicemia,
sendo essa resultante de defeito na produção da insulina,
na ação ou em ambos (1). Em 2010, a prevalência mundial
de diabetes entre os adultos foi de 6,4% e irá aumentar
para 7,7% em 2030 (2). No Brasil, estima-se que existam
12 milhões de pessoas com DM, das quais quase a metade
desconhece o seu diagnóstico e só busca cuidados quando
surgem as complicações (1,3).
Dentre as complicações do DM, a que tem maior impacto socioeconômico é o pé diabético, e incluem gastos
com tratamentos, internações prolongadas e recorrentes,
incapacitações físicas e sociais, com perda de emprego e
produtividade (4). Sua prevalência é em torno de 15% nos
pacientes diabéticos (5,6).
Pé diabético é caracterizado como uma lesão que ocorre nos pés dos portadores de DM, resultante da combinação de vários fatores, como neuropatia sensitivo-motora
e autonômica periférica crônica, doença vascular periférica, alterações biomecânicas, que levam à pressão plantar
anormal, e infecção, a qual pode estar presente e agravar
ainda mais o caso (7,8,9). Devido ao surgimento de ulcerações nos pés, esses pacientes têm maior probabilidade de
evoluírem com amputações pelo fato de difícil tratamento
destas feridas (7,8). Em torno de 50 a 70% de todas as amputações de extremidades inferiores não traumáticas são
decorrentes do DM (10,11).
Os fatores de risco importantes para o desenvolvimento de pé diabético incluem: idade, tipo e tempo de diagnóstico, controle inadequado da glicemia, tabagismo, alcoolismo, obesidade, hipertensão e falta de bons hábitos
higiênicos e de cuidado local (12).
Apesar dos riscos, sabe-se que, com estratégias de prevenção e programas educacionais abrangentes, os quais
incluem exame regular, classificação de risco e educação
terapêutica, inclusive sobre autocuidado, a ocorrência de
lesões nos pés pode ser reduzida em até 50% (9, 11).
Objetivamos com o presente trabalho analisar o risco
de desenvolvimento do pé diabético nos pacientes atendidos em um ambulatório interdisciplinar especializado em
DM, descrever seu perfil, quantificar a prevalência de pé
diabético neste grupo de pacientes e analisar fatores de risco associados a essa complicação.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal com abordagem
quantitativa realizado com pacientes que possuem DM
tipo 1 ou 2, usuários do Sistema Único de Saúde (SUS),
atendidos no Núcleo de Atenção em Diabetes (NAD) na
cidade de Blumenau, Santa Catarina. Foram excluídos do
estudo menores de 18 anos e pacientes com diagnóstico de
diabetes gestacional ou outros tipos.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 10-14, jan.-mar. 2015
Para a coleta de dados, foi aplicado um formulário com
informações referentes ao perfil do paciente (idade, sexo,
tipo de DM e tempo de diagnóstico), bem como um roteiro de anamnese e exame físico dos pés, que consistiu em
cinco itens gerais: queixas relatadas, características da pele,
inspeção de pés e calçados, características vasculares e testes neurológicos sensitivos.
Os demais dados foram analisados do prontuário do
paciente. São eles: valor da última hemoglobina glicada
(HbA1c) (3 meses); circunferência abdominal; hipertensão
arterial sistêmica; dislipidemia, tabagismo e complicações
macro e microvasculares do diabetes mellitus. Foram considerados hipertensos e dislipidêmicos aqueles que faziam uso
de algum medicamento para controle registrado na última
consulta. Para caracterizar a complicação macrovascular,
incluíram-se infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral, amputação, angioplastia, angina e/ou insuficiência cardíaca congestiva prévia de acordo com o registro
no prontuário. E foram considerados como complicação
microvascular os casos em que o paciente possuía retinopatia diabética e/ou nefropatia, sendo retinopatia diabética
o diagnóstico feito pelo oftalmologista em exame do fundo
de olho, e nefropatia aqueles que possuíam ritmo de filtração glomerular abaixo de 60 ml/min/1,73m², conforme o
último exame de creatinina realizado.
A partir disso, o paciente foi classificado em grupos de
risco 0, 1, 2 ou 3, segundo as diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes (2013-2014). O grupo de risco 0 indica que
o paciente não tem neuropatia periférica (PND) nem doença
arterial periférica (DAP); no grupo de risco 1, o paciente
apresenta PND e/ou alguma deformidade nos pés; no grupo de risco 2, o paciente possui DAP e PND e, no grupo de
risco 3, o paciente tem úlcera ou amputação prévia.
A sensibilidade protetora plantar foi avaliada por meio
do monofilamento de Semmes-Weinstein 10g em 4 pontos
na região plantar, e a incapacidade de o paciente sentir o
monofilamento nas quatro áreas foi considerada ausência
de sensibilidade protetora dos pés. O exame de sensibilidade dolorosa com o palito no dorso dos pés foi realizado
em três áreas e foi considerado alterado quando o paciente
não relatava a sensibilidade nos três pontos. Foi descrito
como portadores de PND aqueles que possuíam um ou
ambos os testes alterados uni e/ou bilateral. Já para DAP,
considerou-se a ausência ou diminuição dos pulsos das artérias pediosa dorsal e tibial posterior na palpação bilateral.
Dedos em garra, hálux valgus e pé de Charcot foram inclusos como deformidades.
O formulário foi aplicado pela enfermeira do NAD antes da consulta com o médico endocrinologista e tiveram
seus achados anexos ao prontuário do paciente. A avaliadora recebeu treinamento específico, tendo realizado esse
trabalho desde novembro de 2012, conforme a demanda
de pacientes. O referido estudo analisou todas as fichas documentadas até 28 de fevereiro de 2014, cujos dados foram
coletados por amostra de conveniência entre dezembro de
2013 e março de 2014.
11
ANÁLISE DO RISCO DE PÉ DIABÉTICO EM UM AMBULATÓRIO INTERDISCIPLINAR DE DIABETES Thomazelli et al.
O tamanho da amostra foi estimado baseado na prevalência de pé diabético (15%) nos pacientes diabéticos e assumindo um erro de 5%. O tamanho estimado da amostra
é de 154 indivíduos.
Ao extrapolar tal estudo para a população geral, convém destacar as suas limitações, dentre as quais: vieses de
seleção e de aferição, amostra de conveniência e caráter retrospectivo de parte do estudo.
As informações foram computadas no programa Excel®5.0 e analisadas por meio de médias, frequências e teste de qui quadrado de independência por intermédio do
programa EpiInfoT7. O nível de significância (p) adotado
para aceitação de diferenças estatisticamente significativas
foi de 0,05.
O presente estudo obteve a aprovação do comitê de ética da Universidade Regional de Blumenau através do protocolo número CAAE: 15798413.3.0000.5370, não sendo
requerida a assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido pelos pacientes no período da pesquisa.
Tabela 1 – Características da amostra total do estudo
Variável/Categoria
n
Frequência % (IC95%)
Feminino
179
59,9 (54,1 -65,5)
Masculino
120
40,1 (34,5-45,9)
D2
278
93 (89,5-95,6)
D1
21
7 (4,4 -10,5)
Sim
245
81,9 (77,1-86,1)
Não
54
18,1 (13,9- 22,9)
Com
205
68,6 (63-73,8)
Sem
94
31,4 (26,2-37)
Com
164
54,8 (49-60,6)
Sem
135
45,2 (39,4-51)
SEXO
TIPO DE DIABETES
EM INSULINOTERAPIA
HIPERTENSÃO
DISLIPIDEMIA
TABAGISMO
RESULTADOS
Tabagista
32
10,7 (7,4-14,8)
Ex-tabagista
77
25,8 (20,9 - 31,1)
O estudo analisou um total de 299 pacientes, sendo
que a média de idade foi de 56,3±13,2 anos. Observou-se que a média de tempo de diagnóstico de DM foi de
12,5±9,3 anos para todos diabéticos estudados. Levando em consideração o valor da hemoglobina glicada
(HbA1c), a média encontrada foi de 9±2%. Quando analisada a medida da circunferência abdominal, essa foi separada por gênero, sendo que no sexo feminino a média
foi de 108,4 ±15,9cm e no sexo masculino foi de 105,8
±16cm. Na Tabela 1, encontram-se as demais características da amostra total do estudo.
Conforme a classificação do grau de risco, têm-se 223
pacientes com grau zero (74,6%; IC95%: 69,3-79,4), 45 pacientes com grau um (15%; IC95%: 11,2 -19,6), 3 pacientes
com grau dois (1%; IC95%: 0,2-2,9) e 28 pacientes com
grau três (9,4%; IC95%: 6,3-13,2) no total de 299 pacientes. A prevalência de pacientes com risco de desenvolver
pé diabético, ou seja, aqueles que possuem risco 1, 2 ou 3,
de acordo com a classificação citada anteriormente, foi de
25,4% ( IC95%: 20,6-30,7).
Quando se comparou o grupo que tinha risco para desenvolver o pé diabético com aquele que não o possuía,
observou-se que a média de idade foi significativamente
maior (p=0,0003) no grupo de risco, sendo que a média
de 61±10,9 anos se contrapôs à média de 54,7±13,5 anos.
A média de tempo de diagnóstico de DM no grupo de
risco foi de 15±10,2 anos, comparado com o grupo sem
risco, que foi de 11,6±8,8 anos, tendo significância estatística (p=0,007). Já a média do valor de hemoglobina glicada
foi maior no grupo de risco, 9,1±2,1% versus 9±2%, porém
sem significância. Da mesma forma para a média da circunferência abdominal para ambos os sexos, foram maiores no
grupo de risco, sendo o sexo feminino de 112,2±14,7cm
Não tabagista
190
63,5 (57,8-69)
Com
57
19,1 (14,8-24)
Sem
242
80,9 (76-85,2)
Com
48
16,1 (12,1-20,7)
Sem
251
83,9 (79,3-87,9)
299
100
12
COMPLICAÇÕES
MACROVASCULARES
COMPLICAÇÕES
MICROVASCULARES
TOTAL
versus 107,5±16cm e masculino de 109,2±16,3cm versus
104,1±15,7cm, mas sem diferença significativa. As demais
correlações são observadas na Tabela 2.
DISCUSSÃO
No presente estudo, a prevalência de pacientes com risco de desenvolver o pé diabético foi de 25,4%. Em um
estudo realizado na atenção básica de Florianópolis (SC),
20% dos pacientes diabéticos apresentaram algum grau de
neuropatia, sendo considerados em risco para o pé diabético (1,3). Como os dados foram coletados em um centro de
referência, pode ter superestimado o número de pacientes
que se encontram em risco para tal complicação.
Observou-se que a maioria da amostra era composta
por mulheres, representando 59,9% do total. No entanto,
dentre os pacientes que possuem risco aumentado para o
pé diabético, os homens foram mais predominantes em
comparação com as mulheres (53,9 versus 46,1%). Esse
dado corrobora com a literatura, que é justificado pela
maior procura das mulheres pelos serviços de saúde e indiRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 10-14, jan.-mar. 2015
ANÁLISE DO RISCO DE PÉ DIABÉTICO EM UM AMBULATÓRIO INTERDISCIPLINAR DE DIABETES Thomazelli et al.
Tabela 2 – Comparação das variáveis para o risco de desenvolver pé
diabético
Variável/Categoria
Com risco
Sem risco
Valor de p
Masculino
41(53,9%)
79(35,4%)
0,004
Feminino
35 (46,1%) 144 (64,6%)
SEXO
TIPO DE DIABETES
D2
73 (96%)
205 (91,9%)
D1
3 (4%)
18 (8,1%)
Sim
71 (93,4%)
174 (78%)
Não
5 (6,6%)
49 (22%)
0,2
EM INSULINOTERAPIA
0,002
HIPERTENSÃO
Com
59 (77,6%) 146 (65,5%)
Sem
17 (22,4%)
0,04
77 (34,5%)
DISLIPIDEMIA
Com
46 (60,5%) 118 (52,9%)
Sem
30 (39,5%) 105 (47,1%)
0,2
TABAGISMO
Tabagista
9 (11,8%)
23 (10,3%)
26 (34,2%)
51(22,9%)
41 (54%)
149 (66,8%)
Com
30 (39,5%)
27 (12,1%)
Sem
46 (60,5%) 196 (87,9%)
Ex-tabagista
Não tabagista
COMPLICAÇÕES
MACROVASCULARES
0,1
0,000001
COMPLICAÇÕES
MICROVASCULARES
Com
19 (25%)
29 (13%)
Sem
57 (75%)
194 (87%)
0,01
cando que o autocuidado é mais significativo na população
feminina (11,14,15).
A literatura mostra que quanto maior o tempo de doença, maior é a chance de desenvolver complicações crônicas,
dentre essas o pé diabético (16). Um estudo realizado em
Ribeirão Preto, São Paulo, com pacientes diabéticos que
possuíam úlceras nos pés, apresentou uma média do tempo
de diagnóstico de 12,5 anos (17). Esse dado vai de encontro com o obtido no presente estudo, em que a média de
tempo de diagnóstico dos pacientes com risco foi de 15
anos, com significância estatística.
Com o processo de envelhecimento, o paciente pode estar mais propenso a desenvolver complicações devido à diminuição progressiva da capacidade funcional e pelo maior
tempo decorrido de doença (15,17). Aqueles pacientes com
faixa etária igual ou superior a 60 anos são mais propensos
para o pé diabético (14). Diante disso, essa variável foi significativa para o risco de acometimento do pé diabético, sendo
a média de idade encontrada igual a 61 anos.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 10-14, jan.-mar. 2015
A hipertensão arterial sistêmica (HAS) foi a comorbidade mais prevalente tanto na amostra total estudada quanto
no grupo de risco, tendo uma significância estatística para
o acometimento do pé diabético. Ela aumenta o risco de
surgirem alterações nos pés devido ao comprometimento
vascular e à dificuldade do controle dos níveis glicêmicos,
tendo um papel fundamental na neuropatia autonômica
(15, 16,18).
A insulinoterapia foi fator significante para o desenvolvimento de pé diabético no presente estudo. Porém,
sabe-se que, por se tratar de um ambulatório de referência,
os pacientes atendidos são descompensados ou de difícil
manejo, sendo a insulina um meio utilizado para controle.
Portanto, esse dado pode não ser um fator de risco, e sim
indicar que essa população está corrigindo os níveis elevados de glicemia conforme a sua necessidade. Entretanto,
o mesmo não foi encontrado em um estudo realizado no
Hospital das Clínicas da UFTM (Universidade Federal do
Triângulo Mineiro) com pacientes que foram submetidos à
amputação cirúrgica relacionada ao diabetes mellitus, em que
o maior número de amputações ocorreu em pacientes que
faziam uso de hipoglicemiante oral (15).
No presente estudo, a média de hemoglobina glicada
foi de 9,1±2,1% para o grupo de risco, não sendo significativo este valor para o desenvolvimento de pé diabético, que
pode ser justificado pela amostra do estudo ser, de forma
geral, descompensada e ter valores semelhantes. A hemoglobina glicada acima dos valores adequados é um fator
preocupante, pois a glicemia elevada cronicamente provoca lesões teciduais e pode ocasionar complicações além do
pé diabético (19).
As macroangiopatias estão envolvidas na patogênese na
úlcera no pé diabético em 40 a 50% dos casos, geralmente associado com a neuropatia (20). Além disso, pacientes
diabéticos podem apresentar problemas de visão, doença
renal e dano neuronal, classificados como comprometimento microvascular (21). A microangiopatia causa diminuição da ação vasodilatadora em resposta ao calor, ao
trauma, à obstrução arterial e às mudanças posturais, prejudicando a distribuição do fluxo sanguíneo e dificultando
a cicatrização em caso de traumatismos (21). A associação
de complicações micro e macrovasculares com o risco de
desenvolver pé diabético mostrou-se significativa, pois representa a debilidade do sistema arterial no controle dos
danos implicados aos pés.
O tabagismo não teve significância em nosso estudo;
no entanto, pode não condizer com a realidade por ser uma
variável indireta e pelo número de pacientes da amostra.
A identificação dos fatores de risco para o desenvolvimento do pé diabético permite intervenções preventivas e efetivas a serem tomadas pelos profissionais da
saúde, melhorando o prognóstico e a qualidade de vida
dos pacientes. Com uma simples avaliação de rotina dos
pés desses pacientes, poderá ser estratificado o risco de
desenvolver alguma lesão e, com isso, guiar a conduta a
ser seguida.
13
ANÁLISE DO RISCO DE PÉ DIABÉTICO EM UM AMBULATÓRIO INTERDISCIPLINAR DE DIABETES Thomazelli et al.
CONCLUSÃO
Este estudo possibilitou apontar um perfil característico dos pacientes diabéticos atendidos em um serviço de
referência que possuem um risco aumentado para desenvolver o pé diabético, sendo homens com mais de 61 anos
e com diagnóstico de diabetes mellitus há mais de 15 anos,
em insulinoterapia, hipertensos e associados a complicações macro e microvasculares do DM. A estratificação dos
pacientes em graus de risco e a identificação dos fatores envolvidos na progressão para o pé diabético são de grande
importância para o acompanhamento e manejo adequado
pelos profissionais da saúde.
CONFLITOS DE INTERESSE
Declaramos que não há conflito de interesses na redação do presente artigo.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todos que nos incentivaram, em especial à equipe do Núcleo de Atenção ao Diabetes da cidade
de Blumenau (SC), que nos proporcionou acesso aos dados para a realização do presente trabalho.
REFERÊNCIAS
1. Sociedade Brasileira de Diabetes. Diretrizes da Sociedade Brasileira
de Diabetes 2013-14. São Paulo: AC Farmacêutica, 2014.
2. Shaw JE, Sicree RA, Zimmet PZ. Global estimates of the prevalence of diabetes for 2010 and 2030. Diabetes Res Clin Pract. 2010. 87
(1): 4-14.
3. Mantovani AM, Fregonesi CEPT, Pelai EB, Mantovani AM, Savian
NU, Pagotto P. Estudo comparativo das representações sociais sobre diabetes mellitus e pé diabético. Cad. Saúde Pública. 2013. 29 (12):
2427-2435.
4. Coelho MS, Silva DMGV, Padilha MIS. Representações sociais do
pé diabético para pessoas com diabetes mellitus tipo 2. Rev.Esc.Enferm. 2009. 43 (1): 65-71.
5. Abolfotoub MA, Alfaifi AS, Al-Gannas AS. Risk factors of diabetic
foot in central Saudi Arabia. Saudi Med J 2011. 32 (7): 708-713.
6. Nehring P, Mrozikiewicz-Rakowska B, Krzyzewska M, Sobczyk-Kopciol A, Ploski R, Broda G, Karnafel W. Diabetic foot risk factors in type 2 diabetes patients: a cross-sectional case control study.
Journal of Diabetes & Metabolic Disorders 2014. 13:79
14
7. Almeida SA, Silveira MM, Santo, PFE; Pereira RC, Salomé GM. Avaliação da qualidade de vida em pacientes com diabetes mellitus e pé
ulcerado. Rev. Bras. Cir. Plást. 2013. 28 (1): 142-146.
8. Caiafa JS, Castro AA, Fidelis C, Santos VP, Silva ES; Sitrângulo Jr
CJ. Atenção integral ao portador de pé diabético. J. vasc. bras. 2011.
10 (4): 1-32.
9. Cubas MR, Santos OM, Retzlaff EMA, Telma HLC, Andrade IPS,
Moser ADL, et al. Pé diabético: orientações e conhecimento sobre
cuidados preventivos. Fisioter. mov. 2013. 26 (3): 647-655.
10. Bona SF, Barbosa MAR, Ferraz CLH, Guarita LKS, Nina RVAH,
Barbosa NMR F, et al. Prevalência do pé diabético nos pacientes
atendidos na emergência de um hospital público terciário de Fortaleza. Rev.Bras.Clin. Med. 2010. 8: 1-5.
11. Araujo MM, Alencar AMPG. Pés de risco para o desenvolvimento de ulcerações e amputações em diabéticos. Rev. Rene. Fortaleza.
2009.10 (2): 19-28.
12. Santos ICRV, Bezerra GC, Souza CL; Pereira LC. Pé diabético: apresentação clínica e relação com o atendimento na atenção básica. Rev
Rene. Fortaleza. 2011. 12 (2): 393-400.
13. Boell JEW, Ribeiro RM, Silva DMGV. Fatores de risco para o desencadeamento do pé diabético. Rev. Eletr. Enf. 2014. 16(2): 386-93.
14. Santos ICRV, Bernardinho JM. Caracterização dos portadores de
pé diabético atendidos em hospital das forças armadas na cidade do
Recife. Rev. Rene. Fortaleza. 2009. 10 (1): 139-144.
15. Tavares DMS, Dias FA, Araújo LR, Pereira GA. Perfil de clientes
submetidos a amputações relacionadas ao diabetes mellitus. Rev
Bras Enferm. 2009. 62(6): 825-30.
16. Barrile SR, Ribeiro AA, Costa APR, Viana AA, Conti MHS, Martinelli B. Comprometimento sensório-motor dos membros inferiores
em diabéticos do tipo 2. Fisioter Mov. 2013. 26(3): 537-48.
17. Martin IS, Beraldo AA, Passeri SM, Freitas MCF, Pace AE. Causas
referidas para o desenvolvimento de úlceras em pés de pessoas com
diabetes mellitus. Acta Paul Enferm. 2012. 25(2): 218-24.
18. Teixeira CJ, Oliveira ACP, Bazotte RB, Batista MR. Pé diabético:
perfil metabólico e socioeconômico de pacientes atendidos pelo laboratório de ensino e pesquisa da Universidade Estadual de Maringá. Arq. Ciênc. Saúde UNIPAR. 2010. 14 (2): 125-132.
19. Najjar ECA, Najjar JA, Ferreira EAP, Albuquerque LC. Análise dos
pés de pacientes diabéticos atendidos em unidade de saúde. Rev.
para. Med. 2009. 23(2): tab.
20. Castillo JG, Mompo JIB. Aspectos fundamentales a tener en cuenta
en la atención a la infección del pie diabético en urgencias. Emergencias 2012. 24: 2011-218.
21. Blanes Mompó JI, Al-Raies Bolaños B, Fernández Gonzáles S. Factores de riesgo en el pie diabético. Angiología. 2012. 64(Esp Cong):
58-62.
 Endereço para correspondência
Fúlvio Clemo Santos Thomazelli
Rua dos Incas - 45
89.050-330 – Blumenau - RS – Brasil
 (47) 3322-6303/(47) 9985-0971
 [email protected]
Recebido: 9/1/2015 – Aprovado: 25/2/2015
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 10-14, jan.-mar. 2015
ARTIGO ORIGINAL
Avaliação de sintomas depressivos em pacientes com
insuficiência renal crônica submetidos à hemodiálise
em Tubarão – Santa Catarina – Brasil
Evaluation of depressive symptoms in patients with chronic kidney
disease undergoing hemodialysis in Tubarão, SC, Brazil
Joel Tuchinski Schuster1, Viviane Pessi Feldens2, Betine Pinto Moehlecke Iser3, Guilherme Mafra Ghislandi4
RESUMO
Introdução: A insuficiência renal crônica é uma condição mórbida decorrente de uma série de fatores, não contemplando expectativa
de cura. A hemodiálise é o tratamento de apoio que consiste na remoção de substâncias tóxicas do sangue. O objetivo foi identificar
a prevalência de sintomas depressivos em pacientes com insuficiência renal crônica submetidos à hemodiálise em Tubarão, Santa
Catarina, Brasil. Métodos: Estudo transversal, onde os pacientes em hemodiálise responderam questionário sóciodemográfico e o
Inventário de Beck para Depressão (IBD). Resultados: Participaram do estudo 97 pacientes, 57,7% homens, com idade média de
60,3 anos (DP±14.64) e com tempo médio de tratamento de 31,7 meses (DP±34.73). Com o IBD foi identificado que 71,1% apresentavam algum nível de depressão, destes 49,5% apresentavam nível leve, 15,5% nível moderado e 6,2% nível grave de depressão. Conclusão: A prevalência de depressão foi maior na população feminina estudada, com maior frequência do nível leve definido pelo IBD.
UNITERMOS: Depressão, Insuficiência Renal Crônica, Hemodiálise
ABSTRACT
Introduction: Chronic renal failure is a morbid condition resulting from a number of factors, including no expectation of cure. Hemodialysis is a supportive treatment that consists in removing toxic substances from the blood. The aim of this study was to identify the prevalence of depressive symptoms
in patients with chronic renal failure undergoing hemodialysis in Tubarão, Santa Catarina, Brazil. Methods: A cross-sectional study where patients on
hemodialysis answered a demographic questionnaire and the Beck Depression Inventory (BDI). Results: The study included 97 patients, 57.7% males,
with mean age 60.3 years (SD±14.64) and mean treatment period 31.7 months (SD±34.73). The BDI showed that 71.1% of the participants had some
level of depression, 49.5% with mild, 15.5% with moderate and 6.2% with severe level of depression. Conclusion: The prevalence of depression was
higher in the female population studied, with a higher frequency of the mild level as defined by BDI.
KEYWORDS: Depression, chronic kidney disease, hemodialysis
1
2
3
4
Estudante do 11º Curso de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina. (Bolsista do CNPq.)
Estudante do 9º Curso de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina.
Mestre em Epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Medicina da Universidade do Sul de Santa
Catarina.
Doutora em Psicologia pela Universidade de El Salvador-Argentina. Professora do Curso de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 15-19, jan.-mar. 2015
15
AVALIAÇÃO DE SINTOMAS DEPRESSIVOS EM PACIENTES COM INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA SUBMETIDOS À HEMODIÁLISE... Schuster et al.
INTRODUÇÃO
A área da saúde, com o passar dos anos, obteve grandes avanços tecnológicos e científicos, fazendo com que,
hoje, o homem possa viver mais, sendo assim, retardando a
morte. Esses avanços têm possibilitado diagnosticar e antecipar a terapêutica adequada, com resultados promissores
para o controle e evolução da doença e, talvez, até a cura.
Com esses avanços, pode-se identificar um maior número
de doentes crônicos, que, por sua vez, requerem cuidados
permanentes durante o decorrer de toda sua vida (1).
A doença renal crônica é uma enfermidade que, além
de trazer consequências físicas ao indivíduo que a vivencia,
gera prejuízos psicológicos, alterando seu cotidiano, sendo caracterizada também como um problema social, que
interfere no papel que o próprio enfermo desempenha na
sociedade (2,3). Assim sendo, é estabelecido um longo processo de adaptação a essa nova condição, em que o indivíduo precisa identificar meios para lidar com o problema
renal e com todas as mudanças e limitações que o acompanham, limitações essas decorrentes da doença, bem como
provenientes do seu tratamento (4) .
A insuficiência renal crônica (IRC) é uma condição
mórbida e complexa, decorrente de uma série de fatores,
não contemplando, infelizmente, expectativa de cura. É
uma doença que vem crescendo significativamente nos
últimos anos e tem como corresponsáveis o aumento da
incidência de hipertensão arterial sistêmica; diabetes mellitus;
neoplasias de próstata e colo de útero, entre outras causas.
Muitas pessoas desenvolvem a insuficiência renal por falta de acompanhamento adequado e detecção precoce das
doenças de origem, fator esse que deve ser observado em
políticas de saúde pública (5) .
A hemodiálise, um tratamento de apoio ao paciente renal, consiste na remoção de substâncias tóxicas e excesso
de líquido por uma máquina. É um procedimento cuja duração leva de duas a quatro horas, exigindo que o paciente
se desloque para a unidade de tratamento em uma frequência, na maioria das vezes, de três vezes por semana. A dificuldade de adaptação é grande e pode ser verificada logo
no início do tratamento (6).
É uma situação em que a ansiedade e os sintomas depressivos se fazem presentes durante o processo e mesmo
em todo o tratamento (7). Toda reação do enfermo renal
com relação ao processo terapêutico de diálise é uma forma
de resposta adaptativa frente aos sentimentos de insegurança
e perdas, sendo a depressão a desordem psiquiátrica mais comum entre aqueles em estágio final da doença renal, tratados
com hemodiálise (8). Esse problema tem grande prevalência,
no entanto, o subdiagnóstico ainda é um grande fator limitador, além de que muitos pacientes, quando diagnosticados,
são subtratados com doses insuficientes de medicação para
controle de sintomas, o que pode vir a comprometer a evolução clínica desses enfermos (9).
No Brasil, existe um número relativamente baixo de estudos que abordem essa população, na condição de pacien16
te em hemodiálise, o que pode ser um fator que dificulte
uma melhor abordagem dessa patologia, retardando planejamentos, organização de medidas suportivas e a avaliação
da assistência à saúde mental no país (10).
As taxas de morbimortalidade são maiores, e os índices
de qualidade de vida em renais crônicos são menores (9).
Isso gera uma necessidade eminente de novos estudos para
haver uma correta identificação e tratamento dessa patologia, visando ao bem-estar do paciente renal crônico (10).
O objetivo do presente estudo foi avaliar a prevalência
de sintomas depressivos em pacientes com insuficiência
renal crônica submetidos à hemodiálise em Tubarão, Santa
Catarina.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo observacional de delineamento
transversal, entre os meses de junho e julho de 2014. A
amostra foi composta por 102 pacientes que estavam em
tratamento hemodialítico na Clínica de Doenças Renais, situada na cidade de Tubarão, Santa Catarina.
Foram considerados critérios de inclusão: ter idade igual
ou superior a 18 anos na data da coleta dos dados, estar em
tratamento de hemodiálise na clínica no período descrito,
não se encontrar na primeira sessão do tratamento, estar
em condições mentais e físicas satisfatórias para responder
às perguntas, além de assinar o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE). Utilizou-se como critério de
exclusão: paciente negar-se a qualquer momento durante
a pesquisa e/ou não possuir condições físicas e/ou mentais satisfatórias para responder às perguntas. Utilizou-se o
Mini Exame do Estado Mental (11) como ferramenta para
este tipo de determinação. Após aplicação dos critérios, foram excluídos 4 pacientes por falta de condições físicas e/
ou mentais e 1 solicitou sua retirada do estudo, ficando
assim constituída a amostral final em 97 pacientes.
Foram utilizados dois questionários: o primeiro foi desenvolvido pelos pesquisadores com informações socio-econômicas (sexo, idade, etnia, com quem vive, religião,
escolaridade, praticante da religião, renda, trabalho) e clínicas ou relacionadas ao tratamento (tempo de hemodiálise,
tipo de acesso venoso, comorbidades, lista de transplante,
desejo de transplante) as quais constituíram as variáveis do
estudo, e o outro foi o Inventário de Beck para Depressão
(IBD), devidamente validado para a língua portuguesa (12).
Este consiste de 21 itens que variam de 0 a 3, que pode
totalizar um escore de 0 a 63. Os itens referem-se à tristeza,
ao pessimismo, à sensação de fracasso, culpa e punição,
falta de satisfação, autodepreciação, autoacusações, ideias
suicidas, crises de choro, irritabilidade, retração social,
indecisão, distorção da imagem corporal, inibição para o
trabalho, distúrbio do sono, fadiga, perda de apetite e de
peso, preocupação somática e diminuição da libido. Essa
análise do Inventário de Beck para Depressão considera
os escores de 0-9 como ausência de depressão; de 10-18,
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 15-19, jan.-mar. 2015
AVALIAÇÃO DE SINTOMAS DEPRESSIVOS EM PACIENTES COM INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA SUBMETIDOS À HEMODIÁLISE... Schuster et al.
depressão leve; de 19-29, depressão moderada; e de 30-63,
depressão grave.
Os dados coletados foram digitados no programa Excel
2007, versão 5.0, e analisados com o programa estatístico
Epi Info, versão 3.5.4. O nível de significância adotado foi
de 5%. As variáveis categóricas foram comparadas através
do teste Qui-quadrado. As variáveis quantitativas foram testadas através da análise de variância (ANOVA).
O projeto foi devidamente submetido ao Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade do Sul de Santa Catarina e encontra-se aprovado e registrado sob o protocolo nº
697.205/2014.
RESULTADOS
Ao todo, foram estudados 97 pacientes, sendo 57,7%
pertencentes ao sexo masculino. Do total da amostra, 75,3%
se declararam caucasianos, com uma idade média de 60,3
anos (DP±14,6); 75,3% se declararam católicos na ocasião.
Foi observada uma média de 5,6 anos de estudo (DP±3,9),
com uma renda média de R$ 2807,4 (DP±2385,3); 75,3%
estão aposentados. 87,6% possuíam um acesso por meio
de fístula arteriovenosa. 50,5% dos pacientes apresentam
diagnóstico de diabetes mellitus e 79,4% da amostra possuem
hipertensão arterial sistêmica.
Com a aplicação do IBD, obteve-se que 71,1% da amostra total possuem algum nível de depressão, sendo as mulheres acometidas em 80,5% e os homens em 64,3% dos
casos. O escore médio encontrado foi de 14,5 (DP±8,3),
variando de 03 até 51 pontos, o que o situa no grau de
depressão leve pelo referido questionário. Quando estratificados os níveis de depressão geral em ausente, leve, moderado e grave, gera-se o Gráfico 1.
Dos 21 quesitos avaliados pelo IBD, os cinco que
mais apresentaram significância na vida dos enfermos foram: 51,5% dos pesquisados apresentaram algum nível de
distúrbio no sono; 71,1% tiveram fadiga em algum grau;
81,6% declararam ter perdido peso, 84,5% relataram alteração na libido e 87,6% informaram ter alguma dificuldade
para o trabalho em geral. Quando confrontadas as variáveis
do estudo com depressão, não foi observada significância
entre suas associações.
DISCUSSÃO
Identificar os sinais e sintomas gerados pela depressão,
principalmente em estágios iniciais da doença, se torna bastante difícil e complexo até mesmo para pessoas experientes na área. Para tanto, foi utilizado o IBD para rastreamento de sintomas depressivos nessa população.
Os renais crônicos da cidade de Tubarão que fazem parte do programa de hemodiálise tiveram suas informações
sociodemográficas levantadas pela pesquisa, evidenciando
uma população média acima dos 60 anos, sendo o gênero
masculino o mais acometido. A escolaridade média enconRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 15-19, jan.-mar. 2015
trada foi inferior a 6 anos, tendo como principais causas
da doença renal a hipertensão arterial sistêmica e diabetes
mellitus. Outros estudos realizados mostram uma grande
semelhança no perfil geral desses pacientes em relação a
uma idade mais avançada, uma escolaridade mais baixa e
tendo como referências de doença primária geradora da
IRC a hipertensão arterial e o diabetes (1,4,5,10,13,14).
Quando aplicado o Inventário de Depressão de Beck,
os resultados obtidos por este estudo, em estratificação de
intensidade depressiva, foram que 28,9% não mostraram
indícios de qualquer distúrbio, bem como 49,5% demonstraram um nível leve; 15,5%, um nível moderado, e 6,2%,
um nível alto de depressão. Quando comparados a outros
dois estudos realizados, o primeiro encontrou uma sintomatologia mínima ou ausente em 32% dos pacientes; 34%
apresentaram sintomas leves; 24%, sintomas moderados e
10%, sintomatologia grave (10). Já o segundo estudo comparado, realizado com pacientes em hemodiálise na cidade
de Criciúma-SC, utilizando a mesma ferramenta, trouxe os
seguintes resultados: apresentaram sintomas mínimos ou
ausente nenhum paciente; 10,7%, sintomas leves; 10,7%,
moderados e 7,1%, sintomas graves(13).
Desta forma, mostra-se neste estudo a maior prevalência de depressão em grau leve quando comparada às outras
pesquisas. Isso gera um alerta, pois a fase inicial da doença
pode passar despercebida por muitos profissionais da saúde, evidenciando a necessidade de treinamento das equipes
de apoio para a identificação de tal quadro para que se possa, de algum modo, intervir de maneira correta, visando à
melhoria da saúde mental do doente.
O IBD, além de estratificar em categorias depressivas,
permite dicotomizar a variável depressão, sendo ela em
presente ou ausente. Assim, percebe-se que na atual pesquisa 71,1% da amostra possuem algum nível de depressão, enquanto que em outros estudos os valores obtidos
foram de 68% (10) e 28,5% (13), demonstrando que esta
teve valores superiores de sintomas depressivos se comparada com as demais.
Existem vários fatores que tornam a depressão geriátrica heterogênea: incapacitação; perda de recursos com
alterações no estilo de vida; mudanças fisiológicas do envelhecimento; certas drogas, e redução da concentração da
norepinefrina, dopamina e serotonina cerebrais. Além disso, deve-se salientar que diversos estressores psicossociais
também influenciam na saúde mental do idoso, tais como:
mobilidade limitada; cegueira; surdez; atividades ocupacionais, sociais e recreativas diminuídas; aposentadoria; perda
de status social; doença, isolamento, perda de privacidade e
senso de valor próprio (14).
A depressão aumenta em 80% a 83% a incidência de óbitos entre pessoas idosas, o que gera grande preocupação ao
bem-estar do doente, pois apresenta consequências negativas para a qualidade de vida dos indivíduos acometidos (15).
Outro ponto levantado pela pesquisa foram as cinco
principais alterações evidenciadas pelo IBD e apontadas
pelos enfermos durante as entrevistas, as quais contribu17
AVALIAÇÃO DE SINTOMAS DEPRESSIVOS EM PACIENTES COM INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA SUBMETIDOS À HEMODIÁLISE... Schuster et al.
íram para uma prevalência relativamente alta de sintomas
depressivos nessa população. Em ordem crescente, foram:
51,5% apresentaram distúrbio no sono; 71,1% tiveram fadiga; 81,6% perderam peso; 84,5% apresentaram alteração
na libido e 87,6% tiveram dificuldade para o trabalho em
geral.
Estudos mencionam que a depressão possa estar relacionada a distúrbios do sono, bem como o tratamento hemodialítico, com suas características de ser três vezes por
semana, com duração em torno de 4 horas, necessidade de
transporte, deslocamento do paciente, entre outros, possa
gerar uma cena de ansiedade e, por sua vez, também alterar
o sono do enfermo (16,17). O sentimento de cansaço e esgotamento é comum em pacientes renais crônicos em hemodiálise (6). A fadiga está significativamente associada à
presença de sintomas como problemas do sono, limitação
por aspectos físicos e depressão (18). Alterações de peso
e libido também são evidenciadas nos pacientes em tratamento, podendo este ser para mais ou menos, dependendo
de cada situação (19,20,21).
Os problemas com o trabalho ou outras atividades diárias como resultantes de problemas emocionais são bastante comuns; limitações ao exercício laboral em pacientes
renais crônicos indicam prejuízos na qualidade de vida, sendo concordantes em diversos estudos (6,16,20,22). Muitos
pacientes mostram o desejo de voltarem a realizar alguma
atividade, seja de caráter empregatício ou do dia a dia e nisso embasa-se que pacientes renais crônicos que trabalham
têm uma prevalência menor de depressão (23). Quando
confrontadas as variáveis do estudo com depressão, não
foi observada significância entre suas associações. O estudo possui algumas limitações, dentre elas menciona-se um
número amostral relativamente baixo, o que impossibilita
que maiores inferências possam ser realizadas, bem como
não houve qualquer tipo de questionamento quanto ao uso
de medicações, assim como utilização de antidepressivos
nessa população a fim de tratar a depressão. O uso deste
tipo de medicamento pode, de certa forma, subestimar a
prevalência de depressão nos entrevistados.
60%
Média (Score): 14,5 (±8,3), variação: 3 - 51
50%
40%
30%
20%
10%
0%
ausente
leve
moderada
Gráfico 1 – Prevalência de Sintomas Depressivos
18
grave
CONCLUSÃO
A prevalência de sintomas depressivos foi maior na
população feminina estudada, sendo o nível leve do Inventário de Beck para Depressão o que apresentou maior
detecção desse distúrbio, com 49,5% da amostra total, ou
seja, quase metade da amostra somou entre 10 e 18 pontos
na entrevista.
REFERÊNCIAS
1. Nifa S, Rudnicki T. Depressão em pacientes renais crônicos em tratamento de hemodiálise. Revista da SBPH, 2010;13(1):64-75.
2. Kimmel, P.L., Peterson, R.A., Wheis, K.L., Simmens, S.J., Alleyne,
S., Cruz, I. & Veis, J.H. (Multiple measurements of depression predict mortality in a longitudinal study of chronic hemodialysis outpatients. Kidney International, 2000;57(5), 2093-2098.
3. Zimmermann, P.R., Carvalho, J.O. & Mari, J.J. Impacto da depressão
e outros fatores psicossociais no prognóstico de pacientes renais
crônicos. Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 2004; 26(3), 34-39.
4. Rudnicki, T. Preditores de qualidade de vida em pacientes renais
crônicos. Estudos de Psicologia,2007;24(3), 343-351.
5. Almeida, A.M., & Meleiro, A.M.A.S. Revisão: Depressão e insuficiência renal crônica: uma revisão. Jornal Brasileiro de Nefrologia,
2000;22 (1), 192-200.
6. Martins, M. R. I. & Cesarino, C. B. Qualidade de vida de pessoas
com doença renal crônica em tratamento hemodialítico. Latino-Americana de Enfermagem, 2005;13(5), 670-676.
7. Lacerda, D.O., Oliveira, P.M., Militão, D.B., Carneiro, H.Q., Toledo,
G.O.P.P., Paula, M.M.M. & Prado, M.R.M.C. Problemas psicossociais e a depressão em pacientes submetidos à hemodiálise. Científica da FAMINAS, 2007;3(1), 258.
8. Janssen, D.J.A., Spruit, M.A. & Wouters, E.F. Daily symptom on
burden in end-stage organ failure: a systematic review. British Medical Journal,2009;338(b45), 89-96.
9. Tung TC, Humes EC, Demetrio FN. Depression and medical comorbidity. Rev. psiquiatr. Clín. 2005; 32(3): 149-59.
10. Santos MSS, Wolfart A, Jornada L. Prevalência de transtornos depressivos em pacientes com insuficiência renal crônica participantes
de programa de hemodiálise em uma clínica do Sul de Santa Catarina. Arquivos Catarinenses de Medicina. 2011; 40(2):84-88.
11. Folstein M, Folstein S, McHugh P. Mini-Mental State: A practical
method for grading the cognitive state of patients for the clinician.
Journal of Psychiatric Research., 1975; 12, 189-98.
12. Gorenstein C, Andrade L. Inventário de Depressão de Beck:
propriedades psicométricas da versão em português. Psiq Clin.
1998;25:245-50.
13. Ce HH, Bonazza KZ, Ceza MR, Filha S. Prevalência de transtornos
depressivos em pacientes submetidos à hemodiálise em dois serviços de nefrologia na cidade de Criciúma. Arquivos Catarinenses de
Medicina. 2008; 37(4):12-5.
14. Ribeiro RCHM, Santiago E, Bertolin DC, Ribeiro DF, Cesarino
CB, Burdmann EA. Depressão em idosos portadores de insuficiência renal crônica em tratamento hemodialítico. Acta Paul Enferm.
2009;22(Especial-Nefrologia):505-8.
15. Trentini CM, Xavier FMF, Chachamovich E, Rocha NS, Hirakata
VN, Fleck MPA. The influence of somatic symptoms on the performance of elders in the Beck Depression Inventory (BDI). Bras
Psiquiatr. 2005;27(2):119-23.
16. Boing AF, Melo GR, Boing AC, Moretti-Pires RO, Peres KG, Peres
MA. Associação entre depressão e doenças crônicas: estudo populacional. Saúde Pública 2012;46(4):617-23.
17. Madeiro AC, Machado PDLC, Bonfim IM, Braqueais AR, Lima
FET. Adesão de portadores de insuficiência renal crônica ao tratamento de hemodiálise. Acta Paul Enferm 2010;23(4):546-51.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 15-19, jan.-mar. 2015
AVALIAÇÃO DE SINTOMAS DEPRESSIVOS EM PACIENTES COM INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA SUBMETIDOS À HEMODIÁLISE... Schuster et al.
18. Baiardi F. Esposit ED, Cocechi R, Fabri A, Sturani , Valpiani G, et
al. Effects of clinical and individual variables on quality of life in
chronic renal failure patients. J Nephrol. 2002;15(1):61-67.
19. Thomas CV, Alchieri JC. Qualidade de vida, depressão e características de personalidade em pacientes submetidos à Hemodiálise.
Avaliação Psicológica, 2005;4(1):57-64.
20. Rudnicki T. Doença renal crônica: vivência do paciente em tratamento de hemodiálise. Contextos Clínicos, 2014; 7(1):105-116.
21. Nóra RT, Zambone GS, Facio JúniorFN. Avaliação da qualidade de
vida e disfunções sexuais em pacientes com insuficiência renal crônica em tratamento dialítico em hospital. Arq Ciênc Saúde. 2009;
16(2):72-5.
22. Costa PB, Vasconcelos KFS, Tassitano RM. Qualidade de vida: pacientes com insuficiência renal crônica no município de Caruaru,
PE. Fisioter Mov. 2010;23(3):461-71.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 15-19, jan.-mar. 2015
23. Takaki J, Yano E. The relationship between coping with stress and
employment in patients receiving maintenance hemodialysis. J Occup Health. 2006;48(4):276-83.
 Endereço para correspondência
Joel Tuchinski Schuster
Luiz Correa de Souza - 825
88.704-250 – Tubarão, SC – Brasil
 (48) 9943-3680
 [email protected]
Recebido: 19/2/2015 – Aprovado: 2/3/2015
19
ARTIGO ORIGINAL
Perfil epidemiológico das alterações dermatológicas observadas em
mulheres em período de puerpério imediato atendidas no
Hospital São José, em Criciúma, Santa Catarina
Epidemiological profile of dermatological changes observed in early postpartum women
cared for at São José Hospital in Criciúma, Santa Catarina
Natália Machado Mildner1, Gisleine Bittencourt Scotti2, Luiz Felipe de Oliveira Blanco3
RESUMO
Introdução: Durante o período gestacional, o corpo feminino passa por profundas alterações hormonais e mecânicas, em que a pele
também sofre alterações. O objetivo deste trabalho foi conhecer a prevalência das principais alterações dermatológicas no período
gestacional de gestantes atendidas no Hospital São José, de Criciúma-SC. Métodos: Estudo transversal com 188 gestantes. Foram
entrevistadas e examinadas as mulheres em período de puerpério imediato no Hospital São José, de Criciúma, Santa Catarina, no mês
de dezembro de 2010. Foram estudadas as seguintes variáveis: idade; peso antes e ao final da gestação; número de gestações; queda de
cabelos; alterações ungueais; manchas de pele; aparecimento de estrias ou pápulas pruriginosas. Resultados: Foram identificados 104
casos de estrias (55,31%) e 61 casos de melasma (32,44%). Os locais de maior frequência de estrias foram em abdome 71 (51,45%),
seios 35 (25,36%), nádegas 8 (5,8%) e pernas 24 (17,39%). A distribuição do melasma foi mais frequente em região centro-facial
52 (77,61%) e em região malar 7 (10,44%). Conclusões: Pacientes jovens, que tiveram maior ganho ponderal, foram as mais acometidas com estrias. Melasma acometeu pouco mais de um quarto da amostra e ocorreu com maior frequência em gestantes de faixa
etária mais baixa.
UNITERMOS: Gravidez, Melasma, Estrias
ABSTRACT
Introduction: During pregnancy a woman’s body undergoes profound hormonal and mechanical changes, where the skin also undergoes changes. The
aim of this study was to determine the prevalence of major skin changes during pregnancy among women cared for at Hospital São José, Criciúma, SC.
Methods: Cross-sectional study involving 188 pregnant women. We interviewed and examined women in the early postpartum period at Hospital São
José, Criciúma, SC in December 2010. The following variables were considered: age, weight before and at the end of pregnancy, number of pregnancies, hair
loss, nail changes, skin blemishes, appearance of stretch marks or pruritic papules. Results: We identified 104 cases of stretch marks (55.31%) and 61
cases of melasma (32.44%). Stretch marks were most often found in the abdomen (71 cases, 51.45%), breasts (35, 25.36%), buttocks (8, 5.8%) and
legs (24, 17.39%). Melasma was more frequent in the center-facial region (52, 77.61%) and malar region (7, 10.44%). Conclusions: Young patients
who had greater weight gain were the most affected with stretch marks. Melasma struck just over a quarter of the sample and occurred more frequently in
younger women.
KEYWORDS: Pregnancy, melasma, stretch marks
1
2
3
20
Médica.
Médica.
Dermatologista e Professor da disciplina de Dermatologia Clínica e Cirúrgica da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 20-23, jan.-mar. 2015
PERFIL EPIDEMIOLÓGICO DAS ALTERAÇÕES DERMATOLÓGICAS OBSERVADAS EM MULHERES EM PERÍODO DE PUERPÉRIO... Mildner et al.
INTRODUÇÃO
A gravidez representa um período de intensas modificações para a mulher. Praticamente todos os sistemas
do organismo são afetados, entre eles a pele. As intensas
alterações imunológicas, endócrinas, metabólicas e vasculares tornam a gestante susceptível a mudanças na pele,
tanto fisiológicas como patológicas (1,2). Algumas dessas
alterações, por serem de grande prevalência neste período,
são chamadas fisiológicas ou normais, sendo, muitas vezes, subvalorizadas ou não tratadas, embora possam causar
grandes transtornos para a gestante (2).
Em relação à pele, as alterações gestacionais podem ser
classificadas em: alterações fisiológicas da gravidez, dermatoses específicas da gravidez e dermatoses alteradas na
gravidez (1).
As modificações mais comuns são as alterações fisiológicas, que incluem hiperpigmentação, manchas, estrias,
alterações vasculares, hipertricoses e acne (1,2,3,4). Vale
destacar que, entre as alterações mais frequentemente observadas, o melasma é uma dermatose inestética, que determina grande procura ao atendimento dermatológico
especializado, embora represente, somente, uma anormalidade comum e benigna da gestação. Talvez isso se explique
pela natureza cosmeticamente desfigurante e pelos efeitos
emocionais e psicológicos na paciente acometida pelo problema, os quais, com frequência, em virtude da insatisfação
com a aparência, acabam se privando do convívio social,
inclusive com casos de suicídio relatados (1).
O objetivo deste estudo é analisar as alterações dermatológicas mais frequentemente observadas durante a gestação em mulheres em período de puerpério imediato internadas no Hospital São José, em Criciúma, Santa Catarina,
durante o mês de dezembro de 2010.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo documental, descritivo, transversal, retrospectivo e de abordagem quantitativa e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital São José,
sob o protocolo número 180/2010.
Todas as gestantes que realizaram partos normais e cesarianas no Hospital São José, de Criciúma, Santa Catarina,
durante o mês de dezembro de 2010, foram examinadas
e entrevistadas. Todas as pacientes foram incluídas no estudo, sendo este, portanto, classificado como um estudo
censitário (5).
As pacientes assinaram Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido antes da entrevista para aplicação do questionário, que obteve as seguintes informações: idade, peso
antes e ao final da gestação, aparecimento de manchas e
estrias, perda de cabelo e alterações ungueais.
As alterações foram classificadas em 5 grupos: estrias,
melasma, queda de cabelo, alterações ungueais e pápulas
pruriginosas. Os locais de acometimento das estrias foram
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 20-23, jan.-mar. 2015
separados em: abdômen, abdômen e perna, abdômen e nádegas, abdômen, perna e seios, pernas, abdômen e seios,
seios, seios e nádegas, seios e pernas.
As informações obtidas foram tabuladas no software
Microsoft Excel versão 2007 e, em seguida, transferidas
para o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS)
versão 18.0, para o cálculo das medidas descritivas (média,
desvio-padrão e frequência das alterações dermatológicas).
RESULTADOS
Foram recrutadas 188 pacientes em período de puerpério imediato, 80 (42,55%) de parto normal e 108 (57,44%)
de cesarianas. Setenta e uma pacientes eram primigestas, 28
tiveram parto normal e 43 realizaram cesariana.
A Tabela 1 descreve a presença ou não de estrias de
acordo com a idade, sendo que, das 188 pacientes, 23,09
apresentam estrias (±4,96) e 29,02 (±5,68) não apresentam
estrias.
A faixa etária média mais acometida pelas estrias foi a
de 15-23 anos (29,25%), seguida por 24-32 anos (23,40%)
e entre 33-42 anos (2,65%), demonstrada pelo Gráfico 1.
De acordo com a Tabela 2, estrias foram em número
maior nas pacientes que apresentaram ganho de peso ao final da gestação entre 11-20 kg (61,53%), 21-32 kg (20,19%),
1-10 kg (18,26%). O Gráfico 2 demonstra os locais de
maior ocorrência das estrias, sendo os mais frequentes em
região do abdômen (60,57%); abdômen e perna (9,61%);
Tabela 1 – Correlação das pacientes que apresentaram ou não
estrias de acordo com idade. - 104 mulheres com idade média de
23,09 anos tendem a apresentar maior frequência de estrias.
Estrias
n(%)
Idade Média (DP)
Valor de p
Sim
Não
104(55,32)
23,09(±4,96)
0,000
84(44,68)
29,02(±5,68)
Gráfico 1 – Porcentagem das pacientes que apresentaram ou não
estrias por faixa etária. - 45% das gestantes não têm estrias 29% das
gestantes com 15 a 23 anos têm estrias 23% das gestantes com 24 a
32 anos têm estrias 3% das gestantes com 33 a 42 anos têm estrias.
21
PERFIL EPIDEMIOLÓGICO DAS ALTERAÇÕES DERMATOLÓGICAS OBSERVADAS EM MULHERES EM PERÍODO DE PUERPÉRIO... Mildner et al.
Tabela 2 – Correlação das pacientes que apresentaram estrias
com o ganho de peso. - 104 mulheres com ganho ponderal médio de
15,79 kg apresentaram maior frequência de estrias.
Estrias
n(%)
Idade Média (DP)
Valor de p
Sim
104(55,32)
15,79(±7,03)
0,000
Não
84(44,68)
11,62(±5,09)
80
70
Número de Casos
Number of cases
60
Gráfico 3 – Apresentação de melasma por faixa etária. - Gestantes
com 33-42 anos têm melasma Gestantes com 24-32 anos têm
melasma Gestantes com 15-23 anos têm melasma 68% das gestantes
não têm melasma
50
40
30
20
DISCUSSÃO
10
0
Abdomen
Seios
Nádegas
Pernas
Gráfico 2 – Local de acometimento das estrias em gestantes. Evidencia locais do corpo da gestante mais acometidos por estrias.
Região abdominal evidenciou maior acometimento de estrias em mais
de 70 mulheres.
seios (8,65%); pernas (7,69%); abdômen e seios (3,84%);
seios e nádegas (3,84%); abdômen e nádegas (1,92%); abdômen, perna e seios (1,92%), seios e pernas (1,92%).
Já o Gráfico 3 demonstra a ocorrência de melasma de
acordo com a faixa etária. Os resultados mostraram que a
maioria das gestantes não teve melasma (68%), aproximadamente 23% das gestantes com idades entre 24-32 anos
apresentaram melasma; cerca de 4% das gestantes entre 15
e 23 anos e 5% das gestantes com 33-42 anos.
Dos 104 relatos (55,31%) de aparecimento de estrias, 71
(68,27%) correspondem à região abdominal, 35 (33,65%)
em região dos seios, 24 (23,98%) nas pernas e 8 gestantes (7,69%) nas nádegas, sendo que algumas das gestantes apresentaram mais de um local de acometimento pelas
estrias. Pacientes mais jovens, na faixa etária entre 15-23
anos, estiveram entre as mais acometidas por estrias. Este
grupo foi constituído de 55 gestantes correspondendo a
29,25% do total das gestantes, e deste grupo etário 79,71%
apresentaram estrias, o achado mais observado neste estudo. Na faixa de ganho de peso entre 11-20 quilogramas, 64
(61,53%) pacientes apresentaram estrias.
Outras alterações dermatológicas, como queda de cabelo, alterações ungueais e acne, foram encontradas, porém em número pouco expressivo e não foram detalhadas
neste estudo.
22
Este estudo avaliou as alterações dermatológicas mais
frequentes durante a gravidez em mulheres primíparas e
multíparas, em todas as faixas etárias. O aparecimento de
estrias durante a gestação, no grupo estudado, foi o mais
frequente e está de acordo com o estudo de Maia (6).
As estrias são lesões alongadas, serpiginosas e ocasionadas pela ruptura de fibras de colágeno e elastina. A etiologia
ainda não está completamente elucidada, mas acredita-se
que seja ocasionada pela associação de fatores hormonais
(7). No nosso estudo, a localização das estrias na região
abdominal foi a mais frequente, seguida das mamas e pernas. Esse resultado é compatível com outros existentes na
literatura.
De acordo com Azulay et al, a gravidez é um estado
de equilíbrio instável, que requer modificações da mulher
sob vários aspectos. Dessa forma, é necessário que dermatologistas e obstetras estejam sempre interagindo com
estas possibilidades, podendo, assim, beneficiar o binômio
mãe-feto (2).
Apesar de a etiologia das estrias não ser bem compreendida, é aceito que a combinação de estiramento mecânico
da pele com fatores genéticos, com alterações endócrinas
e, eventualmente, com secreção de relaxina durante a gravidez (8) isolados ou associados, tem papel significativo nas
mulheres grávidas (9,10).
Segundo Maia (6), a prevalência das estrias gravídicas
é dependente da população estudada. Tem sido relatado
na literatura que a prevalência na população geral varia entre 50-95%, coincidindo com este estudo. Muitas mulheres
apresentam estrias durante a primeira gestação. Frequentemente, as lesões aparecem mais cedo do que o esperado,
geralmente antes da 24ª semana de gestação (11).
O peso materno adquirido na gestação foi a variável
estatisticamente significante, correspondendo a um maior
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 20-23, jan.-mar. 2015
PERFIL EPIDEMIOLÓGICO DAS ALTERAÇÕES DERMATOLÓGICAS OBSERVADAS EM MULHERES EM PERÍODO DE PUERPÉRIO... Mildner et al.
estiramento da pele. Não foi encontrada neste estudo associação significante entre o uso de óleos ou cremes. No que
diz respeito à utilização de cremes, há apenas uma publicação que cita a utilização de controle placebo, contendo
componentes como: extrato de Centella asiática, alfa-tocoferol, hidrolisado de colágeno-elastina e mentol, o que
sugeriu prevenir o desenvolvimento de estrias na gestação
em algumas mulheres (12).
Quanto ao melasma, no nosso estudo, podemos perceber que a maioria das gestantes estudadas não apresenta
essa alteração cutânea. As gestantes que apresentaram melasma foram mulheres jovens, entre 24-32 anos, corroborando com o estudo de Purim e Avelar, em que a média de
idade das puérperas com diagnóstico clínico de melasma
foi de 28,2 anos (13).
As limitações do estudo devem ser destacadas. Uma delas se refere ao pequeno tamanho amostral de puérperas
portadoras de estrias e melasmas. A etiologia multifatorial
do melasma e das estrias e as variações na exposição solar e
uso de cremes hidratantes dificultam confirmar associação
causal com radiação solar, fatores genéticos e cremes hidratantes protetores. Não foram aferidos dados epidemiológicos e terapêuticos acerca desses fatores.
CONCLUSÕES
O presente estudo evidenciou que a alteração dermatológica mais prevalente entre as mulheres estudadas foi a estria gravídica. As estrias foram mais frequentes em pacientes mais jovens, primigestas e nas que adquiriram excesso
de peso. Este estudo sugere que o estiramento excessivo
da pele pode ser um fator de risco, e o aumento da idade
materna pode ser considerado um efeito protetor contra a
ocorrência de estrias na gestação. Nosso estudo também
mostra que a maioria das gestantes não apresentou melasma, sugerindo que possam fazer uso de fatores protetores
mecânicos, como filtros solares e chapéus.
De acordo com as alterações dermatológicas encontradas no presente estudo, evidencia-se que medidas preventi-
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 20-23, jan.-mar. 2015
vas podem ser realizadas para evitar o estiramento cutâneo,
com a formação de estrias, através do uso de cremes hidratantes e protetores solares, no caso dos melasmas. Esse entendimento é válido para todos os profissionais envolvidos
de forma indireta ou direta na assistência à gestante.
REFERÊNCIAS
1 Alves G, Varella T, Dermatologia e gestação. Anais Brasileiro de
Dermatologia. 2005, p. 179.
2 Costa A, Alves G, Azulay L. Dermatologia e gravidez. 1ª ed. Rio de
Janeiro: Elsevier; 2009, p. 10-504
3 Alves G, Varella T, Nogueira L. Dermatologia e gestação. V.80, n.2,
p.86-179, 2005.
4 Dominguez AR, Balkrishnan, Ellzey AR, Pandya A. Melasma in latina patients. J Acad Dermatol. 2006; 55:p. 59-66.
5 Rodrigues PC. Bioestatística. 3ª ed. Rio de Janeiro: Eduff; 2002, p.
10-34.
6 Maia M, Marçon CR, Rodrigues SB. Estrias na gestação: fatores de
risco nas primíparas. An Bras Dermatol. 2009; 84(6): 599-695.
7 Urasaki MBM. Alterações fisiológicas da pele percebidas por gestantes assistidas em serviços públicos de saúde. Acta Paul Enferm
2010;23(4): 519-25.
8 Seibold JR, et al. Recombinant Human Relaxin in the Treatment of
Scleroderma: a Randomiized Blind, Placebo-Controlled Trial. Ann
Intern Med. 2000; 132:871-9.
9 Henry F, Franchimont, Pans A, Pièrard G. Striae distensae of
pregnancy. An in vivo biomechanical evaluation. Int J Dermatol.
1997;36:506-8.
10 Lernia D, Bonci A, Cattania M, et al. Striae distensae (rubrae) in
monozygotic twins. Ped Dermatol. 2001; 12:261-4.
11 Salter S, Kimbal A. Striae gravidarum. Clinics in Dermatology. 2006;
24:97-100.
12 Young GL, Jewell D. Cream for preventing stretch marks in pregnancy. Cochrane Review. 2008.
13 Avelar MFS, Purim KSM. Fotoproteção, melasma e qualidade de
vida em gestantes. Rev Bras Ginecol Obstet. 2012; 34(5): 228-43.
 Endereço para correspondência
Natália Machado Mildner
Rua Missões - 467
98.801-430 – Santo Ângelo, RS – Brasil
 (55) 8109-6771
 [email protected]
Recebido: 6/10/2014 – Aprovado: 13/1/2015
23
RELATO DE CASO
Retalho do músculo oblíquo externo para reconstrução de
extenso defeito da parede torácica após ressecção de carcinoma
de mama recidivado
External oblique muscle flap for reconstruction of large chest wall defect
after resection of recurrent breast cancer
Francisco Felipe Laitano1, Francisco Carlos dos Santos Neto2, Francisco Laitano Neto3, Felipe Pereira Zerwes4
RESUMO
A reconstrução de extensos defeitos da parede torácica secundárias à ressecção de tumores avançados é desafiadora ao cirurgião
plástico. Relatamos o caso de uma paciente com recidiva locorregional de carcinoma ductal de mama, que resultou em grande perda
de substância da parede torácica anterior após sua ressecão. O defeito foi reconstruído com retalho miocutâneo do músculo oblíquo
externo (MOE). O retalho miocutâneo do MOE possui diversas vantagens sobre os demais retalhos possíveis para a reconstrução de
extensos defeitos da parede torácica, como um menor tempo cirúrgico e uma menor morbidade.
UNITERMOS: Reconstrução, Retalhos Cirúrgicos, Mastectomia, Parede Torácica
ABSTRACT
The reconstruction of large defects of the chest wall secondary to resection of advanced tumors is challenging to the plastic surgeon. Here we report the case of
a patient with locoregional recurrence of breast ductal carcinoma, which resulted in great loss of substance of the anterior chest wall after its resection. The
defect was reconstructed with myocutaneous flap of the external oblique muscle (EOM). The myocutaneous flap of EOM has several advantages over other
possible flaps for the reconstruction of extensive defects of the chest wall, such as reduced surgical time and lower morbidity.
KEYWORDS: Reconstruction, surgical flaps, mastectomy, thoracic wall
INTRODUÇÃO
A reconstrução de extensos defeitos da parede torácica secundários à ressecção de tumores primários
avançados, metastáticos ou mesmo de complicações do
tratamento (p.ex. radionecrose) é desafiadora ao cirurgião plástico (1,2).
1
2
3
4
24
Retalhos como o do músculo reto abdominal (TRAM)
e do músculo grande dorsal, além do de Omento associado à enxertia cutânea são opções viáveis (3). O retalho do
músculo oblíquo externo (MOE), muitas vezes esquecido
como opção de reconstrução, é capaz de fechar grandes
defeitos da parede torácica (1) com baixa morbidade e sequelas. Devemos levar em consideração o estado clínico do
Cirurgião Plástico, membro especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, Cirurgião plástico do Centro da Mama do Hospital São Lucas
(HSL)-PUCRS.
Médico residente do Serviço de Cirurgia Plástica do HSL-PUCRS.
Médico preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica do HSL-PUCRS; Cirurgião plástico do Centro da Mama do HSL-PUCRS.
Médico Mastologista do Centro da Mama do HSL-PUCRS.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 24-27, jan.-mar. 2015
RETALHO DO MÚSCULO OBLÍQUO EXTERNO PARA RECONSTRUÇÃO DE EXTENSO DEFEITO DA PAREDE TORÁCICA APÓS RESSECÇÃO... Laitano et al.
paciente e o prognóstico no momento de optar pelo tipo
de reconstrução.
Relatamos o caso de uma paciente com recidiva locorregional de carcinoma ductal de mama, cuja ressecção resultou em grande perda de substância da parede torácica,
que foi reconstruída imediatamente com retalho miocutâneo do músculo oblíquo externo.
RELATO DO CASO
Paciente de 61 anos, ex-tabagista, obesa e hipertensa,
procura o Serviço de Mastologia e Cirurgia Plástica do
Hospital São Lucas devido à recidiva locorregional de
carcinoma ductal invasor em mama esquerda (Fig. 1). A
mesma havia realizado quimioterapia neoadjuvante seguida
de mastectomia e radioterapia dois anos antes em outra
cidade. Apresentava múltiplas nodulações, comprometendo quase toda extensão do hemitórax esquerdo até a linha
axilar posterior. Foi realizada a ressecção em monobloco
de toda a lesão pela equipe de Mastologia, resultando em
uma perda de substância de 21x26 cm.
A marcação do retalho é feita de forma semelhante a
um retalho de rotação, sendo que a borda superior do retalho coincide com a borda inferior do defeito (1,4). A marcação continua no eixo longitudinal até abaixo da cicatriz
umbilical, podendo, em alguns casos, ultrapassar a linha
média (2) (Fig. 2).
Após a incisão da pele, disseca-se no plano subcutâneo
até a borda lateral do músculo reto abdominal (linha arqueada). Nesse momento, muda-se o plano de dissecção
para sob o músculo OE, após incisada sua aponeurose (3).
A dissecção pode seguir até a linha axilar posterior (1), dependendo do ângulo de rotação necessário. Caso necessário, pode-se liberar o músculo em sua origem nas três
primeiras costelas e a inserção na crista ilíaca para facilitar a
rotação (1) (Fig. 3). O retalho é fixado no defeito e, então,
Figura 1 – Aspecto clínico da recidiva locorregional de carcinoma
ductal invasor em mama esquerda
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 24-27, jan.-mar. 2015
Figura 2 – Extensão da perda de substância e marcação do retalho
Figura 3 – Retalho dissecado
25
RETALHO DO MÚSCULO OBLÍQUO EXTERNO PARA RECONSTRUÇÃO DE EXTENSO DEFEITO DA PAREDE TORÁCICA APÓS RESSECÇÃO... Laitano et al.
são realizados o fechamento primário da área doadora e a
inserção de dreno de aspiração (Fig. 4).
A paciente evoluiu bem no pós-operatório (PO), recebendo alta hospitalar no 3o dia e sendo retirado o dreno
no 7o dia PO. Apresentou como complicação uma pequena
área de deiscência da ferida operatória na região supraumbilical. Na porção cranial, onde a vascularização se dá de
forma aleatória, apresentou área de epidermólise tratada
com manejo conservado e com boa evolução (Fig. 5 e 6).
DISCUSSÃO
O MOE origina-se da 6ª à 12ª costela. Suas fibras digitiformes correm no sentido crânio-caudal e látero-medial,
inserindo-se na crista ilíaca anterior, tubérculo púbico e
unindo-se com os músculos oblíquo interno e transverso
para formar a bainha do músculo reto abdominal (5). É o
músculo mais forte da parede abdominal (6).
É classificado, de acordo com a classificação de retalhos
musculares de Mathes e Nahai, como tipo IV, apresentando
múltiplos pedículos nutridores (1). Na porção cranial, sua
vascularização é segmentar e se dá pelas 4ª a 11ª artérias intercostais, ramos diretos da aorta. Elas penetram os músculos intercostais e o músculo OE em uma linha imaginária
convexa, que vai do ponto hemiclavicular e se estende inferiormente e posteriormente em direção à aponeurose lombar (7). Na porção caudal (digitações originadas da 9ª à 12ª
costelas), a vascularização provém principalmente da artéria
ilíaca circunflexa profunda (95%), além da artéria iliolombar
(5%) (7). Esse padrão vascular segmentar e abundante permite que o músculo seja elevado com segurança (3).
O retalho musculofascial do OE foi inicialmente descrito por Lesnik e Davids, em 1953, para o fechamento de um
defeito em abdome inferior (8). Em 1964, Hershey e Butcher propuseram pela primeira vez o uso do MOE como
retalho musculofasciocutâneo para o fechamento de defeitos da parede abdominal e tórax inferior (9). Desde então,
surgiram diversas variações e evoluções da técnica, como
os retalhos abdominais cutâneos baseados em perfurantes
(2) e as alterações no desenho do retalho para melhorar os
resultados estéticos (1).
O retalho do MOE se destaca pela possibilidade de cobertura de grandes defeitos torácicos, com áreas descritas
na literatura de até 800 cm² (3). A versatilidade desse retalho estende-se para reconstruções da parede abdominal
baixa (9) e da região dorsal (10).
A qualidade e semelhança de cor da pele, a sensibilidade, a ausência de necessidade de mudar o paciente de decúbito durante a cirurgia, a relativa facilidade e rapidez na
execução e a ausência de fragilidade na parede abdominal
são algumas das vantagens sobre os retalhos do músculo
reto abdominal e grande dorsal (3).
Existem variações na técnica cirúrgica para melhorar
os resultados de acordo com o defeito encontrado. Alguns autores propõem que seja incluída a fáscia do mús26
Figura 4 – Aspecto do pós-operatório imediato
Figura 5 – Aspecto com um mês de pós-operatório, nota-se a boa
evolução da epidermólise na região superior do retalho e da deiscência
na região periumbilical
Figura 6 – Aspecto com um ano de pós-operatório
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 24-27, jan.-mar. 2015
RETALHO DO MÚSCULO OBLÍQUO EXTERNO PARA RECONSTRUÇÃO DE EXTENSO DEFEITO DA PAREDE TORÁCICA APÓS RESSECÇÃO... Laitano et al.
culo reto abdominal quando o defeito se estender além
dos limites do MOE. Dessa forma, o retalho ficaria composto por uma porção fasciocutânea e outra miofasciocutânea (1,9). Em direção contrária, Persichetti et al sugeriram um retalho toracoabdominal exclusivamente cutâneo
com desenho semelhante ao retalho do MOE e baseado
nas artérias cutâneas laterais e nas perfurantes musculocutâneas emergentes das artérias intercostais, subcostais e
lombares, com o pedículo localizado na borda medial no
MOE (2). Outra variação na técnica sugerida por Moschella acontece no desenho da porção subumbilical do
retalho. O autor sugere que a porção infraumbilical seja
fechada em forma de um retalho V-Y, proporcionando
menor distorção do umbigo e menor tensão no fechamento (1).
O índice de complicações encontrado na literatura é
baixo. Em uma série de 13 casos, apenas um apresentou
complicações (necrose marginal) (1). Em outra série com
20 pacientes, houve apenas um caso de perda parcial do retalho ocorrida em sua porção de vascularização aleatória, e
o tempo médio da reconstrução ficou em cerca de duas horas (3), sendo considerado um retalho seguro e com bom
tempo cirúrgico.
REFERÊNCIAS
1. Moschella F, Cordova A. A new extended external oblique musculocutaneous flap for reconstruction of large chest-wall defects. Plast
Reconstr Surg. 1999;103(5):1378-85.
2. Persichetti P, Tenna S, Cagli B, Scuderi N. Extended cutaneous thoracoabdominal flap for large chest wall reconstruction. Ann Plast
Surg.2 006;57(2):177-83.
3. Bogossian N, Chaglassian T, Rosenberg PH, Moore MP. External oblique myocutaneous flap coverage of large chest-wall defects following resection of breast tumors. Plast Reconstr Surg.
1996;97(1):97-103.
4. Bogossian N. A new extended external oblique musculocutaneous
flap for reconstruction of large chest-wall defects. Plast Reconstr
Surg. 2000;105(1):473-5.
5. McCraw JB. McCraw and Arnolds atlas of muscle and musculocutaneous flaps. 1a edição. Norfolk: Hampton Press Publishing Company; 1986.
6. Moore KL, Dalley AF. Anatomia orientada para a clínica. 4a edição.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2001.
7. Schlenz I, Burggasser G, Kuzbari R, Eichberger H, Gruber H, Holle J. External oblique abdominal muscle: a new look on its blood
supply and innervation. Anat Rec. 1999; 255(4):388-95.
8. Lesnick GJ, Davids AM. Repair of surgical abdominal wall defect
with a pedicled musculofascial flap. Ann Surg. 1953;137(4):569-72.
9. Hershey FB, Butcher HR, Jr. Repair of Defects after Partial Resection of the Abdominal Wall. Am J Surg. 1964;107:586-90.
10. Dumanian GA, Heckler FR, Bernard SL. The external oblique turnover muscle flap. Plast Reconstr Surg. 2003;111(7):2344-8.
COMENTÁRIOS FINAIS
A reconstrução de extensos defeitos da parede torácica
secundários à ressecção de tumores de mama avançados
ou sequelas do tratamento continua sendo um desafio ao
cirurgião plástico. O retalho miofasciocutâneo de MOE
torna-se uma opção atraente nesse contexto, com diversas vantagens sobre os demais retalhos possíveis, como um
menor tempo cirúrgico e uma menor morbidade.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 24-27, jan.-mar. 2015
 Endereço para correspondência
Francisco Felipe Laitano
Rua Farnese - 199
90.450-180 – Porto Alegre, RS – Brasil
 (51) 3388-2553
 [email protected]
Recebido: 25/5/2014 – Aprovado: 21/7/2014
27
RELATO DE CASO
Mesotelioma bem diferenciado (benigno) de túnica vaginal:
relato de um caso e revisão da literatura
Well-differentiated (benign) mesothelioma of the tunica vaginalis:
report of a case and literature review
Renato Augusto Felkl1
RESUMO
Mesoteliomas são tumores oriundos das células mesoteliais da pleura, peritônio, pericárdio ou túnica vaginal, sendo a exposição prolongada ao asbesto o principal fator de risco. Neoplasias mesoteliais benignas da região paratesticular são raras. Relata-se um caso de
Mesotelioma de Túnica Vaginal associado à hidrocele, destacando a utilidade da ecografia na avaliação das massas escrotais.
UNITERMOS: Mesotelioma, Túnica vaginal, Hidrocele
ABSTRACT
Mesotheliomas are tumors originating from the mesothelial cells of the pleura, peritoneum, pericardium or tunica vaginalis, with prolonged exposure to asbestos
the main risk factor. Benign mesothelial neoplasms of the paratesticular region are rare. Here we report a case of tunica vaginalis mesothelioma associated with
hydrocele, highlighting the usefulness of ultrasound in the evaluation of scrotal masses.
KEYWORDS: Mesothelioma, tunica vaginalis, hydrocele
INTRODUÇÃO
Mesoteliomas são tumores oriundos das células mesoteliais da pleura, peritônio, pericárdio ou túnica vaginal, sendo
a exposição prolongada ao asbesto o principal fator de risco.
Neoplasias mesoteliais benignas da região paratesticular são
raras (1,6). O padrão histológico mais comum é o adenomatoide. Relata-se um caso de mesotelioma papilar bem
diferenciado (well-differentiated papillary mesothelioma) de túnica
vaginal, considerada de baixo potencial de malignidade.
RELATO DO CASO
Paciente de 28 anos de idade, branco, policial militar, percebeu aumento de volume indolor do hemiescroto esquerdo
1
28
havia 3 meses. Não havia antecedentes de outras doenças,
trauma, cirurgias de hérnia ou varicocele, nem exposição ao
asbesto. O exame físico foi compatível com uma hidrocele
pequena, e a ecografia identificou, além da coleção líquida e
normalidade testicular, uma lesão vegetante irregular de 20
mm, inserida no segmento proximal da túnica vaginal (Fig 1).
Com a hipótese de neoplasia, o paciente foi submetido à orquiectomia radical por abordagem inguinal de alto
padrão. O exame da peça evidenciou lesão pardo-clara e
vegetante, medindo 20 mm no maior eixo (Fig. 2).
A análise microscópica da túnica vaginal revelou estrutura de aspecto papilar, com eixo conjuntivo hialinizado e revestido por células cúbicas ou achatadas; o citoplasma tinha
aspecto eosinofílico, núcleos ovais e levemente hipercromáticos. No exame imuno-histoquímico, a expressão de WT-1
e calretinina associada à negatividade para BG-8 confirma-
Membro Titular da Sociedade Brasileira de Urologia (Médico Cirurgião Geral e Urologista do Hospital de Caridade de Frederico Westphalen)
Cirurgião Geral e Urologista - Título de Especialista em Cirurgia Geral pelo Colégio Brasileiro de Cirurgiões, Membro titular da Sociedade
Brasileira de Urologia - Serviço de Cirurgia e Urologia do Hospital Divina Providência, Frederico Westphalen - RS.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 28-29, jan.-mar. 2015
MESOTELIOMA BEM DIFERENCIADO (BENIGNO) DE TÚNICA VAGINAL: RELATO DE UM CASO E REVISÃO DA LITERATURA Felkl
Figura 1 – Ecografia do Escroto
sem história de exposição a asbestos (3). Raramente originam-se na túnica vaginal, com poucos casos relatados na
literatura (7). Quando paratesticulares, manifestam-se habitualmente por hidrocele, com achado ultrassonográfico
característico de lesão exofítica irregular (4). Histologicamente, apresentam-se como uma proliferação mesotelial
multifocal que não exibem invasão do estroma. Adicionalmente, distinção patológica da forma benigna da maligna
é crucial, embora possa ser difícil devido à variabilidade de
aspectos histológicos associados. Além disso, raros casos
de mesotelioma papilar bem diferenciado têm progredido
para a forma maligna, classificando-o como um tumor de
baixo potencial de malignidade (7).
Asbestos são apontados como o principal fator de risco
para o desenvolvimento de mesotelioma, principalmente
de comportamento maligno. Asbesto e amianto são sinônimos, nomes genéricos de um mineral encontrado no solo
em mais de 30 variedades. Pela sua qualidade isolante, durabilidade, flexibilidade, resistência mecânica e às altas temperaturas, esse mineral, presente em abundância na natureza,
tem sido largamente utilizado na indústria, principalmente
na construção civil. No processo de manufatura, pequenas partículas desse material se desprendem e são inaladas.
Esta situação pode aumentar o risco para outros tipos de
câncer, como de fígado, pulmão e laringe. Atualmente, a
exposição de trabalhadores a esse tipo de material tem sido
controlada, principalmente nos países mais desenvolvidos.
Uma vez que a distinção pré-operatória entre lesão maligna e benigna pode ser muito difícil, o exame histopatológico transoperatório é importante para a preservação do
testículo, porém se não estiver disponível, a orquiectomia
inguinal alta deve ser considerada (2).
REFERÊNCIAS
Figura 2 – Peça cirúrgica
ram a natureza mesotelial destas células. Os achados foram
consistentes com mesotelioma papilífero bem diferenciado.
DISCUSSÃO
Lesões mesoteliais envolvendo a região paratesticular
incluem cistos mesoteliais, hiperplasia mesotelial reativa, tumor adenomatoide benigno, mesotelioma cístico benigno,
mesotelioma papilífero bem diferenciado e mesotelioma
maligno. A avaliação e o manejo dessas lesões habitualmente
são difíceis para os patologistas, cirurgiões e oncologistas. O
diagnóstico pré-operatório de malignidade é raramente feito,
e a terapia efetiva permanece sendo a orquiectomia (2).
O mesotelioma papilar bem diferenciado é uma inusitada variante do mesotelioma epitelial, considerado de baixo
potencial de malignidade. A maioria dos casos previamente
relatados desenvolveu-se no peritônio de mulheres jovens
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 28-29, jan.-mar. 2015
1 A.Loganathan, N.E.New & R.K.Calleja: Benign Papillary Mesothelioma of the Tunica Vaginalis Testis. The Internet Journal of Urology.
2004 Volume 2 Number 1.
2. Ashish Goel, Akansha Agraeal, Rajiv Gupta , Smriti Hari , A D Dey
.Cases Journal 2008, 1:310
3. Butnor KJ, Sporn TA, Hammar SP, Roggli VL. : Well-differentiated
papillary mesothelioma. Am. J.Surg Pathol. 2001 Oct;25(10):1304-9.
4. Churg A.:Paratesticular mesothelial proliferations. Semin Diagn Pathol. 2003 Nov;20(4): 272-8.
5. Perez-Ordonez B, Srigley JR. : Mesothelial lesions of the paratesticular region. Semin Diagn Pathol. 2000 Nov;17: 294-306.
6. Robert J.Cabay, Noman H. Siddiqui, Shumyle Alam,: Paratesticular
Papillary Mesothelioma: A Case With Borderline Features.Arch Pathol Lab Med - Vol 130, january 2006.
7. Tolhurst SR, Lotan T, Rapp DE, Lyon MB, Orvieto MA, Gerber
GS, Sokoloff MH. : Well-differentiated papillary mesothelioma occurring in the tunica vaginalis os the testis with contralateral atypical
mesothelial hyperplasia.Urol Oncol, 2006 Jan-Feb;24(1):36-9.
 Endereço para correspondência
Renato Augusto Felkl
Rua Tenente Lira - 1199
98.400-000 – Frederico Westphalen, RS – Brasil
 (55) 3744-3473
 [email protected]
Recebido: 28/5/2014 – Aprovado: 3/8/2014
29
RELATO DE CASO
Cardiomiopatia de Takotsubo: Relato de Caso
Takotsubo Cardiomiopathy: Case Report
Marcos Frata Rihl1, Priscila Haas2, Ricardo Santos Holthausen3
RESUMO
Dor torácica é uma queixa comum na emergência, representando 9-10% das emergências não relacionadas a trauma. Destes, a Síndrome Coronariana Aguda (SCA) conta com 13-23,6% dos casos de dor torácica. No entanto, 1,7-2,2% dos pacientes que tinham
suspeita de SCA foram subsequentemente diagnosticados com Cardiomiopatia de Takotsubo. Relatamos o caso de uma paciente do
sexo feminino, 78 anos, branca, sem patologias prévias, com queixa de dor torácica em sufocamento de forte intensidade associada à
dispneia logo após discussão com vizinhos. A paciente foi submetida à investigação e se chegou ao diagnóstico de Cardiomiopatia de
Takotsubo. A paciente foi tratada com sintomáticos e liberada em condições de alta após uma semana, não apresentando episódios
de dor torácica durante a internação. A Cardiomiopatia de Takotsubo não é rara, mas sim, subdiagnosticada. Considerar a Cardiomiopatia de Takotsubo no diagnóstico diferencial especialmente em mulheres na pós-menopausa com síndrome coronariana aguda irá
prevenir os perigos potenciais do tratamento com agentes trombolíticos.
UNITERMOS: Dor Torácica, Cardiomiopatia de Takotsubo, Síndrome Coronariana Aguda, Diagnóstico Diferencial
ABSTRACT
Chest pain is a common complaint in emergency care, representing 9-10% of non-trauma emergencies. Of these, Acute Coronary Syndrome (ACS) accounts for 13
to 23.6% of cases of chest pain. However, 1.7-2.2% of patients with suspected ACS were subsequently diagnosed with Takotsubo cardiomyopathy. Here we report
the case of a white female patient, 78, without prior conditions, complaining of chest pain in suffocation of strong intensity associated with dyspnea after an argument
with neighbors. After an investigation Takotsubo cardiomyopathy was diagnosed. The patient was treated symptomatically and discharged after a week, with no significant episodes of chest pain during hospitalization. Although Takotsubo cardiomyopathy is not rare, it is underdiagnosed. Considering Takotsubo cardiomyopathy in
the differential diagnosis, especially in postmenopausal women with acute coronary syndrome, will prevent the potential dangers of treatment with thrombolytic agents.
KEYWORDS: Chest pain, Takotsubo cardiomyopathy, acute coronary syndrome, differential diagnosis
INTRODUÇÃO
Dor torácica é uma queixa comum na emergência,
sendo a segunda mais comum em pacientes com mais
de 15 anos, perdendo apenas para dor abdominal (1). De
acordo com a National Health Statistics Reports de 2007,
em um total de 14.641 pacientes que procuraram a emergência nos Estados Unidos da América nesse ano, cerca
de 5,7% se queixavam de dor pré-cordial (1). Segundo
1
2
3
30
a mesma fonte, de 1999 até 2008, levando-se em conta
apenas emergências não relacionadas a trauma, a porcentagem de visitas por dor torácica variou entre 9-10%
(2). Destes, a Síndrome Coronariana Aguda (SCA) conta
com aproximadamente 13-23,6% dos casos de dor torácica (2). No entanto, estudos mostraram que 1,7-2,2%
dos pacientes que tinham suspeita de SCA foram subsequentemente diagnosticados com Cardiomiopatia de
Takotsubo (3-7).
Acadêmico de Medicina da Universidade de Caxias do Sul. Estagiário do Instituto de Cardiologia do RS - Fundação Universitária de Cardiologia.
Médica residente do Instituto de Cardiologia do RS.
Especialista em cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia. Médico cardiologista preceptor do Instituto de Cardiologia do RS.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 30-34, jan.-mar. 2015
CARDIOMIOPATIA DE TAKOTSUBO: RELATO DE CASO Rihl et al.
A Cardiomiopatia de Takotsubo, também conhecida
como Cardiomiopatia Induzida por Estresse, Síndrome do
Coração Partido ou Síndrome do Baloneamento Apical, é
uma doença que exibe uma disfunção aguda reversível do
ventrículo esquerdo, de causa desconhecida. Nessa doença, o ventrículo toma forma de um “takotsubo” (armadilha
para capturar polvos, em japonês). Há quase que completa
resolução da acinesia apical na maioria dos casos dentro de
um mês (3, 5-9).
A importância de se conhecer este diagnóstico diferencial se deve ao fato de ter um melhor prognóstico do que a
SCA e de seu manejo ser apenas sintomático (10).
RELATO DO CASO
Paciente do sexo feminino, 78 anos, branca, sem patologias prévias, procura a emergência do Instituto de Cardiologia do RS, em janeiro de 2014, com queixa de dor
torácica em sufocamento de forte intensidade associada à
dispneia de início às 23 horas do dia anterior, logo após
discussão com vizinhos, aliviando às 2 horas e 30 minutos do dia posterior, em que procurou atendimento pela
manhã, às 9 horas, sem queixas. A paciente se encontrava
em bom estado geral, lúcida, orientada e coerente, apresentando na ausculta cardíaca ritmo regular, em dois tempos,
com bulhas normofonéticas e sem sopro e na ausculta pulmonar murmúrios vesiculares uniformemente distribuídos
sem ruídos adventícios e apresentava edema em membros
inferiores (1+/4+). Sua frequência cardíaca era de 82 batimentos por minuto, pressão arterial de 160/90 mmHg,
frequência respiratória de 18 movimentos respiratórios por
minuto e temperatura axilar de 36,4ºC.
Foi iniciada a investigação com a solicitação de um eletrocardiograma (Figura 1), que demonstrou ritmo sinusal,
supradesnivelamento de segmento ST em V1 e V2, bloqueio divisional ântero-superior esquerdo, sobrecarga de
ventrículo esquerdo, zona inativa ântero-septal e alterações
mistas da repolarização; a solicitação de dosagens laboratoriais: hemoglobina 12,8 g/dL, leucócitos 9600/mm³,
creatinina 1,09 mg/Dl, CK 296 U/L, CK-MB 15 U/L e
Figura 1 – Eletrocardiograma com supradesnivelamento de ST em V1 e V2.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 30-34, jan.-mar. 2015
31
CARDIOMIOPATIA DE TAKOTSUBO: RELATO DE CASO Rihl et al.
troponina T ultrassensível de 661,60 pg/mL na chegada
e 707,80 pg/mL após cinco horas, além de radiografia de
tórax, que evidenciou coração de volume normal, aorta
e circulação pulmonar sem alterações e ausência de lesão
pleuro-pulmonar em atividade.
A paciente foi manejada inicialmente como apresentando Síndrome Coronariana Aguda, recebendo heparina em
bomba de infusão, ácido acetilsalicílico, clopidogrel, nitroglicerina, enalapril, succinato de metoprolol e atorvastatina.
Com a finalidade de uma estratificação de risco invasiva, realizou cineangiocoronariografia, que mostrou coronárias epicárdicas angiograficamente normais (Figuras 2 a
4) e ventrículo esquerdo com disfunção sugestiva de baloneamento apical (Figura 5).
Foi realizada ecocardiografia transtorácica, a qual evidenciou disfunção contrátil segmentar miocárdica ventricular esquerda e disfunção diastólica ventricular esquerda
por padrão de relaxamento alterado e fração de ejeção
mensurada pelo método de Simpson de 45%.
A paciente foi liberada em condições de alta após uma
semana, não apresentando episódios de dor torácica durante a internação, com uso de succinato de metoprolol,
ácido acetilsalicílico, sinvastatina e enalapril.
A Cardiomiopatia de Takotsubo foi primeiramente descrita por Sato et al, em 1990, no Japão, com uma série de 16
casos que apresentavam características clínicas de síndrome
coronariana aguda, porém todas com artérias coronárias angiograficamente normais, tendo história de evento estressor
que precedia a dor torácica, sendo 94% mulheres com média
de 71 anos de idade e que apresentavam uma cardiomiopatia reversível descrita como disfunção ventricular esquerda
takotsubo-like. Desde então, os relatos dessa condição foram
aumentando, e várias séries de casos foram publicadas(3, 9,
11, 12), sendo a maior delas publicada em 2001, com 88 casos.
Uma revisão sistemática das séries de casos foi realizada
em 2008 (13), incluindo 28 estudos e 563 pacientes. Todas
as séries mostraram prevalência feminina (90,7%; Intervalo de Confiança - IC - de 95%: 88,2-93,2%, variando de
69,2 a 100%) no período pós-menopausa (média de idade variou entre 62 e 76 anos). Os sintomas de apresentação iniciais mais frequentes foram dor torácica (83,4%; IC
95%: 80,0-86,7%) e dispneia (20,4%; IC 95%: 16,3-24,5%).
Gatilhos emocionais estressantes (discussões, assaltos, acidentes, terremotos, notícias médicas trágicas, perdas por
apostas) foram identificados em 44,0% dos pacientes (IC
95%: 39,4-48,6%). Estressores físicos como condições médicas exacerbadas foram documentados como eventos de
gatilho em 36,2% dos pacientes (IC 95%: 31,5-40,9%). As
alterações eletrocardiográficas mais comuns na admissão
foram elevação do segmento de ST (71,1%; IC 95%: 67,275,1%), envolvendo derivações pré-cordiais (95,4%; IC
95%: 92,6-98,2%) e inversão de onda T (61,3%; IC 95%:
56,7-65,9%). Com relação aos biomarcadores cardíacos, alterações na troponina I e T foram encontradas em 85,0%
(IC 95%: 80,8-89,1%) e creatinina-kinase-MB em 38,0%
(IC 95%: 26,7-49,3%, variando entre 4,3 e 100%); no entanto, o pico da elevação dessas enzimas foi leve na maioria
dos estudos. Em 14 estudos que providenciaram detalhes
da angiografia coronariana, 87,9% (IC 95%: 83,8-92,0%)
Figura 2 – Cinecoronariografia direita mostrando perviedade da artéria
coronária direita.
Figura 3 – Cinecoronariografia esquerda mostrando perviedade da
artéria circunflexa.
DISCUSSÃO
32
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 30-34, jan.-mar. 2015
CARDIOMIOPATIA DE TAKOTSUBO: RELATO DE CASO Rihl et al.
Figura 4 – Cinecoronariografia esquerda mostrando perviedade da
artéria descendente anterior.
Figura 5 – Ventriculografia mostrando baloneamento apical durante
a sístole.
dos casos tinham artérias coronárias completamente normais, sendo que o restante apresentava estenose luminal
não crítica. Durante os exames de imagens (ecocardiografia, ventriculografia e ressonância magnética cardíaca), se
demonstrava tipicamente discinesia do ápice do ventrículo
esquerdo ou segmentos médio-ventricular com hipercinesia da região basal. A fração de ejeção média na admissão
variava de 20 a 49,4% e recuperava para 59-76% em um
período médio de 18 dias (período médio de recuperação
variou de 7 a 37 dias), com resolução completa do padrão
de contratilidade takotsubo-like da parede.
A fisiopatologia da Cardiomiopatia de Takotsubo ainda
não está estabelecida, mas é provavelmente multifatorial,
envolvendo os sistemas vasculares, endócrino e nervoso
central (14). Existem várias teorias sobre a sua etiologia, incluindo miocardite aguda; vasoespasmo coronariano difuso; ruptura de uma placa não oclusiva seguido de trombólise espontânea; obstrução transitória do fluxo do ventrículo
esquerdo; cardiotoxicidade mediada por catecolaminas;
disfunção microvascular; hipoplasia das artérias coronarianas ou desequilíbrio autonômico cardíaco. Um dos principais mecanismos propostos é a disfunção endotelial, que
pode estar relacionada à redução de estrogênio na menopausa e também ao efeito direto do estresse mental sobre
a função endotelial através da ativação dos receptores da
endotelina-A, independentemente da ativação do sistema
nervoso simpático (14). O diagnóstico da Cardiomiopatia
de Takotsubo deve ser suspeitado em mulheres na pós-menopausa que se apresentem com síndrome coronariana
aguda após um intenso estresse psicológico e em que as
manifestações clínicas e anormalidades do eletrocardiograma são desproporcionais ao grau de elevação dos biomarcadores cardíacos. Baloneamento apical (variante típica)
e/ou hipocinesia médio-ventricular é geralmente vista na
ventriculografia esquerda ou ecocardiografia (15).
Outras síndromes, além da cardiomiopatia de Takotsubo, têm sido associadas com alterações do segmento ST
na ausência de doença coronariana arterial significante,
incluindo síndrome cardíaca X, angina variante (de Prinzmetal), miocardite, abuso de cocaína, feocromocitoma e
doença cerebrovascular(8,15).
Não existem estudos randomizados que avaliem o efeito de qualquer tratamento nesses pacientes. Na fase aguda, o tratamento é de suporte (16). Disfunção severa do
ventrículo esquerdo pode necessitar de agentes inotrópicos
(23,6%) ou suporte hemodinâmico com contrapulsação de
balão intra-aórtico (11,2%). Mais comumente, uso empírico de inibidores da enzima conversora de angiotensina
(47,2%), bloqueadores do canal de cálcio (40,8%), beta-bloqueadores (31,2%) e diuréticos (21,2%) foram relatados. Se considerando o possível mecanismo fisiopatológico de miocárdio atordoado mediado por catecolamina, o
tratamento a longo prazo com beta-bloqueadores pode ser
uma abordagem apropriada (13).
Uma variedade de complicações foi relatada e enfatizam as sérias implicações da Cardiomiopatia de Takotsubo durante a fase aguda. Insuficiência cardíaca e edema
pulmonar acometeram 40 de 252 pacientes (15,9%, IC
95%: 11,4-20,4%), choque cardiogênico em 28 de 271
pacientes (10,3%, IC 95%: 6,7-14,0%) e arritmias potencialmente fatais, como bloqueio atrioventricular de terceiro grau, taquicardia ventricular, fibrilação ventricular e
parada cardíaca em 37 de 353 pacientes (14,6%, IC 95%:
10,9-18,3%). Casos isolados de formação de trombo intramural e ruptura da parede do ventrículo esquerdo também foram relatados (13).
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 30-34, jan.-mar. 2015
33
CARDIOMIOPATIA DE TAKOTSUBO: RELATO DE CASO Rihl et al.
Mortalidade intra-hospitalar foi descrita em 8 de 478
pacientes (1,7%, IC 95%: 0,5-2,8%). Entretanto, pacientes
que se recuperaram da fase aguda da doença têm um desfecho favorável. Ocorreu resolução completa em 306 de
319 pacientes (95,9%, IC 95%: 93,8-98,1%), e recorrência
foi documentada em 5 de 163 pacientes (3,1%, IC 95%:
0,4-5,7%) (13).
COMENTÁRIOS FINAIS
O caso relatado ilustra muito bem as características
mais frequentes da Cardiomiopatia de Takotsubo, descritas
anteriormente.
A Cardiomiopatia de Takotsubo não é rara, mas, sim,
subdiagnosticada.
REFERÊNCIAS
1. Niska R, Bhuiya F, and Xu J. National Hospital Ambulatory Medical Care Survey: 2007 Emergency Department Summary. National
health statistics reports; no 26. Hyattsville, MD: National Center for
Health Statistics. 2010. .
2. Bhuiya F, Pitts SR, McCaig LF. Emergency department visits for
chest pain and abdominal pain: United States, 1999-2008. NCHS
data brief, no 43. Hyattsville, MD: National Center for Health Statistics. 2010.
3. Bybee KA, Prasad A, Barsness GW, et al. Clinical characteristics and
thrombolysis in myocardial infarction frame counts in women with
transient left ventricular apical ballooning syndrome. Am J Cardiol.
Aug 1 2004;94(3):343-6. .
4. Ito K, Sugihara H, Katoh S, Azuma A, Nakagawa M. Assessment
of Takotsubo (ampulla) cardiomyopathy using 99mTc-tetrofosmin
myocardial SPECT--comparison with acute coronary syndrome.
Ann Nucl Med. Apr 2003;17(2):115-22.
5. Gianni M, Dentali F, Grandi AM, et al. Apical ballooning syndrome or takotsubo cardiomyopathy: a systematic review. Eur Heart J
2006; 27:1523.
34
6. Dorfman TA, Aqel R, Mahew M, Iskandrin AE. Takotsubo cardiomiopathy: A review of the literature. Curr Cardiol Rev 2007; 3:
137-42.
7. Yoshihiro JA et. al. Takotsubo Cardiomyopathy: A New Form of
Acute, Reversible Heart Failure. Circulation. 2008; 118:2754-2762.
8. Sachio K; Akira K; Hitonobu T. Guidelines for Diagnosis of Takotsubo (Ampulla) Cardiomyopathy. Circ J 2007. 71: p. 990 -992.
9. Sharkey SW, Lesser JR, Zenovich AG, Maron MS, Lindberg J, Longe
TF, Maron BJ. Acute and reversible cardiomyopathy provoked by
stress in women from the United States. Circulation. 2005; 111: 472479.
10. Lin, CH et. al. Ampulla Cardiomyopathy (Takotsubo Cardiomyopathy) - A Review. J Intern Med Taiwan 2009; 20: 473-483.
11. Kurowski V, Kaiser A, von Hof K, Killermann DP, Mayer B, Hartmann F, Schunkert H, Radke PW. Apical and midventricular transient
left ventricular dysfunction syndrome (tako-tsubo cardiomyopathy):
frequency, mechanisms, and prognosis. Chest. 2007;132:809-816.
12. Inoue M, Shimizu M, Ino H, Yamaguchi M, Terai H, Fujino N,
Sakata K, Funada A, Tatami R, Ishise S, Kanaya H, Mabuchi H.
Differentiation between patients with takotsubo cardiomyopathy
and those with anterior acute myocardial infarction. Circ J. 2005;
69:89 -94.
13. Pilgrim TM, Wyss TR. Takotsubo cardiomyopathy or transient left
ventricular apical ballooning syndrome: A systematic review. International Journal of Cardiology 124 (2008) 283-292.
14. Akashi YJ, Goldstein DS, Barbaro G, Ueyama T. Takotsubo cardiomyopathy: a new form of acute, reversible heart failure. Circulation
2008;118: 2754-62.
15. Reeder GS, Prasad A. Stress (takotsubo) cardiomyopathy. In: UpToDate, Post TW (Ed), UpToDate, Waltham, MA. (Accessed on
January 25, 2014.).
16. Hurst RT, Prasad A, Askew III JW, Sengupta PP, Tajik AJ. Takotsubo Cardiomyopathy: A Unique Cardiomyopathy With Variable Ventricular Morphology. JACC Cardiovasc Imaging. 2010; 3(6):641-9.
 Endereço para correspondência
Marcos Frata Rihl
Rua Olavo Bilac - 134
95.010-080 – Caxias do Sul, RS – Brasil
 (54) 8131-6301
 [email protected]
Recebido: 5/8/2014 – Aprovado: 11/2/2015
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 30-34, jan.-mar. 2015
RELATO DE CASO
Íleo biliar: um relato de caso
Gallstone ileus: a case report
Mara Regina de Oliveira Campelo1, Jennyfer Paulla Galdino Chaves2, Vinícius Matos Menegola3
RESUMO
O presente trabalho relata o caso de uma paciente feminina, de 75 anos, que internou por um quadro de dor em hipocôndrio direito,
vômitos e distensão abdominal com 5 dias de evolução. Secundariamente, apresentou rebaixamento do sensório, acidose metabólica,
oligoanúria e hipotensão, necessitando de cuidados em unidade de terapia intensiva, com intubação orotraqueal (IOT), vasopressor e
hemodiálise. A tomografia de abdome evidenciou presença de aerobilia e um cálculo misto na topografia do segmento ileal do intestino.
UNITERMOS: Íleo, Cálculo, Cirurgia geral
ABSTRACT
This paper reports the case of a 75 y.o. female patient who was admitted for a painful condition in the right hypochondrium, vomiting and abdominal distension with 5 days of evolution. Secondly she presented sensorial loss, metabolic acidosis, oliguria and hypotension, requiring care in intensive care unit, with
tracheal intubation (TI), vasopressor and hemodialysis. Abdominal CT scan revealed the presence of aerobilia and a mixed gallstone in the topography of
the ileal segment of the intestine.
KEYWORDS: Ileum, Calculi, General surgery
INTRODUÇÃO
O íleo biliar é uma causa incomum de obstrução intestinal e determina de 1 a 4% de todas as obstruções intestinais (1). Aproximadamente 25% das obstruções intestinais
não estranguladas em maiores de 65 anos são devidas ao
íleo biliar (1). O íleo biliar é uma complicação da colelitíase
e se comporta como uma oclusão intestinal mecânica devido à impactação de um ou mais cálculos na luz do intestino, como resultado de uma comunicação anômala entre o
trato gastrointestinal e o sistema biliar (2,3).
A fístula surge quando o cálculo causa uma erosão na
parede biliar e no tubo digestivo, seguindo-se processo inflamatório associado à diminuição de aporte sanguíneo e
aumento de pressão intraluminal, seguida de perfuração
1
2
3
com fistulização e saída do cálculo biliar para o trato gastrointestinal (3).
As opções cirúrgicas incluem enterotomia com exérese
do cálculo somente ou em combinação com colecistectomia e reparo de fístula. Em virtude da idade avançada da
maioria desses pacientes e das concomitantes comorbidades, são questionáveis os benefícios de uma cirurgia extensa, que seria mais prolongada e geraria mais trauma (1).
As fístulas bileodigestivas mais frequentes são: colecistoduodenais (65-77%), depois colecistocólicas (10-25%) e
colecistogástricas (5%) (1).
A proposta deste estudo é apresentar um relato de caso
de íleo biliar de uma paciente de 75 anos com quadro de
dor em hipocôndrio direito, vômitos e distensão abdominal com 5 dias de evolução.
Cirurgia do Aparelho Digestivo Preceptora. Residência de Cirurgia Geral do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr.
Graduanda em Medicina.
Residente de Cirurgia Geral do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 35-38, jan.-mar. 2015
35
ÍLEO BILIAR: UM RELATO DE CASO Chaves et al.
RELATO DO CASO
NM, feminino, 75 anos, interna por quadro de dor em
hipocôndrio direito, em peso, constante, acompanhada de
náusea e vômitos com evolução de 5 dias. Também relatava
anorexia, distensão abdominal e obstipação.
Evoluiu com quadro de hipotensão, anúria, acidose
metabólica e rebaixamento do nível de consciência, necessitando de IOT mais vasopressor e hemodiálise, recebendo cuidados em unidade de terapia intensiva (UTI). Apresentava como exames laboratoriais: Hematócrito 34,3%;
Hemoglobina 11,5; Eritrócitos 3,98; Leucócitos 21350;
Bastões 17; Segmentados 74; Linfócitos 6; Monócitos 2;
Eosinófilos 1; Plaquetas 381000; TP 68%; RNI 1,3; KTTP
36,6s; Ureia 199; Creatinina 6,6; Sódio 137; Potássio 5,2;
Amilase 140; Lipase 168; Fosfatase alcalina 62; Bilirrubinas
totais 0,33; Bilirrubina direta 0,16; Bilirrubina indireta 0,17;
TGO 21; TGP 19; Albumina 2,6; Cálcio 7,9; GGT 21 e
Magnésio 1,6.
Realizado raio X de abdome, que evidenciou presença de níveis hidroaéreos (Figura A), sendo submetida após
duas horas à Tomografia de abdome, que confirmou presença de aerobilia e cálculo misto na topografia do segmento ileal intestinal, medindo 3 cm de diâmetro (Figuras B, C).
No transoperatório, foi visualizada fístula com terço distal
do duodeno, sendo realizado enterolitotomia e enterorrafia
Figura B – Tomografia de abdome mostrando aerobilia
Figura C – Corte transversal
demonstrando aerobilia
Figura A – Raio X de abdome pré-operatório mostrando níveis
hidroaéreos
36
da
tomografia
abdominal
(Figuras D, E). Foi de preferência dos autores não optar
pela colecistoduodenoanastomose.
No pós-operatório, utilizou-se esquema antibiótico
com imipenem e metronidazol, ajustados para função renal (DCE= 14), sendo mantida em UTI com tratamento
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 35-38, jan.-mar. 2015
ÍLEO BILIAR: UM RELATO DE CASO Chaves et al.
de suporte com PVC, PAM, vasopressor (noradrenalina),
hidratação, ajuste hidroeletrolítico e diálise diária. Evoluiu
com quadro de fibrilação atrial (FA) com alta resposta
ventricular, necessitando de cardioversão elétrica (CVE)
- 100 + 200J - com reversão hemodinâmica, mas sem reversão da FA, iniciando-se amiodarona. Posteriormente,
foi associado Neostigmina devido ao uso de drogas bradicardizantes.
Apresentou evolução satisfatória, tendo alta hospitalar
no 43º dia pós-operatório, em condições favoráveis.
DISCUSSÃO
Figura D – Transoperatório mostrando cálculo de 3 cm em íleo distal
Figura E - Após retirada de cálculo
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 35-38, jan.-mar. 2015
A apresentação clínica mais comum do íleo biliar é a
dor abdominal acompanhada de distensão e vômitos, tendo uma evolução mais insidiosa pelo efeito de válvula do
cálculo (3).
O sítio mais frequente de obstrução é o íleo terminal,
por seu calibre reduzido e peristaltismo deficiente (3). Mas
existem outros sítios de obstrução descritos, tais como jejuno, cólon e, até mesmo, divertículo de Meckel (3).
A síndrome de Bouveret é a obstrução do trato gastrointestinal por um cálculo biliar em nível do piloro ou
do duodeno, que se manifesta com sintomatologia de
obstrução alta. Essa pode ser visualizada e tratada por
endoscopia digestiva alta, podendo não necessitar de laparotomia (1).
Os sinais radiológicos foram descritos por Rigler, em
1941, como distensão de alças delgadas associado à aerobilia, níveis hidroaéreos e imagem litiásica radiopaca, que se
modifica com a movimentação do paciente (3). Na maioria
dos pacientes, o diagnóstico correto não é estabelecido antes da cirurgia (1).
O cálculo biliar entra no trato gastrointestinal através
de uma fístula com o duodeno, estômago ou cólon, sendo
a mais comum a colecistoduodenal (1).
O tratamento é cirúrgico. Há controvérsias quanto
à resolução do quadro em um ou dois tempos, se faria a
enterolitotomia, colecistectomia e reparação da fístula ou
se somente resolveria a oclusão intestinal com enterolitotomia e, em um segundo tempo, realizaria a reparação da
fístula (3).
Em função da idade avançada da maioria desses pacientes e das presentes comorbidades, são questionáveis os
benefícios da cirurgia em tempo único, a qual seria mais
prolongada, aumentando o risco de complicações no pós-operatório (1).
As principais justificativas para a realização de tratamento cirúrgico em um tempo são: a recorrência de íleo biliar
devido a cálculos biliares residuais, o risco de colangite e o
aumento da incidência de carcinoma de vesícula biliar (1).
Por outro lado, existem evidências de aumento da mortalidade quando se realiza o reparo da fístula juntamente à
enterolitotomia, devido à anastomose e sutura em área de
inflamação (1).
37
ÍLEO BILIAR: UM RELATO DE CASO Chaves et al.
Doko M. et al registraram 16,9% de mortalidade para a
correção em um tempo cirúrgico e 11,7% para enterotomia
isolada (1). Uma meta-análise de 1001 casos também sugere que não há necessidade de reparo de fístula de urgência
(5).
Os achados intraoperatórios são essenciais para a conduta cirúrgica, sendo justificado o reparo da fístula quando
existe inflamação aguda e presença de gangrena vesicular (1).
COMENTÁRIOS FINAIS
Apesar dos achados na literatura terem significância estatística quanto ao tratamento ideal em dois tempos cirúrgicos, especialmente em pacientes que chegam desidratados, em choque e/ou com peritonite, ainda são necessários
mais estudos para avaliar com precisão a melhor alternativa
para esses casos.
38
REFERÊNCIAS
1. Doko M, Zovak M, Kopljar M, Glavan E, et al. Comparison of surgical treatments of gallstone ileus: preliminary report. World J Surg
2003; 27:400-404.
2. Lozano CS, Guevara ERR, Gismondi AV, et al. Íleo biliar y fístula
colecistoduodenal. Informe de un caso. Cir Ciruj 2006;74:199-203.
3. Sosa GG, Mesa JD, Rodríguez SC, et al. Íleo biliar: complicación
poco frecuente de la litiasis vesicular. Rev Cubana Cir 2010;49(2).
4. Guimarães S, Moura JC, Pacheco Jr AM, Silva RA. Íleo biliar - uma
complicação da doença calculosa da vesícula biliar. Rev Bras Geriatr
Gerontol 2010; 13(1):159-163.
5. Reisner RM, Cohen JR. Gallstone ileus: a review of 1001 reported
cases. Am Surg 1994; 60: 441-446.
 Endereço para correspondência
Jennyfer Paulla Galdino Chaves
Rua Marechal Floriano, 492 - 808
96.200-380 – Rio Grande, RS – Brasil
 (53) 8128-3023
 [email protected]
Recebido: 15/9/2014 – Aprovado: 25/11/2014
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 35-38, jan.-mar. 2015
ARTIGO DE REVISÃO
Reconstrução microcirúrgica de mandíbula
com retalho livre de fíbula
Microsurgical reconstruction of mandible with free fibula flap.
Ciro Paz Portinho1, Carlos Francisco Jungblut2, Lívia Zart Bonilha3, Juliana Ribeiro Berteli4, Marcus Vinícius Martins Collares5
RESUMO
Os autores apresentam uma revisão sobre reconstrução mandibular com retalho livre de fíbula, acrescida à experiência de centros de
referência em reconstrução oncológica e craniofacial. A fíbula apresenta vários aspectos positivos para ser empregada como opção
de reconstrução mandibular. O seu pedículo vascular, de anatomia relativamente constante, possui dois sistemas de vascularização
(periosteal e endosteal), permite moldagem e montagem versáteis, pode ser acompanhada de ilha de pele para reconstrução tanto intra
como extraoral, suporta implantes osteointegrados para a reconstrução da arcada dentária e tem morbidade relativamente baixa na
área doadora. O retalho livre de fíbula continua sendo o padrão-ouro para a reconstrução de grandes perdas mandibulares.
UNITERMOS: Mandibulectomia, Retalho Livre, Fíbula, Cirurgia Plástica
ABSTRACT
The authors present a review of mandibular reconstruction with free fibula flap, as well as the experience of reference centers in oncological and craniofacial
reconstruction. The fibula has numerous positive aspects to be used as a mandibular reconstruction option. Its vascular pedicle, with a relatively constant
anatomy, has two vascularization systems (periosteal and endosteal), allows versatile molding and assembly, can be accompanied by skin island for both intraand extraoral reconstruction, supports osseointegrated implants for reconstruction of the dental arch, and has fairly low morbidity at the donor site. The free
fibula flap remains the gold standard for the reconstruction of large mandibular losses.
KEYWORDS: Mandibulectomy, free flap, fibula, plastic surgery
1
2
3
4
5
Doutor em Medicina – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Médico Contratado - Serviço de Cirurgia Plástica – Hospital de
Clínicas de Porto Alegre – HCPA.
Ortopedista e cirurgião de mão. Mestre em Medicina pela Faculdade de Medicina (FAMED) – UFRGS. Membro Titular da Sociedade Brasileira
de Ortopedia e Traumatologia e da Sociedade Brasileira de Cirurgia da Mão. Médico contratado e chefe do Serviço de Cirurgia da Mão – Hospital
Cristo Redentor – Porto Alegre.
Cirurgiã plástica. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Médica do corpo clínico do Hospital Moinhos de Vento,
Mãe de Deus e Divina Providência.
Médica anestesista. Especialista em Medicina da Dor – Instituto Nacional de Câncer Instituto Nacional de Câncer – INCa – Rio de Janeiro. Médica
concursada do Grupo Hospitalar Conceição. Médica do corpo clínico do Hospital Moinhos de Vento, Hospital Mãe de Deus, Hospital Divina
Providência e Complexo Hospitalar Santa Casa.
Cirurgião plástico e craniomaxilofacial. Professor do Departamento de Cirurgia da FAMED (UFRGS). Cirurgião Craniomaxilofacial do Hospital
São José de Neurocirurgia e do Hospital Santa Rita de Câncer – CHSCPA. Membro Titular da Associação Brasileira de Cirurgia Crânio-MaxiloFacial (ABCCMF) e da SBCP. Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do HCPA.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
39
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
INTRODUÇÃO
A reconstrução mandibular é complexa. Há tentativas
de reconstrução descritas desde o século XIX, mas a maior
experiência surgiu realmente durante a Primeira e a Segunda
Guerra Mundial. O primeiro grande avanço surgiu com o
desenvolvimento dos enxertos ósseos. Nas décadas de 1970
e 1980, os retalhos miocutâneos foram introduzidos para reconstrução de cabeça e pescoço. As reconstruções mandibulares sem tecido osso têm morbidade significativa. A complicação mais comum é a extrusão do material de osteossíntese,
em cerca de 46% dos casos (1). Há reabsorção óssea tanto
nos enxertos ósseos como nos retalhos microcirúrgicos. No
entanto, ela é significativamente maior nos primeiros (2,3).
Atualmente, a transferência de osso vascularizado por
técnica microcirúrgica (retalho livre) é o padrão-ouro
(2,4,5) para a reconstrução mandibular. O retalho livre de
fíbula, o procedimento de escolha atual, foi descrito primeiramente por Taylor (6), em 1975 (apud Liu, 2013).
As metas da reconstrução são a reabilitação funcional, a
melhoria estética e a reintegração social do indivíduo. Este
artigo revisa a técnica de reconstrução de mandíbula com
retalho livre de fíbula.
REVISÃO DA LITERATURA
Classificação dos Defeitos Mandibulares
Os defeitos mandibulares são grosseiramente classificados como anteriores ou laterais, com base no componente
mais predominante (Figuras 1 e 2). Contudo, a classificação
mais utilizada é a de Jewer e Boyd (7,8), também denominada de sistema de classificação HCL:
- “H” significa high (alto) para defeitos laterais que envolvem o côndilo.
- “L” significa low (baixo) para defeitos laterais que não
envolvem o côndilo.
- “C” significa central e envolve a porção localizada entre os caninos (inclusive), isto é, o arco central.
Além disso, a classificação utiliza letras minúsculas para
as perdas de partes moles. A letra “s” significa perda cutânea, a partir da palavra skin, em inglês. A letra “m” significa a perda de mucosa. Por fim, a perda de espessura total
(through-and-through) é classificada como “sm”. A Tabela 1
apresenta o resumo da classificação de Jewer e Boyd. A
classificação de Jewer e Boyd vem sendo revisada (11).
Anatomia da Fíbula
A compreensão da anatomia cirúrgica é importante (2-6).
A fíbula situa-se posterior e lateralmente à tíbia. Este osso
Epidemiologia
Em um estudo realizado no Instituto Nacional de Câncer (INCa), entre 2009 e 2010, obteve-se uma casuística de
33 pacientes com defeitos mandibulares, sendo 24 deles
do sexo masculino (72,7%) (4). A frequência dos fatores
de risco foi a seguinte: etilismo, 51,5%; tabagismo, 39,4%.
O índice de massa corporal médio desta população foi de
21,3 kg/m2. O diagnóstico mais comum foi o carcinoma
epidermoide (81,8%), seguido do ameloblastoma (12,1%).
O sítio primário principal foi o assoalho da boca (42,4%).
A extensão da ressecção óssea mandibular variou de 6,5
a 17 cm. A cirurgia oncológica mais utilizada foi a mandibulectomia combinada a esvaziamento cervical (COMMANDO). A distribuição dos defeitos mandibulares, pela
classificação HCL de Jewer e Boyd (7,8), foi a seguinte: C
(14 casos); L (7 casos); HC (6 casos); LC (5 casos); LCL (1
caso). Os defeitos mandibulares advêm de neoplasias (mais
comum), traumatismos, infecções, exposição à radiação ou
defeitos congênitos (4,9,10).
A reabilitação mandibular é importante, porque há
diversas funções atribuídas a este osso. Ele participa da
mastigação, deglutição, competência oral, verbalização e
suporte à respiração, sem falar na função estética do terço
inferior (8). Nas doenças e ressecções da cavidade oral, geralmente há perda de tecidos e estruturas que extrapolam
a mandíbula (ver classificação a seguir). Assim, à medida
que a perda tecidual aumenta, os defeitos tornam-se mais
complexos (11).
40
Figura 1 – Perda da hemimandíbula esquerda, incluindo parte do arco
central. A ressecção envolveu o côndilo, determinando a classificação
“H” de Jewer e Boyd (1989) (7,8). Ainda, houve perda cutânea e
mucosa significativa, determinando a classificação final “Hsm”. O arco
central não foi completamente retirado.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
culo fibular longo origina-se na cabeça da fíbula, nos 2/3
proximais da face lateral da fíbula e no côndilo lateral da
tíbia. O músculo fibular curto origina-se dos 2/3 distais
da face lateral da fíbula. O flexor longo do hálux origina-se nos 2/3 distais da face posterior da fíbula e membrana
interóssea. O músculo tibial posterior origina-se na face
posterior da tíbia e nos 2/3 proximais da fíbula e da membrana interóssea.
Na cabeça da fíbula, encontra-se a inserção do ligamento colateral lateral do joelho (ou colateral fibular do joelho)
e do tendão do músculo bíceps femoral. No entanto, a fíbula não participa dos movimentos geniculares.
Reconstrução Imediata Versus Tardia
Figura 2 – Mandibulectomia de arco central (classificação “C” de
Jewer e Boyd).
Tabela 1 - Classificação de defeitos mandibulares, segundo Jewer e
Boyd (1989) (7,8).
Classificação
Descrição da estrutura afetada
C
Arco central mandibular
L
Defeito lateral sem côndilo
H
Defeito lateral com côndilo
s
Pele
m
Mucosa
sm
Espessura total (pele e mucosa)
serve principalmente para a fixação muscular. Não possui
função de sustentação da massa corporal, como a tíbia. Ela
articula-se proximalmente (sindesmose tibiofibular proximal) com a tíbia e distalmente com a tíbia (sindesmose tibiofibular distal) e o tálus.
Na epífise proximal, existem a cabeça da fíbula e a superfície articular, que se articula com o côndilo lateral da
tíbia. No corpo, há três bordas e três faces. A borda anterior é espessa e áspera. A borda interóssea contém a crista
interóssea. A borda posterior inicia-se no ápice e termina
na borda posterior do maléolo lateral. A face medial é estreita e plana. Situa-se entre a borda anterior e a interóssea.
A face lateral é convexa e localiza-se entre a borda anterior e a posterior. Por fim, a face posterior situa-se entre a
borda posterior e a interóssea. Na epífise distal, existem o
maléolo lateral e a face articular para o tálus.
O músculo extensor longo dos dedos tem sua inserção
proximal no côndilo lateral da fíbula, nos 3/4 proximais
da fíbula e na membrana interóssea. O músculo extensor
longo do hálux origina-se nos 2/4 intermediários da fíbula e na membrana interóssea. O músculo fibular terceiro
origina-se no 1/3 distal da face anterior da fíbula. O músRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
A reconstrução imediata é preferida pela maioria dos
autores. Ela permite melhor resultado estético, diminuição
da morbidade, reabilitação mais rápida do paciente, prevenção de sequelas que dificultam a reconstrução tardia e
redução de custo e tempo de tratamento. A relação maxilomandibular e a oclusão são mais fáceis de serem restabelecidas – ou pelo menos aproximadas do normal – em
reconstruções imediatas. Já os defensores da reconstrução
tardia dizem que a reconstrução imediata cobre o sítio primário, diminuindo a capacidade de detectar a recidiva tumoral; há maior chance de disseminação tumoral durante
o transoperatório; o tempo cirúrgico é muito elevado. Este
grupo também relata que deve haver segurança comprovada de margens oncológicas, o que pode ser difícil de ser
confirmado no exame de congelação do tecido ósseo (12).
A realidade brasileira acaba determinando, muitas vezes, o momento da reconstrução. A indisponibilidade de
um microcirurgião, de tempo de sala ou de material adequado, bem como a dúvida sobre margens livres levam,
frequentemente, ao atraso na reconstrução mandibular microcirúrgica.
A Escolha da Técnica de Reconstrução Mandibular
A reconstrução ideal para os defeitos oromandibulares
deveria incluir, idealmente, pele fina e inervada. O substituto ósseo deveria ser resistente como o osso mandibular, facilitar a fixação rígida permanente e aceitar implantes dentários. Deveria, também, contribuir para um bom resultado
funcional e estético. Por fim, a morbidade da área doadora
deveria ser mínima ou inexistente (4-6).
Os transplantes ósseos autólogos vascularizados são a
melhor escolha para a reconstrução mandibular atualmente
(Figura 3). Há quatro retalhos principais: fíbula, crista ilíaca,
escápula e antebraço. A fíbula é a melhor escolha (Figura 4).
A Tabela 2 apresenta as vantagens deste retalho livre (13).
O retalho fibular pode ser osteocutâneo, que leva pele fina.
O restabelecimento da inervação, contudo, continua sendo
uma limitação à fíbula e à maioria dos outros retalhos.
A reconstrução somente com placas metálicas tem limitações e complicações consideráveis (1). O metal apre41
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
Figura 3 – Reconstrução do paciente da Figura 2 (2 meses pósoperatório), com retalho livre de fíbula. O paciente apresenta contorno
mandibular satisfatório, mas apresenta retração cicatricial no lábio, a
ser tratada posteriormente.
senta desgaste, e a cobertura pode ser escassa ou será inadequada se tiver sido submetida à radiação. Com isso, o
risco de deslocamento, quebra, extrusão, inflamação e infecção é considerável. A escolha da reconstrução somente com placa metálica recai naqueles pacientes em que há
necessidade de uma reconstrução provisória (aguardando
liberação oncológica) e em condições clínicas que não
permitam uma reconstrução de maior porte (8). Deve-se preferir placas de carga suportada ao invés de carga
compartilhada. Hoje, pode-se lançar mão inclusive do sistema de placas bloqueadas, conferindo maior segurança à
osteossíntese.
Nas décadas de 1960 e 1970, houve a descoberta,
descrição e desenvolvimento dos retalhos regionais pediculados. Isso melhorou sobremaneira a reconstrução da
cabeça e do pescoço (8). Contudo, a morbidade da área
doadora, a incerteza dos componentes cutâneos randômicos, tecidos moles volumosos, arcos de rotação limitados e má vascularização óssea limitam a utilização destes
retalhos. A longo prazo, eles apresentam complicações
maiores do que os retalhos livres em reconstruções de
cabeça e pescoço (14). Não obstante, em centros onde
não há microcirurgiões, estes retalhos continuam a ser a
opção mais utilizada. As principais metas para se realizar
reconstruções microcirúrgicas em cabeça e pescoço são:
disponibilidade de infraestrutura; equipe estabelecida e
treinada; protocolos e rotinas estabelecidos; suporte financeiro e logístico (15).
Figura 4 – Imagens pré (A) e pós-operatória (B) de uma reconstrução mandibular com fibular à esquerda.
42
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
Tabela 2 – Vantagens da reconstrução mandibular com retalho livre
de fíbula.
Possibilidade de realizar várias osteotomias
Comprimento ósseo maior do que os outros retalhos livres
Combinação com retalhos cutâneos (ilhas de pele)
Possibilidade de colocação de implantes dentários osteointegrados
Morbidade baixa na área doadora
Cirurgia com duas equipes concomitantes
Técnica de Reconstrução com Transplante
Autólogo Vascularizado de Fíbula (ou Retalho
Microcirúrgico de Fíbula)
A fíbula é o osso vascularizado mais longo disponível
para a reconstrução mandibular (Figura 5). Ela tem de 20
a 30 cm de comprimento útil, dependendo do indivíduo,
sendo suficiente para reconstrução de qualquer defeito
mandibular. Neste quesito, ela supera todos os outros retalhos livres, que medem aproximadamente: 15 cm para
crista ilíaca e escápula; 12 cm para rádio e costela. Além
disso, ela é inigualável na reconstrução de defeitos de ângulo a ângulo (LCL ou HCH), requerendo, no entanto,
osteotomias múltiplas. As reconstruções microcirúrgicas
com fíbula têm sido aplicadas, na verdade, tanto a defeitos
mandibulares quanto maxilares, pela possibilidade de reconstrução tridimensional (16).
Na área doadora (fíbula remanescente), um segmento
proximal de cerca de 6 a 8 cm deve ser mantido (Figuras 6 e 7),
a fim de evitar lesão do nervo fibular longo, o que acarreta
perda da dorsiflexão do pé, ou pé tombé. Além disso, em
crianças e adolescentes pode haver prejuízo no comprimento ósseo por lesão da cartilagem de crescimento.
Distalmente, um segmento também de cerca de 6 a 8 cm
deve ser preservado, a fim de evitar instabilidade da articu-
Figura 5 – Marcação da área doadora do transplante autólogo
vascularizado (retalho livre) de fíbula na perna direita. Neste caso,
uma ilha de pele foi retirada também. Nesta imagem, estão marcados:
a linha de incisão; a cabeça da fíbula; a divisão dos terços da fíbula; a
divisão da metade da fíbula (linha tracejada); a ilha ou retalho de pele;
o maléolo lateral.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
Figura 6 – Dissecção do retalho de fíbula na perna direita, com ilha
de pele.
Figura 7 – Dissecção do retalho livre de fíbula na perna direita. As
osteotomias superior e inferior já foram realizadas. O pedículo está
visível.
lação do tornozelo. Geralmente, ocorre alguma paresia na
extensão do hálux, mas isso não parece afetar a deambulação (17). Se não houver melhoria com a fisioterapia, um
ortopedista especialista em pé e tornozelo deve ser consultado.
A membrana interóssea deve ser incisada longitudinalmente. O pedículo vascular corre em paralelo ao osso, sob
tal membrana. A osteotomia pode ser feita com serra manual ou automática. Deve-se ter o cuidado de criar um espaço entre o osso e o pedículo com uma pinça hemostática
ou um descolador de periósteo, de forma que os vasos não
fiquem aderidos e não sejam rompidos durante a osteotomia. Na execução da osteotomia, uma proteção metálica
deve ser interposta entre os vasos e o osso, como uma espátula maleável, por exemplo. Costumamos irrigar o pedículo fibular com papaverina (concentração de 1:200.000)
para causar vasodilatação, o que facilita a dissecção e pode
manter um fluxo melhor para o retalho em confecção. A
lidocaína também é utilizada como vasodilatador rotineiramente por vários microcirurgiões.
43
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
O suprimento sanguíneo segmentar permite que o osso
seja osteotomizado tantas vezes quantas forem necessárias,
para que se reconstrua a mandíbula da melhor forma possível. Alguns autores citam a possibilidade de segmentos
poderem ser tão pequenos quanto 1 cm (3).
A fíbula tem dimensões adequadas para suportar o uso
de implantes osteointegrados. A posição dos segmentos
ósseos é importante no planejamento da posição desses,
principalmente no arco central.
A cicatriz linear longitudinal remanescente costuma ser
bastante perceptível. Se houver enxerto de pele, a notoriedade inestética aumenta. Isso deve ser discutido em pacientes com maior preocupação estética, como mulheres
jovens.
O Retalho de Pele
O retalho de pele que pode ser levado juntamente com
o osso tem um volume intermediário entre a crista ilíaca e
o antebraço: é menor que o primeiro e maior que o último.
As ressecções de espessura total, isto é, que envolvem desde a mucosa até a pele, não são bem manejadas com esse
retalho. Nestes casos, um retalho acessório pode ser utilizado ou uma parte da pele deve ser desepidermizada para
dividir o retalho em duas partes. No quesito de substituição
da mucosa, o retalho antebraquial é superior ao de fíbula,
mas a fíbula ainda é preferível por todas suas outras vantagens (17). O transporte de pele permite melhorar sobremaneira o contorno facial e funções como fala e deglutição
(2). Ainda, o retalho cutâneo guarda a vantagem de facilitar
monitoração vascular do retalho livre.
A ilha de pele deve ser marcada na metade distal, entre
o terço médio e o distal da fíbula. Nessa região, há artérias
perfurantes septocutâneas, ao contrário da metade superior
da fíbula, onde elas são predominantemente miocutâneas,
o que dificulta a dissecção e acarreta pior circulação para
a pele, uma vez que a predominância de fluxo será para o
músculo.
As artérias perfurantes para a ilha de pele estão localizadas posteriormente à fíbula. Há somente uma ou duas
perfurantes significativas à vascularização cutânea (17). Assim, a linha média vertical do retalho também deve estar
mais posterior. A incisão inicial, quando se leva uma ilha de
pele, deve ser feita na seguinte sequência: 1o., reta e vertical
superiormente à ilha de pele; 2o., arciforme de convexidade
anterior (isto é, incisar apenas a margem anterior do retalho de pele); e 3o., reta e vertical inferiormente. A partir
disso, disseca-se o pedículo da fíbula, fazem-se as osteotomias proximal e distal e, após, localiza-se a(s) artéria(s)
perfurante(s) nutridora(s) do retalho de pele. As perfurantes passam pelo septo posterior ou logo atrás dele, através
do músculo sóleo. As que passam pelo músculo requerem
dissecção meticulosa.
Se não houver perfusão adequada após a confecção do
retalho osteocutâneo, o descarte da pele deve ser considerado. Por ser um retalho nutrido por um vaso perfurante,
44
deve-se ter em mente que: 1o., o fluxo vascular é lento; 2o.,
a verificação da perfusão deve ser feita com uma pressão
arterial média de 70 mmHg ou mais (a combinação com o
anestesista é importante neste momento transoperatório).
A arteriografia anteroposterior ou a ultrassonografia
com Doppler pré-operatória é útil para descartar arteriopatia, suprimento arterial anômalo (ex.: artéria fibular ausente) e estabelecer a posição das perfurantes principais (8,17).
Retalhos Livres Simultâneos
Vários autores preconizam a reconstrução de espessura
total (through-and-through) com dois retalhos livres (1,18,19).
A ilha de pele da fíbula é eleita normalmente para a reconstrução da mucosa oral, e um outro retalho livre é utilizado
para a reconstrução cutânea, como o retalho antebraquial
ou o anterolateral da coxa (ALT, da sigla em inglês anterolateral thigh flap), por exemplo. Esta combinação mantém a
mobilidade da língua, a profundidade do sulco gengivolabial e a competência oral para líquidos (1). Não obstante, a
realização de dois retalhos livres requer, idealmente, a presença de mais de um microcirurgião e mais de uma equipe
trabalhando simultaneamente em áreas doadoras e receptoras, a fim de reduzir o tempo cirúrgico, a morbidade do
procedimento e a exaustão física dos médicos. Nesta linha
de raciocínio, a associação com um retalho peitoral maior,
deltopeitoral ou de couro cabeludo, pode ser uma solução
satisfatória ou pelo menos aceitável, de acordo com os recursos institucionais.
Abordagem, Moldagem e Colocação do Retalho
na Área Receptora
Como já foi apresentado, os defeitos mandibulares são
divididos, de maneira mais simplista, em anteriores e laterais.
Isso deve ser levado em conta no momento da moldagem.
A abordagem da área receptora deve ser preferencialmente por incisões prévias. A abordagem extraoral permite uma exposição melhor da área a ser reconstruída, que
ficará em continuidade com a cervicotomia para dissecção
e escolha de vasos receptores. Ela carrega o risco de lesão
do nervo facial, principalmente do seu ramo marginal da
mandíbula (mas que será removido junto da peça cirúrgica
em muitos pacientes); este risco aumenta pela existência
de fibrose cicatricial e perda óssea, o que retira os ramos
nervosos de sua posição anatômica. É melhor abordar a
porção remanescente da mandíbula um pouco mais distal
à sua margem basilar, e logo que possível identificar um
plano subperiosteal nesta margem. A abertura das partes
moles deve seguir um pouco mais distal, sempre que possível, evitando passar pelo caminho do ramo mandibular
(marginal da mandíbula), que pode estar envolvido pela
fibrose cicatricial. A partir da identificação de um plano
subperiosteal – que é um plano de segurança –, segue-se
a dissecção rumo à articulação temporomandibular. Para
isso, remanescentes ósseos, periosteais ou placas previaRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
mente colocadas servirão de guia. Um aparelho estimulador de nervos periféricos pode ser útil neste momento para
a busca e preservação nervosa.
O material de osteossíntese normalmente é retirado para
possibilitar a moldagem e a entrada de um novo, associado
ao retalho livre de fíbula. O remanescente ósseo de cirurgias
prévias, se houver, pode ser deixado em posição e desgastado
– desde que não esteja em posição anômala e de interferência –, porque pode apresentar três vantagens: 1a., criar uma
espécie de “parede” entre a mucosa e o osso recém-chegado,
diminuindo a chance de lacerações e fístulas; 2a., aumentar
o contato ósseo e promover mais pontos de ossificação; 3a.,
aumentar a espessura ao tecido ósseo, facilitando a colocação
de implantes e próteses dentárias posteriormente. A reconstrução do côndilo e da articulação será discutida a seguir.
A abordagem intraoral é menos utilizada na reconstrução microcirúrgica. Ela detém algumas vantagens, tais como
cicatrizes inaparentes na região cervicofacial e risco menor
de lesão do nervo facial. No entanto, a área de trabalho é
mais difícil, é incômodo trabalhar com bloqueio intermaxilar associado, a incisão precisa ser ampla, e isso determina
maior risco de produção de fístula salivar e coleta de saliva
na região cervical, e – o que pode ser o mais grave – a cicatrização pode estar muito prejudicada por causa de radioterapia prévia, aumentando sobremaneira o risco de deiscência, fístula, infecção e perda da reconstrução. A abordagem
intraoral pode ser o método preferido em várias situações de
reconstrução mandibular não microcirúrgica, mas no caso
da microcirurgia, os autores preferem a externa.
Na moldagem óssea, as osteotomias devem ser feitas
com o cuidado de não lesar o periósteo nas partes moles
adjacentes, que levam o aporte sanguíneo à extremidade
distal. A fíbula tem um suprimento sanguíneo excelente,
porque a artéria fibular corre paralelamente ao osso (e ao
periósteo, portanto). As fraturas em galho verde não têm
um papel estabelecido na reconstrução mandibular.
A maioria das osteotomias requer angulação em mais
de um plano. Assim, teremos uma reprodução mais precisa
da porção mandibular ressecada. A meta mais importante
na moldagem mandibular é o contorno inferior (basal) da
mandíbula. A altura do enxerto é secundária, mesmo considerando a colocação futura de implantes osteointegrados.
As técnicas vigentes de implantodontia possibilitam a reabilitação, mesmo com um déficit de altura óssea.
Para fazer a moldagem do segmento anterior, deve-se,
primeiramente, localizar sua posição adequada (Figuras
8 e 9). O segmento anterior tem em torno de 2 cm de
comprimento. A sua localização é importante para determinar o comprimento do pedículo vascular. A osteotomia
realizada para reconstruir e moldar o segmento anterior
deve ser angulada em dois planos. O segmento anterior
deve ficar em paralelo com o plano coronal, e não no
mesmo plano que os segmentos do corpo da mandíbula, ou seja, ele deve sofrer uma rotação póstero-superior.
Este critério é importante para a colocação de implantes
osteointegrados.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
Figura 8 – Imagem de osteossíntese mandibular já realizada.
A fixação deve ter de dois a cinco parafusos nos segmentos ósseos
nativos e ser bicortical nestes. Já no retalho livre, deve-se utilizar
2 parafusos monocorticais por segmento. Notem-se os clampes
vasculares na região cervical, isto porque a osteossíntese foi realizada
antes da anastomose vascular, evitando movimentos bruscos após o
restabelecimento da perfusão do autotransplante.
Figura 9 – Reconstrução da hemimandíbula direita com retalho livre
de fíbula. Aspecto do autotransplante já fixado. A ilha de pele servirá
(seta), neste caso, para a reconstrução da face.
A introdução do osso anteriormente é mais desafiadora
do que em segmentos laterais. Isso ocorre porque o remanescente mandibular é menos estável para manipulação. A
fixação intermaxilar auxilia, mas, frequentemente, há falta
de elementos dentários para a sua realização.
A escolha do lado da área doadora depende, primeiramente, da necessidade da reconstrução. Nas reconstruções
laterais sem ilha de pele ou quando a ilha for para a reconstrução cutânea, a fíbula utilizada para reconstrução pode
ser ipsilateral ao defeito (Figuras 8 a 10). Nas reconstruções laterais com ilha de pele, em que a mucosa necessite
reconstrução, a fíbula poder ser contralateral. Em defeitos de espessura total, preferimos usar a ilha de pele para
a reconstrução de mucosa. Já nas reconstruções de arco
central, sem envolvimento lateral, qualquer lado se presta
como doador, mas o lado da cervicotomia e esvaziamento
45
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
cervical pode determinar a escolha. Quando os vasos cervicais receptores não são adequados ou se houver história
de trauma importante, utilizar-se-á o lado contralateral. O
primeiro passo na moldagem é determinar a posição do
ângulo da mandíbula no osso doador (fíbula). Nos casos de
utilização contralateral, deve-se lembrar que a osteossíntese não poderá ser feita na face medial da fíbula, por onde
passa a vascularização.
A fixação da placa de titânio ao osso pode ser feita na
área doadora, antes da secção do pedículo e do início do
tempo de isquemia. Deve-se fazer uma fixação proximal da
fíbula para que os vasos não fiquem sendo distendidos durante a montagem, com risco de lesão. Os autores fazem a
montagem assim rotineiramente e consideram-na útil para
diminuir o tempo de isquemia e seus riscos.
O desenvolvimento maior do planejamento virtual pré-operatório para reconstruções deve melhorar esta etapa.
Atualmente, já é possível planejar e produzir enxertos sintéticos, guias para osteotomias, bem como moldes para
enxertos e retalhos ósseos autógenos. O ponto crucial de
todo este planejamento é otimizar a reconstrução e a fixação do segmento reconstruído à porção nativa. O desafio
é maior nas reconstruções tardias onde não houve fixação
óssea com placas e parafusos, porque o deslocamento dos
cotos mandibulares gera anormalidades anatômicas significativas. Para o planejamento virtual, os exames tomográficos são realizados, e os arquivos DICOM® (Digital Imaging and Communication in Medicine), obtidos de uma estação
PACS (Picture Archiving and Communication System) (20). A
seguir, a montagem da falha, do enxerto ou da guia de osteotomia é construída virtualmente em um software CAD
(Computer Aided Design). O próximo passo é a fabricação
física do objeto planejado.
A manufatura aditiva é o termo que se refere ao método de construir um objeto físico camada por camada
(20,21). Este método baseia-se na existência de um modelo digital tridimensional, que é fatiado em várias camadas
finas, variando de 50 a 300 micrômetros. Os materiais utilizados para a manufatura podem ser plásticos, cerâmicas,
ceras ou metais.
A forma, o tamanho, o contorno e o encaixe da fíbula à
mandíbula são todos fatores importantes para determinar
uma função mastigatória adequada (21). A placa de titânio
é fixada à fíbula com parafusos monocorticais (geralmente até 8 mm) e à mandíbula remanescente com parafusos
bicorticais (geralmente acima de 12 mm). A utilização de
um medidor de profundidade do furo é útil para aumentar a precisão do tamanho do parafuso com fixação bicortical. A oclusão deve ser revisada rotineiramente, porque
a própria fixação pode causar deslocamento. Vale a pena
ser obsessivo nesta etapa, garantindo um funcionamento
melhor do aparelho estomatognático, sem falar nas questões estéticas. A correção da má oclusão posteriormente
pode ser difícil. O bloqueio maxilomandibular (BMM) é
útil e deve ser considerado no paciente que apresenta alguma possibilidade de intercuspidação dentária (encaixe
dentário), buscando-se a melhor intercuspidação oclusal. A
melhor referência dentária é a dos caninos e pré-molares.
Se o paciente for edêntulo em uma das arcadas, há perda
da referência oclusal. Nestes casos, há duas possibilidades:
1a., o paciente tem prótese total prévia e a utilizaremos no
transoperatório, fixando a oclusão com BMM através de
parafusos ósseos; 2a., o paciente não tem prótese total prévia e colocamos uma placa pré-implantação da fíbula, que
mantenha os cotos mandibulares em posição. (Esta tática
pode ser útil em qualquer situação em que haja dificuldade
de colocar o paciente em oclusão.)
O contato ósseo deve ser revisado ao final do procedimento. Áreas de pouco contato gerarão menos ossificação
e mais fibrose, levando à pseudoartrose. Os fragmentos
ósseos remanescentes da moldagem da fíbula podem ser
interpostos, bem como o pó de osso residual. Uma alternativa mais sofisticada é o uso de proteína morfogenética
óssea do tipo 2 (BMP-2), mas que tem custo elevado (2225). Os cimentos ósseos não podem ser colocados, até o
momento, em áreas de carga significativa, como costuma
ser o caso da mandíbula (26).
A Reconstrução do Côndilo e/ou da Articulação
Temporomandibular (ATM)
Figura 10 – Aspecto final transoperatório de uma reconstrução
mandibular com fíbula e ilha de pele (retalho osteocutâneo).
46
A ATM é um assunto sempre complexo, controverso e
fascinante. Os defeitos laterais “H” das mandibulectomias
envolvem o côndilo. Por muitos anos, ignorou-se a reconstrução condilar, gerando um ramo flutuante. Embora a
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
abertura permaneça possível sem a reconstrução condilar,
com o tempo podem ocorrer desvio mandibular e alteração funcional. No fechamento bucal, há contato tangencial
das superfícies oclusais, gerando dificuldade mastigatória.
Além disso, a má oclusão dentária poderá acarretar desgaste dentário de cúspides e sobrecarga e disfunção da ATM
contralateral. Por tudo isso, a reconstrução mandibular deveria prever a reconstrução articular, quando necessário,
além da melhor simetria possível entre a mandíbula remanescente e o lado reconstruído. Nos pacientes pediátricos
e adolescentes, existem ainda os problemas relacionados ao
crescimento facial, que poderão gerar assimetrias e disfunções ainda maiores na idade adulta.
Atualmente, há várias técnicas para esta reconstrução, conforme mostra a Tabela 3. Nos casos em que a
reconstrução não é possível, o paciente deve ser submetido a um tratamento fisioterápico rigoroso para otimizar a função muscular e reduzir o desequilíbrio entre os
lados da mandíbula.
A fíbula pode ser moldada em sua extremidade para
mimetizar um côndilo. Pode-se acrescentar um enxerto
de cartilagem costal ou de concha auricular, suturado ao
osso fibular. O espaço articular pode ser preenchido com
um retalho muscular, fáscia ou uma lâmina de silicone,
criando um espaço articular artificial. Mais recentemente,
Bauer e cols. (2013) utilizaram uma associação de enxerto costocondral e membrana amniótica (27). Em qualquer
reconstrução, é importante lembrar de não deixar a ponta
da placa de titânio próxima ou dentro do espaço articular,
o que pode causar sintomas álgicos significativos, a ponto
de necessitar reintervenção para encurtamento do material
de osteossíntese.
O enxerto “de novo” do côndilo também é uma técnica descrita e poderia ser utilizado: 1o., se esta porção
mandibular estiver livre de tumor; 2o., se ele puder ser
congelado e reesterilizado, o que é improvável para a reconstrução imediata.
A reconstrução com um enxerto ósseo e/ou cartilaginoso é uma técnica antiga. O enxerto costocondral foi descrito por Gilles em 1920 (apud Verma, 2011) (28). Ela tem
uma aceitação razoável e pode ter resultados satisfatórios.
O problema maior é a imprevisibilidade do comportamento destes enxertos, que podem sofrer: 1o., reabsorção; 2o.,
crescimento excessivo; 3o., deslocamento. Aqui também a
interposição de gordura, músculo, fáscia ou algum material sintético (ex.: silicone) pode ser útil na reprodução de
um espaço articular. Um retalho osteomuscular de processo coronoide já foi descrito também para a reconstrução
condilar, mas é pouco provável que se aplique, na prática,
a casos oncológicos, em que a ressecção costuma ser de
ambas as regiões. Esta técnica seria mais interessante para
reconstruções em casos de anquilose temporomandibular.
A reconstrução com enxerto costocondral costuma ser a
primeira opção em crianças e adolescentes submetidos à
reconstrução mandibular com perda de substância na região da ATM.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
A reconstrução aloplástica da ATM (com prótese) foi
documentada pela primeira vez em 1840, por John Murray Carnochan (apud Goiato, 2009) (2). A prótese total de
ATM é uma solução biomecânica, mais do que biológica
(Figuras 11 e 12). Ela possibilita a melhoria da distorção
e mutilação, sem haver preocupação com a vascularização
dos tecidos adjacentes, fator essencial quando se pensa em
reconstrução autógena. Em vista das desvantagens da reconstrução autógena, a reconstrução aloplástica pode ser
uma alternativa. A porção condilar é feita de uma liga cobalto-crômio (Co-Cr) (29).
As próteses metálicas de côndilo parecem ter um índice
não desprezível de complicações. A reconstrução condilar com placa de titânio contendo um substituto condilar,
quando em contato com a fossa glenoide, provocará erosão e reabsorção. Há relatos de deslocamento e extrusão,
perfuração de conduto auditivo externo, perfuração de
tímpano, dano coclear e perda auditiva e penetração do
material metálico em direção à base do crânio (30). Assim,
a reconstrução da ATM deve ser idealmente com prótese
total, quando se optar por este método. A reconstrução
aloplástica está contraindicada nas seguintes situações:
crianças; pacientes não informados; pacientes com doenças sistêmicas não controladas; pacientes alérgicos a algum
componente da prótese; pacientes com infecção ativa do
sítio de implantação (29).
A distração osteogênica é uma técnica mais recente
Tabela 3 – Técnicas de reconstrução do côndilo e da articulação
temporomandibular.
Moldagem da extremidade óssea do retalho livre
Enxerto de novo do côndilo
Enxerto ósseo e/ou cartilaginoso
Prótese de titânio (Figura 11)
Distração osteogênica
Figura 11 – Reconstrução da articulação temporomandibular esquerda
com prótese total, associada a uma reconstrução mandibular com
fíbula livre. Início da reconstrução.
47
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
Figura 12 – Continuação da reconstrução da Figura 11. Moldagem
da placa para reconstruir ramo, corpo e arco mandibular à esquerda.
dentro das técnicas de reconstrução óssea craniofacial.
Trata-se de uma transposição da técnica de alongamento
ósseo de ossos longos para o esqueleto craniofacial. Ela
já é utilizada há décadas pela ortopedia e foi descrita pelo
médico russo Gavriil Ilizarov, em 1954 (apud Spiegelberg,
2010) (31). É um método com várias vantagens: morbidade
baixa, exclusão de um segundo campo cirúrgico e utilização de osso nativo da região anatômica. Entretanto, não
há ainda evidências clínicas fortes sobre reconstrução condilar com esta técnica. Existem somente trabalhos experimentais com resultados satisfatórios (32).
Anastomoses
As anastomoses microvasculares são um tempo fundamental da reconstrução. A escolha dos vasos e a compatibilização dos calibres são importantes, mas nem sempre
possíveis. As regiões irradiadas podem conter vasos de pior
qualidade, o que aumenta o risco de falha circulatória, trombose e perda do retalho livre. Quando os ramos da artéria
carótida externa são de calibre muito fino ou apresentam
percurso tortuoso, a escolha da própria carótida externa é
indicada, podendo a anastomose ser feita pela técnica terminoterminal. De maneira semelhante, quando não houver
uma veia de calibre ou trajeto satisfatório, a anastomose poderá ser feita na veia jugular interna, neste caso pela técnica
terminolateral. Em um estudo (11) realizado por Cardoso
e cols. (2011), a artéria cervical mais utilizada para anastomose foi a facial (53%), e a veia foi o tronco tireolinguofacial (53%). Nesta mesma casuística, a carótida externa foi
utilizada em 7% e a jugular interna em 20% dos casos. Há
grandes variações de instituição para instituição.
O comprimento do pedículo dissecado na área doadora deve ser o maior possível. Há encurtamento do mesmo
após sua secção. Deve-se ter muito cuidado ao planejar uma
anastomose contralateral, porque, após a osteossíntese, o
pedículo pode não alcançar os vasos receptores almejados.
Se isso ocorrer, o recurso é o enxerto de veia. Esta técnica
aumenta o tempo de isquemia e o risco de trombose. Uma
48
outra alternativa para pedículos curtos ou vasos muito danificados é a alça arteriovenosa (AV loop), que consiste na
retirada de um enxerto de veia e uma anastomose arterial
em uma ponta e venosa na outra. Deve-se aguardar em
torno de uma a duas semanas e depois proceder à reconstrução propriamente dita.
A isquemia deve durar o menor tempo possível. Os autores fazem a melhor dissecção possível dos vasos, tanto
doadores como receptores, antes da entrada em período
de isquemia. Ainda, a montagem da placa à fíbula pode
ser feita ainda na área doadora em grande parte dos casos.
O pedículo é protegido de tração excessiva fixando-se um
ponto de fio grosso (nylon ou aço) ou uma pinça Bakhaus
ou semelhante entre a porção proximal da fíbula e uma
borda da incisão. A prototipagem tem reduzido o tempo
de moldagem da placa e da osteossíntese, o que também
parece contribuir para a redução do tempo de isquemia.
Implantes Osteointegrados
para Reabilitação Dentária
A fíbula presta-se sobremaneira à implantodontia para
reabilitação dentária (2). Os implantes osteointegrados devem ser colocados entre 4 e 6 meses nos casos de enxertos
ósseos, e períodos mais longos de espera podem causar
reabsorção óssea por falta de carga. Este comportamento,
no entanto, não é observado no caso dos retalhos livres
(2,33). Nesses, a implantodontia pode atuar logo após a
reconstrução microcirúrgica. Preferimos que se aguarde o
tempo para a determinação do sucesso vascular, para que o
paciente inicie a reabilitação dentária.
Monitoração
O retalho livre de fíbula apresenta uma dificuldade de
monitoração. Ele fica internalizado quando não há ilha
de pele, e isso limita a avaliação da circulação sanguínea.
Quando o retalho é osteocutâneo, pode-se fazer avaliação
da cor da pele, da cor do sangue à perfuração com uma
agulha e da glicemia capilar neste mesmo sangue provindo
de perfuração do retalho de pele. A ultrassonografia com
Doppler é um exame importante, confiável e de execução
frequente (Figura 13), mas que pode ser de difícil execução
ou mesmo impossível se a anastomose não estiver superficial ou se o retalho estiver dentro da cavidade oral. Nos
casos em que só há osso, as alternativas podem ser a cintilografia óssea e a angiotomografia (34).
A cintilografia óssea empregando Tecnécio-99m-Metilenodifosfato (99Tc-MDP) pode ser um exame útil na demonstração da perfusão do autotransplante de fíbula (Figura 14).
Em um estudo (35), Sbalchiero e cols. (2008) tiveram maior
capacidade do exame em demonstrar presença de fluxo do
que em excluir a inviabilidade da reconstrução (falsos negativos). A cintilografia com 99Tc-MDP pode ser útil mesmo
nos primeiros dias, para monitorar transplantes ósseos e determinar reintervenção (36).
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
Figura 13 – Ultrassonografia com Doppler de uma anastomose de reconstrução mandibular com fíbula. A área escura (hipoecoica) representa
um hematoma, que foi posteriormente drenado.
A angiotomografia tem sido feita por nossa equipe nas reconstruções com fíbula livre atualmente. Este exame é capaz
de identificar fluxo vascular, tanto na fase arterial quanto venosa (Figuras 15 e 16). Parece bastante útil na avaliação, mas
há de se considerar a dose cumulativa de radiação, assunto
que vem ganhando espaço para discussão na atualidade.
A angiografia está em desuso para este tipo de monitoração, ao passo que a ressonância magnética e a SPECT (tomografia computadorizada por emissão de fóton simples) podem
ter papel importante, ainda a ser melhor determinado (36).
A monitoração da glicemia capilar está sendo estudada
recentemente como parâmetro de perfusão de retalhos livres e pediculados (37). Sugere-se que a glicemia do retalho
deva ser maior ou igual a 70% da sistêmica. Trata-se de um
exame bastante simples e barato, mas o seu papel na monitoração de retalhos – sejam livres ou pediculados – ainda
está por ser estabelecido, já que pode haver tanto falso-positivos e negativos (38).
Manejo Perioperatório
Figura 14 – Cintilografia óssea com Tecnécio-99m-Metielenodifosfato
(99Tc-MDP), demonstrando viabilidade da reconstrução do corpo e
parte do ramo esquerdo da mandíbula (seta), com autotransplantes
microvascularizados de fíbula.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
O sucesso dessas reconstruções depende de vários fatores. Os principais são aqueles relacionados à técnica cirúrgica, mas isso por si não é suficiente para garantir a sobrevivência do retalho livre e o controle de complicações.
49
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
Figura 15 – Angiotomografia (corte axial) de uma paciente submetida
à reconstrução microcirúrgica tardia do ramo mandibular direito. A
imagem apresenta a fase arterial do exame, onde a seta indica o fluxo
pela anastomose realizada entre a artéria lingual e a artéria fibular.
Figura 16 – Angiotomografia computadorizada (corte sagital)
demonstrando perfusão na artéria fibular após a anastomose com a
artéria carótida externa esquerda (seta).
Uma equipe competente, treinada e acostumada a lidar
com esses casos, composta – além dos microcirurgiões –
de anestesistas, intensivistas, fisioterapeutas e enfermeiros,
contribui para as etapas do manejo perioperatório.
A preparação do paciente inclui: fazer reserva de leito de
unidade de terapia intensiva; fazer reserva de sangue (concentrados de hemácia principalmente); realizar acesso veno50
so, de preferência central, mas não coincidente com a região
de cervicotomia; sondagem vesical de demora; instalação de
cateter de pressão arterial média (PAM). Ainda, a utilização
de analisador de gases (em caso de anestesia inalatória) e de
índice bispectral (BIS) – tanto para anestesia venosa total
quanto para inalatória – permite avaliar com mais precisão o
plano anestésico e evitar consciência transoperatória.
Deve-se evitar atraso na reposição de volume intravascular, para que não seja necessária uma reposição abrupta,
podendo causar congestão, ou levar à necessidade de vasopressores para manter a pressão-alvo, que seria acima de
70 mmHg.
A monitoração deve ser feita de modo mais intensivo nas
primeiras 48 a 72 horas. Após, o risco de trombose diminui
consideravelmente. Idealmente, uma reintervenção deve ser
executada dentro de seis horas após o início da trombose.
Deve-se ter um alto grau de suspeição para este evento.
O paciente deve ficar em unidade de terapia intensiva
por pelo menos 48 horas. A PAM deve ficar acima de 70
mmHg. Tanto o uso de vasoconstritores (isquemia arterial)
como a sobrecarga fluida (congestão e isquemia venosa)
podem ser danosos à perfusão do retalho microcirúrgico.
A hemoglobina deve permanecer maior ou igual a 8 g%.
A cabeceira do paciente deverá ficar elevada em 30
graus. O cirurgião deve comunicar e escrever na prescrição se existe alguma restrição de movimento cervical, pois
pode-se perceber no período transoperatório se há posições que geram risco de interrupção de fluxo circulatório
(geralmente, quando o paciente gira o pescoço para o lado
ipsilateral à anastomose).
Quanto à prescrição, nossa rotina costuma ser a seguinte:
- analgesia pós-operatória fixa com opioides, preferindo
morfina intravenosa (e preterindo petidina);
- analgesia complementar com dipirona intravenosa;
- anti-herméticos fixos, preferindo ondansetrona;
- corticoterapia intravenosa por 48 horas, visando a diminuir quadro inflamatório, congestão venosa e contribuindo para o efeito anti-hermético, preferindo fosfato de dexametasona intravenosa;
- profilaxia do tromboembolismo, com heparina sódica
ou heparina de baixo peso molecular (ex.: enoxaparina) subcutânea, bem como com ácido acetilsalicílico
por via oral ou por sonda nasoentérica (iniciado no 1º.
dia pós-operatório);
- profilaxia da infecção por 48 horas, com antibióticos
intravenosos, geralmente cefazolina se não houver
manejo intraoral ou com clindamicina se houver;
- higiene oral com clorexidina aquosa 0,12%.
O paciente pode iniciar com dieta pastosa se não houver abordagem intraoral, ou com dieta por sonda nasoentérica ou por via oral, líquida fria e sem lactose, se a mucosa
for incisada. O acompanhamento nutricional deve ser idealmente solicitado. O paciente não deve mastigar por 45 a
60 dias, até que se comprove osteointegração por exames
de imagem.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
O acompanhamento fisioterápico é importante, tanto
dermofuncional, quanto para o aparelho respiratório ou
locomotor.
Controle Pós-Operatório por Imagem
O controle radiológico pós-operatório deve ser feito
idealmente por tomografia computadorizada. Há discussões recentes sobre a exposição à radiação e os efeitos
acumulativos que os exames tomográficos provocam, mas
pelo menos uma tomografia com reconstrução tridimensional, realizada para avaliar posição, consolidação óssea e
volume do retalho livre é aconselhável após 45 a 60 dias da
cirurgia (Figura 17). A radiografia panorâmica permite uma
avaliação óssea menos acurada, mas com a possibilidade de
avaliar alguns parâmetros, como altura e não união óssea.
A cintilografia com 99Tc-MDP tem papel importante aqui
para avaliar a perfusão tardia, embora não seja adequada
para os parâmetros supracitados.
Um estudo curioso (39), realizado por Jacobsen e cols.
(2011), demonstrou que pode haver achados de necrose
óssea em reconstruções tardias com fíbula, mesmo em casos em que o paciente apresentava-se clinicamente bem e
tratado inclusive com implantes e próteses dentárias. O significado prognóstico disso ainda está por ser determinado.
Figura 17 – Tomografia computadorizada com reconstrução
tridimensional, apresentando a reconstrução do ramo direito da
mandíbula. Neste procedimento, o côndilo foi deixado flutuante, e uma
porção remanescente de um enxerto de costela prévio (que sofrera
reabsorção por infecção) foi mantida para aumentar o contado ósseo.
A paciente apresentava sequela de um ameloblastoma.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
Manejo Pós-Operatório da Área Doadora
A área doadora costuma ter uma recuperação gradual satisfatória, mas várias complicações podem ocorrer.
O edema deve ser tratado com a elevação do membro inferior quando o paciente estiver sentado ou deitado, com
o uso de meias elásticas de tamanho três-quartos de média
compressão se as feridas operatórias já estiverem cicatrizadas e com fisioterapia dermofuncional e motora pelo tempo que for necessário. Exercícios feitos a domicílio também contribuem para o reestabelecimento da função do
membro inferior operado (6). Não recomendamos a imobilização prolongada nem o uso de talas, porque isso pode
aumentar o risco de trombose venosa, aderência tendinosa
e retardo na recuperação motora.
Se houver alteração motora de marcha ou de movimentos dos artelhos, um ortopedista deverá ser consultado. O
maior risco desta cirurgia é a perda da extensão do hálux,
que pode ser temporária e tratada com fisioterapia, ou definitiva, merecendo então uma artrodese para colocá-lo em
posição mais funcional. A Figura 18 apresenta uma radiografia da área doadora.
Complicações
A reconstrução mandibular microcirúrgica costuma ser
feita em pacientes com neoplasias em estágio avançado, com
perdas ósseas consideráveis e com várias comorbidades. Este
perfil de pacientes pode determinar aumento das complicações clínicas como cirúrgicas. Uma série de 400 casos de reconstrução microcirúrgica em cabeça e pescoço demonstrou
que há complicações perioperatórias em 36,1% dos casos. As
complicações relacionadas às reconstruções perfazem 19,0%
(14). A reconstrução mandibular apresenta complicações
maiores do que em outras regiões (40). A Tabela 4 mostra
fatores de risco para perdas de retalhos livres em cabeça e
pescoço. As complicações da reconstrução com fíbula estão
apresentadas na Tabela 5. Em um trabalho prévio realizado
no INCa (41), as incidências de complicações na área receptora, em pacientes submetidos a mandibulectomias, foram as
seguintes: fístula, 21,2%; necrose, 13,5%; deiscência, 13,5%;
infecção, 11,5%; sangramento, 9,6%; extrusão de material de
osteossíntese, 1,9% (Figura 19). Os pacientes com ressecção
de arco central mandibular apresentaram mais complicações.
A reintervenção é mandatória nos casos de suspeita de
trombose venosa ou arterial, bem como nos de hemorragia. Nambi e cols. (2013) descreveram uma segunda anastomose distal no pedículo fibular (em uma reintervenção)
(34), em caso de falha da anastomose convencional. Eles
basearam-se no princípio do fluxo reverso que ocorre
quando vasos importantes são destruídos por trauma proximalmente, e o fluxo distal acaba se tornando reverso e assumindo a perfusão de uma determinada área do membro.
O acompanhamento por angiotomografia demonstrou fluxo presente após seis semanas da reintervenção.
51
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
Figura 19 – Imagem de uma complicação de reconstrução
microcirúrgica tardia do arco central mandibular, com fíbula livre,
em uma paciente de 59 anos. Houve infecção pós-operatória,
resultando em deiscência, extrusão do material de síntese e perda
da reconstrução. A ferida já apresentava, neste momento, granulação.
Note-se o aspecto eritematoso e edemaciado da pele circunjacente,
devido à radioterapia e ao quadro infeccioso.
Figura 18 – Radiografia da área doadora da fíbula direita. Uma porção
proximal e outra distal, de 6 a 8 cm, devem ser mantidas, a fim de evitar
lesão do nervo fibular e instabilização do tornozelo, respectivamente.
Tabela 4 – Fatores de risco para perda de retalhos livres em
reconstruções de cabeça e pescoço.
Perda de peso pré-operatória
Envolvimento de mais de um cirurgião
Tabagismo
Diâmetro do retalho > 4 cm
Tempo operatório maior que 11 horas
Radioterapia prévia
Retalhos musculares com enxerto de pele
Uso de nitrato ou broncodilatadores
Conforme Suh et al. (2004).
Tabela 5 – Complicações da reconstrução mandibular com retalho
livre de fíbula.
Área receptora:
- deiscência de sutura;
- fístula salivar;
- trombose;
- necrose do retalho;
- sangramento;
- infecção.
Área doadora:
- perda da extensão do hálux;
- perda da dorsiflexão do pé;
- dificuldade de marcha;
- dor crônica;
- perda de enxerto quando se confecciona retalho de pele;
- cicatriz hipertrófica ou queloide.
52
As fístulas podem ter manejo conservador inicialmente,
desde que não haja comunicação com a região das anastomoses. A presença de fístulas salivares em reconstruções
microcirúrgicas aumenta o tempo de internação em média
em sete dias (41). O tratamento conservador (42, 43) consiste: 1o., na suspensão da dieta por via oral e colocação
ou manutenção de uma sonda nasoentérica; 2o., no uso
de antibióticos por via intravenosa; 3o, curativos de uma a
três vezes ao dia, com pequenos debridamentos se necessário; 4o., uso de toxina botulínica nas glândulas parótidas.
Embora alguns autores não tenham encontrado diferença
significativa entre o manejo conservador em comparação
ao cirúrgico (41), é temerário deixar áreas de exposição de
osteossíntese e vascular sem cobertura. Nestes casos, optamos rotineiramente pela revisão cirúrgica.
A exposição óssea leva à desvitalização deste tecido,
ao risco de osteomielite, à não união e à perda de volume.
O osso exposto deve ser abordado e desbridado; se não
houver infecção ativa, um enxerto ósseo pode ser interposto para restabelecer a continuidade óssea da reconstrução. Uma cobertura eficiente deve ser realizada através
de retalhos locais ou de um novo retalho locorregional ou
à distância.
O material de síntese, por sua vez, pode permanecer
exposto, desde que não haja comunicação significativa com
o osso viável. Em alguns casos, aguarda-se a melhoria das
condições locais (inflamação, edema, fibrose, etc.) para
proceder a uma nova reconstrução, enquanto a placa de
titânio mantém os cotos mandibulares bem posicionados.
As feridas contendo necrose devem receber desbridamento mecânico (cirúrgico) ou químico. Há várias opções
não cirúrgicas, mas que podem ser mais lentas: papaína
a 8%; alginato de prata; hidrogéis, etc. Após o início da
granulação, a ferida pode ser tratada com triglicerídeos de
cadeia média, vaselina e/ou curativos de pressão negatiRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
va. Estes últimos têm sido utilizados com mais frequência,
demonstrando: 1o., controle melhor da infecção; 2o., aceleração da angiogênese, do aparecimento de tecido de granulação e, consequentemente, da cicatrização; 3o., diminuição
da dor; 4o., diminuição do edema e facilitação da manipulação cirúrgica posterior das bordas da ferida; 5o., redução
no tamanho da ferida e no porte da cirurgia reparadora
posterior; 6o., possibilidade de uso portátil a domicílio e de
manejo ambulatorial. O seu custo, entretanto, não é factível
ainda a todos os casos no Brasil atualmente (44,45). Em
um estudo com treze pacientes (44), Yang e cols. (2013)
aplicaram o curativo de pressão negativa em pacientes com
complicações de reconstruções com retalhos livres em cabeça e pescoço. O tempo médio de obliteração do espaço
morto e formação de tecido de granulação foi de 10,8 dias.
A oxigenoterapia hiperbárica (OHB) é um outro tratamento adjuvante para feridas. Ela provoca aumento da
angiogênese e da proliferação de fibroblastos. A OHB é
utilizada rotineiramente no tratamento da osteorradionecrose. Entretanto, permanece controversa nas infecções
necrosantes de partes moles, embora artigos experimentais
demonstrem aumento na sobrevida de enxertos e retalhos
(45). A OHB vem ganhando espaço e adeptos à medida
que estudos mais controlados vêm surgindo.
COMENTÁRIOS FINAIS
A reconstrução mandibular com retalho livre de fíbula é o padrão-ouro atualmente. A fíbula tem um pedículo
vascular de anatomia relativamente constante, possui dois
sistemas de vascularização (periosteal e endosteal), permite
moldagem versátil, pode ser acompanhada de ilha de pele
para reconstrução tanto intra como extraoral, suporta implantes osteointegrados para a reconstrução da arcada dentária e tem morbidade relativamente baixa na área doadora.
A reconstrução da articulação temporomandibular tem
mais de uma opção e continua controversa. Os defeitos
de espessura total (through-and-through) da região mandibular
podem ser reconstruídos com a associação de um outro retalho – livre ou pediculado –, de acordo com a capacidade
da equipe e da instituição. O planejamento da reconstrução
com prototipagem e impressoras tridimensionais deve otimizar a reconstrução microcirúrgica com autotransplante
de fíbula. As técnicas de monitoração vêm sendo estudadas
e poderão sofrer mudanças de protocolo em breve. O número de complicações não é desprezível e faz-se necessária
uma equipe experiente para manejá-las.
REFERÊNCIAS
1. Wei F, Celik N, Yang W, Chen IH, Chang YM et al. Complications
after reconstruction by plate and soft-tissue free flap in composite
mandibular defects and secondary salvage reconstruction with osteocutaneous flap. Plast Reconstr Surg 2003; 112(1): 37-42.
2. Goiato MC, Ribeiro AB, Marinho MLVD. Surgical and prosthetic
rehabilitation of patients with hemimandibular defect. J Craniofac
Surg 2009; 20(6): 2163-7.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
3. Li L, Blake F, Heiland M, Schmelzle R, Pohlenz P. Long-term evaluation after mandibular reconstruction with fibular grafts versus
microsurgical flaps. J Oral Maxillofac Surg 2007; 65(2): 281-6.
4. Osório RHC, Portinho CP, Chedid R, Sbalchiero J, Russano M, Leal
PR. Avaliação dos pacientes submetidos a mandibulectomia com
reconstrução microcirúrgica no INCa. Rev Bras Cir Plast 2011;
26(supl.): 1-102.
5. Wallace CG, Chang YM, Tsai CY, Wei FC. Harnessing the potential
of the free fibula osteoseptocutaneous flap in mandible reconstruction. Plast Reconstr Surg. 2010; 125(1): 305-14.
6. Liu TY, Huang YC, Leong CP, Tseng CY, Kuo YR. Home-based
exercise on functional outcome of the donor lower extremity in oral
cancer patients after fibula flap harvest. Biomed J 2013; 36(2): 90-5.
7. Jewer DD, Boyd JB, Manktelow RT, Zuker RM, Rosen IB, Gullane
PJ et al. Orofacial mandibular reconstruction with the iliac crest free
flap: a review of 60 cases and a new method of classification. Plast
Reconstr Surg 1989; 84(3): 391-403.
8. Boyd JB. Use of reconstruction plates in conjunction with soft-tissue free flaps for oromandibular reconstruction. Clin Plast Surg
1994; 21(1): 69-77.
9. Pascoal MBN, Chagas JF, Alonso N, Aquino JL, Ferreira MC, Pascoal MIN et al. A mandibulectomia marginal no tratamento dos
tumores de loja amigdaliana e região retromolar. Rev Bras Otorrinolaringol 2007; 73(2): 180-4.
10. Heras RL, Fernandéz F, Capdeville F, Veloso M, Harbst H, Müller
B et al. Osteosarcomas de la región de cabeza y cuello. Rev Chil Cir
2011; 63(5): 468-72.
11. Cardoso IF, Sbalchiero JC, Batista AS, Ohana BMB, Chedid R, Cardoso GF et al. Uso do retalho osteocutâneo microcirúrgico de fíbula
na reconstrução dos defeitos complexos de mandibular. Rev Bras
Cir Plast 2011; 26(1): 42-7.
12. Lawson W, Biller HF. Reconstruction of the mandible. In: McCarthy
JG, Plastic Surgery. 2a. Ed. Philadelphia: WB Saunders; 1990: 2069.
13. González-García R, Naval-Gías L, Rodríguez-Campo FJ, Martínez-Chacón JL, Gil-Díez Usandizaga JL. Vascularized fibular flap for
reconstruction of the condyle after mandibular ablation. J Oral Maxillofac Surg 2008; 66(6): 1133-7.
14. Suh JD, Sercarz JA, Abemayor, Calcaterra TC, Ramsley JD, Alam D,
Blackwell KE. Analysis of outcome and complications in 400 cases
of microvascular head and neck reconstruction. Arch Otolaryngol
Head Neck Surg 2004; 130(8): 962-6.
15. Trivedi NP, Trivedi P, Trivedi H, Trivedi S, Trivedi N. Microvascular free
flap reconstruction for head and neck cancer in a resource-constrained
environment in rural India. Indian J Plast Surg 2013; 46(1): 82-6.
16. Brusati R, Carota F, Mortini P, Chiapasco M, Biglioli F. A peculiar
case of midface reconstruction with four free flaps in a cocaine-addicted patient. J Plast Reconstr Aesth Surg 2009; 62(2): e33-e40.
17. Boyd JB. Osteocutaneous free flap options in oral cavity reconstruction. Operative Techniques Otolaryngol 1993; 4(2): 104-14.
18. Lee JT, Hsu H, Wang CH, Cheng LF, Sun TB, Huang CC et al.
Reconstruction of extensive composite oromandibular defects with
simultaneous anterolateral thigh fasciocutaneous and fibular osteocutaneous flaps. J Reconstr Microsurg 2010; 26(3): 145-51.
19. Wei FC, Demirkan F, Chen HC, Chen IH. Double free flaps in reconstruction of extensive composite mandibular defects in head
and neck cancer. Plast Reconstr Surg 1999; 103(1): 39-47.
20. Dérand P, Rännar LE, Hirsch JM. Imaging, Virtual planning, design,
and production of patient-specific implants and clinical validation
in craniomaxillofacial surgery. Craniomaxillofac Trauma Reconstruction 2012; 5(3): 137-44.
21. Yap YL, Lim J, Ong WC, Yeo M, Lee H, Lim TC. Stabilization of
mobile mandibular segments in mandibular reconstruction: use of
spanning reconstruction plate. Craniomaxillofac Trauma Reconstruction; 2012: 5(3): 123-6.
22. Su J, Xu H, Sun J, Gong X, Zhao H. Dual delivery of BMP-2 and
bFGF from a new nano-composite scaffold, loaded with vascular
stents for large-size mandibular defect regeneration. Int J Mol Sci
2013; 14(6): 12714-28.
23. Jain AP, Pundir S, Sharma A. Bone morphogenetic proteins: the
anomalous molecules. J Indian Soc Periodontol 2013; 17(5): 583-6.
24. Owens P, Polikowsky H, Pickup MW, Gorska AE, Jovanovic B,
Shaw AK et al. Bone morphogenetic protein stimulate mammary
fibroblasts to promote mammary carcinoma cell invasion. Plos One
2013; 8(6): e67533.
53
RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al.
25. Poldervaart MT, Wang H, Van Der Stok J, Weinans H, Leeuwenburgh
SC, Oner FC et al. Sustained release of BMP-2 in bioprinted alginate
for osteogenicity in mice and rats. PLoS One 2013; 8(8): e72610.
26. Sailer HF, Pajarola GF. Cirurgia Bucal. 1a. Ed., Porto Alegre, Ed.
Artmed; 2000.
27. Bauer F, Hingsammer LM, Wolff KD, Kesting MR. Temporomandibular joint arthroplasty with human membrane: a case report.
Eplasty 2013; 13: e17.
28. Verma A, Yadav S, Singh V. Overgrowth of costochondral graft
in temporomandibular joint ankylosis: An unusual case. Natl J Maxillofac Surg 2011; 2(2): 172-4.
29. Sinno H, Tahiri Y, Gilardino M, Bobyn D. Engineering alloplastic
temporomandibular joint replacements. Mcgill J Med 2011; 13(1):
63.
30. Patel A, Maisel R. Condylar prostheses in head and neck reconstruction. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 2001; 127(7): 842-6.
31. Spiegelber B, Parratt T, Dheerendra SK, Khan WS, Jennings R, Marsh DR. Ilizarov principles of deformity corrections. Ann R Coll
Surg Engl 2010; 92(2): 101-5.
32. Zhu SS, Hu J, Ying BB, Li JH. Growth of the mandible after condylar reconstruction using transport distraction osteogenesis: an experimental investigation in goats. Plast Reconstr Surg 2008; 121(5):
1760-7.
33. Roumanas ED, Markowitz BL, Lorant JA, Calcaterra TC, Jones NF,
Beumer J 3rd. Reconstructed mandibular defects: fibula free flaps and
osteointegrated implants. Plast Reconstr Surg 1997; 99(2): 356-65.
34. Nambi GI, Dhiwakar M. Retrograde vascularization of fibula free
flap in composite oro-mandibular reconstruction. Indian J Plast
Surg 2013; 46(1): 134-7.
35. Sbalchiero JC, Anlicoara R, Meguerian BA, Galvão MSL, Müller
HR, Leal PRA. A cintilografia óssea na detecção da viabilidade de
transplantes ósseos vascularizados para reconstrução de mandibular. Rev Bras Cir Cabeça Pescoço 2008; 37(4): 228-31.
36. Schuepbach J, Dassonville O, Poissonnet G, Demard F. Early
postoperative bone scintigraphy in the evaluation of microvascular bone grafts in head and neck reconstruction. Head Face Med
2007; 3(20): 1-6.
54
37. Sitzman TJ, Hanson SE, King TW, Gutowski KA. Detection of flap
venous and arterial occlusion using interstitial glucose monitoring in
a rodent model. Plast Reconstr Surg 2010; 126(1): 71-9.
38. Millan LS, Ishida LC, Choi EMO, Giachetto EC Jr, Wei, TH, Mattar
R Jr et al. Detecção de trombose venosa em retalhos livres por medidas de glicemia capilar. Rev Bras Cir Plast 2012; 27(4): 523-6.
39. Jacobsen C, Lübbers HT, Obwegeser J, Soltermann A, Grätz KW.
Histological evaluation of microsurgical revascularized bone in
the intraoral cavity: does it remain alive? Microsugery 2011; 31(2):
98-103.
40. O’Brien CJ, Lee KK, Stern HS, Traynor SJ, Bron L, Tew PJ et al.
Evaluation of 250 free-flap reconstructions after resection of tumors of the head and neck. Aust N Z J Surg 1998;68(10):698-701.
41. Portinho CP, Ohana BMB, Sbalchiero JC, Souza THS, Leal PR, Galvão MSL et al. Ressecção e reconstrução mandibular: análise de 85
casos. Rev Bras Cir Cabeça Pescoço 2010; 39(2): 113-6.
42. Portinho CP, Sbalchiero JC, Souza THS, Ohana BM, Cardoso MM,
Leal PRA. Manejo das fístulas salivares em reconstruções microcirúrgicas. Rev Bras Cir Craniomaxilofac 2010; 13(4): 236-40.
43. Hyman J, Disa JJ, Cordeiro PG, Mehrara BJ. Management of salivary fistulas after microvascular head and neck reconstruction. Ann
Plast Surg 2006; 57(3): 270-3.
44. Yang YH, Jeng SF, Hsieh CH, Feng GM, Chen CC. Vacuum-assisted closure for complicated wounds in head and neck region after
reconstruction. J Plast Reconstr Aesth Surg 2013; 66(8): e209-16.
45. Hershcovitch MD, Hom DB. Update in wound healing in facial
plastic surgery. Arch Facial Plast Surg 2012; 14(6): 387-93.
 Endereço para correspondência
Ciro Paz Portinho
Rua Ramiro Barcelos - 2350
90.035-001 – Porto Alegre, RS – Brasil
 (51) 3359-8232
 [email protected]
Recebido: 9/9/2014 – Aprovado: 20/10/2014
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015
SEÇÃO BIOÉTICA
A doação compartilhada de óvulos no Brasil
sob enfoque do Direito e da Bioética
Egg sharing in Brazil from the legal and bioethical point of view
Instituto Bioetica1, Marianna Gazal Passos2, Lívia Haygert Pithan3
RESUMO
Este artigo analisa os aspectos jurídicos e bioéticos da prática médica da doação compartilhada de óvulos no contexto da Reprodução
Assistida no Brasil. Trata-se de uma prática criada pela classe médica para auxiliar na obtenção de gametas femininos e beneficiar as
pacientes que buscam alcançar a gravidez com assistência profissional.
UNITERMOS: Óvulos, Doação compartilhada, Bioética, Contratos
ABSTRACT
This paper examines the legal and bioethical aspects of medical practice of shared egg donation in the context of Assisted Reproduction in Brazil. This is a
practice created by physicians to aid in obtaining female gametes and benefit patients seeking to achieve pregnancy with professional assistance.
KEYWORDS: Ova, egg sharing, bioethics, contracts
INTRODUÇÃO
O procedimento de Reprodução Assistida é voltado
para pessoas com problemas de infertilidade que, através
das novas tecnologias, podem engravidar por meio da técnica de fertilização in vitro. Para realizar a mesma, pode-se precisar de doação de gametas tanto femininos quanto
masculinos.
No caso dos óvulos femininos, o processo para retirada
dos mesmos é muito mais complicado do que a obtenção
de gametas masculinos, exigindo injeções de hormônio e
medicamentos, além da necessidade de uma punção (procedimento cirúrgico) para retirada dos ovócitos. Neste viés,
torna-se muito mais difícil a doação espontânea dos óvulos, fazendo com que se tenha uma demanda muito baixa
de gametas femininos no mercado.
1
2
3
Desta forma, a sociedade médica criou a prática da doação compartilhada, que não possui previsão legal, mas está
regulamentada pela Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina (versão mais recente).
A prática se dá da seguinte forma: uma mulher com
dificuldade de engravidar – pela falta ou por um problema de óvulos – procura a clínica, enquanto, ao mesmo
tempo, uma outra mulher recorre à ajuda médica pela
dificuldade de gestação; entretanto, a segunda não tem
condições de arcar com todo o tratamento, mas possui
óvulos férteis. Ocorre, assim, um intercâmbio em que a
segunda doa parte de seus gametas para a primeira com a
contraprestação de ter pago, em todo ou em parte, o seu
tratamento de fertilidade.
Diante desta prática da doação compartilhada, surgem
questionamentos bioéticos e jurídicos que merecem análise.
Administração.
Acadêmica da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), Pesquisadora de Iniciação Científica do Instituto de Bioética da
PUCRS.
Doutora em Direito, professora da Faculdade de Direito da PUCRS, pesquisadora do Instituto de Bioética da PUCRS.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 55-59, jan.-mar. 2015
55
A DOAÇÃO COMPARTILHADA DE ÓVULOS NO BRASIL SOB ENFOQUE DO DIREITO E DA BIOÉTICA Instituto Bioetica
Não estaríamos diante de uma comercialização disfarçada
de óvulos? Será que esta prática pode ser classificada como
algum tipo de contrato previsto no Direito brasileiro? Há
justificativa ética para a doação compartilhada de óvulos?
FUNCIONAMENTO DA
REPRODUÇÃO ASSISTIDA
A Reprodução Assistida abrange todas as técnicas a
partir das quais a equipe médica ajuda o casal a obter a gravidez, incluindo inseminação artificial, fertilização in vitro
e transferência de embriões, injeção intracitoplasmática de
espermatozoides (ICSI), transferência tubária de gametas,
transferência de embriões congelados. Todos esses procedimentos são relativamente novos para aqueles casais que
não estão conseguindo engravidar por outros métodos (1).
Embora a fertilização assistida já tenha ajudado muitos
casais, ela não é a resposta para todos os casos de infertilidade. Na maioria das vezes, utiliza-se fertilização assistida
somente quando procedimentos menos complexos e menos onerosos falharam. No entanto, em certas circunstâncias, tais como idade avançada ou fator masculino severo,
recomendam-se procedimentos de fertilização assistida já
como primeira escolha (1).
FERTILIZAÇÃO IN VITRO
A descoberta e a introdução da fertilização in vitro (FIV)
para o tratamento da infertilidade foram os maiores passos
para a medicina reprodutiva atual, sendo que o primeiro
sucesso relatado ocorreu em 25 de julho de 1978, com o
nascimento de Louise Brown, na Inglaterra (2).
Desde 1978, o campo da medicina reprodutiva testemunhou grandes avanços científicos e tecnológicos dentro
das técnicas de Reprodução Assistida, ampliando a utilização dos métodos e possibilitando novos tratamentos (1).
A FIV foi desenvolvida inicialmente para o tratamento
de mulheres com obstrução nas tubas uterinas (local onde
normalmente ocorre a fertilização dos oócitos), mas, hoje,
além da obstrução tubária, ela é utilizada para solucionar
outros problemas que levam à infertilidade, como endometriose, falha na inseminação após três tentativas, ovário
policístico, entre outros.
A fertilização in vitro atualmente é conhecida também
como FIV convencional, devido à introdução de novas técnicas. A FIV convencional consiste na retirada dos oócitos,
localizados no interior dos folículos ovarianos, e na coleta
de sêmen do parceiro, para posterior interação entre os gametas masculino e feminino, possibilitando a fertilização
entre estes. Essas interações ocorrem no laboratório, fora
do corpo da mulher.
A fertilização in vitro consiste em uma técnica que envolve vários passos: a mulher inicia o tratamento com
medicamentos para estimulação ovariana, para que seus
ovários desenvolvam um número maior de folículos, o que
56
torna possível a obtenção de um número razoável de oócitos, aumentando, assim, a chance de sucesso no tratamento
do casal (3).
O processo de estimulação ovariana dura entre 10 e 15
dias, sendo necessário o acompanhamento do desenvolvimento dos folículos por meio de ultrassonografia transvaginal.
A coleta dos oócitos é feita entre 34 e 36 horas após a
administração do hormônio luteinizante (LH). Um anestesista aplicará medicações endovenosas (sedativos e analgésicos), que minimizarão o desconforto do procedimento.
A paciente deve comparecer à clínica em jejum e, após estar relaxada, o médico efetuará a punção dos ovários via
transvaginal, guiada pelo ultrassom. O líquido aspirado dos
folículos será entregue ao laboratório para análise. Após a
coleta dos oócitos, a paciente ficará em repouso na clínica
até que esteja completamente acordada. Depois, ela voltará
para casa. Poderá haver pequena perda de sangue via vaginal, decorrente da punção, bem como cólicas discretas.
O número de oócitos está relacionado ao número de
folículos que se desenvolveram em decorrência da medicação, bem como à acessibilidade dos ovários à punção. Mais
de 95% das punções resultam na obtenção de pelo menos
um oócito.
O embriologista examinará no laboratório o líquido
aspirado dos folículos e identificará os oócitos. Rotineiramente, são aspirados todos os folículos maduros, de modo
a captar o máximo de oócitos possível. Nem sempre o folículo contém oócito e, raramente, um folículo pode conter
mais de um.
O laboratório prepara a amostra seminal de forma a
selecionar os espermatozoides mais ativos para inseminar
os oócitos. Os espermatozoides são colocados em contato
com os oócitos em incubadora, que mantém a temperatura, o pH, o nível de umidade e a concentração de CO2.
Após 20 horas, o embriologista detectará, sob microscopia,
quais oócitos foram fertilizados. Aproximadamente 70%
dos oócitos são fertilizados. Essa taxa pode ser mais baixa
nos casais em que há fator masculino severo.
A transferência embrionária é geralmente realizada 48 a
72 horas após a coleta dos oócitos. Nesse momento, o médico irá conduzir um fino cateter através do colo, introduzindo os embriões na cavidade uterina. Esse procedimento é totalmente guiado por ultrassom, e a paciente poderá
visualizá-lo. Não é necessária anestesia para a transferência
de embriões.
Ainda, a chance está relacionada com a idade da mulher e, segundo parecer do Conselho Federal de Medicina
na Resolução de 2013, podem ser transferidos até no máximo 2 embriões em mulheres de até 35 anos. Em mulheres entre 35 e 40 anos, no máximo 3, e acima de 40, no
máximo 4 embriões. A transferência acima desses limites
torna maior a taxa de gestação múltipla, o que aumenta o
risco para a mulher e para os fetos. Os embriões excedentes podem ser congelados para transferência em outros
momentos. Após 14 dias da coleta dos oócitos, realiza-se
o teste de gravidez (4).
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 55-59, jan.-mar. 2015
A DOAÇÃO COMPARTILHADA DE ÓVULOS NO BRASIL SOB ENFOQUE DO DIREITO E DA BIOÉTICA Instituto Bioetica
OVODOAÇÃO
Nos últimos anos, com a padronização das técnicas de
FIV e com o desenvolvimento da ICSI, ficou claro que o
fator preditivo mais importante para o sucesso das técnicas
de Reprodução Assistida é a idade da mulher. Para pacientes abaixo de 30 anos, índices de sucesso de 30 a 50% por
oócito recuperado podem ser esperados. Para pacientes
acima de 40 anos, as taxas de sucesso variam de 5 a 15%.
Oócitos de mulheres jovens possuem grande potencial de
fertilização, e é esse potencial que é utilizado na ovodoação.
Nesse tipo de terapia, oócitos de uma mulher doadora
são fertilizados com o sêmen do marido da paciente (receptora), e os embriões formados são transferidos para o
útero da receptora. Os oócitos da doadora são estimulados
e recuperados utilizando a técnica de fertilização in vitro. A
ovodoação costuma ser compartilhada, ou seja, a doadora
também necessita realizar FIV para obter gestação, geralmente por fator masculino ou tubário, e doará metade dos
seus oócitos para uma receptora. Esse processo de doação
é anônimo, não havendo conhecimento entre os casais.
As doadoras são selecionadas pela clínica e apresentarão semelhança física com a receptora, como cor dos
olhos e cabelos, cor da pele, estatura e peso, bem como
similaridade de tipo sanguíneo. Também serão triadas para
problemas genéticos na família e, caso eles existam, serão
desligadas do programa de doação. Sempre são realizados
exames de triagem para infecções sexualmente transmissíveis, como hepatite B, sífilis, AIDS e hepatite C. Mulheres
com idade inferior a 35 anos, saudáveis, com histórico genético negativo, sem causa ovariana para infertilidade podem ser candidatas à doação de óvulos.
As melhores candidatas à recepção de oócitos são mulheres com falência ovariana, a qual pode ser devida a uma
variedade de causas, como radioterapia, quimioterapia, remoção cirúrgica dos ovários ou doenças que levem à falência ovariana; mulheres portadoras de genes para doenças
severas que querem diminuir a chance de transmissão para
a prole; mulheres cuja idade avançada diminuiu significativamente seu potencial de fertilidade; mulheres que tiveram
embriões de má qualidade em ciclos prévios de FIV.
Essa evolução médica trouxe importantes questões éticas relacionadas tanto à manipulação de moléculas como à
prevenção de tratamentos. Saber lidar com essas situações
e garantir a segurança das mulheres que se submetem à
doação compartilhada são tarefas que têm sido realizadas
pelo trabalho das clínicas de reprodução.
A DOAÇÃO DE ÓVULOS NA RESOLUÇÃO
2013/2013 DO CONSELHO FEDERAL
DE MEDICINA
Não há lei que regulamente a RA no Brasil. Embora
diversos projetos de lei federal sobre o tema tramitem no
Poder Legislativo, ainda não houve aprovação de nenhum.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 55-59, jan.-mar. 2015
Desta maneira, a regulamentação nacional desta prática se
dá pela deontologia médica desde 1992.
Atualmente, a RA no Brasil está regulamentada pela
Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina,
a qual tratou de uma série de questões que estavam em
aberto e deixavam espaço para questionamentos e dúvidas.
Vejamos como a doação de gametas, especificamente óvulos produzidos pela mulher, foi tratada nesta Resolução.
O capítulo IV, que disserta sobre o tema, tem no seu
item primeiro a determinação de que a doação nunca terá
caráter lucrativo ou comercial. Além disso, determina que
É permitida a doação voluntária de gametas,
bem como a situação identificada como doação
compartilhada de oócito RA, onde doadora e receptora, participando como portadoras de problemas de reprodução, compartilham tanto do
material biológico quanto dos custos financeiros
que envolvem o procedimento de RA. A doadora tem preferência sobre o material biológico que
será produzido.
Pode-se ver que, no item nove da Resolução
2013/2013 do CFM, a doação compartilhada é a atribuição dada à situação na qual se tem uma doadora e uma
receptora, ambas com problemas de reprodução que necessitam de tratamento. O termo “compartilhada” tem
referência ao fato de que serão compartilhados os custos
e o material genético.
Cabe mencionar que a doadora será mais nova e fornecerá para a mais velha seus óvulos. As duas estando de
acordo, as clínicas de Reprodução Assistida costumam
utilizar um termo que será assinado para garantir a segurança e provar o consentimento das partes. Entretanto,
questiona-se se esta prática, formalizada neste termo, pode
ser considerada uma espécie de contrato pelo Direito brasileiro.
A DOAÇÃO COMPARTILHADA
DE ÓVULO PODE SER CONSIDERADA
UM CONTRATO?
A doação, do ponto de vista jurídico, consiste em um
contrato. Desta forma, a natureza jurídica da doação compartilhada de óvulos seria um contrato de doação?
A doação, para o Direito, consiste em um dos mais importantes contratos pelo seu caráter, em regra, filantrópico
e generoso: “resulta da vontade desinteressada do doador
de praticar uma liberalidade”(5). Conforme o Código Civil
de 2002, no Artigo 538, doação consiste no “contrato em
que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. Importante mencionar que “Se trata de um contrato com peculiaridades
próprias no qual, em regra, apenas a uma das partes são
atribuídas obrigações”.(5)
57
A DOAÇÃO COMPARTILHADA DE ÓVULOS NO BRASIL SOB ENFOQUE DO DIREITO E DA BIOÉTICA Instituto Bioetica
O legislador manteve a opção legislativa do Código de
1916, definindo a doação como contrato, ou seja, negócio
jurídico bilateral resultante do consenso entre doador e donatário acerca de uma liberalidade que resulta na transferência de um patrimônio, bens ou vantagens (6).
Um importante requisito do contrato de doação é o
animus donandi, o qual requer a intenção de transferir a propriedade sem nenhuma contraprestação ou atribuição patrimonial (6).
A doação é um contrato unilateral, pois gera obrigações
a apenas uma das partes, o doador. Ademais, é gratuito,
pois todos os sacrifícios recaem sobre a pessoa do doador,
uma vez que o donatário apenas obtém vantagens. É consensual, pois basta a entrega do bem para o seu aperfeiçoamento, sendo suficiente o acordo de vontades (6).
O Artigo 538 mencionado refere-se à liberalidade,
como significado de uma ação altruística e desinteressada
de dar o próprio patrimônio. O objeto da doação é a prestação de dar coisa ou vantagens, desde que tenha expressão
econômica ou estimativa (7).
Existem diferentes espécies de doação. Dentre elas,
chama-se atenção a duas: a pura e a onerosa. A doação
pura e simples, que é o tipo de doação no qual o doador
não impõe nenhuma restrição ou encargo ao beneficiário,
nem subordina a sua eficácia a qualquer condição. O ato
constitui uma liberalidade plena (7).
Na doação onerosa, há um ônus, incumbência ou encargo imposto àquele a quem se faz uma liberalidade. A
pessoa que recebe um bem doado tem o ônus. É necessário
distinguir se o ônus é uma prestação moral ou econômica.
No primeiro caso, existe apenas a doação. Já no segundo
caso, há um negócio jurídico misto, distinto da compra e
venda (8).
Porém, mesmo neste tipo de doação, a liberalidade é
uma característica necessária. Desta forma, na prática médica da doação compartilhada não há liberalidade, uma vez
que se espera a contraprestação do pagamento do tratamento em troca dos óvulos doados. Assim, não podemos
considerar a doação compartilhada como um contrato de
doação.
Além disso, verificamos que não é possível enquadrar a
doação compartilhada em nenhuma modalidade contratual,
visto que um dos requisitos legais de validade dos contratos é o “objeto lícito, possível”, previsto no Artigo 104, II
do Código Civil.
Os óvulos produzidos pela mulher podem ser caracterizados, pelo Direito brasileiro, como bens extra commercium,
pois não pode haver a comercialização dos mesmos, uma
vez que consistem em parte do corpo que integra a personalidade humana. Este impedimento está regulamentado
no Artigo 199 da Constituição Federal de 1988. A exigência da coisa objeto do contrato ser um bem in commercio
“coincide certamente com a exigência de licitude do objeto
de todo negócio jurídico”(9).
58
A BENEFICÊNCIA COMO FUNDAMENTO
BIOÉTICO DA DOAÇÃO COMPARTILHADA
DE ÓVULOS
A obrigação de conceder benefícios, de prevenir e reparar danos e de pensar, ponderar os possíveis benefícios
contra os possíveis danos causados por uma ação são centrais à ética biomédica (10).
A beneficência possui um significado filosófico-moral
que quer dizer ‘fazer o bem’. É a manifestação da benevolência (11). Esse princípio está relacionado diretamente
com a prática médica, pois deve ser sempre uma regra norteadora, como afirma a tradição hipocrática: “usarei o tratamento para o bem dos enfermos, segundo minha capacidade e juízo, mas nunca para fazer o mal e a injustiça” (11).
Joaquim Clotet afirma: “a história da ética, que tem acompanhado a prática médica ao longo dos séculos, é em alguma medida
exercício da beneficência” (11).
O princípio da beneficência se fundamenta em uma série de regras morais, como proteger e defender os direitos
dos outros, evitar que os outros sofram danos, eliminar
as condições que causarão danos a outros, ajudar pessoas
inaptas e socorrer pessoas em perigo (10).
A beneficência pode aqui ser entendida como a capacidade do médico de procurar sempre agir de acordo com
o bem do paciente. Ainda assim, ela encontra seu limite
na dignidade individual intrínseca de cada ser humano,
usando-a de modo absoluto acabaria por aniquilar a manifestação da vontade, dos desejos e dos sentimentos dos
pacientes (11).
O princípio da beneficência orienta a prática dos médicos que trabalham com Reprodução Assistida, pois, apesar
da falta de regulamentação jurídica adequada, a praxe feita
da doação compartilhada visa somente ao melhor interesse
de ambas as partes e promover o bem, que é o grande desejo de engravidar.
Parece inadequado alegar a ilicitude de uma prática que
beneficia as pacientes envolvidas e, por esta razão, consiste
em situação prevista deontologicamente pelo meio médico.
Havendo o acordo das pessoas envolvidas e o benefício
médico a elas dedicado, basta para que o Direito não venha
impor empecilhos à realização de prática já consagrada.
CONCLUSÃO
As práticas médicas envolvidas nas técnicas de Reprodução Assistida são especialmente desafiadoras do ponto
de vista ético e jurídico. A doação compartilhada é uma
solução criada pela sociedade médica para se ter uma demanda de doadoras de óvulos e, ao mesmo tempo, facilitar
o acesso às técnicas de Reprodução Assistida para quem
não teria condições de custear o tratamento.
Não há instituto jurídico específico no qual a doação
compartilhada possa se enquadrar no Direito brasileiro
atual. Vimos que esta prática não pode ser considerada um
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 55-59, jan.-mar. 2015
A DOAÇÃO COMPARTILHADA DE ÓVULOS NO BRASIL SOB ENFOQUE DO DIREITO E DA BIOÉTICA Instituto Bioetica
contrato, pois os óvulos são bens fora do comércio. Entretanto, vimos também que essa prática contempla o dever
moral da beneficência. Assim, parece inadequado considerá-lo como prática ilícita.
O médico que promove a doação compartilhada no tratamento de Reprodução Assistida está visando ao melhor
interesse de ambas as partes e busca realizar o bem maior,
que é a gravidez.
Devemos ter em mente, conforme ensina Judith Martins-Costa, que o sistema jurídico é um sistema aberto (sem
pretensão de completude) composto por regras e princípios, e sua positivação é “um processo no qual intervêm
o legislador, o juiz e a comunidade” (12). Desse modo, a
comunidade médica, através de sua deontologia, pode ser
considerada fonte indireta do Direito.
É necessário que o Direito repense seus institutos jurídicos tradicionais a fim de propiciar construções dogmáticas atualizadas com as inovações médicas e as previsões
deontológicas, a exemplo da doação compartilhada de óvulos. O benefício do paciente deve orientar não somente a
prática médica, mas também a interpretação e a criação de
leis.
Torna-se oportuna a discussão sobre os aspectos éticos
e jurídicos da doação compartilhada, a fim de se pensar em
uma política legislativa que, eventualmente, inclua esta prática em projetos de lei sobre Reprodução Assistida.
REFERÊNCIAS
1. E.P. Passos, I.C. Almeida, , P.A.P. Fagundes. Reprodução assistida. p.
53-70. In: E.P. Passos, I.C. Almeida, , P.A.P. Fagundes. Quando a gravidez não acontece. Porto Alegre, ARTMED, 2007.
2. P.C.Steptoe, R.G.Edwards. Birth after reimplantation of human embryo.
Lancet, 1978.
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 55-59, jan.-mar. 2015
3. A.Balen The effects of ovulation induction with gonadotrophins on the ovary
and uterus and implications for assisted reproduction. Hum Reprod, 1995.
4. P.R. Brinsden. Textbook of in vitro fertilization and assisted reproduction.
UK, Parthenon Publishing Group, 1999,
5. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino. Contratos nominados II: contrato
estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato-mútuo). 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011/ (Biblioteca de
Direito Civil. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale; v.
4/ coordenação Miguel Reale, Judith Martins-Costa
6. Nelson Rosevald. Contratos em Espécie. In: Cezar Peluso (coord.).
Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 4ª ed. Rio de Janeiro, 2010: Manole/ coordenação Ministro Cezar Peluso.
7. Carlos Roberto Gonçalves. Direito civil brasileiro: contratos
unilaterais.10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
8. Luiz Guilherme Loureiro. Curso completo de direito civil. São Paulo: Método, 2009.
9. Antônio Junqueira de Azevedo. Negócio jurídico: existência, validade e
eficácia. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
10. Tom L. Beauchamp; James F. Childress. Princípios de ética biomédica.
São Paulo: Loyola, 2002.
11. Joaquim Clotet. Bioética: uma aproximação. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2003.
12. MARTINS-COSTA, Judith. Interfaces entre a bioética e o direito. In:
CLOTET, Joaquim. Bioética: meio ambiente, saúde pública, novas
tecnologias, deontologia médica, direito, psicologia, material genético humano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.
Este tópico foi elaborado com base em entrevista de médico especialista em reprodução humana, professor da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Dr. Eduardo
Pandolfi Passos. Vide: PASSOS, Eduardo Pandolfi. Entrevista. Porto
Alegre, 10/09/2014.
 Endereço para correspondência
Instituto Bioética
Av. Ipiranga 6681 P.50 - 703
90.619-900 – Porto Alegre, RS – Brasil
 (51) 3320-3679
 [email protected]
Recebido: 12/2/2015 – Aprovado: 3/3/2015
59
CARTA AO EDITOR
O Uso do Canabidiol em Pacientes com Epilepsia
Use of Cannabidiol in Patients With Epilepsy
José Augusto Bragatti1
Um terço dos indivíduos com epilepsia é refratário ao
tratamento com medicamentos anticonvulsivantes, mesmo
quando escolhidos corretamente, e utilizados em doses
adequadas e toleradas pelo paciente. Crises epilépticas não
controladas pioram a qualidade de vida, e são associadas a
comorbidades médicas, psicossociais, e cognitivas (1).
Recentemente, a maconha foi apontada como alternativa de tratamento, porém algumas questões ainda seguem
sem respostas, relativas ao papel do sistema canabinoide
na epilepsia, efeitos cognitivos, psicossociais e comportamentais dos compostos da maconha, e à sua eficácia no
tratamento da epilepsia (2).
Os dois principais princípios ativos da maconha são
o d9 - tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD).
Além desses, há quase 600 outros produtos, canabinoides
ou não, presentes na maconha, o que pode representar um
problema adicional, já que não há métodos seguros para a
separação de todos esses compostos. O CBD exerce suas
funções anticonvulsivantes através de mecanismos neuroprotetores, modulação do estresse, ou ainda do balanço excitação/inibição neuronal (3,4).
Por ser um princípio psicoativo, o THC aumenta os riscos para psicose e deficiência das funções executivas a longo
prazo em crianças menores de 15 anos. Já o CBD puro, que
não possui propriedades psicoativas, é um excelente candidato ao tratamento de epilepsias fármaco-resistentes (5).
No entanto, até o momento, existem apenas quatro
estudos sobre o uso de CBD em epilepsia humana, sem
nenhuma conclusão confiável. Em geral, uma dose de 200
a 300 mg por dia de CBD foi administrada a um pequeno número de pacientes, geralmente por curtos períodos
de tempo, impedindo uma avaliação adequada sobre a segurança desse composto a longo prazo. Desfechos como
“evidente melhora” ou “inalterado” também não contribuem para uma evidência científica acerca do CBD (6).
Há vários estudos em andamento para avaliar o CBD em
crianças com epilepsias de difícil controle, como a síndrome
de Dravet e a síndrome de Lennox Gastaut, com protocolos duplo-cegos, utilizando placebo, e bem desenhados, para
confirmar ou desmentir a segurança e o potencial anticonvulsivante do CBD (4,7). Lacunas sobre consistência, qualidade e segurança devem ser preenchidas antes de o CBD
ganhar legitimidade como opção terapêutica.
REFERÊNCIAS
1. Kwan P, Schachter SC, Brodie MJ. Drug-resistant epilepsy. N Engl
J Med 2011;365(10):919-26.
2. Szaflarski JP, Martina Bebin E. Cannabis, cannabidiol, and epilepsy
- from receptors to clinical response. Epilepsy Behav 2014;41C:277282.
3. Gonzalez-Reyes LE, Ladas TP, Chiang CC, Durand DM. TRPV1
antagonist capsazepine suppresses 4-AP-induced epileptiform activity in vitro and electrographic seizures in vivo. Exp Neurol 2013;
250:321-32.
4.Devinsky O, Cilio MR, Cross H, Fernandez-Ruiz J, French J, Hill
C, Katz R, Di Marzo V, Jutras-Aswad D, Notcutt WG, Martinez-Orgado J, Robson PJ, Rohrback BG, Thiele E, Whalley B, Friedman D. Cannabidiol: pharmacology and potential therapeutic role
in epilepsy and other neuropsychiatric disorders. Epilepsia 2014;
55(6):791-802.
5. Cilio MR, Thiele EA, Devinsky O. The case for assessing cannabidiol in epilepsy. Epilepsia 2014; 55(6):787-90.
6. Gloss D, Vickrey B. Cannabinoids for epilepsy. Cochrane Database
Syst Rev. 2014;3:CD009270.
7. Oakley JC, Kalume F, Catterall WA. Insights into pathophysiology
and therapy from a mouse model of Dravet syndrome. Epilepsia
2011; 52:59-61.
 Endereço para correspondência
José Augusto Bragatti
Praça Araé - 59
91.900-530 – Porto Alegre, RS – Brasil
 (51) 2101-8520
 [email protected]
Recebido: 2/2/2015 – Aprovado: 3/2/2015
1 Doutor em Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Chefe da Unidade de Neurofisiologia Clínica do Hospital
de Clínicas de Porto Alegre.
60
Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 60, jan.-mar. 2015

Documentos relacionados