CIRCO-TEATRO ATRAVÉS DOS TEMPOS: CENA E ATUAÇÃO NO
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CIRCO-TEATRO ATRAVÉS DOS TEMPOS: CENA E ATUAÇÃO NO
FERNANDA JANNUZZELLI DUARTE CIRCO-TEATRO ATRAVÉS DOS TEMPOS: CENA E ATUAÇÃO NO PAVILHÃO ARETHUZZA E NO CIRCO DE TEATRO TUBINHO CAMPINAS 2015 ii UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Artes FERNANDA JANNUZZELLI DUARTE CIRCO-TEATRO ATRAVÉS DOS TEMPOS: CENA E ATUAÇÃO NO PAVILHÃO ARETHUZZA E NO CIRCO DE TEATRO TUBINHO Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Mestra em Artes da Cena, na Área de Concentração Teatro, Dança e Performance. Orientador: PROF. DR. MARIO ALBERTO DE SANTANA. ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA FERNANDA JANNUZZELLI DUARTE E ORIENTADA PELO PROF. DR. MARIO ALBERTO DE SANTANA. ______________________________ ASSINATURA DO ORIENTADOR CAMPINAS 2015 iii iv v vi RESUMO Esta pesquisa visa traçar algumas considerações acerca do fenômeno conhecido como circo-teatro, sob o viés do trabalho do ator. Propôs-se, como recorte de estudo, a descrição de alguns elementos da encenação e interpretação de duas companhias circenses: o CircoTeatro Pavilhão Arethuzza, uma das companhias de circo-teatro mais bem sucedidas do início do século XX e que encerrou suas atividades na década de 1960, e o Circo de Teatro Tubinho, um dos maiores representantes do circo-teatro na atualidade. Partindo do fato de que o espetáculo circense é sempre múltiplo e agregador de variadas linguagens artísticas, buscou-se, com essa pesquisa, compreender a arte de ator dos artistas dessas duas companhias e o modo como estes organizavam e organizam seus trabalhos. Afirma-se que a teatralidade, em seus mais variados formatos, sempre esteve presente no espetáculo circense desde sua origem “moderna” com Philip Astley, no século XVIII, e que, portanto, o circo-teatro não é a única, mas sim uma das diversas formas que a teatralidade circense assumiu ao longo dos anos. Afirma-se também que, em termos pedagógicos, o circo-teatro é uma escola formativa, com metodologia, princípios e caminhos próprios, constituindo um tipo de teatro tão relevante quanto o teatro tido como oficial. Assim sendo, essa pesquisa inspirada no fazer dos artistas circenses pode auxiliar o fazer de outros artistas, não oriundos desta escola e deste fazer teatral. E essa transposição é possível, pois, em última instância, todos os verdadeiros artistas buscam a mesma finalidade: a troca viva e verdadeira com seu público. Palavras-chave: Circo. Circo-teatro. Interpretação. Pavilhão Arethuzza. Circo de Teatro Tubinho. vii viii ABSTRACT The purpose of this study is to set some considerations around the phenomenon known as drama-circus, under the scope of the acting work. It has been set out, as the point of study, the description of some acting and performing elements from two Circus Companies: Circo Teatro Pavilhão Arethuzza, one of the most successful drama-circus companies from the beginnig of the 20th century, which has shut down its activities in the 60‟s, and Circo de Teatro Tubinho, one of the greatest representatives of the drama-circus nowadays. Starting from the fact that a Circus show is always assorted and somatic of several artistic languages, this research has pursued the understanding of the art of the actor of the artists from these two companies and the way they organized and still organize their work. It has been stated that the theatrical performance, in its most diferente ways has always been presente in a Circus Show since its “modern” origin, done by Philip Astley, in the 18th century, and, therefore, the drama-circus is not the only one, but one of the several ways that circus theatrical performance has taken on along the years. It has been also asserted that, in pedagogical terms, the drama-circus is a ladder school, with its own methodology, principles and ways, composing a type of theater as relevant as the one known as oficial. Therefore, this study, inspired on the circus artist performance could also support the other artists performance, whose are not native of this theatrical performance. This transposition is achievable, because, as a last resort, all the real artists search the same goal: a vivid and truthful exchange with their audience. Key words: Circus. Drama-circus. Acting. Pavilhão Arethuzza. Circo de Teatro Tubinho. ix x SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 1 1. A TEATRALIDADE CIRCENSE ............................................................................... 17 1.1 Reflexões iniciais acerca do trabalho do ator ............................................................. 17 1.2 A origem do espetáculo circense “moderno” ............................................................. 35 1.3 As teatralidades circenses ........................................................................................... 42 1.4 Uma das vertentes da teatralidade circense: o circo-teatro......................................... 50 1.5 Relação com o público e a arte de agradar ................................................................. 65 2. O PAVILHÃO ARETHUZZA ..................................................................................... 77 2.1 Trajetória .................................................................................................................... 77 2.2 Processo de formação/socialização/aprendizagem no Pavilhão Arethuzza ............... 91 2.3 A primeira parte do espetáculo ................................................................................... 98 2.4 A segunda parte do espetáculo ................................................................................. 122 2.4.1 Ensaio e ensaiador ............................................................................................. 122 2.4.2 Repertório .......................................................................................................... 131 2.4.3 O ponto .............................................................................................................. 137 2.4.4 Elementos da encenação .................................................................................... 141 2.4.5 Triangulação ...................................................................................................... 157 2.4.6 Tipologia ............................................................................................................ 162 3. O CIRCO DE TEATRO TUBINHO .......................................................................... 191 3.1 Trajetória .................................................................................................................. 191 3.2 Processo de formação dos artistas do Circo de Teatro Tubinho............................... 217 3.3 Repertório ................................................................................................................. 245 3.4 Elementos da encenação ........................................................................................... 265 3.5 Ensaios e processos de criação ................................................................................. 282 3.6 O palhaço Tubinho ................................................................................................... 310 3.7 Os escadas................................................................................................................. 344 3.8 Cena e improvisação................................................................................................. 355 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 381 xi 5. REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 403 6. ANEXOS .................................................................................................................... 411 xii Ao saudoso professor Rubens Brito e ao querido professor Luiz Monteiro. E também à Santina Jannuzzelli, Nery Duarte, Terezinha Duarte e N.B, com amor. xiii xiv A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. Manoel de Barros xv xvi AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Valência e Francisco, que se dedicaram por completo ao projeto mais audacioso e complexo da vida de qualquer pessoa: criar um filho. À minha irmã Flávia, um dos seres humanos mais sensíveis que já conheci. À vocês, meu amor eterno e incondicional. À todos os meus familiares. À Rodrigo Mallet pelas incontáveis conversas e reflexões sobre o circo e por toda ajuda com esta pesquisa. Mas, sobretudo, por me mostrar diariamente o lado leve da vida e por todo o companheirismo e amor. Ao meu orientador, Mario Santana, pelo incentivo, dedicação, empenho, amizade e risadas. À Aline Olmos, minha dupla companhia, por compartilharmos um mesmo sonho risonho, pela amizade, confiança e aprendizados. Aos “Damiões” Carolina, Lara, Rafael, Rodrigo, Ricardo, Presto e Sun, pela convicção de que “todo artista tem de ir onde o povo está”. Aos companheiros do Encontro Geraldo Riso, Ésio, Joana, Ivens, Guga, Helena, Duba e Thiago, por me mostrarem que a união faz a força e faz o riso ser ainda mais prazeroso. Aos amigos Andressa Nishiyama, Camila Morosini, Danielly Oliveira, Gabriel Cruz, Gabriel Tonelo, Gabriela Guinatti, Janaína Iszlaji, Lenny Alpízar, Mariá Guedes, Marina Regis, Moira Junqueira (e Olívia), Rafael Ary, Renata Wassall, Tatiane Santoro, Vitor Poltronieri, pelos aprendizados, risadas e afeto. Às amigas de Itajubá, Anna, Carolzinha, Marina, Byanca e Clara, pelos longos anos de amizade verdadeira, que resiste à distância e diferentes caminhos que a vida nos leva. À Laíza Dantas, Breno Tavares , Bruno Spitaletti, Rodrigo Pocidônio e Paula Hemsi, os eternos “palhacitos”, pelo início da jornada em conjunto. À todos os colegas e professores da graduação em Artes Cênicas da Unicamp, em especial ao professor Roberto Mallet por todos os ensinamentos. Aos professores Luiz Monteiro e Rubens Brito, mestres que me apresentaram ao universo do circo e do teatro brasileiro. xvii À Helder, Luiz, Bento, Benê, Dalvina, Letícia, Vivien, Joice, Rodolfo, Vinícius, Andrea e demais funcionários do Instituto de Artes. À Fernando Neves, Santoro Junior e sua esposa Anna Maria Santoro, pela disponibilidade e generosidade. À toda família do Circo de Teatro Tubinho, em especial à Zeca e Angelita, por toda a generosidade e carinho com o qual me acolheram. E à Ana Dolores, Débora Ignácio, Morgana Lunardi e Lucélia Reis, amigas que levarei por toda a vida. À professora Grácia Navarro, pela enorme contribuição durante o exame de Qualificação desta pesquisa. À Erminia Silva, sempre solícita e gentil ao responder minhas dúvidas e questionamentos. E também aos demais entrevistados durante a pesquisa ainda não citados: Tiche Vianna e Wanderley Martins. À FAPESP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por viabilizar esta pesquisa. xviii INTRODUÇÃO “O povo sabe exprimir artisticamente coisas profundas com simplicidade. Certos intelectuais somente conseguem exprimir com ferrugenta complexidade ideias profundamente vazias”. Bertholt Brecht Esta dissertação de Mestrado se configura como o aprofundamento da pesquisa que desenvolvo desde 2007 acerca da manifestação teatral conhecida como circo-teatro. Proponho, então, um estudo acerca de alguns elementos da encenação e interpretação de duas companhias circenses: o Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza, que foi uma das companhias de circo-teatro mais bem sucedidas do início do século XX e que encerrou suas atividades na década de 1960, e o Circo de Teatro Tubinho, um dos maiores representantes do circo-teatro na atualidade. Dessa forma, ao longo do texto, o leitor irá se deparar com o registro das reflexões e inquietações de uma atriz/pesquisadora acerca de questões relacionadas ao trabalho do ator, destinadas, portanto, principalmente a outros atores. Meus primeiros contatos com a teatralidade circense se deram em 2007. Eu estava no primeiro ano da Graduação em Artes Cênicas, na Universidade Estadual de Campinas e “ouvi falar” pela primeira vez que, antigamente, muitos circos brasileiros apresentavam peças de teatro, sendo que a cada noite se encenava um espetáculo diferente. Ensinaram-me também que ainda existiam algumas dessas companhias e que eram chamadas de circo-teatro. Quem me apresentou a este universo foi o saudoso e querido professor Rubens Brito, a quem devo meu eterno respeito e gratidão. Rubinho – como era carinhosamente chamado – contou, em uma de suas aulas da disciplina História do Teatro: Formas Espetaculares do Teatro no Brasil, sobre sua experiência com a companhia da qual fazia parte na juventude, o Grupo de Teatro Mambembe, e como este fundamentou seu trabalho na pesquisa acerca das representações teatrais nos circos: O Grupo de Teatro Mambembe, fundado no início de 1976 por Carlos Alberto Soffredini e mais dezesseis artistas, estreara, em novembro desse mesmo ano, com A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança. O 1 espetáculo foi criado especialmente para ser representado nas praças públicas da capital e do interior do Estado de São Paulo (na época, ainda não era usual o emprego do termo „teatro de rua‟). Entre a reunião do elenco e a estreia, o grupo realizou uma intensa pesquisa nos circos-teatros, os quais se apresentavam na periferia da capital, em especial no Circo-Teatro Bandeirantes, o maior e o mais bem equipado de todos. É no circo-teatro que o Mambembe encontra os elementos essenciais do espetáculo popular (BRITO, 2006: 79). Após esse primeiro contato com o circo-teatro através de Rubinho, intuí que residia nessa manifestação teatral, que até então não fazia parte do meu horizonte cultural, algo que poderia me interessar. (Confesso que na frase anterior tentei exprimir, de maneira mais contida, o que aconteceu de fato: simplesmente uma paixão à primeira vista). Ao mesmo tempo, no segundo semestre de 2007, eu e mais quatro colegas de turma, Breno Tavares, Bruno Spitaletti, Laíza Dantas e Rodrigo Pocidônio, começamos a realizar, por iniciativa própria e despretensiosa, encontros extracurriculares à grade do curso, nos quais investigávamos aspectos relacionados à arte do palhaço. Neste início de trabalho éramos “guiados” por Bruno e Breno, os únicos que já haviam realizado cursos sobre a temática no Estúdio Nova Dança, em São Paulo. Com o tempo nos consolidamos como um grupo de pesquisa teatral – existente até hoje – que passou a se chamar Academia de Palhaços. Foi então que o professor Márcio Tadeu, em sua disciplina Formas espetaculares no Ocidente/Oriente, propôs como trabalho final a elaboração de uma pesquisa sobre algum segmento teatral que nos despertasse interesse. Desse modo, resolvi conhecer melhor aquele tal de “circo-teatro”, seguindo minha intuição e também a linha de trabalho ligada ao circo que estava começando a desenvolver com a Academia de Palhaços. Por coincidência – ou providência – descobri que um curso intitulado “A interpretação no circo-teatro” seria ministrado em São Paulo, na Casa de Cultura Amácio Mazzaropi, aos sábados à tarde durante todo o segundo semestre de 2007. O ministrante seria o ator e diretor Fernando Neves, pertencente à sexta geração da família circense Viana-Santoro-Neves, do Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza. Fernando Neves passou a infância no circo da sua família e viu, ainda criança, este encerrar suas atividades. Depois de adulto, durante anos renegou sua origem circense, 2 apesar de reafirmar sua veia artística ao formar-se pela EAD – Escola de Arte Dramática –, da Universidade de São Paulo. Porém, anos mais tarde, Neves resolveu resgatar a história de sua família, passando a compreender a potência criativa existente na teatralidade circense. Desde então, desenvolve, há mais de dez anos, uma profunda pesquisa acerca do circo-teatro, juntamente com a companhia paulistana Os Fofos Encenam, da qual faz parte como ator e diretor. Além de uma contundente pesquisa teórica – ainda não publicada –, Neves realizou com Os Fofos Encenam a remontagem de diversas peças que faziam parte do repertório do Pavilhão Arethuzza: a alta comédia A Mulher do Trem (2003), o drama Ferro em Brasa (2006), a burleta caipira Vancê não viu minha fia? (2013), o melodrama policial A ré misteriosa (2013), o drama religioso A canção de Bernadete (2013) e a chanchada Dar corda pra se enforcar (2013)1. Partindo da tradição circense de sua família, Neves desenvolve um olhar histórico sobre o circo-teatro, porém colocando-o sob a luz da contemporaneidade. Digo isso porque algumas companhias na atualidade que, assim como Neves, propõem o resgate da tradição do circo-teatro, muitas vezes se restringem a reproduzir as peças exatamente como eram encenadas há décadas, fazendo com que estas pareçam “peças de museu”. Dessa forma, ao recriar parte da tradição circense de sua família, Neves engendra uma poética e uma estética profundamente baseadas em sua herança teatral, mas que possuem, ao mesmo tempo, algo de inovador e original. Fernando Neves foi, então, através do curso na Casa de Cultura Amácio Mazzaropi, a minha primeira grande referência a respeito da teatralidade circense como um todo e, mais especificamente, do circo-teatro. Além deste curso, extremamente importante para minha formação, desde 2007 participei de diversos outros cursos, palestras e mesas redondas, acerca tanto da manifestação teatral do circo-teatro quanto da figura do palhaço, com nomes como Dirce Militello, Erminia Silva, Neyde Veneziano, Mario Bolognesi, Daniele Pimenta, Antônio 1 A classificação das peças nestes subgêneros foi realizada pelo próprio Fernando Neves e a companhia Os Fofos Encenam, seguindo a tradição da família Viana-Santoro-Neves, do Pavilhão Arethuzza. 3 Santoro Junior, tio de Fernando Neves e apelidado de Toco, Leris Colombaioni, Ricardo Puccetti, Ésio Magalhães, Fernando Sampaio e Philippe Gaulier. Em 2008, a Academia de Palhaços iniciou um estudo específico – que se tornou a base de seu trabalho – sobre o palhaço de picadeiro da tradição circense brasileira, sob a orientação do querido professor de Técnicas Circenses da Graduação em Artes Cênicas, Luiz Monteiro. Mais uma vez eu escolhia o circo como o caminho a ser trilhado para a construção de minha técnica pessoal e trabalho artístico. Ainda em 2008, Fernando Neves, a convite de Luiz Monteiro, ministrou no Departamento de Artes Cênicas da Unicamp um curso análogo ao que havia ministrado na Casa de Cultura Amácio Mazzaropi. Também participei deste curso e, através deste segundo contato com Fernando Neves, me surgiu a ideia de dar continuidade a minha pesquisa, dessa vez sob os formatos acadêmicos. Assim sendo, no ano de 2009 formalizei todos os estudos desenvolvidos até então através da pesquisa de Iniciação Científica, financiada pelo CNPq, intitulada “O que os olhos veem o coração sente – O trabalho do ator do espetáculo circense à cena teatral”, sob a orientação da Profª. Drª. Sara Lopes. Esta Iniciação Científica, que verticalizava os estudos sobre a questão da interpretação no circo-teatro, contava com o desenvolvimento de uma frente prática de pesquisa no primeiro semestre de 2010. Para tanto, propus a criação de um grupo de estudos que aliei à Academia de Palhaços; estava aberta, então, a segunda frente de trabalho do grupo: o circo-teatro. Para o desenvolvimento de nossas atividades obtivemos o apoio da Faepex – Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e à Extensão da Unicamp – e contamos com a orientação do próprio Fernando Neves, que gentilmente aceitou o meu convite de trabalho. Em 2010, na convivência com Fernando Neves conheci o Circo de Teatro Tubinho, uma das poucas companhias de circo-teatro que continuam a itinerar na atualidade pela região Sudeste. Em várias oportunidades visitei a companhia e conferi de perto como se configuravam os espetáculos de circo-teatro desta trupe, liderada por José 4 Amilton Pereira Junior, de nome artístico Pereira França Neto, porém mais conhecido entre os seus pelo apelido Zeca e entre o público pelo próprio nome de seu palhaço, Tubinho 2. Ainda em 2010, Zeca e Fernando Neves foram os convidados do II CESC Ciclo de Estudos sobre o Circo, com o tema “É causo de palhaço!”, realizado no Departamento de Artes Cênicas da Unicamp, sob a organização do professor Luiz Monteiro e da Academia de Palhaços. Dando continuidade ao trabalho iniciado com o grupo de estudos da pesquisa de Iniciação Científica, no segundo semestre de 2010, a Academia de Palhaços encenou, como montagem de formatura do curso de Artes Cênicas, o espetáculo O Mistério Bufo – Um retrato heroico, épico e satírico da nossa época, de Vladimir Maiakovski, com direção também de Fernando Neves. Esta montagem foi realizada através do PICC (Projeto Integrado de Criação Cênica) da disciplina Estudos Teatrais IV: Poéticas Cênicas, com orientação da Profª. Drª. Isa Kopelman e era baseada na linguagem criada por Fernando Neves a partir das referências teatrais de sua família. Em 2011 continuei a pesquisa acerca das manifestações teatrais circenses e do palhaço de picadeiro, porém não mais com a Academia de Palhaços. Neste recomeço, eu e outra colega de Graduação, Aline Olmos, fundamos, em 2012, a Dupla Cia, que hoje integra o coletivo que organiza o Encontro Geraldo Riso, juntamente com os grupos Barracão Teatro, Cia Suno, Circo Caramba e Família Burg, todos sediados em Barão Geraldo – Campinas. Estes grupos, que possuem em comum a pesquisa acerca da figura do palhaço e, consequentemente, a vontade de fazer rir, vêm desenvolvendo diversos projetos artísticos que cruzam suas trajetórias e fortificam o movimento teatral e cultural campineiro. Finalmente, em 2012, após estar totalmente afetada pelo tema, decidi investigar, nesta pesquisa de Mestrado em Artes da Cena, os procedimentos envolvidos na criação da cena e no modo de atuar dos artistas circenses que apresentavam e apresentam peças teatrais nos circos itinerantes de lona ou pavilhão. Porém, considerando a ideia de 2 Entre todos esses nomes – o verdadeiro, o artístico, o apelido e o nome do palhaço – optei por usar, daqui por diante nessa dissertação, o apelido “Zeca”. 5 que “quanto mais se restringe o campo, melhor e com mais segurança se trabalha” (ECO, 1989: 10), era necessário que eu escolhesse um recorte ainda mais específico. Para tanto, delimitei a pesquisa à investigação de alguns elementos da encenação e interpretação das duas companhias circenses com as quais havia estabelecido contatos mais profundos ao longo de minha trajetória artística e acadêmica: o Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza e o Circo de Teatro Tubinho. Além disso, a escolha por estas duas companhias também se deu pelo fato de já existir um diálogo entre elas desde 2010, quando Fernando Neves redirigiu, a convite de Zeca, um dos espetáculos do Circo de Teatro Tubinho, o melodrama Maconha, o veneno verde – que fazia parte do repertório de diversos circos do século passado e que passou a se chamar O seu único pecado. Esta empreitada fez parte de um projeto de reelaboração e releitura de seis peças do repertório do Circo de Teatro Tubinho e foi financiada pela Petrobrás, através da lei de incentivo à Cultura do Ministério da Cultura e Governo Federal. Ao definir, então, o recorte para esta pesquisa, a primeira questão que me surgiu e que acabou por me nortear foi o fato de que, ao pesquisar questões referentes ao trabalho do ator circense, o meu “objeto de estudo” era constituído, na verdade, por matéria viva, por seres humanos. Isto me leva a enunciar o foco desta dissertação, portanto, como sujeito de estudo, ao invés de objeto, pois no campo da configuração artística, busco compreender como sujeitos/ artistas/ seres humanos representavam e representam encenações teatrais nestas duas companhias circenses. Escolhidos os sujeitos de estudo, parti, então, parafraseando o Grupo de Teatro Mambembe, à procura “„dos que têm experiência‟, não com o avental esterilizado e as luvas de borracha do pesquisador, mas com o cuidado e o respeito de quem está lidando com o que desconhece”3. Destaco, então, primeiramente, que o circo de números de variedades que povoa, hoje, o imaginário das gerações mais recentes – e mais próximas da minha realidade 3 Programa da peça A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, do Grupo de Teatro Mambembe em parceria com o SESC – Serviço Social do Comércio – de São Paulo. Programa encontrado nos anexos da tese de Livre Docência “Teatro de rua: princípios, elementos e procedimentos” do professor Rubens Brito (2004). 6 de classe média do Sudeste do Brasil – constitui, na verdade, uma das diversas formas e configurações que o espetáculo circense assumiu ao longo dos anos. Se fizermos uma retrospectiva da história do espetáculo circense no Brasil veremos que, na primeira metade do século XX, grande parte dos circos dividia a função em duas partes e que estes circos eram chamados de circos-teatro. Na primeira parte do espetáculo eram executados, geralmente no picadeiro, os números de variedades (mencionados anteriormente e que povoam o imaginário coletivo), como malabares, trapézio, acrobacias, mágica e entradas de palhaços. Além disso, era muito comum a apresentação de números de canto e de dança – estes últimos conhecidos como bailados –, a presença de convidados especiais, como cantores de sucesso da época, e até mesmo a execução de sorteios, bingos e competições de luta livre, boxe, capoeira e partidas de futebol feminino. Em seguida, na segunda parte do espetáculo, os mesmos artistas que haviam se apresentado na primeira parte retornavam à cena para representar, sobre um palco, peças de teatro dos mais variados gêneros. Dessa forma, além do termo “circo-teatro” ser usado para nomear as próprias companhias circenses que organizavam o espetáculo da forma descrita anteriormente, a maior parte da bibliografia também nomeia como “circo-teatro” a possível estética ou linguagem desenvolvida nas representações teatrais apresentadas, a partir do início do século XX, nos palcos dos circos brasileiros. Há ainda um desdobramento desta nomenclatura: segundo Mario Bolognesi (2010), as companhias de circo-teatro da atualidade – como a própria companhia de Tubinho –, que se dedicam apenas à representação teatral, sem a apresentação da primeira parte de variedades, preferem ser chamadas de circos de teatro. Os circos-teatro permaneciam semanas e até meses numa mesma cidade e, para que se mantivessem financeiramente, era necessário que a cada dia se representasse uma nova peça. Cada circo contava, portanto, com um imenso repertório de peças – conhecido 7 entre os circenses como “baú da família” – que eram levadas4 com o objetivo maior de agradar5 a plateia, que voltaria na noite seguinte e, assim, manteria o circo vivo. Desse modo, as companhias circenses, ao longo dos anos, representaram peças pertencentes a diversos gêneros teatrais, em encenações que amalgamavam as mais variadas linguagens e estéticas artísticas. A multiplicidade de gêneros e estéticas prevaleceu e uma mesma companhia podia encenar da mais simples chanchada a tragédias como Otelo, de William Shakespeare e óperas como Tosca, de Giacomo Puccini, por exemplo. Para tornar possível, portanto, a representação de uma peça diferente a cada dia e a construção das personagens por parte dos atores – isso tudo sem perder o público de vista e levando em conta suas particularidades –, os artistas circenses desenvolveram uma série de técnicas e recursos que configuram modos de encenação e de interpretação extremamente funcionais e com alto teor de teatralidade. Esta pesquisa almeja, então, o reconhecimento e a descrição de algumas dessas técnicas de composições cênica e interpretativa que constituem este modo particular de manifestação teatral, mantida viva até hoje por algumas companhias circenses que continuam a itinerar pelo país. Além de toda a multiplicidade de gêneros e estéticas, já citada anteriormente, se voltarmos ainda mais no tempo e chegarmos ao século XIX, veremos que, no Brasil, mesmo antes da divisão do espetáculo em duas partes, as companhias já representavam diversas encenações teatrais, no picadeiro ou em pequenos tablados, as quais davam o nome genérico de pantomimas (SILVA, 2007). Se retrocedermos ainda mais veremos que, na verdade, a representação teatral sempre esteve presente nos circos, desde a sua origem “moderna” com Philip Astley, na Europa. Isto porque o espetáculo pensado por Astley previa, além das exibições equestres, a participação de artistas oriundos dos teatros de feira europeus; artistas estes que dominavam as mais variadas linguagens artísticas, dentre elas, a arte teatral. Dessa forma, desde Astley eram representados nos circos hipodramas e mimodramas. 4 “Levar uma peça” é um termo recorrente entre os circenses. Durante as visitas ao Circo de Teatro Tubinho por diversas vezes ouvi frases como “Qual comédia que vai ser levada hoje?”. 5 Este termo, que será detalhado adiante, também é constantemente usado pelos próprios circenses e será usado, também, ao longo dessa dissertação. 8 Além de todas estas questões, é inegável que mesmo as apresentações ligadas à demonstração de habilidades e destrezas físicas, bem como os números de canto e bailados, também possuem elementos de teatralidade em suas composições. Nesses casos, o virtuosismo do artista é evidenciado e enaltecido pelos elementos de teatralidade explorados na composição de sua apresentação. Assim sendo, fica claro que a teatralidade 6, sob os mais variados formatos, sempre esteve presente no espetáculo circense “moderno” e que, portanto, o circo-teatro não é a única, mas sim uma das diversas formas que a teatralidade circense assumiu ao longo dos anos. E ainda mais: segundo Erminia Silva (2010), é difícil pensarmos até no “circoteatro” como um gênero único, pois este se caracteriza como um movimento múltiplo, que dialoga diretamente com a realidade do local onde o circo se encontra, fator este que determina, portanto, a configuração de diferentes tipos de espetáculos, que possuem alguns elementos em comum e, ao mesmo tempo, outras tantas especificidades. Dessa forma, A história polifônica e polissêmica do circo brasileiro nos autoriza mais a falar em teatro no circo apresentando todas as modalidades possíveis de representações teatrais do que em circo-teatro como um gênero único, ou pelo menos dois, como se tem definido: comédia e (melo)drama. A formação do artista circense em cada período histórico e dentro do complexo significado do conceito de teatralidade circense englobou as mais variadas formas de expressões artísticas constituintes do espetáculo circense. Uma das principais características desse fazer circense de todo o século XX, até pelo menos 1950, era sua contemporaneidade com a diversidade de gêneros teatrais, musicais e da dança produzidos, o que garantia presença nos palcos/picadeiros diálogo e mútua constitutividade que estabeleciam com os movimentos culturais da sua época. Com essas características de contemporaneidade e de sinergia com seu tempo e culturas locais, vivendo o próprio teatro que se fazia na sua época, como pensar a história teatral circense como produção de uma única forma de representação e gênero único? (SILVA, 2010: 221). Além de toda multiplicidade acima citada, todo espetáculo de circo está pautado sobre a explícita premissa de agradar o espectador. Este termo é tão importante e tão utilizado entre os circenses que percebi que ele deveria não só estar presente nesta dissertação, como também deveria ser investigado e questionado mais a fundo. 6 Este tema será tratado com maior profundidade no capítulo 01. 9 Dessa forma, ao longo do texto, dissertarei sobre este termo que, a meu ver, representa fundamentalmente o objetivo final de qualquer espetáculo teatral, seja ele circense ou não, pois agradar tem a ver com algo de fato se passar entre nós. Ou seja, tem a ver com o fenômeno teatral realmente acontecer. E, no caso do circo itinerante de lona, que trava uma relação direta com a arrecadação por bilheteria, o maior termômetro de que “ocorreu teatro” é o espectador sair do espetáculo certo de que voltará na noite seguinte. Ademais, no circo, esse algo se passar entre nós está ligado a várias instâncias que vão além do espetáculo, pois este é apenas um dos elementos inseridos na relação ritual que o circo constrói com a cidade onde se estabelece. Dessa maneira, o circo conforma-se à realidade, aos desejos e necessidades de cada localidade, o que faz com que as encenações de um circo do Nordeste, por exemplo, sejam diferentes das encenações de um circo do Sul, assim como o espetáculo apresentado para o público de uma metrópole seja diferente do apresentado numa cidade do interior. Ficará claro, portanto, que agradar não deve ser visto como algo pejorativo, mas sim como o nomeador de um conjunto de elementos estruturais desse ofício, no qual os artistas circenses sempre dialogam, agregam e retrabalham os múltiplos movimentos culturais de sua época. Desse modo, o espetáculo circense estabelece uma estreita conexão com o imaginário do espectador que o assiste e destina-se ao divertimento, no melhor sentido da palavra, de um público extremamente diversificado, constituído por diversas classes sociais e níveis intelectuais. Devido a esta heterogeneidade de gênero, estética e público, o leitor perceberá que não classificarei o espetáculo circense nas usuais categorias “cultura erudita”, “cultura popular” e “cultura de massa”. Creio, assim como a pesquisadora Erminia Silva, que os circenses (...) apreendiam, recriavam, produziam e incorporavam referências culturais múltiplas e eram assistidos pelos trabalhadores, intelectuais, artistas e a população mais abastada. Desta forma, o circo não será analisado a partir de conceitos como popular/erudito, pois os mesmos não dão conta da multiplicidade e do intercâmbio de relações culturais, sociais e artísticas que envolvia (SILVA, 2007: 21). 10 Durante minhas estadias no Circo de Teatro Tubinho – parte constituinte da pesquisa de campo proposta nessa pesquisa – pude ver de perto como a afirmação anterior de Erminia continua sendo válida também para esta companhia da atualidade. Porém, apesar de não classificar o espetáculo de circo nas categorias “erudito”, “popular” e “de massa” – por este trabalhar com as mais diversas influências e se destinar às mais variadas camadas da população –, acredito que o circo-teatro deve ser compreendido como uma manifestação artística fundamentalmente comercial, sendo que este termo não deve ser visto como algo pejorativo, mas sim como a afirmação da arte enquanto profissão. Além disso, outros termos que geram grandes discussões na atualidade, acarretadas por uma disputa política e de saberes, são os que procuram classificar os circos como “tradicional”, “novo” e “contemporâneo”. Dentro destas categorias, o Pavilhão Arethuzza e o Circo de Teatro Tubinho, apesar de estarem separados temporalmente e possuírem características muito específicas, possuem em comum o fato de serem considerados atualmente como circos “tradicionais”7. Neste estudo utilizarei o termo “tradicional” partindo do significado que este tem para os próprios circenses e que diz respeito à formação integral que este modo de organização do trabalho requer. Erminia Silva afirma que: (...) ser tradicional, para o circense, não significava e não significa apenas representação do passado em relação ao presente. Ser tradicional significa pertencer a uma forma particular de fazer circo, significa ter passado pelo ritual de aprendizagem total do circo, não apenas de seu número, mas de todos os aspectos que envolvem a sua manutenção (SILVA; ABREU, 2009: 82). Acerca, agora, da estrutura desta dissertação, destaco que optei pela abordagem qualitativa, considerando a natureza descritiva e exploratória do estudo e realizei o levantamento dos dados através dos seguintes procedimentos metodológicos: a) Pesquisa bibliográfica e documental; 7 Os artistas do Pavilhão Arethuzza, assim como os artistas das demais companhias itinerantes de lona, não se autodenominavam “tradicionais”. O conceito “tradicional” é algo datado e passou a ser utilizado a partir da década de 1970, para diferenciar o modo de organização do trabalho dos circos itinerantes de lona dos novos modos de organização do trabalho e do espetáculo que passaram a se consolidar com a abertura das artes circenses a novos sujeitos históricos, principalmente através da criação das escolas de circo. 11 b) Entrevistas semiestruturadas com artistas, ex-artistas circenses e pesquisadores da temática, a saber: Erminia Silva, doutora e pesquisadora do circo-teatro e descendente da família Wassilnvich, que no Brasil virou Silva; Fernando Neves, ator e diretor descendente da família Viana-NevesSantoro, do Pavilhão Arethuzza; Antônio Santoro Junior, também descendente do Pavilhão Arethuzza e tio de Fernando Neves; Ésio Magalhães, ator e diretor teatral, que redirigiu o espetáculo Cabocla Bonita, do Circo de Teatro Tubinho; Tiche Vianna, diretora teatral, que realizou a preparação de elenco da remontagem de Cabocla Bonita, do Circo de Teatro Tubinho; Wanderley Martins, do Grupo de Teatro Mambembe; Pereira França Neto (Zeca), o palhaço Tubinho; e os atores do Circo de Teatro Tubinho: Alexandre Vieira, Ana Dolores, Angelita Vaz, Cristian Bryan (Tito), Cristina Martins, Débora Ignácio, Dimitri Augusto, Dionísio Martins, Lucélia Reis, Luciane Rosã, Morgana Lunardi, Nicolas Alexandre e Riccielly Lunardi. c) Pesquisa de campo, que incluiu visitas a acervos de memória do circo, viagens a São Paulo para acompanhamento do projeto Baú da Arethuzza, de Fernando Neves e a companhia Os Fofos Encenam e, principalmente, diversas visitas ao Circo de Teatro Tubinho, de 2013 a 2015. A partir dos dados levantados, inicio o primeiro capítulo tecendo algumas reflexões acerca do trabalho do ator e a busca pela sua técnica pessoal, que são, na verdade, os principais motivos que me levaram a esta pesquisa. Defino, então, o que considero como teatralidade para descrever, em seguida, algumas das diversas formas e configurações estéticas que a teatralidade circense assumiu, desde a origem do espetáculo “moderno” com Philip Astley até ao chamado circo-teatro no Brasil. Após reconhecer, no primeiro capítulo, a multiplicidade da teatralidade circense, incluindo a diversidade existente dentro do próprio fenômeno descrito como circo-teatro, realizo, nos demais capítulos, uma análise mais verticalizada sobre alguns 12 elementos da encenação e interpretação no Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza e no Circo de Teatro Tubinho. A análise destes pontos se configura como algo extremamente complexo, pois como já foi exposto anteriormente, o espetáculo circense é sempre heterogêneo, multifacetado e polissêmico, o que não me permite falar na existência de apenas um modo de se fazer circo-teatro. Desse modo, ao estabelecer este recorte, busco entender como os artistas dessas duas companhias desenvolviam seus trabalhos, e não generalizar ou buscar uma fórmula do que seria a estética ou a linguagem do circo-teatro. Destaco ainda que, dentro deste recorte, os elementos da encenação dos espetáculos foram estudados, não com o objetivo de mostrar minuciosamente as suas composições e especificidades, mas sim para demonstrar como a elaboração e articulação destes elementos potencializam e alavancam o desempenho dos intérpretes. É importante ressaltar que a escolha de uma companhia de circo-teatro do passado e uma da contemporaneidade evidenciará, inevitavelmente, que muitas transformações ocorreram ao longo dos anos. Porém, não desejo aplicar nenhum juízo de valor a esta análise nem enaltecer o circo do passado em detrimento do atual. O fato é que o circo é sempre contemporâneo – no sentido de não apresentar atrações anacrônicas – e reflete em cena os desejos dos espectadores; desse modo é condição sine qua non que um espetáculo do Pavilhão Arethuzza não seja igual a um do Circo de Teatro Tubinho. O que pretendo com esta pesquisa, portanto, não é uma comparação entre as duas companhias e muito menos a tentativa de torná-las simétricas. O que proponho é um diálogo através justamente da assimetria existente entre as duas, com destaque para os elementos e técnicas interpretativas utilizados por estes atores circenses, que podem auxiliar e complementar a formação de um ator não habituado com este tipo de fazer teatral. Isso porque: De João Caetano (o primeiro a se preocupar com a formação do ator brasileiro) até 1978, data da regulamentação da profissão de artista, o próprio palco é a grande “escola” na qual se formam os nossos intérpretes. A partir de então, a lei passa a exigir ou o certificado fornecido por uma escola (universidades ou escolas profissionalizantes de segundo grau) ou a aprovação pelo Sindicato dos Artistas, 13 órgão responsável pela aplicação de um exame teórico e prático (BRITO, 2006: 178). Quando conheci o circo-teatro compreendi, então, que existem outros “jeitos” de se fazer teatro, calcados sobre outros paradigmas, diferentes daqueles que eu estava habituada na Universidade. Dessa maneira, penso que em termos pedagógicos o circoteatro também é uma escola formativa, com metodologia, princípios e caminhos próprios. Minha pesquisa busca, então, tornar visível a riqueza e a complexidade envolvida no teatro realizado nos circos, colocado durante décadas à margem da história oficial. Para isso, busquei descrever, sob um formato acadêmico, este tipo de manifestação teatral genuinamente não acadêmica. Diante desse fato, minha maior preocupação foi a de promover a descrição de maneira simples e direta, de modo que esta seja inteligível a um ator com formação totalmente diversa ao universo circense e, ao mesmo tempo, seja passível de empatia e reconhecimento por parte dos próprios artistas circenses que me inspiraram. Faço isso porque acredito que o principal problema da pesquisa em Artes dentro da Academia reside no fato de que os artistas/pesquisadores, em geral, descomplexificam a prática teatral e complexificam os conceitos que buscam explicá-la. A prática teatral é tida como algo simples/chapado e explicada através de conceitos, geralmente filosóficos, elaboradíssimos. Acredito, porém, que o artista/pesquisador deve fazer justamente o contrário, ou seja, deve olhar para a prática teatral com a complexidade que sabemos que ela tem e, a partir desta prática, elaborar conceitos simples pra explicá-la. E é justamente por estar ciente de toda a complexidade envolvida no fazer teatral que não pretendo esgotar nem responder todas as questões levantadas ao longo do texto. O que posso fazer, nesse momento, é compartilhar, com quem demonstrar interesse, o que li, vi, ouvi, senti, vivi e compreendi – e o que não compreendi também. Tenho ciência também de que não posso apartar meu fôlego investigativo de minha experiência prática. Por isso, ao longo da dissertação, vou comentando e refletindo a respeito de como a pesquisa foi, com o tempo, modificando e aprofundando o meu trabalho prático/artístico. 14 Acredito que, dessa forma, esse estudo pode auxiliar um ator na busca de seu caminho pessoal para a criação poética – assim como vem auxiliando o meu próprio caminho. Isso porque, apesar de reconhecer o fato de que qualquer manifestação artística – e não só o circo – não pode, simplesmente, ser extraída por completo de seu contexto, acredito que é meu papel, enquanto pesquisadora em Artes, traduzir, por transposições e analogias, o que for possível de meu sujeito de estudo. E essa transposição é possível, pois, em última instância, todos os verdadeiros artistas buscam a mesma finalidade: a troca viva entre as pessoas, num nível mais universal de comunicação, aquele que é de ser humano para ser humano. Nesse ponto reside a magia do teatro, que o mantém vivo, apesar de todos os percalços, e o torna insubstituível. À primeira vista, o teatro, enquanto arte puramente artesanal, parece navegar na contramão da História. Enquanto um robô espacial pousa delicada e suavemente na superfície de Marte, ainda tem gente, aqui em baixo, fazendo teatro. Todavia, um olhar um pouco mais atento vai perceber que este ritual que se processa ou na sala fechada, ou na praça pública, está tentando desvendar o sentido da experiência humana neste imenso universo (BRITO, 2004: 214). Encerro aqui esta introdução certa de que não poderia ter sido de outra maneira, a não ser com esta linda citação do mestre Rubinho, responsável por tudo o que vem me acontecendo desde aquelas aulas em 2007. 15 16 1. A TEATRALIDADE CIRCENSE 1.1 Reflexões iniciais acerca do trabalho do ator Esta dissertação de Mestrado se configura, de modo geral, como a tentativa de uma atriz em problematizar questões referentes ao trabalho do ator. Parto da premissa básica, portanto, de que dissertarei sobre um tema que possui algo de concreto e técnico e, ao mesmo tempo, algo de impalpável e, talvez, imponderável. E lhes explico o porquê. Teatro, do grego théatron, quer dizer “lugar de onde se vê”. Posso pensar, segundo a maioria das pessoas, que esse “lugar de onde se vê” faz referência ao próprio edifício teatral, pois é neste local em que vemos atores desempenhando uma representação. Porém, penso – e quem me mostrou isso foi um de meus mestres – que esse “ver” pode estar relacionado também ao ponto de vista do ator, e não só do espectador. Teatro é o lugar onde se vai para ver algo além do comum, do cotidiano, do ordinário; ver – e esse ver não se remete só aos olhos – uma revelação compreendida pelo artista, que é compartilhada com o público. Roberto Mallet, o mestre que me mostrou isso, afirma que: Kandinski gostava de dizer que a função da obra de arte é tornar visível o invisível. Eu, como artista, tenho que desenvolver um olhar que me torne capaz de ver esse invisível. (...) O artista é alguém que vê mais, e que por uma necessidade incoercível (mas também num ato de generosidade) constrói uma obra em que as pessoas possam ter uma compreensão, uma intuição análoga à que ele teve. (...) Em uma obra de arte o artista, tendo visto alguma coisa, constrói um objeto com uma determinada estrutura que permite que outra pessoa olhe para esse mesmo objeto e tenha uma intuição análoga à que o artista teve antes de criar a obra. É aí que reside sua função reveladora. Uma vez que existe a visão, que tenha ocorrido uma autêntica intuição, a criação da obra depende apenas de transposição dessa visão para a materialidade própria a cada arte. Isto é claro sob a condição de que o artista domine os meios técnicos de seu ofício. É como dizia Clarice Lispector: "Eu nunca tive sequer um problema de expressão. Meu 8 problema é muito mais grave, é de concepção” (MALLET, 2001: s/n) . 8 MALLET, Roberto. Teatro e sentido. In: Jornal Bastidor. Teresina-PI, 2001. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/tex_teasen.html 17 Para Grotowski (1987), Teatro é o que acontece entre ator e espectador; desse modo o teatro pode existir sem cenário, figurino, luz, texto verbal, música, etc. Só não poderá existir sem a presença de, pelo menos, um ator e um espectador. Esse pensamento de Grotowski me remete diretamente à ideia de outro grande homem do teatro, Etienne Decroux (1963), de que o teatro é a arte de ator (BURNIER, 2001). E aqui há a quase imperceptível, porém elementar, diferenciação entre “arte do ator” e “arte de ator”. Ao dizer “arte de ator”, Decroux se refere a uma arte que emana do ator, algo que lhe é ontológico, próprio de sua pessoa-artista, do „ser ator‟. E não à arte do ator, pois ela não lhe pertence, ele não é seu dono, mas é quem a concebe e realiza (BURNIER, 2001: 18). Pensa-se costumeiramente que, assim como o pintor tem a tela e a tinta, o performer9 tem o seu corpo como instrumento de trabalho. Eu, particularmente, gosto de expandir o pensamento de Decroux acerca da arte de ator para este ponto também. Assim, acredito que pensar o corpo como instrumento de trabalho leva a reduzir – mesmo que inconscientemente – o performer apenas a esse corpo, separando-o de seu psiquismo, inteligência e, a meu ver, alma. E principalmente: não acredito que se deva pensar o corpo do ator como seu instrumento de trabalho, simplesmente porque ele não o possui, ele é. Eu não devo cuidar e treinar meu corpo porque ele é meu instrumento de trabalho; eu devo cuidar porque sou eu! Nas palavras de meu professor, Roberto Mallet: A matéria do ator é fundamentalmente seu próprio corpo. As ações que ele realiza conformam esse corpo. Sua matéria é um organismo vivo, composto por tecidos e órgãos, com um cérebro capaz de armazenar e processar um número incalculável de informações. Por não ser exterior ao ator – ao contrário, o corpo é o próprio ator –, essa materialidade está em constante interação com o psiquismo. Um movimento corporal terá ressonâncias na memória e nos sentimentos, assim como uma lembrança ou um pressentimento têm ressonâncias corpóreas (MALLET, 2004: s/n)10. 9 Termo inglês que faz referência a todos os artistas do palco. Aqui me refiro não só ao ator, mas também ao bailarino e ao circense, por exemplo. 10 MALLET, Roberto. Ação corporal: matéria do ator. Revista do 17º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau. Blumenau-SC: 2004. Disponível em: www.grupotempo.com.br/acao-corporalmateria-do-ator/ 18 Nas artes do espetáculo, no momento em que a obra de arte acontece, ganha vida, o performer está presente e vivo diante do espectador. Presente e vivo por inteiro, não só com o seu corpo, mas com sua imaginação, emoções, sensações e tudo o mais que pertence ao campo de uma realidade não tangível. O fato do ator estar vivo diante dos espectadores, executar, sentir, viver, e fazer sua arte, introduz questões de difícil captação, referente a um universo subjetivo, de sentimentos, sensações, emoções, ou seja, um conjunto de elementos que Eugenio Barba chama de dimensão interior, ao diferenciá-los de uma outra dimensão física e mecânica do trabalho do ator (Barba, 1989, p.21), e Stanislavski denominou de “plano interior e plano exterior” (cf. Stanislavski, 1972, p.223) (BURNIER, 2001: 18). Assim como qualquer outro artista, para trabalhar com a sua dimensão interior e materializá-la em sua dimensão exterior, o ator necessita de técnica. Técnica, do grego techne, traduzido para o latim como ars e que em português temos por “arte”. Ou seja, durante muito tempo as ideias de técnica e arte estiveram fundidas. Segundo Douglas Novais, que desenvolve sua pesquisa acerca do trabalho do ator baseada, principalmente, nas reflexões dos pensadores da Antiguidade Clássica, como Platão, Aristóteles e Cícero: A técnica tem a ver mais com criar algo do que simplesmente fazer algo. Dissemos isso porque fundamentalmente ela está ligada a classe de trabalhadores que antigamente se classificava como poetas, que incluía, além dos artistas, médicos, arquitetos e artesãos. Tal categorização se apoiava no fato de todas estas profissões terem como fim a produção de algo – no sentido estrito de gerar um produto como uma casa, uma peça de teatro ou um colar. O seu fim, uma vez que é um elemento da poesia, é criar algo, um personagem, uma peça, por exemplo, o que a distancia da teoria, que tem a ver com conhecer alguma verdade. Entre a teoria e a poesia está a técnica, porque todo pensamento técnico tem uma dúplice preocupação, exige por um lado uma sistematização racional apoiada em princípios, e, por outro, clareza e precisão suficientes nos pormenores da construção que sirva a prática do ofício. Esse “entre” pode ser entendido de outro modo, dissemos que ela emerge de experiências importantes e passa a ser técnica quando além de fazer, você sabe como fazer. Ou seja está ligada, de algum modo a um processo de conscientização (NOVAIS, 2012: 90). A partir da reflexão acima percebo como em nossos dias – e falando agora não só do ofício do ator – a ideia de técnica é confundida com o senso comum acerca do termo tecnologia. Tecnologia, segundo este senso comum, me leva a pensar em avanço, 19 progressão, evolução; a pensar que o que vem depois é sempre melhor do que o que veio antes. E em arte esse tipo de pensamento não é possível (Idem). Como dizer que eu, porque vim depois, sou melhor poeta do que Shakespeare? Para o poeta se tornar poeta não basta saber o que é poesia. Essa lacuna entre o saber o que é poesia e se tornar um poeta é, então, preenchida pela técnica, pelo modo como o poeta constrói a sua obra. E como a técnica é, na verdade, a sua própria arte, então é sempre algo pessoal e intransferível. Porém, isto não quer dizer que ela é genuína e pertencente somente ao campo da sorte, do acaso ou do talento. Ela é “o desenvolvimento de habilidades que se aprendem e não que se criam em si” (Idem: 30). E aprende-se de onde? De alguma tradição, seja ela qual for. Toda produção artística é herdeira de outra anterior. Mesmo a produção teatral contemporânea mais fragmentada e desconexa continua sendo a construção – ou seria a desconstrução? – de um artifício para se falar de algo relacionado ao homem e sua existência e continua existindo no espaço entre ator e espectador. Isso porque Não existem meios de caminhar adiante sem fincar pé em nossas raízes, em nossas origens. Ao mesmo tempo, o passado só funciona se usado para o crescimento e desenvolvimento, como reservatório do novo, como disse Barba (BURNIER, 2001: 247). O verdadeiro artista é, então, aquele que imprime suas características pessoais a uma base formal11, no sentido aristotélico, oriunda de uma determinada tradição. Acontece que a história do Ocidente é marcada por uma profunda fragmentação, na busca incessante pela especialização em algo. E no teatro não foi diferente. Desse modo, diferentemente do Oriente, onde dificilmente consegue-se distinguir o que é teatro e o que é dança – por exemplo, no nô, kabuqui ou kathakali – no Ocidente “nosso ator-cantante se especializou separando-se do ator-bailarino, e por sua vez 11 “Forma é a maneira como a matéria é organizada, sua estrutura. É uma forma o que o escultor imprime ao bronze. São formas o que Picasso inscreve com tinta em suas telas. A disposição das palavras é a forma do poema. De outro ponto de vista ela é o princípio estrutural da obra (a concepção, a idéia – eidos). A forma não é uma figura estanque; ela tem um dinamismo interno que organiza a matéria conformando assim a obra” (MALLET, 2004: s/n). 20 este último do ator... Como chamá-lo? Aquele que fala? Ator de prosa? Intérprete de textos?” (BARBA apud BURNIER, 2001: 22). Além disso, durante muito tempo, a arte de ator – do teatro descrito pela história oficial no Ocidente – estruturou-se baseada em “elementos altamente subjetivos, como, por exemplo, sua „identificação psíquica e emotiva‟ com o personagem” (BURNIER, 2001:20). O fato é que, até hoje, a maioria das pessoas acha que o ator encarna o personagem “como um santo que baixa” e que ele é totalmente tomado por emoções e sensações. O próprio Stanislavski, o primeiro a teorizar e criar o que chamou de sistema para o trabalho do ator, no século XIX, antes de chegar à formulação das ações físicas adentrou o terreno da memória emotiva12. Segundo Grotowski, Os atores pensavam poder organizar seu papel através das emoções e Stanislavski por muitos anos de sua vida pensou assim, de maneira emotiva. O velho Stanislavski descobriu verdades fundamentais e uma delas, essencial para o seu trabalho, é a de que a emoção é independente da vontade. Podemos tomar muitos exemplos da vida cotidiana. Não quero estar irritado com determinada situação mas estou. Quero amar uma pessoa mas não posso amá-la, me apaixono por uma pessoa contra a minha vontade, procuro a alegria e não acho, estou triste, não quero estar triste, mas estou. O que quer dizer tudo isso? Que as emoções são independentes da nossa vontade. Agora, podemos achar toda a força, toda a riqueza de emoções de um momento, também durante um ensaio, mas no dia seguinte isto não se apresenta porque as emoções são independentes da vontade. Esta é uma coisa realmente fundamental. Ao contrário, o que é que depende da nossa vontade? São as pequenas ações, pequenas nos elementos de comportamento, mas realmente as pequenas coisas são as pequenas ações que Stanislavski chamou de físicas. Para evitar a confusão com sentimento, deve ser formulável nas categorias físicas, para ser operativo. É nesse sentido que Stanislavski falou de ações físicas. Se pode dizer física justamente por indicar objetividade, quer dizer, que não é sugestivo, mas que se pode captar do exterior 13 (GROTOWSKI, 1988: s/n) . Foi a partir, então, do método das ações físicas de Stanislavski que se começou a mudar a ideia do que vem a ser o trabalho do ator, associando-o mais a ação do que a sentimento – isso, fazendo referência mais uma vez ao Ocidente. 12 Para mais detalhes consultar os livros “A preparação do ator” e “A construção da personagem”, ambos de Constantin Stanislavski. 13 De uma palestra proferida por Grotowski no Festival de Teatro de Santo Arcangelo (Itália), em junho de 1988. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/sobre-o-metodo-das-acoes-fisicas/ 21 Porém o que se vê na atualidade e que parece como uma tentativa de fuga desta visão de que “teatro é emoção” é o lado oposto da moeda: uma espécie de exaltação e supremacia do corpo do ator, enquanto matéria palpável e concreta, e do treinamento técnico deste. Essa nova perspectiva surge principalmente como desdobramentos – errôneos e equivocados – das técnicas desenvolvidas por Grotowski e Barba. Aqui cabe uma breve história narrada por um de meus professores certa vez: um dia, um aluno todo orgulhoso foi até Jacques Lecoq14 lhe mostrar como havia conseguido desenvolver com perfeição a caminhada codificada da mímica clássica 15. Ao fim de sua incrível demonstração, o aluno orgulhoso esperava uma resposta de Lecoq, ao passo que este simplesmente lhe indagou: “Belo, mas... para onde você vai?”. Ou em outras palavras, “que me importa ter sete ou oito técnicas vocais, se não tenho o que dizer? (...) Que me importa produzir um colar, se não existir um pescoço para usá-lo?” (NOVAIS, 2012: 55). Ou ainda: O aprendizado servil das técnicas é perigoso se antes não decidirmos o contexto moral no qual vamos empregá-las. É similar a montar os elementos de uma casa, suas estruturas portantes e superestruturas, sem a preocupação de sabermos previamente onde elas vão ser implantadas, sobre que tipo de terreno e meio ambiente, se em cima de um declive rochoso ou sobre um pântano. Em toda boa escola de arquitetura nos ensinam que, primeiramente, estudamos o terreno, para em seguida escolhermos o material e a técnica construtiva. Atuando sem esses pressupostos teremos sempre atores-mímicos sem elasticidade mental, robôs esvaziados, privados de uma autêntica sensibilidade e, muito pior, sem personalidade. Todos pequenos descendentes do mestre (FO, 2011: 275). Assim como nas outras artes, o impulso criador do ator precisa se materializar, encontrar uma forma, no sentido aristotélico, para existir. No caso do teatro, ele se materializa e se mostra pela conduta e comportamento do ator. O que o público vê enquanto concretude é, sim, o seu corpo; mas quem está diante do espectador não é só um corpo: é o ator por completo, com corpo, imaginação, memória, memória corporal, voz, intuição, emoção, alma, etc. Além disso, 14 Ator e mímico. Foi aluno de Decroux e fundou sua própria escola – L‟École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq – em Paris. Atualmente é uma referência mundial, principalmente nos estudos sobre teatro físico. 15 Referente à pantomima completamente desprovida de ação verbal. 22 Uma vez que a atuação (como todas as artes espetaculares) só existe enquanto está sendo realizada diante de um público, a sua materialidade não se limita às ações corporais – ela inclui a própria pessoa do ator. O que o espectador vê não é apenas a persona agindo. Ele vê o ator “jogando” (realizando) essa ação dentro do contexto poético. E vê ainda a relação pessoal que o ator estabelece com a poética e com o conteúdo da obra, vê o sentido que ela faz para ele. A arte da representação é reveladora. Todo ação realizada em cena nos fala não apenas dela mesma; ela também nos fala do homem que realiza essa ação. O ofício do ator é, como dizia Dostoievski do seu ofício de escritor, “mostrar o homem no homem”. Através da ação (MALLET, 2004: s/n). Independente da estética ou linguagem escolhidas, a arte de ator sempre se baseará na tensão existente entre técnica (artifício) e vida; entre repetição e espontaneidade; entre a formalização de determinados códigos e a execução destes de forma viva, como se toda vez em que são representados fosse a primeira vez. Desse modo, o ator é aquele que caminha, por toda a vida, na linha tênue entre o caos da expressão de uma subjetividade profunda, porém não formalizada, e a técnica puramente mecânica e, portanto, desprovida de vida. Tanto a emoção pura quanto a técnica pura não comunicam, não são passíveis de serem partilhadas e decodificadas pelo espectador. Essa é a grande sina do ator: a busca pelo equilíbrio entre uma vida interior e uma exterior – busca muito mais enraizada na cultura oriental do que na nossa, diga-se de passagem. Citando Barba, “a experiência da unidade entre dimensão interior e dimensão física ou mecânica [...] não constitui um ponto de partida: constitui o ponto de chegada do trabalho do ator” (BARBA apud BURNIER, 2001: 10). Para trilhar este caminho o ator pode, então, escolher dois pontos de partida: ele pode partir da dimensão interior para a dimensão física ou fazer o caminho contrário, partindo da dimensão física em busca da dimensão interior. Este segundo caminho é o que eu escolhi para o árduo labor de elaboração da minha arte de ator, pois, ao longo das minhas experiências, percebi que este é o canal pelo qual sou mais facilmente ativada para um estado criativo. E esse é um dos motivos pelo qual eu escolhi o circo, ou o circo me escolheu. Mas isso é assunto para daqui a pouco. Yoshi Oida – ator japonês que por muitos anos trabalhou com o encenador inglês Peter Brook e, portanto, viveu na própria pele as contradições entre o mundo 23 Oriental e Ocidental, formulando sobre elas importantes reflexões para o trabalho de qualquer ator – afirma: Como atores, normalmente começamos a trabalhar a partir da mente ou das emoções, achando que essa disposição interior virá à tona através do corpo. No entanto, o contrário também funciona: começando de fora em direção ao interior. (...) Normalmente é muito difícil mudar nosso estado emocional só pela força da vontade. Mas se mudarmos aquilo que o corpo está fazendo, isso começa a afetar nossas emoções, facilitando a execução de uma atuação na qual se pode acreditar (OIDA, 2007: 95). Neste sentido, a ideia de desenvolver uma técnica através do treinamento corporal – que geralmente inclui pontos em comum como aquecimento, flexibilidade, aumento de força e potência energética, etc. – não deve ser vista como uma mera preparação física para atuar. Não se trata apenas do ator ganhar fôlego ou tônus muscular... Trata-se de capacitar o ator a compreender mais profundamente um processo fundamental, no qual através do corpo, aprende-se algo que vai além do próprio corpo. Neste sentido, Yoshi Oida aponta para o fato de que: Realmente não importa o estilo ou a técnica que estamos estudando. Na verdade, podemos praticar diferentes disciplinas tais como aikidô, judô, balé ou mímica e obter o mesmo benefício. Isso porque estaremos aprendendo alguma coisa que vai além da técnica. Quando estudamos com nosso mestre, as habilidades fazem apenas parte da linguagem, mas não são o objetivo. Já que se está aprendendo alguma coisa que ultrapassa a técnica, aquilo que se está praticando é menos importante (Idem: 158). Por isso, apesar do teatro Ocidental, em geral, não possuir uma técnica tão codificada e sistematizada como a do teatro Oriental, o ator pode tomar de empréstimo elementos de outras técnicas, como, por exemplo, de uma prática esportiva ou de outra área da arte, para compor a sua própria técnica. Se ele fizer balé ou natação, boxe ou sapateado estará desenvolvendo as suas potencialidades e habilidades corporais, porém sob diferentes formatos e códigos. Dentre essas atividades, uma das mais recorrentes entre os treinamentos dos atores atualmente é, sem dúvida, a arte circense, principalmente a relacionada às acrobacias de solo e aéreas. Os benefícios que essas práticas podem gerar à técnica pessoal do ator 24 serão descritas detalhadamente no próximo capítulo, ao dissertar acerca do Pavilhão Arethuzza. Por ora, podemos pensar que a arte é uma segunda natureza, é uma natureza adquirida. Atuar, neste sentido, é como jogar vôlei, por exemplo. Depois que você aprende a fazer uma manchete, você não precisa mais pensar na manchete enquanto a faz. Ou: o pensamento do ator é como o de atravessar a rua. Você pensa em atravessar, mas sem parar para calcular a distância e a velocidade que o carro vem; você pensa enquanto já atravessa: você pensa em ação16. E esse pensamento não se traduz por completo em palavras... O que se pode fazer, entretanto, é uma analogia para se perceber esse pensamento. Comumente professores e diretores de teatro – principalmente advindos de uma formação acadêmica ou deste teatro tido como oficial – dizem a seus alunos/atores quando estes estão em algum exercício ou improvisação: “Se joga! Vai com tudo! Não pensa!”. Trata-se de uma metáfora facilmente confundida com uma indicação assertiva; trata-se de uma tentativa de ampliar a percepção do ator para o que de fato está acontecendo em cena, evitando racionalizações que o desviam da ação cênica. Porém, o ator facilmente confunde essa “não racionalização” com “separar corpo e mente”. Mas “ir com tudo” significa ir com seu corpo, sua inteligência, seu psiquismo, sua emoção do dia... Ou seja, com você todo! “Não pensa!” na verdade significa “não racionalize; não teorize em cima”, mas é claro que o ator pensa. Só que é o pensamento do “atravessar a rua”: ele pensa em ação. E tudo isso para quê? O que quer um ator, em última instância? A resposta mais sincera e poética que encontrei até hoje para esta questão, tão fundamental, também é de autoria de Yoshi Oida e é encontrada em seu livro “O ator invisível”, um dos primeiros livros sobre teatro que li na graduação em Artes Cênicas... E na vida: Interpretar, para mim, não é algo que está ligado a me exibir ou exibir minha técnica. Em vez disso, é revelar, através da atuação, “algo mais”, alguma coisa que o público não encontra na vida cotidiana. O ator não demonstra isso. Não é visivelmente físico, mas através do comprometimento da imaginação do espectador, “algo mais” irá surgiu na sua mente. (...) No teatro kabuqui, há um gesto que indica “olhar para a lua”, quando o ator aponta o dedo indicador para o 16 Esta expressão era comumente usada por meus professores do curso de Artes Cênicas. 25 céu. Certa vez, um ator, que era muito talentoso, interpretou tal gesto com graça e elegância. O público pensou: “Oh, ele fez um belo movimento!”. Apreciaram a beleza de sua interpretação e a exibição de seu virtuosismo técnico. Um outro ator fez o mesmo gesto; apontou para a lua. O público não percebeu se ele tinha ou não realizado um movimento elegante; simplesmente viu a lua. Eu prefiro este tipo de ator: o que mostra a lua ao público. (...) Havia um famoso ator de kabuqui, que morreu há 50 anos, que dizia: “ Posso ensinar-lhe o padrão gestual que indica olhar para a lua. Posso ensinar-lhe como fazer o movimento da ponta do dedo que mostra a lua no céu. Mas da ponta do seu dedo até a lua, a responsabilidade é inteira sua” (Idem: 21 e 174). Na minha época de graduação essa “historinha da lua” soava quase como uma piada entre os alunos, pois já havia se tornado um clichê em nosso meio. Porém, como gosto de piadas e de clichês, esta história me marcou de tal forma que estou sempre a me perguntar: “quando estou em cena, estou mostrando a lua para a plateia ou estou querendo apenas mostrar como aponto meu dedo para ela?”. A meu ver, esta é a questão fundamental que o ator deve se fazer sempre. Isso porque não “importa” realmente qual a técnica que o ator escolhe e desenvolve, porque no momento da representação ela não deve ser o mais importante; aliás, o ideal é que ela se dilua a ponto de parecer inexistente – será que vem daí a confusão de que o trabalho do ator não exige técnica? O ator colocado diante do público é como o violinista virtuoso que não olha mais para os próprios dedos e muito menos controla o arco enquanto toca. Ele tem a percepção das notas emitidas e escuta o retorno, o andamento: vocês jamais irão ver um grande mestre de violino ou de piano olhando as cordas ou o teclado, espiando o instrumento; o instrumento já é uma extensão de si mesmo. (FO, 2011: 130). A ação simbólica de “mostrar a lua”, ou seja, o contato real, baseado numa revelação do ser humano ator para o ser humano espectador, pode acontecer independente da técnica de interpretação empreendida pelo ator, bem como da estética e da linguagem escolhidas para a materialização de seu impulso criativo. Estas escolhas estão ligadas, impreterivelmente, a gostos pessoais – mas não um “gostar por gostar”, e sim gostar porque aquilo realmente lhe toca profundamente e lhe faz agir. Peter Brook afirmou: A observação que tenho feito ao ver diferentes estilos teatrais em diferentes partes do mundo sempre me leva à mesma conclusão: só se pensa em estilo 26 quando se assistem alunos ou medíocres professores. No instante em que se transcende esse nível, mesmo se a forma for aparentemente artificial, o que se vê realmente é a natureza humana. É absolutamente extraordinário (BROOK, 1994: 243). Explico – ou tento explicar –, agora, como todas essas questões suscitadas anteriormente acerca da arte de ator vem se apresentando para mim, esta atriz-inicianteaspirante-a-pesquisadora. Começo afirmando que esse momento de “mostrar a lua” é o ponto final de uma longa jornada, traçada dia após dia, em busca da concretização de minha técnica pessoal. E na busca determinada e incansável por esta técnica encontrei no circo manifestações artísticas extremamente potentes, que me arrebatam por completo e me suscitam o desejo de agir. Não sei dizer se escolhi o circo ou se ele me escolheu. Só sei que ele me toca a alma. Desde criança. A lona, o cheiro da pipoca, a serragem, o trapezista, o palhaço me encantam e me despertam sensações que não conseguiria por em palavras por – infelizmente – não ser poeta. Eu encontrei no circo – e mais especificamente no palhaço de circo e nas representações teatrais no circo – elementos que me conectam comigo mesma e que vão ao encontro dos meus anseios e desejos do campo do “por que eu faço teatro?”. Porém falar em “o palhaço de circo” e “as representações teatrais no circo” soa como algo muito genérico, quase como uma abstração. Concretamente falando, o caminho que venho traçando é o de aprender os ensinamentos de determinados mestres acerca destes universos. E a escolha destes mestres não se deu de forma aleatória... No Japão há um ditado que diz que é melhor gastar três anos procurando por um bom professor do que gastar o mesmo tempo com um mau professor... O palhaço de circo chegou a mim através, principalmente, de dois grandes mestres. Um deles é o professor Luiz Monteiro, a quem devo toda a minha admiração e gratidão. Eu e os outros membros da Academia de Palhaços – primeiro grupo teatral do qual fiz parte, já na faculdade – tivemos a oportunidade de ter aulas de Técnicas Circenses 27 com Monteiro no próprio curso de Artes Cênicas da Unicamp e também de desenvolver um trabalho extracurricular acerca especificamente do palhaço de picadeiro. O meu outro grande mestre, o professor Mario Bolognesi, surgiu em minha trajetória de maneira indireta, sendo, na verdade, o porta-voz de tantos outros mestres espalhados pelos circos Brasil a fora. Através de seu livro Palhaços, Bolognesi (2003) permitiu que eu e toda uma geração de novos artistas entrássemos em contato com um repertório de entradas clássicas antes transmitidas somente pela oralidade no meio circense. Ao professor Mario Bolognesi também devo minha eterna gratidão. Já o circo-teatro me veio através das duas famílias que procurei conhecer ainda mais profundamente através dessa dissertação de Mestrado: a família Viana-Santoro-Neves, principalmente pela figura do queridíssimo e competente Fernando Neves, e a família Tubinho, pelo talentosíssimo Zeca, o palhaço Tubinho, e todo o seu elenco, sempre extremamente generoso e acolhedor. Assim como Grotowski acredito que para o ato teatral se realizar não é necessário nada além do ator e do espectador. Porém, me agrada a ideia do “teatro teatral”, que desenvolve e amplia o imaginário do espectador – tão acostumado, hoje em dia, à estética naturalista das telenovelas. Agrada-me a ideia de um teatro estilizado, claramente teatral no sentido de não tentar ser como uma fatia da vida real. Alfred Hitchcock costumava falar que seus filmes não são fatias da vida... São fatias de bolo. Então, agradame esta ideia de que o teatro deve ser uma fatia de bolo na vida das pessoas. E no circo-teatro encontrei um bolo vistoso e saboroso, capaz de agradar os mais diversos paladares. Antes de mim, diversos outros artistas já haviam experimentado e se deliciado com este bolo, como, por exemplo, Carlos Alberto Soffredini e o Grupo de Teatro Mambembe, que na década de 1970 fizeram uma intensa pesquisa nos circos-teatro da periferia de São Paulo. No trecho abaixo, Soffredini sintetiza o que o Mambembe foi buscar no circoteatro e que muito se assemelha a minha procura: (...) o que nós estamos perseguindo é um Teatro teatral. É um Teatro que conta histórias, um Teatro envolvente, gostoso, um Teatro do “como será que eles fizeram?” Um Teatro do bonito. Enfim, pra largar mão de querer ser original, o 28 tão cantado Teatro da magia teatral (?). É de mentira mas é como se fosse de verdade. É de papelão mas é pedra. É irreal mas a gente acredita. A gente acredita. (...) Nós achamos que Teatro é a hora de encher os olhos. É a hora de aprender sim, mas pelo amor de Deus não um ensinamento de cima para baixo, sectário, de uma verdade previamente selecionada, porque então a gente vai na escola. É a hora de aprender através do bonito, da emoção... do artístico - deixa eu dizer assim? É a hora de penetrar na vida dos outros, daqueles personagens incríveis, incomuns, enormes dos quais a gente já ouve falar faz tempo. É a hora de olhar para a intimidade dos reis. É a hora de ficar frente a frente com os eternos grandes medos do homem e que provocam nele o arrepio de atração do abismo: o incesto, o matricídio, o canibalismo, a traição, a paixão cega, a morte... e outros. É a hora de se ver no espelhado sim, mas não num espelho comum, que esse a gente tem no guarda-roupa, mas num daqueles espelhos que fazem a gente rir se vendo de uma forma inesperada. É a hora de rir (SOFFREDINI,1980: s/n). No circo-teatro encontramos linguagens e estéticas tão variadas e recheadas de particularidades que se torna difícil falar em “a estética e a linguagem do circo-teatro”. Mas, ao mesmo tempo, todas essas estéticas e linguagens têm em comum o fato de reportarem a um tipo de teatro feito direta e exclusivamente para a plateia, e não para a classe ou para a crítica, e que fundamentalmente conta histórias – características essas que vão ao encontro dos meus anseios artísticos e na contramão de uma parte significativa das tendências teatrais contemporâneas de fragmentação das histórias, das ações e até do ser humano. Acredito que, mesmo sem saber, todo ator circense partilha da ideia de Grotowski de que teatro é o que acontece entre ator e espectador, pois um espetáculo de circo-teatro nunca perde o público de vista17. E esta relação de cumplicidade estabelecida com a população da cidade em que o circo se estabelece é tão fundamental para o fazer circense que será tratada especialmente mais adiante nessa dissertação. Com relação ao fato de contar histórias, a narrativa, a meu ver, ocupa um lugar essencial na vida humana. Walter Benjamin (1986), em seu aclamado O Narrador, afirma que a figura do narrador está desaparecendo na história da civilização, pois a sociedade vem se organizando sob um formato que nos priva de narrar experiências, nos deixando pobres e vazios da arte de contar histórias. 17 Com isso não quero dizer que apenas os espetáculos de circo-teatro travam essa relação realmente viva com a plateia. 29 Narrar tem a ver com um sentimento de pertencimento. Meu professor Roberto Mallet costuma dizer que “não há nada que você saiba melhor do que as coisas que você fez”. O verdadeiro narrador é aquele que fala sobre experiências e não informações. A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. Em primeiro lugar pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituirmos como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência (BONDÍA, 2002: 21). A narrativa “não está interessada em transmitir o „puro em si‟ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.” (BENJAMIN, 1986: 205). Esta é uma questão de fundamental importância, pois no circo “tradicional” itinerante de lona a ação de contar uma história está na base não só do modo de conformação do trabalho artístico, mas também no modo como estes artistas levam a vida. Todo circense – assim como tantas outras pessoas que advêm de uma tradição essencialmente oral ou não – gosta de contar histórias. Casos que se passaram com seus avós, com seus pais, com eles mesmos, com seus filhos, etc. Como o processo de formação/socialização/aprendizagem no circo “tradicional” itinerante de lona é fundamentalmente oral, o hábito de narrar é parte constituinte de suas vidas. Nestes dois anos e meio de pesquisa, quantas e quantas histórias eu pude conhecer, imaginar e, de certo modo, vivenciar através das narrações de Fernando Neves, Santoro Junior, Zeca e todos de seu elenco! No início da pesquisa de campo no Circo de Teatro Tubinho tive muito receio de estar atrapalhando a rotina de afazeres – e a vida – dos artistas. No começo, quando eu cruzava com eles pelo terreno tentava ser breve, trocar meia dúzia de palavras e seguir meu caminho, sem incomodá-los. Mas o que era pra ser uma conversa rápida se estendia porque todos sempre tinham algum “causo” pra me contar. Fui percebendo, então, que eles 30 gostavam de me narrar histórias e que havia um grande prazer envolvido nessas narrações, que saía de quem narrava, chegava a mim e era capaz de nos unir numa atmosfera que nos transportava para outro lugar... Foi então que entendi que ouvir essas histórias seria tão ou mais fundamental para a pesquisa – e para minha vida! –, do que analisar tecnicamente as representações teatrais. Ou melhor: esses “causos” também fazem parte da técnica, da arte desenvolvida por eles. Por isso, ao longo desta dissertação darei voz a estes artistas para que alguns destes “causos” sejam narrados. A princípio, pode parecer que estarei me distanciando do foco principal desta pesquisa, mas, na verdade, estes “causos” devem ser vistos como parte fundamental do modo de vida do artista circense “tradicional”, que tem suas vidas pessoais e profissionais intersectadas, e diria que até unificadas. Falando agora especificamente sobre a arte de ator do artista circense destaco, primeiramente, que a questão do “para que serve a sua técnica?” é prontamente respondida no circo-teatro com a máxima de que “comédia é pra rir e drama é pra chorar” 18. Além disso, no circo as dimensões técnica e moral/social são indissociáveis e o espetáculo é apenas um dos elementos constituintes de uma profunda relação política estabelecida entre o circo e a população das cidades por onde passa. Os circos de lona e pavilhões, entre eles o Pavilhão Arethuzza e o Circo de Teatro Tubinho, foram e são responsáveis, em nosso país, por levar a arte circense e teatral a localidades não atingidas pelas companhias convencionais, oferecendo a estas populações – praticamente excluídas do acesso a bens culturais – a oportunidade de vivenciar e experenciar a magia e o poder de transformação existente na Arte. Segundo Erminia Silva, (...) não se pode estudar a história do teatro, da música, da indústria do disco, do cinema e das festas populares no Brasil sem considerar que o circo foi um dos importantes veículos de produção, divulgação e difusão dos mais variados empreendimentos culturais. Os circenses atuavam num campo ousado de originalidade e experimentação. Divulgavam e mesclavam os vários ritmos 18 Mesmo no caso do melodrama, entendido como um gênero teatral que comporta, num mesmo espetáculo, momentos cômicos e dramáticos, no circo-teatro as cenas cômicas sempre visarão o riso e as cenas dramáticas a emoção. 31 musicais e os textos teatrais, estabelecendo um trânsito cultural contínuo das capitais para o interior e vice-versa. É possível até mesmo afirmar que o espetáculo circense era a forma de expressão artística que maior público mobilizava durante todo o século XIX até meados do XX (SILVA, 2007: 20). Em nosso país, muitas pessoas assistiram a uma peça de teatro pela primeira vez num circo. E mais: muitas delas tiveram a sua única experiência teatral num circo. Além disso, outras tantas foram despertadas e chamadas para o ofício artístico, como por exemplo, os grandes Ariano Suassuna, um dos maiores dramaturgos brasileiros, e Luiz Carlos Vasconcelos, o maravilhoso palhaço Xuxu. Este último, criado em Umbuzeiro, no estado da Paraíba, narrou em entrevista a Erminia Silva como se deu a sua primeira experiência teatral num circo: Eu, tão pequeno, fui ao circo levando uma cadeira de casa, acho que nem tinha sete anos ainda, e conheci circo e palhaço, teatro e ator, numa noite só. Isso mudou meus jogos de infância, minha maneira de brincar. A primeira parte era de variedades, na segunda, foi apresentado A louca do jardim. Meu primeiro contato com o teatro e a dramaturgia foi através desse melodrama. E, na minha infantilidade, percebi que o ator que fazia o personagem trágico, principal, da louca do jardim, era o palhaço da primeira parte que, mesmo pintado, sendo um palhaço genial me fez rir muito, eu reconheci. Então, olha só, fui apresentado a uma criatura que foi palhaço na primeira parte, voltou como ator dramático na segunda, e reconheci a criatura que transitava entre esses dois universos (VASCONCELOS, 2008: 66). Por décadas o circo-teatro foi excluído da história do teatro brasileiro, ignorando-se seu papel fundamental na consolidação da arte cênica em nosso país. É fato que o circo chegou, já no século passado, a municípios brasileiros em que o teatro oficial não chegou até hoje. Os circenses abriam caminhos para a divulgação da arte cênica e também abriam caminhos, literalmente, pelo interior do país, atravessando e cortando matas com facão, dormindo ao relento nas carrocerias dos caminhões e se colocando em risco ao atravessar áreas dominadas por tribos indígenas que penduravam corpos de seringueiros mortos nas árvores como estratégia de intimidação (PIMENTA, 2005). Desse modo, Milhares de cidades e vilarejos eram visitados pelas companhias de circo-teatro e, para muitos deles, esse era o único contato com o fantasioso universo da representação. Mais do que o mérito de ir até o povo, o circo-teatro tinha o poder 32 de atraí-lo. O conforto e a proteção da mágica lona eram a versão popular das grandes casas de espetáculos. Até hoje encontramos, mesmo nas grandes cidades, pessoas simples cuja única experiência teatral se deu em um circo-teatro. Pessoas que acreditam que o circo é um lugar a que têm realmente direito de acesso, onde não importa a roupa que vistam ou o que calcem, tudo se iguala na poeira de serragem (PIMENTA, 2005: 119 e 120). Infelizmente, na atualidade, a dificuldade de acesso aos bens culturais em nosso país – principalmente por parte das camadas menos favorecidas da população – não difere muito da realidade encontrada no início do século passado. De tal modo que eu mesma, em 2014, vivi um acontecimento extremamente marcante ao me apresentar para um grupo de senhores e senhoras de um projeto de Educação de Jovens e Adultos da cidade de Campinas. Ao fim do espetáculo, uma senhorinha de uns sessenta e poucos anos veio até mim e, depois de um forte abraço, me disse: “Eu adorei. Eu nunca tinha visto um teatro na minha vida. E nunca pensei que ia ver!”. Então eu penso: se o teatro não chega a uma parcela significativa da população de uma cidade como Campinas, que possui, inclusive, um importante polo cultural no distrito de Barão Geraldo, o que dizer, então, de uma pequena cidade do interior do estado (para não ir tão longe)? Dessa forma, o circo-teatro – mesmo em menor escala – continua atuando como um importante difusor cultural, se configurando como o máximo de movimento teatral para muitos municípios do país ainda não alcançados pelas companhias de teatro, radicadas, principalmente, nas grandes cidades e assistidas, majoritariamente, pelas próprias pessoas “da classe” ou com algum nível financeiro mais elevado. Com relação às questões da técnica de representação desenvolvida no circoteatro, tenho para mim este como uma escola. Assim como aprendi na graduação em Artes Cênicas na Unicamp alguns modos de se operacionalizar, aprendo, com as representações teatrais circenses, outra maneira como o fazer teatral pode se manifestar. Aprendi com o circo-teatro que uma técnica pode ser construída e lapidada não só através do treinamento incessante em sala de ensaio e dos ensaios propriamente ditos. O circo-teatro é um exemplo de fazer teatral em que a técnica é adquirida através de muita observação e no próprio fazer, no próprio momento de se apresentar para o público todas as noites. 33 Todo ator sente a necessidade de se apresentar ao público e percebe como somente neste momento o fenômeno teatral realmente se completa; todo ator também percebe que alguns aprendizados advêm apenas deste exato momento de contato com os espectadores. Não é difícil imaginarmos, então, que nos circos-teatro itinerantes de lona, o aprendizado que provém diretamente do instante de se apresentar ao público ocorre constantemente, a cada sessão, noite após noite. A vida no circo me parece mais hiperbólica, fazendo com que o artista viva sua profissão vinte e quatro horas por dia e se encontre num constante estado criativo. Mas é claro que com isso não quero dizer que é só vivendo num circo que esse intenso mergulho pode acontecer e nem que todos que moram num circo vivem assim a “cem por cento”. Percebi com o tempo, também, no meu próprio fazer, que o caminho técnico que percorro com maior fluidez e vida é aquele que parte da dimensão exterior para a dimensão interior. Este caminho eu pude percorrer e trabalhar tanto nas atividades curriculares ligadas à graduação em Artes Cênicas, quanto nas atividades extracurriculares relacionadas à minha pesquisa acerca do palhaço de picadeiro e do circo-teatro. Comecei a vislumbrar esse caminho primeiramente com a construção da minha palhaça, a Begônia. Esta surgiu, sob os ensinamentos do professor Luiz Monteiro, a partir da investigação da maquiagem, do figurino, da busca de um andar e de uma voz diferentes. Não fiz o “tão na moda” mergulho interior em busca do meu clown, do meu ridículo e das minhas falhas – técnicas ligadas ao chamado “clown teatral”. Partindo de elementos de composição física e de esquemas dramatúrgicos préestruturados – as entradas clássicas de circo – fui desenvolvendo um trabalho que partiu de “um palhaço universal para uma palhaça única”; que partiu do reconhecimento do ridículo encontrado no trabalho dos mestres da palhaçaria circense e entendendo como esse ridículo também reside em mim; do entendimento da lógica dramatúrgica e onde está a graça de uma entrada clássica para a posterior reprodução, de modo necessariamente vivo, desta. Acredito assim, que a construção da Begônia se assemelha muito mais a construção de um palhaço de circo do que a de um “clown teatral”. Posso dizer que a minha formação acadêmica privilegiou um fazer teatral calcado mais no método das ações físicas stanislavskiano e nas reflexões que derivam 34 deste, às vezes reafirmando-o e às vezes contestando-o. Quando conheci o circo-teatro outro universo se abriu a minha frente e, à primeira vista, tudo me parecia completamente oposto e discrepante do que vinha aprendendo na universidade. Hoje, após alguns anos de decantação das experiências e de muita reflexão, começo a perceber que não há apenas total oposição entre essas duas escolas... Começo a perceber que elas se ligam em alguns pontos e que a compreensão disso pode alavancar a busca de minha técnica pessoal. Independente do caminho escolhido para ser traçado, a busca de qualquer ator está em desencadear um processo verdadeiramente vivo e que este seja perceptível a quem está lhe assistindo. Ao estudar o circo-teatro busco compreender a forma como esse processo se operacionaliza neste tipo de teatro. E, portanto, tenho que levar em conta que ele está inserido num determinado contexto, o que não me permite uma transposição direta da técnica desenvolvida por estes artistas na tentativa de criar um “método do ator de circoteatro” ou para ser mais audaciosa ainda “um método do ator popular”. O que posso fazer – e esta dissertação faz parte desta tentativa – é aprender, por analogia, alguns elementos da arte de ator desses artistas. Transpondo uma ideia suscitada por Burnier (2001), é como se o artista circense tivesse a vida que alimenta esta técnica e eu buscasse esta técnica para alimentar a minha vida. E é acerca desta técnica envolvida nas diversas configurações da teatralidade circense que começo a discorrer com mais detalhes a partir de então. 1.2 A origem do espetáculo circense “moderno” 19 A teatralidade é parte constituinte do espetáculo circense “moderno” desde sua origem, no final do século XVIII. Este novo modelo de espetáculo, aliado a um novo modo de organização do trabalho, configurou-se a partir da união, executada por Philip Astley (1742-1814), entre as exibições com cavalos e as atividades artísticas desenvolvidas por artistas mambembes que se apresentavam há centenas de anos nas feiras e ruas. 19 Para maiores detalhes acerca da constituição do espetáculo circense “moderno” consultar Bolognesi (2003) e Silva (2007). 35 Porém, antes de continuar a dissertar acerca das origens do empreendimento de Astley, devo esclarecer o que considero por teatralidade. No senso comum, o termo teatralidade geralmente é usado para designar uma qualidade pertencente a um tipo de linguagem artística considerada mais ostentativa e artificial (MOSTAÇO, 2007). Para esta investigação, considero a noção de teatralidade como anterior à noção de teatro, ainda que o vocábulo tenha sido cunhado somente no século XX, pelos encenadores russos Nikolai Evreinov e Vsévolod Meyerhold, em oposição ao teatro literário que estava em voga. Em 1908, Evreinov postula a existência de um instinto teatral inerente aos animais superiores, que lhes permite a manifestação de capacidades miméticas e lúdicas. Evreinov afirma que: (...) o homem possui um instinto inesgotável de vitalidade, sobre o qual nem os historiadores, nem os psicólogos, nem os estetas jamais disseram a menor palavra até agora. Refiro-me ao instinto de transfiguração, o instinto de opor as imagens recebidas de fora, as imagens arbitrariamente criadas de dentro; o instinto de transmudar as aparências oferecidas pela natureza em algo distinto. Em resumo, um instinto cuja essência se revela no que eu chamaria de „teatralidade‟. (...) A teatralidade é pré-estética, ou seja, primitiva e de caráter mais fundamental que nosso sentido estético (EVREINOV, 1956 apud MOSTAÇO, 2007: 07). O trecho acima suscita, de certa forma, a impressão de que esta noção de teatralidade proposta por Evreinov é muito abrangente, pois o homem, através deste instinto que lhe é inerente, pode ser capaz de encontrar vestígios de teatralidade em todas as coisas, situações e lugares. Desde estas primeiras investigações de Evreinov até a atualidade, os estudos a respeito deste assunto foram aprofundados e, atualmente, uma das principais pesquisadoras da temática é Josette Féral, professora da Université Paris 3 Sorbonne Nouvelle, na França. Féral – diferentemente de Evreinov – afirma que a teatralidade não é uma qualidade que pertence a um objeto, a um corpo, um espaço ou um sujeito. Não é uma propriedade preexistente nas coisas, não está à espera de ser descoberta e não tem uma existência autônoma 20 (FÉRAL, 2003: 44). 20 Tradução própria. 36 Para a autora, a teatralidade é o resultado de uma vontade definida de transformar situações e retomá-las fora de seu entorno cotidiano, fazendo com que estas passem a significar algo diferente do usual (FÉRAL, 2003). Percebemos que, na verdade, esta é uma ideia semelhante à de Evreinov, quando este afirma que o ser humano possui um instinto de transmudar as aparências oferecidas pela natureza em algo distinto. Porém a diferença é que o que Evreinov acredita ser um instinto, Féral considera como uma vontade definida. Féral (2003) afirma também que só é possível entender ou captar a teatralidade como processo, que possui como ponto inicial e final o olhar do espectador, responsável por sinalizar, identificar e criar um espaço potencial para a realização do fenômeno teatral. Para este estudo levarei em consideração as afirmações de Evreinov, porém as colocarei sob a óptica não do instintivo e sim, como defendido por Féral, da afirmação da atitude humana. Partirei principalmente das ideias de Féral, que considera a teatralidade como a ressignificação de situações fora de seu entorno cotidiano e como resultante do jogo com o olhar do espectador. Dessa forma, todas as atrações pertencentes às artes circenses são dotadas de teatralidade, pois exibem os artistas em situações não cotidianas, num espetáculo alicerçado na relação direta e vital criada com o público. Esclarecido, então, o que considero por teatralidade, dissertarei sobre as diferentes conformidades que a teatralidade circense assumiu, ao longo dos anos, desde a consolidação do espetáculo circense com Astley até os chamados circos-teatro no Brasil. Destaco que, no final do século XVIII, as escolas de equitação e apresentações equestres eram muito prestigiadas em toda Europa, pois o cavalo era um símbolo do poder da aristocracia. Montarias, corridas e cavalgadas eram apresentadas e, paralelamente a estas atrações, tiveram início as demonstrações de acrobacias equestres por parte de exmilitares que não se encontravam mais em situação de combate e que passaram a organizar espetáculos pagos ao ar livre, em geral nas praças públicas (SILVA, 2007). Philip Astley, ex-suboficial do exército inglês e, portanto, exímio cavaleiro, é reconhecido por parte da historiografia como o criador da pista circular – chamada de picadeiro –, e da espetacularidade própria do circo “moderno”. A data desta criação varia 37 entre 1769 e 1770, porém destaco que Astley teve antecessores. Français Defraine oferecia em Viena, desde 1755, espetáculos de caça ao javali e ao cervo, combate de animais e exibição equestre em um anfiteatro ao ar livre e com pista circular. Friso ainda que inúmeras companhias de exibições equestres em recintos cercados, porém ao ar livre, se formaram nesse mesmo período, como, por exemplo, a de Price e de Jacob Bates, também em Londres (SILVA, 2007; BOLOGNESI, 2009). A novidade implantada por Astley não diz respeito, portanto, ao espaço cênico do picadeiro ou às exibições equestres. A grande inovação reside no fato de Astley ter agregado ao espetáculo equestre outros números, através da inclusão de artistas mambembes que dominavam múltiplas formas de manifestações artísticas. O circo surgiu, então, como uma nova possibilidade de campo de trabalho, tanto para muitos soldados e seus cavalos, que se tornaram inúteis com o fim das guerras napoleônicas, quanto para os artistas mambembes, que estavam assistindo ao progressivo esvaziamento das feiras, seu principal local de trabalho. Acerca da mudança de perspectiva de trabalho dos artistas saltimbancos, Bolognesi destaca: (...) as tradicionais feiras europeias sofreram duros golpes com a chamada revolução comercial que tomou conta da Europa, no século XVIII. Aos poucos, as principais cidades trocaram as oficinas artesanais, de produção individualizada, por um processo padronizado, semimecanizado, para atender a um amplo leque de clientes. (...) As transformações na esfera produtiva provocaram mudanças nas práticas culturais populares. As feiras perderam gradativamente sua importância, tendendo ao desaparecimento. Esse esvaziamento colocou no desemprego grande número de artistas ambulantes, saltimbancos, saltadores, acrobatas, etc. (BOLOGNESI, 2003: 38). Ao unir a exibição de números de destrezas equestres com as variadas manifestações artísticas dos saltimbancos, que se apresentavam há centenas de anos nas feiras e ruas, Astley criou não só um novo modo de organização do trabalho artístico, como também um novo modelo de configuração de espetáculo, como bem detalha a pesquisadora Erminia Silva: Com relação ao espetáculo, (...) é que de fato Astley teria sido criador e inovador. No início, oferecia aos londrinos acrobacias equestres sobre dois ou três cavalos, e os maneava com sabre. Quando começou a se apresentar no espaço cercado por tribunas de madeira, não realizava apenas jogos ou corridas a cavalo, como a 38 maioria dos grupos do período. A uma equipe de cavaleiros acrobatas, ao som de um tambor que marcava o ritmo dos cavalos, associou dançarinos de corda (funâmbulos), saltadores, acrobatas, malabaristas, hércules e adestradores de animais (...) Esta associação de artistas ambulantes das feiras e praças públicas aos grupos equestres de origem militar é considerada a base do “circo moderno” (SILVA, 2007: 35). Além disso, é importante ressaltar que o espetáculo criado por Astley não previa apenas a demonstração de habilidades físicas; pressupunha-se um enredo, uma história com encenação, música e a presença de cavalos, cavaleiros e saltimbancos, que chegavam também a se apresentar no dorso de cavalos. Pantomimas, mimodramas e hipodramas compunham o conjunto apresentado no picadeiro21. Dessa forma, O circo moderno nasceu com a mística de ser um espetáculo diferente, onde o público veria o inusitado das feiras, com o requinte e a classe de um espetáculo de teatro e a organização e a grandiosidade de um desfile militar (CASTRO, 2005: 60). Figura 1: Anfiteatro de Astley, 1777. Fonte: BOLOGNESI, 2009: 03. Figura 2: Anfiteatro de Astley, 1810. Fonte: SILVA, 2007: 36. 21 Em seu artigo “Philip Astley e o circo moderno: romantismo, guerras e nacionalismo”, Mario Bolognesi descreve, em detalhes, duas dessas representações do circo de Astley: Mazeppa, inspirado em uma poesia de Lord Byron e Batalha do Alma, de natureza histórica. 39 Desde sua origem “moderna”, o circo mantém uma característica viva: a capacidade de aproveitamento, absorção e reorganização de múltiplas formas artísticas – dentre elas, o teatro. Dessa forma, num movimento de mútua troca, o teatro londrino, que muito influenciava o recém-criado espetáculo de Astley, também foi influenciado por este: O programa consagrado por Astley era composto, primeiramente, por um hipodrama. Em seguida, sob o título de Cenas no circo, encenava-se um misto de ato teatral com ginastas, contorcionistas, clowns etc., e exibições equestres. Eram burletas e pantomimas com marcado acompanhamento de uma orquestra. O sucesso de tal forma de espetáculo contaminou os teatros e os já citados palcos londrinos também adotaram esse programa (BOLOGNESI, 2003:188). Destaco ainda que inicialmente os edifícios construídos por Astley e seus sucessores eram chamados de anfiteatros – o que nos permite novamente associar o nascente espetáculo circense à manifestação teatral. Somente em 1780, o cavaleiro Hughes, que havia feito parte da primeira trupe de Astley, montou a sua própria companhia e a esta deu o nome de Royal Circus; “pela primeira vez esse modelo de espetáculo produzido em tal espaço aparecia com o nome de „circo‟” (SILVA, 2007: 36). A partir de então, diversas companhias que já apresentavam espetáculos semelhantes passam a incorporar o termo “circo” em seus nomes e durante o século XIX houve a proliferação do espetáculo circense por toda a Europa, ao mesmo tempo em que algumas companhias já se aventuravam em outros continentes, principalmente a América. Em seu livro O Elogio da Bobagem, Alice Viveiros de Castro (2005) apresenta um trecho de A Loja de Antiguidades, de Charles Dickens, no qual há uma descrição dos vários elementos que compunham a teatralidade no circo de Astley22: Mas, nem imaginam que lugar aquele - o teatro de Astley! - com todas aquelas pinturas, dourados e espelhos; e um vago cheiro de cavalos, sugestivo de outras maravilhas! E as cortinas escondiam tão grandiosos mistérios, e aquela serradura tão branca e limpa, lá em baixo, na pista do circo! Entretanto, chegou a companhia e ocupou os respectivos lugares, enquanto os violinistas, olhando despreocupadamente para eles, iam afinando os seus instrumentos como se não quisessem que o espetáculo começasse e o conhecessem antecipadamente! E que 22 O trecho foi retirado de um volume editado pelas Publicações Europa-América Ltda., Portugal, 1988, tradução de Maria de Fátima Fonseca, pg. 309 (nota de CASTRO). 40 luminosidade aquela que se derramou sobre todos eles, quando uma fiada de luzes brilhantes se elevou vagarosamente! E foi ver a excitação febril, quando soou o pequeno sino e a música começou animada, com os tambores a rufar forte e os ferrinhos a fazerem-se ouvir suavemente! Razão tinha a mãe de Bárbara, ao dizer à mãe de Kit que a geral é que era o lugar onde se devia ver e ao perguntarse a si mesma se não era muito melhor que os camarotes. E bem podia Bárbara hesitar entre rir ou chorar no seu deslumbramento e alvoroço. (...) E depois que maravilha o espetáculo em si mesmo! Os cavalos que o pequeno Jacob acreditou serem de carne e osso desde o princípio e as senhoras e cavaleiros que ele julgou serem a fingir e ninguém o conseguiu convencer do contrário, pois nunca tinha visto ou ouvido nada parecido; o disparo dos tiros (que fez Bárbara fechar os olhos); a dama abandonada (que a fez chorar); o tirano (que a fez tremer); o homem que cantava a canção com a criada da senhora e dançava ao som do coro (o que a fez rir); o pônei que se empinava sobre as patas traseiras ao ver o assassino, e não queria voltar a andar de quatro patas enquanto ele não fosse preso; o palhaço que se atrevia a meter-se com o soldado de botas; a dama que saltou por cima de vinte e nove fitas e caiu ilesa na garupa de um cavalo... tudo, tudo era maravilhoso, esplêndido e surpreendente! O pequeno Jacob aplaudiu tanto que as suas mãos ficaram inchadas. Kit gritava “an – kor” (do francês “encore”, que significa bis, nota da tradutora) no fim de cada coisa até acabar a peça em três atos (CASTRO, 2005: 56). O texto de Charles Dickens deixa claro que, como dito anteriormente, o espetáculo criado por Astley era composto não só pela demonstração de habilidades físicas, como também por representações teatrais. O texto também menciona a utilização de música e o rufar de tambores. Astley, que havia sido suboficial do exército inglês, compreendeu que, para o espetáculo que estava criando, era essencial que a companhia funcionasse sob uma rígida disciplina, semelhante à militar. Além disso, introduziu o uso de uniformes, o mencionado rufar de tambores e as vozes de comando para a execução de números de risco. Astley apresentava e ao mesmo tempo dirigia o show, “iniciando uma prática marcante, a do mestre de cerimônias, condutor do espetáculo, chamado entre nós, mestre de pista” (RUIZ, 1987). O mestre de pista é um personagem fundamental para a estrutura de um espetáculo de variedades como é o circo tradicional. Muito mais do que um apresentador, ele é um diretor-em-cena, autoridade máxima no picadeiro, figura capaz de improvisar e garantir que o espetáculo siga seu curso mesmo diante dos mais insólitos imprevistos. De início, esse papel era representado pelo próprio dono do circo e durante muitos anos foi prerrogativa dos adestradores de cavalo. Como o espetáculo era centrado nas exibições equestres, o mestre de pista usava um longo chicote, um apito na boca e dirigia os animais em cena (CASTRO, 2005: 60 e 61). 41 O espetáculo tinha como início e fim o desfile de todos os artistas e (...) durante a exibição de cada número, aqueles que não estavam se apresentando formavam uma barreira no fundo do picadeiro, em posição de sentido, sempre prontos a interferir para garantir a segurança dos colegas, dos cavalos e do público. Essa estrutura permanece por mais de 400 anos nos espetáculos tradicionais de circo, com o desfile final de todo o elenco e a barreira de funcionários e artistas em forma e atentos durante os números de maior risco. (Idem: 53). Acerca da barreira, Erminia Silva (2009) destaca que esta também é uma característica derivada da formação militar de Astley e que consistia em “posicionar duas fileiras de homens – ou mulheres23 – à entrada do picadeiro, cumprindo as funções de homenagear o artista quando de sua entrada e auxiliá-lo com os aparelhos durante a sua exibição” (SILVA; ABREU, 2009: 96). Além disso, a barreira servia de indicativo do grau de organização do circo, sendo formada, portanto, sempre com bastante rigor. Evidencio, então, que no circo de Astley – e posteriormente em seus sucessores – o elenco de artistas, além de desempenharem variadas funções nos bastidores, dominava diversas linguagens artísticas, que produziam um espetáculo que unia teatralidade, destreza corporal, dança, música, mímica e palavra. (SILVA, 2007). 1.3 As teatralidades circenses Ao organizar um espetáculo com números hípicos – considerados o “prato de resistência” da apresentação – e completá-lo com funâmbulos, saltadores e até um palhaço, Astley estava cimentando o espetáculo circense “moderno” e criando um novo modo de organização do trabalho artístico (SILVA, 2007). O tipo de espetáculo recriado por Astley, ao unir em torno de si as famílias de saltimbancos, grupos dos teatros de feiras, ciganos dançadores de ursos, artistas herdeiros da commedia dell’arte, unia também o cômico e o dramático; associava a pantomima e o palhaço com a acrobacia, o equilíbrio, as provas equestres e o adestramento de animais, em um mesmo espaço. Neste momento, não se criava apenas um modelo de espetáculo, mas a estrutura de uma organização. O espaço foi delimitado, cercado e o público pagava para assistir ao espetáculo, que, 23 Comentário da autora, baseado numa passagem posterior do mesmo livro. 42 cuidadosamente planejado, alternava exibições de destreza com cavalos, exibição de artistas que criavam jogos de equilíbrio, representação de pantomimas equestres e acrobáticas (SILVA, 2007: 40 e 41). O espetáculo circense “moderno” é, portanto, uma elaboração artificial – assim como toda obra de arte –, não cotidiana e, portanto, dotada de teatralidade, que desde sua origem, como exposto anteriormente, amalgamou diversas manifestações artísticas. Este amplo leque de manifestações configuraram, principalmente, dois tipos específicos de teatralidade circense24 – desde sua origem moderna até a consolidação dos, hoje, chamados “circos tradicionais”: uma, seria a exibição de habilidades e qualidades físicas – tanto as enaltecedoras quanto as deploráveis – desenvolvidas e pertencentes aos homens; e a outra o espetáculo de representação, no campo ficcional, das qualidades psicológicas humanas e que pressupõe uma narrativa contada através de seres ficcionais (personagens). Acredito que todas as demais conformações artísticas circenses – principalmente as mais contemporâneas – são derivações e mesclas destas duas formas. A junção e organização de todas essas atividades artísticas dotadas de teatralidade – tanto às não pertencentes ao campo da ficção como, por exemplo, o salto do acrobata, quanto às pertencentes ao fenômeno teatral, como as pantomimas e posteriormente o chamado circo-teatro – criaram poéticas e estéticas próprias ao espetáculo circense. Este espetáculo, ao longo da história, mantém em sua estrutura algo fixo, contínuo, que o caracteriza como tal, e algo mutável, que acompanha as transformações dos tempos e lhe permite manter-se sempre contemporâneo e inovador. As práticas que visam à exaltação de destrezas físicas – como os números acrobáticos, de equilíbrio, de manipulação de objetos e adestramento de feras – ganharam destaque no espetáculo circense a partir da segunda metade do século XIX, quando o cavalo perdeu o posto de atração principal: Assistiu-se, então, ao triunfo da acrobacia e, com isso, estava aberta a trilha que possibilitaria a busca do sentido do espetáculo circense na ação corporal. (...) O 24 Além dessas duas conformações de teatralidade também era comum, nos circos “tradicionais” brasileiros, a execução, na primeira parte do espetáculo, de números de bailados e números musicais, além de exibições de lutas, sorteios e a presença de convidados especiais, como por exemplo, algum cantor de sucesso do rádio ou um artista local. 43 circo trouxe às artes cênicas, no século XIX, a reposição do corpo humano como fator espetacular (BOLOGNESI, 2003: 189 e 190). Nestas práticas encontra-se a exposição do corpo humano em seus limites biológico e social. Essas atividades têm em comum o fato de se fundamentarem na relação do homem com a natureza, havendo a exposição da dominação e a superação humana (Idem): O adestramento de feras é a demonstração do controle do homem sobre o mundo natural, confirmando, assim, sua superioridade sobre as demais espécies animais. Acrobacias, malabarismos, equilibrismos e ilusionismos diversos deixam evidente a capacidade humana de superação de seus próprios limites. Mas, ao apresentar espetacularmente a superação, terminam por confirmar a contingência natural da existência, expressa na sublimidade do corpo altivo, distante do cotidiano (Idem: 13 e 14). Estas atividades são dotadas de teatralidade, pois apresentam características que fazem parte da natureza humana fora de seu entorno cotidiano, e também pelo fato de resultarem do jogo com o olhar do espectador. Isto porque, diferentemente das práticas esportivas, estas atividades tem como maior objetivo a adequação do requinte técnico a uma série de elementos cênicos que buscam o melhor desempenho performático; desempenho este que tem, por sua vez, como maior objetivo o fato de suscitar sentimentos e emoções no público (Idem). Ademais, As aptidões circenses ganharam um caráter espetacular porque nelas estão contidos os seguintes elementos: (a) a habilidade propriamente dita, quando o artista domina a acrobacia, o trapézio, o equilibrismo, os truques de magia e prestidigitação, o controle sobre feras etc.; (b) a coreografia, que confere às habilidades individuais ou coletivas um sentido na evolução temporal e espacial; (c) a música, que contribui para a eficácia rítmica dos elementos anteriores; (d) a indumentária, que completa visualmente o propósito maior do número; (e) a narração do Mestre de Pista, que se converteu em ingrediente especial para a consecução do tempo dramático, enfatizando os momentos de apresentação, o seu desenvolvimento, o clímax e o consequente desfecho. (...) A conjugação da habilidade com a coreografia, a música, a indumentária e a narração é o fator primordial para a eficácia cênica (Idem: 30 e 31). Complementando a análise anterior de Bolognesi, entendo que a música – através da melodia, ritmo, harmonia, andamento ou canção – pode também ser responsável 44 pelas funções atribuídas ao Mestre de Pista, sendo responsável pelo desenvolvimento de climas e atmosferas, bem como pela exaltação do clímax dos números e seus desfechos. Independente de fazer parte de um espetáculo circense tido como “tradicional”, “novo” ou “contemporâneo”, os números de exaltação de habilidades físicas são alicerçados por uma espécie de dramaturgia interna que funciona (...) por graus sucessivos e se funda sobre o crescendo da proeza. (...) O artista começa executando uma primeira figura que parece fixar o padrão de seu talento. Em seguida, ele tenta ir cada vez mais longe em sua façanha e acaba superando, afastando assim as fronteiras do possível (DAVID-GIBERT, 2006: 96). Desta forma, os números seguem uma lógica crescente, em que o exercício mais virtuoso é o último a ser executado. Os artistas, no caso de um espetáculo tido como “tradicional”, desenvolvem uma conduta expressiva cênica que difere seus corpos e energias da conduta no cotidiano, porém não chegam a representar personagens inseridas num contexto ficcional. Encontramos então, na base destas atividades, uma complexa conformação que mistura elementos de teatralidade a algo presente completamente do plano da realidade, que pauta toda a vida e treinamento de um circense e que se configura como uma constante do circo: o risco, muitas vezes elevado à última potência – o risco da morte: O espetáculo, assim, se aproxima de um ritual que se repete e que evidencia a possibilidade concreta do fracasso. A emoção da plateia então oscila entre uma possível frustração diante do malogro do acrobata e a sugestão de superação de limites presente a cada número (BOLOGNESI, 2003: 14). Reconheço, portanto, que existem elementos de teatralidade na manifestação artística dos números de habilidade. Porém, a meu ver, estes números são dotados de teatralidade, mas não se configuram como teatro. Isso porque a exibição de destrezas físicas e o fenômeno teatral são de naturezas distintas e possuem causas finais distintas – o que não quer dizer que um é superior ao outro, mas apenas que são práticas distintas e que visam diferentes finalidades. 45 Esta questão será tratada com maior profundidade mais adiante, mas já afirmo, por ora, que sempre que o foco da ação está na demonstração da técnica e não em algo que vá além dela, não acontece teatro. Acontece outra coisa, de caráter profundamente cênico, que também tem seu mérito e encontra espaço na vida do espectador. Acredito, porém, que é possível a elaboração de uma representação teatral que utilize recursos técnicos de um número de habilidade, como no exemplo do “pônei que se empinava sobre as patas traseiras ao ver o assassino, e não queria voltar a andar de quatro patas enquanto ele não fosse preso”, como bem vimos anteriormente no trecho de A Loja de Antiguidades, de Charles Dickens. Contudo, esses recursos – por estarem envoltos no contexto ficcional – passam a significar algo além da demonstração virtuosística, contribuindo, dessa forma, para a construção da narrativa e da ação cênica. O que estou dizendo, na verdade, não é nenhuma novidade: veremos adiante que os circenses utilizam este tipo de recurso desde a consolidação do circo “moderno”. Isso me leva a crer, portanto, que a teatralização do espetáculo proposta pelo chamado “circo novo” e, atualmente, o “circo contemporâneo” nada mais é do que o retorno à potência teatral presente no espetáculo circense “moderno” em sua origem com Astley25. Dessa forma, Do ponto de vista histórico, não há razão alguma para se denominar este movimento como “novo” ou “contemporâneo”. Os termos são imprecisos, justamente porque, desde seus passos juvenis, o circo sempre dialogou e incorporou as inovações dramáticas e teatrais (BOLOGNESI, 2006: 13). Por ser uma atriz interessada em investigar elementos relacionados ao trabalho do ator não irei, portanto, me debruçar especificamente sobre os números de habilidade. Contudo, voltarei a falar sobre eles analisando, no capítulo referente ao Pavilhão Arethuzza, como a preparação corporal proveniente do aprendizado de uma destreza física pode colaborar com o desenvolvimento técnico do ator. 25 Em seu artigo Circo e teatro: aproximações e conflitos, Bolognesi (2006) reflete mais profundamente acerca desta questão. 46 Passo agora a refletir sobre o tipo de conformação que a teatralidade circense pode assumir que está ligada mais diretamente à ideia que temos de teatro, desde sua origem na Grécia Antiga e que está ligada diretamente a ideia de ficção. Ficção vem do latim ficctione e é traduzido como “o ato de fingir”. O ator é aquele que finge ser um “outro”; é, portanto, um hipócrita. Não à toa, no grego hypokrités corresponde a ator, àquele que finge. Como visto anteriormente, o circo de Astley e também os de seus sucessores representavam pantomimas, hipodramas e mimodramas, que considero como teatro por criarem um plano ficcional, no qual o objetivo final está em algo que ultrapassa a demonstração técnica. A respeito dessas manifestações teatrais, primeiramente destaco que, apesar de possuírem o sufixo “mimo” em seus nomes, elas não eram desprovidas de textos verbais. Isso porque, ao contrário do que perpassa nosso imaginário coletivo, em muitos momentos históricos o mimo falou, ou seja, os atores se utilizavam também do verbo, da palavra, da ação vocal. Na Grécia, por exemplo, o mimo estava presente dentro das comédias e tragédias e era sempre aliado à musica e à dança. Em Roma, sim, encontramos uma das suas versões silenciosas – de ações vocais26. A pantomima muda de ação vocal – também chamada de mímica clássica –, oriunda das tradições inglesa e francesa, será desenvolvida pelos artistas nas feiras e, posteriormente nos circos, a partir de 1680. Muitas foram as limitações impostas aos teatros de feiras, tidos como não oficiais, mas o grande golpe veio neste ano, quando Luis XIV funda a Commedie Française, que passa a ser a única companhia autorizada a representar em Paris comédias em atos e a utilizar ação vocal em cena. A partir daí iniciou-se um intenso embate, que durou quase dois séculos, em que os teatros das feiras se desenvolveram lutando contra todas as adversidades. Era preciso criar um espetáculo que driblasse as imposições e limitações reais e que, ao mesmo tempo, continuasse atraindo e agradando o público, que pagaria para vê-lo. 26 Em seu artigo “A pantomima e o teatro de feira na formação do espetáculo teatral: o texto espetacular e o palimpsesto”, Robson Corrêa de Camargo (2006) descreve a evolução da pantomima à pantomima sem fala, desde a Grécia e Roma Antiga. 47 Desse modo, “como costuma acontecer em todos os tempos com os inúmeros tipos de censura, as proibições acabam servindo de incentivo à criatividade” (CASTRO, 2005: 40). Os artistas ambulantes desenvolveram, então, uma série de técnicas e recursos que se tornaram a base deste teatro, de alto teor improvisacional, aglutinador de diversas culturas e gêneros e pautado, principalmente, nas habilidades e destrezas de seus atores. O teatro de feira compreendia um empreendimento privado, direcionado a um público diferente do atingido pelas companhias oficiais e que dependia diretamente do valor arrecadado através da bilheteria. Por isso, “o sucesso era o primeiro objetivo de seus espetáculos que não se propunham apenas a sensibilizar o público, mas a conseguir que este desse moedas em troca dessa sensibilização” (CAMARGO, 2006: 13). O teatro de feira sempre sofreu a perseguição e censura do rei, da Igreja e até dos artistas das companhias oficiais. Ao procurar saídas às represálias destes “adversários”, o teatro das feiras experimentou e criou diversas formas e recursos dramáticos que acabaram por constituir novos estilos teatrais, possuidores de um também novo repertório de técnicas de interpretação e modos de se relacionar com a plateia; “repertório jamais sonhado anteriormente por qualquer gênero teatral” (Idem: 15). A tônica do espetáculo residia na pluralidade de gêneros e estilos, que eram comumente absorvidos, retrabalhados e amalgamados. Esta característica continuará presente no novo modelo de espetáculo, criado por Astley, que unia as destrezas equestres às exibições destes artistas ambulantes múltiplos, que desenvolviam, inevitavelmente, uma linguagem artística múltipla, aglutinadora de gêneros, culturas e formatos. Desse modo, dentre as inúmeras companhias circenses do século XIX destaco, a título de exemplificação, a dos irmãos Hanlon-Lees, mestres em desenvolver situações dramáticas que absorviam as suas habilidades físicas: (...) Pouco a pouco, os Hanlon-Lees foram descobrindo a sua maneira de fazer pantomimas. De início, montaram uma série de números cômicos em que utilizavam toda a sua perícia acrobática e apenas uma pequena cena, no meio do programa. Começavam com O Dormitório, cena de trapézio, cordas e outros aparelhos aéreos, em que faziam uma demonstração de como “dormiam os célebres irmãos Hanlon”: usando hilárias toucas e camisolões dormiam, roncavam, tinham ataques de sonambulismo e faziam guerras de travesseiro, tudo 48 a muitos metros do chão, equilibrando-se e saltando como se estivessem no melhor dos sonos. Seguiam- se outras cenas cômicas de equilíbrio, a Sala de Jantar, em que, comandados pela perícia de malabarista de Agoust, preparavam a mesa e serviam um jantar, jogando e equilibrando pratos, bandejas, talheres e diferentes tipos de frutas e legumes. No final apresentavam a pantomima Frater de Village (O Barbeiro da Aldeia), com direito a cabeças cortadas, muitas correrias e pancadas para todos os lados (CASTRO, 2005: 80). Os irmãos Hanlon-Lees, assim como diversos artistas circenses, eram hábeis inventores. Este talento era colocado sempre a serviço do melhor desenvolvimento cênico de suas pantomimas e, desse modo, os Hanlon-Lees deram novos usos aos tradicionais alçapões dos palcos teatrais e patentearam diversas invenções, como um barco cenográfico que balançava sobre as águas, uma carroça que entrava em cena capotando e se espalhando em inúmeras partes e um vagão dormitório de um trem aberto para o público e com eixos girando embaixo, dando a ilusão de que seguia em alta velocidade27. O desenvolvimento e maior elaboração das pantomimas em sinergia com o momento histórico vivido pela Europa, principalmente na França, fizeram surgir também tipos específicos de pantomimas que narravam os feitos heroicos da nação, conhecidos como hipodramas e mimodramas, representados no circo desde sua consolidação com Astley e Franconi. O hipodrama ou drama equestre, assim como o melodrama, encontrou na França pós-revolucionária um terreno fértil para se desenvolver. Ele surgiu como um desdobramento das pantomimas, possuía o cavalo como “ator principal” e tinha o intuito de narrar principalmente as façanhas heroicas desta nova França. A característica fundamental da presença de um forte militarismo no espetáculo circense também contribuía para a adequação da representação deste tipo de relato histórico e também de peças fantasiosas (BOLOGNESI, 2009). Depois de 1789, especialmente com a Restauração, as investidas napoleônicas e a consolidação da imagem do Imperador induziram o espetáculo circense a tratar dos temas históricos. Cavalos, feras amestradas das mais diversas partes do mundo, números os mais variados, encenados com figurinos alusivos a lugares 27 Em seu “O elogio da bobagem”, Alice Viveiro de Castro (2005) descreve em detalhes a pantomima Uma viagem à Suíça, montada pela primeira vez pelos irmãos Hanlon-Lees em Paris, em 1878. Nesta descrição encontramos informações a respeito da esquemática dramaturgia da pantomima e das maquinarias cênicas utilizadas. 49 conhecidos (quase sempre, conquistados) eram material adequado e mais do que suficientes para a criação dos hipodramas históricos, espetáculos feéricos e grandiosos que narravam as proezas do conquistador. O que estava em jogo era a consolidação de uma ideia de nação e de poder a expandir fronteiras, tanto físicas como as do imaginário (BOLOGNESI, 2009: 05). Este tipo de encenação também era comumente chamado de mimodrama. Podemos considerar o mimodrama como uma variante do hipodrama que empresta para a sua consolidação alguns elementos também do melodrama. Nestas encenações, em alguns casos, a ação falada era “interrompida ou suprimida, senão por uma ação mímica propriamente dita, ao menos por cenas mudas, compostas de combates, desfiles, marchas guerreiras e equestres” (SILVA, 2007: 41 e 42). No Brasil, essas representações teatrais – sempre presentes no circo desde sua origem “moderna” – sofreram transformações e, a partir de um determinado momento, passaram a se chamar circo-teatro. Não podemos nos esquecer de que qualquer produção artística é herdeira de outra anterior. Erminia Silva deu um ótimo exemplo para esta questão em um curso ministrado no Galpão do Circo em São Paulo, em agosto de 2013: “Picasso não produziria o que produziu se não tivessem inventado anteriormente a tela, as tintas e o pincel”. O raciocínio de Erminia, no contexto do curso, induz a pensar então que o circo-teatro constituiu-se como uma nova forma em um novo momento da sempre existente teatralidade circense, herdeira da teatralidade dos teatros de feiras medievais e da Renascença, que também são herdeiros dos ditirambos gregos, herdeiros por sua vez de manifestações anteriores... E se continuar esta linha, chegarei certamente aos tempos das cavernas. Portanto, o fenômeno descrito como circo-teatro não deve ser considerado como uma deturpação, mas sim como uma das transformações da teatralidade circense, que visaram atender as necessidades e demandas de determinado momento histórico. 1.4 Uma das vertentes da teatralidade circense: o circo-teatro Até meados do século XIX não há registros de companhias e espetáculos circenses em terras brasileiras. Porém, sabe-se que entre o fim do século XVIII e início do 50 XIX, diversos artistas saltimbancos europeus chegaram ao país, sendo que a maior parte “não tinha nenhum tipo de vínculo ou contrato de trabalho e nem exibições em locais definidos”, apresentando-se, então, “nas ruas, esquinas e praças, exibindo habilidades físicas e destrezas com animais” (Idem: 53). Dentre estes artistas, destaca-se na historiografia, o português Manoel Antônio da Silva que, após ter sido proibido de se apresentar na Casa da Ópera de Porto Alegre, alugou, em 1828, uma residência particular no Rio de Janeiro para a exibição de um único número: a dança sobre o dorso de um cavalo a galope (RUIZ, 1987; SILVA, 2007; ANDRADE, 2010). Regina Horta Duarte (1995) e Roberto Ruiz (1987) afirmam que o primeiro circo de que se tem notícia em terras brasileiras foi o Circo Bragassi, em 1830. Já Erminia Silva aponta o ano de 1834 como marco da “chegada ao Brasil de um circo formalmente organizado, o de Giuseppe Chiarini” (SILVA, 2007: 58). Alice Viveiros de Castro também faz menção à nobre família de saltimbancos de Chiarini, porém afirma que a companhia viajou o país a partir de 1831. Independente desta pequena imprecisão de datas a respeito da chegada dos Chiarini, o fato é que chegava ao Brasil uma das maiores dinastias italianas de circo: (...) os registros encontrados dessa família datam de 1580, na França, apresentando-se na feira Saint-Laurent como dançadores de corda e mostradores de marionetes; em 1710, o autor localiza-os no Funambules du Boulevard du Temple, como mímicos coreográficos; e, em 1779, Francesco Chiarini apresentava paradas de ombro chinesas no Kneschke‟s Theater de Hamburgo. Os Chiarini – dominando assim diversos ramos das expressões artísticas nas feiras, ruas e tablados – tornaram-se, posteriormente, artistas de circo: em 1784 no circo de Astley e, depois da Revolução, foram para Paris trabalhar com Franconi (Idem: 58 e 59). Apesar dos Chiarini serem excelentes cavaleiros, somente em 1842 encontra-se a primeira referência a um circo equestre no Brasil, de propriedade do ator Alexandre Luand (Lowande seria a grafia correta) (Idem). Em meados do século XIX, mantendo a versatilidade sempre característica do ofício circense, as companhias se apresentavam no Brasil nos mais diversos espaços: ruas, 51 feiras, tendas, praças públicas, tablados armados em terrenos vazios e também palcos teatrais convencionais adaptados para as exibições circenses. A novidade dessas expressões artísticas reunidas em um só espetáculo já ia se mostrando como presença marcante no cotidiano das cidades brasileiras. Rapidamente, os estalos dos chicotes dos circos de cavalinhos estavam nas ruas dos pequenos lugarejos, nos teatros das cidades e, principalmente, faziam parte da maioria das festas locais. A introdução de todo um mundo gestual, dos desafios dos corpos, da habilidade com os cavalos, da representação cênica, da dança, da música e do riso vai, aos poucos, fazendo-se conhecer pelo público nos lugares nos quais não chegava nenhum outro grupo artístico. (...) Os circos de cavalinhos estariam presentes, a partir da segunda metade do século XIX, na maior parte das cidades brasileiras, tornando-se, em alguns casos, a única diversão da população local (Idem: 66). Em pouco tempo, o circo caiu nas graças dos brasileiros, das classes populares à elite. Na verdade, “o circo nasceu com arquibancada, geral e camarote28”, ou seja, faz parte de sua estrutura básica a inserção do público independente de sua classe social. Sabese, por exemplo, que até governantes como o Imperador Dom Pedro II e, posteriormente na República, o presidente Floriano Peixoto, frequentavam os circos. Os circenses atuavam como (...) produtores e divulgadores dos diversos processos culturais já presentes ou que emergiram neste período, contribuindo para a constituição da linguagem dos diversos meios de produção cultural do decorrer do século XX. O espaço circense consolidava-se como um local para onde convergiam diferentes setores sociais, com possibilidade para a criação e expressão das manifestações culturais presentes naqueles setores. Através de seus artistas, em particular os que se tornaram palhaços instrumentistas/cantores/atores, foi se ampliando o leque de apropriação e divulgação dos gêneros teatrais, dos ritmos musicais e de danças das várias regiões urbanas ou rurais, elementos importantes para se entender a construção do espetáculo denominado circo-teatro (Idem: 82 e 83). Mantendo a constante de se tratar de um espetáculo eclético, variado e sempre contemporâneo, no Brasil, o circo itinerante de lona manteve “alguns padrões próprios de sua tradição”, ao mesmo tempo em que os circenses “também renovaram, criaram, adaptaram, incorporaram e copiaram experiências de outros campos da arte” (Idem: 22). 28 Declaração de Erminia Silva durante o curso “História do Circo” no Galpão do Circo, São Paulo. Agosto de 2013. 52 Uma das adaptações e renovações empreendidas pelos circenses em terras brasileiras de maior sucesso foi o chamado circo-teatro. Porém, a maior parte dos estudos realizados sobre esta manifestação teatral apresenta uma argumentação extremamente esquemática, baseada em equívocos e informações desencontradas a respeito de datas, causas e desdobramentos. É só a partir do final da década de 1990 e início dos anos 2000 que surgem novas perspectivas acerca da teatralidade no circo, com pesquisadores como Mario Bolognesi e Erminia Silva. O primeiro grande equívoco reside no fato do circo-teatro ser considerado por alguns pesquisadores como uma descaracterização do espetáculo circense “puro” e, por isso, a principal causa da decadência do circo no Brasil. Os pesquisadores que defendem esse ponto de vista tiveram como principal objeto de estudo os relatos de alguns artistas circenses que, por estarem inseridos no processo histórico em questão, não possuíam o distanciamento necessário para analisar a questão sem nenhuma identificação ou emotividade. Dessa forma, construiu-se uma memória baseada apenas nos relatos orais destes circenses, sem haver o cruzamento destas com outras fontes. O debate a respeito do circo “puro” não é recente, tendo se iniciado ainda no século XIX; nem um pouco recente também é a afirmação de que o circo está em decadência: a cada mudança ou transformação vivida, fala-se em “morte do circo”. O grande palhaço Arrelia, por exemplo, costumava dizer que ao inserir o palco sobre o picadeiro o circo-teatro descaracterizou o espetáculo “puro” (SOUSA JR., 2009). Já o mestre Piolin afirmava que o circo-teatro era uma desvirtuação porque os cômicos trabalhavam de cara limpa, não havendo espaço para a atuação de palhaços caracterizados (PIMENTA, 2005). Em seu livro O circo, o prestigiado Antolin Garcia afirma que o circoteatro descaracterizou também a formação do artista circense, que deixa de ser “completo”, pois os circenses abandonaram progressivamente os números de destreza física para realizarem um teatro, a seu ver, de má qualidade: (...) os circos passaram a apresentar um teatro precário, debaixo de suas lonas; as famílias tradicionais circenses pararam a prática de seus atos, comprimidas pelas exigências do teatro, que havia dominado o gosto e a opinião pública. Assim, foram-se extinguindo os magníficos números acrobáticos, para dar lugar a uma avalancha de maus atores, incompetentes e iletrados, que faziam do drama uma 53 comédia e da comédia um drama. (...) Os artistas brasileiros de outros tempos eram completos desde o porte em cena à apresentação perfeita de suas habilidades. Embora se especializassem em determinados atos, conheciam ainda todos os demais exercícios praticados sob o toldo. (...) Parte dos atuais componentes, ao contrário de seus antepassados, corrompem a arte circense, apresentando-se ao público destituídos de valor, sem nenhum requisito que os recomende como dignitários [de uma arte] (GARCIA, 1968: 165 e 166). Primeiramente, me atento ao fato de que só a ideia de “circo puro” já instaura uma contradição em termos, pois, como já ressaltado diversas vezes nesta pesquisa, o espetáculo circense é essencialmente plural, diverso e múltiplo, não podendo ser classificado como cultura popular, erudito ou de massa e, muito menos, como puro ou impuro. Em segundo lugar, afirmar que não havia teatro anteriormente no espetáculo circense e que a sua incorporação rompeu com a tradição é desconhecer a própria história do circo “moderno”. A manifestação teatral era uma das matrizes de formação dos artistas das feiras que passaram a se apresentar nos circos e era também, portanto, parte constituinte da produção artística circense desde o seu nascedouro. O circo-teatro deve ser visto, portanto, não como uma deturpação, mas sim como uma continuidade, acrescida de transformações, de parte do espetáculo circense. As já existentes representações teatrais foram aperfeiçoadas, com a inclusão e mescla de materiais e gêneros, e caíram no gosto do público. E, no circo, tudo o que agrada, permanece. O segundo equívoco cometido comumente é a afirmação de que o circo-teatro é um fenômeno exclusivamente brasileiro. José Carlos de Andrade chega a afirmar que “a relação entre o circo e o teatro, como se deu entre nós, é uma característica genuinamente brasileira e não se tem noticia de que tenha havido algo semelhante em outras partes” (ANDRADE, 2010: 43). Devo destacar que movimentos similares ocorreram na Argentina (drama criollo) e México (BOLOGNESI, 2010), porém, apesar de apresentarem semelhanças e terem se originado da mesma fonte – as pantomimas – encontramos especificidades nas representações de cada um desses países. O terceiro equívoco cometido comumente ao se contar a história do circo-teatro brasileiro diz respeito à data e ao modo como se deu a sua consolidação. Roberto Ruiz 54 (1987) é categórico ao afirmar que o circo-teatro foi “inventado”, em 1918, no circo de Spinelli, por Benjamim de Oliveira e que Spinelli havia aderido a esta ideia de Benjamim como uma tentativa de vencer a crise financeira que o circo vivia, devido à Primeira Guerra Mundial e ao surto de Gripe Espanhola. Porém, veremos mais adiante que Benjamim foi o principal responsável pela consolidação da tendência já existente e que passou a se chamar circo-teatro, mas que não podemos creditar a ele a “invenção” deste (SILVA, 2007). Regina Horta Duarte (2005) também enxerga o circo-teatro como uma alternativa à crise vivida pelos circos. Porém a autora afirma que isto teria acontecido no ano de 1910 devido ao surgimento de fortes concorrentes no mundo do entretenimento, como o cinema e o fonógrafo. Duarte também menciona a crise posterior causada pela Primeira Grande Guerra e a dificuldade dos circos em adquirir e manter os animais exóticos em terras brasileiras; e a autora também remete a consolidação do circo-teatro diretamente à figura de Benjamim de Oliveira. Alice Viveiros de Castro (2005), que desenvolve um brilhante estudo situando os palhaços ao longo da história da humanidade, ao dissertar sobre o surgimento do circoteatro nos apresenta apenas uma descrição simplista e esquemática dos acontecimentos, caindo também no lugar comum de creditar a sua invenção a uma vontade pessoal de Benjamim de Oliveira de encenar peças teatrais. Daniele Pimenta (2005) e José Carlos Andrade (2010), assim como Roberto Ruiz, também nos apresentam a data de 1918 como o ano de surgimento do circo-teatro. E assim como Regina Horta Duarte, ambos os pesquisadores consideram a invenção como uma alternativa de incremento dos espetáculos das companhias que, no Brasil, não conseguiam manter os números com feras amestradas, grandes atrativos dos circos da época. Ambos os autores afirmam que muitas eram as despesas e as dificuldades em se trazer animais exóticos e mantê-los vivos nas precárias condições de manutenção e de transporte dos circos. As feras, mal alimentadas “(...) nas longas viagens em que dificilmente se encontrava carne fresca, não resistiam e, por fim, pouquíssimos circos mantinham a estrutura de circo zoológico, como eram chamados na época” (PIMENTA, 2005: 19). Por último, Pimenta também descreve a complexa formação e consolidação do 55 circo-teatro apenas como uma “transformação estrutural”, com a inserção do palco teatral junto ao picadeiro. Ao afirmar que Benjamim de Oliveira inventou o circo-teatro e foi o responsável por incorporar o palco ao espaço cênico do picadeiro, os autores mostram desconhecer diversos acontecimentos anteriores a este momento histórico – resgatados, principalmente, com a pesquisa de Erminia Silva, publicada em 2007 – como, por exemplo, o fato de que, muito antes de Spinelli, em 1875, Albano Pereira já utilizava o termo circoteatro para definir e divulgar seu espetáculo. Além disso, nesse mesmo ano, Albano construiu um pavilhão29 na cidade de Porto Alegre, que contava com palco e picadeiro (SILVA, 2007). Ao analisar mais profundamente a questão chego ao fato de que mesmo antes de Albano Pereira construir seu pavilhão com palco e picadeiro, era comum a representação dos espetáculos circenses em diversos espaços, inclusive em palcos teatrais. Desse modo, “não há como e nem se pretende definir origens. Albano Pereira fazia, sim, parte de um processo daquela produção, aproveitando-se dos saberes e práticas históricos e culturalmente disponíveis” (SILVA, 2007: 80). E mais: se retornarmos ainda mais no tempo, veremos que já em 1780, na Europa, Hughes e, posteriormente, em 1794, Astley, já possuíam picadeiro e palco em seus anfiteatros (Idem). Não devo, portanto, querer definir a origem do circo-teatro; devo entendê-lo como um dos variados desdobramentos que a teatralidade circense assumiu. Como expus anteriormente, as pantomimas eram encenadas nos circos modernos desde os seus primórdios. Eram representações pautadas, principalmente, nas habilidades e destrezas físicas dos artistas, utilizando-se de recursos como saltos, acrobacias, tapas e quedas (DUARTE, 1995). Ressalto, porém, que a incorporação destas habilidades era apenas um dos elementos constituintes das encenações que, com o passar do tempo, foram se 29 O pavilhão era recorrentemente associado entre os circenses como “construções geralmente em madeira, tábuas leves cobertas por lona transportáveis (diferente dos tipos de pau-fincado que ficavam nos terrenos), que possuíam um palco cênico junto com picadeiro ou arena” (SILVA, 2007: 141 e 142). 56 transformando e se tornando cada vez mais sofisticadas, tanto em relação à estrutura dramatúrgica quanto aos recursos cênicos utilizados. Desse modo, desde o final do século XIX, apesar de serem ainda denominadas genericamente como pantomimas pelos circenses, as representações mesclavam diversos textos, músicas e gêneros teatrais que estavam em voga no Brasil. Erminia Silva destaca: O que se observa é que os circenses davam o nome genérico de pantomima às suas inúmeras montagens e representações teatrais. Na realidade, elas comportavam os vários gêneros musicais, dançantes, satíricos e cômicos que se produziam no final do século XIX. Por isso, ao incorporarem uma peça anunciada como pantomima, mas também “revista de costumes”, ao mesmo tempo em que davam continuidade a um modo de organização dos seus espetáculos, marcado pelas suas “heranças” (como suas origens de saltimbancos, os tablados e o teatro de feira), acrescentavam novas formas de interpretação e leitura (SILVA, 2007: 216 e 217). Seguindo a linha de raciocínio desenvolvida por Erminia Silva, afirmo que não se pode definir precisamente a origem do circo-teatro e nem atribuí-la somente a Benjamim de Oliveira. Entretanto é inegável que este artista contribuiu significativamente para o estabelecimento e o desenvolvimento do gênero, o que torna incontestável sua importância na consolidação do processo histórico em questão (Idem). A memória criada em torno da ideia de que Benjamim inventou o circo-teatro tem relação direta com o fato da crítica teatral da época ter passado a reconhecer, em suas encenações no circo de Spinelli, o surgimento de um novo momento da teatralidade do circo. Benjamim atuava no circo como “ginasta, acrobata, palhaço, músico, cantor, dançarino, ator e autor de músicas e peças teatrais, assim como vários outros artistas daquela época” (Idem: 20). Ao incorporar e adaptar para o espaço circense elementos das produções musicais, literárias e teatrais do momento, Benjamim foi responsável, portanto, pela consolidação de uma tendência que já existia. Em 1902 estreava no Spinelli a pantomima D. Antônio e Os guaranis (Episódio da História do Brasil), que parodiava O Guarani, escrito por José de Alencar e considerado um dos principais romances da nossa literatura. Através da divulgação da época tem-se a ideia da grandiosidade das pantomimas já nessa época: a encenação era composta por 22 57 quadros, 70 pessoas em cena e 22 números de música. O Maestro João dos Santos compôs o arranjo, adaptado da ópera de Carlos Gomes para a banda da companhia circense, e a mise en scène ficou aos cuidados de Benjamim de Oliveira, que também atuava como o índio Peri (Idem). A pantomima fez enorme sucesso junto ao público e permaneceu durante anos no repertório de peças do circo. Benjamim então se aventurou em novos empreendimentos e passou a escrever textos para serem encenados. O primeiro deles, O diabo e o Chico, em 1906, pressupunha um investimento financeiro muito maior do que era destinado até então para as produções das pantomimas que, como mostrei anteriormente com a paródia de O Guarani, já se encontravam num alto grau de elaboração. Relatos apontam também certa resistência por parte dos Figura 3: Benjamim de Oliveira como Peri na pantomima Os guaranis. Fonte: SILVA, 2007: 212. circenses em montar este texto, pois alegavam ser difícil lembrar todas as falas sem o auxílio do ponto. Acerca desta questão, Erminia Silva destaca: O fato de os circenses resistirem a representar a peça de Benjamim de Oliveira sem a ajuda do ponto reforça algumas análises (...); em primeiro lugar, a ideia de que mesmo que os cronistas teatrais da época não descrevessem no detalhe as representações das pantomimas, os circenses já representavam peças faladas em seus palcos/picadeiros e, por isso, havia necessidade de uma pessoa que cumprisse aquela função. Em segundo, a resistência no mínimo relativiza uma imagem presente nos estudos dos pesquisadores e historiadores do teatro brasileiro: a de que a partir da década de 1940 é que teria sido abolido o ponto, particularmente, com o trabalho realizado, no Brasil, por Zbigniew Marian Ziembinski. E, em terceiro, mesmo que o texto de O diabo e o Chico não tenha sido localizado, pode-se crer que já era uma estrutura dramática “de porte”, que dificultava que os atores memorizassem suas falas. Tudo parece indicar que foi Benjamim quem de fato assumiu todas aquelas funções, a de ensaiador, ponto e autor, o que não era raro acontecer nos teatros (Idem: 226). 58 Com o sucesso de O diabo e o Chico, Benjamin escreveu e encenou, em 1907, O negro do frade, que tratava da união de uma mulher branca e um homem negro, tema polêmico já amplamente explorado e cantado nos lundus e modinhas da época. O sucesso e a qualidade artística dos espetáculos de Benjamim no circo de Spinelli foram tamanhos que estes passaram a ser reconhecidos, não só pelo público, como também pela crítica teatral. No mesmo ano de 1907, Arthur Azevedo, que havia escrito anteriormente duras críticas aos espetáculos circenses, publicou uma crônica30 em que reconhece (...) um “novo” momento da produção do entretenimento na capital federal, e que o circo-teatro de Benjamim e Spinelli era um elemento singular nesse processo, além de “autorizar” por meio do seu texto (de um intelectual, membro da elite cultural, com lugar na Academia Brasileira de Letras, e dramaturgo revisteiro de sucesso), os outros letrados a “verem” uma nova teatralidade no circo. (...) A construção da memória do papel que Benjamim de Oliveira teria na consolidação de um novo modo de organizar o espetáculo e, principalmente, na construção do circo-teatro, entrava num outro patamar de visibilidade. Os jornalistas e letrados da capital federal tinham “descoberto” a teatralidade circense através da figura de Benjamim em especial. Foi com ele que puderam entrar em contato com uma dada representação teatral, no palco/picadeiro circense, que passaram a identificar como uma produção cultural de importância por seu apelo ao público, pelos tipos de peças constituídas e, mesmo, pela boa qualidade em relação ao desempenho artístico (Idem: 230 e 236). A crítica de Arthur Azevedo abriu caminhos para o teatro realizado no circo e parte da bibliografia reconhece a montagem da opereta A viúva Alegre, de Franz Léhar, adaptada para o palco/picadeiro do Spinelli por Benjamim de Oliveira, em 1910, como um marco importante na consolidação do circo-teatro. A montagem, considerada ousada para a época, foi concebida com cenários e figurinos extremamente sofisticados e um apurado trabalho de atuação e musicalidade. Com relação aos figurinos, por exemplo, Benjamim chegou a escrever uma carta para o autor Franz Léhar para discutir todos os detalhes das indumentárias concebidas para seu espetáculo, que se diferenciavam consideravelmente das outras montagens já realizadas no Brasil (CASTRO, 2005). 30 Em “Circo-Teatro: Benjamin de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil”, de Erminia Silva (2007), encontramos a crônica na íntegra. 59 O empreendimento de risco – pois tratava-se da representação, no circo, de uma peça que fazia parte do repertório de diversas companhias estrangeiras que visitavam o país e que também fazia parte do repertório das grandes companhias teatrais brasileiras – acabou resultando num enorme sucesso de público e crítica. Desse modo, por muitos anos, A Viúva Alegre se manteve no repertório do Circo Spinelli. Figura 4: Foto lembrança de Benjamim de Oliveira como diversos personagens. Fonte: SILVA, 2007: 240. Dessa maneira, as peças teatrais passaram a ser cada vez mais encenadas nos circos e com mais aprimoramentos cênicos e interpretativos, de modo que, até meados da década de 1960, muitos circos brasileiros tornaram-se circos-teatro e seus artistas continuavam a ser acróbatas, músicos, equilibristas, malabaristas, mágicos, domadores de animais, dançarinos, autores, compositores, cenógrafos, figurinistas, coreógrafos, ensaiadores e atores. O espetáculo era dividido em duas partes: na primeira apresentavamse os números de variedades – que incluíam as destrezas físicas, o domínio das feras, 60 números musicais e bailados, entre outros – e na segunda parte os circenses passaram a representar peças teatrais dotadas de inúmeros recursos e procedimentos dramatúrgicos, cênicos e interpretativos mais elaborados. Dessa forma, (...) Após sucessivas alterações, o circo-teatro ganhou perfil próprio e instalou-se durante décadas no panorama cultural das praças visitadas, passando a ocupar um posto de honra no coração dos espectadores (ANDRADE, 2010: 43). Daniele Pimenta (2005) e José Carlos Andrade (2010) dissertaram em seus trabalhos a respeito da divisão da história do circo-teatro em três fases. Porém, considerando toda a diversidade presente nos modos de se formatar a teatralidade circense ao longo da história deste tipo de espetáculo, considero que essa divisão em fases não abarca toda a complexidade presente neste fenômeno. Segundo Andrade, a primeira fase compreende o período do seu surgimento, descrito por eles como sendo em 1918, até meados da década de 1930. A maioria das representações nessa fase se configurou como montagens e adaptações de textos teatrais e literários estrangeiros e também nacionais. Representavam-se melodramas franceses, pois seus temas se encaixavam perfeitamente no período de consolidação da sociedade brasileira; peças portuguesas, que não necessitavam de traduções e já continham a “embocadura” própria para os atores; e adaptavam passagens bíblicas e romances estrangeiros e nacionais já consagrados e, portanto, garantias de sucesso junto ao público (ANDRADE, 2010). Porém, a meu ver, pensar nesta divisão em fases pressupõe a noção de origem do fenômeno que, como visto anteriormente, não é possível de ser descrita. E mais: se pensarmos que a pantomima sempre existiu no espetáculo circense “moderno” e que, portanto, sempre existiu teatro no circo, veremos que essa primeira fase teria durado de 1770 a 1930, o que tornaria esta fase muito extensa e com acontecimentos múltiplos que deveriam ser divididos em novas fases. Segundo Andrade e Pimenta, a partir da década de 1930, os circenses – com experiências já adquiridas após anos atuando como adaptadores – passaram a criar originais dramáticos e cômicos perfeitamente adequados aos seus elencos, às condições técnicas do circo e de grande comunicabilidade com o público. Esta segunda fase é considerada, pelos dois autores, como a fase de ouro do circo-teatro, marcada pelo extremo capricho das 61 produções e uma rígida disciplina de trabalho. Considero, porém, esta afirmação restrita, pois é resultado de uma determinada produção de memória, que acabou se tornando a oficial da manifestação circense no Brasil e que abrange apenas os circenses e espectadores nascidos, principalmente, entre as décadas de 1920 e 1930 e na região Sudeste. A terceira fase do circo-teatro, para Pimenta e Andrade, inicia-se no final da década de 1950 e é caracterizada pelo seu declínio. Segundo os autores, as maiores empresas de circo-teatro decidiram suspender a parte teatral e voltar a investir exclusivamente na parte de variedades, devido a inúmeras adversidades que, somadas, tornaram difícil a continuidade do empreendimento. Ressalto apenas que este declínio é realmente evidente, no sentido de haver uma diminuição significativa da quantidade de circos itinerantes, porém principalmente na região Sudeste; esta análise não vale, por exemplo, para a manifestação circense nas regiões Norte e Nordeste. Sem sombra de dúvidas, a televisão é vista, pela maioria dos autores, como a grande responsável por este declínio, primeiramente, por acarretar a queda da qualidade artística dos espetáculos circenses ao contratar e retirar dos circos os seus artistas mais competentes: O cinema e a televisão se incumbiram de abreviar o tempo de existência do circoteatro. Os novos veículos de comunicação subtraíram seus mais brilhantes artistas que, corajosamente, impuseram uma maneira de representar que lhes era própria. Com o passar do tempo, essa forma diferente de atuar acabou por se tornar quase que uma marca registrada dos cômicos televisivos, que até os dias de hoje ocupam as telas (ANDRADE, 2010: 12). Para agravar o quadro, com o passar dos anos, a televisão se tornou um veículo de comunicação mais penetrante na vida dos brasileiros do que o circo (e também o teatro). Desse modo, as famílias, ao invés de irem ao circo, passaram a se reunir na casa dos vizinhos que tinham um aparelho televisivo, para assistirem aos programas de maior audiência da época, caracterizando um fenômeno cultural conhecido como “televizinho” (SANTORO JR., 1997: 58). Seguindo o debate promovido por Erminia Silva (SILVA e ABREU, 2007; SILVA 2009) levanto a possibilidade de analisarmos a diminuição da atividade teatral circense – e do circo itinerante, de lona como um todo – não sob este aspecto que a 62 relaciona diretamente à ascensão dos meios de comunicação em massa. Sabe-se que, na verdade, os próprios artistas circenses participaram, desde suas origens, das produções de rádio, cinema e televisão; desse modo, o espetáculo circense foi diretamente influenciado por estes meios de comunicação, passando por diversas transformações e mudanças que agregavam, retrabalhavam e mesclavam novos estímulos, matrizes e linguagens. A diminuição da atividade circense é resultado, de acordo com Erminia Silva (2007; 2009), da profunda socialização/aprendizagem 31 transformação do processo de formação/ 32 que regia a vida do artista circense . Este processo caracterizava um modo específico de ensino/aprendizagem e de organização do trabalho, que mantinham como característica – herdada dos artistas saltimbancos das feiras europeias incorporados ao circo e também presente entre parte dos artistas contemporâneos do período – “a transmissão oral do conjunto de saberes e práticas de geração a geração; saberes que davam conta da vida cotidiana, capacitação e formação dos membros do grupo” (SILVA; ABREU 2009: 25). Esta formação ampla e integrada produzia um determinado tipo de espetáculo que, “(...) longe de ser apenas um produto de entretenimento, revelava-se como o resultado visível de um longo, rigoroso e complexo processo de formação artística” (ABREU in SILVA, 2007: 14). As companhias que se estruturavam seguindo este modo de organização do trabalho e de transmissão dos saberes e que eram formadas tanto por artistas ligados por laços de sangue, como também por agregados que, ao adentrarem o circo, passavam a fazer parte dessa mesma “família”, são nomeadas, por Erminia Silva, como circo-família (SILVA; ABREU 2009)33. Dessa forma, quando os circenses passaram a inserir seus filhos nas escolas de ensino regular e a contratar artistas para a exibição de números específicos, a base do circofamília foi modificada. Ocorreu 31 um hiato no processo de Erminia Silva (2007) utiliza a expressão separando as palavras por barras, ao invés de ligá-las com a conjunção “e”, partindo da ideia de que, no circo, a formação do individuo, do artista e do ser social ocorre concomitantemente, dentro de um processo de aprendizagem integrado. 32 Em seu “Respeitável Público... O circo em cena”, Ermínia Silva (2009) discorre detalhadamente acerca das razões que levaram a esta profunda transformação no processo de formação/socialização/aprendizagem, no modo de organização do trabalho e na configuração estética do espetáculo circense. 33 Analisarei este conceito mais profundamente no próximo capítulo ao dissertar sobre o Pavilhão Arethuzza. 63 formação/socialização/aprendizagem, de modo que as gerações mais novas deixaram de ser depositárias dos saberes das mais antigas. Essa alteração no processo de formação/socialização/aprendizagem gerou, segundo a autora, mudanças no modelo de organização do trabalho que, por sua vez, alterou a configuração da espetacularidade circense. Além disso, a vida social da população das cidades que o circo visitava também sofreu alterações nesse período. Fernando Neves, em entrevista, citou como eram os programas feitos pelas famílias brasileiras das capitais até meados do século XX: (...) se você fosse ao cinema você ia assistir dois filmes com um intervalo. E no intervalo tinha jornal, tinha trailer. Então era um programa de quatro horas, no mínimo. Então os programas que eram feitos... ninguém saía para um programa de uma hora e meia, como se vai hoje assistir uma peça que tem uma hora. Não tinha isso34. Com o crescimento das cidades e o processo de industrialização, a vida tornouse mais agitada e frenética, principalmente nas capitais. Um espetáculo como o de circo, que costumeiramente tinha várias horas de duração, passou a ser inviável dentro da rotina desta nova sociedade, de forma que as companhias circenses se readaptaram às novas condições e diminuíram consideravelmente a duração de seus espetáculos. Porém, ao se encontrar em crise financeira e se ver impossibilitada de manter o espetáculo no mesmo nível de sofisticação de tempos anteriores, grande parte das famílias, como a família Viana-Santoro-Neves do Pavilhão Arethuzza, preferiu encerrar suas atividades. Contudo, algumas companhias resistiram aos tempos, se metamorfosearam, incorporando as influências dos outros meios contemporâneos e continuaram a se apresentar pelo país, dentre elas, o Circo de Teatro Tubinho, que percorre as cidades interioranas do estado de São Paulo, permanecendo meses numa mesma cidade, levando uma peça a cada noite, com a lona para aproximadamente seiscentas pessoas lotada – fenômeno este que raramente se vê entre as companhias de teatro, tidas como oficiais, atualmente. 34 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. 64 Bolognesi destaca que: (...) o circo-teatro ainda preenche as lacunas que o teatro não conseguiu suprir. Isso ocorre especialmente nas pequenas cidades brasileiras, desprovidas de uma sala de espetáculos. As companhias teatrais que se propõem a viajar pelo interior raramente aportam em pequenas localidades, mesmo porque elas são desprovidas de um teatro adequado. Aliás, as companhias e os espetáculos itinerantes visitam somente as capitais ou as grandes cidades. No restante do país, nos pequenos municípios, até mesmo em vilarejos, o pequeno circo cumpre, a seu modo, um papel que o teatro não consegue desempenhar a contento (BOLOGNESI, 2003: 151). As dificuldades – e até a inacessibilidade – de grande parte da população brasileira aos bens culturais, incluindo o teatro, ainda é, infelizmente, uma realidade. Dessa forma, um circo, como o Circo de Teatro Tubinho, continua agindo na atualidade como um importantíssimo difusor cultural, se configurando como o máximo de movimento teatral para muitos municípios ainda não alcançados pelas companhias de teatro radicadas principalmente nas grandes cidades. 1.5 Relação com o público e a arte de agradar Este trabalho visa traçar algumas considerações acerca do desempenho dos intérpretes circenses nas encenações teatrais apresentadas em duas companhias de circoteatro. Porém, não posso adentrar as questões relacionadas aos elementos técnicos presentes neste tipo de atuação sem dizer, primeiramente, que no circo e, no caso, no circo-teatro, a dimensão artística, na qual reside o trabalho do ator, é absolutamente indissociável das dimensões ética e social. Isso porque o circo “tradicional” itinerante de lona é um empreendimento artístico alicerçado sob a relação direta estabelecida com a arrecadação por bilheteria e, portanto, com sua plateia. Essa relação vital com o público pagante está no cerne do espetáculo circense desde sua consolidação com Philip Astley, na Inglaterra. Aliás, o empreendimento de Astley foi justamente uma alternativa de adequação às mudanças comerciais ocorridas na 65 Europa no século XVIII. Segundo Burke (1989), o circo é o caso mais notável de comercialização da cultura popular (BOLOGNESI, 2003). Portanto, desde Philip Astley o circo absorve e reorganiza, sob modos específicos de organização do trabalho, pautados pelas leis do comércio, as mais diversas formas de expressão artística: A cultura popular adequou-se aos novos tempos, criando modelos novos de manifestação, comercias por excelência. As formas espontâneas de entretenimento foram se organizando comercialmente, visando aos novos espectadores, alçados agora à condição de compradores de espetáculos e de diversão. (...) O circo foi uma criação específica da sociedade comercial e produtiva que rondava o século XVIII, na Europa. Ele reaproveitou diversos elementos do passado. Contudo, remodelou-os de acordo com as exigências do espetáculo comercial, sob a égide do trabalho e da troca. (Idem: 38, 39 e 40). Acredito, como já exposto no início deste capítulo, que qualquer artista deve sempre buscar a consolidação de sua técnica pessoal e que esta precisa estar necessariamente empregada num contexto social. E isso instaura, inevitavelmente, a relação vital com a plateia – que o circo tanto compreende e busca. E mais: como vivemos numa sociedade pautada pelas leis do comércio, o estabelecimento desta relação de vida ou morte do empreendimento artístico passará, inevitavelmente, pelo viés econômico. Porém, o que vemos na atualidade brasileira – e que carece de estudos mais aprofundados – é que o circo é um dos raros empreendimentos das artes do espetáculo que continua a travar uma relação direta de continuidade com seu público pagante. Viver de arte nesse país é uma tarefa difícil. De bilheteria, então, nem se fale! Como exemplo, cito o fato de que da minha turma de graduação, egressa da Unicamp em 2010, nenhum de meus colegas vive, economicamente, da arrecadação por bilheteria e nem mesmo apenas do ofício teatral. Em meio às adversidades, a maioria dos artistas busca sobreviver por meio de concursos de editais de órgãos públicos, que estão longe de atender a demanda existente, ou por meio de vendas para órgãos privados, como o Serviço Social do Comércio (Sesc). Porém, por outro lado, acredito que a falta de relação vital com a bilheteria acabou por estabelecer uma cultura viciosa de dependência e é resultado, também, da falta 66 de empreendedorismo por parte da maioria dos artistas, que não possuem o mesmo tino comercial de alguns artistas circenses, por exemplo De todo modo, não depender diretamente do público pagante contribuiu para a instauração, entre os artistas cênicos, de uma tendência contemporânea de delegar ao Estado a promoção do acontecimento artístico, levando parte da classe a um descompromisso com o público. O que vemos é uma gama de artistas que querem fazer teatro sem pensar em para quem ele está sendo feito. Gritam apenas para ouvir o próprio eco. Como se aqueles a quem se destina a arte, o público, fosse uma preocupação exclusiva dos governos, aos quais cabe viabilizar o acesso da população aos espetáculos e demais obras. Preferencialmente, claro, as suas. E o resultado disso é a exibição desenfreada de “processos intermináveis de mergulho em si, de onde emergem estéticas intransponíveis, de pouca, ou nenhuma, penetração na sociedade, de modo geral” (ARY, 2011: 06 e 07). Simplesmente esquece-se de que uma obra de arte deve visar sempre, em última instância, a comunicação. Dessa forma, Podemos assistir a uma peça banal, com um tema medíocre, que esteja fazendo um grande sucesso de público e de bilheteria num teatro absolutamente convencional, e às vezes encontrar aí uma centelha de vida muito superior ao que acontece quando pessoas embebidas de Brecht e Artaud, trabalhando com bons equipamentos, apresentam um espetáculo culturalmente respeitável mas carente de fascínio. Quando nos deparamos com este tipo de espetáculo, geralmente passamos uma noite insípida vendo uma coisa em que tudo está presente – exceto a vida (BROOK, 2000: 11). Nas conversas que tive com Fernando Neves e seu tio Antônio Santoro Junior do Pavilhão Arethuzza e também com Zeca e os demais artistas do Circo de Teatro Tubinho pude compreender, de fato, o que lia nos livros acerca do respeito que o artista circense tem por seu público e da complexa relação que o circo estabelece com as localidades por onde passa. Essa relação é iniciada, inclusive, antes da chegada do circo na cidade, pois, comumente, estes só se instalam após contatos prévios e estabelecimento de um acordo com a Prefeitura. Após esse primeiro momento, os circenses realizam uma ação que chamam de “fazer a praça”. Uma pessoa é enviada para a futura cidade na qual o circo irá 67 erguer a lona para pesquisar aquela comunidade e descobrir seus gostos, costumes e preferências. Acerca de fazer a praça, Fernando Neves comentou: Quando o circo tá numa praça, ele fica atrás de outra praça já, ou seja, em outra cidade. O que faz a frente não vai só alugar as casas... Vai cuidar da parte de produção mesmo, fechar algum patrocínio com alguma... Geralmente farmácia, mercearia, bar patrocinavam o ator que eles gostavam. E geralmente quem patrocinava os cômicos eram as cachaçarias e as lojas de moda, claro, patrocinavam as damas galãs, as ingênuas. Então não era só pra isso... Era pra entender também o que era aquela cidade. Se ali a gente era muito religiosa, se era uma gente muito conservadora, quem eram as figuras folclóricas da cidade, quem eram as pessoas que eram mais adoradas e as pessoas mais criticadas. E tudo isso ia pra cena. Quer dizer, já começa a olhar antes de chegar. Quando chega o terreno já tá pronto. Então esse olhar é um olhar de cumplicidade e um olhar de familiaridade que já tá pré-estabelecido com o ator, mas a plateia ainda não sabe. E o repertório vai ser escolhido... Se essa cidade é muito conservadora eu vou pegar uns dramas, falar mais da honra, da dignidade. Vou tirar as comédias de mais tiro, vou tirar as chanchadas, vou colocar mais os dramas bíblicos, religiosos. E daí eu já estou estabelecendo um diálogo como artista com esse público porque eu já sei exatamente o que ele quer 35. Então, finalmente é chegado o momento do circo se estabelecer na cidade e, durante toda a temporada, a pesquisa acerca dos hábitos daquela população continua e se aprofunda, pois o empreendimento circense não pode falhar: os circenses podem ter feito dez praças ótimas, mas uma única praça ruim é capaz de levar o circo à falência. Dessa forma, o circo se insere nas cidades por onde passa, alterando todo o cotidiano daquela população. Inúmeras são as histórias de memorialistas, do tempo de circos como o Pavilhão Arethuzza, que narram as passagens de circos pelas pequenas cidades interioranas, o encantamento gerado pelas atrações, as recorrentes fugas com as companhias e as paixões despertadas pelos artistas: As notícias sobre a proximidade da chegada de circos de cavalinhos ou de grupos de teatro ambulante enchiam as páginas dos jornais, publicados nas várias cidades, dias ou até semanas antes do acontecimento. (...) A chegada dos artistas transfigurava o ambiente e o cotidiano das pacatas cidades mineiras. Uma vez na cidade, faziam anunciar pelos jornais o elenco de peças a serem levadas à cena. Não deixavam de alardear o nome das pessoas importantes para as quais se haviam apresentado e os elogios que delas teriam recebido. As mulheres bonitas tornavam-se o comentário das rodas masculinas. As peças e os desempenhos dos artistas ocupavam parcela significativa dos pequenos jornais locais (...). A 35 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. 68 armação do circo despertava a curiosidade dos habitantes. (...) Talvez tão excitante quanto a primeira apresentação fosse o “cartaz”, nome que se dava ao anúncio da noite de estreia, feito ruidosa e alegremente, pelas casas e ruas. Os artistas iam de casa em casa, de venda em venda, descrevendo o elenco, os números de cavalinhos e cães, o cabrito equilibrista. Ao mesmo tempo, uma pequena banda precedia o palhaço, montado num cavalo ou num burro, assentado de costas para a cabeça do animal. (...) Sentado ao avesso – contrariando a ordem natural das coisas – ladrão de mulheres, maliciosamente esperto, portanto, e prestigiador dos meninos de canela suja, o palhaço liderava um evento que transfigurava as ruas da cidade (DUARTE, 1995: 32 a 35). Acerca especificamente do Pavilhão Arethuzza, Santoro Junior descreve como se dava a relação do circo com a plateia, no final do século XIX, baseado nas informações retiradas das lembranças de Antônio das Neves, patriarca da família, em entrevista ao Jornal Folha da Noite em 1943: Conta-se também que os atores que se destacavam na época mereciam o favor feminino de maneira bem viva e acalorada, as moças e senhoras, ao fim do espetáculo, estendiam seus casacos, mantilhas e chalés pelo chão, para que os atores preferidos passassem sobre eles. Era um verdadeiro delírio. Os homens ao contrário, atiravam ao picadeiro seus chapéus, para que as artistas apanhassem e os devolvessem. Era uma honra, e uma glória para o dono do chapéu. Em geral o picadeiro ficava cheio de ramos de flores que o público atirava (SANTORO JR., 1997: 18). Na reportagem abaixo, do Jornal Gazeta de Campinas, de 27 de fevereiro de 1935 temos ainda outro exemplo da estreita relação que os circos estabeleciam com as cidades por onde passavam. A reportagem relata a homenagem que Arethusa Neves (chamada, no caso, de atriz genérica) recebeu de amigos e admiradores da cidade. O Pavilhão Arethuzza estava em Campinas há dez meses e nessa ocasião, ao final do primeiro ato da peça Sacrifício de Mãe, Arethusa foi presenteada com uma medalha de ouro. Em agradecimento, a atriz proferiu um discurso que, segundo a reportagem, arrancou lágrimas dos presentes. 69 Figura 5: Jornal Gazeta de Campinas, que relata homenagem realizada à Arethusa Neves. 27/02/1935. Fonte: Arquivo pessoal de Antônio Santoro Junior. Tantos anos depois, o circo continua despertando os mais diversos sentimentos no público e algumas companhias, como a do Circo de Teatro Tubinho, ainda são capazes de tirar centenas de espectadores, todas as noites, da frente das televisões e computadores de suas casas. 70 E, na atual era tecnológica na qual vivemos, essa mesma manifestação de carinho pode ser encontrada diariamente, por exemplo, na página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho e dos seus artistas na internet. Através desse veículo, os fãs podem manter contato com os artistas, o que cria mais vínculos de proximidade entre eles. Uma das espectadoras, por exemplo, Rúbia Edinaldo, da cidade de Sorocaba escreveu a seguinte mensagem na página da companhia, seguida da resposta da atriz Ana Dolores: Rúbia Edinaldo: Nunca pensei que fosse chorar no Circo do Tubinho, (bom, penso que vou chorar no último espetáculo, porém, por ora, nem ouso pensar nisso ), mas hoje chorei, me emocionei... Que linda a encenação do espetáculo "Marcelino pão e vinho". Já havia assistido o filme e hoje, me senti dentro da história, vendo e vivendo cada personagem... Me encantando profundamente por aquele pequeno Marcelino, um menino lindo, um menino que "conversa" com Jesus... E os monges???!!! Que encanto!!! A sensação que tinha é que estava dentro de um sonho, um lindo sonho... (...) vocês fizeram meus olhos se encherem de lágrimas porque a emoção já não cabia mais dentro do coração e ela teve que sair em forma de lágrimas mesmo... Ana Dolores: E eu me emociono quando sinto que nosso humilde trabalho alcança o coração dos nossos amigos, que muitos insistem em chamar simplesmente de plateia! Com pureza no coração o meu mais singelo agradecimento! Figura 6: Rúbia Edinaldo (ao fundo) e outras fãs prestando homenagem ao palhaço Tubinho no último espetáculo, Obrigado Sorocaba, da temporada de oito meses na cidade, em 2014. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. 71 Os artistas circenses – assim como seus antepassados saltimbancos das feiras europeias – são, portanto, mestres na arte de se relacionar com o público, levando em conta os seus gostos e particularidades. Os artistas circenses são mestres na arte de agradar. Este termo, que faz parte do vocabulário de qualquer circense e já mencionado anteriormente nessa dissertação, é comumente relacionado de forma mais direta à dimensão artística do circo; ou seja, a premissa básica que rege o espetáculo no circo é o fato de ele tem que, necessariamente, agradar: Sim, porque o espetáculo do Circo-Teatro tem uma finalidade imediata: ele não é feito para ser avaliado pelos entendidos ou pelos críticos em colunas especializadas, nem para ser comentado nas mesas dos bares da moda, nem para ir figurar nos anais da história do espetáculo. Não: Ele é feito para agradar o público, para que este volte no dia seguinte e compre seu ingresso na bilheteria para possibilitar ao artista a compra de comida no dia seguinte... e assim por diante (SOFFREDINI, 1980 in BRITO, 2004: 36). Ao entrevistar os atores do Circo de Teatro Tubinho, perguntei-lhes o que era agradar. Destaco, a seguir, algumas das respostas obtidas, através das próprias palavras desses artistas, que são os detentores desse saber e que podem, então, melhor do que ninguém, explicar o que o termo significa para eles: Cristian Bryan (Tito): Agradar é agradar o público mesmo. A gargalhada tem que ser espontânea e uma em cima da outra. Tem que ser muito rápido e agradar sempre, a toda hora, do começo ao fim36. Morgana Lunardi: Agradar é quando tem bastante aplauso na plateia. Quando aplaudem de pé então37... Débora Ignácio: É fazer as pessoas rirem muito. Quando dão muita risada, aplaudem muito, é porque agradou. Principalmente em cena aberta. Você faz a cena e para a cena por causa dos aplausos38. Angelita Vaz: 36 Cristian Bryan em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. Morgana Lunardi em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. 38 Débora Ignácio em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. 37 72 O agradar... Assim, o nosso termômetro é o riso né. A referência do circo-teatro pro teatro é diferente. Por exemplo, se você vê no teatro o público assistir uma comedia, você vê o público rir, mas ele riem, dá um tempinho, riem de novo, dá um tempinho... entende? Tem uns pontos chaves. Aqui no circo não, pra gente o agradar, a pessoa tem que sair com dor de barriga de tanto dar risada. Esse é o agradar pra gente, então a gente se preocupa muito com isso (...) Igual ontem, aquela história que tava comentando com você. A comédia tava vindo bem, tava agradando, aí no meio do espetáculo veio uma piada que não agradou... Aí pareceu que deu uma esfriada. Mas se você for ver, não foi “Ah, derrubou o espetáculo”... Não, nada disso. É que a gente se cobra demais, mas foram alguns minutos em que as pessoas pararam de rir, o que é normal. Então o agradar nosso é esse termômetro. (...) E no drama o termômetro é o silêncio. Olha que engraçado, é o silêncio. Porque o circo é diferente do teatro. As pessoas que vem aqui não estão acostumadas a ir ao teatro. As pessoas que vem aqui são inquietas, elas saem pra comprar pipoca, no meio de um espetáculo dramático você escuta alguém abrindo uma latinha, alguém levantando, andando no meio nas pedrinhas do chão. E isso tira a atenção. Então quanto menos você ouve isso e chega no final você olha pra cara das pessoas e as pessoas tão chorando, aí a gente agradou. Então a gente muda de extremo. Na comédia você tem que rir o tempo inteiro e no drama quanto mais quieto ficarem, é o sinal que tá agradando. É muito engraçado isso39... Pereira França Neto (Zeca/Tubinho): Pra gente, a função do espetáculo tá em cima desse termo, agradar. O espectador, seja drama, seja comédia, seja infantil, o espectador tem que sair daqui e convidar mais vinte ou trinta pessoas porque ele adorou. Essa é a nossa busca. E esse termo agradar acho que resume bem. (...) E nosso espetáculo é popular, é feito com público e pro público, pensando no que o público quer ver. E é essa a assinatura do nosso trabalho. (...) Porque a gente precisa daquele público amanhã. Se o público vem ao circo vinte vezes e adora o espetáculo, ele vai falar pra cinco pessoas. Se ele vem uma vez e não gosta, ele vai falar pra duzentas pessoas, você pode ter certeza. Então, quer dizer, essa é a grande preocupação. Então, quer dizer, o espetáculo tem que funcionar. A cidade é pequena, trezentas pessoas falando é uma propaganda na Globo!(...) O agradar, então, é você sair de cena com a certeza de que aquele povo vai voltar. Entendeu? Acho que basicamente é isso. Sair de cena com a certeza que o cara falou assim “O ingresso que eu paguei valeu a pena”. Pra mim esse é o agradar40. Agradar pode ser pensado, de maneira superficial, como algo a ver com uma relação de servidão do artista para com seu público, na medida em que este é responsável pela manutenção financeira do empreendimento. Porém, a arte de agradar é algo mais profundo e consistente, no sentido de estabelecer não uma relação de servidão, mas sim dizer respeito à dimensão de sacrifício e generosidade presente na concretização de uma obra de arte. 39 40 Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013. 73 Além de determinar os elementos empreendidos na dimensão artística do circo, a arte de agradar está por trás, também, de todas as ações pertencentes às dimensões ética e social do circo com a cidade onde arma sua lona. Enquanto empreendimento comercial, o circo necessita estabelecer boas relações com os moradores, os comerciantes e as autoridades da cidade onde se instala, pois As informações que vêm de fora e a perspicácia para captar as preferências do público são fatores fundamentais para as companhias circenses. A sobrevivência dos circenses depende exclusivamente do espetáculo e de sua aceitação na cidade ou vila. Por uma questão de sobrevivência, o repertório está sempre se adequando aos indicativos captados com o publico (BOLOGNESI, 2013: 171). Ou seja, todas as relações estabelecidas com a cidade são pautadas pela arte de agradar e preparam as condições ideais para que o espetáculo também agrade. Assim sendo, o espetáculo é apenas um dos diversos elementos que constituem a relação ritual que o circo constrói com a cidade onde se estabelece. A arte de agradar pode ser compreendida, então, como o nomeador de um imenso conjunto de elementos estruturais do ofício circense. Dessa forma, num nível mais fundamental, o “espetáculo agradar” significa que algo, baseado numa relação de consideração, de fato, se passou entre artistas e público. Consideração por parte dos artistas que previamente investigam a praça na qual irão se apresentar, conhecendo-a detalhadamente de antemão e aprofundando a relação com a cidade ao longo da temporada; e consideração por parte do público, em função do reconhecimento de si mesmo no repertório escolhido e do entrosamento que os artistas e as obras estabelecem com a comunidade. Agradar é, então, um fenômeno de integração de desejos e necessidades de ambas as partes. Lembrando Grotowski, se pensarmos que teatro é exatamente isso, é o que acontece entre ator e espectador, desejar agradar é desejar a real concretização do fenômeno teatral. E, nesse sentido, independente de escolas, gêneros ou linguagens, todo e 74 qualquer ator deseja, em última instância, que o teatro realmente aconteça e, portanto, deseja agradar. Em entrevista, Tiche Vianna41 comentou: Então eu acho que o agradar tem a ver com algo que acontece entre nós. Todo teatro quer agradar, não me venha com esse papo! Entendeu? Não me venha com essa conversa! (...) Claro que todo teatro quer agradar. Porque eu faço uma coisa pra que isso chegue em você, cause, atravesse, provoque... Como é que isso é não querer agradar? Eu quero agradar. Agora, o agradar não precisa ser só através do riso. Eu posso te agradar com a coisa mais trágica da face da Terra, né, ou mais dolorosa, ou você pode ter uma experiência ali que aquilo te agradou, mas vai passar por uma dor. Mas não é todo mundo que quer fazer isso... E o mundo tá sofrendo, galera! Vamos olhar pra isso? As pessoas sofrem... As pessoas sofrem... Vamos entender isso, e vamos entender aonde é que a gente potencializa as pessoas. Então como é que eu posso olhar para um circo, como o do Tubinho, que potencializa aquelas pessoas que tão ali e achar que ele não tem que se preocupar em querer agradar ou não querer agradar? Eu posso dizer isso, talvez, pra alguém diga “Eu quero fazer o que tá na minha cabeça, eu não quero me preocupar com nada, eu não quero me preocupar com o público, com ninguém”. E aí é aquilo: “Você pode fazer isso, então, na tua casa, entendeu? Se você convidou alguém pra ver, no mínimo você tá propondo alguma coisa aqui... O que você tá propondo?” E aí “Não quero propor nada, não quero”... Né? Que é uma das questões que hoje a gente discute com esse pós-dramático, com essa coisa ensimesmada que acaba pedindo um público especializadíssimo. Agora, você não quer agradar mesmo esse público especializadíssimo 42? Assim sendo, por mais que os espetáculos circenses, em sua maioria, não tratem de temáticas ligadas diretamente à ideia que temos de um teatro político e engajado, não posso dizer que há ausência de função política/educativa no circo. O circo é extremamente político na relação que estabelece com a cidade e os espetáculos em si são catalisadores de toda essa relação arduamente arquitetada. Ao mesmo tempo, esses espetáculos necessitam “sobreviver” e possuem o esmero de acabamento na medida em que lhes é possível. Nesta mesma entrevista, Tiche Vianna comentou: Talvez o agradar esteja vinculado a coisas que são valores pra eles. (...) Os conteúdos críticos estão ali na própria forma de organizar as relações com a cidade. No modo de organizar as relações é que o conteúdo é crítico. (...)A sensação que eu tenho toda vez que eu vou assistir o Tubinho é que o espetáculo é uma das coisas que está inserida dentro de uma relação ritual que aquele circo 41 Tiche Vianna, do Barracão Teatro, foi responsável pela preparação de elenco, no Circo de Teatro Tubinho, do espetáculo Cabocla Bonita. O espetáculo foi redirigido por Ésio Magalhães, também do Barracão Teatro, e fez parte do projeto de reelaboração de repertório financiado pela Petrobrás, através da lei de incentivo à Cultura do Ministério da Cultura e Governo Federal. 42 Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. 75 estabelece com a cidade. Nesse sentido, eu digo “Não há nada mais grego enquanto rito ditirâmbico do que o circo de teatro Tubinho no interior do estado de São Paulo”. Pra mim, o que eles fazem é exatamente uma retomada de um rito artístico. Onde na Grécia, pela natureza da cultura grega, daquelas pessoas, daquela época, que faziam daquele jeito e tinham aquelas preocupações, as tragédias ocupavam o lugar de fazer com que as pessoas entendessem princípios éticos, morais, de convívio, de solidariedade, de transversalidade, de relacionamento e construção social, tudo isso se dava através de um rito religioso que depois desembocou numa coisa chamada “teatro”. Pra mim é exatamente o que acontece quer dizer, quando aquele circo chega na cidade, ele muda uma dimensão de cidade43. Fazer rir e emocionar pode transformar a vida das pessoas. Ampliar a imaginação dos espectadores, através não de uma ação direta, mas sim de uma linguagem artística, pode lhes proporcionar a ampliação da consciência de seu nível de existência. E o circo é capaz de fazer isso, dialogando e agregando, num mesmo espaço, pessoas das mais variadas origens e classes sociais, pois ali se concretiza um tipo de relação que está para além das questões de ordem econômica: aquela, que deveria estar presente em todo e qualquer espetáculo, estabelecida entre um ser humano e outro. 43 Ibidem. 76 2. O PAVILHÃO ARETHUZZA 2.1 Trajetória Narro, a partir de agora, a trajetória das famílias Viana, Santoro e Neves, que compuseram o Circo Teatro Pavilhão Arethuzza, ao longo de seus quase cem anos de existência. A família Neves foi a fundadora deste circo e, com o passar dos anos, os membros das famílias Viana e Santoro foram agregados à companhia – como ocorria, e ainda ocorre, comumente nos mais diversos circos. A partir do momento em que esses novos artistas integraram o circo, passaram a fazer parte do que Erminia Silva (2007) chama de processo de formação/socialização/aprendizagem circense, que os inseria não só no espetáculo, como também no modo de vida do circo. Santoro Junior, da quinta geração da família Viana-Santoro-Neves, conta que, além dos Viana e Santoro, muitas outras pessoas também foram agregadas ao circo e que: (...) todos os que passavam a participar da família entravam para o mundo do circo adaptando-se às regras do mesmo, assimilando alguma atividade circense. Aqueles que não pertenciam à família por laços de sangue, passavam a pertencer por afinidade, sendo muito comum, ainda hoje, nas festas e reuniões de família, nas grandes datas, ouvir-se expressões: “Oi primo, como vai?” ou “Tio, o senhor está bem?”. Todavia este parentesco foi adquirido pela convivência comum, durante tantos anos, debaixo da lona do circo (SANTORO JR., 1997: 25). Desse modo, ao me referir à família do Circo Teatro Pavilhão Arethuzza, usarei a expressão Viana-Santoro-Neves como se esta correspondesse a uma única família. Esta trajetória será contada baseada nas informações levantadas através de três principais fontes escritas: a transcrição da entrevista de Rosalina Viana e Jacira Viana, avó e mãe de Fernando Neves – da sexta geração da família – concedida ao pesquisador Pedro Della Paschoa Júnior, no ano de 1972 e cedida a esta pesquisadora gentilmente pelo próprio Fernando Neves; a tese de doutorado “O teatro no circo brasileiro. Estudo de caso: CircoTeatro Pavilhão Arethuzza”, do pesquisador José Carlos dos Santos Andrade (2010); e a 77 monografia “Memórias de um Circo Brasileiro – Circo – Circo Teatro – Pavilhão Arethuzza”, de Antônio Santoro Junior, que hoje é professor de História da Arte . Tão importantes quanto essas fontes escritas foram as entrevistas concedidas por Fernando Neves e Santoro Junior, os representantes vivos da família que mais trabalham no sentido de se fazer conhecer a sua história. Para recuperar esta memória eles se basearam em fontes escritas, como documentos, recibos, cartas trocadas entre os familiares e reportagens de jornal e também nos relatos orais de seus parentes mais velhos. Mas se basearam, principalmente, em suas próprias lembranças, pois Santoro Junior atuou no Pavilhão Arethuzza até os vinte e quatro anos e Fernando Neves durante sua infância. Figura 7: Fernando Neves no colo de Margot Louro e Oscarito. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Assim sendo, o enfoque do estudo desta família cairá, principalmente, sobre o período ligado diretamente às memórias – pessoais e reconstituídas pelos relatos dos 78 parentes mais velhos – de Santoro Junior e Fernando Neves, que compreendem a década de 1940 a diante, período este em que o Pavilhão Arethuzza se fixou na cidade de São Paulo. Deixo claro que o estudo sobre o Pavilhão Arethuzza adquiriu um caráter mais teórico-descritivo do que o estudo acerca do Circo de Teatro Tubinho, devido ao fato do primeiro remontar a outro tempo – muito anterior até ao meu nascimento –, ao passo que o segundo circo, por estar em atividade, me permitiu um contato mais direto, que compôs, consequentemente, um estudo com caráter mais descritivo-analítico e reflexivo. Desse modo, tudo o que consegui reunir acerca do Pavilhão Arethuzza adveio de pesquisas bibliográficas e as entrevistas. Neste sentido, estas últimas foram essenciais para a pesquisa, já que estou tratando essencialmente das questões da cena e do desempenho dos atores deste circo, temas geralmente pouco relatados nas fontes escritas sobre o circo-teatro. Assim sendo, me senti muito mais próxima de remontar e imaginar como se encenavam as peças no Pavilhão Arethuzza ao ouvir os “causos” e os trechos de diversas peças declamados por Santoro Junior durante as entrevistas, por exemplo. Figura 8: Fernando Neves (à esquerda) e Antônio Santoro Junior (à direita) na entrevista realizada em 27/08/2014. 79 Fonte: Arquivo pessoal da autora. As origens do Pavilhão Arethuzza remontam ao século XIX, quando João Miguel de Faria – já feito Comendador pelo Imperador Dom Pedro II – fundou o Circo Glória do Brasil, entre 1865 e 1875. Não se sabe muito sobre a vida de João Miguel antes do circo, mas já aqui, destaco uma particularidade do Pavilhão Arethuzza: trata-se de um circo fundado por um brasileiro, mas que, com toda a certeza, sofreu influências dos circos europeus que chegaram ao Brasil a partir da década de 1830. João Miguel era uma figura extremamente peculiar e, mesmo paraplégico, locomovendo-se através de uma invenção própria – uma espécie de carro puxado por bodes –, comandava o circo, coordenando, inclusive, a montagem e desmontagem da lona. Além das tarefas administrativas, o Comendador realizava no espetáculo um prestigiado número de encantamento de serpentes44: Sua atuação no picadeiro era um dos números mais aguardados. Tinha início com o diretor do circo retirando a víbora de dentro de uma caixa, com as próprias mãos e nenhum tipo de proteção. Segurando a áspide com firmeza, fixava os olhos em determinado espectador, até que o público todo tomasse conhecimento sobre quem havia recaído a sua escolha. Em seguida, a cobra colocada no chão obedecia ao comando do encantador, rastejando em direção ao escolhido. A serpente erguia-se em frente ao espectador, permanecendo imóvel, enquanto aguardava que João Miguel, à distância, solicitasse que o cavalheiro tirasse o chapéu com o qual havia vindo ao circo e o colocasse na cabeça da cobra. (...) O feito arrancava aplausos calorosos da plateia, mas não ficava nisso apenas. A um segundo comando, a cobra deslocava-se mansamente, dirigindo-se agora a uma senhorita que, certamente, já deveria ter sido escolhida previamente pelo Comendador, porém sem o conhecimento desta, naturalmente. Frente à dama, entre surpresa e sobressaltada, erguia-se a serpente e, pacientemente, esperava que esta lhe removesse o chapéu (...). O circo quase vinha abaixo de tantos aplausos (ANDRADE, 2010: 300). 44 Não se sabe como e com quem João Miguel aprendeu tal ofício. Por lidar tanto tempo com os ofídios, João Miguel desenvolveu uma fórmula que neutralizava o veneno das cobras; esta fórmula foi aprimorada pelo Instituto Butantã e usada como soro antiofídico até hoje (ANDRADE, 2010). 80 Figura 9: O comendador João Miguel de Faria e sua esposa Maria Alexandrina, s.d. Fonte: ANDRADE, 2010. Anexos. O Comendador era casado com Maria Alexandrina de Farias, de origem circense, e juntos tiveram uma filha, Elvira, que desde muito cedo demonstrava habilidade para o número de equilíbrio sobre bola. Alguns anos mais tarde, o Pavilhão Arethuzza teve sua história abalada por uma grande fatalidade (muito recorrente, aliás, nas histórias de tantas outras famílias circenses): o marido de Elvira, Benedictus de Oliveira, morreu em pleno espetáculo, após um salto mal sucedido e uma queda do trapézio. Benedictus exibia-se num alto trapézio sem a utilização de rede e seu número agradava muito a plateia, incentivando-o a criar dificuldades na realização do mesmo. Certa noite, não sabemos exatamente em que cidade, pois estas histórias vieram passando por tradição oral, entusiasmado com o circo cheio e os aplausos, Benedictus tentou fazer novas peripécias em um de seus trucs, porém foi mal sucedido e caiu do trapézio sofrendo uma queda fatal. Logo a barreira retirou o corpo inanimado do picadeiro, a banda tocou o galope, outros artistas foram se apresentando até que o espetáculo acabasse com o mesmo dinamismo de sempre. Finalmente após o término das apresentações desta fatídica noite os artistas e 81 companheiros puderam chorar à vontade, soltando suas emoções e preocupandose a partir de então com os problemas do funeral e enterro de Benedictus. Este fato comprova aquela tese de que o mundo artístico, o espetáculo precisa sempre continuar e nunca pode parar (SANTORO JR., 1997: 16). O Circo Glória do Brasil continuou sua história, mas Elvira nunca superou totalmente a perda do marido. Para sair daquele ambiente impregnado pela lembrança do acidente de Benedictus, Elvira partiu com outro circo para o exterior, deixando a filha, Benedicta Elvira, aos cuidados dos avós. A neta do Comendador, então, cresceu no circo e já na adolescência encantava as plateias com seu número equestre, em que chegava até a executar movimentos sobre uma parelha. Em 1891, Antônio das Neves, um português que vivia no Brasil desde sua infância, passou a trabalhar no Circo Glória do Brasil. Em pouco tempo, por ter se mostrado um excelente artista e administrador, com apenas dezoito anos, tornou-se sócio do Comendador João Miguel de Farias, no agora chamado Circo Luso Brasileiro. Em 1895 casou-se com Benedicta Elvira e assumiu a direção total do circo, que ganhou de presente de casamento e que passou a se chamar Circo Colombo (Idem). Nestes primeiros tempos, Santoro Junior explica que: (...) o circo era envolvido apenas por algodãozinho cru, tecido muito frágil e sensível às intempéries, assim era muito comum nos períodos das grandes chuvas o público ir aos espetáculos munidos de guarda-chuvas, que eram abertos assim que a chuva aumentava, entretanto, ninguém saía e exigiam que o espetáculo continuasse até o fim. Artistas e animais ensopados continuavam sua lida no picadeiro, enquanto as arquibancadas mostravam um público molhado, de guarda-chuvas abertos, mas divertido e feliz. (Idem: 18). Num segundo momento, o circo passou a ser impermeabilizado com cera, possibilitando maior proteção e, finalmente, surgiu a lona impermeabilizada, o que permitiu ao circo percorrer vários estados brasileiros. 82 Figura 10: Antônio das Neves, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Ainda no final do século XIX, Elvira, mãe de Benedicta Elvira retornou ao Circo Colombo e casou-se com o Alferes Eugênio Barbosa. O circo prosperou e viajou pelo país, passando pelo interior de São Paulo, interior fluminense e o sul de Minas Gerais. Antônio das Neves e Benedicta Elvira tiveram, então, nove filhos. Arethusa nasceu em 1896, Aristides em 1898, Guiomar em 1900, Arthur em 1902, Oscar em 1903, Jurandyr em 1905, Alzira em 1907, Antônio Neves Junior em 1909, e mais tarde, em 1917, Gisella. 83 Figura 11: Antônio das Neves, a esposa Benedicta Elvira e filhos, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. No final da década de 1910, ao passar com o circo por São Lourenço/MG, Antônio das Neves foi procurado por uma viúva, mãe de cinco filhos, que pedia abrigo para ela e sua família. Era o início da parceira das famílias Neves e Santoro. Dessa forma, a viúva Mariana Mauro Santoro e seus filhos – José, Maria da Conceição, Maria das Dores, Antônio e Maria Sebastiana – passaram a integrar o então Circo Colombo. As crianças – que nada conheciam acerca das técnicas circenses – foram inseridas rapidamente no processo de formação/socialização/aprendizagem do circo e passaram a integrar o corpo artístico do espetáculo, apresentando diversos números de habilidades. Com o passar dos anos, quatro irmãos da família Neves se casaram com quatro irmãos da família Santoro: Aristides Neves e Maria das Dores Santoro, Oscar Neves e Maria da Conceição Santoro, Antônio Neves Junior e Maria Sebastiana Santoro e Alzira Neves e Antônio Santoro – estes últimos, pais de Santoro Junior. Tem-se, então a mais importante estruturação desta companhia circense, “resultado da tradição do Circo 84 Colombo – família Neves – com a formação circense adquirida e assimilada pela família Santoro” (Idem: 26). Os anos passaram e mais tragédias marcaram a história do Arethuzza, entre elas a morte acidental da caçula de Antônio das Neves e Benedicta Elvira, Gisella, com apenas um ano e três meses, numa estação ferroviária. Benedicta Elvira, que já apresentava sintomas de distúrbios mentais, piorou significativamente com a morte da filha e precisou ser internada na casa de Assistência a Alienados na cidade de Barbacena, por volta de 1920, onde residiu até sua morte em 1926. Neste mesmo ano45, o Circo Colombo passou a se chamar Circo-Teatro Arethuzza, nome da primogênita de Neves e Benedicta Elvira. (...) Conta-se que no mesmo mês e ano da morte de Benedicta Elvira, fevereiro de 1926, a denominação “Arethuzza” passou a ser utilizada, provavelmente por sugestão de um espanhol, “habitué” do circo, que conversando com Antônio das Neves, disse que Colombo era um nome trágico e de desgraça. Dizia ainda que “Colombo descobriu América e morreu na miséria”, assim, já que sua filha primogênita possuía grande destaque no mundo artístico, porque não usar seu nome como denominação do circo, inclusive mudando a grafia original de “s” para “zz”, para dar maior charme e atrativos (Idem: 25). A nomenclatura Circo-Teatro passou a ser usada, pois nessa época a pantomima já era um dos momentos mais aguardados do espetáculo. De acordo com Santoro Junior (1997), foi passado oralmente que o Pavilhão Arethuzza originalmente não apresentava pantomimas, sendo seu programa preenchido com os números de destreza física e exibição de feras amestradas. Somente a partir de um determinado momento, ao visitarem um circo que chegou da Europa e perceberem que o público se interessava pelas pantomimas ali representadas, os artistas do Pavilhão Arethuzza passaram também a representá-las46. Segundo Santoro Junior, as pantomimas foram caindo cada vez mais nas graças do público, ao passo que se agravava a dificuldade em se manter os animais adestrados. Desse modo, as 45 Na documentação escrita preservada por Santoro Junior, um programa de Matão (SP), de 03/01/1925, é o último documento em que aparece o nome Circo Colombo e em um envelope de carta de Carangola (MG), destinada à Arethusa, em 03/07/1926, aparece pela primeira vez o nome Circo Teatro Arethuzza. 46 Santoro Junior não soube precisar exatamente quando ocorreu essa mudança no espetáculo do Pavilhão Arethuzza com a inclusão das pantomimas. 85 pantomimas passaram a ser mais desenvolvidas e elaboradas, porém representadas ainda no picadeiro. Devo tecer uma consideração importante acerca das afirmações anteriores, colhidas em entrevista. Como evidenciado no primeiro capítulo, não acredito que a questão da dificuldade em se manter feras tenha sido determinante no processo de consolidação do fenômeno que ficou conhecido como circo-teatro; acredito muito mais que este se consolidou pelo fato das pantomimas agradarem satisfatoriamente em terras brasileiras, nas quais a população ainda estava desacostumada à linguagem teatral – fato que, a meu ver, é comprovado pela própria fala de Santoro Junior redigida adiante. Figura 12: Circo-Teatro Arethuzza, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. 86 Não se sabe ao certo quando o Circo-Teatro Arethuzza ganhou o tablado de madeira que, com o passar do tempo, cresceu em altura, transformando-se no palco teatral encontrado nos diversos circos-teatro. Santoro Junior, em entrevista, resumiu os fatos em: Então meu avô começou a pensar em pegar as pantomimas... Ele tinha a companhia dele, já tava pronta. (...) Então aí começa a fazer as pantomimas, as primeiras, e depois eles mesmos começam a criar as pantomimas. Aí eles começaram a perceber que o pessoal fazia assim (faz um gesto de levantar a cabeça, como se tivesse alguém sentado na sua frente e ele precisasse desviar para assistir algo que estava lhe chamando a atenção), davam risada e faziam assim (repete o gesto). Então eles sentiram que eles precisavam estar um pouquinho mais alto, eles fizeram um tapume, um tabladozinho de 10 cm... O início do palco. Então daí o povo já começou a se acomodar melhor. Até que ele foi crescendo, até que o picadeiro foi embora, o palco fica lá e ele faz o circoteatro47. Já na década de 1930, a política da região Sudeste – região pela qual o Circo Teatro Arethuzza circulava – encontrava-se num panorama irregular, devido à Revolução de 1930 e à Revolução Constitucionalista de 1932: O clima de insegurança era generalizado e as trupes que se deslocavam pelas estradas em busca de novas praças acabavam sempre por cruzar com tropas militares em movimentos de manobras. A população das pequenas cidades, ressabiada e intimidada, não se sentia motivada a sair de casa e qualquer tostão devia ser guardado para os dias piores que poderiam advir. A soma desses fatores significava arquibancadas vazias (ANDRADE, 2010: 385 e 386). Em 1939 houve ainda a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que comprometia a liberdade de expressão das companhias. Esses fatores, unidos ao desejo do já idoso Antônio das Neves de ver a família reunida, fizeram com que o CircoTeatro Arethuzza fixasse residência em São Paulo, primeiramente no bairro de Santana e depois na Mooca, e passasse a percorrer os bairros da capital paulistana assim como havia percorrido as cidades do interior do país. Sobre essa estabilização em São Paulo, Santoro Junior contou em entrevista: (...) nós chegamos aqui (em São Paulo), na década de 40... Meu avô quando chega aqui em São Paulo e vê a movimentação, ele falou “Gente, viajar não mais. Primeiro eu não quero judiar mais de vocês e segundo, aqui vocês vão procurar o 47 Antônio Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 87 próprio crescimento, e vão perceber que São Paulo vai ter tudo”. E dito e feito. Aí ele foi pra Santana, e quando ele chegou em Santana, ele viu umas casas, aí conversando, falaram “Olha.. pro que o senhor tá querendo acho que na Mooca tem num sei quê...”. Ele foi lá, ficou apaixonado, “É o que eu quero”, então ele comprou e fixou moradia na Mooca, nunca mais saiu de lá... Todo mundo saiu de lá pro cemitério, que ele comprou um túmulo ali... Então, ali na Mooca, a gente primeiro começou a correr os bairros, depois foi correndo os outros bairros; primeiro o bairro da Mooca a gente usou e abusou, depois foi correndo48. Na década de 1940, o Circo-Teatro Arethuzza sofreu uma mudança estrutural, transformando-se num pavilhão, rodeado de metal e coberto de zinco; desse modo, o circo passou a se chamar Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza e consolidou-se como uma das companhias de circo-teatro mais bem sucedidas daquele momento. O palco, no tradicional molde italiano49, era dotado de urdimentos, coxias e porão e a plateia era distribuída não mais em arquibancadas circulares, mas sim no formato retangular característico das salas de espetáculos teatrais. Com a consolidação da estrutura do pavilhão, o picadeiro desapareceu e os números da primeira parte passaram a ser representados também no palco; os de grande porte, como os voos e volteios equestres, que já haviam sido a grande atração dos circos de cavalinhos, foram substituídos por números de pequeno porte, conhecidos, inclusive entre os artistas do Arethuzza, como números de salão, que contavam com a exibição de pequenos animais, como cachorros e macacos, malabarismos, acrobacias, icários, números musicais, regionais, de magia e prestidigitação (ANDRADE, 2010; SANTORO JÚNIOR, 1997). Em relação à segunda parte do espetáculo, Santoro Junior conta que Tendo aperfeiçoado o Circo Teatro, o Arethuzza começou a preocupar-se com as superproduções, entrando assim na década de 40 deslumbrando milhares de espectadores que se extasiavam com as montagens, a interpretação dos atores, o texto decorado na íntegra sem auxílio de ponto, os cenários e principalmente o guarda-roupa a caráter e o cuidado na apresentação das apoteoses, além de efeitos especiais, numa época em que não havia a tecnologia avançada de hoje e tudo era efetuado manual e artesanalmente (SANTORO JR., 1997: 43). 48 Ibidem. O modelo de palco italiano, difundido a partir da virada do século XV para o XVI, no chamado Renascimento Italiano, foi o adotado pelos circos-teatro. Porém, não sei precisar se este termo era usado já entre os circenses no Brasil no início do século XX. 49 88 A partir da década de 1950, a atividade circense dos circos itinerantes de lona, na região Sudeste, sofre significativa diminuição. Santoro Junior – como diversos outros autores – afirma que o êxodo dos artistas circenses para a televisão e o cinema, o posterior advento desses veículos de comunicação, a crescente escassez de áreas urbanas centrais próprias às instalações circenses e os altos impostos cobrados pelas prefeituras fizeram com que muitos circos encerrassem suas atividades (Idem). Porém, não posso deixar de citar novamente o dado apresentado pela pesquisadora Erminia Silva (2007) que situa a profunda mudança ocorrida no processo de formação/socialização/aprendizagem circense como fator determinante da diminuição da atividade circense nos circos-família. O Pavilhão Arethuzza ainda conseguiu manter suas atividades durante toda a década de 1950, graças à “versatilidade, polivalência e amor pelo circo de seus artistas e funcionários, tanto os da família como os de fora” (SANTORO JR., 1997: 58). Para driblar as adversidades, a companhia utilizou várias estratégias como, por exemplo, enxugar as encenações, que passavam a ter, muitas vezes, metade dos atos que tinham originalmente. Santoro Junior conta que O grande aumento da população urbana que vinha ocorrendo nos últimos anos, a industrialização acelerada, o excesso de espera das conduções para se chegar ao trabalho, tudo isto mudou o perfil do homem da cidade, e quando ele vai ao circo, quer um divertimento imediato. Ele se mexe nas cadeiras do circo, não aceita mais os épicos, quer mais agitação. (...) Para agradar o público, as peças vão sendo enxugadas, isto é, seus textos são encurtados, como o caso da peça “Família Maldita” levada em três atos, que na realidade era uma adaptação da peça francesa intitulada “As duas órfãs”, que continha sete atos e dois quadros (Idem: 58). Além disso, os efeitos especiais – comumente utilizados pelos circos e também os teatros há séculos – passaram a ser explorados mais ainda, na tentativa de prender a atenção do público, cada vez mais disperso. Este ponto merece atenção. Segundo a pesquisadora Erminia Silva50, não se deve analisar esta mudança apenas como uma alternativa de driblar a crise. Entende-se que 50 Esta reflexão fez parte da arguição de Erminia Silva na Banca de Qualificação desta dissertação de Mestrado, ocorrida em 28/04/2014. 89 houve esta mudança estética nos circos – entre eles, o Pavilhão Arethuzza – devido também ao advento do cinema. O circo, sempre antropofágico e agregador das novas tendências e conformações artísticas e estéticas, passou a apresentar encenações, então, que dialogavam mais com a arte cinematográfica. Figura 13: Elenco do Pavilhão Arethuzza posando ao redor do retrato do presidente Getúlio Vargas, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Também na década de 1950, a família Viana-Santoro-Neves passou a contratar a família Fonseca para a primeira parte do espetáculo. Desse modo, o Pavilhão Arethuzza nunca deixou de apresentar a parte de variedades, porém o fato de terceirizarem esta criou uma ruptura no processo de formação/socialização/aprendizagem da família Viana-SantoroNeves, de modo que as gerações mais novas deixaram de ser receptoras dos saberes – relacionados à parte de variedades – das gerações mais velhas. Fernando Neves afirmou, em entrevista, que seus antepassados se apaixonaram tanto pela arte da representação teatral que quiseram se dedicar totalmente a ela e que também já estava nos planos da família encerrar, em breve, as atividades: 90 Eles já tinham mais idade... Eles poderiam ter passado pros outros, mas eles queriam acabar e não passaram nada pra gente. Mas eles se apaixonaram por representar mesmo, pelo ator. Era mais importante pra eles. Antes mesmo deles envelhecerem, que eles ainda podiam, eles começaram a terceirizar, de olho no espetáculo de teatro. Mas não que não tinha, eles terceirizaram, contrataram outras famílias51. Em 1964, a família Viana-Santoro-Neves resolveu encerrar suas atividades, ao constatar que não havia mais condições de manter o mesmo padrão de qualidade das montagens com as quais havia se consagrado junto ao público, colocando um ponto final – transformado posteriormente em reticências, principalmente, por Santoro Junior e Fernando Neves – em sua história. Figura 14: Antônio das Neves, sua segunda esposa Rosa e seus descendentes, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. 2.2 Processo de formação/socialização/aprendizagem no Pavilhão Arethuzza 51 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. 91 Atualmente, podemos aprender as técnicas das artes circenses – principalmente às ligadas aos números de destreza física 52 – nos mais diversos espaços, como escolas profissionalizantes, projetos sociais e até mesmo academias de ginástica. De acordo com Rodrigo Mallet Duprat, O acesso aos saberes circenses e a instalação de novos modelos de formação dos artistas também propiciaram certa “democratização do circo” enquanto conhecimento que pode ser vivenciado. A atualidade mostra que os saberes seculares do circo podem ser vistos e vividos para além dos espaços consagrados – como a lona, por exemplo –, e, assim como a formação se estendeu para escolas profissionalizantes, projetos sociais e centros culturais, ela também alcançou espaços anteriormente não vinculados a tais saberes. Dessa forma, escolas formais, incluindo as universidades, academias de ginástica e outros locais especializados em práticas recreativas, receberam o circo como uma nova possibilidade de prática, mesmo quando não há o interesse pela formação profissional (DUPRAT, 2014: 76). Porém, nem sempre foi assim. Houve um tempo – até meados do século XX – em que os conhecimentos relacionados às artes circenses eram mantidos no interior das famílias de circo, que os transmitiam de geração em geração oralmente. Esses conhecimentos constituíam uma formação ampla e permanente, que visava não só o aprendizado de uma modalidade circense específica, como também um conjunto de saberes necessários para a manutenção da vida e da arte circense. O conteúdo deste saber era (e é) suficiente para ensinar a armar e desarmar o circo, preparar os números, as peças de teatro e capacitar crianças e adultos para executá-los. Esse conteúdo tratava também de ensinar sobre a vida nas cidades, as primeiras letras e as técnicas de locomoção do circo. Através desse saber transmitido coletivamente às gerações seguintes, garantiu-se a continuidade de um modo particular de trabalho e uma maneira especifica de organizar o espetáculo. (SILVA; ABREU, 2009: 26). Como dito anteriormente nesta dissertação, esses circos são chamados de “tradicionais” ou circo-família, tendo como características em comum a itinerância, um modelo de formação/socialização/aprendizagem integral, transmitido oralmente de pai para filho e diretamente ligado a um modo de organização do trabalho – marcado “pelas relações 52 A arte do palhaço é também extremamente difundida na atualidade. Porém, são raros os cursos ou escolas que se debruçam sobre o estudo da palhaçaria circense, sendo mais comum a abordagem do palhaço pelo campo do teatro, muitas vezes integrando parte de um tipo específico de treinamento técnico do ator. 92 singulares estabelecidas com as realidades culturais e sociais específicas de cada região ou país” (Idem: 25) –, ligado diretamente, por sua vez, à configuração estética do espetáculo. Desse modo, o Pavilhão Arethuzza pode ser chamado de tradicional ou circofamília, sendo a família Viana-Santoro-Neves o seu mastro central. Nesta família a síntese da filosofia circense era expressa, nos seus primórdios, pelo Comendador João Miguel pela máxima “Em circo todo mundo tem que fazer um pouco de tudo” (ANDRADE, 2010: 301). Santoro Junior comenta: O circo era uma comunidade, onde todos se auxiliavam e o objetivo maior era o bem do circo. Não havia distinção de trabalhos, a estrela, o trapezista, a dupla cômica, na hora da necessidade assumiam o papel de comparsaria, ajudavam a pregar a cruz de Cristo na Semana Santa, montar e desmontar as lonas e os mastros em cada nova praça. As mulheres do circo, excelentes artesãs confeccionavam peças do guarda-roupa, bordavam e criavam modelos, de acordo com as instruções fornecidas por Arethusa, obedecendo um rigoroso critério de pesquisa de arte para os trajes da época. Para a venda de souvenirs na hora do intervalo, havia também trabalho comum: a confecção tantos dos doces, balas, como dos invólucros que agradavam a vista e atraíam a atenção principalmente das crianças (SANTORO JR., 1997: 56). A respeito do fato do circo-família se sedimentar pela transmissão oral dos conhecimentos, devo ressaltar que essa tradição deve ser entendida “não apenas como oralidade, mas como o conjunto das memórias gestuais, sonoras, de relações sociais e culturais (...)” (SILVA, 2007: 95). Esclarecido esse ponto, destaco que a tradição oral determinava toda a formação do artista circense, que, desde criança, se habituava por completo a este tipo de transmissão de saberes. Acerca disso, Santoro Junior contou em entrevista: Meu grande problema na verdade é que eu comecei a ler bem cedo, mas eu aprendi tudo decorado, então o que me fala é fácil, mas o que eu leio é mais complicado de guardar. E isso veio me complicar a vida depois do ginásio pra frente, porque tinha que ler... Não tinha todo mundo me falando as coisas, e tal53. Aqui percebo claramente como Santoro Junior foi habituado a aprender pela oralidade e não pela escrita. Durante toda a entrevista, Santoro Junior ia me contando várias 53 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 93 passagens e histórias e sempre que fazia referência a uma peça parava o que estava contando e recitava um “bife” 54 inteiro! Estava eu, diante de um senhor de mais de setenta anos com uma memória absurda, que recitava trechos belos e complexos das mais diversas peças que representou durante a vida, de um modo extremamente tocante e verdadeiro... Santoro Junior disse também que até hoje, nos almoços de família, entre um diálogo e outro, ele e os outros parentes passam a elevar a voz e a declamar trechos inteiros das peças clássicas de circo-teatro que representavam, matando, de certa forma, um pouco da saudade da vida circense. O trecho abaixo de um dos textos de Walter de Sousa Júnior, que li posteriormente à entrevista com Santoro Junior, me remeteu diretamente ao que senti enquanto ele recitava os trechos das peças: Ao saber o texto de cor e salteado, o circense usa a prática requerida para a sua atividade profissional como um sistema reforçador da sua identidade, pois, ao recitar o texto, este já faz parte de sua personalidade artística – é o personagem que fala por ele, e ele, ao relembrar o texto, fala pelo personagem – de modo que identificação e alteridade se confundem num jogo de memória em que as cartas e suas posições são conhecidas de antemão, o que não tira a graça do exercício. É a relação entre memória e oralidade (SOUSA JR., 2012: 12 e 13). O Pavilhão Arethuzza – assim como diversos outros circos-família – formava uma comunidade de regras próprias e muito rígidas, na qual havia um “sentimento de família muito forte, que era sempre estimulado através de uma obediência inata ao dono do circo, geralmente a pessoa de mais idade e o parente mais antigo” (SANTORO JR., 1997: 30). Essa pessoa, descrita por Santoro Junior, responsável pela formação dos profissionais circenses era considerada um mestre: 54 Jargão usado no teatro. Um “bife” é uma fala extensa de uma personagem. 94 Mestre da arte circense, mestre de um modo de vida, mestre em saberes – ou seja, um mestre “pertencente à tradição”, pois durante toda a sua vida participou das experiências de socialização/formação/aprendizagem que caracterizam o circo-família (SILVA; ABREU, 2009: 106). Na família Viana-Santoro-Neves a figura do mestre foi representada por Antônio das Neves, até a sua morte na década de 1950. A partir desse momento, Arethusa Neves assume o posto de figura centralizadora da família; porém, Arethusa, mesmo antes da morte de seu pai, já era muito requisitada para a resolução das questões Figura 15: Antônio das Neves, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. mais importantes do circo. Santoro Junior afirma que era quase uma lei não escrita nos circos o fato de que toda criança deveria estudar, apesar do Estado ainda não ter tornado obrigatória a educação básica (SANTORO JR, 1997). Desse modo, enquanto na década de 1920, 71,2% dos brasileiros não sabiam ler e escrever (RAVANELLO FERRARO; KREIDLOW, 2004), no circo era comum que as pessoas fossem alfabetizadas, pois conhecer a língua portuguesa fazia parte da formação integral do indivíduo no ambiente circense. Porém, a vida nômade no circo dificultava a matrícula das crianças nas escolas regulares. No Pavilhão Arethuzza este problema foi resolvido com a contratação de um professor particular, Eugênio Barbosa, que acompanhava as viagens do circo e que foi responsável pelo ensino de todas as crianças das primeiras gerações do Arethuzza do século XX. A partir da década de 1940, com o pavilhão fixo na cidade de São Paulo, as crianças passaram a frequentar as escolas públicas, porém a sua formação continuava sendo complementada no circo. Na descrição abaixo, Santoro Junior nos mostra como a educação no Pavilhão Arethuzza era completa e dava subsídios para o desenvolvimento pessoal e artístico de seus integrantes: 95 À época do padrinho Barbosa, era imprescindível o ensino da Aritmética, pois se alguém não conseguisse exercer a função de artista, poderia partir para outras atividades, brincava-se na época inclusive, que poderia ser um excelente bilheteiro; Português, a língua pátria, a forma de se expressar, pois não se admitia a possibilidade de um ator não saber pronunciar direito as palavras, que muitas vezes se tornavam a chave de uma importante trama; Francês, que era a língua estrangeira mais utilizada na época e permitia acesso aos textos clássicos; Música, tendo em vista a importância da mesma no transcorrer de todo espetáculo, principalmente para obter a sincronia necessária na apresentação uma vez que números e trucs eram acompanhados pela batida e pelo ritmo da música; Postura, pois o ator deveria saber como caminhar, comer, tomar cena, etc.; Civismo, amor à Pátria, saber cantar o Hino Nacional e comportar-se adequadamente quando de sua execução. (SANTORO JR., 1997: 30 e 31). Em entrevista, Santoro Junior afirmou que no Arethuzza também se ensinava História da Arte e que era comum a utilização de obras de arte de diversas escolas como inspiração para a composição de cenas e apoteoses55. Uma passagem engraçada narrada por Santoro Junior, também em entrevista, merece destaque por evidenciar a formação diferenciada das crianças circenses: Eu fui o último dos primos-irmãos, eu era muito pequenininho e eles achavam que eu ia ser anão. Uma loucura... Mas assim: a tia Thuzza (remete-se à Arethusa Neves) me pegava no colo e ia ler a peça, aí outro me pegava no colo, e eu ficava lá, e eu dava palpite, eu falava que “não quero”, mas eu não saia de lá. Então aquilo foi fazendo todo um contexto pra mim... Só pra você ter um paralelo: eu tava com onze anos e fiz meu primeiro exame pra primeira série ginasial. Tinha exame oral e pra mim caiu “A Escrava Isaura”, e daí a professora falou “Ah! „A Escrava Isaura‟”, e aí eu falei “É...”. E aí eu fui falando coisas que a professora ficou olhando assim pra mim, aí eu falei “Ah... eu sei até a música que ela tava tocando no piano...”. Porque ela tocava no piano uma música e pela letra da música, por ela ser uma escrava branca, localizaram e prenderam ela (...). “Você quer que eu fale a música?”, ela falou “Quero”. E eu: “Desde o berço respirando, os ares da escravidão, como semente lançada em terra de maldição.”, e a professora falou “Onde você viu isso?”, “Ah eu li. Quer que eu cante a música?”, “Ah, eu quero!”. (Cantando) “Desde o berço respirando, os ares...”, “Para! Para!” e foi chamar o diretor! Ninguém sabia que eu era do circo... Então eu vim de uma cultura assim56... 55 Cena final das peças, tanto de parte do teatro contemporâneo ao circo-teatro no Brasil, quanto das próprias representações circenses. Após o final da narrativa da peça, montava-se ainda a apoteose, um grandioso e espetacular quadro em movimento, que fechava com chave de ouro a encenação. Por exemplo, em ... E o céu uniu dois corações, o autor Antenor Pimenta descreve a apoteose da peça: “Cenário: céu. Uma escada de nuvens. No topo está Nely, vestida de noiva. Desce vagarosamente a escada e vai à coxia, estendendo a mão e trazendo Alberto. O par sobe a escada e uma porta no céu, em forma de coração, vai se abrindo. Entram, olham-se e a porta se fecha. Cortina. Fim da peça”. 56 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 96 Aliados aos ensinamentos citados anteriormente, considerados básicos e que ampliavam significativamente o horizonte cultural dos integrantes da família VianaSantoro-Neves, havia ainda o ensino, desde o início do circo, a toda criança de um número de destreza, de acordo com a sua preferência e habilidade. E, a partir do momento em que a representação teatral passou a fazer parte do espetáculo deste circo, às crianças era ensinada também a arte da interpretação. Antônio das Neves foi o responsável pela formação – no plano da destreza física – de todos os filhos e netos. Santoro Junior conta que o avô era extremamente rígido e que, muitas vezes, as punições vinham em forma de sopapos: A primeira vez que entrei em cena estava com tanto medo, foi uma emoção tão grande que eu não conseguia parar de chorar. Então comecei a ser chamado de ator mirim dramático. Toda peça eu tinha que entrar e chorar... E o povo se comovia e chorava junto comigo. Uma vez, ainda na primeira parte do espetáculo, na parte de variedades, eu tinha que andar no fio e não estava conseguindo. Então comecei a chorar. Meu avô me fez voltar não sei quantas mil vezes até acertar, e na última vez ele me disse: „Volta e não chora‟. Depois, no número final quando ele entrava e segurava duas escadas e seus seis filhos nos braços, ele foi tão, mas tão vaiado por ter gritado comigo! Eu tenho quase 70 anos e de vez em quando ainda acordo com as vaias57... A idade apropriada para aprender as técnicas dos números de habilidade física variava entre os quatro e sete anos, “idade considerada ideal para aprender os vários tipos de saltos e adquirir o equilíbrio e controle do tempo e do corpo” (SANTORO, 1997: 32). E, segundo Ermínia Silva Não é demais recolocar a ideia de que no circo nada é apenas técnico. A criança seria não só a continuadora da tradição, mas poderia ser também um futuro mestre. Para ser um circense tinha que assumir a responsabilidade de ensinar à geração seguinte. Ao longo de sua aprendizagem, a criança “aprendia a aprender” para ensinar quando fosse mais velha. O “ritual de iniciação” – aprendizado e estreia – era um rito de passagem, a possibilidade de tornar-se um profissional circense. O contato com a geração seguinte era permanente, havendo um envolvimento direto na aprendizagem. (SILVA; ABREU, 2009: 95) 57 Trecho transcrito de uma mesa redonda que Santoro Junior participou no ano de 2007 na Casa de Cultura Amácio Mazzaropi, em São Paulo. 97 Desse modo, o artista circense tinha grandes responsabilidades desde cedo, pois se exigia das crianças – do mesmo modo como se exigia de um adulto – disciplina, rigor e determinação. Desde muito novas, as crianças faziam pequenas aparições nos números da família ou mesmo nas representações teatrais, para perderem o medo e se habituarem a estar à vontade no picadeiro e no palco. 2.3 A primeira parte do espetáculo Fernando Neves e Santoro Junior disseram, em entrevista, que existe uma “teoria” no circo-família, passada de geração em geração, de que “para ser artista de circo é preciso saber saltar”. Desse modo, a primeira técnica apreendida pelos circenses era a acrobacia, para, em seguida, após o desenvolvimento inicial das faculdades psicomotoras, serem ensinadas as modalidades mais específicas como trapézio, contorção, equilíbrio no fio e malabares, por exemplo. Assim, cada filho e cada neto de Antônio das Neves se especializou em determinado número. Arethusa começou a ensaiar o número de passeio no arame aos oito anos e aos dez se tornou a primeira aramista brasileira a andar de bicicleta no arame, sem rede de proteção, sem marombas e sem guarda-chuva. Guiomar estreou aos onze anos um número aéreo e em seguida passou a ensaiar o número de equilíbrio sobre a bola em homenagem à sua avó, Elvira. Jurandyr (Didi) era especialista em força capilar e Alzira realizava o número de passeio aéreo58. 58 Modalidade que faz uso de anéis de metal ou corda, presos em uma estrutura sólida e fixa no alto do circo. O número consiste em o artista andar, de cabeça para baixo, com os pés encaixados nesses anéis ou também deslocar-se usando as mãos. 98 Figura 16: Arethuzza Neves, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Figura 17: Arethuzza Neves, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior Dos filhos homens, Arthur era o único a não executar um número de habilidade na primeira parte, permanecendo na barreira. Aristides era o Mestre de Pista, Oscar Neves era o Excêntrico (ou palhaço Augusto), de nome Thomé, e Antônio Neves Junior o Clown (ou palhaço Branco), de nome Sinhô. Juntos, Thomé e Sinhô formavam a dupla cômica59 da primeira parte e estes papéis eram tão relevantes e solidificados na estrutura familiar, que ambos eram chamados no dia a dia pelos nomes de seus palhaços. 59 Adiante dissertarei mais detalhadamente acerca dos vários nomes usados para designar os palhaços da dupla cômica. 99 Figura 18: Lembrança dos Irmãos Neves, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Os artistas do Pavilhão Arethuzza – assim como tantos outros de seus contemporâneos – eram artistas polivalentes, que se apresentavam nas duas partes do espetáculo e sabiam, no mínimo, saltar, cantar, tocar um instrumento, dançar e atuar. Estimulados desde a infância, estes artistas desenvolveram uma série de técnicas e recursos que se ajustavam perfeitamente às necessidades do espetáculo e da ação cênica. 100 Figura 19: Número da “Escada Plástica”, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Como já dito anteriormente, ao contrário do Oriente que mantém esta característica do “ator polivalente”, no teatro oficial do Ocidente houve uma tendência de especialização do artista da cena (performer) em uma determinada área, como o teatro ou a dança, por exemplo. Acredito, porém, que, atualmente, estamos vivendo uma retomada da busca deste artista completo, seja pelas dificuldades financeiras – que fazem com que o ator também seja seu próprio cenógrafo, figurinista e diretor, por exemplo –, seja pela intersecção cada vez mais comum das várias áreas da arte e a diminuição das fronteiras das artes do espetáculo. Portanto, a tendência atual do intérprete completo, que tantos acham original e recente, nada mais é que a retomada do que era ser um artista de feira no século XVII, por 101 exemplo, e um artista de circo até meados do século XX. O que me prova, mais uma vez, que estamos sempre reinventando algo que já nos é dado por uma tradição. Desse modo, O artista circense era aquele ser sensível, que com seus truques, destrezas e coragem executava seu número sempre com um sorriso nos lábios, aprendendo desde criança a usar a mente para encontrar a perfeita sinergia dos “tempos” artísticos, evitando consequentemente o perigo das quedas fatais. (...) A educação circense visava principalmente a educação do corpo, objetivando uma educação integral físico-psíquica. Neste sentido, cabeça, pescoço, braços, peito, cintura, pernas, ponta dos pés, e até mesmo o coração, este órgão vital, são treinados intensivamente para disciplinar todos os órgãos físicos ao executar saltos mortais de cinco a seis metros de altura, ou atravessar um arame a pé ou de bicicleta a mais de três metros de altura, ou ainda voar no espaço de um trapézio para outro, sem qualquer dispositivo de segurança. Além da educação física, que preparava o corpo, faziam parte das artes circenses a arte da magia, do ilusionismo; a arte de amestrar animais e a equitação, que eram ensinadas em famílias pelos mais velhos a todas as crianças desde a mais tenra idade, para evitar principalmente o medo. (...) Quando uma criança não apresentava habilidade para determinado número de risco, ela não era discriminada por causa disto, pelo contrário era geralmente aproveitada em outras atividades para as quais tivessem maior disponibilidade, aptidão ou desenvoltura (SANTORO JR., 1997: 08 e 32). Outra tendência atual que também já fazia parte da vida de um circense se refere aos benefícios técnicos da prática acrobática no ofício do ator. Lembrando que esta é apenas uma das infinitas técnicas que podem auxiliar o ator na composição de sua técnica pessoal. Como dito no capítulo anterior, a arte de ator se materializa através do empenho e conduta do corpo do ator – a extensão visível deste para o espectador – articulado com as suas outras instâncias – intelecto, mente, intuição, etc. – invisíveis, porém materiais. Assim sendo, a prática acrobática é útil ao ator, pois esta também requer a união de corpo/mente/psiquismo para a sua melhor execução. Isto porque é impossível executarmos uma acrobacia sem estarmos concentrados completamente nela e no momento presente – e digo isso como alguém que fez ginástica artística durante toda a infância. A prática acrobática requer, portanto, um nível de concentração profunda. Isso porque esta prática me coloca numa situação diferente do dia-a-dia e exige realmente minha atenção, pois me expõe a uma situação de risco real. Acredito também que o pensamento 102 do acrobata muito se assemelha ao do ator, no sentido de que ambos pensam em ação. Além disso, o próprio Stanislavski afirmou que: (...) a acrobacia ajuda a desenvolver o poder de decisão. Para um acrobata seria um enorme desastre entrar em devaneios no momento exato de dar um salto mortal, ou qualquer outro tipo de salto que lhe pusesse em risco o pescoço. São momentos em que não há lugar para indecisões; sem parar para refletir, ele deve colocar-se nas mãos do acaso60 e da sua habilidade. Seja como for, tem de saltar. É exatamente isso que o ator deve fazer ao atingir o ponto culminante de seu papel. (...) O ator não pode parar para pensar, duvidar, tecer considerações, ficar pronto para pôr-se à prova. Tem de agir, executar o seu salto a todo vapor. No entanto, a maioria dos atores tem uma atitude inteiramente diferente com relação a isto. Entram em pânico diante dos grandes momentos, e tentam, com enorme antecedência, preparar-se meticulosamente para os mesmos. Isto resulta em nervosismo e pressões que não os deixam soltar-se nos momentos culminantes, quando devem entregar-se por completo a seus papéis. (...) Além do mais, a acrobacia pode ainda lhes oferecer outra vantagem. Pode torná-los mais ágeis e dar-lhes maior eficiência física em cena ao se levantarem, ao se curvarem e correrem, e sempre que fizerem um grande número de movimentos rápidos e difíceis. A acrobacia lhes ensinará a atuar num tempo e ritmo rápidos, impossíveis para um corpo que não tenha sido treinado (STANISLAVSKI, 1997: 06 e 07). Posso citar também o encenador russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940) que encontrou no circo não só a possibilidade de rompimento com a cena realista, devido a seu potencial cênico anti-ilusionista, como encontrou também no treinamento técnico do artista circense pontos fundamentais a serem desenvolvidos no trabalho físico do ator: É observando as figuras dos malabaristas, e em particular Enrico Rastelli, que Meyerhold compreende a importância no trabalho cênico dos deslocamentos do centro de gravidade: o malabarista trabalha com todo o seu corpo, e não somente com suas mãos. O jogo do ator, como o do malabarista, se traduzirá no plano cinético em termos de equilíbrio constantemente colocado em perigo, perdido e reencontrado. Não se trata somente da proeza, do desempenho, mas do processo técnico que permite sua realização. Importa conhecer as leis do movimento para, a qualquer momento, poder desmanchá-lo e jogar com a surpresa, a mudança de ritmo, como o fazem os excêntricos (PICON-VALLIN, 2009: 128). 60 Entendo o que Stanislavski quis dizer ao afirmar que o circense se coloca nas mãos do acaso, pois apesar de toda a técnica cultivada durante anos de treinamento, o risco da queda sempre estará presente. Porém, destaco apenas que todo este incessante treinamento visa à diminuição ao máximo deste “acaso” no momento de uma acrobacia. 103 Portanto, assim como o ofício do ator, o domínio das técnicas acrobáticas exige disciplina e rigor, pois o treinamento deve ser constante e contínuo. Além disso, ambos requerem concentração, um estado de atenção dilatado, um bom preparo físico e promovem a ampliação das potencialidades expressivas do corpo. Acerca do preparo físico dos artistas do Pavilhão Arethuzza e seus contemporâneos, imaginem só o “pique” que eles tinham que ter para aguentar – fisicamente falando – a apresentação da parte de variedades e em seguida a encenação de peças de dez, doze atos! E lembrando que estamos falando de linguagens estilizadas e executadas em um nível de energia elevado, alimentado justamente por esse rigoroso preparo físico dos artistas. Fernando Neves em entrevista contou uma passagem bastante reveladora acerca do tônus e nível de energia em que estes artistas trabalhavam. Em 2006, Neves dirigiu o espetáculo Feia61 com o elenco do Circo Zanni, que também dividia o espetáculo em duas partes, com números de variedade na primeira e a apresentação da peça na segunda, sendo ambas as partes executadas pelos mesmos artistas. Neves conta então: A artista que fazia o último número da parte de variedades, fazia trapézio, dez minutos se trocava e estava em cena na peça... ela fazia a vilãzinha. A primeira sentada que ela deu na peça abriu o vestido inteiro! Imagina, a Carol (Carol Brada, figurinista) ficou louca, porque ... A Zezé aqui do Teatro Abril, que é uma craque, que faz os figurinos pra ela... E elas são caprichosas... Tinha calcinha, sutiã combinando. Ao sair de cena a Carol foi atrás dela e falou “Ai meu Deus! O que aconteceu?” E a atriz falou “Imagina gente... terminei o número de trapézio faz dez minutos... olha como tá a minha musculatura, minha adrenalina... arrebenta o figurino mesmo”. Entendeu? Imagina esse corpo expandido, esse corpo com essa energia... com esse tônus! Fernando Neves contou que foi então que lembrou a constante preocupação que sua família tinha com o acabamento dos figurinos. Lembrou que sempre que chegava com uma roupa nova, suas tias falavam “Ah, que bonita camisa!” e já viravam do avesso para ver como era feita a costura. Elas queriam ver se aquela roupa era de qualidade e se havia alguma técnica nova empreendida na costura dessa. Isso porque todos os figurinos no Pavilhão Arethuzza tinham suas costuras reforçadas, pois os artistas que iam interpretar as 61 Espetáculo de autoria de Paulo de Magalhães que fez parte do repertório de diversos circos-teatro brasileiros, incluindo o Pavilhão Arethuzza. 104 peças na segunda parte do espetáculo tinham acabado de realizar seus números no picadeiro e, assim como a atriz do Circo Zanni, estavam com suas musculaturas ainda dilatadas. Além de todas as qualidades descritas até então, é fato que todo acrobata, para ser acrobata, precisa desenvolver um apurado senso de tempo e ritmo, fatores fundamentais de serem desenvolvidos também no ofício do ator. Em entrevista, Fernando Neves comentou sobre sua família: Bom, sobre a questão do tempo e do ritmo... Eles passavam a primeira parte inteira lidando com o tempo e com o ritmo. Porque pra fazer trapézio você precisa ter uma noção de tempo apuradíssima. Porque assim: eu to balançando, a hora que eu virar pra cá, lá em cima, o outro tem que soltar o trapézio no tempo; o trapézio não pode ta aqui (aponta para os joelhos), não pode ta aqui (aponta para a boca) senão pode quebrar meus dentes, não pode tá lá (aponta para longe e seu corpo) senão eu caio! Então eu tenho que saber a hora que eu solto o trapézio, quem ta lá, e a hora que eu viro pra pegar. É uma loucura! Entendeu? Porque pode tanto tacar na sua cara como você pode cair! Jogar malabares é no tempo, andar no arame é no tempo. Você vai fazer rola rola é no tempo. Você vai andar em cima da bola é no tempo. Você vai saltar, é no tempo. Imagina, um perde o tempo e dá com a cabeça no outro. Se mata! Então isso era levado às últimas consequências. A primeira parte também dava para eles adrenalina e disposição pra aguentar peças às vezes de 12 atos e com a energia lá em cima, mantendo a energia... não é que vai caindo, entendeu? Então eles tinham esse preparo. A primeira parte dava um preparo de energia, de tempo. Corpo, gesto grande, voz, porque no circo não tem acústica, qualquer barulho na rua... Então você tem que ser muito mais interessante, você tem que ser mais expandido, você tem que ser muito maior. Não é ator do teatro realista que tá no teatro e as vezes bota até microfone... fala aqui como se estivesse com uma câmera. E aquela coisa de uma construção em cima de um tempo realista. Não! O circo é expressionista! Eles diziam que era realista , mas era expressionista. É tudo grande, os corpos se movimentam em outro tempo. Aí tem a questão da primeira parte.(...)Então tem toda essa questão dessa noção de espaço, de ritmo, de tempo e de tônus que vem fisicamente pelo trabalho que eles fazem na primeira parte62. Desse modo, o fato dos artistas do Pavilhão Arethuzza desenvolverem habilidades acrobáticas desde a infância contribuiu, inegavelmente, para a consolidação de seus trabalhos enquanto atores da segunda parte do espetáculo. Todas as habilidades desenvolvidas pelo aprendizado das técnicas acrobáticas podem ser transpostas, por analogia, para o trabalho do ator. Repito: transpostas por analogia. 62 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. 105 Aqui entro num ponto importante que comecei a vislumbrar ainda no capítulo anterior: não é possível fazer uma transposição direta da técnica desenvolvida por um acrobata para a técnica necessária à atuação. Isto porque estou falando de técnicas de naturezas distintas, que possuem finalidades distintas e, portanto, exigem condutas distintas da matéria de que são compostas – que, nesse caso, é a mesma: o corpo do performer, do artista que era acrobata na primeira parte e ator na segunda. Dessa forma, os artistas do Pavilhão Arethuzza compreenderam que, apesar da técnica acrobática servir ao trabalho do ator – e essas técnicas se somarem –, a conduta do corpo do acrobata não é a mesma conduta do corpo do ator. Por esse motivo acredito que, quando perguntei em entrevista a Santoro Junior se o fato de se apresentar na parte de variedades fazia alguma diferença no seu trabalho como ator, ele me respondeu: “Não sei, mas eu acho que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”63. Fernando Neves que estava junto conosco então intercedeu, explicando ao tio todas as pesquisas na contemporaneidade acerca dos benefícios da prática acrobática e do desenvolvimento corporal no trabalho do ator. Ao fim do argumento de Fernando Neves, Santoro Junior apenas completou: “É que o público gostava de ver o artista de primeira parte fazer o teatro. Então já ficava simpático”64. Aqui destaco três pontos importantes. O primeiro: “saltar” era algo tão intrínseco ao processo de formação do artista circense antigamente, como os da família Viana-Santoro-Neves, que a técnica envolvida nesta habilidade era como uma segunda natureza desses artistas. Desse modo, saltar fazia deles atores mais competentes, por mais que Santoro Junior não tenha a consciência exata disto. O segundo: os circenses compreendiam e tinham a capacidade de distinguir o fato de que a primeira e a segunda parte do espetáculo são de naturezas diferentes – capacidade esta que me parece ausente em muitos espetáculos dos chamados “circos contemporâneos” na atualidade. 63 64 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. Ibidem. 106 E o terceiro e fundamental na arte circense: para Santoro Junior, a grande contribuição da primeira parte em relação à segunda é o fato de que os artistas se apresentarem nas duas partes agradava o público. Isto me mostra como o olhar do circense está sempre e a todo o momento no espectador; como todo o trabalho de atuação no circoteatro estava focado, assim como na parte de variedades, em suscitar sensações e reações no público. Ou seja, tanto a parte de variedades quanto a representação teatral passavam, inevitavelmente, pelo corpo do acrobata/ator e tinham como objetivo final agradar o espectador. Contudo, a maneira como o corpo deste artista se organizava nas duas partes e a maneira como elas agradavam eram distintas. Com relação à organização e conduta corporal do acrobata e do ator, Barba nos atentou para o fato de que enquanto no cotidiano seguimos a “lei do menor esforço”, ou seja, buscamos um rendimento máximo com um gasto mínimo de energia, no teatro o ator deve sempre esbanjar energia; deve buscar em cena executar suas ações com uma energia extracotidiana, que lhe proporcionará um corpo também extracotidiano e, portanto, teatral. Já a técnica do acrobata não é extracotidiana, e sim outra técnica, que se distancia por completo do cotidiano. Nas palavras do próprio Barba: O primeiro passo para descobrir quais podem ser os princípios do bios cênico do ator, a sua “vida”, consiste em compreender que às técnicas cotidianas se contrapõem técnicas extracotidianas que não respeitam os condicionamentos habituais do uso do corpo. As técnicas cotidianas do corpo são em geral caracterizadas pelo princípio do esforço mínimo, ou seja, alcançar o rendimento máximo com o mínimo uso de energia. As técnicas extracotidianas baseiam-se, pelo contrário, no esbanjamento de energia. (…) Quando estava no Japão com o Odin Teatret, perguntava o que significava a expressão otsukarasama com a qual os espectadores agradeciam aos atores no final do espetáculo. O significado exato dessa expressão é: “você cansou por mim”. Entretanto o desgaste de energia não basta para explicar a força que caracteriza a vida do ator. É evidente a diferença entre esta vida do ator e a vitalidade de um acrobata e até alguns momentos de maior virtuosismo da Ópera de Pequim e de outras formas de espetáculo. Nestes casos os acrobatas nos mostram “outro corpo”, que segue técnicas tão diferentes das cotidianas, que parecem perder todo o contato com estas. Já não se trata de técnicas extracotidianas mas simplesmente de “outras técnicas”. Neste caso não existe uma dilatação da energia que caracteriza as técnicas extracotidianas quando elas se contrapõem às técnicas cotidianas. Em outras palavras, já não existe relação dialética, só distância; a inacessibilidade, em definitivo, de um corpo virtuoso. As técnicas cotidianas do corpo tendem à comunicação, as do virtuosismo tendem a provocar assombro. As técnicas extracotidianas tendem à 107 informação: estas, literalmente, põem-em-forma o corpo, tornando-o artístico/artificial, porém crível. Nisto consiste a diferença essencial que o separa das técnicas que o transformam no corpo “incrível” do acrobata e do virtuoso (BARBA, 1994: 30 e 31)65. Figura 20: Número de variedade, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Com relação ao fato da parte de variedades e o teatro agradarem o espectador de maneiras distintas, destaco que isso ocorria porque num número de habilidade o objetivo final encontrava-se em enaltecer o artista por sua própria técnica, virtuosidade e perfeição do gesto. Enquanto isso, no teatro o enfoque estava em algo que vai além da técnica, sendo que esta deve se diluir, de modo a parecer até inexistente; fazendo referência novamente a Yoshi Oida, no teatro não importa a técnica que uso para mostrar a lua e sim que o público veja a lua! Por isso, a meu ver, enquanto na parte de variedades agradava-se pela exaltação do virtuosismo técnico de “super-homens e supermulheres”, na parte teatral agradava-se pela identificação dos espectadores com aqueles personagens que lhe pareciam tão 65 BARBA, Eugênio. A Canoa de Papel. São Paulo: Hucitec, http://www.grupotempo.com.br/breve-florilegio-para-a-meditacao-dos-atores 108 1994. Disponível em: humanos quanto eles mesmos. E ambas as conformações artísticas encontravam espaço na imaginação e no coração do público. Portanto, apesar de toda a serventia que a técnica acrobática presta ao trabalho do ator, é imprescindível que este perceba que (...) de nada serve trabalhar o corpo, se ele não se constituir em um meio pelo qual pode entrar em contato consigo mesmo e com o espectador. (...) A técnica de ator não deve ser apenas físico-mecânica, como a de um halterofilista, mas humana, em-vida, ou seja, algo que lhe permita estabelecer um elo comunicativo entre o humano em sua pessoa e o que o corpo é e faz e, ao articular esse processo, projetá-lo comunicando-o para seus espectadores. A técnica de ator, portanto, só existe, a nosso ver, na medida em que abre caminhos para um universo eminentemente humano e vivo, tanto para o ator quanto para o espectador. Do contrário, ela seria apenas ginástica a preparar o corpo para uma atividade puramente física, na qual os aspectos humanos e subjetivos estariam resguardados ou adormecidos (BURNIER, 2001: 24 e25). Porém, é importante ser destacado que, apesar das diferenças anteriormente expostas entre o corpo acrobático e do ator, os artistas do Pavilhão Arethuzza – assim como os de tantos outros circos desde o fundado por Astley – tinham uma formação artística múltipla e agregadora das mais variadas linguagens, de modo que acrobacia, teatro, dança – e tantas outras manifestações artísticas – estavam na base dessa formação. Dessa forma, o corpo do artista circense continha e tranversalizava os conhecimentos de um corpo acrobático, teatral e dançante, de modo que o artista lançava mão de determinadas ferramentas, dependendo da expressão artística utilizada, porém, ao mesmo tempo, as ferramentas pertencentes a todas as outras expressões artísticas estavam sempre presentes nesse corpo múltiplo, pois todas elas estavam no cerne da arte de ator daqueles artistas.. Nos primórdios do Pavilhão Arethuzza, por exemplo, – quando ainda não se usava a denominação circo-teatro – era representada uma pantomima, comumente levada em vários outros circos, conhecida como Os três amantes. Nesta pantomima – no caso, muda de texto verbal – temos uma ação cênica simples e central, preenchida por uma execução virtuosística que utilizava elementos acrobáticos – numa transposição direta para a cena –, responsáveis por criar uma representação com linguagem estilizada e codificada. Abaixo, registro o roteiro da pantomima Os três amantes, descrita por Santoro Junior: 109 No picadeiro, à esquerda da entrada dos artistas, era colocada uma barrica de boca larga e acolchoada. Ao lado direito, um baú grande e vazio. À entrada do picadeiro um biombo, dando um caráter de ambiente pouco habitado. Os personagens: os três palhaços acróbatas, a moça namoradeira e o pai ranzinza. O pai dirige-se à filha em mímica, recomendando que não procurasse ver pessoa alguma (sai). A moça que estava com os olhos fitos no chão, com ar inocente levantando a cabeça, movimenta-se brejeira com pulinhos rápidos e elegantes, olhando de um lado para outro, não vendo ninguém, faz um sinal para a frente do circo e corre para o fundo a observar se o pai já estava de volta. O primeiro amante já no picadeiro executava volta de mão e salto mortal à frente. Os namorados se encontram e se abraçam. Ele se ajoelha, fazendo promessas de amor em mímica. Levanta-se querendo beijá-la. Ela corre escapando de suas garras. Ouve-se ao fundo tosse forte do pai. Os dois voltam a si. Há um correcorre. O namorado atira-se em salto para frente, colocando a cabeça no chão amparada pelos braços. Dessa posição com os ombros tocando no solo, dá impulso com os braços e pernas, voltando ao chão e num salto simples se jogava dentro da barrica. (...) O pai entra em cena desconfiado, olhando a filha sentada no baú, cabisbaixa. Recomenda de novo, que não quer que veja ninguém ali. (sai). A moça repete a cena anterior, e faz um sinal para frente do circo ao seu segundo namorado. Novamente volta ao fundo da cena para constatar se o pai está retornando. O segundo amante ao atingir o picadeiro executava rondada, flip-flap e salto moral, caindo de barriga. A moça socorre de pronto o namorado, abraçam-se e na hora do beijo, a moça corre. O primeiro amante, acompanhava os movimentos, do segundo, com a cabeça fora da barrica. Novamente tosse forte do pai. Outro corre-corre. O amante atrapalha-se todo querendo fugir chão a dentro. Para esse fim, colocava a cabeça no solo levantando as pernas para o alto, plantando bananeira. Fazia o corpo girar sobre si mesmo, com um movimento de rotação de mãos e braços, depois flexionava o pescoço e com um impulso dos ombros ao tocar o solo volta para o chão. Deu-se a esse truc, o nome de SALTO POLTRÃO. O truc era repetido várias vezes. Após alguns esforços a moça conseguia colocar o segundo amante no baú. O pai aparece no picadeiro mais desconfiado, olhando para os lados e retira-se. A moça mais gaiteira e fascinante fazia um sinal para a frente, para o terceiro amante. Este último, ao atingir o picadeiro executava parada de mão e dava cambalhotas várias vezes. Os outros amantes escondidos acompanhavam os movimentos do terceiro amante com as cabeças fora da barrica e do baú respectivamente, sempre zombando deste terceiro. A cena de amor do terceiro amante é intercalada com saltos mortais. Na hora do beijo, o velho entra sorrateiramente e surpreende o paspalhão, surrando-lhe as costas com uma bata. Os outros dois descobertos, saem de seus esconderijos correndo. Para deixarem o velho desnorteado, executavam cambotinha a três. A banda de música tocando um galope encerrava a pantomima (SANTORO JR., 1997: 10 e 11). A meu ver, a utilização das acrobacias contribuía para a criação de uma linguagem que dialogava simples e diretamente com a plateia. Acredito também que as diferentes acrobacias auxiliavam a caracterizar cada um dos três amantes e que o final com a “cambotinha a três” revelava que tudo não passava de uma grande brincadeira. Com o passar dos anos, as encenações e dramaturgias foram se tornando mais complexas e as habilidades acrobáticas passaram a ser incluídas nas encenações teatrais de 110 modo não apenas ilustrativo, mas sim de modo a contribuir para a concretização da ação dramática e o andamento da narrativa. Nesse caso o enfoque não estava na técnica e na virtuose, e sim na utilização e exploração daquele recurso de modo que este viesse a contribuir para a construção da melhor resolução cênica. Como exemplo, cito a montagem de Ferro em Brasa, que segundo Santoro Junior, era anunciado no Arethuzza como uma tragédia. Na trama, Margarida é casada com o ferreiro João, porém apaixona-se por Júlio, noivo de sua filha, que corresponde ao seu amor. Na encenação do Pavilhão Arethuzza, João, o marido que se descobria traído, arrastava sua esposa pelos cabelos, numa cena forte, chocante e violenta. Para que esta cena fosse executada com a máxima verdade, cabia a Didi, que na primeira parte fazia o número de força capilar, o papel de Margarida. Os artistas do Pavilhão Arethuzza possuíam, então, uma formação completa, que integrava corpo e mente no domínio de técnicas das mais diversas manifestações artísticas. Além dos números de habilidade e das encenações teatrais eram comuns também – em meio à primeira parte – a execução de números de bailados e de números musicais, que contavam muitas vezes com a elaboração de uma mis en scene, que trabalhava, dessa forma, outros aspectos da teatralidade circense. Santoro Junior conta: Já com cinco anos de idade comecei a participar de números que compunham o variado (primeira parte). O primeiro deles foi o número de salto em que entrava virando cambota e caminhava rapidamente de gatinho entre as pernas dos participantes. Como me saí bem nessa participação, fui encaixado no bailado chinês. Assim vestido a caráter como os demais participantes e ao som de uma música tipicamente oriental, dançava errando os passos ou contrariando a harmonia do bailado. Sempre último da fila e tumultuando a dança ganhava posição de destaque, provocando o riso e ganhando aplausos da plateia. Não restou qualquer dúvida, fui encaixado em outro número de bailado o Cake Walk, que transcorria da seguinte maneira: ao som da música contagiante entrava no picadeiro um casal de bailarinas (Alzira e Arethusa Neves). A música ia contagiando o ambiente e respectivos personagens que previamente combinados começavam a entrar um a um no picadeiro ou no palco e acompanhavam os passos dos dois primeiros bailarinos. Entre eles: um casal de espectadores, uma velha, um caipira, um português de tamancos, uma vedete caricata e um baleiro. O mestre chicote66 tentava em vao retirar estes personagens do picadeiro e da dança. Finalmente chamava um policial. Percebendo que este também participava 66 Outro nome dado ao Mestre de Pista (nota da pesquisadora). 111 da dança, o mestre chicote também aderia ao grupo. Assim ao som da música todos saíam da cena num passo repetitivo e frenético. (...) O maestro da banda „ARISTEU‟ fazia um teste com os componentes do Circo Arethuzza e aquele que era afinado, já se incumbia de outra tarefa – cantar. Assim passei a fazer parte dos números musicais, inclusive formei uma dupla com minha irmã Alzirinha, cantando canções de sucesso da época ou que requeriam “mis em cene” (sic) como “Boneca de Peixe”, “Tabuleiro da Baiana”, etc. Lembro-me do mis em cene (sic) e letra de uma canção, porém não consigo lembrar o nome da mesma. Assim transcorria: Num piscar de luz a cena era preenchida por cadeiras, mesas, copos, garrafas, dando a impressão de um baile num botequim, em que os componentes vestidos a caráter lembravam malandro e moreninha jeitosa. A música era assim cantada: Ela Pra quem fica sambando no baile até amanhã se Deus quizer (sic)... Ele É muito cedo Ela Vou pra casa descansar Ele Ora fique mais um bocado Ela Eu não posso muito obrigado, amanhã eu tenho que ir trabalhar. Ele Quer me dar seu endereço... Ela É solteiro ou é casado Ele A pergunta senhorita me deixou meio abafado, não sou cá e não sou lá é um caso complicado... a senhorita é um pedaço... Ela E o senhor é um bocado... Ele Ora muito obrigado... A banda tocava, nós e todos os participantes dançávamos ao som do samba numa coreografia combinada, terminando num passo parado; ao piscar novamente a luz, a cena já estava vazia para outro número (SANTORO JR., 1997: 60). Figura 21: Número musical, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. 112 Outra atração que era levada na primeira parte e também se aproximava da representação teatral, no sentido de criar uma ficção e personagens, eram as entradas de palhaço. Bolognesi destaca a diferença, que também procurei mostrar anteriormente, de natureza existente entre os números de variedades, ligados à demonstração de habilidades físicas e as exibições dos palhaços, ligados ao fenômeno teatral: Os riscos dos artistas circenses são reais, dentro do contexto espetaculoso de cada função. No espetáculo os artistas não apresentam “interioridades”: eles são puro corpo exteriorizado, sublime ou grotesco, que se realiza e se extingue na dimensão mesma do seu gesto. Eles não são atores a interpretar um “outro”, uma realidade externa e distante. (...) Os números cômicos, por sua vez, ao explorar os estereótipos e situações extremas, evidenciam os limites psicológicos e sociais do existir. Eles trabalham, no plano simbólico, com tipos que não deixam de ser máscaras sociais biologicamente determinadas (os palhaços são desajeitados, lerdos, fisicamente deformados, estúpidos, etc). Esses limites se revelam com o riso espontâneo que escancara as estreitas fronteiras do social. Quando os palhaços entram no picadeiro, o olhar espetaculoso se descola objetivamente para a realidade diária da plateia (BOLOGNESI, 2003: 14). O personagem cômico circense “palhaço” surge já na origem do espetáculo circense “moderno” e reúne em si múltiplos personagens da milenar tradição cômica, como “o palhaço de tablado de feira; os diferentes tipos de criados da Commedia dell’arte; as cenas tradicionais do clown inglês; o clown da pantomima e o jester shakespeariano” (CASTRO, 2005: 60). Desse modo, os palhaços dos primeiros circos “modernos” europeus eram: (...) herdeiros diretos dos cômicos que frequentavam os lugares públicos, os teatros de feira, os de arena e fechados, as festas profanas ou religiosas, passando pelas “soties”, os jograis, as comédias de Atelana, os bufões ou bobos das cortes, os farsantes das vilas, funâmbulos, paradistas dos bulevares, bem como da commedia dell’arte: zanni, Arlequim, Scaramouche, Pulcinella, Pierrot. Todos uniam teatralidade, destreza corporal, dança, música, mímica e a palavra (SILVA, 2007: 43). Herdeiro destes diversos tipos cômicos, no início do circo “moderno” o palhaço era chamado de clown, palavra inglesa cujo sentido aproximado seria homem rústico, do 113 campo, camponês. Destaco que o termo já era usado anteriormente na pantomima inglesa 67 para designar o cômico principal que tinham as funções de um serviçal. Bolognesi destaca que, no universo circense, até meados do século XIX, (...) o clown tinha uma participação exclusivamente parodística das atrações circenses e o termo, então, designava todos os artistas que se dedicavam à satirização do próprio circo. Posteriormente, esse termo passou a designar um tipo especifico de personagem cômica, também chamado de Clown Branco, por conta de seu rosto “enfarinhado”, que tem no outro palhaço, o Augusto, o seu contrário (BOLOGNESI, 2003: 62). Como explicitado por Bolognesi, no início do circo “moderno” o clown tinha a função de realizar paródias dos números circenses, principalmente os de montaria, executando-os às avessas. Essa brincadeira fazia parte de uma tradição antiga nos treinamentos militares, nos quais era comum um cavaleiro, dado mais aos ares cômicos, divertir o restante da tropa ao mostrar os inúmeros jeitos de se montar erroneamente um cavalo. Porém, no espetáculo circense “moderno”, estes números cômicos seriam executados não pelos ex-militares que faziam parte do elenco das companhias circenses, mas sim pelos artistas de feira que foram incorporados a estas e que possuíam em seus trabalhos a influência de todos os cômicos milenares citados anteriormente. Para se “montar errado um cavalo” e gerar o efeito cômico da bagunça em meio a toda a estrutura militar do espetáculo, era necessário um profundo conhecimento técnico da modalidade. Para tanto, estes artistas de feira passaram a se especializar também na arte da montaria, antes distante de sua realidade devido ao fato do cavalo ser um artigo de luxo da classe aristocrática. Dentre os tipos mais parodiados, destacava-se, além da figura do camponês, o alfaiate e ambos já faziam parte das milenares pilhérias das companhias de teatro de rua e feira europeias. Alice Viveiros de Castro afirma: 67 A pantomima inglesa, que se desenvolveu a partir da commedia dell’arte, foi determinante na consolidação do clown circense. Tanto que Joseph Grimaldi (1778-1837), que iniciou sua carreira no teatro de variedades inglês, é considerado pela maior parte dos pesquisadores como o criador – ou aperfeiçoador – do clown circense. 114 O personagem escolhido podia ser um camponês idiota, um almofadinha metido ou, o mais frequente, um alfaiate, alguém que primasse pela total inadequação ao cavalo e ignorasse qualquer noção de como montá-lo e tratá-lo. O pobre alfaiate, depois de cuidadosas investidas de aproximação, conseguia colocar o pé no estribo, mas se atrapalhava tanto que, quando finalmente subia no lombo do cavalo, ficava ao contrário, a cabeça olhando para o rabo do animal. Esta imagem é antiga, muito antiga, e permanece uma boa piada ainda nos dias de hoje (CASTRO, 2005: 57). Era muito comum também o recurso cômico do falso espectador68. Um artista se infiltrava em meio ao público, como se não passasse de mais um entre os presentes. De repente, no meio do espetáculo, ele começava a desafiar o Mestre de Pista, querendo também arriscar-se na montaria. Este falso espectador executava, então, os números do clown à cavalo, revelando ser, na verdade, um exímio cavaleiro, acróbata e ator cômico (SILVA, 2007). Com o tempo, o clown passou a parodiar também os demais números, surgindo, então, “clowns saltadores, acrobatas, músicos, equilibristas, malabaristas, etc.” (BOLOGNESI, 2003: 65). Assim, por exemplo, o clown, para parodiar com maestria um acrobata, um músico, um equilibrista ou uma malabarista, tinha que saber, obrigatoriamente, saltar, tocar um instrumento, andar no fio e jogar malabares. Portanto, o clown era um dos artistas mais completos do circo e que precisava dominar as diversas técnicas circenses profundamente, pois somente a partir deste total domínio da técnica é que se torna possível a sua desconstrução. Lecoq diz que o palhaço é aquele que “(...) erra onde não esperamos e acerta onde não esperamos. Se tentar um salto perigoso, cai, mas o executa quando lhe dão uma bofetada” (LECOQ, 1987: 117) 69. Danilo Santos afirma: No circo, espaço utópico e errante, a técnica do palhaço parece ser dotada de uma falta de habilidade. É o engano que ilude – assim como nos perdemos na sedução 68 Encontramos referência a esta cena do falso espectador no filme Clowns, de Federico Fellini. Em uma das cenas são oferecidas dez liras para quem da plateia tiver coragem de lutar com a Mulher Hércules, Miss Matilde. Uma senhora da plateia aceita o desafio, apesar dos apelos do marido que teme o confronto. Ela adentra o picadeiro, despe seu luxuoso casaco e vemos então que já estava preparada para o combate, vestida com um figurino de lutadora de estampa felina. Anuncia-se, por fim, a luta entre a Mulher Hércules e a Mulher Tarzã. 69 LECOG, Jacques. Le Théâtre du geste. Paris: Bordas, 1987. Tradução de Roberto Mallet. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/tex_busca.html 115 do prestidigitador. No picadeiro ou nas praças, com suas acrobacias claudicantes, trapeziando em movimentos trôpegos, o palhaço é o mais completo praticante de uma eficiência que, ao mesmo tempo em que se esconde, se revela: o pé que se prende no salto, a mão que se solta num voo desleixado ou o corpo que se desvia da órbita perfeita. Ser palhaço requer outro tipo de visão de mundo, é estar no avesso da vida, é acertar pelo erro e chorar pelo riso, é saber construir para abusar das desconstruções70. No linguajar circense, o número que parodia alguma destreza física anteriormente apresentada, porém reprisada às avessas, numa lógica transversa comum ao palhaço, é chamado de reprise71. O clown necessitava, então, de um grande repertório de gags físicas, que se valiam dos gestos, e em alguns casos, de pequenos monólogos, pois os circenses, assim como os artistas de feira, também foram impossibilitados de falar nos espetáculos. Com o fim das proibições, em 1864, à cena teatral não oficial, as falas passaram a ser desenvolvidas e desse modo, (...) assim como as pantomimas iam adquirindo cada vez mais importância, o cômico também iria passar por mudanças dentro do espetáculo circense. Com a diminuição dos cavalos no programa e o aumento das representações junto com as acrobacias e danças, a fala e o diálogo foram também se ampliando nos números dos palhaços. Alguns estudos que tratam das origens desse personagem analisam que é a partir de então que se iniciaram as apresentações de duplas ou trios cômicos; com isso, as atividades do clown se alteraram, diferenciando o trabalho em parceria, distinguindo suas funções, transformando-os quase em “especialistas”. Além de clown, esses cômicos serão identificados como augusto ou tony (SILVA, 2007: 47). Bolognesi afirma que paulatinamente estruturou-se a distinção entre os palhaços excêntricos e os shakespearianos, sendo que a primeira categoria incluía aqueles “que usavam das proezas circenses para alcançar o cômico, tais como os clowns acrobáticos, os equilibristas, malabaristas, (...) os musicais” (BOLOGNESI, 2003:72) e a segunda categoria também chamada de “falantes” se firmou com a dupla Clown Branco e Augusto. 70 Trecho do texto de Danilo Santos, diretor regional do SESC São Paulo, no programa do “La Mínima ao Máximo”, mostra de repertório em comemoração aos 15 anos do Grupo La Mínima, que ocorreu de 05/02 a 17/03/2013, no SESC Pompeia, em São Paulo. 71 É comum os circenses chamarem também de reprises os pequenos números – não necessariamente de paródia de uma destreza física – que os palhaços desenvolvem nos intervalos entre os números que necessitam de alguma preparação mais complexa, como por exemplo, a montagem da jaula dos leões. É comum também que o palhaço que executa essa função seja chamado de Tony de Soirée (RUIZ, 1987). 116 A utilização dos termos Clown e Branco para designar um dos palhaços da dupla cômica parece encontrar mais consenso entre os pesquisadores. Já o segundo palhaço, é chamado por alguns apenas como Augusto ou Tony e por outros como Augusto, Tony, Excêntrico, ou ainda, Tony Excêntrico. Com relação à família Viana-Santoro-Neves, do Pavilhão Arethuzza, Santoro Junior e Fernando Neves usaram com maior frequência, em nossas entrevistas, os termos Clown e Excêntrico. Desse modo, também me utilizarei principalmente desses dois termos daqui adiante. No Brasil, o palhaço ganha cada vez mais importância no espetáculo, chegando ao ponto de ser o carro-chefe dos circos, nos quais valia a máxima “Um bom circo depende de um bom palhaço” (PIMENTA, 2005). Tanto na Europa, quanto no Brasil, as reprises continuaram existindo para encobrir pequenos intervalos entre os números, porém o palhaço passou também a se apresentar nas “entradas”, cenas cômicas mais extensas e baseadas em roteiros prévios de ação, preenchidos no momento da apresentação pelo jogo improvisado dos palhaços entre eles mesmos e também com a plateia. As entradas “(...) se assemelham aos canovacci da commedia dell’arte e trazem os roteiros resumidos das intrigas, bem como estabelecem os principais momentos cômicos dos jogos de cena” (BOLOGNESI, 2003: 104). Nelas, a dupla de palhaço, Clown e Excêntrico, possui um esquema básico da história a ser desenvolvida. O Clown serve de escada72 para o Excêntrico, organizando a cena e restabelecendo a ordem que foi desestabilizada pelo bobo, com suas piadas e brincadeiras73. A entrada montada tem uma estrutura dramatúrgica e dramática própria. Embora não trate de uma história, mas de uma situação, ela tem começo, meio e fim. Tem também tempo estudado, ritmo e conclusão, necessários para que o público entenda e absorva a piada. É inicialmente ensaiada pela dupla que, com o tempo, 72 Termo comum entre os circenses, que define o ator responsável por construir e apoiar a piada, que será arrematada pelo Toni. Dissertarei mais profundamente sobre esta função ao falar do Circo de Teatro Tubinho. 73 Em seu livro “Palhaços”, Mario Bolognesi (2003) apresenta uma coletânea de entradas, captadas oralmente numa profunda pesquisa por diversos circos do país. Trata-se, obviamente, de roteiros de ações. 117 a incorpora ao seu repertório de entradas, passando a apresentá-la sem ensaios. Daí por diante, a entrada a ser apresentada é definida sem muita antecedência, pois os cômicos já a conhecem e sabem “levá-la”, como se diz no jargão circense, sem que a sua estrutura cênica seja comprometida. Em geral, as entradas, encenadas há séculos, são rapidamente copiadas e adaptadas pelas diversas gerações de duplas de palhaços, sem que isso comprometa seus eixos dramáticos (SOUSA JR., 2012: 82). No Pavilhão Arethuzza a dupla cômica era formada pelo Excêntrico Thomé (Oscar Neves) e o Clown Sinhô (Antônio Neves Junior). O Mestre Chicote ou Mestre de Pista era função de Aristides Neves e o quarto irmão Neves, Arthur, servia como figura de apoio para as entradas que necessitavam de mais um artista. A dupla cômica “Clown e Excêntrico” ou “Branco e Augusto” é baseada numa clara polaridade, em que um serve de contraponto ao outro, gerando a oposição necessária para o estabelecimento do conflito cênico. O Figura 22: Thomé e Sinhô, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Clown é a ordem, a autoridade, a sutileza, a exaltação do belo e do sublime, a astúcia, a elegância, o autêntico representante da ordem e dos bons costumes. Enquanto que o Excêntrico é a desordem, a ruptura, o rude, o grotesco, o bobo, o desajeitado, de raciocínio lento, o eterno perdedor, o emocional, o ingênuo de boa-fé. A diferenciação dos tipos também é expressa pelas suas caracterizações físicas. Tradicionalmente, o Clown tem o rosto branco, vestimenta elegante de lantejoulas e chapéu cônico. Já no Excêntrico “tudo é hipérbole” (BOLOGNESI, 2003: 78): o paletó é grande, o colarinho largo, os sapatos imensos, as calças largas, a maquiagem exagerada e, geralmente, o nariz vermelho. 118 Segundo o cineasta Frederico Fellini, O primeiro (Clown) é a elegância, a graça, a harmonia, a inteligência, a lucidez, que se propõem de forma moralista, como as situações ideais, únicas, as divindades indiscutíveis. Eis que em seguida surge o aspeto negativo da questão. Pois dessa forma o clown Branco se converte em Mãe, Pai, Professor, Artista, o Belo, em suma, no que se deve fazer. Então o Augusto, que devia sucumbir ao encanto dessas perfeições, se não fossem ostentadas com tanto rigor, se rebela. Vê as lantejoulas cintilantes, mas a vaidade com que são apresentadas as torna inalcançáveis. O augusto, que é a criança que faz sujeira em cima, se revolta ante tanta perfeição, se embebeda, rola no chão e na alma, numa rebeldia perpétua. Essa é a luta entre o orgulhoso culto da razão, onde o estético é proposto de forma despótica, e o instinto, a liberdade do instinto. O clown Branco e o Augusto são a professora e o menino, a mãe e o filho arteiro, e até se podia dizer que o anjo com a espada flamejante e o pecador. São, em suma, duas atitudes psicológicas do homem, o impulso para cima e o impulso para baixo, divididos, separados. O filme [I Clowns] termina com as duas figuras se encontrando e desaparecendo juntas. Por que comove essa situação? Porque as duas figuras encarnam um mito que está dentro de cada um de nós – a reconciliação dos opostos, a unidade do ser. A dose de dor que existe na guerra contínua entre o clown branco e o augusto não se deve às músicas nem a nada parecido, mas ao fato de presenciarmos a algo que se liga à nossa própria incapacidade de conciliar as duas figuras. Com efeito, quanto mais procures obrigar o augusto a tocar violino, mais dará soprinhos com o trombone. O clown branco ainda pretenderá que o augusto seja elegante. Mas quanto mais autoritária seja essa intenção, mais o outro se mostrará mal e desajeitado (FELLINI, 1974: s/n)74. 74 Trecho do comentário que fez Fellini a seu filme I Clowns, feito para a televisão em 1970. In “Fellini por Fellini". Porto Alegre: L&PM Editores Ltda, 1974, págs. 1-7. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/tex_fellini.html 119 Figura 23: Thomé (Oscar Neves), s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Figura 24: Sinhô (Antônio Neves Jr.), s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Com o tempo, a figura do Clown foi desaparecendo do picadeiro. “Sua contraparte, muitas vezes sem qualquer caracterização, foi mantida para garantir o diálogo cômico, de modo que ele fosse sempre o „escada‟ do primeiro” (SOUSA JR., 2012: 80). Muito comum, também, é a constituição de duplas em que os dois palhaços se caracterizam como Augustos, mas um acaba assumindo a função do Clown na cena, o que, a meu ver, não cria um contraponto tão potente. O fato é que, apesar do reconhecimento geral da importância da constituição da dupla cômica, a figura do Clown, elegante e sério, vem desaparecendo do imaginário popular, uma vez que a maioria dos palhaços que se apresentam – em solos ou em duplas, nos picadeiros, ruas ou teatros – se caracterizam e partem da lógica de raciocínio do Excêntrico. 120 No Brasil, a parte do espetáculo circense de representação teatral sempre fez muito sucesso junto ao público e as entradas ganharam cada vez mais destaque no espetáculo. Elas foram, então, estendidas e acrescidas de ações, criando um tipo de comédia, encenada ainda no picadeiro, chamada de combinado (Idem). No combinado – também conhecido por comédia de picadeiro ou chanchada75 – que passou a ser encenado também nos palcos dos circos-teatro, o palhaço aparece caracterizado e cria-se uma história, com um ritmo extremamente ligeiro, através da extensão de alguma das entradas já existentes. Com o passar dos anos, o circo-teatro irá se caracterizar, predominantemente, pela presença de personagens-tipo e pelo fato do palhaço ser responsável, na maior parte das vezes, pela comicidade da peça, apesar de não atuar caracterizado como tal, sendo inserido também dentro da tipologia. No Pavilhão Arethuzza, de acordo com Santoro Junior, Oscar Neves nunca aparecia caracterizado de Thomé na segunda parte do espetáculo; ele era o responsável pela comicidade da peça, porém sempre interpretando um personagem na linha cômica. Oscar atuava como Thomé apenas nas peças de matinê, direcionadas ao público infantil. Dentre as peças merece destaque o seriado, escrito por Arethusa Neves, e protagonizado por Thomé e Santoro Junior, na época com seis anos de idade, intitulado As aventuras do detetive Thomé e seu auxiliar Toquinho. Porém, destaco novamente que o movimento teatral no circo é extremamente múltiplo. Assim sendo, este tipo de classificação, que conceitua os combinados ou chanchadas como exceção dentro do circo-teatro por trazer o palhaço caracterizado em meio às demais personagens tipificadas, deve ser reavaliada e entendida como algo datado e específico a algumas companhias circenses. Apesar disso, o fato é que este tipo de representação continua sendo apresentado pelas companhias de circo-teatro e circo de teatro, ao longo de todas estas décadas, por sempre fazer enorme sucesso junto ao público. 75 Destaco que o mesmo termo chanchada é usado, tanto no meio circense quanto no teatral e no cinema, para expressar diversos tipos de manifestações cênicas. 121 2.4 A segunda parte do espetáculo 2.4.1 Ensaio e ensaiador A partir do momento em que o espetáculo passou a ser divido em duas partes, verticalizou-se o processo de formação e aprendizagem circense, que já existia nas companhias, ligados à arte teatral. Desse modo, ao longo dos anos, o circo sofreu influências, ao mesmo tempo em que influenciou diversas outras manifestações artísticas contemporâneas ao seu tempo. Fernando Neves costuma dizer que “o circo aproveita tudo, retrabalha e devolve com cores fortes”. Ou seja, no espetáculo circense todas as matrizes e tendências agregadas de outras formas artísticas são retrabalhadas de maneira a se enfatizar e sublinhar a encenação. O responsável por encabeçar a construção do espetáculo no circo era chamado de ensaiador. Porém, esta função não é exclusiva da arte circense. No teatro tido como oficial, até o fim século XIX, na Europa, e até meados do século XX, no Brasil, também não existia a figura do diretor, e sim do ensaiador. Na Europa, é a partir de 1830 que o termo “diretor” passa a ser usado, porém é somente a partir de 1880 graças, sobretudo, ao francês Antoine, que “a direção [mise en scène] reivindica ser uma arte global de interpretação do texto dramático, com o diretor assumindo a responsabilidade por essa interpretação” (ROUBINE, 1998: 09). No Brasil, a história do teatro tido como oficial considera a montagem de O Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943, como a primeira a contar com a figura do diretor teatral, no caso, Zbigniew Marian Ziembinski, polonês que emigrou para o Brasil em 1941. Esta montagem também é considerada como o marco inicial do Teatro Moderno Brasileiro. Acerca da função do ensaiador, Erminia Silva afirma que Rosyane Trotta, ao descrever a “técnica dos ensaiadores” naquele período, diz que cabia a eles, em linhas gerais, “marcar o espetáculo”, ou seja, um “bom ensaiador” era “aquele que, no menor prazo de tempo, articulava os atores de modo que não se esbarrassem e tornassem a cena compreensível”; os cuidados com os objetos de cena e os horários dos atores eram tarefas adicionais. No texto da autora, essa descrição refere-se apenas à “história do teatro brasileiro”, não fazendo parte de sua pesquisa a produção do circo-teatro (...) O movimento de 122 cena, a propriedade do gesto nesta ou naquela passagem, a inflexão adequada a certa frase, a pronúncia de uma palavra que ofereça dúvidas, são questões que se discutem e se resolvem no palco entre artista, ensaiador e o autor. (SILVA, 2007: 143,144 e 226). Geralmente, o papel do ensaiador era assumido, nos circos, pelo dono da companhia, que também era o responsável por toda a parte de administração dos negócios. No Pavilhão Arethuzza, o primeiro a desempenhar tal função foi o Comendador João Miguel de Farias, seguido pelo genro Antônio das Neves e pela bisneta Arethusa Neves. Segundo Santoro Junior, o padrinho Eugênio Barbosa, além de ser responsável por parte da educação das crianças, também auxiliava o ensaiador nas montagens dos espetáculos. Acerca da rotina de ensaios, faço, primeiramente, uma ressalva a respeito do que o termo “ensaio” significa para os circenses. Há alguns anos, fiz aulas de acrobacia de solo na escola de circo Cia do Circo, em Barão Geraldo, fundada e mantida pelas tradicionais famílias Brede e Orteney. Logo na primeira aula ouvi de meus professores Alex e Allan Brede, pai e filho, que eles ensaiavam um número de icários todas as manhãs. Aquilo me chamou a atenção e passei a reparar que eles nunca falavam em treinamento ou em treinar. Para dar uma bronca em algum aluno, que estava aprendendo as técnicas do trapézio, por exemplo, a frase era sempre algo do tipo: “E aí, vamos parar de moleza e vamos ensaiar?”. Ou seja, segundo eles, eu estava ali ensaiando, e não “só” treinando acrobacias. Depois de algum tempo, li uma passagem num dos livros de Erminia Silva que me esclareceu melhor esta questão: O termo ensaiar entre os circenses não se referia (e não se refere) apenas às representações teatrais. Toda preparação para qualquer que fosse o número era chamada de ensaio, sendo que poderia ser feita individualmente ou em grupo, sob o acompanhamento de um mestre (Idem: 144). Chamo atenção para esta questão, pois, a meu ver, o que parece apenas uma simples questão de nomenclatura revela, na verdade, um aspecto fundamental do processo de formação do artista circense. Acredito que a utilização do termo “ensaio”, e não “treino”, é um indicativo de que o artista circense tem consciência de que seu trabalho está para além da reprodução de 123 uma prática ginástica e esportiva; significa que faz parte da forma estrutural de seu trabalho a questão da dimensão artística em que ele está envolvido. Desse modo, ao ensaiar uma peça teatral, ou mesmo um número de habilidade, tem-se sempre a dimensão de que isto está sendo feito para alguém e que, portanto, precisa ser organizado de modo compreensível, e principalmente agradável a este espectador. A respeito das rotinas de ensaio no Pavilhão Arethuzza, Rosalina Viana, avó de Fernando Neves, retratou: (...) às 10 horas da manhã, nós tínhamos um ensaio. Às 3 horas tínhamos outro. Dois ensaios. (...) Às vezes, à noite, depois do espetáculo... “Quem é que está disposto? Vamos passar a peça de amanhã? Vamos dar uma passadinha?” Todo mundo entrava de acordo! Terminava o espetáculo. Às vezes, aquelas peças enormes, de suar a camisa mesmo, do suor da gente pingar... levava a peça, terminava o espetáculo. “Vamos dar uma passadinha na peça de amanhã?” Às vezes, a gente até queria mesmo que passasse, porque estava meio indeciso. E ensaiava outra peça depois do espetáculo76. No início de uma montagem no Pavilhão Arethuzza, a primeira ação realizada era uma leitura do texto. Nesta primeira leitura, havia um rigoroso processo de entendimento da literatura dramática, que, nesta época, geralmente, se utilizava de estruturas gramaticais complexas e palavras rebuscadas. Santoro Junior explicou em entrevista: Por exemplo, ia levar tal peça, ia todo mundo pro palco, mas se obedecia assim. Um começava: “Cingir pelas façanhas os vis lauréis/ que os escribas sempre dão/ aos seus sicários/ Povo sem alma, raça viperina...”. A tia Thusa ou o vovô: “Para. Você entendeu tudo o que tá falando aí?” “Entendi”. “Então, o quê que é cingir?”. Um olhava pro outro. “Pega o dicionário!”. E daí “Cingir é isso, cingir é isso, cingir é isso...”. Todos eram obrigados a falar o que significava, pra depois continuar o texto. Porque era muito difícil as palavras, então eles iam tendo uma cultura de português, de francês (...) Eles tinham a força da linguagem, a linguagem era muito polida77. Com o passar dos anos e com o progressivo aumento do repertório de peças, os artistas circenses passaram a se especializar na interpretação de determinados papéis. Desse modo, ao fim dessa primeira leitura, cada um já sabia qual personagem iria interpretar, de 76 77 Rosalina Viana em entrevista ao pesquisador Pedro Della Paschoa Junior em 1972. Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 124 acordo com o tipo que representava na companhia; fato este que fazia dispensável também a figura do diretor, pois cada ator sabia claramente qual linha de interpretação deveria seguir. Destaco ainda que para essa leitura, os artistas não recebiam o texto completo da peça; cada artista recebia um papel apenas com as “deixas” e suas falas. Desse modo, a questão da oralidade se fazia extremamente fundamental, pois o entendimento da lógica e dos desencadeamentos globais da peça vinham somente no momento em que todos se juntavam para ensaiar e, posteriormente, apresentar ao público. Santoro Junior narrou na mesma entrevista: Em casa a gente fala uma coisa: “deu a deixa?”... Porque a gente estudava, o papel não era texto como vocês estudam hoje no teatro. Era uma fala – a deixa – e o que você fala. Você entendeu? E é muito engraçado que o pessoal pergunta “Como que vocês conseguiam decorar tudo isso?” Lógico... Você levou um dia, levou dois, levou três, às vezes a pessoa não dava a deixa você mesmo dava a dele e já a sua fala... E daí ela ficava brava né? (Risos). Então nós também decorávamos desse jeito, e isso a gente fazia e faz em casa 78. No Pavilhão Arethuzza, assim como em tantos outros circos, comumente os diálogos da cena passavam a fazer parte da comunicação do dia-a-dia, com uma conotação especial, que fazia – e ainda faz – com que estes artistas se comunicassem entre si através de “códigos”. Durante a nossa entrevista, Santoro Junior me contou diversas passagens engraçadíssimas em que esta questão aparece; passagens, encontradas também em sua monografia: Essas “falas” eram e são frequentemente trazidas para os papos do dia a dia, (...) ganhando uma eficácia por sua imprecisão conotativa. Por exemplo: no drama “Os milagres de Nossa Senhora Aparecida” enquanto Isaura fazia suas preces era tentada pelo diabo, Luzbel. Porém, logo o anjo, Gabriel, vinha em seu auxílio e dizia: “Cuidado Isaura, cuidado, que Satã quer te roubar, um anjo que se revela, nada tem para lhe dar, prossiga tranquila e calma na sua santa oração, que não perderás tua alma e não cairás em tentação...”. Assim quando algum perigo rodeia um dos elementos do circo, logo disfarçadamente alguém alerta: “Cuidado Isaura, cuidado...”. Numa comedia de matinê, o mascate se apaixona pela mocinha cujo pai ranzinza não admite o namoro da filha. Assim todas as vezes que este casal de namorados está em colóquio amoroso, o velho entra em cena. Imediatamente o mascate se 78 Ibidem. 125 esconde e a jovem com muita brejeirice faz o pai sentar-se numa poltrona e conta-lhe uma história, e com um lenço segurado pelas duas mãos, tapa-lhe a visão pronunciando uma frase como se fizesse parte da história “Passa, passa mascate...”. Com esta estratégia, o mascate consegue fugir. Daí toda vez que uma pessoa do circo quer sair de fininho sem ser percebido por outrem, pede discretamente o auxílio a quem o atende com a simples frase: “Passa, passa mascate...”. Toda vez que nós do circo Arethuzza queremos alguma coisa e não podemos obtê-la, logo a “fala” é dita “Ah! Se eu fosse amada assim...”. No drama Amor de Perdição, no quarto ato, Simão que ama Teresa mata Baltazar, primo de sua amada, pois o mesmo viera interferir drasticamente em seu romance. Cena esta inclusive assistida por Mariana que por sua vez ama Simão e não é correspondida. Assim decorre a cena e o texto deste ato: Após o tiro fatal Teresa exclama: “-Ah Simão que te perdeste...” e Simão responde desoladamente: “Perdido eu já estava desde o dia em que te amei...” Mariana que a tudo observa exclama “-Ah! Se eu fosse amada assim...” (cai o pano). Por isso nós diante de uma vitrine que nos mostra algo muito bonito e muito caro, expressamos melancolicamente “-Ah! Se eu fosse amada assim...”. No drama “O Ébrio” há um personagem inconveniente, o primo José, o vilão da história. Salomé, empregada do herói desta peça, Dr. Gilberto, está sempre atenta nas atitudes de José, desapontando-o a cada instante, principalmente no momento em que José quer entrar no quarto de Marieta, esposa de Gilberto. Interpondo-se entre ele a porta, Salomé com uma bandeja na mão e uma postura cômica exclama “cafezinho...”. Assim toda vez que uma pessoa se torna inconveniente diante dos nossos, sempre se ouve a frase “cafezinho...” (SANTORO JR., 1997: 66). Essas passagens mostram, mais uma vez, como o processo de formação/socialização/aprendizagem no circo era uno e integral, fazendo com que o trabalho artístico e a vida pessoal desses artistas fossem completamente amalgamados. No circo, eles nasciam, cresciam, trabalhavam, constituíam família e passavam seus ensinamentos para os seus filhos. Fernando Neves, que acompanhou o tio Santoro Junior no dia de sua entrevista contou: Todo dia tinha ensaio, todo dia a gente ensaiava e a vida inteira que eles viveram, eles foram assim... Quando tinha uma festa ou alguém dava uma deixa, eles faziam a peça inteira... Um já ia pro piano, o outro já pegava o violão e cantava as músicas. E "abaixa, abaixa!", como pra abaixar o tom, "abaixa! abaixa!". E você via o povo cantando e todo mundo abaixava na festa (risos)... E isso era o tempo inteiro. O tempo inteiro, eles viviam isso direto e minha mãe às vezes tava jantando lá na sala de jantar, assim, eu passava e ela falava "E aí, filhinho, tá com saudade do circo?" e eu “Não é que eu tô?”. Tínhamos saudades... Eles viveram a vida inteira... Amaram o que eles fizeram79... 79 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 126 Retomando a questão dos procedimentos de ensaio, após a primeira leitura do texto, cabia ao ensaiador a marcação da cena, que incluía entradas e saídas dos personagens e também as movimentações em cena de cada um. Para isso, os circenses usavam, assim como o teatro tido como oficial do período, o sistema de divisão do palco em setores, seguindo a convenção à portuguesa, na qual esquerda e direita dizem respeito ao ponto de vista da plateia: Esquerda Alta Centro Alto Direita Alta (Setor 1) (Setor 2) (Setor 3) Meio Esquerda Centro Médio Meio Direita (Setor 4) (Setor 5) (Setor 6) Esquerda Baixa Centro Baixo Direita Baixa (Setor 7) (Setor 8) (Setor 9) Proscênio Dessa forma, em relação à frontalidade, o palco era dividido em esquerda, direita e centro; e em relação à profundidade era dividido em alta (fundo), baixa (frente) e média (intermediário). José Carlos de Andrade (2010) afirma num primeiro momento em seu trabalho que, quando o ator se deslocava em direção a frente do palco (baixa,) dizia-se que ele 127 desceu ou caiu; quando se deslocava em direção ao fundo do palco (alta) dizia-se que ele subiu ou remontou. Também afirma que se usava a expressão tomar a cena, quando o ator ocupava o centro do palco sob a atenção de todos, e abrir a cena ou passar para indicar que o ator deveria dar passagem para que outro ator se deslocasse para a mesma posição, sem que um encobrisse o outro. Porém, um pouco mais adiante em seu texto, ao exemplificar a movimentação de um personagem, Andrade (2010) utiliza apenas os termos descer e cair para especificar as movimentações realizadas também em direção ao fundo do palco. Rosalina Viana, em depoimento ao pesquisador Pedro Della Paschoa Junior, em uma passagem em que conta como eram executadas essas marcações, também utilizou apenas o termo cair para indicar ambas as movimentações: Às vezes tem uma cena e a pessoa tem que falar aquela fala. Tem que passar... Como antigamente... Hoje em sai, não se sabe mais... (...) - Você passa a 1. O cara já sabia que a posição dele era a 1. – Não! Você não passa a 1. Cai a 3! O Cara tinha que dar um jeito, sem prejudicar a visão do outro, e cair a 3. Quer dizer, tudo isso aí, a gente era obrigado a saber. Eu estou a 1, ela está a 2, você está a 3 e ele a 4. Eu estou aqui conversando, mas de repente, eu tenho que cair a 4. Eu tenho que se artista pra sair do meu lugar, sem prejudicar você e cair no lugar do outro. Tudo isso a gente tinha que ensaiar quando estava marcando. Veremos mais adiante que, com a verticalização do uso da tipologia na construção das personagens, a movimentação por essas áreas do palco irá auxiliar na composição de cada tipo e na identificação destes por parte da plateia. Santoro Junior conta ainda que comumente nos ensaios, à título de exercício e experimentação, os atores trocavam os personagens entre si, de modo que o ator poderia encontrar diferentes nuances e características de seu personagem ao ver este sendo representado por outro ator. Esse exercício de alteridade ainda hoje é muito utilizado pelos grupos de teatro em seus processos de montagem. Muito comum também era o fato do ensaiador se basear em quadros de grandes artistas plásticos mundiais para a construção de cenas que contavam com a presença de muitos atores ou que necessitavam de grande impacto e rigor formal. Fernando Neves conta: 128 Então, por exemplo, como não tinha diretor, eles queriam resolver uma cena grande... Daí eles pegavam um quadro e falavam "olha que legal esse quadro!" e montavam a cena: "olha (...) ele tá com a mão aqui, tá olhando assim", via também a luz pra fazer as sombras... Então eles resolviam algumas cenas olhando pra obra de arte. (...) Então a Pietá nossa do Mártir do Calvário tem... a descida da cruz do Cristo tem... eu não sei que artistas que eles escolheram... Mas, aquilo tudo foi feito olhando pra quadros de artistas plásticos e pintores. E foi assim que o Toco (Santoro Junior) acabou vindo a ser professor de História da Arte80. Não podemos nos esquecer de que, no circo, essa profunda intimidade do artista com o seu ofício era cultivada desde a infância. Assim, as crianças aprendiam vendo os mais velhos e já participando também das encenações. Santoro Junior conta, por exemplo, que sua tia Arethusa ia ao cinema, para fazer adaptações dos filmes para os palcos, e sempre o levava: Ela ia no cinema e me levava junto. “Ele não pode entrar”. Ela falava assim: “Mas ele é meu ajudante. É meu sobrinho, eu sou a tia dele, eu tenho a autorização dos pais pra levar, porque ele me ajuda”. “Que ele faz?”. “Eu sou do circo”. “Ah! Do circo Arethuzza!”. “E eu vou fazer uma adaptação do filme e ele vai segurar a lanterninha pra mim”. Então eu ficava com a lanterninha enquanto ela ia escrevendo alguma coisa, e assim ela montou “A irmã Branca”, “A Canção de Bernadete”, as peças que passavam... Então isso tudo eu sei porque eu não saía de lá, imagina que vinha embora pra casa de colo em colo. “Quero o colo do tio”. Aonde eles iam me levavam em tudo quanto era canto. Então é por isso que eu tenho essa herança na cabeça81. Acerca de como as crianças eram instruídas a interpretar, Santoro Junior contou que o maior conselho era sempre o de buscar “agir naturalmente”. Para isso, os mais velhos mostravam à criança no que aquele personagem se assemelhava a ela; e esta identificação e naturalidade cultivada pelos circenses geravam, às vezes, situações engraçadas, como a abaixo: De modo geral era "Olha, você vai fazer um papel... você vai fazer o irmão de Bernadete. Um menino sensível, que nem você! Olha, faz do jeito que você quer!” Deixava a gente bem a vontade... Às vezes: “Olha, isso aqui você não pode fazer”. Um dia eu lembro... Eles passavam uma fome desgraçada. Aí o dia que ela vê a santa, o pai arruma emprego (...) e a vizinha, fala "vizinha, olha o 80 81 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 129 que eu trouxe pra você, uma cesta de comida". E eles tavam passando, assim, uma semana de fome. Então já entrou comida, encontrou emprego, mexeu com a vida toda da Bernadete. Então os meninos, lógico, quando viam lá aquele bando de comida, pulavam nas coisas. Eu não sei por que cargas d'água, eu via de tudo, sabia de tudo, mas também não sabia... E falei "Eu quero, eu quero! Eu quero „shisha‟!” E aquela salsicha balançava e o povo ria porque ficou assim, sabe... (...) “Isso não pode fazer. Você vai querer qualquer outra coisa, a „shisha‟ não vai ter mais”... Porque ficou tão feio... (risos) 82. Santoro Junior ainda conta que a introdução das peças às crianças desde muito cedo permaneceu como hábito da família mesmo após o encerramento das atividades do circo. Desse modo, o conhecimento da literatura dramática circense fez parte da formação de seus filhos, que acabaram também por desenvolver o hábito de falar em códigos: De manhã quando fazia o café pros meus filhos irem pra escola eu contava histórias do circo. Então nós sabíamos de tudo, tudo, até hoje a gente fala, eles falam comigo por código. Então eles faziam na minha casa uma bagunça! E minha mulher chegava e ela é professora de história, daquelas professoras rígidas sabe? Eles comigo faziam bagunça, quando minha mulher tava chegando, fazia um barulho, eles olhavam, um falava “Ouvi bater a cancela grande”, aí o outro “É Leôncio que veio da cidade”. Isso pra dizer que a mãe estava chegando! Então nós temos, assim, hoje muita conversa, assim até hoje, a gente se fala com esse tipo de conversa que eu já passei pros meus filhos. (...) Um dia eu tava fazendo uma faxina, meu filho foi lá e desarrumou tudo, eu falei “Por Deus, quê que cê fez?”, sabe, fiquei muito bravo com ele... “quê que cê fez?”. E ele falou “que fizeste João? Vinguei a meu pai (...) derrubei com um pedaço de chumbo um castelo de ouro”. Uma criança pra falar isso é porque a gente enchia o saco dela! Era “O Poder do Ouro” que ele tava falando 83! Todas estas questões formação/socialização/aprendizagem estruturaram circense integral, que um gerava processo uma de profunda intimidade entre o artista circense e seu ofício, e também entre os próprios artistas. Por sua vez, toda essa intimidade, avinda do grau de parentesco entre os artistas, da intensa convivência, de tantos ensaios e tantas apresentações todas as noites, permitia a execução das mais diversas brincadeiras em cena. Em entrevista, Santoro Junior e Fernando Neves relembraram as peripécias que os mais novos aprontavam no Pavilhão Arethuzza e que nos renderam boas risadas: 82 83 Ibidem. Ibidem. 130 Santoro Junior: Aí a gente começou a ficar mais malandro, começou a fazer bagunça, mas tudo interno, o povo não percebia. Fernando Neves: Ele tá falando em muita bagunça! (risos) Fernando Neves: Ele salgava vinho... no Mártir do Calvário! Santoro Junior: Eu tava de escravo de Pilatos e do nada "pou", caía tudo pro lado. Fernando Neves: E tudo com cara de "ninguém fez nada"... os velhos ficavam putos, não gostavam nada daquela história. Santoro Junior: E tinha uma tia chamada Rosária... Ela não era tia, mas chamava de tia... E ela ia na sexta-feira fazer a peça... E ela levava uma bacia de pinhão cozido e batata doce... E a gente comia e comia e comia batata doce e pinhão. Depois a gente você só ouvia o barulhinho "puf"... “puf” (risos). E Jesus Cristo falando “Jerusalém... cidade majestosa, aceita o...!". E termina com a fala... E cadê o povo? Tudo lá atrás porque ele tá... soltando pum (risos). Aquilo era bravo, aquilo... Fernando Neves: E tudo com cara de choro, com cara de cinismo total. A plateia chorando e todo mundo em cena pintando e bordando. (...) E, nossa, era uma delícia! A gente ia pra lá na hora do almoço e ficava... Saía de lá uma hora da manhã, na quinta eram duas e sexta-feira eram três sessões. E o circo lotado e aquilo era uma delícia, né? Pra gente era... Agora, o Cristo não, o Cristo não participava de nada disso, ficava lá no camarim, alguém maquiava, tudo, só saía do camarim pra entrar em cena. Fernanda Jannuzzelli: E quem fazia o Cristo? Santoro Junior: Tio Sinhô, depois foi passando... Fernando Neves: Mas quem fazia o Cristo não tinha isso de ficar nessa bagunça. Santoro Junior: Não, mas tinha um moço foi terrível (referindo-se ao Fernando) que bolou coisa que a gente nunca imaginava, sabe o que ele queria? O pessoal tinha que tirar a sandália e molhar os pés no lava-pés no Mártir do Calvário também... Daí queriam por água quente e o pessoal "Ah!!!". Sabe quem queria fazer isso, Fernanda? Não te passa pela cabeça? (risos) Fernanda Jannuzzelli: Quem será? (risos)84. Essas brincadeiras entre os intérpretes criava “outra camada” na representação, que vai além do campo ficcional. Estabelecia-se um jogo entre os atores que não era perceptível ao público, mas que contribuía inegavelmente para a conformação do que era visível a este. A brincadeira, o desafio ativava-os a um estado lúdico, que se ligava diretamente ao campo teatral e que os tornava mais vivos e vibrantes em cena. 2.4.2 Repertório 84 Santoro Junior (Toco) e Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 131 Como evidenciado anteriormente, as companhias de circo-teatro encenam peças de diversos gêneros teatrais, muitas vezes mesclando-os e justapondo-os, o que promove a pluralidade dos discursos cênico e dramático. Devo mais uma vez relembrar que esta diversidade de gêneros, assim como tudo no circo, tem como principal objetivo agradar a plateia, conformando o espetáculo aos gostos e tendências contemporâneas e locais. Ou seja, (...) os artistas circenses irão se valer de tudo que existia para oferecer aos espectadores uma encenação esteticamente pluralizada. Essa estratégia caracterizava-se pela superposição de muitos gêneros, com o objetivo de evitar que alguém nas arquibancadas se aborrecesse (ANDRADE: 2010, 77 e 78). Desse modo, o Pavilhão Arethuzza ao longo de sua trajetória encenou – além de pantomimas e melodramas, presentes no circo “moderno” desde sua origem – diversos outros gêneros teatrais, que comportavam desde as entradas de palhaços até elaboradas encenações de grandes obras da literatura universal. Dentre esses variados gêneros, o Pavilhão Arethuzza se destacava pela representação, principalmente, de dramas. Ressalto que, hoje, costumeiramente falamos que os circos-teatro encenavam melodramas, porém estes artistas chamavam suas representações de “dramas”, e às vezes, até de “tragédias”. O circo está sempre com o olhar voltado para o gosto do público; desse modo, como na época de ouro do Pavilhão Arethuzza a preferência do público recaía sobre o drama, este era então levado à cena quase diariamente pela companhia. Santoro Junior, em entrevista, contou: “Nós fazíamos comédias boas também, mas o forte era o drama por causa da época... Romantismo, né? Porque o Romantismo terminou muito tardio no Brasil. Todo mundo queria chorar, se apaixonar”85. Santoro Junior contou ainda que nessas representações dramáticas quase não havia espaço para o improviso. Deste modo, as encenações estavam alicerçadas, principalmente, sob o rigor de um texto, necessariamente bem decorado e bem dito, em sinergia com os diversos elementos da encenação, explorados sempre de maneira 85 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 132 requintada, e com um intenso e rico trabalho de composição de personagem por parte dos atores. Acerca das peças cômicas, Fernando Neves destaca que, o contexto histórico em que está inserido o Pavilhão Arethuzza, fazia com que o humor fosse trabalhado, principalmente, sob o viés do duplo sentido. Sobre seu avô, Oscar Neves (Thomé), o excêntrico da companhia, Fernando Neves conta: Meu avô não falava um palavrão... Um “puta que pariu” levantava meio circo e ia embora! E pensa: nós estamos falando de até os anos 50. Não é a coisa de hoje. Então ele trabalhava com duplo sentido. (...) Porque você tem o circo de teatro, o Tubinho é outra coisa... Ele tá em cima da plateia, ele fala o que ele quer, como se ele estivesse em casa. Nesse período do circo-teatro que é o circo de duas partes, primeira de variedades e o teatro, se trabalhava com duplo sentido. Falava muita sacanagem, mas aquilo não era dito abertamente, entendeu? Se você falava um palavrão no circo acabava, as pessoas ficavam chocadas. Agora mudou, mas naquele período não se admitia86... Em seus estudos, José Carlos Andrade (2010), a partir do levantamento feito por Antônio Santoro Junior (1997), fornece um catálogo com cento e dezessete textos que foram encenados pelo Pavilhão Arethuzza ao longo de aproximadamente quarenta anos. É certo que muitas outras obras foram encenadas, mas por diversas razões – entre elas o nomadismo tipicamente circense – muitas se perderam. Além disso, destaco que a maioria dos textos sofriam modificações, sendo adaptados ao elenco do Arethuzza e à disponibilidade de investimento financeiro do momento. A seguir, listo as peças que eram encenadas no Pavilhão Arethuzza, seguindo a divisão proposta por José Carlos Andrade (2010)87: Clássicos Quadro 1 – Lista do repertório de peças do Circo Teatro Pavilhão Arethuzza 1. Otelo 2. Romeu e Julieta Comédias 3. Casar para morrer 4. Dar corda para se enforcar 86 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. Apesar de utilizar a classificação proposta por Andrade (2010), por ser a única existente e este não ser o foco deste estudo, acredito que essa classificação deve ser revista e aprofundada, pois não leva em consideração a divisão clássica em gêneros e subgêneros. 87 133 5. Dote (O) 6. Família Revoltosa (A) 7. Feia (A) 8. Feitiço 9. Felicidade pode esperar (A) 10. Fuga da melindrosa (A) 11. Inimiga (A) 12. Mulher do trem (A) 13. Que mão que eu arranjei 14. Ressonar sem dormir 15. Se o Anacleto soubesse 16. Terra Natal 17. Vancê não viu minha fia? Dramas 18. Bandidos da Serra Morena (Os) 19. Castelo das Almas condenadas 20. Coração que sangra 21. Ditadora (A) 22. Dois sargentos (Os) 23. Dois garotos (Os) 24. Filha do saltimbanco (A) 25. João José 26. João, o corta mar 27. Jocelyn, o pescador de baleias 28. José do telhado 29. Manhãs de sol 30. Ódio de raça 31. Pena de morte (A) 32. Poder do ouro (O) 33. Sacrifício de mãe Melodramas 34. Conde de Monte Cristo (O) 35. Escrava Andréa (A) 36. Ferro em Brasa 37. Filha do mar (A) 38. Grito da consciência (O) ou Justiça Divina (A) 39. Máscara de Bronze ou Falsa Adúltera 134 40. Mulher sem destino (A) 41. Mundo não me quis (O) Dramas 42. Descoberta da América (A) Históricos 43. Guerra de Canudos (A) 44. Guerra do Contestado (A) 45. Tiradentes 46. Tomada da Bastilha (A) 47. Vida de Emile Zola (A) ou Conselho de Guerra (Um) Peças 48. Jesus, o cego e a leprosa Religiosas 49. Lágrimas de Maria 50. Mártir do Calvário (O) ou Rei dos Reis (O) ou Drama da Paixão (O) 51. Milagres de Santo Antônio (Os) 52. Segredo dom Padre Jeremias (O) 53. Vingança do Judeu (A) Filmes 54. Canção de Bernadete (A) Adaptados 55. Direito de Matar (O) 56. Hipócrita (A) 57. Honrarás tua mãe 58. Jack, o estripador 59. Ladra (A) 60. Marca do Zorro (A) 61. Milagres de Nossa Senhora Aparecida (Os) 62. Pirata Negro (O) 63. Ré Misteriosa (A) 64. Rebeca 65. Rosas de Nossa Senhora (As) 66. Sétimo Céu 67. O sinal da cruz 68. Sinos de Santa Maria (Os) Obras literárias 69. Amor de Perdição Adaptadas 70. Alvorada do amor (A) 71. Cabana do Pai Thomaz (A) 72. Dívida de honra 73. Duas órfãs (As) – “Família Maldita” 74. Erro Judiciário (Um) 135 75. Escrava Isaura (A) 76. Escravo (O) 77. Frankenstein 78. Guarany (O) 79. Irmã Branca (A) 80. Irmãos Corsos (Os) 81. Lágrimas de Homem 82. Lobo do Mar (O) 83. Mãe Preta 84. Médico e o Monstro (O) 85. Morro dos ventos uivantes (O) 86. Rosa do Adro (A) 87. Testamento de sangue (O) 88. Tosca (A) Textos 89. Cigana me enganou (A) inspirados em 90. Cabocla Tereza letras de 91. Direito de Viver (O) músicas 92. Ébrio (O) 93. Luar de Paquetá Infantis 94. Branca de Neve e os Sete Anões 95. Casamento de Branca de Neve (O) 96. Detetive Tomé e seu auxiliar Toquinho (O) 97. Vingança dos sete anões (A) Textos que 98. Crime da quinta avenida (O) não tiveram o 99. Deus e a Natureza gênero ou o 100. Falsidade de Bandido autor 101. Filha do montanhês (A) identificados 102. Filho da miséria 103. Ilha das maldições 104. Maria Quitéria, a mulher do soldado 105. Marido nº 5 106. Pescadora (A) 107. Pupila do senhor pastor (A) 108. Que trapalhada! 109. Queda de Nero (A) 136 110. Rapto de Fernanda (O) 111. Retalho 112. Revelações do passado 113. Silvio e o Cigano 114. Soldado brasileiro (O) 115. Sua última lágrima (A) 116. Traição e a Justiça (A) 117. Vinte Mil Dólares Fonte: ANDRADE, 2010: 443. 2.4.3 O ponto O ponto era costumeiramente usado tanto no circo-teatro, quanto no teatro brasileiro tido como oficial. Falando especificamente do circo-teatro, entendemos a importância da função do ponto ao lembrarmos que as companhias circenses encenavam um grande número de peças com alto grau de rotatividade entre elas. O ponto se posicionava numa cabine de frente para o palco, num nível abaixo da plateia, de modo a não atrapalhar a visão do público, aparecendo somente para os atores através de uma caixa de madeira aberta na frente. Nos circos mais simples e de pequeno porte, que não possuíam a caixa do ponto, a peça era “pontada” dos bastidores. “Compete ao ponto acompanhar o texto escrito, falando-o em voz baixa e sublinhando suas intenções quando necessário” (VARGAS, 1981: 104). A cada pausa dos atores, o ponto ditava a fala e as indicações seguintes. Fernando Neves conta que o ponto deveria falar de maneira “neutra”, ou seja, livre de inflexões e num tom de voz preciso, audível somente aos atores88. Desse modo, o ponto corroborava para o bom desempenho dos atores, fornecendo-lhes, quando necessário, além de suas falas, os posicionamentos no palco. Como já foi dito anteriormente, nos ensaios os atores recebiam papéis apenas com suas falas e deixas; assim sendo, só o ponto possuía o texto na íntegra, funcionando como um ensaiador em cena que, além de “soprar” as falas, controlava as entradas e saídas 88 Informação colhida das anotações realizadas durante a execução da frente prática, no ano de 2010, de minha Iniciação Científica. 137 dos personagens, as subidas e descidas de cortina e o desenho de som e luz do espetáculo – todos previamente determinados pelo ensaiador (SILVA, 2007). Como dito no capítulo anterior, os historiadores do teatro brasileiro tido como oficial costumam afirmar que foi a partir da década de 1940 que o ponto teria sido abolido da cena teatral, particularmente, com o trabalho realizado por Zbigniew Marian Ziembinski. Porém, Erminia Silva (2007) mostra em seus estudos que os espetáculos criados por Benjamim de Oliveira no Circo Spinelli já não utilizavam o ponto desde a montagem de O Diabo e o Chico em 1906. No Pavilhão Arethuzza a maioria das peças levadas, seguindo a preferência do público, eram dramas e estes possuíam uma estrutura dramatúrgica complexa, com construções linguísticas refinadas, que deveriam ser compreendidas e decoradas pelos atores, sendo raras as aberturas para improvisos. O fato dos artistas circenses representarem as peças do baú da família tantas vezes ao longo dos anos fez com que eles se apropriassem dos textos verdadeira e profundamente, de modo que eles permanecem vivos até hoje em suas memórias. E graças a isso, as festas da família Viana-Santoro-Neves continuam sendo alegradas pelas canções e cenas das peças do Arethuzza; e, graças a isso também, foi possível que eu vivesse a profunda experiência de ouvir da boca de Santoro Junior textos tão lindos, ditos de modo tão envolvente, tocante e verdadeiro. Desse modo, como havia o profundo pertencimento destes textos por parte dos atores, na maioria dos espetáculos o ponto apenas acompanhava o texto, para dar segurança ao elenco, e agia somente se o desenrolar do espetáculo fosse prejudicado ou em caso de substituições no elenco. Em entrevista, Santoro Junior contou que o Pavilhão Arethuzza até anunciava em suas propagandas que era o único circo a levar uma peça em doze atos sem ponto – informação que deve ser vista mais como uma jogada de marketing do que como um fato verídico, já que diversos outros circos também aboliram o uso do ponto ao longo dos anos: Fernanda Jannuzzelli: E as peças... Algumas eram apontadas e outras não? Santoro Junior: De modo geral falhou você já dá... Fernanda Jannuzzelli: Tinha alguém nessa função, mas ela só... 138 Santoro Junior: É, porque nesse caso, quando começa a mudar muito, muito, muito, quem entra no ponto é mais só pra localizar a pessoa. Então eles não falam tudo, porque se a pessoa já deu a fala, já vai embora.(...) Nós na verdade... Se você pegar os programas fala assim “O único circo que leva uma peça em doze atos sem ponto” e isso era um sucesso e o pessoal ia pra saber se era verdade. E era89! Se imaginarmos que em uma determinada situação o ponto precisasse apontar a marcação completa, ele teria, então, que dizer a posição do ator no palco – de acordo com a região em setores descrita anteriormente – a intenção da fala e a fala propriamente dita. Por exemplo, se a peça fosse ...E o céu uniu dois corações, o início do primeiro ato poderia ser “pontado” assim: “Francisco e De La Torre entram pela 4, caem a 9 . Francisco, curioso „Afinal, por que me telefonaste para que viesse imediatamente para aqui?‟. De La Torre, misterioso „Já vais saber‟. Desse modo, o ator deveria ouvir e executar todas essas instruções, advindas do plano da realidade, ao mesmo tempo em que deveria se manter imerso também no plano ficcional, mantendo a construção física e temperamental de seu tipo e dando continuidade a ação que estava realizando. Para mim, e acredito que também para os demais atores que não são egressos dessa escola circense, essa maneira de trabalhar se conforma como algo extremamente complexo e distante do nosso modo habitual de “pensar teatro”. Tive a oportunidade de realizar com Fernando Neves, em 2010, durante a execução da frente prática de minha Iniciação Científica, na Graduação em Artes Cênicas, um exercício que simulava esta questão do ponto. Neves pediu que eu e os demais colegas da Academia de Palhaços escolhêssemos um trecho de algum texto teatral de comédia, como por exemplo, alguma obra de Martins Pena, Molière ou Shakespeare. Deveríamos ler este trecho sem decorá-lo, só para termos uma ideia do desenrolar dos acontecimentos. Um de nós então serviria de ponto e iria dando as falas para os que estavam em cena. Primeiramente, Neves nos deixou livres realizando o exercício sem fazer nenhum tipo de comentário, para percebermos pela nossa própria experiência o que esta 89 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 139 prática suscitaria. Nas primeiras tentativas quando o ponto começava a “pontar” a nossa reação natural era olhar para a pessoa. Quando percebíamos nosso olho “já tinha ido” e estávamos simplesmente parados – e desconexos da ação dramática – esperando o ponto acabar de falar. Após o exercício os comentários se resumiam em “Como os atores conseguiam fazer isso? É muito difícil! Tem que estar em cena, prestando atenção no que está acontecendo e ainda estar atento ao ponto para ouvir a sua fala! E pra ouvir sua fala você não pode ficar simplesmente parado olhando pro ponto e esperando ele terminar de falar! É impossível!”. À medida que fomos repetindo o exercício percebemos que a dificuldade ainda era grande, mas que estávamos começando a nos habituar a tal prática. Sentimos, primeiramente, a real necessidade de estarmos completamente concentrados e atentos em cena, o que nos exigia um estado de prontidão aguçado e um nível de energia elevado. Percebemos, então, que a pausa que fazíamos para ouvir a fala do ponto e que no começo nos parecia tão estranha, aos poucos foi incorporada à ação dramática, dando à cena outro ritmo, diferente do que estamos acostumados a trabalhar90. Instalavam-se uns “tempos de silêncio” que, ao percebermos a engrenagem da cena, não ficavam mais vazios, pois passaram a ser preenchidos de intenções e ações físicas. Desse modo, enquanto ouvíamos a fala dada pelo ponto, era como se o subtexto fosse emergindo e nós “jogássemos na máscara” (expressão facial) e também no corpo (expressão corporal) a intenção das nossas falas. Fernando Neves então nos disse: “Tem o tempo de ouvir e o de reproduzir. Vocês têm que criar ações que preencham este tempo de ouvir e, ao mesmo tempo, ouvir muito bem a pessoa que está „pontando‟, para ir criando essa ação”. Outra questão que observamos neste exercício é que a pausa feita para se ouvir 90 Lembrei-me, então, de Marlon Brando e de seus “tempos” particulares, prolongados – para o tipo de interpretação que estamos acostumados no cinema – porém completamente preenchidos. Sabe-se que Marlon Brando não decorava a maioria de suas falas e que espalhava cartões por todo o set com o texto que deveria interpretar e que, já no fim da carreira, nos anos 1990, chegou a utilizar um ponto eletrônico. 140 o ponto e a maneira “neutra” como este dita as falas traz certo frescor para o texto, fazendo com que o ator sempre dê uma nova intenção – que os circenses chamam de inflexão – a cada fala. Percebemos que esse tipo de mecanismo possibilita, então, que o ator descubra novas intenções em suas falas, impedindo que o texto se engesse e se torne mecânico. Em entrevista, Fernando Neves destacou a familiaridade com que o ator de circo trabalhava com o uso do ponto: O ponto ia organizar peças de duas, três horas. Ele tava lá senão ia parar o espetáculo. E o ponto era muito tranquilo pro ator de circo. (...) Imagina! Ele ouvia aquilo, tinha ouvido pra aquilo, não olhava pro ponto... Aquilo era normal. Uma vez eu fiz um exercício com ponto, ainda como meu grupo lá com a Sílvia, com o Hugo. A gente tava em cena, um dava o ponto e “Ãh?!”, parava, desconcentrava. O ator de hoje, se alguém tosse da plateia ele desconcentra... Não pode fazer nada que ele desconcentra! (...) Eles tinham muita familiaridade com aquilo tudo. Hoje em dia, por exemplo, você vê uma representação na TV, uma novela, ninguém fala daquele jeito! Aquilo é um código que a televisão criou, é interpretação. No circo a mesma coisa: era código. Tinha um tempo do ponto e era um tipo de interpretação que incluía o ponto na sua interpretação. E criou um tempo de dizer as coisas que é um tempo diferente para o ator91. 2.4.4 Elementos da encenação Em 1926, as representações já haviam ganhado grande destaque no espetáculo e o circo da família Viana-Santoro-Neves passou a se chamar Circo-Teatro Arethuzza. Nesse período, seguindo a transformação das representações, que necessitavam de maiores recursos técnicos, o palco passou a ser formado por um tablado de um metro de altura, levantado à frente do picadeiro. Ainda dentro desses padrões, foram aparecendo alçapões, reinterpretando a melhor tradição do espaço elisabetano. Surgiram também cortinas superpostas, que garantiam a surpresa do que viria depois. Coxias para que os artistas-atores aguardassem a entrada faziam-se necessárias e faixas de tecido, vindas do alto, impediam que público praticasse uma devassa visual na horizontalidade do palco. (...) Outra das alterações introduzidas é a ampliação da caixa do palco no sentido de profundidade, para que comportasse uma variedade maior de cenários, sempre resolvidos com a superposição de telões pintados. Essa inovação é providencial para que surjam novos e surpreendentes efeitos especiais, ganhando em perspectiva e elaborando ainda mais o tom apoteótico com que as montagens eram encerradas. (ANDRADE, 2010: 45, 46 e 74). 91 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. 141 Dessa forma, para prender a atenção da plateia, o circo-teatro sempre utilizou de diversos recursos, principalmente visuais e sonoros, que visam despertar a sensibilidade e, consequentemente, a empatia da plateia. Fernando Neves costuma dizer que “o que os olhos veem, o coração sente!”. O Pavilhão Arethuzza, ao longo dos tempos, desenvolveu um olhar apurado para as questões visuais do espetáculo, criando encenações recheadas de luxo e requinte e responsáveis pela consagração da companhia. Para chegar a este resultado final que tanto agradava os espectadores, os artistas do Pavilhão Arethuzza – principalmente os ensaiadores Antônio das Neves e Arethusa Neves – realizavam profundas pesquisas, nas mais diversas fontes, como livros de história da arte, filmes e cartões postais, de onde obtinham exemplos e referências para a criação dos cenários e figurinos. Santoro Junior conta: Meu avô tinha muito contato com a Europa, ele veio de Portugal... Tinha muito contato. E ele trazia as coisas de lá e montava aqui. Então, por isso que, imagina o interior vendo “Tosca”! Tinha a banda, a banda tocava e as pessoas assistindo “Tosca” no fim do mundo. Imagina vendo “Inês de Castro!” (...) Então tinha dessas coisas que jamais tinham ouvido, principalmente o interior. Então aí eles começaram a ser, assim, uma espécie de Globo, a ter uma riqueza total nas roupas, nas confecções...Tinha de tudo, (...) tinha essa facilidade de ter tudo lá dentro, o que você imaginar a gente tinha92. Talvez o telão93 seja o elemento mais recorrente na cenografia do circo-teatro. Com isto não quero dizer que o uso destes telões pintados à mão é exclusividade das encenações circenses: o telão foi um dispositivo cênico utilizado por diversas manifestações teatrais – inclusive as tidas como oficiais – até o final do século XIX. Esses telões eram quadros que revestiam as bordas e o fundo das cenas para criar a ilusão de um ambiente tridimensional, e se tornaram peças que são vestígios da 92 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. Esclareço, porém, que os circenses não usam o termo “telão”, termo comumente usado hoje em dia para se falar sobre a cenografia do circo-teatro e do teatro tido como oficial até o século XIX. Entre os circenses o termo usado é “cenário”. 93 142 memória visual e técnica do período em que a cenografia se apoiava essencialmente na arte da pintura (SILVA, 2007: 271). Porém, enquanto a cenografia no teatro sofreu diversas transformações, no circo-teatro os telões continuam sendo usados até hoje, por circos de teatro como o do palhaço Tubinho, Piska-Piska e Biriba, por exemplo, e também pelo próprio Fernando Neves em seu trabalho com a companhia Os Fofos Encenam. Desse modo, acredito que o telão acaba por conferir uma espécie de “marca” ao circo-teatro e continua sendo usado por estar vinculado e se adequar perfeitamente tanto ao pensamento estético do circo, quanto às suas necessidades práticas. Em relação ao pensamento estético, a utilização do telão vai ao encontro da linguagem anti-ilusionista do espetáculo teatral no circo. Fernando Neves afirma que O circo era assim: o circo chamava você e dizia "Plateia, nós vamos fazer teatro, isso é representação, isso é arte". Em nenhum momento, sabe, no circo prevalece o pensamento do teatro – anos quarenta principalmente – de quarta parede, que diz “Isso daqui é um tempo real, isso tá acontecendo”, daí preciso de um cenário completamente realista, entendeu 94? Além disso, o uso do telão vai ao encontro do pensamento circense, que pauta todo o espetáculo, de que tudo é feito para a plateia, que deve reconhecer todos os signos da representação de maneira clara, simples e direta. Acerca das questões das demandas práticas, o telão é um mecanismo cenográfico facilitador, no sentido de que tudo no circo precisa ser montado, desmontado e transportado facilmente, devido a itinerância das companhias. Desse modo, o telão, articulado com outros elementos cenográficos, é responsável por ambientar a peça, sempre de maneira prática e sintética, e localizar onde a narrativa se passa. Assim sendo, “abriu a cortina você já sabe: é casa de gente rica, ou é casa de gente pobre, Pronto, já te localizou!” 95. Geralmente, o telão é pintado à mão, por um dos circenses que demonstra aptidão para tal ou por um artista plástico, e pendurado verticalmente ao fundo do palco. 94 95 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 143 Santoro Junior afirma que no Pavilhão Arethuzza os telões eram feitos de tecido e pintados pelo artista plástico Paulo Reis e também por Oscar Neves (Thomé); este último também não deixava de ser um talentoso artista plástico, apesar de não ser chamado como tal. Acerca disso, uma passagem em especial me chamou a atenção na entrevista com Santoro Junior e Fernando Neves, pois me mostrou como Neves ainda está revisitando a memória de sua família e gerando novas reflexões sobre esta, além de me mostrar, mais uma vez , pelas palavras de Santoro Junior, como a formação artística no circo era completa: Fernando Neves: O mestrado do Zé (está falando do pesquisador José Carlos Andrade) é sobre cenografia no circo. E ele uma vez perguntou pra mim, “Mas algum artista plástico pintava os telões?” E eu “Imagina! Meu avô que pintava!” Santoro Junior: Mas ele era um artista plástico... Mas a gente não chamava... Fernando Neves: (após uma pausa): É verdade... A gente não sabia, né Toco? Que coisa... Santoro Junior: Mas tinha artista plástico também, o Paulo Reis... Mas que a gente também não chamava de artista plástico... Chamava de pintor. Então eles ensinavam a gente no circo assim: “Você quer ser um pintor? Quer? Então, você tem que olhar tudo ao seu redor, tudo que você já viu e já... Mas não é só o que fica aqui, tem que olhar pra cima. Então a gente sabia tudo isso, né? Hoje em dia você quebrou um vidro, um copo de cristal e tal é "Ah, pega a vassoura!”. Se é um artista plástico ele: “Não mexe!”... Ele vai observar tudo, na composição... Você percebe? Isso já fazia no circo. Quando eu entrei na Belas Artes ensinavam primeiro a ver a terra, depois ver o céu. Com isso tudo eu falei "Pera, também me ensinaram no circo ver a terra e o céu”96... No Arethuzza, comumente os telões recebiam maiores elaborações, com a utilização, por exemplo, de recursos de sobreposições. Na peça O Mártir do Calvário, por exemplo, utilizava-se um telão transparente de filó, que aliado a alguns efeitos de iluminação, revela a existência de cenas sobrepostas. Além dos telões bidimensionais, havia um cuidado especial com a composição e ambientação da cena. Para isso, utilizavam-se também diversos elementos cênicos, como peças de mobiliário, portas, janelas – para a construção de ambientes internos – e árvores, rios e rochas – para a construção de ambientes externos –, que aumentavam as possibilidades de criação dos atores. Antônio Santoro Junior descreve que 96 Santoro Junior (Toco) e Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 144 Como cenógrafos e artistas plásticos, o pessoal do circo montava adequadamente: bosques, jardins, interiores de palácios, residências inclusive com escadarias, beira de rios, ruas de várias partes do mundo, como Paris, Roma com pedras e chafarizes, Londres com a ponte do Tâmisa onde os atores podiam até caminhar, convés de navios, inclusive com simulações de ondas, prisões, torres, masmorras, etc. (SANTORO JR., 1997: 43). Era comum ainda nas encenações circenses – e também nos teatros tido como oficiais da época –, a utilização de maquinarias cênicas que despertavam a curiosidade e enchiam os olhos da plateia. No Pavilhão Arethuzza, por exemplo, para a montagem da peça O Sinal da Cruz foi realizada uma intensa pesquisa de campo no Mosteiro de São Bento, em São Paulo. Santoro Junior contou: “Os padres fizeram tudo pra gente, o tipo de roupa, o que vai, o que não vai, mostravam os livros... Então a gente discutia lá no meio dos padres como é que faz e tal...”97. A peça Milagres de Santo Antônio ficou famosa pelas flores que desabrochavam e os peixinhos que pulavam para fora da água. Em O Guarani construiu-se uma verdadeira floresta no palco, com árvores rios e cachoeiras. Comumente também havia a reprodução de monumentos mundialmente conhecidos, como o Coliseu de Roma, a Torre Eiffel de Paris, ou o Big Ben de Londres, que permitiam o reconhecimento imediato por parte da plateia (ANDRADE, 2010). E ainda: (...) na peça “O Direito de Matar” um avião em chamas atravessa o palco, e a peça “O Frankstein”, transforma-se num dos grandes sucessos da época, onde via-se no primeiro ato um verdadeiro balé de caveiras no cemitério, fruto da imaginação de Thomé que fazia o auxiliar de Dr. Frankstein filho, interpretado por Sinhô, ambos corriam cemitérios para colher pedaços de defuntos para estudo. No terceiro ato, no laboratório onde foi criado o monstro, de vez em quando corriam morcegos pela plateia espantando o público que aguardava a cada momento um novo susto (SANTORO, 1997: 59). 97 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 145 Figura 25: Sinhô (Antônio Neves Jr.) como Peri, em O Guarani, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Além de todas estas questões, Santoro Junior levantou um ponto em entrevista que eu não havia encontrado em nenhuma bibliografia e que me era totalmente desconhecido – acredito que por se tratar de algo relativo ao campo das Artes Plásticas, do qual sou praticamente leiga. Santoro Junior menciona o fato dos artistas do Pavilhão Arethuzza utilizarem o binômio de cores “azul-vermelho” na composição de cenas e como este binômio está ligado à ideia de fruição, transposta para o campo das Artes Plásticas. Acerca disso, Santoro Junior está escrevendo um ensaio que em breve será lançado e, na entrevista, descreveu a questão da seguinte maneira: O circo usava o famoso binômio “azul-vermelho”. Essa é a grande sacada. Isso é uma técnica... Pra explicar isso, nas minhas aulas eu pergunto pros alunos: “O que é fruição?” E eu mesmo respondo “É um negócio... Um negócio que entra e sai, tudo que entra e sai é fruição”. E eles começam com a gozação “Ih... fiz tanto essa noite!” (risos). (...) Então toda vez que há uma fruição eu faço assim (aponta para cima) e sumo, e em questão de segundo eu volto. Então a arte veio pra isso. A prece veio pra isso. Então quando você tá muito mal de uma briga, alguma coisa, você vai, reza, e você já é uma outra pessoa. Porque você fez assim (aponta para cima) e voltou. E na fruição é a mesma coisa. E cheguei à conclusão que no Drama da Paixão cantam assim “No céu já não arde o fulvo sol; riso da tarde, lindo arrebol (...) esperando está, a nossa aldeia a correr... parari parara”. E eles vêm vindo do 146 campo, se encontram, o sol tá sumindo, então “no céu não arde o fulvo sol”. Então o que que é o fulvo? O amarelo. Na minha época falava “Olha que fulvinha bonitinha vem vindo... Olha que loirinha bonitinha”. Na minha época isso, hoje não se fala mais nada. E quando ele vai subindo vem um vermelhão do céu... É o arrebol. Então, o que que é arrebol? É o vermelhão do sol. Então à medida que ele sobe, desce a noite num tom azul que vai me dar um binômio... Não tem quem não faz isso e não faz assim pra subir e descer! Então muitos artistas usam o binômio azul-vermelho. Quando você olha uma obra de arte e seus olhos “vão”, pode ver que tem essas duas cores! E nós começávamos o Drama da Paixão, que era um dramalhão de 12 atos, já com vermelho-azul! Quando abria a peça, com todo mundo cantando, saindo do campo e vindo, era toda em azul e vermelho! (...) Quando se estuda como ver uma obra de arte, uma das coisas importantes é “O que que você está vendo?”, “O que você olha e não vê”, num sei quê. E depois, “O que chamou mais atenção?” Naquilo pode ver que tem um azul e vermelho perto. Mas precisa ter o azul certinho e o vermelho certinho, não é qualquer azul, não é qualquer vermelho. Então baseado na peça eu estou escrevendo o ensaio, não tem a parte científica totalmente, mas já é um estudo que eu estou fazendo, já é alguma coisa. (...) Então olha o que o circo-teatro ia fazendo! E quando começava a peça que eles jogavam o azul e vermelho e abria a cortina, a plateia fazia “Ah!” - é a fruição! Depois disso pode levar 20 atos! Se não tem essa fruição vai cansando. Depois acaba o azul e vermelho, mas nem em sonho mais. Então, pensando agora, será que eles já não tinham essa ideia? Por que eles punham o azul e vermelho pra abrir a cortina98? Destaco ainda que com o advento da arte cinematográfica os circenses também passaram a se inspirar – e a copiar fielmente – os cenários e figurinos das peças criadas a partir de adaptações dos filmes hollywoodianos. Essa cópia não era vista como plágio e os circenses ostentavam com orgulho, inclusive nos cartazes de divulgação do espetáculo, o fato dos cenários e figurinos constituírem réplicas fiéis dos exibidos nos filmes norteamericanos. Em entrevista, Fernando Neves discorreu acerca dessa questão no Pavilhão Arethuzza: (...) o circo queria ser Hollywood a partir do final dos anos 1930 e começo dos anos 1940 (...). Todas as segundas-feiras, que era o dia de folga, eles se enfiavam no cinema de manhã, porque antes tinha, e eles iam à tarde, à noite; eles passavam o dia todo em cinema, mudando de sala, assistindo vários filmes (...) O cinema americano é melodramático até hoje. A Broadway é melodrama puro... E é por isso mesmo que eles fazem tanto sucesso... Eles souberam reinterpretar. E daí eu falei “Gente! O circo queria ser Hollywood!”. E não é disfarçando. No circo não tem disfarce. O barato era “eu vou lá, vejo o filme e vou para o circo 98 Ibidem. 147 ver como era igual”. Para gente soa como plágio, como um fator negativo, mas na época isso era o máximo. (...) E pelo encantamento que eles tinham pelo cinema americano teve um refinamento na cenografia, no figurino e na interpretação 99. Figura 26: Encenação no Circo Teatro Pavilhão Arethuzza, s.d. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Com o mesmo cuidado e primor com que tratavam da cenografia, os artistas do Pavilhão Arethuzza também criavam e confeccionavam seus figurinos. Estes também eram concebidos a partir de intensa pesquisa de modelos, cores e texturas de tecidos e confeccionados pelas próprias mulheres do circo. Arethusa frequentemente mandava trazer de Paris tecidos, adereços e joias e sempre pesquisava as revistas de moda da época, que eram trazidas do Rio de Janeiro, capital e centro cultural da época (SANTORO, 1997). Além disso, como já destacado anteriormente, todos os figurinos eram muito bem acabados e tinham suas costuras reforçadas devido ao fato dos artistas se apresentarem também na primeira parte do espetáculo, na qual realizavam números de destreza física que dilatavam suas musculaturas. 99 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. 148 Destaco ainda que “tradicionalmente, os artistas eram respeitados por seu guarda-roupa, que era referência até para contratação em todas as companhias circenses” (PIMENTA, 2005: 65). Além disso, os artistas comumente “ditavam” moda por onde passavam, levando, principalmente às cidades interioranas, as últimas tendências das capitais brasileiras e estrangeiras. Santoro Junior relatou: A minha mãe costurava macacão, a minha tia Guiomar fazia camisa perícia, a tia Didi bordava e a tia Thusa era alta costura, mas alta costura mesmo... Tinha um pessoal lá na praça, as madames, que chegavam lá e pediam pra ela confeccionar pra elas. (...) Tinha uma apresentação assim: abria a peça e a mulherada toda de vestido de cauda, os homens todos de smoking... Aí tinha a dupla de palhaços, tinha malabarista e não sei o quê. Então começava a banda a tocar "tãtãratãtã..." e ia saindo um grupo... Uma mulher indo aqui e um homem pra cá (como que cruzando no espaço)... Eles iam. Até que eles faziam assim: quando chegavam aqui (haviam formando uma fileira) eles abriam pra entrar os palhaços e todo o material e aí todo mundo cumprimentava, tocava, todo mundo ia saindo, trocando assim. E o pessoal achava bonito, pra ver modelo de roupas e pra ver sapato né100? Um aprendizado comum e tido como essencial a estes artistas antigos, incluindo os do teatro oficial, era o uso de capas pelos homens e vestidos de cauda pelas mulheres. A boa postura e elegância eram essenciais, principalmente nas representações de peças clássicas e de época; em entrevista Santoro Junior afirmou: “Se não soubesse usar, caía da capa. Ator que caía da capa, café inteiro sabia!” 101. Em sua monografia, Santoro Junior também disserta acerca dessa questão: Cabe ainda lembrar um outro (sic) tipo de aprendizado que era muito importante para o pessoal do circo que atuava nas peças teatrais, e que geralmente é esquecido, pois acredita-se que ele é inerente ao hábito de se vestir, o uso da capa 100 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. Santoro Junior faz menção aqui ao tradicional Café dos Artistas, “O „Café dos Artistas‟ ou simplesmente „Café‟ é um encontro de artistas e empresários circenses que acontece no dia de folga da categoria, segundafeira, num ou em torno de um café. O de São Paulo, já que existiu “cafés” em várias capitais do país, foi sediado inicialmente no Largo do Rosário, atual Praça Antônio Prado, e no início do século XX, passou a acontecer no Largo do Paissandu, chegando a reunir mais de 600 pessoas em torno de vários cafés – “Ponto Chic”, “Juca Pato”, “518”, entre outros - e ocupando todo quadrilátero que abrange o Largo do Paissandu e a avenida São João, até o cruzamento com a Ipiranga. Era um lugar de encontros sociais, mas um marco importante de referência dos artistas, que iam procurar trabalho, e de empresários, agentes culturais e donos de circo de todo Brasil, que procuravam artistas para trabalhar em seus espetáculos” (texto disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/patrimonio_historico/memoria_do_circo/largo_do_ paissandu/index.php?p=7141. Acesso em: 12 dez. 2014). 101 149 pelo homem e do vestido de cauda pelas mulheres, vestimentas estas muito utilizadas no guarda-roupa da companhia, principalmente nas peças de época. Em nosso circo, o encarregado deste ensinamento era novamente o “padrinho Barbosa” que amarrava um pano branco na cintura (parecia um lençol) e ensinava as mulheres a se locomover com vestido de cauda, assim como andar, ajoelhar-se, sentar-se e levantar (SANTORO JR., 1997: 33). Figura 27: Arethuzza Neves em A Tosca, 1922. Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior. Agora, para além das questões de requinte e luxo envolvidas na ornamentação dos figurinos no circo, destaco que estes – juntamente com a maquiagem – eram ainda essenciais na composição dos personagens por parte dos atores. As representações teatrais no circo se valiam de uma linguagem que “usava e abusava” de artefatos e apetrechos, 150 como barbas falsas, próteses dentárias, perucas e maquiagem carregada. A partir do período em que a tipologia passa a estar mais presente na interpretação do circo-teatro, o figurino e a maquiagem passam a colaborar determinantemente com a construção dos tipos e sua rápida e eficaz identificação por parte da plateia. Figura 28: Exemplo de atores caracterizados como pernsoagens-tipos de diversas peças e fotos das atrizes Jurandyr e Arethuza Neves, s.d. Fonte: ANDRADE, 2010. Anexos. 151 Acerca dos recursos de iluminação, ressalto, primeiramente, que a descoberta dos recursos da iluminação elétrica se deu nos fins do século XIX e que estarei falando, portanto, de um período recente a este acontecimento. Os artistas do Pavilhão Arethuzza – e de tantos outros circos – criavam, desenvolviam e confeccionavam análogos aos equipamentos utilizados nos edifícios teatrais. José Carlos de Andrade descreve: Exemplo disso são os postes de madeira que vão sendo erguidos junto à boca de cena, para sustentar a amarração de lâmpadas com os focos dirigidos para o centro da ação dramática. O circo apropria-se igualmente da ribalta que, desde o período áureo do barroco europeu, já era utilizada no teatro como recurso de iluminação. Uma série de lâmpadas dispostas em alinhamento paralelo à boca de cena sobre o palco, cobertas por uma caixa metálica, para que não atingissem os olhos dos espectadores, produzia uma estranha iluminação de baixo para cima. O efeito criava sombras espetaculares, aumentando a estatura dos atores e também os rejuvenescendo, graças à ilusão que esta fonte de luz proporciona (ANDRADE, 2010: 73). Driblando todas as adversidades, os circenses – sempre visando a melhor conformação cênica – também desenvolviam mecanismos complexos de iluminação, que incluíam o controle de resistência da corrente elétrica, que permitia a passagem de forma suave da luz intensa ao black out. O milagre era obtido graças a imersão de fios desencapados em tambores de água salinizada, pois era sabido que quanto mais mergulhados na solução de água e sal de cozinha, maior era a condutibilidade elétrica e, por conseguinte, maior a intensidade da luz sobre o palco (Idem: 217). Outro elemento de fundamental importância no espetáculo teatral circense era a música. Esta, aliás, esteve presente na história do espetáculo circense “moderno” desde sua origem. No espetáculo criado por Philip Astley havia a presença de uma banda, formada por egressos da cavalaria inglesa, que se vestiam de uniformes e casacas com alamares e que corroborava de maneira determinante para o desenvolvimento do espetáculo. Além da banda, havia comumente nos circos europeus, inclusive nos que vão aportar no Brasil a partir da década de 1830, palhaços multi-instrumentistas que realizavam 152 números em que tocavam instrumentos – convencionais e inusitados – ao mesmo tempo em que executavam acrobacias de solo e outras estripulias. Erminia Silva (2007) afirma que este palhaço-músico era chamado de Cômico Excêntrico, Palhaço Excêntrico e Clown Excêntrico. Para designar a dupla cômica os termos usados pela pesquisadora são Clown e Augusto ou Tony. Como visto anteriormente, a dupla cômica, segundo alguns pesquisadores, também era conhecida por Branco ou Clown e Augusto, Tony, Tony Excêntrico ou, ainda, apenas Excêntrico. Neste caso, estes palhaços multi-instrumentistas são chamados de Excêntricos Musicais; seus instrumentos “variavam desde o violino e o trompete, até „gaitinhas, apitos, guizos, pratos e tambores – uma bateria completa!‟, sempre executando saltos acrobáticos e de dança, com a peripécia de nunca desafinar” (SILVA, 2007: 116). No Brasil, a banda circense ficou conhecida como charanga e foi mantida por muitos anos nos espetáculos. Durante o espetáculo, eram elas que davam a cadência dos números, utilizando desde ritmos da música clássica aos mais populares, dependendo da velocidade dos movimentos dos artistas para desenvolver suas apresentações, aumentando o suspense, a tensão ou acentuando a irreverência dos palhaços. Nas pantomimas a música tocada não era um simples adorno ou acompanhamento; era intrinsecamente ligada à mímica, explicitando o enredo da peça, compondo a teatralidade (Idem: 113). A arte musical encontrou, ainda, nos circos brasileiros, um lugar de maior relevância, ganhando destaque nos espetáculos os números musicais – influenciados pelo teatro musical e a revista – em que a música era não apenas um dos elementos significantes da composição cênica, mas sim o foco desta. Além disso, o palhaço instrumentista e cantor caiu nas graças do público, com seus números em que entoavam canções dos mais variados ritmos musicais e também com os números em que teatralizavam as letras das músicas, configurando-se, portanto, outro aspecto da teatralidade circense. Desse modo, Além de valsas, polcas e mazurcas, as bandas tocavam também quadrilhas, fandangos, dobrados, maxixes, frevos, cançonetas, modinhas e lundus. Os palhaços não só tocavam vários destes ritmos, como também os dançavam, ao 153 som principalmente do violão. As cenas cômicas e os entremezes também eram produzidos nos moldes dos que eram realizados nos palcos teatrais e levados ao picadeiro pelos palhaços circenses. Assim, tendo em vista essa constituição, o espetáculo circense e o teatro musicado, principalmente a revista, não podem ser vistos isoladamente. Ambos foram mais que parceiros, complementando-se o tempo todo. Enquanto estavam juntos nas grandes e médias cidades, compartilhavam e disputavam palcos, artistas e públicos. Nas pequenas cidades, lugarejos e bairros afastados dos centros das grandes cidades, em particular o Rio de Janeiro, eram principalmente os circos, devido ao seu nomadismo, que veiculavam as músicas e os gêneros do teatro (Idem: 118). Afora o fato do circo veicular os mais diversos ritmos musicais e gêneros teatrais pelas grandes e pequenas cidades, sabe-se que os circenses – principalmente os Excêntricos Musicais – fizeram parte, inclusive, da nascente indústria fonográfica brasileira. Desse modo, estes artistas foram os primeiros a gravarem em discos suas canções, que já faziam sucesso nos espetáculos circenses. “Observa-se, porém, certo silêncio sobre essa presença circense na maior parte da bibliografia que estuda e pesquisa a história das distintas expressões culturais da época” (Idem: 21). Destaco, ainda, que com o advento do rádio, os espetáculos circenses passaram a contar, na primeira parte, com a apresentação de locutores e cantores de sucesso da época. Aliás, grande parte do sucesso atingido por esses artistas advinha do fato, justamente, de se apresentarem no circo – o tipo de espetáculo que mobilizava o maior público, nas grandes e pequenas cidades brasileiras, no século XIX até meados no século XX. O importante de ser destacado, portanto, mencionando as palavras de Erminia Silva é que: A música nos espetáculos circenses, até a década de 1950, em particular no Brasil, não deve ser vista apenas como acompanhamento para os números em geral. As produções musicais nos picadeiros acompanharam a multiplicidade de variações de ritmos e formas, que aconteciam nas ruas, nos bares, nos cafésconcerto, cabarés, nos grupos carnavalescos, nas rodas de música e dança dos grupos de pagodeiros, seresteiros, sambistas, de lundu, do maxixe, no teatro musicado com suas operetas e sua forma mais amplamente usada e consumida, que foi o teatro de revista. Enfim, as manifestações artísticas musicais que eram inteligíveis para a população tiveram sua representatividade e expressividade nos picadeiros (Idem: 112). A arte musical estava, então, na base de formação dos artistas circenses desde a consolidação do espetáculo circense “moderno”; tanto dos artistas de origem militar, 154 ligados à banda, quanto os artistas saltimbancos, incorporados ao espetáculo circense. Posteriormente, nos circos-família, o ensino de Música comumente era parte fundamental do processo de formação/socialização/aprendizagem dos artistas desde a infância. No Brasil, o chamado circo-teatro terá a música também como um de seus alicerces cênicos. É inegável que uma boa trilha sonora potencializa a representação dos mais diversos estilos e estéticas, tanto no teatro, como na televisão e no cinema. Com relação a arte teatral, Rubens Brito disse que A música, tomada em seus componentes constitutivos – a harmonia, a melodia e o ritmo – oferece um universo ilimitado de possibilidades criativas a serem aplicadas à cena. (...) O espetáculo teatral que consegue articular a multiplicidade de ritmos com a das formas interpretativas dá à cena, ao menos no âmbito estrutural, a possibilidade de instalação de um vínculo praticamente indissolúvel com a plateia (BRITO, 2004: 88 e 90). No circo, os próprios músicos e maestros circenses, que já usufruíam da arte musical em todo o espetáculo, adaptavam e executavam as trilhas que acompanhavam as pantomimas e, posteriormente, as peças de circo-teatro. Destaca-se ainda que um dos gêneros teatrais mais encenados nos circos-teatro brasileiros até a década de 1960 era o melodrama, intimamente ligado à questão musical e que possuía sua origem associada à ópera italiana. Na Itália, aliás, o melodrama, desde os seus primórdios, se ligou também à opereta e à ópera popular, que unia texto e canção a partir do século XVII. Mas foi na França que o gênero encontrou as condições ideias para se desenvolver, irrompendo no panorama teatral após a Revolução de 1789 e abrindo as portas do teatro tido como oficial para as grandes massas (ANDRADE, 2010). A denominação melodrama decorria da musicalidade das peças. Uma marcante música instrumental acompanhava o desenrolar da intriga, caracterizando as entradas e as saídas de cada personagem, os incidentes ocorridos, as cenas misteriosas e de tensão. Por vezes, encenavam-se alguns momentos de máxima emotividade e suspense sem a utilização de quaisquer diálogos, “como numa espécie de pantomima musical”. A expressividade musical explicitava-se nas caracterizações dos personagens: a flauta acompanhava a heroína sofredora, o contrabaixo anunciava o vilão assassino (DUARTE, 1995: 209). 155 Além do melodrama, diversos outros gêneros do teatro musical eram encenados nos circos, como as burletas, sainetes e a própria revista. Outro fenômeno de grande sucesso no circo-teatro – recorrente nos circos desde o século XIX – foi a encenação de peças baseadas em canções populares dotadas de alto grau de dramaticidade e já consagradas pelo gosto popular, como O Ébrio e Coração Materno, famosas na voz de Vicente Celestino, Coração de luto, de Teixeirinha e Cabocla Tereza, composta por João Pacífico e conhecida nas vozes de Tonico e Tinoco. A música ainda poderia ser usada como recurso cênico para a resolução de diversas questões como, por exemplo: abrir e encerrar o espetáculo, bem como os atos, cenas e quadros; apresentar, caracterizar e dar o leitmotiv102 das personagens, auxiliando determinantemente na construção e imediato reconhecimento destas pelo público; auxiliar na criação e sustentação de atmosferas e climas das cenas; pontuar e acentuar momentos importantes da peça, como determinadas ações e reações das personagens. No Pavilhão Arethuzza, segundo Santoro Junior, a banda – a qual sua mãe, Alzira Neves, era “madrinha” – exercia papel fundamental no desenrolar das duas partes do espetáculo e esteve presente neste até meados nos anos 50, quando foi substituída pela vitrola. Santoro Junior afirma ainda que: (...) foi criada inclusive uma cabine de som, na estrutura física do pavilhão, em que o grande maestro, era o operador de som. É a evolução tecnológica e eletrônica, que começou a se evidenciar também no circo (SANTORO JR., 1997: 14). Acerca do trabalho de interpretação, Fernando Neves costuma dizer que “circo é o tempo do trapézio: um, dois, três, errou, caiu na rede”. O que Neves quer dizer é que o artista circense lidava o tempo todo com a questão do tempo e do ritmo, tanto durante execução de seu número de destreza na primeira parte, quanto na representação das personagens das peças teatrais na segunda parte. 102 Leitmotiv (do alemão, motivo condutor). Em música, é uma técnica de composição introduzida por Richard Wagner em suas óperas, que consiste no uso de um ou mais temas que se repetem sempre que se encena uma passagem da ópera relacionada a uma personagem ou a um assunto. O recurso é amplamente utilizado, não só na ópera, como também nos teatros, circos, filmes e telenovelas. 156 Dessa forma, assim como o trapezista, nas representações teatrais o circense não podia perder o tempo justo de cada momento da peça, senão ele caía na rede, ou seja, perdia o tempo da piada, de entrada em cena, de réplica e, consequentemente, não agradava a plateia. Quando Fernando Neves montou em 2002, com a companhia Os Fofos Encenam, a comédia A mulher do Trem, que fazia parte do baú de sua família, ele retrabalhou e ampliou de tal forma o recurso musical das pontuações de ações e reações das personagens que a música é responsável por ditar o tempo do que o diretor considera ser o justo na comédia de circo-teatro. No documentário produzido pelo grupo acerca da montagem, Neves afirma: “Nossa comédia é feita de tempos preciosos e precisos. Por isso tem o piano, que é um sargento em cena. Ele dá o tempo, a música dá o tempo, dá chão pra personagem, faz o tema da personagem e o tema da cena103”. Enfim, Neves percebeu, ao revisitar a memória do circo de sua família, que a multiplicidade existente na composição do espetáculo de circo-teatro – que inclui a multiplicidade das formas interpretativas, dos gêneros e estilos teatrais, bem como a multiplicidade de ritmos, melodias e harmonias musicais – conduzia os artistas circenses à criação de um universo cênico-musical capaz de constituir infinitas possibilidades expressivas. 2.4.5 Triangulação O olhar dos circenses “tradicionais” está sempre voltado para o fato de agradar o público e esse ponto determina, portanto, todas as relações éticas, sociais e artísticas criadas entre o circo e os espectadores. Em relação à dimensão artística, o circo-teatro faz parte de uma gama de manifestações, tidas como populares, que estabelecem um jogo específico de relação com o 103 Declaração de Fernando Neves no documentário produzido pela companhia Os Fofos Encenam e Massangana Multimídia Produções, acerca da peça A mulher do trem. O documentário foi gravado durante o VII Festival Recife de Teatro Nacional, em Recife/PE, em novembro de 2004. 157 público. Os artistas de circo-teatro, assim como os artistas das feiras e os cômicos dell’arte, por exemplo, sabiam que o contato com o público – e a consequente cumplicidade emergida dessa relação – se encontra nas bases de qualquer jogo teatral. Segundo Rubens Brito (2006), Sofrredini e os atores do Grupo Mambembe, em suas pesquisas pelos circos-teatro da periferia paulistana na década de 1970, perceberam que havia naqueles espetáculos um “suporte”, um tipo de “estrutura” interpretativa responsável por estabelecer esse contato e consequente cumplicidade com o púbico. O grupo Mambembe teria sido responsável, então, pela sistematização dessa técnica – existente no circo-teatro e demais manifestações populares anteriores – e por lhe dar o nome de triangulação. Dessa forma, Soffredini explica que no circo-teatro: O ator se entrega sim, ele se envolve sim, mas em nenhum momento ele se esquece que está num palco, nem por um segundo ele ignora o público. Pelo contrário: na maior parte das vezes ele “contracena” com o público, estabelecendo o que nós chamamos de “triângulo”. Assim: dois atores em cena; Um deve fazer uma pergunta para o OUTRO; UM faz a pergunta para o público e não diretamente para o OUTRO (nada de relação olho-no-olho, portanto); e o OUTRO responde também através do público. Parece uma coisa simples, mas essa forma de contracenar sempre “através” do público põe este último sempre no centro da representação. Outra forma de estabelecer o “triângulo”: as ações e reações de um ator (personagem) estão sempre abertas para o público (não há psicologismos e por isso não há jogos escondidos). Se um ator, por exemplo, reage ao que um outro ator está dizendo ele “diz” (mesmo sem palavras) a sua reação diretamente para o público. Dessa forma pode-se também, por exemplo, valorizar muito cada nuança da intenção de um ator que fala, através da reação que ele causa no seu interlocutor (SOFFREDINI, 1980: s/n). Rubens Brito (2006) chama a atenção para o fato de que a triangulação nas peças circenses era sempre executada com extrema naturalidade. Esse ponto também foi ressaltado por Wanderley Martins, artista que, assim como Rubinho, integrava o Grupo Mambembe e que hoje é professor do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp. Em entrevista, Wanderley contou sobre os circos visitados com a pesquisa com Soffredini: Eles tinham um funcionamento com a plateia muito interessante. Provavelmente se tivesse um outro jeito de interpretação não envolvesse tanto. A triangulação era uma coisa muito natural. Não tinha trejeito com a triangulação. E era uma coisa natural. Não era uma coisa muito marcada, que a gente vê, eu vejo, muito nos 158 grupos que estão pesquisando isso hoje. Tem uma coisa tão... Tem um carimbo mesmo, né? O que interessava pra eles era o aparte. O bom e velho aparte. “Olha plateia, olha o que tá acontecendo”. E volta a falar com a pessoa, normal. (...) E eles faziam isso de uma forma bastante viva. (...) O legal deles é que eles tinham uma opinião pra falar pra plateia e voltar. Tinha uma coisa brechtiana até, se você pensar... (...) Não era só marcação. Não era uma marcação. Era uma necessidade da interpretação deles de fazer isso. (...) E isso a gente foi saboreando. Pra gente era muito legal ver como que eles trabalhavam isso. E pra gente era difícil... A gente tava muito naquela interpretação “olho no olho”, na época era assim. Então pra gente foi uma transformação perceber como que o aparte era muito bem explorado por eles. Clareza na interpretação mesmo, clareza na função do que o personagem quer dizer, no que o personagem quer comentar. Então o comentário 104 era um comentário com propriedade . A naturalidade com a qual o artista circense triangula advém do fato de que esse mecanismo, reconhecido e sistematizado tecnicamente pelo Grupo Mambembe, está no cerne do fazer e da arte de ator daqueles artistas. Tanto que, os circenses, comumente, não usavam – e continuam não usando – um nome para definir essa técnica. Na atualidade, no Circo de Teatro Tubinho, por exemplo, Zeca e Ana Dolores contaram que, somente no projeto de reelaboração de repertório pela Petrobrás, ouviram pela primeira vez o termo “triangulação”, com os trabalhos com Fernando Neves, Tiche Vianna e Ésio Magalhães. Ana Dolores disse, ainda, que o que lhes foi passado como “triangulação” era algo que eles sempre fizeram como que “por osmose” e que a expressão que usavam pra remeter a essa ação era algo como “Joga pra plateia!”. E Zeca completou: Zeca: De verdade, sempre fizemos isso por instinto. Nunca teve nome, nem notávamos que fazíamos. Fernanda Jannuzzelli: Sim, com certeza! Mas vocês usavam outro nome pra falar disso? Ou expressão? Seria como falar “não pode ficar de costas pra plateia?”. Zeca: É muito difícil falar disso no circo. Nunca falei isso pro Nicolas, por exemplo. Ele cresceu vendo que não podia. Quando alguém novo entra em cena, já está na companhia há algum tempo e acompanhou nosso jeito de fazer. Nesse tipo de interpretação, o ator representa quase o tempo todo de frente para o público, pois há a necessidade constante de lhe mostrar o que está acontecendo. Triangula-se o tempo todo e não em marcas específicas. 104 Wanderley Martins em entrevista concedida à autora em 05/11/2013. 159 O circo-teatro é um tipo de teatro, então, que derruba a quarta parede 105, comumente relacionada, no Ocidente, com o teatro de estética Naturalista. Parede, aliás, que começou a ser erguida somente no fim do século XVII no Teatro Ocidental, com o Classicismo Francês, pois até então, há milhares de anos, desde os gregos, as representações teatrais sempre incluíram os espectadores no jogo cênico, até lhes dirigindo diretamente a palavra em determinados momentos. Fernando Neves disse em entrevista: Esse conceito da quarta parede, ele não existe no circo-teatro. Então o ator entra em cena e quando ele começa a falar com outro personagem, ele começa falando com o outro personagem e ele dá três palavras pra ele, porque ele direciona para a plateia e a plateia entende que tudo aquilo que ele tá falando é pra aquele personagem. Ele dá três palavras pro outro ator e já vira pra plateia. Ele tá pensando nesse triângulo. Tá o interlocutor, o locutor e a plateia. Esse triângulo, esse jogo é perene, ele tá ali presente o tempo inteiro. Esse jeito de interpretar, completamente natural aos circenses e sistematizado com o nome de triangulação, inclui o espectador no jogo cênico, de tal forma que o espetáculo não é feito para a plateia, mas sim com a plateia. Representa-se para o público, pelo público e com o público, que sente, intuitivamente, que o espetáculo é, antes de tudo, uma brincadeira para ser vivida por todos que estão naquele recinto: atores e plateia, juntos. Rubens Brito (2006) ainda destaca que o ator ao estabelecer esse jogo da triangulação deve se descolar de seu papel, se distanciar da situação dramática para levá-la ao público. Portanto, o ator não deve só “ser” a personagem: ele deve “ser” a personagem e revelá-la para o espectador. Segundo Soffredini: O público é o vértice de maior peso no triângulo. É o CÚMPLICE na representação. É o CENTRO dela. É para ele que se CONTA a história, portanto 105 A quarta parede é uma parede imaginária situada na frente do palco do teatro, através da qual a plateia assiste passivamente à ação cênica. Essa convenção se estabeleceu com correntes teatrais ligadas à estética Realista e, principalmente, Naturalista, que visavam à promoção da total ilusão cênica. A quarta parede seria como uma “janela” ou um “buraco da fechadura”, pelo qual o espectador assiste ao que acontece no palco, distanciado da ação, porém ainda envolvido por ela, graças ao efeito de identificação que se esperava atingir. 160 ele é o dono dessa história. Muitas vezes ele conhece dados dela que ou um ou os outros dois vértices do triângulo (os atores) desconhecem. Ele conhece o caráter e a intenção de cada personagem, uma vez que cada ator, ao entrar em cena, deve ter como meta REVELAR o seu personagem, a intenção dele e, é claro, a sua ação dentro da ação (história). A partir dessa CUMPLICIDADE com o público, dessa CENTRALIZAÇÃO nele, dessa DOAÇÃO a ele da ação (história, representação) é que se estabelece a base do jogo teatral. Os gregos já sabiam disso. E as velhas peças românticas abriam margem para esse jogo através do APARTE, que, em última análise, é a forma tosca a partir da qual, elaborando, nós chegamos ao processo do TRIÂNGULO (SOFFREDINI, 1980: s/n). O recurso do aparte, típico do teatro romântico, destacado por Soffredini no final da fala anterior, também é muito explorado nas encenações circenses. O aparte é explicitamente teatral e, ao mesmo tempo, responsável por aproximar a plateia dos acontecimentos da peça, envolvendo-a na história. Segundo Roubine: O aparte é bem mais breve (algumas palavras, uma frase...). É pronunciado no calor da ação e frequentemente permite um efeito de conivência com o público, único destinatário “real” da tirada, especialmente na comédia. A convenção, no caso, prevalece sobre a verossimilhança (ROUBINE, 2003: 215). Enquanto um personagem faz o aparte com a plateia, estabelece-se a convenção de que o outro personagem em cena não tem ciência daquilo. Para este segundo ator, o tempo de esperar o aparte ser feito com a posterior reação da plateia, geralmente lhe parece desconfortável, ou seja, ele não sabe o que fazer. Fernando Neves, então, sempre usa uma expressão, muito engraçada, de que esse ator deve fazer uma cara de quem “viu, mas não olhou; ouviu, mas não escutou”. E só vendo Fernando Neves ou um ator do elenco de Tubinho, como Angelita Vaz – que faz isso brilhantemente bem – para entendermos por completo o que ele quer dizer. Enfim, o ator não faz nada “escondido” do público. Pelo contrário: ele revela a sua criação, incorpora a reação da plateia em seu jogo e direciona o público para o jogo do outro ator. E, para que esse triângulo se estabeleça, é absolutamente necessário que tudo seja realizado com extrema exatidão das ações, num desenho de cena limpo, com riscos fortes e precisos. 161 2.4.6 Tipologia Quando ouvi falar em “circo-teatro” pela primeira vez, através do professor Rubens Brito e, em seguida, através de Fernando Neves, me foi contado que, no circo, a interpretação era tipificada e que cada artista se especializava na representação de um determinado tipo. E isso era explicado, principalmente, pelo fato de que, ao se estabelecer numa cidade, os circos apresentavam, a cada noite, uma peça teatral diferente; dessa forma, o trabalho de interpretação pautado na tipificação das personagens fazia parte de uma complexa rede de combinações, arquitetada para tornar possível essa rotatividade tão grande de espetáculos. Porém, com o desenvolvimento e aprofundamento de meus estudos, pude perceber que esta afirmação acerca do uso da tipologia na interpretação teatral circense está pautada num registro de memória pontual de um determinado local geográfico e tempo histórico, não abarcando, portanto, toda a complexidade da teatralidade circense, nem mesmo da descrita como circo-teatro (SILVA, 2010). Os estudos sobre o chamado circo-teatro – e mesmo sobre o circo como um todo – ainda são recentes. Foi a partir, apenas, da década de 1970 que o resgate dessa memória aumentou significativamente, com a abertura da linguagem e técnicas circenses a novos sujeitos históricos – que não haviam nascido no interior de uma família circense –, como alunos de escolas de circo profissionalizante e circo social, assim como pesquisadores ligados à Academia (SILVA, 2010). Acerca destes primeiros estudos acadêmicos, destaco que pesquisadores, pertencentes principalmente ao campo das Ciências Sociais, Política, Antropologia e História da Universidade de São Paulo (USP), utilizaram o circo “como um „analisador‟, um objeto mediador e instrumento de investigação para a compreensão das diferentes dimensões do social” 106 (SILVA, 2007: 26). 106 Para maiores detalhes, consultar SILVA, 2007. A autora discorre minuciosamente sobre como estes estudos voltados para as manifestações populares de lazer dos trabalhadores e suas relações com as produções circenses, aprisionaram a arte circense em modelos dicotômicos e minimizadores (cultural erudita X cultura popular, opressor X oprimido), além de terem contribuído para a formação de uma memória equivocada – por não se levar em contada de que trata-se de uma memória datada – sobre diversos acontecimentos da história do circo e do circo-teatro no Brasil. 162 Porém, esses estudiosos basearam suas pesquisas, quase que exclusivamente, na observação direta através de pesquisa de campo e nas entrevistas com os artistas circenses do período. Utilizou-se, portanto, somente a fonte oral sem o cruzamento desta com outras fontes e memórias históricas, fato este que restringiu toda a multiplicidade da história da teatralidade circense a apenas o que estava sendo produzido naquele determinado local e período. Dessa forma, criou-se uma memória científica oficial equivocada, que transformou a produção circense da periferia de São Paulo da década de 1970 na própria história da teatralidade circense brasileira (SILVA, 2010). Erminia Silva destaca que Os circenses do final da década de 1970, fontes principais dos estudos realizados, eram portadores das memórias e saberes de seus pais, os quais vivenciaram um determinado modo de estética teatral que foi sendo construída e se consolidando a partir da década de 1920/30. Tal estética – que não era exclusiva do fazer teatral circense, mas de toda uma geração do teatro em geral –, era definida por determinações de personagens como uma certa tipificação. (...) Vários artistas que são fontes orais hoje, nos anos 2010, nasceram quando, no teatro em geral, se realizava uma forma de representação teatral no qual a determinado ator ou atriz sempre cabia um tipo de papel a ser representado; no qual cada ator circense representava apenas e unicamente um personagem ou tipos fixos, com: o galã, a mocinha, o vilão, a vilã, a caricata, o velho, a velha, o cômico. É uma estética teatral do período de 1920/1930 e, portanto, vai ser também a estética do teatro no circo, daquela contemporaneidade (SILVA, 2010: 224 e 225). Compreendi, portanto, que Fernando Neves, ao dizer que o circo-teatro era tipificado, estava reproduzindo a memória do que ele viveu na infância e do que lhe foi passado pelos seus pais e tios anos mais tarde; e compreendi também que Rubens Brito, em sua pesquisa, relatou o que ele mesmo encontrou nas visitas aos circos-teatro da periferia de São Paulo na década de 1970 com o Grupo Mambembe. Porém é fato também que apesar de não caracterizar todo o sistema de interpretação empreendido pelos artistas circenses, a dramaturgia alicerçada em personagens-tipo fazia parte da formação dos artistas ambulantes – dos teatros de feira e commedia dell’arte – que passaram a se apresentar nos circos e, portanto, já era explorada nas representações das pantomimas no espetáculo circense desde sua origem “moderna”. Com o passar dos anos as representações teatrais foram cada vez mais desenvolvidas e elaboradas, porém Erminia Silva destaca que até a década de 1920, no 163 Brasil, “uma mesma peça ficava em cartaz durante muito tempo, por exemplo, a adaptação da A Viúva Alegre, em 1910 por Benjamim de Oliveira para o circo, foi apresentada no mínimo durante três anos” (Idem: 226). Foi a partir, então, das décadas de 1920 e 1930, por conta do enorme sucesso que as representações teatrais haviam alcançado junto ao público, que os circos-teatro passaram a representar uma peça diferente a cada noite, gerando o aumento do repertório de peças e da rotatividade destas. Desse modo, os circenses foram verticalizando esse tipo de interpretação, que alicerçava o desempenho dos atores em tantos papéis diferentes. Movimento análogo ocorria na cena teatral tida como oficial brasileira, o que mostra, mais uma vez, que o espetáculo circense estava em sinergia com as demais manifestações artísticas contemporâneas, influenciando e, ao mesmo tempo, sendo influenciado por estas. Na atualidade, como a maioria dos circos-teatro e circos de teatro em atividade no país mantiveram a alta rotatividade das peças como característica do modo de organização do trabalho e do espetáculo, a representação tipificada continua sendo a base do sistema de interpretação destes artistas – fato que também ajuda a criar esse registro de memória que reduz toda a interpretação circense à tipificação. Adentrarei, nesse momento, esta questão da tipificação um pouco mais detalhadamente, pois este estudo acerca da família Viana-Santoro-Neves se reporta, principalmente, ao período rememorado por Santoro Junior e Fernando Neves, que engloba a fase pavilhão na cidade de São Paulo, na qual a tipologia era a base do sistema de interpretação dos artistas. Em entrevista, Fernando Neves disse que quando começou seus estudos sobre o circo de sua família, ao se debruçar sobre as peças que chegaram a ser escritas e analisar quem fazia cada papel, pôde perceber que, com o tempo, seus familiares foram entendendo, com o próprio fazer artístico, como deveria se organizar a distribuição dos tipos: E pegando os textos e vendo quem fazia cada personagem eu entendi como é que eles foram se organizando. Você pega as primeiras peças, você vê que ainda tem gente fazendo um papel, e você fala “Nossa! Por que essa pessoa tá nesse papel?”. E depois de um tempo as coisas se organizaram. (...) Então, era assim, todos eles faziam qualquer papel. Precisou, entrava e fazia. Mas o perfil deles era 164 assim... A tia Alzira é a grande ingênua, com aquele potencial tão deslumbrante, tia Guiomar é uma genérica que ia desde a comédia do circo até a uma dama galã, uma dama central, tia Arethusa, que era a grande dama da companhia, Tio Sinhô que era um galã, meu avô que era um cômico... Tinha tipos, mas podiam representar qualquer papel107. Os tipos que se tornaram característicos do circo-teatro brasileiro advieram das mais diversas manifestações que compunham a multiplicidade da sua teatralidade, como o vaudeville, a pantomima inglesa e a commedia del’arte. Além disso, Fernando Neves destacou em entrevista que, como o circo sempre está em relação e sinergia com o local onde se estabelece, no Brasil, ele criou novas “máscaras”, que se remetiam direta e especificamente ao imaginário local. Os circenses foram encontrando os meios, que já vem da commedia dell’arte... E o circo cria, ou melhor, recria suas máscaras. Claro que vêm lá de muito tempo... Vêm da Grécia, dos ritos não oficiais... Tudo isso tem a ver... E a commedia dell’arte é determinante, e o teatro de feira, o teatro de boulevard francês também são determinantes. (...) Só que chega um momento em que o circo cria de acordo com a realidade do país que ele vive. Então, no Brasil, tem o preto velho, tem a mulata, que é a empregada que é francesa, mas que na França é outra empregada. (...) Tudo tá muito ligado, né? Mesmo a ingênua brasileira é uma coisa, o galã brasileiro é outra coisa, o velho brasileiro... (...) Aqui no Brasil se recriou de outra maneira. E isso foi fantástico de ver também naquela oficina de maquiagem que o Biribinha de Alagoas deu na Unicamp, quando eu estava lá trabalhando também com vocês da Academia de Palhaços. Quando eu vi que ele fez o preto velho eu falei: “É igualzinho o preto velho da minha família, eu lembro, da „Cabana do Pai Tomás‟! É igual! O material, o Bombril que ele usa pra fazer a barba, tudo!” É a máscara que o circo criou! Se ele é do Alagoas e era igual ao da minha família... Daí eu vi que quando ele fez a coquete era igualzinha, o tipo do cabelo, a maquiagem... Então o circo criou máscaras como a commedia dell’arte criou as suas também108... Acredito que devemos entender o pensamento de Fernando Neves não como uma afirmação de que todos os elementos da composição dos tipos e “máscaras” nos circos-teatro brasileiros eram exatamente iguais; mas sim como a constatação de que alguns destes elementos se repetiam entre as companhias, devido a diversos fatores, como, por exemplo, o grande intercâmbio existente entre os próprios artistas circenses e também entre esses e os atores do chamado teatro oficial. Esse intercâmbio fez com que algumas 107 108 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. Ibidem. 165 características encontradas nas encenações no Pavilhão Arethuzza fossem semelhantes à companhia da família de Biribinha no Alagoas, por exemplo. Porém, é evidente que outras tantas características se alteravam, justamente pelo fato do circo criar de acordo com sua realidade local, que é extremamente variável num país de porte continental como o nosso. Além disso, (...) apesar da tipificação dos personagens, (...) havia uma variação dos textos, músicas, danças, e em particular o próprio texto era alterado dependendo da cidade, do público, do padre, do delegado, de ser matinê ou não. Apesar da tipificação dos personagens, não era a mesma apresentação, a mesma peça era montada de formas diferentes. E mesmo dentro da tipificação eram incluídos novos conteúdos para os personagens. Um exemplo disso é o próprio personagem palhaço: a princípio tipificado, mas nunca é o mesmo em nenhuma representação (SILVA, 2010:226). E como os circenses definiam, e ainda definem, qual é o tipo que deveria ser representado por cada ator? Através, principalmente, de suas características físicas (physique du role) e do que Soffredini chama de personalidade e Fernando Neves de temperamento, sendo este o termo que usarei daqui adiante. O temperamento de uma pessoa está ligado ao seu modo de ser e agir, e no caso do ator, ligado ao seu modo de ser e agir tanto na vida real quanto em cena. Desse modo, no ator, o temperamento se manifesta não só no modo como ele age em sua vida, como também no modo como pensa e organiza a cena e compõe seus personagens. A Psicologia é a área da Ciência que mais se debruça sobre o estudo do que vem a ser o temperamento de uma pessoa. Fernando Neves, ao iniciar sua pesquisa acerca do circo de sua família, foi buscar nesta área, então, algumas respostas para questões suscitadas a partir da memória de sua infância. Adentrando um pouco o terreno da Psicologia, destaco que a palavra temperamento vem do latim temperamentum, que significa medida. Segundo José Henrique Volpi, (...) Petroviski (1985) define o temperamento como sendo a combinação determinada e constante das peculiaridades psicodinâmicas do indivíduo, que se revelam por meio de suas atividades e comportamento, compondo dessa forma a sua base orgânica. Ainda seguindo o curso desse pensamento, Allport (1966), caracteriza o temperamento como sendo um fenômeno específico da natureza 166 emocional do indivíduo, que inclui a sua sensibilidade aos estímulos, intensidade e rapidez de respostas e várias outras particularidades, todas ligadas à hereditariedade. Atualmente, o que mais se aceita a respeito do temperamento é que certas características são decorrentes de processos fisiológicos do sistema linfático, bem como a ação endócrina de certos hormônios. Assim, pode-se explicar a genética e a interferência do meio sobre o temperamento de cada pessoa. Então, poderíamos definir temperamento como sendo uma disposição inata e particular de cada pessoa, pronta a reagir aos estímulos ambientais; é a maneira interna de ser e agir de uma pessoa, geneticamente determinado; é o aspecto somático da personalidade (VOLPI, 2004: 02). Fernando Neves, em entrevista, também formulou uma resposta para o que é temperamento, que chega a mesma ideia de Volpi, porém com outras palavras: O psicólogo me explicou que, a partir do momento que a gente nasce, a gente já está em contato com o mundo. Ou seja, sua casa, sua escola, a sua rua, tem muito a ver com sua formação. E isso desenvolve gostos, quereres, que é dentro da lógica... Porque no mundo a gente está pelos sentidos, pelos olhares, pelo ouvido, passa pelo tato, a gente tá em contato com o mundo o tempo inteiro e a gente tá dizendo sim ou não pras coisas do mundo o tempo inteiro! Isso é o que a gente é, é o que forma109. Acho válida, ainda, a transcrição do trecho abaixo em que Soffredini usa a potente expressão estado de espírito para definir essa instância que estamos chamando de temperamento: Rompida a primeira casca do “tipo”, observamos que havia mais no ator que o representava. Assim, uma “ingênua” não era somente um tipo físico e uma personalidade, mas um estado-de-espírito da atriz. Entrando imbuída desse estado-de-espírito a atriz REVELAVA, já no seu primeiro passo em cena, o seu personagem. Sem equívocos, sem fumaças, sem meios tons: sim o EXATO (SOFFREDINI, 1980: s/n). O temperamento do ator irá definir, portanto, o seu modo de criação e organização da cena e, consequentemente, encaixá-lo em um determinado tipo. Como este tipo está intrinsecamente ligado ao seu temperamento e este, por sua vez, ligado ao seu modo de ser e agir, o ator trabalhará explorando um terreno que lhe é mais “natural”, em que brilha mais, em que trabalha com mais fluência, em que é mais potente. 109 Ibidem 167 Em seu trabalho acerca do Pavilhão Arethuzza, José Carlos Andrade (2010) descreve uma galeria de tipos, baseado principalmente na obra Técnica Teatral de Otávio Rangel (1947). Esta obra não diz respeito diretamente ao circo-teatro, mas sim ao teatro brasileiro tido como oficial. Porém o período descrito, por Rangel, desse teatro oficial era contemporâneo ao período do circo-teatro em que se intensificou o uso da tipologia. Desse modo, percebo a mútua influência existente entre esses dois fazeres teatrais, o que permite a aplicação das definições de Rangel ao contexto do circo-teatro, porém, acredito, que com algumas ressalvas. Uma delas diz respeito, por exemplo, as definições do tipo galã. Andrade, baseado em Rangel, descreve sete subtipos de galãs: amoroso, dramático, cínico, cômico, típico, tímido e central. Acredito que, mais do que subtipos trata-se, na verdade, dos “tons” que cada ator pode utilizar para compor os diferentes personagens das peças que se enquadram no tipo galã. Ou: é como se o tipo “galã” fosse um substantivo e “amoroso, dramático, cínico, etc.” fossem adjetivos. Entendo que, dessa forma, todos os outros tipos também precisariam ser classificados em subtipos, pois as matrizes que compõem esses tipos variam de acordo com o gênero predominante no espetáculo e com as características das personagens. Assim sendo, listo abaixo os tipos que foram, e continuam sendo, característicos das representações circenses, levando em consideração alguns pontos levantados por Rangel e Andrade, mas partindo, principalmente, das definições apreendidas dos cursos e entrevistas que realizei com Fernando Neves. O olhar de Neves para a questão da tipologia me parece mais interessante, pois enquanto Rangel e Andrade propõem a exposição mais relacionada às características dos tipos, como, por exemplo, através da descrição dos personagens episódicos que assumem, Fernando Neves analisa mais especificamente as características encontradas na técnica de atuação dos intérpretes que dão vida àqueles tipos, mostrando as diferenças de lógicas de pensamento e de composição de existentes entre eles. Assim sendo, descrevo abaixo os tipos mencionados por Fernando Neves: - Ingênua e Galã: 168 São os mocinhos, os heróis, os enamorados e protagonistas das histórias. A ingênua é, preferencialmente, interpretada por uma atriz jovem, quase adolescente, e caracterizada com figurinos “bem comportados” e de tons suaves. Segundo Santoro Junior: (...) É a personagem marcante, de presença imprescindível, pois se torna o ídolo da companhia, fazendo o público participar e viver seus problemas como se fossem próprios, torcendo e suspirando por ela. Algumas características são indispensáveis a esta personagem: meiguice, docilidade, boa voz, geralmente porte pequeno (mignon), obedecendo certos padrões estéticos da época que atraíam a atenção do público (SANTORO JR., 1997: 39). No Pavilhão Arethuzza, a ingênua era interpretada por Alzira Neves, mãe de Santoro Junior, descrita como uma exímia representante deste tipo. Em entrevista, Santoro Junior contou: “Minha mãe era o protótipo da coitadinha. Eles olhavam pra ela e já choravam. Se amava a mocinha, mas se aplaudia quando ela sofria. Ela era aquela doída, sabe?”110. Com o passar dos anos, o posto foi passado para as meninas mais jovens da companhia, que mostravam possuir o temperamento necessário para a interpretação deste tipo. Desse modo, depois de Alzira, as ingênuas passaram a ser interpretadas por Arismar, filha de Aristides Neves e Maria das Dores Santoro. Porém Arismar casou-se, deixou o circo e Alzira voltou a interpretar as ingênuas, com a mesma meiguice e delicadeza, apesar da idade mais avançada; isso porque geralmente a ingênua é interpretada por uma atriz jovem, mas, dependendo da atriz, o seu estado-de-espírito (ou temperamento) é tão vibrante que é possível que ela represente, já não tão jovem assim, uma ingênua que seja completamente verossímil aos olhos do público. Em 2012, por exemplo, eu e mais cinco mil pessoas assistimos ao espetáculo Romeu e Julieta do Grupo Galpão, num parque em Belo Horizonte. Não se trata de um espetáculo de circo-teatro, mas diversas características da teatralidade circense foram exploradas, concomitantemente com a dramaturgia de Shakespeare que aponta claramente 110 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 169 para o fato de que, por exemplo, Romeu tem o temperamento de um galã e Julieta de uma ingênua. Dessa forma, como eu estava a uma distância relativamente grande dos atores, assisti a encenação acreditando que a atriz que interpretava Julieta era quase uma adolescente, extremamente meiga e delicada. Só ao fim da representação, ao me aproximar dos atores, pude perceber que a atriz, Fernanda Vianna, era uma mulher, com no mínimo trinta e cinco, quarenta anos! E a mesma situação acontece quando vejo outras atrizes como Maria Stella Tobar da companhia Os Fofos Encenam e também Luciane Rosã do Circo de Teatro Tubinho: mulheres formadas que se passam por jovens românticas e sonhadoras, por manterem não só o physique du role da ingênua, mas também o seu estado-de-espírito vivo. Retomando a história da passagem das ingênuas entre as jovens do Pavilhão Arethuzza, após Alzira, foi a vez de sua filha Alzirinha interpretar as heroínas. Alzirinha desempenhou tão bem os papéis antes representados por sua mãe que, na década de 1950, ficou conhecida como “A garota que canta e encanta”, slogan encontrado nos programas da época. Nos últimos anos do Pavilhão Arethuzza a ingênua ainda foi interpretada por Vera Lúcia, uma prima da família. Nas décadas de 1970 a 1990 um grupo remanescente da família remontou algumas peças, em que as ingênuas eram interpretadas por Tanija Santoro Aragon, filha de Alzirinha e em seguida por Ana Gisela, filha de Santoro Junior. Já o galã deve ser interpretado, preferencialmente, por um rapaz bonito. Mas essa característica física não basta para a boa composição do tipo: o galã precisa ser também extremamente charmoso, carismático, elegante e sedutor, utilizando-se dessas qualidades em tudo o que faz. Mais uma vez, ressalta-se na interpretação circense, características que são tão naturais ao ator, apesar de, às vezes, não serem de seu conhecimento. No documentário produzido sobre a montagem de A mulher do trem, da companhia Os Fofos Encenam, Eduardo Reyes, o galã da companhia dá o seguinte depoimento acerca do início do processo de montagem do espetáculo: 170 Eu acho que é isso... Ressaltar umas coisas, que talvez eu não percebesse... O Fe Neves, o diretor, queria que ressaltasse uma questão canastra... Explicitar uma sedução... Ressaltar isso que o diretor queria era difícil pra mim, porque eu não acho que eu sou assim. E ele falava: “Mas você é. Eu te vejo... você é assim. Então ponha isso”. Então eu tinha que grifar essas qualidades, esse jeito de ser... 111 O que é extremamente revelador e engraçado dessa passagem é que Eduardo Reyes, ao mesmo tempo em que diz que não se vê como galã, diz isto de um jeito completamente galanteador e sedutor, que lhe é totalmente natural e verdadeiro. Graças a este trabalho com a tipologia, então, Eduardo Reyes pôde perceber e compreender suas características mais marcantes e utilizar disto para a melhor composição de seu personagem. Com relação ao elenco do Pavilhão Arethuzza, Antônio Neves Junior, o Sinhô, era o galã. A seu respeito, Fernando Neves contou em entrevista: Tudo que o tio Sinhô fazia era seduzir. Ele morreu velhinho e, era uma pessoa que gostava muito de mulher... Muito de mulher, e como gostava (risos). Mas se tivesse aqui assim cinco homens, ele ia seduzir os cinco homens também. Se tivesse uma cadeira aqui, ele ia seduzir a cadeira! E eu lembro dele velhinho, com chapeuzinho, aquele lenço. (...) O tio Sinhô era tão galã, mas tão galã que assim... Sempre minha mãe contava que ela ficava muito brava porque o tio Sinhô nem levava os ternos dele pro circo... O meu pai saía de onde ele trabalhava e tinha que passar na lavanderia e pegar os ternos do tio Sinhô. Alguém tinha que levar porque ele era o galã112... Um tipo curioso de galã destacado por Fernando Neves era o galã bandeja, que constituía uma verdadeira estratégia de marketing circense. Antes de se tornar o galã central da companhia, o jovem ator, ainda inexperiente, era designado a este papel, fazendo uma “ponta”113 na peça. Sempre que havia na representação uma festa, o galã bandeja aparecia como garçom, para “dar uma pinta, entrando mudo e saindo calado”, mas com a importante missão de paquerar alguma menina da plateia. No outro dia era certeza que ela retornaria ao circo, levando ainda várias amigas para mostrar que o galã estava flertando com ela. E 111 Declaração de Eduardo Reyes no documentário produzido pela companhia Os Fofos Encenam e Massangana Multimídia Produções, acerca da peça A mulher do trem. O documentário foi gravado durante o VII Festival Recife de Teatro Nacional, em Recife/PE, em novembro de 2004. 112 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 113 Como é chamado um personagem que aparece pouco em uma peça, às vezes com algumas poucas falas e outras sem nenhuma. 171 nessa brincadeira muitos casamentos ocorreram e muitas famílias se constituíram. - Ator Central e Dama central: São as grandes estrelas, geralmente os donos da companhia, e possuem um temperamento e postura glamorosos. Andrade (2010) cita uma fala recorrente de sua professora Maria José de Carvalho, na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, que sintetiza a questão do porte altivo característico dos intérpretes destes tipos: “Há atores que mesmo recobertos de ouro e púrpura, ainda assim parecerão mendigos. Há atores que portando andrajos, terão o porte incomparável das majestades” (ANDRADE, 2010: 324). O teatro tido como oficial contemporâneo a este período do circo-teatro também era marcado pelas companhias alicerçadas sobre estas grandes estrelas. É sabido e muito difundido no meio teatral, por exemplo, que o ator Procópio Ferreira, um dos maiores nomes do nosso teatro, não comparecia aos ensaios e ordenava que fosse colocada uma cadeira em seu lugar, no centro do palco. O recado era claro: “Eu sou a estrela da companhia e aqui é o meu lugar”. O fato de alguns artistas serem ou não os centrais não está necessariamente ligado à idade, mas geralmente estes tipos são interpretados pelos artistas mais experientes e mais velhos da companhia, que atingiram maior maturidade artística. Os centrais podem aparecer episodicamente como os pais da ingênua e protagonizam - juntamente com os mocinhos - as representações ocupando, prioritariamente, o centro do palco. No Pavilhão Arethuzza, o ator central era desempenhado por Arthur Neves. Além disso, Aristides Neves também poderia desenvolver tal tipo, sendo mais apto aos papéis de forte intensidade dramática. Arethusa Neves, a filha mais velha de Antônio das Neves e “braço direito” deste, era a grande dama da companhia, sendo escalada para diversos papéis e saindo-se bem em todos, principalmente nos papéis centrais que exigiam grande carga dramática. Santoro Junior conta a respeito da tia: 172 A tia Thusa era a grande dama, seria hoje como a Fernanda Montenegro. Os outros circos tinham respeito por ela. Quando ela chegava num lugar, todo mundo: “É ela! É ela!” E o pessoal levantava pra cumprimentar... E ela ia de luva, chapéu, salto alto, era uma coisa assim114! Além de excelente atriz, Arethusa é descrita ainda como uma mulher extremamente fina e educada, de rigoroso senso crítico e gosto artístico, além de excelente administradora, figurinista, adaptadora de textos e dramaturga. Arethusa era uma mulher a frente de seu tempo, não só por administrar com tamanha eficiência e autoridade os negócios da família, como também por mostrar, em sua vida pessoal, toda sua forte personalidade em meio à sociedade da época. Dessa forma, em 1926 ela se separou do primeiro marido, Macário da Silva – que apresentava sintomas de dependência química –, com quem foi casada por oito anos e passou a viver, em 1928, com o ator Osmani Pereira. Apesar do desquite oficial só ter saído em 1940, Osmani foi aceito pela família como seu segundo marido e os dois permaneceram juntos por toda a vida. - Cômico e Caricata: Os atores que possuem este temperamento – sendo chamado de cômico, o homem e caricata, a mulher – têm um ótimo tempo para comédia, são extremamente criativos, irreverentes e transgressores, ou seja, são os “palhaços” das peças, mesmo que não caracterizados como tais. Apesar de possuírem tamanha vitalidade em suas interpretações, não possuem, por outro lado, muito compromisso com a lógica, a precisão das ações e a repetição das marcas. Dessa forma, assim como na dupla de palhaços, faz-se necessário que outro personagem assuma a função de ser seu escada. Numa comparação que Fernando Neves sempre menciona, o cômico ou a caricata seriam os atacantes de um time de vôlei, que cortam as bolas erguidas pelos levantadores, ou seja, arrematam as piadas construídas pelo baixo cômico e pela sobrette. 114 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 173 Preponderante nos gêneros cômicos, estes tipos aparecem também no melodrama com o nome de bobo ou tolo e desenvolvem um papel fundamental na constituição do espetáculo, pois a presença de elementos cômicos nos enredos melodramáticos se mostra extremamente eficiente e necessária para o êxito da representação. O bobo é grotesco para aumentar a fineza dos heróis e serve como um “refresco” para a plateia, aliviando momentos insuportavelmente dramáticos da peça, que poderiam levar ao riso devido à tensão exagerada. Fernando Neves diz que “nos momentos de insuportável tensão coloca-se o bobo para se rir do engraçado e o dramático ser preservado”115. O bobo está fora do maniqueísmo do melodrama, conferindo (...) um aspecto mais humano ao complexo conjunto de personagens. Se a divisão se faz entre terríveis e desalmados vilões de um lado e impolutos e incorruptíveis heróis de outro, o elemento que desperta a comédia serve igualmente para estabelecer um paralelo com o cidadão comum. O espectador, acomodado na plateia, que não se identifica nem com as personificações do mal ou do bem absolutos, acaba por se espelhar na poética figura risível que lhe é bem conhecida e está mais próxima da sua realidade cotidiana (ANDRADE, 2010: 104). Evidencio, aqui, mais uma vez como o circo monitora as reações do público: ao bobo, a personagem com quem o público mais se identifica, é dada a importante posição de confidente dos heróis. Desse modo, o público também se sente confidente dos mocinhos e envolve-se ainda mais na trama. No Pavilhão Arethuzza, Oscar Neves, o excêntrico Thomé da primeira parte, assumia na segunda parte os papéis cômicos. Apesar de não surgir caracterizado como palhaço, com exceção de algumas peças de matinê, é óbvio que algumas matrizes presentes na composição do seu palhaço eram aproveitadas e reelaboradas na construção de suas personagens. Entre as mulheres, Jurandyr, a Didi, é descrita como uma excelente atriz cômica, além de ter interpretado, quando necessário, as ingênuas e, principalmente, as 115 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. 174 coquetes, marcadamente sensuais. Tamanha versatilidade fez com que ela, assim como a irmã Guiomar, se enquadrasse no chamado tipo genérico, que será descrito adiante. Santoro Junior conta que Didi tinha um temperamento “esquentado” e oscilante, era briguenta e a única que ousava desafiar as ordens do pai. Também era apaixonada por futebol, fazendo parte do time de futebol feminino que se apresentava em certas ocasiões no circo e acompanhando nos estádios os jogos de seu time do coração, São Paulo Sport Club, numa época em que a presença de mulheres nos estádios era raríssima. - Baixo Cômico e Sobrette: Os atores que se enquadram nesses tipos – sendo chamado de baixo cômico, o homem e sobrette, a mulher – têm um humor leve, rápido e ligeiro. Podem aparecer, episodicamente, como empregados ou amigos da família. Conhecidos como escadas, preparam a cena e as piadas para os cômicos. Ou seja, “levantam a bola, jogam o trapézio”, enfim, armam a piada que vai ser arrematada pelo cômico ou pela caricata. Os heróis vivem a história que é por eles encaminhada e, assim como ocupam um lugar periférico nas dramaturgias, ocupavam, preferencialmente, as áreas periféricas do palco. São extremamente precisos e lógicos: trata-se daquele ator que tem precisão de tempo e sabe as falas de todas as personagens e todas as marcas da cena. Fernando Neves destaca: No circo-teatro tem toda uma organização, um equilíbrio. Porque o foco é da história. Quem vive a história? São os heróis, não é? O herói e a heroína, ou seja, o galã e a ingênua. E também os centrais. E o cômico e a caricata, que dão mais graça pra história... Mas quem conta a história são o baixo cômico e a sobrette. Eles que contam, eles que estão lá pra criar as situações, pra levantar a piada, pra preparar a cena, pra deixar tudo prontinho pra esses outros personagens arrematarem116. No Pavilhão Arethuzza esses tipos eram vividos principalmente pelos atores genéricos Antônio Santoro, e as irmãs Didi e Guiomar Neves. 116 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 175 Há ainda uma vertente do tipo sobrette chamada de coquette. Trata-se da atriz que, além de todas as características descritas acerca da sobrette, tem como principal marca a sensualidade. - Genérico(a): Alguns atores não se ligam diretamente aos tipos elencados anteriormente, tendo como características básicas a versatilidade e a facilidade em interpretar os mais diversos papéis. Andrade (2010) diz a respeito destes atores, tido como genéricos: Há também atores camaleônicos que possuem a natural capacidade de reorganizar os elementos componentes de seu temperamento e, de acordo com as necessidades, são capazes de dar maior destaque para uns, ou minimizar a influência de outros (ANDRADE, 2010: 190). Ainda no primeiro ano de graduação, um de meus professores, Marcelo Lazzaratto, fez um comentário que relacionei diretamente quando, anos mais tarde, ouvi falar de circo-teatro e desse “ator genérico”. Lazzaratto disse que, para ele, há dois tipos de atores: os personalistas e os transformistas. Os personalistas são aqueles em que reconhecemos alguns traços característicos semelhantes em seus mais variados papéis, o que lhes confere certa individualidade e “marca”. Como exemplo, citou atores como Marlon Brando e Robert de Niro. O ator transformista é aquele que se camufla de tal forma que praticamente desaparece aos nossos olhos, sempre aparecendo de maneiras diversas a cada personagem. A sua principal característica reside, justamente, em não possuir a personalidade marcante do ator personalista, o que lhe confere outra qualidade enquanto ator, que se enquadra melhor em determinados papéis. Para exemplificar este caso, Lazzaratto citou o ator Dustin Hoffman no filme Tootsie, em que interpreta um ator que se passa por uma mulher. Acredito que os atores que se enquadram como galã, ingênua, ator central, dama central, cômico e caricata centram suas performances, principalmente, em suas 176 características temperamentais – seja a sedução, no caso do galã, a doçura da ingênua, o glamour dos centrais ou a irreverência dos cômicos –, o que lhes confere, em cena, uma personalidade mais marcante e, portanto, mais facilmente reconhecida pelos espectadores. Acredito que esses atores seriam o que Lazzaratto chamou de personalistas. E, por outro lado, acredito que os atores relacionados aos tipos baixo cômico, sobrette e também o ator genérico centram suas técnicas de interpretação, principalmente, na composição aguçada de seus personagens, o que lhes dá certo ar de “camaleões” e que lhes aproxima, portanto, da ideia de atores transformistas. No Pavilhão Arethuzza, como dito anteriormente, Antônio Santoro, um dos irmãos Santoro que se casou com Alzira Neves, e as irmãs Didi e Guiomar eram os que melhor transitavam entre os variados tipos. Acerca de Guiomar Neves, destaco que esta começou a carreira interpretando as ingênuas; mais tarde, juntamente com Arethusa, passou a interpretar os papéis das grandes damas, porém, sem dúvidas, ganhou maior destaque ao interpretar as cínicas. Em entrevista, Santoro Junior contou uma divertida passagem em que Guiomar, que fazia apenas a comparsaria (figuração) em uma peça, acabou roubando a cena de tal forma que o desenrolar da história foi comprometido: Eles falavam também da postura cênica na interpretação dos comparsas antigamente falava comparsa, hoje fala figurante. Mas antigamente era comparsa. O comparsa ele tem que ser bom, mas ele não pode superar o ator. Então, na “Filha do Mar”, quando fala “Chama todos os empregados”, toda a comparsaria entrava de empregadinho e empregadinha. Todo mundo, o palco ficava cheio e tal. Daí um personagem falava “Houve um crime nessa sala”, e a comparsaria “Um crime?”... E a tia Guiomar “Um crime?” E todo mundo só olhava pra ela! Tinha que tirar a tia Guiomar de lá... Porque ela era tão boa atriz que os outros diziam "Dá pra mandar ela parar, ou põe ela mais no fundo?” E daí o vovô "Deixa ela aqui na frente... só que menos, né Guiomar?" (risos)117. Encerro aqui a descrição dos tipos afirmando, sem sombra de dúvidas, que não existe, entre essas classificações, um que seja melhor ou pior que o outro. O que seria de uma história em que todos são protagonistas? Ou: que piadas o cômico iria arrematar se 117 Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014. 177 ninguém as tivesse levantado? O fato é que é necessária e imprescindível a presença de diferentes tipos e personagens em qualquer história. Pontuo aqui, portanto, que, acima de tudo, esses pensamentos acerca da tipologia podem auxiliar o ator a olhar para si e, de forma honesta, reconhecer as características que lhe conferem a qualidade de ator que é. O que ele fará a partir disso depende de suas vontades e anseios artísticos, mas este exercício de honestidade para consigo me parece interessante para qualquer ator. No caso do circo-teatro, os artistas representavam nas encenações os personagens que melhor se enquadravam ao seu tipo. Porém, é importante destacar e analisar que, apesar do ator se deter à interpretação de um determinado tipo, este estava em constante transformação, pois o intérprete estava sempre a absorver e recriar as novas tendências artísticas e especificidades da cidade onde o circo se instalava. Essa característica é evidente também em outras tantas formas de manifestações tidas como populares, como por exemplo, a commedia dell’arte. Ressalto uma passagem narrada por Erminia Silva (2010) que ocorreu em uma roda de conversa com a pesquisadora Tiche Vianna, especialista em commedia dell’arte, do Barracão Teatro, de Campinas. Tiche ressaltou primeiramente que alguns historiadores europeus afirmam que a commedia dell’arte conseguiu atravessar três séculos devido ao fato desta se comunicar com todos os níveis de público – da mais alta sociedade aos transeuntes das feiras – e que esta característica está ligada diretamente à capacidade dos atores de não se especializarem. Acredito que o pensamento, descrito a seguir, desenvolvido por Tiche sobre esta questão da não especialização na commedia dell’arte pode ser estendido ao circoteatro: Tiche aponta que, em um primeiro momento, essa análise lhe causou estranhamento, pois pensou: eram tipos fixos e como que um tipo fixo não é uma especialização? Entretanto, aqueles estudos lhe fizeram todo sentido e coincidiam com seu próprio fazer teatral. Pois, por mais que se fizesse um tipo fixo, esse tinha que absorver todos os elementos que o tornasse capaz de interagir com a plateia daquele lugar e daquela hora; tinha que estabelecer relação que fizesse sentido para quem estava fazendo e vendo (SILVA, 2010: 227). 178 Além disso, apesar da estrutura interpretativa enquadrar os atores em tipos, é óbvio que a dramaturgia de cada peça propunha especificidades às suas personagens. Desse modo, apesar de uma atriz sempre representar o tipo da ingênua, interpretar a Bernadete, do drama religioso A canção de Bernadete não seria igual a interpretar a Rosinha, da burleta Cabocla Bonita, por exemplo. É como se a artista fosse pintar um quadro, no qual a figura a ser retratada e as cores utilizadas fossem pré-determinadas, porém os inúmeros tons, a mistura destes e o modo como eles podem ser combinados fossem de sua livre inspiração. Portanto, cada ator interpretava um determinado tipo, que seria enquadrado na dramaturgia da peça em diversos papéis, gerando, dessa forma, muitas especificidades a cada encenação. Porém, especificidades à parte, no circo-teatro todos os tipos, sem exceção, seguem a mesma premissa: devem ser reconhecidos imediatamente pela plateia. Era fundamental que quando uma personagem adentrasse o palco, a plateia, no mesmo instante tomasse conhecimento de quem se tratava. O vilão tem que se mostrar vilão desde a sua primeira aparição, sem oferecer risco de mal entendido para os espectadores. Não basta ao vilão agir como tal. Ele tem que se parecer como indica o tipo. O vilão veste-se como vilão, fala como vilão, anda como vilão (ANDRADE, 2010:133). Completando a informação acima se, por exemplo, o vilão está a enganar alguma outra personagem, como a madrasta de Branca de Neve ao lhe oferecer a maçã envenenada... Se sua atitude esconde as suas reais intenções, algum outro elemento da composição da cena, como por exemplo, a música ou a iluminação, irá mostrar ao espectador a vilania escondida naquela ação. Ou seja: o público está no centro da representação e a ele tudo é mostrado, ou melhor, “escancarado”. Essa característica de revelar a personagem de imediato para a plateia está no cerne não só do circo-teatro, mas também de diversas outras manifestações tidas como populares, inclusive os teatros de feira e commedia dell’arte, antecessores deste representante da teatralidade circense. Robson Corrêa de Camargo (2006) descreve, em seu artigo acerca dos teatros de feira, o método de exposição da personagem pelo ator na pantomima que, como veremos, tem total proximidade com o trabalho realizado pelos atores de circo-teatro: 179 Bragaglia descreve-a como compreendendo três fases: a primeira, a mais importante, revela um grau de consciência profunda do fazer teatral e de sua conexão com a platéia: o contegno (comportamento, atitude, postura). Pode ser denominado como o caráter do ator-personagem, ou ainda, a presença cênica, a arte de fazer-se reconhecer imediatamente na personagem representada, antes do início da ação que será realizada ou pelo gesto que a vai caracterizar. Esta técnica é intensamente trabalhada pela mímica e precede àquela que se preocupa com o desenvolvimento ou reconhecimento da personagem por meio da ação desenvolvida, e é o ponto central de vários procedimentos do teatro popular. No teatro de variedades era muito comum, a capacidade do ator surgir em cena e conseguir a empatia da plateia no imediato momento em que surgia no palco. Os artistas das formas de teatro de variedades, como os de mímica, com seus números rápidos, muitas vezes, de cinco minutos, não irão desenvolver em cena uma longa história que o público deva acompanhar, ou mesmo, o palhaço, com suas rotinas rápidas, entre os números de trapézio e dos animais, é obrigado a entrar e imediatamente conquistar a atenção da audiência. (...) A segunda seria o gesto ou o desenvolvimento da gestualidade da personagem, ou ainda, da personagem em ação. A última, o ostentio, a exibição ou mostra, a arte de fazerse entender ou contar ou atuar a história sofrida pela personagem. Como vemos, tudo está muito voltado à relação com o público e seu entendimento da ação no palco. Para melhor clareza da análise que estamos realizando, acrescento um quarto elemento à trindade de Bragaglia. Este seria o todo representado, ou melhor, o adequado equilíbrio de todos os elementos citados anteriores no desenvolvimento da totalidade do espetáculo, o complexo gestual (CAMARGO, 2006: 11 e 12). Determinado o tipo do ator, estabelece-se uma partitura com as características básicas deste. Porém, isto não limita seu trabalho, pelo contrário: tendo essa partitura como base, ele dispõe de uma extrema liberdade para criar a personagem, podendo se fazer valer de toda e qualquer referência, e achar o seu tom. Esse é o grande paradoxo instalado pela tipologia: ao mesmo tempo em que delimita uma partitura, permite a extrema liberdade de se compor e criar dentro dela. Fernando Neves costuma dizer que o tipo, ao mesmo tempo em que fecha, abre um universo de possibilidades ao ator, lhe fornecendo, então, uma partitura para voar. Alguém poderia pensar que, por serem tipos, esses personagens são pobres, sem grandes nuances, o que poderia tornar as histórias das peças menos interessantes. Destaco aqui dois pontos: o primeiro diz respeito a falsa compreensão do que vem a ser um tipo e os problemas que isso acarreta no momento do ator interpretá-lo; e o segundo diz respeito à relação existente entre a utilização das personagens-tipo e as histórias a serem contadas. Em relação ao primeiro ponto, começo citando uma fala, um tanto quanto sarcástica e verdadeiramente forte, de Soffredini acerca do circo-teatro: 180 Trata-se de espicaçar o jogo teatral. Trata-se de assumir a teatralidade do Teatro. Trata-se de derrubar a quarta parede com picaretas, talvez, que modernamente têm sido repudiadas pelos donos-da-bola do Teatro. Trata-se, e sabemos disso, de assumir os cânones que têm sido apontados como os do mau Teatro. E por que não? Alguma coisa esse “mau Teatro” deve ter, já que continua envolvendo uma classe de público depois de mais de um século. (...) Forma? Estereótipo? Estereótipo sim. E se ao seu estudo nos jogamos, se fizemos dele uma das bases a partir da qual estamos elaborando, inventando, é porque percebemos que não existe o mau estereótipo. Existe, sim, o mau ator. Assim: Um certo (sic) número de “dramas” fazem parte do repertório do grande Circo-Teatros (sic) e por isso nós assistimos a alguns deles representados por três ou quatro elencos diferentes. Determinados “achados” (“gag”, “caco” de alguns atores) já caíram na tradição e, constando já como indicações nos textos, são repetidos por todos os elencos. A FORMA (estereótipos) de representar determinados personagens também já é tradicional. Pois bem: em determinados Circo-Teatros o tal “achado” ou a tal “forma de representar” tem um tempo teatral exato e funcionam perfeitamente; em determinados outros são uma verdadeira tristeza. Por que será? Acho que é porque não há estereótipo puro, há ator burro (SOFFREDINI, 1980: s/n). Esclareço que Soffredini usa o termo estereótipo como um sinônimo de tipo, pois a seu ver, esta palavra não deveria ser carregada do significado pejorativo que lhe é comumente atribuída. O tipo é um símbolo, é um catalisador, é um personagem que não reduz e sim sintetiza características humanas, que são condensadas e que deveriam se encontrar, portanto, em um estágio de maior potência. Um tipo mal construído é o que se chama de estereótipo, ou seja, é a mera reprodução de um clichê, de algo falso, sem vida, formado antecipadamente e sem fundamento, e, portanto, preconceituoso. Portanto, assim como Soffredini, não acredito que exista um mau estereótipo ou um mau tipo; o que existe é um mau desempenho do ator que se propôs a representá-lo. Para compor um personagem, independente de se tratar de um tipo – considerado um personagem plano – ou um personagem esférico, o ator deve mobilizar-se por completo, com suas dimensões interior e exterior em profundo diálogo, e deve, então, expressar as resultantes desse diálogo através da conduta de seu corpo e comportamento, que por sua vez são expressas através de ações. Fernando Neves disse em entrevista que nesse trabalho de composição de tipos no circo-teatro o ator só tem uma chance e ele não pode errar: ele tem que entrar em cena e não deixar dúvidas na plateia. Para tanto, o ator deve executar um trabalho de interpretação 181 que busca o limpo, o direto, o contundente, o preciso, o justo. Automatismos e clichês, que sugam a vida de qualquer personagem, devem ser eliminados também no trabalho que visa a composição de um tipo. Adentrando agora o segundo ponto levantado anteriormente, nas representações teatrais no circo, segundo Fernando Neves, o foco recai sempre sobre a história, e não sobre os dramas individuais das personagens. É preciso que essas personagens sejam capazes de contar uma história, minuto após minuto, em conjunto: Fernando Neves: (...) O foco é a história a ser contada, não para, não tem essa base psicológica do drama, do meu personagem, não. É a história que tem que andar, porque trabalha com a composição. A partir do momento que cada personagem entra em cena, o universo daquela personagem já está criado. O público fala: “Essa é a moça, aquele é o herói, aquele é o vilão. Esse é esse, esse é esse. Pronto! Já sei de tudo e agora vocês têm que me contar a história!”. Fernanda Jannuzzelli: E apesar de saber de tudo isso e, muitas vezes, até saber como vai acabar a história, o público quer ver mesmo assim porque ele quer é saber como os artistas vão contar essa história, né? Fernando Neves: Exatamente. Inclusive porque tudo é revelado pra plateia. Isso tá na origem da dramaturgia do circo-teatro. O que é importante é que pro ator, o foco é da história. (...) E é tudo pra plateia e tudo muito claro pra plateia. A plateia não pode falar “Mas quem é esse daí?”. Fez isso acabou. Entendeu? É a mesma coisa que você tá contando uma história e fala “Nossa, não entendi aquela pessoa, quê que ela fez? Ela era legal? Não era?”. Entendeu? O ator, ele só tem uma chance, nesse trabalho da composição. Uma. Se ele errar, ele tá perdido. Não tem outra118. O fato de a representação ser pautada pela tipologia definia, claramente, entre os circenses, todos os elementos da caracterização das personagens. Dessa forma, se na commedia dell’arte, por exemplo, os tipos eram imediatamente identificados pelas máscaras, no circo-teatro o design e as cores do figurino, bem como da maquiagem, cumprem a função de definir as figuras com a mesma precisão. Uma ingênua, por exemplo, sempre usará tons claros, como rosa e pastel, enquanto um vilão se valerá preponderantemente de cores escuras. Então eles não precisavam ter um figurinista, um maquiador; eles conheciam o universo do seu tipo, que tem a ver com os personagens que eles interpretavam. Eles sabiam tudo, não precisava... Se mandasse... “Vou fazer um personagem”, “Vai lá no guarda roupa e pega o figurino”. E a pessoa ia e pegava e ia dar 118 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. 182 certinho, não ia ficar parecendo uma louca em cena, porque ia dialogar com tudo que estava lá, com cenário, com figurino, com luz, com tudo. Entendeu? Porque eles conheciam o universo desses tipos, porque toda a interpretação tá calcada nisso119. Nas fotos abaixo podemos ver Arethusa Neves e Antônio Santoro Junior (Sinhô) interpretando diversos personagens dos dramas levados no Pavilhão Arethuzza. Através dessas fotos, vi claramente a importância da composição dos tipos, com suas caracterizações alicerçadas pelos figurinos e maquiagens. E pude ver também, como que, apesar de se tratar de personagens tipos, não havia uma caracterização “exagerada”, que nos vêm a mente, comumente, quando se fala em tipos, ou melhor, em estereótipos. Figura 29: A filha do mar, s.d. Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior. 119 Figura 30: As duas órfãs, s.d. Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior. Ibidem. 183 Figura 31: A cabana do Pai Thomás, s.d. Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior. Figura 32: Honrarás tua mãe, s.d. Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior. Figura 33: A escrava Isaura, s.d. Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior. Figura 34: Justiça divina, s.d. Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior. 184 Figura 35: O poder do ouro, s.d. Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior. Figura 36: Os dois garotos, s.d. Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior. Além da composição de figurino e maquiagem, a interpretação baseada na tipologia definia também a distribuição das personagens no espaço cênico. Dessa forma, desenvolveu-se uma espécie de padrão de posicionamento no palco, também baseado nas diversas referências absorvidas pelo espetáculo circense, que permitia a composição de tantas cenas, de tantas peças distintas em tão pouco tempo pela figura, não de um diretor, mas do ensaiador. Fernando Neves destaca: O que determina espacialmente o seu lugar, o seu espaço no palco é o seu personagem. Então, se eu vou fazer um vilão eu sei exatamente que no meio do palco, por exemplo, eu não vou ficar... Eu posso pegar uma diagonal pra passar pelo meio. Ou dar a volta, se for entrar pela direita, passando pela meio direita, até a direita baixa, entendeu? Mas é muito difícil daí eu pegar e passar pela frente centro e atravessar pela boca do palco. Geralmente tem a diagonal pra vilão, entendeu? A questão do centro é muito importante pros protagonistas, principalmente pros heróis... Então isso determina 120. 120 Ibidem. 185 Percebo que todos estes mecanismos contribuem para a composição das personagens e a imediata identificação destas pelo público e também para se contar a história pretendida. Tudo é construído com o pensamento focado nas reações e sensações que serão suscitadas no público. O ator circense, num ato totalmente não preconceituoso, partia de toda e qualquer referência para a composição de seu personagem e da cena. O único critério a ser considerado era: isso ajuda a contar a história e causa o efeito desejado na plateia? E eis-me aqui novamente tocando num ponto delicadíssimo no dito Teatro Moderno e simplesmente abominado pelos filhos de Stanislavski: o EFEITO. Efeito cheira a forma. E nesse ponto seria bom que a gente chegasse logo a um acordo: NÓS CULTIVAMOS A FORMA. Os antigos atores conheciam e aprimoravam uma série de EFEITOS. Eles sabiam a forma de dizer melhor uma piada, o valor exato de uma pausa, a maneira de se colocar em cena dependendo do clima a ser criado ou do caráter a ser revelado. Não é por acaso que o CircoTeatro ainda conserva uma fuga central no cenário. Não se trata dessas atuais convenções pobres, tais como: “a fuga da esquerda leva ao quarto, a do centro à cozinha, a da direita leva à rua...” Não. Trata-se de uma consciência exata do valor (efeito) da entrada ou saída de um ator de cena. Cada personagem que entra em cena, se o ator souber entrar, só pode levar a peteca pra cima. Cada personagem que sai, se o ator souber sair, deixará a peteca em cima. Se um personagem tem caráter positivo, se ele “chega”, entrará pela fuga do meio: como num passe de mágica a figura aparecerá no meio da cena. Da mesma forma, se um personagem tem caráter dissimulado, se sua ação é sorrateira, ele entra ou sai pelas laterais. Parece um processo ingênuo, mas o EFEITO é matemático. Sabese que os vilões dos velhos dramas não só entravam em cena pelas laterais como cobrindo parte do rosto (do nariz pra baixo) com uma capa negra (SOFFREDINI, 1980: s/n). Os circenses utilizavam-se, ainda, da ciência da potência e da função de cada um desses efeitos para a construção de recursos que poderiam reforçar, ou ainda desvirtuar, alguns desses próprios efeitos. Isso acontecia, por exemplo, em relação à escolha de quem interpretaria o(a) cínico(a). Apesar deste personagem estar presente, praticamente, em todas peças circenses, ele não constituía um tipo e seria interpretado pelo que melhor se adequasse ao efeito pretendido. É como se o tipo fosse um “substantivo” e o fato de ser “cínico” um adjetivo. Por exemplo, uma dama central de forte intensidade dramática daria um grande peso a personagem, enquanto um baixo cômico ou sobrette trabalhariam mais com a questão da composição física etc. Dessa forma, Fernando Neves conta: 186 Por exemplo, é uma ingênua que tem que fazer uma cínica, como no “Uma cigana me enganou”. Porque todo mundo pensava que a vilã é a cigana, porque a ingênua é ingênua! Então é uma alta comédia que se trabalhava a questão do preconceito. Ninguém conseguia perceber que era a ingênua que tava fazendo as maldades, porque ela é moça de família, etc. E isso era pensado como recurso. Assim mesmo, sabendo que ela tá lá pra enganar a plateia. (...) No “Crime da 5ª avenida”, por exemplo, (...) quem fazia o promotor era o tio Sinhô. A tia Thusa botou ele, muito espertamente, que é um galã, pra não dar pro personagem o peso da vilania, porque o promotor geralmente você pensa que é o vilão porque é o que acusa. Então quando o Alex Gruli aqui dos Fofos pegou o promotor pra fazer, que pra ele foi um papel maravilhoso, ele se tornou um vilão, porque como ele é baixo cômico ele compôs. Então ele tinha umas caras, ele tinha uma coisa que ele fazia, que eu falei “Olha que engraçado! Por isso que a tia Thusa botou o tio Sinhô que é galã, daí trabalhava com a sedução, então não tinha esse peso da vilania!” Então o circo meio que utilizava isso (...) Se o papel necessita de maior intensidade dramática, bota o galã central pra fazer. Alguém ia onde o tio Sinhô ia dramaticamente? Ia a tia Thusa como mulher, os dois iam, né? Mas a tia Guiomar era genérica e ia em tudo, mas se precisasse de uma dama central de origem mesmo botava a tia Thusa. Quando precisava de uma ingênua... a tia Alzira já com idade fazia a Virgem Maria! E era bom ela fazer porque ninguém ia fazer como ela. A Lília Cabral olhando a tia Alzira... lá no Pátio do Colégio... a Lília falou: “Fernando, eu tô chorando... tô vendo que ela passou vaselina, eu vi ela passando....” E na cena da cruz a Lília “Eu tô chorando, não paro de chorar. Quê que ela tá fazendo?” E eu falei “O que ela tá fazendo? Ela tá fazendo o que ela fez a vida inteira! (risos) 121. Fernando Neves desenvolve, na atualidade, uma pesquisa que promove o resgate da memória de sua família e, a partir disto, constrói uma técnica pessoal em que são retrabalhados elementos da poética e estética que foi desenvolvida pelo Pavilhão Arethuzza. Além disso, Neves, mostrando ter mesmo serragem nas veias, se apropria de diversas outras fontes teatrais, como o trabalho com a máscara neutra de Jacques Lecoq e com os níveis de energia de Barba, para compor a sua técnica acerca do trabalho do ator. Nos circos-família, como no caso do Pavilhão Arethuzza, descobria-se o tipo de cada pessoa de forma natural, através do convívio diário e contínuo. Dessa forma, era só uma questão de tempo para que os mais velhos reconhecessem nos mais jovens as características que os tornariam mais adequados à este ou àquele papel. 121 Ibidem. 187 Como hoje em dia Fernando Neves não trabalha e vive num circo, ele desenvolveu um exercício – que busca um análogo a essa descoberta natural através do constante convívio – para definir a qual tipo cada ator se aproxima. Baseado nas memórias da sua infância, Neves relacionou o “jeito” de cada um de seus tios com os papéis que desempenhavam nas peças. Lembrando-se de como seus tios realizavam ações simples do cotidiano e reagiam diante de determinados acontecimentos, Neves entendeu a relação existente entre o temperamento de cada um deles e os tipos que representavam. A pedido de Fernando Neves, não descrevo como se desenvolve este exercício dos tipos, pois para a realização deste é necessário que os atores não o conheçam de antemão. Tive a oportunidade de fazer um curso com Fernando Neves, ainda em 2007, na Casa de Cultura Amácio Mazzaropi, em São Paulo, no qual realizei esse exercício. A turma deste curso era composta por pessoas muito diferentes, com experiências teatrais diversificadas, sendo algumas sem experiência alguma. No primeiro dia de curso Neves perguntou o que cada um achava que era “circo-teatro”. Com as respostas, percebemos que a maioria achava que estudaríamos algo relacionado com palhaços e números de variedades. Ninguém se remeteu de fato à teatralidade circense chamada de circo-teatro, porém o mais interessante é que, apesar disso, ninguém se remeteu também a linguagens “naturalistas” como a telenovela, por exemplo. Ou seja: o circo sempre nos remete a um universo lúdico recheado de teatralidade. O curso contou com um primeiro momento teórico em que Neves nos introduziu à linguagem do circo-teatro, desconhecida, como mostrado anteriormente, por praticamente toda a classe. Num segundo momento iniciamos o trabalho prático que contou primeiramente com exercícios teatrais de escuta, atenção, foco e ritmo e também com o trabalho com as máscaras neutras. Portanto, quando realizamos o exercício dos tipos, Neves já me conhecia minimamente e, antes mesmo do exercício, disse já ter certeza de qual era o meu tipo. Como Fernando Neves já imaginava, eu sou uma sobrette. 188 “Descobrir” que sou sobrette foi a constatação de algo que já intuía, sentia e imaginava. Quando assisti, antes do curso, a peça A Mulher do Trem, dirigida por Fernando Neves com a companhia Os Fofos Encenam, eu pensei que, se tivesse que escolher um papel para interpretar, escolheria Julieta, a mulher do trem, que apesar de dar título à peça não é a protagonista da história e que era interpretada pela atriz Kátia Daher. Não sabia o porquê, mas sabia que havia algo em comum entre o “jeito” de interpretar de Kátia, Julieta e mim. E foi batata: Kátia Daher também é sobrette; e como fiz Fernando Neves, nós duas somos “sobrettes de linha mesmo, daquelas que não deixam dúvidas”. Acerca desse exercício e de toda a construção de sua técnica embasada na questão da tipologia, Fernando Neves discorreu em entrevista: O temperamento tem a ver sim com a sua manifestação artística, com qual é o gatilho, qual é o estopim que vai fazer com que você tenha um brilho, vai fazer com que você trabalhe com mais fluência, mais potência determinados personagens. Mas a questão pro ator de hoje, pro ator de base acadêmica, principalmente... Eu peguei a essência da questão da tipologia pra fazer o ator entrar em contato com o seu melhor. Porque a gente tem muito modelo, né, o ator tem muito modelo: "ai, eu gosto tanto daquele ator". Mas, às vezes, não tem nada a ver com o que ele é mesmo, porque que tem a ver com temperamento. (...) Porque o circo parte disso, do temperamento, pra chegar na cena. Ele parte disso, entendendo qual é o seu lugar, onde você é mais potente. Então os exercícios que eu faço... Todos aqueles exercícios dos tipos... Na verdade é pra entender como é que o ator organiza a cena. E é isso que é importante pro ator de hoje: ele entrar em contato com a sua essência, que é o jeito que ele pensa e vê a cena e que dá a qualidade de ator que ele é. Todo esse caminho, tudo isso é pra isso. (...) Porque tudo isso, a grande importância que tem é essa questão da qualidade de ator que ele não sabe que ele tem. Ele tem quereres, ele tem modelos - todos, estou dizendo nós, atores - mas essa essência mesmo, que define a qualidade de ator que sou, eu entendi que isso existe via circo 122. Encerro aqui a parte descritiva acerca do Pavilhão Arethuzza certa de que, depois de tudo o que foi mencionado, o sucesso desta companhia não foi fruto do acaso, mas sim de um labor diário, constante, ininterrupto e profundo, iniciado ainda nos primeiros anos de vida das crianças. Ouvir as histórias narradas por Toco e Fernando Neves em entrevista, conhecer como esta família se estruturava e entender a grandiosidade artística envolvida no trabalho desta companhia foram verdadeiros presentes, os quais lembrarei por toda a vida. 122 Ibidem. 189 O panorama histórico, polítivco, econômico e social no qual o Pavilhão Arethuzza e tantos outros circos surgiram e se desenvolveram sofreu significativas mudanças, que alteraram por completo o processo de formação/socialização/aprendizagem dos artistas circenses. Mudanças estas que alteraram, por sua vez, o modo de organização do trabalho e, consequentemente, a configuração estética do espetáculo. Porém, apesar das inúmeras adversidades, algumas companhias continuam na estrada, levando a tradição circense – com a sua parte permanente, que lhe caracteriza como tal e com a sua parte inovadora, que sempre se renova e se metamorfoseia – a diversas plateias pelo Brasil. E, com certeza, uma das companhias que realiza esse trabalho com maestria na contemporaneidade é a do Circo de Teatro Tubinho, que começo a descrever a seguir. 190 3. O CIRCO DE TEATRO TUBINHO 3.1 Trajetória Para narrar a trajetória da família Tubinho foram utilizadas como fontes: as entrevistas com Zeca e os demais artistas do Circo de Teatro Tubinho, realizadas nas visitas ao circo ocorridas de 2013 a 2015 e que integraram a pesquisa de campo deste estudo; os documentários Circo de Teatro Tubinho (2006), O palhaço o que é? (2007) e Amores de Circo (2009), com produção da pesquisadora Ana Lúcia Ferraz e realização do LISA (Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo) e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo); e também o documentário Circo de Teatro Tubinho (2013), produzido pelo próprio circo, em parceria com a Esfera Produções, sobre o projeto de reelaboração de repertório do Ministério da Cultura e da Petrobrás. Também foram cedidos, gentilmente, para análise os diários de bordo pósapresentações escritos pelas atrizes Lucélia Reis e Ana Dolores ao longo dos anos de 2010 e 2011. Além disso, outras importantes fontes de dados, que caíram em minhas mãos como grandes presentes, foram o acervo fotográfico da fã da companhia Gracianna Assis (Grah Assis) e o histórico de arquivos relacionados ao Circo de Teatro Tubinho coletados durante anos pelo fã Murillo Ramos Mello. Grah Assis, que é de Itapetininga e já foi mais de cem vezes ao circo de Tubinho, desde 2013 passou a se dedicar ao registro fotográfico das peças da companhia e consentiu, gentilmente, que eu utilizasse algumas de suas fotos ao longo da dissertação e registrasse todo o acervo também no CD que consta nos anexos. Murillo Ramos Mello, desde 2011, foi mais de 130 vezes ao Circo de Teatro Tubinho, chegando a acampar por dois dias em frente ao circo para conseguir o ingresso para o último espetáculo da temporada em Votorantim (2011). Ao longo dos anos, Murillo coleciona todo tipo de material acerca do circo, como reportagens de revistas, jornais e televisão, fotos, vídeos e ofícios de prefeituras de menção honrosa. O acervo completo 191 produzido por Murillo também pode se encontrado no CD que consta nos anexos desta dissertação. Figura 37: A fã Grah Assis homenageando o ídolo Tubinho, 2014. Fonte: Página de relacionamento de Grah Assis na internet. Figura 38: O fã Murillo Ramos Mello com seu acervo do Circo de Teatro Tubinho. Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul. Sorocaba, 19/09/2014, página C2. O material produzido a partir das fontes descritas anteriormente é suficiente para compreendermos as origens desta companhia e o porquê dela se estruturar, empresarial e artisticamente, dessa forma na atualidade. Porém, não posso deixar de frisar sobre a necessidade de realização de mais estudos, sobre variadas perspectivas, acerca deste circo de teatro que vem chamando atenção na atualidade, tanto do público leigo quanto de uma parcela significativa da classe artística, principalmente da região sudeste. Esclarecimentos feitos, destaco que a trajetória da “família Tubinho” teve início em 1918, com o casamento de Juvenor Ferreira Garcia (o palhaço Caolho) e Dolores Vilaça Garcia, mais conhecida por Lola. Sabe-se apenas que Juvenor já era de família circense e que o casal trabalhou em vários circos de variedades até fundar, em 1923, seu 192 próprio circo, o “Circo Irmãos Garcia”, onde nasceram os filhos Altamar, o qual não se sabe a data precisa do nascimento, Brasilina (Lina) em 1924 e Juvenor (Juve) em 1926. Alguns anos mais tarde, o primogênito Altamar passou a trabalhar como o palhaço da companhia, recebendo o nome de Tricô. Acompanhando o movimento de transformação dos circos de variedades em circos-teatro, o circo passou a apresentar o espetáculo dividido em duas partes e recebeu o novo nome de “Circo Teatro Irmãos Garcia”. Neste circo, em 09 de maio de 1943, a trapezista Brasilina Garcia, a Lina, deu a luz a José Amilton Pereira, apelidado de Bambí, pai de Zeca. Figura 39: Lembrança retrato de Lina Garcia, s.d. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. 193 Em determinado momento, Altamar resolveu abandonar a vida itinerante e deixou o circo, sendo necessária a substituição do palhaço da companhia. Foi neste momento que o caçula dos filhos de Juvenor e Lola, Juve Garcia, criou o palhaço Tubinho na encenação Tubinho um Trapalhão, levada no Circo de Teatro Tubinho até hoje. Juve era trapezista, malabarista e mágico e, apesar de só neste momento ter se tornado o palhaço da companhia, começou a pintar a cara (como os próprios circenses dizem) aos cinco anos de idade, na cidade de Vassouras-RJ, no dia 11 de junho de 1932. A data é lembrada com carinho por todos da família, pois nesse dia quem pintou Juve pela primeira vez foi Oscar Teresa, o grande Oscarito. Bambí, pai de Zeca, contou em entrevista ao Jornal da Barra & Igaraçu, da cidade de Barra Bonita, em 19 de janeiro de 2008, que o nome “Tubinho” surgiu porque na época o vestido de mesmo nome fazia sucesso entre as mulheres. Porém, sabe-se que o palhaço Tubinho surgiu na década de 1950 e que o vestido “tubinho” foi criado pelo estilista Yves Saint-Laurent (1936-2008) na década de 1960, o que me faz ponderar a afirmação de Bambí acerca da origem do nome do palhaço de Juve. Figura 40: Juve Garcia como palhaço Tubinho na comédia Tubinho na Casa dos Fantasmas, 1960. Fonte: www.tubinho.com.br 194 Em 1959, Juve montou sua própria companhia, o “Circo Teatro Irmãos Garcia com Tubinho e sua Cia”, rodando os estados do Paraná, Santa Catarina e São Paulo. Em entrevista, Zeca não soube precisar ao certo, mas deduz-se que já nesse momento o espetáculo da companhia de Juve era composto somente pelas peças teatrais e entradas de palhaços, não havendo mais a tradicional primeira parte com a execução de números de variedades. Figura 41: Circo Teatro Irmãos Garcia com Tubinho e sua Cia, Curitiba/PR,1959. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. 195 Figura 42: Circo Teatro Irmãos Garcia com Tubinho e sua Cia. São Francisco do Sul/SC,1961. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. Figura 43: Circo Teatro Irmãos Garcia com Tubinho e sua Cia. Paranaguá/PR, 1965. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. Nesse mesmo ano, Bambí casou-se com Zilá Rosa, sendo que ambos tinham dezesseis anos. Zilá, que não era de família circense, conheceu o esposo em uma das 196 cidades pela qual o circo passou e rapidamente se inseriu no processo de formação/socialização/aprendizagem da companhia, passando a fazer parte dos espetáculos e a exercer diversas outras funções na empresa. No circo de Juve, Bambí e Zilá tiveram sua primeira filha, Ana, em 08 de junho de 1964. Os demais filhos nasceram já com este núcleo da família radicado na cidade de Curitiba: Adriana, em 28 de janeiro de 1968, Luciane em 15 de abril de 1969, Silvana em 21 de março de 1974 e o caçula José Amilton Pereira Junior, o Zeca, em 07 de fevereiro de 1980. O circo de Juve resistiu até o ano de 1978 quando fechou as portas, ou melhor, desarmou a lona, impossibilitado pelas inúmeras adversidades já citadas anteriormente nessa dissertação, que levaram à diminuição da atividade circense no país. Os membros da família que ainda estavam itinerando com o circo fixaram-se também em Curitiba e passaram a trabalhar no ramo de animação de festas e teatro infantil, criando a empresa Juve Garcia Organização de Espetáculos Teatrais. Além da empresa, a família Garcia continuou no ramo teatral e Bambí participou, por exemplo, da primeira encenação teatral após a reforma do famoso Teatro Guaíra, em Curitiba, na década de 1970. Em 1983, após sofrer três enfartes, Juve se tornou o primeiro palhaço a se aposentar no Brasil, de acordo com testemunhas e reportagens de jornal. Porém, Juve continuou a atuar com a empresa da família em eventos em escolas, hospitais, asilos e festas de aniversário. 197 Figura 44: Reportagem sobre Juve Garcia no Jornal Folha do Boqueirão, Curitiba/PR, 1998. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. Portanto, apesar da família não itinerar mais com o circo, o processo de formação artística das crianças continuou a existir, com algumas alterações, de tal forma que os cinco irmãos Pereira – Ana, Adriana, Luciane, Silvana e Zeca – sempre estiveram imersos no universo artístico. Hoje, permanecem no circo, além de Zeca, as irmãs Ana e Luciane, as quais eu tive a oportunidade de entrevistar. Ana, que usa o nome artístico Ana Dolores em homenagem à bisavó – Dolores (Lola) Garcia –, contou: Quando entrei na idade escolar, meu pai resolveu parar e radicar em Curitiba. Mas daí em Curitiba a gente continuou sempre trabalhando com teatro... Fazia festa de aniversário, fazia final de ano, visita do Papai Noel nas casas recitando 198 poesia... Eu cantava em programa de calouros... Aí a gente foi trabalhar em um programa infantil, que tinha da família Queirolo. Daí fizemos algumas peças infantis que ficavam em temporadas no Guaíra. Eu era pequena... sete anos... E cantava em restaurante também, lá em Santa Felicidade. Daí fui sempre trabalhando, geralmente com a família Queirolo e com a nossa, que era meio que junto assim o que a gente fazia. Depois... Ah, teve vários espetáculos de temporadas, que ficavam dois, três meses em cartaz. Aí fui pra companhia da Regina Vogue em Curitiba. Daí já era mais adulta, mas não tinha dezoito ainda... Aí trabalhei com o Moacir David, fiz O gato de botas, trabalhei com a Nena Inoue lá em Curitiba, quase na mesma época. O Giovani Cesconetto lançou um programa infantil na televisão e eu e meu primo, Mauricio Vogue, a gente fazia os vilões. Daí fui convidada pra itinerar, mas, assim, fazendo um espetáculo em cada cidade. Trabalhando em salão paroquial, ginásio de esporte, espaços que tinham nas cidades. Trabalhei na companhia do Fausto Cascaes... Daí eu saí e fui pro Gilmar Cambruzzi que é meu compadre – fiz um bom tempo, daí a gente fez Rio de Janeiro. Quando a gente viajava, a gente viajava com dois espetáculos, um infantil e um adulto. Não eram peças de circo de teatro, não tinha o palhaço, mas a maioria dessas pessoas que eu trabalhava, tipo Fausto, Gilmar, o Wilson, é tudo vertente daqui. Vertente porque eram pessoas que já tinham trabalhado e tinham parado com o circo e pavilhão. O pavilhão do meu primo Piska-Piska também fiz antes de vir pra cá. Daí meu pai montou um circo, bem pouco tempo, trabalhei no circo do meu pai. Daí fui pro circo do Biriba, do Geraldo Passos, do filho. E daí logo depois voltei pra Curitiba, fiz mais uma temporada em Curitiba e daí logo depois o Zeca resolveu montar o circo. Quando o Zeca montou o circo, eu não queria vir de jeito nenhum: "Não, não, eu vou ficar". Não queria mais ir pra estrada, queria ficar em Curitiba. Fui trabalhar em telemarketing lá. Aí um dia antes de a gente sair minha mãe me convenceu a ir, falou "Olha, eu não vou, você é a mais velha, tem que cuidar do seu irmão, tem que ficar com ele lá e cuidar do seu pai também". Meu pai veio e minha mãe ficou com a minha irmã em Curitiba. Daí eu falei "Tá bom, então eu vou" 123. Enquanto Ana percorria uma trajetória artística ligada à arte teatral, sua irmã Adriana, de nome artístico Adriana Segatto, se especializava na área musical, compondo e gravando CDs como cantora e Luciane se dedicava ao balé clássico. Sobre sua formação, Luciane, que utiliza o nome artístico Luciane Rosã em homenagem ao sobrenome de solteira de sua mãe (Rosa), em entrevista, contou: Eu trabalhei bastante com dança. Eu fiz treze anos de balé clássico em Curitiba, fiz oito anos com o Balé Teatro Guaíra – não a escola, mas, assim, um pouco de um grupo fora e um pouco com o Balé Teatro Guaíra. Eu trabalhava na parte da manhã com um e na parte da tarde com outro e à noite ia pra escola pra terminar os estudos. Depois quando eu estava pra fazer a banca pra ser efetivada no grupo eu não passei e fiquei, logo em seguida, grávida do Nicolas. Aí eu parei total a dança. Daí o Zeca me convidou pra trabalhar com o grupo dele, a Zezinho Produções e Promoções Artísticas. Só na sonoplastia e iluminação em 1998. Bem antes disso ainda eu já tinha feito Pinóquio, que o Dimitri (seu filho) faz agora, eu 123 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 199 já tinha feito o Marcelino (Marcelino Pão e Vinho), já tinha feito a Neli (personagem de “...E o céu uniu dois corações”) pequena nesse mesmo estilo de trabalho, só que com o Circo Irmãos Queirolo. Então eu trabalhava com eles à noite porque meu pai e minha mãe sempre estavam envolvidos com teatro também, mas aí foi quando eu entrei pra dança, dos nove anos até os vinte e dois, se eu não me engano, eu fiquei só trabalhando com dança, então não tinha envolvimento nenhum com teatro. E eu não queria entrar no palco de jeito nenhum com o Zeca. Daí quando estava montando o Gnomos - Uma Aventura Encantada ele me chamou pra atuar. Eu falei "Zeca, não quero entrar no palco"... Eu era hiper tímida, falar pra mim era a coisa mais difícil do mundo. Daí o Zeca chegou e falou "Ó, tô precisando de uma atriz, vamos tentar, você ensaia uma semana e se você ver que não dá, não dá, beleza”. E eu peguei e fiz naquele ano o Gnomos pra ele e nesse ano eu fui indicada como melhor atriz do Paraná – só indicada, né, não ganhei, mas pra mim já foi um grande prêmio! Porque não tinha nada a ver com teatro e acabei sendo indicada. Daí eu falei assim "Então acho que é o meu caminho agora, tenho que seguir por aí". Comecei a fazer o Gnomos e aí já veio em seguida o Te Pego Lá Fora que eu fiz outra personagem e também gostei muito de fazer. Daí o Zeca inventou a ideia de sair com o circo. Quando eu trabalhava com luz e som o Nicolas era pequenininho e ele sempre seguia com a gente em todos os espetáculos e eu falei "Ah, acho que é um bom caminho pra ele também, já tá envolvido...", daí eu falei "Ah, topo"... E o Nicolas desde pequenininho seguindo junto com a gente, daí eu falei "Vamos embarcar nessa!" 124 . Zeca estreou como palhaço aos dois anos. A imersão no universo circense e teatral no qual vive desde que nasceu pode ser significativamente compreendida através da passagem de uma entrevista em que Zeca afirmou: “Eu pinto o rosto desde os dois anos de idade. Toda minha família é circense, então sempre acompanhei ela desde pequeno. Nunca decidi ser palhaço, apenas sou”125. 124 125 Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. Declaração de Zeca ao jornal O expresso - Edição Especial. Piraju, 3/07/2005, página 4. 200 Figura 45: Zeca de palhaço na infância, s.d. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Zeca, então, cresceu em meio a uma família de atores e desde pequeno demonstrava talento para a profissão. Sua avó Lina contou em entrevista que, certa vez, levou Zeca para tomar sorvete e que na volta o ônibus quebrou. Os passageiros, então, tiveram que esperar o conserto e Zeca aproveitou a aglomeração de pessoas, que virou sua plateia, para contar diversas piadas. Lina narrou: “Ele deu um show. Contou piada após piada e entreteve os passageiros. Eu não me cabia de orgulho ao ver as pessoas se Figura 46: Lina Garcia, avó de Zeca. Fonte: Jornal O Eco, Lençóis Paulista, 2007 – arquivo Murillo Ramos Mello. 126 esborrachando de rir. Cheguei em casa e contei para todo mundo da família”126. Em 1994 Zeca, com apenas catorze Declaração de Lina Garcia ao Jornal ECO. Lençóis Paulista, 6/01/2007, página E3. 201 anos, e a irmã Silvana fundaram a companhia de teatro Zezinho Produções e Promoções Artísticas. Ao longo dos anos, a companhia se destacou no cenário teatral paranaense, sendo vencedora de quatro troféus Gralha Azul – um dos mais importantes prêmios teatrais do Paraná – com os espetáculos O elefantinho que caiu do rabo do cometa (melhor figurino infantil de 1998), Em busca da paz (melhor espetáculo adulto itinerante de 1998), Gnomos – uma aventura encantada (melhor espetáculo infantil itinerante de 2000), e Te pego lá fora (melhor espetáculo adulto itinerante de 2002). Figura 47: Zezinho Produções e Promoções Artísticas, s.d. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. Em 1994, três dias antes de falecer, Juve, já no hospital, passou o nome do palhaço Tubinho a seu sobrinho, Zeca, que sonhava com a vida no circo, narrada constantemente nos encontros familiares. Em entrevista Zeca contou que o tio-avô lhe 202 disse: “Eu não tenho dinheiro nenhum para lhe dar, então a herança será meu personagem” 127 . Até o ano de 2001, Zeca, suas irmãs e seu pai continuaram a se apresentar com a companhia itinerante. Segundo Luciane Rosã: O grupo saía nas cidades e voltava pra Curitiba. Saía em turnê, fazia algumas cidades e voltava pra Curitiba. (...) Um pouquinho antes de o Zeca ter o circo, ele fez em Araucária – não lembro o nome da cidade, mas acho que Araucária – ele fez, num teatro, uma peça de mesmo estilo do circo. Ele de palhaço, com o Valdir (Riccielly Lunardi) de escada, eu trabalhando com ele... E daí deu pra gente sentir mais ou menos, né? Daí depois disso saiu com o circo. Então primeiro a gente se preparou ali no teatro e tal e aí deu o clique no Zeca e ele disse "É isso que a gente tem que fazer, é isso! A gente tem que montar o circo e sair!" 128. Zeca tinha, então, apenas dezenove anos quando decidiu remontar o circo da família. Ana Dolores narrou em entrevista as circunstâncias em que ocorreu a retomada do circo por Zeca, o que nos dá a dimensão do tamanho de sua ousadia: Quando o Zeca resolveu montar o circo - eu acho que o Zeca é muito ousado, ele não tem medo de se atirar nas coisas. A gente trabalhava nesse estilo itinerante, ele tinha uma companhia que itinerava. (...) Aí a gente tava passando por Ararapoti e foi uma loucura o espetáculo! Daí a gente saiu pra jantar com o pessoal da produção local, que tinha produzido o espetáculo. Daí o Zeca pegou e falou assim "Olha, eu tô querendo trazer meu circo pra cá e fazer uma temporada, né?”. Mas ele não tinha circo! Daí o cara falou "Não, beleza, tal... Que bom, cultura na cidade e tal". Não lembro exatamente, mas parece que ele falou assim "Então tá bom, daqui a quinze dias eu estreio". Isso sem ter nada! Nada! Nem um prego! Não tinha um prego! E a gente só se olhou e falou "O Zeca é louco... não vamos vir, né? Ele deve tá só jogando conversa fora”. Terminamos a temporada na estrada, voltamos pra Curitiba e ele já saiu pra arrumar as coisas... É lógico que a estrutura era de madeira, mas era uma loucura. A frente da minha casa virou oficina e gente pintando cenário... E gente que foi atrás de uma lona barata pra comprar, aí montou esse circo que era bem pequenininho - cabia o quê? Acho que 150 a 200 pessoas dentro ou nem isso. E estreamos no dia que ele falou pro cara lá. (...) E a companhia era muito pequena, acho que a gente era em 9 ou 10 pessoas. O circo era do tamanho da marquise que a gente tem hoje, só que o palco era pra fora, né? A lona era só pra plateia. O palco era uma estrutura de zinco pra fora da lona. Uma loucura! 129. 127 Declaração de Zeca à revista ET 205 nº 850. Barra Bonita, 10/01/2008. Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 129 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 128 203 Dessa forma, no dia 29 de junho de 2001 estreava na cidade de Arapoti/PR o novo Circo de Teatro Tubinho, numa pequena lona de 10x16m, com o palco italiano como área cênica e o espetáculo composto pela apresentação de uma peça teatral, às vezes seguida de um esquete. Figura 48: Pereira França Neto (Zeca), o atual palhaço Tubinho. Fonte: www.tubinho.com.br Figura 49: Primeira lona do novo Circo de Teatro Tubinho, s.d. São Francisco do Sul/SC, 02/11/2001. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. 204 Figura 50: Terceira lona (primeira nova) do Circo de Teatro Tubinho, s.d. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. O fato de Zeca não ter visto o circo de sua família em atividade poderia ter desconectado o novo Circo de Teatro Tubinho da tradição do antigo. Porém, Zeca contava com o apoio incondicional de seu pai, Bambí, que compunha o elenco do antigo circo e que resgatou, de sua prodigiosa memória, dezenas de peças do repertório da família. Além disso, Zeca e suas irmãs já tinham certa intimidade com a linguagem do circo-teatro pelas passagens que tiveram pelo pavilhão, chamado Teatro Popular de Curitiba130, do primo da família Gilson Oliveira, o palhaço Piska-Piska. Completando o repertório da nascente companhia de circo de teatro, havia também as peças já encenadas com a Zezinho Produções e Promoções Artísticas. Afora tudo isto, Zeca ainda contou com o auxílio precioso do ator Riccielly Lunardi, que desenvolveu um papel fundamental nesse momento inicial da companhia. Riccielly Lunardi, nome artístico de José Chaves Viana, também conhecido como Valdir, já possuía uma extensa carreira no circo de teatro e foi responsável por passar ao nascente elenco do Circo de Teatro Tubinho diversas peças e esquetes, levados ao palco até hoje. Riccielly narrou em entrevista sua trajetória artística até chegar ao circo de Zeca: 130 Atualmente, Gilson Oliveira continua atuando como palhaço Piska-Piska no Circo-Teatro Piska Piska, que percorre o sul do país. 205 Bem, eu entrei pro teatro por necessidade, por sobrevivência. Com 13 anos eu era menino de rua em Tupanciretã, interior do Rio Grande. Por um desentendimento de família, acabei morando na rua durante três ou quatro anos. E naquela época passou na minha cidade um pavilhão de teatro onde eu consegui emprego pra vender as virações lá dentro. Aí pra mim foi ótimo, nossa! Eu morava na rua, passava fome, eu fazia pequenos furtos pra sobreviver, aquela vida de moleque de rua. E quando eu entrei pro pavilhão foi outra realidade, eu tinha onde dormir, eu tinha onde comer na hora certa. Aquela vida maravilhosa, cheia de gente, aquele povo maluco, muito legal! Aí chegou a hora deles irem embora e eu caí em prantos pedindo pra eles me levarem, né? Aí o proprietário veio até a casa da minha mãe, conversou com ela e me levou junto. Foi a forma que eu ingressei no teatro. E aí logo eu estava no palco fazendo os papéis de menino e tal, estreei no Ébrio, o menino que jogava pedra nos bêbados (risos). Entrei em cena e fiquei paralisado olhando pra plateia e dali eu fui conhecendo as outras companhias, assistindo aqueles espetáculos da época - que hoje poucos levam. Isso há trinta e sete anos... Daí eu fui aprendendo, com dezoito eu já fazia esses velhos de comédia, caracterizados. E abri um bom espaço, conheci praticamente todas as companhias do sul do país. Aí depois eu vim conhecer o teatro Biriba, em Santa Catarina – onde trabalhei por muitos anos também. E sempre ia um pessoal de Curitiba nos visitar, falavam "Pô, vocês têm que ir pra Curitiba, tem muito campo, você pode fazer um teste lá e tal". Aí com o passar do tempo eu resolvi ir embora para Curitiba, mesmo conhecendo pouca gente, né? Fui, aluguei casa, mas não consegui sobreviver do teatro em Curitiba. Aí fui fazer outras coisas e abri uma firma, uma empresa de teatro e aí comecei a trabalhar com projetos e fazer espetáculos pra escolas e foi aí que eu conheci o Pereira França Neto, o Zeca, que também fazia isso, tinha um grupo pra se apresentar em escolas e tal e eu acabei ingressando no grupo dele. E no Natal eles faziam umas festas na frente da casa deles onde ele pintava a cara, levava alguns esquetes e contratava shows musicais e ele conseguia com vereadores, com pessoas influentes no bairro, doações de presentes, doces, cestas pra dar pra crianças carentes e foi aí que pela primeira vez a gente trabalhou junto como palhaço e escada. Ele me convidou pra participar e a gente montou um esquete e, puxa, deu super certo, né? Gostei muito do palhaço dele e aí ele bem novinho ainda. E aí a gente começou a fazer uns trabalhos juntos, tipo show em pizzaria (risos) e ele de palhaço. Verdade! Tinha lá uma pizzaria inaugurando, eu ia lá e arrumava um contrato pra gente e era por pizza (risos). Mas era divertido. E aí logo naquele mesmo ano ele monta um circo. Aí ele foi lá em casa e falou "Puxa, Riccielly, comprei um circo" e eu falei "É mesmo?", "E quero que você vá fazer palhaço pra mim". Aí eu lembro que eu falei pra ele "Cara, palhaço tem que ser o proprietário do circo. Digamos que eu aceite e faça o palhaço pra você, amanhã ou depois eu vou embora e o nome que tá lá na frente desanda, né?” Mas ele falou "Puxa, eu não tenho experiência toda pra manter uma companhia, pra ir a frente com um espetáculo. Você vai comigo?". Como eu tinha minha vida em Curitiba eu falei "Olha, eu faço a primeira praça com você”, que era Arapoti. “Eu faço a primeira praça, pra você pegar um pouco de experiência, passar o que eu sei e daí”... Bom, eles foram na frente, montando, e eu cheguei dois dias antes da estreia. Eu lembro que era em frente a rodoviária, daí eu desci do ônibus e olhei pro outro lado da rua e fiquei espantado, eu disse "Meu Deus!" (risos). O circo era tão pequeno que o palco ficou pra rua (risos). Teve que jogar pra rua porque senão não cabia a plateia. Era muito pequeno mesmo. Eu chuto em 150 lugares, eu acho. Ah, tudo bem, foi uma luta, começamos ensaiar as comédias e foi tudo muito bem, porque estreamos e a temporada toda foi lotada. Aí como combinado, eu voltei pra Curitiba, até então 206 eu tinha deixado minha família lá, né, minha esposa e as crianças tudo. Voltei pra Curitiba e ele seguiu em frente. E eu também não fiquei muito tempo em Curitiba, eu acabei separando e tal e ficou difícil, eu fiquei com os quatro filhos e tal. “Puxa, como que eu fico em Curitiba com quatro crianças pequenas, como que eu saio pra trabalhar?” Fiquei meio desarmado, sem chão, falei: "Circo teatro! Que é mais fácil criar os filhos”. Acabei voltando pra Santa Catarina e lá montei na época com um amigo o Circo Teatro Bolinha, onde eu fazia o palhaço Bolinha e isso foi por cinco anos. Aí o Zeca começou a me ligar "Poxa, vem pra cá, tô precisando de um escada e tal". Aí na época não deu, porque eu não tinha como largar a companhia que eu estava, mais um ano e aí eu acabei chegando em Avaré. E tô até hoje 131. Zeca, Ana Dolores, Luciane Rosã e também Riccielly Lunardi possuíam experiências anteriores com companhias de circo-teatro do Sul do país, de modo que o Circo de Teatro Tubinho, apesar de percorrer atualmente o interior do estado de São Paulo, acabou por advir dessa espécie de “escola sulista” de circo-teatro, que se autodenomina circo de teatro. A semelhança existente nas caracterizações dos palhaços – que pode ser conferia abaixo – em consonância com diversos elementos da dramaturgia, encenação e interpretação dos atores acabaram por conformar certa linguagem e estética que caracterizam esta “escola”. Abaixo, de cima para baixo, da esquerda para direita temos os palhaços Teteco Teleco (Vanderlei Machado), Tubinho (Pereira França Neto), Piska Piska (Gilson Oliveira), Bebé (Renato Almeida), Bileco (Silvio Moreno), Serelepe (Marcelo Almeida) e Biribinha (Franco Adriano Passos): 131 Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 207 Figura 51: Os palhaços Teteco Teleco, Tubinho. Piska Piska, Bebé, Bileco, Serelepe e Biribinha. Fonte: Página de relacionamento de Morgana Lunardi na internet. Na primeira temporada em Arapoti, o Circo de Teatro Tubinho contava com o seguinte elenco: Pereira França Neto (Zeca), seu pai Bambí, suas irmãs Ana Dolores, Luciane Rosã e Silvana Rosa, seu sobrinho Nicolas Alexandre e seu primo Jailson Martins; além de Ricciley Lunardi, Hélio de Aquino, Priscila Aquino, Samira Esber e Antônio “Vermelho”. 208 Figura 52: O elenco do Circo de Teatro Tubinho (com exceção de Bambí, Silvana Rosa e Jailson Martins) em sua primeira praça em Arapoti/PR, 2001. Fonte: Jornal Folha de Londrina - arquivo Murillo Ramos Mello. Figura 53: Primeiras praças do Circo de Teatro Tubinho, s.d. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. Figura 54: Bambí, pai de Zeca, nas primeiras praças do circo, s.d. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. 209 Figura 55: Primeiras praças do Circo de Teatro Tubinho, s.d. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. Figura 56: Primeiras praças do Circo de Teatro Tubinho, s.d. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. 210 Nas primeiras praças os artistas ainda não possuíam trailers e carretas para morar; dessa forma, alugava-se uma casa em conjunto na cidade onde o circo se estabelecia e os cômodos eram, muitas vezes, divididos apenas por lençóis. Mesmo com a estrutura relativamente simples, o Circo de Teatro Tubinho continuou dando seus primeiros passos até que, no início de 2002, na cidade de Timbó/SC, um temporal o destruiu por completo. Ana Dolores narrou: Em Timbó, antes da gente perder tudo, a gente pegava temporal assim, de três em três dias... E caía, o circo caía, porque o circo era de lona leve. A estrutura não segurava, qualquer vento derrubava. E ele derrubava e cinco horas da tarde a gente ia pro terreno, levantava ele e trabalhava as nove. Eu lembro que o primeiro temporal que a gente pegou em Timbó foi um dia depois da estreia. A gente tava ensaiando à tarde e a gente só viu o circo levantar e corre todo mundo. A gente saiu pra fora do circo, eu lembro do elenco todinho no outro lado da calçada, todo mundo chorando porque a gente tinha... Super “punk” assim pra montar, porque a gente não tinha muito feeling ainda de saber, então demorava mais pra montar. A gente tava mesmo num aprendizado de tudo, desde montagem, desde tudo. (...) E daí eu lembro do elenco todinho chorando do outro lado da rua e vendo o circo cair, tipo... "Não vai dar pra trabalhar à noite, né?", daí um olha pro outro e "Vamos trabalhar, vamos pegar". E levantava, costurava a lona na mão. A gente colocava a lona no colo, assim, e ficava aquela fila, todo mundo costurando a lona, pra por pra cima de novo. Mas daí a gente pegou um temporal e não teve jeito, perdeu tudo, tudo, tudo... Não sobrou nem cadeira 132. O Circo de Teatro Tubinho não tinha condições de seguir em frente e a única alternativa restante era voltar para Curitiba, porém não havia recursos nem para isso. Ana Dolores completou: Aí quando caiu tudo em Timbó, o dono das lavadoras Mueller passou na frente do nosso circo e ele tinha amizade com a família Moreno há tempos atrás, quando ele viu o circo dos Moreno, sabe? Ele gostava muito de circo e tal, daí ele falou que era pro Zeca ir até a firma dele que ele queria falar com ele. Daí o Zeca foi lá, aí o dono da Mueller falou "Olha, eu não sei o que eu posso fazer pra ajudar, mas eu vou te dar esse cheque pra você comprar uma lona nova". Aí o Zeca pegou o cheque e começou a ligar pras pessoas pra ver o preço de lona e tal. E o valor não dava, o valor do cheque não dava pra comprar a lona. O Zeca voltou na Mueller e foi devolver o cheque pro dono e o Zeca falou "Olha, você me deu esse cheque pra eu comprar a lona e não vou conseguir. Então eu não acho justo eu ficar com o cheque"... E foi devolver. Aí o dono da Mueller falou "Eu tenho anos de firma, eu nunca vi alguém fazer uma coisa dessas. Então você vai pegar esse cheque e 132 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 211 vai fazer o que quiser com ele". E daí foi com esse cheque que a gente conseguiu sair de Timbó e trazer o material pra Curitiba, mudança de casa, tudo. (...) Voltamos pra Curitiba, daí o Zeca reuniu o elenco do circo e falou "Ó, não tenho grana. Tô quebrado, mas quero voltar com a lona. Então eu vou sair e fazer espetáculo nas cidades onde a gente passou, em ginásio, salão de igreja, pra juntar grana pra pagar a lona. Mas eu não tenho como pagar o cachê de vocês, eu vou pagar o cachê de vocês só quando estrear o circo”. E assim, rezando pra dar certo, né? Na primeira praça que a gente fez, ele já conseguiu pagar todo mundo e conseguimos comprar a lona, levantar de novo e daí foi indo, foi indo, até ficar na estrutura que tá aí, graças a Deus 133. Depois da primeira lona destruída em Timbó que, de tão pequena, não abrigava nem o palco, Zeca conseguiu adquirir uma lona usada de 18x16m. O circo começou a prosperar e comprou-se, então, uma lona nova de 18x24m, seguida de uma de 20x26, outra de 18x24, mais uma de 20x26 e uma maior de 20x30. Esta última (mostrada nas figuras abaixo) era quadrada e alta, de modo que o som se dispersava facilmente, atrapalhando o entendimento das falas dos personagens por parte do público e prejudicando o aparelho fonador dos artistas. Por isso, Zeca optou pela troca por outra lona, também de 20x30m, porém redonda e mais baixa. Figura 57: Interior da antiga lona do Circo de Teatro Tubinho, 2007. Fonte: http://www.saoroque.sp.gov.br/noticias/noticia.asp?id=869. Acesso em: 13 set. 2013. 133 Ibidem. 212 Figura 58: Antiga lona do Circo de Teatro Tubinho, 2008. Fonte: http://www.panoramio.com/photo/26804236. Acesso em: 13 set. 2013. Uma curiosidade: durante a minha primeira visita da pesquisa de campo ao Circo de Teatro Tubinho, atuei na peça Tubinho na Casa do Nenonho e durante uma cena com a temática da paquera, Zeca, como Tubinho, fez uma piada que comparava as medidas da silhueta de minha personagem a um carro (“18x24, carroceria frouxa e buzina dupla”). Após o espetáculo, Zeca contou que esta é uma piada comum entre os circenses e que, segundo a tradição, essas medidas descritas são consideradas como o tamanho ideal de uma lona de circo-teatro. A atual lona do Circo de Teatro Tubinho tem 20x30m e abriga seiscentos espectadores. Zeca disse que prefere a lona considerada do tamanho ideal, porém utiliza uma maior devido ao grande número de espectadores presentes todas as noites. Além disso, na entrada do circo há uma lona menor, de 10x16m, chamada por eles de marquise. Essa lona, que hoje comporta apenas a lanchonete, tem exatamente o mesmo tamanho da primeira lona do circo destruída em Timbó/SC, o que nos dá a dimensão do crescimento da companhia ao longo desses anos. 213 Figura 59: Circo de Teatro Tubinho. Boituva, 2013. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Figura 60: Circo de Teatro Tubinho. Boituva, 2013. Fonte: Arquivo pessoal da autora. 214 Figura 61: artistas lavando a atual lona do Circo de Teatro Tubinho. Boituva, 2013. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Figura 62: interior da atual lona do Circo de Teatro Tubinho. Boituva, 2013. Fonte: Arquivo pessoal da autora. 215 Assim sendo, ao longo desses treze anos, o circo prosperou significativamente e hoje é formado por uma grande família de, aproximadamente, cinquenta pessoas, entre adultos e crianças. O tamanho do elenco cresceu de tal forma que, para conseguir a foto abaixo, Zeca e eu tivemos que marcar um horário especialmente para isso, que acabou se transformando numa cena digna das melhores comédias da trupe: sempre estava faltando alguém no palco, pois quando o que estava faltando chegava, outro tinha saído por algum motivo! Depois de muitas risadas e correrias consegui, finalmente, fotografar o atual elenco do Circo de Teatro Tubinho e registrar o crescimento da companhia desde a primeira praça em Arapoti/PR: Figura 63: atual elenco do Circo de Teatro Tubinho. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Atualmente, o repertório da companhia conta com mais de cem peças, já vistas por um público superior a um milhão de pessoas. Todas as noites uma peça diferente é 216 apresentada – com exceção de quarta-feira, o dia de folga da companhia –, em um programa de duração média total de duas horas. Ao longo dos anos, o Circo de Teatro Tubinho transitou entre os mais diversos meios de comunicação e empreendimentos, de modo que Tubinho lançou CD, livros de piada, ganhou seu próprio boneco e sua série de histórias em quadrinhos, um programa semanal na emissora SBT e chegou aos cinemas, na produção independente Tubinho, o rei do gatilho. Em 2014, o Circo de Teatro Tubinho bateu seu recorde de tempo de permanência numa mesma cidade, ao fazer uma praça de oito meses na cidade de Sorocaba/SP. Figura 64: Zeca em Senta que o Tubinho vai entrar. Sorocaba, 2014. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. 3.2 Processo de formação dos artistas do Circo de Teatro Tubinho O Circo de Teatro Tubinho, assim como tantas outras companhias circenses, possui um elenco múltiplo, agregador de artistas advindos das mais variadas “escolas”. Alguns destes artistas, descendentes de família circense, já possuíam experiências 217 anteriores no circo de teatro, outros não eram de circo, mas já eram atores com uma formação ligada ao teatro oficial e outros ainda não tinham nenhuma formação artística e resolveram seguir com o circo após a passagem deste pelas suas cidades. Isso sem contar a nova geração formada pelos filhos de todos esses artistas, entre crianças, jovens e adolescentes. Porém, apesar de advirem dos mais variados meios, ao se inserirem nesta companhia, estes artistas passaram a participar de um mesmo processo de formação e de um modo específico de organização do trabalho. Com relação ao modo de organização do trabalho, destaco que, no início do Circo de Teatro Tubinho, como o elenco era pequeno e as adversidades grandes, todos aprendiam e executavam as mais variadas funções necessárias à sobrevivência da companhia. Hoje, após muitos anos de dedicação e trabalho, como a família cresceu significativamente, todos continuam aprendendo essas funções, porém a companhia conseguiu se organizar de tal forma que estas se tornaram mais específicas. Dessa forma, há responsáveis pela organização e limpeza das cadeiras da plateia, pela organização e distribuição dos figurinos, pela montagem dos cenários das peças, pela produção e venda das comidas e bebidas na lanchonete, pelas refeições do elenco, pela propaganda com o carro de som, etc. Há essa divisão, porém, se for necessário, todos podem executar qualquer uma dessas funções. E mais: na hora do espetáculo todos os adultos trabalham, seja no palco, lanchonete, bilheteria, estacionamento ou na loja onde se vende produtos do circo, como canecas, camisetas, DVDs, CDs e livros. Quanto ao processo de formação artística empreendido pela companhia, devo destacar alguns pontos. Com relação à família consanguínea de Zeca, ressalto que este processo é anterior à retomada do circo em 2001, isto porque Zeca e suas irmãs cresceram em meio a uma família de artistas circenses que, apesar de não itinerar mais com a lona, nunca parou de atuar nos mais variados ramos e meios artísticos. Portanto, parte do processo da formação artística desenvolvido anteriormente no circo da família manteve-se, fazendo destes membros, que retomaram o circo em 2001, depositários de alguns dos saberes das gerações mais antigas. 218 Porém, apesar de estarem sempre envolvidos no meio artístico, Zeca e suas irmãs – com exceção de Ana Dolores – não conheciam tão especificamente as chamadas peças tradicionais de circo-teatro, que integravam o repertório do circo da família. Eles já haviam tido alguma experiência nesse sentido com o circo de teatro do primo Gilson Oliveira, o Piska-Piska, porém para montar um circo próprio era preciso mais. Dessa forma, neste início do circo, a ajuda e a troca mútua de experiências entre todos os artistas foram fundamentais para a consolidação da companhia, sendo Zeca a figura artística e administrativa centralizadora e seu pai Bambí, sua irmã Ana Dolores e também Riccielly Lunardi os principais responsáveis pela transmissão dos ensinamentos necessários à cena e à vida circense. Nesse sentido, como já dito anteriormente, Riccilley Lunardi desenvolveu um papel fundamental neste processo, ao ser responsável por passar para os atores diversas peças que integram até hoje o repertório da companhia. Além disso, ele auxiliava, sempre que necessário, os atores em suas interpretações, assumindo a função, segundo Luciane Rosã, de uma espécie de diretor teatral. Ela também contou em entrevista: Quando o Zeca montou em Arapoti quem dirigia as peças era o Valdir, o Ricciley Lunardi. Então como ele dirigia as peças, eu sempre trocava muita figurinha com ele, e ele falou "Ó, segue por esse caminho, vê o que é melhor aqui, tenta fazer assim, tenta fazer assado", ele que me dava mais ou menos a... Porque a Ana, ela já vinha com uma bagagem de espetáculos e o Zeca também tava começando, então eu ficava pensando assim "Puxa vida, se eu chegar e perguntar pra Ana...", ela tá pegando os papeis mais “fodex” 134 que tinham, tipo as velhas caricatas e pra ela também era tudo novo nesses personagens novos, né? E eu não queria, tipo, atrapalhar o trabalho deles que eles tavam tendo com outros personagens deles pra eu chegar e "E daí, como que é e tal?". Então como o Valdir já tinha uma puta bagagem trabalhando e tal e tava dirigindo os espetáculos, achei que ele era a pessoa mais indicada pra me ajudar. E ele me deu um norte, assim, norte, sul, leste, oeste... Foi ele que abriu minha cabeça me mostrando que era possível eu fazer os personagens que eles tavam me dando e o Valdir me deu todos esses caminhos pra poder trabalhar. Eu agradeço muito o Valdir. Claro que sempre quando tinha alguma coisa que o Valdir não podia ajudar, a gente trocava figurinha também com os outros atores, com a Ana mesmo, com o Zeca mesmo. E o Zeca sempre falava bastante coisa "Faz isso, faz aquilo" e daí eu sempre pesquisando também, tentando me ajudar também, porque era tudo muito novo pra mim 135. 134 135 Bordão criado por Zeca, como Tubinho, usado comumente no dia-a-dia do circo. Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 219 Figura 65: Luciane Rosã como Cinderela em Cinderela. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Riccielly Lunardi, em entrevista, contou que o que mais lhe chamava a atenção nesse início do circo, e que o emociona até hoje, eram a vontade, a garra e a determinação de todo o elenco: O Pereira França Neto mesmo, ele não conhecia as piadas, as comédias. Mas, puxa! O que tu passava pra ele, fazia na hora e tal. E eu e a Ana, digamos que tínhamos mais experiência. A Ana já tinha passado por várias companhias também e já tinha tido esse contato com o circo-teatro, né? E eu a vida toda! Então, puxa, eu tive o prazer, a honra de ver vários atores, que hoje já não estão entre nós, né? Então eu via cada um, então eu tinha essa bagagem farta de experiência que eles me passaram ao longo desses anos - que eu fui passando pro Pereira França Neto. Tinha comédias que eu tinha que puxar a piada dele, puxar a piada, fazer a volta rapidinho por trás dele e sussurrar pra ele o desfecho no ouvido (risos). Mas era muito divertido e funcionava muito bem! 136 136 Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 220 Figura 66: Riccielly Lunardi em Tubinho e todo mundo em pânico. Itapetininga, 2015. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Além de Riccielly Lunardi, Ana Dolores também desenvolveu um importante papel na formação do Circo de Teatro Tubinho, pois era a irmã mais velha da família Pereira e a única a nascer no antigo circo da família, estando inserida completamente durante alguns anos da infância no processo de formação/socialização/aprendizagem daquela companhia. Em entrevista, Ana narrou: Eu nasci no terreno, porque não deu tempo de ir pra maternidade. A primeira vez em que eu subi no palco... A minha primeira entrada em cena fazendo personagem foi com uma semana no Direito de Nascer... E daí eu não parei mais, né? 137 Depois da família se radicar em Curitiba, Ana Dolores continuou a trabalhar na área teatral e foi uma das pessoas da família que mais teve contato com a linguagem especificamente do circo-teatro, com as companhias de Gilson Oliveira, o palhaço Piska Piska, e de Geraldo Passos, o Biriba. Dessa forma, Ana Dolores foi uma das responsáveis por transmitir os ensinamentos necessários à cena e à vida no circo, tanto aos adultos quanto às crianças que passavam a integrar o elenco da companhia. 137 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 221 Figura 67: Ana Dolores e Zeca em Tubinho, o macumbeiro de Sorocaba. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Em entrevista, Angelita Vaz, esposa de Zeca, citou a importância de Ana em sua formação. Angelita não é de família de circo, mas fazia teatro desde a adolescência. Em 1996, ao fazer um estágio de um curso profissionalizante de atores como contrarregra no Teatro Guaíra, em Curitiba, conheceu Dona Zilá, mãe de Zeca, que trabalhava no teatro como camareira. Dessa forma, Angelita convidou Zeca, que já tinha a empresa Zezinho Produções e Promoções Artísticas, para trabalharem juntos na animação da festa de aniversário de um primo. Logo depois, Zeca trabalhou com seu primo Gilson Oliveira e, em seguida, montou seu próprio circo. Em 2001, Angelita estava cursando a faculdade de Arte e Educação e, como estava de férias, resolveu visitar o amigo Hélio de Aquino, que trabalhava no circo de Zeca. Nesse momento, Zeca precisava de uma atriz para seu elenco e Angelita acabou participando de algumas peças. Porém, a praça que Angelita atuou foi justamente a de Timbó/SC, quando o circo foi destruído por um temporal. Todos voltaram para Curitiba e, quando Zeca resolveu recomeçar, Angelita trancou a faculdade e seguiu com a companhia. 222 Porém, nesse primeiro momento, enquanto se inseria no processo de formação e aprendizagem da companhia, Angelita – assim como ocorre com muitos outros recémingressos na vida circense – não começou a trabalhar no palco, e sim em outras funções, como na cozinha e bilheteria. Em entrevista, Angelita contou como se deu o início dos trabalhos como atriz no circo e de que modo Ana Dolores lhe auxiliou nesta nova vida: Angelita Vaz: Na hora que o Zeca montou o circo de novo eu resolvi voltar. Tranquei minha faculdade e voltei. Assim pros meus pais na época foi terrível. Não tinha nada. Era muito precário. A gente dormia todos juntos. Chegava a separar tudo por lençol, sabe? Era tudo muito precário, então, meu pai principalmente falava assim “Você tá estudando, vai se formar, vai pegar um diploma, tal. Porque você tá passando por tudo isso? Não precisa!”. Porque na época, nem no palco eu trabalhava, eu ficava trabalhando na cozinha. Fernanda Jannuzzelli: E o que te fez voltar? Angelita Vaz: (...) Acho que foi um encanto entendeu? Eu me encantei assim, porque apesar de ser tudo tão difícil, o que me fascinou, eu como fazia teatro, quem faz teatro e vem pra cá fica fascinado, você poder trabalhar todo dia num espetáculo diferente. Um lance de você querer mudar. Quem trabalha com teatro tem isso mesmo. Mas a minha intenção, na realidade, não era ficar. Era passar um tempo, ver qual que era a do trabalho. Normal assim. A minha intenção era passar um tempinho e depois voltar, retomar minha faculdade, enfim. Então eu acabei ficando. Tinha poucas pessoas, então, por exemplo, eu ficava na cozinha, eu fazia porta, ficava na bilheteria, depois corria lá pra trás, aí subia em um esquete ou outro. Na época eu adorava esquete porque eu sabia que era a única hora que eu podia trabalhar, sabe? Mas por quê? Como eu tinha chego naquele momento, eu não conhecia os espetáculos... (...) E com o tempo eu comecei a ganhar peças, porque o Zeca sempre brincou assim: em time que tá ganhando, não se mexe. Então o circo tava caminhando bem... Você que tá acompanhando o circo, Fer, pode ver, dificilmente ele muda o ator que faz os personagens. Só que às vezes acontece de um ator substituir outro, porque um tá doente ou porque teve de viajar. Os meus personagens eu consegui ir conquistando nessas andanças assim. “Ah, fulano não tá se sentindo bem”. “Ah, põe a Angelita pra substituir”. E isso acontece até hoje. O Zeca dá a oportunidade. Se a pessoa foi bem, puxa vida! Esse ficou bem, aí fica no personagem, pode ficar. Então foi isso que acontecia sabe, foi mesmo de oportunidade. (...) E quem me ajudou muito, muito mesmo assim, tem que falar “muito” muitas vezes, foi a Ana. Eu pegava a Ana pra me ajudar com o texto, com o personagem e ela pra dar essas dicas de tudo! Tudo que você pode imaginar! Até pra maquiagem. E toda vez que terminava o espetáculo, eu chegava nela e falava “Como foi?” Ai ela falava “Ó, você errou nisso, naquilo você acertou”. Nossa, sem a Ana... A Ana ajudou muito, muito quem tava começando. Porque ela já tinha uma estrada né? E o Zeca não tinha muito esse perfil. Ele se preocupa ali em cena sabe, em pensar em fazer piadas... Ele não tem muito esse perfil de pegar um ator e ensaiar... E a Ana já tem mais esse perfil. Então ela me ajudou muito mesmo. Muito do que eu aprendi aqui eu devo a ela. 138 138 Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 223 Hoje, Angelita Vaz trabalha quase todas as noites no palco, assumindo os mais diversos papéis que servem de escada ao palhaço. Além disso, é responsável por toda a parte financeira e administração interna do circo, além de ser a esposa de Zeca e cuidar de seus quatro filhos, Victor, de seu primeiro casamento, Alexandre e Lívia, do casamento com Zeca e Maria Eduarda, sua enteada. Figura 68: Angelita Vaz e Jailson Martins Tubinho, o Todo Poderoso. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Acerca ainda do papel de Ana Dolores na formação dos artistas do Circo de Teatro Tubinho, cito também o exemplo de Cristina Martins, que não era de família de circo e conheceu seu marido Dionísio Martins – primo de Zeca – aos quinze anos. O casal trabalhou por dois anos no circo de Gilson Oliveira e, após alguns anos morando em Curitiba, em 2002 passou a integrar o elenco do Circo de Teatro Tubinho. Cristina contou então, em entrevista, sobre o auxílio que recebeu de Ana: Nos primeiros meses eu ainda não trabalhava muito. Aí depois fui entrando aos pouquinhos, pegando o jeito, todos ajudavam, ensinavam, os ensaios ajudavam muito. E aí fui aprendendo um pouco. A Ana, a Ana sempre me ajudava bastante. E sempre dizia pra eu, no palco, esquecer Cristina e ser a personagem mesmo, viver a situação, viver a história, sentir a personagem... Falar sempre com verdade, acreditando no que eu tava falando, no que eu tava dizendo, a situação que eu tava vivendo. Era isso que ela falava bastante. E dizia pra mim sempre que a melhor forma de aprender era o bastidor. Sempre olhando tudo e vendo tudo, 224 nunca pensando assim: "Ah nem vou assistir a peça hoje, nem vou prestar atenção nessa personagem porque nunca vou fazer", porque quando você menos esperar um dia cai pro teu lado! E é verdade, acontecia isso mesmo. (...) Observando, acho que a gente aprende muito. 139 Figura 69: Cristina Martins e o filho Caio em Obrigado, Sorocaba. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Além de ter participado ativamente do processo de formação e aprendizagem dos artistas adultos que se integraram ao circo, Ana Dolores, juntamente com sua irmã Luciane Rosã, também se dedicou, e continua se dedicando, a ensinar as gerações mais novas. A primeira criança a itinerar com o Circo de Teatro Tubinho foi Nicolas Alexandre, o primogênito de Luciane. Mãe e filho estão no circo desde a estreia em Arapoti/PR, sendo que Nicolas estreou nos palcos aos onze meses, quando a família ainda possuía a companhia itinerante Zezinho Produções e Promoções Artísticas. Segundo Luciane, a companhia havia se apresentado na cidade de Araucária-PR e, em homenagem a Zeca, Nicolas entrou em cena – ainda com o andar cambaleante de uma criança que dá seus primeiros passos – vestido igual ao palhaço Tubinho. 139 Cristina Martins em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 225 Figura 70: Zeca como palhaço Tubinho e Nicolas Alexandre, aos quatro anos, como Tubinhozinho, 26/01/2012. Fonte: Jornal do Médio Vale – arquivo de Murillo Ramos Mello. Desde então, Tubinhozinho – como é chamado o personagem mirim – passou a aparecer em diversos espetáculos, geralmente infantis, sendo interpretado por Nicolas até os onze anos. O segundo Tubinhozinho da família foi seu irmão Dimitri e hoje o personagem é interpretado pelo primo Alexandre, filho de Zeca e Angelita. Sobre os primeiros anos de vida de seu sobrinho Nicolas Alexandre, Ana Dolores narrou, em entrevista, diversas passagens que mostram como o processo a formação artística de Nicolas se deu desde muito cedo: A gente via que as brincadeiras dele, quando era bebê... Com um ano e três meses ele pintou a cara de palhaço e já fez esquete com o Zeca. Eu, na minha concepção, eu falei "Não tem jeito... já foi mordido”. E foi quando a gente montou um espetáculo que foi Faroeste Caboclo que o meu pai tinha um monólogo no começo do espetáculo. E era muito grande o texto que o meu pai dava. E o Nicolas devia ter uns quatro anos e ele assistiu todos os ensaios e tal... Daí depois da estreia ele chegou pro meu pai e falou "Vô, você esqueceu uma fala no começo". Daí o pai falou "Esqueci? Qual?". E ele falou "Peraí, deixa eu 226 lembrar" e ele deu o monólogo inteirinho do meu pai e falou "Ah, aqui você esqueceu!". E eu falei "Ah, já era, aí já era, já era". E, assim... Ele viajava com a gente, ele era bebê e tinha cenas em que tava todo mundo em cena e ele ficava sozinho. E ele não entrava em cena... A gente comprou uma cadeira pra ele, dessas cadeirinhas de praia pra criança e era a montagem dele. Ele chegava, montava a cadeirinha dele e ele assistia na coxia sentadinho na cadeira. Quando a gente itinerava, no fim a gente entrava pra cumprimentar e o Zeca colocava o Nicolas pra cumprimentar e apresentava ele como assistente de palco, sabe? Daí quando a gente veio pro circo aí ele não entrava pra cumprimentar. E daí quando fechava a cortina, antes do nosso cumprimento, ele sempre entrava atrás do sofá, ele ficava escondido atrás do sofá e cumprimentava atrás do sofá. Era muito louco. Daí quando a gente foi montar O Casamento do Tubinho, foi distribuir papel, daí o Riccielly passando a contra-regragem falou "Ai, precisa de um penico". Aí o Nicolas falou pro Riccielly "Tio, posso fazer o penico?". (risos) Aí a gente colocou ele na comparsaria do Casamento. Daí ele falou "Mãe, posso pôr um bigode?". Aí a gente colocava ele pra fazer comparsaria e ele criava personagem sempre. Sabe? E no Marcelino ele dava o texto inteirinho! E certinho... Ele não falava errado, o Nicolas foi uma criança que ele não falou errado, muito pouco. A única coisa que ele falava errado era "compreender" que ele falava "compeender". Então ele dava o texto todinho certo e as pessoas ficavam assim e aí quando ele dizia "Eu não consigo compeender" a plateia ia abaixo... Era muito louco, muito louco. 140 Esse constante processo de aprendizagem de Nicolas, empreendido principalmente pela sua mãe Luciane, permitiu que ele estreasse com apenas quatro anos o seu primeiro drama, Marcelino Pão e Vinho, sendo que o espetáculo tinha uma hora e meia de duração e ele interpretava o protagonista que dá nome à peça. Sobre essa passagem, Zeca contou: Fernanda Jannuzzelli: Zeca, eu vi uma reportagem com o Nicolas com quatro anos fazendo o Marcelino. Ele tinha texto, ele falava? Zeca: A peça toda. Fernanda Jannuzzelli: Com quatro anos? Zeca: A peça inteira. Tinha uma hora e meia de espetáculo. Fernanda Jannuzzelli: Como? (risos). Zeca: Então... Quando eu falei “Eu queria montar o Marcelino”, a Luciane falou "Eu ensaio o Nicolas". E eu falei assim "Lu, ele ta com quatro anos... É muito pouco." E passou. Aí chegou um dia ela me chamou no palco "Zeca vem cá”. Eu sabia o Papinha (um personagem da peça) de cor, porque eu fazia o Papinha antes. “Passa o Papinha com o Nicolas”. E ele passou de ponta a ponta decorado. 141 140 141 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. 227 Figura 71: Reportagem sobre a peça Marcelino Pão e Vinho, protagonizada por Nicolas aos quatro anos, 2002. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. Hoje Nicolas Alexandre tem dezesseis anos de vida e quinze de carreira e atua com tamanha verdade, força e energia que seu desempenho no palco chama a atenção de qualquer um. Em entrevista, Nicolas contou um pouco sobre sua infância no circo e sobre o modo como lhe foram transmitidos os ensinamentos da família: 228 Eu lembro que a gente fazia bastante ensaios, quando era comigo né? E eu sempre assistia todos os ensaios e espetáculos, mesmo que eu não trabalhasse no espetáculo, eu estava sempre nos ensaios, assistindo, assistindo eles fazendo. Na hora do espetáculo, em vez de eu ficar em casa, eu vinha aqui para trás do palco, eu sempre assistia bastante os ensaios. Eu não me lembro muito bem assim, mas eu lembro que a minha mãe me pegava com o texto, e passava, e passava e passava, sempre assim. Então, como já faz tanto tempo que eu tô aqui no circo, eu meio que já sei as peças todas de cor. E minha mãe e a tia Ana iam falando as coisas básicas mesmo. Nunca ficar de costas pra plateia, tentar não esquecer o texto, como que eu posso dizer? Não deixar em branco tudo, não deixar em silêncio, aquele negócio do improviso, de não deixar as coisas passarem em branco, várias coisas assim. A maioria das coisas que eu aprendi, foi mesmo olhando eles, me inspirando bastante no que eles fazem, no jeito que eles fazem. Então, como eu não trabalho em todos os espetáculos, eu aprendo muito vendo eles fazendo mesmo. Ai você vai decorando piada... Tanto é que tem texto que eu nunca fiz, mas eu sei de cor, de tanto assistir. 142 Figura 72: Nicolas Alexandre como Burro em A orquestra dos bichos, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. A segunda criança a itinerar com o circo foi Cristian Bryan, filho de Dionísio e Cristina Martins. Tito, apelido carinhoso dado a Cristian, hoje com vinte e um anos, entrou para o circo em 2002, com nove anos. Em entrevista contou que chegou numa segundafeira e na quarta já estava no palco, mesmo sem nunca ter atuado, pois Nicolas, a única 142 Nicolas Alexandre em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 229 criança até então, estava com catapora. Em entrevista, a mãe de Tito, Cristina Martins, contou como se deu a formação do filho ao longo dos anos: Eu, da minha parte, eu sempre dizia pra ele ter humildade, sempre ouvir o que as pessoas tinham a dizer. Porque adolescente, geralmente, é muito deslumbrado com tudo, ele assiste e fala "Ah, eu faria melhor". A gente quando é novo é meio descabeçado assim, e se acha, mas chega na hora e acaba não fazendo nada. Então, eu dizia pra ele "Tenha bastante humildade sempre, ouça o que as pessoas tem a dizer”. Às vezes vem três ou quatro, cada um dar opiniões diferentes, então precisa dar uma peneirada, ver o que cabe mais pra esse personagem, daí você faz. Mas, sempre falei pra ele isso... "Preste atenção em tudo, busque vozes pros personagens, maneiras diferentes”, porque como cada dia é um personagem diferente, então você acaba tendo que buscar uma identificação pra cada um deles 143 . Figura 73: Cristian Bryan, o Tito, como Aladin em Aladin, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Depois de Nicolas e Tito muitas outras crianças nasceram ou passaram a viver no circo com suas famílias. Do que pude observar, percebi que o processo de formação e aprendizagem delas ocorre não de maneira unificada, mas sim de acordo com a vontade e o rigor de cada pai. Porém, acredito que esta formação mais “dispersa” também está 143 Cristina Martins em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 230 diretamente ligada ao fato da arte teatral não possuir uma técnica tão específica quanto a prática acrobática, por exemplo. Dessa forma, Luciane Rosã, por exemplo, continuou o processo de formação empreendido com Nicolas também com o segundo filho, Dimitri Augusto, hoje com dez anos. E o resultado de tanta disciplina e dedicação não poderia ser outro: Dimitri é uma criança extremamente expressiva, madura, consciente de seu ofício e um excelente ator, apesar da pouca idade. Nos ensaios, ele se comporta como um adulto em meio aos outros atores, no sentido de compreender profundamente a complexidade e a seriedade envolvida no fazer artístico. Luciane em entrevista detalhou: Eu sou muito crítica com o meu trabalho, então eu me cobro muito. E cobro eles também, porque eu falo "Vocês gostam, é isso que vocês querem?"... Porque eles não querem nem ir no centro da cidade onde a gente tá, eles querem é ficar no circo, o tempo todo. A vida deles é aqui dentro. Daí eu falei "Se é isso mesmo que vocês querem, vamos fazer o melhor, vamos dar o nosso melhor". (...) Então é sempre assim, passando mesmo um pouco de conhecimento que a gente tem e a gente vai injetando neles. E como eu sou muito rigorosa, eu cobro mesmo. Às vezes eu sinto que eu cobro muito deles, às vezes eu passo um pouquinho do limite de cobrança, mas eles respondem com um carinho tão grande que parece que não é rigor... É a vontade deles. (...) E hoje, eu já não faço mais esse trabalho com eles, porque agora eles já entenderam como é, já sabem como é o processo... O Nicolas fazia o Simba no Rei Leão, o Dimitri assistia no bastidor e depois acabou fazendo. Só que agora o Nicolas já cria os personagens dele, ele já monta, ele já faz, eu não preciso me preocupar com mais nada. O Dimitri, olhando o Nicolas fazer, entra em cena já como se nem trocasse de ator. Pra gente que tá trabalhando com eles ali, sai o Nicolas, entra o Dimitri, mas parece que é a mesma coisa. O estilo de trabalho é bem parecido, só que o Dimitri já coloca umas coisas dele, já tá colocando, já tá criando pra ele. Eu tô a ponto de aposentar já! (risos) 144 A entrevista com Dimitri foi, sem dúvidas, um dos momentos mais emocionantes que vivi no Circo de Teatro Tubinho. Eu realmente fiquei encantada com o trabalho deste pequeno grande ator e ter ouvido o que ele tinha a dizer sobre sua vida e seu ofício realmente me tocou. Com a simplicidade de uma criança e a incrível consciência de um adulto, Dimitri me proporcionou uma conversa tão cativante que mereceu um espaço de destaque nessa dissertação: 144 Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 231 Fernanda Jannuzzelli: Dimitri, você lembra qual foi a primeira peça que você fez? Dimitri Augusto: Eu comecei a fazer bebê em cena. Mas de texto longo assim foi o “Burro meu”, do Casa da Mãe Joana. Fernanda Jannuzzelli: E quando você começou a fazer as peças a sua mãe, a sua tia, o seu tio... O que eles davam de indicação pra você? Dimitri Augusto: Eles falavam que o teatro é muito grande então tem que falar o mais alto possível. O meu tio também falou pra mim que tem um grande problema se você ficar de costas pro público. Então sempre quando for falar alguma coisa ficar de frente. Deixa eu ver o que mais... Meu tio falava “Fala mais declarado pro público entender, que daí é melhor pra você”. De interpretar é normal... Fazer certinho, fazer mais solto, fazer melhor. Fernanda Jannuzzelli: E pra decorar os textos, como é que você faz? Dimitri Augusto: Todo dia antes de eu trabalhar a minha mãe falava pra eu ler o texto inteiro, todas as minhas falas, passar duas vezes. Daí eu passava bastante. Hoje tem espetáculo que eu já lembro já bastante fala. Mas antes eu tinha que ler e reler. E lia até ficar com o texto todo decorado. Fernanda Jannuzzelli: E agora faz pouco tempo que vocês montaram o Pinocchio, né, e como é que foi? Foi super rápido, não foi? Quatro dias, cinco dias vocês montaram tudo! Dimitri Augusto: Então, na terça-feira meu tio terminou de escrever a peça, daí teve terça só pra ler o espetáculo, né, ler o texto. E ensaio quinta, sexta e sábado à tarde. Fernanda Jannuzzelli: E como que foi pra fazer o Pinocchio? O que falaram pra você fazer? Dimitri Augusto: Várias pessoas me deram indicação...A minha tia (Ana Dolores) falou "Ah, passa lá em casa depois pra eu te mostrar como que é pra fazer, pra andar". Ela falou pra eu ver bastante aula de robô, bastante coisa. Fernanda Jannuzzelli: Aí você viu de internet? Dimitri Augusto: É. Daí a minha mãe, que fazia o Pinocchio antes, me ensinou as trocas de nariz, o jeito de falar, o jeito de interpretar melhor... Fernanda Jannuzzelli: Como que é a troca de nariz? Dimitri Augusto: É que na peça o Pinocchio, na hora que cresce o nariz do Pinocchio, tem um tempo certo. Daí a minha mãe me mostrou certinho o tempo de fazer tudo, o tempo de eu pegar, tirar, colocar. Ela me mostrou tudo isso. Ela exige bastante da gente. Às vezes a gente chega aqui em casa e eu falo “Foi boa hoje a peça, né mãe?”. E ela “É... boa foi, mas tem que ser melhor!”. Fernanda Jannuzzelli: A Ana tava me contando daquela cena que você sente vontade de chorar... Dimitri Augusto: É, no final. Fernanda Jannuzzelli: Você sabe dizer por que sente vontade de chorar? Dimitri Augusto: É porque eu acho uma cena bonita, eu acho bem bonita essa cena. E tem um sério problema nessa parte, que na hora que eu chego que eles me colocam em cima do baú, eu não posso chorar porque eu ainda sou boneco. Então eu tenho que ficar segurando e me mordendo pra não chorar. Fernanda Jannuzzelli: E depois, quando pode? Dimitri Augusto: Ah, daí eu começo a chorar e chorar e chorar... Fernanda Jannuzzelli: Entendi. E tem uns papéis que você faz que sua mãe fazia e tem outros que era o Nicolas que fazia, né? E aí ele te ajuda também, assim, ele te dá uns toques? Dimitri Augusto: É, ele fala assim "Ó, eu fazia tal coisa ali e era legal!". Meu irmão me ajuda bastante, porque como ele já sabe o texto, às vezes eu esqueço o texto no ensaio e aí eu pergunto "Ô, mano, tem alguma coisa que você fazia... como que era essa parte?" aí ele fala "Tal, tal, tal". 232 Fernanda Jannuzzelli: E você tenta fazer parecido com o que ele fazia? Dimitri Augusto: A primeira vez que eu fiz o Zague, que é o ratinho no Cinderela, eu fiz completamente igual a ele. Eu peguei o CD do Cinderela e fiquei assistindo, assistindo... Saiu a voz quase igual, saiu o jeito, o jeito de falar, saiu quase como se fosse uma característica. Fernanda Jannuzzelli: E aí depois foi mudando um pouco ou você hoje faz igualzinho ele fazia? Dimitri Augusto: Tem coisa que, tipo, agora eu só mudei o tipo de voz só, mas tem coisa que meu irmão fazia que eu faço ainda. Fernanda Jannuzzelli: E como que você faz pra fazer o personagem, assim, você vai testando? Vai fazendo de um jeito, outro jeito? Dimitri Augusto: É, tipo... No ratinho eu falei assim "Ah, vou pensar em uma voz mais fina" porque se for um rato maior que nem o Tito faz, daí pode fazer uma voz um pouquinho mais grossa. Mas a minha eu tentei puxar pro mais fino, assim, daí eu puxei um pouquinho mais fina e junto com a do meu irmão. Daí tem hora que eu mudo ela, mas... Fernanda Jannuzzelli: E quando você faz o Tubinhozinho você tenta fazer parecido com o Tubinho? Como que é? Dimitri Augusto: Isso era uma coisa difícil porque o Tubinhozinho, eu e meu primo, a gente teve uma coisa difícil que às vezes a gente colocava a mão no bolso e não podia colocar a mão no bolso. Então o que aconteceu: um dia minha mãe falou assim "Eu vou fazer um negócio pra você não colocar a mão no bolso". E aí ela foi lá, costurou o bolso, todos os bolsos que tinha na calça, no paletó, todos. E no fim o Tubinhozinho... Eu fiquei mais solto, ficou bem melhor. Só que também tinha uma coisa que eu e meu primo, às vezes a gente também esquece de fazer a voz de palhaço. Que às vezes a gente começa a fazer a esquete e a gente vai esquecendo. Esquecendo, esquecendo e aí tem uma hora que a gente para de fazer. Eu acho que aconteceu isso com meu primo também... Fernanda Jannuzzelli: Qual primo? Dimitri Augusto: O Alexandre. De, no fim de uma piada, falar "Ah, vamos fazer essa piada, agora é essa piada, agora tem que animar, né?". Porque era a última piada. E no fim a última fala é a do palhaço, às vezes é do palhaço. E aí tem que ser animado. Aí tem uma hora que a gente tipo coloca aquela fala pra baixo. Aí o povo não gosta. Mas às vezes anima também. Fernanda Jannuzzelli: E você acha, Dimi, que você aprende mais quando você tá fazendo a peça ou quando você tá assistindo? Dimitri Augusto: Eu acho que os dois. Assistir eu já assisti todas as peças muitas, mas muitas vezes... 145 145 Dimitri Augusto em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 233 Figura 74: Dimitri Augusto como Pinocchio em Pinocchio, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Figura 75: Dimitri Augusto como Zague em Cinderela, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Em relação aos seus filhos, Zeca e Angelita buscam um meio termo entre lhes proporcionar uma infância mais comum a todas as crianças – como a que Angelita viveu – e a infância típica do meio circense – como a vivida por Zeca. 234 Em entrevista, Angelita destacou a importância das crianças viverem, enquanto podem, uma vida para além do circo, porque, segundo ela, com o passar dos anos essa vida quase deixa de existir: O Zeca a vida inteira trabalhou com teatro. Eu até brinco com ele assim “Nossa, mas você não teve infância?”. E ele fala “Eu tive, mas era diferente”. Aí eu falo pra ele “A minha era subir em pé de árvore, correr, pular corda, brincar de num sei o quê”, entende? Criança é criança... Tipo assim, “Ah, eu quero ir pra casa do vô e da vó, ir tomar água de coco na praia”, “Vai filho!”. Porque depois que cresce, não volta mais, então eu acho muito duro... Porque o circo de certa forma é uma prisão. Então eu não vou privar eles de ir na casa da vó, de ir viajar, encontrar os primos... Porque se você escolhe o circo, você fica na prisão pro resto da vida. Na prisão, eu digo no bom sentido. Se eu não posso ficar uma semana com eles na casa do vô e da vó, por exemplo, e eles tão de férias, eles podem ir. (...) O Dimitri é uma criança que em cena chama muita atenção... Não tem o que falar. Só que as brincadeiras que os meus filhos brincam, ele não brinca, entende? Agora, o que ele sabe, meus filhos não sabem... Ai então é uma questão de educação... Cada um tem o jeito de ver a sua vida né... Cada um educa o filho do jeito que acha certo, né? 146 Já Zeca, em entrevista, destacou outros pontos acerca do processo de formação dos filhos: De verdade, assim, essa é uma coisa que eu preciso trabalhar um pouquinho melhor comigo. Porque no meu entendimento, que é errado, mas é meu entendimento, é assim: eles assistem todos os dias, eles veem todos os dias, eles tão respirando isso todos os dias. Então eles têm quase que a obrigação de saber o básico. Sabe? Então principalmente quando são meus filhos, vai dar um texto e fica de costas pra plateia, eu fico bravo com ele. Entendeu? Ele tem nove anos, mas eu fico bravo com ele e falo: "Não pode! Se eu pegar um menino da praça e vier ensaiar ele, ele tem todo direito de fazer tudo errado. Você não tem. Você entende?” E eles ficam meio: "Pai, mas eu não sei...". “Você tem que saber. Você tem que saber”. E de uns tempos pra cá eles meio que entenderam isso e, às vezes, eles ficam nos bastidores olhando e às vezes eu saio de cena, quando dá alguma coisa errada, eles vêm pra mim e falam assim: "Pai, isso deu errado por causa disso né? Porque fez tal e coisa... é isso?" Ele entendeu que ele precisa, entre aspas né, ter o repertoriozinho dele ali, “Quando meu pai precisar, eu preciso tá sabendo”. Então meio que tem isso né? As crianças quando vem pra cena comigo, elas já passaram por alguma das meninas... Ou a Ana ou a Angelita ou a Lucélia ou a Luciane, principalmente quando tem ensaio de criança a Luciane tá no meio... Eles sempre passaram por alguém, então quando chega comigo, eles já chegam assim: “Vamos fazer direito”. Não que eu brigue. Eu não sou de brigar com eles. Mas é o jeito de falar assim: "Isso aqui é sério". E isso eles já sacaram. Então, quando eles vêm fazer qualquer cena comigo, eles já vêm 146 Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 235 com esse espírito de “Vamos fazer, é pra fazer e sem brincar”. 147 Tive a oportunidade de ver Alexandre, um dos filhos de Zeca e Angelita, atuando como Tubinhozinho na peça O Casamento do Tubinho e como José, filho do personagem de Zeca, no drama O seu único pecado, redirigido por Fernando Neves. Com relação a este drama, pude acompanhar também o ensaio de marcação de cenas anterior a uma apresentação no Barracão Teatro, em Campinas/SP, em maio de 2014. O elenco procurava se habituar àquele espaço tão diferente da lona e a preocupação principal era com as crianças, que interpretavam os personagens na primeira fase da história. Em determinado momento da trama, Alexandre devia desempenhar uma cena de briga com a irmã, interpretada por sua prima Carol Martins, filha de Jailson e Viviane Martins. Zeca, então, lhe mostrou como Alexandre deveria diferenciar as inflexões de suas falas e lhe falou “Aqui você precisa estar triste. Eu preciso que você venha! Eu preciso de você!”. Ao final de algumas tentativas, Zeca elogiou o filho e lhe deu um abraço apertado. Figura 76: Alexandre Pereira como Tubinhozinho, 2014. 147 Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. 236 Fonte: Página de relacionamento na internet do fã clube Na estrada com Tubinho. Já Lívia, a caçula de Zeca e Angelita, hoje com quatro anos, vi em cena como Neli na primeira cena do famoso drama ...E o céu uniu dois corações. Na cena, a garotinha é responsável por um fala fundamental para o desenrolar do espetáculo em que, em sua inocência, acaba incriminando erroneamente seu pai diante do inspetor. A cena é extremamente tocante. Dias depois, Lívia me contou: “Eu não sabia fazer a Neli, mas as minhas tias me ensinaram”. Perguntei, então, se ela se lembrava de suas falas e ela começou a dar o texto enquanto seu irmão Victor lhe dava as deixas. Figura 77: Lívia como Neli em... E o céu uniu dois corações, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Acerca da formação das crianças, o que posso afirmar, por fim, é que, apesar das diferenças existentes na maneira como elas apreendem os conhecimentos da vida circense, o fato é que todas elas, só pelo fato de viverem no circo, estão inseridas num processo de formação e aprendizagem que as difere das crianças de famílias não circenses. Durante minhas visitas ao circo, pude observar suas brincadeiras e perceber que essas, quase sempre, estão relacionadas ao universo do teatro e da representação. 237 Certa vez, a companhia estava em Sorocaba, a peça do dia era Tubinho contra o Lobisomem e eu tive a experiência de assistir o espetáculo da coxia. Morgana Lunardi, filha de Riccielly, também estava na coxia com Miguel, de um ano e nove meses, filho de Jailson e Viviane Martins. Miguel é completamente apaixonado por Tubinho, a quem chama de “Binho”. Num momento da peça, quando Tubinho estava em cena, Miguel gritou da coxia “Binho!”, para a risada de todo elenco. No intervalo os artistas tiveram a ideia de colocar Miguel no fim da peça, com uma máscara, como o filho do Lobisomem. Daí em diante, o último ato foi de conversas na coxia do tipo “Será que ele entra?” “Ele vai chorar!” “Vamos tentar!” “Se der certo vai ser um fuá!”. E foi. Miguel entrou de mãos dadas com “Binho”, vestindo uma máscara de lobisomem, para delírio da plateia. E no fim ainda entrou pra agradecer. Além disso, no dia seguinte, vi as crianças brincando de representar esta peça que havia sido levada na noite anterior. Dimitri fazia o palhaço, havia um lençol estendido servindo de cenário, alguns adereços emprestados do Lobisomem da peça e a parente mais antiga da companhia, Cidinha Garcia – mãe de Jailson, Dionísio e Elcio Martins –, auxiliava a montagem do espetáculo de “faz de conta” da trupe mirim. Isso sem contar as Tartarugas Ninjas Caio e João – filhos, respectivamente, de Cristina e Dionísio Martins e Juliana e Alexandre Vieira – que estão sempre a combater terríveis vilões pelo terreno. Caio, inclusive, não vê a hora de começar a pegar os papéis de Dimitri e numa festa a fantasia – organizada pelas próprias crianças da companhia – se vestiu de Pinocchio, o mais novo personagem do primo que tanto admira. E, pra finalizar esse assunto sobre a formação das crianças do Circo de Teatro Tubinho, cito outro momento realmente emocionante: a coreografia que todas as crianças juntas executam, com a canção Piruetas, de Chico Buarque, no espetáculo Obrigado, com o qual a companhia se despede da cidade em que estava em temporada. Ao assisti-los, ainda no ensaio para o Obrigado Sorocaba, não consegui conter as lágrimas ao pensar que estava ali o futuro desta companhia circense. 238 Figura 78: Crianças brincando no Circo de Teatro Tubinho, 2014. Fonte: arquivo pessoal da autora. Figura 79: espetáculo preparado por Bruna Silva e pelas próprias crianças para seus pais, 2012. Fonte: página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Com relação novamente ao papel de Ana Dolores e Riccilelly Lunardi na formação dos adultos e crianças da companhia, apesar de serem lembrados por todos do elenco durante as entrevistas como figuras extremamente importantes para a consolidação 239 da trupe, ambos me disseram que tudo se arquitetou mais como uma troca de experiências, na qual eles também aprenderam muitas coisas ao mesmo tempo em que ensinaram. Dentre essas trocas, Ana Dolores destacou a importância da entrada da atriz Lucélia Reis – amiga de infância de Angelita Vaz e Hélio de Aquino, que integrou o primeiro elenco do circo – para a companhia. Em 2001, Lucélia integrava o recéminaugurado Ateliê de Criação Teatral (ACT) – uma vertente do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) de Antunes Filho –, fundado por Nena Inoue, Fernando Marés e Luís Melo, em Curitiba. Ao ingressar no circo – à primeira vista, apenas para uma curta temporada –, Lucélia trouxe ao grupo uma bagagem teatral completamente diversa que se somou a dos demais integrantes. Em entrevista, Lucélia narrou: Eu venho da escola de teatro mesmo, normal. Não conhecia circo-teatro, e a princípio, quando eu comecei a fazer teatro nem tinha ouvido falar em circoteatro. E eu vim a saber o que era circo-teatro pelo Hélio, que saiu com a companhia do Zeca quando nós estávamos no colegial ainda. Mas a companhia na época não era circo, era uma companhia itinerante... Então era a família dele, era só ele e as irmãs e o Hélio era o único de fora. E ele era um dos nossos melhores amigos, daí ele saiu pra itinerar com eles, e quando o Zeca resolveu sair com a lona o Hélio foi junto. Eu tinha uns 23 anos, mais ou menos, quando eu entrei pro ACT e acho que eu fiquei um ano e meio. E então como era tudo muito disciplinado, tudo muito embasado, tudo muito fundamentado, sabe era tudo muito pesado mesmo, eu falei "Ai meu Deus, eu não sei", chega num momento que você fala "meu Deus, o que eu tô fazendo aqui?"... Eu não sabia mais o que eu tava fazendo. Foi fundamental pra mim, foi muito bom pra mim, eu aprendi muita coisa, hoje eu ainda assimilo coisas que eu aprendi no ACT e que coisas que eu aprendi no ACT eu emprego no meu trabalho no circo, porém na época eu não tava dando conta disso a ponto de eu chegar a pensar se eu realmente queria ser atriz, sabe? (...) E saí do ACT e acabei vindo pra cá por um acaso mesmo. Eu vim visitar a Angelita... Mas eu sempre tive um puta preconceito em relação ao circo, sempre pensava assim, que eu acho que é o que a maioria das pessoas que são criadas dentro de uma sociedade comum pensam: "Putz, cara você vai viver no circo, tem que fazer uma faculdade, você tem que construir um futuro, como assim?". E eles falavam "Não, mas a gente vive de teatro, a gente ganha pelo que a gente faz". E eu não entendia isso, eu falava "Mas você não tem segurança nenhuma, como assim e tal...". Até que eu vim até o circo, por conta do Victor, meu primeiro afilhado, filho da Angelita... Vim visitá-lo e acabei conhecendo esse mundo. E aí eu fui entender o que era o circo-teatro e eu entendi, mas não assimilei, porque você assimila a partir do momento que você fica nele. Então eu vim numa primeira visita e entendi o que era. Mas nunca imaginei que eu fosse vir e ficar. Daí como eu passei por esse processo no ACT, precisei vir pro circo pra visitar o Victor e na época o Zeca tava sem atriz e ele pediu que eu ficasse, eu tava em férias, não tava fazendo nada, ele pediu pra que eu ficasse um mês, pra dar uma força pra peça nova... Eu fiquei esse mês e daí quando eu fui pra cena e 240 dai realmente vivi isso, eu falei "Putz, cara, saquei o que é!”. E aí eu acabei me apaixonando também por esse caminho e falei "Nossa, é um caminho". 148 Figura 80: Lucélia Reis em Tubinho e a mulher do trem, s.d. Fonte: Página de relacionamento na internet do fã clube Na estrada com Tubinho. Pelo que pude observar do processo de formação e aprendizagem do Circo de Teatro Tubinho compreendi que, desde sua retomada em 2001, a companhia lida com a questão do “mestre/aprendiz” circense de um modo um pouco menos centralizado. Ao invés de haver um único mestre, há algumas pessoas – como Ana Dolores e Luciane Rosã – que desempenham o papel de formadores artísticos dos artistas iniciantes, sejam eles adultos ou crianças. E, claro, há sem dúvida o papel fundamental exercido por Zeca, o diretor artístico e figura centralizadora da companhia. Apesar do próprio Zeca afirmar que o início do processo de formação das crianças, no que diz respeito ao trabalho cênico, está mais a cargo de suas irmãs , é inegável que Zeca possui, além de um apurado olhar comercial, um também apuradíssimo olhar pedagógico para o trabalho com a companhia. Isso ficou evidente, por exemplo, numa passagem das entrevistas em que Zeca falava sobre a função do escada para a construção da cena. Pude perceber a pedagogia 148 Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 241 existente neste tipo de fazer teatral em que se aprende observando-se os mais experientes e, posteriormente, já no momento da representação diante do público. Zeca contou: É claro que quando a escada não vem dificulta um pouco. É óbvio, pra qualquer comediante, não só pra mim. Mas eu normalmente não desisto da piada. O que eu faço? Eu pedi a escada, a escada não veio, eu preparo a escada e dou o desfecho de alguma maneira. Você entendeu? Já aconteceu, não que seja direito, mas já aconteceu de eu falar assim é... É que eu não vou lembrar a piada agora, mas... Eu falo o que eu quero falar, aí o cara não dá eu falo assim: "Mas se você falasse isso aqui eu te diria „pá!‟", e dava o desfecho. A piada também funciona. Não igual, mas a piada também funciona e o escada fica esperto. A hora que eu faço isso, a primeira coisa que o escada pensa é "Hummm, marquei bobeira". Mas isso é coisa de um segundo. É um bate bola. Outra coisa que eu tenho pegado muito no pé do meu elenco: a questão de dicção. Quando acontece deles falarem “embolado”, o que eu tô usando de recurso? Eu repito a última frase, que saiu embolada, de um jeito claro e aí dou o desfecho da piada. Porque eu já falei pra eles “Quando o público não entender eu vou repetir a frase”. Às vezes eles pensam: "Ah, mas eu vou ficar mais lento". Não fica mais lento. Principalmente a frase final do escada precisa ser certeira. Por que a piada sempre tem uma referência com a última frase do escada. Quase sempre. Mais importante que o desfecho é o que o cara falou ali 149. Graças à junção do seu tino comercial e seu olhar pedagógico, Zeca propôs a revitalização da companhia através do projeto de reelaboração do repertório, patrocinado pelo Ministério da Cultura e Petrobrás, que será detalhado mais adiante e que se tornou um verdadeiro divisor de águas no trabalho da companhia. Adianto por agora um comentário tecido por Tiche Vianna acerca do olhar pedagógico de Zeca para a cena e a companhia. Tiche Vianna ministrou uma oficina para o elenco do circo de Tubinho durante o processo de remontagem do espetáculo Cabocla Bonita, dirigido por Ésio Magalhães. Tiche contou sobre um dia em que, após o fim da comédia da noite, Zeca resolveu levar um esquete, por sentir que a peça não agradou o tanto que deveria: Então o Zeca rapidamente disse a que ia ter a última parte, todo mundo saiu e ele disse pro Juninho: "Você vai entrar comigo num esquete". E o Juninho disse "Eu nunca fiz", e ele "Então você vai fazer hoje". E ele foi lá e eles fizeram o esquete e tal. Quando acabou, eu fui falar com o Zeca e ele falou: "Você viu o Juninho no espetáculo hoje?" Eu falei "Vi". E ele: "Que você achou?" Eu falei "Eu achei ele mais interessante". Porque eu achei que no espetáculo, eu sempre achei o Juninho 149 Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. 242 mais intimidado e tal e no curso, eu vi que ele foi se dando conta de uma potência que ele tem, de ocupar aquela cena, de ser ousado, de não ser tão envergonhado. E trabalhei um pouco isso com ele: “Que corpo é esse Juninho? vai pelo corpo!”. E isso pro Juninho funcionou porque pegou ele por algum lado e eu senti que ele tava mais presente no espetáculo. E o Zeca falou “Eu também achei que ele melhorou no espetáculo. Ele fez alguma coisa... Ele tava mais comprometido.” Não foi com esses termos, mas o que ele queria dizer era isso. “Por isso que eu chamei ele pra fazer o esquete comigo, que ele nunca tinha feito. Mas eu pus ele lá porque eu sabia que ele precisava desse... ele precisava saber que ele sabia”. O que eu falo: é uma cabeça pedagógica, também inclusive... Ele tem toda uma dimensão... Ele tem uma noção e uma generosidade que são duas coisas impressionantes. 150 Quando visitei o circo em Boituva, em dezembro de 2013, o projeto da Petrobrás já havia sido finalizado, porém Zeca continuava a reestruturar alguns espetáculos, baseado nos novos ensinamentos que havia apreendido. Neste momento a peça que estava sendo modificada era o drama Ferro em Brasa. Em entrevista, Zeca, ao dissertar sobre o processo de reestruturação deste espetáculo, mostrou a pedagogia que estava sendo aplicada junto ao elenco: Quando a gente propõe "Vamos fazer uma mudança radical", que foi o que aconteceu com A Canção de Bernadete... Quando a gente fala "Pô, vamos fazer uma mudança radical", aí mudamos tudo, não tem problema. Agora no caso do Ferro em Brasa, que é um espetáculo que a gente já fez muito, e eu vou dar uma mudada agora... Eu acho que é muito mais difícil quando vai mudar poucas coisas, porque o ator fica mais resistente em fazer como ele fazia... "Não, mas o jeito que eu fazia já era legal, não precisa mudar, já funciona"... Do que quando você vai mudar tudo. Porque quando você vai mudar tudo, a proposta é mudar, você já parte de que vai mudar. É que nem agora, eu vou fazer uma coisa que eu já botei na minha cabeça que é assim, é uma mudança boba, mas que vai me ajudar a fazer todas as mudanças. Normalmente a casa era de um lado e a ida pra cidade, a saída da fazenda era do outro lado. Eu vou inverter isso, não por ser necessário, mas pra que o elenco entenda: “Vai ter mudança”. Aí fica mais fácil de dialogar, porque é mais fácil fazer como você já faz. Quer dizer, se a gente faz, funciona, pra quê mudar? Então como a gente tá propondo a mudança, fica mais difícil mudar quando é coisa pequena do que quando é coisa grande. Mas assim, pra mim é muito fácil porque eu conheço cada um deles de ponta a ponta, eu sei até onde dá pra ir, onde não dá pra ir... Que nem, a gente fez uma leitura hoje que o cara tá lendo a peça a frio, mas eu conheço ele e o seu potencial e sei aonde ele vai, entendeu? Acho que o que facilita essa companhia é isso: eu conheço todo mundo... Por exemplo, quando eu fui trabalhar com a Família Burg 151, por 150 Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. Companhia teatral da cidade de Campinas que montou, com a participação de Abel Saavedra e direção de Zeca, o espetáculo tradicional de circo-teatro Agência Marinelli. A montagem foi estimulada pelo Festival Internacional de Circo do Sesc e pela Cooperativa Brasileira de Circo em maio de 2013 e integra hoje o repertório de espetáculos da companhia. 151 243 exemplo, pra mim era até difícil no começo pra fazer uma distribuição de personagem, porque, sabe, a gente não tinha o texto escrito, eu ia passar o texto de "orelhada", como a gente chama, a gente chama de orelhada e quer dizer... Como é que você distribui se você não conhece os atores? E a gente tinha, sei lá, sete, oito dias pra erguer o espetáculo. Então fica muito mais difícil. Se eu tiver que erguer um espetáculo em sete ou oito dias com o meu elenco, é muito mais fácil pra mim, porque eu conheço ele muito bem. E eu acho que é por isso que me facilita. Quando eu escrevi A Orquestra dos Bichos, que é um infantil que a gente faz, eu escrevia ouvindo a voz de cada ator falando o texto, sabe? Eu ia escrevendo ouvindo, eu sabia em que ação o ator ia estar. Então, quer dizer, eu acho que é isso, são quase quinze anos juntos... 152 Após todas essas colocações acerca do processo de formação dos novos artistas e crianças, levanto a questão: será que o Circo de Teatro Tubinho também constitui o que Erminia Silva chama de “circo-família”? Por um lado podemos pensar que alguns aspectos do processo de formação/socialização/aprendizagem e do modo de organização do trabalho que caracterizavam um “circo-família” do passado, como o Pavilhão Arethuzza, por exemplo, se diferenciam dos empreendidos atualmente na companhia de Tubinho. Porém, por outro lado, também não podemos esquecer que a constante atualização e renovação de alguns elementos da tradição são essenciais para a própria continuação desta. Em meio a esta dúvida, procurei uma possível resposta junto à Erminia Silva. Sempre muito solícita e atenciosa, Erminia me alertou para o fato de que o nó da questão reside no ponto fundamental de que os conceitos são carregados de histórias e ligados, muitas vezes, a uma disputa de saberes. Portanto, no caso da nossa área de estudo, não devemos ter a pretensão de querer encaixar toda a multiplicidade da manifestação circense sobre os mesmos conceitos. Ou seja: não há receita padrão. Por um lado o Circo de Teatro Tubinho pode ser chamado de circo-família, pois o conceito pressupõe alguns elementos que estão presentes na companhia de Zeca, como um modo específico de organização do trabalho, nomadismo, oralidade, contemporaneidade e o fato das gerações mais novas serem depositárias dos saberes dos mais antigos. Mas, por outro, será que devemos continuar a pensar nesse conceito ou devemos propor outro modo de analisar as experiências das companhias da atualidade, como a de Tubinho? 152 Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013. 244 Por enquanto, fica a pergunta suscitada por Erminia Silva. O que posso afirmar, por ora, é que o Circo de Teatro Tubinho tem a família de Zeca como o seu mastro central. Posso chamar esta família de “Pereira” ou “GarciaPereira”, porém, devo destacar que apesar de boa parte da companhia de Tubinho pertencer, geneticamente falando, a esta mesma família, os artistas utilizam vários sobrenomes artísticos diferentes. Zeca afirma: De cento e doze espetáculos acredito que até setenta são muito tradicionais, da década de 1940, 1950. (...) E o resto do repertório são espetáculos novos, uma dramaturgia mais nova, mas baseada completamente no jeito de se fazer do circoteatro. (...) Não porque eu queira... Porque é a maneira que eu sei fazer, a maneira que eu aprendi desde criança, desde moleque. Mais do que ter uma coisa assim de querer manter o tradicional, de ser tradicional, é porque é o que eu sou. A gente mesmo é quem faz cenário, figurino, a pipoca que vende lá na frente, a maçã do amor que vende lá na frente. Então é um circo-teatro de família mesmo. O elenco que a gente tem no circo é a minha família; meus primos, minha irmã, minha esposa. (...) Temos pessoas que não são da família de sangue, mas hoje em dia já são da nossa família. Quinze anos acordando todo dia junto... É da família, né? (...) Normalmente quando as pessoas fazem circo-teatro elas se baseiam no circo-teatro da década de 40, de 50. Então os próprios grupos que prestam homenagem ao circo-teatro dão essa cara de que aconteceu naquela época. E não! A gente ta aí, fazendo!153 Através das palavras de Zeca, pude compreender melhor também que, independente de se encaixar ou não no conceito de circo-família ou circo “tradicional”, descrito por pesquisadores que se dedicam a estudar o fenômeno circense, o Circo de Teatro Tubinho é, para os próprios artistas que o compõe, uma única e grande família. 3.3 Repertório O Circo de Teatro Tubinho mantém a tradição de apresentar um espetáculo diferente a cada noite, sendo que o carro chefe da companhia é, com certeza, a comédia. Porém, diferentemente da maioria dos circos da primeira metade do século XX, em que os atores que faziam os palhaços na parte de variedades apareciam nas 153 Trecho da entrevista de Zeca ao Serviço Social do Comércio (SESC) de Santo André-SP, em 15/10/2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=57J7XQD4WCI 245 representações teatrais como personagens tipificados, em seu circo de teatro, Zeca atua caracterizado como Tubinho em quase todas as comédias. Este fenômeno pode ser observado não só no Circo de Teatro Tubinho, como também nos demais representantes da “escola sulista” de circo de teatro, por exemplo. Para Zeca o porquê dessa adequação é claro: a exclusão da primeira parte do espetáculo, de variedades, na qual o palhaço se apresentava, fez com que a personagem migrasse para o que seria a segunda parte, de representação teatral. E isso ocorreu porque, em terras brasileiras, o palhaço caiu nas graças do público que, simplesmente, não admite ir a um circo e não vê-lo. Dessa forma, o carro chefe da companhia é a comédia por um único motivo: hoje, nas localidades por onde o Circo de Teatro Tubinho passa pelo interior do estado de São Paulo, o público quer ver comédia. Então, o circo leva comédia. Assim sendo, a passagem abaixo, em que Bolognesi discorre acerca do circo do palhaço Bebé pode ser facilmente aplicada também ao circo de Tubinho: A procura por um momento de descontração, de relaxamento e revigoramento das energias confere à comédia circense e ao palhaço em particular uma conotação hierofânica. (...) Sobrevive no riso circense um traço ritualístico, uma espécie de ponto de ligação entre o fim e o recomeço, entre o morrer e o renascer do homem e da vida. Antes do enredo propriamente dito, antes de ir em busca de uma história a ser revivida, o público dos pequenos circos procura um espetáculo cômico exclusivamente em razão desse momento de revivescência, que é propiciado pelo palhaço. O palhaço é o centro do espetáculo, ou seja, em vez de lições de moral o publico quer o riso festivo, a “folia”, como diz Bebé (BOLOGNESI: 2003, 171 e 172). Os artistas do Circo de Teatro Tubinho costumam dividir as comédias em duas categorias: as comédias de linha e as chanchadas. Em ambas, o jogo cênico está centrado no desenrolar das situações dramáticas, e não no texto dramatúrgico propriamente dito. Porém, nas comédias de linha a comicidade está centrada mais nas situações criadas e no modo como Tubinho e os outros personagens reagem diante delas, do que na figura do palhaço propriamente dito e suas piadas, principalmente verbais. Dessa forma, nas comédias de linha conta-se mais linearmente a história, com uma quantidade menor de inserções de Tubinho. 246 Figura 81: Dedé Santana e Tubinho na comédia de linha Tubinho, o tigrão de Sorocaba. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Já nas chanchadas, o palhaço Tubinho praticamente entra em cena para contar piadas e, como os próprios artistas dizem, tudo é uma grande bagunça – no bom sentido, claro. Diante de toda e qualquer deixa do escada, Tubinho dispara uma sequência de piadas acerca do tema anteriormente levantado, de modo que a história da peça cessa por alguns instantes. Então, o escada assume a importante função de retomar o fio da narrativa e encaminhar os acontecimentos dramáticos. Ana Dolores comentou em entrevista: A chanchada é um tipo de espetáculo em que você se arruma pra entrar em cena, mas não sabe direito nem o que vai acontecer lá no palco, porque o que vier você vai rebater e existe uma situação em que você vai jogando... É lógico que já tem fala que fica, mas 90% é improviso 154. Veremos mais adiante que este tipo de improviso desenvolvido pelos circenses não é algo ditado apenas pela imprevisibilidade, sendo construído sobre uma série de pressupostos que delimitam alguns pontos de apoio para os artistas. 154 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014 247 Figura 82: Chanchada Tubinho no velório. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Tanto as chanchadas quanto as comédias de linha têm em comum o fato de serem potagonizadas pelo palhaço Tubinho e levarem o seu nome nos títulos. O palhaço sempre teve grande destaque no espetáculo circense e, a partir da década de 1970, ocorreram algumas transofrmações na configuração do espetáculo e os circenses entenderam que inserir o nome do palhaço nos títulos das peças era um verdadeiro chamariz de público. Assim sendo, ainda hoje o Circo de Teatro Tubinho leva as tradicionais peças de circo-teatro com os títulos modificados, que incorporaram o nome da grande estrela da companhia: a comédia Que mãe que eu arranjei virou Tubinho de minissaia; o drama Castigo do céu virou a comédia Tubinho, o rei do gatilho; o drama Honrarás tua mãe virou a comédia Tubinho na Casa da Mãe Joana e o drama A escrava Isaura virou a comédia Tubinho e a escrava Isaura, por exemplo. Nestes exemplos citados acima, percebe-se ainda outra tendência comum aos chamados circos de teatro: a transformação de peças originalmente dramáticas, enquanto gênero, em comédias. Isso ocorre devido ao fato do circo sempre se adaptar às mudanças ocorridas através dos tempos. Os gostos e costumes das plateias atingidas se modificaram e, 248 consequentemente, as companhias de circo-teatro se reorganizaram para continuarem se encaixando na vida dessas pessoas que, por sua vez, mantêm o circo vivo pela bilheteria. Como exemplo claro da importância do gosto do público para a construção do espetáculo e de como este se altera ao longo dos tempos, cito um trecho de uma das conversas com Zeca durante a minha primeira estadia no Circo de Teatro Tubinho: Meu pai sempre falava: “Eu não concordo com isso de pegar os dramas e fazer comédia... isso não está certo... no meu tempo não era assim!”. Então eu respondia: “Mas pai, vocês faziam drama porque o público queria ver, não? Agora o público quer ver comédia, então eu faço comédia!” 155. Em outra conversa, Zeca contou, ainda, uma divertida passagem: era a estreia da peça Tubinho na Casa da Mãe Joana, originalmente o drama Honrarás tua mãe, transformado em comédia. O pai de Zeca, Bambí, disse “Quer fazer isso faz, mas não me põe no elenco”. Zeca, porém, ainda não contava com um elenco grande e seu pai precisou ser escalado. Contrariado, Bambí entrou em cena como o galã, mas para surpresa de todos resolveu criar uma personagem extremamente afeminada. Ao final do espetáculo, só disse a Zeca: “Se é pra avacalhar, então vamos avacalhar!”. Essa passagem mostra como que, apesar de contrariado – afetado, principalmente, pelas lembranças do circo de antigamente – o pai de Zeca compreendeu que a mudança era necessária, passando a “brincar” em cena com isso. Além de adaptar para o gênero cômico peças de origem dramática, Zeca também é autor de diversos espetáculos, baseados na adaptação e mistura de diversos esquetes e roteiros, já da tradição circense. Este tipo de criação baseada no rearranjo de roteiros já existentes é um artifício desenvolvido comumente pelos circenses ao longo dos anos, de modo que estes artistas, como Zeca, recriam parte da tradição, baseados no intenso movimento artístico e dinamismo presente no empreendimento circense. A peça Tubinho, Rocky Mão Boa, por exemplo, já deixa claro no título a temática da luta de boxe pela referência ao famoso filme Rocky Balboa. O roteiro criado por Zeca, em 2004, reúne, no primeiro ato, os esquetes tradicionais O Macumbeiro e A cara 155 Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013. 249 do burro do pai e, no segundo ato, o conhecido esquete circense A luta de boxe. Para “amarrar” a dramaturgia da peça e servir de fio condutor da narrativa, Zeca criou a história do pobre menino Bibi, por quem Tubinho luta em busca de um prêmio em dinheiro. A peça Tubinho na Casa do Nenonho, por exemplo, foi criada por Zeca literalmente de um dia para o outro. “Isso é coisa do Nenonho” é um dos inúmeros bordões criados por Zeca que caíram no gosto da plateia. Após uma apresentação de grande sucesso em que utilizava muitas vezes essa expressão, Zeca anunciou que, na noite seguinte, levaria a peça inédita Tubinho na Casa do Nenonho. O elenco, que nunca havia ouvido falar na peça pôde prever a loucura que o empreendimento exigiria: Zeca escreveu a peça – através do rearranjo de vários esquetes circenses – depois da apresentação, de madrugada, e no dia seguinte houve um ensaio de dia e a apresentação à noite. A peça, como comumente ocorre no circo de Tubinho, foi muito bem aceita pelo público e hoje se configura como uma das comédias de maior sucesso do repertório da companhia. Inspirado em tendências atuais do cinema e da televisão, Zeca criou inúmeros outros espetáculos, como Tubinho, o capitão da tropa de elite, Tubinho na casa do Big Brother, Tubinho o Todo Poderoso e Tubinho, o sobrevivente do Titanic. Figura 83: Jailson Martins e Zeca em Tubinho, o capitão da Tropa de Elite. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. 250 Além disso, a intensa troca entre as companhias de circos de teatro continua a existir, de forma que um texto escrito por Zeca, Tubinho, o homem da pistola torta, é apresentado em outros circos, como o Teatro Biriba, por exemplo. Em julho de 2014 eu estava em Blumenau, para a 27ª edição do Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau, e pude assistir a um espetáculo do Teatro Biriba, que estava armado na cidade. Assisti ao Biribinha e o caso da língua que foi engolida, um exemplo de esquete que foi estendido, misturado a outros esquetes e que virou uma peça de mais de uma hora de duração. Na portaria do circo, pude ver que nesta mesma semana, seria apresentada a comédia Biribinha, o homem da pistola torta. Um acontecimento que merece destaque foi o ocorrido em maio de 2013 na cidade de Itapetininga. Num país em que a telenovela é mania nacional, Zeca mostrou toda sua audácia e coragem ao anunciar na sexta-feira, dia do último capítulo da novela Salve Jorge, da Rede Globo, o espetáculo Corre Jorge. Nesse dia, o Circo de Teatro Tubinho conseguiu a façanha de lotar a lona e mobilizar centenas de pessoas da cidade para assistir, ao invés do último capítulo da novela, à sátira criada pela companhia. O sucesso foi tamanho que a peça precisou ser reprisada no fim de semana. Um acontecimento como esse me mostra o tamanho da força exercida pelo Circo de Teatro Tubinho e seu poder de inserção no cotidiano das cidades por onde passa. Figura 84: Tubinho em Corre Jorge. Itapetininga, 2013. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. 251 Além das comédias, o Circo de Teatro Tubinho eventualmente divide o espetáculo em duas partes, sendo que na primeira é apresentada a peça do dia e na segunda um esquete com Tubinho e seus comediantes. O esquete geralmente é levado em três ocasiões: a primeira, quando a comédia apresentada é relativamente curta, não contabilizando o tempo médio de duas horas de espetáculo todas as noites. A segunda ocasião ocorre quando, eventualmente, é levado um drama, pois segundo Zeca, o público não admite ir ao circo e não ver o palhaço. A terceira ocasião acontece quando a comédia não agradou da maneira como devia e o esquete serve como uma “carta na manga”, uma última cartada para agradar da maneira que o circo necessita para que o público volte na noite seguinte. Acerca disso, Tiche Vianna, especialista em commedia dell’arte, comentou a relação existente entre o lazzo na comédia italiana e o esquete no Circo de Teatro Tubinho: Um dia eles terminaram o espetáculo e o Tubinho entrou pra agradecer, agradeceu e falou “Agora nós vamos pra última parte do espetáculo”. Eu pensei "Nossa, eu não sabia que tinha essa parte". Mas eu olhei pras pessoas do elenco e pensei "Cara, ninguém sabia q ia ter essa parte!”. E ninguém sabia, ele tinha acabado de decidir isso. Eu pensei: “Pô, porque será que ele decidiu?”. Mas também foi visível isso. O espetáculo foi um espetáculo engraçado, todo mundo riu e tal, mas não... parece que o Tubinho tem uma medida da força. Dentro de uma escala, ele sabe aonde o espetáculo aconteceu. E é claro que ele depende do público e o público não pode ter a menor dúvida se volta amanhã... Ele não vai botar em dúvida isso, ele vai fazer o cara sair dali tendo certeza absoluta de que vai voltar amanhã. (...) Quando acabou, eu fui falar com o Tubinho e falei "Ué, porque você botou o esquete?". Ele falou: "Eu achei que não tava na pegada, que faltou... Tudo bem, as pessoas entraram, mas faltou aquele...". E eu imediatamente pensei: “Isso é lazzo na commedia dell'arte. Aquilo que a gente dizia, „Ah uma carta na manga, que se o público não tava... Pegava uma máscara, entrava, fazia uma... Isso existia né, então isso é lazzo”. O esquete no Tubinho é o lazzo na commedia dell'arte. Eu tenho que deixar o público junto comigo, (...) ter um trunfo na mão, que você sabe que você vai mudar de alguma maneira ainda mais o humor, enfim o tesão da plateia. E ela vai querer voltar 156. Em seu diário de bordo, escrito em 2011 e cedido gentilmente para esta pesquisa, Ana Dolores conta que na noite de 17 de janeiro daquele ano o circo havia levado 156 Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. 252 o esquete Apagar a Vela. Ana descreve, então, o que é um esquete e reflete sobre para a peculiar característica dos atores serem chamados pelos próprios nomes: O esquete tem a situação e o texto é todo improvisado, então nunca se sabe o que realmente vai acontecer. Depende muito do horário e com isso o esquete pode levar 5 minutos ou 20 minutos. É meio louco fazer esquete, pois geralmente o ator ou atriz é chamado em cena pelo próprio nome, mas nem sempre você é você mesmo. Hoje, por exemplo, fiz uma mulher míope, que entra em um concurso para apagar uma vela com um tiro e precisa de um voluntario para segurar a vela acesa 157. Lucélia Reis também escreveu, no ano de 2010, um diário de bordo e gentilmente permitiu que eu o utilizasse nessa pesquisa. No dia 09 de janeiro de 2010 havia subido à cena no esquete “Sonâmbula” e escreveu: Hoje a preparação é diferente. Faço bem poucos esquetes desde que entrei aqui e sinto que ainda é onde tenho uma maior dificuldade. São engraçados esses artifícios do circo de teatro e muito inteligentes também. Quando se entra para fazer um esquete após um espetáculo que caiu no agrado do público se entra tranquilo. E foi o que aconteceu hoje. Essas mini-histórias encenadas na segunda parte do espetáculo nos dão uma maior chance de trabalhar inteiramente com o improviso. E ele surge de maneira tão natural que quando se é combinado dá errado. Por isso é improviso. Sinto que nesse esquete em particular posso desenvolver uma melhor expressão corporal e facial principalmente na hora em que a personagem entra sonâmbula. Porém com um exagero contido. Lembro-me quando cheguei no circo e fui fazer meu primeiro esquete; era “ A fila do ônibus”. Lembro-me que senti uma dificuldade tão grande de estar em cena em uma situação de total improviso e naturalidade que fiquei muda e imóvel. Sintome grata pela oportunidade de desenvolver essa linguagem com segurança e verdade hoje 158. Para existir a possibilidade de uma encenação tão livre a ponto de poder variar de cinco a vinte minutos, utilizando o exemplo levantado por Ana Dolores, o elenco precisa estar totalmente afinado e conectado. E isso vem com o tempo de trabalho em conjunto e com a criação de um repertório em comum a cada apresentação, noite após noite. 157 158 Ana Dolores em seu diário de bordo, concedido à autora. Lucélia Reis em seu diário de bordo, concedido à autora. 253 Figura 85: Luciane Rosã e Tubinho no esquete O piano. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Além das comédias e esquetes, todas as terças-feiras são apresentados os espetáculos infantis, sendo que estes não contam com a presença do palhaço Tubinho. Zeca afirma que Tubinho não é um palhaço para crianças – apesar de sua enorme popularidade entre o público infantil – e que se o pai quiser levar seu filho ao circo nas noites de comédia, levará sabendo disso. A maioria dos espetáculos infantis levados foram montados ainda com a Zezinho Produções e Promoções Artísticas. Com o projeto de reelaboração de repertório financiado pela Petrobrás o infantil O príncipe, a bruxa e o feiticeiro foi redirigido por Paulo Faria, da companhia Pessoal do Faroeste, de São Paulo. Além disso, atualmente, um dos espetáculos que mais agrada o público infantil é A Orquestra dos Bichos, um belíssimo espetáculo musical, criado e dirigido por Zeca. 254 Figura 86: Angelita Vaz e Jailson Marins em O Príncipe, a Bruxa e o Feiticeiro, s.d. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Figura 87: Nicolas Alexandre, Angelita Vaz, Cristian Bryan e Alexandre Vieira em A orquestra dos bichos. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. 255 Mantendo a premissa de que o espetáculo de circo é sempre contemporâneo ao seu tempo, Zeca também absorveu e retrabalhou, à sua maneira, o stand up, fenômeno atual de grande sucesso. Em Senta que o Tubinho vai entrar – show em comemoração aos dez anos de atuação como Tubinho – Zeca conta piadas de cara limpa, como de costume entre os comediantes de stand up. Porém, também nos apresenta uma gama de personagens cômicos, como o velhinho ranzinza Seu Cornélio, o ex-bêbado Mandioca, uma homenagem através de uma elaborada imitação de seu ídolo Jerry Lewis na famosa cena da máquina de escrever e, finalmente, o personagem mais querido entre o público, o palhaço Tubinho. Ao representar estes diversos personagens cômicos, com o auxílio de alguns acessórios e figurinos, mas baseados principalmente num trabalho de composição de tipos, Zeca se distancia da influência do stund up americano, aproximando-se mais de um modo brasileiro de se fazer comédia, que conta com representantes como os humoristas Oscarito, Chico Anysio e Ronald Golias. Figura 88: Zeca em Senta que o Tubinho vai entrar. Itapetininga, 2015. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. 256 Outra vertente explorada e destinada somente ao público adulto é conhecida entre os integrantes do Circo de Teatro Tubinho e seu público como comédias picantes. Estas peças, apresentadas às quintas-feiras, chamadas de “quintas quentes”, não contam com a presença do palhaço Tubinho, devido às suas temáticas, predominantemente sexuais. A de maior sucesso, Tudo em cima da cama, é uma das comédias que Zeca leva também em apresentações pontuais em edifícios teatrais de cidades vizinhas a que o circo está armado. No capítulo anterior, dissertei sobre como era comum nos circos-teatro a apresentação de números de artistas contratados, principalmente das rádios; no Pavilhão Arethuzza, por exemplo, chegaram a se apresentar nomes como Tonico e Tinoco e Sílvio Santos. Na contemporaneidade, a tendência se mantém e no Circo de Teatro Tubinho humoristas como Nany People, Matheus Ceará e Marlei Cevada comumente apresentam seus shows em sessões especiais no circo. Além disso, a recorrente presença do eterno trapalhão Dedé Santana sempre é um atrativo para o público, que lota a lona para ver o palhaço Tubinho e seu escada ilustre. Figura 89: Cartaz de divulgação do show de Nany People no Circo de Teatro Tubinho. Araçoiaba da Serra, 2012. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. 257 Além das comédias também são encenados, ainda que em menor escala, dramas tradicionais circenses, como Ferro em Brasa, O seu único pecado (Maconha, o veneno verde), ...E o céu uniu dois corações, O pagador de promessas, O Ébrio e A canção de Bernadete. Zeca contou que os dramas dificilmente são levados na primeira semana da temporada, sendo apresentados somente após o circo “ganhar a praça”, ou seja, após ter se estabelecido e caído no gosto do público da cidade. Isso porque, segundo ele, a associação entre “circo” e “drama” não é tão direta, no pensamento do público, quanto a existente entre “circo” e “comédia/palhaço”. Ricciley Lunardi disse, em entrevista: O drama hoje é mais complicado. A gente mantém alguns dramas no repertório, como O pagador de promessas, Deixe-me viver, O seu único pecado, O Céu Uniu Dois Corações - que são clássicos desse nosso circo-teatro. É um xodozinho, porque a gente se criou vendo essas peças serem levadas. Hoje dá um trabalho muito grande, a gente procura fazer uma montagem bonita, ensaiar bem, mas não se tem - quando você anuncia um drama - não se tem o retorno de público. Você anuncia lá “A Canção de Bernadete”, você vai ter 200 pessoas assistindo, meia casa, 300, por ai. Daí você no outro dia anuncia "Tubinho e o Morto que não Morreu" e tem a casa lotada, entende?159 Figura 90: Zeca e Ana Dolores no drama O pagador de promessas, 2012. Fonte: Acervo do Circo de Teatro Tubinho. 159 Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 258 Há alguns anos, Zeca percebeu que a constante atualização que ocorre nos espetáculos cômicos não ocorria do mesmo modo nos espetáculos dramáticos, tornando-os, de certa forma, anacrônicos. Dessa forma, de 2010 a 2013, com o projeto de reelaboração de peças do repertório, através do edital do Ministério da Cultura e Petrobrás, o Circo de Teatro Tubinho retrabalhou, além de algumas comédias, o melodrama Maconha, o veneno verde com o diretor Fernando Neves e Zeca redirigiu o drama religioso A canção de Bernadete. Uma das maiores preocupações de Zeca é a manutenção e constante atualização de um repertório necessariamente múltiplo, capaz de atender e satisfazer os mais diversos públicos. Isto ficou claro, para mim, ao assistir a versão da companhia para o drama ...E o céu uniu dois corações, de Antenor Pimenta. Vários pontos me chamaram atenção nesse espetáculo. O primeiro foi o fato de que, apesar de continuar sendo levado no circo de Zeca como drama, ...E o céu uniu dois corações é anunciado com o chavão “Venha rir com o intérprete do Tubinho fazendo um gago!”. Dessa forma, o texto original é modificado e diversas piadas são inseridas por Zeca, que interpreta o menino gago Juca. Outro ponto relevante diz respeito aos elementos da encenação do espetáculo. Como eu já havia visto o drama O seu único pecado, retrabalhado por Fernando Neves, estava muito influenciada por esta referência, de modo que a primeira ideia que me passou pela cabeça – e que se assemelhava ao trabalho desenvolvido por Neves – foi a de que ...E o céu uniu dois corações também merecia ser retrabalhado e contextualizado numa época do passado, que traria uma estética específica para os elementos da cenografia e figurino. Conversando com Zeca no dia seguinte ao espetáculo, pude compreender melhor o porquê dos elementos do espetáculo estarem arquitetadas daquele modo. Primeiramente, Zeca explicou que entende que a peça também necessita ser retrabalhada e que estava, inclusive, buscando meios para tornar essa empreitada possível, através do envio de um projeto para um edital público. Zeca explicou, então, que a peça é anunciada com o atrativo “Tubinho fazendo o gago” e que, portanto, o público precisa rir. Dessa forma, ele procura inserir a comicidade 259 em momentos que não interfiram diretamente nas cenas dramáticas das outras personagens. Por esse motivo, por exemplo, o texto original foi alterado e Juca não aparece no último ato, momento ápice da dramaticidade da peça, em que ocorre o velório da mocinha da trama, Neli. Então, perguntei: “Mas por que você anuncia a peça desse modo?”. Fiz essa pergunta porque, na minha cabeça, só conseguia pensar que isso “atrapalha” o espetáculo, pois diminui a sua potência dramática. Então, Zeca me explicou: Eu trabalho com vários dramas anunciados como dramas. E o retorno de público é muito pequeno... A gente tem um público muito pequeno. E O céu eu gosto de trabalhar assim, usando o nome do Tubinho, que eu construí durante a praça, pra trazer o público. Porque é uma peça que eu quero que as pessoas vejam. E quando eu digo isso não estou falando de dinheiro, não estou falando de bilheteria. Eu quero que as pessoas vejam essa história porque é uma história que, pra mim, é um marco do circo-teatro. O cara falar assim “Ah, teve uma temporada de circoteatro na minha cidade, mas não fizeram O céu”... Pra mim é café com leite, não valeu, entende? Por isso, eu acho que mesmo retrabalhando, eu continuo anunciando como “A peça em que o Tubinho faz um gago” pra poder trazer as pessoas pra conhecer essa história. (...) Além disso, pra mim O céu é um melodrama. Tem gente que fala que melodrama não é drama misturado com comédia. Pra mim sempre foi. Pra mim melodrama é: partes de comédia, partes de drama. E acho que O céu é um grande representante disso. De como você flutuar entre a comédia e o drama 160. Eu, ingenuamente, continuei com minhas dúvidas, acreditando que o espetáculo redirigido por Fernando Neves poderia ser usado como “uma fórmula de sucesso” e aplicado diretamente a todos os outros dramas da companhia. Por isso, perguntei acerca da transposição do tempo dramático da encenação para uma década passada, de modo a contribuir para a construção de um acabamento estético para os elementos da encenação. Zeca, então, me mostrou mais uma vez como seu pensamento está à frente do que eu poderia imaginar: Eu acho que sempre que a gente fala de trabalhar esteticamente a nossa primeira fuga é “Bota numa época que a gente consegue deixar ele mais estético”. E eu acho que a história do “Céu” é uma história que pode acontecer hoje, do lado da minha casa, entendeu? É uma coisa que não precisa estar numa época, só pra gente ter a fuga de deixar mais bonita a estética. Se for só por isso acaba não me convencendo, porque ela é uma história extremamente atual. Então eu acho que 160 Zeca em entrevista concedida à autora em 23/08/2014. 260 quando a gente puxa ele pra realidade de hoje o desafio de deixar a estética bonita é muito maior. E também tem outra questão, Fer, que o espetáculo que você viu a gente sobe ele com dois ensaios, né? Então quer dizer foram dois ensaios... Passando por uma reformulação, daí é claro que a gente ensaia um ou dois meses esse espetáculo e passa por todo um pensamento, né? Quando eu vou erguer um espetáculo com dois ensaios, obviamente, eu tento usar muito mais do que já tem sido feito, pra não complicar pro ator... Evitar mudanças muito grandes, pra poder o espetáculo e fazer a noite 161. Depois de toda essa conversa interessantíssima com Zeca, sempre solícito e generoso, compreendi que se pensarmos o espetáculo isoladamente, talvez a escolha de outros elementos cênicos e interpretativos pudessem, sim, auxiliar na constituição de um melhor acabamento. Porém, isso aos meus olhos, de alguém que estuda teatro, que advém do meio acadêmico, que tem uma visão mais crítica sobre o assunto etc. Já para o público que o Circo de Teatro Tubinho quer e precisa atingir – aquele do interior, que vai da dona de casa ao prefeito da cidade – o espetáculo como está funciona e agrada. Esse espetáculo é apenas um entre os tantos outros que esse público assiste durante a temporada, de maneira que compreendi que o fato de se assistir à dezenas de espetáculos e ver o palhaço Tubinho nas mais diversas situações é mais marcante para o público do que a análise de um espetáculo em si. Além disso, em uma conversa anterior, ainda em 2013, Zeca havia destacado o fato de que o repertório do circo é amplo e possibilita, portanto, a exploração de variados estilos, que visam agradar o público, também pela diversidade: O público que a gente atinge tá muito acostumado com a novela, demais acostumado com a novela. Quando a gente foi fazer O céu, eu peguei e falei assim "Gente, eu vou pegar O céu e vou transformar praticamente numa novelinha, como se fosse a novela das nove. Então eu vou pegar a trilha de amor, vamos pegar o que tiver tocando na rádio, o que tiver, tocar e tal”. O elenco falou "Meu Deus, mas o que é isso? A gente acabou de vir de um processo, modernizou o circo-teatro e agora você vai pegar música que toca na rádio e vai fazer o tema de amor dos dois?". E eu falei "Vamos fazer e vamos ver no que dá?". Fizemos. A hora que tocava - era uma música sertaneja, uma dupla da moda –, a hora que tocava assim, eu tava fazendo o Juca, eu desci e fui pra plateia. A hora que entrou a música, que era uma música que o cara escuta na casa dele, a plateia inteira fez “Ahhhh”. Por quê? Porque o cara tá acostumado com a novela, é o que ele tá acostumado a ver. Aí o próprio elenco falou "Agora a gente que não tá entendendo porque você traz o pessoal de São Paulo pra modernizar e você mesmo puxa pra trás?!". Aí é que eu falo: não precisa ser oito ou oitenta, a gente 161 Zeca em entrevista concedida à autora em 23/08/2014. 261 tem mais de 100 espetáculos. Hoje vamos fazer uma novelinha, porque o cara gosta de ver uma novelinha, amanhã a gente faz uma outra coisa. Então eu acho que isso abriu um leque pra gente, esse pensamento abriu um leque pra gente. Por exemplo, o Ferro em brasa é uma peça que me não permite transformar em uma novelinha. Agora O céu uniu dois corações é um cara que é super malvado, que quer destruir o amor de dois jovens e que pra isso ele tem um comparsa e ele mata a menina e vai no velório da menina pra ver se ela morreu... Isso é muito novela, é muito novela, você entendeu? Então porque é muito novela, a gente trabalha com um público que gosta de novela, então por que não? 162 Figura 91: Drama ...E o céu uniu dois corações. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Dessa forma, o Circo de Teatro Tubinho tem em seu repertório mais de cem peças, sempre levadas à cena de modo muito dinâmico, utilizando-se muitas vezes de músicas, cenas cantadas e coreografias. O público é completamente incluído no jogo cênico, apesar de ser mantido no escuro, com a luz de plateia sendo acesa em momentos pontuais em que Tubinho se dirige diretamente a alguém do público ou em cenas que utilizam o corredor entre as cadeiras como espaço cênico. 162 Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013. 262 Para finalizar, a seguir listo as principais peças que compõe o repertório do Circo de Teatro Tubinho. A relação foi disponibilizada por Zeca e distribuída em categorias elencadas em consonância com a própria nomenclatura utilizada pelos artistas do circo 163 : Quadro 2 – Lista do repertório de peças do Circo de Teatro Tubinho Comédias 1. Casamento do Tubinho (O) 2. Como sequestrar a minha sogra? 3. Divórcio do Tubinho (O) 4. E o Tubinho apareceu (original: comédia “O Aparício”) 5. Ghost ou não Goste, Tubinho do outro lado da vida 6. Marido numero 5 (O) 7. Tubinho a Garota verão 8. Tubinho candidato a prefeito de ________ (nome da cidade onde o circo está) 9. Tubinho contra a Múmia do Faraó Kuekakagadam 10. Tubinho contra Lampião, o rei do Cagaço 11. Tubinho contra o chupa cabra 12. Tubinho contra o Frankenstein 13. Tubinho contra o Gaúcho de Passo Fundo 14. Tubinho contra o Lobisomem 15. Tubinho contra o Louco do 2º andar 16. Tubinho de Mini Saia 17. Tubinho e a cobra do Alibabá 18. Tubinho e a Escrava Isaura (original: drama “A Escrava Isaura”) 19. Tubinho e a mulher do trem 20. Tubinho e a mulher nota mil 21. Tubinho e a noiva do defunto ou A Bomba 22. Tubinho em Lua de mel a três 23. Tubinho e o ET de ________ (nome da cidade onde o circo está) 24. Tubinho e o morto que não morreu (original: “Tagadagadá”) 25. Tubinho e Sua Família na capital 26. Tubinho e Todo mundo em pânico ou A Casa dos fantasmas 163 Zeca afirmou em entrevistas que sua companhia possui em torno de sento e vinte peças no repertório, de forma que esta lista, disponibilizada pelo próprio Zeca, encontra-se incompleta. 263 27. Tubinho na Casa da Mãe Joana 28. Tubinho na Casa do Big Brother 29. Tubinho na Casa do Nenonho 30. Tubinho no espeto 31. Tubinho no Velório 32. Tubinho o advogado de mulheres 33. Tubinho o agente 00 quase 7 34. Tubinho o caçador de ídolos (original: comédia “A agência Marinelli”) 35. Tubinho o capitão da Tropa de elite 36. Tubinho o craque do futebol 37. Tubinho o domador de Mulheres 38. Tubinho o exterminador do teu furo (original: drama “Os bandidos da serra morena”) 39. Tubinho o Falso Conde ou Tubinho o hóspede da pensão maluca 40. Tubinho, o homem da pistola torta 41. Tubinho o Irresistível Gostosão 42. Tubinho o leiteiro do bairro _________ (nome de um bairro famoso da cidade onde o circo está) 43. Tubinho o Macumbeiro 44. Tubinho o professor aloprado (Cabocla Bonita) 45. Tubinho, o rei do gatilho (original : drama “O castigo do céu”) 46. Tubinho o sobrevivente do Titanic 47. Tubinho, o soldado trapalhão 48. Tubinho o terrível beijoqueiro 49. Tubinho, o Tigrão de ________ (cidade onde o circo está) 50. Tubinho, o Todo Poderoso 51. Tubinho quer mamar 52. Tubinho vai ser mamãe (O) Dramas 53. Canção de Bernadete (A) 54. Deixe-me viver 55. Ébrio (O) 56. Em busca da paz 57. E o céu uniu dois corações 58. Ferro em Brasa 59. Filhos de ninguém (Os) 264 60. Meu filho, minha vida 61. Não Julgueis 62. No rancho fundo 63. Pagador de promessas (O) 64. Seu único pecado (O) (original: “Maconha, o veneno verde”) 65. Alladin e o gênio da lâmpada Infantis 66. Cinderela, A gata borralheira 67. Elefantinho que caiu do rabo do cometa (O) 68. Gasparzinho, o fantasminha camarada 69. Gênio travesso (O) 70. Gnomos - uma aventura encantada 71. Marcelino pão e vinho 72. Orquestra dos bichos (A) 73. Pinocchio 74. Príncipe, a bruxa e o feiticeiro (O) 75. Rei Leão (O) 76. Ursinho pimpão (O) Comédias picantes 77. Bobeou a gente pimba! 78. Casa dos Prazeres (A) 79. CSI _______ (nome de um bairro da cidade em que o circo está) 80. Sexo por encomenda 81. Tem um defunto na Zona da Chica 82. Tudo em cima da cama Stund up 83. Senta que o Tubinho vai entrar Espetáculo de 84. Obrigado _________ (nome da cidade em que o circo está) despedida Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho 3.4 Elementos da encenação O Circo de Teatro Tubinho baseia sua cenografia, assim como os circos-teatro do passado, como o próprio Pavilhão Arethuzza, na utilização do recurso do telão, sempre articulado com outros elementos cenográficos. Os telões geralmente são pintados à mão por Dionísio Martins, primo de Zeca, que também é um excelente ator. 265 Quando assisti a peça Biribinha e o caso da língua que foi engolida, no Teatro Biriba em Blumenau, também foi utilizado um telão ao fundo, porém não pintado à mão, mas sim uma plotagem, uma foto ampliada do interior de uma casa. A tentativa de reprodução, em duas dimensões, de uma casa “real” me soou menos interessante do que a utilização do telão pintado, que se articula melhor com os demais elementos da encenação, criando-se uma estética mais condizente com o caráter anti-ilusionista do circo-teatro. Em entrevista, Dionísio Martins contou que seu dom para o desenho foi descoberto ainda durante a infância, pois gostava muito de copiar desenhos de histórias em quadrinhos, como o Mickey e o Pateta. Ao crescer, sempre trabalhou no meio teatral e os amigos de outros grupos o chamavam para pintar alguns cenários e telões; desse modo, num aprendizado autodidata, Dionísio pesquisou e praticou desenho e pintura de telões, cenários e até carretas. Dionísio relatou que Zeca lhe dá as diretrizes básicas do que é necessário que seja pintado no telão (se deseja, por exemplo, a ambientação do interior de uma casa rica ou de uma casa pobre) e que ele realiza a pintura, após algumas pesquisas, principalmente na internet. A respeito dos materiais utilizados, Dionísio afirma que, para a confecção dos telões, utiliza vários tipos de materiais, não só o tecido: (...) tem vários tipos de materiais... Pode ser compensado, eucatex, que a gente chama, eu trabalho com EVA, espuma... Eu sou bonequeiro também. Tem um espetáculo aqui o Tubinho, o rei do gatilho que foi pintura em tecido e também em compensado. São vários materiais que são usados, mas geralmente a base do circo-teatro é telão em tecido. E eu uso tinta látex a base de água. Em madeira, às vezes, a gente usa esmalte sintético, eu trabalho também com pistola de gravidade que é parecido com o grafite. 164 Dionísio ainda frisou o fato de que um mesmo telão deve ser pintado de modo a poder ser utilizado em várias peças. Este fato tem uma explicação simples: é inviável que uma companhia itinerante com um repertório de cem peças transporte um cenário diferente para cada uma delas. Desse modo, um telão que representa o interior de uma casa rica, por 164 Dionísio Martins em entrevista concedida à autora em 15/03/2014. 266 exemplo, pode ser utilizado em várias encenações, alternando-se apenas os elementos cenográficos constituintes da cena e suas disposições. Além dos telões, utilizados desde a estreia do circo em 2001, encontramos mais recentemente na cenografia do Circo de Teatro Tubinho o que os circenses chamam de arcada – uma espécie de sobreposição de telões ou um telão e uma cortina, que aumenta a profundidade do palco – e cenários em três dimensões, como a casa e a capela, armada em meio ao público, de Cabocla Bonita, redirigida por Ésio Magalhães. Com relação aos figurinos, Ana Dolores contou em entrevista que, nas primeiras praças, os vestuários eram guardados em caixas de papelão nas casas alugadas pelos circenses nas cidades. Hoje, o Circo de Teatro Tubinho conta com uma carreta só para o acervo de figurinos e acessórios, que contabiliza mais de seis mil peças. Lucélia Reis, Cristina Martins, Débora Ignácio e Viviane Martins são as encarregadas de, todos os dias, montar e separar os figurinos do elenco que subirá ao palco na peça da noite. Em entrevista Débora Ignácio contou sobre a rotina de trabalho na carreta de figurinos: Bom o figurino, ele é separado por peças. Algumas roupas são próprias do figurino de cada peça e outras são montadas. Tipo, um cômico normalmente já é pronto, agora um terno e uma gravata a gente monta na hora. Tem coisas que já são fixas daquele figurino e tem coisa que a gente monta na hora. Então tem umas três araras de roupa que é só de figurino pronto e o resto da carreta, que é a maior parte, são peças soltas, que são só calças, camisas, paletós, ternos, vestidos. Aí tem os “malões” de madeira que são onde fica os adereços, que é uma peruca, um lenço, uma gravata; e daí a gente monta de acordo com o personagem. E nós temos cadernos e no computador também... Tem anotado o nome de cada peça, com cada personagem e tudo que usa. E a gente sempre segue isso, porque são muitas peças... Mais de cem agora. (...) Então tem um relatório com o nome da peça, nome da personagem, normalmente até quem faz o personagem, pra daí a 165 gente lembrar... logico que às vezes troca... 165 Débora Ignácio em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 267 Figura 92: exemplo de lista de figurino da peça Tubinho o rei do gatilho, 2013. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 268 Através do registro fotográfico dos espetáculos do Circo de Teatro Tubinho, desde sua estreia até os dias de hoje, percebemos nitidamente a transformação e o refinamento pelos quais os elementos da encenação dos espetáculos passaram. O crescimento financeiro da empresa foi acompanhado pelo crescimento artístico dos circenses, que, além de atores, também desenvolvem as funções ligadas à concepção e confecção dos cenários, figurinos, iluminação e trilha sonora dos espetáculos. Figura 93: Tubinho contra o Lobisomem, em 2008. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 269 Figura 94: Tubinho contra o Lobisomem, em 2008. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. Figura 95: Tubinho contra o Lobisomem, em 2014. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 270 Figura 96: Tubinho contra o Lobisomem, em 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Figura 97: Tubinho, o exterminador do teu furo, em 2008. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 271 Figura 98: Tubinho, o exterminador do teu furo, em 2008. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. Figura 99: Tubinho, o exterminador do teu furo, em 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. 272 Figura 100: Tubinho, o exterminador do teu furo, em 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Figura 101: Tubinho o rei do gatilho, em 2002. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 273 Figura 102: Tubinho o rei do gatilho, em 2013. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. Nas entrevistas, todos os artistas do circo de Tubinho foram unânimes em afirmar que o grande salto, ligado às questões de ordem estética dos espetáculos, ocorreu através do contato com os diretores convidados e suas equipes no projeto de reelaboração de repertório do Ministério da Cultura e Petrobrás. Os artistas afirmaram que este projeto foi um divisor de águas na história da companhia, pois lhes proporcionou o entendimento e reconhecimento do trabalho técnico que já possuíam, bem como a abertura a novos olhares e a apreensão de novos elementos para a criação artística. O projeto ocorreu de 2010 a 2013 e estabeleceu as seguintes parcerias: Fernando Neves, da companhia Os Fofos Encenam, de São Paulo, redirigiu o melodrama Maconha, o veneno verde, que passou a ser anunciado como O seu único pecado; Paulo Faria, da Cia Pessoal do Faroeste, de São Paulo, redirigiu o infantil O príncipe, a bruxa e o feiticeiro; Ésio Magalhães, do Barracão Teatro, de Campinas/SP, redirigiu a burleta caipira Tubinho, o professor aloprado, que passou a ser anunciada como Cabocla Bonita e Hugo 274 Possolo, da companhia Parlapatões, Patifes e Paspalhões, de São Paulo, redirigiu a comédia Tubinho, o rei do gatilho. Além disso, impregnado pelos novos conhecimentos adquiridos e pela constatação dos já existentes, Zeca redirigiu o drama religioso A canção de Bernadete e dirigiu um novo espetáculo infantil, escrito por ele mesmo, A orquestra dos bichos. Zeca é um artista de circo e, como tal, percebeu a necessidade de seus espetáculos se revitalizarem, incorporando as tendências atuais capazes de auxiliar na consolidação de um melhor arcabouço para o desenvolvimento técnico dos atores e dos elementos da encenação, visando sempre, em última instância, a melhor comunicação com o público. Zeca vislumbrou que, com este projeto de reelaboração de repertório, os espetáculos de sua companhia poderiam crescer significativamente com o auxílio de um olhar de fora, de artistas competentes e sensíveis, que entendessem a lógica que rege o espetáculo no circo. Em entrevista, contou: Porque o primeiro momento - eu podia te inventar milhões de coisas, mas não dá - o primeiro momento, eu pensei “Eu preciso de um projeto de peso pra comissão olhar e falar „quero aprovar o projeto‟”. E aí qual foi a primeira coisa que eu pensei "Como é que eu posso fazer isso que tenha esse peso, que o projeto seja aprovado, mas que seja interessante pra gente?". Aí eu pensei nessa questão de que a gente - como é que eu vou te explicar? A gente tava começando a ter um nome... A galera começou a falar "Tubinho, Tubinho" e eu sabia que a nossa qualidade de espetáculo era a mesma de quarenta anos atrás... Era igualzinho, sabe? Então eu falei "Eu acho que tá na hora de dar uma chacoalhada. Mas como dar essa chacoalhada?” Aí eu pensei nisso de abrir as portas pra que alguém viesse mexer no nosso trabalho. Quando eu escrevi isso, foi muito fácil, entendeu? "Ah, vai ter um tanto de diretores, vão mexer em tais peças". Quando começou e a gente falou assim "Vai mexer na Maconha”, que era o primeiro... A gente tinha levado o Maconha há pouco tempo e, nossa, acabou a plateia tava chorando, vinha abraçar a gente e tal. Eu falei "Gente do céu... vai mexer, vai mudar tudo, vai ficar uma porcaria!", Sabe, aquela coisa toda... E daí quando a gente foi lá e começou a trabalhar com os Fofos a gente foi vendo que era exatamente o que a gente fazia, modificado e que também funcionava! 166 Riccielly Lunardi contou em entrevista que, num primeiro momento, o restante do elenco também ficou apreensivo e receoso diante das mudanças, assim como Zeca: 166 Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013. 275 Riccielly Lunardi: (...) A gente tem um trabalho muito bonito, porque esses textos estavam muito atrasados, eles vinham da década de 50, 60, 70 e a gente nunca mexia, a gente levava hoje como era naquela época. Até que ano passado, com o projeto que o Pereira França Neto fez, a gente conseguiu trazer diretores de São Paulo, pessoas com nome muito conceituado e criamos coragem de mexer nesses espetáculos. E aprendemos a tirar a carga excessiva que, nós, atores do pavilhão antigo trazíamos na bagagem. Então isso aumentou em muito a nossa criatividade, nossa experiência. (...) A gente tinha “peninha” de mudar alguma coisa que a gente aprendeu a gostar muito, tipo o espetáculo Maconha, o Veneno Verde. A gente via que tava errado, que tinha que ser feito com alguma coisa, mas sempre "Ah, vai mexer? Mas sempre foi levado assim. o que os mais antigos que assistiram vão dizer? Puxa, olha o que fizeram com o espetáculo e tal". Mas chegou um tempo que “Ou mexe ou para de levar”. Então a gente optou por mexer e o resultado foi muito bom 167. Na entrevista que Zeca concedeu ao Serviço Social do Comércio (Sesc) de Santo André-SP, em 15/10/2014, fica claro como o ousado projeto se apresentou como algo determinante nos rumos da companhia e como o elenco se mostrou aberto às novas possibilidades levantadas pelos diretores convidados: A primeira preocupação era fazer como eles queriam sem tentar... Não seria “discutir” a palavra... Sem tentar se apegar à tradição. (...) Porque quando você faz a mesma coisa há cinquenta anos do mesmo jeito e vem alguém e fala “Agora você vai fazer diferente”, você fala “Opa!”. A primeira coisa é que você bota um escudo na frente. E isso a gente falou “Não vamos fazer. Vamos entender e depois, em cima disso, modificar o que a gente entender que é interessante”. E isso foi muito bacana porque teve coisas que a gente viu, assim, que não funcionaram e que a gente tinha razão e falou “Olha, isso não podia ter sido mudado”. Mas, por outro lado, teve muita coisa que a gente falou assim “A gente achava que isso não ia dar certo e veio outro olhar e nos mostrou que também dá certo”. O que a gente fez foi abrir a cerca do circo, né? Porque é outro mundo... Às vezes a gente tá numa cidade e a gente fala assim “Ó, tô indo na cidade!”. Quer dizer, você tá no centro da cidade, mas você vai sair da cerca, você fala “Tô indo na cidade”. Você entendeu? E isso acontece também com os saberes da gente. (...) E a gente conseguiu fazer isso: abrir a cerca e dialogar e entender que a gente também precisava se modernizar, eu acho que isso foi a melhor coisa que aconteceu com a gente. Foi entender que o nosso espetáculo estava funcionando, estava lotando, mas que a gente podia se comunicar melhor com o nosso público através dessa troca com essas outras companhias 168. Como exemplo de um dos trabalhos realizados, cito o desenvolvido por Fernando Neves e a companhia Os Fofos Encenam, sempre mencionado nas entrevistas 167 Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. Trecho da entrevista de Zeca ao Serviço Social do Comércio (SESC) de Santo André-SP, em 15/10/2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=57J7XQD4WCI 168 276 com os artistas do Circo de Tubinho como algo extremamente importante na evolução da companhia. Fernando Neves foi o primeiro diretor convidado a trabalhar com o elenco de Zeca na remontagem, em 2010 e 2011, de Maconha, o veneno verde, chamada agora de O seu único pecado. Tive a oportunidade de assistir ao espetáculo em 2010, antes do trabalho com Neves, quando o circo fazia uma temporada especial no Memorial da América Latina, em São Paulo. Lembro-me que o desempenho dos atores e a verdade e fé cênica com as quais contavam a história me impressionaram, principalmente porque os elementos da encenação, ao invés de lhes amparar e alavancar a representação, quase fazia o caminho oposto. O cenário era simples e o figurino pouco teatral, no sentido de se assemelhar às roupas do cotidiano da atualidade. Além disso, a trilha sonora era excessivamente dramática, o que quase levava ao riso, e composta por diversas referências musicais. Porém, ao entrevistar os artistas o que ouvi foi que o espetáculo como estava antes da remontagem funcionava muito bem e levava o público às lágrimas. Percebi então que a impressão que tive é típica de um público mais especializado, pois o espetáculo já agradava o público para o qual o circo comumente trabalha – o do interior, mas que vai da dona de casa ao empresário bem sucedido. Porém, com a direção de Fernando Neves, o novo espetáculo passou a dialogar ainda melhor com o público típico do circo e a dialogar com outros públicos, inclusive o especializado. E tive certeza disso no dia em que o Circo de Teatro Tubinho apresentou este espetáculo na sede do Barracão Teatro, em Campinas, em maio de 2014. O público – composto em sua maioria por estudantes de teatro e artistas de Barão Geraldo, que desenvolvem trabalhos dos mais diversos estilos teatrais – ficou simplesmente extasiado com a apresentação. Nesta remontagem, Fernando Neves abordou o trabalho pelo viés da encenação e da interpretação dos atores. Em relação às questões de ordem da encenação, destaco que o espetáculo passou a ser ambientado na década de 1950 e de 1970 – após uma passagem de tempo na trama –, o que tornou a história contada mais verossímil, sendo que todos os figurinos, criados por Carol Badra e a cenografia, de Marcelo Andrade, seguiam os estilos das duas épocas. Além disso, houve uma grande mudança com relação à trilha sonora, 277 concebida por Fernando Esteves, e ao desenho de luz, criado por Eduardo Reyes. Todos esses artistas da companhia Os Fofos Encenam receberam assistência para a criação do próprio elenco do circo de Tubinho, que pôde aprender novas técnicas e conceitos que passaram a ser aplicados aos demais espetáculos da companhia. No documentário realizado pela Esfera Produções acerca deste projeto do Circo de Teatro Tubinho em parceira com a Petrobrás, Marcelo Andrade, responsável pela reelaboração do cenário do espetáculo em questão diz: Quando eu entrei em contato com eles a maioria dos painéis, que essa é uma característica do circo-teatro, esses painéis que são pintados, onde você determina o local onde está se passando a situação... É que eram telões pintados basicamente no látex... A tinta bem carregada, os traços bem carregados... E na revisitação desse trabalho dentro da nossa companhia, a gente procurou pensar numa coisa de uns tons mais pastéis, na coisa não tão grifada. Desse modo, os telões de O seu único pecado foram desenhados em giz de cera, trazendo mais leveza e mais descrição para a encenação. Ainda sobre o trabalho com a companhia Os Fofos Encenam, os artistas do circo de Tubinho destacaram em entrevista a importância do trabalho desenvolvido junto a Carol Brada, de concepção e confecção dos figurinos, e a oficina de maquiagem ministrada por Leopoldo Pacheco. 278 Figura 103: Maconha, o veneno verde, 2009. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. Figura 104: Maconha, o veneno verde, 2009. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 279 Figura 105: O seu único pecado, 2012. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. Figura 106: O seu único pecado, 2012. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 280 Após ter aprendido e se reinventado com o trabalho guiado por Fernando Neves e os demais diretores convidados para este projeto, Zeca finalizou-o dirigindo o espetáculo A canção de Bernadete. Nesta remontagem, Zeca inovou o espaço cênico do circo ao utilizar não só o palco, como também o chão do interior da lona, para o desenvolvimento da ação dramática. Neste espetáculo, o público é disposto numa arena circular, criando uma espécie de picadeiro onde se desenrola parte da peça, enquanto o palco é utilizado como a gruta onde a Virgem Maria aparece para Bernadete. Em entrevista, a atriz Cristina Martins disse que, num primeiro momento, duvidou da escolha cênica de Zeca. Porém, este se mostrou, mais uma vez, um artista ousado e aberto à incorporação de novas possibilidades de construção de cena; ao mesmo tempo, o elenco também “comprou a ideia” de Zeca, mostrando a grande disponibilidade para o trabalho existente nesta companhia. O resultado não podia ser outro: um espetáculo belíssimo e um verdadeiro sucesso de público. Cristina Martins chegou a afirmar, ao final da entrevista que, para ela, A canção de Bernadete é, no momento, o espetáculo mais bonito do Circo de Teatro Tubinho. Figura 107: Drama A canção de Bernadete, 2013. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 281 Figura 108: Drama A canção de Bernadete, 2013. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 3.5 Ensaios e processos de criação A primeira visita que fiz ao Circo de Teatro Tubinho, como parte da pesquisa de campo dessa pesquisa, ocorreu de 03 a 08 de dezembro de 2013, quando o circo estava armado na cidade de Boituva/SP. Apesar de já conhecer Zeca, não tinha muito contato com restante do elenco e era a primeira vez que eu passaria vários dias seguidos num circo. Quando cheguei estava extremamente ansiosa e, ao mesmo tempo, me sentindo muito envergonhada por não conhecer ninguém. Porém, rapidamente fui acolhida por Zeca e sua esposa Angelita, que me apresentaram àquelas que se tornariam minhas grandes amigas: Morgana Lunardi, Débora Ignácio, Lucélia Reis e Ana Dolores. Ao chegar ao circo, no período da tarde, Zeca me levou até sua carreta onde Angelita estava digitando o texto da peça que seria levada aquela noite. Era uma terça-feira, dia dos espetáculos infantis, e a peça apresentada seria O ursinho Pimpão. Angelita estava atualizando a última versão escrita do texto, pois naquele dia ela iria substituir a irmã de Zeca, Luciane Rosã, que estava se recuperando de uma cirurgia. 282 O papel que Angelita iria assumir era justamente o do protagonista da peça, o ursinho Pimpão. Por esse motivo, Angelita estava apreensiva, pois apesar de conhecer bem o espetáculo, nunca havia feito aquele personagem. Ao terminarem de atualizar o texto, Angelita e Zeca conversaram: Angelita: Amor, não vai quase nada pelo texto. Zeca: Mas isso você já sabia. Você tem que botar na cabeça que você vai fazer o palhaço! A história tá aí e é só botar caco. Angelita: Eu sei, mas não pode correr senão fica curta... 169 Angelita e Zeca partiram, então, para a lona, onde o restante do elenco que participaria da peça os aguardava para o único ensaio antes da apresentação. Com o texto nas mãos, Angelita dava suas falas em um tom completamente neutro, sem intenção e até com pouco volume. Ana Dolores assumiu a posição de ensaiadora e ia passando as marcações, inclusive, de ações e intenções para Angelita. Angelita contracenava, na maior parte do tempo, com Viviane Martins e Nicolas Alexandre, que interpretavam duas crianças. Durante o ensaio “a frio”, Rafael, responsável pela iluminação e sonorização dos espetáculos, passava as suas marcas, alguns outros artistas circulavam pelo palco, montando o cenário para a noite e algumas crianças brincavam pela lona. Angelita ensaiava e, ao mesmo tempo, vigiava os filhos. Ela lia, “a frio”, o tempo todo o texto e não se recordava de algumas marcas. À medida que os artistas terminavam de ensaiar suas cenas, iam se retirando da lona e voltando para suas casas. Ao fim do ensaio, Angelita soltou: “Bom, seja o que Deus quiser”. Confesso que foi o que eu pensei também. A minha sensação era de que, certamente, o espetáculo dali a algumas horas seria uma catástrofe. E qual não foi minha surpresa quando, à noite, Angelita surgiu muito bem caracterizada de ursinho Pimpão e com uma complexa construção física de personagem, na qual voz e corpo se encaixavam de tal forma que era impossível acreditar que aquela mesma atriz, cheia de receios há algumas horas, interpretava tão bem aquele personagem. 169 Conversa entre Angelita Vaz e Zeca no dia 03/12/2013. 283 Angelita parecia se lembrar do que Zeca havia lhe dito à tarde e atuava como o palhaço da peça, arrematando todas as piadas muito bem levantadas pelos demais atores. Ao fim do espetáculo, as crianças que haviam aparentemente se divertido durante toda a peça, ainda levaram para casa um brinde da companhia, uma jogada de marketing que Zeca desenvolve há alguns anos e que alavancou a noite das crianças no circo. Após o espetáculo Zeca passou por mim sorridente e falou: “Pode falar que você ficou assustada quando viu o nosso ensaio, vai!”. Realmente havia ficado assustada, mas o susto maior ainda estava por vir: dias depois, Zeca me escalou para fazer a mocinha Sofia da peça Tubinho na Casa do Nenonho. O espetáculo criado por Zeca – um compilado de vários esquetes e enredos tradicionais – traz à cena diversos personagens que receberam uma carta misteriosa para comparecer a uma festa num castelo. Porém, ao chegarem ao local descobrem que apenas um deles sairá vivo de lá. À tarde eu e o elenco tivemos um ensaio rápido, de marcação das minhas cenas, de forma que só foram passadas as cenas em que eu estava presente. Ou seja, Zeca me narrou uma sinopse da história, mas eu só iria conhecê-la mesmo a noite, na hora da apresentação! Minha personagem entrava em cena apenas no fim do primeiro ato e no segundo ato fazia muitas escadas diretamente para o palhaço. Havia, por exemplo, uma cena longa de paquera, bem conhecida no universo circense, que transcorria da seguinte forma: o amigo de Tubinho paquerava uma mulher e Tubinho, então, decorava os dizeres do amigo para usar com minha personagem, pensando que, como o amigo estava se saindo bem, se ele fizesse exatamente a mesma coisa comigo também me conquistaria. Porém, quando ele vinha falar comigo eu lhe fazia perguntas diferentes das que a mulher havia feito a seu amigo, que lhe exigiriam respostas diferentes. E exatamente nesse ponto residiam as piadas: eu lhe perguntava algo e ele repetia exatamente a frase dita pelo amigo, independente da minha pergunta. Por exemplo: Mulher: Você tem uma fazenda? Amigo: Tenho. Mulher: E o que você cultiva lá? 284 Amigo: Eu planto a mandioca. Mulher: E tem animais? Amigo: Galinha. Mulher: Ah, galinha? Amigo: É, e uma vaca também. Tubinho ouvia o que o amigo dizia à moça e vinha, então, falar comigo: Fernanda: Você tem mesmo algum carinho por mim? Tubinho: Tenho. Fernanda: E se passássemos a noite juntos? O que você faria? Tubinho: Eu planto a mandioca. Fernanda: Você pensa que eu sou o que? Tubinho: Galinha. Fernanda: Uma galinha? Tubinho: É, e uma vaca também. Além do exemplo acima, havia outros tantos diálogos que se desenrolavam da mesma forma. Ou seja, eu não poderia errar a ordem das perguntas feitas a Tubinho de modo algum, senão a piada não se completaria. E ainda havia outras tantas piadas entre Tubinho e minha personagem. Quando acabou o ensaio Angelita me ajudou a lembrar, novamente, da ordem das piadas e eu, então, as escrevi em meu caderno e corri para a carreta de Ana, onde fiquei até à noite, tentando decorá-las. Parei por uns instantes para ir à carreta de figurino e Débora me ajudou a escolher um vestido. Perto das 21 horas fui para o palco. Todas as personagens, com exceção da minha, entravam pelo corredor da plateia, ou seja, eu estava sozinha na coxia. Havia muito tempo que eu não ficava tão nervosa antes para entrar em cena. Eu estava fazendo o papel de uma mocinha, que comumente não faço em meus trabalhos, e era tudo tão incerto que eu mantinha um único pensamento: “Vou fazer o meu melhor para não atrapalhá-los”. Assim a peça começou e só então vi os atores, já no palco, muito bem caracterizados. O espetáculo se desenrolou bem e eu estava totalmente ligada e atenta, pois um descuido naquela situação tão improvisada comprometeria todo o elenco. No meio do segundo ato, em uma das cenas, Tubinho me mostrava uma foto sua de infância. E não é que Zeca entrou em cena sem a foto, denunciou o erro para a plateia – que acredito ter sido proposital – e foi até a coxia buscá-la, me deixando sozinha no palco? Estremeci por dentro. A minha vontade era de gritar “Tubinho, volta aqui pelo 285 amor de Deus!”. O que fiz? Escapei pela minha via “palhacística” e soltei um “Ói, que tonto!” para a plateia, um dos bordões mais conhecidos de Tubinho. Como respostas vieram algumas poucas risadas e uma certeza: eu não estava ali para fazer piada, para ser engraçada. Isso era função de Tubinho. Eu estava ali para ser a mocinha e lhe servir de escada. E isso já era suficientemente complicado. A peça continuou e, somente após minha última cena no terceiro ato, me dei conta de que não sabia como a peça terminava! Enfim, a peça terminou e descobri a história por completo. Pronto! Havia estreado num circo de teatro e agora podia voltar a respirar! Eu nunca havia passado por uma experiência artística parecida com aquela, que me suscitou milhões de sensações e uma vontade enorme de tentar de novo. Dias depois, quando retornei para Campinas ainda fui surpreendida pelo fato de que diversos espectadores que estiveram no circo naquela apresentação, acharam meu perfil no site de relacionamento Facebook e me enviaram solicitações de amizade. Essas pessoas, que já tinham ido algumas vezes ao circo, queriam saber quem eu era, se eu havia entrado para a companhia, etc. Depois desses primeiros dias, desses primeiros sustos seguidos de deliciosas surpresas, ao assistir aos outros ensaios e na convivência com os artistas fui compreendendo melhor como se dava a rotina de trabalho naquele circo e, principalmente, como se estruturava a arte de ator daqueles artistas. Quando o circo estreou em 2001, segundo Ana Dolores, a companhia ensaiava de manhã, de tarde e ainda à noite, depois do espetáculo. Isso porque era necessário criar um repertório amplo, que possibilitaria a realização de temporadas mais extensas em cada cidade. Não havia textos escritos e tudo era passado oralmente, ou nas palavras dos próprios circenses, de “orelhada”. Com o tempo, o repertório se solidificou e eles passaram a registrar por escrito os textos, como uma forma de documentação do trabalho desenvolvido. Hoje, após quase quinze anos de estrada e apresentando todas as noites, os ensaios continuam acontecendo, porém com menos frequência, geralmente quando o espetáculo foi levado há meses e precisa ser rememorado ou no caso de substituição no elenco. 286 E mais uma vez, percebo as afinidades existentes entre o circo-teatro e a commedia dell’arte. Dario Fo comenta acerca de Franca Rame, organizadora de seu livro Manual Mínimo do Ator e descendente de uma família de cômicos dell’arte: Por descender de artistas de teatro, Franca teve a grande sorte de viver, quando criança, o clima da comedia à italiana. Em sua família todos eram atores que percorriam a alta Lombardia realizando récitas. (...) O fato de esse grupo ter um repertório tão rico em comédias, dramas e farsas permitia que se apresentassem durante meses na mesma praça, mudando de espetáculo a cada noite. Segundo Franca, não existia a necessidade de ensaiar ou bater o texto. O poeta da companhia, o tio Tommaso, juntava os atores e distribuía os papéis, recordavalhes as trama descrevendo-a por quadros e atos, depois afixava na coxia uma espécie de escala, no qual estavam escritas as várias entradas e o argumento de cada cena. Acontecia também de montarem um espetáculo completamente novo, tirado de uma crônica ou de um romance. Tio Tommaso, o poeta, lia aos integrantes da companhia o roteiro por ele preparado, recheando-o dos mais vivazes e interessantes detalhes, e depois distribuía os papéis. Não se efetuavam ensaios; subia-se no palco e, após dar uma olhada na “escala” das sequências e das entradas, começava-se a atuar completamente de improviso. Cada um conhecia uma infinidade de diálogos apropriados, que naturalmente variavam de acordo com a ocasião, e principalmente saia de cor e salteado os assuntos de abertura e encerramento, isto é, as frases e os gestos convencionados que indicavam aos outros intérpretes as variantes, as mudanças de situação ou aproximação do final de um quadro, do ato ou do espetáculo. (...) Evidentemente, as confusões nesse tipo de atuação eram frequentes, havia perdas de ritmo, congestionamento de piadas, que se anulavam umas às outras. Girava-se em torno do nada, o espetáculo parecia enjoativo, e o riso era um fim em si mesmo. Mas havia os que conseguiam manter o espetáculo sempre de pé. Isso dependia também do rigor que o diretor da companhia sabia impor ao elenco... mas acima de tudo estava a habilidade e a feliz cumplicidade que se conseguia estabelecer entre os cômicos e o público a cada récita. (FO, 2011: 19, 20 e 23). Dessa forma, o ensaio representa, para os atores circenses, assim como representava para os cômicos dell’arte, algo diferente do que representa para um ator com formação mais ligada ao teatro oficial – como é meu caso. Esta última categoria de ator, por não se apresentar todas as noites, tem no ensaio um importante momento de busca de sua técnica pessoal. Porém, o fato de não estar diante de um público, muitas vezes, leva este ator a ensaiar de forma displicente. A velha ideia de que “treino é treino e jogo é jogo” prevalece e, portanto, a apropriação do ato de se ensaiar de maneira contundente é algo que o ator deve buscar por toda a vida. Em relação a isso, Yoshi Oida comenta: 287 Quando estamos fazendo um exercício, tendemos a pensar „ah, isso é só um exercício; se eu cometer um erro, não tem a menor importância‟. Entretanto, se cometemos um erro no palco, temos de seguir adiante e tentar compensá-lo. Não podemos parar e recomeçar. Na verdade, não podemos, de modo algum, nos dar ao luxo de cometer erros. Atores tradicionais que constantemente “testam” seu trabalho na frente de um público de verdade estão acostumados com esse tipo de problema, e seu trabalho tem um foco definido e imediato, mesmo quando estão apenas treinando. Todos os atores deveriam pensar desse modo quando se exercitam. Quando praticamos, é bom imaginarmos que estamos fazendo os exercícios na frente de um público. Rapidamente isso se torna importante, de modo que nos comprometemos totalmente, escapando de um certo desleixo. Desse jeito, a qualidade de nosso trabalho irá aumentar, e o treinamento será verdadeiramente útil. (...) O corpo aprende alguma coisa quando percebe que está sendo “observado”. Isso não é narcisismo ou exibicionismo, e nosso próprio corpo simplesmente fica acostumado a ser observado. Sendo assim, quando estamos realmente de frente a um público real, nosso corpo já está habituado a isso, de modo que não seremos surpreendidos por situações inesperadas e aterrorizantes. Na realidade, o público é o verdadeiro espelho. Não sei realmente como interpretar meu papel até o momento em que esteja em frente a uma plateia. É naquele instante que eu descubro. A sala de ensaio é apenas a preparação que leva à descoberta. O público é quem me diz como devo atuar (OIDA, 2007: 44, 45, 46 e 88). O artista circense é aquele que se forma, ao longo de muitos anos, primeiramente pela observação diária dos artistas mais experientes da companhia, de forma que ele vai sendo inserido, aos poucos e em pequenos papéis nas representações. Após este período de adaptação, o artista passa a se formar também no palco, no exato momento da representação diante do público todas as noites, e não na sala de ensaio. Desse modo, ele tem a oportunidade de se exercitar e construir sua técnica pessoal sem precisar imaginar que está diante do público, porque ele realmente está, noite após noite. E mais: ele se forma já na “linha de fogo”, por estar diante da plateia e, assim como descrito por Oida, não pode se dar ao luxo de errar. O artista circense, então, necessariamente precisa agradar e fazer com que o espectador volte na noite seguinte. Afora tudo isso, ainda há o desafio de levar a cena um espetáculo diferente todas as noites. Lucélia Reis escreveu em seu diário de bordo, no dia 21 de janeiro de 2010, sobre os desafios envolvidos no trabalho do ator circense: Aqui um desafio me surgiu. Uma das mais notáveis e comentadas vilãs da história do circo de teatro me caiu como uma pedra do alto do céu nas mãos. E eu preciso segurá-la com todo o conforto que uma boa atriz seguraria. Nesse momento, a menos de 24hs da encenação do espetáculo e eu nem com 50% do texto decorado vejo a personagem de várias formas: um desafio, uma bomba, um 288 medo, uma crença... Mas, acima de tudo uma prova. Vários pensamentos me surgem: Se eu tivesse mais tempo! Mas a prova é justamente essa no circo de teatro: o tempo para se compor um personagem é mínimo e ele tem que existir verdadeiramente. Minha expectativa é comigo mesmo. Meu desafio é meu. Minha crença é minha. Minha prova eu me coloco. Penso em sua voz, em seu corpo, mas o que me intriga é a alma de Irmã Terese; e tenho apenas uma madrugada para conhecê-la. Para conseguir ganhar a sua confiança de modo que ela se abra para mim e me mostre seus defeitos e segredos mais íntimos. Preciso conquistar irmã Terese em uma única oportunidade de encontro com ela 170. Com o relato anterior de Lucélia percebo algo ressaltado, inclusive por outra atriz, Ana Dolores, em entrevista. Ana me atentou para o fato de que no Circo de Teatro Tubinho, assim como nos demais circos de teatro, o trabalho de criação do ator é, na maioria das vezes, um ato solitário. Geralmente não há a elaboração de processos criativos coletivos e, dessa forma, cada ator percorre o caminho que melhor lhe convém para a criação de suas personagens. Numa espécie de auto-direção, o ator constrói seus personagens e, num segundo momento, Zeca, o diretor artístico da companhia, ressalta alguns pontos, dependendo de como se desenrolou a apresentação. Acerca disso a própria atriz Lucélia Reis levantou em entrevista: Cada ator sabe... Cada um estipula seu limite, até onde você quer ir, até onde você tem que aquecer o seu corpo, a sua voz, porque você que vai saber até onde vai. O trabalho do todo, ele é muito... Isso eu acho muito engraçado... Porque como é que você consegue essa unidade cênica, se você não tem processo? Eu acho muito louco isso 171. Refletindo sobre esta questão suscitada por Lucélia, levanto a possibilidade de que chega-se à unidade cênica, apesar dos artistas trabalharem pelo viés da criação de modo mais individual, porque existem paradigmas muito concretos que fundamentam o trabalho de todos. E, dentro deste contexto, buscando a sua continuidade e permanente incisão na vida das cidades por onde passa, o circo precisou manter alguns destes paradigmas e alterar tantos outros. Uma das maiores mudanças ocorridas nos circos-teatro das regiões Sudeste e Sul, já mencionada anteriormente, foi o fato de que as poucas companhias remanescentes 170 171 Lucélia Reis em seu diário de bordo, concedido à autora. Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 289 passaram a se dedicar exclusivamente às peças de teatro, não apresentando mais a primeira parte dos números de variedades. Dessa forma, esses circos driblaram as adversidades e se reinventaram, de modo que a maioria dos espetáculos teatrais passou a ser protagonizada pela figura do palhaço, que se tornou o carro-chefe dessas companhias, chamadas de circo de teatro. Porém, essas companhias mantiveram a característica de representar uma peça diferente a cada noite, de um repertório de dezenas de espetáculos. Este fator ainda é o que mais intensamente determina os alicerces da arte de ator num circo de teatro como o do Tubinho, por exemplo. E a articulação destes alicerces constrói, por sua vez, uma rede de combinações que sustenta todo jogo cênico “brincado” entre atores e plateia. O primeiro alicerce, num circo de teatro como o de Tubinho, consiste no fato de todos estarem em cena a serviço do palhaço. Ele é a figura central da companhia e, em cena, arremata todas as piadas – verbais e físicas – levantadas pelos outros atores, conhecidos como escadas, que continuam a utilizar da tipologia para a construção das suas personagens. A maioria dos espetáculos – que pertencem ao gênero da comédia – não está centrada na encenação do texto dramatúrgico, mas sim na situação de jogo criada entre os atores e a plateia. E este jogo abre grande margem ao improviso que ocorre, porém, não de maneira totalmente livre e aleatória, mas sim embasado em diversos recursos, sendo o principal a criação de um repertório em comum e a afinada cumplicidade cênica desenvolvida ao longo dos anos entre esses artistas. A questão da improvisação se estende, no Circo de Teatro Tubinho, para a relação espacial dos atores em cena. Diferentemente do que vimos no capítulo anterior acerca do Pavilhão Arethuzza, no circo de Tubinho não há a marcação rígida do posicionamento dos atores em cena e a divisão do palco por áreas e setores. Porém, apesar disso, há um intenso jogo criado pelos deslocamentos em cena, incorporado ao fazer desses artistas, e a utilização de termos como “cair” e “tomar a cena”. Sobre isso, Zeca comentou em entrevista: Na cena é mais a questão de entender até uma questão de jogo cênico que quando 290 uma pessoa chega ela demora um pouquinho a entender, mas com duas semanas, três semanas a pessoa já entendeu. Porque as peças não são marcadas né, não tem marca de cena, você vai pra lá você vem pra cá, você tá no meio você tá... Isso não existe então, quer dizer é uma marca de cena meio no olho assim, se tem um ator vindo pra cá eu automaticamente vou me colocar em outro ponto da cena porque a cena naquele momento é daquele ator, né? E quando a cena não é minha eu também tenho que entender que eu tenho que tá olhando pro outro ator que tá fazendo pra eu seguir a linha de raciocínio dele porque isso não tá marcado, né? Essa é uma coisinha que ás vezes o ator quando chega aqui meio que se bate meio que "ih onde eu fico, onde eu vou?" porque não tá marcado, e entre a gente vira quase que um ping- pong assim: eu tô aqui eu cruzei pra cá. Se eu tô cruzando pra lá, você pode ter certeza que no meio da minha fala o outro ator já atravessa pra outra marca pra limpar onde eu tô indo, né? Isso é uma coisa que acho que demora um pouquinho mais pra entender que o improviso. O improviso a pessoa entende um pouquinho mais rápido porque ela entende que é uma grande brincadeira, que é uma “tiração de sarro”, que eu vou “tirar sarro” da pessoa e que a comédia vive de improviso, mas acho essa questão cênica de marcação sem estar marcado que é uma combinação que a gente tem, sem combinar, é o mais difícil de entender 172. Há alguns anos, algumas peças no circo de Tubinho usavam o recurso do ponto, que constituía, portanto, mais um alicerce para os atores em cena. No documentário Circo de Teatro Tubinho (2006), da pesquisadora Ana Lúcia Ferraz, há uma cena do espetáculo Maconha, o veneno verde, antes de ser retrabalhado por Fernando Neves, em que Lucélia “ponta”, da coxia, uma cena entre Luciane Rosã e Zeca. Em relação a esse período em que utilizavam o ponto, Lucélia Reis destacou em entrevista o aprendizado proveniente de se “pontar” uma peça: Lucélia Reis: Eu aprendi muito, que na época em que eu cheguei aqui no circo, ainda se trabalhava com ponto. Então eu aprendi muito pontando, tempo de piada, eu aprendi pontando, tempo de texto, tempo de risada... (...) Porque você quando você tá pontando, você tem que ouvir muito a cena, ouvir muito o público, pra saber o momento certo de você pontar. Entende? Então eu aprendi muito pontando, então uma das características também pra você estar no circo teatro é você estar atento o tempo inteiro 173. Outro alicerce mantido ao longo dos anos diz respeito ao fato de que no Circo de Teatro Tubinho, assim como nos demais circos de teatro, o público continua ocupando o centro das atenções, participando ativamente da representação e constituindo o vértice de maior peso no jogo da triangulação. 172 173 Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 291 E, por fim, a máxima circense “comédia é pra rir e drama é pra chorar” continua viva, apesar do público, hoje em dia, apresentar-se inclinado, quase que em sua maioria, apenas à comédia. Acerca disso, Zeca disse em entrevista: Zeca: Eu acho muito bacana que o teatro tenha um porquê, tenha um motivo, que tenha uma mensagem ou que tenha uma visão política. Mas aqui não há lugar. Você entendeu? Se o cara quiser vir aqui é falar: "Eu quero assistir uma peça pra mudar a minha vida", ele não vem aqui. Não é aqui que ele vai vir. Porque aqui ele vai sentar e vai dar risada duas horas ou ele vai se emocionar duas horas. E as duas coisas tem que ser muito. Fernanda Jannuzzelli: E isso muda a vida dele sim, Zeca! Zeca: É, muda, mas de outra maneira. Mas não pelo pensamento. Pela emoção. Mas tanto na comédia como no drama tem que ser muito. Se o cara assistir uma comédia ele tem que rir muito. Se for um drama, ele tem que chorar muito. (...) Mais ou menos não serve pra nada. Tanto pra uma coisa quanto pra outra 174. Baseados em todas essas premissas, os atores constroem e desenvolvem suas técnicas pessoais sempre pelo viés da criação, no sentido de que cada um apreende, incorpora e retrabalha os mais variados estímulos, num trabalho individual de reconhecimento da articulação possível entre eles. Sobre isso, Tiche Vianna, baseada no trabalho que desenvolveu junto ao elenco do circo de Tubinho, disse: E é muito engraçado, porque até hoje quando vou ver os espetáculos eles colocam pra mim: “Você viu que eu usei, você viu que agora eu faço isso, agora eu faço aquilo?”. Então é muito interessante ver o quanto eles absorvem. Então é uma coisa muito diferente de um estudante de teatro... Porque o estudante de teatro, ele fica muito no teu pé pra saber como ele usa uma coisa que ele tá fazendo ali em sala, como é que ele se serve disso pra criar. E esse trabalho é eminentemente do criador. Então eu digo: todos aqueles atores ali são criadores. A sensação que eu tenho é que todos aqueles atores que estão ali no Circo de Teatro Tubinho, eles trabalham pelo viés da criação 175. Na entrevista com Ana Dolores pude entender bem o que Tiche Vianna quis dizer a respeito destes atores trabalharem pelo viés da criação, no sentido de que se apropriam das mais diversas referências e fazerem uso delas da maneira que melhor lhes cabe: 174 175 Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. 292 Ana Dolores: Não digo que todo mundo faça isso, mas tem muita gente que quando pega isso, depois que a gente teve a oficina aqui que vieram os diretores de fora, você vê também muita mudança de trabalho. Porque muitas vezes, as pessoas que trabalhavam no circo, achavam loucura esse negócio de aquecimento de voz, aquecimento de corpo. E a gente acabou acatando isso, que eu acho que é muito isso: você estar aberto a receber essas coisas e usar. Tem muitas coisas que precisa usar, tem muita coisa que não precisa, que EU, Ana, não preciso. De repente, VOCÊ, Fernanda, precisa. Eu acho que teatro é muito isso, o ator tem muito disso, eu acho. Fernanda Jannuzzelli: Algo de autoconhecimento? Ana Dolores: É... Você acaba... É o que você precisa fazer e o que você não precisa. Fernanda Jannuzzelli: Pra que, Ana, no final das contas? Ana Dolores: Ah, o objetivo maior é o Figura 109: Ana Dolores como Filoca e Tubinho em espetáculo ser bom... Bom pro público. E pra Tubinho, o Tigrão de Sorocaba. Sorocaba, 2014. você. Por exemplo, quando eu vou fazer um Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. personagem que me exige muito trabalho corporal, eu aqueço. Quando não, eu não aqueço. Por quê? Porque eu também tenho que pensar em mim como corpo-matéria-de-trabalho. Se eu me machucar, eu posso não poder fazer o espetáculo no outro dia, entendeu? Mas não são todos, tem espetáculo que eu até tenho... Filoca, que tem uma carga de trabalho corporal, que é no Tigrão, que a gente fez com o Dedé agora no final de semana. Ela corre o espetáculo inteiro... Difícil uma cena que ela não esteja, é muito difícil. Só que, por exemplo, o meu corpo já tá condicionado ao corpo desse personagem. Então eu não preciso aquecer tanto, se eu tiver com alguma dor, eu dou uma esticada, dou uma alongadinha e tal. Agora, por exemplo, o Rafik do Rei Leão que eu preciso trabalhar nas pernas e tal, eu tenho que dar uma aquecida maior. O macaco do Rei Leão. Então eu acho que é muito do ator, tem personagens que você já domina inclusive corporalmente. Então você não precisa ficar uma hora se aquecendo, aquecendo o corpo... Porque você já sabe... Já como vai colocar seu corpo, onde você vai colocar a sua voz, sabe?176 Neste trabalho de criação, os atores se valem de diversas referências, confirmando-se a ideia de que os circenses incorporam, retrabalham e rearranjam os mais variados estímulos, provenientes das mais diversas fontes. Acerca disso, Rubens Brito, ao descrever as lições aprendidas com os artistas dos circos-teatro visitados pelo Mambembe na década de 1970, escreveu: 176 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 293 A lição primeira é a de causar espanto: o descompromisso do artista em relação a qualquer tipo de medo. O medo de errar, o de não agradar, o de ser ridículo, o de ser “pichado” pela crítica. Liga-se a essa primeira, a segunda lição: a liberdade de se apropriar de tudo aquilo que ele quer a fim de criar sua personagem. Ele se dá o poder de incorporar a ela, a música que está no primeiro lugar da parada, o figurino da moda ou o sotaque de algum personagem conhecido da televisão. É no tablado do circo-teatro que se entende claramente o que é liberdade de criação (BRITO, 2006: 80). Ao entrevistar Nicolas Alexandre, sobrinho de Zeca, encontrei nas palavras deste adolescente de dezesseis anos as mesmas ideias apontadas por Rubens Brito no trecho acima, acerca da total disponibilidade do ator circense: Eu acho que, a primeira coisa é que não deve ter medo de trabalhar. Porque por exemplo, teve muita gente que veio... Algumas pessoas que vieram pra cá que estavam acostumadas a um mês, dois meses de ensaio, e chega aqui, chega na hora são dois ensaios, e pronto, acabou. Sabe como? Então, uma das coisas é essa, de meter a cara a tapa e fazer, sabe? Uma das coisas. Outra coisa também é... não ter medo do palhaço brincar com você, das pessoas brincarem com você em cena, acho que é mais ou menos isso 177. O primeiro ponto determinante na criação da técnica pessoal desses atores é que, muitas vezes, eles têm como grande referência o trabalho de algum parente mais antigo, que interpretava os seus personagens anteriormente. Portanto, quando o personagem chega ao ator, ele já vem construído e carregado de uma forte carga emocional e grande empatia, afinal quem o representava antes era um de seus parentes. No drama A canção de Bernadete, por exemplo, Nicolas Alexandre protagoniza uma das cenas mais belas e tocantes do espetáculo: trata-se do momento em que seu personagem volta a enxergar após lavar os olhos com a água milagrosa revelada à Bernadete pela Virgem Maria. Infelizmente só pude ver a montagem em DVD, pois assim como todos os outros dramas, A canção de Bernadete é pouco levada no circo. Porém, o desempenho de Nicolas é tão impressionante que a cena, mesmo por gravação, me arrepiou por completo. Ao questionar Nicolas sobre como se preparou para o papel, obtive a seguinte resposta: 177 Nicolas Alexandre em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 294 Na verdade assim, antes quem fazia esse personagem era o pai do Dionísio e do Jailson, então eu já assistia ele fazendo e fui pegando meio que de base. Minha tia (Ana), meu tio (Zeca), sempre falando para mim “Faz assim”, “Não faz”, “Esse aí ficou bom” e “Esse aí não”. Eu usei mais a visão das outras pessoas do que a minha própria visão do personagem. Eu usei bastante o que os outros pensavam sobre o personagem também 178. Figura 110: Nicolas Alexandre em A canção de Bernadete, 2013. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. A fala de Nicolas exemplifica, então, o caminho de criação utilizado no circoteatro o qual propõe ao artista um exercício de alteridade baseado na apropriação de um material exterior a ele, que já lhe é dado por um parente mais antigo e que será retrabalhado de maneira a se manter vivo, atual e em diálogo com o público daquele momento. Esse caminho foi possível de ser trilhado, pois, ao ver desde pequeno seus parentes atuando, Nicolas introjetou uma série de conhecimentos que hoje lhe soam como algo completamente natural, tamanho o seu grau de pertencimento. Em entrevista, Zeca discorreu acerca disso: Então, isso é tão natural pra gente no nosso dia a dia, que hoje eu botei o Nicolas pra fazer um esquete que ele nunca fez, que ele nunca subiu pra fazer escada pra mim e todas as escadas dele foram certas. Todas! Não teve uma que ele titubeou. E isso é feito exatamente como eu te falei: ele cresceu vendo e desde criança ele 178 Ibidem. 295 "Isso tava errado, isso tava certo, isso tava errado, isso tava certo". E aquilo entrou na cabeça dele... Hoje ele entrou pra fazer, a escada tava pronta!179 Outro exemplo nesse sentido me veio da entrevista com Ana Dolores, que contou acerca do drama O céu uniu dois corações: É difícil eu falar do Céu uniu dois corações porque a Santa é a menina dos meus olhos, né? Porque eu lembro que eu chorava muito com minha vó - eu era criança - e com a minha bisavó fazendo. Então eu tenho um carinho muito grande pelo espetáculo, tenho um carinho muito grande 180. Hoje, neste espetáculo, Ana interpreta Dona Santa, que um dia já foi interpretada por sua avó, e sua sobrinha Lívia interpreta Neli quando criança, que um dia já foi interpretada pela própria Ana. Figura 111: Ana Dolores e sua sobrinha Lívia em ...E o céu uniu dois corações. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Outro exemplo acerca da criação baseada na apropriação de materiais desenvolvidos por outros artistas foi o trabalho que as atrizes Ana Dolores e Cristina Martins desenvolveram juntas na composição da personagem Madre Terese, interpretada 179 180 Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 296 por Cristina no drama A canção de Bernadete. Em entrevista as atrizes relataram: Ana Dolores: A Cris... A grande pegada dela foi quando ela pegou a Terese pra fazer e eu fazia a Bernadete. E daí ela se apavorou, então eu pegava ela, ficava no meu quarto e a gente passava horrores, assim, o espetáculo. Eu já tinha trabalhado com outras Tereses e aí era “Vamos pegar uma coisa boa dessa aqui, uma coisa boa dessa aqui... Ó, fulana usava isso e funcionava muito bem... Põe o teu jeito, mas nessa intenção”. Então é esse tipo de coisa, né? Pra ficar legal, sabe? 181 Cristina Martins: Terese é uma personagem que eu já namorava desde que eu conheci o Dionísio e eu vi uma prima dele fazendo. E eu sempre gostei mais dos vilões do que dos mocinhos. Daí na época, quando o Zeca lançou esse espetáculo, ele... Eu digo sempre que ele me presenteou com ela. Eu fui logo pedindo ajuda pra Ana. Porque a Ana, no caso, na época, era a Bernadete. Então a gente tinha muitas cenas juntas, eu pedia pra ela me ajudar, porque senão eu não conseguiria ajudála também, né? Então foi a Ana que me preparou muito pra essa personagem. E daí a gente vai descobrindo que, por exemplo, eu já ouvi a vó do Dionísio, que fez muito tempo a Terese, ela disse pra mim uma vez: "Nossa, muito bem, muito bem, foi muito bem na Terese. Eu fazia diferente". E eu fiquei interessada, né? “Mas como? Será que eu posso aproveitar essa diferença?” Aí ela disse "Eu fazia má, você faz cínica." E eu descobri que realmente, eu fazia cínica. E eu vejo a Terese até um certo momento do espetáculo, enquanto ela é uma professora, eu vejo ela má, pouco perversa, um pouco malvada, com a menina. Ela pega muito no pé da menina porque a menina não aprende, ela não tem muita paciência. E depois é mais cinismo e é inveja mesmo, a inveja é tão grande que ela chega a debochar, vira um deboche. É uma personagem muito forte, eu gosto muito. E ela tem uma postura... Teve uma vez que em uma das minha cenas, eu me lembro bem dessa situação, eu dei uma gaguejada, e quando eu sai de cena, a Ana me pegou com firmeza brava e disse "Uma vilã desse porte jamais pode gaguejar, ela tem que ter muita força, ela sabe muito o que ela quer dizer, ela tem muita firmeza, ela fala com muita convicção tudo, então você não pode gaguejar nunca." E ontem ainda eu assisti o DVD, né? Tem uns colegas visitando aqui, e eles não viram ela mudada depois, né, com a nova direção do Zeca. Daí a gente tava assistindo e eu percebi que eu ainda abaixo muito o olhar. Essa gravação foi a segunda apresentação que a gente fez, e a gente comete mesmo o erro e depois a gente vai modificando, vai corrigindo, né? No DVD eu vejo que eu olho muito pro chão e eu aprendi numa oficina de teatro que eu fiz com a Tiche e o Ésio, a Tiche deu uma boa dica de vilão, que eles tão sempre olhando por cima, com ar de superioridade, os ombros muito retos, uma postura... Então eu aprendi isso e depois eu fui modificando, mas nessa gravação eu vi que eu ainda pecava nisso, mas é porque eu ainda não sabia muito 182. 181 182 Ibidem. Cristina Martins em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 297 Figura 112: Cristina Martins como Madre Terese em A canção de Bernadete, 2013. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. Além de se basear no trabalho dos artistas mais antigos da companhia, os atores circenses buscam referências no trabalho de quem mais lhes servir para a melhor construção de suas personagens, de modo que o ato de copiar não é visto como algo negativo. Acerca disso Lucélia Reis escreveu em seu diário de bordo, no dia 27 de julho de 2010, sobre o espetáculo infantil Aladin: Agora falando particularmente sobre meu trabalho em Aladin. Fui escalada para substituir Luciane Rosã, que por sua vez foi escalada para substituir Angelita Vaz que está nos observando atentamente da plateia com Lívia mamando incansavelmente. Meu presente foi o Servo. Já havia ouvido muitas histórias sobre esse simpático personagem. Soube que foi bravamente defendido por Maurem Miranda para quem a gralha cantou183 e depois por Luciane que sem ter visto Maurem seguiu pela mesma linha de trabalho. Porém eu não vi Maurem, mas vi Luciane e sem vergonha alguma de dizer a plagiei. Aqui no circo isso é engraçado. Quando você não tem muito tempo para pesquisar e compor um personagem você copia exatamente o que o ator que o representava fazia; pelo menos você não compromete o espetáculo. E para mim o Servo ainda está nesse ponto: apenas não compromete o espetáculo. O defendi apenas três vezes com cinco ensaios. Espero sinceramente poder defendê-lo mais uma vez para que ele nasça em mim e participe verdadeiramente e humanamente do espetáculo ao invés de apenas não comprometê-lo 184. 183 184 Referência ao prêmio do teatro paranaense Gralha Azul. Lucélia Reis em seu diário de bordo, concedido à autora. 298 Figura 113: Jailson Martins e Lucélia Reis em Aladin. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Angelita Vaz destacou em entrevista: “Copiar” no circo teatro não é ruim de uma certa forma. Como é tudo muito rápido, você não tem um tempo pra construir um personagem. Como se eu chegasse e falasse assim pra você “Ah, Fer, vamos fazer tal papel. Você dá uma lida no texto...”. Não dá pra construir o personagem, não tem como. Então você “Ah, vou ter referência do que estavam fazendo, vou pegar aquela linha...”. Até mesmo porque tem outra galera trabalhando com você em cena, então você tem que seguir uma linha ali, pros outros atores também não se perderem né?185 Dessa forma, os artistas bebem das mais diversas fontes para a criação de sua técnica pessoal. Ana Dolores, por exemplo, contou em entrevista que para a construção de sua personagem Dona Santa, além de se inspirar nas interpretações de sua avó e bisavó, também se baseou no sistema stanislavskiano, estudado por ela há muitos anos, para a composição da personagem, principalmente no que diz respeito à sua cegueira: Na Santa eu usei muita coisa do método do ator, do Stanislavski. Muita coisa. Tipo, quando o Zeca falou "Vou levar o Céu e você vai fazer a Santa", eu passei muito tempo sozinha na minha casa vendada. Fazendo as coisas vendadas, depois tirando a venda, mas com o olho ainda fechado, depois com a luz apagada, depois 185 Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 299 com o olho aberto, tendo a mesma sensação desde a venda, desde o olho fechado, pra sentir... Fiquei com a canela roxa, bati muito a mão, cotovelo, mas teve uma época da venda que eu conhecia o meu quarto vendada, eu achava agulha assim com o olho vendado 186. Já Nicolas Alexandre e Lucélia Reis exemplificaram a questão da extrema liberdade de criação que o circo proporciona aos atores e como estes estão sempre a se reinventar: Nicolas Alexandre: No Tubinho, Rock Mão Boa, por exemplo, é uma luta de boxe e eu sou o juiz e eu já tentei fazer uma coisa diferente, tentei buscar o do UFC. Porque já era comédia, era tudo esculhambado mesmo, Então, meio que busquei o narrador do UFC, até em caracterização do personagem mesmo, do cabelo, de pintar o cabelo de branco mesmo. Eu já busquei apresentadores, só que de outra categoria, diferentes também 187. Lucélia Reis: Você compõe em cena, você compõe o personagem em cena. Você ensaia, você tem uma ideia do que você vai fazer, daí você joga essa ideia na hora da peça. No CSI aconteceu comigo isso, eu fiz o meu personagem numa linha e meu personagem não existiu! Eu falei "Meu Deus, eu preciso mudar essa linha, porque é um personagem bom". Eu mudei completamente, assim, uma coisa que não tinha nada a ver, absurda assim, eu falei "Meu Deus, é absurdo, mas eu preciso acreditar em alguma coisa... É nisso que eu vou acreditar agora." A gente já levou essa peça em outras praças e tal... E até então meu personagem era aquilo. E eu percebi que o meu personagem podia ter mais, ele pedia mais, eu precisava criar alguma coisa nele além. Daí quando estreou aqui, eu fiz a simples riquinha filha dum magnata, louca, que toma remédio... Mas eu falei "Putz, mas cabe mais, né? Pô, é tão livre pra gente fazer, o que que eu podia fazer nessa liberdade toda?". Daí eu fiz... Depois que foi duas vezes o CSI eu fiz ela viciada em academia. Então numa cena eu entrava pulando corda, na outra com pesinho na perna, outra eu entrava com halteres, o velho morria e na cena da morte eu entrava com toca de natação e óculos de natação e ficava exercitando... São coisas absurdas mas pode... Pode, cabe tudo... Entende? E isso é foda, isso é fantástico assim. E vai da sua crença. Eu nunca entendi a tal da fé cênica, "Ah, a fé cênica, a fé cênica..." Aqui eu entendo o que é fé cênica, pode tudo desde que você acredite no que você tá fazendo, né? 188 Outro caminho usado por alguns dos artistas do Circo de Teatro Tubinho para a construção de suas personagens é o recurso da criação da gênese da personagem. Ana Dolores, em entrevista, contou: 186 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. Nicolas Alexandre em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 188 Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 187 300 Eu, às vezes... Tem uma cena que é do Gaúcho de Passo Fundo que a Bruna faz, e eu sempre converso com ela. Tipo, a Bruna diz "Ai, eu não consigo fazer, não consigo". E daí eu falei pra ela “Bruna, senta na sua casa e escreve uma história pra essa mulher. Por que ela casou com ele, o que ela...” Porque isso eu aprendi também, que quando você tem - é lógico, como faço muitos personagens, eu não faço isso com todos eles - mas quando eu tenho dificuldade com um deles, eu faço isso. Tem que saber de onde vem, como vem, como chegou aqui, por que ele tá falando isso, por que ele é daquele jeito, por que ele anda assim e tal. E daí eu passei isso pra Bruna 189. Em seu diário de bordo, Ana Dolores escreveu, no dia 16 de janeiro de 2011, sobre a criação de sua personagem na peça Tubinho, o leiteiro de ________ (nome de um bairro da cidade onde o circo está): Quando a Cotinha me caiu na mão, fiquei muito feliz. É uma personagem deliciosa, com nuances intrigantes. Ao compô-la pensei muito na primeira fase dela: uma moça pobre, mas que não se preocupa com isso, pois é apaixonada pelo marido e gosta do lugar onde vive. Resolvi então deixá-la com uma postura meio infantil, voz quase de criança, mas com um certo ar de conselheira. É honesta e cuida do Ventura (cunhado) como se fosse um filho. Ao ver a possibilidade de ganhar um prêmio de loteria, não almeja grandes posses. Porém isso muda quando o prêmio se torna realidade. Tem um certo deslumbramento com o mundo dos ricos, até se ver nele. Não se acostuma com a alta sociedade e passa a ser chorosa, se sente presa e não se conforma com o deslumbramento de Janjão (marido). Nessa fase resolvi deixar Cotinha quase “caricata”, fugindo do estereótipo da mocinha tradicional das comédias de circo-teatro. Andar meio desengonçado e quase sem postura, típico de alguém que está no lugar errado 190. Em entrevista, Cristina Martins também mostrou trilhar o caminho da criação da gênese da personagem: Tem um espetáculo, que agora tem um tempo que o Zeca não leva, que é o Chá de Panela, são 5, 6 mulheres, não lembro direito. Quando ele lançou o espetáculo, eu a Ana começamos a estudar o texto juntas, ela interpretava uma prostituta e eu uma solteirona. E elas eram todas amigas, uma prostituta, uma solteirona, uma casada, uma lésbica, um pura/virgem, que eu lembro era isso... Só que todas eram amigas, todas diferentes, mas todas amigas. Então eu e a Ana começamos a estudar esse texto e procurando saber, “mas porque que elas tão diferentes... onde foi que isso tudo começou, essa amizade começou? Porque que elas são amigas?” Então a gente começou a procurar coisas e dar identidade pra cada uma delas. Pra conseguir ter um entrosamento e desenvolver uma história 189 190 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. Ana Dolores em seu diário de bordo, concedido à autora. 301 que convencesse todo mundo. E foi assim, foi gostoso, na época foi muito bom 191 . Outro caminho de criação interpretativa levantado por todos os artistas entrevistados do Circo de Teatro Tubinho diz respeito aos novos conhecimentos adquiridos – e a constatação dos já existentes – com o projeto de reelaboração de repertório da Petrobrás. Nas entrevistas com os atores do Circo de Teatro Tubinho, foram citados, muitas vezes, o trabalho com Fernando Neves e as oficinas com os demais artistas da companhia Os Fofos Encenam, além do trabalho com Ésio Magalhães e a oficina com Tiche Vianna. Com relação ao trabalho com Fernando Neves, dissertei anteriormente a respeito das mudanças que ocorreram nos elementos da encenação do espetáculo O seu único pecado. Em relação, agora, à interpretação, destaco que o trabalho de Neves se centrou basicamente em limpar os excessos de intensidade dramática, não alterando a criação das personagens baseada na tipologia, distribuída entre os atores de acordo com seus temperamentos e physique du role. Todas as mudanças trouxeram novos elementos ou revitalizaram os já existentes, que, dialogados, trouxeram uma unidade cênica ao espetáculo e tornaram a história mais verossímil dentro dos parâmetros melodramáticos. Sobre este processo, destaco os pontos levantados, em entrevista, por Riccielly Lunardi, Luciane Rosã, Zeca e o diretor Fernando Neves: Riccielly Lunardi: A gente deu muita sorte porque o primeiro diretor que veio trabalhar com a gente foi uma pessoa muito sensível, que foi o Fernando Neves. (...) Foi jogado o primeiro ato pros anos 50 e 70. E o resultado foi magnífico, foi o primeiro empurrão pra gente, foi o Fernando quem deu. Deu uma limpada no nosso circoteatro, na carga excessiva, como mexer nesses textos que realmente devem ser feitos e tal, muito legal. Ele passou coisas pra gente, técnicas incríveis. Tipo: o galã encontra a dama depois de anos e corre pro abraço, se agarram? Não. “Não faz”, o Fernando passou “Não entrega. A plateia tá querendo isso, mas você não vai dar isso. Você vai dar tempo...”. Puxa, umas coisas que funcionam, que é muito legal e que a gente aprendeu e com isso a gente consegue montar os outros espetáculos. Não só o Fernando, claro, veio um monte de profissional, cada um 191 Cristina Martins em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 302 somou numa parte, veio maquiagem, oficina de maquiagem. Na maquiagem era o contrário, nós não exagerávamos, precisa ser exagerado, né... 192 Luciane Rosã: Então, o Fernando veio com uma proposta pra gente de não dramatizar muito a coisa. A gente vinha, eu trazendo a Maria de antes, ela era totalmente o extremo. Ela ria muito e chorava muito. E o Fernando deixou esse lado cômico extravasar bem mais e me permitiu fazer muito mais coisas no lado do cômico e me cortou totalmente a parte dramática. Ele mostrou pra gente que o sentimento, quem tem que chorar, é a plateia. Não é... Pra gente foi totalmente diferente. Eu ainda sinto, porque eu sou muito assim, eu me entrego muito pros personagens. Então às vezes ele falava assim "Segura aí, não chora, fica com essa cara, não chora, não derruba uma lágrima". E eu segurava ali, segurava, sabe? Porque ele queria aquilo, ele queria que a plateia chorasse. Ele queria que a gente segurasse o máximo a dramatização pra não passar... Vir mais de lá pra cá do que daqui pra lá, entendeu? Muito mais da plateia pro palco do que do palco pra plateia. E funcionou de certa forma pra gente. Porque a gente viu que não tem essa necessidade mesmo de se acabar ali em cena de chorar e o público às vezes chora com você até certo limite, depois não acompanha a gente 193. Zeca: O Fernando mexeu na interpretação. Diretamente na interpretação. O espetáculo é o mesmo, as falas são as mesmas, mas a forma com que elas são ditas aí mudou. Primeiro ato tinha uma cena de despedida que era uma choradeira, a primeira coisa que o Fernando colocou pra gente, foi assim "É bonito, emociona, mas por que eles tão chorando, cara? Ele só vai a SP levar um dinheiro, ele não sabe nada do que vai acontecer, entendeu? Ele vai a São Paulo em um dia e vai voltar no outro, pra que essa tragédia toda?”. Então, quer dizer, hoje virou uma despedida brincalhona, pra cima e tal, então mudou diretamente na interpretação. E eu acho que quando isso aconteceu com a Maconha, influenciou todos os nossos dramas. Diretamente. Às vezes eu sinto um pouco de falta quando eu vou assistir uns espetáculos dramáticos fora do circo, eu acho um pouquinho de excesso desse tratamento com os atores. Às vezes você vê que é uma cena que tá pedindo pra cara dar uma explosão e o cara ainda assim está interpretando e tal e isso chegou a acontecer com a gente em um determinado momento. Aí eu cheguei e falei assim "Gente, é bacana, é legal, mas a gente tem que entender, porque senão o espetáculo vai ficar frio, e não é isso que a gente quer". A Maconha, especificamente falando deste espetáculo, eu concordo exatamente com o que o Fernando dirigiu. Quando o Fernando veio, eles nos passaram muita coisa. Porque ele veio, veio o Fernando, veio a Carol, Marcelinho, Du. Então chegou uma galera que cada um pegou, por exemplo, a Carol ela falava "Eu vou botar um botão nessa camisa... eu vou botar esse botão na camisa porque...", entendeu? Tinha uma explicação porque tinha aquele botão. Isso eu acho que fez a gente entender, aprender muita coisa, sabe? Isso foi um ponto muito interessante. E a gente conseguiu entender que cada intervalo que a gente não tinha, tirava um pouco da história. Então a gente tava pescando o público fechava a cortina “2 minutinhos e a gente já volta". Era um corte na cabeça do público. Então eu acho que isso influenciou todo o lado dramático em cima do trabalho com Fernando. (...) Agora tem um intervalo só. Pelo Fernando não teria nenhum. Mas a gente 192 193 Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 303 falou "Poxa, a gente também vive de pipoca, de... precisa ter né?". E você sabe que isso foi uma coisa que a gente também aprendeu? A gente tinha cinco intervalos, supostamente “se a peça que tem cinco intervalos, a lanchonete...” e não. Não mexeu na nossa venda. A gente conseguiu conciliar as duas coisas 194. Fernando Neves: O Tubinho é muito inteligente. Eu quis fazer parte desse projeto deles porque ele claramente está pensando “Como é que eu trago isso pro século XXI”? Então, no caso da Maconha eu falei pra ele "Olha, primeira coisa: não vamos mudar texto". Eu já sei que texto de circo é muito alterado, já montado. E tanto é que eles nem tinham o texto escrito. Aí eles datilografaram, eles foram falando as falas e depois mandaram o texto pra mim. Então já tá alterado, já tá nesse arranjo aí já há muito tempo. Daí eu falei pra ele “Olha, a questão não é dramaturgia, mas vamos ver a Maconha. Aqui diz que é um homem, quer dizer que é o gerente do banco, que trabalha no banco e o gerente pede pra esse homem pegar uma pasta e depositar o dinheiro aqui em São Paulo. (...) Não tem cabimento hoje em dia. Banco? Pega o computador e transfere. Ninguém vai pegar uma pasta de dinheiro e pegar um trem pra ir pra São Paulo e, primeiro que hoje você pega ônibus, carro ou avião, não tem isso. Se a plateia não identifica, ela já começa a se distanciar. Você não vai chegar na emoção que você quer. Agora, se a gente colocar nos anos 50, por volta dos anos 50, o cara do interior... Ah, e outra coisa, como é que esse homem agora no século XXI nunca ouviu falar em maconha? Que é isso! Tá na televisão, tá no computador. A informação hoje não é problema, mas nos anos 50 era”. Tocava Maria Gadú com a roupa de hoje em dia... Eu falei "No teatro como você pode manter o seu texto... E vamos jogar pros anos 50, olha que bonito! Dá pro Fernando Esteves fazer uma pesquisa com os hits dos anos 50... Vamos trazer essas big bands, essas cantoras americanas dos anos 50. Então você transporta o público aos anos 50, os costumes, o comportamento da mulher, isso tudo sem mexer no seu texto”. Passa 20 anos e acontece o tal negócio que a mulher engana ele e rouba o dinheiro e ele fica viciado, porque depois ninguém o conhece, ele é dado como morto. “Vamos jogar pros anos 70, olha que legal os anos 70, o figurino dos anos 70 como é teatral: calça boca de sino, já encanta a plateia. O cenário, a gente vai mudar as mobílias, botar uns panos. A Carol pesquisou os tecidos e estampas dos anos 50, dos anos 70, as minissaias, botas”. Daí termina nos anos 70 e é absolutamente verossímil. (...) E eu trabalhei a interpretação. Porque eles faziam muita coisa, muita cara. E eu falei "Vamos mexer na interpretação, seja mais limpo, olha aqui, a plateia tá vendo, o quadro já tá muito estabelecido... então não precisa fazer tudo isso”. (...) O único que eu deixei foi o pai dele, então eu falei “Eu quero que todo mundo veja... Eu vou deixar todo mundo numa linha de interpretação mais atual, mais contemporânea, mas deixar o pai dele lá, pra todo mundo ver o ator antigo como ele... pra trazer esse requinte... e eu acho que ficou bem legal”. Porque já tem um tipo, eles já sabem com o que eles vão interpretar, tem um temperamento e cada um já está no seu lugar. Eles não precisam encontrar esse lugar, eles já vão pro palco, eles já nascem artistas sabendo qual que é, que lugar que ele tá. (...) Hoje em dia a história tá sendo contada e a plateia é muito esperta, ela já sabe. O texto já é escancarado. Quando começa a peça a plateia já sabe o fim, ela já tá preparada pra chorar que ela sabe onde vai dar tudo isso. Não precisa ficar anunciando também. Então isso, que eu trabalhei com limpeza, mas eu não interferi em quem ia fazer que papel, porque eu sei que é assim! E no melodrama a música é muito presente. Agora, como antigamente não, uma cena dramática entrava com uma música mais dramática 194 Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013. 304 pra plateia chorar, hoje em dia se a cena é muito dramática ou é o silêncio ou uma música que sejam uns sons ... Você não pode melar demais. Se a cena é muito dramática, então não bote uma música dramática, porque a plateia ri. Hoje ou você faz no silencio ou pega uma música bem dodecafônica, sei lá, qualquer coisa que traga um estranhamento, como se a cabeça da pessoa estivesse em desorganização, você trabalha em outro sentido, por outro lado 195. Figura 114: Cena final de O seu único pecado, 2012. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 195 Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. 305 Figura 115: Programa da peça O seu único pecado. Na foto o saudoso Bambí, pai de Zeca, 2011. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. Já na remontagem de Cabocla Bonita, o diretor Ésio Magalhães partiu pela questão do rearranjo da dramaturgia e uma redistribuição dos personagens entre os atores. Partindo do trabalho desenvolvido sobre a commedia dell’arte, Ésio propôs a readequação da dramaturgia de modo a se enfatizar o riso pelas situações cômicas, e não pelas piadas do palhaço, que segundo Ésio, às vezes desvirtuavam a história em demasia, perdendo-se o fio condutor da narrativa. As músicas da burleta foram resgatadas e criou-se, então, uma comédia com características diferentes das demais levadas no circo. Porém, por outro lado, o espetáculo necessita de mais ensaios, o que faz com que seja levada menos à cena e algumas das alterações precisaram ser revistas, como por exemplo, o próprio nome Cabocla Bonita, pois o fato de não haver o nome de Tubinho no título fez com que a quantidade de público nesta peça fosse menor que nas demais comédias. 306 Figura 116: Luciane Rosã em Cabocla Bonita, 2014. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. Com relação ao trabalho desenvolvido com Tiche Vianna, este se centrou em questões anteriores à cena, com o desenvolvimento de exercícios e jogos teatrais, inclusive com máscaras. Os atores do circo de Tubinho sempre se referiam a este trabalho nas entrevistas como um importante momento de retomada da dimensão do trabalho em grupo para a construção da cena. Muito se falou, também, sobre o novo olhar que Tiche Vianna lhes proporcionou acerca da importância do trabalho corporal na arte de ator. Sobre o trabalho, Tiche comentou em entrevista: Tiche Vianna: Eles têm uma investigação permanente, eles têm um estudo permanente, tudo isso era aquilo o que o cômico dell'arte também fazia, porque ele precisava se relacionar com o espectador. Então na verdade o que eu ensinei a eles? Eu ensinei a eles que existe um modo de fazer a cena que não pode ser tão displicente quando a gente tá na coxia. Porque a partir do momento que a gente tem uma relação quase que familiar a gente ou se respeita demais pra não invadir determinados aspectos que são pessoais ou a gente cria um amor entre todos nós, que a gente entende tudo. Os dois casos podem atrapalhar nosso trabalho coletivo. Então por mais que a gente tivesse fazendo exercícios e ações dentro da cena, eu não tava ensinando a eles como fazer commedia dell'arte, eles já sabiam fazer isso. Eu tava limpando uma esfera do trabalho que era cheia de 307 informações, na verdade. A gente tava se ajudando mutuamente, eu posso dizer isso, a reorganizar o conhecimento e não a adquirir novos conhecimentos. Fernanda Jannuzzelli: E a constatar que são conhecimentos, né? Tiche Vianna: Exatamente. E admitir com toda coragem do mundo e todo respeito do mundo que isso é conhecimento. Que a forma de organização deles, que o modo de realizar, que o jeito de fazer teatro, que o jeito de montar espetáculos, a preocupação de continuar caminhando, a preocupação em não estagnar. Tudo isso fazia parte de uma coisa que eles tinham no grupo deles e que isso muitos grupos, inclusive que saem da universidade, que tão aí não sei quanto tempo não fazem. Trabalham de uma forma completamente diferenciada. Isso foi muito importante. (...)Todo curso que a gente dá aqui no Barracão ele é sempre inédito, né? Que a gente tem algumas matrizes que fazem parte do jeito de abordar cada uma dessas coisas e de organizar depende um pouco de quem tá vindo e qual o recorte que eu vou fazer, que o Ésio vai fazer, o que nós dois vamos fazer se a gente tiver fazendo juntos. E com eles foi a mesma coisa. Parti das mesmas matrizes. E eu fui fazendo um recorte pressupondo que não era um grupo que não sabia trabalhar máscara, ele só não sabia que ele trabalhava máscara. Era pra que ele entendesse isso, na verdade... que no fundo trabalhando mesmo. E que existia ali um trabalho de corpo. Eles sofreram um pouco mais com a coisa do corpo, porque a pegada de corpo é um pouco diferente. Por conta de você ter uma afinação, ter um esforço físico e você tem que dominar esse teu corpo nisso. Por exemplo, mesmo o Zeca que tem uma puta pegada de um monte de coisa, tem um corpo super expressivo, o corpo dele faz aquilo, já fixou determinados pontos de apoio. Então você reinventar isso ai, você achar outras coisas que podem complementar... Também é uma investigação. E nisso, acho que a gente precisaria de mais tempo de trabalho, pra conseguir ir além. O nosso trabalho terminou num lugar que a gente ainda não conseguiria desconstruir pra reconstruir. A gente abriu frestas, foi mais isso. Eles conseguiram olhar praquilo que eles tinham, aquilo que eles faziam, e ter o desejo. Ter o desejo de encontrar outras coisas e eles partiram pra isso. Em vários níveis, desde uma mudança de expressão do rosto naquilo que eles faziam, pra um outro tipo de ritmo da cena , pra uma concentração. Então cada um foi achando percursos...196 Dessa forma, com este projeto de reelaboração das peças, Zeca e seu elenco se mostraram extremamente audaciosos e generosos, ao entenderem que apesar de não “deverem” nada ao teatro oficial, poderiam se apropriar de alguns elementos pertencentes a este outro tipo de fazer teatral para o melhor desenvolvimento do teatro que realizam debaixo da lona. Além disso, o projeto foi um momento de constatação e reconhecimento dos elementos técnicos já presentes no trabalho da companhia. Acerca disso, Zeca disse, em entrevista: (...) Uma coisa que eu achei bacana nesse projeto é que teve algumas coisas em algumas peças, não todas, que eu batia o olho e falava assim "Isso é legal, isso é bacana, mas isso não vai funcionar lá na nossa lona", porém eu fazia. Quando 196 Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. 308 chegava e batia e não funcionava, eu comecei a entender o seguinte: eu conheço esse público, eu entendo desse público. E isso foi uma certeza que o projeto me deu. Porque eu sempre fazia, sabe? Fazia, apresentava, voltava pra casa e acabou. Quando isso começou a acontecer, eu comecei a entender isso “Caramba, eu sei trabalhar pra essa gente, eu sei o que esse público quer ver”. Tem algumas peças que eu vou ver, em grandes teatros, grandes atores, que eu olho e eu falo "Isso no interior, das duas, uma: ou ninguém vai ver, o cara vai trabalhar pra 30, 40 pessoas ou vai começar a lotado e vai terminar com 30, 40 pessoas.” Como a situação inversa também acontece. A gente foi fazer o Lobisomem lá no Parlapatões e 40% das piadas não funcionaram. Eu falei “E agora?” Na segunda vez que a gente foi fazer no Parlapatões eu comecei a entender o que aquele público queria ver e aí foi diferente. E isso que eu vou te falar não é uma crítica, é uma constatação: o público que vem ao circo ele senta e fala "Ai, vou dar risada hoje, hoje eu quero dar risada, tomara que o Tubinho esteja engraçado pra caramba, quero rir!", ele vem com a família e ele quer rir. O público que vai pra espaços como o Parlapatões, o Satyros, não sei o quê, ele senta, ele põe a mão no queixo, entendeu, e ele começa a analisar aquilo, você entende? Eu acho que essa é a grande diferença. E a gente demorou um pouquinho pra entender isso, mas a gente conseguiu entender que a gente também consegue fazer rir lá. É diferente, é diferente. Por exemplo, as piadas escatológicas e tal tipo "Ah, vai cagar! não sei o que, não sei o que", aqui é um tiro, lá não. (...) Então eu acho que tem alguma coisa meio pra esse lado. Não tô falando mal, tô falando o que aconteceu com a gente, né? E eu acho que o público que vem ao circo, não. E é muito engraçado que você pode pensar assim "Ah, mas, então é povão, não sei o quê". Mas se você olhar a frente do nosso circo, você ver o cara chegando descalço e com o filhinho na mão e você vê o cara encostar a BMW... Isso é bacana, é muito legal.(...) Quando eu fui dirigir depois A orquestra dos bichos, o Abel197 que tava fazendo a assistência de direção pra mim, ele propôs uma coisa e eu falei “Isso é legal”. A segunda coisa que ele propôs “Legal!”, a terceira coisa que ele propôs eu falei "Abel, eu não consigo aqui deixar o espetáculo extremamente marcado. Eu tenho que pensar que esse espetáculo daqui dois, três meses vai ser levado com um, dois ensaios”. Quando eu crio a direção, eu tenho que criar a direção pensando em não deixar o espetáculo bonito só naquele dia. Eu preciso limpar o espetáculo e ajeitar o espetáculo pra que depois eu consiga fazer ele com dois, três ensaios. É a nossa forma de vida, e o Abel conseguiu entender isso e a gente conseguiu colocar... O Cabocla Bonita ficou lindo, mas a gente não consegue fazer só com dois ensaios. Então não é uma forma que eu consigo imprimir pra todos espetáculos. O que aconteceu com A canção de Bernadete? Também a direção era minha e eu não... Foi um dos aprendizados que eu trouxe da Canção da Bernadete: eu preciso deixar o espetáculo melhor, eu preciso deixar o espetáculo bonito, mas eu não posso deixar ele muito coreografado. Por quê? Porque amanhã ou depois eu vou ter substituição no meu elenco e eu vou ter que ensaiar duas ou três vezes porque a temporada tá rolando. Eu acho que tem o que a gente quer, tem o que a gente não quer e tem o que é possível, então a gente tenta sempre no que a gente quer e é possível 198. Mais uma vez, estes artistas se mostraram como verdadeiros atores-criadores ao incorporarem as novas referências advindas dos trabalhos com os diretores convidados e 197 198 Abel Saavedra , da Cia Serafim de Teatro, de Campinas-SP. Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013. 309 entenderem o que lhes servia e era possível de ser feito no circo, além de reconhecerem tecnicamente pontos do próprio trabalho que já realizavam há anos. 3.6 O palhaço Tubinho Quando assisti ao palhaço Tubinho pela primeira vez eu simplesmente não acreditava no que estava vendo. Num primeiro e brevíssimo momento, estranhei o fato de um palhaço, caracterizado como tal, contracenar com personagens em outro nível de estilização – que não é tão “cotidiano” quanto um teatro de cunho realista, mas também não chega ao nível de estilização característico da linguagem do palhaço. Porém, pouquíssimo tempo depois eu já estava completamente envolta pelo jogo teatral, de forma que o que soou, num primeiro momento, como um choque de linguagens, se tornou algo completamente verossímil e até irrelevante. Isso porque aquele elenco estava me propondo algo simples: apenas que brincássemos juntos. Mas, ao mesmo tempo, apesar de estarmos cientes de que tudo não passava de uma grande brincadeira, em nenhum momento o que acontecia no palco soava como falso. Pronto! Eu estava completamente extasiada. Todas essas reflexões acerca do que havia se processado comigo ocorreram a posteriori, pois no momento em que estava assistindo ao espetáculo eu simplesmente ria como uma criança. E, para alguém que é atriz, que estuda teatro e, portanto, desenvolve uma visão crítica sobre seu trabalho, esses momentos de total envolvimento e arrebatamento diante do fenômeno teatral se tornam cada vez mais raros. E isso não aconteceu só comigo; acontece por onde o Tubinho e seu elenco passam. Eu pude testemunhar em setembro de 2014, por exemplo, a participação de Zeca como convidado de honra da 2ª edição do Encontro Geraldo Riso, organizado pelo Coletivo Geraldo Riso, do qual o grupo que faço parte, Dupla Cia, é um dos integrantes. Durante uma semana, Zeca nos passou “de orelhada” a comédia A noiva do defunto, cujo palhaço era o outro grande convidado de honra do Encontro, Teófanes Silveira, o Biribinha. Além disso, Zeca, Riccielly Lunardi e seu filho Ricciellyinho 310 participaram do Cabaré Geraldo Riso, apresentado pelos grupos organizadores e os grupos convidados, na unidade do Sesc Campinas. Como a cidade de Campinas ainda não foi visitada pelo Circo de Teatro Tubinho, muitas das pessoas que constituíam o público ali presente não conheciam o palhaço Tubinho. E até mesmo alguns dos artistas dos grupos que participavam do Encontro Geraldo Riso conheciam a sua fama, mas nunca tinham o visto ao vivo. Zeca, por sua vez, estava extremamente nervoso na coxia, pois sabia que entraria em cena para apresentar para um público formado por muitas pessoas “da classe”, diferentemente do público que frequenta o seu circo. Como eu já esperava, a apresentação de Tubinho e seus comediantes foi um sucesso e quando o cabaré acabou os comentários eram todos em torno deles. As pessoas queriam saber quem era aquele palhaço que elas nunca tinham visto na vida e com o qual tinham morrido de rir. Além de todos esses acontecimentos, me lembro desse dia com muito carinho, pois nessa ocasião tive a oportunidade de estar, como palhaça Begônia, no mesmo espetáculo que o meu mestre Tubinho. Zeca é, sem sombra de dúvidas, Figura 117: Tubinho (Zeca) e Begônia (Fernanda Jannuzzelli), no Cabaré Geraldo Riso. Campinas, 2014. Fonte: Arquivo pessoal da autora. agraciado com um talento extraordinário. Beto Magnani, ator da Cia Pessoal do Faroeste e amigo íntimo de Zeca, disse no prefácio do livro de piadas de Tubinho: “Pereira França Neto não poderia fazer outra coisa senão ser o palhaço Tubinho. O seu talento é mais uma condenação do que uma dádiva” 199. 199 In NETO, Pereira França (org). As melhores piadas do Rei do Riso. Santa Cruz do Rio Pardo: Editora Viena, 2006. 311 Além de talento, Zeca possui vocação para a cena e também para a administração dos negócios do circo. De 2001 até hoje o circo prosperou significativamente, como vimos já no início desse capítulo e hoje Zeca, com apenas trinta e cinco anos, é uma grande referência para o público em geral e para diversos renomados artistas de circo e teatro. Tubinho faz jus ao slogan “O Rei do Riso” e o Circo de Teatro Tubinho ao slogan “O mundo mágico da alegria”. Zeca cresceu em meio a uma família circense, pintou a cara pela primeira vez aos dois anos e trabalhou pontualmente como palhaço, antes do circo, em festas de aniversário e eventos, porém ainda não com o nome de Tubinho. Aos dezenove anos, resolveu retomar o circo da família, com o nome do palhaço herdado de seu tio, Juve Garcia. Porém, como já descrito em uma passagem anterior desta dissertação, a ideia inicial era que Riccielly Lunardi fizesse o palhaço, pois ele possuía mais experiências em circo-teatro do que Zeca. Essa mesma história me foi narrada por Zeca, em entrevista, ainda no ano de 2010, durante minha pesquisa de Iniciação Científica 200: Na verdade a maioria das peças não tinha o texto escrito, mas o meu pai sabia. Daí veio o Ricielly... Na verdade eu contratei ele pra fazer palhaço pra mim, quando eu contratei. Aí ele falou pra mim: “Cara, o palhaço é a figura central do seu circo, você vai trabalhar em cima do nome do palhaço. Amanhã ou depois, sei lá, por algum motivo eu resolvo ir embora, você perdeu todo o seu trabalho. Então não adianta, o palhaço tem que ser você!”. Daí eu falei: “Mas cara, eu não tenho gancho, eu não tenho pegada”. “Mas eu te ensino!”. Sabe o que ele fazia? Em cena, ele preparava a piada, passava por mim e me dava o tempo da piada, assim no ouvido. Daí eu pegava e dava o desfecho, em cena! E assim foi, ele me ensinou bastante 201. Zeca também disse em entrevista, em 2013, que não possui um único ídolo, mestre ou referência, mas sim que possui vários, o que vai completamente ao encontro do fato do trabalho desenvolvido no circo ser agregador de múltiplas formas e linguagens: 200 Esta mesma passagem, contada, porém, do ponto de vista de Ricielly, pode ser encontrada também nos extras do DVD “Senta que o Tubinho vai entrar”, gravado em 07 de novembro de 2010, na cidade de Cerquilho – SP. 201 Zeca em entrevista concedida à autora em 27/03/2010. 312 Meu trabalho é um pouco de olhar para o trabalho de todo mundo, sabe? Não tenho, por exemplo, um cara que eu me espelho, que pra mim assim... Tem algumas coisas que meu pai ensinou, às vezes tem coisas que eu vejo, sei lá, nos Trapalhões e que eu também uso e, sabe... Então quando eu fui fazer o meu escritório aqui no circo, eu coloquei tanta imagem assim porque realmente eu acho que o meu palhaço é uma pitadinha de cada um. Assim, eu fui olhando, vendo o que era legal, tentando entender o que porque que eles faziam rir, né? E eu acho que não tem ídolo assim que eu fale "esse cara, me deu o direcionamento e tal". Eu acho que não justamente por ser uma mistura de uma galera 202. Figura 118: Escritório de Zeca, 2014. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Desse modo, a partir do fazer empírico, que propõe o aprendizado já no momento da cena diante do público, Tubinho ganhou vida e amadureceu ao longo dos anos. Em entrevista, Angelita Vaz comentou acerca do trabalho de seu marido e companheiro de cena: 202 Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013. 313 É interessante eu falar do palhaço do Zeca, né? Como eu tô desde o início, desde antes de surgir o Tubinho, eu vi todo o processo de crescimento né? Hoje o palhaço tá num amadurecimento... Engraçado que muitas pessoas buscam uma justificativa pro nosso trabalho. Porque assim, “Como pode hoje em dia você atrair tantas pessoas pra baixo de uma lona, 600 pessoas pra baixo de uma lona, pra saírem de frente de uma televisão, da frente de um computador, vir assistir um palhaço, que é uma figura assim tão esquecida pelas crianças de hoje e pelos adultos também... O que faz essas pessoas virem até aqui, muitas vezes chovendo, com frio, pisar no barro e ficar essas duas horas aqui?”. Muita gente tenta achar uma explicação. Ah, o Tubinho é uma entidade, ele veio e... Mas não é, é fruto realmente de muito trabalho. Muita gente fala que não tem explicação. No fundo tem: o Tubinho é um personagem muito bem construído pelo Zeca, que levou anos pra ser construído. E ainda está sendo, porque ele aprende um pouco todo dia em cena. Uma piada que ele joga hoje, ele sabe que funciona, amanhã ele vai trabalhar um pouquinho mais essa piada, um Figura 119: Tubinho em Tubinho de minissaia. pouquinho mais a outra, vai excluir algumas... Então Piedade, 2014. quer dizer, às vezes eu acordo durante a noite ele tá Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. pesquisando algumas piadas, ele vê muito stand up, tudo em relação à comédia. Se ele vai numa livraria e tem uma coisa de piada, ele leva tudo. Então é isso, o Tubinho é fruto de um trabalho muito bem feito, muito bem construído e tá sendo ainda e vai muitos anos trabalhando em cima dele. (...) É fruto de trabalho, de pesquisa, ele sempre tá pesquisando pra entrar com alguma coisa nova em cena, além de tudo isso, aquela coisa que eu brinco assim: você dá vida pra aquele personagem e você tem que viver pra ele, não importa se tá doente, se tá com febre, você tem que botar a roupa e pintar a cara toda noite... 203 Um palhaço de circo, circo-teatro ou circo de teatro, como o Tubinho, entra em cena com um único e grande objetivo: fazer rir. E mais: fazer o público “se arrebentar” de rir. Sem parar. Melhor ainda se chegar a doer a barriga! Sobre a função atribuída ao riso, destaco brevemente, através das palavras de Alice Viveiros de Castro, que: Durante milênios e até nos dias de hoje valorizamos a sabedoria e a capacidade para vencer, seja lá o que isso signifique. Por isso, a apologia do trabalho, da moderação, do equilíbrio. Grandes valores, sem dúvida, mas a vida não é só isso: existe a farra, a festa, o prazer! E assim o homem vai vivendo, equilibrando-se entre os contrários, compreendendo a necessidade de “ganhar o pão com o suor do seu rosto”, mas criando mecanismos para escapar das pressões cotidianas, 203 Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 314 reagir aos exageros dos puritanos e se contrapor à tristeza e à violência do mundo. Millôr Fernandes complementou Aristóteles dizendo que “o homem é o único animal que ri e é rindo que ele mostra o animal que é”. Pronto. A principal função do riso é nos recolocar diante da nossa mais pura essência: somos animais. Nem deuses nem semideuses, meras bestas tontas que comem, bebem, amam e lutam desesperadamente para sobreviver. A consciência disso é que nos faz únicos, humanos. (...) Quando Aristóteles diz que o homem é o único animal que ri está chamando a atenção para o quanto a capacidade de rir nos aproxima dos deuses. Se só o homem ri é porque o riso está ligado ao espírito e à razão, capacidades próprias do humano, portanto o riso nos faz superior aos outros animais. Rimos com o espírito, com a inteligência. Como bem sabe aquele que ri por último porque demorou a entender a piada, é preciso compreender para achar graça. (...) O palhaço está presente em todas as culturas, e a mais antiga expressão do personagem é a que se faz presente nos rituais sagrados. Desde o início dos tempos, o riso foi e ainda é utilizado como elemento ritual para espantar o medo, especialmente o medo da morte. (CASTRO, 2005: 15, 17 e 18). Inúmeros são os estudos que se aprofundam na questão social envolvida no ato de rir. Porém, minha intenção com este trabalho não é a de adentrar este ponto da questão, mas sim investigar os aspectos fundamentais, ligados ao riso, que podem servir ao trabalho do ator. Douglas Novais destaca: Devemos observar que é, no mínimo, estranho haver tantas teorias sobre o riso e tão poucas sobre a comicidade do ator. Entretanto, não devemos deduzir, com isso, que seja uma insistência infértil produzir teoria para comediantes. Se assim fosse, deteria minha escrita, deteria meu estudo. Mas, diante dessa disparidade, temos que reconhecer que a teoria não está exatamente para aquele que quer ser cômico, mas sim para aquele que quer compreender o cômico de um modo consciente. Basta reconhecermos que, em termos práticos, engraçado é aquele que faz rir, não aquele que estuda o fenômeno do riso. Engraçado é o Chaplin, não o Henri Bergson ou o Aristóteles (NOVAIS, 2012: 63). Apesar, portanto, de não adentrar profundamente a questão social envolta no ato de rir, parto do pressuposto básico de que um palhaço entrar em cena para fazer rir é, por si só, válido e necessário, pois o humor reafirma a sua humanidade, “(...) assim como a daquele que ri de sua lógica inversa. Isso por que o riso, na sua acepção, se inclui nos processos biológicos fundamentais do ser humano” (SOUSA JR., 2012: 73 e 74). Alice Viveiros de Castro nos atenta ainda para o fato de que: Um palhaço é um ser estranho que bota a mão no fogo, que põe a cabeça na guilhotina e que se expõe nu em sua tolice e estupidez. O palhaço é diferente do 315 comediante. Ele não conta uma história engraçada. Ele é a graça, ele é o risível. A torta bate primeiro no seu rosto, o pé encontra a sua bunda e o tapa, a sua cara. Literalmente o palhaço dá a cara à tapa! Por isso não acho graça em palhaços cheios de discursos moralizantes ou politicamente corretos. Palhaço quando faz discurso fala besteira. Palhaço erra. Palhaço não fala sério. Quando o palhaço é bom, nós, o público, é que escutamos e percebemos o quanto de sério e verdadeiro pode estar entranhado nas tolices e patetices daquele ser tão atrapalhado e estúpido. Palhaço não pode vir com legendas explicativas, senão acaba a graça, acaba a palhaçada (CASTRO, 2005: 257). Além de possuir uma importância por si só, o palhaço desempenha um papel fundamental no espetáculo de circo. Segundo Roberto Ruiz: “Antolin Garcia, um dos mais bem sucedidos empresários circenses do Brasil, afirma que „Circo sem palhaço é um homem de muletas‟” (RUIZ, 1987: 11). Repensando a afirmação de Antolin Garcia na atualidade, percebi que nunca ouvi falar ou encontrei em minhas pesquisas um circo “tradicional” brasileiro, sob o qual Garcia se refere implicitamente, que não tivesse um palhaço. Apesar desses circos apresentarem espetáculos completamente diversos, um cirquinho do interior do nordeste brasileiro e o Circo Tihany, por exemplo, têm em comum, pelo menos, o fato de reservarem um espaço da apresentação para, pelo menos, um número de palhaço. Contudo, a função deste personagem no espetáculo varia entre esses circos de grande, médio e pequeno porte: Nos grandes, os palhaços têm pequenas participações no espetáculo, vindo a ocupar breves intervalos de preparação do picadeiro para números grandiosos, como a montagem de jaula, trapézio, etc. Isso provocou mudanças no repertório e no modo de atuação dos palhaços. O uso da voz e de roteiros falados tornou-se problemático e a preferência recaiu sobre curtos esquetes mudos. Em contrapartida, os circos médios e pequenos têm no palhaço sua grande força motriz, com atuações em entradas, reprises, quadros cômicos e encenações teatrais diversas, como comédias e dramas (BOLOGNESI, 2003: 12). Acerca destes circos de pequeno e médio porte, o autor ainda destaca: A pluralidade do espetáculo circense brasileiro propiciou ao palhaço o desempenho de papéis e funções que o espetáculo clássico europeu desconhecia. (...) todo um repertório de comédias foi, aos poucos, sendo formado, de modo que o artista cômico do picadeiro pôde expandir sobremaneira as suas formas de atuação. Desse encontro adveio uma forma cênica aberta, formada e baseada na capacidade de interpretação e de improvisação do palhaço, que teve a liberdade e a audácia de não estar restrito a gêneros fechados (Idem: 53). 316 Nos circos de teatro da atualidade, que são, em sua maioria, de pequeno e médio porte, o palhaço é a figura central da companhia. No Circo de Teatro Tubinho, por exemplo, na marquise onde se instala a lanchonete do circo, há pôsteres de fotos dos artistas e suas assinaturas. Todos estão com trajes de gala e assinam seu próprio nome, exceto Zeca, que está caracterizado como Tubinho e assina como tal, e não como Pereira França Neto. No Circo de Teatro Tubinho, quando abre-se a cortina, o espetáculo começa sempre com algum personagem já em cena, mas nunca Tubinho, pois a sua entrada é um acontecimento à parte, que extrapola os limites da cena ficcional. Na maioria das vezes, então, não demora muito a alguém chamá-lo, ao passo que ele entra sempre com a vinheta “Tubinho, o rei do riso”, provocando a primeira quebra na ficção que havia sido estabelecida. Tubinho que, de imediato, já foi ovacionado pela plateia, agradece o carinho do público ainda com a vinheta ao fundo, em seguida faz um gesto para que se interrompa a música e solta um de seus famosos bordões, “Deus te ajude!”, tirando o seu chapeuzinho e elevandoo para o alto, acima de sua cabeça. Nesse momento a primeira risada coletiva já aconteceu e em vários pontos do circo já se ouve as pessoas repetindo o bordão anteriormente proferido. Em sua pesquisa que resultou no Figura 120: Tubinho fazendo sua gag após o bordão “Deus te ajude!” em Tubinho, o exterminador do teu furo. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. livro Palhaços, Bolognesi comentou acerca de uma situação análoga ocorrida no Circo-Teatro Bebé, caracterizada por essa espécie de riso espontâneo da plateia, “como se esta estivesse predisposta ao relaxamento e ao riso, independentemente do enredo apresentado” (Idem: 184). O autor completa: 317 (...) Esse riso autônomo é assegurado por uma espécie de cumplicidade entre a cena e a plateia, entre o palhaço e o público. Mas, evidentemente, ele ultrapassa o estágio da predisposição para se tornar efetivo a partir do desempenho do artista, isto é, de sua atuação (Idem: 184). Após esse primeiro momento – em que a cumplicidade já está estabelecida pelo histórico positivo da trajetória do circo naquela cidade, que contempla não só os espetáculos, como também as demais ações nos campos ético e moral –, a peça se desenrola e o palhaço “rouba o fio da história de modo a colocar os demais personagens gravitando ao seu redor” (SOUSA JR., 2012: 95). Fruto de um árduo trabalho de busca da técnica pessoal de Zeca, Tubinho é um palhaço extremamente carismático e cativante, no qual percebe-se claramente a sinergia e conexão existentes entre as suas dimensões interior e exterior, que resultam em uma atuação verdadeiramente viva. Em Tubinho vemos, de maneira vibrante e enérgica, a concepção descrita por Bolognesi do que vem a ser um palhaço: A personagem-palhaço é tributária de um complexo simbólico que opera com um tipo de cômico geral e uma inspiração individual. Como tipo, ela pode ser tomada como uma máscara arquetípica, com traços tipológicos característicos. Essa máscara, contudo, é individualizada e traz as marcas psicossociais que o artista confere à personagem. (...) A construção da personagem, assim, obedece a um determinado perfil individual, que se apoia nas características corporais do ator e em sua própria subjetividade. Mas, para alcançar o estatuto da personagem, o ator procura adequar suas matrizes internas às características tipológicas do palhaço, oriundas da tradição da bufonaria. A síntese desses universos distintos propicia a expressão de uma subjetividade por meio de um tipo cômico aparentemente imutável. Isso confere ao palhaço um grau de universalidade que se manifesta de forma particular. Logo, ele é, concomitantemente, único e universal. Assim, ele materializa no corpo, na indumentária, nos gestos, na maquiagem e na voz os perfis subjetivos e psicológicos que fundamentam sua personagem. Obviamente, não se trata daquela psicologia profunda que caracteriza o teatro dramático de cunho psicológico (BOLOGNESI, 2003: 197 e 198). 318 Figura 121: Zeca, como Tubinho, e seu filho Victor em Tubinho, o exterminador do teu furo. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Tubinho é um palhaço extremamente verborrágico, característica comum a tantos outros palhaços brasileiros. Veremos mais adiante que, apesar de não constituir um tipo de teatro centrado no texto dramatúrgico, as encenações no Circo de Teatro Tubinho exploram, consideravelmente, as ações vocais dos atores. Porém, apesar de toda verborragia, Tubinho é dotado de um corpo extremamente expressivo, que fixou determinados pontos de apoio que lhe conferem uma identidade e que está “em constante alerta para a improvisação e que tem nas reações da plateia seu necessário impulso”. (Idem:70). Além disso, Zeca explora demasiadamente os seus diferentes registros vocais, utilizando toda a extensão de sua voz, de modo que Tubinho tem um jeito próprio de falar – carregado de seu sotaque curitibano –, que as crianças ao fazerem o personagem Tubinhozinho, por exemplo, reconhecem facilmente e buscam reproduzir. Além de todo esse apurado trabalho corporal e vocal, Zeca, assim como os demais palhaços circenses, explora a composição de Tubinho também fazendo uso de um figurino e de uma máscara/maquiagem. Como visto anteriormente nessa dissertação, estes elementos seguem certa tendência de uma tradição de circos de teatro da região sul do país, 319 em que os palhaços usam ternos quadriculados e maquiagens extravagantes nas cores preta, branca e vermelha. Zeca possui ainda um segundo figurino para Tubinho, também clássico, composto por uma calça grande e preta, uma camisa amarela e uma grande gravata azul. Em entrevista, Zeca contou que criou a maquiagem, que usa ainda hoje com algumas modificações, quando tinha por volta de dezesseis anos, inspirando-se nas maquiagens de outros palhaços, através da pesquisa em um livro que tinha em casa com fotos de vários deles. À primeira vista, um público especializado, porém habituado ao palhaço teatral – e não ao do circo de teatro – tende a considerar a maquiagem de Zeca um tanto exagerada, pois praticamente todo o seu rosto é coberto. Ésio Magalhães, por exemplo, contou em entrevista: Quando eu olhei a maquiagem do Tubinho pela primeira vez, eu pensei “Nossa... Muito carregada! Eu jamais me maquiaria daquela forma!”. E, depois, vendo o trabalho do Tubinho eu olho e eu digo “Mas são máscaras incrivelmente desenhadas, por causa do rosto dele obviamente, mas a maquiagem ajuda”. A maquiagem ajuda. Isso é muito bacana. Num primeiro momento eu achei que aquilo nunca se mexesse. Entende? E não é. Quando você começa a ver o leque de expressões que ele tem é incrível. E é muito físico, muito corporal 204. Tubinho possui, então, uma maquiagem impactante e extremamente funcional, que atua como uma verdadeira máscara, extremamente flexível e que lhe permite a exploração de múltiplas expressões. Um dos momentos que sempre me chama a atenção nos espetáculos para esta questão do trabalho facial e de máscara do palhaço Tubinho ocorre quando, na trama, algum personagem dá um texto consideravelmente mais longo e ele, mudo de ação verbal, “joga na máscara” as reações ao que está sendo dito pelo outro personagem. Ou seja, Zeca cria ações corporais para gerar códigos, capazes de serem compreendidos pelos espectadores, que indiquem que algo está se processando interiormente com Tubinho. Isso me faz pensar que, no circo, dificilmente os atores caem na habitual armadilha de se deterem a aspectos da atuação ligados a ideias abstratas, e não ao que é materialidade e concretude nesse ofício. Acerca disso, Yoshi Oida diz: 204 Ésio Magalhães em entrevista concedida à autora em 23/04/2013. 320 Como atores, não podemos interpretar uma filosofia, ou uma ideia, ou um estado. É impossível. (...) Se estamos tentando comunicar o tédio, temos de interpretar uma versão muito interessante do tédio. Se o público perceber que estamos nos desviando dele, isso não é tédio no teatro, é teatro entediante. (...) Em vez de interpretar um estado, devemos procurar por detalhes muito concretos, e, quando tiverem sido todos reunidos, o público poderá perceber quem você é (OIDA: 105 e 106). Dessa forma, se um personagem está lhe explicando algo ou lhe dando alguma instrução, Tubinho nunca fica estático, apenas ouvindo o que lhe é dito. Zeca não tenta interpretar o estado “estar ouvindo”. Ele realiza uma porção de ações – e por que não caretas? – que transmitem aos espectadores a informação “o palhaço está pensando”. Apesar de sua maquiagem se mostrar extremamente funcional, Zeca, como um bom artista circense, está sempre dialogando com outros artistas e se renovando. De forma que ele vem testando pequenas mudanças na maquiagem, baseado nas indicações do trapalhão Dedé Santana que, há algum tempo, lhe sugeriu que diminuísse a largura dos traçados pretos das sobrancelhas e da boca. Figura 122: Tubinho e Jailson Martins em Tubinho no velório. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. 321 Tiche Vianna, no trabalho desenvolvido com o Circo de Teatro Tubinho, também levantou a possibilidade de alteração de partes pequenas da maquiagem de Tubinho. Tiche contou em entrevista: Eu sempre invoquei um pouco algo com a maquiagem dele. Porque eu tenho dificuldade de ler os traços do rosto dele e eu gostaria de ler mais. Eu lembro numa época, acho que quando a gente tava fazendo o curso, isso tava bem acentuado, eu lembro que me espantou a qualidade das expressões de rosto do Tubinho... Dele jogar mais com o traçado. Eu sei que agora, a última vez que eu fui, eu falei “Pô, você tirou um pouco do preto”... Ele tá mexendo, acho que de alguma forma ele tá buscando um caminho menos caricato entre aspas, bem entre aspas, o caricato da maquiagem daquele palhaço. Eu sinto que ele tá dialogando mais a musculatura do rosto dele com o traço. E acho que ela vai se transformar e também vai melhorar do ponto de vista da expressão “máscara” do palhaço 205. Nas imagens abaixo podemos ver como estes pequenos detalhes – a diminuição da altura das sobrancelhas, da largura do risco preto lateral e também o detalhe vermelho na boca – suavizaram a maquiagem de Tubinho, que passou a dialogar mais com a musculatura e os traços de seu rosto: 205 Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. 322 Figura 123: Maquiagem antiga de Tubinho, 2014. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Figura 124: Atual maquiagem de Tubinho, 2014. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Figura 125: Tubinho com sua maquiagem antiga, 2008. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 323 Figura 126: Tubinho com sua nova maquiagem, 2014. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. Figura 127: Expressões faciais de Tubinho, 2014. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Fotos: Li Teles. 324 O saudoso pai de Zeca, Bambí, costumava reproduzir a afirmação, comum entre os circenses, de que todo bom palhaço é um bom ator, mas não necessariamente um bom ator é um bom palhaço. Pensando sobre todos os bons palhaços que já vi atuando como outros personagens e sobre todos os bons atores que já vi se aventurando pelo universo da palhaçaria, me inclino a concordar com essa informação. Zeca é um ator de extrema presença física e verdade cênica. E ele atua com tamanha naturalidade que passa a impressão de que faz isso sem nenhum esforço. Ao ler o trecho abaixo, escrito por Dario Fo, associei-o diretamente a sensação que tenho quando vejo Zeca em cena: Em teatro, o ator deve (...) dar a impressão de estar atuando sem esforço algum e totalmente descontraído. Porem, não devemos economizar ou atuar em um tom mais baixo. Devemos, isso sim, aprender a agir com perfeito equilíbrio e controle, desenvolvendo uma grande potência em progressão inteligente, programada, localizando cuidadosamente pausas e respirações, de maneira a dar impressão de que não estamos fazendo absolutamente nenhuma força (FO, 2011: 131). Um dos momentos que mais me chamou atenção em relação à potência do trabalho de ator de Zeca foi a cena da morte de Tubinho no espetáculo Ghost ou não goste – Tubinho do outro lado da vida. Na trama, Tubinho é um pai de família, que vive estressado e resolve tomar uma dose muito maior de seus remédios. A cena de sua morte é extremamente construída e rica em detalhes: a família está em uma acalorada discussão e Tubinho começa a se sentir um pouco mal, num registro bem menos estilizado do que lhe é costumeiro. O desconforto vai aumentando e, de repente, a sensação de estranheza causada pela diminuição do nível de estilização é quebrada por um cômico “Que esquésito”. Com o aumento do desconforto ele se dirige ao fundo do palco – posição que dificilmente ocupa –, se descabela e solta, com uma voz doce de criança, a frase “Eu não tô passando bem”, o que nos faz rir novamente, porém de outro jeito, com certa pena dele. Então ele toma uma overdose de remédios, que o faz melhorar à primeira vista e, já dopado, sentencia um de seus famosos bordões, “É divertido!”. Nos momentos finais, 325 no ápice da crise anterior à morte, Zeca abusa dos recursos corporais e das expressões de suas máscaras, em espasmos que o levam ao chão. Eis que surgem, então, suas últimas palavras: “O que será que o Datena206 vai falar de mim?”. Pronto. Tubinho morreu, mas o público está gargalhando. Dentro da uniformidade de seu tipo, Tubinho transita, sempre de maneira criativa e, claro, engraçada, pelas mais diversas situações. Dessa forma, em uma peça o encontramos como o empregado da casa, noutra ele é um fazendeiro que chega à capital com o restante da família, ou ainda é um professor, um cowboy temido, o capitão da Tropa de Elite, um candidato ao prêmio do Big Brother Brasil, um lutador de boxe, um marido medroso que vive preso a “rédeas curtas” pela esposa, um candidato a prefeito da cidade onde o circo está, dentre outras dezenas de situações. Aqui reside um dos maiores atrativos do circo de teatro: o público que vai um dia ao circo passa a querer ver Tubinho nas demais situações sugeridas pelos atraentes títulos das comédias, anunciadas sempre nos intervalos, também necessários à venda das defesas207 e propaganda dos patrocinadores da cidade. 206 José Luiz Datena é jornalista e apresentador do programa sensacionalista Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes de Televisão. 207 Defesa é como os artistas do Circo de Teatro Tubinho chamam os alimentos vendidos na lanchonete. Atualmente há a defesa da pipoca, batata, maçã do amor, algodão doce, milho cozido, churros, refrigerantes, água e cerveja. Além disso, também entra como defesa os anúncios de patrocinadores da cidade. Cada defesa fica a cargo de um artista, que divide os lucros com a administração do circo. 326 Figura 128: Cartaz da peça O Tubinho quer mamar, s.d. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Figura 130: Cartaz da peça Tubinho no velório, s.d. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Figura 129: Cartaz da peça Tubinho o soldado trapalhão, s.d. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Figura 131: Cartaz da peça Tubinho o sobrevivente do Titanic, s.d. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. 327 Figura 132: Cartaz da peça Tubinho o macumbeiro, s.d. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Figura 133: Cartaz da peça Tubinho o homem da pistola torta, s.d. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Todos esses diferentes papéis assumidos por Tubinho sempre são extremamente verdadeiros. Isso porque o palhaço de Zeca simplesmente brinca de fazer a peça, como uma criança brinca de casinha. Porém, Zeca e o seu elenco não brincam sozinhos; eles convidam o espectador a também entrar na brincadeira. E, nesse sentido, Não há como envolver esse público na situação cômica, se não se conquistar a sua cumplicidade. Para isso exige-se que o palhaço busque trazer a assistência para a situação encenada. Aponta o ator e palhaço Domingos Montagner, do grupo teatral La Mínima: (...) uma coisa muito importante é essa cumplicidade que você tem que ter com a plateia, de combinar o jogo que você vai fazer. Todo mundo tem que entender como é o jogo (...). Acho muito semelhante com uma coisa de criança. Porque a criança brinca com muita verdade. Acho que o palhaço tem muita semelhança com isso. Ele conta a verdade, mas deixa claro para a plateia que é brincadeira (SOUSA JR., 2012: 80 e 81). Essa brincadeira é tão bem estabelecida que torna-se irrelevante o fato de Tubinho ser um palhaço em meio a outros personagens – que variam em nível de 328 estilização, mas não chegam ao nível do composto pelo palhaço. Ao conversar com Zeca, em entrevista, sobre essa espécie de licença poética, ele disse: É, então, eu já pensei várias vezes nisso. E sabe o que é o mais legal? É que dentro dos contextos ele é normal, né? Não tem nenhum personagem que entra na casa, estranha e fala "Nossa, um palhaço!". Não, ele é um personagem dentro do... Só que eu acho assim, a plateia pode até estranhar no começo, no início do espetáculo, depois que eles entendem, sabe? Sabe o que acontece muito? Quando eu vou fazer um espetáculo específico numa cidade onde nunca passou um circo teatro na vida e eu vou no teatro da cidade. Você entendeu? Aí na hora que o palhaço entra, a plateia faz... sabe? "O que é isso?". Mas quando é no circo, nunca aconteceu isso 208. Ésio Magalhães em entrevista destacou acerca deste ponto também: É até uma questão meio estética, né? Como é que dialoga... Aí eu te digo: No popular isso dialoga muito bem. Eu logo esqueço e aquela figura me dá uma licença. Entende? Eu acho muito interessante esse contraponto. Porque a figura maquiada, aquela figura me dá uma licença, entende? De falar “Ah, vai cagar!” (...) dá pra falar isso sendo palhaço, porque na vida... (...) não se resolve assim. Lá a licença é do palhaço. Então nesse sentido eu acho que o nosso olhar de público dá essa licença e a nossa vontade de ver o espetáculo, aquele acontecimento, logo torna isso irrelevante. Não tem uma coisa... Não tem... É um convite ao imaginário. Eu acho super pertinente assim, de verdade, a maquiagem e a caracterização 209. Figura 134: Tubinho e Dionísio Martins em Tubinho de minissaia. Piedade, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. 208 209 Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013. Ésio Magalhães em entrevista concedida à autora em 23/04/2013. 329 No Circo de Teatro Tubinho todo jogo cênico é “brincado” sobre um ritmo extremamente ágil, ditado pelo próprio palhaço. Angelita Vaz destacou em entrevista: Aqui no circo, pra gente o agradar... A pessoa tem que sair com dor de barriga de tanto dar risada. Esse é o agradar pra gente, então a gente se preocupa muito com isso... Se você for pesquisar outros circos-teatros, o timing deles é outro tipo do nosso, é bem diferente. Eles são um pouco mais lentos, e quem dita isso também é o palhaço. E o palhaço do Zeca ele é mais ágil. E quem trabalha com ele corre atrás. Fica nessa mecânica assim “Vamos correr, vamos correr, riu – rárárá – tem que vir outra piada, outra piada, outra piada”... 210 Zeca domina com maestria o tempo cômico e, para mim, isto ficou completamente evidente em outra passagem da peça Ghost ou não goste – Tubinho do outro lado da vida. Tubinho chega ao céu e narra para Matusalém que nos portões de entrada avistou algo que parecia um relógio, mas que na verdade não era. No dia em que assisti a essa peça, Tubinho deve ter ficado em torno de uns dez minutos apenas nessa brincadeira do “Parece um relógio, mas não era um relógio!”. Ele narrava um pouco mais da história de sua chegada ao céu a Matusalém, mas, a todo momento, voltava ao ponto do “Parece um relógio, mas não era um relógio!”. Não sei precisar ao certo quantas vezes Tubinho repetiu essa frase e permaneceu nessa piada. Só sei que foram muitas e muitas vezes. E, a cada vez, Tubinho alterava algo, acrescentando um detalhe no modo e no tempo de dizer, que levava o público cada vez mais às gargalhadas. E, para arrematar, no fim da peça, quando Tubinho acorda e descobre que tudo não passou de um sonho, a primeira coisa que conta a sua família é que avistou na entrada do céu algo que “parecia um relógio, mas não era um relógio”. O público, por fim, gargalhou e aplaudiu em cena aberta. Os espetáculos, instaurados sobre este tempo cômico exato e justo, então, centram-se na situação de jogo criada entre os próprios atores e também entre eles e a plateia. O palhaço usufrui de uma extrema liberdade de criação e flexibilidade ao improviso, sugerido pelas constantes referências incorporadas, responsáveis por manter o espetáculo atual e em profundo diálogo com cada plateia pelas cidades por onde o circo 210 Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 330 passa. E isso, portanto, conduz os artistas circenses a “um jeito de representar mais despojado e próximo da maneira de ser do público.” (VARGAS, 1981: 98). A improvisação, alicerçada sobre um repertório rico e constantemente renovado, está na base da arte de ator de diversas manifestações teatrais cômicas, das quais o circo-teatro, inclusive, adveio. Dario Fo comenta sobre a commedia dell’arte: Os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações, diálogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória, as quais utilizavam no momento certo, com grande sentido de timing, dando a impressão de estar improvisando a cada instante. Era uma bagagem construída e assimilada com a prática de infinitas réplicas, de diferentes espetáculos, situações acontecidas também no contato direto com o público, mas a grande maioria era, certamente, fruto de exercício e estudo. Os cômicos aprendiam dezenas de “tiradas” sobre os vários temas relacionados com o papel ou a máscara que interpretavam (FO, 2011: 17). Tubinho desenvolve, então, há anos, dentro dos parâmetros do modo de atuar do palhaço de circo de teatro, um extenso repertório de gags físicas, gestos característicos e infinitas piadas verbais e bordões. Um trabalho de criação como esse só pode ser feito a base de muita dedicação, pesquisa e constante reformulação. Acerca disso, Lucélia Reis comentou em entrevista: O Zeca é um cara extremamente inteligente e atento, então ele não para. Eu acho que o Zeca respira, sonha, dorme, come palhaço, trabalho, né? Então por isso ele tem um repertório incrível... Ele pesquisa e não só pesquisa, ele é muito atento, ele trabalha e parece que ele tem, assim, dez ouvidos. Ele escuta uma agulha que cai na última fila e aproveita aquilo em cena. (...) E ele tá ligado em tudo o que acontece. Tudo 211. Tubinho criou, ao longo dos anos, diversos bordões e também agregou ao seu repertório algumas expressões sulistas, comuns a outros palhaços de circo de teatro. Sempre que solta um dos bordões, acionados nas mais diversas peças e nas mais variadas situações, o público ri e muitas pessoas o repetem em voz alta. E, algumas vezes, acontece algo em cena e o bordão não é dito não por Tubinho, mas sim por alguém do próprio público, que se utiliza da expressão pertencente ao palhaço para exprimir a sua sensação diante da cena. 211 Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 331 O público, então, conhece e repete com Tubinho seus famosos bordões: “Deus te ajude!”, “Ói, que tonto!”, “Eu fico prostituto”, “12345 tchau”, “Psionante”, “Senta e arrodeia”, “Esterça”, “Ah! Vai cagar!”, “Não fala comigo... Tô em depressão”, “Eu tô dimulido”, “É bucha!”, “É divertido!”, “Ai q dó que eu tô de mim”, “#chateado”, “Nada a ver”, “Fodex”, “Ai que ódio!”, “Psuído pelo Nenonho”, “Chera meu pau”, “Ah! Fá favô, né?”, “Eu a-do-rei!”, “Zazarento”, “Fio da purga”, etc. Figura 135: Homenagem de fãs a Tubinho, s.d. Fonte: Página de relacionamento de Na Estrada com o Tubinho na internet. Além disso, Zeca utiliza com bastante frequência o recurso da quebra da ilusão cênica, num jogo contínuo entre ficção e realidade. Ana Lúcia Ferraz destaca acerca de uma das peças da companhia, Tubinho contra o lobisomem: Tubinho traz para a cena o jogo do teatro, a brincadeira com a fábula, revelando a sua construção, evidencia o erro dos atores, ri de verdade no palco (...). Traz referências aos meios de comunicação de massa, invade o teatro com a publicidade e a TV, desconstrói os meios de comunicação, desrespeita as fronteiras das artes, revelando o jogo da representação. Recorro aqui às reflexões de Denis Guénoun, diretor e pensador do teatro contemporâneo, para 332 compreender o que se deu neste episódio. O autor diz que “no teatro hoje só resta o jogo dos atores” (:130), (...) “o jogo que não se apaga sob seus efeitos de figura” (:131). Os atores mostram hoje que estão representando (:132). Mas o que se desnuda assim não é a pessoa do ator, sua identidade plena, seu ser de antes (ou de fora) da representação: é seu jogo (Guénoun, 2004:132). (...) Todas as figuras mantêm a narrativa da fábula, mas o palhaço quebra o espaço da representação denunciando-o, revelando-o. O elenco experiente sabe que é este o jogo e retoma a fábula já revelada enquanto tal. Como diz o ator que faz o palhaço Tubinho, somente com um elenco pronto para retomar a história e trazer o espectador de volta do riso é que o teatro se mantém (FERRAZ, 2010: s/n) 212. Figura 136: Juninho Assis, Tubinho e Jailson Martins em Tubinho o capitão da tropa de Elite. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Eu poderia citar aqui uma lista interminável de momentos das representações que assisti em que Tubinho rompia com a narrativa da peça, revelando algo do plano real. Cito, entretanto, apenas alguns exemplos: num dos esquetes, em determinado momento dois atores cochichavam algo que não deveria ser ouvido por Tubinho, que rebateu “Não adianta falar baixinho que tem microfone e eu ouvi tudo!”. Na peça Tubinho contra o lobisomem, o segundo ato inicia com o Lobisomem dançando com uma mulher ao som de 212 FERRAZ, Ana Lúcia. Inovação e tradição no Circo-Teatro brasileiro. In: Anais do VI Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2010. Disponível em: www.portalabrace.org/vicongresso/territorios/Ana%20Lucia%20Marques%20Camargo%20Ferraz.pdf. Acesso em: 10 nov. 2014. 333 Mistérios da meia noite. Mais adiante na narrativa, Tubinho solta: “O Lobisomem matou oitenta pessoas, feriu quarenta e cinco e ainda achou tempo pra dançar uma música do Zé Ramalho”. Ao chegar ao céu na peça Ghost ou não goste – Tubinho do outro lado da vida, Tubinho solta piadas como “Olha a voz de Deus sai das caixas!” e “Você não é um anjo! Você é a menina da pipoca!”. Ainda neste espetáculo, Tubinho tem direito de fazer dois pedidos a Deus. Então ele pede para ver sua família e para agilizar as obras da marginal em Sorocaba, na qual o circo estava armado. Assisti a este espetáculo no período em que estava ocorrendo a Copa do Mundo no Brasil. Obviamente Zeca fez referências ao evento na peça em passagens como: “Eu não posso morrer agora. Eu ainda não completei o meu álbum da copa”. Quando falou pela primeira vez com Deus, representado por uma voz em off, Tubinho soltou: “Pai, Posso fazer uma pergunta? Você pode tirar essa dúvida do meu coração?”. “Posso”. “Por que 7 a 1, pai?”. A referência ao placar do jogo do Brasil contra a Alemanha foi compreendida de imediato pela plateia que riu e aplaudiu em cena aberta. Na peça Tubinho e o morto que não morreu uma criança começou a chorar na plateia, ao passo que Tubinho soltou “Mãe era Tihany, mãe! Tihany!”, em referência ao circo que estava também na cidade de Sorocaba. Nesta mesma peça ele recebeu um recipiente da atriz Angelita Vaz, que dizia ser estricnina. Tubinho, então, virou para plateia, mostrou o frasco e disse “Dipirona!”. Depois, usou todo o veneno do frasco e, surpreendentemente, tirou outro do bolso e soltou “Esse eu trouxe de casa... Eu vim no ensaio e já sabia o que ia acontecer!”. Para finalizar estes exemplos, cito uma passagem extremamente interessante do espetáculo de encerramento da temporada, no caso o Obrigado, Sorocaba. Num dos esquetes, Zeca e Angelita protagonizam uma discussão no plano ficcional em que Tubinho foge para a plateia com medo da personagem de Angelita. Porém a discussão do plano ficcional é recheada de referências ao fato real dos dois serem marido e mulher. Este é o último espetáculo do circo na cidade e todos já sabem que eles são casados, de modo que as brincadeiras em torno disso criam muitas camadas na representação, que se torna extremamente envolvente e engraçada. Em entrevista, Angelita Vaz contou: 334 Olha que interessante: esse mesmo esquete a gente leva no segundo final de semana da praça. Chama Escritório. Já é no primeiro sábado. E a gente faz esse esquete sem nada dessas piadas que você viu, em relação de marido e mulher, não tem nada daquilo. Eu sou uma mulher qualquer, que vem cobrar ele que não pagou, tal e tal. No Obrigado, como tem aquela relação com o público... Eles têm uma relação de muito carinho com a gente. Eles já sabem coisas da gente, sabem se um ficou doente, se ficou com febre, coisas que a gente nem imagina como que ficaram sabendo, mas eles já sabem, né? Ai, no Obrigado, quando a gente entra pra fazer esse esquete, a gente brinca né? A plateia já tá ganha... A gente entra com liberdade pra brincar com coisas da nossa relação... Então imagina a gente entrar na cidade, já no primeiro fim de semana e levar o esquete da mesma forma como a gente leva no Obrigado, vão falar “Que é isso? Não tem nada a ver isso daí”. Então por isso que a gente brinca, como eles sabem que a gente é marido e mulher então eles se divertem, né? Faz uns quatro anos eu acho, mais ou menos, que o esquete é assim no Obrigado. A primeira vez surgiu assim, a gente entrou pra fazer, eu e o Zeca, e não sei o que ele começou a falar do meu cabelo, meu cabelo tava armado. Aí eu entrei pra fazer a esquete de cabelo preso num rabo de cavalo, porque tava muito armado meu cabelo. Aí ele brincou com aquilo... falou “Ah, tá preso assim porque tá desse tamanho, não sei o que...”. E o povo rachou o bico de dar risada. Aí ele “Opa!”. E aí fez mais duas piadinhas. Ai ele falou “Oh, que bacana, o povo gosta desse tipo de piada”. Aí depois ele sempre acrescenta alguma coisa... 213 Figura 137: Tubinho, Riccielly Lunardi e Angelita Vaz no esquete O Escritório, no espetáculo Obrigado Sorocaba. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. 213 Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 335 Além de desenvolver continuamente seu repertório, outro grande mérito do palhaço Tubinho é que Zeca consegue transitar continuamente entre a malícia e a ingenuidade, o que confere ao personagem uma forte presença de espírito e dimensão humana. Pensando que o palhaço é, ao mesmo tempo, universal e único (BOLOGNESI, 2003), a malícia advém do humor grotesco presente na parcela arquetípica da tradição do palhaço e a ingenuidade, que lhe dá um ar infantil, é resultado da criação particular e subjetiva de Zeca. Segundo ele, Tubinho “apesar de ter uma malícia, não é maldoso. Ele tem uma malícia bobona... Ele é um bobão que acha que é esperto” 214. A tensão entre malícia e ingenuidade, aliada a um afinado senso de contemporaneidade, fazem de Tubinho um palhaço especial, capaz de fazer rir sem denegrir. Isso porque Zeca construiu Tubinho habilmente baseado nos jogos linguísticos da sátira e da paródia; dessa forma, Tubinho nunca é irônico, pois a ironia trabalha pelo o viés do destrutivo, uma vez que “parte do princípio da superioridade daquele que ironiza sobre quem é ironizado” (BOLOGNESI, 2006: 16). E, se tem algo que Tubinho não é, é ser superior a alguém. Quando vai exprimir, por exemplo, a feiura de uma pessoa, usa como parâmetro a sua própria, com a piada “Eu pedi pra nascer feio, mas esse aí implorou!”. Ou seja, tudo não passa de uma grande brincadeira, de um convite ao imaginário. Dessa forma, Tubinho pode expressar amor por uma personagem, por exemplo, através da ingênua gag com os elásticos de sua calça, mexendo-se como um menino doce e dengoso, com destaque para os movimentos de seus braços e mãos; ou através da maliciosa gag em que sua comprida gravata é ressignificada, remetendo-se a um falo. Mas mesmo nesse caso há espaço para a ingenuidade, pois Tubinho não é obsceno; ele realiza a gag em que faz alusão à masturbação, porém tirando a sua atenção dessa ação, o que nos dá a leitura de que ele a faz sem perceber. Tubinho é, então, um palhaço que faz uma piada maliciosa como “- Minha prima Marieta foi pra praia de lambreta, veio a onda de rosqueta e molhou sua canela”, “214 Trecho da entrevista de Zeca ao Serviço Social do Comércio (SESC) de Santo André-SP, em 15/10/2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=57J7XQD4WCI 336 Tubinho, não rimou, “- Não rimou porque a maré tava baixa!”; e também a inocente piada “- Eu ouvo”, “- Ovo é de galinha Tubinho. É „ouço‟”, “- E osso é de cachorro!”. E ambas fazem rir. Na chanchada Tubinho e o morto que não morreu uma sobrinha gananciosa trama a morte do tio, no dia de seu aniversário, para herdar toda sua herança. Tubinho e seu parceiro de trambiques, apesar de não passarem de ladrões de galinha, são contratados como músicos da festa, porém são obrigados pela sobrinha a fazer parte do plano de assassinato do velho tio. Tubinho então repete várias vezes, de um modo extremamente doce e infantil, “Mas eu não sou um assassino...”. Na peça Tubinho e a escrava Isaura, drama clássico circense transformado em comédia, tem-se toda a primeira cena, entre Isaura e Leôncio, ainda no registro dramático, sem a presença de Tubinho. Quando ele entra em cena, mais adiante, a primeira frase que solta é “Cheguei pra esculhambar, que essa peça tá uma bosta hoje!”. No esquete “Cheira flor” um amigo de Tubinho lhe confidencia que comprou um pó mágico, que faz com que as mulheres se apaixonem pelo primeiro homem a sua frente. Tubinho, então, pede o pó mágico emprestado. Depois de pedir duas vezes, fofa e delicadamente, com a frase “Me empresta um pouquinho do pó?” e este lhe ser negado, na terceira, toma o pó da mão do amigo gritando “Dá essa bosta aqui!”. Outra gag várias vezes utilizada por Tubinho, que mescla o grotesco e o ingênuo, se dá da seguinte forma: quando ele é contrariado ou fica nervoso começa a falar, porém sem emitir o som, apenas gesticulando os lábios, uma sequência de palavrões. O elenco todo para e espera Tubinho terminar a ação. Ao fim, alguém lhe pergunta: “- O que foi Tubinho?” e ele, então, dá o desfecho da gag de modo doce “- Ai, desabafei!”. E, por último, uma de minhas gags preferidas, utilizadas em diversas peças é quando Tubinho diz, num tom triste e melancólico, “- Eu quero ver minha „fabília‟... Porque „fabília‟ dá mais dó no coração!”. E não é que a letra b no lugar da letra m realmente nos dá pena e nos cativa mais? Apesar de protagonizar momentos tão doces como esse acima, por transitar também no campo da malícia, Zeca considera as suas comédias como desaconselháveis 337 para menores de doze anos. Porém, ainda assim, a figura de Tubinho é extremamente popular entre as crianças. Lucélia Reis destacou em entrevista: Eu questiono isso ainda, Fê, se o Tubinho é pra criança ou não... Porque tem muita criança apaixonada pelo Tubinho. Nossa, tem crianças, que são vidradas no Tubinho. Eu acho que o Zeca conseguiu atingir um nível de palhaço, que é uma coisa muito rara, sabe? Porque ele consegue jogar umas piadas... As piadas que ele joga... Porque ele sente que tem muita criança na plateia, a gente coloca que é desaconselhável para menores de 12 anos, porém vem bastante criança. E ele consegue botar na boca do palhaço umas certas besteiras com uma naturalidade, sabe, com uma ingenuidade que não agride. Ele pode falar qualquer coisa que não agride nada. Nada, nada, nada. Ele pega as coisas assim... Ele entra tanto pra dentro do espírito do palhaço, que o palhaço dele tem tanto esse espírito espontâneo e infantil, que o que vem ele solta! E vem, assim... E é o que mais agrada 215. Lidando, então, com extrema maestria com o fato de fazer rir sem ser agressivo, Tubinho, sempre irreverente e despojado, tem piadas sobre uma infinidade de temas. Tiche Vianna destacou em entrevista: O Tubinho faz piada com o Capitão Nascimento, que virou o herói de uma geração. Se fosse só isso... Ele faz piada com todas as formas de poder quando ele bota em cena todos aqueles patrões, todos aqueles chefes, todos aqueles fazendeiros, todos aqueles coronéis, todos aqueles delegados. Ele faz piada com todas as formas de poder. (...) Mas, ao mesmo tempo, o Zeca, por exemplo, é extremamente religioso. Ele nunca vai falar mal da Igreja lá, qualquer que seja ela. Ele não vai criar uma personagem que vai se colocar contra a Igreja. Porque brincar com a igreja, ele vai brincar. Mas vai brincar dentro do mais absoluto respeito. Ele não vai se colocar em risco desrespeitoso junto à Igreja, por exemplo. Nem ao poder público, porque ele depende do poder público. A commedia dell'arte nunca... Eu digo que faltam máscaras na commedia dell'arte. Falta a máscara do rei, que nunca existiu na commedia dell'arte. Falta a máscara da Igreja. Porque eles não eram tontos. Os conteúdos críticos estavam ali na própria forma de organizar aquelas relações, no modo de organizar as relações é que o conteúdo é crítico. (...) É completamente diferente do programa Sai de Baixo, ou Zorra Total. Entendeu? O que é o Zorra Total, por exemplo, o que são aqueles tipos? O que são aquelas histórias? Aquilo pra mim tem esse tom pejorativo de que assim, a pura graça sem nenhum, sem nenhum de nada... É uma tiração de sarro da vida e do mundo, ponto final. Que pra mim funciona ao contrário, porque os personagens não existem, você olha praquilo e diz “Aquilo não existe. Aquilo não existe, aquilo é alguém fazendo”. E fazendo querendo tirar um sarro, então é uma diminuição, é como se eu tivesse pejorativamente mostrando as culpas da desgraça do mundo, tá certo? Como se eu tivesse acusando. Essa é sempre a sensação que eu tenho. Não me envolve, não tem graça e eu não sei que graça isso causa nas pessoas que assistem. Algumas devem 215 Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 338 gostar muito porque todo mundo liga lá a televisão, isso tem audiência, tem ibope, por isso que tá lá. Mas eu entendo também, que as pessoas acabam fazendo isso porque isso é um mastigável fácil, que é próprio ao poder... Ele vai socando, certo? Ele vai socando, em quais pessoas? Naquelas pessoas que já estão derrotadas por princípio, já estão em casa, num sábado a noite, não quer fazer nada. Então são pessoas que já tem esse princípio. Mas vamos falar do princípio das pessoas que não querem fazer isso, entendeu? Que querem outras coisas, que saem na rua e não procuram este espetáculo, procuram aquele do Tubinho. Não porque é mais fácil, mas porque ali alguma coisa acontece entre nós 216. Diante de Tubinho nada permanece intacto, pois ele se permite brincar, sempre respeitosamente, com absolutamente tudo: “(...) família, autoridade, religião, moral, doença, convenções sociais – nada escapa ao gesto ou palavra do palhaço, representante de uma comicidade que desmistifica o caráter absoluto e intocável dessas instituições e valores.” (MAGNANI, 1984: 112). Porém, Zeca só tem abertura para brincar com todas essas instâncias por construir, dia após dia, uma relação de intimidade e cumplicidade com a população da cidade em que o circo se estabelece. Acerca desse estreitamento de laços, Fernando Neves destacou em entrevista: O circo, eu sempre falo, o circo é muito esperto. Os atores circenses são muito espertos. Eles provocam, sim, a plateia, mas dentro de uma desfaçatez, de uma forma tão dissimulada que a plateia não percebe. Também quando perceber, ela já tá muito íntima desse ator. Ela tá muito íntima. É como se a gente fosse família e em família a gente fala besteiras, fala as bobagens tudo e tá tudo em casa! O circo se torna “em casa”. Ele vai na praça, na tal cidade, no tal bairro e ele estabelece uma relação de família, então se está em casa. Entendeu esse movimento muito inteligente do circo? Você vê isso no Tubinho claramente. O primeiro espetáculo da praça e último... No primeiro espetáculo ele está mais contido e no último ele tá falando aquela bandalheira, com vô, com neto na plateia e ninguém reclama... Porque tá todo mundo em família. (...) Então é um ator, um artista que olha pro público sim e o público é importante porque é absolutamente necessário que esse circo esteja lotado. Duas praças que o circo vai mal eles têm que desmontar tudo, vender as coisas e voltar para o lugar de origem pra começar tudo de novo, porque não tem dinheiro nem pra tirar o circo do lugar 217. Tubinho é, hoje em dia, um personagem tão bem construído que, para Zeca, é como se tivesse vida própria. Em entrevista, Zeca explicou: 216 217 Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013. 339 Eu, de verdade, eu sinto assim: quanto mais eu penso nele mais artificial ele fica. Sabe? De verdade, eu não tenho o Tubinho como um personagem. Tenho ele como uma pessoa. Então, ele tem o jeito dele de responder. Se você me fizer uma pergunta e falar assim: "O que Tubinho responderia?" Eu não sei falar. Agora se eu tiver de palhaço e você fizer qualquer gracinha eu te respondo. De bate pronto 218 . Sobre esta mesma questão, Zeca comentou, ainda em 2008, numa entrevista para a revista ET, de Barra Bonita: Acho que o Tubinho tem sua própria vida, ele se comanda. Isso é muito engraçado. Eu estava vendo o programa do Tubinho pela televisão hoje e minha mulher disse: “Ele não é você”. E realmente não é. Ele tem seu próprio jeito de falar que se você me pedir pra imitar posso tentar, mas será sempre apenas eu tentando imitá-lo , não será o Tubinho. Ele se moldou dentro de mim e eu apenas 219 abro espaço para ele sair . Teorizar sobre o que vem a ser o Tubinho é algo que não faz parte da natureza da técnica pessoal, da arte de ator construída por Zeca e por tantos outros artistas populares, de formação empírica. Porém, acredito que outras pessoas precisam realizar esse trabalho de reflexão acerca do trabalho realizado por Zeca e sua companhia, para dar a dimensão – a eles e aos demais artistas da atualidade – da importância e relevância do que vem sendo apresentado neste circo. Ésio Magalhães comentou, em entrevista, sobre o trabalho desenvolvido com a remontagem de Cabocla Bonita, que seguiu exatamente nessa direção, de reconhecimento dos saberes já existentes: No nosso trabalho, um dia o Zeca falou assim: “Pô, Ésio, que louco. Eu nunca tinha prestado atenção, eu tenho um jeito de andar, né?”. (...) É interessante porque é como estudar português. Você fala “Nossa eu faço tudo isso? Eu ponho substantivo e adjetivo e advérbio? E tem sujeito e predicado...” . Você começa a falar “Nossa, que ligações eu faço. Agora eu sei, porque antes eu falava. E eu continuo falando”, entende? Então o trabalho com o Tubinho, especificamente, foi um pouco de reconhecer a linguagem que se tinha. Embora de reconhecer, digamos assim, tecnicamente. Eu não tô dizendo que ele não sabia o que ele queria dizer e fazia. Ele sabe muito bem o que ele tem na mão. E ele joga com 218 219 Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. Declaração de Zeca à revista ET 205 nº 850. Barra Bonita, 10/01/2008. 340 isso magistralmente. Mas de reconhecer, tecnicamente, que ali tem um lastro técnico muito grande 220. Ricciley Lunardi comentou acerca de Zeca, seu companheiro de cena, a quem, no início, soprava os desfechos das piadas ao pé do ouvido: Ele sempre foi muito rápido. Ele não tinha experiência de comédias de circo teatro e já tinha essa rapidez. Depois que ele adquiriu a experiência, o conhecimento das comédias, dos textos, das histórias, ninguém mais segurou o cara, né? Hoje em dia ele é essa máquina de fazer rir aí. E incrível é que o Tubinho é o palhaço que me faz rir até hoje... Que sempre tem coisa nova, ele sempre surpreende a gente que tá acostumado a estar com ele todo dia. É impossível fazer uma comédia e não rir. E o Tubinho, poxa... O Tubinho não se explica, se assiste. Degusta-se esse monstro de gargalhadas que ele é 221. Figura 138: Riccielly Lunardi e Tubinho em Tubinho de Minissaia. Piedade, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Já Tiche Vianna, em entrevista, deu o tocante depoimento: Eu adoro o Tubinho. Me diverte.. Tem um carisma absurdo. Todo palhaço tem que ter um carisma danado. (...) Claro que é um tipo de palhaço. E é um tipo de espetáculo. É um palhaço contador de piadas... As afetações dele não vão nunca fazer variar esse caráter, esse caráter vai passar... Ok, numa situação ficou mais assim, ficou menos assim... É diferente do palhaço teatral. O que eu tô falando aqui também é uma bobagem... Quem é o palhaço teatral, o palhaço circense? Mas eu tô dizendo: no teatro, dentro de uma história, onde você precisa de uma 220 221 Ésio Magalhães em entrevista concedida à autora em 23/04/2013. Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 341 lógica de história, esse palhaço vai ter que se conduzir diferente. Então eu acho que ele é diferente desse tipo de palhaço. Colocando o Ésio e ele, por exemplo. O palhaço do Ésio talvez seja um palhaço dramático. Tem toda a comicidade, cômico pra caramba, mas talvez ele venha do drama humano. E o Tubinho venha da comédia humana. Isso é uma coisa que tá me ocorrendo agora. (...) Eu acho o Tubinho genial. Porque fazer o que ele faz, com a quantidade de pessoas que ele tem, de quinta a terça né? Eu falo "É impressionante". E não só isso, como ator. Já vi dramas. O primeiro espetáculo dele que eu vi foi A Canção de Bernadete. E quando eu vi, eu fiquei impressionada com a encenação. Ele tinha acabado de refazer, de mexer nela. E eu fiquei impressionada com a encenação porque, assim... Não gosto do tema, não gosto do tipo de história, não é uma coisa que me comova, nada. Agora, o comprometimento daqueles atores... Aquilo que está acontecendo ali te envolve de uma tal maneira, que você não consegue simplesmente... Aquilo não descola de você. A mesma coisa ele faz com o palhaço. Aquilo não descola de você, você não consegue... Eu falei "Pô, esse cara tem uma dimensão cênica interessantíssima, porque não tem escola, não tem essa convivência direta com gente que tá discutindo estética”. Isso é uma coisa que ele vai atrás, ele busca, ele observa, ele percebe e quer. Depois eu vi as comédias. A primeira vez que eu vi o palhaço, eu não acreditei. Ele me tirava da cadeira! Uma força espetacular, essa pra mim é uma dimensão... (...) Ele me ganhou 100% quando eu assisti o stand up dele. Terminou o espetáculo e ele veio "Você gostou?". Porque acaba todo espetáculo e ele fala com todo mundo, né? "Você gostou?" Eu falei “Gostei, eu adorei... Eu detesto isso aí, eu não gosto nada desse negócio, não serve pra nada, só pra ganhar dinheiro mesmo, entendeu? O povo gosta, vai lá e faz. Mas aqui aconteceu alguma coisa, entendeu? Aqui aconteceu alguma coisa. (...) E tem uma estética, tem uma preocupação estética, se configura como linguagem, é um modo de articular códigos, que se combinam ali dentro, entendeu? Ele faz isso. O teatro dele faz isso. O modo de combinar esses códigos. (...) E o teatro não é o que eu faço. O teatro é o que se passa entre nós. Se eu entender isso, isso explica tudo. Porque que o Circo de Teatro Tubinho é fortalecedor. Porque que o stand up dele é alguma coisa que vai além do stand up que você vê de um cara que chega e começa a contar um monte de piada. Porque alguma coisa se processa com ele ali enquanto ele conta as piadas. E é isso que me atrai. E é dele. Tem alguma coisa que acontece ali... E eu tenho que me render a isso. Eu sou obrigada... Rende, ué! É talento? Não importa... É o que ele faz e funciona! 222 Enfim, tentei dissertar um pouco sobre os elementos técnicos presentes no trabalho de Zeca como palhaço Tubinho, porém acredito que grande parte desse trabalho é resultado de algo que, apesar de estar para além da técnica e não ser passível de descrição, deve estar na base do trabalho de todo artista. Estou falando da dimensão humana envolvida no trabalho de Zeca, que salta aos olhos de todos que o conhecem e passam por seu circo. Ao ler a passagem abaixo, escrita por Oida, me lembrei imediatamente de Zeca e seu cativante palhaço: 222 Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. 342 Quando estamos atuando o objetivo não é o de mostrar o personagem que interpretamos. Para além do personagem, existe um ser humano mais fundamental, e é esse ser humano fundamental que faz com que o palco seja vivo. Apenas construir o personagem não é o suficiente (OIDA, 2007: 93). Zeca é uma pessoa extremamente generosa, capaz de acolher com imenso carinho todos os seus inúmeros fãs. E, foi com essa mesma generosidade que também fui acolhida, não só por Zeca, mas por todo o restante do elenco. Nas primeiras visitas, lembro que me surpreendi porque, ao final dos espetáculos, Zeca me procurava ou me mandava uma mensagem pelo celular para saber a minha opinião sobre o que tinha visto. E isso se repetiu todas as vezes que fui ao circo e quando alguns de meus amigos me acompanhavam, ele também fazia questão de saber o que eles tinham achado do espetáculo. Zeca faz isso com todos que visitam o circo. Extremamente comprometido com seu trabalho e visando sempre o melhor desenvolvimento dos espetáculos, ele está sempre atento com o que acontece com o público, seja ele aquele a quem o circo se dedica com mais ênfase no interior do estado de São Paulo, seja os artistas de origem não circense cada vez mais interessados em conhecer o seu mundo mágico da alegria. Figura 139: Zeca como Tubinho, 2014. Fonte: Página de relacionamento na internet do fã clube Na estrada com Tubinho. 343 3.7 Os escadas Uma companhia de circo de teatro como a de Tubinho tem, inegavelmente, o palhaço como o centro da representação e em cima de sua imagem é feito todo o marketing do circo. Porém, o seu desempenho cênico depende diretamente de um bom desempenho do restante do elenco, que cumpre a função de lhe servir como escada. No Circo de Teatro Tubinho, assim como em diversos outros circos-teatro do passado e da atualidade, os escadas também utilizam da tipologia para a construção de suas personagens. A divisão destes tipos entre o elenco continua sendo feita de acordo com o temperamento e, principalmente, o physique du role dos atores. Dessa forma, geralmente Luciane Rosã e Viviane Martins interpretam as mocinhas, Lucélia Reis as caricatas, Maik Mello e Juninho Assis os galãs, Angelita Vaz as damas centrais e coquettes, Ana Dolores as damas centrais e caricatas, Cristina Martins as personagens com maior carga dramática, Débora Ignácio as coquetes, Dionísio Martins os cômicos e Jailson Martins, Alexandre Vieira, Riccielly Lunardi, Nicolas Alexandre e Cristian Bryan (Tito) os baixos cômicos. Sobre seu elenco, Zeca comentou em entrevista: A gente usa os tipos sim. Mas no nosso dia-a-dia, é tão corriqueiro o que a gente faz que a gente não chama assim, sabe? "A ingênua", "a caricata", pra gente já é, por exemplo, "a Filoca", "a Maria", "a Quequé", "a Dô". A gente não tem muito assim de chamar pelo nome do tipo, a gente já vai direto no nome do personagem porque cada ator já faz o que a gente tá falando, certo? Então, por exemplo, se eu falar assim "A ingênua", vão falar "Qual delas. Então a gente já fala, mas no nosso dia-a-dia não se usa muito essa denominação. Mas a gente tem dentro da companhia sim quem faz mais cada tipo. Graças à Deus a gente tem uns dois atores pra cada tipo. Isso me facilita muito. E isso também é muito legal. Você fica quatro ou cinco meses numa praça e a cidade é pequena, o cara não vê toda noite o mesmo elenco. Quer dizer, o cara vem hoje, trabalhou uma galera, ele vem outro dia, são outras pessoas novas. O Tubinho tá ali, mas mudou todo mundo 223. 223 Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013. 344 Figura 140: o baixo-cômico Alexandre Vieira em Tubinho de Minissaia. Piedade, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Como é comum ao circo-teatro, apesar de se encaixarem e interpretarem com mais frequência esses determinados tipos, os atores do elenco de Tubinho podem variá-los, de acordo com as necessidades e com o que se deseja para a encenação. Assim sendo, no drama ...E o céu uniu dois corações, a mocinha Neli é interpretada por Angelita Vaz e no drama O seu único pecado Juninho Assis integra o núcleo cômico, por exemplo. Figura 141: Luciane Rosã, que geralmente interpreta as ingênuas, como o agente funerário de Tubinho no velório. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. 345 Apesar de haver a tipificação, varia-se bastante o nível de estilização das personagens, de peça para peça e, muitas vezes, entre os personagens de uma mesma peça. Porém, nenhuma delas – nem mesmo os cômicos e as caricatas – chega ao nível de estilização característico do palhaço, a personagem principal dos espetáculos. A cena, então, aponta para um único vetor e, independente da personagem e do tipo, todos servem de escada ao palhaço. Acerca disso, Lucélia Reis comentou: Hoje em dia, eu entendo que existem definições, porque precisa ter, do baixocômico, da mocinha, etc. Mas hoje eu vejo que todos são escadas pro palhaço. Que quanto mais o palhaço aparecer, quanto mais o palhaço acontecer em cima de uma mocinha, de uma caricata, de um escada, dum qualquer coisa, é onde a gente ganha, porque é o palhaço que tem que acontecer. Então a gente entra pra fazer o palhaço acontecer. Então o que é o escada tradicional? Ele levanta a piada, pro palhaço cortar. Mas eu vejo que a caricata levanta a piada pro palhaço, com uma maquiagem, ou com uma postura cênica, ou com uma expressão, também levanta uma piada. Ou até uma mocinha, dependendo duma chatice de uma mocinha, também levanta uma piada pro palhaço 224. Tiche Vianna atentou, em entrevista, para diferença existente entre a função escada na commedia dell’arte e num circo como o do palhaço Tubinho e também dissertou sobre a importância de cada parte, de cada escada, para a construção total da cena e o melhor desempenho do palhaço: Pra trabalhar máscara, você precisa de, no mínimo, duas. Uma máscara sozinha não vai suportar o espetáculo inteiro. Lá no Tubinho você tem as escadas para o palhaço, que é 01 figura. No jogo da commedia dell'arte, você tem uma escada recíproca: eu agora sou escada e pode ser que na próxima cena você que vai ser escada. E a escada não é exatamente a fonte para o riso, mas a fonte para a situação que está sendo criada que vai desembocar numa situação cômica. (...) Mas o fato de você construir a situação, você cria uma dependência muito maior das relações. E aí o nível de importância de cada personagem dentro da estrutura dramatúrgica passa a ter outro sentido. (...) Quer dizer que não há uma “desimportância” em ser ou fazer como se faz pra chegar no palhaço: o palhaço vai acontecer na sua melhor potência, na medida em que cada um daqueles pedaços estiver na sua melhor potência 225. 224 225 Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. 346 Acerca da importância do papel desempenhado pelo escada, Walter de Sousa Junior afirma: Como nos outros subgêneros da comédia, o escada desempenha o papel de apoio para a construção das piadas, o que não reduz em nada a sua performance, pois esta requer técnica e talento tanto quanto a situação cômica exige do excêntrico. Como afirma Pururuca (Brasil João Carlos Queirolo), que por 35 anos atuou, de cara limpa, como escada do pai, Torresmo: “Para você ser um bom palhaço, o escada tem que ser melhor que o palhaço. Porque se o escada não souber dar a deixa certinha para o palhaço, o palhaço se perde todinho. Se ele não der as palavras certas, corretas, na hora certa, perde a graça, pois o palhaço não tem o que repetir”. Aroldo Casali, o palhaço Charles, usa da própria metáfora da escada para definir: “O palhaço precisa sempre do escada. Por que? Se o escada é ruim, ele desce. Se o escada é bom, o palhaço sobe” (SOUSA JR., 2012: 80). Tubinho é um tipo de palhaço que necessita de um contraponto em cena. De todas as dezenas de peças que pude assistir no Circo de Teatro Tubinho, em apenas duas, Tubinho o terrível beijoqueiro e Tubinho o hóspede da pensão maluca, o palhaço ficou sozinho em cena, por cerca de poucos minutos. Em seu stand up Senta que o Tubinho vai entrar, Zeca conta piadas de cara limpa e apresenta uma galeria de diferentes personagens. O espetáculo todo se desenrola com Zeca sozinho no palco, porém quando chega a vez de se apresentar como Tubinho, deixado estrategicamente por último, entra em cena um de seus escadas, Riccielly Lunardi. Os artistas do Circo de Teatro Tubinho comentaram em entrevista acerca da função do escada em cena: Morgana Lunardi: O próprio nome diz já ne? É onde o palhaço sobe... é o cara que faz o palhaço aparecer. O escada trabalha pro palhaço. Não trabalha pra ele. Um bom escada trabalha pro palhaço, faz de tudo pro palhaço agradar. O palhaço sobe em cima e todo mundo vê, todo mundo dá risada, ele aparece 226. Luciane Rosã: Você entra em cena e você quer fazer o seu melhor. E esse trabalho de escada é justamente isso, a gente quer dar mais chances pro palhaço fazer graça... É essa a função. (...) Cada personagem tem o seu degrau pro palhaço estar em cima. Então eu acho que todos os personagens que trabalham em volta do palhaço são os degraus. Então se tem dez personagens, tem dez degraus que o palhaço tem que subir. E cada um tem o seu dever nessa peça que tem os dez, pra ele subir até o 226 Morgana Lunardi em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. 347 topo, se ele ficar na metade, não tá bom. Se ele ficar abaixo disso, piorou ainda. Então a gente trabalha em função dele. Então a gente tem que fazer o máximo pra que aquele nosso degrauzinho esteja bom pra ele poder subir o próximo 227. Riccielly Lunardi: Eu procuro ser sempre muito rápido, sempre estar pensando rápido "Qual a próxima piada que eu posso puxar?". Costurar rapidinho as piadas... Ser simpático com a plateia, caras e bocas - sempre em excesso - sempre caras e bocas, isso ajuda. Os errinhos forçados, errar o português às vezes é ótimo, essas coisas gostosas 228. Lucélia Reis: Uma das características do circo-teatro é você ter consciência que você trabalha pro palhaço. Essa é uma grande característica do circo-teatro. Você tem que entender que é um caminho em que você trabalha pra uma pessoa, pra um cara ali. Você não trabalha pro seu... Você não tem como defender o seu personagem dessa maneira. Você tem que entender que o seu personagem tem um limite. Você tem que fazer o povo rir? Tem. Mas a partir do momento em que o palhaço está em cena, é o palhaço que tem que fazer o povo rir. Porque o povo vem pra ver o palhaço. Então uma das características é essa, você ter consciência de que você trabalha pro palhaço. Isso é fato, é fato mesmo! Então, caindo nessa questão, eu quando eu vou trabalhar eu penso nisso, eu penso "Putz, quais cenas eu tenho com o palhaço? O que eu posso oferecer pra ele?" Às vezes, um personagem que eu vou fazer... Por exemplo hoje, O Casamento do Tubinho, que você assistiu... Eu fazia uma comparsaria, mas o que penso: eu posso dar um gancho pro palhaço dentro daquele contexto. Eu podia simplesmente entrar com o vestido caipira, entrar em cena e estar ali, fazendo volume, mas seu eu boto uma maquiagem mais carregada, boto uma peruca ridícula, boto um corpo e dou umas deixas, o palhaço já pode fazer umas graças em cima. E o circo ganha com isso, o circo-teatro ganha com isso229. Angelita Vaz: A gente trabalha mesmo pro palhaço. A gente vai levantando o espetáculo até a entrada do palhaço. Se você for ver, todo o contexto vai sendo trabalhado antes do palhaço entrar. Aí quando ele entra já tá quente. É ate engraçado, que a gente trabalha tanto pro palhaço, que eu até brinco com o Zeca, eu falo assim “Eu vou mudar meu nome, eu não vou mais me chamar Angelita”. Porque você vai em algum lugar “Ah, a Angelita lá do Tubinho.” Ninguém sabe quem é Angelita. “A mulher do palhaço... Ah, aquela loira!”. Sabe? É muito engraçado. Mas a gente acaba até acostumando com isso né? (...) E as pessoas vem, elas querem ver o palhaço, e isso é bom. Porque a gente trabalha pra isso, então tá dando resultado. É até interessante, porque às vezes é até triste... Teve uns tempos atrás que o Zeca não tava trabalhando, antes do meu sogro falecer... Meu sogro tava ruim, e o Zeca não pode trabalhar porque ele teve que ir pra Curitiba. As pessoas vinham na bilheteria pra comprar ingresso... Ia ter espetáculo, mas não tinha o Tubinho, as pessoas voltavam pra trás. Guardavam o dinheiro e “Não, a gente quer ver o Tubinho”, “Não, mas vai ter espetáculo, o espetáculo é bom!”, “Não, a gente quer ver o Tubinho”. Foram três dias sem o palhaço. No terceiro dia ninguém mais vinha no circo. Derrubou a praça em três dias... E a gente tava aqui, firme e forte, 227 Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. 229 Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 228 348 mas não eles queriam ver o palhaço. Então é bom, porque é um sinal que tá dando certo. O ruim é que a gente depende exclusivamente dele. Porque as pessoas vêm pra ver ele230. Depois de tantos anos trabalhando juntos em espetáculos diários, Zeca e seu elenco desenvolveram uma grande afinidade e um repertório de piadas e gags em comum, que podem ser acionadas em diversos espetáculos. Essa é uma característica comum a várias companhias de circo-teatro que, dependendo da audiência, estendem ou cortam improvisações e incluem trechos de outros enredos e piadas de repertório nas mais variadas peças. Durante as entrevistas, vários dos artistas do Circo de Teatro Tubinho disseram já conhecer Zeca “só pelo olhar”. Cabe ao escada, baseado nessa cumplicidade, estar atento em cena, pois, sempre que possível, ele deve dar um “gancho” para o palhaço, ou seja, preparar uma piada para que o palhaço a arremate ou mesmo puxar a piada que o palhaço de algum modo mostrou desejar que seja feita. O escada deve, então, entender o “tempo” do palhaço com o qual está trabalhando, de modo a deixá-lo livre para fazer suas graças e, no tempo exato, retomar o fio da narrativa e encaminhar os acontecimentos da história. Isso tudo com exata precisão das falas, pois apesar de não haver um texto rígido a ser seguido, ele não pode se atrapalhar com o discurso e retardar o ritmo da cena, sempre executada sobre um nível elevado de energia. Nicolas Alexandre, sobrinho de Zeca, destacou: Pra fazer escada tem que estar atento. Com ele (Zeca) tem que sempre estar atento. Tanto é que teve um dia que a gente entrou pra fazer esquete, ele começou a puxar piada, e puxar piada, e começou a puxar coisa que eu nunca tinha feito, mas que eu já tinha visto. Então... E a gente tem que ir atrás. Tem que ir atrás. E ele puxa piada, e a gente como escada também puxa. E,nesse caso, ainda também tem que ficar atento para ver se a piada já não foi na comédia, no espetáculo de ontem, anteontem. Isso também tem que ficar atento 231. 230 231 Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. Nicolas Alexandre em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 349 Já seu irmão, Dimitri Augusto, de apenas dez anos, também mostrou seu conhecimento acerca de como se configura o modo de organização da cena do circo de Tubinho: Eu acho que tem que conhecer meu tio muito bem pra trabalhar aqui (Zeca)... Porque meu tio faz muita surpresa em cena. Primeiro tem que saber fazer um pouco de escada pro meu tio... Fazer um pouco de improviso, porque às vezes meu tio faz uma piada que a gente nem conhece. E tem coisa que ele fala pra gente antes de começar a peça e daí você tem que saber puxar a piada pra ele, porque senão quebra um pouco da risada 232. Figura 141: Juninho Assis e Tubinho em Tubinho, o hóspede da pensão maluca. Itapetininga, 2015. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Durante esta pesquisa realizei várias visitas ao circo de Tubinho e acabei por me habituar a ver todo o elenco fazendo sua escada. Num primeiro momento, eu compreendia que o escada desenvolvia um papel essencial para o melhor desempenho do palhaço, mas essa função me parecia algo relativamente simples de ser executada. Hoje entendo que, na verdade, isso me parecia simples porque o elenco de Tubinho realiza a função com extrema competência e naturalidade. Compreendo que os atores me passavam a impressão de estar atuando sem esforço algum, mas que isso, na verdade, é fruto de um profundo trabalho, lapidado dia após dia, espetáculo após espetáculo. 232 Dimitri Augusto em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 350 E eu pude compreender isso, de fato, quando, em setembro de 2014, montamos o espetáculo Biribinha e a noiva do defunto, no 2º Encontro Geraldo Riso, em Campinas, com o Coletivo Geraldo Riso e direção de Zeca. Montamos a comédia em seis ensaios. Zeca ia passando, “de orelhada”, a peça e íamos montando as cenas. Os atores que estavam atuando nessa comédia eram Aline Olmos e eu, da Dupla Cia, Ésio Magalhães, do Barracão Teatro e Ivens Burg, Guga Burg e Joana Piza, da Família Burg. Além disso, Thiago Sales, do Circo Caramba, foi o responsável pela sonoplastia do espetáculo e Teófanes Silveira, Biribinha, era o palhaço da comédia. Ou seja, com exceção de mim e de Aline, tratava-se de atores mais experientes, com uma trajetória estruturada acerca da linguagem do palhaço. Porém era evidente que todos nós, com exceção de Biribinha, não estávamos habituados e não tínhamos total intimidade com o modo de trabalhar e operacionalizar proposto por Zeca, bem como com a função específica de realizar a escada para o palhaço. Ésio Magalhães, por exemplo, interpretava o velho Libório. Ele era o principal escada da peça, pois quase todos os encaminhamentos da narrativa eram de sua responsabilidade. Ésio tinha então que decorar a sequência de ações da peça e encaminhar a história de maneira ligeira, desenvolvendo bem suas falas, apesar de não haver um texto dramatúrgico a ser seguido. Para ganhar tempo e conseguir pensar nas próximas ações que deveria puxar, Ésio caiu no automatismo de repetir várias vezes seguidas os nomes das personagens. Dessa forma, falava “Biribinha, Biribinha, Biribinha”, antes da fala propriamente dita, muitas vezes ao longo da peça, o que acabava por retardar o ritmo da cena. Além disso, Ésio usava o recuso de dar suas falas e, ao final, colocar uma risada. E esse pequeno detalhe, esse pequeno “rabicho” deixado pela risadinha do velho, era suficiente para quebrar o tempo da piada, que seria arrematada pelo palhaço Biribinha. Zeca atentou Ésio para essa questão, que passou a prestar mais atenção para preparar a escada de maneira certeira. Na estreia, Ésio conduziu com muita competência a história. 351 Após essa experiência, Ésio gentilmente atendeu um pedido meu e redigiu o pequeno texto abaixo, relatando algumas reflexões suscitadas pelo trabalho que desenvolvemos no 2º Encontro Geraldo Riso: Para mim, é notória a proximidade entre o que vemos atualmente nos circosteatro itinerantes e o que imagino ter acontecido no contexto da commedia dell'arte, em que os artistas viajavam e, nas cidades por onde paravam, apresentavam seu repertório de espetáculos com as máscaras que iam se tornando conhecidas e familiares para o público ao longo de sua estada. Trabalhar com o Zeca, o palhaçoTubinho, como diretor da peça A Bomba ou a Noiva do Defunto e com o Theófanes, o palhaço Biribinha, como cômico principal no mesmo espetáculo foi uma experiência incrível de criar um espetáculo baseado em um roteiro de "orelhada", ou seja, que é transmitido via tradição oral, e vê-lo erigir-se aos poucos e a partir da proposta de cada ator. Foi incrível perceber como os textos e piadas iam sendo criados a partir do que deveria ser dito pelos personagens para que sua ação ficasse clara e este roteiro, ou cannovaccio da commedia dell'arte, fosse compreendido e aplaudido. Me chama a atenção que os atores que nascem dentro desta tradição circo-teatral tem um vasto repertório com o qual podem jogar e improvisar em cima dele. É um repertório comum e que se mantém apesar de cada ator ir colocando sua marca autoral. No caso do Encontro Geral do Riso, os atores que contracenavam e davam suporte para o palhaço Biribinha fazer suas palhaçadas, são todos palhaços de formação. O maior exercício, para mim, que sou palhaço e estava num papel de "escada", foi controlar o ímpeto de querer fazer a piada ou a tirada cômica para preparar terreno fértil para que o palhaço Biribinha pudesse completar a piada no seu tempo cômico. Zeca sempre me pedia para controlar este ímpeto, pois todos os outros papéis devem servir ao palhaço que é o centro cômico do espetáculo. Este exercício de generosidade foi um grande aprendizado e me faz cada vez mais admirar o Circo Teatro que acima de tudo visa o riso do público 233. Com este exemplo obviamente não quis colocar em xeque o talento ou a qualidade do trabalho de ator de Ésio, que são evidentes. O que desejei mostrar foi que mesmo um excelente e experiente ator como Ésio Magalhães, referência nacional junto a Tiche Vianna sobre commedia dell’arte e sobre a figura do palhaço, também encontrou dificuldades em trabalhar com um tipo de teatro que não está habituado e em executar uma função, no caso de escada, que normalmente não executa. Além de Ésio, Ivens Burg e Guga Burg também escreveram depoimentos acerca da experiência vivida na montagem de Biribinha e a noiva do defunto que sintetizam, pelo olhar da prática, diversos pontos observados ao longo dessa dissertação: 233 Depoimento de Ésio Magalhães concedido à autora em janeiro de 2015. 352 Ivens Burg: A primeira coisa que me chamou a atenção é a maneira como o Tubinho nos transmitiu a comédia. A transmissão oral nos dá uma liberdade de criação enorme, pois o texto parece vir em segundo plano, sendo as intenções e as deixas mais relevantes, fortalecendo a função de cada personagem no todo. Precisávamos falar determinadas coisas para as piadas funcionarem, sim, mas ao mesmo tempo, o que acontecia entre uma piada e outra era totalmente livre, possibilitando cada um criar e colorir o personagem a sua maneira, descobrindo corporeidades e ações próprias. Ele nos dava total liberdade de escolha, se não nos sentíamos bem fazendo tal coisa, não fazíamos. Penso também na generosidade e disponibilidade do Tubinho para conosco... Como ele, mesmo sendo de família tradicional de circo, tem uma mente aberta e antenada no que acontece fora da lona. Me chamou a atenção o fato de algumas coisas que descobríamos fazendo a comédia que ele mesmo passou, ele usar pro circo dele, incorporando coisas novas que nós tínhamos descoberto, numa relação de troca dinâmica, viva... Guga Burg: Para mim, o que ficou de mais forte foi o fazer coletivo. Algo que já havia notado - que é para mim um ponto-chave - em outras experiências com circo, mas também em experiências como a das rodas de Capoeira Angola e Samba. A escuta, a atenção ao outro, a cumplicidade, o entendimento através de um olhar, de um gesto, ou mesmo antes disso: um ritmo em comum. Além disso, como na Capoeira, a relação de aprendizado mestre/discípulo. Primeiro você copia, não sabe bem porque, não questiona, segue, confia. Aprende de tanto copiar e conviver - depois entende tudo e acha seu caminho, que é ao mesmo tempo tradicional e original (mistério!), leva uns 10 anos, por baixo... Houve poucos momentos em que Tubinho interviu mais incisivamente, na atuação, e um deles foi comigo (aliás, acho que foi o único momento em que ele realmente mostrou como queria a cena)... O "galã" que eu fazia precisava ser mais enérgico, bravo mesmo, ganhar o espaço. Tubinho fez a cena, seu caminhar era preciso e orgânico com o texto, dividia o foco entre o palhaço e o velho Libório nos quais dava a "bronca", e deixava a cena em seguida, era muito ágil... Era muito simples, vendo a coisa feita, mas pra eu conseguir fazer, ainda mais "de prima", não foi tão simples assim, nem sei se cheguei a fazer razoavelmente bem alguma vez... Pra mim era difícil também um detalhe bobo: eu tinha que xingar e bater com jornal no Velho Libório e no palhaço, ou seja, no Ésio e no Biribinha, dois mestres para mim! Foi interessante fazer o galã que se transforma nessa peça, de moribundo em marido folgado da casa. A atenção às deixas, em dar o texto no tempo certo para a piada do palhaço funcionar é muito importante. Por exemplo: eu tinha que tossir (tossia exagerado na cara do palhaço), além de dar o texto, e fui descobrindo que esse tossir não podia ser a qualquer hora, se não eu podia cortar um texto do palhaço ou do velho. Como na música, quando você toca nos momentos de silêncio dos outros tocadores, no tempo certo e sem embolar, precisando atenção e ritmo. Depois dessa intensa experiência do 2º Encontro Geraldo Riso, em entrevista, Zeca enfatizou a necessidade da precisão do escada. Ele disse que, principalmente a frase final dita pelo escada, anterior ao arremate do palhaço, precisa ser certeira. Isso porque a piada do palhaço sempre faz referência direta a esta última frase: 353 É quadrado! É um, dois, pá pum, pá pum... Por que? Porque você tira o tempo do palhaço, né? Se o palhaço quiser fazer uma voltinha antes de dar o desfecho, ele entende o que tá na cabeça dele, o tempo que tá na cabeça dele e vai funcionar. Agora o escada não pode fazer isso. Porque ele não sabe o que tá na cabeça de quem vai encerrar. Entendeu? E parece frescura, né? Parece Frescura. "Ah, mas foi só um „não‟ que eu falei." Mas não pode falar. Tem que dar a escada, ne? 234 Zeca também falou em entrevista das dificuldades encontradas em seu próprio elenco e da relação direta estabelecida entre o seu desempenho e o dos demais atores: O meu elenco tem uma coisa que às vezes é bom e às vezes é ruim. Porque eles são muito meu espelho. Ontem eu não tava bem na comédia. Eu não me achei na comédia. Eu tava mal na comédia. E a comédia ficou toda torta. Todo mundo ficou meio... Eles não sentem isso, mas eu sinto. E toda vez que eu entro em cena, que eu erro meus tempos que eu tô meio que esquisito, a comédia fica esquisita. A comédia fica meio fora de ponto, o cara erra também e então isso me dá uma responsabilidade muito grande. Contanto que hoje era uma comédia muito mais fraca que a comédia de ontem e agradou dez vezes mais que a de ontem. Porque hoje eu entrei e chamei eles comigo: "Vem cá, vamo comigo". E quando eles sentem que eu tô acertando uma atrás da outra, eles se sentem meio que protegidos assim, sabe: "Opa, vamos brincar também". Quando eu entrei ontem eu errei duas, eles deram uma respirada... E isso aconteceu ontem por uma questão de cansaço... Mas até foi uma das coisas que eu pensei ontem depois do espetáculo: "Eu não tenho o direito de estar cansado”. São duas horas do dia que eu não tenho o direito de estar cansado porque todo o marketing que essas 55 pessoas fazem tá em cima de mim, né? Então eu não tenho esse direito. Ali naquele momento eu tenho que tá pleno, tenho que tá de verdade. Ontem eu tava muito cansado. Eu tava arrastado mesmo. Contanto que eu saí de cena ontem e já chamei algumas pessoas pra fazer uma ação hoje para trazer o público de volta. Porque se eu dependesse do público voltar por ter agradado, aquele público de ontem não vai voltar. Pode voltar, mas não na quantidade que a gente precisa. Então o que foi a ideia? A ideia foi hoje arrebanhar o público de novo porque eu vi que o erro foi meu ontem e tentar consertar pra que quem não gostou ontem seja abafado por quem gostou hoje 235. Assim sendo, as encenações circenses, que são sempre recriações, dependem completamente do bom desempenho dos atores para a obtenção do êxito. Cabe ao palhaço, então, amparado por seu elenco, colocar sua marca, sua arte de ator, sua técnica pessoal nas representações, mantendo viva a tradição circense, ao mesmo tempo em que a inova e a reinventa. 234 235 Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. Ibidem. 354 3.8 Cena e improvisação Subir à cena, todas as noites, com um espetáculo diferente, levado com poucos ensaios e com um protagonista palhaço é algo que exige, sem sombra de dúvidas, um “jogo de cintura” dos atores. No caso do Circo de Teatro Tubinho, em que a maior parte do repertório é composta por comédias, a abertura para a improvisação é algo que está na base da arte de ator dos artistas. Tanto que todos os atores da companhia que foram entrevistados destacaram a importância da questão do improviso no circo. Dentre algumas das colocações, destaco: Alexandre Vieira: Pra trabalhar num circo-teatro a pessoa tem que ser ligeira e rápida em raciocínio, né? Tem que ser rápida em raciocínio. Porque a gente aqui – como tem muita peça de teatro – então, tem muitas peças que tem improviso no meio e você tem que ser rápido. Como a gente decora todo esse texto... Porque dessas peças de teatro, eu acredito que em umas oitenta peças eu trabalho com texto, não comparsaria e ponta, né? Então você tem que ser rápido nesse improviso, tem que ter agilidade pra ver o que o Zeca tá querendo. Porque às vezes você entra com uma piada e não agrada e ele dá um lance, você precisa puxar outra piada já, aí tem que saber o que ele tá querendo. Isso é convivência junto, né? Tempo de trabalho. (...) Essa peça que vai hoje faz uns cinco meses que ela foi. Então, às vezes tem cidade que vai uma vez na cidade e daí a gente só vai fazer depois de seis meses de novo em outra cidade. é difícil, mas a gente guarda tudo na mente, tem um espacinho pra guardar cada uma (risos) 236. Cristina Martins: O trabalho aqui exige muito improviso. Improviso é muito importante aqui porque é um repertório muito grande e pouco tempo de ensaio, pouco tempo pra decorar texto e cada dia um espetáculo diferente. Se a pessoa não tiver muito jogo de cintura e muito improviso, eu acho que não dá conta. (...) Eu acho que por causa de conviver todo mundo junto, você acaba pegando uma intimidade um com o outro, acaba conhecendo pelo olhar e isso dá muita chance pra você improvisar. Já acaba aprendendo em que você pode ajudar ou atrapalhar, você acaba descobrindo como fazer. Mais por causa de convivência mesmo, e de um conhecer o outro 237. Ana Dolores: Pra trabalhar aqui? Em primeiro lugar, improviso. Em primeiro. Porque é um espetáculo diferente a cada dia, é praticamente impossível que se faça sempre a 236 237 Alexandre Vieira em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. Cristina Martins em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 355 mesma coisa e a gente trabalha com palhaço, que foge, foge! Então você tem que tá pronto pra improvisar. (...) E eu acho que é meio que dom, eu acho que tem ator que tem dom no improviso. Mas aqui no circo você acaba... Quem não tem esse dom acaba aprendendo com a prática. A prática... Fazendo e vendo. Eu acho que a improvisação é mais fazendo... É, é mais fazendo 238. Zeca: Eu acho que a primeira coisa é a disponibilidade de entender essa questão principalmente do improviso, né? Se for um cara muito bitolado ali no texto decorado e tal é o que mais dificulta quando a pessoa chega aqui, né? Porque eu mesmo, mesmo em ensaio, às vezes eu falo um monte de coisa, mas chega à noite me vem outra coisa na cabeça. A pessoa tem que entender que eu vou sair, que eu vou voltar e que isso é uma coisa bem comum, né? Então quer dizer tem que tá disposto a servir, entender que está disposto a servir, de ser o escada...239 Sobre os depoimentos acima, percebo que todos dizem respeito a um trabalho de improvisação aplicado diretamente à cena. Porém, mostrando-se abertos a absorver novos aprendizados, os artistas do circo de Tubinho puderam experimentar outro tipo de improviso com o trabalho com Tiche Vianna pelo projeto da Petrobrás. Tiche Vianna ministrou uma espécie de oficina para os atores, em que trabalhava exercícios e improvisações, que ocorriam, portanto, não diretamente aplicados aos espetáculos. Sobre esse trabalho, Tiche disse em entrevista: No trabalho que desenvolvi com eles, de certa maneira, todo mundo tinha que fazer o exercício, brincar e entrar. O que era pra eles mais difícil, eu dizia: “Quando vocês entram em cena ali vocês vão lá e fazem. Aqui vocês tem que fazer dentro de alguns parâmetros. Quando eu dou os parâmetros pra vocês, vocês ficam ressabiados. Não é pra ficar ressabiado! É pra você botar o que você sabe dentro desse parâmetro. Você acha que você não é capaz de fazer isso?”. Entendeu? E aí, assim eles iam jogando, iam jogando, então foram jogando cada vez mais. E isso foi dimensionando pra eles outras necessidades 240. Este trabalho, em específico, de improvisação em ensaio proposto por Tiche Vianna, sem sombra de dúvidas, auxiliou os artistas na compreensão de alguns aspectos da cena, principalmente os ligados à corporeidade do ator. E acredito que isso remete diretamente à ideia, levantada no início dessa dissertação, de que qualquer técnica tem 238 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014. 240 Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. 239 356 serventia ao trabalho do ator, desde que ele saiba se apropriar e transpô-la para sua técnica pessoal. Acredito, então, que a dificuldade encontrada pelos artistas do Circo de Teatro Tubinho, descrita por Tiche, existiu simplesmente porque esse tipo de trabalho é construído sobre pressupostos diferentes dos encontrados no circo de teatro. Diferentes, porém não excludentes. Isso porque o improviso para o artista circense ocorre diretamente aplicado à cena e este caminho – comum a minha formação, por exemplo – que propõe, primeiramente, um processo criativo baseado em improvisações, experimentações e laboratórios para uma posterior montagem de cenas não faz parte da arte de ator circense. Ésio Magalhães comentou acerca da companhia circense: Eles já têm um know-how 241 de como fazer. A improvisação, eles jogam muito com a improvisação, mas geralmente parte do palhaço. O jogo aberto fica mais com o palhaço. (...) É dele a parte da improvisação, da abertura, de jogar com o texto. Então improvisar criativamente, ou seja, no processo de criação do espetáculo não é muito o caminho deles, entende? O caminho deles é improvisar criando na cena. Porque a improvisação é criativa dentro da cena já. Você já tá aí de público e eu já estou improvisando com você daqui242. Essa criação de maneira mais direta é facilmente entendida quando nos deparamos com o fato de que estes artistas representam uma peça diferente a cada noite, além de desenvolverem, durante todo o dia, diversas outras funções na empresa circense – como ações administrativas, de confecção, manutenção e montagem de cenários e figurinos, produção dos alimentos da lanchonete, etc. À título de exemplificação de como os artistas têm de conciliar o trabalho artístico com as demais funções no circo – e todos os seus percalços –, cito uma passagem do diário de bordo de Ana Dolores, do dia 07 de janeiro de 2011, estreia do Circo de Teatro Tubinho na cidade de Vargem Grande Paulista: 241 Know-how é um termo em inglês que significa literalmente "saber como" e é utilizado para descrever o conjunto de conhecimentos práticos sobre como fazer alguma coisa. 242 Ésio Magalhães em entrevista concedida à autora em 23/04/2013. 357 Atraso na montagem e o corre-corre começa. Ambrosina, a personagem do dia, já é de casa, mas no decorrer do dia resolvo dar um tempo diferente pra ela... Penso, estudo... Tudo no meio de uma correria de limpar cadeiras e a torcida de que tudo esteja pronto às 21h. Às 20h descubro que vai mudar o ator que dividirá a cena comigo, mas vamos lá... Não dá tempo pra ensaiar, mas o “show” tem que continuar!243 Com isso não quero dizer, portanto, que um processo como o desenvolvido no meu tipo de formação não pode ser empregado para um elenco circense, tanto que este tipo de trabalho foi desenvolvido com a companhia de Tubinho durante o projeto da Petrobrás. Quaisquer técnicas podem servir ao trabalho do ator, desde que ele saiba como articulá-las. Quero dizer apenas que este caminho do improviso anterior à cena pode servir ao ator circense, mas que não faz parte comumente de sua arte, por não se afinar com o modo de organização do trabalho no circo. O improviso para o artista circense, portanto, é comumente aplicado de maneira direta à cena e constitui um elemento primordial na composição dos espetáculos. Isso porque o circo-teatro, assim como diversas outras manifestações teatrais tidas como marginais à história do teatro oficial no Ocidente, se fundamenta não sobre o texto dramatúrgico, mas sim sobre o próprio espetáculo teatral. Ou seja, não são textocêntricas. Essas manifestações foram colocadas por questões políticas à margem da história oficial do teatro no Ocidente que, assim como tantas outras histórias oficiais de diversas áreas do conhecimento, é hegemonicamente contada do ponto de vista europeu, e melhor dizendo, francês. Mesmo porque durante muitos anos – e até hoje, por que não? – as tendências teatrais dos países europeus influenciam diretamente a cena de outros países, como o próprio Brasil. Com este “detalhe” em mente, destaco que, após o Renascimento, do século XVII até os anos 1880, as teorias teatrais francesas desenvolvidas eram essencialmente poéticas. Por razões ideológicas – que envolvem disputas de saberes e de poder –, quase todos os estudos desse período tinham os textos das peças como objeto principal de análise. A exceção à regra ficou a cargo do Paradoxo sobre o comediante, de Diderot, 243 Ana Dolores em seu diário de bordo, concedido à autora. 358 provavelmente a primeira abordagem teórica moderna sobre o trabalho do ator. Porém, sabe-se que esse texto foi publicado somente após 1830 (ROUBINE, 2003). As teorias teatrais francesas do século XVII acompanharam os principais fios condutores do movimento renascentista, que visava à retomada dos paradigmas da Antiguidade Clássica. Dessa forma, o teatro oficial francês do Classicismo tinha o projeto comum de retomar, analisar e compreender a Poética, de Aristóteles, que havia sido traduzida para o francês apenas em 1671. Roubine afirma: A França letrada logo se apaixona pelos debates provocados pelo modelo dramatúrgico descrito na Poética. Todo autor que pretenda qualidade ou que vise conquistar um poder econômico-intelectual deve reivindicar um conhecimento aprofundado da Poética e de seus comentadores (ROUBINE, 2003: 22). Porém, deve-se ressaltar que o texto de Aristóteles, ao ser traduzido para o francês, foi parcialmente modificado, sendo mal interpretado pelos tradutores e comentadores. Roubine completa: Assim, a teoria de Aristóteles, tal como a entendem os “doutos”, repousa em leituras indefinidamente mediadas pelas obras italianas ou holandesas que lhe eram consagradas e não é raro vermos atribuírem a Aristóteles fórmulas que, na verdade, devem-se a um ou outro de seus exegetas. (...) Para a geração dos anos 1640, as “regras” (aristotélicas) constituem um modo de conhecimento científico da arte teatral e uma tecnologia cuja eficácia as obras-primas antigas comprovaram. O aristotelismo tem no fundo, em seu domínio, a mesma vocação metodológica que o cartesianismo: os axiomas da arte encadeiam-se uns aos outros e são logicamente deduzidos uns dos outros. Assim como a razão cartesiana é a ferramenta da inteligibilidade do mundo, a razão “aristotélica” é a ferramenta da perfeição criadora (Idem: 22, 26 e 27). A partir, então, desta leitura equivocada e radical da Poética, inaugurou-se uma tradição de um teatro textocêntrico, de desvalorização do espetáculo e afirmação da superioridade, e até mesmo a supremacia, do texto dramático sobre os demais componentes da encenação (Idem). Com isso, o aristotelismo francês fundou um elitismo intelectual. Ainda segundo Roubine, 359 Uma vez que o êxito do dramaturgo é objetivamente atestado pela conformidade de sua obra às regras, quem poderá avaliar essa conformidade senão aqueles que têm o mais perfeito conhecimento das ditas regras, ou seja, a casta dos “eruditos”? (...) Diferentemente de todos os profissionais da cena para quem a principal regra é agradar ao público, os aristotélicos recusam esse ponto de vista, alegando que esse público, salvo exceção, é desprovido das luzes requeridas, isto é, do conhecimento das regras. (...) O que estava em jogo (...) era a conquista de um poder simbólico, mas também, não nos esqueçamos, econômico, que visava dominar as atividades do teatro. A teorização aristotélica era parte de uma estratégia que tinha como objetivo eliminar tudo o que podia ser obstáculo a essa conquista. Eis porque o público, que julgava os espetáculos exclusivamente segundo o critério de seu prazer, devia ser “recusado”, “deslegitimado”. (...) Certamente os “doutos” podiam constituir um corpo de intendentes dedicados à causa do poder monárquico, capazes de impor seu controle sobre as atividades do teatro e sobre a ideologia que este difundia. O aristotelismo era em primeiro lugar uma ordem, uma regulamentação. E é verdade que a tradição barroca que repousava na liberdade de invenção dos criadores, que se apoiava não em uma “panelinha”, mas no sufrágio de um público eclético, que veiculava a ideologia nobiliária, o individualismo, a ostentação, a recusa da Lei...- é verdade que essa tradição não podia ser senão suspeita para uma monarquia que lutava para consolidar o absolutismo. A criação teatral – única pratica cultural, então, a reunir as massas – era motivo político de disputa. O poder tinha necessidade de assegurar seu controle do mesmo modo que se esforçava para controlar o ardor e os caprichos de uma aristocracia inquieta (Idem: 27, 55 e 56). Porém, o grande paradoxo é que, se voltarmos no tempo e observarmos como eram as manifestações teatrais anteriores ao aristotelismo francês e à elitização intelectual/artística, veremos que a ideia de teatro, desde os gregos, sempre se aproximou mais das ideias de ação, de representação num tempo e espaço diante de um coletivo de pessoas do que do texto dramático propriamente dito (CAMARGO, 2006). E, seguindo essa linha, que acabou se tornando marginal, acabamos por encontrar manifestações como os teatros de feira e mesmo a commedia dell’arte e, consequentemente, as manifestações teatrais nos circos europeus e os chamados circosteatro no Brasil. Camargo escreve acerca dos teatros de feira, realizados pelos artistas que posteriormente passaram a se apresentar no espetáculo concebido por Astley: Felizmente, não existiam teóricos que impusessem limites ou rigor a esta arte, nem aqueles que pudessem reconhecer um estilo em seu meta-estilo. Seu compromisso último como arte era com o público que devia encher seu auditório, na busca das formas artísticas que agradassem mais à plateia, que deixaria um pouco de seu numerário, previamente, na bilheteria. (...) Se o teatro francês havia produzido e elaborado, sob o manto real, um metro clássico que o caracterizaria 360 por muito tempo, nas feiras estavam sendo decretados e praticados a flexibilidade e o não classicismo. Era o gênero das diferenças dramáticas e da experimentação apoiado na arte do ator e de seu espetáculo, não no texto dramático que se escrevia sobre as regras da academia. Um teatro que não se baseava no texto dramático escrito a ser seguido como forma organizativa, mas, no espetáculo. Esta era sua unidade, ou melhor, seu princípio (CAMARGO, 2006: 28, 29 e 30). As considerações de Camargo acerca dos teatros de feira são completamente aplicáveis aos circos-teatro brasileiros, que também fundam um compromisso exclusivamente com a plateia e se apoiam, principalmente, no desempenho dos atores, amparados pelos demais elementos da encenação, para a construção de uma cena múltipla e aberta à improvisação. Ou seja, partindo das considerações de Camargo (2006), compreendo que o circo-teatro advém de uma tradição em que a cena é constituída não a partir de uma lógica de construção do texto literário/dramático, mas sim através de outra dimensão, de outro texto: o texto espetacular, composto, por sua vez, pelo texto do ator e sua arte – com seu corpo, mente, intelecto, etc. – em conjunção com o texto de cada elemento da encenação. Ainda partindo das reflexões de Camargo (2006), destaco que a estrutura de qualquer espetáculo teatral, e não apenas das manifestações tidas como marginais, é composta por esses múltiplos textos internos (texto-cenário, texto-luz, texto-figurino, textosom, texto-gesto, texto-palavra etc.). Mesmo a ausência consciente de algum desses textos constitui um texto, ou seja, quer dizer algo dentro do complexo formado pelos demais textos em relação. E é exatamente a tensão entre todos esses textos, concretizada por completo somente no momento da representação diante do público, que constitui o fenômeno teatral. Ou seja, em qualquer representação, o texto dramatúrgico, quando existente, deve ser apenas um dos elementos que constituem o sistema significante do texto espetacular. Dario Fo nos atenta para o fato de que: Os atores precisam aprender a fabricar o próprio teatro. De que serve o exercício da improvisação? Para tecer e impostar um texto com palavras, gestões e situações imediatas. Mas, principalmente, para retirar dos atores a falsa e perigosa ideia de que o teatro não é nada além do que literatura posta em cena, recitada, cenografada, em vez de simplesmente lida. Não é assim. Teatro não é literatura, mesmo quando e a qualquer custo querem enquadrá-la como tal. Brecht afirmava, 361 referindo-se a Shakespeare: “Infelizmente, é belo também à leitura. Esse é o seu único defeito”. E tinha razão. Uma obra teatral de valor, paradoxalmente, não deve de nenhum modo parecer agradável à leitura. Ela deve revelar seu valor somente no momento da realização cênica (FO, 2011: 323 e 324). No caso das manifestações tidas como marginais, como o circo-teatro, o texto espetacular é fundamentalmente múltiplo, agregador de vários gêneros, estilos e linguagens artísticas. Nesses teatros o texto dramatúrgico, quando presente, é criado não para ser analisado como texto literário, mas sim para ser encenado e completado pelos demais textos do espetáculo. Mas ainda assim, o movimento teatral no circo é tão múltiplo que existem algumas especificidades, em relação à função do texto nas encenações, ditadas, principalmente, pelo contexto histórico-social em que as companhias se inserem. Como exemplo, cito as duas companhias investigadas nessa pesquisa. O Pavilhão Arethuzza, principalmente na sua fase na cidade de São Paulo, levava à cena mais dramas – e melodramas – do que comédias, pois era o que mais agradava a plateia daquele momento que, como destacou Santoro Júnior em entrevista, ainda vivia uma espécie de Romantismo tardio. Nessa mesma entrevista, Santoro Júnior me contou sobre o rigor que os artistas tinham em relação aos textos, principalmente do gênero dramático, que deveriam ser decorados por completo e que havia pouco espaço na cena para improvisação. Além disso, nas diversas passagens em que ele declamou trechos das mais variadas peças, pude perceber que os textos encenados eram compostos por construções linguísticas complexas e palavras bastante rebuscadas. Então, me veio a dúvida: isso não é ser textocêntrico? O texto não estava ali no centro da representação? Depois de refletir um pouco e pesquisar os dados que já havia levantado anteriormente, encontrei na entrevista com Fernando Neves algo que me ajudou a entender um pouco melhor essa questão. Compreendi, então, que o texto constituía um elemento importante nas representações do Pavilhão Arethuzza, mas que, acima de tudo, servia de pretexto, de ponto de partida, para a encenação de grandes espetáculos, com grandes atuações. 362 O texto era importante, mas o olhar daqueles artistas estava voltado completamente para a criação cênica. Ou seja, o texto era relevante, mas não era apresentado ali um teatro que parecia literatura, e sim um teatro com grande preocupação com os elementos da encenação e o desempenho dos atores. Já o Circo de Teatro Tubinho me suscitou outras dúvidas. Este circo trabalha, principalmente, com as chanchadas, que apresentam roteiros de situação com inserção de muitas piadas e improvisos, e com as comédias de linha, mais voltadas para a encenação de uma história linear e de um texto fixo, porém agregado de inserções e modificações a toda representação. Em ambas as manifestações cômicas há total abertura ao improviso, sempre pautado por alguns alicerces. Porém, apesar de reconhecer tudo isso, me veio a dúvida: no Circo de Teatro Tubinho o texto não é o mais importante, mas, ao mesmo tempo, o texto é preponderante em cena. Há, inegavelmente, a construção física dos tipos por parte dos atores, há a exploração de elementos cenográficos, de figurino, luz, som, etc; mas pude contar nos dedos quantas cenas vi, ao longo da pesquisa, que eram mudas de ação verbal. Todas as cenas, praticamente, se resolvem pelo verbo, obviamente, em consonância com as ações corporais dos atores e os demais elementos da encenação. Em relação a essas dúvidas, Tiche Vianna me esclareceu em entrevista a diferença entre textocentrismo e verborragia e como uma cena pode, apesar de não estar centrada no texto, ser preenchida de ações verbais, que devem estar articuladas de modo a não serem meramente informativas: Fernanda Jannuzzelli: Com relação ao texto... Lendo sobre commedia dell'arte ou mesmo circo-teatro, por exemplo, fala-se muito que não é textocêntrico... Não é o texto que é o mais importante. Como você vê isso ali no Tubinho, Tiche? O texto não é o mais importante, mas ele é preponderante, não? Eles falam muito nas peças! Tiche Vianna: Não, não é o texto. Não é textocêntrico mesmo, mas texto e palavra e som são coisas distintas. O que eu entendo é que não é textocêntrico porque não tem uma lógica de um desenvolvimento de uma história que, através da organização das palavras, da escolha dos termos, da construção das frases e do modo como esses conteúdos vão ser abordados pelo texto... Não é isso que vai fazer com que todo mundo se envolva com a história. Isso não conta. Mas pra mim existe uma questão que é: não ser textocêntrico não tem nada a ver com a questão da palavra. Porque as pessoas sabem que não é textocêntrico, mas elas entram lá e são verborrágicas, ok? Porque a palavra é um recurso muito forte que 363 a gente tem. Ainda mais quem vem do campo da piada, que vem pelo campo do humor feito pela construção da piada. Você vai falar, você vai encontrar as relações na fala. Você faz uma matriz de corpo, faz um tipo fixo – que não é o tipo fixo da commedia dell'arte –, mas você fixa como se ele fosse de um jeito, então ele vai entrar, falar e sair desse jeito. E essa é a figura cômica. E eu digo “Não!”. Ele vai entrar desse jeito, ele vai falar ou não, mas algo vai acontecer com ele e ele vai sair diferente do que ele entrou. Ou ele vai sair mais intensificado naquilo que ele entrou ou ele vai sair transformado. Então, qualquer cena pede ou intensificação ou transformação. Se não aconteceu nem uma coisa nem outra, não aconteceu nada ali, pra esse tipo de teatro. Não aconteceu nada, você só foi lá e informou. Então o perigo é você tirar o textocentrismo e botar o informativo. Então a tua fala fica sendo as informações sobre o espetáculo, pras pessoas poderem acompanhar. Ao invés de fazer a coisa, você informa sobre a coisa. (...) Quando eu tô fazendo, quando eu tô em cena, eu não digo que eu vou caminhar até a porta, eu caminho até a porta. Eu não digo “Você vai sofrer uma coisa assim”, eu faço isso, entendeu? Eu não digo “Você vai levar um tapa”, você leva o tapa. Que é toda uma construção desse tipo de linguagem, mas também do cômico. Então é bem interessante essa sua questão, é uma abordagem interessante de fazer... Que é justamente sobre isso, que é entender que o texto, o textocentrismo como a gente fala, que você tem uma dramaturgia que constrói e constitui a cena a partir de toda uma lógica de construção desse texto. Uma lógica poética, literária, que passa por todos os universos que um texto passa pra ser construído. Quando você tira o texto você não pode esquecer que essa dimensão passou pro texto corporal, né? Há um texto corporal a ser dito. Senão, o que você vai fazer ali é som da palavra, e aquilo vai ser... Você vai simplesmente tornar a palavra uma coisa informativa. E a informação é chata. Porque você cria no imaginário do espectador uma imagem que com certeza é infinitamente menor que aquela que você é capaz de construir ali 244. Compreendi, portanto, que, apesar de não estar centrado na encenação de um texto dramatúrgico, o recurso da palavra é muito utilizado no Circo de Teatro Tubinho, pois o tipo de humor desenvolvido pela companhia, e característico do palhaço Tubinho, é predominantemente verbal, de construção de piadas. Porém, isso não quer dizer que as encenações ficam restritas apenas às ações verbais dos atores e que as falas são informativas. Outra questão suscitada em relação ao texto na cena do Circo de Teatro Tubinho me surgiu durante os ensaios da peça Biribinha e a noiva do defunto, no 2º Encontro Geraldo Riso. Zeca nos passou a comédia de “orelhada”, de modo que ele ia contando os acontecimentos da peça e, ao mesmo tempo, dando algumas falas das personagens. Algo mais ou menos assim: “Ésio, você entra pela porta da rua, com várias contas na mão e no 244 Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014. 364 meio tem uma carta. Você abre, lê só pra você e (gritando) „Amália, Amália, filha!‟. Daí entra a Amália. Você entra, Fer, e „O que foi papai, que aconteceu?‟ „Minha filha você não vai acreditar!‟ „Fala papai!‟”. Nesse esquema fomos montando toda a comédia e num dia Zeca comentou: “Engraçado... vocês repetem exatamente as mesmas falas; lá a gente não... Cada vez a gente fala de um jeito diferente... sabemos a situação, mas cada vez a fala sai de um jeito”. E eu então me dei conta de que realmente fazíamos isso. As falas que usamos na primeira vez que passamos as cenas foram mantidas, como se fosse um texto fixo. Às vezes, colocávamos umas falas a mais, improvisávamos, mas mantínhamos iguais as falas “chaves”, diferentemente dos atores da companhia de Tubinho, que, a cada apresentação, modificam suas falas, porém mantendo as situações. Isso aponta para o fato de que os artistas circenses são, além de atores, coautores dos textos encenados, por sempre “reescreverem” suas falas no momento da apresentação, mantendo a situação, mas alternando as palavras escolhidas e a construção do discurso, como apontado por Zeca no nosso trabalho no Encontro Geraldo Riso. E, além disso, são coautores devido ao caráter improvisacional característico desse tipo de fazer teatral, que incorpora “em ato” temas contemporâneos, acontecimentos do momento e referências aos costumes locais (BOLOGNESI 2003; SILVA, 2007; SOUSA JR., 2012). Porém, este improviso em cena típico do trabalho do ator circense não ocorre de maneira totalmente aleatória, mas sim baseado numa série de parâmetros que fixam alguns pontos de apoio. Sousa Junior cita: Uma metáfora que se aproxima muito desse processo vem da música. Aroldo Casali define: “Entrada é como jazz. O tema central é esse, cada um improvisa dentro do acorde do momento. É a mesma coisa. Ele pode improvisar o que quiser. O palhaço é um ser imprevisível” (SOUSA JR., 2012: 85). Este tipo de improvisação “sem sair do tema”, empregando mais uma vez a metáfora musical, que está na base da arte de ator dos artistas de circo-teatro e que é explorado nos circos também nas entradas de palhaços, faz parte da arte de ator de diversas manifestações artísticas populares, como a commedia dell’arte, por exemplo. Dario Fo 365 disserta acerca da comédia italiana: (...) os cômicos não possuíam sequer a tão decantada arte inatingível de inventar de improviso diante do público situações e diálogos de extraordinário frescor e atualidade. Pelo contrário; asseguram; toda aquela improvisação seria um truque, fruto de uma ardilosa organização predisposta a situações e diálogos decorados antecipadamente. O que é absolutamente correto. Mas o valor que se atribui a isso depende de sua interpretação. No meu ponto de vista, é um fato totalmente positivo. (...) Mas o conhecimento de tantos expedientes com certeza seria insuficiente se o ator não possuísse o motor da fantasia e o famigerado dom da improvisação, ou seja, a capacidade de dar a impressão de estar dizendo coisas novas e pensadas naquele momento (FO, 2011: 17 e 20). Num circo de teatro como o de Tubinho, o primeiro grande ponto de apoio e referência aos artistas é o fato de que todos estão em cena a serviço do palhaço e que cada pequena parte, construída por cada ator, é importante e significativa para se extrair um bom desempenho dessa figura central. Além disso, o uso da tipologia, que permite a verticalização – sem engessamento – em determinados personagens tipos, cria um caminho claro a ser seguido por cada ator em cena. Destaco ainda que a convivência diária e o fato de se apresentarem todos os dias possibilitam a criação de uma grande intimidade e cumplicidade cênica entre os atores, além da criação de um extenso repertório em comum, ampliado a cada apresentação. Zeca contou em entrevista, em 2010, como ocorreram as primeiras montagens, no início da companhia, e como que, com o passar dos anos, o espaço para improvisação foi sendo ampliado: (...) E assim a gente foi refazendo os espetáculos. Por exemplo, tinha peça que meu pai lembrava a história do começo ao fim, mas não lembrava os cacos, as piadas, os floreios da peça. Então ele falou: “Vamos entrar com o texto e deixa o Zeca trabalhar.” Então o que foi combinado com o elenco? Cada um tinha seu texto, suas falas, eu abria a boca, eles paravam, esperavam eu fazer a minha graça, e depois retomavam de onde tinham parado. E isso acabou dando pra gente habilidade pra improvisar, então a gente brinca muito em cena. Tem muita coisa na comédia que não é da comédia, uma piada que eu ouvi de tarde e boto à noite... Às vezes você vê que o próprio ator ri porque ele não esperava aquela piada, não conhecia. E então a gente vai trabalhando desse jeito. 245 245 Zeca em entrevista concedida à autora em 27/03/2010. 366 No final da fala anterior, Zeca destaca o fato de que, às vezes, os próprios atores são surpreendidos em cena e riem “de verdade”. Esse recurso da quebra da ilusão cênica é muito utilizado no circo de Tubinho por sempre agradar a plateia que, segundo Zeca, às vezes realmente parece torcer para dar tudo errado. Isso porque o público gosta de ver o ator se atrapalhando, quebrando o mecanismo estabelecido pela encenação e tendo que improvisar com isso. Dario Fo nos conta: Picasso afirmava: “O pintor imbecil está pintando e cai-lhe do pincel uma gota de tinta. Uma mancha vistosa espalha-se na folha. Desesperado, o pintor imbecil rasga o papel o papel e começa tudo de novo. No meu caso, ao invés, já que – se me permitem – sou um pintor de talento, assim que cai a mancha, sorrio, observoa, viro e reviro a folha e, comovido, começo a desfrutar daquele acidente com um grito de prazer. É justamente da mancha que, para mim, nasce a inspiração!” (FO, 2011: 90 e 91). Figura 142: Exemplo de quebra da ilusão cênica em Cabocla Bonita. Sorocaba, 2014. Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Transpondo a ideia de Picasso para o teatro, entendo que o ator deve aprender a lidar com seus próprios erros e aproveitá-los como estopins para a revitalização da cena, facilmente engessada, pois no erro há o inesperado e, portanto, há vida. 367 O erro, o “sair da norma”, é um prato cheio para qualquer palhaço e no Circo de Zeca nenhum detalhe passa despercebido diante do palhaço Tubinho. O erro é sempre aproveitado e incorporado à cena. E mais: o erro é tão bem-vindo que é falseado. Certa vez eu estava assistindo Tubinho, o Tigrão de Sorocaba. Numa das cenas, Lucélia Reis perseguia a atriz Ana Dolores em cena quando, de repente, foi tentar pular o sofá do cenário, que acabou tombando e derrubando-a no chão. A cena parou por alguns instantes, pois Lucélia e os demais atores não conseguiam parar de rir do incidente, assim como o público, que ria e aplaudia em cena aberta. Depois da apresentação fui perguntar à Lucélia se estava tudo bem e dizer que o tombo no sofá, apesar de um incidente, tinha sido muito engraçado. Foi então que ela me contou: “É de mentira, Fer. Eu caio toda vez”. Comecei então a rememorar com ela diversos outros incidentes que havia visto em outras peças e descobri que também se tratavam de “falsos improvisos”. Depois disso, ao ler o Manual Mínimo do Ator, descobri que, o que eu estava chamando de “falso improviso” Dario Fo chama de “falso incidente” e que este recurso era comumente explorado na commedia dell’arte e outras manifestações cômicas. Dario Fo (2011) conta uma passagem acerca da utilização do recurso do falso incidente, encontrada em Crônicas da commedia dell’arte, de Vito Pandolfi. Certa vez, um grande ator e cômico dell’arte chamado Cherea estava recitando o prólogo de uma peça de Plauto, que não estava agradando muito, quando foi atacado por uma vespa. Primeiro, ele tentou se livrar do inseto pra continuar a cena, escondendo o seu embaraço com a situação. Porém, a vespa continuou a lhe perturbar e, por fim, entrou em sua roupa. Cherea, tentando se livrar do inseto acabou despertando a risada de toda plateia. O ator então, experiente e astuto, aproveitou-se da situação e, mesmo depois de ter se libertado do inconveniente, começou a fingir que a vespa continuava o atacando, cada vez mais atrevida, ao mesmo tempo em que recitava o monólogo. Aliás, quando os outros atores entraram em cena, e o espetáculo realmente começou, eles, atores experientes e sagazes, mimaram estar sendo apoquentados pela vespa. Não satisfeito, Cherea mimou perseguir a vespa, dirigindo-se até a plateia e, sob o pretexto de eliminar o inseto imaginário, distribuiu com desenvoltura tapas a torto e a direito entre os espectadores. Logicamente, o 368 espetáculo foi para o espaço, como se costuma dizer, mas o sucesso da noite foi absoluto (Idem: 117 e 118). A cena hilariante agradou tanto que, no dia seguinte, a companhia decidiu fabricar imitações de vespas e o incidente do dia anterior passou a ser reproduzido durante toda a encenação da peça, chamada, a partir de então, A comédia da vespa. Nesse caso narrado por Fo, um incidente externo, algo que aconteceu por acaso, foi fundamental para a renovação e revitalização do mecanismo cômico. Assim como nessa história, no Circo de Teatro Tubinho o recurso do falso incidente geralmente surge de uma situação que realmente aconteceu imprevisivelmente pela primeira vez e que, por ter agradado, passou a ser repetida sempre. O exemplo mesmo anterior, da queda de Lucélia, transcorreu dessa forma: num determinado dia ela realmente caiu sem querer e, a partir deste “erro”, descobriu-se um mecanismo cômico funcional que foi mantido em cena. Figura 143: O falso incidente de Lucélia Reis em Tubinho, o tigrão de Sorocaba. Sorocaba, 2014. Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis. Porém, o que mais me impressionou foi a verdade com que os atores realizam esses falsos incidentes, a ponto de enganarem a todos, inclusive a mim, que estava assistindo ao espetáculo não só com um olhar de espectadora, mas de investigadora. 369 Como atriz, sei como é difícil repetirmos, de maneira viva, algo que nos surge por acaso numa improvisação ou mesmo no momento da apresentação. Aliás, a arte de ator é baseada justamente nessa tensão existente entre técnica (artifício) e vida; entre repetição e espontaneidade. Portanto, a verdade com a qual os atores do Circo de Teatro Tubinho executam o recurso do falso incidente é algo que realmente impressiona. Tanto a verdade do ator com o qual o “incidente” ocorre, quanto a verdade com que os demais atores em cena reagem ao acontecido, pois é justamente a reação desses outros que dá a dimensão, ao público, da veracidade do “incidente”. Para além de todos os improvisos programados há ainda, na companhia de Tubinho, uma abertura para um tipo de improviso realmente ditado pelo acaso. E, diante disso, os atores precisam estar sempre atentos, com um nível de energia elevado e extrema prontidão. Sobre isso, Luciane Rosã e Lucélia Reis disseram, em entrevista: Luciane Rosã: Tudo pode mudar também e é isso, o palhaço pode fazer qualquer piada e tem que estar atento. É o que eu sempre peço, quando eu vou entrar em cena, é estar ligada. Estar “ligada no 220” pra ter muito mais audição, mais visão, muito mais corpo, porque a gente tem que tá muito ligada nele. E hoje em dia a gente olha pra ele e a gente sabe o que ele tá pensando. Agora, com esses personagens novos que eu peguei, eu percebi muito isso. Por que? Porque quando eu já tava fazendo os meus personagens , há treze anos fazendo, né?... Eu já tava no embalo, às vezes as coisas fluem de um jeito que parece tão natural como se a gente tivesse em casa. Quando eu peguei esses personagens novos, eu percebi umas trocas de olhar dele comigo que eu me assustava em cena. Porque eu tava em outro personagem, então eu não esperava, às vezes, atitudes dele e não conseguia trocar como eu troco quando eu estou nos meus personagens normais. Então é um ping pong totalmente diferente. Você tem que se reestruturar como atriz 246. Lucélia Reis: Você tem que entrar atento em cena, primeiro também porque você trabalha com um palhaço que você nunca sabe o que vai vim dele. Então se você não tá atento com o teu corpo atento, com teu olho atento, sabe, com a sua mente atenta ali, você não tá inteiro em cena, você pode se dar mal... Você pode ser um excelente ator, mas se você entra desatento, passou... O palhaço é imprevisível, você nunca sabe o que vem dele, e você é escada o tempo inteiro 247. 246 247 Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014. Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 370 As inserções, principalmente verbais, na encenação são chamadas, no teatro, de “cacos”. Em muitas linguagens teatrais o “caco” é mal visto e acredito que seja porque esse recurso talvez não sirva a todos os tipos de manifestações teatrais. Mas nas populares, como o circo-teatro, esse recurso se enquadra perfeitamente à linguagem cênica e a arte de ator de seus artistas. Porém, improvisar é como estar numa corda bamba. E digo isso por experiência própria, baseada principalmente no trabalho que desenvolvo com um dos grupos que integro como atriz, a Damião Cia de Teatro. Faço parte do espetáculo de rua As presepadas de Damião – de como fez fortuna, venceu o Diabo e enganou a Morte com as graças de Jesus Cristo. Este espetáculo é o resultado da montagem de formatura de parte da turma de 2009 do curso de Artes Cênicas da Unicamp. Pude acompanhar parte deste processo criativo, pois havia sido convidada pela turma para desenvolver o trabalho de preparação corporal, principalmente acrobática, para o espetáculo, dirigido pelo professor Mário Santana. Depois de formados, parte do grupo resolveu continuar com o espetáculo e foi, então, que passei a integrar o elenco, substituindo duas atrizes que haviam saído da companhia. Quando comecei a atuar em As presepadas de Damião, em 2013, já estava muito envolvida com o trabalho desenvolvido por Zeca e seu elenco, de modo que, influenciada pelo que via no circo, passei a abrir brechas de improvisos no espetáculo, buscando um modo de me apropriar daquelas personagens que não haviam sido criadas por mim. Eu também sentia que o espetáculo funcionava muito bem, mas que era necessário, por se tratar de uma peça de rua, interagirmos mais com o local escolhido para a apresentação, bem como com a plateia presente. À medida que comecei a improvisar, os outros artistas do elenco rapidamente entraram no jogo proposto, de modo que um passou a “dar corda” para o improviso do outro. O espetáculo, então, cresceu de modo significativo, se tornou mais vivo e passou a estabelecer um contato mais potente com a plateia. Porém, como improvisar é estar na corda bamba, com o tempo, fomos dando tanta abertura ao improviso que todos começaram a colocar vários cacos em diversos momentos da peça, o que gerou um alongamento e uma consequente falta de ritmo das 371 cenas. Havíamos “perdido a mão” e exagerado na quantidade de inserções. Mas, por outro lado, se “perdemos a mão” era porque estávamos experimentando e nos desafiando em cena, ou seja, nos pondo realmente em risco. Como em arte tudo é questão de medida, nosso trabalho tem sido, desde então, caminhar nessa linha tênue do improviso, buscando sua medida exata para o bom andamento do espetáculo. Acredito que no Circo de Teatro Tubinho extrapola-se a medida exata com bem menos frequência do que no caso da Damião Cia de Teatro, porque enquanto nesta última a comicidade da peça é diluída entre as personagens, no circo tem-se a premissa básica de que a figura central é o palhaço e que é dele a graça maior e final do espetáculo. Além disso, por se apresentarem todas as noites, eles inegavelmente “treinam” e aprendem mais do que nós, que apresentamos, geralmente, uma vez por mês. Dessa forma, o Circo de Teatro Tubinho desenvolve seu trabalho pelo interior do estado de São Paulo, já assistido por um público superior a um milhão de pessoas. Todas as noites, a lona para seiscentos espectadores está lotada e todo o elenco se reveza nas mais diversas funções para fazer a sessão acontecer. Ao longo da pesquisa de campo pude ver o enorme respeito com o qual todos do circo tratam os espectadores, a começar pela questão da pontualidade: todos os dias exatamente às 21 horas ouve-se a vinheta “A festa vai começar, consulte o seu relógio, são pontualmente 21 horas”, que dá início ao espetáculo da noite. Pude acompanhar também como, ao longo da praça, Tubinho e seu elenco vão conquistando a cidade. O circo se insere na vida das pessoas muito além do momento do espetáculo, desenvolvendo diversas ações no campo social e construindo, com isso, amizades que perduram depois que o circo se muda. 372 Figura 144: Reportagem sobre jogo beneficente do qual o Circo de Teatro Tubinho participou na cidade de Ibiúna, em julho de 2010. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. Figura 145: Reportagem sobre homenagem à Zeca no Jornal Cruzeiro do Sul. Votorantim/Sorocaba, 05/02/2012. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello 373 No campo da configuração artística, o espetáculo de estreia da temporada é sempre E o Tubinho apareceu. Nesta comédia de linha conhecida entre os circenses como O Aparício, o palhaço demora um pouco mais para aparecer na trama do que em relação às outras peças, o que aumenta a expectativa do público em querer ver Tubinho. Ana Dolores disse em entrevista: A peça da estreia sempre foi o Aparício. Sempre, desde o começo. Que foi meio que uma mudança de tradição, porque a maioria dos circos de teatro estreavam com o Falso Conde né? Que aqui é o Tubinho, o hóspede da pensão maluca. E o Zeca resolveu levar o Aparício na estreia... Porque a gente falava "Zeca, no Aparício, palhaço, demora muito pra entrar em cena". Daí ele falou "Não, mas eu acho que tá bom pra estreia porque aí eu levo como O Tubinho apareceu... E até vai aumentando a vontade de ver o palhaço, né? Vão ficar “não vai entrar, não vai entrar?”248. Na última semana da temporada, o circo faz o chamado Vale a pena ver de novo, em que o público escolhe as peças que gostaria de rever. No penúltimo dia sempre é levado O Casamento do Tubinho. Após um primeiro ato engraçadíssimo, no segundo ato Zeca pede licença ao público para uma pausa na história e chama ao palco os padrinhos do casamento, que são as pessoas das quais os artistas ficaram amigos durante a temporada na cidade e também os patrocinadores do circo. O clima é de celebração e de início de despedida, com todos envoltos na mesma atmosfera que mistura realidade e ficção. Em Sorocaba, fui surpreendida com Tubinho dizendo “Geralmente a gente chama dois casais de padrinhos para o noivo e dois para a noiva. Mas dessa vez a gente vai abrir uma exceção e chamar uma pessoa que vem acompanhando nossa família há um tempo: Fernanda Jannuzzelli!”. Não preciso dizer que fui às lágrimas... No palco ao abraçar o elenco todos me agradeciam pelo tempo que passamos juntos e eu não conseguia dizer nada mais do que “Muito obrigada vocês!”. Mais uma vez pude ver quão generosos e carinhosos aqueles artistas são para com as pessoas que se interessam pelo trabalho da companhia. Depois deste emocionante momento, ainda entra em cena no espetáculo Tubinhozinho, Alexandre Pereira, como um filho bastardo de Tubinho. Vemos então uma 248 Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014. 374 engraçada e comovente cena em que o palhaço Tubinho faz escada para Tubinhozinho, ou seja, em que Zeca faz escada para seu filho. Por fim, é chegada a hora de Tubinho e sua noiva abrirem os presentes do matrimônio, que o próprio público levou para o casal. Esta brincadeira é antiga nos circosteatro e mostra o tamanho da intimidade criada entre artistas e público ao longo da praça. Em Sorocaba, Tubinho e a noiva ganharam os mais variados presentes: tinham objetos que faziam referência às brincadeiras de Tubinho durante a temporada, como buchas de banho – por causa do bordão “É bucha!” – e uma coxinha da “Real” – padaria sempre citada pelo palhaço. Além disso, Tubinho ganhou presentes infantis como uma arma de atirar água e também presentes “sérios”, como uma camisa oficial do Corinthians, time do coração de Zeca, e placas de menção honrosa de famílias da cidade. E, mais uma vez, Tubinho me impressionou, pois para cada presente aberto ele tinha uma piada na ponta da língua. Ao abrir, por exemplo, um embrulho que continha um par de chifres, soltou de imediato “Presente é assim gente, cada um manda o que tem!”, para delírio da plateia. O último espetáculo da temporada, o Obrigado, é um espetáculo de agradecimento da família Tubinho à cidade que os acolheu. Nesse dia, todo o elenco sobe ao palco para a despedida, inclusive as crianças e adultos que não trabalham em cena. Vemos então números musicais, de dança, esquetes, novamente Tubinhozinho e também Cidinha Garcia, a representante mais antiga da família de Zeca, que não atua mais nos espetáculos, declamar um lindo poema. Há alguns anos, a procura pelo ingresso deste último espetáculo tem sido tão grande que as pessoas passaram a acampar em frente ao circo para esperar a abertura da bilheteria. Acerca disso, Lucélia Reis escreveu em seu diário de bordo no dia 23 de julho de 2011, quando o circo se despedia da cidade de Piedade: Começo a escrever hoje com a certeza de não conseguir expressar com palavras o que está acontecendo aqui. É madrugada. E madrugada fria, gelada... Acabei de passar pela frente do circo e barracas estão armadas em frente à bilheteria. Em pleno século 21 um circo mobiliza uma cidade inteira a ponto de pessoas disputarem ingressos como se fosse uma turnê dos Beatles. Será que alguém consegue imaginar o que é isso? Creio que não. Por isso disse que não conseguiria transcrever o está acontecendo aqui. Temos um circo-teatro com cerca de 600 lugares e em pleno século 21 trabalhamos com esses lugares todos preenchidos a cerca de três meses e meio. Essa será nossa última semana nessa 375 cidade e o nosso fiel e inspirador público nem imagina que está nos fazendo companhia no início da desmontagem de tudo. Enquanto eles estão acampando na frente do circo passamos as últimas madrugadas desmontando um teatro inteiro. Uma carreta lotada de roupas, uma carreta lotada de papéis, uma carreta lotada de adereços, uma carreta lotada de cenários. E ainda alguns trailers, alguns ônibus... Realmente é difícil dizer adeus. Indiscutivelmente há algo de mágico nesse elenco, nesse circo. Mas também há muito trabalho, dedicação e empenho. E a junção de tudo isso faz com que homens, mulheres, senhores, senhoras, jovens, crianças, adultos, ricos, classe média, pobres, empresários e iletrados frequentem o mesmo ambiente, independente de suas diferenças, como seres iguais, como seres humanos. Tiche Vianna disse em entrevista: O espetáculo no Circo de Teatro Tubinho é catalisador de todas as coisas que se armam ali. Aquela plateia, ela não vai ali pra ver um cara famoso, ela não vai ali pra ver um cara melhor do que ela. Ela não vai ali pra ver uma coisa que ninguém faz, embora isso também esteja implícito. Porque o cara que tá lá, ele não faz aquilo que os caras fazem em cima do palco. Mas ele também brinca com a família dele, na casa dele, no meio dos amigos, no trabalho, ele sabe que... Ele vai ali porque, de alguma forma, aquilo dá um tamanho sentido de existência pra ele, entendeu? Isso foi o que eu observei. Pelo modo como as pessoas chegam, pelo modo como elas se colocam, pelo modo como elas saem. Aquele espaço é delas, é pra elas. E do cara que pode ser o prefeito da cidade, que chegou lá com o seu carro e sua comitiva, ao cara que vem a pé porque o circo chegou na cidade. É o único lugar que eu conheço que coloca gente do Teatro Alfa, com gente do Folias d'Arte, lá em São Paulo, usando dois parâmetros, entendeu? 376 Figura 146: Carta de aproximadamente 10 metros de comprimento, enviada ao elenco do Circo de Teatro Tubinho. São Francisco do Sul, 2001. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello. Figura 147: Primeira página do abaixo assinado enviado pela população de São Francisco do Sul ao prefeito, pela permanência do Circo de Teatro Tubinho na cidade. São Franscico do Sul, 2001. Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello Por onde passa, o Circo de Teatro Tubinho altera a rotina da cidade e se insere na vida das pessoas, sendo que muitas delas passam a seguir o circo pelas outras cidades. Alguns desses fãs gentilmente me escreveram os depoimentos que registro, com muito carinho, abaixo: Raquel Passos, 36 anos. Votorantim/SP: Vou citar um trecho de uma música que toca sempre antes dos espetáculos, e explicar: Tubinho é alegria, diversão, gargalhada e emoção... ALEGRIA porque se diverte com as palhaçadas, com as piadas. Assisti muitas peças repetidas, ouço muito as mesmas piadas e sempre estou rindo como se fosse a primeira vez, isso me faz bem para a alma, é uma terapia. Eu estava em depressão e conhecer a família do Circo de Teatro Tubinho salvou e mudou a minha vida... Literalmente falando. Graças a Deus eu não preciso ir a psicólogo, vou ao Circo, rio com o palhaço como se fosse a primeira vez, recarrego as minhas energias e saio muito alegre para seguir a vida fora do reino mágico da Alegria. DIVERSÃO para toda família, é tão bom frequentar um ambiente familiar, onde as pessoas te recebem 377 bem, de braços abertos. Nessa estrada de dez cidades, fiz grandes amizades, únicas. Conheci pessoas incríveis que jamais imaginei ter contato, aprendi a amar arte circense, agreguei valores a minha vida e conheci um amor para recordar a vida toda... Dar GARGALHADAS é tão bom, nos deixa leve, revigora as energias e nos dá força para lutar, levantar a cabeça e seguir em pé, firme na vida real. São tantas EMOÇÕES, risos, gargalhadas e alegrias vividas em baixo daquela lona que poderia ficar por horas aqui escrevendo para você... É tão bom sair de casa ir para mais um espetáculo e voltar com a “SENSAÇÃO de ALEGRIA, EMOÇÃO e ENERGIA POSITIVA”!!! As pessoas não cansam de me perguntar se não enjoo. E a essas pessoas respondo: o Circo de Teatro do Tubinho é mágico. Cada vez que ali estou me divirto e me sinto com a alma pura de uma criança! Eu não me canso de agradecer a Deus por esses fantásticos artistas existirem e eu ter tido o prazer de conhecê-los. Eles são tão mágicos e iluminados em seus espetáculos que nos fazem rir, chorar, emocionar, confraternizar, brincar, brigar, perseverar, esperar, viver e principalmente amar, amar a vida, amar o circo, amar os artistas, amar os amigos que ali se fazem!!! Por isso sempre repito que: “Cansei de tomar pequenas doses de alegrias, o que eu quero é embriagar-me de felicidade com o Tubinho Circo de Teatro...” Amoooo muito o Circo de Teatro Tubinho!!! Nilton Pereira, 34 anos. Tatuí/SP: Bom, sobre o Tubinho... Como o próprio slogan deles fala: O Mundo Magico da Alegria. É maravilhoso estar lá, é um lugar muito abençoado por Deus, se a gente vai triste volta feliz, todas as pessoas de lá são maravilhosas e recebem a todos com muito carinho, cativam a gente pela simpatia, alegria, é fantástico estar assistindo as peças. Eu se pudesse iria em todas, me sinto uma criança de tão feliz que fico estando lá... Mas essa alegria, também se transforma em tristeza quando eles vão embora... Fica difícil demais sem eles para alegrar a nossa cidade, tão carente de coisas boas.... O Tubinho e sua família foi a melhor coisa que aconteceu aqui na minha cidade, desde que eu nasci (risos). Bruno Daniel Fogaça Freitas, 15 anos – Integrante do fã clube Tubinhomaníakos, de Tatuí/SP: Hoje posso dizer que a minha vida se resume em duas... Pré Tubinho e Pós Tubinho... Quem me Conhece Sabe, o quão fanático eu fiquei por esse Mundo Mágico, fora do comum, fora da realidade, chamado Teatro Tubinho... Depois de 05/07/2013 a minha vida e a de muitos, nunca mais foi a mesma... Tubinho chegou para melhorar a vida de todos... Chegou para mostrar como é fácil dar risada... Como é fácil ser feliz... Como um dia terrível em 1h45 é transformado no dia mais feliz da vida!!! Pessoas nascem com dons... Umas tem o dom de ajudar, outras tem o dom de ensinar, algumas tem o dom de curar! Tubinho é o cara quem tem todos esses dons... Ele ajuda a te fazer sorrir, ele ensina você ser feliz, ele cura toda a sua tristeza, todos seus problemas! Não tem como não gostar dele!!! Quando ele entra em cena, todos vão ao delírio, aplaudem, gritam! Ele retribui: DEUS TE AJUDE! Todos caem na gargalhada... E não importa quantas vezes você ouve isso, você vai rir... O Cara é Fodex! E não sou só eu quem digo isso... Hoje faz um ano que o vício começou. Já fui 56 Vezes, passei por quatro Cidades e não paro por aqui! Estes depoimentos me mostraram, definitivamente, que o Circo de Teatro Tubinho é muito mais do que um espetáculo, de modo que meu interesse por essa 378 companhia foi despertado por algo que vai muito além da técnica teatral. As amizades que fiz neste circo, com certeza, levarei por toda a vida, de maneira que não vejo a hora de lhes fazer uma nova visita e poder rir, mais uma vez, como uma criança. Encerro aqui esta parte da pesquisa certa de que, enquanto houver um circo como o do palhaço Tubinho, percorrendo as cidades de nosso país, o Circo, o Teatro e a Arte continuarão a transformar a vida das pessoas, unindo-as em sua dimensão mais profunda, mais humana. Figura 148: Tubinho em meio ao público do Circo de Teatro Tubinho, 2014. Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho. 379 380 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante esses anos em que estive vinculada ao Programa de Mestrado em Artes da Cena vivi um tempo de intimidade diária com a pesquisa. Cada vez mais, tudo que eu lia nas referências bibliográficas, ouvia nas entrevistas e conversas informais e via no circo de Tubinho começou a permear a minha prática artística, me lançando novas dúvidas, questionamentos, reflexões, algumas certezas e, acima de tudo, me inspirando e me suscitando uma enorme vontade de fazer teatro... E, mais especificamente, de fazer algo análogo a esse tipo de teatro encontrado nos dois circos que investiguei. A incessante procura pela consolidação de minha arte de ator encontrou no diálogo entre a teoria dessa pesquisa e a prática do meu fazer artístico um terreno fértil, no qual pude plantar algumas sementes, sendo que algumas já germinaram e outras ainda estão sendo cultivadas. Alguns problemas e contratempos surgiram no caminho e termino aqui com a sensação de que, talvez, eu pudesse ter estabelecido um recorte ainda mais específico para este estudo. Houve momentos em que me senti soterrada por tantas informações e novos conhecimentos, mas por outro lado foi incrível tudo o que vivi nesses anos e acho difícil dizer do que eu teria abdicado... Termino, então, com a sensação de que a dissertação ficou um tanto extensa, pois tratei de um assunto ainda pouco investigado nas pesquisas acadêmicas, o que me despertou a vontade – e também a necessidade – de compartilhar todos os conhecimentos assimilados e reflexões suscitadas ao longo da pesquisa. Afora isso, acredito que, primeiramente, procurei da melhor forma possível lidar com a complexidade que é a pesquisa em Artes na Academia. Durante as disciplinas necessárias à integralização do curso, eu e meus colegas de Pós-Graduação discutimos diversas vezes em sala de aula questões, como por exemplo, “É possível fazer Arte na Academia?”, “Qual o lugar da Pesquisa em Artes na Academia?”, “O modelo prédeterminado e recorrente é cabível na Pesquisa em Artes?”. Acredito que Arte e Ciência, apesar de serem de naturezas distintas, têm um ponto fundamental em comum: devem necessariamente comunicar conhecimentos 381 (artísticos/ científicos) a outras pessoas. Em relação à pesquisa científica, creio que o artista/pesquisador deve, necessariamente, assim como ao construir a obra de arte, “construir um objeto que, como princípio, possa também servir aos outros” (ECO, 1989: 05), porém sem se esquecer de que a linguagem utilizada é uma metalinguagem. Eco nos atenta para o fato de que Um psiquiatra que descreve doentes mentais não se exprime como os doentes mentais. Não quero dizer que seja errado se exprimir como eles: pode-se, e razoavelmente, estar convencido de que os doentes mentais são os únicos a exprimir-se como deve ser. Mas então terá duas alternativas: ou não fazer uma tese e manifestar o desejo de ruptura recusando títulos universitários e começando, por exemplo, a tocar guitarra; ou fazer uma tese, mas explicando por que motivo a linguagem dos doentes mentais não é uma linguagem „de loucos‟, e para tal precisará empregar uma metalinguagem crítica compreensível a todos. O pseudopoeta que faz sua tese em versos é um palerma (e com certeza mau poeta). De Dante a Eliot e de Eliot a Sanguineti, os poetas de vanguarda, quando queriam falar de sua poesia, faziam-no em prosa e com clareza (ECO, 1989: 116 e 117). Ao realizar uma pesquisa artística com abordagem qualitativa na Academia, o pesquisador tem que estar ciente de que irá se confrontar, em muitos momentos, com questões de ordem subjetiva, algumas aparentemente inexplicáveis ou impossíveis de serem descritas através de um raciocínio lógico – e isso pode acontecer não só no campo das Artes. Porém, esta imprecisão não pode trazer uma situação de comodismo ao pesquisador em Artes, que muitas vezes refuta a ideia de um método para sua pesquisa, partindo do pressuposto de que o seu produto não se encaixa em modelos pré-determinados. A abertura que a pesquisa qualitativa permite não pode nos levar a supor que, com ela, deixem de existir as exigências e critérios que devem regular uma pesquisa. (...) O recurso ao qualitativo não pode servir para o pesquisador se abrigar confortavelmente na rejeição aos métodos com a desculpa de que estes são rígidos e castradores da inspiração criativa. Na pesquisa, sem método, inspiração é mito, como é na própria arte, pois esta também se submete a métodos que lhe são muito próprios (SANTAELLA, 2010: 91). Observei também que, comumente, o artista/pesquisador comete o equívoco de aplicar o método desenvolvido para criação artística diretamente na confecção da produção científica. O método empregado na criação da obra de arte não deve ser o mesmo a ser 382 utilizado na produção da pesquisa sobre a referida obra, simplesmente porque Arte e Ciência são de naturezas distintas e, portanto, necessitam de metodologias distintas. Enfim, quero esclarecer que, com esta pequena problematização, não busco enaltecer o conhecimento científico em detrimento do artístico. É fato que as Artes, em suas diversas manifestações, propõem novas formas de apreensão e organização do real, gerando assim conhecimentos tão relevantes quanto o conhecimento estritamente científico. É fato também que a sensibilidade presente na alma do artista estará presente, inevitavelmente, na forma, no sentido aristotélico, de sua pesquisa acadêmica. (Tanto que essa própria dissertação tomou mais ares melodramáticos do que eu gostaria. Mas, ao mesmo tempo, isso vai completamente ao encontro do que sou, enquanto pessoa e artista). Porém, o artista/pesquisador nunca deve perder de vista que, tanto a obra de arte, quanto a pesquisa científica visam, em última instância, a comunicação com o outro. Desse modo, talvez minha crítica deva ser entendida não como uma posição contrária à produção artística como forma de conhecimento na Academia, mas sim contrária a um tipo de produção não alicerçada na premissa básica de que o artista/pesquisador deve se fazer entender, por mais que a sua poética esteja fundamentada no conhecimento e exploração de sua própria sensibilidade. Devemos nos atentar para que o hermetismo inerente às gramáticas pessoais de construção na cena teatral contemporânea não se instaure também no meio acadêmico, responsável pela geração de conhecimento, que deve ser compreensível e passível de ser difundido. E com isso, não quero dizer um conhecimento assertivo... Que sejam apenas dúvidas e questionamentos, mas que estes sejam possíveis de serem compreendidos. Diante de tanta complexidade, por diversas vezes, ao longo da pesquisa, me perguntei: Mas por que diabos eu estou fazendo isso aqui então? Por que estou querendo falar na Academia de uma arte que é realizada tão além de seus portões? Ou ainda: é possível eu traduzir para a linguagem acadêmica esse teatro que acontecia e acontece debaixo de uma lona de circo? Hoje, acredito que falar sobre circo-teatro na Academia é reconhecer que nesses circos reside uma escola – de teatro e de vida –, com metodologia própria e pautada sobre uma infinidade de saberes. E essa constatação é necessária de ser feita pelos acadêmicos, 383 que acham “feio o que não é espelho”, mas também pelos próprios artistas circenses, que, muitas vezes, não acreditam que a forma como se organizam, o jeito que montam os espetáculos, a constante preocupação em continuar caminhando e não estagnar, são, sim, conhecimentos de uma escola teatral que não deve nada ao chamado teatro oficial. É claro que não é à toa que os circenses têm esse receio. Estranho seria se fosse diferente, já que o circo-teatro foi excluído, por décadas, da história oficial do teatro brasileiro. Acredito, então, que falar sobre circo-teatro na Academia é contar a história dessas pessoas que, dia após dia, levam a arte teatral a localidades brasileiras nas quais o teatro oficial ainda não sonhou em chegar. E com isso não quero dizer que estou fazendo algo memorável, ou até mesmo um favor para esses artistas. Pelo contrário: foram eles que fizeram algo indescritível por mim. Eu não teria palavras para agradecer Fernando Neves, Santoro Junior (Toco), Zeca e todo o restante de sua companhia por tantas coisas que me ensinaram, me fizeram questionar e refletir. E, acima de tudo isso, as amizades que fiz no circo de Tubinho, com as queridas Ana, Morgana, Lucélia e Débora, levarei por toda a vida. Em nossas conversas, Fernando Neves sempre me falava que sua família resolveu parar com o circo quando constatou que os tempos eram outros e que não seria possível a manutenção do padrão artístico com o qual havia se consagrado, que contava com espetáculos dramáticos luxuosíssimos e com várias horas de duração. Já outras companhias resolveram continuar na estrada, apesar das adversidades, transformando parte da tradição e se reinventando. Porém, muita coisa precisou se alterar, de forma que alguns dos próprios circenses mais antigos não hesitam em dizer que o circo-teatro entrou em decadência, acabou e que as poucas companhias que continuam a itinerar não fazem mais circo-teatro, fazem outra coisa. (E aqui esclareço que estou falando das regiões Sudeste e Sul). Questão difícil essa acerca do fim do circo-teatro... Porque, ao longo dessa dissertação, afirmei tantas e tantas vezes que o espetáculo circense é múltiplo e agregador de variadas linguagens, de forma que torna-se difícil até mesmo falar em o circo-teatro como um gênero/estética/linguagem únicos. Porém, por outro lado, será que não estamos 384 tentando encaixar sobre os mesmos formatos e rótulos fenômenos que deveriam ser vistos como diferentes, reconhecendo-se as suas particularidades e especificidades? Não sei dizer se o que o Circo de Teatro Tubinho faz hoje é tão diferente do que o Pavilhão Arethuzza fazia, a ponto de terem de ser chamados por nomes diferentes. Só sei que, com a pesquisa, pude reconhecer algumas características específicas a cada um e algumas características extremamente próximas. No que diz respeito aos pontos que aproximam as duas companhias, compreendi, primeiramente, que é exatamente sobre essa tensão entre manutenção e renovação que reside uma tradição. E o fato do circo-teatro estar alicerçado numa tradição, que pressupõe a relação mestre e aprendiz é, sem dúvida, um dos pontos que mais me chamou a atenção, pois permeia todo o meu fazer artístico e, a meu ver, deve constituir, pelo menos em momentos iniciais, a formação de todo artista/ator. (E claro que esta mesma relação pode ser encontrada em outras manifestações artísticas e – falando sobre o meu foco de estudo – teatrais mundo a fora). Durante a graduação em Artes Cênicas tive a oportunidade de ter aulas com o professor Roberto Mallet que, desde então, tenho para mim como uma grande referência. Assim como Charles Chaplin, Piolin, Shakespeare, Carequinha, Chespirito, Picolino, Nelson Rodrigues, Grock, Oscarito, Al Pacino, Tubinho e tantos outros. Essa pluralidade de referências não me soa como algo “esquizofrênico” e não há a mínima vontade, de minha parte, de compará-las ou colocá-las sob o mesmo patamar. O que me chama a atenção, de fato, nos trabalhos dos artistas acima mencionados – e em tantos outros – vai além das questões de ordem estética; essas sim podem ser consideradas discrepantes e até antagônicas, o que não me impede, porém, de apreciar e ressaltar a relevância de cada uma. O que me une, portanto, a todos estes “mestres” é o fato de que cada um, a seu modo, citando o também mestre Rubens Brito (2004: 214), “está tentando desvendar o sentido da experiência humana neste imenso universo”. A ideia de “tradição” me situa no espaço e no tempo, me coloca na posição de sujeito histórico e me permite uma noção de pertencimento, de que existiu algo antes de mim e que, querendo ou não, sou fruto disto que passou. 385 Porém, uma tradição não deve ser vista como uma cópia, uma mera reprodução de algo. Ou melhor: num primeiro momento, a tradição implica a cópia, mas não da figura, e sim da forma, no sentido aristotélico, daquele fazer artístico. E, num segundo momento, o artista imprime a esta forma algo que é seu e que lhe auxiliará a tornar vivo e verdadeiro aquilo que lhe veio como um estímulo externo. Além disso, lidar com os elementos de uma tradição é estar sempre em dinâmica, pois há a constante necessidade de incorporação de elementos que a manterão contemporânea e em diálogo com as pessoas de seu tempo. Dessa forma, numa tradição algo se mantém – e que é responsável por caracterizá-la como tal – mas, ao mesmo tempo, algo se altera, se metamorfoseia. Ou seja, a inovação deve ser vista como um elemento próprio da tradição: Há uma dialética da tradição, isto é, uma tradição só se firma e se mantém como tal na medida em que é capaz de renovar-se, quando ocorrem mudanças históricas que ameaçam sua sobrevivência ou exigem sua transformação. Se não se transforma, a “tradição” está fadada ao desaparecimento249 (BRASIL, 2009: 7). Outro ponto que me chama atenção no circo-teatro é o fato de todos esses artistas dedicarem-se por completo ao ofício circense, sendo que muitos não optaram por estar lá, mas apenas seguiram o caminho trilhado por seus pais. Os circenses têm a clara consciência de que tudo é feito para agradar a plateia, que deve necessariamente rir muito numa comédia e se emocionar muito num drama. E para que isso ocorra é necessário muito trabalho e dedicação a atividades que vão além das relacionadas apenas ao espetáculo. Simples assim. Diretamente assim. Sem muitas divagações ou áurea romântica – tão comumente relacionada ao universo circense, porém claramente criada por um olhar exterior e não de quem realmente vive diariamente nesse ambiente. Porém não estou afirmando que só um artista de circo pode se dedicar 100% ao seu ofício. Eu acredito que até eu mesma, de certa forma, faça isso. Porém a diferença é que eu trilho, ao mesmo tempo, caminhos paralelos e que se entrecruzam em determinados pontos. Dessa forma, desenvolvo meu ofício sobre diferentes frentes, como com a Dupla 249 Texto base 2a Conferência Nacional de Cultura - EIXO II – CULTURA, CIDADE E CIDADANIA, disponível em http://blogs.cultura.gov.br/. Acessado em novembro de 2014. 386 Cia, a Damião Cia de Teatro, esse Mestrado em Artes da Cena, ministrando algumas oficinas e fazendo outras tantas, etc. Já o artista circense trilha um único caminho, de modo que toda sua vida, profissional e pessoal, está ligada diretamente ao circo. Tanto que Zeca disse, em uma das entrevistas citadas nessa pesquisa, que eles costumam falar “Eu vou pra cidade” quando saem do circo. O convívio diário e intenso faz com que esses artistas se conheçam profundamente, estabelecendo uma sintonia, intimidade e cumplicidade que estão presentes, quase que inevitavelmente, nos espetáculos. Rosalina Viana, avó de Fernando Neves contou em entrevista ao pesquisador Pedro Della Paschoa Junior, em 1972: Mas isso é costume de todo artista... (...) Bom, cada um entrava na sua casa, fazia café, tomava café com pão, daqui a pouco, outro ia na casa do outro, o outro ia lá... Ficava ali... Reunidos... Ficávamos batendo papo. Conversando sobre coisas assim de peças, ou de qualquer coisa que a gente tinha visto. Ou de um colega distante. Qualquer coisa. Nós ficávamos, às vezes, conversando ate três, quatro horas da manhã!250 Nas minhas visitas ao Circo de Teatro Tubinho eu brincava com as pessoas que, ao chegar, eu precisava ajustar meu fuso horário, porque, assim como descrito por Rosalina Viana, ali no Tubinho as conversas, festas e comemorações sempre adentram a madrugada. A sensação nítida é que ali o tempo passa diferente, incrivelmente de maneira mais intensa e, ao mesmo tempo, quase imperceptível. Por outro lado, esse mesmo convívio diário pode trazer certo comodismo para a companhia e um olhar cristalizado para as pessoas e seus trabalhos. E digo isso por já ter passado por uma experiência análoga durante a graduação em Artes Cênicas. Por quatro anos, eu e meus colegas de turma trabalhávamos praticamente o dia todo juntos, de forma que, depois de um tempo, já havíamos estabelecido rótulos para cada um de nós, mesmo sem querer. Dessa forma, numa discussão de turma eu já “sabia” como cada um reagiria e numa cena eu também já “sabia” o que meu colega ia fazer... Ou seja, num convívio menos intenso do que o do circo, em pouco tempo, eu e meus colegas não nos surpreendíamos mais na vida e na cena. 250 Rosalina Viana em entrevista ao pesquisador Pedro Della Paschoa Junior em 1972. 387 Acredito, então, que numa companhia de circo-teatro itinerante como a de Tubinho, por exemplo, que está na estrada há quase quinze anos, num convívio ainda mais intenso, essa cristalização também pode ocorrer. Tanto que esse foi um dos motivos que levaram Zeca a formular o projeto da Petrobrás, como uma alternativa de revitalizar não só os espetáculos, mas as relações ali existentes. Neste projeto, quem mais se dedicou à questão específica do trabalho em grupo foi Tiche Vianna que, em entrevista, comentou as reflexões que suscitava no elenco do Circo de Teatro Tubinho, tais como: Refazer, remodelar, te surpreender, achar mais divertido aquilo que você tá fazendo. Não deixar cair na mesmice, não deixar cair no “já sei, já vi”. Onde é que tá o desafio pro meu companheiro de cena? Onde é que eu posso fazer um desafio, que não é uma disputa, não é uma derrota, né, não é um ganhar ou perder, pelo contrário é nós dois que temos que chegar ali. O que é que posso jogar pro meu companheiro que faz ele vir pra outro lugar? Essa convivência diária e a vida de dedicação exclusiva ao circo exigem dos artistas total disponibilidade para viver na estrada, ficar longe da família, dos amigos, etc. e realizar os mais diversos tipos de serviço necessários à sobrevivência e crescimento da companhia, que vão muito além do momento de estar no palco. Ana Dolores, do Circo de Teatro Tubinho, disse que, para ela, essa total disponibilidade fica completamente evidente no momento após o último espetáculo da temporada, o Obrigado, quando os artistas, que acabaram de se apresentar no palco, elegantes e com trajes de gala, vão às suas casas, se trocam, colocam suas botinas e começam a desmontar o circo. A total disponibilidade do artista circense também comporta a premissa de que o show nunca pode parar – talvez só em caso de uma terrível tempestade; afora isso, nada mais faz com que o espetáculo não aconteça. Quando, por exemplo, o trailer de Juninho Assis e sua família, do circo de Tubinho, pegou fogo em meio ao espetáculo, todos os circenses ajudaram a apagar o incêndio, inclusive os que estavam atuando na peça, porém sem interromper a sessão. A cada saída de cena, os atores, inclusive Juninho, corriam com baldes e mangueira para apagar o fogo e voltavam para as suas próximas cenas. A família perdeu tudo naquele dia, mas o público não perdeu seu espetáculo. 388 Rosalina Viana, do Pavilhão Arethuzza, contou na entrevista a Pedro Della Paschoa Junior: (...) Meu pai morreu, foi enterrado e de noite o meu irmão pintou a cara e foi fazer graça. Sabe? Então pra mim... (...) artista é isso! O artista é isso. Não quer saber se você está com dor, se você não está com dor. Se você está triste, com os teus problemas, você larga na tua casa. Vai trabalhar sem problemas, quando você voltar, pega eles outra vez e fique com eles. É teu. Não reparte com ninguém. Situação análoga ocorreu também com o Circo de Teatro Tubinho. Em uma de nossas conversas, Zeca contou a triste coincidência envolvendo a morte de sua mãe. Ele e as irmãs estavam prestes a entrar em cena quando foram avisados de seu falecimento. Sem saber o que fazer, o espetáculo – que começa todos os dias pontualmente às 21h – foi atrasado em dez minutos. Então o público, que lotava o circo, começou a gritar por Tubinho, que entendeu que não poderia decepcioná-los. Naquela noite eles entraram em cena e representaram, por ironia do destino, a comédia Tubinho no velório. Cito ainda, um momento muito tocante da entrevista com Angelita Vaz que, visivelmente emocionada, me contou: Uma coisa que eu acho muito, muito difícil... Você tem que abrir mão da sua vida, assim... Meus amigos eu não vejo mais, é muito difícil... Meus pais só quando eles vêm me visitar, meu irmão também, entende? Isso é um lado que eu acho muito triste do circo. Porque a gente trabalha todo dia, todo dia, todo dia... Você não tem uma folga. Geralmente na folga você tem um espetáculo fora, aí você esquece desse outro lado que é tão importante, que é o da família, então você acaba abrindo mão. Esse é o lado triste que eu acho, porque às vezes eu fico pensando “Poxa vida, queria passar uma semana com meu pai e com a minha mãe. É pai e mãe...”. Quantos anos eu não passo uma semana com eles, sabe? Que nem a Lucélia... Esses tempos a mãe dela tava doente, ela foi lá, não pode ficar, teve que trazer a mãe junto pra cá. Então esse é um lado que eu acho muito cruel do circo. Não só do nosso né, de todo circo. (...) É engraçado que a gente encontra muitas pessoas querendo trabalhar no circo, no nosso circo... “Que legal, queria trabalhar no Tubinho, que bacana e tal... Mas eu não quero largar das minhas coisas, da minha casa e tal...”. Então esse é o lado que eu acho mais difícil. É você abrir mão de um outro lado da sua vida que você sabe que vai passar. E você não consegue dividir esse tempo. Ficar um pouco lá um pouco cá. Não dá, porque todo dia é diferente... A gente respira o circo 24 horas por dia. Você tá sempre pensando nisso, você acorda, você vai dormir e é isso... É propaganda que tá saindo, é placa que foi pintada, guarda roupa que tá ali pra montagem, então você vive... Muita gente pensa assim “Ah trabalhar no circo é legal porque você só trabalha de noite”. E não é. Você trabalha o dia todo. Porque se você for ver em cada trailer que você for, cada um tem sua família, cada um 389 tem seu filho, a sua necessidade. Eles fazem dívidas como qualquer ser humano, vão, compram alguma coisa... O que eu digo é assim: de você ver as famílias se formando aqui dentro, muitas nascem aqui e você ver que o futuro delas tá diretamente ligado ao seu trabalho, ao seu pensar, ao teu “não levar o circo pra uma praça errada”, entende? Porque é muita gente, e você não pode errar uma praça... Então você não pode errar, você tem que todo dia pôr gente, tem que agradar. Quem vem num dia tem que sair satisfeito e voltar. Porque a gente vive da bilheteria. E essas famílias que dependem da gente, dependem da bilheteria. Então é toda uma dinâmica que acaba vindo em cima disso, então é uma responsabilidade... No circo-teatro, o show não pode parar porque um dia sem peça é um dia sem bilheteria. Na peça Tubinho, o caçador de ídolos, Tubinho e seu escada dão as seguintes falas, que resumem bem o que quero dizer: “- As mulheres pintam a cara pela moda. - E eu pela moeda. - As mulheres pintam a cara por vaidade. - E eu por necessidade”. Dessa forma, esses artistas sobem ao palco todas as noites. E quem apresenta toda noite, aprende toda noite, experimenta toda noite, se põe em risco toda noite, amplia repertório toda noite, se aperfeiçoa toda noite. Quando pediram a Nelson Rodrigues um conselho aos jovens, ele disse: envelheçam. Acredito que de alguma forma “envelhece-se” artisticamente no circo-teatro mais rapidamente, pois o fazer diário pode levar a uma maturidade artística “precoce”. É só pensarmos que Nicolas Alexandre, por exemplo, do circo de Tubinho, tem dezesseis anos de vida e quinze de carreira. Lucélia Reis disse, em entrevista: É engraçado porque o tempo aqui passa muito diferente, eu sinto passar diferente, a gente... Parece que passa muito rápido, você não sente o tempo passar no circo, porque você vive isso aqui e você vive o teatro o tempo inteiro. Não talvez por isso que a gente não sente o tempo passar, porque a gente faz o que a gente gosta o tempo todo. Então passa assim, voando né... Isso me assusta um pouco. E daí foi assim que eu cheguei até aqui... (...) O Zeca falou "Por favor, fica um mês” e, de repente, eu já tava há dois, há três, há quatro, há cinco... De repente eu tinha comprado um trailer, fui ficando... e tô ficando há quase 11 anos... E assim, desse fazer artístico diário, com o olhar totalmente voltado para o público, constitui-se uma arte de ator pautada sobre modelos relativamente simples e extremamente funcionais. Aprende-se quase sem se dar conta, observando a interpretação dos parentes mais velhos e artistas mais experientes da companhia e agregando ao seu 390 trabalho as mais diversas referências, de forma que atuar lhes é tão natural quanto caminhar. Aprendi com estes artistas também o exercício da generosidade, tão fundamental ao trabalho do ator. Tanto no Arethuzza como no Tubinho me chamou atenção o fato de que todos os artistas representavam e representam, sem problema algum, tanto grandes papéis quanto “pontinhas” e comparsarias. Jacira Viana, mãe de Fernando Neves, disse na entrevista a Pedro Della Paschoa Junior: É como eu sempre falo para o meu filho... “Fernando! Não é os grandes papéis que fazem os grandes atores. É na pontinha que você vai ver quem é o ator! É numa coisa sem importância que você vai ver se o nego é bom, ou se ele não é!” – Porque se ele é bom, numa coisinha desse tamanho, você olha assim. Ele se faz notar na plateia. É isso que eu falo sempre para o Fernando. Dessa forma, lembro-me da história contada por Toco em que Guiomar, do Arethuzza, fazia apenas uma comparsaria como empregada na peça A Filha do Mar e quando outro personagem falava que houve um assassinato na casa ela “roubava a cena” a ponto de pedirem para ela se esconder no fundo do palco. Lembro também de diversas vezes que vi Léo, no circo de Tubinho, totalmente produzida, com colã, joias, aplique de cabelo e maquiagem, para entrar em cena para fazer “apenas” uma comparsaria. Ana Dolores me ensinou: Você tem que entrar com tudo, “eu tô fazendo a protagonista”, por mais que não seja. Porque você tem que se colocar, você tem que ter um feeling de não cobrir cena e a gente tem muito pouco ensaio pra se passar tudo isso pra alguém que esteja chegando. Além disso, num circo de teatro como o de Tubinho, que tem o palhaço como carro-chefe, tem-se a exata consciência de que todos estão em cena a serviço do palhaço e, por fim, de que, com exceção dele, todos são substituíveis. Compreendi também que este tipo de fazer teatral está alicerçado sobre parâmetros diferentes dos quais eu estava habituada, pela minha formação acadêmica. No circo-teatro, pelo uso da construção interpretativa baseada na tipologia, trabalha-se a partir do temperamento de cada ator, valorizando o cada um sabe fazer de melhor, numa espécie 391 de via positiva, em que as suas características mais marcantes são valorizadas e, principalmente, realçadas. Ou seja: parte-se dessas características que lhes são naturais para a reestruturação destas, em uma linguagem com alto teor de teatralidade, que comporta, ao mesmo tempo, a naturalidade original desses estímulos e a artificialidade construída a partir e em torno deles, que caracterizam o ato teatral, fazendo deste “uma fatia de bolo, e não uma fatia da vida”, citando novamente Hitchcock. Com isto não quero dizer que o ator não pode desempenhar um papel que não lhe é inerente pela via da tipologia. É claro que um bom ator pode desempenhar qualquer papel. O que quero dizer é que, através deste sistema de interpretação explorado no circoteatro – e em tantas outras manifestações tidas como populares –, o ator tem a oportunidade de tomar consciência das características que determinam o seu modo de pensar e organizar a cena e que, consequentemente, fazem dele o ator que é. Valendo-se disso, o ator tem a oportunidade de desenvolver sua técnica pessoal de modo mais honesto e consciente, podendo, então, escolher qual rumo deseja seguir a partir daí. O caminho da tipologia em sinergia com o temperamento de cada ator não é o único para se atingir uma boa representação, mas constitui, sim, um dos caminhos possíveis. Digo isso porque durante a minha graduação em Artes Cênicas ouvi, muitas vezes, de meus professores que o ator deve se livrar de seus automatismos e se arriscar, saindo de sua zona de conforto, pois só assim ele abre espaços internos para a criação de algo realmente vivo. Nas aulas práticas quantas e quantas vezes, ao ver a cena de algum colega, pensei: “Mas ele sempre faz isso... Ele não se arrisca, não se joga... É sempre a mesma coisa...”. E tenho certeza absoluta que tantos outros pensavam a mesma coisa quando me viam em cena. Passaram-me, mesmo que não intencionalmente, a ideia de que o ator só se põe em risco se sair de sua zona de conforto, se sair do terreno do que “sabe fazer” para um terreno totalmente estranho e desconhecido. Naquele momento ainda não me passava pela cabeça a ideia de que o ator também pode se livrar de seus automatismos e tudo o que lhe tira a vida em cena através do caminho que prevê a valorização e aprofundamento do que 392 ele já sabe fazer, do que lhe é mais natural. O que estavam fazendo era me ensinar pela tal da via negativa, que busca a eliminação dos automatismos que levam o ator a uma interpretação pouco verdadeira, através de estímulos que partem, num primeiro momento, do trabalho da dimensão interior, num processo de auto revelação para, num segundo momento, articulá-lo a um processo de contato com a dimensão física, onde encontram-se os códigos de representação, que devem, por sua vez, ser articulados para a leitura do espectador. Hoje, depois dessa pesquisa e de todo o trabalho prático que venho desenvolvendo, não posso mais acreditar que esse seja o único caminho para a realização do ato teatral. Ao ver um palhaço como o Tubinho, por exemplo, não posso acreditar que o caminho traçado por ele foi do “interno” para o “externo” e que ele não está se pondo em risco por estar trabalhando na zona que lhe é mais confortável e natural. Além de tudo isso, Zeca me atentou para outro ponto da questão, em entrevista: Uma vez um ator me perguntou, ele falou assim "Ô Tubinho, uma das coisas que eu mais gosto é aquele friozinho na barriga da estreia. Você tem isso ainda, depois de tantos anos fazendo isso?". E eu falei "Eu tenho todo dia! Todo dia muda a peça e quando eu vou fazer a peça, faz três meses que eu já não faço ela”. (...) E eu acho que esse frio é ainda maior pela responsabilidade do agradar, você entende? Quando vejo o Tubinho algo acontece com ele próprio e entre ele e mim. Ou seja, quando vejo o Tubinho acontece teatro. E essa prova é absolutamente irrefutável. Portanto, tão válido quanto o caminho de total distanciamento da sua zona de conforto para a criação de algo realmente vivo é o caminho que propõe essa mesma criação justamente nesta zona que lhe é mais natural. E digo mais: esse segundo caminho é, não só tão valido, como tão complexo quanto o primeiro, pois não é uma tarefa fácil manter vivo algo que, por lhe ser próximo, pode facilmente se tornar automático. Dar vida a algo que parte de uma estrutura formal, e, portanto externa, para a suscitação da vida de nossa dimensão interior é um caminho que exige muita dedicação, disciplina e tempo. E, é claro que, mais uma vez, os orientais sabem disso melhor que a gente. Segundo Yoshi Oida, 393 Muito frequentemente os atores constatam um “efeito” e decidem imitá-lo, mas isso não irá resultar numa boa atuação. Ao contrário, precisamos entender onde se origina aquele “efeito” e o que faz com que aquilo venha a ser o que é. Se copiarmos a expressão externa de alguma coisa sem compreender sua estrutura fundamental, nosso trabalho não terá nenhum sentido (OIDA, 2007: 110). Acredito que um dos motivos que corroboram para que a interpretação tipificada no circo-teatro funcione, quando executada por bons atores, claro, reside justamente no fato de que ao interpretar um tipo que lhe é inerente, o ator compreende profundamente a estrutura fundamental – que Aristóteles chamaria de alma – daquele personagem. O tipo é, portanto, não a cópia de uma figura, mas sim a cópia de sua forma. Aprendi com os circenses também a não ter medo de errar, até porque nessa linguagem o erro é sempre um estopim para a criação de artifícios que reavivam a encenação. Aprendi a não ter receio de utilizar toda e qualquer fonte como referência para minha criação. Clichês são sempre bem-vindos e a partir deles estabelece-se uma relação mais próxima com o público. Apropriar-se do trabalho criado por outra pessoa e imprimir a ele sua marca é visto como algo completamente natural. Ana Dolores escreveu em seu diário de bordo, no dia 08 de janeiro de 2011, sobre sua personagem na peça Tubinho, o soldado trapalhão: “Fazer a Chica é uma delícia. A criação fica por conta da atriz Silvana Pereira. Gostei do estilo e tomei para mim. Usando meu corpo e colocando meu jeito”. Outro ponto que me chamou atenção é a verdade e fé cênica presente no trabalho desses artistas. É impressionante a verdade e a contundência com que Santoro Junior (Toco) me recitou, na entrevista, diversos trechos das peças que encenavam ou com que Zeca atua como Tubinho nas comédias ou num drama, como o personagem Osvaldo de O seu único pecado, por exemplo. Toco, Zeca e diversos outros artistas circenses que tive a oportunidade de conhecer, como por exemplo, o palhaço italiano Leris Colombaioni, falam sempre em “fazer de verdade”, em “ser natural, ser verdadeiro”. Em entrevista, Toco e Zeca disseram: Santoro Junior (Toco): Eu acho que eu nunca representei... E de pequeno já fui chamado de ator dramático. Eu acho que a vivência já acabava fazendo isso. Não sei se eu já contei a historinha... Tava levando A cabana do pai Thomas e a mulata Elisa ia 394 ser vendida com o filho dela. (...) Eu vi a tia Thusa chorando de um lado, a tia Guiomar chorando de outro, todo mundo chorando... E eu fui vendo aquilo e ficando muito emocionado. Eu comecei a chorar e pra parar de chorar? Aí foi ai que começou... Eu fui pra casa chorando e acordei chorando no outro dia. Eu tenho a impressão que essa minha melancolia vem daí. Só pode ser... Eu sofria junto com eles todos. (...) E eles falavam “Isso aqui é teatro, mas teatro é verdade. Teatro é a força do ator. O ator tá aqui, fazendo. Ator é pessoa normal. (...)É gente. É gente”. E isso deu uma grande força para nós. (...) Dentro desse sistema nada era falso e as pessoas do público começavam a se reconhecer, principalmente nas peças de teatro, nos dramas... “Nossa, parece minha avó!”, “Parece meu pai!”, “Esse parece comigo”... De tão verdade que era... Eles contavam a verdade através deles, eles eram, simplesmente, veículos daquelas falas. Isso a gente aprendeu desde pequenininho, já tinha que saber o que dizia cada uma das falas. Tem que saber o porquê das falas que eu vou interpretar. Tinha que falar no mesmo tom... Eles chamavam de diapasão. “Olha, o teu diapasão não tá batendo”, eles faziam assim. “Ó, você tá falando aqui e eu tô lá”, isso é diapasão. Você tem que afinar sua linguagem com a minha, falar alto todos devem, mas afinado. E você tinha que ser natural. Zeca: Eu não sei como é pros outros atores... Normalmente quando eu vou pra cena eu não penso em nada, eu faço de verdade, eu faço como se aquilo estivesse acontecendo. Às vezes... Tem um espetáculo que é o Deixe-me viver, quando termina o espetáculo, nossa! Parece que eu levei uma surra, cara. Levei uma surra, assim, sabe, quando você tá pesado, pesado, pesado. Eu faço... Eu enlouqueço. Extremamente louco o personagem, tenta matar o filho no final do espetáculo e a hora que termina, nossa, eu saio cansadíssimo, porque eu não vou pra fazer teatro, eu nunca subo no palco pra fazer teatro, eu subo pra fazer de verdade. Essa é a forma que eu encontrei pra interpretar, sabe? Inclusive pra fazer de palhaço. Em nenhum momento eu penso assim "Eu vou fazer essa piada agora porque depois...", não. Eu vou e é o Tubinho naquela situação e ele como ele se vira nessa situação, e ele tem que se virar, sozinho. Eu não tenho tempo pra pensar, então eu acho que isso é uma coisa muito legal do nosso trabalho. E eu vejo isso muito nos nossos atores também, se o cara tá de verdade. Num primeiro momento essa questão em torno do “fazer de verdade, não representar” me causou estranhamento, porque, geralmente, relacionamos a questão da verossimilhança diretamente ao teatro de cunho realista e naturalista – que não é o caso do circo. Porém, observando estes artistas em cena, refletindo e pesquisando passei a compreender que, primeiramente, verossimilhança é diferente de veracidade. Isso porque ao contrário da veracidade, que busca a realização fidedigna e exata, a verossimilhança se baseia não sobre o real (o que efetivamente aconteceu), mas sobre o possível (o que poderia ter acontecido), deixando ao artista uma margem de maleabilidade e ao espectador uma liberdade de apreciação (ROUBINE, 2003). 395 Acredito, então, que os circenses são extremamente verossímeis dentro do tipo de interpretação empreendido no circo-teatro e que ao usarem termos como “natural” e “verdadeiro” para expressarem-se acerca deste tipo de interpretação, aproximam-se do seguinte pensamento descrito por Yoshi Oida: Os atores tentam parecer “naturais” no palco. Isso é verdade para todos os tipos de teatro. Mesmo que o ator esteja trabalhando numa produção estilizada, seu objetivo é o de estar naturalmente no palco. Por natural quero dizer humano: algo real é gerado pelo ator e sentido pelo público (OIDA, 2007: 94). Dessa forma, os artistas circenses são extremamente verdadeiros em suas representações, no sentido destacado por Oida, ao mesmo tempo em que se distanciam da linguagem de cunho realista e naturalista, principalmente por trabalharem com uma linguagem estilizada e que inclui o espectador constantemente no jogo cênico, não estabelecendo a famosa quarta parede. E essa interpretação, que se pretende, ao mesmo tempo, “grande”, “exagerada”, porém verdadeira e justa constitui um grande desafio para qualquer ator. Fernando Neves usa a seguinte expressão para definir o tipo de interpretação no circo-teatro, pelo menos de sua família: “O ator de circo acha que está fazendo realismo, mas na verdade é expressionista!”. Podemos entender a metáfora criada por Fernando Neves quando pensamos, por exemplo, a questão da projeção vocal necessária ao ator que trabalha sob a lona ou pavilhão, ambientes altamente dispersivos, seja pela falta de isolamento acústico e consequente interferência de ruídos externos, pela venda de quitutes ou pela própria acústica não privilegiada, que dificulta o entendimento do texto dito pelos atores. Dessa forma, o ator de circo necessita projetar bem sua voz, que exige uma valorização da articulação das palavras, que, por sua vez, exige outro tempo de enunciação da fala – marcadamente teatral. Instala-se, então, um jeito e um tempo de fala que muito se diferem do teatro de cunho realista; porém, apesar do ator levar mais tempo para pronunciar suas falas, elas são ditas sempre num nível de energia elevado e vibrante, em que pequenas ações e detalhes intimistas não encontram espaço para realização. É necessária, portanto, a 396 presença cênica de um corpo/voz ampliado, dilatado, de grandes gestos, sempre precisos, limpos e justos. Podemos entender a metáfora de Neves se pensarmos também a questão da utilização do telão e da relação criada entre os atores e este elemento cenográfico. Em sua tese de Livre Docência, o saudoso professor Rubens Brito narra uma passagem que evidencia o estranhamento gerado, entre os atores do Grupo Mambembe, pelo uso dos telões como cenário do espetáculo A vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança: (...) por um lado está se trabalhando com um elemento que supostamente cria uma ilusão (a do cenário exposto), a qual, por outro lado e, simultaneamente, não passa de uma grande mentira (afinal, o cenário retratado não é real!). Estranha sensação! (BRITO, 2004: 79). Ressalto que o que se configurava, num primeiro momento, como algo estranho para os atores do Mambembe, oriundos de uma formação acadêmica, é visto entre os atores de circo-teatro como algo extremamente simples e natural. A questão da dualidade de imagens (ou realidades) que se casam e se justapõem na cena de circo-teatro, decorrente do fato do ator e o personagem contracenarem com o telão, já foi analisada por Soffredini, em 1980, e também por Fernando Neves em seus atuais estudos. Neves, em entrevista, afirmou que essa era uma questão recorrente em sua investigação. E que, ao revisitar os estudos de Soffredini, recordou momentos de sua infância e reconheceu, no fenômeno apontado pelo dramaturgo/diretor e pesquisador, o que ocorria no circo de sua família. Neves descreve uma cena teatral, resgatada de sua memória de infância, em que sua tia Alzira interpreta uma personagem que tem o filho roubado e que este partia em um navio. Alzira entrava em cena, olhava para o telão, que tinha pintado um navio ao longe e, então, acenava para o filho. Neves destaca que Alzira, apesar de estar olhando para um painel pintado, representava uma cena dramática, desempenhando uma interpretação, para ela própria, de tom “realista” – na verdade, já estilizada, porém verossímil. Contudo, ao mesmo tempo, do ponto de vista da plateia, apesar do tom “realista” da interpretação o quadro total que se via, que englobava um navio pintado num 397 telão e que, portanto, não se movia, era altamente teatral, o que Neves chama de “expressionista”. Entretanto, a grande mágica está no fato de que a plateia, apesar de ver que é um telão, também é levada, pela interpretação da atriz, a ver este navio se afastando: (...) Eu sempre acho que o circo é expressionista e o ator de circo acha que ele é realista. Que ele tá fazendo realismo. Ele olha praquele cenário de pano, essa cena pra mim é icônica disso que eu tô falando: eu vejo minha tia Alzira se despedindo de um filho, acenando pra um filho, aparece um navio no telão, ele tá parado, é telão, é pintura, e ela dá tchau, ela olha pra plateia... Ela tá tratando aquilo como se tivesse movimento, como se aquilo fosse verdade. Não existe um comportamento, uma interpretação de demonstração que ela tá vivendo aquilo, mas tem um distanciamento porque é um telão. Não tem isso. Ela olha o telão e a plateia também olha aquele telão como se tivesse vendo o navio se afastar. (...) Por exemplo, eu posso fazer isso numa peça, mas muda meu gesto, muda meu corpo... meu pensamento acompanha aquele telão, aí se cria uma linguagem que é absolutamente coerente com aquilo. Agora, você olha praquilo, a plateia tá vendo que aquilo é telão, que não se mexe, você fica fazendo... entendeu? Até o Fellini fazia tudo, você vê que o mar dele não é mar, mas você vê que o resto também... Muda tudo altera tudo, na interpretação. Aquele mar que não existe está de acordo. Agora, no circo não. E o ator de circo acha que é realista. Trata tudo aquilo que é extremamente teatral, ele te chama pra ver, fala que é teatro, mas na cabeça dele é tudo naturalista251. Este fenômeno, que causou estranhamento nos atores do Mambembe e que está tão absorvido pelos artistas circenses que, muitas vezes, não chegam a percebê-lo e reconhecê-lo, é descrito por Soffredini como um jogo de perspectivas: Há uma imagem que a gente costuma repetir para tentar explicar o que é um jogo de perspectivas: coloca-se um telão no palco. No telão está pintada uma estrada (em perspectiva), que começa no palco e acaba no horizonte, lá longe, criando um espaço ilusório, dando uma sensação de profundidade. Na frente desse telão põese um ator. Ilumina-se esse ator. A sua sombra será projetada num telão, revelando a cortina de pano pintado que é o telão, revelando o espaço verdadeiro. O resultado é o seguinte: a gente vê a sombra em suas dimensões (a verdade) revelando o espaço verdadeiro, projetada sobre o telão da estrada em três dimensões (a mentira) revelando o espaço ilusório. Essas duas imagens se justapõem, se casam. E a gente acredita nas duas. É isso (SOFFREDINI, 1980 in BRITO, 2004: 79). Por fim, acredito que o fascínio que desenvolvi pelo circo-teatro tem a ver com a técnica desenvolvida por estes artistas, mas tem a ver também com algo que vai para além dela. Desde Diderot, o teatro tido como oficial desenvolve certa tendência que racionaliza e 251 Fernando Neves em entrevista concedida ao mestrando Rodrigo de Oliveira e Silva, em 2013. 398 busca transformar em técnicas todas as instâncias do trabalho do ator, excluindo-se, muitas vezes, a dimensão humana contida neste trabalho, imprescindível para a concretização do ato teatral. Acredito, então, que o circo-teatro, assim como outras manifestações, como a commedia dell’arte, segue na contramão dessa tendência, pois nessas manifestações ocorre a dissolução da técnica, no sentido de que essa lhes serve não como finalidade, mas como meio para a criação de relações humanas. Dario Fo nos disse acerca da comédia italiana as seguintes palavras, cabíveis também ao circo-teatro: Diderot imaginava um ator capaz de programar e controlar a própria exibição, prevendo cada passagem por meio de exercícios, calculando todo o arco da representação, sem dar margem a surpresas. Em resumo: racionalidade e distanciamento da emotividade, sem deixar nada ao acaso ou ao incidental, muito menos ao estado de ânimo e às tripas. Experimentar a emoção e conservar ao mesmo tempo o senso critico não é impossível na prática, ao contrário do que pensa Diderot. Tudo depende do quanto se está treinado para conter certos estímulos, da sabedoria na administração do emocional e do racional, de um equilíbrio capaz de se traduzir em efeito propulsor... e não estático. Em resumo, enquanto Diderot opta pela estrutura coluna-viga, que permanece ali, parada, travada, os cômicos dell’arte adotam o arco, com todos os estímulos e contraestímulos dele derivados. Sabemos muito bem que, ao primeiro tremor de terra, a estrutura coluna-viga desaba e o arco resiste maravilhosamente (FO, 2011: 24 e 25). Ao ler esta passagem no livro de Dario Fo me lembrei, imediatamente, de Nelson Rodrigues e o “ator búfalo da ilha de Marajó”. Nelson, sempre hiperbólico, fez uma leitura radical acerca da formação do ator do teatro oficial de seu tempo, que constantemente me vem à mente. Nelson diz: A verdadeira vocação dramática não é o grande ator ou a grande atriz. É, ao contrário, o canastrão, e quanto mais límpido, líquido, ululante, melhor. O grande ator ou atriz é recente. Até poucos anos atrás, representava-se cinema e teatro aos uivos e às patadas. Era hediondo e sublime. Ao passo que o grande ator nada tem de truculento nem berra. É inteligente demais, consciente demais, técnico demais; e tem uma lucidez crítica, que o exaure. O canastrão, não. Está em cena como um búfalo da ilha de Marajó. É capaz de tudo. Sobe pelas paredes, pendura-se no lustre e, se duvidarem, é capaz de comer o cenário. Por isso mesmo, chega mais depressa ao coração do povo, deslumbra e fanatiza a plateia 252. 252 Rodrigues, Nelson. A Menina sem estrela. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, pág. 63. 399 Sigo meu caminho, então, buscando um meio termo entre ser a atriz extremamente consciente e controlada de Diderot e o búfalo da ilha de Marajó de Nelson. E sinto que os mestres que escolhi no circo podem me ajudar nessa caminhada. A pesquisa no Mestrado em Artes da Cena se encerra aqui, mas a busca pelas questões suscitadas com este trabalho continua, individualmente, no campo teórico, e em conjunto na prática artística. Para este próximo ano, a Dupla Cia juntamente com a Família Burg, através do Fundo de Investimentos da cidade de Campinas (Ficc), realizará a montagem de um espetáculo de circo-teatro (criado a partir da colagem de vários roteiros de suspense e terror) para ser apresentado no prédio do Museu da Imagem e do Som de Campinas (MIS), edifício histórico da cidade, com a direção de Zeca. Além disso, Zeca também dirigirá outros dois espetáculos, através de um projeto contemplado pelo Programa de Ação Cultural (ProAC) do estado de São Paulo com a Dupla Cia, Barracão Teatro, Família Burg, Circo Caramba e Los Circo Los,: a chanchada levada em seu circo como Tubinho no velório e a comédia de linha Tubinho, o tigrão de ______ (nome da cidade onde o circo está). O palhaço das peças será rotativo, de modo que a comédia de linha será protagonizada por Ésio Magalhães (palhaço Zabobrim) e Ivens Burg (palhaço Gonçalves). Já com a chanchada, abriremos uma licença poética na arte da palhaçaria circense. Na tradição circense o palhaço, mesmo quando representado por uma mulher, é uma personagem masculina e comumente os temas das peças giram em torno do universo do homem. Como nesta comédia, em específico, a temática principal não está ligada diretamente a questões de gênero, lançamos o desafio de encenarmos uma peça de circoteatro estrelada por palhaças, no caso, eu, como Begônia e Joana Piza, como Sobolha. Encerro esta dissertação certa de que a manifestação teatral do circo-teatro merece e necessita de mais estudos, sob os mais variados pontos de vista; encerro, também, com a esperança e desejo de que esta pesquisa suscite mais reflexões e questionamentos em outros artistas que se interessam, assim como eu, pelo teatro realizado nos circos. Se este trabalho, de alguma forma, auxiliar um ator na busca de sua criação poética, terá cumprido seu intuito. 400 Por fim, termino este ciclo extremamente grata a todos estes artistas que me inspiraram, me ensinaram e me auxiliaram ao longo da pesquisa. Dedico, então, essa dissertação a todos estes artistas que tem o circo não só como uma profissão, mas também como escolha de vida, dedicada inteiramente ao seu respeitável público. 401 402 5. REFERÊNCIAS a) Livros, teses e artigos: ANDRADE, José Carlos dos Santos. O teatro no circo brasileiro – Estudo de caso: Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza. Tese de Doutorado em Artes Cênicas. Escola de Comunicação e Artes. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010. ARY, Rafael. A função dramaturgia no processo colaborativo. Dissertação de Mestrado em Artes da Cena. Instituto de Artes. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2011. BENJAMIN, Walter. O narrador. 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A mulher do trem (2004), documentário produzido pela companhia Os Fofos Encenam e Massangana Multimídia Produções. Circo de Teatro Tubinho (2006), documentário de Ana Lúcia Ferraz e realização do LISA (Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo) e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Circo de Teatro Tubinho (2013), documentário produzido pelo próprio circo, em parceria com a Esfera Produções, sobre o projeto de reelaboração de repertório do Ministério da Cultura e da Petrobrás. Clowns (1970), filme de Federico Fellini. O Boulevard do Crime (1945), filme de Marcel Carné. O palhaço o que é? (2007), documentário de Ana Lúcia Ferraz e realização do LISA (Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo) e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Senta que o Tubinho vai entrar (2010), gravação ao vivo do stand up de Pereira França Neto na cidade de Cerquilho – SP. c) Sites visitados: http://www.saoroque.sp.gov.br/noticias/noticia.asp?id=869 407 http://www.panoramio.com/photo/26804236 http://www.grupotempo.com.br/sobre-o-metodo-das-acoes-fisicas/ http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/patrimonio_historico/memoria_d o_circo/largo_do_paissandu/index.php?p=7141 https://www.youtube.com/watch?v=57J7XQD4WCI http://www.tubinho.com.br d) Outras fontes: Acervo pessoal de Antônio Santoro Junior. Acervo da fotógrafa Grah Assis. Acervo pessoal de Murillo Ramos Mello. Diário de Bordo da atriz Ana Dolores, do Circo de Teatro Tubinho. Diário de Bordo da atriz Lucélia Reis, do Circo de Teatro Tubinho. Transcrição da entrevista de Rosalina Viana e Jacira Viana concedida ao pesquisador Pedro Della Paschoa Júnior, no ano de 1972. a) Entrevistas: Alexandre Vieira, em 08/09/2014. Ana Dolores, em 08/09/2014. Angelita Vaz, em 17/11/2014. Antônio Santoro Júnior, em 27/08/2014. Cristian Bryan (Tito), em 18/11/2014. Cristina Martins, em 08/09/2014. Débora Ignácio, em 18/11/2014. 408 Dimitri Augusto, em 08/09/2014. Dionísio Martins, em 15/03/2014. Erminia Silva, em 24/03/2014. Ésio Magalhães, em 23/04/2013. Fernando Neves, em 11/11/2013 e 27/08/2014. Lucélia Reis, em 08/09/2014. Luciane Rosã, em 17/11/2014. Morgana Lunardi, em 18/11/2014. Nicolas Alexandre, em 08/09/2014. Pereira França Neto (Zeca), em 05/12/2013 e 18/11/2014. Riccielly Lunardi, em 17/11/2014. Tiche Vianna, em 06/09/2014. Wanderley Martins, em 05/11/2013. 409 410 6. ANEXOS Este DVD contém os acervos completos de Murillo Ramos Mello e Grah Assis acerca do Circo de Teatro Tubinho. Nestes arquivos podemos encontrar o registro fotográfico de diversas peças por Grah Assis e também reportagens de revistas, jornais e televisão, fotos, vídeos e ofícios de prefeituras de menção honrosa coletados por Murillo Ramos Mello. Acreditamos que as compilações feitas por estes dois fãs da companhia de Tubinho ao longo de anos constituem um rico e extenso material, que pode auxiliar o trabalho de outros tantos pesquisadores que se interessam pelas representações teatrais circenses na contemporaneidade. 411 412