CIRCO-TEATRO ATRAVÉS DOS TEMPOS: CENA E ATUAÇÃO NO

Transcrição

CIRCO-TEATRO ATRAVÉS DOS TEMPOS: CENA E ATUAÇÃO NO
FERNANDA JANNUZZELLI DUARTE
CIRCO-TEATRO ATRAVÉS DOS TEMPOS: CENA E ATUAÇÃO NO
PAVILHÃO ARETHUZZA E NO CIRCO DE TEATRO TUBINHO
CAMPINAS
2015
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Artes
FERNANDA JANNUZZELLI DUARTE
CIRCO-TEATRO ATRAVÉS DOS TEMPOS: CENA E ATUAÇÃO NO
PAVILHÃO ARETHUZZA E NO CIRCO DE TEATRO TUBINHO
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes
da Universidade Estadual de Campinas como
parte dos requisitos exigidos para obtenção do
título de Mestra em Artes da Cena, na Área de
Concentração Teatro, Dança e Performance.
Orientador: PROF. DR. MARIO ALBERTO DE SANTANA.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL
DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA
FERNANDA JANNUZZELLI DUARTE E ORIENTADA
PELO PROF. DR. MARIO ALBERTO DE SANTANA.
______________________________
ASSINATURA DO ORIENTADOR
CAMPINAS
2015
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RESUMO
Esta pesquisa visa traçar algumas considerações acerca do fenômeno conhecido como
circo-teatro, sob o viés do trabalho do ator. Propôs-se, como recorte de estudo, a descrição
de alguns elementos da encenação e interpretação de duas companhias circenses: o CircoTeatro Pavilhão Arethuzza, uma das companhias de circo-teatro mais bem sucedidas do
início do século XX e que encerrou suas atividades na década de 1960, e o Circo de Teatro
Tubinho, um dos maiores representantes do circo-teatro na atualidade. Partindo do fato de
que o espetáculo circense é sempre múltiplo e agregador de variadas linguagens artísticas,
buscou-se, com essa pesquisa, compreender a arte de ator dos artistas dessas duas
companhias e o modo como estes organizavam e organizam seus trabalhos. Afirma-se que a
teatralidade, em seus mais variados formatos, sempre esteve presente no espetáculo
circense desde sua origem “moderna” com Philip Astley, no século XVIII, e que, portanto,
o circo-teatro não é a única, mas sim uma das diversas formas que a teatralidade circense
assumiu ao longo dos anos. Afirma-se também que, em termos pedagógicos, o circo-teatro
é uma escola formativa, com metodologia, princípios e caminhos próprios, constituindo um
tipo de teatro tão relevante quanto o teatro tido como oficial. Assim sendo, essa pesquisa
inspirada no fazer dos artistas circenses pode auxiliar o fazer de outros artistas, não
oriundos desta escola e deste fazer teatral. E essa transposição é possível, pois, em última
instância, todos os verdadeiros artistas buscam a mesma finalidade: a troca viva e
verdadeira com seu público.
Palavras-chave: Circo. Circo-teatro. Interpretação. Pavilhão Arethuzza. Circo de Teatro
Tubinho.
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ABSTRACT
The purpose of this study is to set some considerations around the phenomenon known as
drama-circus, under the scope of the acting work. It has been set out, as the point of study,
the description of some acting and performing elements from two Circus Companies: Circo
Teatro Pavilhão Arethuzza, one of the most successful drama-circus companies from the
beginnig of the 20th century, which has shut down its activities in the 60‟s, and Circo de
Teatro Tubinho, one of the greatest representatives of the drama-circus nowadays. Starting
from the fact that a Circus show is always assorted and somatic of several artistic
languages, this research has pursued the understanding of the art of the actor of the artists
from these two companies and the way they organized and still organize their work. It has
been stated that the theatrical performance, in its most diferente ways has always been
presente in a Circus Show since its “modern” origin, done by Philip Astley, in the 18th
century, and, therefore, the drama-circus is not the only one, but one of the several ways
that circus theatrical performance has taken on along the years. It has been also asserted
that, in pedagogical terms, the drama-circus is a ladder school, with its own methodology,
principles and ways, composing a type of theater as relevant as the one known as oficial.
Therefore, this study, inspired on the circus artist performance could also support the other
artists performance, whose are not native of this theatrical performance. This transposition
is achievable, because, as a last resort, all the real artists search the same goal: a vivid and
truthful exchange with their audience.
Key words: Circus. Drama-circus. Acting. Pavilhão Arethuzza. Circo de Teatro Tubinho.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 1
1.
A TEATRALIDADE CIRCENSE ............................................................................... 17
1.1 Reflexões iniciais acerca do trabalho do ator ............................................................. 17
1.2 A origem do espetáculo circense “moderno” ............................................................. 35
1.3 As teatralidades circenses ........................................................................................... 42
1.4 Uma das vertentes da teatralidade circense: o circo-teatro......................................... 50
1.5 Relação com o público e a arte de agradar ................................................................. 65
2.
O PAVILHÃO ARETHUZZA ..................................................................................... 77
2.1 Trajetória .................................................................................................................... 77
2.2 Processo de formação/socialização/aprendizagem no Pavilhão Arethuzza ............... 91
2.3 A primeira parte do espetáculo ................................................................................... 98
2.4 A segunda parte do espetáculo ................................................................................. 122
2.4.1 Ensaio e ensaiador ............................................................................................. 122
2.4.2 Repertório .......................................................................................................... 131
2.4.3 O ponto .............................................................................................................. 137
2.4.4 Elementos da encenação .................................................................................... 141
2.4.5 Triangulação ...................................................................................................... 157
2.4.6 Tipologia ............................................................................................................ 162
3.
O CIRCO DE TEATRO TUBINHO .......................................................................... 191
3.1 Trajetória .................................................................................................................. 191
3.2 Processo de formação dos artistas do Circo de Teatro Tubinho............................... 217
3.3 Repertório ................................................................................................................. 245
3.4 Elementos da encenação ........................................................................................... 265
3.5 Ensaios e processos de criação ................................................................................. 282
3.6 O palhaço Tubinho ................................................................................................... 310
3.7 Os escadas................................................................................................................. 344
3.8 Cena e improvisação................................................................................................. 355
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 381
xi
5.
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 403
6.
ANEXOS .................................................................................................................... 411
xii
Ao saudoso professor Rubens Brito e ao querido professor Luiz Monteiro.
E também à Santina Jannuzzelli, Nery Duarte, Terezinha Duarte e N.B, com amor.
xiii
xiv
A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
Manoel de Barros
xv
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Valência e Francisco, que se dedicaram por completo ao projeto mais
audacioso e complexo da vida de qualquer pessoa: criar um filho. À minha irmã Flávia, um
dos seres humanos mais sensíveis que já conheci. À vocês, meu amor eterno e
incondicional.
À todos os meus familiares.
À Rodrigo Mallet pelas incontáveis conversas e reflexões sobre o circo e por toda ajuda
com esta pesquisa. Mas, sobretudo, por me mostrar diariamente o lado leve da vida e por
todo o companheirismo e amor.
Ao meu orientador, Mario Santana, pelo incentivo, dedicação, empenho, amizade e risadas.
À Aline Olmos, minha dupla companhia, por compartilharmos um mesmo sonho risonho,
pela amizade, confiança e aprendizados.
Aos “Damiões” Carolina, Lara, Rafael, Rodrigo, Ricardo, Presto e Sun, pela convicção de
que “todo artista tem de ir onde o povo está”.
Aos companheiros do Encontro Geraldo Riso, Ésio, Joana, Ivens, Guga, Helena, Duba e
Thiago, por me mostrarem que a união faz a força e faz o riso ser ainda mais prazeroso.
Aos amigos Andressa Nishiyama, Camila Morosini, Danielly Oliveira, Gabriel Cruz,
Gabriel Tonelo, Gabriela Guinatti, Janaína Iszlaji, Lenny Alpízar, Mariá Guedes, Marina
Regis, Moira Junqueira (e Olívia), Rafael Ary, Renata Wassall, Tatiane Santoro, Vitor
Poltronieri, pelos aprendizados, risadas e afeto.
Às amigas de Itajubá, Anna, Carolzinha, Marina, Byanca e Clara, pelos longos anos de
amizade verdadeira, que resiste à distância e diferentes caminhos que a vida nos leva.
À Laíza Dantas, Breno Tavares , Bruno Spitaletti, Rodrigo Pocidônio e Paula Hemsi, os
eternos “palhacitos”, pelo início da jornada em conjunto.
À todos os colegas e professores da graduação em Artes Cênicas da Unicamp, em especial
ao professor Roberto Mallet por todos os ensinamentos.
Aos professores Luiz Monteiro e Rubens Brito, mestres que me apresentaram ao universo
do circo e do teatro brasileiro.
xvii
À Helder, Luiz, Bento, Benê, Dalvina, Letícia, Vivien, Joice, Rodolfo, Vinícius, Andrea e
demais funcionários do Instituto de Artes.
À Fernando Neves, Santoro Junior e sua esposa Anna Maria Santoro, pela disponibilidade e
generosidade.
À toda família do Circo de Teatro Tubinho, em especial à Zeca e Angelita, por toda a
generosidade e carinho com o qual me acolheram. E à Ana Dolores, Débora Ignácio,
Morgana Lunardi e Lucélia Reis, amigas que levarei por toda a vida.
À professora Grácia Navarro, pela enorme contribuição durante o exame de Qualificação
desta pesquisa.
À Erminia Silva, sempre solícita e gentil ao responder minhas dúvidas e questionamentos.
E também aos demais entrevistados durante a pesquisa ainda não citados: Tiche Vianna e
Wanderley Martins.
À FAPESP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por viabilizar esta
pesquisa.
xviii
INTRODUÇÃO
“O povo sabe exprimir artisticamente coisas profundas com simplicidade.
Certos intelectuais somente conseguem exprimir com ferrugenta complexidade
ideias profundamente vazias”.
Bertholt Brecht
Esta dissertação de Mestrado se configura como o aprofundamento da pesquisa
que desenvolvo desde 2007 acerca da manifestação teatral conhecida como circo-teatro.
Proponho, então, um estudo acerca de alguns elementos da encenação e
interpretação de duas companhias circenses: o Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza, que foi
uma das companhias de circo-teatro mais bem sucedidas do início do século XX e que
encerrou suas atividades na década de 1960, e o Circo de Teatro Tubinho, um dos maiores
representantes do circo-teatro na atualidade.
Dessa forma, ao longo do texto, o leitor irá se deparar com o registro das
reflexões e inquietações de uma atriz/pesquisadora acerca de questões relacionadas ao
trabalho do ator, destinadas, portanto, principalmente a outros atores.
Meus primeiros contatos com a teatralidade circense se deram em 2007. Eu
estava no primeiro ano da Graduação em Artes Cênicas, na Universidade Estadual de
Campinas e “ouvi falar” pela primeira vez que, antigamente, muitos circos brasileiros
apresentavam peças de teatro, sendo que a cada noite se encenava um espetáculo diferente.
Ensinaram-me também que ainda existiam algumas dessas companhias e que eram
chamadas de circo-teatro. Quem me apresentou a este universo foi o saudoso e querido
professor Rubens Brito, a quem devo meu eterno respeito e gratidão.
Rubinho – como era carinhosamente chamado – contou, em uma de suas aulas
da disciplina História do Teatro: Formas Espetaculares do Teatro no Brasil, sobre sua
experiência com a companhia da qual fazia parte na juventude, o Grupo de Teatro
Mambembe, e como este fundamentou seu trabalho na pesquisa acerca das representações
teatrais nos circos:
O Grupo de Teatro Mambembe, fundado no início de 1976 por Carlos Alberto
Soffredini e mais dezesseis artistas, estreara, em novembro desse mesmo ano,
com A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança. O
1
espetáculo foi criado especialmente para ser representado nas praças públicas da
capital e do interior do Estado de São Paulo (na época, ainda não era usual o
emprego do termo „teatro de rua‟). Entre a reunião do elenco e a estreia, o grupo
realizou uma intensa pesquisa nos circos-teatros, os quais se apresentavam na
periferia da capital, em especial no Circo-Teatro Bandeirantes, o maior e o mais
bem equipado de todos. É no circo-teatro que o Mambembe encontra os
elementos essenciais do espetáculo popular (BRITO, 2006: 79).
Após esse primeiro contato com o circo-teatro através de Rubinho, intuí que
residia nessa manifestação teatral, que até então não fazia parte do meu horizonte cultural,
algo que poderia me interessar. (Confesso que na frase anterior tentei exprimir, de maneira
mais contida, o que aconteceu de fato: simplesmente uma paixão à primeira vista).
Ao mesmo tempo, no segundo semestre de 2007, eu e mais quatro colegas de
turma, Breno Tavares, Bruno Spitaletti, Laíza Dantas e Rodrigo Pocidônio, começamos a
realizar, por iniciativa própria e despretensiosa, encontros extracurriculares à grade do
curso, nos quais investigávamos aspectos relacionados à arte do palhaço. Neste início de
trabalho éramos “guiados” por Bruno e Breno, os únicos que já haviam realizado cursos
sobre a temática no Estúdio Nova Dança, em São Paulo. Com o tempo nos consolidamos
como um grupo de pesquisa teatral – existente até hoje – que passou a se chamar Academia
de Palhaços.
Foi então que o professor Márcio Tadeu, em sua disciplina Formas
espetaculares no Ocidente/Oriente, propôs como trabalho final a elaboração de uma
pesquisa sobre algum segmento teatral que nos despertasse interesse. Desse modo, resolvi
conhecer melhor aquele tal de “circo-teatro”, seguindo minha intuição e também a linha de
trabalho ligada ao circo que estava começando a desenvolver com a Academia de Palhaços.
Por coincidência – ou providência – descobri que um curso intitulado “A
interpretação no circo-teatro” seria ministrado em São Paulo, na Casa de Cultura Amácio
Mazzaropi, aos sábados à tarde durante todo o segundo semestre de 2007. O ministrante
seria o ator e diretor Fernando Neves, pertencente à sexta geração da família circense
Viana-Santoro-Neves, do Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza.
Fernando Neves passou a infância no circo da sua família e viu, ainda criança,
este encerrar suas atividades. Depois de adulto, durante anos renegou sua origem circense,
2
apesar de reafirmar sua veia artística ao formar-se pela EAD – Escola de Arte Dramática –,
da Universidade de São Paulo.
Porém, anos mais tarde, Neves resolveu resgatar a história de sua família,
passando a compreender a potência criativa existente na teatralidade circense. Desde então,
desenvolve, há mais de dez anos, uma profunda pesquisa acerca do circo-teatro, juntamente
com a companhia paulistana Os Fofos Encenam, da qual faz parte como ator e diretor.
Além de uma contundente pesquisa teórica – ainda não publicada –, Neves realizou com Os
Fofos Encenam a remontagem de diversas peças que faziam parte do repertório do Pavilhão
Arethuzza: a alta comédia A Mulher do Trem (2003), o drama Ferro em Brasa (2006), a
burleta caipira Vancê não viu minha fia? (2013), o melodrama policial A ré misteriosa
(2013), o drama religioso A canção de Bernadete (2013) e a chanchada Dar corda pra se
enforcar (2013)1.
Partindo da tradição circense de sua família, Neves desenvolve um olhar
histórico sobre o circo-teatro, porém colocando-o sob a luz da contemporaneidade. Digo
isso porque algumas companhias na atualidade que, assim como Neves, propõem o resgate
da tradição do circo-teatro, muitas vezes se restringem a reproduzir as peças exatamente
como eram encenadas há décadas, fazendo com que estas pareçam “peças de museu”.
Dessa forma, ao recriar parte da tradição circense de sua família, Neves engendra uma
poética e uma estética profundamente baseadas em sua herança teatral, mas que possuem,
ao mesmo tempo, algo de inovador e original.
Fernando Neves foi, então, através do curso na Casa de Cultura Amácio
Mazzaropi, a minha primeira grande referência a respeito da teatralidade circense como um
todo e, mais especificamente, do circo-teatro.
Além deste curso, extremamente importante para minha formação, desde 2007
participei de diversos outros cursos, palestras e mesas redondas, acerca tanto da
manifestação teatral do circo-teatro quanto da figura do palhaço, com nomes como Dirce
Militello, Erminia Silva, Neyde Veneziano, Mario Bolognesi, Daniele Pimenta, Antônio
1
A classificação das peças nestes subgêneros foi realizada pelo próprio Fernando Neves e a companhia Os
Fofos Encenam, seguindo a tradição da família Viana-Santoro-Neves, do Pavilhão Arethuzza.
3
Santoro Junior, tio de Fernando Neves e apelidado de Toco, Leris Colombaioni, Ricardo
Puccetti, Ésio Magalhães, Fernando Sampaio e Philippe Gaulier.
Em 2008, a Academia de Palhaços iniciou um estudo específico – que se
tornou a base de seu trabalho – sobre o palhaço de picadeiro da tradição circense brasileira,
sob a orientação do querido professor de Técnicas Circenses da Graduação em Artes
Cênicas, Luiz Monteiro. Mais uma vez eu escolhia o circo como o caminho a ser trilhado
para a construção de minha técnica pessoal e trabalho artístico.
Ainda em 2008, Fernando Neves, a convite de Luiz Monteiro, ministrou no
Departamento de Artes Cênicas da Unicamp um curso análogo ao que havia ministrado na
Casa de Cultura Amácio Mazzaropi. Também participei deste curso e, através deste
segundo contato com Fernando Neves, me surgiu a ideia de dar continuidade a minha
pesquisa, dessa vez sob os formatos acadêmicos.
Assim sendo, no ano de 2009 formalizei todos os estudos desenvolvidos até
então através da pesquisa de Iniciação Científica, financiada pelo CNPq, intitulada “O que
os olhos veem o coração sente – O trabalho do ator do espetáculo circense à cena teatral”,
sob a orientação da Profª. Drª. Sara Lopes.
Esta Iniciação Científica, que verticalizava os estudos sobre a questão da
interpretação no circo-teatro, contava com o desenvolvimento de uma frente prática de
pesquisa no primeiro semestre de 2010. Para tanto, propus a criação de um grupo de
estudos que aliei à Academia de Palhaços; estava aberta, então, a segunda frente de
trabalho do grupo: o circo-teatro. Para o desenvolvimento de nossas atividades obtivemos o
apoio da Faepex – Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e à Extensão da Unicamp – e
contamos com a orientação do próprio Fernando Neves, que gentilmente aceitou o meu
convite de trabalho.
Em 2010, na convivência com Fernando Neves conheci o Circo de Teatro
Tubinho, uma das poucas companhias de circo-teatro que continuam a itinerar na
atualidade pela região Sudeste. Em várias oportunidades visitei a companhia e conferi de
perto como se configuravam os espetáculos de circo-teatro desta trupe, liderada por José
4
Amilton Pereira Junior, de nome artístico Pereira França Neto, porém mais conhecido entre
os seus pelo apelido Zeca e entre o público pelo próprio nome de seu palhaço, Tubinho 2.
Ainda em 2010, Zeca e Fernando Neves foram os convidados do II CESC Ciclo de Estudos sobre o Circo, com o tema “É causo de palhaço!”, realizado no
Departamento de Artes Cênicas da Unicamp, sob a organização do professor Luiz Monteiro
e da Academia de Palhaços.
Dando continuidade ao trabalho iniciado com o grupo de estudos da pesquisa
de Iniciação Científica, no segundo semestre de 2010, a Academia de Palhaços encenou,
como montagem de formatura do curso de Artes Cênicas, o espetáculo O Mistério Bufo –
Um retrato heroico, épico e satírico da nossa época, de Vladimir Maiakovski, com direção
também de Fernando Neves. Esta montagem foi realizada através do PICC (Projeto
Integrado de Criação Cênica) da disciplina Estudos Teatrais IV: Poéticas Cênicas, com
orientação da Profª. Drª. Isa Kopelman e era baseada na linguagem criada por Fernando
Neves a partir das referências teatrais de sua família.
Em 2011 continuei a pesquisa acerca das manifestações teatrais circenses e do
palhaço de picadeiro, porém não mais com a Academia de Palhaços. Neste recomeço, eu e
outra colega de Graduação, Aline Olmos, fundamos, em 2012, a Dupla Cia, que hoje
integra o coletivo que organiza o Encontro Geraldo Riso, juntamente com os grupos
Barracão Teatro, Cia Suno, Circo Caramba e Família Burg, todos sediados em Barão
Geraldo – Campinas. Estes grupos, que possuem em comum a pesquisa acerca da figura do
palhaço e, consequentemente, a vontade de fazer rir, vêm desenvolvendo diversos projetos
artísticos que cruzam suas trajetórias e fortificam o movimento teatral e cultural
campineiro.
Finalmente, em 2012, após estar totalmente afetada pelo tema, decidi
investigar, nesta pesquisa de Mestrado em Artes da Cena, os procedimentos envolvidos na
criação da cena e no modo de atuar dos artistas circenses que apresentavam e apresentam
peças teatrais nos circos itinerantes de lona ou pavilhão. Porém, considerando a ideia de
2
Entre todos esses nomes – o verdadeiro, o artístico, o apelido e o nome do palhaço – optei por usar, daqui
por diante nessa dissertação, o apelido “Zeca”.
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que “quanto mais se restringe o campo, melhor e com mais segurança se trabalha” (ECO,
1989: 10), era necessário que eu escolhesse um recorte ainda mais específico.
Para tanto, delimitei a pesquisa à investigação de alguns elementos da
encenação e interpretação das duas companhias circenses com as quais havia estabelecido
contatos mais profundos ao longo de minha trajetória artística e acadêmica: o Circo-Teatro
Pavilhão Arethuzza e o Circo de Teatro Tubinho.
Além disso, a escolha por estas duas companhias também se deu pelo fato de já
existir um diálogo entre elas desde 2010, quando Fernando Neves redirigiu, a convite de
Zeca, um dos espetáculos do Circo de Teatro Tubinho, o melodrama Maconha, o veneno
verde – que fazia parte do repertório de diversos circos do século passado e que passou a se
chamar O seu único pecado. Esta empreitada fez parte de um projeto de reelaboração e
releitura de seis peças do repertório do Circo de Teatro Tubinho e foi financiada pela
Petrobrás, através da lei de incentivo à Cultura do Ministério da Cultura e Governo Federal.
Ao definir, então, o recorte para esta pesquisa, a primeira questão que me surgiu
e que acabou por me nortear foi o fato de que, ao pesquisar questões referentes ao trabalho
do ator circense, o meu “objeto de estudo” era constituído, na verdade, por matéria viva,
por seres humanos.
Isto me leva a enunciar o foco desta dissertação, portanto, como sujeito de
estudo, ao invés de objeto, pois no campo da configuração artística, busco compreender
como sujeitos/ artistas/ seres humanos representavam e representam encenações teatrais
nestas duas companhias circenses.
Escolhidos os sujeitos de estudo, parti, então, parafraseando o Grupo de Teatro
Mambembe, à procura “„dos que têm experiência‟, não com o avental esterilizado e as luvas
de borracha do pesquisador, mas com o cuidado e o respeito de quem está lidando com o
que desconhece”3.
Destaco, então, primeiramente, que o circo de números de variedades que
povoa, hoje, o imaginário das gerações mais recentes – e mais próximas da minha realidade
3
Programa da peça A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, do Grupo de
Teatro Mambembe em parceria com o SESC – Serviço Social do Comércio – de São Paulo. Programa
encontrado nos anexos da tese de Livre Docência “Teatro de rua: princípios, elementos e procedimentos” do
professor Rubens Brito (2004).
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de classe média do Sudeste do Brasil – constitui, na verdade, uma das diversas formas e
configurações que o espetáculo circense assumiu ao longo dos anos.
Se fizermos uma retrospectiva da história do espetáculo circense no Brasil
veremos que, na primeira metade do século XX, grande parte dos circos dividia a função
em duas partes e que estes circos eram chamados de circos-teatro.
Na primeira parte do espetáculo eram executados, geralmente no picadeiro, os
números de variedades (mencionados anteriormente e que povoam o imaginário coletivo),
como malabares, trapézio, acrobacias, mágica e entradas de palhaços. Além disso, era
muito comum a apresentação de números de canto e de dança – estes últimos conhecidos
como bailados –, a presença de convidados especiais, como cantores de sucesso da época, e
até mesmo a execução de sorteios, bingos e competições de luta livre, boxe, capoeira e
partidas de futebol feminino.
Em seguida, na segunda parte do espetáculo, os mesmos artistas que haviam se
apresentado na primeira parte retornavam à cena para representar, sobre um palco, peças de
teatro dos mais variados gêneros.
Dessa forma, além do termo “circo-teatro” ser usado para nomear as próprias
companhias circenses que organizavam o espetáculo da forma descrita anteriormente, a
maior parte da bibliografia também nomeia como “circo-teatro” a possível estética ou
linguagem desenvolvida nas representações teatrais apresentadas, a partir do início do
século XX, nos palcos dos circos brasileiros.
Há ainda um desdobramento desta nomenclatura: segundo Mario Bolognesi
(2010), as companhias de circo-teatro da atualidade – como a própria companhia de
Tubinho –, que se dedicam apenas à representação teatral, sem a apresentação da primeira
parte de variedades, preferem ser chamadas de circos de teatro.
Os circos-teatro permaneciam semanas e até meses numa mesma cidade e, para
que se mantivessem financeiramente, era necessário que a cada dia se representasse uma
nova peça. Cada circo contava, portanto, com um imenso repertório de peças – conhecido
7
entre os circenses como “baú da família” – que eram levadas4 com o objetivo maior de
agradar5 a plateia, que voltaria na noite seguinte e, assim, manteria o circo vivo.
Desse modo, as companhias circenses, ao longo dos anos, representaram peças
pertencentes a diversos gêneros teatrais, em encenações que amalgamavam as mais
variadas linguagens e estéticas artísticas. A multiplicidade de gêneros e estéticas prevaleceu
e uma mesma companhia podia encenar da mais simples chanchada a tragédias como Otelo,
de William Shakespeare e óperas como Tosca, de Giacomo Puccini, por exemplo.
Para tornar possível, portanto, a representação de uma peça diferente a cada dia
e a construção das personagens por parte dos atores – isso tudo sem perder o público de
vista e levando em conta suas particularidades –, os artistas circenses desenvolveram uma
série de técnicas e recursos que configuram modos de encenação e de interpretação
extremamente funcionais e com alto teor de teatralidade.
Esta pesquisa almeja, então, o reconhecimento e a descrição de algumas dessas
técnicas de composições cênica e interpretativa que constituem este modo particular de
manifestação teatral, mantida viva até hoje por algumas companhias circenses que
continuam a itinerar pelo país.
Além de toda a multiplicidade de gêneros e estéticas, já citada anteriormente, se
voltarmos ainda mais no tempo e chegarmos ao século XIX, veremos que, no Brasil,
mesmo antes da divisão do espetáculo em duas partes, as companhias já representavam
diversas encenações teatrais, no picadeiro ou em pequenos tablados, as quais davam o
nome genérico de pantomimas (SILVA, 2007).
Se retrocedermos ainda mais veremos que, na verdade, a representação teatral
sempre esteve presente nos circos, desde a sua origem “moderna” com Philip Astley, na
Europa. Isto porque o espetáculo pensado por Astley previa, além das exibições equestres, a
participação de artistas oriundos dos teatros de feira europeus; artistas estes que dominavam
as mais variadas linguagens artísticas, dentre elas, a arte teatral. Dessa forma, desde Astley
eram representados nos circos hipodramas e mimodramas.
4
“Levar uma peça” é um termo recorrente entre os circenses. Durante as visitas ao Circo de Teatro Tubinho
por diversas vezes ouvi frases como “Qual comédia que vai ser levada hoje?”.
5
Este termo, que será detalhado adiante, também é constantemente usado pelos próprios circenses e será
usado, também, ao longo dessa dissertação.
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Além de todas estas questões, é inegável que mesmo as apresentações ligadas à
demonstração de habilidades e destrezas físicas, bem como os números de canto e bailados,
também possuem elementos de teatralidade em suas composições. Nesses casos, o
virtuosismo do artista é evidenciado e enaltecido pelos elementos de teatralidade
explorados na composição de sua apresentação.
Assim sendo, fica claro que a teatralidade 6, sob os mais variados formatos,
sempre esteve presente no espetáculo circense “moderno” e que, portanto, o circo-teatro
não é a única, mas sim uma das diversas formas que a teatralidade circense assumiu ao
longo dos anos.
E ainda mais: segundo Erminia Silva (2010), é difícil pensarmos até no “circoteatro” como um gênero único, pois este se caracteriza como um movimento múltiplo, que
dialoga diretamente com a realidade do local onde o circo se encontra, fator este que
determina, portanto, a configuração de diferentes tipos de espetáculos, que possuem alguns
elementos em comum e, ao mesmo tempo, outras tantas especificidades. Dessa forma,
A história polifônica e polissêmica do circo brasileiro nos autoriza mais a falar
em teatro no circo apresentando todas as modalidades possíveis de representações
teatrais do que em circo-teatro como um gênero único, ou pelo menos dois, como
se tem definido: comédia e (melo)drama. A formação do artista circense em cada
período histórico e dentro do complexo significado do conceito de teatralidade
circense englobou as mais variadas formas de expressões artísticas constituintes
do espetáculo circense. Uma das principais características desse fazer circense de
todo o século XX, até pelo menos 1950, era sua contemporaneidade com a
diversidade de gêneros teatrais, musicais e da dança produzidos, o que garantia
presença nos palcos/picadeiros diálogo e mútua constitutividade que estabeleciam
com os movimentos culturais da sua época. Com essas características de
contemporaneidade e de sinergia com seu tempo e culturas locais, vivendo o
próprio teatro que se fazia na sua época, como pensar a história teatral circense
como produção de uma única forma de representação e gênero único? (SILVA,
2010: 221).
Além de toda multiplicidade acima citada, todo espetáculo de circo está pautado
sobre a explícita premissa de agradar o espectador. Este termo é tão importante e tão
utilizado entre os circenses que percebi que ele deveria não só estar presente nesta
dissertação, como também deveria ser investigado e questionado mais a fundo.
6
Este tema será tratado com maior profundidade no capítulo 01.
9
Dessa forma, ao longo do texto, dissertarei sobre este termo que, a meu ver,
representa fundamentalmente o objetivo final de qualquer espetáculo teatral, seja ele
circense ou não, pois agradar tem a ver com algo de fato se passar entre nós. Ou seja, tem
a ver com o fenômeno teatral realmente acontecer. E, no caso do circo itinerante de lona,
que trava uma relação direta com a arrecadação por bilheteria, o maior termômetro de que
“ocorreu teatro” é o espectador sair do espetáculo certo de que voltará na noite seguinte.
Ademais, no circo, esse algo se passar entre nós está ligado a várias instâncias
que vão além do espetáculo, pois este é apenas um dos elementos inseridos na relação ritual
que o circo constrói com a cidade onde se estabelece.
Dessa maneira, o circo conforma-se à realidade, aos desejos e necessidades de
cada localidade, o que faz com que as encenações de um circo do Nordeste, por exemplo,
sejam diferentes das encenações de um circo do Sul, assim como o espetáculo apresentado
para o público de uma metrópole seja diferente do apresentado numa cidade do interior.
Ficará claro, portanto, que agradar não deve ser visto como algo pejorativo,
mas sim como o nomeador de um conjunto de elementos estruturais desse ofício, no qual os
artistas circenses sempre dialogam, agregam e retrabalham os múltiplos movimentos
culturais de sua época. Desse modo, o espetáculo circense estabelece uma estreita conexão
com o imaginário do espectador que o assiste e destina-se ao divertimento, no melhor
sentido da palavra, de um público extremamente diversificado, constituído por diversas
classes sociais e níveis intelectuais.
Devido a esta heterogeneidade de gênero, estética e público, o leitor perceberá
que não classificarei o espetáculo circense nas usuais categorias “cultura erudita”, “cultura
popular” e “cultura de massa”. Creio, assim como a pesquisadora Erminia Silva, que os
circenses
(...) apreendiam, recriavam, produziam e incorporavam referências culturais
múltiplas e eram assistidos pelos trabalhadores, intelectuais, artistas e a
população mais abastada. Desta forma, o circo não será analisado a partir de
conceitos como popular/erudito, pois os mesmos não dão conta da multiplicidade
e do intercâmbio de relações culturais, sociais e artísticas que envolvia (SILVA,
2007: 21).
10
Durante minhas estadias no Circo de Teatro Tubinho – parte constituinte da
pesquisa de campo proposta nessa pesquisa – pude ver de perto como a afirmação anterior
de Erminia continua sendo válida também para esta companhia da atualidade.
Porém, apesar de não classificar o espetáculo de circo nas categorias “erudito”,
“popular” e “de massa” – por este trabalhar com as mais diversas influências e se destinar
às mais variadas camadas da população –, acredito que o circo-teatro deve ser
compreendido como uma manifestação artística fundamentalmente comercial, sendo que
este termo não deve ser visto como algo pejorativo, mas sim como a afirmação da arte
enquanto profissão.
Além disso, outros termos que geram grandes discussões na atualidade,
acarretadas por uma disputa política e de saberes, são os que procuram classificar os circos
como “tradicional”, “novo” e “contemporâneo”. Dentro destas categorias, o Pavilhão
Arethuzza e o Circo de Teatro Tubinho, apesar de estarem separados temporalmente e
possuírem características muito específicas, possuem em comum o fato de serem
considerados atualmente como circos “tradicionais”7.
Neste estudo utilizarei o termo “tradicional” partindo do significado que este
tem para os próprios circenses e que diz respeito à formação integral que este modo de
organização do trabalho requer. Erminia Silva afirma que:
(...) ser tradicional, para o circense, não significava e não significa apenas
representação do passado em relação ao presente. Ser tradicional significa
pertencer a uma forma particular de fazer circo, significa ter passado pelo ritual
de aprendizagem total do circo, não apenas de seu número, mas de todos os
aspectos que envolvem a sua manutenção (SILVA; ABREU, 2009: 82).
Acerca, agora, da estrutura desta dissertação, destaco que optei pela abordagem
qualitativa, considerando a natureza descritiva e exploratória do estudo e realizei o
levantamento dos dados através dos seguintes procedimentos metodológicos:
a) Pesquisa bibliográfica e documental;
7
Os artistas do Pavilhão Arethuzza, assim como os artistas das demais companhias itinerantes de lona, não se
autodenominavam “tradicionais”. O conceito “tradicional” é algo datado e passou a ser utilizado a partir da
década de 1970, para diferenciar o modo de organização do trabalho dos circos itinerantes de lona dos novos
modos de organização do trabalho e do espetáculo que passaram a se consolidar com a abertura das artes
circenses a novos sujeitos históricos, principalmente através da criação das escolas de circo.
11
b) Entrevistas
semiestruturadas
com
artistas,
ex-artistas
circenses
e
pesquisadores da temática, a saber: Erminia Silva, doutora e pesquisadora
do circo-teatro e descendente da família Wassilnvich, que no Brasil virou
Silva; Fernando Neves, ator e diretor descendente da família Viana-NevesSantoro, do Pavilhão Arethuzza; Antônio Santoro Junior, também
descendente do Pavilhão Arethuzza e tio de Fernando Neves; Ésio
Magalhães, ator e diretor teatral, que redirigiu o espetáculo Cabocla Bonita,
do Circo de Teatro Tubinho; Tiche Vianna, diretora teatral, que realizou a
preparação de elenco da remontagem de Cabocla Bonita, do Circo de
Teatro Tubinho; Wanderley Martins, do Grupo de Teatro Mambembe;
Pereira França Neto (Zeca), o palhaço Tubinho; e os atores do Circo de
Teatro Tubinho: Alexandre Vieira, Ana Dolores, Angelita Vaz, Cristian
Bryan (Tito), Cristina Martins, Débora Ignácio, Dimitri Augusto, Dionísio
Martins, Lucélia Reis, Luciane Rosã, Morgana Lunardi, Nicolas Alexandre
e Riccielly Lunardi.
c) Pesquisa de campo, que incluiu visitas a acervos de memória do circo,
viagens a São Paulo para acompanhamento do projeto Baú da Arethuzza, de
Fernando Neves e a companhia Os Fofos Encenam e, principalmente,
diversas visitas ao Circo de Teatro Tubinho, de 2013 a 2015.
A partir dos dados levantados, inicio o primeiro capítulo tecendo algumas
reflexões acerca do trabalho do ator e a busca pela sua técnica pessoal, que são, na verdade,
os principais motivos que me levaram a esta pesquisa.
Defino, então, o que considero como teatralidade para descrever, em seguida,
algumas das diversas formas e configurações estéticas que a teatralidade circense assumiu,
desde a origem do espetáculo “moderno” com Philip Astley até ao chamado circo-teatro no
Brasil.
Após reconhecer, no primeiro capítulo, a multiplicidade da teatralidade
circense, incluindo a diversidade existente dentro do próprio fenômeno descrito como
circo-teatro, realizo, nos demais capítulos, uma análise mais verticalizada sobre alguns
12
elementos da encenação e interpretação no Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza e no Circo de
Teatro Tubinho.
A análise destes pontos se configura como algo extremamente complexo, pois
como já foi exposto anteriormente, o espetáculo circense é sempre heterogêneo,
multifacetado e polissêmico, o que não me permite falar na existência de apenas um modo
de se fazer circo-teatro. Desse modo, ao estabelecer este recorte, busco entender como os
artistas dessas duas companhias desenvolviam seus trabalhos, e não generalizar ou buscar
uma fórmula do que seria a estética ou a linguagem do circo-teatro.
Destaco ainda que, dentro deste recorte, os elementos da encenação dos
espetáculos foram estudados, não com o objetivo de mostrar minuciosamente as suas
composições e especificidades, mas sim para demonstrar como a elaboração e articulação
destes elementos potencializam e alavancam o desempenho dos intérpretes.
É importante ressaltar que a escolha de uma companhia de circo-teatro do
passado e uma da contemporaneidade evidenciará, inevitavelmente, que muitas
transformações ocorreram ao longo dos anos. Porém, não desejo aplicar nenhum juízo de
valor a esta análise nem enaltecer o circo do passado em detrimento do atual. O fato é que o
circo é sempre contemporâneo – no sentido de não apresentar atrações anacrônicas – e
reflete em cena os desejos dos espectadores; desse modo é condição sine qua non que um
espetáculo do Pavilhão Arethuzza não seja igual a um do Circo de Teatro Tubinho.
O que pretendo com esta pesquisa, portanto, não é uma comparação entre as
duas companhias e muito menos a tentativa de torná-las simétricas. O que proponho é um
diálogo através justamente da assimetria existente entre as duas, com destaque para os
elementos e técnicas interpretativas utilizados por estes atores circenses, que podem
auxiliar e complementar a formação de um ator não habituado com este tipo de fazer
teatral.
Isso porque:
De João Caetano (o primeiro a se preocupar com a formação do ator brasileiro)
até 1978, data da regulamentação da profissão de artista, o próprio palco é a
grande “escola” na qual se formam os nossos intérpretes. A partir de então, a lei
passa a exigir ou o certificado fornecido por uma escola (universidades ou escolas
profissionalizantes de segundo grau) ou a aprovação pelo Sindicato dos Artistas,
13
órgão responsável pela aplicação de um exame teórico e prático (BRITO, 2006:
178).
Quando conheci o circo-teatro compreendi, então, que existem outros “jeitos”
de se fazer teatro, calcados sobre outros paradigmas, diferentes daqueles que eu estava
habituada na Universidade. Dessa maneira, penso que em termos pedagógicos o circoteatro também é uma escola formativa, com metodologia, princípios e caminhos próprios.
Minha pesquisa busca, então, tornar visível a riqueza e a complexidade
envolvida no teatro realizado nos circos, colocado durante décadas à margem da história
oficial. Para isso, busquei descrever, sob um formato acadêmico, este tipo de manifestação
teatral genuinamente não acadêmica. Diante desse fato, minha maior preocupação foi a de
promover a descrição de maneira simples e direta, de modo que esta seja inteligível a um
ator com formação totalmente diversa ao universo circense e, ao mesmo tempo, seja
passível de empatia e reconhecimento por parte dos próprios artistas circenses que me
inspiraram.
Faço isso porque acredito que o principal problema da pesquisa em Artes
dentro da Academia reside no fato de que os artistas/pesquisadores, em geral,
descomplexificam a prática teatral e complexificam os conceitos que buscam explicá-la. A
prática teatral é tida como algo simples/chapado e explicada através de conceitos,
geralmente filosóficos, elaboradíssimos. Acredito, porém, que o artista/pesquisador deve
fazer justamente o contrário, ou seja, deve olhar para a prática teatral com a complexidade
que sabemos que ela tem e, a partir desta prática, elaborar conceitos simples pra explicá-la.
E é justamente por estar ciente de toda a complexidade envolvida no fazer
teatral que não pretendo esgotar nem responder todas as questões levantadas ao longo do
texto. O que posso fazer, nesse momento, é compartilhar, com quem demonstrar interesse,
o que li, vi, ouvi, senti, vivi e compreendi – e o que não compreendi também.
Tenho ciência também de que não posso apartar meu fôlego investigativo de
minha experiência prática. Por isso, ao longo da dissertação, vou comentando e refletindo a
respeito de como a pesquisa foi, com o tempo, modificando e aprofundando o meu trabalho
prático/artístico.
14
Acredito que, dessa forma, esse estudo pode auxiliar um ator na busca de seu
caminho pessoal para a criação poética – assim como vem auxiliando o meu próprio
caminho. Isso porque, apesar de reconhecer o fato de que qualquer manifestação artística –
e não só o circo – não pode, simplesmente, ser extraída por completo de seu contexto,
acredito que é meu papel, enquanto pesquisadora em Artes, traduzir, por transposições e
analogias, o que for possível de meu sujeito de estudo.
E essa transposição é possível, pois, em última instância, todos os verdadeiros
artistas buscam a mesma finalidade: a troca viva entre as pessoas, num nível mais universal
de comunicação, aquele que é de ser humano para ser humano. Nesse ponto reside a magia
do teatro, que o mantém vivo, apesar de todos os percalços, e o torna insubstituível.
À primeira vista, o teatro, enquanto arte puramente artesanal, parece navegar na
contramão da História. Enquanto um robô espacial pousa delicada e suavemente
na superfície de Marte, ainda tem gente, aqui em baixo, fazendo teatro. Todavia,
um olhar um pouco mais atento vai perceber que este ritual que se processa ou na
sala fechada, ou na praça pública, está tentando desvendar o sentido da
experiência humana neste imenso universo (BRITO, 2004: 214).
Encerro aqui esta introdução certa de que não poderia ter sido de outra maneira,
a não ser com esta linda citação do mestre Rubinho, responsável por tudo o que vem me
acontecendo desde aquelas aulas em 2007.
15
16
1.
A TEATRALIDADE CIRCENSE
1.1 Reflexões iniciais acerca do trabalho do ator
Esta dissertação de Mestrado se configura, de modo geral, como a tentativa de
uma atriz em problematizar questões referentes ao trabalho do ator. Parto da premissa
básica, portanto, de que dissertarei sobre um tema que possui algo de concreto e técnico e,
ao mesmo tempo, algo de impalpável e, talvez, imponderável.
E lhes explico o porquê.
Teatro, do grego théatron, quer dizer “lugar de onde se vê”. Posso pensar,
segundo a maioria das pessoas, que esse “lugar de onde se vê” faz referência ao próprio
edifício teatral, pois é neste local em que vemos atores desempenhando uma representação.
Porém, penso – e quem me mostrou isso foi um de meus mestres – que esse
“ver” pode estar relacionado também ao ponto de vista do ator, e não só do espectador.
Teatro é o lugar onde se vai para ver algo além do comum, do cotidiano, do ordinário; ver –
e esse ver não se remete só aos olhos – uma revelação compreendida pelo artista, que é
compartilhada com o público. Roberto Mallet, o mestre que me mostrou isso, afirma que:
Kandinski gostava de dizer que a função da obra de arte é tornar visível o
invisível. Eu, como artista, tenho que desenvolver um olhar que me torne capaz
de ver esse invisível. (...) O artista é alguém que vê mais, e que por uma
necessidade incoercível (mas também num ato de generosidade) constrói uma
obra em que as pessoas possam ter uma compreensão, uma intuição análoga à que
ele teve. (...) Em uma obra de arte o artista, tendo visto alguma coisa, constrói um
objeto com uma determinada estrutura que permite que outra pessoa olhe para
esse mesmo objeto e tenha uma intuição análoga à que o artista teve antes de criar
a obra. É aí que reside sua função reveladora. Uma vez que existe a visão, que
tenha ocorrido uma autêntica intuição, a criação da obra depende apenas de
transposição dessa visão para a materialidade própria a cada arte. Isto é claro sob
a condição de que o artista domine os meios técnicos de seu ofício. É como dizia
Clarice Lispector: "Eu nunca tive sequer um problema de expressão. Meu
8
problema é muito mais grave, é de concepção” (MALLET, 2001: s/n) .
8
MALLET, Roberto. Teatro e sentido. In: Jornal Bastidor. Teresina-PI, 2001. Disponível em:
http://www.grupotempo.com.br/tex_teasen.html
17
Para Grotowski (1987), Teatro é o que acontece entre ator e espectador; desse
modo o teatro pode existir sem cenário, figurino, luz, texto verbal, música, etc. Só não
poderá existir sem a presença de, pelo menos, um ator e um espectador. Esse pensamento
de Grotowski me remete diretamente à ideia de outro grande homem do teatro, Etienne
Decroux (1963), de que o teatro é a arte de ator (BURNIER, 2001). E aqui há a quase
imperceptível, porém elementar, diferenciação entre “arte do ator” e “arte de ator”.
Ao dizer “arte de ator”, Decroux
se refere a uma arte que emana do ator, algo que lhe é ontológico, próprio de sua
pessoa-artista, do „ser ator‟. E não à arte do ator, pois ela não lhe pertence, ele
não é seu dono, mas é quem a concebe e realiza (BURNIER, 2001: 18).
Pensa-se costumeiramente que, assim como o pintor tem a tela e a tinta, o
performer9 tem o seu corpo como instrumento de trabalho.
Eu, particularmente, gosto de expandir o pensamento de Decroux acerca da arte
de ator para este ponto também. Assim, acredito que pensar o corpo como instrumento de
trabalho leva a reduzir – mesmo que inconscientemente – o performer apenas a esse corpo,
separando-o de seu psiquismo, inteligência e, a meu ver, alma. E principalmente: não
acredito que se deva pensar o corpo do ator como seu instrumento de trabalho,
simplesmente porque ele não o possui, ele é. Eu não devo cuidar e treinar meu corpo
porque ele é meu instrumento de trabalho; eu devo cuidar porque sou eu!
Nas palavras de meu professor, Roberto Mallet:
A matéria do ator é fundamentalmente seu próprio corpo. As ações que ele realiza
conformam esse corpo. Sua matéria é um organismo vivo, composto por tecidos e
órgãos, com um cérebro capaz de armazenar e processar um número incalculável
de informações. Por não ser exterior ao ator – ao contrário, o corpo é o próprio
ator –, essa materialidade está em constante interação com o psiquismo. Um
movimento corporal terá ressonâncias na memória e nos sentimentos, assim como
uma lembrança ou um pressentimento têm ressonâncias corpóreas (MALLET,
2004: s/n)10.
9
Termo inglês que faz referência a todos os artistas do palco. Aqui me refiro não só ao ator, mas também ao
bailarino e ao circense, por exemplo.
10
MALLET, Roberto. Ação corporal: matéria do ator. Revista do 17º Festival Internacional de Teatro
Universitário de Blumenau. Blumenau-SC: 2004. Disponível em: www.grupotempo.com.br/acao-corporalmateria-do-ator/
18
Nas artes do espetáculo, no momento em que a obra de arte acontece, ganha
vida, o performer está presente e vivo diante do espectador. Presente e vivo por inteiro, não
só com o seu corpo, mas com sua imaginação, emoções, sensações e tudo o mais que
pertence ao campo de uma realidade não tangível.
O fato do ator estar vivo diante dos espectadores, executar, sentir, viver, e fazer
sua arte, introduz questões de difícil captação, referente a um universo subjetivo,
de sentimentos, sensações, emoções, ou seja, um conjunto de elementos que
Eugenio Barba chama de dimensão interior, ao diferenciá-los de uma outra
dimensão física e mecânica do trabalho do ator (Barba, 1989, p.21), e
Stanislavski denominou de “plano interior e plano exterior” (cf. Stanislavski,
1972, p.223) (BURNIER, 2001: 18).
Assim como qualquer outro artista, para trabalhar com a sua dimensão interior e
materializá-la em sua dimensão exterior, o ator necessita de técnica. Técnica, do grego
techne, traduzido para o latim como ars e que em português temos por “arte”. Ou seja,
durante muito tempo as ideias de técnica e arte estiveram fundidas. Segundo Douglas
Novais, que desenvolve sua pesquisa acerca do trabalho do ator baseada, principalmente,
nas reflexões dos pensadores da Antiguidade Clássica, como Platão, Aristóteles e Cícero:
A técnica tem a ver mais com criar algo do que simplesmente fazer algo.
Dissemos isso porque fundamentalmente ela está ligada a classe de trabalhadores
que antigamente se classificava como poetas, que incluía, além dos artistas,
médicos, arquitetos e artesãos. Tal categorização se apoiava no fato de todas estas
profissões terem como fim a produção de algo – no sentido estrito de gerar um
produto como uma casa, uma peça de teatro ou um colar. O seu fim, uma vez que
é um elemento da poesia, é criar algo, um personagem, uma peça, por exemplo, o
que a distancia da teoria, que tem a ver com conhecer alguma verdade. Entre a
teoria e a poesia está a técnica, porque todo pensamento técnico tem uma dúplice
preocupação, exige por um lado uma sistematização racional apoiada em
princípios, e, por outro, clareza e precisão suficientes nos pormenores da
construção que sirva a prática do ofício. Esse “entre” pode ser entendido de outro
modo, dissemos que ela emerge de experiências importantes e passa a ser técnica
quando além de fazer, você sabe como fazer. Ou seja está ligada, de algum modo
a um processo de conscientização (NOVAIS, 2012: 90).
A partir da reflexão acima percebo como em nossos dias – e falando agora não
só do ofício do ator – a ideia de técnica é confundida com o senso comum acerca do termo
tecnologia. Tecnologia, segundo este senso comum, me leva a pensar em avanço,
19
progressão, evolução; a pensar que o que vem depois é sempre melhor do que o que veio
antes. E em arte esse tipo de pensamento não é possível (Idem). Como dizer que eu, porque
vim depois, sou melhor poeta do que Shakespeare?
Para o poeta se tornar poeta não basta saber o que é poesia. Essa lacuna entre o
saber o que é poesia e se tornar um poeta é, então, preenchida pela técnica, pelo modo
como o poeta constrói a sua obra. E como a técnica é, na verdade, a sua própria arte, então
é sempre algo pessoal e intransferível. Porém, isto não quer dizer que ela é genuína e
pertencente somente ao campo da sorte, do acaso ou do talento. Ela é “o desenvolvimento
de habilidades que se aprendem e não que se criam em si” (Idem: 30). E aprende-se de
onde? De alguma tradição, seja ela qual for.
Toda produção artística é herdeira de outra anterior. Mesmo a produção teatral
contemporânea mais fragmentada e desconexa continua sendo a construção – ou seria a
desconstrução? – de um artifício para se falar de algo relacionado ao homem e sua
existência e continua existindo no espaço entre ator e espectador. Isso porque
Não existem meios de caminhar adiante sem fincar pé em nossas raízes, em
nossas origens. Ao mesmo tempo, o passado só funciona se usado para o
crescimento e desenvolvimento, como reservatório do novo, como disse Barba
(BURNIER, 2001: 247).
O verdadeiro artista é, então, aquele que imprime suas características pessoais a
uma base formal11, no sentido aristotélico, oriunda de uma determinada tradição.
Acontece que a história do Ocidente é marcada por uma profunda
fragmentação, na busca incessante pela especialização em algo. E no teatro não foi
diferente.
Desse modo, diferentemente do Oriente, onde dificilmente consegue-se
distinguir o que é teatro e o que é dança – por exemplo, no nô, kabuqui ou kathakali – no
Ocidente “nosso ator-cantante se especializou separando-se do ator-bailarino, e por sua vez
11
“Forma é a maneira como a matéria é organizada, sua estrutura. É uma forma o que o escultor imprime ao
bronze. São formas o que Picasso inscreve com tinta em suas telas. A disposição das palavras é a forma do
poema. De outro ponto de vista ela é o princípio estrutural da obra (a concepção, a idéia – eidos). A forma não
é uma figura estanque; ela tem um dinamismo interno que organiza a matéria conformando assim a obra”
(MALLET, 2004: s/n).
20
este último do ator... Como chamá-lo? Aquele que fala? Ator de prosa? Intérprete de
textos?” (BARBA apud BURNIER, 2001: 22).
Além disso, durante muito tempo, a arte de ator – do teatro descrito pela
história oficial no Ocidente – estruturou-se baseada em “elementos altamente subjetivos,
como, por exemplo, sua „identificação psíquica e emotiva‟ com o personagem”
(BURNIER, 2001:20).
O fato é que, até hoje, a maioria das pessoas acha que o ator encarna o
personagem “como um santo que baixa” e que ele é totalmente tomado por emoções e
sensações. O próprio Stanislavski, o primeiro a teorizar e criar o que chamou de sistema
para o trabalho do ator, no século XIX, antes de chegar à formulação das ações físicas
adentrou o terreno da memória emotiva12. Segundo Grotowski,
Os atores pensavam poder organizar seu papel através das emoções e Stanislavski
por muitos anos de sua vida pensou assim, de maneira emotiva. O velho
Stanislavski descobriu verdades fundamentais e uma delas, essencial para o seu
trabalho, é a de que a emoção é independente da vontade. Podemos tomar muitos
exemplos da vida cotidiana. Não quero estar irritado com determinada situação
mas estou. Quero amar uma pessoa mas não posso amá-la, me apaixono por uma
pessoa contra a minha vontade, procuro a alegria e não acho, estou triste, não
quero estar triste, mas estou. O que quer dizer tudo isso? Que as emoções são
independentes da nossa vontade. Agora, podemos achar toda a força, toda a
riqueza de emoções de um momento, também durante um ensaio, mas no dia
seguinte isto não se apresenta porque as emoções são independentes da vontade.
Esta é uma coisa realmente fundamental. Ao contrário, o que é que depende da
nossa vontade? São as pequenas ações, pequenas nos elementos de
comportamento, mas realmente as pequenas coisas são as pequenas ações que
Stanislavski chamou de físicas. Para evitar a confusão com sentimento, deve ser
formulável nas categorias físicas, para ser operativo. É nesse sentido que
Stanislavski falou de ações físicas. Se pode dizer física justamente por indicar
objetividade, quer dizer, que não é sugestivo, mas que se pode captar do exterior
13
(GROTOWSKI, 1988: s/n) .
Foi a partir, então, do método das ações físicas de Stanislavski que se começou
a mudar a ideia do que vem a ser o trabalho do ator, associando-o mais a ação do que a
sentimento – isso, fazendo referência mais uma vez ao Ocidente.
12
Para mais detalhes consultar os livros “A preparação do ator” e “A construção da personagem”, ambos de
Constantin Stanislavski.
13
De uma palestra proferida por Grotowski no Festival de Teatro de Santo Arcangelo (Itália), em junho de
1988. Disponível em: http://www.grupotempo.com.br/sobre-o-metodo-das-acoes-fisicas/
21
Porém o que se vê na atualidade e que parece como uma tentativa de fuga desta
visão de que “teatro é emoção” é o lado oposto da moeda: uma espécie de exaltação e
supremacia do corpo do ator, enquanto matéria palpável e concreta, e do treinamento
técnico deste. Essa nova perspectiva surge principalmente como desdobramentos –
errôneos e equivocados – das técnicas desenvolvidas por Grotowski e Barba.
Aqui cabe uma breve história narrada por um de meus professores certa vez:
um dia, um aluno todo orgulhoso foi até Jacques Lecoq14 lhe mostrar como havia
conseguido desenvolver com perfeição a caminhada codificada da mímica clássica 15. Ao
fim de sua incrível demonstração, o aluno orgulhoso esperava uma resposta de Lecoq, ao
passo que este simplesmente lhe indagou: “Belo, mas... para onde você vai?”.
Ou em outras palavras, “que me importa ter sete ou oito técnicas vocais, se não
tenho o que dizer? (...) Que me importa produzir um colar, se não existir um pescoço para
usá-lo?” (NOVAIS, 2012: 55). Ou ainda:
O aprendizado servil das técnicas é perigoso se antes não decidirmos o contexto
moral no qual vamos empregá-las. É similar a montar os elementos de uma casa,
suas estruturas portantes e superestruturas, sem a preocupação de sabermos
previamente onde elas vão ser implantadas, sobre que tipo de terreno e meio
ambiente, se em cima de um declive rochoso ou sobre um pântano. Em toda boa
escola de arquitetura nos ensinam que, primeiramente, estudamos o terreno, para
em seguida escolhermos o material e a técnica construtiva. Atuando sem esses
pressupostos teremos sempre atores-mímicos sem elasticidade mental, robôs
esvaziados, privados de uma autêntica sensibilidade e, muito pior, sem
personalidade. Todos pequenos descendentes do mestre (FO, 2011: 275).
Assim como nas outras artes, o impulso criador do ator precisa se materializar,
encontrar uma forma, no sentido aristotélico, para existir. No caso do teatro, ele se
materializa e se mostra pela conduta e comportamento do ator. O que o público vê enquanto
concretude é, sim, o seu corpo; mas quem está diante do espectador não é só um corpo: é o
ator por completo, com corpo, imaginação, memória, memória corporal, voz, intuição,
emoção, alma, etc. Além disso,
14
Ator e mímico. Foi aluno de Decroux e fundou sua própria escola – L‟École Internationale de Théâtre
Jacques Lecoq – em Paris. Atualmente é uma referência mundial, principalmente nos estudos sobre teatro
físico.
15
Referente à pantomima completamente desprovida de ação verbal.
22
Uma vez que a atuação (como todas as artes espetaculares) só existe enquanto
está sendo realizada diante de um público, a sua materialidade não se limita às
ações corporais – ela inclui a própria pessoa do ator. O que o espectador vê não é
apenas a persona agindo. Ele vê o ator “jogando” (realizando) essa ação dentro do
contexto poético. E vê ainda a relação pessoal que o ator estabelece com a poética
e com o conteúdo da obra, vê o sentido que ela faz para ele. A arte da
representação é reveladora. Todo ação realizada em cena nos fala não apenas dela
mesma; ela também nos fala do homem que realiza essa ação. O ofício do ator é,
como dizia Dostoievski do seu ofício de escritor, “mostrar o homem no homem”.
Através da ação (MALLET, 2004: s/n).
Independente da estética ou linguagem escolhidas, a arte de ator sempre se
baseará na tensão existente entre técnica (artifício) e vida; entre repetição e espontaneidade;
entre a formalização de determinados códigos e a execução destes de forma viva, como se
toda vez em que são representados fosse a primeira vez.
Desse modo, o ator é aquele que caminha, por toda a vida, na linha tênue entre
o caos da expressão de uma subjetividade profunda, porém não formalizada, e a técnica
puramente mecânica e, portanto, desprovida de vida. Tanto a emoção pura quanto a técnica
pura não comunicam, não são passíveis de serem partilhadas e decodificadas pelo
espectador.
Essa é a grande sina do ator: a busca pelo equilíbrio entre uma vida interior e
uma exterior – busca muito mais enraizada na cultura oriental do que na nossa, diga-se de
passagem. Citando Barba, “a experiência da unidade entre dimensão interior e dimensão
física ou mecânica [...] não constitui um ponto de partida: constitui o ponto de chegada do
trabalho do ator” (BARBA apud BURNIER, 2001: 10).
Para trilhar este caminho o ator pode, então, escolher dois pontos de partida: ele
pode partir da dimensão interior para a dimensão física ou fazer o caminho contrário,
partindo da dimensão física em busca da dimensão interior. Este segundo caminho é o que
eu escolhi para o árduo labor de elaboração da minha arte de ator, pois, ao longo das
minhas experiências, percebi que este é o canal pelo qual sou mais facilmente ativada para
um estado criativo. E esse é um dos motivos pelo qual eu escolhi o circo, ou o circo me
escolheu. Mas isso é assunto para daqui a pouco.
Yoshi Oida – ator japonês que por muitos anos trabalhou com o encenador
inglês Peter Brook e, portanto, viveu na própria pele as contradições entre o mundo
23
Oriental e Ocidental, formulando sobre elas importantes reflexões para o trabalho de
qualquer ator – afirma:
Como atores, normalmente começamos a trabalhar a partir da mente ou das
emoções, achando que essa disposição interior virá à tona através do corpo. No
entanto, o contrário também funciona: começando de fora em direção ao interior.
(...) Normalmente é muito difícil mudar nosso estado emocional só pela força da
vontade. Mas se mudarmos aquilo que o corpo está fazendo, isso começa a afetar
nossas emoções, facilitando a execução de uma atuação na qual se pode acreditar
(OIDA, 2007: 95).
Neste sentido, a ideia de desenvolver uma técnica através do treinamento
corporal – que geralmente inclui pontos em comum como aquecimento, flexibilidade,
aumento de força e potência energética, etc. – não deve ser vista como uma mera
preparação física para atuar. Não se trata apenas do ator ganhar fôlego ou tônus muscular...
Trata-se de capacitar o ator a compreender mais profundamente um processo fundamental,
no qual através do corpo, aprende-se algo que vai além do próprio corpo. Neste sentido,
Yoshi Oida aponta para o fato de que:
Realmente não importa o estilo ou a técnica que estamos estudando. Na verdade,
podemos praticar diferentes disciplinas tais como aikidô, judô, balé ou mímica e
obter o mesmo benefício. Isso porque estaremos aprendendo alguma coisa que
vai além da técnica. Quando estudamos com nosso mestre, as habilidades fazem
apenas parte da linguagem, mas não são o objetivo. Já que se está aprendendo
alguma coisa que ultrapassa a técnica, aquilo que se está praticando é menos
importante (Idem: 158).
Por isso, apesar do teatro Ocidental, em geral, não possuir uma técnica tão
codificada e sistematizada como a do teatro Oriental, o ator pode tomar de empréstimo
elementos de outras técnicas, como, por exemplo, de uma prática esportiva ou de outra área
da arte, para compor a sua própria técnica. Se ele fizer balé ou natação, boxe ou sapateado
estará desenvolvendo as suas potencialidades e habilidades corporais, porém sob diferentes
formatos e códigos.
Dentre essas atividades, uma das mais recorrentes entre os treinamentos dos
atores atualmente é, sem dúvida, a arte circense, principalmente a relacionada às acrobacias
de solo e aéreas. Os benefícios que essas práticas podem gerar à técnica pessoal do ator
24
serão descritas detalhadamente no próximo capítulo, ao dissertar acerca do Pavilhão
Arethuzza.
Por ora, podemos pensar que a arte é uma segunda natureza, é uma natureza
adquirida. Atuar, neste sentido, é como jogar vôlei, por exemplo. Depois que você aprende
a fazer uma manchete, você não precisa mais pensar na manchete enquanto a faz. Ou: o
pensamento do ator é como o de atravessar a rua. Você pensa em atravessar, mas sem parar
para calcular a distância e a velocidade que o carro vem; você pensa enquanto já atravessa:
você pensa em ação16. E esse pensamento não se traduz por completo em palavras...
O que se pode fazer, entretanto, é uma analogia para se perceber esse
pensamento. Comumente professores e diretores de teatro – principalmente advindos de
uma formação acadêmica ou deste teatro tido como oficial – dizem a seus alunos/atores
quando estes estão em algum exercício ou improvisação: “Se joga! Vai com tudo! Não
pensa!”. Trata-se de uma metáfora facilmente confundida com uma indicação assertiva;
trata-se de uma tentativa de ampliar a percepção do ator para o que de fato está acontecendo
em cena, evitando racionalizações que o desviam da ação cênica.
Porém, o ator facilmente confunde essa “não racionalização” com “separar
corpo e mente”. Mas “ir com tudo” significa ir com seu corpo, sua inteligência, seu
psiquismo, sua emoção do dia... Ou seja, com você todo! “Não pensa!” na verdade significa
“não racionalize; não teorize em cima”, mas é claro que o ator pensa.
Só que é o
pensamento do “atravessar a rua”: ele pensa em ação.
E tudo isso para quê? O que quer um ator, em última instância? A resposta mais
sincera e poética que encontrei até hoje para esta questão, tão fundamental, também é de
autoria de Yoshi Oida e é encontrada em seu livro “O ator invisível”, um dos primeiros
livros sobre teatro que li na graduação em Artes Cênicas... E na vida:
Interpretar, para mim, não é algo que está ligado a me exibir ou exibir minha
técnica. Em vez disso, é revelar, através da atuação, “algo mais”, alguma coisa
que o público não encontra na vida cotidiana. O ator não demonstra isso. Não é
visivelmente físico, mas através do comprometimento da imaginação do
espectador, “algo mais” irá surgiu na sua mente. (...) No teatro kabuqui, há um
gesto que indica “olhar para a lua”, quando o ator aponta o dedo indicador para o
16
Esta expressão era comumente usada por meus professores do curso de Artes Cênicas.
25
céu. Certa vez, um ator, que era muito talentoso, interpretou tal gesto com graça e
elegância. O público pensou: “Oh, ele fez um belo movimento!”. Apreciaram a
beleza de sua interpretação e a exibição de seu virtuosismo técnico. Um outro
ator fez o mesmo gesto; apontou para a lua. O público não percebeu se ele tinha
ou não realizado um movimento elegante; simplesmente viu a lua. Eu prefiro este
tipo de ator: o que mostra a lua ao público. (...) Havia um famoso ator de
kabuqui, que morreu há 50 anos, que dizia: “ Posso ensinar-lhe o padrão gestual
que indica olhar para a lua. Posso ensinar-lhe como fazer o movimento da ponta
do dedo que mostra a lua no céu. Mas da ponta do seu dedo até a lua, a
responsabilidade é inteira sua” (Idem: 21 e 174).
Na minha época de graduação essa “historinha da lua” soava quase como uma
piada entre os alunos, pois já havia se tornado um clichê em nosso meio. Porém, como
gosto de piadas e de clichês, esta história me marcou de tal forma que estou sempre a me
perguntar: “quando estou em cena, estou mostrando a lua para a plateia ou estou querendo
apenas mostrar como aponto meu dedo para ela?”.
A meu ver, esta é a questão fundamental que o ator deve se fazer sempre. Isso
porque não “importa” realmente qual a técnica que o ator escolhe e desenvolve, porque no
momento da representação ela não deve ser o mais importante; aliás, o ideal é que ela se
dilua a ponto de parecer inexistente – será que vem daí a confusão de que o trabalho do ator
não exige técnica?
O ator colocado diante do público é como o violinista virtuoso que não olha mais
para os próprios dedos e muito menos controla o arco enquanto toca. Ele tem a
percepção das notas emitidas e escuta o retorno, o andamento: vocês jamais irão
ver um grande mestre de violino ou de piano olhando as cordas ou o teclado,
espiando o instrumento; o instrumento já é uma extensão de si mesmo. (FO,
2011: 130).
A ação simbólica de “mostrar a lua”, ou seja, o contato real, baseado numa
revelação do ser humano ator para o ser humano espectador, pode acontecer independente
da técnica de interpretação empreendida pelo ator, bem como da estética e da linguagem
escolhidas para a materialização de seu impulso criativo. Estas escolhas estão ligadas,
impreterivelmente, a gostos pessoais – mas não um “gostar por gostar”, e sim gostar porque
aquilo realmente lhe toca profundamente e lhe faz agir. Peter Brook afirmou:
A observação que tenho feito ao ver diferentes estilos teatrais em diferentes
partes do mundo sempre me leva à mesma conclusão: só se pensa em estilo
26
quando se assistem alunos ou medíocres professores. No instante em que se
transcende esse nível, mesmo se a forma for aparentemente artificial, o que se vê
realmente é a natureza humana. É absolutamente extraordinário (BROOK, 1994:
243).
Explico – ou tento explicar –, agora, como todas essas questões suscitadas
anteriormente acerca da arte de ator vem se apresentando para mim, esta atriz-inicianteaspirante-a-pesquisadora.
Começo afirmando que esse momento de “mostrar a lua” é o ponto final de
uma longa jornada, traçada dia após dia, em busca da concretização de minha técnica
pessoal. E na busca determinada e incansável por esta técnica encontrei no circo
manifestações artísticas extremamente potentes, que me arrebatam por completo e me
suscitam o desejo de agir.
Não sei dizer se escolhi o circo ou se ele me escolheu. Só sei que ele me toca a
alma. Desde criança. A lona, o cheiro da pipoca, a serragem, o trapezista, o palhaço me
encantam e me despertam sensações que não conseguiria por em palavras por –
infelizmente – não ser poeta.
Eu encontrei no circo – e mais especificamente no palhaço de circo e nas
representações teatrais no circo – elementos que me conectam comigo mesma e que vão ao
encontro dos meus anseios e desejos do campo do “por que eu faço teatro?”. Porém falar
em “o palhaço de circo” e “as representações teatrais no circo” soa como algo muito
genérico, quase como uma abstração.
Concretamente falando, o caminho que venho traçando é o de aprender os
ensinamentos de determinados mestres acerca destes universos. E a escolha destes mestres
não se deu de forma aleatória... No Japão há um ditado que diz que é melhor gastar três
anos procurando por um bom professor do que gastar o mesmo tempo com um mau
professor...
O palhaço de circo chegou a mim através, principalmente, de dois grandes
mestres. Um deles é o professor Luiz Monteiro, a quem devo toda a minha admiração e
gratidão. Eu e os outros membros da Academia de Palhaços – primeiro grupo teatral do
qual fiz parte, já na faculdade – tivemos a oportunidade de ter aulas de Técnicas Circenses
27
com Monteiro no próprio curso de Artes Cênicas da Unicamp e também de desenvolver um
trabalho extracurricular acerca especificamente do palhaço de picadeiro.
O meu outro grande mestre, o professor Mario Bolognesi, surgiu em minha
trajetória de maneira indireta, sendo, na verdade, o porta-voz de tantos outros mestres
espalhados pelos circos Brasil a fora. Através de seu livro Palhaços, Bolognesi (2003)
permitiu que eu e toda uma geração de novos artistas entrássemos em contato com um
repertório de entradas clássicas antes transmitidas somente pela oralidade no meio circense.
Ao professor Mario Bolognesi também devo minha eterna gratidão.
Já o circo-teatro me veio através das duas famílias que procurei conhecer ainda
mais profundamente através dessa dissertação de Mestrado: a família Viana-Santoro-Neves,
principalmente pela figura do queridíssimo e competente Fernando Neves, e a família
Tubinho, pelo talentosíssimo Zeca, o palhaço Tubinho, e todo o seu elenco, sempre
extremamente generoso e acolhedor.
Assim como Grotowski acredito que para o ato teatral se realizar não é
necessário nada além do ator e do espectador. Porém, me agrada a ideia do “teatro teatral”,
que desenvolve e amplia o imaginário do espectador – tão acostumado, hoje em dia, à
estética naturalista das telenovelas. Agrada-me a ideia de um teatro estilizado, claramente
teatral no sentido de não tentar ser como uma fatia da vida real. Alfred Hitchcock
costumava falar que seus filmes não são fatias da vida... São fatias de bolo. Então, agradame esta ideia de que o teatro deve ser uma fatia de bolo na vida das pessoas.
E no circo-teatro encontrei um bolo vistoso e saboroso, capaz de agradar os
mais diversos paladares. Antes de mim, diversos outros artistas já haviam experimentado e
se deliciado com este bolo, como, por exemplo, Carlos Alberto Soffredini e o Grupo de
Teatro Mambembe, que na década de 1970 fizeram uma intensa pesquisa nos circos-teatro
da periferia de São Paulo.
No trecho abaixo, Soffredini sintetiza o que o Mambembe foi buscar no circoteatro e que muito se assemelha a minha procura:
(...) o que nós estamos perseguindo é um Teatro teatral. É um Teatro que conta
histórias, um Teatro envolvente, gostoso, um Teatro do “como será que eles
fizeram?” Um Teatro do bonito. Enfim, pra largar mão de querer ser original, o
28
tão cantado Teatro da magia teatral (?). É de mentira mas é como se fosse de
verdade. É de papelão mas é pedra. É irreal mas a gente acredita. A gente
acredita. (...) Nós achamos que Teatro é a hora de encher os olhos. É a hora de
aprender sim, mas pelo amor de Deus não um ensinamento de cima para baixo,
sectário, de uma verdade previamente selecionada, porque então a gente vai na
escola. É a hora de aprender através do bonito, da emoção... do artístico - deixa
eu dizer assim? É a hora de penetrar na vida dos outros, daqueles personagens
incríveis, incomuns, enormes dos quais a gente já ouve falar faz tempo. É a hora
de olhar para a intimidade dos reis. É a hora de ficar frente a frente com os
eternos grandes medos do homem e que provocam nele o arrepio de atração do
abismo: o incesto, o matricídio, o canibalismo, a traição, a paixão cega, a morte...
e outros. É a hora de se ver no espelhado sim, mas não num espelho comum, que
esse a gente tem no guarda-roupa, mas num daqueles espelhos que fazem a gente
rir se vendo de uma forma inesperada. É a hora de rir (SOFFREDINI,1980: s/n).
No circo-teatro encontramos linguagens e estéticas tão variadas e recheadas de
particularidades que se torna difícil falar em “a estética e a linguagem do circo-teatro”.
Mas, ao mesmo tempo, todas essas estéticas e linguagens têm em comum o fato de
reportarem a um tipo de teatro feito direta e exclusivamente para a plateia, e não para a
classe ou para a crítica, e que fundamentalmente conta histórias – características essas que
vão ao encontro dos meus anseios artísticos e na contramão de uma parte significativa das
tendências teatrais contemporâneas de fragmentação das histórias, das ações e até do ser
humano.
Acredito que, mesmo sem saber, todo ator circense partilha da ideia de
Grotowski de que teatro é o que acontece entre ator e espectador, pois um espetáculo de
circo-teatro nunca perde o público de vista17. E esta relação de cumplicidade estabelecida
com a população da cidade em que o circo se estabelece é tão fundamental para o fazer
circense que será tratada especialmente mais adiante nessa dissertação.
Com relação ao fato de contar histórias, a narrativa, a meu ver, ocupa um lugar
essencial na vida humana. Walter Benjamin (1986), em seu aclamado O Narrador, afirma
que a figura do narrador está desaparecendo na história da civilização, pois a sociedade
vem se organizando sob um formato que nos priva de narrar experiências, nos deixando
pobres e vazios da arte de contar histórias.
17
Com isso não quero dizer que apenas os espetáculos de circo-teatro travam essa relação realmente viva com
a plateia.
29
Narrar tem a ver com um sentimento de pertencimento. Meu professor Roberto
Mallet costuma dizer que “não há nada que você saiba melhor do que as coisas que você
fez”. O verdadeiro narrador é aquele que fala sobre experiências e não informações.
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se
passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas,
porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se
passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto
célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo.
Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. Em
primeiro lugar pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E
mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da
experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na
informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituirmos
como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que
cancelar nossas possibilidades de experiência (BONDÍA, 2002: 21).
A narrativa “não está interessada em transmitir o „puro em si‟ da coisa narrada
como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele.” (BENJAMIN, 1986: 205).
Esta é uma questão de fundamental importância, pois no circo “tradicional”
itinerante de lona a ação de contar uma história está na base não só do modo de
conformação do trabalho artístico, mas também no modo como estes artistas levam a vida.
Todo circense – assim como tantas outras pessoas que advêm de uma tradição
essencialmente oral ou não – gosta de contar histórias. Casos que se passaram com seus
avós, com seus pais, com eles mesmos, com seus filhos, etc. Como o processo de
formação/socialização/aprendizagem
no circo “tradicional”
itinerante
de lona
é
fundamentalmente oral, o hábito de narrar é parte constituinte de suas vidas.
Nestes dois anos e meio de pesquisa, quantas e quantas histórias eu pude
conhecer, imaginar e, de certo modo, vivenciar através das narrações de Fernando Neves,
Santoro Junior, Zeca e todos de seu elenco!
No início da pesquisa de campo no Circo de Teatro Tubinho tive muito receio
de estar atrapalhando a rotina de afazeres – e a vida – dos artistas. No começo, quando eu
cruzava com eles pelo terreno tentava ser breve, trocar meia dúzia de palavras e seguir meu
caminho, sem incomodá-los. Mas o que era pra ser uma conversa rápida se estendia porque
todos sempre tinham algum “causo” pra me contar. Fui percebendo, então, que eles
30
gostavam de me narrar histórias e que havia um grande prazer envolvido nessas narrações,
que saía de quem narrava, chegava a mim e era capaz de nos unir numa atmosfera que nos
transportava para outro lugar...
Foi então que entendi que ouvir essas histórias seria tão ou mais fundamental
para a pesquisa – e para minha vida! –, do que analisar tecnicamente as representações
teatrais. Ou melhor: esses “causos” também fazem parte da técnica, da arte desenvolvida
por eles.
Por isso, ao longo desta dissertação darei voz a estes artistas para que alguns
destes “causos” sejam narrados. A princípio, pode parecer que estarei me distanciando do
foco principal desta pesquisa, mas, na verdade, estes “causos” devem ser vistos como parte
fundamental do modo de vida do artista circense “tradicional”, que tem suas vidas pessoais
e profissionais intersectadas, e diria que até unificadas.
Falando agora especificamente sobre a arte de ator do artista circense destaco,
primeiramente, que a questão do “para que serve a sua técnica?” é prontamente respondida
no circo-teatro com a máxima de que “comédia é pra rir e drama é pra chorar” 18. Além
disso, no circo as dimensões técnica e moral/social são indissociáveis e o espetáculo é
apenas um dos elementos constituintes de uma profunda relação política estabelecida entre
o circo e a população das cidades por onde passa.
Os circos de lona e pavilhões, entre eles o Pavilhão Arethuzza e o Circo de
Teatro Tubinho, foram e são responsáveis, em nosso país, por levar a arte circense e teatral
a localidades não atingidas pelas companhias convencionais, oferecendo a estas populações
– praticamente excluídas do acesso a bens culturais – a oportunidade de vivenciar e
experenciar a magia e o poder de transformação existente na Arte.
Segundo Erminia Silva,
(...) não se pode estudar a história do teatro, da música, da indústria do disco, do
cinema e das festas populares no Brasil sem considerar que o circo foi um dos
importantes veículos de produção, divulgação e difusão dos mais variados
empreendimentos culturais. Os circenses atuavam num campo ousado de
originalidade e experimentação. Divulgavam e mesclavam os vários ritmos
18
Mesmo no caso do melodrama, entendido como um gênero teatral que comporta, num mesmo espetáculo,
momentos cômicos e dramáticos, no circo-teatro as cenas cômicas sempre visarão o riso e as cenas dramáticas
a emoção.
31
musicais e os textos teatrais, estabelecendo um trânsito cultural contínuo das
capitais para o interior e vice-versa. É possível até mesmo afirmar que o
espetáculo circense era a forma de expressão artística que maior público
mobilizava durante todo o século XIX até meados do XX (SILVA, 2007: 20).
Em nosso país, muitas pessoas assistiram a uma peça de teatro pela primeira
vez num circo. E mais: muitas delas tiveram a sua única experiência teatral num circo.
Além disso, outras tantas foram despertadas e chamadas para o ofício artístico, como por
exemplo, os grandes Ariano Suassuna, um dos maiores dramaturgos brasileiros, e Luiz
Carlos Vasconcelos, o maravilhoso palhaço Xuxu. Este último, criado em Umbuzeiro, no
estado da Paraíba, narrou em entrevista a Erminia Silva como se deu a sua primeira
experiência teatral num circo:
Eu, tão pequeno, fui ao circo levando uma cadeira de casa, acho que nem tinha
sete anos ainda, e conheci circo e palhaço, teatro e ator, numa noite só. Isso
mudou meus jogos de infância, minha maneira de brincar. A primeira parte era de
variedades, na segunda, foi apresentado A louca do jardim. Meu primeiro contato
com o teatro e a dramaturgia foi através desse melodrama. E, na minha
infantilidade, percebi que o ator que fazia o personagem trágico, principal, da
louca do jardim, era o palhaço da primeira parte que, mesmo pintado, sendo um
palhaço genial me fez rir muito, eu reconheci. Então, olha só, fui apresentado a
uma criatura que foi palhaço na primeira parte, voltou como ator dramático na
segunda, e reconheci a criatura que transitava entre esses dois universos
(VASCONCELOS, 2008: 66).
Por décadas o circo-teatro foi excluído da história do teatro brasileiro,
ignorando-se seu papel fundamental na consolidação da arte cênica em nosso país. É fato
que o circo chegou, já no século passado, a municípios brasileiros em que o teatro oficial
não chegou até hoje. Os circenses abriam caminhos para a divulgação da arte cênica e
também abriam caminhos, literalmente, pelo interior do país, atravessando e cortando matas
com facão, dormindo ao relento nas carrocerias dos caminhões e se colocando em risco ao
atravessar áreas dominadas por tribos indígenas que penduravam corpos de seringueiros
mortos nas árvores como estratégia de intimidação (PIMENTA, 2005).
Desse modo,
Milhares de cidades e vilarejos eram visitados pelas companhias de circo-teatro e,
para muitos deles, esse era o único contato com o fantasioso universo da
representação. Mais do que o mérito de ir até o povo, o circo-teatro tinha o poder
32
de atraí-lo. O conforto e a proteção da mágica lona eram a versão popular das
grandes casas de espetáculos. Até hoje encontramos, mesmo nas grandes cidades,
pessoas simples cuja única experiência teatral se deu em um circo-teatro. Pessoas
que acreditam que o circo é um lugar a que têm realmente direito de acesso, onde
não importa a roupa que vistam ou o que calcem, tudo se iguala na poeira de
serragem (PIMENTA, 2005: 119 e 120).
Infelizmente, na atualidade, a dificuldade de acesso aos bens culturais em nosso
país – principalmente por parte das camadas menos favorecidas da população – não difere
muito da realidade encontrada no início do século passado. De tal modo que eu mesma, em
2014, vivi um acontecimento extremamente marcante ao me apresentar para um grupo de
senhores e senhoras de um projeto de Educação de Jovens e Adultos da cidade de
Campinas. Ao fim do espetáculo, uma senhorinha de uns sessenta e poucos anos veio até
mim e, depois de um forte abraço, me disse: “Eu adorei. Eu nunca tinha visto um teatro na
minha vida. E nunca pensei que ia ver!”.
Então eu penso: se o teatro não chega a uma parcela significativa da população
de uma cidade como Campinas, que possui, inclusive, um importante polo cultural no
distrito de Barão Geraldo, o que dizer, então, de uma pequena cidade do interior do estado
(para não ir tão longe)?
Dessa forma, o circo-teatro – mesmo em menor escala – continua atuando como
um importante difusor cultural, se configurando como o máximo de movimento teatral para
muitos municípios do país ainda não alcançados pelas companhias de teatro, radicadas,
principalmente, nas grandes cidades e assistidas, majoritariamente, pelas próprias pessoas
“da classe” ou com algum nível financeiro mais elevado.
Com relação às questões da técnica de representação desenvolvida no circoteatro, tenho para mim este como uma escola. Assim como aprendi na graduação em Artes
Cênicas na Unicamp alguns modos de se operacionalizar, aprendo, com as representações
teatrais circenses, outra maneira como o fazer teatral pode se manifestar.
Aprendi com o circo-teatro que uma técnica pode ser construída e lapidada não
só através do treinamento incessante em sala de ensaio e dos ensaios propriamente ditos. O
circo-teatro é um exemplo de fazer teatral em que a técnica é adquirida através de muita
observação e no próprio fazer, no próprio momento de se apresentar para o público todas as
noites.
33
Todo ator sente a necessidade de se apresentar ao público e percebe como
somente neste momento o fenômeno teatral realmente se completa; todo ator também
percebe que alguns aprendizados advêm apenas deste exato momento de contato com os
espectadores. Não é difícil imaginarmos, então, que nos circos-teatro itinerantes de lona, o
aprendizado que provém diretamente do instante de se apresentar ao público ocorre
constantemente, a cada sessão, noite após noite.
A vida no circo me parece mais hiperbólica, fazendo com que o artista viva sua
profissão vinte e quatro horas por dia e se encontre num constante estado criativo. Mas é
claro que com isso não quero dizer que é só vivendo num circo que esse intenso mergulho
pode acontecer e nem que todos que moram num circo vivem assim a “cem por cento”.
Percebi com o tempo, também, no meu próprio fazer, que o caminho técnico
que percorro com maior fluidez e vida é aquele que parte da dimensão exterior para a
dimensão interior. Este caminho eu pude percorrer e trabalhar tanto nas atividades
curriculares ligadas à graduação em Artes Cênicas, quanto nas atividades extracurriculares
relacionadas à minha pesquisa acerca do palhaço de picadeiro e do circo-teatro.
Comecei a vislumbrar esse caminho primeiramente com a construção da minha
palhaça, a Begônia. Esta surgiu, sob os ensinamentos do professor Luiz Monteiro, a partir
da investigação da maquiagem, do figurino, da busca de um andar e de uma voz diferentes.
Não fiz o “tão na moda” mergulho interior em busca do meu clown, do meu ridículo e das
minhas falhas – técnicas ligadas ao chamado “clown teatral”.
Partindo de elementos de composição física e de esquemas dramatúrgicos préestruturados – as entradas clássicas de circo – fui desenvolvendo um trabalho que partiu de
“um palhaço universal para uma palhaça única”; que partiu do reconhecimento do ridículo
encontrado no trabalho dos mestres da palhaçaria circense e entendendo como esse ridículo
também reside em mim; do entendimento da lógica dramatúrgica e onde está a graça de
uma entrada clássica para a posterior reprodução, de modo necessariamente vivo, desta.
Acredito assim, que a construção da Begônia se assemelha muito mais a construção de um
palhaço de circo do que a de um “clown teatral”.
Posso dizer que a minha formação acadêmica privilegiou um fazer teatral
calcado mais no método das ações físicas stanislavskiano e nas reflexões que derivam
34
deste, às vezes reafirmando-o e às vezes contestando-o. Quando conheci o circo-teatro
outro universo se abriu a minha frente e, à primeira vista, tudo me parecia completamente
oposto e discrepante do que vinha aprendendo na universidade. Hoje, após alguns anos de
decantação das experiências e de muita reflexão, começo a perceber que não há apenas total
oposição entre essas duas escolas... Começo a perceber que elas se ligam em alguns pontos
e que a compreensão disso pode alavancar a busca de minha técnica pessoal.
Independente do caminho escolhido para ser traçado, a busca de qualquer ator
está em desencadear um processo verdadeiramente vivo e que este seja perceptível a quem
está lhe assistindo. Ao estudar o circo-teatro busco compreender a forma como esse
processo se operacionaliza neste tipo de teatro. E, portanto, tenho que levar em conta que
ele está inserido num determinado contexto, o que não me permite uma transposição direta
da técnica desenvolvida por estes artistas na tentativa de criar um “método do ator de circoteatro” ou para ser mais audaciosa ainda “um método do ator popular”.
O que posso fazer – e esta dissertação faz parte desta tentativa – é aprender, por
analogia, alguns elementos da arte de ator desses artistas. Transpondo uma ideia suscitada
por Burnier (2001), é como se o artista circense tivesse a vida que alimenta esta técnica e eu
buscasse esta técnica para alimentar a minha vida.
E é acerca desta técnica envolvida nas diversas configurações da teatralidade
circense que começo a discorrer com mais detalhes a partir de então.
1.2 A origem do espetáculo circense “moderno” 19
A teatralidade é parte constituinte do espetáculo circense “moderno” desde sua
origem, no final do século XVIII. Este novo modelo de espetáculo, aliado a um novo modo
de organização do trabalho, configurou-se a partir da união, executada por Philip Astley
(1742-1814), entre as exibições com cavalos e as atividades artísticas desenvolvidas por
artistas mambembes que se apresentavam há centenas de anos nas feiras e ruas.
19
Para maiores detalhes acerca da constituição do espetáculo circense “moderno” consultar Bolognesi (2003)
e Silva (2007).
35
Porém, antes de continuar a dissertar acerca das origens do empreendimento de
Astley, devo esclarecer o que considero por teatralidade.
No senso comum, o termo teatralidade geralmente é usado para designar uma
qualidade pertencente a um tipo de linguagem artística considerada mais ostentativa e
artificial (MOSTAÇO, 2007).
Para esta investigação, considero a noção de teatralidade como anterior à noção
de teatro, ainda que o vocábulo tenha sido cunhado somente no século XX, pelos
encenadores russos Nikolai Evreinov e Vsévolod Meyerhold, em oposição ao teatro
literário que estava em voga. Em 1908, Evreinov postula a existência de um instinto teatral
inerente aos animais superiores, que lhes permite a manifestação de capacidades miméticas
e lúdicas. Evreinov afirma que:
(...) o homem possui um instinto inesgotável de vitalidade, sobre o qual nem os
historiadores, nem os psicólogos, nem os estetas jamais disseram a menor palavra
até agora. Refiro-me ao instinto de transfiguração, o instinto de opor as imagens
recebidas de fora, as imagens arbitrariamente criadas de dentro; o instinto de
transmudar as aparências oferecidas pela natureza em algo distinto. Em resumo,
um instinto cuja essência se revela no que eu chamaria de „teatralidade‟. (...) A
teatralidade é pré-estética, ou seja, primitiva e de caráter mais fundamental que
nosso sentido estético (EVREINOV, 1956 apud MOSTAÇO, 2007: 07).
O trecho acima suscita, de certa forma, a impressão de que esta noção de
teatralidade proposta por Evreinov é muito abrangente, pois o homem, através deste instinto
que lhe é inerente, pode ser capaz de encontrar vestígios de teatralidade em todas as coisas,
situações e lugares. Desde estas primeiras investigações de Evreinov até a atualidade, os
estudos a respeito deste assunto foram aprofundados e, atualmente, uma das principais
pesquisadoras da temática é Josette Féral, professora da Université Paris 3 Sorbonne
Nouvelle, na França. Féral – diferentemente de Evreinov – afirma que a teatralidade
não é uma qualidade que pertence a um objeto, a um corpo, um espaço ou um
sujeito. Não é uma propriedade preexistente nas coisas, não está à espera de ser
descoberta e não tem uma existência autônoma 20 (FÉRAL, 2003: 44).
20
Tradução própria.
36
Para a autora, a teatralidade é o resultado de uma vontade definida de
transformar situações e retomá-las fora de seu entorno cotidiano, fazendo com que estas
passem a significar algo diferente do usual (FÉRAL, 2003). Percebemos que, na verdade,
esta é uma ideia semelhante à de Evreinov, quando este afirma que o ser humano possui um
instinto de transmudar as aparências oferecidas pela natureza em algo distinto. Porém a
diferença é que o que Evreinov acredita ser um instinto, Féral considera como uma vontade
definida.
Féral (2003) afirma também que só é possível entender ou captar a teatralidade
como processo, que possui como ponto inicial e final o olhar do espectador, responsável
por sinalizar, identificar e criar um espaço potencial para a realização do fenômeno teatral.
Para este estudo levarei em consideração as afirmações de Evreinov, porém as
colocarei sob a óptica não do instintivo e sim, como defendido por Féral, da afirmação da
atitude humana. Partirei principalmente das ideias de Féral, que considera a teatralidade
como a ressignificação de situações fora de seu entorno cotidiano e como resultante do jogo
com o olhar do espectador.
Dessa forma, todas as atrações pertencentes às artes circenses são dotadas de
teatralidade, pois exibem os artistas em situações não cotidianas, num espetáculo alicerçado
na relação direta e vital criada com o público. Esclarecido, então, o que considero por
teatralidade, dissertarei sobre as diferentes conformidades que a teatralidade circense
assumiu, ao longo dos anos, desde a consolidação do espetáculo circense com Astley até os
chamados circos-teatro no Brasil.
Destaco que, no final do século XVIII, as escolas de equitação e apresentações
equestres eram muito prestigiadas em toda Europa, pois o cavalo era um símbolo do poder
da aristocracia. Montarias, corridas e cavalgadas eram apresentadas e, paralelamente a
estas atrações, tiveram início as demonstrações de acrobacias equestres por parte de exmilitares que não se encontravam mais em situação de combate e que passaram a organizar
espetáculos pagos ao ar livre, em geral nas praças públicas (SILVA, 2007).
Philip Astley, ex-suboficial do exército inglês e, portanto, exímio cavaleiro, é
reconhecido por parte da historiografia como o criador da pista circular – chamada de
picadeiro –, e da espetacularidade própria do circo “moderno”. A data desta criação varia
37
entre 1769 e 1770, porém destaco que Astley teve antecessores. Français Defraine oferecia
em Viena, desde 1755, espetáculos de caça ao javali e ao cervo, combate de animais e
exibição equestre em um anfiteatro ao ar livre e com pista circular. Friso ainda que
inúmeras companhias de exibições equestres em recintos cercados, porém ao ar livre, se
formaram nesse mesmo período, como, por exemplo, a de Price e de Jacob Bates, também
em Londres (SILVA, 2007; BOLOGNESI, 2009).
A novidade implantada por Astley não diz respeito, portanto, ao espaço cênico
do picadeiro ou às exibições equestres. A grande inovação reside no fato de Astley ter
agregado ao espetáculo equestre outros números, através da inclusão de artistas
mambembes que dominavam múltiplas formas de manifestações artísticas.
O circo surgiu, então, como uma nova possibilidade de campo de trabalho,
tanto para muitos soldados e seus cavalos, que se tornaram inúteis com o fim das guerras
napoleônicas, quanto para os artistas mambembes, que estavam assistindo ao progressivo
esvaziamento das feiras, seu principal local de trabalho. Acerca da mudança de perspectiva
de trabalho dos artistas saltimbancos, Bolognesi destaca:
(...) as tradicionais feiras europeias sofreram duros golpes com a chamada
revolução comercial que tomou conta da Europa, no século XVIII. Aos poucos,
as principais cidades trocaram as oficinas artesanais, de produção individualizada,
por um processo padronizado, semimecanizado, para atender a um amplo leque
de clientes. (...) As transformações na esfera produtiva provocaram mudanças
nas práticas culturais populares. As feiras perderam gradativamente sua
importância, tendendo ao desaparecimento. Esse esvaziamento colocou no
desemprego grande número de artistas ambulantes, saltimbancos, saltadores,
acrobatas, etc. (BOLOGNESI, 2003: 38).
Ao unir a exibição de números de destrezas equestres com as variadas
manifestações artísticas dos saltimbancos, que se apresentavam há centenas de anos nas
feiras e ruas, Astley criou não só um novo modo de organização do trabalho artístico, como
também um novo modelo de configuração de espetáculo, como bem detalha a pesquisadora
Erminia Silva:
Com relação ao espetáculo, (...) é que de fato Astley teria sido criador e inovador.
No início, oferecia aos londrinos acrobacias equestres sobre dois ou três cavalos,
e os maneava com sabre. Quando começou a se apresentar no espaço cercado por
tribunas de madeira, não realizava apenas jogos ou corridas a cavalo, como a
38
maioria dos grupos do período. A uma equipe de cavaleiros acrobatas, ao som de
um tambor que marcava o ritmo dos cavalos, associou dançarinos de corda
(funâmbulos), saltadores, acrobatas, malabaristas, hércules e adestradores de
animais (...) Esta associação de artistas ambulantes das feiras e praças públicas
aos grupos equestres de origem militar é considerada a base do “circo moderno”
(SILVA, 2007: 35).
Além disso, é importante ressaltar que o espetáculo criado por Astley não
previa apenas a demonstração de habilidades físicas; pressupunha-se um enredo, uma
história com encenação, música e a presença de cavalos, cavaleiros e saltimbancos, que
chegavam também a se apresentar no dorso de cavalos. Pantomimas, mimodramas e
hipodramas compunham o conjunto apresentado no picadeiro21.
Dessa forma,
O circo moderno nasceu com a mística de ser um espetáculo diferente, onde o
público veria o inusitado das feiras, com o requinte e a classe de um espetáculo
de teatro e a organização e a grandiosidade de um desfile militar (CASTRO,
2005: 60).
Figura 1: Anfiteatro de Astley, 1777.
Fonte: BOLOGNESI, 2009: 03.
Figura 2: Anfiteatro de Astley, 1810.
Fonte: SILVA, 2007: 36.
21
Em seu artigo “Philip Astley e o circo moderno: romantismo, guerras e nacionalismo”, Mario Bolognesi
descreve, em detalhes, duas dessas representações do circo de Astley: Mazeppa, inspirado em uma poesia de
Lord Byron e Batalha do Alma, de natureza histórica.
39
Desde sua origem “moderna”, o circo mantém uma característica viva: a
capacidade de aproveitamento, absorção e reorganização de múltiplas formas artísticas –
dentre elas, o teatro. Dessa forma, num movimento de mútua troca, o teatro londrino, que
muito influenciava o recém-criado espetáculo de Astley, também foi influenciado por este:
O programa consagrado por Astley era composto, primeiramente, por um
hipodrama. Em seguida, sob o título de Cenas no circo, encenava-se um misto de
ato teatral com ginastas, contorcionistas, clowns etc., e exibições equestres. Eram
burletas e pantomimas com marcado acompanhamento de uma orquestra. O
sucesso de tal forma de espetáculo contaminou os teatros e os já citados palcos
londrinos também adotaram esse programa (BOLOGNESI, 2003:188).
Destaco ainda que inicialmente os edifícios construídos por Astley e seus
sucessores eram chamados de anfiteatros – o que nos permite novamente associar o
nascente espetáculo circense à manifestação teatral. Somente em 1780, o cavaleiro Hughes,
que havia feito parte da primeira trupe de Astley, montou a sua própria companhia e a esta
deu o nome de Royal Circus; “pela primeira vez esse modelo de espetáculo produzido em
tal espaço aparecia com o nome de „circo‟” (SILVA, 2007: 36). A partir de então, diversas
companhias que já apresentavam espetáculos semelhantes passam a incorporar o termo
“circo” em seus nomes e durante o século XIX houve a proliferação do espetáculo circense
por toda a Europa, ao mesmo tempo em que algumas companhias já se aventuravam em
outros continentes, principalmente a América.
Em seu livro O Elogio da Bobagem, Alice Viveiros de Castro (2005) apresenta
um trecho de A Loja de Antiguidades, de Charles Dickens, no qual há uma descrição dos
vários elementos que compunham a teatralidade no circo de Astley22:
Mas, nem imaginam que lugar aquele - o teatro de Astley! - com todas aquelas
pinturas, dourados e espelhos; e um vago cheiro de cavalos, sugestivo de outras
maravilhas! E as cortinas escondiam tão grandiosos mistérios, e aquela serradura
tão branca e limpa, lá em baixo, na pista do circo! Entretanto, chegou a
companhia e ocupou os respectivos lugares, enquanto os violinistas, olhando
despreocupadamente para eles, iam afinando os seus instrumentos como se não
quisessem que o espetáculo começasse e o conhecessem antecipadamente! E que
22
O trecho foi retirado de um volume editado pelas Publicações Europa-América Ltda., Portugal, 1988,
tradução de Maria de Fátima Fonseca, pg. 309 (nota de CASTRO).
40
luminosidade aquela que se derramou sobre todos eles, quando uma fiada de
luzes brilhantes se elevou vagarosamente! E foi ver a excitação febril, quando
soou o pequeno sino e a música começou animada, com os tambores a rufar forte
e os ferrinhos a fazerem-se ouvir suavemente! Razão tinha a mãe de Bárbara, ao
dizer à mãe de Kit que a geral é que era o lugar onde se devia ver e ao perguntarse a si mesma se não era muito melhor que os camarotes. E bem podia Bárbara
hesitar entre rir ou chorar no seu deslumbramento e alvoroço. (...) E depois que
maravilha o espetáculo em si mesmo! Os cavalos que o pequeno Jacob acreditou
serem de carne e osso desde o princípio e as senhoras e cavaleiros que ele julgou
serem a fingir e ninguém o conseguiu convencer do contrário, pois nunca tinha
visto ou ouvido nada parecido; o disparo dos tiros (que fez Bárbara fechar os
olhos); a dama abandonada (que a fez chorar); o tirano (que a fez tremer); o
homem que cantava a canção com a criada da senhora e dançava ao som do coro
(o que a fez rir); o pônei que se empinava sobre as patas traseiras ao ver o
assassino, e não queria voltar a andar de quatro patas enquanto ele não fosse
preso; o palhaço que se atrevia a meter-se com o soldado de botas; a dama que
saltou por cima de vinte e nove fitas e caiu ilesa na garupa de um cavalo... tudo,
tudo era maravilhoso, esplêndido e surpreendente! O pequeno Jacob aplaudiu
tanto que as suas mãos ficaram inchadas. Kit gritava “an – kor” (do francês
“encore”, que significa bis, nota da tradutora) no fim de cada coisa até acabar a
peça em três atos (CASTRO, 2005: 56).
O texto de Charles Dickens deixa claro que, como dito anteriormente, o
espetáculo criado por Astley era composto não só pela demonstração de habilidades físicas,
como também por representações teatrais.
O texto também menciona a utilização de música e o rufar de tambores. Astley,
que havia sido suboficial do exército inglês, compreendeu que, para o espetáculo que estava
criando, era essencial que a companhia funcionasse sob uma rígida disciplina, semelhante à
militar. Além disso, introduziu o uso de uniformes, o mencionado rufar de tambores e as
vozes de comando para a execução de números de risco. Astley apresentava e ao mesmo
tempo dirigia o show, “iniciando uma prática marcante, a do mestre de cerimônias,
condutor do espetáculo, chamado entre nós, mestre de pista” (RUIZ, 1987).
O mestre de pista é um personagem fundamental para a estrutura de um
espetáculo de variedades como é o circo tradicional. Muito mais do que um
apresentador, ele é um diretor-em-cena, autoridade máxima no picadeiro, figura
capaz de improvisar e garantir que o espetáculo siga seu curso mesmo diante dos
mais insólitos imprevistos. De início, esse papel era representado pelo próprio
dono do circo e durante muitos anos foi prerrogativa dos adestradores de cavalo.
Como o espetáculo era centrado nas exibições equestres, o mestre de pista usava
um longo chicote, um apito na boca e dirigia os animais em cena (CASTRO,
2005: 60 e 61).
41
O espetáculo tinha como início e fim o desfile de todos os artistas e
(...) durante a exibição de cada número, aqueles que não estavam se apresentando
formavam uma barreira no fundo do picadeiro, em posição de sentido, sempre
prontos a interferir para garantir a segurança dos colegas, dos cavalos e do
público. Essa estrutura permanece por mais de 400 anos nos espetáculos
tradicionais de circo, com o desfile final de todo o elenco e a barreira de
funcionários e artistas em forma e atentos durante os números de maior risco.
(Idem: 53).
Acerca da barreira, Erminia Silva (2009) destaca que esta também é uma
característica derivada da formação militar de Astley e que consistia em “posicionar duas
fileiras de homens – ou mulheres23 – à entrada do picadeiro, cumprindo as funções de
homenagear o artista quando de sua entrada e auxiliá-lo com os aparelhos durante a sua
exibição” (SILVA; ABREU, 2009: 96). Além disso, a barreira servia de indicativo do grau
de organização do circo, sendo formada, portanto, sempre com bastante rigor.
Evidencio, então, que no circo de Astley – e posteriormente em seus sucessores
– o elenco de artistas, além de desempenharem variadas funções nos bastidores, dominava
diversas linguagens artísticas, que produziam um espetáculo que unia teatralidade, destreza
corporal, dança, música, mímica e palavra. (SILVA, 2007).
1.3 As teatralidades circenses
Ao organizar um espetáculo com números hípicos – considerados o “prato de
resistência” da apresentação – e completá-lo com funâmbulos, saltadores e até um palhaço,
Astley estava cimentando o espetáculo circense “moderno” e criando um novo modo de
organização do trabalho artístico (SILVA, 2007).
O tipo de espetáculo recriado por Astley, ao unir em torno de si as famílias de
saltimbancos, grupos dos teatros de feiras, ciganos dançadores de ursos, artistas
herdeiros da commedia dell’arte, unia também o cômico e o dramático; associava
a pantomima e o palhaço com a acrobacia, o equilíbrio, as provas equestres e o
adestramento de animais, em um mesmo espaço. Neste momento, não se criava
apenas um modelo de espetáculo, mas a estrutura de uma organização. O espaço
foi delimitado, cercado e o público pagava para assistir ao espetáculo, que,
23
Comentário da autora, baseado numa passagem posterior do mesmo livro.
42
cuidadosamente planejado, alternava exibições de destreza com cavalos, exibição
de artistas que criavam jogos de equilíbrio, representação de pantomimas
equestres e acrobáticas (SILVA, 2007: 40 e 41).
O espetáculo circense “moderno” é, portanto, uma elaboração artificial – assim
como toda obra de arte –, não cotidiana e, portanto, dotada de teatralidade, que desde sua
origem, como exposto anteriormente, amalgamou diversas manifestações artísticas.
Este amplo leque de manifestações configuraram, principalmente, dois tipos
específicos de teatralidade circense24 – desde sua origem moderna até a consolidação dos,
hoje, chamados “circos tradicionais”: uma, seria a exibição de habilidades e qualidades
físicas – tanto as enaltecedoras quanto as deploráveis – desenvolvidas e pertencentes aos
homens; e a outra o espetáculo de representação, no campo ficcional, das qualidades
psicológicas humanas e que pressupõe uma narrativa contada através de seres ficcionais
(personagens).
Acredito que todas as demais conformações artísticas circenses –
principalmente as mais contemporâneas – são derivações e mesclas destas duas formas.
A junção e organização de todas essas atividades artísticas dotadas de
teatralidade – tanto às não pertencentes ao campo da ficção como, por exemplo, o salto do
acrobata, quanto às pertencentes ao fenômeno teatral, como as pantomimas e
posteriormente o chamado circo-teatro – criaram poéticas e estéticas próprias ao espetáculo
circense. Este espetáculo, ao longo da história, mantém em sua estrutura algo fixo,
contínuo, que o caracteriza como tal, e algo mutável, que acompanha as transformações dos
tempos e lhe permite manter-se sempre contemporâneo e inovador.
As práticas que visam à exaltação de destrezas físicas – como os números
acrobáticos, de equilíbrio, de manipulação de objetos e adestramento de feras – ganharam
destaque no espetáculo circense a partir da segunda metade do século XIX, quando o
cavalo perdeu o posto de atração principal:
Assistiu-se, então, ao triunfo da acrobacia e, com isso, estava aberta a trilha que
possibilitaria a busca do sentido do espetáculo circense na ação corporal. (...) O
24
Além dessas duas conformações de teatralidade também era comum, nos circos “tradicionais” brasileiros, a
execução, na primeira parte do espetáculo, de números de bailados e números musicais, além de exibições de
lutas, sorteios e a presença de convidados especiais, como por exemplo, algum cantor de sucesso do rádio ou
um artista local.
43
circo trouxe às artes cênicas, no século XIX, a reposição do corpo humano como
fator espetacular (BOLOGNESI, 2003: 189 e 190).
Nestas práticas encontra-se a exposição do corpo humano em seus limites
biológico e social. Essas atividades têm em comum o fato de se fundamentarem na relação
do homem com a natureza, havendo a exposição da dominação e a superação humana
(Idem):
O adestramento de feras é a demonstração do controle do homem sobre o mundo
natural, confirmando, assim, sua superioridade sobre as demais espécies animais.
Acrobacias, malabarismos, equilibrismos e ilusionismos diversos deixam
evidente a capacidade humana de superação de seus próprios limites. Mas, ao
apresentar espetacularmente a superação, terminam por confirmar a contingência
natural da existência, expressa na sublimidade do corpo altivo, distante do
cotidiano (Idem: 13 e 14).
Estas atividades são dotadas de teatralidade, pois apresentam características
que fazem parte da natureza humana fora de seu entorno cotidiano, e também pelo fato de
resultarem do jogo com o olhar do espectador. Isto porque, diferentemente das práticas
esportivas, estas atividades tem como maior objetivo a adequação do requinte técnico a
uma série de elementos cênicos que buscam o melhor desempenho performático;
desempenho este que tem, por sua vez, como maior objetivo o fato de suscitar sentimentos
e emoções no público (Idem). Ademais,
As aptidões circenses ganharam um caráter espetacular porque nelas estão
contidos os seguintes elementos: (a) a habilidade propriamente dita, quando o
artista domina a acrobacia, o trapézio, o equilibrismo, os truques de magia e
prestidigitação, o controle sobre feras etc.; (b) a coreografia, que confere às
habilidades individuais ou coletivas um sentido na evolução temporal e espacial;
(c) a música, que contribui para a eficácia rítmica dos elementos anteriores; (d) a
indumentária, que completa visualmente o propósito maior do número; (e) a
narração do Mestre de Pista, que se converteu em ingrediente especial para a
consecução do tempo dramático, enfatizando os momentos de apresentação, o seu
desenvolvimento, o clímax e o consequente desfecho. (...) A conjugação da
habilidade com a coreografia, a música, a indumentária e a narração é o fator
primordial para a eficácia cênica (Idem: 30 e 31).
Complementando a análise anterior de Bolognesi, entendo que a música –
através da melodia, ritmo, harmonia, andamento ou canção – pode também ser responsável
44
pelas funções atribuídas ao Mestre de Pista, sendo responsável pelo desenvolvimento de
climas e atmosferas, bem como pela exaltação do clímax dos números e seus desfechos.
Independente de fazer parte de um espetáculo circense tido como “tradicional”,
“novo” ou “contemporâneo”, os números de exaltação de habilidades físicas são
alicerçados por uma espécie de dramaturgia interna que funciona
(...) por graus sucessivos e se funda sobre o crescendo da proeza. (...) O artista
começa executando uma primeira figura que parece fixar o padrão de seu talento.
Em seguida, ele tenta ir cada vez mais longe em sua façanha e acaba superando,
afastando assim as fronteiras do possível (DAVID-GIBERT, 2006: 96).
Desta forma, os números seguem uma lógica crescente, em que o exercício
mais virtuoso é o último a ser executado. Os artistas, no caso de um espetáculo tido como
“tradicional”, desenvolvem uma conduta expressiva cênica que difere seus corpos e
energias da conduta no cotidiano, porém não chegam a representar personagens inseridas
num contexto ficcional.
Encontramos então, na base destas atividades, uma complexa conformação que
mistura elementos de teatralidade a algo presente completamente do plano da realidade,
que pauta toda a vida e treinamento de um circense e que se configura como uma constante
do circo: o risco, muitas vezes elevado à última potência – o risco da morte:
O espetáculo, assim, se aproxima de um ritual que se repete e que evidencia a
possibilidade concreta do fracasso. A emoção da plateia então oscila entre uma
possível frustração diante do malogro do acrobata e a sugestão de superação de
limites presente a cada número (BOLOGNESI, 2003: 14).
Reconheço, portanto, que existem elementos de teatralidade na manifestação
artística dos números de habilidade. Porém, a meu ver, estes números são dotados de
teatralidade, mas não se configuram como teatro. Isso porque a exibição de destrezas
físicas e o fenômeno teatral são de naturezas distintas e possuem causas finais distintas – o
que não quer dizer que um é superior ao outro, mas apenas que são práticas distintas e que
visam diferentes finalidades.
45
Esta questão será tratada com maior profundidade mais adiante, mas já afirmo,
por ora, que sempre que o foco da ação está na demonstração da técnica e não em algo que
vá além dela, não acontece teatro. Acontece outra coisa, de caráter profundamente cênico,
que também tem seu mérito e encontra espaço na vida do espectador.
Acredito, porém, que é possível a elaboração de uma representação teatral que
utilize recursos técnicos de um número de habilidade, como no exemplo do “pônei que se
empinava sobre as patas traseiras ao ver o assassino, e não queria voltar a andar de quatro
patas enquanto ele não fosse preso”, como bem vimos anteriormente no trecho de A Loja de
Antiguidades, de Charles Dickens.
Contudo, esses recursos – por estarem envoltos no contexto ficcional – passam
a significar algo além da demonstração virtuosística, contribuindo, dessa forma, para a
construção da narrativa e da ação cênica. O que estou dizendo, na verdade, não é nenhuma
novidade: veremos adiante que os circenses utilizam este tipo de recurso desde a
consolidação do circo “moderno”. Isso me leva a crer, portanto, que a teatralização do
espetáculo proposta pelo chamado “circo novo” e, atualmente, o “circo contemporâneo”
nada mais é do que o retorno à potência teatral presente no espetáculo circense “moderno”
em sua origem com Astley25. Dessa forma,
Do ponto de vista histórico, não há razão alguma para se denominar este
movimento como “novo” ou “contemporâneo”. Os termos são imprecisos,
justamente porque, desde seus passos juvenis, o circo sempre dialogou e
incorporou as inovações dramáticas e teatrais (BOLOGNESI, 2006: 13).
Por ser uma atriz interessada em investigar elementos relacionados ao trabalho
do ator não irei, portanto, me debruçar especificamente sobre os números de habilidade.
Contudo, voltarei a falar sobre eles analisando, no capítulo referente ao Pavilhão
Arethuzza, como a preparação corporal proveniente do aprendizado de uma destreza física
pode colaborar com o desenvolvimento técnico do ator.
25
Em seu artigo Circo e teatro: aproximações e conflitos, Bolognesi (2006) reflete mais profundamente
acerca desta questão.
46
Passo agora a refletir sobre o tipo de conformação que a teatralidade circense
pode assumir que está ligada mais diretamente à ideia que temos de teatro, desde sua
origem na Grécia Antiga e que está ligada diretamente a ideia de ficção.
Ficção vem do latim ficctione e é traduzido como “o ato de fingir”. O ator é
aquele que finge ser um “outro”; é, portanto, um hipócrita. Não à toa, no grego hypokrités
corresponde a ator, àquele que finge.
Como visto anteriormente, o circo de Astley e também os de seus sucessores
representavam pantomimas, hipodramas e mimodramas, que considero como teatro por
criarem um plano ficcional, no qual o objetivo final está em algo que ultrapassa a
demonstração técnica.
A respeito dessas manifestações teatrais, primeiramente destaco que, apesar de
possuírem o sufixo “mimo” em seus nomes, elas não eram desprovidas de textos verbais.
Isso porque, ao contrário do que perpassa nosso imaginário coletivo, em muitos momentos
históricos o mimo falou, ou seja, os atores se utilizavam também do verbo, da palavra, da
ação vocal. Na Grécia, por exemplo, o mimo estava presente dentro das comédias e
tragédias e era sempre aliado à musica e à dança. Em Roma, sim, encontramos uma das
suas versões silenciosas – de ações vocais26.
A pantomima muda de ação vocal – também chamada de mímica clássica –,
oriunda das tradições inglesa e francesa, será desenvolvida pelos artistas nas feiras e,
posteriormente nos circos, a partir de 1680.
Muitas foram as limitações impostas aos teatros de feiras, tidos como não
oficiais, mas o grande golpe veio neste ano, quando Luis XIV funda a Commedie
Française, que passa a ser a única companhia autorizada a representar em Paris comédias
em atos e a utilizar ação vocal em cena. A partir daí iniciou-se um intenso embate, que
durou quase dois séculos, em que os teatros das feiras se desenvolveram lutando contra
todas as adversidades. Era preciso criar um espetáculo que driblasse as imposições e
limitações reais e que, ao mesmo tempo, continuasse atraindo e agradando o público, que
pagaria para vê-lo.
26
Em seu artigo “A pantomima e o teatro de feira na formação do espetáculo teatral: o texto espetacular e o
palimpsesto”, Robson Corrêa de Camargo (2006) descreve a evolução da pantomima à pantomima sem fala,
desde a Grécia e Roma Antiga.
47
Desse modo, “como costuma acontecer em todos os tempos com os inúmeros
tipos de censura, as proibições acabam servindo de incentivo à criatividade” (CASTRO,
2005: 40). Os artistas ambulantes desenvolveram, então, uma série de técnicas e recursos
que se tornaram a base deste teatro, de alto teor improvisacional, aglutinador de diversas
culturas e gêneros e pautado, principalmente, nas habilidades e destrezas de seus atores.
O teatro de feira compreendia um empreendimento privado, direcionado a um
público diferente do atingido pelas companhias oficiais e que dependia diretamente do
valor arrecadado através da bilheteria. Por isso, “o sucesso era o primeiro objetivo de seus
espetáculos que não se propunham apenas a sensibilizar o público, mas a conseguir que este
desse moedas em troca dessa sensibilização” (CAMARGO, 2006: 13).
O teatro de feira sempre sofreu a perseguição e censura do rei, da Igreja e até
dos artistas das companhias oficiais. Ao procurar saídas às represálias destes “adversários”,
o teatro das feiras experimentou e criou diversas formas e recursos dramáticos que
acabaram por constituir novos estilos teatrais, possuidores de um também novo repertório
de técnicas de interpretação e modos de se relacionar com a plateia; “repertório jamais
sonhado anteriormente por qualquer gênero teatral” (Idem: 15). A tônica do espetáculo
residia na pluralidade de gêneros e estilos, que eram comumente absorvidos, retrabalhados
e amalgamados.
Esta característica continuará presente no novo modelo de espetáculo, criado
por Astley, que unia as destrezas equestres às exibições destes artistas ambulantes
múltiplos, que desenvolviam, inevitavelmente, uma linguagem artística múltipla,
aglutinadora de gêneros, culturas e formatos.
Desse modo, dentre as inúmeras companhias circenses do século XIX destaco,
a título de exemplificação, a dos irmãos Hanlon-Lees, mestres em desenvolver situações
dramáticas que absorviam as suas habilidades físicas:
(...) Pouco a pouco, os Hanlon-Lees foram descobrindo a sua maneira de fazer
pantomimas. De início, montaram uma série de números cômicos em que
utilizavam toda a sua perícia acrobática e apenas uma pequena cena, no meio do
programa. Começavam com O Dormitório, cena de trapézio, cordas e outros
aparelhos aéreos, em que faziam uma demonstração de como “dormiam os
célebres irmãos Hanlon”: usando hilárias toucas e camisolões dormiam,
roncavam, tinham ataques de sonambulismo e faziam guerras de travesseiro, tudo
48
a muitos metros do chão, equilibrando-se e saltando como se estivessem no
melhor dos sonos. Seguiam- se outras cenas cômicas de equilíbrio, a Sala de
Jantar, em que, comandados pela perícia de malabarista de Agoust, preparavam a
mesa e serviam um jantar, jogando e equilibrando pratos, bandejas, talheres e
diferentes tipos de frutas e legumes. No final apresentavam a pantomima Frater
de Village (O Barbeiro da Aldeia), com direito a cabeças cortadas, muitas
correrias e pancadas para todos os lados (CASTRO, 2005: 80).
Os irmãos Hanlon-Lees, assim como diversos artistas circenses, eram hábeis
inventores. Este talento era colocado sempre a serviço do melhor desenvolvimento cênico
de suas pantomimas e, desse modo, os Hanlon-Lees deram novos usos aos tradicionais
alçapões dos palcos teatrais e patentearam diversas invenções, como um barco cenográfico
que balançava sobre as águas, uma carroça que entrava em cena capotando e se espalhando
em inúmeras partes e um vagão dormitório de um trem aberto para o público e com eixos
girando embaixo, dando a ilusão de que seguia em alta velocidade27.
O desenvolvimento e maior elaboração das pantomimas em sinergia com o
momento histórico vivido pela Europa, principalmente na França, fizeram surgir também
tipos específicos de pantomimas que narravam os feitos heroicos da nação, conhecidos
como hipodramas e mimodramas, representados no circo desde sua consolidação com
Astley e Franconi.
O hipodrama ou drama equestre, assim como o melodrama, encontrou na
França pós-revolucionária um terreno fértil para se desenvolver. Ele surgiu como um
desdobramento das pantomimas, possuía o cavalo como “ator principal” e tinha o intuito de
narrar principalmente as façanhas heroicas desta nova França. A característica fundamental
da presença de um forte militarismo no espetáculo circense também contribuía para a
adequação da representação deste tipo de relato histórico e também de peças fantasiosas
(BOLOGNESI, 2009).
Depois de 1789, especialmente com a Restauração, as investidas napoleônicas e a
consolidação da imagem do Imperador induziram o espetáculo circense a tratar
dos temas históricos. Cavalos, feras amestradas das mais diversas partes do
mundo, números os mais variados, encenados com figurinos alusivos a lugares
27
Em seu “O elogio da bobagem”, Alice Viveiro de Castro (2005) descreve em detalhes a pantomima Uma
viagem à Suíça, montada pela primeira vez pelos irmãos Hanlon-Lees em Paris, em 1878. Nesta descrição
encontramos informações a respeito da esquemática dramaturgia da pantomima e das maquinarias cênicas
utilizadas.
49
conhecidos (quase sempre, conquistados) eram material adequado e mais do que
suficientes para a criação dos hipodramas históricos, espetáculos feéricos e
grandiosos que narravam as proezas do conquistador. O que estava em jogo era a
consolidação de uma ideia de nação e de poder a expandir fronteiras, tanto físicas
como as do imaginário (BOLOGNESI, 2009: 05).
Este tipo de encenação também era comumente chamado de mimodrama.
Podemos considerar o mimodrama como uma variante do hipodrama que empresta para a
sua consolidação alguns elementos também do melodrama. Nestas encenações, em alguns
casos, a ação falada era “interrompida ou suprimida, senão por uma ação mímica
propriamente dita, ao menos por cenas mudas, compostas de combates, desfiles, marchas
guerreiras e equestres” (SILVA, 2007: 41 e 42).
No Brasil, essas representações teatrais – sempre presentes no circo desde sua
origem “moderna” – sofreram transformações e, a partir de um determinado momento,
passaram a se chamar circo-teatro.
Não podemos nos esquecer de que qualquer produção artística é herdeira de
outra anterior. Erminia Silva deu um ótimo exemplo para esta questão em um curso
ministrado no Galpão do Circo em São Paulo, em agosto de 2013: “Picasso não produziria
o que produziu se não tivessem inventado anteriormente a tela, as tintas e o pincel”. O
raciocínio de Erminia, no contexto do curso, induz a pensar então que o circo-teatro
constituiu-se como uma nova forma em um novo momento da sempre existente teatralidade
circense, herdeira da teatralidade dos teatros de feiras medievais e da Renascença, que
também são herdeiros dos ditirambos gregos, herdeiros por sua vez de manifestações
anteriores... E se continuar esta linha, chegarei certamente aos tempos das cavernas.
Portanto, o fenômeno descrito como circo-teatro não deve ser considerado
como uma deturpação, mas sim como uma das transformações da teatralidade circense, que
visaram atender as necessidades e demandas de determinado momento histórico.
1.4 Uma das vertentes da teatralidade circense: o circo-teatro
Até meados do século XIX não há registros de companhias e espetáculos
circenses em terras brasileiras. Porém, sabe-se que entre o fim do século XVIII e início do
50
XIX, diversos artistas saltimbancos europeus chegaram ao país, sendo que a maior parte
“não tinha nenhum tipo de vínculo ou contrato de trabalho e nem exibições em locais
definidos”, apresentando-se, então, “nas ruas, esquinas e praças, exibindo habilidades
físicas e destrezas com animais” (Idem: 53).
Dentre estes artistas, destaca-se na historiografia, o português Manoel Antônio
da Silva que, após ter sido proibido de se apresentar na Casa da Ópera de Porto Alegre,
alugou, em 1828, uma residência particular no Rio de Janeiro para a exibição de um único
número: a dança sobre o dorso de um cavalo a galope (RUIZ, 1987; SILVA, 2007;
ANDRADE, 2010).
Regina Horta Duarte (1995) e Roberto Ruiz (1987) afirmam que o primeiro
circo de que se tem notícia em terras brasileiras foi o Circo Bragassi, em 1830. Já Erminia
Silva aponta o ano de 1834 como marco da “chegada ao Brasil de um circo formalmente
organizado, o de Giuseppe Chiarini” (SILVA, 2007: 58). Alice Viveiros de Castro também
faz menção à nobre família de saltimbancos de Chiarini, porém afirma que a companhia
viajou o país a partir de 1831. Independente desta pequena imprecisão de datas a respeito
da chegada dos Chiarini, o fato é que chegava ao Brasil uma das maiores dinastias italianas
de circo:
(...) os registros encontrados dessa família datam de 1580, na França,
apresentando-se na feira Saint-Laurent como dançadores de corda e mostradores
de marionetes; em 1710, o autor localiza-os no Funambules du Boulevard du
Temple, como mímicos coreográficos; e, em 1779, Francesco Chiarini
apresentava paradas de ombro chinesas no Kneschke‟s Theater de Hamburgo. Os
Chiarini – dominando assim diversos ramos das expressões artísticas nas feiras,
ruas e tablados – tornaram-se, posteriormente, artistas de circo: em 1784 no circo
de Astley e, depois da Revolução, foram para Paris trabalhar com Franconi
(Idem: 58 e 59).
Apesar dos Chiarini serem excelentes cavaleiros, somente em 1842 encontra-se
a primeira referência a um circo equestre no Brasil, de propriedade do ator Alexandre
Luand (Lowande seria a grafia correta) (Idem).
Em meados do século XIX, mantendo a versatilidade sempre característica do
ofício circense, as companhias se apresentavam no Brasil nos mais diversos espaços: ruas,
51
feiras, tendas, praças públicas, tablados armados em terrenos vazios e também palcos
teatrais convencionais adaptados para as exibições circenses.
A novidade dessas expressões artísticas reunidas em um só espetáculo já ia se
mostrando como presença marcante no cotidiano das cidades brasileiras.
Rapidamente, os estalos dos chicotes dos circos de cavalinhos estavam nas ruas
dos pequenos lugarejos, nos teatros das cidades e, principalmente, faziam parte da
maioria das festas locais. A introdução de todo um mundo gestual, dos desafios
dos corpos, da habilidade com os cavalos, da representação cênica, da dança, da
música e do riso vai, aos poucos, fazendo-se conhecer pelo público nos lugares
nos quais não chegava nenhum outro grupo artístico. (...) Os circos de cavalinhos
estariam presentes, a partir da segunda metade do século XIX, na maior parte das
cidades brasileiras, tornando-se, em alguns casos, a única diversão da população
local (Idem: 66).
Em pouco tempo, o circo caiu nas graças dos brasileiros, das classes populares
à elite. Na verdade, “o circo nasceu com arquibancada, geral e camarote28”, ou seja, faz
parte de sua estrutura básica a inserção do público independente de sua classe social. Sabese, por exemplo, que até governantes como o Imperador Dom Pedro II e, posteriormente na
República, o presidente Floriano Peixoto, frequentavam os circos. Os circenses atuavam
como
(...) produtores e divulgadores dos diversos processos culturais já presentes ou
que emergiram neste período, contribuindo para a constituição da linguagem dos
diversos meios de produção cultural do decorrer do século XX. O espaço circense
consolidava-se como um local para onde convergiam diferentes setores sociais,
com possibilidade para a criação e expressão das manifestações culturais
presentes naqueles setores. Através de seus artistas, em particular os que se
tornaram palhaços instrumentistas/cantores/atores, foi se ampliando o leque de
apropriação e divulgação dos gêneros teatrais, dos ritmos musicais e de danças
das várias regiões urbanas ou rurais, elementos importantes para se entender a
construção do espetáculo denominado circo-teatro (Idem: 82 e 83).
Mantendo a constante de se tratar de um espetáculo eclético, variado e sempre
contemporâneo, no Brasil, o circo itinerante de lona manteve “alguns padrões próprios de
sua tradição”, ao mesmo tempo em que os circenses “também renovaram, criaram,
adaptaram, incorporaram e copiaram experiências de outros campos da arte” (Idem: 22).
28
Declaração de Erminia Silva durante o curso “História do Circo” no Galpão do Circo, São Paulo. Agosto de
2013.
52
Uma das adaptações e renovações empreendidas pelos circenses em terras
brasileiras de maior sucesso foi o chamado circo-teatro. Porém, a maior parte dos estudos
realizados sobre esta manifestação teatral apresenta uma argumentação extremamente
esquemática, baseada em equívocos e informações desencontradas a respeito de datas,
causas e desdobramentos. É só a partir do final da década de 1990 e início dos anos 2000
que surgem novas perspectivas acerca da teatralidade no circo, com pesquisadores como
Mario Bolognesi e Erminia Silva.
O primeiro grande equívoco reside no fato do circo-teatro ser considerado por
alguns pesquisadores como uma descaracterização do espetáculo circense “puro” e, por
isso, a principal causa da decadência do circo no Brasil. Os pesquisadores que defendem
esse ponto de vista tiveram como principal objeto de estudo os relatos de alguns artistas
circenses que, por estarem inseridos no processo histórico em questão, não possuíam o
distanciamento necessário para analisar a questão sem nenhuma identificação ou
emotividade. Dessa forma, construiu-se uma memória baseada apenas nos relatos orais
destes circenses, sem haver o cruzamento destas com outras fontes.
O debate a respeito do circo “puro” não é recente, tendo se iniciado ainda no
século XIX; nem um pouco recente também é a afirmação de que o circo está em
decadência: a cada mudança ou transformação vivida, fala-se em “morte do circo”.
O grande palhaço Arrelia, por exemplo, costumava dizer que ao inserir o palco
sobre o picadeiro o circo-teatro descaracterizou o espetáculo “puro” (SOUSA JR., 2009). Já
o mestre Piolin afirmava que o circo-teatro era uma desvirtuação porque os cômicos
trabalhavam de cara limpa, não havendo espaço para a atuação de palhaços caracterizados
(PIMENTA, 2005). Em seu livro O circo, o prestigiado Antolin Garcia afirma que o circoteatro descaracterizou também a formação do artista circense, que deixa de ser “completo”,
pois os circenses abandonaram progressivamente os números de destreza física para
realizarem um teatro, a seu ver, de má qualidade:
(...) os circos passaram a apresentar um teatro precário, debaixo de suas lonas; as
famílias tradicionais circenses pararam a prática de seus atos, comprimidas pelas
exigências do teatro, que havia dominado o gosto e a opinião pública. Assim,
foram-se extinguindo os magníficos números acrobáticos, para dar lugar a uma
avalancha de maus atores, incompetentes e iletrados, que faziam do drama uma
53
comédia e da comédia um drama. (...) Os artistas brasileiros de outros tempos
eram completos desde o porte em cena à apresentação perfeita de suas
habilidades. Embora se especializassem em determinados atos, conheciam ainda
todos os demais exercícios praticados sob o toldo. (...) Parte dos atuais
componentes, ao contrário de seus antepassados, corrompem a arte circense,
apresentando-se ao público destituídos de valor, sem nenhum requisito que os
recomende como dignitários [de uma arte] (GARCIA, 1968: 165 e 166).
Primeiramente, me atento ao fato de que só a ideia de “circo puro” já instaura
uma contradição em termos, pois, como já ressaltado diversas vezes nesta pesquisa, o
espetáculo circense é essencialmente plural, diverso e múltiplo, não podendo ser
classificado como cultura popular, erudito ou de massa e, muito menos, como puro ou
impuro.
Em segundo lugar, afirmar que não havia teatro anteriormente no espetáculo
circense e que a sua incorporação rompeu com a tradição é desconhecer a própria história
do circo “moderno”. A manifestação teatral era uma das matrizes de formação dos artistas
das feiras que passaram a se apresentar nos circos e era também, portanto, parte constituinte
da produção artística circense desde o seu nascedouro.
O circo-teatro deve ser visto, portanto, não como uma deturpação, mas sim
como uma continuidade, acrescida de transformações, de parte do espetáculo circense. As
já existentes representações teatrais foram aperfeiçoadas, com a inclusão e mescla de
materiais e gêneros, e caíram no gosto do público. E, no circo, tudo o que agrada,
permanece.
O segundo equívoco cometido comumente é a afirmação de que o circo-teatro é
um fenômeno exclusivamente brasileiro. José Carlos de Andrade chega a afirmar que “a
relação entre o circo e o teatro, como se deu entre nós, é uma característica genuinamente
brasileira e não se tem noticia de que tenha havido algo semelhante em outras partes”
(ANDRADE, 2010: 43). Devo destacar que movimentos similares ocorreram na Argentina
(drama criollo) e México (BOLOGNESI, 2010), porém, apesar de apresentarem
semelhanças e terem se originado da mesma fonte – as pantomimas – encontramos
especificidades nas representações de cada um desses países.
O terceiro equívoco cometido comumente ao se contar a história do circo-teatro
brasileiro diz respeito à data e ao modo como se deu a sua consolidação. Roberto Ruiz
54
(1987) é categórico ao afirmar que o circo-teatro foi “inventado”, em 1918, no circo de
Spinelli, por Benjamim de Oliveira e que Spinelli havia aderido a esta ideia de Benjamim
como uma tentativa de vencer a crise financeira que o circo vivia, devido à Primeira Guerra
Mundial e ao surto de Gripe Espanhola. Porém, veremos mais adiante que Benjamim foi o
principal responsável pela consolidação da tendência já existente e que passou a se chamar
circo-teatro, mas que não podemos creditar a ele a “invenção” deste (SILVA, 2007).
Regina Horta Duarte (2005) também enxerga o circo-teatro como uma
alternativa à crise vivida pelos circos. Porém a autora afirma que isto teria acontecido no
ano de 1910 devido ao surgimento de fortes concorrentes no mundo do entretenimento,
como o cinema e o fonógrafo. Duarte também menciona a crise posterior causada pela
Primeira Grande Guerra e a dificuldade dos circos em adquirir e manter os animais exóticos
em terras brasileiras; e a autora também remete a consolidação do circo-teatro diretamente
à figura de Benjamim de Oliveira.
Alice Viveiros de Castro (2005), que desenvolve um brilhante estudo situando
os palhaços ao longo da história da humanidade, ao dissertar sobre o surgimento do circoteatro nos apresenta apenas uma descrição simplista e esquemática dos acontecimentos,
caindo também no lugar comum de creditar a sua invenção a uma vontade pessoal de
Benjamim de Oliveira de encenar peças teatrais.
Daniele Pimenta (2005) e José Carlos Andrade (2010), assim como Roberto
Ruiz, também nos apresentam a data de 1918 como o ano de surgimento do circo-teatro. E
assim como Regina Horta Duarte, ambos os pesquisadores consideram a invenção como
uma alternativa de incremento dos espetáculos das companhias que, no Brasil, não
conseguiam manter os números com feras amestradas, grandes atrativos dos circos da
época. Ambos os autores afirmam que muitas eram as despesas e as dificuldades em se
trazer animais exóticos e mantê-los vivos nas precárias condições de manutenção e de
transporte dos circos. As feras, mal alimentadas “(...) nas longas viagens em que
dificilmente se encontrava carne fresca, não resistiam e, por fim, pouquíssimos circos
mantinham a estrutura de circo zoológico, como eram chamados na época” (PIMENTA,
2005: 19). Por último, Pimenta também descreve a complexa formação e consolidação do
55
circo-teatro apenas como uma “transformação estrutural”, com a inserção do palco teatral
junto ao picadeiro.
Ao afirmar que Benjamim de Oliveira inventou o circo-teatro e foi o
responsável por incorporar o palco ao espaço cênico do picadeiro, os autores mostram
desconhecer diversos acontecimentos anteriores a este momento histórico – resgatados,
principalmente, com a pesquisa de Erminia Silva, publicada em 2007 – como, por exemplo,
o fato de que, muito antes de Spinelli, em 1875, Albano Pereira já utilizava o termo circoteatro para definir e divulgar seu espetáculo. Além disso, nesse mesmo ano, Albano
construiu um pavilhão29 na cidade de Porto Alegre, que contava com palco e picadeiro
(SILVA, 2007).
Ao analisar mais profundamente a questão chego ao fato de que mesmo antes
de Albano Pereira construir seu pavilhão com palco e picadeiro, era comum a representação
dos espetáculos circenses em diversos espaços, inclusive em palcos teatrais. Desse modo,
“não há como e nem se pretende definir origens. Albano Pereira fazia, sim, parte de um
processo daquela produção, aproveitando-se dos saberes e práticas históricos e
culturalmente disponíveis” (SILVA, 2007: 80).
E mais: se retornarmos ainda mais no tempo, veremos que já em 1780, na
Europa, Hughes e, posteriormente, em 1794, Astley, já possuíam picadeiro e palco em seus
anfiteatros (Idem).
Não devo, portanto, querer definir a origem do circo-teatro; devo entendê-lo
como um dos variados desdobramentos que a teatralidade circense assumiu. Como expus
anteriormente, as pantomimas eram encenadas nos circos modernos desde os seus
primórdios. Eram representações pautadas, principalmente, nas habilidades e destrezas
físicas dos artistas, utilizando-se de recursos como saltos, acrobacias, tapas e quedas
(DUARTE, 1995). Ressalto, porém, que a incorporação destas habilidades era apenas um
dos elementos constituintes das encenações que, com o passar do tempo, foram se
29
O pavilhão era recorrentemente associado entre os circenses como “construções geralmente em madeira,
tábuas leves cobertas por lona transportáveis (diferente dos tipos de pau-fincado que ficavam nos terrenos),
que possuíam um palco cênico junto com picadeiro ou arena” (SILVA, 2007: 141 e 142).
56
transformando e se tornando cada vez mais sofisticadas, tanto em relação à estrutura
dramatúrgica quanto aos recursos cênicos utilizados.
Desse modo, desde o final do século XIX, apesar de serem ainda denominadas
genericamente como pantomimas pelos circenses, as representações mesclavam diversos
textos, músicas e gêneros teatrais que estavam em voga no Brasil. Erminia Silva destaca:
O que se observa é que os circenses davam o nome genérico de pantomima às
suas inúmeras montagens e representações teatrais. Na realidade, elas
comportavam os vários gêneros musicais, dançantes, satíricos e cômicos que se
produziam no final do século XIX. Por isso, ao incorporarem uma peça anunciada
como pantomima, mas também “revista de costumes”, ao mesmo tempo em que
davam continuidade a um modo de organização dos seus espetáculos, marcado
pelas suas “heranças” (como suas origens de saltimbancos, os tablados e o teatro
de feira), acrescentavam novas formas de interpretação e leitura (SILVA, 2007:
216 e 217).
Seguindo a linha de raciocínio desenvolvida por Erminia Silva, afirmo que não
se pode definir precisamente a origem do circo-teatro e nem atribuí-la somente a Benjamim
de Oliveira. Entretanto é inegável que este artista contribuiu significativamente para o
estabelecimento e o desenvolvimento do gênero, o que torna incontestável sua importância
na consolidação do processo histórico em questão (Idem).
A memória criada em torno da ideia de que Benjamim inventou o circo-teatro
tem relação direta com o fato da crítica teatral da época ter passado a reconhecer, em suas
encenações no circo de Spinelli, o surgimento de um novo momento da teatralidade do
circo.
Benjamim atuava no circo como “ginasta, acrobata, palhaço, músico, cantor,
dançarino, ator e autor de músicas e peças teatrais, assim como vários outros artistas
daquela época” (Idem: 20). Ao incorporar e adaptar para o espaço circense elementos das
produções musicais, literárias e teatrais do momento, Benjamim foi responsável, portanto,
pela consolidação de uma tendência que já existia.
Em 1902 estreava no Spinelli a pantomima D. Antônio e Os guaranis (Episódio
da História do Brasil), que parodiava O Guarani, escrito por José de Alencar e considerado
um dos principais romances da nossa literatura. Através da divulgação da época tem-se a
ideia da grandiosidade das pantomimas já nessa época: a encenação era composta por 22
57
quadros, 70 pessoas em cena e 22 números de música. O Maestro João dos Santos compôs
o arranjo, adaptado da ópera de Carlos Gomes para a banda da companhia circense, e a
mise en scène ficou aos cuidados de Benjamim de Oliveira, que também atuava como o
índio Peri (Idem).
A pantomima fez enorme sucesso junto
ao público e permaneceu durante anos no repertório
de peças do circo. Benjamim então se aventurou em
novos empreendimentos e passou a escrever textos
para serem encenados.
O primeiro deles, O diabo e o Chico,
em 1906, pressupunha um investimento financeiro
muito maior do que era destinado até então para as
produções das pantomimas que, como mostrei
anteriormente com a paródia de O Guarani, já se
encontravam num alto grau de elaboração. Relatos
apontam também certa resistência por parte dos
Figura 3: Benjamim de Oliveira como Peri
na pantomima Os guaranis.
Fonte: SILVA, 2007: 212.
circenses em montar este texto, pois alegavam ser
difícil lembrar todas as falas sem o auxílio do
ponto. Acerca desta questão, Erminia Silva destaca:
O fato de os circenses resistirem a representar a peça de Benjamim de Oliveira
sem a ajuda do ponto reforça algumas análises (...); em primeiro lugar, a ideia de
que mesmo que os cronistas teatrais da época não descrevessem no detalhe as
representações das pantomimas, os circenses já representavam peças faladas em
seus palcos/picadeiros e, por isso, havia necessidade de uma pessoa que
cumprisse aquela função. Em segundo, a resistência no mínimo relativiza uma
imagem presente nos estudos dos pesquisadores e historiadores do teatro
brasileiro: a de que a partir da década de 1940 é que teria sido abolido o ponto,
particularmente, com o trabalho realizado, no Brasil, por Zbigniew Marian
Ziembinski. E, em terceiro, mesmo que o texto de O diabo e o Chico não tenha
sido localizado, pode-se crer que já era uma estrutura dramática “de porte”, que
dificultava que os atores memorizassem suas falas. Tudo parece indicar que foi
Benjamim quem de fato assumiu todas aquelas funções, a de ensaiador, ponto e
autor, o que não era raro acontecer nos teatros (Idem: 226).
58
Com o sucesso de O diabo e o Chico, Benjamin escreveu e encenou, em 1907,
O negro do frade, que tratava da união de uma mulher branca e um homem negro, tema
polêmico já amplamente explorado e cantado nos lundus e modinhas da época.
O sucesso e a qualidade artística dos espetáculos de Benjamim no circo de
Spinelli foram tamanhos que estes passaram a ser reconhecidos, não só pelo público, como
também pela crítica teatral. No mesmo ano de 1907, Arthur Azevedo, que havia escrito
anteriormente duras críticas aos espetáculos circenses, publicou uma crônica30 em que
reconhece
(...) um “novo” momento da produção do entretenimento na capital federal, e que
o circo-teatro de Benjamim e Spinelli era um elemento singular nesse processo,
além de “autorizar” por meio do seu texto (de um intelectual, membro da elite
cultural, com lugar na Academia Brasileira de Letras, e dramaturgo revisteiro de
sucesso), os outros letrados a “verem” uma nova teatralidade no circo. (...) A
construção da memória do papel que Benjamim de Oliveira teria na consolidação
de um novo modo de organizar o espetáculo e, principalmente, na construção do
circo-teatro, entrava num outro patamar de visibilidade. Os jornalistas e letrados
da capital federal tinham “descoberto” a teatralidade circense através da figura de
Benjamim em especial. Foi com ele que puderam entrar em contato com uma
dada representação teatral, no palco/picadeiro circense, que passaram a identificar
como uma produção cultural de importância por seu apelo ao público, pelos tipos
de peças constituídas e, mesmo, pela boa qualidade em relação ao desempenho
artístico (Idem: 230 e 236).
A crítica de Arthur Azevedo abriu caminhos para o teatro realizado no circo e
parte da bibliografia reconhece a montagem da opereta A viúva Alegre, de Franz Léhar,
adaptada para o palco/picadeiro do Spinelli por Benjamim de Oliveira, em 1910, como um
marco importante na consolidação do circo-teatro.
A montagem, considerada ousada para a época, foi concebida com cenários e
figurinos extremamente sofisticados e um apurado trabalho de atuação e musicalidade.
Com relação aos figurinos, por exemplo, Benjamim chegou a escrever uma carta para o
autor Franz Léhar para discutir todos os detalhes das indumentárias concebidas para seu
espetáculo, que se diferenciavam consideravelmente das outras montagens já realizadas no
Brasil (CASTRO, 2005).
30
Em “Circo-Teatro: Benjamin de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil”, de Erminia Silva (2007),
encontramos a crônica na íntegra.
59
O empreendimento de risco – pois tratava-se da representação, no circo, de uma
peça que fazia parte do repertório de diversas companhias estrangeiras que visitavam o país
e que também fazia parte do repertório das grandes companhias teatrais brasileiras – acabou
resultando num enorme sucesso de público e crítica. Desse modo, por muitos anos, A Viúva
Alegre se manteve no repertório do Circo Spinelli.
Figura 4: Foto lembrança de Benjamim de Oliveira como
diversos personagens.
Fonte: SILVA, 2007: 240.
Dessa maneira, as peças teatrais passaram a ser cada vez mais encenadas nos
circos e com mais aprimoramentos cênicos e interpretativos, de modo que, até meados da
década de 1960, muitos circos brasileiros tornaram-se circos-teatro e seus artistas
continuavam a ser acróbatas, músicos, equilibristas, malabaristas, mágicos, domadores de
animais, dançarinos, autores, compositores, cenógrafos, figurinistas, coreógrafos,
ensaiadores e atores. O espetáculo era dividido em duas partes: na primeira apresentavamse os números de variedades – que incluíam as destrezas físicas, o domínio das feras,
60
números musicais e bailados, entre outros – e na segunda parte os circenses passaram a
representar peças teatrais dotadas de inúmeros recursos e procedimentos dramatúrgicos,
cênicos e interpretativos mais elaborados. Dessa forma,
(...) Após sucessivas alterações, o circo-teatro ganhou perfil próprio e instalou-se
durante décadas no panorama cultural das praças visitadas, passando a ocupar um
posto de honra no coração dos espectadores (ANDRADE, 2010: 43).
Daniele Pimenta (2005) e José Carlos Andrade (2010) dissertaram em seus
trabalhos a respeito da divisão da história do circo-teatro em três fases. Porém,
considerando toda a diversidade presente nos modos de se formatar a teatralidade circense
ao longo da história deste tipo de espetáculo, considero que essa divisão em fases não
abarca toda a complexidade presente neste fenômeno.
Segundo Andrade, a primeira fase compreende o período do seu surgimento,
descrito por eles como sendo em 1918, até meados da década de 1930. A maioria das
representações nessa fase se configurou como montagens e adaptações de textos teatrais e
literários estrangeiros e também nacionais. Representavam-se melodramas franceses, pois
seus temas se encaixavam perfeitamente no período de consolidação da sociedade
brasileira; peças portuguesas, que não necessitavam de traduções e já continham a
“embocadura” própria para os atores; e adaptavam passagens bíblicas e romances
estrangeiros e nacionais já consagrados e, portanto, garantias de sucesso junto ao público
(ANDRADE, 2010). Porém, a meu ver, pensar nesta divisão em fases pressupõe a noção de
origem do fenômeno que, como visto anteriormente, não é possível de ser descrita. E mais:
se pensarmos que a pantomima sempre existiu no espetáculo circense “moderno” e que,
portanto, sempre existiu teatro no circo, veremos que essa primeira fase teria durado de
1770 a 1930, o que tornaria esta fase muito extensa e com acontecimentos múltiplos que
deveriam ser divididos em novas fases.
Segundo Andrade e Pimenta, a partir da década de 1930, os circenses – com
experiências já adquiridas após anos atuando como adaptadores – passaram a criar originais
dramáticos e cômicos perfeitamente adequados aos seus elencos, às condições técnicas do
circo e de grande comunicabilidade com o público. Esta segunda fase é considerada, pelos
dois autores, como a fase de ouro do circo-teatro, marcada pelo extremo capricho das
61
produções e uma rígida disciplina de trabalho. Considero, porém, esta afirmação restrita,
pois é resultado de uma determinada produção de memória, que acabou se tornando a
oficial da manifestação circense no Brasil e que abrange apenas os circenses e espectadores
nascidos, principalmente, entre as décadas de 1920 e 1930 e na região Sudeste.
A terceira fase do circo-teatro, para Pimenta e Andrade, inicia-se no final da
década de 1950 e é caracterizada pelo seu declínio. Segundo os autores, as maiores
empresas de circo-teatro decidiram suspender a parte teatral e voltar a investir
exclusivamente na parte de variedades, devido a inúmeras adversidades que, somadas,
tornaram difícil a continuidade do empreendimento. Ressalto apenas que este declínio é
realmente evidente, no sentido de haver uma diminuição significativa da quantidade de
circos itinerantes, porém principalmente na região Sudeste; esta análise não vale, por
exemplo, para a manifestação circense nas regiões Norte e Nordeste.
Sem sombra de dúvidas, a televisão é vista, pela maioria dos autores, como a
grande responsável por este declínio, primeiramente, por acarretar a queda da qualidade
artística dos espetáculos circenses ao contratar e retirar dos circos os seus artistas mais
competentes:
O cinema e a televisão se incumbiram de abreviar o tempo de existência do circoteatro. Os novos veículos de comunicação subtraíram seus mais brilhantes artistas
que, corajosamente, impuseram uma maneira de representar que lhes era própria.
Com o passar do tempo, essa forma diferente de atuar acabou por se tornar quase
que uma marca registrada dos cômicos televisivos, que até os dias de hoje
ocupam as telas (ANDRADE, 2010: 12).
Para agravar o quadro, com o passar dos anos, a televisão se tornou um veículo
de comunicação mais penetrante na vida dos brasileiros do que o circo (e também o teatro).
Desse modo, as famílias, ao invés de irem ao circo, passaram a se reunir na casa dos
vizinhos que tinham um aparelho televisivo, para assistirem aos programas de maior
audiência da época, caracterizando um fenômeno cultural conhecido como “televizinho”
(SANTORO JR., 1997: 58).
Seguindo o debate promovido por Erminia Silva (SILVA e ABREU, 2007;
SILVA 2009) levanto a possibilidade de analisarmos a diminuição da atividade teatral
circense – e do circo itinerante, de lona como um todo – não sob este aspecto que a
62
relaciona diretamente à ascensão dos meios de comunicação em massa. Sabe-se que, na
verdade, os próprios artistas circenses participaram, desde suas origens, das produções de
rádio, cinema e televisão; desse modo, o espetáculo circense foi diretamente influenciado
por estes meios de comunicação, passando por diversas transformações e mudanças que
agregavam, retrabalhavam e mesclavam novos estímulos, matrizes e linguagens.
A diminuição da atividade circense é resultado, de acordo com Erminia Silva
(2007;
2009),
da
profunda
socialização/aprendizagem
31
transformação
do
processo
de
formação/
32
que regia a vida do artista circense . Este processo
caracterizava um modo específico de ensino/aprendizagem e de organização do trabalho,
que mantinham como característica – herdada dos artistas saltimbancos das feiras europeias
incorporados ao circo e também presente entre parte dos artistas contemporâneos do
período – “a transmissão oral do conjunto de saberes e práticas de geração a geração;
saberes que davam conta da vida cotidiana, capacitação e formação dos membros do grupo”
(SILVA; ABREU 2009: 25). Esta formação ampla e integrada produzia um determinado
tipo de espetáculo que, “(...) longe de ser apenas um produto de entretenimento, revelava-se
como o resultado visível de um longo, rigoroso e complexo processo de formação artística”
(ABREU in SILVA, 2007: 14).
As companhias que se estruturavam seguindo este modo de organização do
trabalho e de transmissão dos saberes e que eram formadas tanto por artistas ligados por
laços de sangue, como também por agregados que, ao adentrarem o circo, passavam a fazer
parte dessa mesma “família”, são nomeadas, por Erminia Silva, como circo-família
(SILVA; ABREU 2009)33.
Dessa forma, quando os circenses passaram a inserir seus filhos nas escolas de
ensino regular e a contratar artistas para a exibição de números específicos, a base do circofamília
foi
modificada.
Ocorreu
31
um
hiato
no
processo
de
Erminia Silva (2007) utiliza a expressão separando as palavras por barras, ao invés de ligá-las com a
conjunção “e”, partindo da ideia de que, no circo, a formação do individuo, do artista e do ser social ocorre
concomitantemente, dentro de um processo de aprendizagem integrado.
32
Em seu “Respeitável Público... O circo em cena”, Ermínia Silva (2009) discorre detalhadamente acerca das
razões que levaram a esta profunda transformação no processo de formação/socialização/aprendizagem, no
modo de organização do trabalho e na configuração estética do espetáculo circense.
33
Analisarei este conceito mais profundamente no próximo capítulo ao dissertar sobre o Pavilhão Arethuzza.
63
formação/socialização/aprendizagem, de modo que as gerações mais novas deixaram de ser
depositárias
dos
saberes
das
mais
antigas.
Essa
alteração
no
processo
de
formação/socialização/aprendizagem gerou, segundo a autora, mudanças no modelo de
organização do trabalho que, por sua vez, alterou a configuração da espetacularidade
circense.
Além disso, a vida social da população das cidades que o circo visitava também
sofreu alterações nesse período. Fernando Neves, em entrevista, citou como eram os
programas feitos pelas famílias brasileiras das capitais até meados do século XX:
(...) se você fosse ao cinema você ia assistir dois filmes com um intervalo. E no
intervalo tinha jornal, tinha trailer. Então era um programa de quatro horas, no
mínimo. Então os programas que eram feitos... ninguém saía para um programa
de uma hora e meia, como se vai hoje assistir uma peça que tem uma hora. Não
tinha isso34.
Com o crescimento das cidades e o processo de industrialização, a vida tornouse mais agitada e frenética, principalmente nas capitais. Um espetáculo como o de circo,
que costumeiramente tinha várias horas de duração, passou a ser inviável dentro da rotina
desta nova sociedade, de forma que as companhias circenses se readaptaram às novas
condições e diminuíram consideravelmente a duração de seus espetáculos.
Porém, ao se encontrar em crise financeira e se ver impossibilitada de manter o
espetáculo no mesmo nível de sofisticação de tempos anteriores, grande parte das famílias,
como a família Viana-Santoro-Neves do Pavilhão Arethuzza, preferiu encerrar suas
atividades.
Contudo, algumas companhias resistiram aos tempos, se metamorfosearam,
incorporando as influências dos outros meios contemporâneos e continuaram a se
apresentar pelo país, dentre elas, o Circo de Teatro Tubinho, que percorre as cidades
interioranas do estado de São Paulo, permanecendo meses numa mesma cidade, levando
uma peça a cada noite, com a lona para aproximadamente seiscentas pessoas lotada –
fenômeno este que raramente se vê entre as companhias de teatro, tidas como oficiais,
atualmente.
34
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
64
Bolognesi destaca que:
(...) o circo-teatro ainda preenche as lacunas que o teatro não conseguiu suprir.
Isso ocorre especialmente nas pequenas cidades brasileiras, desprovidas de uma
sala de espetáculos. As companhias teatrais que se propõem a viajar pelo interior
raramente aportam em pequenas localidades, mesmo porque elas são desprovidas
de um teatro adequado. Aliás, as companhias e os espetáculos itinerantes visitam
somente as capitais ou as grandes cidades. No restante do país, nos pequenos
municípios, até mesmo em vilarejos, o pequeno circo cumpre, a seu modo, um
papel que o teatro não consegue desempenhar a contento (BOLOGNESI, 2003:
151).
As dificuldades – e até a inacessibilidade – de grande parte da população
brasileira aos bens culturais, incluindo o teatro, ainda é, infelizmente, uma realidade. Dessa
forma, um circo, como o Circo de Teatro Tubinho, continua agindo na atualidade como um
importantíssimo difusor cultural, se configurando como o máximo de movimento teatral
para muitos municípios ainda não alcançados pelas companhias de teatro radicadas
principalmente nas grandes cidades.
1.5 Relação com o público e a arte de agradar
Este trabalho visa traçar algumas considerações acerca do desempenho dos
intérpretes circenses nas encenações teatrais apresentadas em duas companhias de circoteatro. Porém, não posso adentrar as questões relacionadas aos elementos técnicos presentes
neste tipo de atuação sem dizer, primeiramente, que no circo e, no caso, no circo-teatro, a
dimensão artística, na qual reside o trabalho do ator, é absolutamente indissociável das
dimensões ética e social.
Isso porque o circo “tradicional” itinerante de lona é um empreendimento
artístico alicerçado sob a relação direta estabelecida com a arrecadação por bilheteria e,
portanto, com sua plateia.
Essa relação vital com o público pagante está no cerne do espetáculo circense
desde sua consolidação com Philip Astley, na Inglaterra. Aliás, o empreendimento de
Astley foi justamente uma alternativa de adequação às mudanças comerciais ocorridas na
65
Europa no século XVIII.
Segundo Burke (1989), o circo é o caso mais notável de
comercialização da cultura popular (BOLOGNESI, 2003).
Portanto, desde Philip Astley o circo absorve e reorganiza, sob modos
específicos de organização do trabalho, pautados pelas leis do comércio, as mais diversas
formas de expressão artística:
A cultura popular adequou-se aos novos tempos, criando modelos novos de
manifestação, comercias por excelência. As formas espontâneas de
entretenimento foram se organizando comercialmente, visando aos novos
espectadores, alçados agora à condição de compradores de espetáculos e de
diversão. (...) O circo foi uma criação específica da sociedade comercial e
produtiva que rondava o século XVIII, na Europa. Ele reaproveitou diversos
elementos do passado. Contudo, remodelou-os de acordo com as exigências do
espetáculo comercial, sob a égide do trabalho e da troca. (Idem: 38, 39 e 40).
Acredito, como já exposto no início deste capítulo, que qualquer artista deve
sempre buscar a consolidação de sua técnica pessoal e que esta precisa estar
necessariamente empregada num contexto social. E isso instaura, inevitavelmente, a relação
vital com a plateia – que o circo tanto compreende e busca. E mais: como vivemos numa
sociedade pautada pelas leis do comércio, o estabelecimento desta relação de vida ou morte
do empreendimento artístico passará, inevitavelmente, pelo viés econômico.
Porém, o que vemos na atualidade brasileira – e que carece de estudos mais
aprofundados – é que o circo é um dos raros empreendimentos das artes do espetáculo que
continua a travar uma relação direta de continuidade com seu público pagante.
Viver de arte nesse país é uma tarefa difícil. De bilheteria, então, nem se fale!
Como exemplo, cito o fato de que da minha turma de graduação, egressa da Unicamp em
2010, nenhum de meus colegas vive, economicamente, da arrecadação por bilheteria e nem
mesmo apenas do ofício teatral. Em meio às adversidades, a maioria dos artistas busca
sobreviver por meio de concursos de editais de órgãos públicos, que estão longe de atender
a demanda existente, ou por meio de vendas para órgãos privados, como o Serviço Social
do Comércio (Sesc).
Porém, por outro lado, acredito que a falta de relação vital com a bilheteria
acabou por estabelecer uma cultura viciosa de dependência e é resultado, também, da falta
66
de empreendedorismo por parte da maioria dos artistas, que não possuem o mesmo tino
comercial de alguns artistas circenses, por exemplo
De todo modo, não depender diretamente do público pagante contribuiu para a
instauração, entre os artistas cênicos, de uma tendência contemporânea de delegar ao
Estado a promoção do acontecimento artístico, levando parte da classe a um
descompromisso com o público. O que vemos é uma gama de artistas que querem fazer
teatro sem pensar em para quem ele está sendo feito. Gritam apenas para ouvir o próprio
eco. Como se aqueles a quem se destina a arte, o público, fosse uma preocupação exclusiva
dos governos, aos quais cabe viabilizar o acesso da população aos espetáculos e demais
obras. Preferencialmente, claro, as suas. E o resultado disso é a exibição desenfreada de
“processos intermináveis de mergulho em si, de onde emergem estéticas intransponíveis, de
pouca, ou nenhuma, penetração na sociedade, de modo geral” (ARY, 2011: 06 e 07).
Simplesmente esquece-se de que uma obra de arte deve visar sempre, em última
instância, a comunicação. Dessa forma,
Podemos assistir a uma peça banal, com um tema medíocre, que esteja fazendo
um grande sucesso de público e de bilheteria num teatro absolutamente
convencional, e às vezes encontrar aí uma centelha de vida muito superior ao que
acontece quando pessoas embebidas de Brecht e Artaud, trabalhando com bons
equipamentos, apresentam um espetáculo culturalmente respeitável mas carente
de fascínio. Quando nos deparamos com este tipo de espetáculo, geralmente
passamos uma noite insípida vendo uma coisa em que tudo está presente – exceto
a vida (BROOK, 2000: 11).
Nas conversas que tive com Fernando Neves e seu tio Antônio Santoro Junior
do Pavilhão Arethuzza e também com Zeca e os demais artistas do Circo de Teatro
Tubinho pude compreender, de fato, o que lia nos livros acerca do respeito que o artista
circense tem por seu público e da complexa relação que o circo estabelece com as
localidades por onde passa.
Essa relação é iniciada, inclusive, antes da chegada do circo na cidade, pois,
comumente, estes só se instalam após contatos prévios e estabelecimento de um acordo
com a Prefeitura. Após esse primeiro momento, os circenses realizam uma ação que
chamam de “fazer a praça”. Uma pessoa é enviada para a futura cidade na qual o circo irá
67
erguer a lona para pesquisar aquela comunidade e descobrir seus gostos, costumes e
preferências. Acerca de fazer a praça, Fernando Neves comentou:
Quando o circo tá numa praça, ele fica atrás de outra praça já, ou seja, em outra
cidade. O que faz a frente não vai só alugar as casas... Vai cuidar da parte de
produção mesmo, fechar algum patrocínio com alguma... Geralmente farmácia,
mercearia, bar patrocinavam o ator que eles gostavam. E geralmente quem
patrocinava os cômicos eram as cachaçarias e as lojas de moda, claro,
patrocinavam as damas galãs, as ingênuas. Então não era só pra isso... Era pra
entender também o que era aquela cidade. Se ali a gente era muito religiosa, se
era uma gente muito conservadora, quem eram as figuras folclóricas da cidade,
quem eram as pessoas que eram mais adoradas e as pessoas mais criticadas. E
tudo isso ia pra cena. Quer dizer, já começa a olhar antes de chegar. Quando
chega o terreno já tá pronto. Então esse olhar é um olhar de cumplicidade e um
olhar de familiaridade que já tá pré-estabelecido com o ator, mas a plateia ainda
não sabe. E o repertório vai ser escolhido... Se essa cidade é muito conservadora
eu vou pegar uns dramas, falar mais da honra, da dignidade. Vou tirar as
comédias de mais tiro, vou tirar as chanchadas, vou colocar mais os dramas
bíblicos, religiosos. E daí eu já estou estabelecendo um diálogo como artista com
esse público porque eu já sei exatamente o que ele quer 35.
Então, finalmente é chegado o momento do circo se estabelecer na cidade e,
durante toda a temporada, a pesquisa acerca dos hábitos daquela população continua e se
aprofunda, pois o empreendimento circense não pode falhar: os circenses podem ter feito
dez praças ótimas, mas uma única praça ruim é capaz de levar o circo à falência.
Dessa forma, o circo se insere nas cidades por onde passa, alterando todo o
cotidiano daquela população. Inúmeras são as histórias de memorialistas, do tempo de
circos como o Pavilhão Arethuzza, que narram as passagens de circos pelas pequenas
cidades interioranas, o encantamento gerado pelas atrações, as recorrentes fugas com as
companhias e as paixões despertadas pelos artistas:
As notícias sobre a proximidade da chegada de circos de cavalinhos ou de grupos
de teatro ambulante enchiam as páginas dos jornais, publicados nas várias
cidades, dias ou até semanas antes do acontecimento. (...) A chegada dos artistas
transfigurava o ambiente e o cotidiano das pacatas cidades mineiras. Uma vez na
cidade, faziam anunciar pelos jornais o elenco de peças a serem levadas à cena.
Não deixavam de alardear o nome das pessoas importantes para as quais se
haviam apresentado e os elogios que delas teriam recebido. As mulheres bonitas
tornavam-se o comentário das rodas masculinas. As peças e os desempenhos dos
artistas ocupavam parcela significativa dos pequenos jornais locais (...). A
35
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
68
armação do circo despertava a curiosidade dos habitantes. (...) Talvez tão
excitante quanto a primeira apresentação fosse o “cartaz”, nome que se dava ao
anúncio da noite de estreia, feito ruidosa e alegremente, pelas casas e ruas. Os
artistas iam de casa em casa, de venda em venda, descrevendo o elenco, os
números de cavalinhos e cães, o cabrito equilibrista. Ao mesmo tempo, uma
pequena banda precedia o palhaço, montado num cavalo ou num burro, assentado
de costas para a cabeça do animal. (...) Sentado ao avesso – contrariando a ordem
natural das coisas – ladrão de mulheres, maliciosamente esperto, portanto, e
prestigiador dos meninos de canela suja, o palhaço liderava um evento que
transfigurava as ruas da cidade (DUARTE, 1995: 32 a 35).
Acerca especificamente do Pavilhão Arethuzza, Santoro Junior descreve como
se dava a relação do circo com a plateia, no final do século XIX, baseado nas informações
retiradas das lembranças de Antônio das Neves, patriarca da família, em entrevista ao
Jornal Folha da Noite em 1943:
Conta-se também que os atores que se destacavam na época mereciam o favor
feminino de maneira bem viva e acalorada, as moças e senhoras, ao fim do
espetáculo, estendiam seus casacos, mantilhas e chalés pelo chão, para que os
atores preferidos passassem sobre eles. Era um verdadeiro delírio. Os homens ao
contrário, atiravam ao picadeiro seus chapéus, para que as artistas apanhassem e
os devolvessem. Era uma honra, e uma glória para o dono do chapéu. Em geral o
picadeiro ficava cheio de ramos de flores que o público atirava (SANTORO JR.,
1997: 18).
Na reportagem abaixo, do Jornal Gazeta de Campinas, de 27 de fevereiro de
1935 temos ainda outro exemplo da estreita relação que os circos estabeleciam com as
cidades por onde passavam. A reportagem relata a homenagem que Arethusa Neves
(chamada, no caso, de atriz genérica) recebeu de amigos e admiradores da cidade. O
Pavilhão Arethuzza estava em Campinas há dez meses e nessa ocasião, ao final do primeiro
ato da peça Sacrifício de Mãe, Arethusa foi presenteada com uma medalha de ouro. Em
agradecimento, a atriz proferiu um discurso que, segundo a reportagem, arrancou lágrimas
dos presentes.
69
Figura 5: Jornal Gazeta de Campinas, que relata homenagem realizada à Arethusa Neves. 27/02/1935.
Fonte: Arquivo pessoal de Antônio Santoro Junior.
Tantos anos depois, o circo continua despertando os mais diversos sentimentos
no público e algumas companhias, como a do Circo de Teatro Tubinho, ainda são capazes
de tirar centenas de espectadores, todas as noites, da frente das televisões e computadores
de suas casas.
70
E, na atual era tecnológica na qual vivemos, essa mesma manifestação de
carinho pode ser encontrada diariamente, por exemplo, na página de relacionamento do
Circo de Teatro Tubinho e dos seus artistas na internet. Através desse veículo, os fãs podem
manter contato com os artistas, o que cria mais vínculos de proximidade entre eles. Uma
das espectadoras, por exemplo, Rúbia Edinaldo, da cidade de Sorocaba escreveu a seguinte
mensagem na página da companhia, seguida da resposta da atriz Ana Dolores:
Rúbia Edinaldo: Nunca pensei que fosse chorar no Circo do Tubinho, (bom,
penso que vou chorar no último espetáculo, porém, por ora, nem ouso pensar
nisso ), mas hoje chorei, me emocionei... Que linda a encenação do espetáculo
"Marcelino pão e vinho". Já havia assistido o filme e hoje, me senti dentro da
história, vendo e vivendo cada personagem... Me encantando profundamente
por aquele pequeno Marcelino, um menino lindo, um menino que "conversa"
com Jesus... E os monges???!!! Que encanto!!! A sensação que tinha é que
estava dentro de um sonho, um lindo sonho... (...) vocês fizeram meus olhos se
encherem de lágrimas porque a emoção já não cabia mais dentro do coração e
ela teve que sair em forma de lágrimas mesmo...
Ana Dolores: E eu me emociono quando sinto que nosso humilde trabalho
alcança o coração dos nossos amigos, que muitos insistem em chamar
simplesmente de plateia! Com pureza no coração o meu mais singelo
agradecimento!
Figura 6: Rúbia Edinaldo (ao fundo) e outras fãs prestando homenagem ao palhaço Tubinho no último
espetáculo, Obrigado Sorocaba, da temporada de oito meses na cidade, em 2014.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet.
71
Os artistas circenses – assim como seus antepassados saltimbancos das feiras
europeias – são, portanto, mestres na arte de se relacionar com o público, levando em conta
os seus gostos e particularidades. Os artistas circenses são mestres na arte de agradar.
Este termo, que faz parte do vocabulário de qualquer circense e já mencionado
anteriormente nessa dissertação, é comumente relacionado de forma mais direta à dimensão
artística do circo; ou seja, a premissa básica que rege o espetáculo no circo é o fato de ele
tem que, necessariamente, agradar:
Sim, porque o espetáculo do Circo-Teatro tem uma finalidade imediata: ele não é
feito para ser avaliado pelos entendidos ou pelos críticos em colunas
especializadas, nem para ser comentado nas mesas dos bares da moda, nem para
ir figurar nos anais da história do espetáculo. Não: Ele é feito para agradar o
público, para que este volte no dia seguinte e compre seu ingresso na bilheteria
para possibilitar ao artista a compra de comida no dia seguinte... e assim por
diante (SOFFREDINI, 1980 in BRITO, 2004: 36).
Ao entrevistar os atores do Circo de Teatro Tubinho, perguntei-lhes o que era
agradar. Destaco, a seguir, algumas das respostas obtidas, através das próprias palavras
desses artistas, que são os detentores desse saber e que podem, então, melhor do que
ninguém, explicar o que o termo significa para eles:
Cristian Bryan (Tito):
Agradar é agradar o público mesmo. A gargalhada tem que ser espontânea e uma
em cima da outra. Tem que ser muito rápido e agradar sempre, a toda hora, do
começo ao fim36.
Morgana Lunardi:
Agradar é quando tem bastante aplauso na plateia. Quando aplaudem de pé
então37...
Débora Ignácio:
É fazer as pessoas rirem muito. Quando dão muita risada, aplaudem muito, é
porque agradou. Principalmente em cena aberta. Você faz a cena e para a cena
por causa dos aplausos38.
Angelita Vaz:
36
Cristian Bryan em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
Morgana Lunardi em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
38
Débora Ignácio em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
37
72
O agradar... Assim, o nosso termômetro é o riso né. A referência do circo-teatro
pro teatro é diferente. Por exemplo, se você vê no teatro o público assistir uma
comedia, você vê o público rir, mas ele riem, dá um tempinho, riem de novo, dá
um tempinho... entende? Tem uns pontos chaves. Aqui no circo não, pra gente o
agradar, a pessoa tem que sair com dor de barriga de tanto dar risada. Esse é o
agradar pra gente, então a gente se preocupa muito com isso (...) Igual ontem,
aquela história que tava comentando com você. A comédia tava vindo bem, tava
agradando, aí no meio do espetáculo veio uma piada que não agradou... Aí
pareceu que deu uma esfriada. Mas se você for ver, não foi “Ah, derrubou o
espetáculo”... Não, nada disso. É que a gente se cobra demais, mas foram alguns
minutos em que as pessoas pararam de rir, o que é normal. Então o agradar nosso
é esse termômetro. (...) E no drama o termômetro é o silêncio. Olha que
engraçado, é o silêncio. Porque o circo é diferente do teatro. As pessoas que vem
aqui não estão acostumadas a ir ao teatro. As pessoas que vem aqui são inquietas,
elas saem pra comprar pipoca, no meio de um espetáculo dramático você escuta
alguém abrindo uma latinha, alguém levantando, andando no meio nas pedrinhas
do chão. E isso tira a atenção. Então quanto menos você ouve isso e chega no
final você olha pra cara das pessoas e as pessoas tão chorando, aí a gente
agradou. Então a gente muda de extremo. Na comédia você tem que rir o tempo
inteiro e no drama quanto mais quieto ficarem, é o sinal que tá agradando. É
muito engraçado isso39...
Pereira França Neto (Zeca/Tubinho):
Pra gente, a função do espetáculo tá em cima desse termo, agradar. O espectador,
seja drama, seja comédia, seja infantil, o espectador tem que sair daqui e convidar
mais vinte ou trinta pessoas porque ele adorou. Essa é a nossa busca. E esse
termo agradar acho que resume bem. (...) E nosso espetáculo é popular, é feito
com público e pro público, pensando no que o público quer ver. E é essa a
assinatura do nosso trabalho. (...) Porque a gente precisa daquele público amanhã.
Se o público vem ao circo vinte vezes e adora o espetáculo, ele vai falar pra cinco
pessoas. Se ele vem uma vez e não gosta, ele vai falar pra duzentas pessoas, você
pode ter certeza. Então, quer dizer, essa é a grande preocupação. Então, quer
dizer, o espetáculo tem que funcionar. A cidade é pequena, trezentas pessoas
falando é uma propaganda na Globo!(...) O agradar, então, é você sair de cena
com a certeza de que aquele povo vai voltar. Entendeu? Acho que basicamente é
isso. Sair de cena com a certeza que o cara falou assim “O ingresso que eu paguei
valeu a pena”. Pra mim esse é o agradar40.
Agradar pode ser pensado, de maneira superficial, como algo a ver com uma
relação de servidão do artista para com seu público, na medida em que este é responsável
pela manutenção financeira do empreendimento. Porém, a arte de agradar é algo mais
profundo e consistente, no sentido de estabelecer não uma relação de servidão, mas sim
dizer respeito à dimensão de sacrifício e generosidade presente na concretização de uma
obra de arte.
39
40
Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013.
73
Além de determinar os elementos empreendidos na dimensão artística do circo,
a arte de agradar está por trás, também, de todas as ações pertencentes às dimensões ética e
social do circo com a cidade onde arma sua lona. Enquanto empreendimento comercial, o
circo necessita estabelecer boas relações com os moradores, os comerciantes e as
autoridades da cidade onde se instala, pois
As informações que vêm de fora e a perspicácia para captar as preferências do
público são fatores fundamentais para as companhias circenses. A sobrevivência
dos circenses depende exclusivamente do espetáculo e de sua aceitação na cidade
ou vila. Por uma questão de sobrevivência, o repertório está sempre se adequando
aos indicativos captados com o publico (BOLOGNESI, 2013: 171).
Ou seja, todas as relações estabelecidas com a cidade são pautadas pela arte de
agradar e preparam as condições ideais para que o espetáculo também agrade. Assim
sendo, o espetáculo é apenas um dos diversos elementos que constituem a relação ritual que
o circo constrói com a cidade onde se estabelece.
A arte de agradar pode ser compreendida, então, como o nomeador de um
imenso conjunto de elementos estruturais do ofício circense. Dessa forma, num nível mais
fundamental, o “espetáculo agradar” significa que algo, baseado numa relação de
consideração, de fato, se passou entre artistas e público. Consideração por parte dos
artistas que previamente investigam a praça na qual irão se apresentar, conhecendo-a
detalhadamente de antemão e aprofundando a relação com a cidade ao longo da temporada;
e consideração por parte do público, em função do reconhecimento de si mesmo no
repertório escolhido e do entrosamento que os artistas e as obras estabelecem com a
comunidade. Agradar é, então, um fenômeno de integração de desejos e necessidades de
ambas as partes.
Lembrando Grotowski, se pensarmos que teatro é exatamente isso, é o que
acontece entre ator e espectador, desejar agradar é desejar a real concretização do
fenômeno teatral. E, nesse sentido, independente de escolas, gêneros ou linguagens, todo e
74
qualquer ator deseja, em última instância, que o teatro realmente aconteça e, portanto,
deseja agradar. Em entrevista, Tiche Vianna41 comentou:
Então eu acho que o agradar tem a ver com algo que acontece entre nós. Todo
teatro quer agradar, não me venha com esse papo! Entendeu? Não me venha com
essa conversa! (...) Claro que todo teatro quer agradar. Porque eu faço uma coisa
pra que isso chegue em você, cause, atravesse, provoque... Como é que isso é não
querer agradar? Eu quero agradar. Agora, o agradar não precisa ser só através do
riso. Eu posso te agradar com a coisa mais trágica da face da Terra, né, ou mais
dolorosa, ou você pode ter uma experiência ali que aquilo te agradou, mas vai
passar por uma dor. Mas não é todo mundo que quer fazer isso... E o mundo tá
sofrendo, galera! Vamos olhar pra isso? As pessoas sofrem... As pessoas sofrem...
Vamos entender isso, e vamos entender aonde é que a gente potencializa as
pessoas. Então como é que eu posso olhar para um circo, como o do Tubinho, que
potencializa aquelas pessoas que tão ali e achar que ele não tem que se preocupar
em querer agradar ou não querer agradar? Eu posso dizer isso, talvez, pra alguém
diga “Eu quero fazer o que tá na minha cabeça, eu não quero me preocupar com
nada, eu não quero me preocupar com o público, com ninguém”. E aí é aquilo:
“Você pode fazer isso, então, na tua casa, entendeu? Se você convidou alguém
pra ver, no mínimo você tá propondo alguma coisa aqui... O que você tá
propondo?” E aí “Não quero propor nada, não quero”... Né? Que é uma das
questões que hoje a gente discute com esse pós-dramático, com essa coisa
ensimesmada que acaba pedindo um público especializadíssimo. Agora, você não
quer agradar mesmo esse público especializadíssimo 42?
Assim sendo, por mais que os espetáculos circenses, em sua maioria, não tratem
de temáticas ligadas diretamente à ideia que temos de um teatro político e engajado, não
posso dizer que há ausência de função política/educativa no circo.
O circo é extremamente político na relação que estabelece com a cidade e os
espetáculos em si são catalisadores de toda essa relação arduamente arquitetada. Ao mesmo
tempo, esses espetáculos necessitam “sobreviver” e possuem o esmero de acabamento na
medida em que lhes é possível. Nesta mesma entrevista, Tiche Vianna comentou:
Talvez o agradar esteja vinculado a coisas que são valores pra eles. (...) Os
conteúdos críticos estão ali na própria forma de organizar as relações com a
cidade. No modo de organizar as relações é que o conteúdo é crítico. (...)A
sensação que eu tenho toda vez que eu vou assistir o Tubinho é que o espetáculo
é uma das coisas que está inserida dentro de uma relação ritual que aquele circo
41
Tiche Vianna, do Barracão Teatro, foi responsável pela preparação de elenco, no Circo de Teatro Tubinho,
do espetáculo Cabocla Bonita. O espetáculo foi redirigido por Ésio Magalhães, também do Barracão Teatro, e
fez parte do projeto de reelaboração de repertório financiado pela Petrobrás, através da lei de incentivo à
Cultura do Ministério da Cultura e Governo Federal.
42
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
75
estabelece com a cidade. Nesse sentido, eu digo “Não há nada mais grego
enquanto rito ditirâmbico do que o circo de teatro Tubinho no interior do estado
de São Paulo”. Pra mim, o que eles fazem é exatamente uma retomada de um rito
artístico. Onde na Grécia, pela natureza da cultura grega, daquelas pessoas,
daquela época, que faziam daquele jeito e tinham aquelas preocupações, as
tragédias ocupavam o lugar de fazer com que as pessoas entendessem princípios
éticos, morais, de convívio, de solidariedade, de transversalidade, de
relacionamento e construção social, tudo isso se dava através de um rito religioso
que depois desembocou numa coisa chamada “teatro”. Pra mim é exatamente o
que acontece quer dizer, quando aquele circo chega na cidade, ele muda uma
dimensão de cidade43.
Fazer rir e emocionar pode transformar a vida das pessoas. Ampliar a
imaginação dos espectadores, através não de uma ação direta, mas sim de uma linguagem
artística, pode lhes proporcionar a ampliação da consciência de seu nível de existência.
E o circo é capaz de fazer isso, dialogando e agregando, num mesmo espaço,
pessoas das mais variadas origens e classes sociais, pois ali se concretiza um tipo de relação
que está para além das questões de ordem econômica: aquela, que deveria estar presente em
todo e qualquer espetáculo, estabelecida entre um ser humano e outro.
43
Ibidem.
76
2.
O PAVILHÃO ARETHUZZA
2.1 Trajetória
Narro, a partir de agora, a trajetória das famílias Viana, Santoro e Neves, que
compuseram o Circo Teatro Pavilhão Arethuzza, ao longo de seus quase cem anos de
existência.
A família Neves foi a fundadora deste circo e, com o passar dos anos, os
membros das famílias Viana e Santoro foram agregados à companhia – como ocorria, e
ainda ocorre, comumente nos mais diversos circos.
A partir do momento em que esses novos artistas integraram o circo, passaram a
fazer
parte
do
que
Erminia
Silva
(2007)
chama
de
processo
de
formação/socialização/aprendizagem circense, que os inseria não só no espetáculo, como
também no modo de vida do circo.
Santoro Junior, da quinta geração da família Viana-Santoro-Neves, conta que,
além dos Viana e Santoro, muitas outras pessoas também foram agregadas ao circo e que:
(...) todos os que passavam a participar da família entravam para o mundo do
circo adaptando-se às regras do mesmo, assimilando alguma atividade circense.
Aqueles que não pertenciam à família por laços de sangue, passavam a pertencer
por afinidade, sendo muito comum, ainda hoje, nas festas e reuniões de família,
nas grandes datas, ouvir-se expressões: “Oi primo, como vai?” ou “Tio, o senhor
está bem?”. Todavia este parentesco foi adquirido pela convivência comum,
durante tantos anos, debaixo da lona do circo (SANTORO JR., 1997: 25).
Desse modo, ao me referir à família do Circo Teatro Pavilhão Arethuzza, usarei
a expressão Viana-Santoro-Neves como se esta correspondesse a uma única família.
Esta trajetória será contada baseada nas informações levantadas através de três
principais fontes escritas: a transcrição da entrevista de Rosalina Viana e Jacira Viana, avó
e mãe de Fernando Neves – da sexta geração da família – concedida ao pesquisador Pedro
Della Paschoa Júnior, no ano de 1972 e cedida a esta pesquisadora gentilmente pelo próprio
Fernando Neves; a tese de doutorado “O teatro no circo brasileiro. Estudo de caso: CircoTeatro Pavilhão Arethuzza”, do pesquisador José Carlos dos Santos Andrade (2010); e a
77
monografia “Memórias de um Circo Brasileiro – Circo – Circo Teatro – Pavilhão
Arethuzza”, de Antônio Santoro Junior, que hoje é professor de História da Arte .
Tão importantes quanto essas fontes escritas foram as entrevistas concedidas
por Fernando Neves e Santoro Junior, os representantes vivos da família que mais
trabalham no sentido de se fazer conhecer a sua história. Para recuperar esta memória eles
se basearam em fontes escritas, como documentos, recibos, cartas trocadas entre os
familiares e reportagens de jornal e também nos relatos orais de seus parentes mais velhos.
Mas se basearam, principalmente, em suas próprias lembranças, pois Santoro Junior atuou
no Pavilhão Arethuzza até os vinte e quatro anos e Fernando Neves durante sua infância.
Figura 7: Fernando Neves no colo de Margot Louro e Oscarito.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Assim sendo, o enfoque do estudo desta família cairá, principalmente, sobre o
período ligado diretamente às memórias – pessoais e reconstituídas pelos relatos dos
78
parentes mais velhos – de Santoro Junior e Fernando Neves, que compreendem a década de
1940 a diante, período este em que o Pavilhão Arethuzza se fixou na cidade de São Paulo.
Deixo claro que o estudo sobre o Pavilhão Arethuzza adquiriu um caráter mais
teórico-descritivo do que o estudo acerca do Circo de Teatro Tubinho, devido ao fato do
primeiro remontar a outro tempo – muito anterior até ao meu nascimento –, ao passo que o
segundo circo, por estar em atividade, me permitiu um contato mais direto, que compôs,
consequentemente, um estudo com caráter mais descritivo-analítico e reflexivo.
Desse modo, tudo o que consegui reunir acerca do Pavilhão Arethuzza adveio
de pesquisas bibliográficas e as entrevistas. Neste sentido, estas últimas foram essenciais
para a pesquisa, já que estou tratando essencialmente das questões da cena e do
desempenho dos atores deste circo, temas geralmente pouco relatados nas fontes escritas
sobre o circo-teatro. Assim sendo, me senti muito mais próxima de remontar e imaginar
como se encenavam as peças no Pavilhão Arethuzza ao ouvir os “causos” e os trechos de
diversas peças declamados por Santoro Junior durante as entrevistas, por exemplo.
Figura 8: Fernando Neves (à esquerda) e Antônio Santoro Junior (à direita) na entrevista realizada em
27/08/2014.
79
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
As origens do Pavilhão Arethuzza remontam ao século XIX, quando João
Miguel de Faria – já feito Comendador pelo Imperador Dom Pedro II – fundou o Circo
Glória do Brasil, entre 1865 e 1875. Não se sabe muito sobre a vida de João Miguel antes
do circo, mas já aqui, destaco uma particularidade do Pavilhão Arethuzza: trata-se de um
circo fundado por um brasileiro, mas que, com toda a certeza, sofreu influências dos circos
europeus que chegaram ao Brasil a partir da década de 1830.
João Miguel era uma figura extremamente peculiar e, mesmo paraplégico,
locomovendo-se através de uma invenção própria – uma espécie de carro puxado por bodes
–, comandava o circo, coordenando, inclusive, a montagem e desmontagem da lona. Além
das tarefas administrativas, o Comendador realizava no espetáculo um prestigiado número
de encantamento de serpentes44:
Sua atuação no picadeiro era um dos números mais aguardados. Tinha início com
o diretor do circo retirando a víbora de dentro de uma caixa, com as próprias
mãos e nenhum tipo de proteção. Segurando a áspide com firmeza, fixava os
olhos em determinado espectador, até que o público todo tomasse conhecimento
sobre quem havia recaído a sua escolha. Em seguida, a cobra colocada no chão
obedecia ao comando do encantador, rastejando em direção ao escolhido. A
serpente erguia-se em frente ao espectador, permanecendo imóvel, enquanto
aguardava que João Miguel, à distância, solicitasse que o cavalheiro tirasse o
chapéu com o qual havia vindo ao circo e o colocasse na cabeça da cobra. (...) O
feito arrancava aplausos calorosos da plateia, mas não ficava nisso apenas. A um
segundo comando, a cobra deslocava-se mansamente, dirigindo-se agora a uma
senhorita que, certamente, já deveria ter sido escolhida previamente pelo
Comendador, porém sem o conhecimento desta, naturalmente. Frente à dama,
entre surpresa e sobressaltada, erguia-se a serpente e, pacientemente, esperava
que esta lhe removesse o chapéu (...). O circo quase vinha abaixo de tantos
aplausos (ANDRADE, 2010: 300).
44
Não se sabe como e com quem João Miguel aprendeu tal ofício. Por lidar tanto tempo com os ofídios, João
Miguel desenvolveu uma fórmula que neutralizava o veneno das cobras; esta fórmula foi aprimorada pelo
Instituto Butantã e usada como soro antiofídico até hoje (ANDRADE, 2010).
80
Figura 9: O comendador João Miguel de Faria e sua esposa Maria Alexandrina, s.d.
Fonte: ANDRADE, 2010. Anexos.
O Comendador era casado com Maria Alexandrina de Farias, de origem
circense, e juntos tiveram uma filha, Elvira, que desde muito cedo demonstrava habilidade
para o número de equilíbrio sobre bola. Alguns anos mais tarde, o Pavilhão Arethuzza teve
sua história abalada por uma grande fatalidade (muito recorrente, aliás, nas histórias de
tantas outras famílias circenses): o marido de Elvira, Benedictus de Oliveira, morreu em
pleno espetáculo, após um salto mal sucedido e uma queda do trapézio.
Benedictus exibia-se num alto trapézio sem a utilização de rede e seu número
agradava muito a plateia, incentivando-o a criar dificuldades na realização do
mesmo. Certa noite, não sabemos exatamente em que cidade, pois estas histórias
vieram passando por tradição oral, entusiasmado com o circo cheio e os aplausos,
Benedictus tentou fazer novas peripécias em um de seus trucs, porém foi mal
sucedido e caiu do trapézio sofrendo uma queda fatal. Logo a barreira retirou o
corpo inanimado do picadeiro, a banda tocou o galope, outros artistas foram se
apresentando até que o espetáculo acabasse com o mesmo dinamismo de sempre.
Finalmente após o término das apresentações desta fatídica noite os artistas e
81
companheiros puderam chorar à vontade, soltando suas emoções e preocupandose a partir de então com os problemas do funeral e enterro de Benedictus. Este
fato comprova aquela tese de que o mundo artístico, o espetáculo precisa sempre
continuar e nunca pode parar (SANTORO JR., 1997: 16).
O Circo Glória do Brasil continuou sua história, mas Elvira nunca superou
totalmente a perda do marido. Para sair daquele ambiente impregnado pela lembrança do
acidente de Benedictus, Elvira partiu com outro circo para o exterior, deixando a filha,
Benedicta Elvira, aos cuidados dos avós.
A neta do Comendador, então, cresceu no circo e já na adolescência encantava
as plateias com seu número equestre, em que chegava até a executar movimentos sobre
uma parelha.
Em 1891, Antônio das Neves, um português que vivia no Brasil desde sua
infância, passou a trabalhar no Circo Glória do Brasil. Em pouco tempo, por ter se
mostrado um excelente artista e administrador, com apenas dezoito anos, tornou-se sócio do
Comendador João Miguel de Farias, no agora chamado Circo Luso Brasileiro. Em 1895
casou-se com Benedicta Elvira e assumiu a direção total do circo, que ganhou de presente
de casamento e que passou a se chamar Circo Colombo (Idem). Nestes primeiros tempos,
Santoro Junior explica que:
(...) o circo era envolvido apenas por algodãozinho cru, tecido muito frágil e
sensível às intempéries, assim era muito comum nos períodos das grandes chuvas
o público ir aos espetáculos munidos de guarda-chuvas, que eram abertos assim
que a chuva aumentava, entretanto, ninguém saía e exigiam que o espetáculo
continuasse até o fim. Artistas e animais ensopados continuavam sua lida no
picadeiro, enquanto as arquibancadas mostravam um público molhado, de
guarda-chuvas abertos, mas divertido e feliz. (Idem: 18).
Num segundo momento, o circo passou a ser impermeabilizado com cera,
possibilitando maior proteção e, finalmente, surgiu a lona impermeabilizada, o que permitiu
ao circo percorrer vários estados brasileiros.
82
Figura 10: Antônio das Neves, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Ainda no final do século XIX, Elvira, mãe de Benedicta Elvira retornou ao
Circo Colombo e casou-se com o Alferes Eugênio Barbosa. O circo prosperou e viajou pelo
país, passando pelo interior de São Paulo, interior fluminense e o sul de Minas Gerais.
Antônio das Neves e Benedicta Elvira tiveram, então, nove filhos. Arethusa
nasceu em 1896, Aristides em 1898, Guiomar em 1900, Arthur em 1902, Oscar em 1903,
Jurandyr em 1905, Alzira em 1907, Antônio Neves Junior em 1909, e mais tarde, em 1917,
Gisella.
83
Figura 11: Antônio das Neves, a esposa Benedicta Elvira e filhos, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
No final da década de 1910, ao passar com o circo por São Lourenço/MG,
Antônio das Neves foi procurado por uma viúva, mãe de cinco filhos, que pedia abrigo para
ela e sua família. Era o início da parceira das famílias Neves e Santoro. Dessa forma, a
viúva Mariana Mauro Santoro e seus filhos – José, Maria da Conceição, Maria das Dores,
Antônio e Maria Sebastiana – passaram a integrar o então Circo Colombo. As crianças –
que nada conheciam acerca das técnicas circenses – foram inseridas rapidamente no
processo de formação/socialização/aprendizagem do circo e passaram a integrar o corpo
artístico do espetáculo, apresentando diversos números de habilidades.
Com o passar dos anos, quatro irmãos da família Neves se casaram com quatro
irmãos da família Santoro: Aristides Neves e Maria das Dores Santoro, Oscar Neves e
Maria da Conceição Santoro, Antônio Neves Junior e Maria Sebastiana Santoro e Alzira
Neves e Antônio Santoro – estes últimos, pais de Santoro Junior. Tem-se, então a mais
importante estruturação desta companhia circense, “resultado da tradição do Circo
84
Colombo – família Neves – com a formação circense adquirida e assimilada pela família
Santoro” (Idem: 26).
Os anos passaram e mais tragédias marcaram a história do Arethuzza, entre elas
a morte acidental da caçula de Antônio das Neves e Benedicta Elvira, Gisella, com apenas
um ano e três meses, numa estação ferroviária. Benedicta Elvira, que já apresentava
sintomas de distúrbios mentais, piorou significativamente com a morte da filha e precisou
ser internada na casa de Assistência a Alienados na cidade de Barbacena, por volta de 1920,
onde residiu até sua morte em 1926.
Neste mesmo ano45, o Circo Colombo passou a se chamar Circo-Teatro
Arethuzza, nome da primogênita de Neves e Benedicta Elvira.
(...) Conta-se que no mesmo mês e ano da morte de Benedicta Elvira, fevereiro de
1926, a denominação “Arethuzza” passou a ser utilizada, provavelmente por
sugestão de um espanhol, “habitué” do circo, que conversando com Antônio das
Neves, disse que Colombo era um nome trágico e de desgraça. Dizia ainda que
“Colombo descobriu América e morreu na miséria”, assim, já que sua filha
primogênita possuía grande destaque no mundo artístico, porque não usar seu
nome como denominação do circo, inclusive mudando a grafia original de “s”
para “zz”, para dar maior charme e atrativos (Idem: 25).
A nomenclatura Circo-Teatro passou a ser usada, pois nessa época a pantomima
já era um dos momentos mais aguardados do espetáculo. De acordo com Santoro Junior
(1997), foi passado oralmente que o Pavilhão Arethuzza originalmente não apresentava
pantomimas, sendo seu programa preenchido com os números de destreza física e exibição
de feras amestradas.
Somente a partir de um determinado momento, ao visitarem um circo que
chegou da Europa e perceberem que o público se interessava pelas pantomimas ali
representadas, os artistas do Pavilhão Arethuzza passaram também a representá-las46.
Segundo Santoro Junior, as pantomimas foram caindo cada vez mais nas graças do público,
ao passo que se agravava a dificuldade em se manter os animais adestrados. Desse modo, as
45
Na documentação escrita preservada por Santoro Junior, um programa de Matão (SP), de 03/01/1925, é o
último documento em que aparece o nome Circo Colombo e em um envelope de carta de Carangola (MG),
destinada à Arethusa, em 03/07/1926, aparece pela primeira vez o nome Circo Teatro Arethuzza.
46
Santoro Junior não soube precisar exatamente quando ocorreu essa mudança no espetáculo do Pavilhão
Arethuzza com a inclusão das pantomimas.
85
pantomimas passaram a ser mais desenvolvidas e elaboradas, porém representadas ainda no
picadeiro.
Devo tecer uma consideração importante acerca das afirmações anteriores,
colhidas em entrevista. Como evidenciado no primeiro capítulo, não acredito que a questão
da dificuldade em se manter feras tenha sido determinante no processo de consolidação do
fenômeno que ficou conhecido como circo-teatro; acredito muito mais que este se
consolidou pelo fato das pantomimas agradarem satisfatoriamente em terras brasileiras, nas
quais a população ainda estava desacostumada à linguagem teatral – fato que, a meu ver, é
comprovado pela própria fala de Santoro Junior redigida adiante.
Figura 12: Circo-Teatro Arethuzza, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
86
Não se sabe ao certo quando o Circo-Teatro Arethuzza ganhou o tablado de
madeira que, com o passar do tempo, cresceu em altura, transformando-se no palco teatral
encontrado nos diversos circos-teatro. Santoro Junior, em entrevista, resumiu os fatos em:
Então meu avô começou a pensar em pegar as pantomimas... Ele tinha a
companhia dele, já tava pronta. (...) Então aí começa a fazer as pantomimas, as
primeiras, e depois eles mesmos começam a criar as pantomimas. Aí eles
começaram a perceber que o pessoal fazia assim (faz um gesto de levantar a
cabeça, como se tivesse alguém sentado na sua frente e ele precisasse desviar
para assistir algo que estava lhe chamando a atenção), davam risada e faziam
assim (repete o gesto). Então eles sentiram que eles precisavam estar um
pouquinho mais alto, eles fizeram um tapume, um tabladozinho de 10 cm... O
início do palco. Então daí o povo já começou a se acomodar melhor. Até que ele
foi crescendo, até que o picadeiro foi embora, o palco fica lá e ele faz o circoteatro47.
Já na década de 1930, a política da região Sudeste – região pela qual o Circo
Teatro Arethuzza circulava – encontrava-se num panorama irregular, devido à Revolução
de 1930 e à Revolução Constitucionalista de 1932:
O clima de insegurança era generalizado e as trupes que se deslocavam pelas
estradas em busca de novas praças acabavam sempre por cruzar com tropas
militares em movimentos de manobras. A população das pequenas cidades,
ressabiada e intimidada, não se sentia motivada a sair de casa e qualquer tostão
devia ser guardado para os dias piores que poderiam advir. A soma desses fatores
significava arquibancadas vazias (ANDRADE, 2010: 385 e 386).
Em 1939 houve ainda a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), que comprometia a liberdade de expressão das companhias. Esses fatores, unidos ao
desejo do já idoso Antônio das Neves de ver a família reunida, fizeram com que o CircoTeatro Arethuzza fixasse residência em São Paulo, primeiramente no bairro de Santana e
depois na Mooca, e passasse a percorrer os bairros da capital paulistana assim como havia
percorrido as cidades do interior do país. Sobre essa estabilização em São Paulo, Santoro
Junior contou em entrevista:
(...) nós chegamos aqui (em São Paulo), na década de 40... Meu avô quando
chega aqui em São Paulo e vê a movimentação, ele falou “Gente, viajar não mais.
Primeiro eu não quero judiar mais de vocês e segundo, aqui vocês vão procurar o
47
Antônio Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
87
próprio crescimento, e vão perceber que São Paulo vai ter tudo”. E dito e feito. Aí
ele foi pra Santana, e quando ele chegou em Santana, ele viu umas casas, aí
conversando, falaram “Olha.. pro que o senhor tá querendo acho que na Mooca
tem num sei quê...”. Ele foi lá, ficou apaixonado, “É o que eu quero”, então ele
comprou e fixou moradia na Mooca, nunca mais saiu de lá... Todo mundo saiu de
lá pro cemitério, que ele comprou um túmulo ali... Então, ali na Mooca, a gente
primeiro começou a correr os bairros, depois foi correndo os outros bairros;
primeiro o bairro da Mooca a gente usou e abusou, depois foi correndo48.
Na década de 1940, o Circo-Teatro Arethuzza sofreu uma mudança estrutural,
transformando-se num pavilhão, rodeado de metal e coberto de zinco; desse modo, o circo
passou a se chamar Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza e consolidou-se como uma das
companhias de circo-teatro mais bem sucedidas daquele momento. O palco, no tradicional
molde italiano49, era dotado de urdimentos, coxias e porão e a plateia era distribuída não
mais em arquibancadas circulares, mas sim no formato retangular característico das salas de
espetáculos teatrais.
Com a consolidação da estrutura do pavilhão, o picadeiro desapareceu e os
números da primeira parte passaram a ser representados também no palco; os de grande
porte, como os voos e volteios equestres, que já haviam sido a grande atração dos circos de
cavalinhos, foram substituídos por números de pequeno porte, conhecidos, inclusive entre
os artistas do Arethuzza, como números de salão, que contavam com a exibição de
pequenos animais, como cachorros e macacos, malabarismos, acrobacias, icários, números
musicais, regionais, de magia e prestidigitação (ANDRADE, 2010; SANTORO JÚNIOR,
1997).
Em relação à segunda parte do espetáculo, Santoro Junior conta que
Tendo aperfeiçoado o Circo Teatro, o Arethuzza começou a preocupar-se com as
superproduções, entrando assim na década de 40 deslumbrando milhares de
espectadores que se extasiavam com as montagens, a interpretação dos atores, o
texto decorado na íntegra sem auxílio de ponto, os cenários e principalmente o
guarda-roupa a caráter e o cuidado na apresentação das apoteoses, além de efeitos
especiais, numa época em que não havia a tecnologia avançada de hoje e tudo era
efetuado manual e artesanalmente (SANTORO JR., 1997: 43).
48
Ibidem.
O modelo de palco italiano, difundido a partir da virada do século XV para o XVI, no chamado
Renascimento Italiano, foi o adotado pelos circos-teatro. Porém, não sei precisar se este termo era usado já
entre os circenses no Brasil no início do século XX.
49
88
A partir da década de 1950, a atividade circense dos circos itinerantes de lona,
na região Sudeste, sofre significativa diminuição. Santoro Junior – como diversos outros
autores – afirma que o êxodo dos artistas circenses para a televisão e o cinema, o posterior
advento desses veículos de comunicação, a crescente escassez de áreas urbanas centrais
próprias às instalações circenses e os altos impostos cobrados pelas prefeituras fizeram com
que muitos circos encerrassem suas atividades (Idem). Porém, não posso deixar de citar
novamente o dado apresentado pela pesquisadora Erminia Silva (2007) que situa a profunda
mudança ocorrida no processo de formação/socialização/aprendizagem circense como fator
determinante da diminuição da atividade circense nos circos-família.
O Pavilhão Arethuzza ainda conseguiu manter suas atividades durante toda a
década de 1950, graças à “versatilidade, polivalência e amor pelo circo de seus artistas e
funcionários, tanto os da família como os de fora” (SANTORO JR., 1997: 58). Para driblar
as adversidades, a companhia utilizou várias estratégias como, por exemplo, enxugar as
encenações, que passavam a ter, muitas vezes, metade dos atos que tinham originalmente.
Santoro Junior conta que
O grande aumento da população urbana que vinha ocorrendo nos últimos anos, a
industrialização acelerada, o excesso de espera das conduções para se chegar ao
trabalho, tudo isto mudou o perfil do homem da cidade, e quando ele vai ao circo,
quer um divertimento imediato. Ele se mexe nas cadeiras do circo, não aceita
mais os épicos, quer mais agitação. (...) Para agradar o público, as peças vão
sendo enxugadas, isto é, seus textos são encurtados, como o caso da peça
“Família Maldita” levada em três atos, que na realidade era uma adaptação da
peça francesa intitulada “As duas órfãs”, que continha sete atos e dois quadros
(Idem: 58).
Além disso, os efeitos especiais – comumente utilizados pelos circos e também
os teatros há séculos – passaram a ser explorados mais ainda, na tentativa de prender a
atenção do público, cada vez mais disperso.
Este ponto merece atenção. Segundo a pesquisadora Erminia Silva50, não se
deve analisar esta mudança apenas como uma alternativa de driblar a crise. Entende-se que
50
Esta reflexão fez parte da arguição de Erminia Silva na Banca de Qualificação desta dissertação de
Mestrado, ocorrida em 28/04/2014.
89
houve esta mudança estética nos circos – entre eles, o Pavilhão Arethuzza – devido também
ao advento do cinema. O circo, sempre antropofágico e agregador das novas tendências e
conformações artísticas e estéticas, passou a apresentar encenações, então, que dialogavam
mais com a arte cinematográfica.
Figura 13: Elenco do Pavilhão Arethuzza posando ao redor do retrato do presidente Getúlio Vargas, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Também na década de 1950, a família Viana-Santoro-Neves passou a contratar
a família Fonseca para a primeira parte do espetáculo. Desse modo, o Pavilhão Arethuzza
nunca deixou de apresentar a parte de variedades, porém o fato de terceirizarem esta criou
uma ruptura no processo de formação/socialização/aprendizagem da família Viana-SantoroNeves, de modo que as gerações mais novas deixaram de ser receptoras dos saberes –
relacionados à parte de variedades – das gerações mais velhas.
Fernando Neves afirmou, em entrevista, que seus antepassados se apaixonaram
tanto pela arte da representação teatral que quiseram se dedicar totalmente a ela e que
também já estava nos planos da família encerrar, em breve, as atividades:
90
Eles já tinham mais idade... Eles poderiam ter passado pros outros, mas eles
queriam acabar e não passaram nada pra gente. Mas eles se apaixonaram por
representar mesmo, pelo ator. Era mais importante pra eles. Antes mesmo deles
envelhecerem, que eles ainda podiam, eles começaram a terceirizar, de olho no
espetáculo de teatro. Mas não que não tinha, eles terceirizaram, contrataram
outras famílias51.
Em 1964, a família Viana-Santoro-Neves resolveu encerrar suas atividades, ao
constatar que não havia mais condições de manter o mesmo padrão de qualidade das
montagens com as quais havia se consagrado junto ao público, colocando um ponto final –
transformado posteriormente em reticências, principalmente, por Santoro Junior e Fernando
Neves – em sua história.
Figura 14: Antônio das Neves, sua segunda esposa Rosa e seus descendentes, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
2.2 Processo de formação/socialização/aprendizagem no Pavilhão Arethuzza
51
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
91
Atualmente, podemos aprender as técnicas das artes circenses – principalmente
às ligadas aos números de destreza física 52 – nos mais diversos espaços, como escolas
profissionalizantes, projetos sociais e até mesmo academias de ginástica. De acordo com
Rodrigo Mallet Duprat,
O acesso aos saberes circenses e a instalação de novos modelos de formação dos
artistas também propiciaram certa “democratização do circo” enquanto
conhecimento que pode ser vivenciado. A atualidade mostra que os saberes
seculares do circo podem ser vistos e vividos para além dos espaços consagrados
– como a lona, por exemplo –, e, assim como a formação se estendeu para escolas
profissionalizantes, projetos sociais e centros culturais, ela também alcançou
espaços anteriormente não vinculados a tais saberes. Dessa forma, escolas
formais, incluindo as universidades, academias de ginástica e outros locais
especializados em práticas recreativas, receberam o circo como uma nova
possibilidade de prática, mesmo quando não há o interesse pela formação
profissional (DUPRAT, 2014: 76).
Porém, nem sempre foi assim. Houve um tempo – até meados do século XX –
em que os conhecimentos relacionados às artes circenses eram mantidos no interior das
famílias de circo, que os transmitiam de geração em geração oralmente. Esses
conhecimentos constituíam uma formação ampla e permanente, que visava não só o
aprendizado de uma modalidade circense específica, como também um conjunto de saberes
necessários para a manutenção da vida e da arte circense.
O conteúdo deste saber era (e é) suficiente para ensinar a armar e desarmar o
circo, preparar os números, as peças de teatro e capacitar crianças e adultos para
executá-los. Esse conteúdo tratava também de ensinar sobre a vida nas cidades, as
primeiras letras e as técnicas de locomoção do circo. Através desse saber
transmitido coletivamente às gerações seguintes, garantiu-se a continuidade de
um modo particular de trabalho e uma maneira especifica de organizar o
espetáculo. (SILVA; ABREU, 2009: 26).
Como dito anteriormente nesta dissertação, esses circos são chamados de
“tradicionais” ou circo-família, tendo como características em comum a itinerância, um
modelo de formação/socialização/aprendizagem integral, transmitido oralmente de pai para
filho e diretamente ligado a um modo de organização do trabalho – marcado “pelas relações
52
A arte do palhaço é também extremamente difundida na atualidade. Porém, são raros os cursos ou escolas
que se debruçam sobre o estudo da palhaçaria circense, sendo mais comum a abordagem do palhaço pelo
campo do teatro, muitas vezes integrando parte de um tipo específico de treinamento técnico do ator.
92
singulares estabelecidas com as realidades culturais e sociais específicas de cada região ou
país” (Idem: 25) –, ligado diretamente, por sua vez, à configuração estética do espetáculo.
Desse modo, o Pavilhão Arethuzza pode ser chamado de tradicional ou circofamília, sendo a família Viana-Santoro-Neves o seu mastro central. Nesta família a síntese
da filosofia circense era expressa, nos seus primórdios, pelo Comendador João Miguel pela
máxima “Em circo todo mundo tem que fazer um pouco de tudo” (ANDRADE, 2010: 301).
Santoro Junior comenta:
O circo era uma comunidade, onde todos se auxiliavam e o objetivo maior era o
bem do circo. Não havia distinção de trabalhos, a estrela, o trapezista, a dupla
cômica, na hora da necessidade assumiam o papel de comparsaria, ajudavam a
pregar a cruz de Cristo na Semana Santa, montar e desmontar as lonas e os
mastros em cada nova praça. As mulheres do circo, excelentes artesãs
confeccionavam peças do guarda-roupa, bordavam e criavam modelos, de acordo
com as instruções fornecidas por Arethusa, obedecendo um rigoroso critério de
pesquisa de arte para os trajes da época. Para a venda de souvenirs na hora do
intervalo, havia também trabalho comum: a confecção tantos dos doces, balas,
como dos invólucros que agradavam a vista e atraíam a atenção principalmente
das crianças (SANTORO JR., 1997: 56).
A respeito do fato do circo-família se sedimentar pela transmissão oral dos
conhecimentos, devo ressaltar que essa tradição deve ser entendida “não apenas como
oralidade, mas como o conjunto das memórias gestuais, sonoras, de relações sociais e
culturais (...)” (SILVA, 2007: 95).
Esclarecido esse ponto, destaco que a tradição oral determinava toda a
formação do artista circense, que, desde criança, se habituava por completo a este tipo de
transmissão de saberes. Acerca disso, Santoro Junior contou em entrevista:
Meu grande problema na verdade é que eu comecei a ler bem cedo, mas eu
aprendi tudo decorado, então o que me fala é fácil, mas o que eu leio é mais
complicado de guardar. E isso veio me complicar a vida depois do ginásio pra
frente, porque tinha que ler... Não tinha todo mundo me falando as coisas, e tal53.
Aqui percebo claramente como Santoro Junior foi habituado a aprender pela
oralidade e não pela escrita. Durante toda a entrevista, Santoro Junior ia me contando várias
53
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
93
passagens e histórias e sempre que fazia referência a uma peça parava o que estava
contando e recitava um “bife” 54 inteiro! Estava eu, diante de um senhor de mais de setenta
anos com uma memória absurda, que recitava trechos belos e complexos das mais diversas
peças que representou durante a vida, de um modo extremamente tocante e verdadeiro...
Santoro Junior disse também que até hoje, nos almoços de família, entre um
diálogo e outro, ele e os outros parentes passam a elevar a voz e a declamar trechos inteiros
das peças clássicas de circo-teatro que representavam, matando, de certa forma, um pouco
da saudade da vida circense.
O trecho abaixo de um dos textos de Walter de Sousa Júnior, que li
posteriormente à entrevista com Santoro Junior, me remeteu diretamente ao que senti
enquanto ele recitava os trechos das peças:
Ao saber o texto de cor e salteado, o circense usa a prática requerida para a sua
atividade profissional como um sistema reforçador da sua identidade, pois, ao
recitar o texto, este já faz parte de sua personalidade artística – é o personagem
que fala por ele, e ele, ao relembrar o texto, fala pelo personagem – de modo que
identificação e alteridade se confundem num jogo de memória em que as cartas e
suas posições são conhecidas de antemão, o que não tira a graça do exercício. É a
relação entre memória e oralidade (SOUSA JR., 2012: 12 e 13).
O Pavilhão Arethuzza – assim como diversos outros circos-família – formava
uma comunidade de regras próprias e muito rígidas, na qual havia um “sentimento de
família muito forte, que era sempre estimulado através de uma obediência inata ao dono do
circo, geralmente a pessoa de mais idade e o parente mais antigo” (SANTORO JR., 1997:
30).
Essa pessoa, descrita por Santoro Junior, responsável pela formação dos
profissionais circenses era considerada um mestre:
54
Jargão usado no teatro. Um “bife” é uma fala extensa de uma personagem.
94
Mestre da arte circense, mestre de um modo de vida, mestre
em saberes – ou seja, um mestre “pertencente à tradição”,
pois durante toda a sua vida participou das experiências de
socialização/formação/aprendizagem que caracterizam o
circo-família (SILVA; ABREU, 2009: 106).
Na família Viana-Santoro-Neves a
figura do mestre foi representada por Antônio das
Neves, até a sua morte na década de 1950. A
partir desse momento, Arethusa Neves assume o
posto de figura centralizadora da família; porém,
Arethusa, mesmo antes da morte de seu pai, já era
muito requisitada para a resolução das questões
Figura 15: Antônio das Neves, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro
Junior.
mais importantes do circo.
Santoro Junior afirma que era quase
uma lei não escrita nos circos o fato de que toda criança deveria estudar, apesar do Estado
ainda não ter tornado obrigatória a educação básica (SANTORO JR, 1997). Desse modo,
enquanto na década de 1920, 71,2% dos brasileiros não sabiam ler e escrever
(RAVANELLO FERRARO; KREIDLOW, 2004), no circo era comum que as pessoas
fossem alfabetizadas, pois conhecer a língua portuguesa fazia parte da formação integral do
indivíduo no ambiente circense.
Porém, a vida nômade no circo dificultava a matrícula das crianças nas escolas
regulares. No Pavilhão Arethuzza este problema foi resolvido com a contratação de um
professor particular, Eugênio Barbosa, que acompanhava as viagens do circo e que foi
responsável pelo ensino de todas as crianças das primeiras gerações do Arethuzza do século
XX. A partir da década de 1940, com o pavilhão fixo na cidade de São Paulo, as crianças
passaram a frequentar as escolas públicas, porém a sua formação continuava sendo
complementada no circo.
Na descrição abaixo, Santoro Junior nos mostra como a educação no Pavilhão
Arethuzza era completa e dava subsídios para o desenvolvimento pessoal e artístico de seus
integrantes:
95
À época do padrinho Barbosa, era imprescindível o ensino da Aritmética, pois se
alguém não conseguisse exercer a função de artista, poderia partir para outras
atividades, brincava-se na época inclusive, que poderia ser um excelente
bilheteiro; Português, a língua pátria, a forma de se expressar, pois não se admitia
a possibilidade de um ator não saber pronunciar direito as palavras, que muitas
vezes se tornavam a chave de uma importante trama; Francês, que era a língua
estrangeira mais utilizada na época e permitia acesso aos textos clássicos;
Música, tendo em vista a importância da mesma no transcorrer de todo
espetáculo, principalmente para obter a sincronia necessária na apresentação uma
vez que números e trucs eram acompanhados pela batida e pelo ritmo da música;
Postura, pois o ator deveria saber como caminhar, comer, tomar cena, etc.;
Civismo, amor à Pátria, saber cantar o Hino Nacional e comportar-se
adequadamente quando de sua execução. (SANTORO JR., 1997: 30 e 31).
Em entrevista, Santoro Junior afirmou que no Arethuzza também se ensinava
História da Arte e que era comum a utilização de obras de arte de diversas escolas como
inspiração para a composição de cenas e apoteoses55.
Uma passagem engraçada narrada por Santoro Junior, também em entrevista,
merece destaque por evidenciar a formação diferenciada das crianças circenses:
Eu fui o último dos primos-irmãos, eu era muito pequenininho e eles achavam
que eu ia ser anão. Uma loucura... Mas assim: a tia Thuzza (remete-se à Arethusa
Neves) me pegava no colo e ia ler a peça, aí outro me pegava no colo, e eu ficava
lá, e eu dava palpite, eu falava que “não quero”, mas eu não saia de lá. Então
aquilo foi fazendo todo um contexto pra mim... Só pra você ter um paralelo: eu
tava com onze anos e fiz meu primeiro exame pra primeira série ginasial. Tinha
exame oral e pra mim caiu “A Escrava Isaura”, e daí a professora falou “Ah! „A
Escrava Isaura‟”, e aí eu falei “É...”. E aí eu fui falando coisas que a professora
ficou olhando assim pra mim, aí eu falei “Ah... eu sei até a música que ela tava
tocando no piano...”. Porque ela tocava no piano uma música e pela letra da
música, por ela ser uma escrava branca, localizaram e prenderam ela (...). “Você
quer que eu fale a música?”, ela falou “Quero”. E eu: “Desde o berço respirando,
os ares da escravidão, como semente lançada em terra de maldição.”, e a
professora falou “Onde você viu isso?”, “Ah eu li. Quer que eu cante a música?”,
“Ah, eu quero!”. (Cantando) “Desde o berço respirando, os ares...”, “Para!
Para!” e foi chamar o diretor! Ninguém sabia que eu era do circo... Então eu vim
de uma cultura assim56...
55
Cena final das peças, tanto de parte do teatro contemporâneo ao circo-teatro no Brasil, quanto das próprias
representações circenses. Após o final da narrativa da peça, montava-se ainda a apoteose, um grandioso e
espetacular quadro em movimento, que fechava com chave de ouro a encenação. Por exemplo, em ... E o céu
uniu dois corações, o autor Antenor Pimenta descreve a apoteose da peça: “Cenário: céu. Uma escada de
nuvens. No topo está Nely, vestida de noiva. Desce vagarosamente a escada e vai à coxia, estendendo a mão e
trazendo Alberto. O par sobe a escada e uma porta no céu, em forma de coração, vai se abrindo. Entram,
olham-se e a porta se fecha. Cortina. Fim da peça”.
56
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
96
Aliados aos ensinamentos citados anteriormente, considerados básicos e que
ampliavam significativamente o horizonte cultural dos integrantes da família VianaSantoro-Neves, havia ainda o ensino, desde o início do circo, a toda criança de um número
de destreza, de acordo com a sua preferência e habilidade. E, a partir do momento em que a
representação teatral passou a fazer parte do espetáculo deste circo, às crianças era ensinada
também a arte da interpretação.
Antônio das Neves foi o responsável pela formação – no plano da destreza
física – de todos os filhos e netos. Santoro Junior conta que o avô era extremamente rígido
e que, muitas vezes, as punições vinham em forma de sopapos:
A primeira vez que entrei em cena estava com tanto medo, foi uma emoção tão
grande que eu não conseguia parar de chorar. Então comecei a ser chamado de
ator mirim dramático. Toda peça eu tinha que entrar e chorar... E o povo se
comovia e chorava junto comigo. Uma vez, ainda na primeira parte do
espetáculo, na parte de variedades, eu tinha que andar no fio e não estava
conseguindo. Então comecei a chorar. Meu avô me fez voltar não sei quantas mil
vezes até acertar, e na última vez ele me disse: „Volta e não chora‟. Depois, no
número final quando ele entrava e segurava duas escadas e seus seis filhos nos
braços, ele foi tão, mas tão vaiado por ter gritado comigo! Eu tenho quase 70
anos e de vez em quando ainda acordo com as vaias57...
A idade apropriada para aprender as técnicas dos números de habilidade física
variava entre os quatro e sete anos, “idade considerada ideal para aprender os vários tipos
de saltos e adquirir o equilíbrio e controle do tempo e do corpo” (SANTORO, 1997: 32). E,
segundo Ermínia Silva
Não é demais recolocar a ideia de que no circo nada é apenas técnico. A criança
seria não só a continuadora da tradição, mas poderia ser também um futuro
mestre. Para ser um circense tinha que assumir a responsabilidade de ensinar à
geração seguinte. Ao longo de sua aprendizagem, a criança “aprendia a aprender”
para ensinar quando fosse mais velha. O “ritual de iniciação” – aprendizado e
estreia – era um rito de passagem, a possibilidade de tornar-se um profissional
circense. O contato com a geração seguinte era permanente, havendo um
envolvimento direto na aprendizagem. (SILVA; ABREU, 2009: 95)
57
Trecho transcrito de uma mesa redonda que Santoro Junior participou no ano de 2007 na Casa de Cultura
Amácio Mazzaropi, em São Paulo.
97
Desse modo, o artista circense tinha grandes responsabilidades desde cedo, pois
se exigia das crianças – do mesmo modo como se exigia de um adulto – disciplina, rigor e
determinação. Desde muito novas, as crianças faziam pequenas aparições nos números da
família ou mesmo nas representações teatrais, para perderem o medo e se habituarem a
estar à vontade no picadeiro e no palco.
2.3 A primeira parte do espetáculo
Fernando Neves e Santoro Junior disseram, em entrevista, que existe uma
“teoria” no circo-família, passada de geração em geração, de que “para ser artista de circo é
preciso saber saltar”. Desse modo, a primeira técnica apreendida pelos circenses era a
acrobacia, para, em seguida, após o desenvolvimento inicial das faculdades psicomotoras,
serem ensinadas as modalidades mais específicas como trapézio, contorção, equilíbrio no
fio e malabares, por exemplo.
Assim, cada filho e cada neto de Antônio das Neves se especializou em
determinado número. Arethusa começou a ensaiar o número de passeio no arame aos oito
anos e aos dez se tornou a primeira aramista brasileira a andar de bicicleta no arame, sem
rede de proteção, sem marombas e sem guarda-chuva. Guiomar estreou aos onze anos um
número aéreo e em seguida passou a ensaiar o número de equilíbrio sobre a bola em
homenagem à sua avó, Elvira. Jurandyr (Didi) era especialista em força capilar e Alzira
realizava o número de passeio aéreo58.
58
Modalidade que faz uso de anéis de metal ou corda, presos em uma estrutura sólida e fixa no alto do circo.
O número consiste em o artista andar, de cabeça para baixo, com os pés encaixados nesses anéis ou também
deslocar-se usando as mãos.
98
Figura 16: Arethuzza Neves, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Figura 17: Arethuzza Neves, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior
Dos filhos homens, Arthur era o único a não executar um número de habilidade
na primeira parte, permanecendo na barreira. Aristides era o Mestre de Pista, Oscar Neves
era o Excêntrico (ou palhaço Augusto), de nome Thomé, e Antônio Neves Junior o Clown
(ou palhaço Branco), de nome Sinhô. Juntos, Thomé e Sinhô formavam a dupla cômica59
da primeira parte e estes papéis eram tão relevantes e solidificados na estrutura familiar,
que ambos eram chamados no dia a dia pelos nomes de seus palhaços.
59
Adiante dissertarei mais detalhadamente acerca dos vários nomes usados para designar os palhaços da
dupla cômica.
99
Figura 18: Lembrança dos Irmãos Neves, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Os artistas do Pavilhão Arethuzza – assim como tantos outros de seus
contemporâneos – eram artistas polivalentes, que se apresentavam nas duas partes do
espetáculo e sabiam, no mínimo, saltar, cantar, tocar um instrumento, dançar e atuar.
Estimulados desde a infância, estes artistas desenvolveram uma série de técnicas e recursos
que se ajustavam perfeitamente às necessidades do espetáculo e da ação cênica.
100
Figura 19: Número da “Escada Plástica”, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Como já dito anteriormente, ao contrário do Oriente que mantém esta
característica do “ator polivalente”, no teatro oficial do Ocidente houve uma tendência de
especialização do artista da cena (performer) em uma determinada área, como o teatro ou a
dança, por exemplo. Acredito, porém, que, atualmente, estamos vivendo uma retomada da
busca deste artista completo, seja pelas dificuldades financeiras – que fazem com que o ator
também seja seu próprio cenógrafo, figurinista e diretor, por exemplo –, seja pela
intersecção cada vez mais comum das várias áreas da arte e a diminuição das fronteiras das
artes do espetáculo.
Portanto, a tendência atual do intérprete completo, que tantos acham original e
recente, nada mais é que a retomada do que era ser um artista de feira no século XVII, por
101
exemplo, e um artista de circo até meados do século XX. O que me prova, mais uma vez,
que estamos sempre reinventando algo que já nos é dado por uma tradição. Desse modo,
O artista circense era aquele ser sensível, que com seus truques, destrezas e
coragem executava seu número sempre com um sorriso nos lábios, aprendendo
desde criança a usar a mente para encontrar a perfeita sinergia dos “tempos”
artísticos, evitando consequentemente o perigo das quedas fatais. (...) A educação
circense visava principalmente a educação do corpo, objetivando uma educação
integral físico-psíquica. Neste sentido, cabeça, pescoço, braços, peito, cintura,
pernas, ponta dos pés, e até mesmo o coração, este órgão vital, são treinados
intensivamente para disciplinar todos os órgãos físicos ao executar saltos mortais
de cinco a seis metros de altura, ou atravessar um arame a pé ou de bicicleta a
mais de três metros de altura, ou ainda voar no espaço de um trapézio para outro,
sem qualquer dispositivo de segurança. Além da educação física, que preparava o
corpo, faziam parte das artes circenses a arte da magia, do ilusionismo; a arte de
amestrar animais e a equitação, que eram ensinadas em famílias pelos mais
velhos a todas as crianças desde a mais tenra idade, para evitar principalmente o
medo. (...) Quando uma criança não apresentava habilidade para determinado
número de risco, ela não era discriminada por causa disto, pelo contrário era
geralmente aproveitada em outras atividades para as quais tivessem maior
disponibilidade, aptidão ou desenvoltura (SANTORO JR., 1997: 08 e 32).
Outra tendência atual que também já fazia parte da vida de um circense se
refere aos benefícios técnicos da prática acrobática no ofício do ator. Lembrando que esta é
apenas uma das infinitas técnicas que podem auxiliar o ator na composição de sua técnica
pessoal.
Como dito no capítulo anterior, a arte de ator se materializa através do
empenho e conduta do corpo do ator – a extensão visível deste para o espectador –
articulado com as suas outras instâncias – intelecto, mente, intuição, etc. – invisíveis, porém
materiais.
Assim sendo, a prática acrobática é útil ao ator, pois esta também requer a união
de corpo/mente/psiquismo para a sua melhor execução. Isto porque é impossível
executarmos uma acrobacia sem estarmos concentrados completamente nela e no momento
presente – e digo isso como alguém que fez ginástica artística durante toda a infância.
A prática acrobática requer, portanto, um nível de concentração profunda. Isso
porque esta prática me coloca numa situação diferente do dia-a-dia e exige realmente minha
atenção, pois me expõe a uma situação de risco real. Acredito também que o pensamento
102
do acrobata muito se assemelha ao do ator, no sentido de que ambos pensam em ação.
Além disso, o próprio Stanislavski afirmou que:
(...) a acrobacia ajuda a desenvolver o poder de decisão. Para um acrobata seria
um enorme desastre entrar em devaneios no momento exato de dar um salto
mortal, ou qualquer outro tipo de salto que lhe pusesse em risco o pescoço. São
momentos em que não há lugar para indecisões; sem parar para refletir, ele deve
colocar-se nas mãos do acaso60 e da sua habilidade. Seja como for, tem de saltar.
É exatamente isso que o ator deve fazer ao atingir o ponto culminante de seu
papel. (...) O ator não pode parar para pensar, duvidar, tecer considerações, ficar
pronto para pôr-se à prova. Tem de agir, executar o seu salto a todo vapor. No
entanto, a maioria dos atores tem uma atitude inteiramente diferente com relação
a isto. Entram em pânico diante dos grandes momentos, e tentam, com enorme
antecedência, preparar-se meticulosamente para os mesmos. Isto resulta em
nervosismo e pressões que não os deixam soltar-se nos momentos culminantes,
quando devem entregar-se por completo a seus papéis. (...) Além do mais, a
acrobacia pode ainda lhes oferecer outra vantagem. Pode torná-los mais ágeis e
dar-lhes maior eficiência física em cena ao se levantarem, ao se curvarem e
correrem, e sempre que fizerem um grande número de movimentos rápidos e
difíceis. A acrobacia lhes ensinará a atuar num tempo e ritmo rápidos,
impossíveis para um corpo que não tenha sido treinado (STANISLAVSKI, 1997:
06 e 07).
Posso citar também o encenador russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940) que
encontrou no circo não só a possibilidade de rompimento com a cena realista, devido a seu
potencial cênico anti-ilusionista, como encontrou também no treinamento técnico do artista
circense pontos fundamentais a serem desenvolvidos no trabalho físico do ator:
É observando as figuras dos malabaristas, e em particular Enrico Rastelli, que
Meyerhold compreende a importância no trabalho cênico dos deslocamentos do
centro de gravidade: o malabarista trabalha com todo o seu corpo, e não somente
com suas mãos. O jogo do ator, como o do malabarista, se traduzirá no plano
cinético em termos de equilíbrio constantemente colocado em perigo, perdido e
reencontrado. Não se trata somente da proeza, do desempenho, mas do processo
técnico que permite sua realização. Importa conhecer as leis do movimento para,
a qualquer momento, poder desmanchá-lo e jogar com a surpresa, a mudança de
ritmo, como o fazem os excêntricos (PICON-VALLIN, 2009: 128).
60
Entendo o que Stanislavski quis dizer ao afirmar que o circense se coloca nas mãos do acaso, pois apesar de
toda a técnica cultivada durante anos de treinamento, o risco da queda sempre estará presente. Porém, destaco
apenas que todo este incessante treinamento visa à diminuição ao máximo deste “acaso” no momento de uma
acrobacia.
103
Portanto, assim como o ofício do ator, o domínio das técnicas acrobáticas exige
disciplina e rigor, pois o treinamento deve ser constante e contínuo. Além disso, ambos
requerem concentração, um estado de atenção dilatado, um bom preparo físico e promovem
a ampliação das potencialidades expressivas do corpo.
Acerca do preparo físico dos artistas do Pavilhão Arethuzza e seus
contemporâneos, imaginem só o “pique” que eles tinham que ter para aguentar –
fisicamente falando – a apresentação da parte de variedades e em seguida a encenação de
peças de dez, doze atos! E lembrando que estamos falando de linguagens estilizadas e
executadas em um nível de energia elevado, alimentado justamente por esse rigoroso
preparo físico dos artistas.
Fernando Neves em entrevista contou uma passagem bastante reveladora acerca
do tônus e nível de energia em que estes artistas trabalhavam. Em 2006, Neves dirigiu o
espetáculo Feia61 com o elenco do Circo Zanni, que também dividia o espetáculo em duas
partes, com números de variedade na primeira e a apresentação da peça na segunda, sendo
ambas as partes executadas pelos mesmos artistas. Neves conta então:
A artista que fazia o último número da parte de variedades, fazia trapézio, dez
minutos se trocava e estava em cena na peça... ela fazia a vilãzinha. A primeira
sentada que ela deu na peça abriu o vestido inteiro! Imagina, a Carol (Carol
Brada, figurinista) ficou louca, porque ... A Zezé aqui do Teatro Abril, que é uma
craque, que faz os figurinos pra ela... E elas são caprichosas... Tinha calcinha,
sutiã combinando. Ao sair de cena a Carol foi atrás dela e falou “Ai meu Deus! O
que aconteceu?” E a atriz falou “Imagina gente... terminei o número de trapézio
faz dez minutos... olha como tá a minha musculatura, minha adrenalina...
arrebenta o figurino mesmo”. Entendeu? Imagina esse corpo expandido, esse
corpo com essa energia... com esse tônus!
Fernando Neves contou que foi então que lembrou a constante preocupação que
sua família tinha com o acabamento dos figurinos. Lembrou que sempre que chegava com
uma roupa nova, suas tias falavam “Ah, que bonita camisa!” e já viravam do avesso para
ver como era feita a costura. Elas queriam ver se aquela roupa era de qualidade e se havia
alguma técnica nova empreendida na costura dessa. Isso porque todos os figurinos no
Pavilhão Arethuzza tinham suas costuras reforçadas, pois os artistas que iam interpretar as
61
Espetáculo de autoria de Paulo de Magalhães que fez parte do repertório de diversos circos-teatro
brasileiros, incluindo o Pavilhão Arethuzza.
104
peças na segunda parte do espetáculo tinham acabado de realizar seus números no picadeiro
e, assim como a atriz do Circo Zanni, estavam com suas musculaturas ainda dilatadas.
Além de todas as qualidades descritas até então, é fato que todo acrobata, para
ser acrobata, precisa desenvolver um apurado senso de tempo e ritmo, fatores fundamentais
de serem desenvolvidos também no ofício do ator. Em entrevista, Fernando Neves
comentou sobre sua família:
Bom, sobre a questão do tempo e do ritmo... Eles passavam a primeira parte
inteira lidando com o tempo e com o ritmo. Porque pra fazer trapézio você
precisa ter uma noção de tempo apuradíssima. Porque assim: eu to balançando, a
hora que eu virar pra cá, lá em cima, o outro tem que soltar o trapézio no tempo;
o trapézio não pode ta aqui (aponta para os joelhos), não pode ta aqui (aponta
para a boca) senão pode quebrar meus dentes, não pode tá lá (aponta para longe
e seu corpo) senão eu caio! Então eu tenho que saber a hora que eu solto o
trapézio, quem ta lá, e a hora que eu viro pra pegar. É uma loucura! Entendeu?
Porque pode tanto tacar na sua cara como você pode cair! Jogar malabares é no
tempo, andar no arame é no tempo. Você vai fazer rola rola é no tempo. Você vai
andar em cima da bola é no tempo. Você vai saltar, é no tempo. Imagina, um
perde o tempo e dá com a cabeça no outro. Se mata! Então isso era levado às
últimas consequências. A primeira parte também dava para eles adrenalina e
disposição pra aguentar peças às vezes de 12 atos e com a energia lá em cima,
mantendo a energia... não é que vai caindo, entendeu? Então eles tinham esse
preparo. A primeira parte dava um preparo de energia, de tempo. Corpo, gesto
grande, voz, porque no circo não tem acústica, qualquer barulho na rua... Então
você tem que ser muito mais interessante, você tem que ser mais expandido, você
tem que ser muito maior. Não é ator do teatro realista que tá no teatro e as vezes
bota até microfone... fala aqui como se estivesse com uma câmera. E aquela coisa
de uma construção em cima de um tempo realista. Não! O circo é expressionista!
Eles diziam que era realista , mas era expressionista. É tudo grande, os corpos se
movimentam em outro tempo. Aí tem a questão da primeira parte.(...)Então tem
toda essa questão dessa noção de espaço, de ritmo, de tempo e de tônus que vem
fisicamente pelo trabalho que eles fazem na primeira parte62.
Desse modo, o fato dos artistas do Pavilhão Arethuzza desenvolverem
habilidades acrobáticas desde a infância contribuiu, inegavelmente, para a consolidação de
seus trabalhos enquanto atores da segunda parte do espetáculo.
Todas as habilidades desenvolvidas pelo aprendizado das técnicas acrobáticas
podem ser transpostas, por analogia, para o trabalho do ator. Repito: transpostas por
analogia.
62
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
105
Aqui entro num ponto importante que comecei a vislumbrar ainda no capítulo
anterior: não é possível fazer uma transposição direta da técnica desenvolvida por um
acrobata para a técnica necessária à atuação. Isto porque estou falando de técnicas de
naturezas distintas, que possuem finalidades distintas e, portanto, exigem condutas distintas
da matéria de que são compostas – que, nesse caso, é a mesma: o corpo do performer, do
artista que era acrobata na primeira parte e ator na segunda.
Dessa forma, os artistas do Pavilhão Arethuzza compreenderam que, apesar da
técnica acrobática servir ao trabalho do ator – e essas técnicas se somarem –, a conduta do
corpo do acrobata não é a mesma conduta do corpo do ator.
Por esse motivo acredito que, quando perguntei em entrevista a Santoro Junior
se o fato de se apresentar na parte de variedades fazia alguma diferença no seu trabalho
como ator, ele me respondeu: “Não sei, mas eu acho que uma coisa é uma coisa, outra coisa
é outra coisa”63.
Fernando Neves que estava junto conosco então intercedeu, explicando ao tio
todas as pesquisas na contemporaneidade acerca dos benefícios da prática acrobática e do
desenvolvimento corporal no trabalho do ator. Ao fim do argumento de Fernando Neves,
Santoro Junior apenas completou: “É que o público gostava de ver o artista de primeira
parte fazer o teatro. Então já ficava simpático”64.
Aqui destaco três pontos importantes. O primeiro: “saltar” era algo tão
intrínseco ao processo de formação do artista circense antigamente, como os da família
Viana-Santoro-Neves, que a técnica envolvida nesta habilidade era como uma segunda
natureza desses artistas. Desse modo, saltar fazia deles atores mais competentes, por mais
que Santoro Junior não tenha a consciência exata disto.
O segundo: os circenses compreendiam e tinham a capacidade de distinguir o
fato de que a primeira e a segunda parte do espetáculo são de naturezas diferentes –
capacidade esta que me parece ausente em muitos espetáculos dos chamados “circos
contemporâneos” na atualidade.
63
64
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
Ibidem.
106
E o terceiro e fundamental na arte circense: para Santoro Junior, a grande
contribuição da primeira parte em relação à segunda é o fato de que os artistas se
apresentarem nas duas partes agradava o público. Isto me mostra como o olhar do circense
está sempre e a todo o momento no espectador; como todo o trabalho de atuação no circoteatro estava focado, assim como na parte de variedades, em suscitar sensações e reações no
público.
Ou seja, tanto a parte de variedades quanto a representação teatral passavam,
inevitavelmente, pelo corpo do acrobata/ator e tinham como objetivo final agradar o
espectador. Contudo, a maneira como o corpo deste artista se organizava nas duas partes e a
maneira como elas agradavam eram distintas.
Com relação à organização e conduta corporal do acrobata e do ator, Barba nos
atentou para o fato de que enquanto no cotidiano seguimos a “lei do menor esforço”, ou
seja, buscamos um rendimento máximo com um gasto mínimo de energia, no teatro o ator
deve sempre esbanjar energia; deve buscar em cena executar suas ações com uma energia
extracotidiana, que lhe proporcionará um corpo também extracotidiano e, portanto, teatral.
Já a técnica do acrobata não é extracotidiana, e sim outra técnica, que se distancia por
completo do cotidiano. Nas palavras do próprio Barba:
O primeiro passo para descobrir quais podem ser os princípios do bios cênico do
ator, a sua “vida”, consiste em compreender que às técnicas cotidianas se
contrapõem técnicas extracotidianas que não respeitam os condicionamentos
habituais do uso do corpo. As técnicas cotidianas do corpo são em geral
caracterizadas pelo princípio do esforço mínimo, ou seja, alcançar o rendimento
máximo com o mínimo uso de energia. As técnicas extracotidianas baseiam-se,
pelo contrário, no esbanjamento de energia. (…) Quando estava no Japão com o
Odin Teatret, perguntava o que significava a expressão otsukarasama com a qual
os espectadores agradeciam aos atores no final do espetáculo. O significado exato
dessa expressão é: “você cansou por mim”. Entretanto o desgaste de energia não
basta para explicar a força que caracteriza a vida do ator. É evidente a diferença
entre esta vida do ator e a vitalidade de um acrobata e até alguns momentos de
maior virtuosismo da Ópera de Pequim e de outras formas de espetáculo. Nestes
casos os acrobatas nos mostram “outro corpo”, que segue técnicas tão diferentes
das cotidianas, que parecem perder todo o contato com estas. Já não se trata de
técnicas extracotidianas mas simplesmente de “outras técnicas”. Neste caso não
existe uma dilatação da energia que caracteriza as técnicas extracotidianas
quando elas se contrapõem às técnicas cotidianas. Em outras palavras, já não
existe relação dialética, só distância; a inacessibilidade, em definitivo, de um
corpo virtuoso. As técnicas cotidianas do corpo tendem à comunicação, as do
virtuosismo tendem a provocar assombro. As técnicas extracotidianas tendem à
107
informação: estas, literalmente, põem-em-forma o corpo, tornando-o
artístico/artificial, porém crível. Nisto consiste a diferença essencial que o separa
das técnicas que o transformam no corpo “incrível” do acrobata e do virtuoso
(BARBA, 1994: 30 e 31)65.
Figura 20: Número de variedade, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Com relação ao fato da parte de variedades e o teatro agradarem o espectador
de maneiras distintas, destaco que isso ocorria porque num número de habilidade o objetivo
final encontrava-se em enaltecer o artista por sua própria técnica, virtuosidade e perfeição
do gesto. Enquanto isso, no teatro o enfoque estava em algo que vai além da técnica, sendo
que esta deve se diluir, de modo a parecer até inexistente; fazendo referência novamente a
Yoshi Oida, no teatro não importa a técnica que uso para mostrar a lua e sim que o público
veja a lua!
Por isso, a meu ver, enquanto na parte de variedades agradava-se pela exaltação
do virtuosismo técnico de “super-homens e supermulheres”, na parte teatral agradava-se
pela identificação dos espectadores com aqueles personagens que lhe pareciam tão
65
BARBA, Eugênio. A Canoa de Papel. São Paulo: Hucitec,
http://www.grupotempo.com.br/breve-florilegio-para-a-meditacao-dos-atores
108
1994.
Disponível
em:
humanos quanto eles mesmos. E ambas as conformações artísticas encontravam espaço na
imaginação e no coração do público.
Portanto, apesar de toda a serventia que a técnica acrobática presta ao trabalho
do ator, é imprescindível que este perceba que
(...) de nada serve trabalhar o corpo, se ele não se constituir em um meio pelo
qual pode entrar em contato consigo mesmo e com o espectador. (...) A técnica de
ator não deve ser apenas físico-mecânica, como a de um halterofilista, mas
humana, em-vida, ou seja, algo que lhe permita estabelecer um elo comunicativo
entre o humano em sua pessoa e o que o corpo é e faz e, ao articular esse
processo, projetá-lo comunicando-o para seus espectadores. A técnica de ator,
portanto, só existe, a nosso ver, na medida em que abre caminhos para um
universo eminentemente humano e vivo, tanto para o ator quanto para o
espectador. Do contrário, ela seria apenas ginástica a preparar o corpo para uma
atividade puramente física, na qual os aspectos humanos e subjetivos estariam
resguardados ou adormecidos (BURNIER, 2001: 24 e25).
Porém, é importante ser destacado que, apesar das diferenças anteriormente
expostas entre o corpo acrobático e do ator, os artistas do Pavilhão Arethuzza – assim como
os de tantos outros circos desde o fundado por Astley – tinham uma formação artística
múltipla e agregadora das mais variadas linguagens, de modo que acrobacia, teatro, dança –
e tantas outras manifestações artísticas – estavam na base dessa formação. Dessa forma, o
corpo do artista circense continha e tranversalizava os conhecimentos de um corpo
acrobático, teatral e dançante, de modo que o artista lançava mão de determinadas
ferramentas, dependendo da expressão artística utilizada, porém, ao mesmo tempo, as
ferramentas pertencentes a todas as outras expressões artísticas estavam sempre presentes
nesse corpo múltiplo, pois todas elas estavam no cerne da arte de ator daqueles artistas..
Nos primórdios do Pavilhão Arethuzza, por exemplo, – quando ainda não se
usava a denominação circo-teatro – era representada uma pantomima, comumente levada
em vários outros circos, conhecida como Os três amantes. Nesta pantomima – no caso,
muda de texto verbal – temos uma ação cênica simples e central, preenchida por uma
execução virtuosística que utilizava elementos acrobáticos – numa transposição direta para
a cena –, responsáveis por criar uma representação com linguagem estilizada e codificada.
Abaixo, registro o roteiro da pantomima Os três amantes, descrita por Santoro Junior:
109
No picadeiro, à esquerda da entrada dos artistas, era colocada uma barrica de
boca larga e acolchoada. Ao lado direito, um baú grande e vazio. À entrada do
picadeiro um biombo, dando um caráter de ambiente pouco habitado. Os
personagens: os três palhaços acróbatas, a moça namoradeira e o pai ranzinza.
O pai dirige-se à filha em mímica, recomendando que não procurasse ver pessoa
alguma (sai). A moça que estava com os olhos fitos no chão, com ar inocente
levantando a cabeça, movimenta-se brejeira com pulinhos rápidos e elegantes,
olhando de um lado para outro, não vendo ninguém, faz um sinal para a frente do
circo e corre para o fundo a observar se o pai já estava de volta. O primeiro
amante já no picadeiro executava volta de mão e salto mortal à frente. Os
namorados se encontram e se abraçam. Ele se ajoelha, fazendo promessas de
amor em mímica. Levanta-se querendo beijá-la. Ela corre escapando de suas
garras. Ouve-se ao fundo tosse forte do pai. Os dois voltam a si. Há um correcorre. O namorado atira-se em salto para frente, colocando a cabeça no chão
amparada pelos braços. Dessa posição com os ombros tocando no solo, dá
impulso com os braços e pernas, voltando ao chão e num salto simples se jogava
dentro da barrica. (...)
O pai entra em cena desconfiado, olhando a filha sentada no baú, cabisbaixa.
Recomenda de novo, que não quer que veja ninguém ali. (sai). A moça repete a
cena anterior, e faz um sinal para frente do circo ao seu segundo namorado.
Novamente volta ao fundo da cena para constatar se o pai está retornando. O
segundo amante ao atingir o picadeiro executava rondada, flip-flap e salto moral,
caindo de barriga. A moça socorre de pronto o namorado, abraçam-se e na hora
do beijo, a moça corre. O primeiro amante, acompanhava os movimentos, do
segundo, com a cabeça fora da barrica. Novamente tosse forte do pai. Outro
corre-corre. O amante atrapalha-se todo querendo fugir chão a dentro. Para esse
fim, colocava a cabeça no solo levantando as pernas para o alto, plantando
bananeira. Fazia o corpo girar sobre si mesmo, com um movimento de rotação de
mãos e braços, depois flexionava o pescoço e com um impulso dos ombros ao
tocar o solo volta para o chão. Deu-se a esse truc, o nome de SALTO POLTRÃO.
O truc era repetido várias vezes. Após alguns esforços a moça conseguia colocar
o segundo amante no baú. O pai aparece no picadeiro mais desconfiado, olhando
para os lados e retira-se. A moça mais gaiteira e fascinante fazia um sinal para a
frente, para o terceiro amante. Este último, ao atingir o picadeiro executava
parada de mão e dava cambalhotas várias vezes. Os outros amantes escondidos
acompanhavam os movimentos do terceiro amante com as cabeças fora da barrica
e do baú respectivamente, sempre zombando deste terceiro. A cena de amor do
terceiro amante é intercalada com saltos mortais. Na hora do beijo, o velho entra
sorrateiramente e surpreende o paspalhão, surrando-lhe as costas com uma bata.
Os outros dois descobertos, saem de seus esconderijos correndo. Para deixarem o
velho desnorteado, executavam cambotinha a três. A banda de música tocando
um galope encerrava a pantomima (SANTORO JR., 1997: 10 e 11).
A meu ver, a utilização das acrobacias contribuía para a criação de uma
linguagem que dialogava simples e diretamente com a plateia. Acredito também que as
diferentes acrobacias auxiliavam a caracterizar cada um dos três amantes e que o final com
a “cambotinha a três” revelava que tudo não passava de uma grande brincadeira.
Com o passar dos anos, as encenações e dramaturgias foram se tornando mais
complexas e as habilidades acrobáticas passaram a ser incluídas nas encenações teatrais de
110
modo não apenas ilustrativo, mas sim de modo a contribuir para a concretização da ação
dramática e o andamento da narrativa. Nesse caso o enfoque não estava na técnica e na
virtuose, e sim na utilização e exploração daquele recurso de modo que este viesse a
contribuir para a construção da melhor resolução cênica.
Como exemplo, cito a montagem de Ferro em Brasa, que segundo Santoro
Junior, era anunciado no Arethuzza como uma tragédia. Na trama, Margarida é casada com
o ferreiro João, porém apaixona-se por Júlio, noivo de sua filha, que corresponde ao seu
amor. Na encenação do Pavilhão Arethuzza, João, o marido que se descobria traído,
arrastava sua esposa pelos cabelos, numa cena forte, chocante e violenta. Para que esta cena
fosse executada com a máxima verdade, cabia a Didi, que na primeira parte fazia o número
de força capilar, o papel de Margarida.
Os artistas do Pavilhão Arethuzza possuíam, então, uma formação completa,
que integrava corpo e mente no domínio de técnicas das mais diversas manifestações
artísticas.
Além dos números de habilidade e das encenações teatrais eram comuns
também – em meio à primeira parte – a execução de números de bailados e de números
musicais, que contavam muitas vezes com a elaboração de uma mis en scene, que
trabalhava, dessa forma, outros aspectos da teatralidade circense. Santoro Junior conta:
Já com cinco anos de idade comecei a participar de números que compunham o
variado (primeira parte). O primeiro deles foi o número de salto em que entrava
virando cambota e caminhava rapidamente de gatinho entre as pernas dos
participantes. Como me saí bem nessa participação, fui encaixado no bailado
chinês. Assim vestido a caráter como os demais participantes e ao som de uma
música tipicamente oriental, dançava errando os passos ou contrariando a
harmonia do bailado. Sempre último da fila e tumultuando a dança ganhava
posição de destaque, provocando o riso e ganhando aplausos da plateia. Não
restou qualquer dúvida, fui encaixado em outro número de bailado o Cake Walk,
que transcorria da seguinte maneira: ao som da música contagiante entrava no
picadeiro um casal de bailarinas (Alzira e Arethusa Neves). A música ia
contagiando o ambiente e respectivos personagens que previamente combinados
começavam a entrar um a um no picadeiro ou no palco e acompanhavam os
passos dos dois primeiros bailarinos. Entre eles: um casal de espectadores, uma
velha, um caipira, um português de tamancos, uma vedete caricata e um baleiro.
O mestre chicote66 tentava em vao retirar estes personagens do picadeiro e da
dança. Finalmente chamava um policial. Percebendo que este também participava
66
Outro nome dado ao Mestre de Pista (nota da pesquisadora).
111
da dança, o mestre chicote também aderia ao grupo. Assim ao som da música
todos saíam da cena num passo repetitivo e frenético. (...) O maestro da banda
„ARISTEU‟ fazia um teste com os componentes do Circo Arethuzza e aquele que
era afinado, já se incumbia de outra tarefa – cantar. Assim passei a fazer parte dos
números musicais, inclusive formei uma dupla com minha irmã Alzirinha,
cantando canções de sucesso da época ou que requeriam “mis em cene” (sic)
como “Boneca de Peixe”, “Tabuleiro da Baiana”, etc. Lembro-me do mis em
cene (sic) e letra de uma canção, porém não consigo lembrar o nome da mesma.
Assim transcorria: Num piscar de luz a cena era preenchida por cadeiras, mesas,
copos, garrafas, dando a impressão de um baile num botequim, em que os
componentes vestidos a caráter lembravam malandro e moreninha jeitosa. A
música era assim cantada:
Ela Pra quem fica sambando no baile até amanhã se Deus quizer (sic)...
Ele É muito cedo
Ela Vou pra casa descansar
Ele Ora fique mais um bocado
Ela Eu não posso muito obrigado, amanhã eu tenho que ir trabalhar.
Ele Quer me dar seu endereço...
Ela É solteiro ou é casado
Ele A pergunta senhorita me deixou meio abafado, não sou cá e não sou lá é
um caso complicado... a senhorita é um pedaço...
Ela E o senhor é um bocado...
Ele Ora muito obrigado...
A banda tocava, nós e todos os participantes dançávamos ao som do samba numa
coreografia combinada, terminando num passo parado; ao piscar novamente a
luz, a cena já estava vazia para outro número (SANTORO JR., 1997: 60).
Figura 21: Número musical, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
112
Outra atração que era levada na primeira parte e também se aproximava da
representação teatral, no sentido de criar uma ficção e personagens, eram as entradas de
palhaço.
Bolognesi destaca a diferença, que também procurei mostrar anteriormente, de
natureza existente entre os números de variedades, ligados à demonstração de habilidades
físicas e as exibições dos palhaços, ligados ao fenômeno teatral:
Os riscos dos artistas circenses são reais, dentro do contexto espetaculoso de cada
função. No espetáculo os artistas não apresentam “interioridades”: eles são puro
corpo exteriorizado, sublime ou grotesco, que se realiza e se extingue na
dimensão mesma do seu gesto. Eles não são atores a interpretar um “outro”, uma
realidade externa e distante. (...) Os números cômicos, por sua vez, ao explorar os
estereótipos e situações extremas, evidenciam os limites psicológicos e sociais do
existir. Eles trabalham, no plano simbólico, com tipos que não deixam de ser
máscaras sociais biologicamente determinadas (os palhaços são desajeitados,
lerdos, fisicamente deformados, estúpidos, etc). Esses limites se revelam com o
riso espontâneo que escancara as estreitas fronteiras do social. Quando os
palhaços entram no picadeiro, o olhar espetaculoso se descola objetivamente para
a realidade diária da plateia (BOLOGNESI, 2003: 14).
O personagem cômico circense “palhaço” surge já na origem do espetáculo
circense “moderno” e reúne em si múltiplos personagens da milenar tradição cômica, como
“o palhaço de tablado de feira; os diferentes tipos de criados da Commedia dell’arte; as
cenas tradicionais do clown inglês; o clown da pantomima e o jester shakespeariano”
(CASTRO, 2005: 60). Desse modo, os palhaços dos primeiros circos “modernos” europeus
eram:
(...) herdeiros diretos dos cômicos que frequentavam os lugares públicos, os
teatros de feira, os de arena e fechados, as festas profanas ou religiosas, passando
pelas “soties”, os jograis, as comédias de Atelana, os bufões ou bobos das cortes,
os farsantes das vilas, funâmbulos, paradistas dos bulevares, bem como da
commedia dell’arte: zanni, Arlequim, Scaramouche, Pulcinella, Pierrot. Todos
uniam teatralidade, destreza corporal, dança, música, mímica e a palavra (SILVA,
2007: 43).
Herdeiro destes diversos tipos cômicos, no início do circo “moderno” o palhaço
era chamado de clown, palavra inglesa cujo sentido aproximado seria homem rústico, do
113
campo, camponês. Destaco que o termo já era usado anteriormente na pantomima inglesa 67
para designar o cômico principal que tinham as funções de um serviçal. Bolognesi destaca
que, no universo circense, até meados do século XIX,
(...) o clown tinha uma participação exclusivamente parodística das atrações
circenses e o termo, então, designava todos os artistas que se dedicavam à
satirização do próprio circo. Posteriormente, esse termo passou a designar um
tipo especifico de personagem cômica, também chamado de Clown Branco, por
conta de seu rosto “enfarinhado”, que tem no outro palhaço, o Augusto, o seu
contrário (BOLOGNESI, 2003: 62).
Como explicitado por Bolognesi, no início do circo “moderno” o clown tinha a
função de realizar paródias dos números circenses, principalmente os de montaria,
executando-os às avessas.
Essa brincadeira fazia parte de uma tradição antiga nos treinamentos militares,
nos quais era comum um cavaleiro, dado mais aos ares cômicos, divertir o restante da tropa
ao mostrar os inúmeros jeitos de se montar erroneamente um cavalo.
Porém, no espetáculo circense “moderno”, estes números cômicos seriam
executados não pelos ex-militares que faziam parte do elenco das companhias circenses,
mas sim pelos artistas de feira que foram incorporados a estas e que possuíam em seus
trabalhos a influência de todos os cômicos milenares citados anteriormente.
Para se “montar errado um cavalo” e gerar o efeito cômico da bagunça em meio
a toda a estrutura militar do espetáculo, era necessário um profundo conhecimento técnico
da modalidade. Para tanto, estes artistas de feira passaram a se especializar também na arte
da montaria, antes distante de sua realidade devido ao fato do cavalo ser um artigo de luxo
da classe aristocrática.
Dentre os tipos mais parodiados, destacava-se, além da figura do camponês, o
alfaiate e ambos já faziam parte das milenares pilhérias das companhias de teatro de rua e
feira europeias. Alice Viveiros de Castro afirma:
67
A pantomima inglesa, que se desenvolveu a partir da commedia dell’arte, foi determinante na consolidação
do clown circense. Tanto que Joseph Grimaldi (1778-1837), que iniciou sua carreira no teatro de variedades
inglês, é considerado pela maior parte dos pesquisadores como o criador – ou aperfeiçoador – do clown
circense.
114
O personagem escolhido podia ser um camponês idiota, um almofadinha metido
ou, o mais frequente, um alfaiate, alguém que primasse pela total inadequação ao
cavalo e ignorasse qualquer noção de como montá-lo e tratá-lo. O pobre alfaiate,
depois de cuidadosas investidas de aproximação, conseguia colocar o pé no
estribo, mas se atrapalhava tanto que, quando finalmente subia no lombo do
cavalo, ficava ao contrário, a cabeça olhando para o rabo do animal. Esta imagem
é antiga, muito antiga, e permanece uma boa piada ainda nos dias de hoje
(CASTRO, 2005: 57).
Era muito comum também o recurso cômico do falso espectador68. Um artista
se infiltrava em meio ao público, como se não passasse de mais um entre os presentes. De
repente, no meio do espetáculo, ele começava a desafiar o Mestre de Pista, querendo
também arriscar-se na montaria. Este falso espectador executava, então, os números do
clown à cavalo, revelando ser, na verdade, um exímio cavaleiro, acróbata e ator cômico
(SILVA, 2007).
Com o tempo, o clown passou a parodiar também os demais números, surgindo,
então,
“clowns
saltadores,
acrobatas, músicos,
equilibristas,
malabaristas, etc.”
(BOLOGNESI, 2003: 65). Assim, por exemplo, o clown, para parodiar com maestria um
acrobata, um músico, um equilibrista ou uma malabarista, tinha que saber,
obrigatoriamente, saltar, tocar um instrumento, andar no fio e jogar malabares.
Portanto, o clown era um dos artistas mais completos do circo e que precisava
dominar as diversas técnicas circenses profundamente, pois somente a partir deste total
domínio da técnica é que se torna possível a sua desconstrução. Lecoq diz que o palhaço é
aquele que “(...) erra onde não esperamos e acerta onde não esperamos. Se tentar um salto
perigoso, cai, mas o executa quando lhe dão uma bofetada” (LECOQ, 1987: 117) 69. Danilo
Santos afirma:
No circo, espaço utópico e errante, a técnica do palhaço parece ser dotada de uma
falta de habilidade. É o engano que ilude – assim como nos perdemos na sedução
68
Encontramos referência a esta cena do falso espectador no filme Clowns, de Federico Fellini. Em uma das
cenas são oferecidas dez liras para quem da plateia tiver coragem de lutar com a Mulher Hércules, Miss
Matilde. Uma senhora da plateia aceita o desafio, apesar dos apelos do marido que teme o confronto. Ela
adentra o picadeiro, despe seu luxuoso casaco e vemos então que já estava preparada para o combate, vestida
com um figurino de lutadora de estampa felina. Anuncia-se, por fim, a luta entre a Mulher Hércules e a
Mulher Tarzã.
69
LECOG, Jacques. Le Théâtre du geste. Paris: Bordas, 1987. Tradução de Roberto Mallet. Disponível em:
http://www.grupotempo.com.br/tex_busca.html
115
do prestidigitador. No picadeiro ou nas praças, com suas acrobacias claudicantes,
trapeziando em movimentos trôpegos, o palhaço é o mais completo praticante de
uma eficiência que, ao mesmo tempo em que se esconde, se revela: o pé que se
prende no salto, a mão que se solta num voo desleixado ou o corpo que se desvia
da órbita perfeita. Ser palhaço requer outro tipo de visão de mundo, é estar no
avesso da vida, é acertar pelo erro e chorar pelo riso, é saber construir para abusar
das desconstruções70.
No linguajar circense, o número que parodia alguma destreza física
anteriormente apresentada, porém reprisada às avessas, numa lógica transversa comum ao
palhaço, é chamado de reprise71. O clown necessitava, então, de um grande repertório de
gags físicas, que se valiam dos gestos, e em alguns casos, de pequenos monólogos, pois os
circenses, assim como os artistas de feira, também foram impossibilitados de falar nos
espetáculos. Com o fim das proibições, em 1864, à cena teatral não oficial, as falas
passaram a ser desenvolvidas e desse modo,
(...) assim como as pantomimas iam adquirindo cada vez mais importância, o
cômico também iria passar por mudanças dentro do espetáculo circense. Com a
diminuição dos cavalos no programa e o aumento das representações junto com
as acrobacias e danças, a fala e o diálogo foram também se ampliando nos
números dos palhaços. Alguns estudos que tratam das origens desse personagem
analisam que é a partir de então que se iniciaram as apresentações de duplas ou
trios cômicos; com isso, as atividades do clown se alteraram, diferenciando o
trabalho em parceria, distinguindo suas funções, transformando-os quase em
“especialistas”. Além de clown, esses cômicos serão identificados como augusto
ou tony (SILVA, 2007: 47).
Bolognesi afirma que paulatinamente estruturou-se a distinção entre os
palhaços excêntricos e os shakespearianos, sendo que a primeira categoria incluía aqueles
“que usavam das proezas circenses para alcançar o cômico, tais como os clowns
acrobáticos, os equilibristas, malabaristas, (...) os musicais” (BOLOGNESI, 2003:72) e a
segunda categoria também chamada de “falantes” se firmou com a dupla Clown Branco e
Augusto.
70
Trecho do texto de Danilo Santos, diretor regional do SESC São Paulo, no programa do “La Mínima ao
Máximo”, mostra de repertório em comemoração aos 15 anos do Grupo La Mínima, que ocorreu de 05/02 a
17/03/2013, no SESC Pompeia, em São Paulo.
71
É comum os circenses chamarem também de reprises os pequenos números – não necessariamente de
paródia de uma destreza física – que os palhaços desenvolvem nos intervalos entre os números que
necessitam de alguma preparação mais complexa, como por exemplo, a montagem da jaula dos leões. É
comum também que o palhaço que executa essa função seja chamado de Tony de Soirée (RUIZ, 1987).
116
A utilização dos termos Clown e Branco para designar um dos palhaços da
dupla cômica parece encontrar mais consenso entre os pesquisadores. Já o segundo palhaço,
é chamado por alguns apenas como Augusto ou Tony e por outros como Augusto, Tony,
Excêntrico, ou ainda, Tony Excêntrico.
Com relação à família Viana-Santoro-Neves, do Pavilhão Arethuzza, Santoro
Junior e Fernando Neves usaram com maior frequência, em nossas entrevistas, os termos
Clown e Excêntrico. Desse modo, também me utilizarei principalmente desses dois termos
daqui adiante.
No Brasil, o palhaço ganha cada vez mais importância no espetáculo, chegando
ao ponto de ser o carro-chefe dos circos, nos quais valia a máxima “Um bom circo depende
de um bom palhaço” (PIMENTA, 2005).
Tanto na Europa, quanto no Brasil, as reprises continuaram existindo para
encobrir pequenos intervalos entre os números, porém o palhaço passou também a se
apresentar nas “entradas”, cenas cômicas mais extensas e baseadas em roteiros prévios de
ação, preenchidos no momento da apresentação pelo jogo improvisado dos palhaços entre
eles mesmos e também com a plateia.
As entradas “(...) se assemelham aos canovacci da commedia dell’arte e trazem
os roteiros resumidos das intrigas, bem como estabelecem os principais momentos cômicos
dos jogos de cena” (BOLOGNESI, 2003: 104).
Nelas, a dupla de palhaço, Clown e Excêntrico, possui um esquema básico da
história a ser desenvolvida. O Clown serve de escada72 para o Excêntrico, organizando a
cena e restabelecendo a ordem que foi desestabilizada pelo bobo, com suas piadas e
brincadeiras73.
A entrada montada tem uma estrutura dramatúrgica e dramática própria. Embora
não trate de uma história, mas de uma situação, ela tem começo, meio e fim. Tem
também tempo estudado, ritmo e conclusão, necessários para que o público
entenda e absorva a piada. É inicialmente ensaiada pela dupla que, com o tempo,
72
Termo comum entre os circenses, que define o ator responsável por construir e apoiar a piada, que será
arrematada pelo Toni. Dissertarei mais profundamente sobre esta função ao falar do Circo de Teatro Tubinho.
73
Em seu livro “Palhaços”, Mario Bolognesi (2003) apresenta uma coletânea de entradas, captadas oralmente
numa profunda pesquisa por diversos circos do país. Trata-se, obviamente, de roteiros de ações.
117
a incorpora ao seu repertório de entradas, passando a apresentá-la sem ensaios.
Daí por diante, a entrada a ser apresentada é definida sem muita antecedência,
pois os cômicos já a conhecem e sabem “levá-la”, como se diz no jargão circense,
sem que a sua estrutura cênica seja comprometida. Em geral, as entradas,
encenadas há séculos, são rapidamente copiadas e adaptadas pelas diversas
gerações de duplas de palhaços, sem que isso comprometa seus eixos dramáticos
(SOUSA JR., 2012: 82).
No Pavilhão Arethuzza a dupla cômica era
formada pelo Excêntrico Thomé (Oscar
Neves) e o Clown Sinhô (Antônio Neves
Junior). O Mestre Chicote ou Mestre de
Pista era função de Aristides Neves e o
quarto irmão Neves, Arthur, servia como
figura de apoio para as entradas que
necessitavam de mais um artista.
A dupla cômica “Clown e Excêntrico” ou
“Branco e Augusto” é baseada numa clara
polaridade,
em
que
um
serve
de
contraponto ao outro, gerando a oposição
necessária para o estabelecimento do
conflito cênico.
O
Figura 22: Thomé e Sinhô, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Clown
é
a
ordem,
a
autoridade, a sutileza, a exaltação do belo
e do sublime, a astúcia, a elegância, o
autêntico representante da ordem e dos bons costumes. Enquanto que o Excêntrico é a
desordem, a ruptura, o rude, o grotesco, o bobo, o desajeitado, de raciocínio lento, o eterno
perdedor, o emocional, o ingênuo de boa-fé.
A diferenciação dos tipos também é expressa pelas suas caracterizações físicas.
Tradicionalmente, o Clown tem o rosto branco, vestimenta elegante de lantejoulas e chapéu
cônico. Já no Excêntrico “tudo é hipérbole” (BOLOGNESI, 2003: 78): o paletó é grande, o
colarinho largo, os sapatos imensos, as calças largas, a maquiagem exagerada e, geralmente, o
nariz vermelho.
118
Segundo o cineasta Frederico Fellini,
O primeiro (Clown) é a elegância, a graça, a harmonia, a inteligência, a lucidez, que
se propõem de forma moralista, como as situações ideais, únicas, as divindades
indiscutíveis. Eis que em seguida surge o aspeto negativo da questão. Pois dessa
forma o clown Branco se converte em Mãe, Pai, Professor, Artista, o Belo, em suma,
no que se deve fazer.
Então o Augusto, que devia sucumbir ao encanto dessas perfeições, se não fossem
ostentadas com tanto rigor, se rebela. Vê as lantejoulas cintilantes, mas a vaidade
com que são apresentadas as torna inalcançáveis. O augusto, que é a criança que faz
sujeira em cima, se revolta ante tanta perfeição, se embebeda, rola no chão e na alma,
numa rebeldia perpétua.
Essa é a luta entre o orgulhoso culto da razão, onde o estético é proposto de forma
despótica, e o instinto, a liberdade do instinto.
O clown Branco e o Augusto são a professora e o menino, a mãe e o filho arteiro, e
até se podia dizer que o anjo com a espada flamejante e o pecador. São, em suma,
duas atitudes psicológicas do homem, o impulso para cima e o impulso para baixo,
divididos, separados.
O filme [I Clowns] termina com as duas figuras se encontrando e desaparecendo
juntas. Por que comove essa situação? Porque as duas figuras encarnam um mito
que está dentro de cada um de nós – a reconciliação dos opostos, a unidade do ser.
A dose de dor que existe na guerra contínua entre o clown branco e o augusto não se
deve às músicas nem a nada parecido, mas ao fato de presenciarmos a algo que se
liga à nossa própria incapacidade de conciliar as duas figuras. Com efeito, quanto
mais procures obrigar o augusto a tocar violino, mais dará soprinhos com o
trombone. O clown branco ainda pretenderá que o augusto seja elegante. Mas
quanto mais autoritária seja essa intenção, mais o outro se mostrará mal e desajeitado
(FELLINI, 1974: s/n)74.
74
Trecho do comentário que fez Fellini a seu filme I Clowns, feito para a televisão em 1970. In “Fellini por
Fellini".
Porto
Alegre:
L&PM
Editores
Ltda,
1974,
págs.
1-7.
Disponível
em:
http://www.grupotempo.com.br/tex_fellini.html
119
Figura 23: Thomé (Oscar Neves), s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Figura 24: Sinhô (Antônio Neves Jr.), s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Com o tempo, a figura do Clown foi desaparecendo do picadeiro. “Sua
contraparte, muitas vezes sem qualquer caracterização, foi mantida para garantir o diálogo
cômico, de modo que ele fosse sempre o „escada‟ do primeiro” (SOUSA JR., 2012: 80).
Muito comum, também, é a constituição de duplas em que os dois palhaços se caracterizam
como Augustos, mas um acaba assumindo a função do Clown na cena, o que, a meu ver,
não cria um contraponto tão potente.
O fato é que, apesar do reconhecimento geral da importância da constituição da
dupla cômica, a figura do Clown, elegante e sério, vem desaparecendo do imaginário
popular, uma vez que a maioria dos palhaços que se apresentam – em solos ou em duplas,
nos picadeiros, ruas ou teatros – se caracterizam e partem da lógica de raciocínio do
Excêntrico.
120
No Brasil, a parte do espetáculo circense de representação teatral sempre fez
muito sucesso junto ao público e as entradas ganharam cada vez mais destaque no
espetáculo. Elas foram, então, estendidas e acrescidas de ações, criando um tipo de
comédia, encenada ainda no picadeiro, chamada de combinado (Idem).
No combinado – também conhecido por comédia de picadeiro ou chanchada75
– que passou a ser encenado também nos palcos dos circos-teatro, o palhaço aparece
caracterizado e cria-se uma história, com um ritmo extremamente ligeiro, através da
extensão de alguma das entradas já existentes.
Com o passar dos anos, o circo-teatro irá se caracterizar, predominantemente,
pela presença de personagens-tipo e pelo fato do palhaço ser responsável, na maior parte
das vezes, pela comicidade da peça, apesar de não atuar caracterizado como tal, sendo
inserido também dentro da tipologia.
No Pavilhão Arethuzza, de acordo com Santoro Junior, Oscar Neves nunca
aparecia caracterizado de Thomé na segunda parte do espetáculo; ele era o responsável pela
comicidade da peça, porém sempre interpretando um personagem na linha cômica. Oscar
atuava como Thomé apenas nas peças de matinê, direcionadas ao público infantil. Dentre as
peças merece destaque o seriado, escrito por Arethusa Neves, e protagonizado por Thomé e
Santoro Junior, na época com seis anos de idade, intitulado As aventuras do detetive Thomé
e seu auxiliar Toquinho.
Porém, destaco novamente que o movimento teatral no circo é extremamente
múltiplo. Assim sendo, este tipo de classificação, que conceitua os combinados ou
chanchadas como exceção dentro do circo-teatro por trazer o palhaço caracterizado em
meio às demais personagens tipificadas, deve ser reavaliada e entendida como algo datado e
específico a algumas companhias circenses. Apesar disso, o fato é que este tipo de
representação continua sendo apresentado pelas companhias de circo-teatro e circo de
teatro, ao longo de todas estas décadas, por sempre fazer enorme sucesso junto ao público.
75
Destaco que o mesmo termo chanchada é usado, tanto no meio circense quanto no teatral e no cinema, para
expressar diversos tipos de manifestações cênicas.
121
2.4 A segunda parte do espetáculo
2.4.1 Ensaio e ensaiador
A partir do momento em que o espetáculo passou a ser divido em duas partes,
verticalizou-se o processo de formação e aprendizagem circense, que já existia nas
companhias, ligados à arte teatral.
Desse modo, ao longo dos anos, o circo sofreu influências, ao mesmo tempo em
que influenciou diversas outras manifestações artísticas contemporâneas ao seu tempo.
Fernando Neves costuma dizer que “o circo aproveita tudo, retrabalha e devolve com cores
fortes”. Ou seja, no espetáculo circense todas as matrizes e tendências agregadas de outras
formas artísticas são retrabalhadas de maneira a se enfatizar e sublinhar a encenação.
O responsável por encabeçar a construção do espetáculo no circo era chamado
de ensaiador. Porém, esta função não é exclusiva da arte circense. No teatro tido como
oficial, até o fim século XIX, na Europa, e até meados do século XX, no Brasil, também
não existia a figura do diretor, e sim do ensaiador.
Na Europa, é a partir de 1830 que o termo “diretor” passa a ser usado, porém é
somente a partir de 1880 graças, sobretudo, ao francês Antoine, que “a direção [mise en
scène] reivindica ser uma arte global de interpretação do texto dramático, com o diretor
assumindo a responsabilidade por essa interpretação” (ROUBINE, 1998: 09). No Brasil, a
história do teatro tido como oficial considera a montagem de O Vestido de Noiva, de
Nelson Rodrigues, em 1943, como a primeira a contar com a figura do diretor teatral, no
caso, Zbigniew Marian Ziembinski, polonês que emigrou para o Brasil em 1941. Esta
montagem também é considerada como o marco inicial do Teatro Moderno Brasileiro.
Acerca da função do ensaiador, Erminia Silva afirma que
Rosyane Trotta, ao descrever a “técnica dos ensaiadores” naquele período, diz
que cabia a eles, em linhas gerais, “marcar o espetáculo”, ou seja, um “bom
ensaiador” era “aquele que, no menor prazo de tempo, articulava os atores de
modo que não se esbarrassem e tornassem a cena compreensível”; os cuidados
com os objetos de cena e os horários dos atores eram tarefas adicionais. No texto
da autora, essa descrição refere-se apenas à “história do teatro brasileiro”, não
fazendo parte de sua pesquisa a produção do circo-teatro (...) O movimento de
122
cena, a propriedade do gesto nesta ou naquela passagem, a inflexão adequada a
certa frase, a pronúncia de uma palavra que ofereça dúvidas, são questões que se
discutem e se resolvem no palco entre artista, ensaiador e o autor. (SILVA, 2007:
143,144 e 226).
Geralmente, o papel do ensaiador era assumido, nos circos, pelo dono da
companhia, que também era o responsável por toda a parte de administração dos negócios.
No Pavilhão Arethuzza, o primeiro a desempenhar tal função foi o Comendador João
Miguel de Farias, seguido pelo genro Antônio das Neves e pela bisneta Arethusa Neves.
Segundo Santoro Junior, o padrinho Eugênio Barbosa, além de ser responsável por parte da
educação das crianças, também auxiliava o ensaiador nas montagens dos espetáculos.
Acerca da rotina de ensaios, faço, primeiramente, uma ressalva a respeito do
que o termo “ensaio” significa para os circenses. Há alguns anos, fiz aulas de acrobacia de
solo na escola de circo Cia do Circo, em Barão Geraldo, fundada e mantida pelas
tradicionais famílias Brede e Orteney. Logo na primeira aula ouvi de meus professores
Alex e Allan Brede, pai e filho, que eles ensaiavam um número de icários todas as manhãs.
Aquilo me chamou a atenção e passei a reparar que eles nunca falavam em treinamento ou
em treinar. Para dar uma bronca em algum aluno, que estava aprendendo as técnicas do
trapézio, por exemplo, a frase era sempre algo do tipo: “E aí, vamos parar de moleza e
vamos ensaiar?”. Ou seja, segundo eles, eu estava ali ensaiando, e não “só” treinando
acrobacias. Depois de algum tempo, li uma passagem num dos livros de Erminia Silva que
me esclareceu melhor esta questão:
O termo ensaiar entre os circenses não se referia (e não se refere) apenas às
representações teatrais. Toda preparação para qualquer que fosse o número era
chamada de ensaio, sendo que poderia ser feita individualmente ou em grupo, sob
o acompanhamento de um mestre (Idem: 144).
Chamo atenção para esta questão, pois, a meu ver, o que parece apenas uma
simples questão de nomenclatura revela, na verdade, um aspecto fundamental do processo
de formação do artista circense.
Acredito que a utilização do termo “ensaio”, e não “treino”, é um indicativo de
que o artista circense tem consciência de que seu trabalho está para além da reprodução de
123
uma prática ginástica e esportiva; significa que faz parte da forma estrutural de seu trabalho
a questão da dimensão artística em que ele está envolvido. Desse modo, ao ensaiar uma
peça teatral, ou mesmo um número de habilidade, tem-se sempre a dimensão de que isto
está sendo feito para alguém e que, portanto, precisa ser organizado de modo
compreensível, e principalmente agradável a este espectador.
A respeito das rotinas de ensaio no Pavilhão Arethuzza, Rosalina Viana, avó de
Fernando Neves, retratou:
(...) às 10 horas da manhã, nós tínhamos um ensaio. Às 3 horas tínhamos outro.
Dois ensaios. (...) Às vezes, à noite, depois do espetáculo... “Quem é que está
disposto? Vamos passar a peça de amanhã? Vamos dar uma passadinha?” Todo
mundo entrava de acordo! Terminava o espetáculo. Às vezes, aquelas peças
enormes, de suar a camisa mesmo, do suor da gente pingar... levava a peça,
terminava o espetáculo. “Vamos dar uma passadinha na peça de amanhã?” Às
vezes, a gente até queria mesmo que passasse, porque estava meio indeciso. E
ensaiava outra peça depois do espetáculo76.
No início de uma montagem no Pavilhão Arethuzza, a primeira ação realizada
era uma leitura do texto. Nesta primeira leitura, havia um rigoroso processo de
entendimento da literatura dramática, que, nesta época, geralmente, se utilizava de
estruturas gramaticais complexas e palavras rebuscadas. Santoro Junior explicou em
entrevista:
Por exemplo, ia levar tal peça, ia todo mundo pro palco, mas se obedecia assim.
Um começava: “Cingir pelas façanhas os vis lauréis/ que os escribas sempre
dão/ aos seus sicários/ Povo sem alma, raça viperina...”. A tia Thusa ou o vovô:
“Para. Você entendeu tudo o que tá falando aí?” “Entendi”. “Então, o quê que é
cingir?”. Um olhava pro outro. “Pega o dicionário!”. E daí “Cingir é isso, cingir é
isso, cingir é isso...”. Todos eram obrigados a falar o que significava, pra depois
continuar o texto. Porque era muito difícil as palavras, então eles iam tendo uma
cultura de português, de francês (...) Eles tinham a força da linguagem, a
linguagem era muito polida77.
Com o passar dos anos e com o progressivo aumento do repertório de peças, os
artistas circenses passaram a se especializar na interpretação de determinados papéis. Desse
modo, ao fim dessa primeira leitura, cada um já sabia qual personagem iria interpretar, de
76
77
Rosalina Viana em entrevista ao pesquisador Pedro Della Paschoa Junior em 1972.
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
124
acordo com o tipo que representava na companhia; fato este que fazia dispensável também
a figura do diretor, pois cada ator sabia claramente qual linha de interpretação deveria
seguir.
Destaco ainda que para essa leitura, os artistas não recebiam o texto completo
da peça; cada artista recebia um papel apenas com as “deixas” e suas falas. Desse modo, a
questão da oralidade se fazia extremamente fundamental, pois o entendimento da lógica e
dos desencadeamentos globais da peça vinham somente no momento em que todos se
juntavam para ensaiar e, posteriormente, apresentar ao público. Santoro Junior narrou na
mesma entrevista:
Em casa a gente fala uma coisa: “deu a deixa?”... Porque a gente estudava, o
papel não era texto como vocês estudam hoje no teatro. Era uma fala – a deixa – e
o que você fala. Você entendeu? E é muito engraçado que o pessoal pergunta
“Como que vocês conseguiam decorar tudo isso?” Lógico... Você levou um dia,
levou dois, levou três, às vezes a pessoa não dava a deixa você mesmo dava a
dele e já a sua fala... E daí ela ficava brava né? (Risos). Então nós também
decorávamos desse jeito, e isso a gente fazia e faz em casa 78.
No Pavilhão Arethuzza, assim como em tantos outros circos, comumente os
diálogos da cena passavam a fazer parte da comunicação do dia-a-dia, com uma conotação
especial, que fazia – e ainda faz – com que estes artistas se comunicassem entre si através
de “códigos”. Durante a nossa entrevista, Santoro Junior me contou diversas passagens
engraçadíssimas em que esta questão aparece; passagens, encontradas também em sua
monografia:
Essas “falas” eram e são frequentemente trazidas para os papos do dia a dia, (...)
ganhando uma eficácia por sua imprecisão conotativa. Por exemplo: no drama
“Os milagres de Nossa Senhora Aparecida” enquanto Isaura fazia suas preces era
tentada pelo diabo, Luzbel. Porém, logo o anjo, Gabriel, vinha em seu auxílio e
dizia: “Cuidado Isaura, cuidado, que Satã quer te roubar, um anjo que se revela,
nada tem para lhe dar, prossiga tranquila e calma na sua santa oração, que não
perderás tua alma e não cairás em tentação...”. Assim quando algum perigo rodeia
um dos elementos do circo, logo disfarçadamente alguém alerta: “Cuidado Isaura,
cuidado...”.
Numa comedia de matinê, o mascate se apaixona pela mocinha cujo pai ranzinza
não admite o namoro da filha. Assim todas as vezes que este casal de namorados
está em colóquio amoroso, o velho entra em cena. Imediatamente o mascate se
78
Ibidem.
125
esconde e a jovem com muita brejeirice faz o pai sentar-se numa poltrona e
conta-lhe uma história, e com um lenço segurado pelas duas mãos, tapa-lhe a
visão pronunciando uma frase como se fizesse parte da história “Passa, passa
mascate...”. Com esta estratégia, o mascate consegue fugir. Daí toda vez que uma
pessoa do circo quer sair de fininho sem ser percebido por outrem, pede
discretamente o auxílio a quem o atende com a simples frase: “Passa, passa
mascate...”.
Toda vez que nós do circo Arethuzza queremos alguma coisa e não podemos
obtê-la, logo a “fala” é dita “Ah! Se eu fosse amada assim...”. No drama Amor de
Perdição, no quarto ato, Simão que ama Teresa mata Baltazar, primo de sua
amada, pois o mesmo viera interferir drasticamente em seu romance. Cena esta
inclusive assistida por Mariana que por sua vez ama Simão e não é
correspondida. Assim decorre a cena e o texto deste ato: Após o tiro fatal Teresa
exclama: “-Ah Simão que te perdeste...” e Simão responde desoladamente: “Perdido eu já estava desde o dia em que te amei...” Mariana que a tudo observa
exclama “-Ah! Se eu fosse amada assim...” (cai o pano). Por isso nós diante de
uma vitrine que nos mostra algo muito bonito e muito caro, expressamos
melancolicamente “-Ah! Se eu fosse amada assim...”.
No drama “O Ébrio” há um personagem inconveniente, o primo José, o vilão da
história. Salomé, empregada do herói desta peça, Dr. Gilberto, está sempre atenta
nas atitudes de José, desapontando-o a cada instante, principalmente no momento
em que José quer entrar no quarto de Marieta, esposa de Gilberto. Interpondo-se
entre ele a porta, Salomé com uma bandeja na mão e uma postura cômica
exclama “cafezinho...”. Assim toda vez que uma pessoa se torna inconveniente
diante dos nossos, sempre se ouve a frase “cafezinho...” (SANTORO JR., 1997:
66).
Essas
passagens
mostram,
mais
uma
vez,
como
o
processo
de
formação/socialização/aprendizagem no circo era uno e integral, fazendo com que o
trabalho artístico e a vida pessoal desses artistas fossem completamente amalgamados. No
circo, eles nasciam, cresciam, trabalhavam, constituíam família e passavam seus
ensinamentos para os seus filhos. Fernando Neves, que acompanhou o tio Santoro Junior no
dia de sua entrevista contou:
Todo dia tinha ensaio, todo dia a gente ensaiava e a vida inteira que eles viveram,
eles foram assim... Quando tinha uma festa ou alguém dava uma deixa, eles
faziam a peça inteira... Um já ia pro piano, o outro já pegava o violão e cantava as
músicas. E "abaixa, abaixa!", como pra abaixar o tom, "abaixa! abaixa!". E você
via o povo cantando e todo mundo abaixava na festa (risos)... E isso era o tempo
inteiro. O tempo inteiro, eles viviam isso direto e minha mãe às vezes tava
jantando lá na sala de jantar, assim, eu passava e ela falava "E aí, filhinho, tá com
saudade do circo?" e eu “Não é que eu tô?”. Tínhamos saudades... Eles viveram a
vida inteira... Amaram o que eles fizeram79...
79
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
126
Retomando a questão dos procedimentos de ensaio, após a primeira leitura do
texto, cabia ao ensaiador a marcação da cena, que incluía entradas e saídas dos personagens
e também as movimentações em cena de cada um.
Para isso, os circenses usavam, assim como o teatro tido como oficial do
período, o sistema de divisão do palco em setores, seguindo a convenção à portuguesa, na
qual esquerda e direita dizem respeito ao ponto de vista da plateia:
Esquerda Alta
Centro Alto
Direita Alta
(Setor 1)
(Setor 2)
(Setor 3)
Meio Esquerda
Centro Médio
Meio Direita
(Setor 4)
(Setor 5)
(Setor 6)
Esquerda Baixa
Centro Baixo
Direita Baixa
(Setor 7)
(Setor 8)
(Setor 9)
Proscênio
Dessa forma, em relação à frontalidade, o palco era dividido em esquerda,
direita e centro; e em relação à profundidade era dividido em alta (fundo), baixa (frente) e
média (intermediário).
José Carlos de Andrade (2010) afirma num primeiro momento em seu trabalho
que, quando o ator se deslocava em direção a frente do palco (baixa,) dizia-se que ele
127
desceu ou caiu; quando se deslocava em direção ao fundo do palco (alta) dizia-se que ele
subiu ou remontou. Também afirma que se usava a expressão tomar a cena, quando o ator
ocupava o centro do palco sob a atenção de todos, e abrir a cena ou passar para indicar que
o ator deveria dar passagem para que outro ator se deslocasse para a mesma posição, sem
que um encobrisse o outro.
Porém, um pouco mais adiante em seu texto, ao exemplificar a movimentação
de um personagem, Andrade (2010) utiliza apenas os termos descer e cair para especificar
as movimentações realizadas também em direção ao fundo do palco. Rosalina Viana, em
depoimento ao pesquisador Pedro Della Paschoa Junior, em uma passagem em que conta
como eram executadas essas marcações, também utilizou apenas o termo cair para indicar
ambas as movimentações:
Às vezes tem uma cena e a pessoa tem que falar aquela fala. Tem que passar...
Como antigamente... Hoje em sai, não se sabe mais... (...) - Você passa a 1. O
cara já sabia que a posição dele era a 1. – Não! Você não passa a 1. Cai a 3! O
Cara tinha que dar um jeito, sem prejudicar a visão do outro, e cair a 3. Quer
dizer, tudo isso aí, a gente era obrigado a saber. Eu estou a 1, ela está a 2, você
está a 3 e ele a 4. Eu estou aqui conversando, mas de repente, eu tenho que cair a
4. Eu tenho que se artista pra sair do meu lugar, sem prejudicar você e cair no
lugar do outro. Tudo isso a gente tinha que ensaiar quando estava marcando.
Veremos mais adiante que, com a verticalização do uso da tipologia na
construção das personagens, a movimentação por essas áreas do palco irá auxiliar na
composição de cada tipo e na identificação destes por parte da plateia.
Santoro Junior conta ainda que comumente nos ensaios, à título de exercício e
experimentação, os atores trocavam os personagens entre si, de modo que o ator poderia
encontrar diferentes nuances e características de seu personagem ao ver este sendo
representado por outro ator. Esse exercício de alteridade ainda hoje é muito utilizado pelos
grupos de teatro em seus processos de montagem.
Muito comum também era o fato do ensaiador se basear em quadros de grandes
artistas plásticos mundiais para a construção de cenas que contavam com a presença de
muitos atores ou que necessitavam de grande impacto e rigor formal. Fernando Neves
conta:
128
Então, por exemplo, como não tinha diretor, eles queriam resolver uma cena
grande... Daí eles pegavam um quadro e falavam "olha que legal esse quadro!" e
montavam a cena: "olha (...) ele tá com a mão aqui, tá olhando assim", via
também a luz pra fazer as sombras... Então eles resolviam algumas cenas olhando
pra obra de arte. (...) Então a Pietá nossa do Mártir do Calvário tem... a descida da
cruz do Cristo tem... eu não sei que artistas que eles escolheram... Mas, aquilo
tudo foi feito olhando pra quadros de artistas plásticos e pintores. E foi assim que
o Toco (Santoro Junior) acabou vindo a ser professor de História da Arte80.
Não podemos nos esquecer de que, no circo, essa profunda intimidade do artista
com o seu ofício era cultivada desde a infância. Assim, as crianças aprendiam vendo os
mais velhos e já participando também das encenações. Santoro Junior conta, por exemplo,
que sua tia Arethusa ia ao cinema, para fazer adaptações dos filmes para os palcos, e
sempre o levava:
Ela ia no cinema e me levava junto. “Ele não pode entrar”. Ela falava assim:
“Mas ele é meu ajudante. É meu sobrinho, eu sou a tia dele, eu tenho a
autorização dos pais pra levar, porque ele me ajuda”. “Que ele faz?”. “Eu sou do
circo”. “Ah! Do circo Arethuzza!”. “E eu vou fazer uma adaptação do filme e ele
vai segurar a lanterninha pra mim”. Então eu ficava com a lanterninha enquanto
ela ia escrevendo alguma coisa, e assim ela montou “A irmã Branca”, “A Canção
de Bernadete”, as peças que passavam...
Então isso tudo eu sei porque eu não saía de lá, imagina que vinha embora pra
casa de colo em colo. “Quero o colo do tio”. Aonde eles iam me levavam em tudo
quanto era canto. Então é por isso que eu tenho essa herança na cabeça81.
Acerca de como as crianças eram instruídas a interpretar, Santoro Junior contou
que o maior conselho era sempre o de buscar “agir naturalmente”. Para isso, os mais velhos
mostravam à criança no que aquele personagem se assemelhava a ela; e esta identificação e
naturalidade cultivada pelos circenses geravam, às vezes, situações engraçadas, como a
abaixo:
De modo geral era "Olha, você vai fazer um papel... você vai fazer o irmão de
Bernadete. Um menino sensível, que nem você! Olha, faz do jeito que você
quer!” Deixava a gente bem a vontade... Às vezes: “Olha, isso aqui você não
pode fazer”. Um dia eu lembro... Eles passavam uma fome desgraçada. Aí o dia
que ela vê a santa, o pai arruma emprego (...) e a vizinha, fala "vizinha, olha o
80
81
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
129
que eu trouxe pra você, uma cesta de comida". E eles tavam passando, assim,
uma semana de fome. Então já entrou comida, encontrou emprego, mexeu com a
vida toda da Bernadete. Então os meninos, lógico, quando viam lá aquele bando
de comida, pulavam nas coisas. Eu não sei por que cargas d'água, eu via de tudo,
sabia de tudo, mas também não sabia... E falei "Eu quero, eu quero! Eu quero
„shisha‟!” E aquela salsicha balançava e o povo ria porque ficou assim, sabe...
(...) “Isso não pode fazer. Você vai querer qualquer outra coisa, a „shisha‟ não vai
ter mais”... Porque ficou tão feio... (risos) 82.
Santoro Junior ainda conta que a introdução das peças às crianças desde muito
cedo permaneceu como hábito da família mesmo após o encerramento das atividades do
circo. Desse modo, o conhecimento da literatura dramática circense fez parte da formação
de seus filhos, que acabaram também por desenvolver o hábito de falar em códigos:
De manhã quando fazia o café pros meus filhos irem pra escola eu contava
histórias do circo. Então nós sabíamos de tudo, tudo, até hoje a gente fala, eles
falam comigo por código. Então eles faziam na minha casa uma bagunça! E
minha mulher chegava e ela é professora de história, daquelas professoras rígidas
sabe? Eles comigo faziam bagunça, quando minha mulher tava chegando, fazia
um barulho, eles olhavam, um falava “Ouvi bater a cancela grande”, aí o outro “É
Leôncio que veio da cidade”. Isso pra dizer que a mãe estava chegando! Então
nós temos, assim, hoje muita conversa, assim até hoje, a gente se fala com esse
tipo de conversa que eu já passei pros meus filhos. (...) Um dia eu tava fazendo
uma faxina, meu filho foi lá e desarrumou tudo, eu falei “Por Deus, quê que cê
fez?”, sabe, fiquei muito bravo com ele... “quê que cê fez?”. E ele falou “que
fizeste João? Vinguei a meu pai (...) derrubei com um pedaço de chumbo um
castelo de ouro”. Uma criança pra falar isso é porque a gente enchia o saco dela!
Era “O Poder do Ouro” que ele tava falando 83!
Todas
estas
questões
formação/socialização/aprendizagem
estruturaram
circense
integral, que
um
gerava
processo
uma
de
profunda
intimidade entre o artista circense e seu ofício, e também entre os próprios artistas. Por sua
vez, toda essa intimidade, avinda do grau de parentesco entre os artistas, da intensa
convivência, de tantos ensaios e tantas apresentações todas as noites, permitia a execução
das mais diversas brincadeiras em cena. Em entrevista, Santoro Junior e Fernando Neves
relembraram as peripécias que os mais novos aprontavam no Pavilhão Arethuzza e que nos
renderam boas risadas:
82
83
Ibidem.
Ibidem.
130
Santoro Junior: Aí a gente começou a ficar mais malandro, começou a fazer
bagunça, mas tudo interno, o povo não percebia.
Fernando Neves: Ele tá falando em muita bagunça!
(risos)
Fernando Neves: Ele salgava vinho... no Mártir do Calvário!
Santoro Junior: Eu tava de escravo de Pilatos e do nada "pou", caía tudo pro
lado.
Fernando Neves: E tudo com cara de "ninguém fez nada"... os velhos ficavam
putos, não gostavam nada daquela história.
Santoro Junior: E tinha uma tia chamada Rosária... Ela não era tia, mas
chamava de tia... E ela ia na sexta-feira fazer a peça... E ela levava uma bacia de
pinhão cozido e batata doce... E a gente comia e comia e comia batata doce e
pinhão. Depois a gente você só ouvia o barulhinho "puf"... “puf” (risos). E Jesus
Cristo falando “Jerusalém... cidade majestosa, aceita o...!". E termina com a fala...
E cadê o povo? Tudo lá atrás porque ele tá... soltando pum (risos). Aquilo era
bravo, aquilo...
Fernando Neves: E tudo com cara de choro, com cara de cinismo total. A plateia
chorando e todo mundo em cena pintando e bordando. (...) E, nossa, era uma
delícia! A gente ia pra lá na hora do almoço e ficava... Saía de lá uma hora da
manhã, na quinta eram duas e sexta-feira eram três sessões. E o circo lotado e
aquilo era uma delícia, né? Pra gente era... Agora, o Cristo não, o Cristo não
participava de nada disso, ficava lá no camarim, alguém maquiava, tudo, só saía
do camarim pra entrar em cena.
Fernanda Jannuzzelli: E quem fazia o Cristo?
Santoro Junior: Tio Sinhô, depois foi passando...
Fernando Neves: Mas quem fazia o Cristo não tinha isso de ficar nessa bagunça.
Santoro Junior: Não, mas tinha um moço foi terrível (referindo-se ao Fernando)
que bolou coisa que a gente nunca imaginava, sabe o que ele queria? O pessoal
tinha que tirar a sandália e molhar os pés no lava-pés no Mártir do Calvário
também... Daí queriam por água quente e o pessoal "Ah!!!". Sabe quem queria
fazer isso, Fernanda? Não te passa pela cabeça?
(risos)
Fernanda Jannuzzelli: Quem será? (risos)84.
Essas brincadeiras entre os intérpretes criava “outra camada” na representação,
que vai além do campo ficcional. Estabelecia-se um jogo entre os atores que não era
perceptível ao público, mas que contribuía inegavelmente para a conformação do que era
visível a este. A brincadeira, o desafio ativava-os a um estado lúdico, que se ligava
diretamente ao campo teatral e que os tornava mais vivos e vibrantes em cena.
2.4.2 Repertório
84
Santoro Junior (Toco) e Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
131
Como evidenciado anteriormente, as companhias de circo-teatro encenam peças
de diversos gêneros teatrais, muitas vezes mesclando-os e justapondo-os, o que promove a
pluralidade dos discursos cênico e dramático. Devo mais uma vez relembrar que esta
diversidade de gêneros, assim como tudo no circo, tem como principal objetivo agradar a
plateia, conformando o espetáculo aos gostos e tendências contemporâneas e locais. Ou
seja,
(...) os artistas circenses irão se valer de tudo que existia para oferecer aos
espectadores uma encenação esteticamente pluralizada. Essa estratégia
caracterizava-se pela superposição de muitos gêneros, com o objetivo de evitar
que alguém nas arquibancadas se aborrecesse (ANDRADE: 2010, 77 e 78).
Desse modo, o Pavilhão Arethuzza ao longo de sua trajetória encenou – além de
pantomimas e melodramas, presentes no circo “moderno” desde sua origem – diversos
outros gêneros teatrais, que comportavam desde as entradas de palhaços até elaboradas
encenações de grandes obras da literatura universal.
Dentre esses variados gêneros, o Pavilhão Arethuzza se destacava pela
representação, principalmente, de dramas. Ressalto que, hoje, costumeiramente falamos que
os circos-teatro encenavam melodramas, porém estes artistas chamavam suas
representações de “dramas”, e às vezes, até de “tragédias”. O circo está sempre com o olhar
voltado para o gosto do público; desse modo, como na época de ouro do Pavilhão
Arethuzza a preferência do público recaía sobre o drama, este era então levado à cena quase
diariamente pela companhia. Santoro Junior, em entrevista, contou: “Nós fazíamos
comédias boas também, mas o forte era o drama por causa da época... Romantismo, né?
Porque o Romantismo terminou muito tardio no Brasil. Todo mundo queria chorar, se
apaixonar”85.
Santoro Junior contou ainda que nessas representações dramáticas quase não
havia espaço para o improviso. Deste modo, as encenações estavam alicerçadas,
principalmente, sob o rigor de um texto, necessariamente bem decorado e bem dito, em
sinergia com os diversos elementos da encenação, explorados sempre de maneira
85
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
132
requintada, e com um intenso e rico trabalho de composição de personagem por parte dos
atores.
Acerca das peças cômicas, Fernando Neves destaca que, o contexto histórico
em que está inserido o Pavilhão Arethuzza, fazia com que o humor fosse trabalhado,
principalmente, sob o viés do duplo sentido. Sobre seu avô, Oscar Neves (Thomé), o
excêntrico da companhia, Fernando Neves conta:
Meu avô não falava um palavrão... Um “puta que pariu” levantava meio circo e ia
embora! E pensa: nós estamos falando de até os anos 50. Não é a coisa de hoje.
Então ele trabalhava com duplo sentido. (...) Porque você tem o circo de teatro, o
Tubinho é outra coisa... Ele tá em cima da plateia, ele fala o que ele quer, como
se ele estivesse em casa. Nesse período do circo-teatro que é o circo de duas
partes, primeira de variedades e o teatro, se trabalhava com duplo sentido. Falava
muita sacanagem, mas aquilo não era dito abertamente, entendeu? Se você falava
um palavrão no circo acabava, as pessoas ficavam chocadas. Agora mudou, mas
naquele período não se admitia86...
Em seus estudos, José Carlos Andrade (2010), a partir do levantamento feito
por Antônio Santoro Junior (1997), fornece um catálogo com cento e dezessete textos que
foram encenados pelo Pavilhão Arethuzza ao longo de aproximadamente quarenta anos. É
certo que muitas outras obras foram encenadas, mas por diversas razões – entre elas o
nomadismo tipicamente circense – muitas se perderam. Além disso, destaco que a maioria
dos textos sofriam modificações, sendo adaptados ao elenco do Arethuzza e à
disponibilidade de investimento financeiro do momento.
A seguir, listo as peças que eram encenadas no Pavilhão Arethuzza, seguindo a
divisão proposta por José Carlos Andrade (2010)87:
Clássicos
Quadro 1 – Lista do repertório de peças do Circo Teatro Pavilhão Arethuzza
1. Otelo
2. Romeu e Julieta
Comédias
3. Casar para morrer
4. Dar corda para se enforcar
86
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
Apesar de utilizar a classificação proposta por Andrade (2010), por ser a única existente e este não ser o
foco deste estudo, acredito que essa classificação deve ser revista e aprofundada, pois não leva em
consideração a divisão clássica em gêneros e subgêneros.
87
133
5. Dote (O)
6. Família Revoltosa (A)
7. Feia (A)
8. Feitiço
9. Felicidade pode esperar (A)
10. Fuga da melindrosa (A)
11. Inimiga (A)
12. Mulher do trem (A)
13. Que mão que eu arranjei
14. Ressonar sem dormir
15. Se o Anacleto soubesse
16. Terra Natal
17. Vancê não viu minha fia?
Dramas
18. Bandidos da Serra Morena (Os)
19. Castelo das Almas condenadas
20. Coração que sangra
21. Ditadora (A)
22. Dois sargentos (Os)
23. Dois garotos (Os)
24. Filha do saltimbanco (A)
25. João José
26. João, o corta mar
27. Jocelyn, o pescador de baleias
28. José do telhado
29. Manhãs de sol
30. Ódio de raça
31. Pena de morte (A)
32. Poder do ouro (O)
33. Sacrifício de mãe
Melodramas
34. Conde de Monte Cristo (O)
35. Escrava Andréa (A)
36. Ferro em Brasa
37. Filha do mar (A)
38. Grito da consciência (O) ou Justiça Divina (A)
39. Máscara de Bronze ou Falsa Adúltera
134
40. Mulher sem destino (A)
41. Mundo não me quis (O)
Dramas
42. Descoberta da América (A)
Históricos
43. Guerra de Canudos (A)
44. Guerra do Contestado (A)
45. Tiradentes
46. Tomada da Bastilha (A)
47. Vida de Emile Zola (A) ou Conselho de Guerra (Um)
Peças
48. Jesus, o cego e a leprosa
Religiosas
49. Lágrimas de Maria
50. Mártir do Calvário (O) ou Rei dos Reis (O) ou Drama da Paixão (O)
51. Milagres de Santo Antônio (Os)
52. Segredo dom Padre Jeremias (O)
53. Vingança do Judeu (A)
Filmes
54. Canção de Bernadete (A)
Adaptados
55. Direito de Matar (O)
56. Hipócrita (A)
57. Honrarás tua mãe
58. Jack, o estripador
59. Ladra (A)
60. Marca do Zorro (A)
61. Milagres de Nossa Senhora Aparecida (Os)
62. Pirata Negro (O)
63. Ré Misteriosa (A)
64. Rebeca
65. Rosas de Nossa Senhora (As)
66. Sétimo Céu
67. O sinal da cruz
68. Sinos de Santa Maria (Os)
Obras literárias
69. Amor de Perdição
Adaptadas
70. Alvorada do amor (A)
71. Cabana do Pai Thomaz (A)
72. Dívida de honra
73. Duas órfãs (As) – “Família Maldita”
74. Erro Judiciário (Um)
135
75. Escrava Isaura (A)
76. Escravo (O)
77. Frankenstein
78. Guarany (O)
79. Irmã Branca (A)
80. Irmãos Corsos (Os)
81. Lágrimas de Homem
82. Lobo do Mar (O)
83. Mãe Preta
84. Médico e o Monstro (O)
85. Morro dos ventos uivantes (O)
86. Rosa do Adro (A)
87. Testamento de sangue (O)
88. Tosca (A)
Textos
89. Cigana me enganou (A)
inspirados em
90. Cabocla Tereza
letras de
91. Direito de Viver (O)
músicas
92. Ébrio (O)
93. Luar de Paquetá
Infantis
94. Branca de Neve e os Sete Anões
95. Casamento de Branca de Neve (O)
96. Detetive Tomé e seu auxiliar Toquinho (O)
97. Vingança dos sete anões (A)
Textos que
98. Crime da quinta avenida (O)
não tiveram o
99. Deus e a Natureza
gênero ou o
100. Falsidade de Bandido
autor
101. Filha do montanhês (A)
identificados
102. Filho da miséria
103. Ilha das maldições
104. Maria Quitéria, a mulher do soldado
105. Marido nº 5
106. Pescadora (A)
107. Pupila do senhor pastor (A)
108. Que trapalhada!
109. Queda de Nero (A)
136
110. Rapto de Fernanda (O)
111. Retalho
112. Revelações do passado
113. Silvio e o Cigano
114. Soldado brasileiro (O)
115. Sua última lágrima (A)
116. Traição e a Justiça (A)
117. Vinte Mil Dólares
Fonte: ANDRADE, 2010: 443.
2.4.3 O ponto
O ponto era costumeiramente usado tanto no circo-teatro, quanto no teatro
brasileiro tido como oficial. Falando especificamente do circo-teatro, entendemos a
importância da função do ponto ao lembrarmos que as companhias circenses encenavam
um grande número de peças com alto grau de rotatividade entre elas.
O ponto se posicionava numa cabine de frente para o palco, num nível abaixo
da plateia, de modo a não atrapalhar a visão do público, aparecendo somente para os atores
através de uma caixa de madeira aberta na frente. Nos circos mais simples e de pequeno
porte, que não possuíam a caixa do ponto, a peça era “pontada” dos bastidores.
“Compete ao ponto acompanhar o texto escrito, falando-o em voz baixa e
sublinhando suas intenções quando necessário” (VARGAS, 1981: 104). A cada pausa dos
atores, o ponto ditava a fala e as indicações seguintes. Fernando Neves conta que o ponto
deveria falar de maneira “neutra”, ou seja, livre de inflexões e num tom de voz preciso,
audível somente aos atores88. Desse modo, o ponto corroborava para o bom desempenho
dos atores, fornecendo-lhes, quando necessário, além de suas falas, os posicionamentos no
palco.
Como já foi dito anteriormente, nos ensaios os atores recebiam papéis apenas
com suas falas e deixas; assim sendo, só o ponto possuía o texto na íntegra, funcionando
como um ensaiador em cena que, além de “soprar” as falas, controlava as entradas e saídas
88
Informação colhida das anotações realizadas durante a execução da frente prática, no ano de 2010, de
minha Iniciação Científica.
137
dos personagens, as subidas e descidas de cortina e o desenho de som e luz do espetáculo –
todos previamente determinados pelo ensaiador (SILVA, 2007).
Como dito no capítulo anterior, os historiadores do teatro brasileiro tido como
oficial costumam afirmar que foi a partir da década de 1940 que o ponto teria sido abolido
da cena teatral, particularmente, com o trabalho realizado por Zbigniew Marian Ziembinski.
Porém, Erminia Silva (2007) mostra em seus estudos que os espetáculos criados por
Benjamim de Oliveira no Circo Spinelli já não utilizavam o ponto desde a montagem de O
Diabo e o Chico em 1906.
No Pavilhão Arethuzza a maioria das peças levadas, seguindo a preferência do
público, eram dramas e estes possuíam uma estrutura dramatúrgica complexa, com
construções linguísticas refinadas, que deveriam ser compreendidas e decoradas pelos
atores, sendo raras as aberturas para improvisos.
O fato dos artistas circenses representarem as peças do baú da família tantas
vezes ao longo dos anos fez com que eles se apropriassem dos textos verdadeira e
profundamente, de modo que eles permanecem vivos até hoje em suas memórias. E graças
a isso, as festas da família Viana-Santoro-Neves continuam sendo alegradas pelas canções e
cenas das peças do Arethuzza; e, graças a isso também, foi possível que eu vivesse a
profunda experiência de ouvir da boca de Santoro Junior textos tão lindos, ditos de modo
tão envolvente, tocante e verdadeiro.
Desse modo, como havia o profundo pertencimento destes textos por parte dos
atores, na maioria dos espetáculos o ponto apenas acompanhava o texto, para dar segurança
ao elenco, e agia somente se o desenrolar do espetáculo fosse prejudicado ou em caso de
substituições no elenco.
Em entrevista, Santoro Junior contou que o Pavilhão Arethuzza até anunciava
em suas propagandas que era o único circo a levar uma peça em doze atos sem ponto –
informação que deve ser vista mais como uma jogada de marketing do que como um fato
verídico, já que diversos outros circos também aboliram o uso do ponto ao longo dos anos:
Fernanda Jannuzzelli: E as peças... Algumas eram apontadas e outras não?
Santoro Junior: De modo geral falhou você já dá...
Fernanda Jannuzzelli: Tinha alguém nessa função, mas ela só...
138
Santoro Junior: É, porque nesse caso, quando começa a mudar muito, muito,
muito, quem entra no ponto é mais só pra localizar a pessoa. Então eles não falam
tudo, porque se a pessoa já deu a fala, já vai embora.(...) Nós na verdade... Se
você pegar os programas fala assim “O único circo que leva uma peça em doze
atos sem ponto” e isso era um sucesso e o pessoal ia pra saber se era verdade. E
era89!
Se imaginarmos que em uma determinada situação o ponto precisasse apontar a
marcação completa, ele teria, então, que dizer a posição do ator no palco – de acordo com a
região em setores descrita anteriormente – a intenção da fala e a fala propriamente dita.
Por exemplo, se a peça fosse ...E o céu uniu dois corações, o início do primeiro
ato poderia ser “pontado” assim: “Francisco e De La Torre entram pela 4, caem a 9 .
Francisco, curioso „Afinal, por que me telefonaste para que viesse imediatamente para
aqui?‟. De La Torre, misterioso „Já vais saber‟.
Desse modo, o ator deveria ouvir e executar todas essas instruções, advindas do
plano da realidade, ao mesmo tempo em que deveria se manter imerso também no plano
ficcional, mantendo a construção física e temperamental de seu tipo e dando continuidade a
ação que estava realizando.
Para mim, e acredito que também para os demais atores que não são egressos
dessa escola circense, essa maneira de trabalhar se conforma como algo extremamente
complexo e distante do nosso modo habitual de “pensar teatro”.
Tive a oportunidade de realizar com Fernando Neves, em 2010, durante a
execução da frente prática de minha Iniciação Científica, na Graduação em Artes Cênicas,
um exercício que simulava esta questão do ponto.
Neves pediu que eu e os demais colegas da Academia de Palhaços
escolhêssemos um trecho de algum texto teatral de comédia, como por exemplo, alguma
obra de Martins Pena, Molière ou Shakespeare. Deveríamos ler este trecho sem decorá-lo,
só para termos uma ideia do desenrolar dos acontecimentos. Um de nós então serviria de
ponto e iria dando as falas para os que estavam em cena.
Primeiramente, Neves nos deixou livres realizando o exercício sem fazer
nenhum tipo de comentário, para percebermos pela nossa própria experiência o que esta
89
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
139
prática suscitaria.
Nas primeiras tentativas quando o ponto começava a “pontar” a nossa reação
natural era olhar para a pessoa. Quando percebíamos nosso olho “já tinha ido” e estávamos
simplesmente parados – e desconexos da ação dramática – esperando o ponto acabar de
falar.
Após o exercício os comentários se resumiam em “Como os atores conseguiam
fazer isso? É muito difícil! Tem que estar em cena, prestando atenção no que está
acontecendo e ainda estar atento ao ponto para ouvir a sua fala! E pra ouvir sua fala você
não pode ficar simplesmente parado olhando pro ponto e esperando ele terminar de falar! É
impossível!”.
À medida que fomos repetindo o exercício percebemos que a dificuldade ainda
era grande, mas que estávamos começando a nos habituar a tal prática. Sentimos,
primeiramente, a real necessidade de estarmos completamente concentrados e atentos em
cena, o que nos exigia um estado de prontidão aguçado e um nível de energia elevado.
Percebemos, então, que a pausa que fazíamos para ouvir a fala do ponto e que
no começo nos parecia tão estranha, aos poucos foi incorporada à ação dramática, dando à
cena outro ritmo, diferente do que estamos acostumados a trabalhar90.
Instalavam-se uns “tempos de silêncio” que, ao percebermos a engrenagem da
cena, não ficavam mais vazios, pois passaram a ser preenchidos de intenções e ações
físicas. Desse modo, enquanto ouvíamos a fala dada pelo ponto, era como se o subtexto
fosse emergindo e nós “jogássemos na máscara” (expressão facial) e também no corpo
(expressão corporal) a intenção das nossas falas.
Fernando Neves então nos disse: “Tem o tempo de ouvir e o de reproduzir.
Vocês têm que criar ações que preencham este tempo de ouvir e, ao mesmo tempo, ouvir
muito bem a pessoa que está „pontando‟, para ir criando essa ação”.
Outra questão que observamos neste exercício é que a pausa feita para se ouvir
90
Lembrei-me, então, de Marlon Brando e de seus “tempos” particulares, prolongados – para o tipo de
interpretação que estamos acostumados no cinema – porém completamente preenchidos. Sabe-se que Marlon
Brando não decorava a maioria de suas falas e que espalhava cartões por todo o set com o texto que deveria
interpretar e que, já no fim da carreira, nos anos 1990, chegou a utilizar um ponto eletrônico.
140
o ponto e a maneira “neutra” como este dita as falas traz certo frescor para o texto, fazendo
com que o ator sempre dê uma nova intenção – que os circenses chamam de inflexão – a
cada fala. Percebemos que esse tipo de mecanismo possibilita, então, que o ator descubra
novas intenções em suas falas, impedindo que o texto se engesse e se torne mecânico.
Em entrevista, Fernando Neves destacou a familiaridade com que o ator de
circo trabalhava com o uso do ponto:
O ponto ia organizar peças de duas, três horas. Ele tava lá senão ia parar o
espetáculo. E o ponto era muito tranquilo pro ator de circo. (...) Imagina! Ele
ouvia aquilo, tinha ouvido pra aquilo, não olhava pro ponto... Aquilo era normal.
Uma vez eu fiz um exercício com ponto, ainda como meu grupo lá com a Sílvia,
com o Hugo. A gente tava em cena, um dava o ponto e “Ãh?!”, parava,
desconcentrava. O ator de hoje, se alguém tosse da plateia ele desconcentra... Não
pode fazer nada que ele desconcentra! (...) Eles tinham muita familiaridade com
aquilo tudo. Hoje em dia, por exemplo, você vê uma representação na TV, uma
novela, ninguém fala daquele jeito! Aquilo é um código que a televisão criou, é
interpretação. No circo a mesma coisa: era código. Tinha um tempo do ponto e
era um tipo de interpretação que incluía o ponto na sua interpretação. E criou um
tempo de dizer as coisas que é um tempo diferente para o ator91.
2.4.4 Elementos da encenação
Em 1926, as representações já haviam ganhado grande destaque no espetáculo e
o circo da família Viana-Santoro-Neves passou a se chamar Circo-Teatro Arethuzza. Nesse
período, seguindo a transformação das representações, que necessitavam de maiores
recursos técnicos, o palco passou a ser formado por um tablado de um metro de altura,
levantado à frente do picadeiro.
Ainda dentro desses padrões, foram aparecendo alçapões, reinterpretando a
melhor tradição do espaço elisabetano. Surgiram também cortinas superpostas,
que garantiam a surpresa do que viria depois. Coxias para que os artistas-atores
aguardassem a entrada faziam-se necessárias e faixas de tecido, vindas do alto,
impediam que público praticasse uma devassa visual na horizontalidade do palco.
(...) Outra das alterações introduzidas é a ampliação da caixa do palco no sentido
de profundidade, para que comportasse uma variedade maior de cenários, sempre
resolvidos com a superposição de telões pintados. Essa inovação é providencial
para que surjam novos e surpreendentes efeitos especiais, ganhando em
perspectiva e elaborando ainda mais o tom apoteótico com que as montagens
eram encerradas. (ANDRADE, 2010: 45, 46 e 74).
91
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
141
Dessa forma, para prender a atenção da plateia, o circo-teatro sempre utilizou
de diversos recursos, principalmente visuais e sonoros, que visam despertar a sensibilidade
e, consequentemente, a empatia da plateia. Fernando Neves costuma dizer que “o que os
olhos veem, o coração sente!”.
O Pavilhão Arethuzza, ao longo dos tempos, desenvolveu um olhar apurado
para as questões visuais do espetáculo, criando encenações recheadas de luxo e requinte e
responsáveis pela consagração da companhia.
Para chegar a este resultado final que tanto agradava os espectadores, os artistas
do Pavilhão Arethuzza – principalmente os ensaiadores Antônio das Neves e Arethusa
Neves – realizavam profundas pesquisas, nas mais diversas fontes, como livros de história
da arte, filmes e cartões postais, de onde obtinham exemplos e referências para a criação
dos cenários e figurinos. Santoro Junior conta:
Meu avô tinha muito contato com a Europa, ele veio de Portugal... Tinha muito
contato. E ele trazia as coisas de lá e montava aqui. Então, por isso que, imagina
o interior vendo “Tosca”! Tinha a banda, a banda tocava e as pessoas assistindo
“Tosca” no fim do mundo. Imagina vendo “Inês de Castro!” (...) Então tinha
dessas coisas que jamais tinham ouvido, principalmente o interior. Então aí eles
começaram a ser, assim, uma espécie de Globo, a ter uma riqueza total nas
roupas, nas confecções...Tinha de tudo, (...) tinha essa facilidade de ter tudo lá
dentro, o que você imaginar a gente tinha92.
Talvez o telão93 seja o elemento mais recorrente na cenografia do circo-teatro.
Com isto não quero dizer que o uso destes telões pintados à mão é exclusividade das
encenações circenses: o telão foi um dispositivo cênico utilizado por diversas
manifestações teatrais – inclusive as tidas como oficiais – até o final do século XIX.
Esses telões eram quadros que revestiam as bordas e o fundo das cenas para criar
a ilusão de um ambiente tridimensional, e se tornaram peças que são vestígios da
92
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
Esclareço, porém, que os circenses não usam o termo “telão”, termo comumente usado hoje em dia para se
falar sobre a cenografia do circo-teatro e do teatro tido como oficial até o século XIX. Entre os circenses o
termo usado é “cenário”.
93
142
memória visual e técnica do período em que a cenografia se apoiava
essencialmente na arte da pintura (SILVA, 2007: 271).
Porém, enquanto a cenografia no teatro sofreu diversas transformações, no
circo-teatro os telões continuam sendo usados até hoje, por circos de teatro como o do
palhaço Tubinho, Piska-Piska e Biriba, por exemplo, e também pelo próprio Fernando
Neves em seu trabalho com a companhia Os Fofos Encenam. Desse modo, acredito que o
telão acaba por conferir uma espécie de “marca” ao circo-teatro e continua sendo usado por
estar vinculado e se adequar perfeitamente tanto ao pensamento estético do circo, quanto às
suas necessidades práticas.
Em relação ao pensamento estético, a utilização do telão vai ao encontro da
linguagem anti-ilusionista do espetáculo teatral no circo. Fernando Neves afirma que
O circo era assim: o circo chamava você e dizia "Plateia, nós vamos fazer teatro,
isso é representação, isso é arte". Em nenhum momento, sabe, no circo prevalece
o pensamento do teatro – anos quarenta principalmente – de quarta parede, que
diz “Isso daqui é um tempo real, isso tá acontecendo”, daí preciso de um cenário
completamente realista, entendeu 94?
Além disso, o uso do telão vai ao encontro do pensamento circense, que pauta
todo o espetáculo, de que tudo é feito para a plateia, que deve reconhecer todos os signos da
representação de maneira clara, simples e direta.
Acerca das questões das demandas práticas, o telão é um mecanismo
cenográfico facilitador, no sentido de que tudo no circo precisa ser montado, desmontado e
transportado facilmente, devido a itinerância das companhias.
Desse modo, o telão, articulado com outros elementos cenográficos, é
responsável por ambientar a peça, sempre de maneira prática e sintética, e localizar onde a
narrativa se passa. Assim sendo, “abriu a cortina você já sabe: é casa de gente rica, ou é
casa de gente pobre, Pronto, já te localizou!” 95.
Geralmente, o telão é pintado à mão, por um dos circenses que demonstra
aptidão para tal ou por um artista plástico, e pendurado verticalmente ao fundo do palco.
94
95
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
143
Santoro Junior afirma que no Pavilhão Arethuzza os telões eram feitos de tecido
e pintados pelo artista plástico Paulo Reis e também por Oscar Neves (Thomé); este último
também não deixava de ser um talentoso artista plástico, apesar de não ser chamado como
tal. Acerca disso, uma passagem em especial me chamou a atenção na entrevista com
Santoro Junior e Fernando Neves, pois me mostrou como Neves ainda está revisitando a
memória de sua família e gerando novas reflexões sobre esta, além de me mostrar, mais
uma vez , pelas palavras de Santoro Junior, como a formação artística no circo era
completa:
Fernando Neves: O mestrado do Zé (está falando do pesquisador José Carlos
Andrade) é sobre cenografia no circo. E ele uma vez perguntou pra mim, “Mas
algum artista plástico pintava os telões?” E eu “Imagina! Meu avô que pintava!”
Santoro Junior: Mas ele era um artista plástico... Mas a gente não chamava...
Fernando Neves: (após uma pausa): É verdade... A gente não sabia, né Toco?
Que coisa...
Santoro Junior: Mas tinha artista plástico também, o Paulo Reis... Mas que a
gente também não chamava de artista plástico... Chamava de pintor. Então eles
ensinavam a gente no circo assim: “Você quer ser um pintor? Quer? Então, você
tem que olhar tudo ao seu redor, tudo que você já viu e já... Mas não é só o que
fica aqui, tem que olhar pra cima. Então a gente sabia tudo isso, né? Hoje em dia
você quebrou um vidro, um copo de cristal e tal é "Ah, pega a vassoura!”. Se é
um artista plástico ele: “Não mexe!”... Ele vai observar tudo, na composição...
Você percebe? Isso já fazia no circo. Quando eu entrei na Belas Artes ensinavam
primeiro a ver a terra, depois ver o céu. Com isso tudo eu falei "Pera, também me
ensinaram no circo ver a terra e o céu”96...
No Arethuzza, comumente os telões recebiam maiores elaborações, com a
utilização, por exemplo, de recursos de sobreposições. Na peça O Mártir do Calvário, por
exemplo, utilizava-se um telão transparente de filó, que aliado a alguns efeitos de
iluminação, revela a existência de cenas sobrepostas.
Além dos telões bidimensionais, havia um cuidado especial com a composição
e ambientação da cena. Para isso, utilizavam-se também diversos elementos cênicos, como
peças de mobiliário, portas, janelas – para a construção de ambientes internos – e árvores,
rios e rochas – para a construção de ambientes externos –, que aumentavam as
possibilidades de criação dos atores. Antônio Santoro Junior descreve que
96
Santoro Junior (Toco) e Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
144
Como cenógrafos e artistas plásticos, o pessoal do circo montava adequadamente:
bosques, jardins, interiores de palácios, residências inclusive com escadarias,
beira de rios, ruas de várias partes do mundo, como Paris, Roma com pedras e
chafarizes, Londres com a ponte do Tâmisa onde os atores podiam até caminhar,
convés de navios, inclusive com simulações de ondas, prisões, torres, masmorras,
etc. (SANTORO JR., 1997: 43).
Era comum ainda nas encenações circenses – e também nos teatros tido como
oficiais da época –, a utilização de maquinarias cênicas que despertavam a curiosidade e
enchiam os olhos da plateia.
No Pavilhão Arethuzza, por exemplo, para a montagem da peça O Sinal da
Cruz foi realizada uma intensa pesquisa de campo no Mosteiro de São Bento, em São
Paulo. Santoro Junior contou: “Os padres fizeram tudo pra gente, o tipo de roupa, o que vai,
o que não vai, mostravam os livros... Então a gente discutia lá no meio dos padres como é
que faz e tal...”97.
A peça Milagres de Santo Antônio ficou famosa pelas flores que
desabrochavam e os peixinhos que pulavam para fora da água. Em O Guarani construiu-se
uma verdadeira floresta no palco, com árvores rios e cachoeiras. Comumente também havia
a reprodução de monumentos mundialmente conhecidos, como o Coliseu de Roma, a Torre
Eiffel de Paris, ou o Big Ben de Londres, que permitiam o reconhecimento imediato por
parte da plateia (ANDRADE, 2010). E ainda:
(...) na peça “O Direito de Matar” um avião em chamas atravessa o palco, e a
peça “O Frankstein”, transforma-se num dos grandes sucessos da época, onde
via-se no primeiro ato um verdadeiro balé de caveiras no cemitério, fruto da
imaginação de Thomé que fazia o auxiliar de Dr. Frankstein filho, interpretado
por Sinhô, ambos corriam cemitérios para colher pedaços de defuntos para
estudo. No terceiro ato, no laboratório onde foi criado o monstro, de vez em
quando corriam morcegos pela plateia espantando o público que aguardava a cada
momento um novo susto (SANTORO, 1997: 59).
97
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
145
Figura 25: Sinhô (Antônio Neves Jr.) como Peri, em O Guarani, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Além de todas estas questões, Santoro Junior levantou um ponto em entrevista
que eu não havia encontrado em nenhuma bibliografia e que me era totalmente
desconhecido – acredito que por se tratar de algo relativo ao campo das Artes Plásticas, do
qual sou praticamente leiga.
Santoro Junior menciona o fato dos artistas do Pavilhão Arethuzza utilizarem o
binômio de cores “azul-vermelho” na composição de cenas e como este binômio está ligado
à ideia de fruição, transposta para o campo das Artes Plásticas. Acerca disso, Santoro
Junior está escrevendo um ensaio que em breve será lançado e, na entrevista, descreveu a
questão da seguinte maneira:
O circo usava o famoso binômio “azul-vermelho”. Essa é a grande sacada. Isso é
uma técnica...
Pra explicar isso, nas minhas aulas eu pergunto pros alunos: “O que é fruição?” E
eu mesmo respondo “É um negócio... Um negócio que entra e sai, tudo que entra
e sai é fruição”. E eles começam com a gozação “Ih... fiz tanto essa noite!”
(risos). (...) Então toda vez que há uma fruição eu faço assim (aponta para cima)
e sumo, e em questão de segundo eu volto. Então a arte veio pra isso. A prece
veio pra isso. Então quando você tá muito mal de uma briga, alguma coisa, você
vai, reza, e você já é uma outra pessoa. Porque você fez assim (aponta para cima)
e voltou. E na fruição é a mesma coisa. E cheguei à conclusão que no Drama da
Paixão cantam assim “No céu já não arde o fulvo sol; riso da tarde, lindo arrebol
(...) esperando está, a nossa aldeia a correr... parari parara”. E eles vêm vindo do
146
campo, se encontram, o sol tá sumindo, então “no céu não arde o fulvo sol”.
Então o que que é o fulvo? O amarelo. Na minha época falava “Olha que
fulvinha bonitinha vem vindo... Olha que loirinha bonitinha”. Na minha época
isso, hoje não se fala mais nada. E quando ele vai subindo vem um vermelhão do
céu... É o arrebol. Então, o que que é arrebol? É o vermelhão do sol. Então à
medida que ele sobe, desce a noite num tom azul que vai me dar um binômio...
Não tem quem não faz isso e não faz assim pra subir e descer!
Então muitos artistas usam o binômio azul-vermelho. Quando você olha uma
obra de arte e seus olhos “vão”, pode ver que tem essas duas cores! E nós
começávamos o Drama da Paixão, que era um dramalhão de 12 atos, já com
vermelho-azul! Quando abria a peça, com todo mundo cantando, saindo do
campo e vindo, era toda em azul e vermelho!
(...) Quando se estuda como ver uma obra de arte, uma das coisas importantes é
“O que que você está vendo?”, “O que você olha e não vê”, num sei quê. E
depois, “O que chamou mais atenção?” Naquilo pode ver que tem um azul e
vermelho perto. Mas precisa ter o azul certinho e o vermelho certinho, não é
qualquer azul, não é qualquer vermelho. Então baseado na peça eu estou
escrevendo o ensaio, não tem a parte científica totalmente, mas já é um estudo
que eu estou fazendo, já é alguma coisa. (...)
Então olha o que o circo-teatro ia fazendo! E quando começava a peça que eles
jogavam o azul e vermelho e abria a cortina, a plateia fazia “Ah!” - é a fruição!
Depois disso pode levar 20 atos! Se não tem essa fruição vai cansando. Depois
acaba o azul e vermelho, mas nem em sonho mais. Então, pensando agora, será
que eles já não tinham essa ideia? Por que eles punham o azul e vermelho pra
abrir a cortina98?
Destaco ainda que com o advento da arte cinematográfica os circenses também
passaram a se inspirar – e a copiar fielmente – os cenários e figurinos das peças criadas a
partir de adaptações dos filmes hollywoodianos. Essa cópia não era vista como plágio e os
circenses ostentavam com orgulho, inclusive nos cartazes de divulgação do espetáculo, o
fato dos cenários e figurinos constituírem réplicas fiéis dos exibidos nos filmes norteamericanos.
Em entrevista, Fernando Neves discorreu acerca dessa questão no Pavilhão
Arethuzza:
(...) o circo queria ser Hollywood a partir do final dos anos 1930 e começo dos
anos 1940 (...). Todas as segundas-feiras, que era o dia de folga, eles se enfiavam
no cinema de manhã, porque antes tinha, e eles iam à tarde, à noite; eles
passavam o dia todo em cinema, mudando de sala, assistindo vários filmes (...) O
cinema americano é melodramático até hoje. A Broadway é melodrama puro... E
é por isso mesmo que eles fazem tanto sucesso... Eles souberam reinterpretar. E
daí eu falei “Gente! O circo queria ser Hollywood!”. E não é disfarçando. No
circo não tem disfarce. O barato era “eu vou lá, vejo o filme e vou para o circo
98
Ibidem.
147
ver como era igual”. Para gente soa como plágio, como um fator negativo, mas na
época isso era o máximo. (...) E pelo encantamento que eles tinham pelo cinema
americano teve um refinamento na cenografia, no figurino e na interpretação 99.
Figura 26: Encenação no Circo Teatro Pavilhão Arethuzza, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Com o mesmo cuidado e primor com que tratavam da cenografia, os artistas do
Pavilhão Arethuzza também criavam e confeccionavam seus figurinos. Estes também eram
concebidos a partir de intensa pesquisa de modelos, cores e texturas de tecidos e
confeccionados pelas próprias mulheres do circo. Arethusa frequentemente mandava trazer
de Paris tecidos, adereços e joias e sempre pesquisava as revistas de moda da época, que
eram trazidas do Rio de Janeiro, capital e centro cultural da época (SANTORO, 1997).
Além disso, como já destacado anteriormente, todos os figurinos eram muito
bem acabados e tinham suas costuras reforçadas devido ao fato dos artistas se apresentarem
também na primeira parte do espetáculo, na qual realizavam números de destreza física que
dilatavam suas musculaturas.
99
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
148
Destaco ainda que “tradicionalmente, os artistas eram respeitados por seu
guarda-roupa, que era referência até para contratação em todas as companhias circenses”
(PIMENTA, 2005: 65). Além disso, os artistas comumente “ditavam” moda por onde
passavam, levando, principalmente às cidades interioranas, as últimas tendências das
capitais brasileiras e estrangeiras. Santoro Junior relatou:
A minha mãe costurava macacão, a minha tia Guiomar fazia camisa perícia, a tia
Didi bordava e a tia Thusa era alta costura, mas alta costura mesmo... Tinha um
pessoal lá na praça, as madames, que chegavam lá e pediam pra ela confeccionar
pra elas. (...) Tinha uma apresentação assim: abria a peça e a mulherada toda de
vestido de cauda, os homens todos de smoking... Aí tinha a dupla de palhaços,
tinha malabarista e não sei o quê. Então começava a banda a tocar "tãtãratãtã..." e
ia saindo um grupo... Uma mulher indo aqui e um homem pra cá (como que
cruzando no espaço)... Eles iam. Até que eles faziam assim: quando chegavam
aqui (haviam formando uma fileira) eles abriam pra entrar os palhaços e todo o
material e aí todo mundo cumprimentava, tocava, todo mundo ia saindo, trocando
assim. E o pessoal achava bonito, pra ver modelo de roupas e pra ver sapato
né100?
Um aprendizado comum e tido como essencial a estes artistas antigos, incluindo
os do teatro oficial, era o uso de capas pelos homens e vestidos de cauda pelas mulheres. A
boa postura e elegância eram essenciais, principalmente nas representações de peças
clássicas e de época; em entrevista Santoro Junior afirmou: “Se não soubesse usar, caía da
capa. Ator que caía da capa, café inteiro sabia!” 101. Em sua monografia, Santoro Junior
também disserta acerca dessa questão:
Cabe ainda lembrar um outro (sic) tipo de aprendizado que era muito importante
para o pessoal do circo que atuava nas peças teatrais, e que geralmente é
esquecido, pois acredita-se que ele é inerente ao hábito de se vestir, o uso da capa
100
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
Santoro Junior faz menção aqui ao tradicional Café dos Artistas, “O „Café dos Artistas‟ ou simplesmente
„Café‟ é um encontro de artistas e empresários circenses que acontece no dia de folga da categoria, segundafeira, num ou em torno de um café. O de São Paulo, já que existiu “cafés” em várias capitais do país, foi
sediado inicialmente no Largo do Rosário, atual Praça Antônio Prado, e no início do século XX, passou a
acontecer no Largo do Paissandu, chegando a reunir mais de 600 pessoas em torno de vários cafés – “Ponto
Chic”, “Juca Pato”, “518”, entre outros - e ocupando todo quadrilátero que abrange o Largo do Paissandu e a
avenida São João, até o cruzamento com a Ipiranga. Era um lugar de encontros sociais, mas um marco
importante de referência dos artistas, que iam procurar trabalho, e de empresários, agentes culturais e donos
de circo de todo Brasil, que procuravam artistas para trabalhar em seus espetáculos” (texto disponível em:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/patrimonio_historico/memoria_do_circo/largo_do_
paissandu/index.php?p=7141. Acesso em: 12 dez. 2014).
101
149
pelo homem e do vestido de cauda pelas mulheres, vestimentas estas muito
utilizadas no guarda-roupa da companhia, principalmente nas peças de época. Em
nosso circo, o encarregado deste ensinamento era novamente o “padrinho
Barbosa” que amarrava um pano branco na cintura (parecia um lençol) e ensinava
as mulheres a se locomover com vestido de cauda, assim como andar, ajoelhar-se,
sentar-se e levantar (SANTORO JR., 1997: 33).
Figura 27: Arethuzza Neves em A Tosca, 1922.
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Santoro Junior.
Agora, para além das questões de requinte e luxo envolvidas na ornamentação
dos figurinos no circo, destaco que estes – juntamente com a maquiagem – eram ainda
essenciais na composição dos personagens por parte dos atores. As representações teatrais
no circo se valiam de uma linguagem que “usava e abusava” de artefatos e apetrechos,
150
como barbas falsas, próteses dentárias, perucas e maquiagem carregada. A partir do período
em que a tipologia passa a estar mais presente na interpretação do circo-teatro, o figurino e
a maquiagem passam a colaborar determinantemente com a construção dos tipos e sua
rápida e eficaz identificação por parte da plateia.
Figura 28: Exemplo de atores caracterizados como pernsoagens-tipos de diversas peças e fotos das atrizes
Jurandyr e Arethuza Neves, s.d.
Fonte: ANDRADE, 2010. Anexos.
151
Acerca dos recursos de iluminação, ressalto, primeiramente, que a descoberta
dos recursos da iluminação elétrica se deu nos fins do século XIX e que estarei falando,
portanto, de um período recente a este acontecimento.
Os artistas do Pavilhão Arethuzza – e de tantos outros circos – criavam,
desenvolviam e confeccionavam análogos aos equipamentos utilizados nos edifícios
teatrais. José Carlos de Andrade descreve:
Exemplo disso são os postes de madeira que vão sendo erguidos junto à boca de
cena, para sustentar a amarração de lâmpadas com os focos dirigidos para o
centro da ação dramática. O circo apropria-se igualmente da ribalta que, desde o
período áureo do barroco europeu, já era utilizada no teatro como recurso de
iluminação. Uma série de lâmpadas dispostas em alinhamento paralelo à boca de
cena sobre o palco, cobertas por uma caixa metálica, para que não atingissem os
olhos dos espectadores, produzia uma estranha iluminação de baixo para cima. O
efeito criava sombras espetaculares, aumentando a estatura dos atores e também
os rejuvenescendo, graças à ilusão que esta fonte de luz proporciona
(ANDRADE, 2010: 73).
Driblando todas as adversidades, os circenses – sempre visando a melhor
conformação cênica – também desenvolviam mecanismos complexos de iluminação, que
incluíam o controle de resistência da corrente elétrica, que permitia a passagem de forma
suave da luz intensa ao black out.
O milagre era obtido graças a imersão de fios desencapados em tambores de água
salinizada, pois era sabido que quanto mais mergulhados na solução de água e sal
de cozinha, maior era a condutibilidade elétrica e, por conseguinte, maior a
intensidade da luz sobre o palco (Idem: 217).
Outro elemento de fundamental importância no espetáculo teatral circense era a
música. Esta, aliás, esteve presente na história do espetáculo circense “moderno” desde sua
origem. No espetáculo criado por Philip Astley havia a presença de uma banda, formada
por egressos da cavalaria inglesa, que se vestiam de uniformes e casacas com alamares e
que corroborava de maneira determinante para o desenvolvimento do espetáculo.
Além da banda, havia comumente nos circos europeus, inclusive nos que vão
aportar no Brasil a partir da década de 1830, palhaços multi-instrumentistas que realizavam
152
números em que tocavam instrumentos – convencionais e inusitados – ao mesmo tempo em
que executavam acrobacias de solo e outras estripulias.
Erminia Silva (2007) afirma que este palhaço-músico era chamado de Cômico
Excêntrico, Palhaço Excêntrico e Clown Excêntrico. Para designar a dupla cômica os
termos usados pela pesquisadora são Clown e Augusto ou Tony. Como visto anteriormente,
a dupla cômica, segundo alguns pesquisadores, também era conhecida por Branco ou
Clown e Augusto, Tony, Tony Excêntrico ou, ainda, apenas Excêntrico.
Neste caso, estes palhaços multi-instrumentistas são chamados de Excêntricos
Musicais; seus instrumentos “variavam desde o violino e o trompete, até „gaitinhas, apitos,
guizos, pratos e tambores – uma bateria completa!‟, sempre executando saltos acrobáticos e
de dança, com a peripécia de nunca desafinar” (SILVA, 2007: 116).
No Brasil, a banda circense ficou conhecida como charanga e foi mantida por
muitos anos nos espetáculos.
Durante o espetáculo, eram elas que davam a cadência dos números, utilizando
desde ritmos da música clássica aos mais populares, dependendo da velocidade
dos movimentos dos artistas para desenvolver suas apresentações, aumentando o
suspense, a tensão ou acentuando a irreverência dos palhaços. Nas pantomimas a
música tocada não era um simples adorno ou acompanhamento; era
intrinsecamente ligada à mímica, explicitando o enredo da peça, compondo a
teatralidade (Idem: 113).
A arte musical encontrou, ainda, nos circos brasileiros, um lugar de maior
relevância, ganhando destaque nos espetáculos os números musicais – influenciados pelo
teatro musical e a revista – em que a música era não apenas um dos elementos significantes
da composição cênica, mas sim o foco desta.
Além disso, o palhaço instrumentista e cantor caiu nas graças do público, com
seus números em que entoavam canções dos mais variados ritmos musicais e também com
os números em que teatralizavam as letras das músicas, configurando-se, portanto, outro
aspecto da teatralidade circense. Desse modo,
Além de valsas, polcas e mazurcas, as bandas tocavam também quadrilhas,
fandangos, dobrados, maxixes, frevos, cançonetas, modinhas e lundus. Os
palhaços não só tocavam vários destes ritmos, como também os dançavam, ao
153
som principalmente do violão. As cenas cômicas e os entremezes também eram
produzidos nos moldes dos que eram realizados nos palcos teatrais e levados ao
picadeiro pelos palhaços circenses. Assim, tendo em vista essa constituição, o
espetáculo circense e o teatro musicado, principalmente a revista, não podem ser
vistos isoladamente. Ambos foram mais que parceiros, complementando-se o
tempo todo. Enquanto estavam juntos nas grandes e médias cidades,
compartilhavam e disputavam palcos, artistas e públicos. Nas pequenas cidades,
lugarejos e bairros afastados dos centros das grandes cidades, em particular o Rio
de Janeiro, eram principalmente os circos, devido ao seu nomadismo, que
veiculavam as músicas e os gêneros do teatro (Idem: 118).
Afora o fato do circo veicular os mais diversos ritmos musicais e gêneros
teatrais pelas grandes e pequenas cidades, sabe-se que os circenses – principalmente os
Excêntricos Musicais – fizeram parte, inclusive, da nascente indústria fonográfica
brasileira. Desse modo, estes artistas foram os primeiros a gravarem em discos suas
canções, que já faziam sucesso nos espetáculos circenses. “Observa-se, porém, certo
silêncio sobre essa presença circense na maior parte da bibliografia que estuda e pesquisa a
história das distintas expressões culturais da época” (Idem: 21).
Destaco, ainda, que com o advento do rádio, os espetáculos circenses passaram
a contar, na primeira parte, com a apresentação de locutores e cantores de sucesso da época.
Aliás, grande parte do sucesso atingido por esses artistas advinha do fato, justamente, de se
apresentarem no circo – o tipo de espetáculo que mobilizava o maior público, nas grandes e
pequenas cidades brasileiras, no século XIX até meados no século XX.
O importante de ser destacado, portanto, mencionando as palavras de Erminia
Silva é que:
A música nos espetáculos circenses, até a década de 1950, em particular no
Brasil, não deve ser vista apenas como acompanhamento para os números em
geral. As produções musicais nos picadeiros acompanharam a multiplicidade de
variações de ritmos e formas, que aconteciam nas ruas, nos bares, nos cafésconcerto, cabarés, nos grupos carnavalescos, nas rodas de música e dança dos
grupos de pagodeiros, seresteiros, sambistas, de lundu, do maxixe, no teatro
musicado com suas operetas e sua forma mais amplamente usada e consumida,
que foi o teatro de revista. Enfim, as manifestações artísticas musicais que eram
inteligíveis para a população tiveram sua representatividade e expressividade nos
picadeiros (Idem: 112).
A arte musical estava, então, na base de formação dos artistas circenses desde a
consolidação do espetáculo circense “moderno”; tanto dos artistas de origem militar,
154
ligados à banda, quanto os artistas saltimbancos, incorporados ao espetáculo circense.
Posteriormente, nos circos-família, o ensino de Música comumente era parte fundamental
do processo de formação/socialização/aprendizagem dos artistas desde a infância.
No Brasil, o chamado circo-teatro terá a música também como um de seus
alicerces cênicos. É inegável que uma boa trilha sonora potencializa a representação dos
mais diversos estilos e estéticas, tanto no teatro, como na televisão e no cinema. Com
relação a arte teatral, Rubens Brito disse que
A música, tomada em seus componentes constitutivos – a harmonia, a melodia e
o ritmo – oferece um universo ilimitado de possibilidades criativas a serem
aplicadas à cena. (...) O espetáculo teatral que consegue articular a multiplicidade
de ritmos com a das formas interpretativas dá à cena, ao menos no âmbito
estrutural, a possibilidade de instalação de um vínculo praticamente indissolúvel
com a plateia (BRITO, 2004: 88 e 90).
No circo, os próprios músicos e maestros circenses, que já usufruíam da arte
musical em todo o espetáculo, adaptavam e executavam as trilhas que acompanhavam as
pantomimas e, posteriormente, as peças de circo-teatro.
Destaca-se ainda que um dos gêneros teatrais mais encenados nos circos-teatro
brasileiros até a década de 1960 era o melodrama, intimamente ligado à questão musical e
que possuía sua origem associada à ópera italiana. Na Itália, aliás, o melodrama, desde os
seus primórdios, se ligou também à opereta e à ópera popular, que unia texto e canção a
partir do século XVII. Mas foi na França que o gênero encontrou as condições ideias para
se desenvolver, irrompendo no panorama teatral após a Revolução de 1789 e abrindo as
portas do teatro tido como oficial para as grandes massas (ANDRADE, 2010).
A denominação melodrama decorria da musicalidade das peças. Uma marcante
música instrumental acompanhava o desenrolar da intriga, caracterizando as
entradas e as saídas de cada personagem, os incidentes ocorridos, as cenas
misteriosas e de tensão. Por vezes, encenavam-se alguns momentos de máxima
emotividade e suspense sem a utilização de quaisquer diálogos, “como numa
espécie de pantomima musical”. A expressividade musical explicitava-se nas
caracterizações dos personagens: a flauta acompanhava a heroína sofredora, o
contrabaixo anunciava o vilão assassino (DUARTE, 1995: 209).
155
Além do melodrama, diversos outros gêneros do teatro musical eram encenados
nos circos, como as burletas, sainetes e a própria revista. Outro fenômeno de grande
sucesso no circo-teatro – recorrente nos circos desde o século XIX – foi a encenação de
peças baseadas em canções populares dotadas de alto grau de dramaticidade e já
consagradas pelo gosto popular, como O Ébrio e Coração Materno, famosas na voz de
Vicente Celestino, Coração de luto, de Teixeirinha e Cabocla Tereza, composta por João
Pacífico e conhecida nas vozes de Tonico e Tinoco.
A música ainda poderia ser usada como recurso cênico para a resolução de
diversas questões como, por exemplo: abrir e encerrar o espetáculo, bem como os atos,
cenas e quadros; apresentar, caracterizar e dar o leitmotiv102 das personagens, auxiliando
determinantemente na construção e imediato reconhecimento destas pelo público; auxiliar
na criação e sustentação de atmosferas e climas das cenas; pontuar e acentuar momentos
importantes da peça, como determinadas ações e reações das personagens.
No Pavilhão Arethuzza, segundo Santoro Junior, a banda – a qual sua mãe,
Alzira Neves, era “madrinha” – exercia papel fundamental no desenrolar das duas partes do
espetáculo e esteve presente neste até meados nos anos 50, quando foi substituída pela
vitrola. Santoro Junior afirma ainda que:
(...) foi criada inclusive uma cabine de som, na estrutura física do pavilhão, em
que o grande maestro, era o operador de som. É a evolução tecnológica e
eletrônica, que começou a se evidenciar também no circo (SANTORO JR., 1997:
14).
Acerca do trabalho de interpretação, Fernando Neves costuma dizer que “circo
é o tempo do trapézio: um, dois, três, errou, caiu na rede”. O que Neves quer dizer é que o
artista circense lidava o tempo todo com a questão do tempo e do ritmo, tanto durante
execução de seu número de destreza na primeira parte, quanto na representação das
personagens das peças teatrais na segunda parte.
102
Leitmotiv (do alemão, motivo condutor). Em música, é uma técnica de composição introduzida por Richard
Wagner em suas óperas, que consiste no uso de um ou mais temas que se repetem sempre que se encena uma
passagem da ópera relacionada a uma personagem ou a um assunto. O recurso é amplamente utilizado, não só
na ópera, como também nos teatros, circos, filmes e telenovelas.
156
Dessa forma, assim como o trapezista, nas representações teatrais o circense
não podia perder o tempo justo de cada momento da peça, senão ele caía na rede, ou seja,
perdia o tempo da piada, de entrada em cena, de réplica e, consequentemente, não agradava
a plateia.
Quando Fernando Neves montou em 2002, com a companhia Os Fofos
Encenam, a comédia A mulher do Trem, que fazia parte do baú de sua família, ele
retrabalhou e ampliou de tal forma o recurso musical das pontuações de ações e reações das
personagens que a música é responsável por ditar o tempo do que o diretor considera ser o
justo na comédia de circo-teatro. No documentário produzido pelo grupo acerca da
montagem, Neves afirma: “Nossa comédia é feita de tempos preciosos e precisos. Por isso
tem o piano, que é um sargento em cena. Ele dá o tempo, a música dá o tempo, dá chão pra
personagem, faz o tema da personagem e o tema da cena103”.
Enfim, Neves percebeu, ao revisitar a memória do circo de sua família, que a
multiplicidade existente na composição do espetáculo de circo-teatro – que inclui a
multiplicidade das formas interpretativas, dos gêneros e estilos teatrais, bem como a
multiplicidade de ritmos, melodias e harmonias musicais – conduzia os artistas circenses à
criação de um universo cênico-musical capaz de constituir infinitas possibilidades
expressivas.
2.4.5 Triangulação
O olhar dos circenses “tradicionais” está sempre voltado para o fato de agradar
o público e esse ponto determina, portanto, todas as relações éticas, sociais e artísticas
criadas entre o circo e os espectadores.
Em relação à dimensão artística, o circo-teatro faz parte de uma gama de
manifestações, tidas como populares, que estabelecem um jogo específico de relação com o
103
Declaração de Fernando Neves no documentário produzido pela companhia Os Fofos Encenam e
Massangana Multimídia Produções, acerca da peça A mulher do trem. O documentário foi gravado durante o
VII Festival Recife de Teatro Nacional, em Recife/PE, em novembro de 2004.
157
público. Os artistas de circo-teatro, assim como os artistas das feiras e os cômicos dell’arte,
por exemplo, sabiam que o contato com o público – e a consequente cumplicidade
emergida dessa relação – se encontra nas bases de qualquer jogo teatral.
Segundo Rubens Brito (2006), Sofrredini e os atores do Grupo Mambembe, em
suas pesquisas pelos circos-teatro da periferia paulistana na década de 1970, perceberam
que havia naqueles espetáculos um “suporte”, um tipo de “estrutura” interpretativa
responsável por estabelecer esse contato e consequente cumplicidade com o púbico. O
grupo Mambembe teria sido responsável, então, pela sistematização dessa técnica –
existente no circo-teatro e demais manifestações populares anteriores – e por lhe dar o
nome de triangulação.
Dessa forma, Soffredini explica que no circo-teatro:
O ator se entrega sim, ele se envolve sim, mas em nenhum momento ele se
esquece que está num palco, nem por um segundo ele ignora o público. Pelo
contrário: na maior parte das vezes ele “contracena” com o público,
estabelecendo o que nós chamamos de “triângulo”. Assim: dois atores em cena;
Um deve fazer uma pergunta para o OUTRO; UM faz a pergunta para o público e
não diretamente para o OUTRO (nada de relação olho-no-olho, portanto); e o
OUTRO responde também através do público. Parece uma coisa simples, mas
essa forma de contracenar sempre “através” do público põe este último sempre no
centro da representação. Outra forma de estabelecer o “triângulo”: as ações e
reações de um ator (personagem) estão sempre abertas para o público (não há
psicologismos e por isso não há jogos escondidos). Se um ator, por exemplo,
reage ao que um outro ator está dizendo ele “diz” (mesmo sem palavras) a sua
reação diretamente para o público. Dessa forma pode-se também, por exemplo,
valorizar muito cada nuança da intenção de um ator que fala, através da reação
que ele causa no seu interlocutor (SOFFREDINI, 1980: s/n).
Rubens Brito (2006) chama a atenção para o fato de que a triangulação nas
peças circenses era sempre executada com extrema naturalidade. Esse ponto também foi
ressaltado por Wanderley Martins, artista que, assim como Rubinho, integrava o Grupo
Mambembe e que hoje é professor do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp. Em
entrevista, Wanderley contou sobre os circos visitados com a pesquisa com Soffredini:
Eles tinham um funcionamento com a plateia muito interessante. Provavelmente
se tivesse um outro jeito de interpretação não envolvesse tanto. A triangulação era
uma coisa muito natural. Não tinha trejeito com a triangulação. E era uma coisa
natural. Não era uma coisa muito marcada, que a gente vê, eu vejo, muito nos
158
grupos que estão pesquisando isso hoje. Tem uma coisa tão... Tem um carimbo
mesmo, né? O que interessava pra eles era o aparte. O bom e velho aparte. “Olha
plateia, olha o que tá acontecendo”. E volta a falar com a pessoa, normal. (...) E
eles faziam isso de uma forma bastante viva. (...) O legal deles é que eles tinham
uma opinião pra falar pra plateia e voltar. Tinha uma coisa brechtiana até, se você
pensar... (...) Não era só marcação. Não era uma marcação. Era uma necessidade
da interpretação deles de fazer isso. (...) E isso a gente foi saboreando. Pra gente
era muito legal ver como que eles trabalhavam isso. E pra gente era difícil... A
gente tava muito naquela interpretação “olho no olho”, na época era assim. Então
pra gente foi uma transformação perceber como que o aparte era muito bem
explorado por eles. Clareza na interpretação mesmo, clareza na função do que o
personagem quer dizer, no que o personagem quer comentar. Então o comentário
104
era um comentário com propriedade .
A naturalidade com a qual o artista circense triangula advém do fato de que esse
mecanismo, reconhecido e sistematizado tecnicamente pelo Grupo Mambembe, está no
cerne do fazer e da arte de ator daqueles artistas. Tanto que, os circenses, comumente, não
usavam – e continuam não usando – um nome para definir essa técnica.
Na atualidade, no Circo de Teatro Tubinho, por exemplo, Zeca e Ana Dolores
contaram que, somente no projeto de reelaboração de repertório pela Petrobrás, ouviram
pela primeira vez o termo “triangulação”, com os trabalhos com Fernando Neves, Tiche
Vianna e Ésio Magalhães. Ana Dolores disse, ainda, que o que lhes foi passado como
“triangulação” era algo que eles sempre fizeram como que “por osmose” e que a expressão
que usavam pra remeter a essa ação era algo como “Joga pra plateia!”.
E Zeca completou:
Zeca: De verdade, sempre fizemos isso por instinto. Nunca teve nome, nem
notávamos que fazíamos.
Fernanda Jannuzzelli: Sim, com certeza! Mas vocês usavam outro nome pra
falar disso? Ou expressão? Seria como falar “não pode ficar de costas pra
plateia?”.
Zeca: É muito difícil falar disso no circo. Nunca falei isso pro Nicolas, por
exemplo. Ele cresceu vendo que não podia. Quando alguém novo entra em cena,
já está na companhia há algum tempo e acompanhou nosso jeito de fazer.
Nesse tipo de interpretação, o ator representa quase o tempo todo de frente para
o público, pois há a necessidade constante de lhe mostrar o que está acontecendo.
Triangula-se o tempo todo e não em marcas específicas.
104
Wanderley Martins em entrevista concedida à autora em 05/11/2013.
159
O circo-teatro é um tipo de teatro, então, que derruba a quarta parede 105,
comumente relacionada, no Ocidente, com o teatro de estética Naturalista. Parede, aliás,
que começou a ser erguida somente no fim do século XVII no Teatro Ocidental, com o
Classicismo Francês, pois até então, há milhares de anos, desde os gregos, as
representações teatrais sempre incluíram os espectadores no jogo cênico, até lhes dirigindo
diretamente a palavra em determinados momentos.
Fernando Neves disse em entrevista:
Esse conceito da quarta parede, ele não existe no circo-teatro. Então o ator entra
em cena e quando ele começa a falar com outro personagem, ele começa falando
com o outro personagem e ele dá três palavras pra ele, porque ele direciona para a
plateia e a plateia entende que tudo aquilo que ele tá falando é pra aquele
personagem. Ele dá três palavras pro outro ator e já vira pra plateia. Ele tá
pensando nesse triângulo. Tá o interlocutor, o locutor e a plateia. Esse triângulo,
esse jogo é perene, ele tá ali presente o tempo inteiro.
Esse jeito de interpretar, completamente natural aos circenses e sistematizado
com o nome de triangulação, inclui o espectador no jogo cênico, de tal forma que o
espetáculo não é feito para a plateia, mas sim com a plateia. Representa-se para o público,
pelo público e com o público, que sente, intuitivamente, que o espetáculo é, antes de tudo,
uma brincadeira para ser vivida por todos que estão naquele recinto: atores e plateia, juntos.
Rubens Brito (2006) ainda destaca que o ator ao estabelecer esse jogo da
triangulação deve se descolar de seu papel, se distanciar da situação dramática para levá-la
ao público. Portanto, o ator não deve só “ser” a personagem: ele deve “ser” a personagem e
revelá-la para o espectador.
Segundo Soffredini:
O público é o vértice de maior peso no triângulo. É o CÚMPLICE na
representação. É o CENTRO dela. É para ele que se CONTA a história, portanto
105
A quarta parede é uma parede imaginária situada na frente do palco do teatro, através da qual a plateia
assiste passivamente à ação cênica. Essa convenção se estabeleceu com correntes teatrais ligadas à estética
Realista e, principalmente, Naturalista, que visavam à promoção da total ilusão cênica. A quarta parede seria
como uma “janela” ou um “buraco da fechadura”, pelo qual o espectador assiste ao que acontece no palco,
distanciado da ação, porém ainda envolvido por ela, graças ao efeito de identificação que se esperava atingir.
160
ele é o dono dessa história. Muitas vezes ele conhece dados dela que ou um ou os
outros dois vértices do triângulo (os atores) desconhecem. Ele conhece o caráter e
a intenção de cada personagem, uma vez que cada ator, ao entrar em cena, deve
ter como meta REVELAR o seu personagem, a intenção dele e, é claro, a sua
ação dentro da ação (história). A partir dessa CUMPLICIDADE com o público,
dessa CENTRALIZAÇÃO nele, dessa DOAÇÃO a ele da ação (história,
representação) é que se estabelece a base do jogo teatral. Os gregos já sabiam
disso. E as velhas peças românticas abriam margem para esse jogo através do
APARTE, que, em última análise, é a forma tosca a partir da qual, elaborando,
nós chegamos ao processo do TRIÂNGULO (SOFFREDINI, 1980: s/n).
O recurso do aparte, típico do teatro romântico, destacado por Soffredini no
final da fala anterior, também é muito explorado nas encenações circenses. O aparte é
explicitamente teatral e, ao mesmo tempo, responsável por aproximar a plateia dos
acontecimentos da peça, envolvendo-a na história.
Segundo Roubine:
O aparte é bem mais breve (algumas palavras, uma frase...). É pronunciado no
calor da ação e frequentemente permite um efeito de conivência com o público,
único destinatário “real” da tirada, especialmente na comédia. A convenção, no
caso, prevalece sobre a verossimilhança (ROUBINE, 2003: 215).
Enquanto um personagem faz o aparte com a plateia, estabelece-se a convenção
de que o outro personagem em cena não tem ciência daquilo. Para este segundo ator, o
tempo de esperar o aparte ser feito com a posterior reação da plateia, geralmente lhe parece
desconfortável, ou seja, ele não sabe o que fazer. Fernando Neves, então, sempre usa uma
expressão, muito engraçada, de que esse ator deve fazer uma cara de quem “viu, mas não
olhou; ouviu, mas não escutou”. E só vendo Fernando Neves ou um ator do elenco de
Tubinho, como Angelita Vaz – que faz isso brilhantemente bem – para entendermos por
completo o que ele quer dizer.
Enfim, o ator não faz nada “escondido” do público. Pelo contrário: ele revela a
sua criação, incorpora a reação da plateia em seu jogo e direciona o público para o jogo do
outro ator. E, para que esse triângulo se estabeleça, é absolutamente necessário que tudo
seja realizado com extrema exatidão das ações, num desenho de cena limpo, com riscos
fortes e precisos.
161
2.4.6 Tipologia
Quando ouvi falar em “circo-teatro” pela primeira vez, através do professor
Rubens Brito e, em seguida, através de Fernando Neves, me foi contado que, no circo, a
interpretação era tipificada e que cada artista se especializava na representação de um
determinado tipo. E isso era explicado, principalmente, pelo fato de que, ao se estabelecer
numa cidade, os circos apresentavam, a cada noite, uma peça teatral diferente; dessa forma,
o trabalho de interpretação pautado na tipificação das personagens fazia parte de uma
complexa rede de combinações, arquitetada para tornar possível essa rotatividade tão
grande de espetáculos.
Porém, com o desenvolvimento e aprofundamento de meus estudos, pude
perceber que esta afirmação acerca do uso da tipologia na interpretação teatral circense está
pautada num registro de memória pontual de um determinado local geográfico e tempo
histórico, não abarcando, portanto, toda a complexidade da teatralidade circense, nem
mesmo da descrita como circo-teatro (SILVA, 2010).
Os estudos sobre o chamado circo-teatro – e mesmo sobre o circo como um
todo – ainda são recentes. Foi a partir, apenas, da década de 1970 que o resgate dessa
memória aumentou significativamente, com a abertura da linguagem e técnicas circenses a
novos sujeitos históricos – que não haviam nascido no interior de uma família circense –,
como alunos de escolas de circo profissionalizante e circo social, assim como
pesquisadores ligados à Academia (SILVA, 2010).
Acerca destes primeiros estudos acadêmicos, destaco que pesquisadores,
pertencentes principalmente ao campo das Ciências Sociais, Política, Antropologia e
História da Universidade de São Paulo (USP), utilizaram o circo “como um „analisador‟,
um objeto mediador e instrumento de investigação para a compreensão das diferentes
dimensões do social” 106 (SILVA, 2007: 26).
106
Para maiores detalhes, consultar SILVA, 2007. A autora discorre minuciosamente sobre como estes estudos
voltados para as manifestações populares de lazer dos trabalhadores e suas relações com as produções
circenses, aprisionaram a arte circense em modelos dicotômicos e minimizadores (cultural erudita X cultura
popular, opressor X oprimido), além de terem contribuído para a formação de uma memória equivocada – por
não se levar em contada de que trata-se de uma memória datada – sobre diversos acontecimentos da história
do circo e do circo-teatro no Brasil.
162
Porém, esses estudiosos basearam suas pesquisas, quase que exclusivamente, na
observação direta através de pesquisa de campo e nas entrevistas com os artistas circenses
do período. Utilizou-se, portanto, somente a fonte oral sem o cruzamento desta com outras
fontes e memórias históricas, fato este que restringiu toda a multiplicidade da história da
teatralidade circense a apenas o que estava sendo produzido naquele determinado local e
período. Dessa forma, criou-se uma memória científica oficial equivocada, que transformou
a produção circense da periferia de São Paulo da década de 1970 na própria história da
teatralidade circense brasileira (SILVA, 2010).
Erminia Silva destaca que
Os circenses do final da década de 1970, fontes principais dos estudos realizados,
eram portadores das memórias e saberes de seus pais, os quais vivenciaram um
determinado modo de estética teatral que foi sendo construída e se consolidando a
partir da década de 1920/30. Tal estética – que não era exclusiva do fazer teatral
circense, mas de toda uma geração do teatro em geral –, era definida por
determinações de personagens como uma certa tipificação. (...) Vários artistas
que são fontes orais hoje, nos anos 2010, nasceram quando, no teatro em geral, se
realizava uma forma de representação teatral no qual a determinado ator ou atriz
sempre cabia um tipo de papel a ser representado; no qual cada ator circense
representava apenas e unicamente um personagem ou tipos fixos, com: o galã, a
mocinha, o vilão, a vilã, a caricata, o velho, a velha, o cômico. É uma estética
teatral do período de 1920/1930 e, portanto, vai ser também a estética do teatro
no circo, daquela contemporaneidade (SILVA, 2010: 224 e 225).
Compreendi, portanto, que Fernando Neves, ao dizer que o circo-teatro era
tipificado, estava reproduzindo a memória do que ele viveu na infância e do que lhe foi
passado pelos seus pais e tios anos mais tarde; e compreendi também que Rubens Brito, em
sua pesquisa, relatou o que ele mesmo encontrou nas visitas aos circos-teatro da periferia de
São Paulo na década de 1970 com o Grupo Mambembe.
Porém é fato também que apesar de não caracterizar todo o sistema de
interpretação empreendido pelos artistas circenses, a dramaturgia alicerçada em
personagens-tipo fazia parte da formação dos artistas ambulantes – dos teatros de feira e
commedia dell’arte – que passaram a se apresentar nos circos e, portanto, já era explorada
nas representações das pantomimas no espetáculo circense desde sua origem “moderna”.
Com o passar dos anos as representações teatrais foram cada vez mais
desenvolvidas e elaboradas, porém Erminia Silva destaca que até a década de 1920, no
163
Brasil, “uma mesma peça ficava em cartaz durante muito tempo, por exemplo, a adaptação
da A Viúva Alegre, em 1910 por Benjamim de Oliveira para o circo, foi apresentada no
mínimo durante três anos” (Idem: 226).
Foi a partir, então, das décadas de 1920 e 1930, por conta do enorme sucesso
que as representações teatrais haviam alcançado junto ao público, que os circos-teatro
passaram a representar uma peça diferente a cada noite, gerando o aumento do repertório de
peças e da rotatividade destas.
Desse modo, os circenses foram verticalizando esse tipo de interpretação, que
alicerçava o desempenho dos atores em tantos papéis diferentes. Movimento análogo
ocorria na cena teatral tida como oficial brasileira, o que mostra, mais uma vez, que o
espetáculo circense estava em sinergia com as demais manifestações artísticas
contemporâneas, influenciando e, ao mesmo tempo, sendo influenciado por estas.
Na atualidade, como a maioria dos circos-teatro e circos de teatro em atividade
no país mantiveram a alta rotatividade das peças como característica do modo de
organização do trabalho e do espetáculo, a representação tipificada continua sendo a base
do sistema de interpretação destes artistas – fato que também ajuda a criar esse registro de
memória que reduz toda a interpretação circense à tipificação.
Adentrarei, nesse momento, esta questão da tipificação um pouco mais
detalhadamente, pois este estudo acerca da família Viana-Santoro-Neves se reporta,
principalmente, ao período rememorado por Santoro Junior e Fernando Neves, que engloba
a fase pavilhão na cidade de São Paulo, na qual a tipologia era a base do sistema de
interpretação dos artistas.
Em entrevista, Fernando Neves disse que quando começou seus estudos sobre o
circo de sua família, ao se debruçar sobre as peças que chegaram a ser escritas e analisar
quem fazia cada papel, pôde perceber que, com o tempo, seus familiares foram entendendo,
com o próprio fazer artístico, como deveria se organizar a distribuição dos tipos:
E pegando os textos e vendo quem fazia cada personagem eu entendi como é que
eles foram se organizando. Você pega as primeiras peças, você vê que ainda tem
gente fazendo um papel, e você fala “Nossa! Por que essa pessoa tá nesse
papel?”. E depois de um tempo as coisas se organizaram. (...) Então, era assim,
todos eles faziam qualquer papel. Precisou, entrava e fazia. Mas o perfil deles era
164
assim... A tia Alzira é a grande ingênua, com aquele potencial tão deslumbrante,
tia Guiomar é uma genérica que ia desde a comédia do circo até a uma dama galã,
uma dama central, tia Arethusa, que era a grande dama da companhia, Tio Sinhô
que era um galã, meu avô que era um cômico... Tinha tipos, mas podiam
representar qualquer papel107.
Os tipos que se tornaram característicos do circo-teatro brasileiro advieram das
mais diversas manifestações que compunham a multiplicidade da sua teatralidade, como o
vaudeville, a pantomima inglesa e a commedia del’arte.
Além disso, Fernando Neves destacou em entrevista que, como o circo sempre
está em relação e sinergia com o local onde se estabelece, no Brasil, ele criou novas
“máscaras”, que se remetiam direta e especificamente ao imaginário local.
Os circenses foram encontrando os meios, que já vem da commedia dell’arte... E
o circo cria, ou melhor, recria suas máscaras. Claro que vêm lá de muito tempo...
Vêm da Grécia, dos ritos não oficiais... Tudo isso tem a ver... E a commedia
dell’arte é determinante, e o teatro de feira, o teatro de boulevard francês também
são determinantes. (...) Só que chega um momento em que o circo cria de acordo
com a realidade do país que ele vive. Então, no Brasil, tem o preto velho, tem a
mulata, que é a empregada que é francesa, mas que na França é outra empregada.
(...) Tudo tá muito ligado, né? Mesmo a ingênua brasileira é uma coisa, o galã
brasileiro é outra coisa, o velho brasileiro... (...) Aqui no Brasil se recriou de outra
maneira. E isso foi fantástico de ver também naquela oficina de maquiagem que o
Biribinha de Alagoas deu na Unicamp, quando eu estava lá trabalhando também
com vocês da Academia de Palhaços. Quando eu vi que ele fez o preto velho eu
falei: “É igualzinho o preto velho da minha família, eu lembro, da „Cabana do Pai
Tomás‟! É igual! O material, o Bombril que ele usa pra fazer a barba, tudo!” É a
máscara que o circo criou! Se ele é do Alagoas e era igual ao da minha família...
Daí eu vi que quando ele fez a coquete era igualzinha, o tipo do cabelo, a
maquiagem... Então o circo criou máscaras como a commedia dell’arte criou as
suas também108...
Acredito que devemos entender o pensamento de Fernando Neves não como
uma afirmação de que todos os elementos da composição dos tipos e “máscaras” nos
circos-teatro brasileiros eram exatamente iguais; mas sim como a constatação de que alguns
destes elementos se repetiam entre as companhias, devido a diversos fatores, como, por
exemplo, o grande intercâmbio existente entre os próprios artistas circenses e também entre
esses e os atores do chamado teatro oficial. Esse intercâmbio fez com que algumas
107
108
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
Ibidem.
165
características encontradas nas encenações no Pavilhão Arethuzza fossem semelhantes à
companhia da família de Biribinha no Alagoas, por exemplo.
Porém, é evidente que outras tantas características se alteravam, justamente
pelo fato do circo criar de acordo com sua realidade local, que é extremamente variável
num país de porte continental como o nosso. Além disso,
(...) apesar da tipificação dos personagens, (...) havia uma variação dos textos,
músicas, danças, e em particular o próprio texto era alterado dependendo da
cidade, do público, do padre, do delegado, de ser matinê ou não. Apesar da
tipificação dos personagens, não era a mesma apresentação, a mesma peça era
montada de formas diferentes. E mesmo dentro da tipificação eram incluídos
novos conteúdos para os personagens. Um exemplo disso é o próprio personagem
palhaço: a princípio tipificado, mas nunca é o mesmo em nenhuma representação
(SILVA, 2010:226).
E como os circenses definiam, e ainda definem, qual é o tipo que deveria ser
representado por cada ator? Através, principalmente, de suas características físicas
(physique du role) e do que Soffredini chama de personalidade e Fernando Neves de
temperamento, sendo este o termo que usarei daqui adiante.
O temperamento de uma pessoa está ligado ao seu modo de ser e agir, e no caso
do ator, ligado ao seu modo de ser e agir tanto na vida real quanto em cena. Desse modo, no
ator, o temperamento se manifesta não só no modo como ele age em sua vida, como
também no modo como pensa e organiza a cena e compõe seus personagens.
A Psicologia é a área da Ciência que mais se debruça sobre o estudo do que
vem a ser o temperamento de uma pessoa. Fernando Neves, ao iniciar sua pesquisa acerca
do circo de sua família, foi buscar nesta área, então, algumas respostas para questões
suscitadas a partir da memória de sua infância.
Adentrando um pouco o terreno da Psicologia, destaco que a palavra
temperamento vem do latim temperamentum, que significa medida. Segundo José Henrique
Volpi,
(...) Petroviski (1985) define o temperamento como sendo a combinação
determinada e constante das peculiaridades psicodinâmicas do indivíduo, que se
revelam por meio de suas atividades e comportamento, compondo dessa forma a
sua base orgânica. Ainda seguindo o curso desse pensamento, Allport (1966),
caracteriza o temperamento como sendo um fenômeno específico da natureza
166
emocional do indivíduo, que inclui a sua sensibilidade aos estímulos, intensidade
e rapidez de respostas e várias outras particularidades, todas ligadas à
hereditariedade. Atualmente, o que mais se aceita a respeito do temperamento é
que certas características são decorrentes de processos fisiológicos do sistema
linfático, bem como a ação endócrina de certos hormônios. Assim, pode-se
explicar a genética e a interferência do meio sobre o temperamento de cada
pessoa. Então, poderíamos definir temperamento como sendo uma disposição
inata e particular de cada pessoa, pronta a reagir aos estímulos ambientais; é a
maneira interna de ser e agir de uma pessoa, geneticamente determinado; é o
aspecto somático da personalidade (VOLPI, 2004: 02).
Fernando Neves, em entrevista, também formulou uma resposta para o que é
temperamento, que chega a mesma ideia de Volpi, porém com outras palavras:
O psicólogo me explicou que, a partir do momento que a gente nasce, a gente já
está em contato com o mundo. Ou seja, sua casa, sua escola, a sua rua, tem muito
a ver com sua formação. E isso desenvolve gostos, quereres, que é dentro da
lógica... Porque no mundo a gente está pelos sentidos, pelos olhares, pelo ouvido,
passa pelo tato, a gente tá em contato com o mundo o tempo inteiro e a gente tá
dizendo sim ou não pras coisas do mundo o tempo inteiro! Isso é o que a gente é,
é o que forma109.
Acho válida, ainda, a transcrição do trecho abaixo em que Soffredini usa a
potente expressão estado de espírito para definir essa instância que estamos chamando de
temperamento:
Rompida a primeira casca do “tipo”, observamos que havia mais no ator que o
representava. Assim, uma “ingênua” não era somente um tipo físico e uma
personalidade, mas um estado-de-espírito da atriz. Entrando imbuída desse
estado-de-espírito a atriz REVELAVA, já no seu primeiro passo em cena, o seu
personagem. Sem equívocos, sem fumaças, sem meios tons: sim o EXATO
(SOFFREDINI, 1980: s/n).
O temperamento do ator irá definir, portanto, o seu modo de criação e
organização da cena e, consequentemente, encaixá-lo em um determinado tipo. Como este
tipo está intrinsecamente ligado ao seu temperamento e este, por sua vez, ligado ao seu
modo de ser e agir, o ator trabalhará explorando um terreno que lhe é mais “natural”, em
que brilha mais, em que trabalha com mais fluência, em que é mais potente.
109
Ibidem
167
Em seu trabalho acerca do Pavilhão Arethuzza, José Carlos Andrade (2010)
descreve uma galeria de tipos, baseado principalmente na obra Técnica Teatral de Otávio
Rangel (1947). Esta obra não diz respeito diretamente ao circo-teatro, mas sim ao teatro
brasileiro tido como oficial. Porém o período descrito, por Rangel, desse teatro oficial era
contemporâneo ao período do circo-teatro em que se intensificou o uso da tipologia. Desse
modo, percebo a mútua influência existente entre esses dois fazeres teatrais, o que permite a
aplicação das definições de Rangel ao contexto do circo-teatro, porém, acredito, que com
algumas ressalvas.
Uma delas diz respeito, por exemplo, as definições do tipo galã. Andrade,
baseado em Rangel, descreve sete subtipos de galãs: amoroso, dramático, cínico, cômico,
típico, tímido e central. Acredito que, mais do que subtipos trata-se, na verdade, dos “tons”
que cada ator pode utilizar para compor os diferentes personagens das peças que se
enquadram no tipo galã. Ou: é como se o tipo “galã” fosse um substantivo e “amoroso,
dramático, cínico, etc.” fossem adjetivos.
Entendo que, dessa forma, todos os outros tipos também precisariam ser
classificados em subtipos, pois as matrizes que compõem esses tipos variam de acordo com
o gênero predominante no espetáculo e com as características das personagens.
Assim sendo, listo abaixo os tipos que foram, e continuam sendo,
característicos das representações circenses, levando em consideração alguns pontos
levantados por Rangel e Andrade, mas partindo, principalmente, das definições apreendidas
dos cursos e entrevistas que realizei com Fernando Neves. O olhar de Neves para a questão
da tipologia me parece mais interessante, pois enquanto Rangel e Andrade propõem a
exposição mais relacionada às características dos tipos, como, por exemplo, através da
descrição dos personagens episódicos que assumem, Fernando Neves analisa mais
especificamente as características encontradas na técnica de atuação dos intérpretes que dão
vida àqueles tipos, mostrando as diferenças de lógicas de pensamento e de composição de
existentes entre eles.
Assim sendo, descrevo abaixo os tipos mencionados por Fernando Neves:
- Ingênua e Galã:
168
São os mocinhos, os heróis, os enamorados e protagonistas das histórias.
A ingênua é, preferencialmente, interpretada por uma atriz jovem, quase
adolescente, e caracterizada com figurinos “bem comportados” e de tons suaves. Segundo
Santoro Junior:
(...) É a personagem marcante, de presença imprescindível, pois se torna o ídolo
da companhia, fazendo o público participar e viver seus problemas como se
fossem próprios, torcendo e suspirando por ela. Algumas características são
indispensáveis a esta personagem: meiguice, docilidade, boa voz, geralmente
porte pequeno (mignon), obedecendo certos padrões estéticos da época que
atraíam a atenção do público (SANTORO JR., 1997: 39).
No Pavilhão Arethuzza, a ingênua era interpretada por Alzira Neves, mãe de
Santoro Junior, descrita como uma exímia representante deste tipo. Em entrevista, Santoro
Junior contou: “Minha mãe era o protótipo da coitadinha. Eles olhavam pra ela e já
choravam. Se amava a mocinha, mas se aplaudia quando ela sofria. Ela era aquela doída,
sabe?”110.
Com o passar dos anos, o posto foi passado para as meninas mais jovens da
companhia, que mostravam possuir o temperamento necessário para a interpretação deste
tipo. Desse modo, depois de Alzira, as ingênuas passaram a ser interpretadas por Arismar,
filha de Aristides Neves e Maria das Dores Santoro. Porém Arismar casou-se, deixou o
circo e Alzira voltou a interpretar as ingênuas, com a mesma meiguice e delicadeza, apesar
da idade mais avançada; isso porque geralmente a ingênua é interpretada por uma atriz
jovem, mas, dependendo da atriz, o seu estado-de-espírito (ou temperamento) é tão vibrante
que é possível que ela represente, já não tão jovem assim, uma ingênua que seja
completamente verossímil aos olhos do público.
Em 2012, por exemplo, eu e mais cinco mil pessoas assistimos ao espetáculo
Romeu e Julieta do Grupo Galpão, num parque em Belo Horizonte. Não se trata de um
espetáculo de circo-teatro, mas diversas características da teatralidade circense foram
exploradas, concomitantemente com a dramaturgia de Shakespeare que aponta claramente
110
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
169
para o fato de que, por exemplo, Romeu tem o temperamento de um galã e Julieta de uma
ingênua. Dessa forma, como eu estava a uma distância relativamente grande dos atores,
assisti a encenação acreditando que a atriz que interpretava Julieta era quase uma
adolescente, extremamente meiga e delicada. Só ao fim da representação, ao me aproximar
dos atores, pude perceber que a atriz, Fernanda Vianna, era uma mulher, com no mínimo
trinta e cinco, quarenta anos!
E a mesma situação acontece quando vejo outras atrizes como Maria Stella
Tobar da companhia Os Fofos Encenam e também Luciane Rosã do Circo de Teatro
Tubinho: mulheres formadas que se passam por jovens românticas e sonhadoras, por
manterem não só o physique du role da ingênua, mas também o seu estado-de-espírito vivo.
Retomando a história da passagem das ingênuas entre as jovens do Pavilhão
Arethuzza, após Alzira, foi a vez de sua filha Alzirinha interpretar as heroínas. Alzirinha
desempenhou tão bem os papéis antes representados por sua mãe que, na década de 1950,
ficou conhecida como “A garota que canta e encanta”, slogan encontrado nos programas da
época.
Nos últimos anos do Pavilhão Arethuzza a ingênua ainda foi interpretada por
Vera Lúcia, uma prima da família. Nas décadas de 1970 a 1990 um grupo remanescente da
família remontou algumas peças, em que as ingênuas eram interpretadas por Tanija Santoro
Aragon, filha de Alzirinha e em seguida por Ana Gisela, filha de Santoro Junior.
Já o galã deve ser interpretado, preferencialmente, por um rapaz bonito. Mas
essa característica física não basta para a boa composição do tipo: o galã precisa ser
também extremamente charmoso, carismático, elegante e sedutor, utilizando-se dessas
qualidades em tudo o que faz.
Mais uma vez, ressalta-se na interpretação circense, características que são tão
naturais ao ator, apesar de, às vezes, não serem de seu conhecimento. No documentário
produzido sobre a montagem de A mulher do trem, da companhia Os Fofos Encenam,
Eduardo Reyes, o galã da companhia dá o seguinte depoimento acerca do início do
processo de montagem do espetáculo:
170
Eu acho que é isso... Ressaltar umas coisas, que talvez eu não percebesse... O Fe
Neves, o diretor, queria que ressaltasse uma questão canastra... Explicitar uma
sedução... Ressaltar isso que o diretor queria era difícil pra mim, porque eu não
acho que eu sou assim. E ele falava: “Mas você é. Eu te vejo... você é assim.
Então ponha isso”. Então eu tinha que grifar essas qualidades, esse jeito de ser...
111
O que é extremamente revelador e engraçado dessa passagem é que Eduardo
Reyes, ao mesmo tempo em que diz que não se vê como galã, diz isto de um jeito
completamente galanteador e sedutor, que lhe é totalmente natural e verdadeiro. Graças a
este trabalho com a tipologia, então, Eduardo Reyes pôde perceber e compreender suas
características mais marcantes e utilizar disto para a melhor composição de seu
personagem.
Com relação ao elenco do Pavilhão Arethuzza, Antônio Neves Junior, o Sinhô,
era o galã. A seu respeito, Fernando Neves contou em entrevista:
Tudo que o tio Sinhô fazia era seduzir. Ele morreu velhinho e, era uma pessoa
que gostava muito de mulher... Muito de mulher, e como gostava (risos). Mas se
tivesse aqui assim cinco homens, ele ia seduzir os cinco homens também. Se
tivesse uma cadeira aqui, ele ia seduzir a cadeira! E eu lembro dele velhinho, com
chapeuzinho, aquele lenço. (...) O tio Sinhô era tão galã, mas tão galã que assim...
Sempre minha mãe contava que ela ficava muito brava porque o tio Sinhô nem
levava os ternos dele pro circo... O meu pai saía de onde ele trabalhava e tinha
que passar na lavanderia e pegar os ternos do tio Sinhô. Alguém tinha que levar
porque ele era o galã112...
Um tipo curioso de galã destacado por Fernando Neves era o galã bandeja, que
constituía uma verdadeira estratégia de marketing circense. Antes de se tornar o galã central
da companhia, o jovem ator, ainda inexperiente, era designado a este papel, fazendo uma
“ponta”113 na peça. Sempre que havia na representação uma festa, o galã bandeja aparecia
como garçom, para “dar uma pinta, entrando mudo e saindo calado”, mas com a importante
missão de paquerar alguma menina da plateia. No outro dia era certeza que ela retornaria ao
circo, levando ainda várias amigas para mostrar que o galã estava flertando com ela. E
111
Declaração de Eduardo Reyes no documentário produzido pela companhia Os Fofos Encenam e
Massangana Multimídia Produções, acerca da peça A mulher do trem. O documentário foi gravado durante o
VII Festival Recife de Teatro Nacional, em Recife/PE, em novembro de 2004.
112
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
113
Como é chamado um personagem que aparece pouco em uma peça, às vezes com algumas poucas falas e
outras sem nenhuma.
171
nessa brincadeira muitos casamentos ocorreram e muitas famílias se constituíram.
- Ator Central e Dama central:
São as grandes estrelas, geralmente os donos da companhia, e possuem um
temperamento e postura glamorosos. Andrade (2010) cita uma fala recorrente de sua
professora Maria José de Carvalho, na Escola de Arte Dramática da Universidade de São
Paulo, que sintetiza a questão do porte altivo característico dos intérpretes destes tipos: “Há
atores que mesmo recobertos de ouro e púrpura, ainda assim parecerão mendigos. Há atores
que portando andrajos, terão o porte incomparável das majestades” (ANDRADE, 2010:
324).
O teatro tido como oficial contemporâneo a este período do circo-teatro
também era marcado pelas companhias alicerçadas sobre estas grandes estrelas. É sabido e
muito difundido no meio teatral, por exemplo, que o ator Procópio Ferreira, um dos
maiores nomes do nosso teatro, não comparecia aos ensaios e ordenava que fosse colocada
uma cadeira em seu lugar, no centro do palco. O recado era claro: “Eu sou a estrela da
companhia e aqui é o meu lugar”.
O fato de alguns artistas serem ou não os centrais não está necessariamente
ligado à idade, mas geralmente estes tipos são interpretados pelos artistas mais experientes
e mais velhos da companhia, que atingiram maior maturidade artística. Os centrais podem
aparecer episodicamente como os pais da ingênua e protagonizam - juntamente com os
mocinhos - as representações ocupando, prioritariamente, o centro do palco.
No Pavilhão Arethuzza, o ator central era desempenhado por Arthur Neves.
Além disso, Aristides Neves também poderia desenvolver tal tipo, sendo mais apto aos
papéis de forte intensidade dramática.
Arethusa Neves, a filha mais velha de Antônio das Neves e “braço direito”
deste, era a grande dama da companhia, sendo escalada para diversos papéis e saindo-se
bem em todos, principalmente nos papéis centrais que exigiam grande carga dramática.
Santoro Junior conta a respeito da tia:
172
A tia Thusa era a grande dama, seria hoje como a Fernanda Montenegro. Os
outros circos tinham respeito por ela. Quando ela chegava num lugar, todo
mundo: “É ela! É ela!” E o pessoal levantava pra cumprimentar... E ela ia de luva,
chapéu, salto alto, era uma coisa assim114!
Além de excelente atriz, Arethusa é descrita ainda como uma mulher
extremamente fina e educada, de rigoroso senso crítico e gosto artístico, além de excelente
administradora, figurinista, adaptadora de textos e dramaturga. Arethusa era uma mulher a
frente de seu tempo, não só por administrar com tamanha eficiência e autoridade os
negócios da família, como também por mostrar, em sua vida pessoal, toda sua forte
personalidade em meio à sociedade da época.
Dessa forma, em 1926 ela se separou do primeiro marido, Macário da Silva –
que apresentava sintomas de dependência química –, com quem foi casada por oito anos e
passou a viver, em 1928, com o ator Osmani Pereira. Apesar do desquite oficial só ter saído
em 1940, Osmani foi aceito pela família como seu segundo marido e os dois permaneceram
juntos por toda a vida.
- Cômico e Caricata:
Os atores que possuem este temperamento – sendo chamado de cômico, o
homem e caricata, a mulher – têm um ótimo tempo para comédia, são extremamente
criativos, irreverentes e transgressores, ou seja, são os “palhaços” das peças, mesmo que
não caracterizados como tais.
Apesar de possuírem tamanha vitalidade em suas interpretações, não possuem,
por outro lado, muito compromisso com a lógica, a precisão das ações e a repetição das
marcas. Dessa forma, assim como na dupla de palhaços, faz-se necessário que outro
personagem assuma a função de ser seu escada. Numa comparação que Fernando Neves
sempre menciona, o cômico ou a caricata seriam os atacantes de um time de vôlei, que
cortam as bolas erguidas pelos levantadores, ou seja, arrematam as piadas construídas pelo
baixo cômico e pela sobrette.
114
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
173
Preponderante nos gêneros cômicos, estes tipos aparecem também no
melodrama com o nome de bobo ou tolo e desenvolvem um papel fundamental na
constituição do espetáculo, pois a presença de elementos cômicos nos enredos
melodramáticos se mostra extremamente eficiente e necessária para o êxito da
representação.
O bobo é grotesco para aumentar a fineza dos heróis e serve como um
“refresco” para a plateia, aliviando momentos insuportavelmente dramáticos da peça, que
poderiam levar ao riso devido à tensão exagerada. Fernando Neves diz que “nos momentos
de insuportável tensão coloca-se o bobo para se rir do engraçado e o dramático ser
preservado”115.
O bobo está fora do maniqueísmo do melodrama, conferindo
(...) um aspecto mais humano ao complexo conjunto de personagens. Se a divisão
se faz entre terríveis e desalmados vilões de um lado e impolutos e incorruptíveis
heróis de outro, o elemento que desperta a comédia serve igualmente para
estabelecer um paralelo com o cidadão comum. O espectador, acomodado na
plateia, que não se identifica nem com as personificações do mal ou do bem
absolutos, acaba por se espelhar na poética figura risível que lhe é bem conhecida
e está mais próxima da sua realidade cotidiana (ANDRADE, 2010: 104).
Evidencio, aqui, mais uma vez como o circo monitora as reações do público: ao
bobo, a personagem com quem o público mais se identifica, é dada a importante posição de
confidente dos heróis. Desse modo, o público também se sente confidente dos mocinhos e
envolve-se ainda mais na trama.
No Pavilhão Arethuzza, Oscar Neves, o excêntrico Thomé da primeira parte,
assumia na segunda parte os papéis cômicos. Apesar de não surgir caracterizado como
palhaço, com exceção de algumas peças de matinê, é óbvio que algumas matrizes presentes
na composição do seu palhaço eram aproveitadas e reelaboradas na construção de suas
personagens.
Entre as mulheres, Jurandyr, a Didi, é descrita como uma excelente atriz
cômica, além de ter interpretado, quando necessário, as ingênuas e, principalmente, as
115
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
174
coquetes, marcadamente sensuais. Tamanha versatilidade fez com que ela, assim como a
irmã Guiomar, se enquadrasse no chamado tipo genérico, que será descrito adiante.
Santoro Junior conta que Didi tinha um temperamento “esquentado” e
oscilante, era briguenta e a única que ousava desafiar as ordens do pai. Também era
apaixonada por futebol, fazendo parte do time de futebol feminino que se apresentava em
certas ocasiões no circo e acompanhando nos estádios os jogos de seu time do coração, São
Paulo Sport Club, numa época em que a presença de mulheres nos estádios era raríssima.
- Baixo Cômico e Sobrette:
Os atores que se enquadram nesses tipos – sendo chamado de baixo cômico, o
homem e sobrette, a mulher – têm um humor leve, rápido e ligeiro. Podem aparecer,
episodicamente, como empregados ou amigos da família.
Conhecidos como escadas, preparam a cena e as piadas para os cômicos. Ou
seja, “levantam a bola, jogam o trapézio”, enfim, armam a piada que vai ser arrematada
pelo cômico ou pela caricata. Os heróis vivem a história que é por eles encaminhada e,
assim como ocupam um lugar periférico nas dramaturgias, ocupavam, preferencialmente,
as áreas periféricas do palco.
São extremamente precisos e lógicos: trata-se daquele ator que tem precisão de
tempo e sabe as falas de todas as personagens e todas as marcas da cena. Fernando Neves
destaca:
No circo-teatro tem toda uma organização, um equilíbrio. Porque o foco é da
história. Quem vive a história? São os heróis, não é? O herói e a heroína, ou seja,
o galã e a ingênua. E também os centrais. E o cômico e a caricata, que dão mais
graça pra história... Mas quem conta a história são o baixo cômico e a sobrette.
Eles que contam, eles que estão lá pra criar as situações, pra levantar a piada, pra
preparar a cena, pra deixar tudo prontinho pra esses outros personagens
arrematarem116.
No Pavilhão Arethuzza esses tipos eram vividos principalmente pelos atores
genéricos Antônio Santoro, e as irmãs Didi e Guiomar Neves.
116
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
175
Há ainda uma vertente do tipo sobrette chamada de coquette. Trata-se da atriz
que, além de todas as características descritas acerca da sobrette, tem como principal marca
a sensualidade.
- Genérico(a):
Alguns atores não se ligam diretamente aos tipos elencados anteriormente,
tendo como características básicas a versatilidade e a facilidade em interpretar os mais
diversos papéis.
Andrade (2010) diz a respeito destes atores, tido como genéricos:
Há também atores camaleônicos que possuem a natural capacidade de reorganizar
os elementos componentes de seu temperamento e, de acordo com as
necessidades, são capazes de dar maior destaque para uns, ou minimizar a
influência de outros (ANDRADE, 2010: 190).
Ainda no primeiro ano de graduação, um de meus professores, Marcelo
Lazzaratto, fez um comentário que relacionei diretamente quando, anos mais tarde, ouvi
falar de circo-teatro e desse “ator genérico”.
Lazzaratto disse que, para ele, há dois tipos de atores: os personalistas e os
transformistas. Os personalistas são aqueles em que reconhecemos alguns traços
característicos semelhantes em seus mais variados papéis, o que lhes confere certa
individualidade e “marca”. Como exemplo, citou atores como Marlon Brando e Robert de
Niro.
O ator transformista é aquele que se camufla de tal forma que praticamente
desaparece aos nossos olhos, sempre aparecendo de maneiras diversas a cada personagem.
A sua principal característica reside, justamente, em não possuir a personalidade marcante
do ator personalista, o que lhe confere outra qualidade enquanto ator, que se enquadra
melhor em determinados papéis. Para exemplificar este caso, Lazzaratto citou o ator Dustin
Hoffman no filme Tootsie, em que interpreta um ator que se passa por uma mulher.
Acredito que os atores que se enquadram como galã, ingênua, ator central,
dama central, cômico e caricata centram suas performances, principalmente, em suas
176
características temperamentais – seja a sedução, no caso do galã, a doçura da ingênua, o
glamour dos centrais ou a irreverência dos cômicos –, o que lhes confere, em cena, uma
personalidade mais marcante e, portanto, mais facilmente reconhecida pelos espectadores.
Acredito que esses atores seriam o que Lazzaratto chamou de personalistas.
E, por outro lado, acredito que os atores relacionados aos tipos baixo cômico,
sobrette e também o ator genérico centram suas técnicas de interpretação, principalmente,
na composição aguçada de seus personagens, o que lhes dá certo ar de “camaleões” e que
lhes aproxima, portanto, da ideia de atores transformistas.
No Pavilhão Arethuzza, como dito anteriormente, Antônio Santoro, um dos
irmãos Santoro que se casou com Alzira Neves, e as irmãs Didi e Guiomar eram os que
melhor transitavam entre os variados tipos.
Acerca de Guiomar Neves, destaco que esta começou a carreira interpretando as
ingênuas; mais tarde, juntamente com Arethusa, passou a interpretar os papéis das grandes
damas, porém, sem dúvidas, ganhou maior destaque ao interpretar as cínicas. Em
entrevista, Santoro Junior contou uma divertida passagem em que Guiomar, que fazia
apenas a comparsaria (figuração) em uma peça, acabou roubando a cena de tal forma que o
desenrolar da história foi comprometido:
Eles falavam também da postura cênica na interpretação dos comparsas antigamente falava comparsa, hoje fala figurante. Mas antigamente era comparsa.
O comparsa ele tem que ser bom, mas ele não pode superar o ator. Então, na
“Filha do Mar”, quando fala “Chama todos os empregados”, toda a comparsaria
entrava de empregadinho e empregadinha. Todo mundo, o palco ficava cheio e
tal. Daí um personagem falava “Houve um crime nessa sala”, e a comparsaria
“Um crime?”... E a tia Guiomar “Um crime?” E todo mundo só olhava pra ela!
Tinha que tirar a tia Guiomar de lá... Porque ela era tão boa atriz que os outros
diziam "Dá pra mandar ela parar, ou põe ela mais no fundo?” E daí o vovô
"Deixa ela aqui na frente... só que menos, né Guiomar?" (risos)117.
Encerro aqui a descrição dos tipos afirmando, sem sombra de dúvidas, que não
existe, entre essas classificações, um que seja melhor ou pior que o outro. O que seria de
uma história em que todos são protagonistas? Ou: que piadas o cômico iria arrematar se
117
Santoro Junior (Toco) em entrevista concedida à autora em 27/08/2014.
177
ninguém as tivesse levantado? O fato é que é necessária e imprescindível a presença de
diferentes tipos e personagens em qualquer história.
Pontuo aqui, portanto, que, acima de tudo, esses pensamentos acerca da
tipologia podem auxiliar o ator a olhar para si e, de forma honesta, reconhecer as
características que lhe conferem a qualidade de ator que é. O que ele fará a partir disso
depende de suas vontades e anseios artísticos, mas este exercício de honestidade para
consigo me parece interessante para qualquer ator.
No caso do circo-teatro, os artistas representavam nas encenações os
personagens que melhor se enquadravam ao seu tipo. Porém, é importante destacar e
analisar que, apesar do ator se deter à interpretação de um determinado tipo, este estava em
constante transformação, pois o intérprete estava sempre a absorver e recriar as novas
tendências artísticas e especificidades da cidade onde o circo se instalava.
Essa característica é evidente também em outras tantas formas de manifestações
tidas como populares, como por exemplo, a commedia dell’arte. Ressalto uma passagem
narrada por Erminia Silva (2010) que ocorreu em uma roda de conversa com a
pesquisadora Tiche Vianna, especialista em commedia dell’arte, do Barracão Teatro, de
Campinas. Tiche ressaltou primeiramente que alguns historiadores europeus afirmam que a
commedia dell’arte conseguiu atravessar três séculos devido ao fato desta se comunicar
com todos os níveis de público – da mais alta sociedade aos transeuntes das feiras – e que
esta característica está ligada diretamente à capacidade dos atores de não se especializarem.
Acredito que o pensamento, descrito a seguir, desenvolvido por Tiche sobre
esta questão da não especialização na commedia dell’arte pode ser estendido ao circoteatro:
Tiche aponta que, em um primeiro momento, essa análise lhe causou
estranhamento, pois pensou: eram tipos fixos e como que um tipo fixo não é uma
especialização? Entretanto, aqueles estudos lhe fizeram todo sentido e coincidiam
com seu próprio fazer teatral. Pois, por mais que se fizesse um tipo fixo, esse
tinha que absorver todos os elementos que o tornasse capaz de interagir com a
plateia daquele lugar e daquela hora; tinha que estabelecer relação que fizesse
sentido para quem estava fazendo e vendo (SILVA, 2010: 227).
178
Além disso, apesar da estrutura interpretativa enquadrar os atores em tipos, é
óbvio que a dramaturgia de cada peça propunha especificidades às suas personagens. Desse
modo, apesar de uma atriz sempre representar o tipo da ingênua, interpretar a Bernadete, do
drama religioso A canção de Bernadete não seria igual a interpretar a Rosinha, da burleta
Cabocla Bonita, por exemplo. É como se a artista fosse pintar um quadro, no qual a figura a
ser retratada e as cores utilizadas fossem pré-determinadas, porém os inúmeros tons, a
mistura destes e o modo como eles podem ser combinados fossem de sua livre inspiração.
Portanto, cada ator interpretava um determinado tipo, que seria enquadrado na
dramaturgia da peça em diversos papéis, gerando, dessa forma, muitas especificidades a
cada encenação. Porém, especificidades à parte, no circo-teatro todos os tipos, sem
exceção, seguem a mesma premissa: devem ser reconhecidos imediatamente pela plateia.
Era fundamental que quando uma personagem adentrasse o palco, a plateia, no
mesmo instante tomasse conhecimento de quem se tratava. O vilão tem que se
mostrar vilão desde a sua primeira aparição, sem oferecer risco de mal entendido
para os espectadores. Não basta ao vilão agir como tal. Ele tem que se parecer
como indica o tipo. O vilão veste-se como vilão, fala como vilão, anda como
vilão (ANDRADE, 2010:133).
Completando a informação acima se, por exemplo, o vilão está a enganar
alguma outra personagem, como a madrasta de Branca de Neve ao lhe oferecer a maçã
envenenada... Se sua atitude esconde as suas reais intenções, algum outro elemento da
composição da cena, como por exemplo, a música ou a iluminação, irá mostrar ao
espectador a vilania escondida naquela ação. Ou seja: o público está no centro da
representação e a ele tudo é mostrado, ou melhor, “escancarado”.
Essa característica de revelar a personagem de imediato para a plateia está no
cerne não só do circo-teatro, mas também de diversas outras manifestações tidas como
populares, inclusive os teatros de feira e commedia dell’arte, antecessores deste
representante da teatralidade circense.
Robson Corrêa de Camargo (2006) descreve, em seu artigo acerca dos teatros
de feira, o método de exposição da personagem pelo ator na pantomima que, como
veremos, tem total proximidade com o trabalho realizado pelos atores de circo-teatro:
179
Bragaglia descreve-a como compreendendo três fases: a primeira, a mais
importante, revela um grau de consciência profunda do fazer teatral e de sua
conexão com a platéia: o contegno (comportamento, atitude, postura). Pode ser
denominado como o caráter do ator-personagem, ou ainda, a presença cênica, a
arte de fazer-se reconhecer imediatamente na personagem representada, antes do
início da ação que será realizada ou pelo gesto que a vai caracterizar. Esta técnica
é intensamente trabalhada pela mímica e precede àquela que se preocupa com o
desenvolvimento ou reconhecimento da personagem por meio da ação
desenvolvida, e é o ponto central de vários procedimentos do teatro popular. No
teatro de variedades era muito comum, a capacidade do ator surgir em cena e
conseguir a empatia da plateia no imediato momento em que surgia no palco. Os
artistas das formas de teatro de variedades, como os de mímica, com seus
números rápidos, muitas vezes, de cinco minutos, não irão desenvolver em cena
uma longa história que o público deva acompanhar, ou mesmo, o palhaço, com
suas rotinas rápidas, entre os números de trapézio e dos animais, é obrigado a
entrar e imediatamente conquistar a atenção da audiência. (...) A segunda seria o
gesto ou o desenvolvimento da gestualidade da personagem, ou ainda, da
personagem em ação. A última, o ostentio, a exibição ou mostra, a arte de fazerse entender ou contar ou atuar a história sofrida pela personagem. Como vemos,
tudo está muito voltado à relação com o público e seu entendimento da ação no
palco. Para melhor clareza da análise que estamos realizando, acrescento um
quarto elemento à trindade de Bragaglia. Este seria o todo representado, ou
melhor, o adequado equilíbrio de todos os elementos citados anteriores no
desenvolvimento da totalidade do espetáculo, o complexo gestual (CAMARGO,
2006: 11 e 12).
Determinado o tipo do ator, estabelece-se uma partitura com as características
básicas deste. Porém, isto não limita seu trabalho, pelo contrário: tendo essa partitura como
base, ele dispõe de uma extrema liberdade para criar a personagem, podendo se fazer valer
de toda e qualquer referência, e achar o seu tom. Esse é o grande paradoxo instalado pela
tipologia: ao mesmo tempo em que delimita uma partitura, permite a extrema liberdade de
se compor e criar dentro dela. Fernando Neves costuma dizer que o tipo, ao mesmo tempo
em que fecha, abre um universo de possibilidades ao ator, lhe fornecendo, então, uma
partitura para voar.
Alguém poderia pensar que, por serem tipos, esses personagens são pobres, sem
grandes nuances, o que poderia tornar as histórias das peças menos interessantes. Destaco
aqui dois pontos: o primeiro diz respeito a falsa compreensão do que vem a ser um tipo e os
problemas que isso acarreta no momento do ator interpretá-lo; e o segundo diz respeito à
relação existente entre a utilização das personagens-tipo e as histórias a serem contadas.
Em relação ao primeiro ponto, começo citando uma fala, um tanto quanto
sarcástica e verdadeiramente forte, de Soffredini acerca do circo-teatro:
180
Trata-se de espicaçar o jogo teatral. Trata-se de assumir a teatralidade do Teatro.
Trata-se de derrubar a quarta parede com picaretas, talvez, que modernamente
têm sido repudiadas pelos donos-da-bola do Teatro. Trata-se, e sabemos disso, de
assumir os cânones que têm sido apontados como os do mau Teatro. E por que
não? Alguma coisa esse “mau Teatro” deve ter, já que continua envolvendo uma
classe de público depois de mais de um século. (...) Forma? Estereótipo?
Estereótipo sim. E se ao seu estudo nos jogamos, se fizemos dele uma das bases a
partir da qual estamos elaborando, inventando, é porque percebemos que não
existe o mau estereótipo. Existe, sim, o mau ator. Assim: Um certo (sic) número
de “dramas” fazem parte do repertório do grande Circo-Teatros (sic) e por isso
nós assistimos a alguns deles representados por três ou quatro elencos diferentes.
Determinados “achados” (“gag”, “caco” de alguns atores) já caíram na tradição e,
constando já como indicações nos textos, são repetidos por todos os elencos. A
FORMA (estereótipos) de representar determinados personagens também já é
tradicional. Pois bem: em determinados Circo-Teatros o tal “achado” ou a tal
“forma de representar” tem um tempo teatral exato e funcionam perfeitamente;
em determinados outros são uma verdadeira tristeza. Por que será? Acho que é
porque não há estereótipo puro, há ator burro (SOFFREDINI, 1980: s/n).
Esclareço que Soffredini usa o termo estereótipo como um sinônimo de tipo,
pois a seu ver, esta palavra não deveria ser carregada do significado pejorativo que lhe é
comumente atribuída.
O tipo é um símbolo, é um catalisador, é um personagem que não reduz e sim
sintetiza características humanas, que são condensadas e que deveriam se encontrar,
portanto, em um estágio de maior potência. Um tipo mal construído é o que se chama de
estereótipo, ou seja, é a mera reprodução de um clichê, de algo falso, sem vida, formado
antecipadamente e sem fundamento, e, portanto, preconceituoso.
Portanto, assim como Soffredini, não acredito que exista um mau estereótipo ou
um mau tipo; o que existe é um mau desempenho do ator que se propôs a representá-lo.
Para compor um personagem, independente de se tratar de um tipo –
considerado um personagem plano – ou um personagem esférico, o ator deve mobilizar-se
por completo, com suas dimensões interior e exterior em profundo diálogo, e deve, então,
expressar as resultantes desse diálogo através da conduta de seu corpo e comportamento,
que por sua vez são expressas através de ações.
Fernando Neves disse em entrevista que nesse trabalho de composição de tipos
no circo-teatro o ator só tem uma chance e ele não pode errar: ele tem que entrar em cena e
não deixar dúvidas na plateia. Para tanto, o ator deve executar um trabalho de interpretação
181
que busca o limpo, o direto, o contundente, o preciso, o justo. Automatismos e clichês, que
sugam a vida de qualquer personagem, devem ser eliminados também no trabalho que visa
a composição de um tipo.
Adentrando agora o segundo ponto levantado anteriormente, nas representações
teatrais no circo, segundo Fernando Neves, o foco recai sempre sobre a história, e não sobre
os dramas individuais das personagens. É preciso que essas personagens sejam capazes de
contar uma história, minuto após minuto, em conjunto:
Fernando Neves: (...) O foco é a história a ser contada, não para, não tem essa
base psicológica do drama, do meu personagem, não. É a história que tem que
andar, porque trabalha com a composição. A partir do momento que cada
personagem entra em cena, o universo daquela personagem já está criado. O
público fala: “Essa é a moça, aquele é o herói, aquele é o vilão. Esse é esse, esse é
esse. Pronto! Já sei de tudo e agora vocês têm que me contar a história!”.
Fernanda Jannuzzelli: E apesar de saber de tudo isso e, muitas vezes, até saber
como vai acabar a história, o público quer ver mesmo assim porque ele quer é
saber como os artistas vão contar essa história, né?
Fernando Neves: Exatamente. Inclusive porque tudo é revelado pra plateia. Isso
tá na origem da dramaturgia do circo-teatro. O que é importante é que pro ator, o
foco é da história. (...) E é tudo pra plateia e tudo muito claro pra plateia. A
plateia não pode falar “Mas quem é esse daí?”. Fez isso acabou. Entendeu? É a
mesma coisa que você tá contando uma história e fala “Nossa, não entendi aquela
pessoa, quê que ela fez? Ela era legal? Não era?”. Entendeu? O ator, ele só tem
uma chance, nesse trabalho da composição. Uma. Se ele errar, ele tá perdido. Não
tem outra118.
O fato de a representação ser pautada pela tipologia definia, claramente, entre
os circenses, todos os elementos da caracterização das personagens. Dessa forma, se na
commedia dell’arte, por exemplo, os tipos eram imediatamente identificados pelas
máscaras, no circo-teatro o design e as cores do figurino, bem como da maquiagem,
cumprem a função de definir as figuras com a mesma precisão. Uma ingênua, por exemplo,
sempre usará tons claros, como rosa e pastel, enquanto um vilão se valerá
preponderantemente de cores escuras.
Então eles não precisavam ter um figurinista, um maquiador; eles conheciam o
universo do seu tipo, que tem a ver com os personagens que eles interpretavam.
Eles sabiam tudo, não precisava... Se mandasse... “Vou fazer um personagem”,
“Vai lá no guarda roupa e pega o figurino”. E a pessoa ia e pegava e ia dar
118
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
182
certinho, não ia ficar parecendo uma louca em cena, porque ia dialogar com tudo
que estava lá, com cenário, com figurino, com luz, com tudo. Entendeu? Porque
eles conheciam o universo desses tipos, porque toda a interpretação tá calcada
nisso119.
Nas fotos abaixo podemos ver Arethusa Neves e Antônio Santoro Junior
(Sinhô) interpretando diversos personagens dos dramas levados no Pavilhão Arethuzza.
Através dessas fotos, vi claramente a importância da composição dos tipos, com suas
caracterizações alicerçadas pelos figurinos e maquiagens. E pude ver também, como que,
apesar de se tratar de personagens tipos, não havia uma caracterização “exagerada”, que
nos vêm a mente, comumente, quando se fala em tipos, ou melhor, em estereótipos.
Figura 29: A filha do mar, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior.
119
Figura 30: As duas órfãs, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior.
Ibidem.
183
Figura 31: A cabana do Pai Thomás, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior.
Figura 32: Honrarás tua mãe, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior.
Figura 33: A escrava Isaura, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior.
Figura 34: Justiça divina, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior.
184
Figura 35: O poder do ouro, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior.
Figura 36: Os dois garotos, s.d.
Fonte: Arquivo pessoal de Santoro Junior.
Além da composição de figurino e maquiagem, a interpretação baseada na
tipologia definia também a distribuição das personagens no espaço cênico. Dessa forma,
desenvolveu-se uma espécie de padrão de posicionamento no palco, também baseado nas
diversas referências absorvidas pelo espetáculo circense, que permitia a composição de
tantas cenas, de tantas peças distintas em tão pouco tempo pela figura, não de um diretor,
mas do ensaiador. Fernando Neves destaca:
O que determina espacialmente o seu lugar, o seu espaço no palco é o seu
personagem. Então, se eu vou fazer um vilão eu sei exatamente que no meio do
palco, por exemplo, eu não vou ficar... Eu posso pegar uma diagonal pra passar
pelo meio. Ou dar a volta, se for entrar pela direita, passando pela meio direita,
até a direita baixa, entendeu? Mas é muito difícil daí eu pegar e passar pela frente
centro e atravessar pela boca do palco. Geralmente tem a diagonal pra vilão,
entendeu? A questão do centro é muito importante pros protagonistas,
principalmente pros heróis... Então isso determina 120.
120
Ibidem.
185
Percebo que todos estes mecanismos contribuem para a composição das
personagens e a imediata identificação destas pelo público e também para se contar a
história pretendida. Tudo é construído com o pensamento focado nas reações e sensações
que serão suscitadas no público. O ator circense, num ato totalmente não preconceituoso,
partia de toda e qualquer referência para a composição de seu personagem e da cena. O
único critério a ser considerado era: isso ajuda a contar a história e causa o efeito desejado
na plateia?
E eis-me aqui novamente tocando num ponto delicadíssimo no dito Teatro
Moderno e simplesmente abominado pelos filhos de Stanislavski: o EFEITO.
Efeito cheira a forma. E nesse ponto seria bom que a gente chegasse logo a um
acordo: NÓS CULTIVAMOS A FORMA. Os antigos atores conheciam e
aprimoravam uma série de EFEITOS. Eles sabiam a forma de dizer melhor uma
piada, o valor exato de uma pausa, a maneira de se colocar em cena dependendo
do clima a ser criado ou do caráter a ser revelado. Não é por acaso que o CircoTeatro ainda conserva uma fuga central no cenário. Não se trata dessas atuais
convenções pobres, tais como: “a fuga da esquerda leva ao quarto, a do centro à
cozinha, a da direita leva à rua...” Não. Trata-se de uma consciência exata do
valor (efeito) da entrada ou saída de um ator de cena. Cada personagem que entra
em cena, se o ator souber entrar, só pode levar a peteca pra cima. Cada
personagem que sai, se o ator souber sair, deixará a peteca em cima. Se um
personagem tem caráter positivo, se ele “chega”, entrará pela fuga do meio: como
num passe de mágica a figura aparecerá no meio da cena. Da mesma forma, se
um personagem tem caráter dissimulado, se sua ação é sorrateira, ele entra ou sai
pelas laterais. Parece um processo ingênuo, mas o EFEITO é matemático. Sabese que os vilões dos velhos dramas não só entravam em cena pelas laterais como
cobrindo parte do rosto (do nariz pra baixo) com uma capa negra (SOFFREDINI,
1980: s/n).
Os circenses utilizavam-se, ainda, da ciência da potência e da função de cada
um desses efeitos para a construção de recursos que poderiam reforçar, ou ainda desvirtuar,
alguns desses próprios efeitos.
Isso acontecia, por exemplo, em relação à escolha de quem interpretaria o(a)
cínico(a). Apesar deste personagem estar presente, praticamente, em todas peças circenses,
ele não constituía um tipo e seria interpretado pelo que melhor se adequasse ao efeito
pretendido. É como se o tipo fosse um “substantivo” e o fato de ser “cínico” um adjetivo.
Por exemplo, uma dama central de forte intensidade dramática daria um grande
peso a personagem, enquanto um baixo cômico ou sobrette trabalhariam mais com a
questão da composição física etc. Dessa forma, Fernando Neves conta:
186
Por exemplo, é uma ingênua que tem que fazer uma cínica, como no “Uma
cigana me enganou”. Porque todo mundo pensava que a vilã é a cigana, porque a
ingênua é ingênua! Então é uma alta comédia que se trabalhava a questão do
preconceito. Ninguém conseguia perceber que era a ingênua que tava fazendo as
maldades, porque ela é moça de família, etc. E isso era pensado como recurso.
Assim mesmo, sabendo que ela tá lá pra enganar a plateia. (...) No “Crime da 5ª
avenida”, por exemplo, (...) quem fazia o promotor era o tio Sinhô. A tia Thusa
botou ele, muito espertamente, que é um galã, pra não dar pro personagem o peso
da vilania, porque o promotor geralmente você pensa que é o vilão porque é o que
acusa. Então quando o Alex Gruli aqui dos Fofos pegou o promotor pra fazer, que
pra ele foi um papel maravilhoso, ele se tornou um vilão, porque como ele é
baixo cômico ele compôs. Então ele tinha umas caras, ele tinha uma coisa que ele
fazia, que eu falei “Olha que engraçado! Por isso que a tia Thusa botou o tio
Sinhô que é galã, daí trabalhava com a sedução, então não tinha esse peso da
vilania!” Então o circo meio que utilizava isso (...) Se o papel necessita de maior
intensidade dramática, bota o galã central pra fazer. Alguém ia onde o tio Sinhô
ia dramaticamente? Ia a tia Thusa como mulher, os dois iam, né? Mas a tia
Guiomar era genérica e ia em tudo, mas se precisasse de uma dama central de
origem mesmo botava a tia Thusa. Quando precisava de uma ingênua... a tia
Alzira já com idade fazia a Virgem Maria! E era bom ela fazer porque ninguém ia
fazer como ela. A Lília Cabral olhando a tia Alzira... lá no Pátio do Colégio... a
Lília falou: “Fernando, eu tô chorando... tô vendo que ela passou vaselina, eu vi
ela passando....” E na cena da cruz a Lília “Eu tô chorando, não paro de chorar.
Quê que ela tá fazendo?” E eu falei “O que ela tá fazendo? Ela tá fazendo o que
ela fez a vida inteira! (risos) 121.
Fernando Neves desenvolve, na atualidade, uma pesquisa que promove o
resgate da memória de sua família e, a partir disto, constrói uma técnica pessoal em que são
retrabalhados elementos da poética e estética que foi desenvolvida pelo Pavilhão
Arethuzza.
Além disso, Neves, mostrando ter mesmo serragem nas veias, se apropria de
diversas outras fontes teatrais, como o trabalho com a máscara neutra de Jacques Lecoq e
com os níveis de energia de Barba, para compor a sua técnica acerca do trabalho do ator.
Nos circos-família, como no caso do Pavilhão Arethuzza, descobria-se o tipo de
cada pessoa de forma natural, através do convívio diário e contínuo. Dessa forma, era só
uma questão de tempo para que os mais velhos reconhecessem nos mais jovens as
características que os tornariam mais adequados à este ou àquele papel.
121
Ibidem.
187
Como hoje em dia Fernando Neves não trabalha e vive num circo, ele
desenvolveu um exercício – que busca um análogo a essa descoberta natural através do
constante convívio – para definir a qual tipo cada ator se aproxima.
Baseado nas memórias da sua infância, Neves relacionou o “jeito” de cada um
de seus tios com os papéis que desempenhavam nas peças. Lembrando-se de como seus tios
realizavam ações simples do cotidiano e reagiam diante de determinados acontecimentos,
Neves entendeu a relação existente entre o temperamento de cada um deles e os tipos que
representavam.
A pedido de Fernando Neves, não descrevo como se desenvolve este exercício
dos tipos, pois para a realização deste é necessário que os atores não o conheçam de
antemão.
Tive a oportunidade de fazer um curso com Fernando Neves, ainda em 2007, na
Casa de Cultura Amácio Mazzaropi, em São Paulo, no qual realizei esse exercício. A turma
deste curso era composta por pessoas muito diferentes, com experiências teatrais
diversificadas, sendo algumas sem experiência alguma. No primeiro dia de curso Neves
perguntou o que cada um achava que era “circo-teatro”. Com as respostas, percebemos que
a maioria achava que estudaríamos algo relacionado com palhaços e números de
variedades. Ninguém se remeteu de fato à teatralidade circense chamada de circo-teatro,
porém o mais interessante é que, apesar disso, ninguém se remeteu também a linguagens
“naturalistas” como a telenovela, por exemplo. Ou seja: o circo sempre nos remete a um
universo lúdico recheado de teatralidade.
O curso contou com um primeiro momento teórico em que Neves nos
introduziu à linguagem do circo-teatro, desconhecida, como mostrado anteriormente, por
praticamente toda a classe. Num segundo momento iniciamos o trabalho prático que contou
primeiramente com exercícios teatrais de escuta, atenção, foco e ritmo e também com o
trabalho com as máscaras neutras.
Portanto, quando realizamos o exercício dos tipos, Neves já me conhecia
minimamente e, antes mesmo do exercício, disse já ter certeza de qual era o meu tipo.
Como Fernando Neves já imaginava, eu sou uma sobrette.
188
“Descobrir” que sou sobrette foi a constatação de algo que já intuía, sentia e
imaginava. Quando assisti, antes do curso, a peça A Mulher do Trem, dirigida por Fernando
Neves com a companhia Os Fofos Encenam, eu pensei que, se tivesse que escolher um
papel para interpretar, escolheria Julieta, a mulher do trem, que apesar de dar título à peça
não é a protagonista da história e que era interpretada pela atriz Kátia Daher. Não sabia o
porquê, mas sabia que havia algo em comum entre o “jeito” de interpretar de Kátia, Julieta
e mim. E foi batata: Kátia Daher também é sobrette; e como fiz Fernando Neves, nós duas
somos “sobrettes de linha mesmo, daquelas que não deixam dúvidas”.
Acerca desse exercício e de toda a construção de sua técnica embasada na
questão da tipologia, Fernando Neves discorreu em entrevista:
O temperamento tem a ver sim com a sua manifestação artística, com qual é o
gatilho, qual é o estopim que vai fazer com que você tenha um brilho, vai fazer
com que você trabalhe com mais fluência, mais potência determinados
personagens. Mas a questão pro ator de hoje, pro ator de base acadêmica,
principalmente... Eu peguei a essência da questão da tipologia pra fazer o ator
entrar em contato com o seu melhor. Porque a gente tem muito modelo, né, o ator
tem muito modelo: "ai, eu gosto tanto daquele ator". Mas, às vezes, não tem nada
a ver com o que ele é mesmo, porque que tem a ver com temperamento. (...)
Porque o circo parte disso, do temperamento, pra chegar na cena. Ele parte disso,
entendendo qual é o seu lugar, onde você é mais potente. Então os exercícios que
eu faço... Todos aqueles exercícios dos tipos... Na verdade é pra entender como é
que o ator organiza a cena. E é isso que é importante pro ator de hoje: ele entrar
em contato com a sua essência, que é o jeito que ele pensa e vê a cena e que dá a
qualidade de ator que ele é. Todo esse caminho, tudo isso é pra isso. (...) Porque
tudo isso, a grande importância que tem é essa questão da qualidade de ator que
ele não sabe que ele tem. Ele tem quereres, ele tem modelos - todos, estou
dizendo nós, atores - mas essa essência mesmo, que define a qualidade de ator
que sou, eu entendi que isso existe via circo 122.
Encerro aqui a parte descritiva acerca do Pavilhão Arethuzza certa de que,
depois de tudo o que foi mencionado, o sucesso desta companhia não foi fruto do acaso,
mas sim de um labor diário, constante, ininterrupto e profundo, iniciado ainda nos
primeiros anos de vida das crianças.
Ouvir as histórias narradas por Toco e Fernando Neves em entrevista, conhecer
como esta família se estruturava e entender a grandiosidade artística envolvida no trabalho
desta companhia foram verdadeiros presentes, os quais lembrarei por toda a vida.
122
Ibidem.
189
O panorama histórico, polítivco, econômico e social no qual o Pavilhão
Arethuzza e tantos outros circos surgiram e se desenvolveram sofreu significativas
mudanças, que alteraram por completo o processo de formação/socialização/aprendizagem
dos artistas circenses. Mudanças estas que alteraram, por sua vez, o modo de organização
do trabalho e, consequentemente, a configuração estética do espetáculo.
Porém, apesar das inúmeras adversidades, algumas companhias continuam na
estrada, levando a tradição circense – com a sua parte permanente, que lhe caracteriza como
tal e com a sua parte inovadora, que sempre se renova e se metamorfoseia – a diversas
plateias pelo Brasil.
E, com certeza, uma das companhias que realiza esse trabalho com maestria na
contemporaneidade é a do Circo de Teatro Tubinho, que começo a descrever a seguir.
190
3.
O CIRCO DE TEATRO TUBINHO
3.1 Trajetória
Para narrar a trajetória da família Tubinho foram utilizadas como fontes: as
entrevistas com Zeca e os demais artistas do Circo de Teatro Tubinho, realizadas nas visitas
ao circo ocorridas de 2013 a 2015 e que integraram a pesquisa de campo deste estudo; os
documentários Circo de Teatro Tubinho (2006), O palhaço o que é? (2007) e Amores de
Circo (2009), com produção da pesquisadora Ana Lúcia Ferraz e realização do LISA
(Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo) e da
Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo); e também o
documentário Circo de Teatro Tubinho (2013), produzido pelo próprio circo, em parceria
com a Esfera Produções, sobre o projeto de reelaboração de repertório do Ministério da
Cultura e da Petrobrás.
Também foram cedidos, gentilmente, para análise os diários de bordo pósapresentações escritos pelas atrizes Lucélia Reis e Ana Dolores ao longo dos anos de 2010
e 2011.
Além disso, outras importantes fontes de dados, que caíram em minhas mãos
como grandes presentes, foram o acervo fotográfico da fã da companhia Gracianna Assis
(Grah Assis) e o histórico de arquivos relacionados ao Circo de Teatro Tubinho coletados
durante anos pelo fã Murillo Ramos Mello.
Grah Assis, que é de Itapetininga e já foi mais de cem vezes ao circo de
Tubinho, desde 2013 passou a se dedicar ao registro fotográfico das peças da companhia e
consentiu, gentilmente, que eu utilizasse algumas de suas fotos ao longo da dissertação e
registrasse todo o acervo também no CD que consta nos anexos.
Murillo Ramos Mello, desde 2011, foi mais de 130 vezes ao Circo de Teatro
Tubinho, chegando a acampar por dois dias em frente ao circo para conseguir o ingresso
para o último espetáculo da temporada em Votorantim (2011). Ao longo dos anos, Murillo
coleciona todo tipo de material acerca do circo, como reportagens de revistas, jornais e
televisão, fotos, vídeos e ofícios de prefeituras de menção honrosa. O acervo completo
191
produzido por Murillo também pode se encontrado no CD que consta nos anexos desta
dissertação.
Figura 37: A fã Grah Assis homenageando o
ídolo Tubinho, 2014.
Fonte: Página de relacionamento de Grah Assis
na internet.
Figura 38: O fã Murillo Ramos Mello com seu acervo do
Circo de Teatro Tubinho.
Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul. Sorocaba, 19/09/2014,
página C2.
O material produzido a partir das fontes descritas anteriormente é suficiente
para compreendermos as origens desta companhia e o porquê dela se estruturar, empresarial
e artisticamente, dessa forma na atualidade. Porém, não posso deixar de frisar sobre a
necessidade de realização de mais estudos, sobre variadas perspectivas, acerca deste circo
de teatro que vem chamando atenção na atualidade, tanto do público leigo quanto de uma
parcela significativa da classe artística, principalmente da região sudeste.
Esclarecimentos feitos, destaco que a trajetória da “família Tubinho” teve
início em 1918, com o casamento de Juvenor Ferreira Garcia (o palhaço Caolho) e Dolores
Vilaça Garcia, mais conhecida por Lola. Sabe-se apenas que Juvenor já era de família
circense e que o casal trabalhou em vários circos de variedades até fundar, em 1923, seu
192
próprio circo, o “Circo Irmãos Garcia”, onde nasceram os filhos Altamar, o qual não se
sabe a data precisa do nascimento, Brasilina (Lina) em 1924 e Juvenor (Juve) em 1926.
Alguns anos mais tarde, o primogênito Altamar passou a trabalhar como o
palhaço da companhia, recebendo o nome de Tricô. Acompanhando o movimento de
transformação dos circos de variedades em circos-teatro, o circo passou a apresentar o
espetáculo dividido em duas partes e recebeu o novo nome de “Circo Teatro Irmãos
Garcia”. Neste circo, em 09 de maio de 1943, a trapezista Brasilina Garcia, a Lina, deu a
luz a José Amilton Pereira, apelidado de Bambí, pai de Zeca.
Figura 39: Lembrança retrato de Lina Garcia, s.d.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
193
Em determinado momento, Altamar resolveu abandonar a vida itinerante e
deixou o circo, sendo necessária a substituição do palhaço da companhia. Foi neste
momento que o caçula dos filhos de Juvenor e Lola, Juve Garcia, criou o palhaço Tubinho
na encenação Tubinho um Trapalhão, levada no Circo de Teatro Tubinho até hoje.
Juve era trapezista, malabarista e mágico e, apesar de só neste momento ter se
tornado o palhaço da companhia, começou a pintar a cara (como os próprios circenses
dizem) aos cinco anos de idade, na cidade de Vassouras-RJ, no dia 11 de junho de 1932. A
data é lembrada com carinho por todos da família, pois nesse dia quem pintou Juve pela
primeira vez foi Oscar Teresa, o grande Oscarito.
Bambí, pai de Zeca, contou em entrevista ao Jornal da Barra & Igaraçu, da
cidade de Barra Bonita, em 19 de janeiro de 2008, que o nome “Tubinho” surgiu porque na
época o vestido de mesmo nome fazia sucesso entre as mulheres. Porém, sabe-se que o
palhaço Tubinho surgiu na década de 1950 e que o vestido “tubinho” foi criado pelo
estilista Yves Saint-Laurent (1936-2008) na década de 1960, o que me faz ponderar a
afirmação de Bambí acerca da origem do nome do palhaço de Juve.
Figura 40: Juve Garcia como palhaço Tubinho na comédia Tubinho na
Casa dos Fantasmas, 1960.
Fonte: www.tubinho.com.br
194
Em 1959, Juve montou sua própria companhia, o “Circo Teatro Irmãos Garcia
com Tubinho e sua Cia”, rodando os estados do Paraná, Santa Catarina e São Paulo. Em
entrevista, Zeca não soube precisar ao certo, mas deduz-se que já nesse momento o
espetáculo da companhia de Juve era composto somente pelas peças teatrais e entradas de
palhaços, não havendo mais a tradicional primeira parte com a execução de números de
variedades.
Figura 41: Circo Teatro Irmãos Garcia com Tubinho e sua Cia, Curitiba/PR,1959.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
195
Figura 42: Circo Teatro Irmãos Garcia com Tubinho e sua Cia. São Francisco do Sul/SC,1961.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
Figura 43: Circo Teatro Irmãos Garcia com Tubinho e sua Cia. Paranaguá/PR, 1965.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
Nesse mesmo ano, Bambí casou-se com Zilá Rosa, sendo que ambos tinham
dezesseis anos. Zilá, que não era de família circense, conheceu o esposo em uma das
196
cidades pela qual o circo passou e rapidamente se inseriu no processo de
formação/socialização/aprendizagem da companhia, passando a fazer parte dos espetáculos
e a exercer diversas outras funções na empresa.
No circo de Juve, Bambí e Zilá tiveram sua primeira filha, Ana, em 08 de junho
de 1964. Os demais filhos nasceram já com este núcleo da família radicado na cidade de
Curitiba: Adriana, em 28 de janeiro de 1968, Luciane em 15 de abril de 1969, Silvana em
21 de março de 1974 e o caçula José Amilton Pereira Junior, o Zeca, em 07 de fevereiro de
1980.
O circo de Juve resistiu até o ano de 1978 quando fechou as portas, ou melhor,
desarmou a lona, impossibilitado pelas inúmeras adversidades já citadas anteriormente
nessa dissertação, que levaram à diminuição da atividade circense no país.
Os membros da família que ainda estavam itinerando com o circo fixaram-se
também em Curitiba e passaram a trabalhar no ramo de animação de festas e teatro infantil,
criando a empresa Juve Garcia Organização de Espetáculos Teatrais.
Além da empresa, a família Garcia continuou no ramo teatral e Bambí
participou, por exemplo, da primeira encenação teatral após a reforma do famoso Teatro
Guaíra, em Curitiba, na década de 1970.
Em 1983, após sofrer três enfartes, Juve se tornou o primeiro palhaço a se
aposentar no Brasil, de acordo com testemunhas e reportagens de jornal. Porém, Juve
continuou a atuar com a empresa da família em eventos em escolas, hospitais, asilos e
festas de aniversário.
197
Figura 44: Reportagem sobre Juve Garcia no Jornal Folha do Boqueirão, Curitiba/PR, 1998.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
Portanto, apesar da família não itinerar mais com o circo, o processo de
formação artística das crianças continuou a existir, com algumas alterações, de tal forma
que os cinco irmãos Pereira – Ana, Adriana, Luciane, Silvana e Zeca – sempre estiveram
imersos no universo artístico.
Hoje, permanecem no circo, além de Zeca, as irmãs Ana e Luciane, as quais eu
tive a oportunidade de entrevistar. Ana, que usa o nome artístico Ana Dolores em
homenagem à bisavó – Dolores (Lola) Garcia –, contou:
Quando entrei na idade escolar, meu pai resolveu parar e radicar em Curitiba.
Mas daí em Curitiba a gente continuou sempre trabalhando com teatro... Fazia
festa de aniversário, fazia final de ano, visita do Papai Noel nas casas recitando
198
poesia... Eu cantava em programa de calouros... Aí a gente foi trabalhar em um
programa infantil, que tinha da família Queirolo. Daí fizemos algumas peças
infantis que ficavam em temporadas no Guaíra. Eu era pequena... sete anos... E
cantava em restaurante também, lá em Santa Felicidade. Daí fui sempre
trabalhando, geralmente com a família Queirolo e com a nossa, que era meio que
junto assim o que a gente fazia. Depois... Ah, teve vários espetáculos de
temporadas, que ficavam dois, três meses em cartaz. Aí fui pra companhia da
Regina Vogue em Curitiba. Daí já era mais adulta, mas não tinha dezoito ainda...
Aí trabalhei com o Moacir David, fiz O gato de botas, trabalhei com a Nena
Inoue lá em Curitiba, quase na mesma época. O Giovani Cesconetto lançou um
programa infantil na televisão e eu e meu primo, Mauricio Vogue, a gente fazia os
vilões. Daí fui convidada pra itinerar, mas, assim, fazendo um espetáculo em cada
cidade. Trabalhando em salão paroquial, ginásio de esporte, espaços que tinham
nas cidades. Trabalhei na companhia do Fausto Cascaes... Daí eu saí e fui pro
Gilmar Cambruzzi que é meu compadre – fiz um bom tempo, daí a gente fez Rio
de Janeiro. Quando a gente viajava, a gente viajava com dois espetáculos, um
infantil e um adulto. Não eram peças de circo de teatro, não tinha o palhaço, mas
a maioria dessas pessoas que eu trabalhava, tipo Fausto, Gilmar, o Wilson, é tudo
vertente daqui. Vertente porque eram pessoas que já tinham trabalhado e tinham
parado com o circo e pavilhão. O pavilhão do meu primo Piska-Piska também fiz
antes de vir pra cá. Daí meu pai montou um circo, bem pouco tempo, trabalhei no
circo do meu pai. Daí fui pro circo do Biriba, do Geraldo Passos, do filho. E daí
logo depois voltei pra Curitiba, fiz mais uma temporada em Curitiba e daí logo
depois o Zeca resolveu montar o circo. Quando o Zeca montou o circo, eu não
queria vir de jeito nenhum: "Não, não, eu vou ficar". Não queria mais ir pra
estrada, queria ficar em Curitiba. Fui trabalhar em telemarketing lá. Aí um dia
antes de a gente sair minha mãe me convenceu a ir, falou "Olha, eu não vou, você
é a mais velha, tem que cuidar do seu irmão, tem que ficar com ele lá e cuidar do
seu pai também". Meu pai veio e minha mãe ficou com a minha irmã em
Curitiba. Daí eu falei "Tá bom, então eu vou" 123.
Enquanto Ana percorria uma trajetória artística ligada à arte teatral, sua irmã
Adriana, de nome artístico Adriana Segatto, se especializava na área musical, compondo e
gravando CDs como cantora e Luciane se dedicava ao balé clássico. Sobre sua formação,
Luciane, que utiliza o nome artístico Luciane Rosã em homenagem ao sobrenome de
solteira de sua mãe (Rosa), em entrevista, contou:
Eu trabalhei bastante com dança. Eu fiz treze anos de balé clássico em Curitiba,
fiz oito anos com o Balé Teatro Guaíra – não a escola, mas, assim, um pouco de
um grupo fora e um pouco com o Balé Teatro Guaíra. Eu trabalhava na parte da
manhã com um e na parte da tarde com outro e à noite ia pra escola pra terminar
os estudos. Depois quando eu estava pra fazer a banca pra ser efetivada no grupo
eu não passei e fiquei, logo em seguida, grávida do Nicolas. Aí eu parei total a
dança. Daí o Zeca me convidou pra trabalhar com o grupo dele, a Zezinho
Produções e Promoções Artísticas. Só na sonoplastia e iluminação em 1998. Bem
antes disso ainda eu já tinha feito Pinóquio, que o Dimitri (seu filho) faz agora, eu
123
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
199
já tinha feito o Marcelino (Marcelino Pão e Vinho), já tinha feito a Neli
(personagem de “...E o céu uniu dois corações”) pequena nesse mesmo estilo de
trabalho, só que com o Circo Irmãos Queirolo. Então eu trabalhava com eles à
noite porque meu pai e minha mãe sempre estavam envolvidos com teatro
também, mas aí foi quando eu entrei pra dança, dos nove anos até os vinte e dois,
se eu não me engano, eu fiquei só trabalhando com dança, então não tinha
envolvimento nenhum com teatro. E eu não queria entrar no palco de jeito
nenhum com o Zeca. Daí quando estava montando o Gnomos - Uma Aventura
Encantada ele me chamou pra atuar. Eu falei "Zeca, não quero entrar no palco"...
Eu era hiper tímida, falar pra mim era a coisa mais difícil do mundo. Daí o Zeca
chegou e falou "Ó, tô precisando de uma atriz, vamos tentar, você ensaia uma
semana e se você ver que não dá, não dá, beleza”. E eu peguei e fiz naquele ano o
Gnomos pra ele e nesse ano eu fui indicada como melhor atriz do Paraná – só
indicada, né, não ganhei, mas pra mim já foi um grande prêmio! Porque não tinha
nada a ver com teatro e acabei sendo indicada. Daí eu falei assim "Então acho que
é o meu caminho agora, tenho que seguir por aí". Comecei a fazer o Gnomos e aí
já veio em seguida o Te Pego Lá Fora que eu fiz outra personagem e também
gostei muito de fazer. Daí o Zeca inventou a ideia de sair com o circo. Quando eu
trabalhava com luz e som o Nicolas era pequenininho e ele sempre seguia com a
gente em todos os espetáculos e eu falei "Ah, acho que é um bom caminho pra ele
também, já tá envolvido...", daí eu falei "Ah, topo"... E o Nicolas desde
pequenininho seguindo junto com a gente, daí eu falei "Vamos embarcar nessa!"
124
.
Zeca estreou como palhaço aos dois anos. A imersão no universo circense e
teatral no qual vive desde que nasceu pode ser significativamente compreendida através da
passagem de uma entrevista em que Zeca afirmou: “Eu pinto o rosto desde os dois anos de
idade. Toda minha família é circense, então sempre acompanhei ela desde pequeno. Nunca
decidi ser palhaço, apenas sou”125.
124
125
Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
Declaração de Zeca ao jornal O expresso - Edição Especial. Piraju, 3/07/2005, página 4.
200
Figura 45: Zeca de palhaço na infância, s.d.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet.
Zeca, então, cresceu em meio a uma família de atores e desde pequeno
demonstrava talento para a profissão.
Sua avó Lina contou em entrevista que,
certa vez, levou Zeca para tomar sorvete e que na
volta o ônibus quebrou. Os passageiros, então,
tiveram que esperar o conserto e Zeca aproveitou a
aglomeração de pessoas, que virou sua plateia, para
contar diversas piadas.
Lina narrou: “Ele deu um show. Contou
piada após piada e entreteve os passageiros. Eu não
me cabia de orgulho ao ver as pessoas se
Figura 46: Lina Garcia, avó de Zeca.
Fonte: Jornal O Eco, Lençóis Paulista, 2007
– arquivo Murillo Ramos Mello.
126
esborrachando de rir. Cheguei em casa e contei
para todo mundo da família”126.
Em 1994 Zeca, com apenas catorze
Declaração de Lina Garcia ao Jornal ECO. Lençóis Paulista, 6/01/2007, página E3.
201
anos, e a irmã Silvana fundaram a companhia de teatro Zezinho Produções e Promoções
Artísticas.
Ao longo dos anos, a companhia se destacou no cenário teatral paranaense,
sendo vencedora de quatro troféus Gralha Azul – um dos mais importantes prêmios teatrais
do Paraná – com os espetáculos O elefantinho que caiu do rabo do cometa (melhor figurino
infantil de 1998), Em busca da paz (melhor espetáculo adulto itinerante de 1998), Gnomos
– uma aventura encantada (melhor espetáculo infantil itinerante de 2000), e Te pego lá
fora (melhor espetáculo adulto itinerante de 2002).
Figura 47: Zezinho Produções e Promoções Artísticas, s.d.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
Em 1994, três dias antes de falecer, Juve, já no hospital, passou o nome do
palhaço Tubinho a seu sobrinho, Zeca, que sonhava com a vida no circo, narrada
constantemente nos encontros familiares. Em entrevista Zeca contou que o tio-avô lhe
202
disse: “Eu não tenho dinheiro nenhum para lhe dar, então a herança será meu personagem”
127
.
Até o ano de 2001, Zeca, suas irmãs e seu pai continuaram a se apresentar com
a companhia itinerante. Segundo Luciane Rosã:
O grupo saía nas cidades e voltava pra Curitiba. Saía em turnê, fazia algumas
cidades e voltava pra Curitiba. (...) Um pouquinho antes de o Zeca ter o circo, ele
fez em Araucária – não lembro o nome da cidade, mas acho que Araucária – ele
fez, num teatro, uma peça de mesmo estilo do circo. Ele de palhaço, com o Valdir
(Riccielly Lunardi) de escada, eu trabalhando com ele... E daí deu pra gente sentir
mais ou menos, né? Daí depois disso saiu com o circo. Então primeiro a gente se
preparou ali no teatro e tal e aí deu o clique no Zeca e ele disse "É isso que a
gente tem que fazer, é isso! A gente tem que montar o circo e sair!" 128.
Zeca tinha, então, apenas dezenove anos quando decidiu remontar o circo da
família. Ana Dolores narrou em entrevista as circunstâncias em que ocorreu a retomada do
circo por Zeca, o que nos dá a dimensão do tamanho de sua ousadia:
Quando o Zeca resolveu montar o circo - eu acho que o Zeca é muito ousado, ele
não tem medo de se atirar nas coisas. A gente trabalhava nesse estilo itinerante,
ele tinha uma companhia que itinerava. (...) Aí a gente tava passando por
Ararapoti e foi uma loucura o espetáculo! Daí a gente saiu pra jantar com o
pessoal da produção local, que tinha produzido o espetáculo. Daí o Zeca pegou e
falou assim "Olha, eu tô querendo trazer meu circo pra cá e fazer uma temporada,
né?”. Mas ele não tinha circo! Daí o cara falou "Não, beleza, tal... Que bom,
cultura na cidade e tal". Não lembro exatamente, mas parece que ele falou assim
"Então tá bom, daqui a quinze dias eu estreio". Isso sem ter nada! Nada! Nem um
prego! Não tinha um prego! E a gente só se olhou e falou "O Zeca é louco... não
vamos vir, né? Ele deve tá só jogando conversa fora”. Terminamos a temporada
na estrada, voltamos pra Curitiba e ele já saiu pra arrumar as coisas... É lógico
que a estrutura era de madeira, mas era uma loucura. A frente da minha casa virou
oficina e gente pintando cenário... E gente que foi atrás de uma lona barata pra
comprar, aí montou esse circo que era bem pequenininho - cabia o quê? Acho que
150 a 200 pessoas dentro ou nem isso. E estreamos no dia que ele falou pro cara
lá. (...) E a companhia era muito pequena, acho que a gente era em 9 ou 10
pessoas. O circo era do tamanho da marquise que a gente tem hoje, só que o palco
era pra fora, né? A lona era só pra plateia. O palco era uma estrutura de zinco pra
fora da lona. Uma loucura! 129.
127
Declaração de Zeca à revista ET 205 nº 850. Barra Bonita, 10/01/2008.
Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
129
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
128
203
Dessa forma, no dia 29 de junho de 2001 estreava na cidade de Arapoti/PR o
novo Circo de Teatro Tubinho, numa pequena lona de 10x16m, com o palco italiano como
área cênica e o espetáculo composto pela apresentação de uma peça teatral, às vezes
seguida de um esquete.
Figura 48: Pereira França Neto (Zeca), o atual palhaço Tubinho.
Fonte: www.tubinho.com.br
Figura 49: Primeira lona do novo Circo de Teatro Tubinho, s.d. São Francisco do Sul/SC, 02/11/2001.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
204
Figura 50: Terceira lona (primeira nova) do Circo de Teatro Tubinho, s.d.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
O fato de Zeca não ter visto o circo de sua família em atividade poderia ter
desconectado o novo Circo de Teatro Tubinho da tradição do antigo. Porém, Zeca contava
com o apoio incondicional de seu pai, Bambí, que compunha o elenco do antigo circo e que
resgatou, de sua prodigiosa memória, dezenas de peças do repertório da família.
Além disso, Zeca e suas irmãs já tinham certa intimidade com a linguagem do
circo-teatro pelas passagens que tiveram pelo pavilhão, chamado Teatro Popular de
Curitiba130, do primo da família Gilson Oliveira, o palhaço Piska-Piska. Completando o
repertório da nascente companhia de circo de teatro, havia também as peças já encenadas
com a Zezinho Produções e Promoções Artísticas.
Afora tudo isto, Zeca ainda contou com o auxílio precioso do ator Riccielly
Lunardi, que desenvolveu um papel fundamental nesse momento inicial da companhia.
Riccielly Lunardi, nome artístico de José Chaves Viana, também conhecido
como Valdir, já possuía uma extensa carreira no circo de teatro e foi responsável por passar
ao nascente elenco do Circo de Teatro Tubinho diversas peças e esquetes, levados ao palco
até hoje. Riccielly narrou em entrevista sua trajetória artística até chegar ao circo de Zeca:
130
Atualmente, Gilson Oliveira continua atuando como palhaço Piska-Piska no Circo-Teatro Piska Piska, que
percorre o sul do país.
205
Bem, eu entrei pro teatro por necessidade, por sobrevivência. Com 13 anos eu era
menino de rua em Tupanciretã, interior do Rio Grande. Por um desentendimento
de família, acabei morando na rua durante três ou quatro anos. E naquela época
passou na minha cidade um pavilhão de teatro onde eu consegui emprego pra
vender as virações lá dentro. Aí pra mim foi ótimo, nossa! Eu morava na rua,
passava fome, eu fazia pequenos furtos pra sobreviver, aquela vida de moleque de
rua. E quando eu entrei pro pavilhão foi outra realidade, eu tinha onde dormir, eu
tinha onde comer na hora certa. Aquela vida maravilhosa, cheia de gente, aquele
povo maluco, muito legal! Aí chegou a hora deles irem embora e eu caí em
prantos pedindo pra eles me levarem, né? Aí o proprietário veio até a casa da
minha mãe, conversou com ela e me levou junto. Foi a forma que eu ingressei no
teatro. E aí logo eu estava no palco fazendo os papéis de menino e tal, estreei no
Ébrio, o menino que jogava pedra nos bêbados (risos). Entrei em cena e fiquei
paralisado olhando pra plateia e dali eu fui conhecendo as outras companhias,
assistindo aqueles espetáculos da época - que hoje poucos levam. Isso há trinta e
sete anos... Daí eu fui aprendendo, com dezoito eu já fazia esses velhos de
comédia, caracterizados. E abri um bom espaço, conheci praticamente todas as
companhias do sul do país. Aí depois eu vim conhecer o teatro Biriba, em Santa
Catarina – onde trabalhei por muitos anos também. E sempre ia um pessoal de
Curitiba nos visitar, falavam "Pô, vocês têm que ir pra Curitiba, tem muito
campo, você pode fazer um teste lá e tal". Aí com o passar do tempo eu resolvi ir
embora para Curitiba, mesmo conhecendo pouca gente, né? Fui, aluguei casa,
mas não consegui sobreviver do teatro em Curitiba. Aí fui fazer outras coisas e
abri uma firma, uma empresa de teatro e aí comecei a trabalhar com projetos e
fazer espetáculos pra escolas e foi aí que eu conheci o Pereira França Neto, o
Zeca, que também fazia isso, tinha um grupo pra se apresentar em escolas e tal e
eu acabei ingressando no grupo dele. E no Natal eles faziam umas festas na frente
da casa deles onde ele pintava a cara, levava alguns esquetes e contratava shows
musicais e ele conseguia com vereadores, com pessoas influentes no bairro,
doações de presentes, doces, cestas pra dar pra crianças carentes e foi aí que pela
primeira vez a gente trabalhou junto como palhaço e escada. Ele me convidou pra
participar e a gente montou um esquete e, puxa, deu super certo, né? Gostei muito
do palhaço dele e aí ele bem novinho ainda. E aí a gente começou a fazer uns
trabalhos juntos, tipo show em pizzaria (risos) e ele de palhaço. Verdade! Tinha lá
uma pizzaria inaugurando, eu ia lá e arrumava um contrato pra gente e era por
pizza (risos). Mas era divertido. E aí logo naquele mesmo ano ele monta um
circo. Aí ele foi lá em casa e falou "Puxa, Riccielly, comprei um circo" e eu falei
"É mesmo?", "E quero que você vá fazer palhaço pra mim". Aí eu lembro que eu
falei pra ele "Cara, palhaço tem que ser o proprietário do circo. Digamos que eu
aceite e faça o palhaço pra você, amanhã ou depois eu vou embora e o nome que
tá lá na frente desanda, né?” Mas ele falou "Puxa, eu não tenho experiência toda
pra manter uma companhia, pra ir a frente com um espetáculo. Você vai
comigo?". Como eu tinha minha vida em Curitiba eu falei "Olha, eu faço a
primeira praça com você”, que era Arapoti. “Eu faço a primeira praça, pra você
pegar um pouco de experiência, passar o que eu sei e daí”... Bom, eles foram na
frente, montando, e eu cheguei dois dias antes da estreia. Eu lembro que era em
frente a rodoviária, daí eu desci do ônibus e olhei pro outro lado da rua e fiquei
espantado, eu disse "Meu Deus!" (risos). O circo era tão pequeno que o palco
ficou pra rua (risos). Teve que jogar pra rua porque senão não cabia a plateia. Era
muito pequeno mesmo. Eu chuto em 150 lugares, eu acho. Ah, tudo bem, foi uma
luta, começamos ensaiar as comédias e foi tudo muito bem, porque estreamos e a
temporada toda foi lotada. Aí como combinado, eu voltei pra Curitiba, até então
206
eu tinha deixado minha família lá, né, minha esposa e as crianças tudo. Voltei pra
Curitiba e ele seguiu em frente. E eu também não fiquei muito tempo em
Curitiba, eu acabei separando e tal e ficou difícil, eu fiquei com os quatro filhos e
tal. “Puxa, como que eu fico em Curitiba com quatro crianças pequenas, como
que eu saio pra trabalhar?” Fiquei meio desarmado, sem chão, falei: "Circo
teatro! Que é mais fácil criar os filhos”. Acabei voltando pra Santa Catarina e lá
montei na época com um amigo o Circo Teatro Bolinha, onde eu fazia o palhaço
Bolinha e isso foi por cinco anos. Aí o Zeca começou a me ligar "Poxa, vem pra
cá, tô precisando de um escada e tal". Aí na época não deu, porque eu não tinha
como largar a companhia que eu estava, mais um ano e aí eu acabei chegando em
Avaré. E tô até hoje 131.
Zeca, Ana Dolores, Luciane Rosã e também Riccielly Lunardi possuíam
experiências anteriores com companhias de circo-teatro do Sul do país, de modo que o
Circo de Teatro Tubinho, apesar de percorrer atualmente o interior do estado de São Paulo,
acabou por advir dessa espécie de “escola sulista” de circo-teatro, que se autodenomina
circo de teatro.
A semelhança existente nas caracterizações dos palhaços – que pode ser
conferia abaixo – em consonância com diversos elementos da dramaturgia, encenação e
interpretação dos atores acabaram por conformar certa linguagem e estética que
caracterizam esta “escola”. Abaixo, de cima para baixo, da esquerda para direita temos os
palhaços Teteco Teleco (Vanderlei Machado), Tubinho (Pereira França Neto), Piska Piska
(Gilson Oliveira), Bebé (Renato Almeida), Bileco (Silvio Moreno), Serelepe (Marcelo
Almeida) e Biribinha (Franco Adriano Passos):
131
Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
207
Figura 51: Os palhaços Teteco Teleco, Tubinho. Piska Piska, Bebé, Bileco, Serelepe e Biribinha.
Fonte: Página de relacionamento de Morgana Lunardi na internet.
Na primeira temporada em Arapoti, o Circo de Teatro Tubinho contava com o
seguinte elenco: Pereira França Neto (Zeca), seu pai Bambí, suas irmãs Ana Dolores,
Luciane Rosã e Silvana Rosa, seu sobrinho Nicolas Alexandre e seu primo Jailson Martins;
além de Ricciley Lunardi, Hélio de Aquino, Priscila Aquino, Samira Esber e Antônio
“Vermelho”.
208
Figura 52: O elenco do Circo de Teatro Tubinho (com exceção de Bambí, Silvana Rosa e
Jailson Martins) em sua primeira praça em Arapoti/PR, 2001.
Fonte: Jornal Folha de Londrina - arquivo Murillo Ramos Mello.
Figura 53: Primeiras praças do Circo de Teatro
Tubinho, s.d.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
Figura 54: Bambí, pai de Zeca, nas primeiras
praças do circo, s.d.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
209
Figura 55: Primeiras praças do Circo de Teatro Tubinho, s.d.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
Figura 56: Primeiras praças do Circo de Teatro Tubinho, s.d.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
210
Nas primeiras praças os artistas ainda não possuíam trailers e carretas para
morar; dessa forma, alugava-se uma casa em conjunto na cidade onde o circo se estabelecia
e os cômodos eram, muitas vezes, divididos apenas por lençóis.
Mesmo com a estrutura relativamente simples, o Circo de Teatro Tubinho
continuou dando seus primeiros passos até que, no início de 2002, na cidade de Timbó/SC,
um temporal o destruiu por completo. Ana Dolores narrou:
Em Timbó, antes da gente perder tudo, a gente pegava temporal assim, de três em
três dias... E caía, o circo caía, porque o circo era de lona leve. A estrutura não
segurava, qualquer vento derrubava. E ele derrubava e cinco horas da tarde a
gente ia pro terreno, levantava ele e trabalhava as nove. Eu lembro que o primeiro
temporal que a gente pegou em Timbó foi um dia depois da estreia. A gente tava
ensaiando à tarde e a gente só viu o circo levantar e corre todo mundo. A gente
saiu pra fora do circo, eu lembro do elenco todinho no outro lado da calçada, todo
mundo chorando porque a gente tinha... Super “punk” assim pra montar, porque a
gente não tinha muito feeling ainda de saber, então demorava mais pra montar. A
gente tava mesmo num aprendizado de tudo, desde montagem, desde tudo. (...) E
daí eu lembro do elenco todinho chorando do outro lado da rua e vendo o circo
cair, tipo... "Não vai dar pra trabalhar à noite, né?", daí um olha pro outro e
"Vamos trabalhar, vamos pegar". E levantava, costurava a lona na mão. A gente
colocava a lona no colo, assim, e ficava aquela fila, todo mundo costurando a
lona, pra por pra cima de novo. Mas daí a gente pegou um temporal e não teve
jeito, perdeu tudo, tudo, tudo... Não sobrou nem cadeira 132.
O Circo de Teatro Tubinho não tinha condições de seguir em frente e a única
alternativa restante era voltar para Curitiba, porém não havia recursos nem para isso. Ana
Dolores completou:
Aí quando caiu tudo em Timbó, o dono das lavadoras Mueller passou na frente do
nosso circo e ele tinha amizade com a família Moreno há tempos atrás, quando
ele viu o circo dos Moreno, sabe? Ele gostava muito de circo e tal, daí ele falou
que era pro Zeca ir até a firma dele que ele queria falar com ele. Daí o Zeca foi lá,
aí o dono da Mueller falou "Olha, eu não sei o que eu posso fazer pra ajudar, mas
eu vou te dar esse cheque pra você comprar uma lona nova". Aí o Zeca pegou o
cheque e começou a ligar pras pessoas pra ver o preço de lona e tal. E o valor não
dava, o valor do cheque não dava pra comprar a lona. O Zeca voltou na Mueller e
foi devolver o cheque pro dono e o Zeca falou "Olha, você me deu esse cheque
pra eu comprar a lona e não vou conseguir. Então eu não acho justo eu ficar com
o cheque"... E foi devolver. Aí o dono da Mueller falou "Eu tenho anos de firma,
eu nunca vi alguém fazer uma coisa dessas. Então você vai pegar esse cheque e
132
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
211
vai fazer o que quiser com ele". E daí foi com esse cheque que a gente conseguiu
sair de Timbó e trazer o material pra Curitiba, mudança de casa, tudo. (...)
Voltamos pra Curitiba, daí o Zeca reuniu o elenco do circo e falou "Ó, não tenho
grana. Tô quebrado, mas quero voltar com a lona. Então eu vou sair e fazer
espetáculo nas cidades onde a gente passou, em ginásio, salão de igreja, pra juntar
grana pra pagar a lona. Mas eu não tenho como pagar o cachê de vocês, eu vou
pagar o cachê de vocês só quando estrear o circo”. E assim, rezando pra dar certo,
né? Na primeira praça que a gente fez, ele já conseguiu pagar todo mundo e
conseguimos comprar a lona, levantar de novo e daí foi indo, foi indo, até ficar na
estrutura que tá aí, graças a Deus 133.
Depois da primeira lona destruída em Timbó que, de tão pequena, não abrigava
nem o palco, Zeca conseguiu adquirir uma lona usada de 18x16m. O circo começou a
prosperar e comprou-se, então, uma lona nova de 18x24m, seguida de uma de 20x26, outra
de 18x24, mais uma de 20x26 e uma maior de 20x30.
Esta última (mostrada nas figuras abaixo) era quadrada e alta, de modo que o
som se dispersava facilmente, atrapalhando o entendimento das falas dos personagens por
parte do público e prejudicando o aparelho fonador dos artistas. Por isso, Zeca optou pela
troca por outra lona, também de 20x30m, porém redonda e mais baixa.
Figura 57: Interior da antiga lona do Circo de Teatro Tubinho, 2007.
Fonte: http://www.saoroque.sp.gov.br/noticias/noticia.asp?id=869. Acesso em: 13 set. 2013.
133
Ibidem.
212
Figura 58: Antiga lona do Circo de Teatro Tubinho, 2008.
Fonte: http://www.panoramio.com/photo/26804236. Acesso em: 13 set. 2013.
Uma curiosidade: durante a minha primeira visita da pesquisa de campo ao
Circo de Teatro Tubinho, atuei na peça Tubinho na Casa do Nenonho e durante uma cena
com a temática da paquera, Zeca, como Tubinho, fez uma piada que comparava as medidas
da silhueta de minha personagem a um carro (“18x24, carroceria frouxa e buzina dupla”).
Após o espetáculo, Zeca contou que esta é uma piada comum entre os circenses e que,
segundo a tradição, essas medidas descritas são consideradas como o tamanho ideal de uma
lona de circo-teatro.
A atual lona do Circo de Teatro Tubinho tem 20x30m e abriga seiscentos
espectadores. Zeca disse que prefere a lona considerada do tamanho ideal, porém utiliza
uma maior devido ao grande número de espectadores presentes todas as noites.
Além disso, na entrada do circo há uma lona menor, de 10x16m, chamada por
eles de marquise. Essa lona, que hoje comporta apenas a lanchonete, tem exatamente o
mesmo tamanho da primeira lona do circo destruída em Timbó/SC, o que nos dá a
dimensão do crescimento da companhia ao longo desses anos.
213
Figura 59: Circo de Teatro Tubinho. Boituva, 2013.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Figura 60: Circo de Teatro Tubinho. Boituva, 2013.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
214
Figura 61: artistas lavando a atual lona do Circo de Teatro Tubinho. Boituva, 2013.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Figura 62: interior da atual lona do Circo de Teatro Tubinho. Boituva, 2013.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
215
Assim sendo, ao longo desses treze anos, o circo prosperou significativamente e
hoje é formado por uma grande família de, aproximadamente, cinquenta pessoas, entre
adultos e crianças.
O tamanho do elenco cresceu de tal forma que, para conseguir a foto abaixo,
Zeca e eu tivemos que marcar um horário especialmente para isso, que acabou se
transformando numa cena digna das melhores comédias da trupe: sempre estava faltando
alguém no palco, pois quando o que estava faltando chegava, outro tinha saído por algum
motivo! Depois de muitas risadas e correrias consegui, finalmente, fotografar o atual elenco
do Circo de Teatro Tubinho e registrar o crescimento da companhia desde a primeira praça
em Arapoti/PR:
Figura 63: atual elenco do Circo de Teatro Tubinho. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Atualmente, o repertório da companhia conta com mais de cem peças, já vistas
por um público superior a um milhão de pessoas. Todas as noites uma peça diferente é
216
apresentada – com exceção de quarta-feira, o dia de folga da companhia –, em um
programa de duração média total de duas horas.
Ao longo dos anos, o Circo de Teatro Tubinho transitou entre os mais diversos
meios de comunicação e empreendimentos, de modo que Tubinho lançou CD, livros de
piada, ganhou seu próprio boneco e sua série de histórias em quadrinhos, um programa
semanal na emissora SBT e chegou aos cinemas, na produção independente Tubinho, o rei
do gatilho.
Em 2014, o Circo de Teatro Tubinho bateu seu recorde de tempo de
permanência numa mesma cidade, ao fazer uma praça de oito meses na cidade de
Sorocaba/SP.
Figura 64: Zeca em Senta que o Tubinho vai entrar. Sorocaba, 2014.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet.
3.2 Processo de formação dos artistas do Circo de Teatro Tubinho
O Circo de Teatro Tubinho, assim como tantas outras companhias circenses,
possui um elenco múltiplo, agregador de artistas advindos das mais variadas “escolas”.
Alguns destes artistas, descendentes de família circense, já possuíam experiências
217
anteriores no circo de teatro, outros não eram de circo, mas já eram atores com uma
formação ligada ao teatro oficial e outros ainda não tinham nenhuma formação artística e
resolveram seguir com o circo após a passagem deste pelas suas cidades. Isso sem contar a
nova geração formada pelos filhos de todos esses artistas, entre crianças, jovens e
adolescentes.
Porém, apesar de advirem dos mais variados meios, ao se inserirem nesta
companhia, estes artistas passaram a participar de um mesmo processo de formação e de
um modo específico de organização do trabalho.
Com relação ao modo de organização do trabalho, destaco que, no início do
Circo de Teatro Tubinho, como o elenco era pequeno e as adversidades grandes, todos
aprendiam e executavam as mais variadas funções necessárias à sobrevivência da
companhia.
Hoje, após muitos anos de dedicação e trabalho, como a família cresceu
significativamente, todos continuam aprendendo essas funções, porém a companhia
conseguiu se organizar de tal forma que estas se tornaram mais específicas.
Dessa forma, há responsáveis pela organização e limpeza das cadeiras da
plateia, pela organização e distribuição dos figurinos, pela montagem dos cenários das
peças, pela produção e venda das comidas e bebidas na lanchonete, pelas refeições do
elenco, pela propaganda com o carro de som, etc. Há essa divisão, porém, se for necessário,
todos podem executar qualquer uma dessas funções. E mais: na hora do espetáculo todos os
adultos trabalham, seja no palco, lanchonete, bilheteria, estacionamento ou na loja onde se
vende produtos do circo, como canecas, camisetas, DVDs, CDs e livros.
Quanto ao processo de formação artística empreendido pela companhia, devo
destacar alguns pontos. Com relação à família consanguínea de Zeca, ressalto que este
processo é anterior à retomada do circo em 2001, isto porque Zeca e suas irmãs cresceram
em meio a uma família de artistas circenses que, apesar de não itinerar mais com a lona,
nunca parou de atuar nos mais variados ramos e meios artísticos.
Portanto, parte do processo da formação artística desenvolvido anteriormente
no circo da família manteve-se, fazendo destes membros, que retomaram o circo em 2001,
depositários de alguns dos saberes das gerações mais antigas.
218
Porém, apesar de estarem sempre envolvidos no meio artístico, Zeca e suas
irmãs – com exceção de Ana Dolores – não conheciam tão especificamente as chamadas
peças tradicionais de circo-teatro, que integravam o repertório do circo da família. Eles já
haviam tido alguma experiência nesse sentido com o circo de teatro do primo Gilson
Oliveira, o Piska-Piska, porém para montar um circo próprio era preciso mais.
Dessa forma, neste início do circo, a ajuda e a troca mútua de experiências entre
todos os artistas foram fundamentais para a consolidação da companhia, sendo Zeca a
figura artística e administrativa centralizadora e seu pai Bambí, sua irmã Ana Dolores e
também Riccielly Lunardi os principais responsáveis pela transmissão dos ensinamentos
necessários à cena e à vida circense.
Nesse sentido, como já dito anteriormente, Riccilley Lunardi desenvolveu um
papel fundamental neste processo, ao ser responsável por passar para os atores diversas
peças que integram até hoje o repertório da companhia. Além disso, ele auxiliava, sempre
que necessário, os atores em suas interpretações, assumindo a função, segundo Luciane
Rosã, de uma espécie de diretor teatral. Ela também contou em entrevista:
Quando o Zeca montou em Arapoti quem dirigia as peças era o Valdir, o Ricciley
Lunardi. Então como ele dirigia as peças, eu sempre trocava muita figurinha com
ele, e ele falou "Ó, segue por esse caminho, vê o que é melhor aqui, tenta fazer
assim, tenta fazer assado", ele que me dava mais ou menos a... Porque a Ana, ela
já vinha com uma bagagem de espetáculos e o Zeca também tava começando,
então eu ficava pensando assim "Puxa vida, se eu chegar e perguntar pra Ana...",
ela tá pegando os papeis mais “fodex” 134 que tinham, tipo as velhas caricatas e
pra ela também era tudo novo nesses personagens novos, né? E eu não queria,
tipo, atrapalhar o trabalho deles que eles tavam tendo com outros personagens
deles pra eu chegar e "E daí, como que é e tal?". Então como o Valdir já tinha
uma puta bagagem trabalhando e tal e tava dirigindo os espetáculos, achei que ele
era a pessoa mais indicada pra me ajudar. E ele me deu um norte, assim, norte,
sul, leste, oeste... Foi ele que abriu minha cabeça me mostrando que era possível
eu fazer os personagens que eles tavam me dando e o Valdir me deu todos esses
caminhos pra poder trabalhar. Eu agradeço muito o Valdir. Claro que sempre
quando tinha alguma coisa que o Valdir não podia ajudar, a gente trocava
figurinha também com os outros atores, com a Ana mesmo, com o Zeca mesmo.
E o Zeca sempre falava bastante coisa "Faz isso, faz aquilo" e daí eu sempre
pesquisando também, tentando me ajudar também, porque era tudo muito novo
pra mim 135.
134
135
Bordão criado por Zeca, como Tubinho, usado comumente no dia-a-dia do circo.
Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
219
Figura 65: Luciane Rosã como Cinderela em Cinderela. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Riccielly Lunardi, em entrevista, contou que o que mais lhe chamava a atenção
nesse início do circo, e que o emociona até hoje, eram a vontade, a garra e a determinação
de todo o elenco:
O Pereira França Neto mesmo, ele não conhecia as piadas, as comédias. Mas,
puxa! O que tu passava pra ele, fazia na hora e tal. E eu e a Ana, digamos que
tínhamos mais experiência. A Ana já tinha passado por várias companhias
também e já tinha tido esse contato com o circo-teatro, né? E eu a vida toda!
Então, puxa, eu tive o prazer, a honra de ver vários atores, que hoje já não estão
entre nós, né? Então eu via cada um, então eu tinha essa bagagem farta de
experiência que eles me passaram ao longo desses anos - que eu fui passando pro
Pereira França Neto. Tinha comédias que eu tinha que puxar a piada dele, puxar a
piada, fazer a volta rapidinho por trás dele e sussurrar pra ele o desfecho no
ouvido (risos). Mas era muito divertido e funcionava muito bem! 136
136
Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
220
Figura 66: Riccielly Lunardi em Tubinho e todo mundo em pânico. Itapetininga, 2015.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Além de Riccielly Lunardi, Ana Dolores também desenvolveu um importante
papel na formação do Circo de Teatro Tubinho, pois era a irmã mais velha da família
Pereira e a única a nascer no antigo circo da família, estando inserida completamente
durante alguns anos da infância no processo de formação/socialização/aprendizagem
daquela companhia. Em entrevista, Ana narrou:
Eu nasci no terreno, porque não deu tempo de ir pra maternidade. A primeira vez
em que eu subi no palco... A minha primeira entrada em cena fazendo
personagem foi com uma semana no Direito de Nascer... E daí eu não parei mais,
né? 137
Depois da família se radicar em Curitiba, Ana Dolores continuou a trabalhar na
área teatral e foi uma das pessoas da família que mais teve contato com a linguagem
especificamente do circo-teatro, com as companhias de Gilson Oliveira, o palhaço Piska
Piska, e de Geraldo Passos, o Biriba. Dessa forma, Ana Dolores foi uma das responsáveis
por transmitir os ensinamentos necessários à cena e à vida no circo, tanto aos adultos
quanto às crianças que passavam a integrar o elenco da companhia.
137
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
221
Figura 67: Ana Dolores e Zeca em Tubinho, o macumbeiro de Sorocaba. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Em entrevista, Angelita Vaz, esposa de Zeca, citou a importância de Ana em
sua formação. Angelita não é de família de circo, mas fazia teatro desde a adolescência. Em
1996, ao fazer um estágio de um curso profissionalizante de atores como contrarregra no
Teatro Guaíra, em Curitiba, conheceu Dona Zilá, mãe de Zeca, que trabalhava no teatro
como camareira.
Dessa forma, Angelita convidou Zeca, que já tinha a empresa Zezinho
Produções e Promoções Artísticas, para trabalharem juntos na animação da festa de
aniversário de um primo. Logo depois, Zeca trabalhou com seu primo Gilson Oliveira e, em
seguida, montou seu próprio circo.
Em 2001, Angelita estava cursando a faculdade de Arte e Educação e, como
estava de férias, resolveu visitar o amigo Hélio de Aquino, que trabalhava no circo de Zeca.
Nesse momento, Zeca precisava de uma atriz para seu elenco e Angelita acabou
participando de algumas peças. Porém, a praça que Angelita atuou foi justamente a de
Timbó/SC, quando o circo foi destruído por um temporal. Todos voltaram para Curitiba e,
quando Zeca resolveu recomeçar, Angelita trancou a faculdade e seguiu com a companhia.
222
Porém, nesse primeiro momento, enquanto se inseria no processo de formação e
aprendizagem da companhia, Angelita – assim como ocorre com muitos outros recémingressos na vida circense – não começou a trabalhar no palco, e sim em outras funções,
como na cozinha e bilheteria. Em entrevista, Angelita contou como se deu o início dos
trabalhos como atriz no circo e de que modo Ana Dolores lhe auxiliou nesta nova vida:
Angelita Vaz: Na hora que o Zeca montou o circo de novo eu resolvi voltar.
Tranquei minha faculdade e voltei. Assim pros meus pais na época foi terrível.
Não tinha nada. Era muito precário. A gente dormia todos juntos. Chegava a
separar tudo por lençol, sabe? Era tudo muito precário, então, meu pai
principalmente falava assim “Você tá estudando, vai se formar, vai pegar um
diploma, tal. Porque você tá passando por tudo isso? Não precisa!”. Porque na
época, nem no palco eu trabalhava, eu ficava trabalhando na cozinha.
Fernanda Jannuzzelli: E o que te fez voltar?
Angelita Vaz: (...) Acho que foi um encanto entendeu? Eu me encantei assim,
porque apesar de ser tudo tão difícil, o que me fascinou, eu como fazia teatro,
quem faz teatro e vem pra cá fica fascinado, você poder trabalhar todo dia num
espetáculo diferente. Um lance de você querer mudar. Quem trabalha com teatro
tem isso mesmo. Mas a minha intenção, na realidade, não era ficar. Era passar um
tempo, ver qual que era a do trabalho. Normal assim. A minha intenção era passar
um tempinho e depois voltar, retomar minha faculdade, enfim. Então eu acabei
ficando. Tinha poucas pessoas, então, por exemplo, eu ficava na cozinha, eu fazia
porta, ficava na bilheteria, depois corria lá pra trás, aí subia em um esquete ou
outro. Na época eu adorava esquete porque eu sabia que era a única hora que eu
podia trabalhar, sabe? Mas por quê? Como eu tinha chego naquele momento, eu
não conhecia os espetáculos... (...) E com o tempo eu comecei a ganhar peças,
porque o Zeca sempre brincou assim: em time que tá ganhando, não se mexe.
Então o circo tava caminhando bem... Você que tá acompanhando o circo, Fer,
pode ver, dificilmente ele muda o ator que faz os personagens. Só que às vezes
acontece de um ator substituir outro, porque um tá doente ou porque teve de
viajar. Os meus personagens eu consegui ir conquistando nessas andanças assim.
“Ah, fulano não tá se sentindo bem”. “Ah, põe a Angelita pra substituir”. E isso
acontece até hoje. O Zeca dá a oportunidade. Se a pessoa foi bem, puxa vida!
Esse ficou bem, aí fica no personagem, pode ficar. Então foi isso que acontecia
sabe, foi mesmo de oportunidade. (...) E quem me ajudou muito, muito mesmo
assim, tem que falar “muito” muitas vezes, foi a Ana. Eu pegava a Ana pra me
ajudar com o texto, com o personagem e ela pra dar essas dicas de tudo! Tudo
que você pode imaginar! Até pra maquiagem. E toda vez que terminava o
espetáculo, eu chegava nela e falava “Como foi?” Ai ela falava “Ó, você errou
nisso, naquilo você acertou”. Nossa, sem a Ana... A Ana ajudou muito, muito
quem tava começando. Porque ela já tinha uma estrada né? E o Zeca não tinha
muito esse perfil. Ele se preocupa ali em cena sabe, em pensar em fazer piadas...
Ele não tem muito esse perfil de pegar um ator e ensaiar... E a Ana já tem mais
esse perfil. Então ela me ajudou muito mesmo. Muito do que eu aprendi aqui eu
devo a ela. 138
138
Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
223
Hoje, Angelita Vaz trabalha quase todas as noites no palco, assumindo os mais
diversos papéis que servem de escada ao palhaço. Além disso, é responsável por toda a
parte financeira e administração interna do circo, além de ser a esposa de Zeca e cuidar de
seus quatro filhos, Victor, de seu primeiro casamento, Alexandre e Lívia, do casamento
com Zeca e Maria Eduarda, sua enteada.
Figura 68: Angelita Vaz e Jailson Martins Tubinho, o Todo Poderoso. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Acerca ainda do papel de Ana Dolores na formação dos artistas do Circo de
Teatro Tubinho, cito também o exemplo de Cristina Martins, que não era de família de
circo e conheceu seu marido Dionísio Martins – primo de Zeca – aos quinze anos. O casal
trabalhou por dois anos no circo de Gilson Oliveira e, após alguns anos morando em
Curitiba, em 2002 passou a integrar o elenco do Circo de Teatro Tubinho. Cristina contou
então, em entrevista, sobre o auxílio que recebeu de Ana:
Nos primeiros meses eu ainda não trabalhava muito. Aí depois fui entrando aos
pouquinhos, pegando o jeito, todos ajudavam, ensinavam, os ensaios ajudavam
muito. E aí fui aprendendo um pouco. A Ana, a Ana sempre me ajudava bastante.
E sempre dizia pra eu, no palco, esquecer Cristina e ser a personagem mesmo,
viver a situação, viver a história, sentir a personagem... Falar sempre com
verdade, acreditando no que eu tava falando, no que eu tava dizendo, a situação
que eu tava vivendo. Era isso que ela falava bastante. E dizia pra mim sempre que
a melhor forma de aprender era o bastidor. Sempre olhando tudo e vendo tudo,
224
nunca pensando assim: "Ah nem vou assistir a peça hoje, nem vou prestar atenção
nessa personagem porque nunca vou fazer", porque quando você menos esperar
um dia cai pro teu lado! E é verdade, acontecia isso mesmo. (...) Observando,
acho que a gente aprende muito. 139
Figura 69: Cristina Martins e o filho Caio em Obrigado, Sorocaba. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Além de ter participado ativamente do processo de formação e aprendizagem
dos artistas adultos que se integraram ao circo, Ana Dolores, juntamente com sua irmã
Luciane Rosã, também se dedicou, e continua se dedicando, a ensinar as gerações mais
novas.
A primeira criança a itinerar com o Circo de Teatro Tubinho foi Nicolas
Alexandre, o primogênito de Luciane. Mãe e filho estão no circo desde a estreia em
Arapoti/PR, sendo que Nicolas estreou nos palcos aos onze meses, quando a família ainda
possuía a companhia itinerante Zezinho Produções e Promoções Artísticas.
Segundo Luciane, a companhia havia se apresentado na cidade de Araucária-PR
e, em homenagem a Zeca, Nicolas entrou em cena – ainda com o andar cambaleante de
uma criança que dá seus primeiros passos – vestido igual ao palhaço Tubinho.
139
Cristina Martins em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
225
Figura 70: Zeca como palhaço Tubinho e Nicolas Alexandre, aos quatro anos, como
Tubinhozinho, 26/01/2012.
Fonte: Jornal do Médio Vale – arquivo de Murillo Ramos Mello.
Desde então, Tubinhozinho – como é chamado o personagem mirim – passou a
aparecer em diversos espetáculos, geralmente infantis, sendo interpretado por Nicolas até
os onze anos. O segundo Tubinhozinho da família foi seu irmão Dimitri e hoje o
personagem é interpretado pelo primo Alexandre, filho de Zeca e Angelita.
Sobre os primeiros anos de vida de seu sobrinho Nicolas Alexandre, Ana
Dolores narrou, em entrevista, diversas passagens que mostram como o processo a
formação artística de Nicolas se deu desde muito cedo:
A gente via que as brincadeiras dele, quando era bebê... Com um ano e três meses
ele pintou a cara de palhaço e já fez esquete com o Zeca. Eu, na minha
concepção, eu falei "Não tem jeito... já foi mordido”. E foi quando a gente
montou um espetáculo que foi Faroeste Caboclo que o meu pai tinha um
monólogo no começo do espetáculo. E era muito grande o texto que o meu pai
dava. E o Nicolas devia ter uns quatro anos e ele assistiu todos os ensaios e tal...
Daí depois da estreia ele chegou pro meu pai e falou "Vô, você esqueceu uma fala
no começo". Daí o pai falou "Esqueci? Qual?". E ele falou "Peraí, deixa eu
226
lembrar" e ele deu o monólogo inteirinho do meu pai e falou "Ah, aqui você
esqueceu!". E eu falei "Ah, já era, aí já era, já era". E, assim... Ele viajava com a
gente, ele era bebê e tinha cenas em que tava todo mundo em cena e ele ficava
sozinho. E ele não entrava em cena... A gente comprou uma cadeira pra ele,
dessas cadeirinhas de praia pra criança e era a montagem dele. Ele chegava,
montava a cadeirinha dele e ele assistia na coxia sentadinho na cadeira. Quando a
gente itinerava, no fim a gente entrava pra cumprimentar e o Zeca colocava o
Nicolas pra cumprimentar e apresentava ele como assistente de palco, sabe? Daí
quando a gente veio pro circo aí ele não entrava pra cumprimentar. E daí quando
fechava a cortina, antes do nosso cumprimento, ele sempre entrava atrás do sofá,
ele ficava escondido atrás do sofá e cumprimentava atrás do sofá. Era muito
louco. Daí quando a gente foi montar O Casamento do Tubinho, foi distribuir
papel, daí o Riccielly passando a contra-regragem falou "Ai, precisa de um
penico". Aí o Nicolas falou pro Riccielly "Tio, posso fazer o penico?". (risos) Aí
a gente colocou ele na comparsaria do Casamento. Daí ele falou "Mãe, posso pôr
um bigode?". Aí a gente colocava ele pra fazer comparsaria e ele criava
personagem sempre. Sabe? E no Marcelino ele dava o texto inteirinho! E
certinho... Ele não falava errado, o Nicolas foi uma criança que ele não falou
errado, muito pouco. A única coisa que ele falava errado era "compreender" que
ele falava "compeender". Então ele dava o texto todinho certo e as pessoas
ficavam assim e aí quando ele dizia "Eu não consigo compeender" a plateia ia
abaixo... Era muito louco, muito louco. 140
Esse
constante
processo de
aprendizagem
de
Nicolas, empreendido
principalmente pela sua mãe Luciane, permitiu que ele estreasse com apenas quatro anos o
seu primeiro drama, Marcelino Pão e Vinho, sendo que o espetáculo tinha uma hora e meia
de duração e ele interpretava o protagonista que dá nome à peça. Sobre essa passagem,
Zeca contou:
Fernanda Jannuzzelli: Zeca, eu vi uma reportagem com o Nicolas com quatro
anos fazendo o Marcelino. Ele tinha texto, ele falava?
Zeca: A peça toda.
Fernanda Jannuzzelli: Com quatro anos?
Zeca: A peça inteira. Tinha uma hora e meia de espetáculo.
Fernanda Jannuzzelli: Como? (risos).
Zeca: Então... Quando eu falei “Eu queria montar o Marcelino”, a Luciane falou
"Eu ensaio o Nicolas". E eu falei assim "Lu, ele ta com quatro anos... É muito
pouco." E passou. Aí chegou um dia ela me chamou no palco "Zeca vem cá”. Eu
sabia o Papinha (um personagem da peça) de cor, porque eu fazia o Papinha
antes. “Passa o Papinha com o Nicolas”. E ele passou de ponta a ponta decorado.
141
140
141
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
227
Figura 71: Reportagem sobre a peça Marcelino Pão e Vinho, protagonizada por Nicolas aos
quatro anos, 2002.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
Hoje Nicolas Alexandre tem dezesseis anos de vida e quinze de carreira e atua
com tamanha verdade, força e energia que seu desempenho no palco chama a atenção de
qualquer um. Em entrevista, Nicolas contou um pouco sobre sua infância no circo e sobre o
modo como lhe foram transmitidos os ensinamentos da família:
228
Eu lembro que a gente fazia bastante ensaios, quando era comigo né? E eu
sempre assistia todos os ensaios e espetáculos, mesmo que eu não trabalhasse no
espetáculo, eu estava sempre nos ensaios, assistindo, assistindo eles fazendo. Na
hora do espetáculo, em vez de eu ficar em casa, eu vinha aqui para trás do palco,
eu sempre assistia bastante os ensaios. Eu não me lembro muito bem assim, mas
eu lembro que a minha mãe me pegava com o texto, e passava, e passava e
passava, sempre assim. Então, como já faz tanto tempo que eu tô aqui no circo,
eu meio que já sei as peças todas de cor. E minha mãe e a tia Ana iam falando as
coisas básicas mesmo. Nunca ficar de costas pra plateia, tentar não esquecer o
texto, como que eu posso dizer? Não deixar em branco tudo, não deixar em
silêncio, aquele negócio do improviso, de não deixar as coisas passarem em
branco, várias coisas assim. A maioria das coisas que eu aprendi, foi mesmo
olhando eles, me inspirando bastante no que eles fazem, no jeito que eles fazem.
Então, como eu não trabalho em todos os espetáculos, eu aprendo muito vendo
eles fazendo mesmo. Ai você vai decorando piada... Tanto é que tem texto que eu
nunca fiz, mas eu sei de cor, de tanto assistir. 142
Figura 72: Nicolas Alexandre como Burro em A orquestra dos bichos, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
A segunda criança a itinerar com o circo foi Cristian Bryan, filho de Dionísio e
Cristina Martins. Tito, apelido carinhoso dado a Cristian, hoje com vinte e um anos, entrou
para o circo em 2002, com nove anos. Em entrevista contou que chegou numa segundafeira e na quarta já estava no palco, mesmo sem nunca ter atuado, pois Nicolas, a única
142
Nicolas Alexandre em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
229
criança até então, estava com catapora. Em entrevista, a mãe de Tito, Cristina Martins,
contou como se deu a formação do filho ao longo dos anos:
Eu, da minha parte, eu sempre dizia pra ele ter humildade, sempre ouvir o que as
pessoas tinham a dizer. Porque adolescente, geralmente, é muito deslumbrado
com tudo, ele assiste e fala "Ah, eu faria melhor". A gente quando é novo é meio
descabeçado assim, e se acha, mas chega na hora e acaba não fazendo nada.
Então, eu dizia pra ele "Tenha bastante humildade sempre, ouça o que as pessoas
tem a dizer”. Às vezes vem três ou quatro, cada um dar opiniões diferentes, então
precisa dar uma peneirada, ver o que cabe mais pra esse personagem, daí você
faz. Mas, sempre falei pra ele isso... "Preste atenção em tudo, busque vozes pros
personagens, maneiras diferentes”, porque como cada dia é um personagem
diferente, então você acaba tendo que buscar uma identificação pra cada um deles
143
.
Figura 73: Cristian Bryan, o Tito, como Aladin em Aladin, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Depois de Nicolas e Tito muitas outras crianças nasceram ou passaram a viver
no circo com suas famílias. Do que pude observar, percebi que o processo de formação e
aprendizagem delas ocorre não de maneira unificada, mas sim de acordo com a vontade e o
rigor de cada pai. Porém, acredito que esta formação mais “dispersa” também está
143
Cristina Martins em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
230
diretamente ligada ao fato da arte teatral não possuir uma técnica tão específica quanto a
prática acrobática, por exemplo.
Dessa forma, Luciane Rosã, por exemplo, continuou o processo de formação
empreendido com Nicolas também com o segundo filho, Dimitri Augusto, hoje com dez
anos. E o resultado de tanta disciplina e dedicação não poderia ser outro: Dimitri é uma
criança extremamente expressiva, madura, consciente de seu ofício e um excelente ator,
apesar da pouca idade. Nos ensaios, ele se comporta como um adulto em meio aos outros
atores, no sentido de compreender profundamente a complexidade e a seriedade envolvida
no fazer artístico. Luciane em entrevista detalhou:
Eu sou muito crítica com o meu trabalho, então eu me cobro muito. E cobro eles
também, porque eu falo "Vocês gostam, é isso que vocês querem?"... Porque eles
não querem nem ir no centro da cidade onde a gente tá, eles querem é ficar no
circo, o tempo todo. A vida deles é aqui dentro. Daí eu falei "Se é isso mesmo que
vocês querem, vamos fazer o melhor, vamos dar o nosso melhor". (...) Então é
sempre assim, passando mesmo um pouco de conhecimento que a gente tem e a
gente vai injetando neles. E como eu sou muito rigorosa, eu cobro mesmo. Às
vezes eu sinto que eu cobro muito deles, às vezes eu passo um pouquinho do
limite de cobrança, mas eles respondem com um carinho tão grande que parece
que não é rigor... É a vontade deles. (...) E hoje, eu já não faço mais esse trabalho
com eles, porque agora eles já entenderam como é, já sabem como é o processo...
O Nicolas fazia o Simba no Rei Leão, o Dimitri assistia no bastidor e depois
acabou fazendo. Só que agora o Nicolas já cria os personagens dele, ele já monta,
ele já faz, eu não preciso me preocupar com mais nada. O Dimitri, olhando o
Nicolas fazer, entra em cena já como se nem trocasse de ator. Pra gente que tá
trabalhando com eles ali, sai o Nicolas, entra o Dimitri, mas parece que é a
mesma coisa. O estilo de trabalho é bem parecido, só que o Dimitri já coloca
umas coisas dele, já tá colocando, já tá criando pra ele. Eu tô a ponto de aposentar
já! (risos) 144
A entrevista com Dimitri foi, sem dúvidas, um dos momentos mais
emocionantes que vivi no Circo de Teatro Tubinho. Eu realmente fiquei encantada com o
trabalho deste pequeno grande ator e ter ouvido o que ele tinha a dizer sobre sua vida e seu
ofício realmente me tocou. Com a simplicidade de uma criança e a incrível consciência de
um adulto, Dimitri me proporcionou uma conversa tão cativante que mereceu um espaço de
destaque nessa dissertação:
144
Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
231
Fernanda Jannuzzelli: Dimitri, você lembra qual foi a primeira peça que você
fez?
Dimitri Augusto: Eu comecei a fazer bebê em cena. Mas de texto longo assim
foi o “Burro meu”, do Casa da Mãe Joana.
Fernanda Jannuzzelli: E quando você começou a fazer as peças a sua mãe, a sua
tia, o seu tio... O que eles davam de indicação pra você?
Dimitri Augusto: Eles falavam que o teatro é muito grande então tem que falar o
mais alto possível. O meu tio também falou pra mim que tem um grande
problema se você ficar de costas pro público. Então sempre quando for falar
alguma coisa ficar de frente. Deixa eu ver o que mais... Meu tio falava “Fala mais
declarado pro público entender, que daí é melhor pra você”. De interpretar é
normal... Fazer certinho, fazer mais solto, fazer melhor.
Fernanda Jannuzzelli: E pra decorar os textos, como é que você faz?
Dimitri Augusto: Todo dia antes de eu trabalhar a minha mãe falava pra eu ler o
texto inteiro, todas as minhas falas, passar duas vezes. Daí eu passava bastante.
Hoje tem espetáculo que eu já lembro já bastante fala. Mas antes eu tinha que ler
e reler. E lia até ficar com o texto todo decorado.
Fernanda Jannuzzelli: E agora faz pouco tempo que vocês montaram o
Pinocchio, né, e como é que foi? Foi super rápido, não foi? Quatro dias, cinco
dias vocês montaram tudo!
Dimitri Augusto: Então, na terça-feira meu tio terminou de escrever a peça, daí
teve terça só pra ler o espetáculo, né, ler o texto. E ensaio quinta, sexta e sábado à
tarde.
Fernanda Jannuzzelli: E como que foi pra fazer o Pinocchio? O que falaram pra
você fazer?
Dimitri Augusto: Várias pessoas me deram indicação...A minha tia (Ana
Dolores) falou "Ah, passa lá em casa depois pra eu te mostrar como que é pra
fazer, pra andar". Ela falou pra eu ver bastante aula de robô, bastante coisa.
Fernanda Jannuzzelli: Aí você viu de internet?
Dimitri Augusto: É. Daí a minha mãe, que fazia o Pinocchio antes, me ensinou
as trocas de nariz, o jeito de falar, o jeito de interpretar melhor...
Fernanda Jannuzzelli: Como que é a troca de nariz?
Dimitri Augusto: É que na peça o Pinocchio, na hora que cresce o nariz do
Pinocchio, tem um tempo certo. Daí a minha mãe me mostrou certinho o tempo
de fazer tudo, o tempo de eu pegar, tirar, colocar. Ela me mostrou tudo isso. Ela
exige bastante da gente. Às vezes a gente chega aqui em casa e eu falo “Foi boa
hoje a peça, né mãe?”. E ela “É... boa foi, mas tem que ser melhor!”.
Fernanda Jannuzzelli: A Ana tava me contando daquela cena que você sente
vontade de chorar...
Dimitri Augusto: É, no final.
Fernanda Jannuzzelli: Você sabe dizer por que sente vontade de chorar?
Dimitri Augusto: É porque eu acho uma cena bonita, eu acho bem bonita essa
cena. E tem um sério problema nessa parte, que na hora que eu chego que eles me
colocam em cima do baú, eu não posso chorar porque eu ainda sou boneco. Então
eu tenho que ficar segurando e me mordendo pra não chorar.
Fernanda Jannuzzelli: E depois, quando pode?
Dimitri Augusto: Ah, daí eu começo a chorar e chorar e chorar...
Fernanda Jannuzzelli: Entendi. E tem uns papéis que você faz que sua mãe
fazia e tem outros que era o Nicolas que fazia, né? E aí ele te ajuda também,
assim, ele te dá uns toques?
Dimitri Augusto: É, ele fala assim "Ó, eu fazia tal coisa ali e era legal!". Meu
irmão me ajuda bastante, porque como ele já sabe o texto, às vezes eu esqueço o
texto no ensaio e aí eu pergunto "Ô, mano, tem alguma coisa que você fazia...
como que era essa parte?" aí ele fala "Tal, tal, tal".
232
Fernanda Jannuzzelli: E você tenta fazer parecido com o que ele fazia?
Dimitri Augusto: A primeira vez que eu fiz o Zague, que é o ratinho no
Cinderela, eu fiz completamente igual a ele. Eu peguei o CD do Cinderela e
fiquei assistindo, assistindo... Saiu a voz quase igual, saiu o jeito, o jeito de falar,
saiu quase como se fosse uma característica.
Fernanda Jannuzzelli: E aí depois foi mudando um pouco ou você hoje faz
igualzinho ele fazia?
Dimitri Augusto: Tem coisa que, tipo, agora eu só mudei o tipo de voz só, mas
tem coisa que meu irmão fazia que eu faço ainda.
Fernanda Jannuzzelli: E como que você faz pra fazer o personagem, assim,
você vai testando? Vai fazendo de um jeito, outro jeito?
Dimitri Augusto: É, tipo... No ratinho eu falei assim "Ah, vou pensar em uma
voz mais fina" porque se for um rato maior que nem o Tito faz, daí pode fazer
uma voz um pouquinho mais grossa. Mas a minha eu tentei puxar pro mais fino,
assim, daí eu puxei um pouquinho mais fina e junto com a do meu irmão. Daí tem
hora que eu mudo ela, mas...
Fernanda Jannuzzelli: E quando você faz o Tubinhozinho você tenta fazer
parecido com o Tubinho? Como que é?
Dimitri Augusto: Isso era uma coisa difícil porque o Tubinhozinho, eu e meu
primo, a gente teve uma coisa difícil que às vezes a gente colocava a mão no
bolso e não podia colocar a mão no bolso. Então o que aconteceu: um dia minha
mãe falou assim "Eu vou fazer um negócio pra você não colocar a mão no bolso".
E aí ela foi lá, costurou o bolso, todos os bolsos que tinha na calça, no paletó,
todos. E no fim o Tubinhozinho... Eu fiquei mais solto, ficou bem melhor. Só que
também tinha uma coisa que eu e meu primo, às vezes a gente também esquece
de fazer a voz de palhaço. Que às vezes a gente começa a fazer a esquete e a
gente vai esquecendo. Esquecendo, esquecendo e aí tem uma hora que a gente
para de fazer. Eu acho que aconteceu isso com meu primo também...
Fernanda Jannuzzelli: Qual primo?
Dimitri Augusto: O Alexandre. De, no fim de uma piada, falar "Ah, vamos fazer
essa piada, agora é essa piada, agora tem que animar, né?". Porque era a última
piada. E no fim a última fala é a do palhaço, às vezes é do palhaço. E aí tem que
ser animado. Aí tem uma hora que a gente tipo coloca aquela fala pra baixo. Aí o
povo não gosta. Mas às vezes anima também.
Fernanda Jannuzzelli: E você acha, Dimi, que você aprende mais quando você
tá fazendo a peça ou quando você tá assistindo?
Dimitri Augusto: Eu acho que os dois. Assistir eu já assisti todas as peças
muitas, mas muitas vezes... 145
145
Dimitri Augusto em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
233
Figura 74: Dimitri Augusto como Pinocchio em Pinocchio, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Figura 75: Dimitri Augusto como Zague em Cinderela, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Em relação aos seus filhos, Zeca e Angelita buscam um meio termo entre lhes
proporcionar uma infância mais comum a todas as crianças – como a que Angelita viveu –
e a infância típica do meio circense – como a vivida por Zeca.
234
Em entrevista, Angelita destacou a importância das crianças viverem, enquanto
podem, uma vida para além do circo, porque, segundo ela, com o passar dos anos essa vida
quase deixa de existir:
O Zeca a vida inteira trabalhou com teatro. Eu até brinco com ele assim “Nossa,
mas você não teve infância?”. E ele fala “Eu tive, mas era diferente”. Aí eu falo
pra ele “A minha era subir em pé de árvore, correr, pular corda, brincar de num
sei o quê”, entende? Criança é criança... Tipo assim, “Ah, eu quero ir pra casa do
vô e da vó, ir tomar água de coco na praia”, “Vai filho!”. Porque depois que
cresce, não volta mais, então eu acho muito duro... Porque o circo de certa forma
é uma prisão. Então eu não vou privar eles de ir na casa da vó, de ir viajar,
encontrar os primos... Porque se você escolhe o circo, você fica na prisão pro
resto da vida. Na prisão, eu digo no bom sentido. Se eu não posso ficar uma
semana com eles na casa do vô e da vó, por exemplo, e eles tão de férias, eles
podem ir. (...) O Dimitri é uma criança que em cena chama muita atenção... Não
tem o que falar. Só que as brincadeiras que os meus filhos brincam, ele não
brinca, entende? Agora, o que ele sabe, meus filhos não sabem... Ai então é uma
questão de educação... Cada um tem o jeito de ver a sua vida né... Cada um educa
o filho do jeito que acha certo, né? 146
Já Zeca, em entrevista, destacou outros pontos acerca do processo de formação
dos filhos:
De verdade, assim, essa é uma coisa que eu preciso trabalhar um pouquinho
melhor comigo. Porque no meu entendimento, que é errado, mas é meu
entendimento, é assim: eles assistem todos os dias, eles veem todos os dias, eles
tão respirando isso todos os dias. Então eles têm quase que a obrigação de saber o
básico. Sabe? Então principalmente quando são meus filhos, vai dar um texto e
fica de costas pra plateia, eu fico bravo com ele. Entendeu? Ele tem nove anos,
mas eu fico bravo com ele e falo: "Não pode! Se eu pegar um menino da praça e
vier ensaiar ele, ele tem todo direito de fazer tudo errado. Você não tem. Você
entende?” E eles ficam meio: "Pai, mas eu não sei...". “Você tem que saber. Você
tem que saber”. E de uns tempos pra cá eles meio que entenderam isso e, às
vezes, eles ficam nos bastidores olhando e às vezes eu saio de cena, quando dá
alguma coisa errada, eles vêm pra mim e falam assim: "Pai, isso deu errado por
causa disso né? Porque fez tal e coisa... é isso?" Ele entendeu que ele precisa,
entre aspas né, ter o repertoriozinho dele ali, “Quando meu pai precisar, eu
preciso tá sabendo”. Então meio que tem isso né? As crianças quando vem pra
cena comigo, elas já passaram por alguma das meninas... Ou a Ana ou a Angelita
ou a Lucélia ou a Luciane, principalmente quando tem ensaio de criança a
Luciane tá no meio... Eles sempre passaram por alguém, então quando chega
comigo, eles já chegam assim: “Vamos fazer direito”. Não que eu brigue. Eu não
sou de brigar com eles. Mas é o jeito de falar assim: "Isso aqui é sério". E isso
eles já sacaram. Então, quando eles vêm fazer qualquer cena comigo, eles já vêm
146
Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
235
com esse espírito de “Vamos fazer, é pra fazer e sem brincar”.
147
Tive a oportunidade de ver Alexandre, um dos filhos de Zeca e Angelita,
atuando como Tubinhozinho na peça O Casamento do Tubinho e como José, filho do
personagem de Zeca, no drama O seu único pecado, redirigido por Fernando Neves.
Com relação a este drama, pude acompanhar também o ensaio de marcação de
cenas anterior a uma apresentação no Barracão Teatro, em Campinas/SP, em maio de 2014.
O elenco procurava se habituar àquele espaço tão diferente da lona e a preocupação
principal era com as crianças, que interpretavam os personagens na primeira fase da
história. Em determinado momento da trama, Alexandre devia desempenhar uma cena de
briga com a irmã, interpretada por sua prima Carol Martins, filha de Jailson e Viviane
Martins.
Zeca, então, lhe mostrou como Alexandre deveria diferenciar as inflexões de
suas falas e lhe falou “Aqui você precisa estar triste. Eu preciso que você venha! Eu preciso
de você!”. Ao final de algumas tentativas, Zeca elogiou o filho e lhe deu um abraço
apertado.
Figura 76: Alexandre Pereira como Tubinhozinho, 2014.
147
Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
236
Fonte: Página de relacionamento na internet do fã clube Na estrada com Tubinho.
Já Lívia, a caçula de Zeca e Angelita, hoje com quatro anos, vi em cena como
Neli na primeira cena do famoso drama ...E o céu uniu dois corações. Na cena, a garotinha
é responsável por um fala fundamental para o desenrolar do espetáculo em que, em sua
inocência, acaba incriminando erroneamente seu pai diante do inspetor. A cena é
extremamente tocante.
Dias depois, Lívia me contou: “Eu não sabia fazer a Neli, mas as minhas tias
me ensinaram”. Perguntei, então, se ela se lembrava de suas falas e ela começou a dar o
texto enquanto seu irmão Victor lhe dava as deixas.
Figura 77: Lívia como Neli em... E o céu uniu dois corações, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Acerca da formação das crianças, o que posso afirmar, por fim, é que, apesar
das diferenças existentes na maneira como elas apreendem os conhecimentos da vida
circense, o fato é que todas elas, só pelo fato de viverem no circo, estão inseridas num
processo de formação e aprendizagem que as difere das crianças de famílias não circenses.
Durante minhas visitas ao circo, pude observar suas brincadeiras e perceber que
essas, quase sempre, estão relacionadas ao universo do teatro e da representação.
237
Certa vez, a companhia estava em Sorocaba, a peça do dia era Tubinho contra o
Lobisomem e eu tive a experiência de assistir o espetáculo da coxia. Morgana Lunardi, filha
de Riccielly, também estava na coxia com Miguel, de um ano e nove meses, filho de
Jailson e Viviane Martins. Miguel é completamente apaixonado por Tubinho, a quem
chama de “Binho”. Num momento da peça, quando Tubinho estava em cena, Miguel gritou
da coxia “Binho!”, para a risada de todo elenco.
No intervalo os artistas tiveram a ideia de colocar Miguel no fim da peça, com
uma máscara, como o filho do Lobisomem. Daí em diante, o último ato foi de conversas na
coxia do tipo “Será que ele entra?” “Ele vai chorar!” “Vamos tentar!” “Se der certo vai ser
um fuá!”. E foi. Miguel entrou de mãos dadas com “Binho”, vestindo uma máscara de
lobisomem, para delírio da plateia. E no fim ainda entrou pra agradecer.
Além disso, no dia seguinte, vi as crianças brincando de representar esta peça
que havia sido levada na noite anterior. Dimitri fazia o palhaço, havia um lençol estendido
servindo de cenário, alguns adereços emprestados do Lobisomem da peça e a parente mais
antiga da companhia, Cidinha Garcia – mãe de Jailson, Dionísio e Elcio Martins –,
auxiliava a montagem do espetáculo de “faz de conta” da trupe mirim.
Isso sem contar as Tartarugas Ninjas Caio e João – filhos, respectivamente, de
Cristina e Dionísio Martins e Juliana e Alexandre Vieira – que estão sempre a combater
terríveis vilões pelo terreno. Caio, inclusive, não vê a hora de começar a pegar os papéis de
Dimitri e numa festa a fantasia – organizada pelas próprias crianças da companhia – se
vestiu de Pinocchio, o mais novo personagem do primo que tanto admira.
E, pra finalizar esse assunto sobre a formação das crianças do Circo de Teatro
Tubinho, cito outro momento realmente emocionante: a coreografia que todas as crianças
juntas executam, com a canção Piruetas, de Chico Buarque, no espetáculo Obrigado, com
o qual a companhia se despede da cidade em que estava em temporada. Ao assisti-los,
ainda no ensaio para o Obrigado Sorocaba, não consegui conter as lágrimas ao pensar que
estava ali o futuro desta companhia circense.
238
Figura 78: Crianças brincando no Circo de Teatro Tubinho, 2014.
Fonte: arquivo pessoal da autora.
Figura 79: espetáculo preparado por Bruna Silva e pelas próprias crianças para seus pais, 2012.
Fonte: página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet.
Com relação novamente ao papel de Ana Dolores e Riccilelly Lunardi na
formação dos adultos e crianças da companhia, apesar de serem lembrados por todos do
elenco durante as entrevistas como figuras extremamente importantes para a consolidação
239
da trupe, ambos me disseram que tudo se arquitetou mais como uma troca de experiências,
na qual eles também aprenderam muitas coisas ao mesmo tempo em que ensinaram.
Dentre essas trocas, Ana Dolores destacou a importância da entrada da atriz
Lucélia Reis – amiga de infância de Angelita Vaz e Hélio de Aquino, que integrou o
primeiro elenco do circo – para a companhia. Em 2001, Lucélia integrava o recéminaugurado Ateliê de Criação Teatral (ACT) – uma vertente do Centro de Pesquisa Teatral
(CPT) de Antunes Filho –, fundado por Nena Inoue, Fernando Marés e Luís Melo, em
Curitiba. Ao ingressar no circo – à primeira vista, apenas para uma curta temporada –,
Lucélia trouxe ao grupo uma bagagem teatral completamente diversa que se somou a dos
demais integrantes. Em entrevista, Lucélia narrou:
Eu venho da escola de teatro mesmo, normal. Não conhecia circo-teatro, e a
princípio, quando eu comecei a fazer teatro nem tinha ouvido falar em circoteatro. E eu vim a saber o que era circo-teatro pelo Hélio, que saiu com a
companhia do Zeca quando nós estávamos no colegial ainda. Mas a companhia
na época não era circo, era uma companhia itinerante... Então era a família dele,
era só ele e as irmãs e o Hélio era o único de fora. E ele era um dos nossos
melhores amigos, daí ele saiu pra itinerar com eles, e quando o Zeca resolveu sair
com a lona o Hélio foi junto. Eu tinha uns 23 anos, mais ou menos, quando eu
entrei pro ACT e acho que eu fiquei um ano e meio. E então como era tudo muito
disciplinado, tudo muito embasado, tudo muito fundamentado, sabe era tudo
muito pesado mesmo, eu falei "Ai meu Deus, eu não sei", chega num momento
que você fala "meu Deus, o que eu tô fazendo aqui?"... Eu não sabia mais o que
eu tava fazendo. Foi fundamental pra mim, foi muito bom pra mim, eu aprendi
muita coisa, hoje eu ainda assimilo coisas que eu aprendi no ACT e que coisas
que eu aprendi no ACT eu emprego no meu trabalho no circo, porém na época eu
não tava dando conta disso a ponto de eu chegar a pensar se eu realmente queria
ser atriz, sabe? (...) E saí do ACT e acabei vindo pra cá por um acaso mesmo. Eu
vim visitar a Angelita... Mas eu sempre tive um puta preconceito em relação ao
circo, sempre pensava assim, que eu acho que é o que a maioria das pessoas que
são criadas dentro de uma sociedade comum pensam: "Putz, cara você vai viver
no circo, tem que fazer uma faculdade, você tem que construir um futuro, como
assim?". E eles falavam "Não, mas a gente vive de teatro, a gente ganha pelo que
a gente faz". E eu não entendia isso, eu falava "Mas você não tem segurança
nenhuma, como assim e tal...". Até que eu vim até o circo, por conta do Victor,
meu primeiro afilhado, filho da Angelita... Vim visitá-lo e acabei conhecendo
esse mundo. E aí eu fui entender o que era o circo-teatro e eu entendi, mas não
assimilei, porque você assimila a partir do momento que você fica nele. Então eu
vim numa primeira visita e entendi o que era. Mas nunca imaginei que eu fosse
vir e ficar. Daí como eu passei por esse processo no ACT, precisei vir pro circo
pra visitar o Victor e na época o Zeca tava sem atriz e ele pediu que eu ficasse, eu
tava em férias, não tava fazendo nada, ele pediu pra que eu ficasse um mês, pra
dar uma força pra peça nova... Eu fiquei esse mês e daí quando eu fui pra cena e
240
dai realmente vivi isso, eu falei "Putz, cara, saquei o que é!”. E aí eu acabei me
apaixonando também por esse caminho e falei "Nossa, é um caminho". 148
Figura 80: Lucélia Reis em Tubinho e a mulher do trem, s.d.
Fonte: Página de relacionamento na internet do fã clube Na estrada com Tubinho.
Pelo que pude observar do processo de formação e aprendizagem do Circo de
Teatro Tubinho compreendi que, desde sua retomada em 2001, a companhia lida com a
questão do “mestre/aprendiz” circense de um modo um pouco menos centralizado. Ao
invés de haver um único mestre, há algumas pessoas – como Ana Dolores e Luciane Rosã –
que desempenham o papel de formadores artísticos dos artistas iniciantes, sejam eles
adultos ou crianças. E, claro, há sem dúvida o papel fundamental exercido por Zeca, o
diretor artístico e figura centralizadora da companhia.
Apesar do próprio Zeca afirmar que o início do processo de formação das
crianças, no que diz respeito ao trabalho cênico, está mais a cargo de suas irmãs , é inegável
que Zeca possui, além de um apurado olhar comercial, um também apuradíssimo olhar
pedagógico para o trabalho com a companhia.
Isso ficou evidente, por exemplo, numa passagem das entrevistas em que Zeca
falava sobre a função do escada para a construção da cena. Pude perceber a pedagogia
148
Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
241
existente neste tipo de fazer teatral em que se aprende observando-se os mais experientes e,
posteriormente, já no momento da representação diante do público. Zeca contou:
É claro que quando a escada não vem dificulta um pouco. É óbvio, pra qualquer
comediante, não só pra mim. Mas eu normalmente não desisto da piada. O que eu
faço? Eu pedi a escada, a escada não veio, eu preparo a escada e dou o desfecho
de alguma maneira. Você entendeu? Já aconteceu, não que seja direito, mas já
aconteceu de eu falar assim é... É que eu não vou lembrar a piada agora, mas... Eu
falo o que eu quero falar, aí o cara não dá eu falo assim: "Mas se você falasse isso
aqui eu te diria „pá!‟", e dava o desfecho. A piada também funciona. Não igual,
mas a piada também funciona e o escada fica esperto. A hora que eu faço isso, a
primeira coisa que o escada pensa é "Hummm, marquei bobeira". Mas isso é
coisa de um segundo. É um bate bola. Outra coisa que eu tenho pegado muito no
pé do meu elenco: a questão de dicção. Quando acontece deles falarem
“embolado”, o que eu tô usando de recurso? Eu repito a última frase, que saiu
embolada, de um jeito claro e aí dou o desfecho da piada. Porque eu já falei pra
eles “Quando o público não entender eu vou repetir a frase”. Às vezes eles
pensam: "Ah, mas eu vou ficar mais lento". Não fica mais lento. Principalmente a
frase final do escada precisa ser certeira. Por que a piada sempre tem uma
referência com a última frase do escada. Quase sempre. Mais importante que o
desfecho é o que o cara falou ali 149.
Graças à junção do seu tino comercial e seu olhar pedagógico, Zeca propôs a
revitalização da companhia através do projeto de reelaboração do repertório, patrocinado
pelo Ministério da Cultura e Petrobrás, que será detalhado mais adiante e que se tornou um
verdadeiro divisor de águas no trabalho da companhia.
Adianto por agora um comentário tecido por Tiche Vianna acerca do olhar
pedagógico de Zeca para a cena e a companhia. Tiche Vianna ministrou uma oficina para o
elenco do circo de Tubinho durante o processo de remontagem do espetáculo Cabocla
Bonita, dirigido por Ésio Magalhães. Tiche contou sobre um dia em que, após o fim da
comédia da noite, Zeca resolveu levar um esquete, por sentir que a peça não agradou o
tanto que deveria:
Então o Zeca rapidamente disse a que ia ter a última parte, todo mundo saiu e ele
disse pro Juninho: "Você vai entrar comigo num esquete". E o Juninho disse "Eu
nunca fiz", e ele "Então você vai fazer hoje". E ele foi lá e eles fizeram o esquete
e tal. Quando acabou, eu fui falar com o Zeca e ele falou: "Você viu o Juninho no
espetáculo hoje?" Eu falei "Vi". E ele: "Que você achou?" Eu falei "Eu achei ele
mais interessante". Porque eu achei que no espetáculo, eu sempre achei o Juninho
149
Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
242
mais intimidado e tal e no curso, eu vi que ele foi se dando conta de uma potência
que ele tem, de ocupar aquela cena, de ser ousado, de não ser tão envergonhado.
E trabalhei um pouco isso com ele: “Que corpo é esse Juninho? vai pelo corpo!”.
E isso pro Juninho funcionou porque pegou ele por algum lado e eu senti que ele
tava mais presente no espetáculo. E o Zeca falou “Eu também achei que ele
melhorou no espetáculo. Ele fez alguma coisa... Ele tava mais comprometido.”
Não foi com esses termos, mas o que ele queria dizer era isso. “Por isso que eu
chamei ele pra fazer o esquete comigo, que ele nunca tinha feito. Mas eu pus ele
lá porque eu sabia que ele precisava desse... ele precisava saber que ele sabia”. O
que eu falo: é uma cabeça pedagógica, também inclusive... Ele tem toda uma
dimensão... Ele tem uma noção e uma generosidade que são duas coisas
impressionantes. 150
Quando visitei o circo em Boituva, em dezembro de 2013, o projeto da
Petrobrás já havia sido finalizado, porém Zeca continuava a reestruturar alguns espetáculos,
baseado nos novos ensinamentos que havia apreendido. Neste momento a peça que estava
sendo modificada era o drama Ferro em Brasa. Em entrevista, Zeca, ao dissertar sobre o
processo de reestruturação deste espetáculo, mostrou a pedagogia que estava sendo aplicada
junto ao elenco:
Quando a gente propõe "Vamos fazer uma mudança radical", que foi o que
aconteceu com A Canção de Bernadete... Quando a gente fala "Pô, vamos fazer
uma mudança radical", aí mudamos tudo, não tem problema. Agora no caso do
Ferro em Brasa, que é um espetáculo que a gente já fez muito, e eu vou dar uma
mudada agora... Eu acho que é muito mais difícil quando vai mudar poucas
coisas, porque o ator fica mais resistente em fazer como ele fazia... "Não, mas o
jeito que eu fazia já era legal, não precisa mudar, já funciona"... Do que quando
você vai mudar tudo. Porque quando você vai mudar tudo, a proposta é mudar,
você já parte de que vai mudar. É que nem agora, eu vou fazer uma coisa que eu
já botei na minha cabeça que é assim, é uma mudança boba, mas que vai me
ajudar a fazer todas as mudanças. Normalmente a casa era de um lado e a ida pra
cidade, a saída da fazenda era do outro lado. Eu vou inverter isso, não por ser
necessário, mas pra que o elenco entenda: “Vai ter mudança”. Aí fica mais fácil
de dialogar, porque é mais fácil fazer como você já faz. Quer dizer, se a gente faz,
funciona, pra quê mudar? Então como a gente tá propondo a mudança, fica mais
difícil mudar quando é coisa pequena do que quando é coisa grande. Mas assim,
pra mim é muito fácil porque eu conheço cada um deles de ponta a ponta, eu sei
até onde dá pra ir, onde não dá pra ir... Que nem, a gente fez uma leitura hoje que
o cara tá lendo a peça a frio, mas eu conheço ele e o seu potencial e sei aonde ele
vai, entendeu? Acho que o que facilita essa companhia é isso: eu conheço todo
mundo... Por exemplo, quando eu fui trabalhar com a Família Burg 151, por
150
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
Companhia teatral da cidade de Campinas que montou, com a participação de Abel Saavedra e direção de
Zeca,
o
espetáculo
tradicional
de
circo-teatro
Agência
Marinelli.
A montagem foi estimulada pelo Festival Internacional de Circo do Sesc e pela Cooperativa Brasileira de
Circo em maio de 2013 e integra hoje o repertório de espetáculos da companhia.
151
243
exemplo, pra mim era até difícil no começo pra fazer uma distribuição de
personagem, porque, sabe, a gente não tinha o texto escrito, eu ia passar o texto
de "orelhada", como a gente chama, a gente chama de orelhada e quer dizer...
Como é que você distribui se você não conhece os atores? E a gente tinha, sei lá,
sete, oito dias pra erguer o espetáculo. Então fica muito mais difícil. Se eu tiver
que erguer um espetáculo em sete ou oito dias com o meu elenco, é muito mais
fácil pra mim, porque eu conheço ele muito bem. E eu acho que é por isso que me
facilita. Quando eu escrevi A Orquestra dos Bichos, que é um infantil que a gente
faz, eu escrevia ouvindo a voz de cada ator falando o texto, sabe? Eu ia
escrevendo ouvindo, eu sabia em que ação o ator ia estar. Então, quer dizer, eu
acho que é isso, são quase quinze anos juntos... 152
Após todas essas colocações acerca do processo de formação dos novos artistas
e crianças, levanto a questão: será que o Circo de Teatro Tubinho também constitui o que
Erminia Silva chama de “circo-família”?
Por um lado podemos pensar que alguns aspectos do processo de
formação/socialização/aprendizagem e do modo de organização do trabalho que
caracterizavam um “circo-família” do passado, como o Pavilhão Arethuzza, por exemplo,
se diferenciam dos empreendidos atualmente na companhia de Tubinho. Porém, por outro
lado, também não podemos esquecer que a constante atualização e renovação de alguns
elementos da tradição são essenciais para a própria continuação desta.
Em meio a esta dúvida, procurei uma possível resposta junto à Erminia Silva.
Sempre muito solícita e atenciosa, Erminia me alertou para o fato de que o nó da questão
reside no ponto fundamental de que os conceitos são carregados de histórias e ligados,
muitas vezes, a uma disputa de saberes. Portanto, no caso da nossa área de estudo, não
devemos ter a pretensão de querer encaixar toda a multiplicidade da manifestação circense
sobre os mesmos conceitos.
Ou seja: não há receita padrão. Por um lado o Circo de Teatro Tubinho pode ser
chamado de circo-família, pois o conceito pressupõe alguns elementos que estão presentes
na companhia de Zeca, como um modo específico de organização do trabalho, nomadismo,
oralidade, contemporaneidade e o fato das gerações mais novas serem depositárias dos
saberes dos mais antigos. Mas, por outro, será que devemos continuar a pensar nesse
conceito ou devemos propor outro modo de analisar as experiências das companhias da
atualidade, como a de Tubinho?
152
Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013.
244
Por enquanto, fica a pergunta suscitada por Erminia Silva.
O que posso afirmar, por ora, é que o Circo de Teatro Tubinho tem a família de
Zeca como o seu mastro central. Posso chamar esta família de “Pereira” ou “GarciaPereira”, porém, devo destacar que apesar de boa parte da companhia de Tubinho pertencer,
geneticamente falando, a esta mesma família, os artistas utilizam vários sobrenomes
artísticos diferentes.
Zeca afirma:
De cento e doze espetáculos acredito que até setenta são muito tradicionais, da
década de 1940, 1950. (...) E o resto do repertório são espetáculos novos, uma
dramaturgia mais nova, mas baseada completamente no jeito de se fazer do circoteatro. (...) Não porque eu queira... Porque é a maneira que eu sei fazer, a maneira
que eu aprendi desde criança, desde moleque. Mais do que ter uma coisa assim
de querer manter o tradicional, de ser tradicional, é porque é o que eu sou. A
gente mesmo é quem faz cenário, figurino, a pipoca que vende lá na frente, a
maçã do amor que vende lá na frente. Então é um circo-teatro de família mesmo.
O elenco que a gente tem no circo é a minha família; meus primos, minha irmã,
minha esposa. (...) Temos pessoas que não são da família de sangue, mas hoje em
dia já são da nossa família. Quinze anos acordando todo dia junto... É da família,
né? (...) Normalmente quando as pessoas fazem circo-teatro elas se baseiam no
circo-teatro da década de 40, de 50. Então os próprios grupos que prestam
homenagem ao circo-teatro dão essa cara de que aconteceu naquela época. E não!
A gente ta aí, fazendo!153
Através das palavras de Zeca, pude compreender melhor também que,
independente de se encaixar ou não no conceito de circo-família ou circo “tradicional”,
descrito por pesquisadores que se dedicam a estudar o fenômeno circense, o Circo de
Teatro Tubinho é, para os próprios artistas que o compõe, uma única e grande família.
3.3 Repertório
O Circo de Teatro Tubinho mantém a tradição de apresentar um espetáculo
diferente a cada noite, sendo que o carro chefe da companhia é, com certeza, a comédia.
Porém, diferentemente da maioria dos circos da primeira metade do século XX,
em que os atores que faziam os palhaços na parte de variedades apareciam nas
153
Trecho da entrevista de Zeca ao Serviço Social do Comércio (SESC) de Santo André-SP, em 15/10/2014.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=57J7XQD4WCI
245
representações teatrais como personagens tipificados, em seu circo de teatro, Zeca atua
caracterizado como Tubinho em quase todas as comédias. Este fenômeno pode ser
observado não só no Circo de Teatro Tubinho, como também nos demais representantes da
“escola sulista” de circo de teatro, por exemplo.
Para Zeca o porquê dessa adequação é claro: a exclusão da primeira parte do
espetáculo, de variedades, na qual o palhaço se apresentava, fez com que a personagem
migrasse para o que seria a segunda parte, de representação teatral. E isso ocorreu porque,
em terras brasileiras, o palhaço caiu nas graças do público que, simplesmente, não admite ir
a um circo e não vê-lo.
Dessa forma, o carro chefe da companhia é a comédia por um único motivo:
hoje, nas localidades por onde o Circo de Teatro Tubinho passa pelo interior do estado de
São Paulo, o público quer ver comédia. Então, o circo leva comédia. Assim sendo, a
passagem abaixo, em que Bolognesi discorre acerca do circo do palhaço Bebé pode ser
facilmente aplicada também ao circo de Tubinho:
A procura por um momento de descontração, de relaxamento e revigoramento das
energias confere à comédia circense e ao palhaço em particular uma conotação
hierofânica. (...) Sobrevive no riso circense um traço ritualístico, uma espécie de
ponto de ligação entre o fim e o recomeço, entre o morrer e o renascer do homem
e da vida. Antes do enredo propriamente dito, antes de ir em busca de uma
história a ser revivida, o público dos pequenos circos procura um espetáculo
cômico exclusivamente em razão desse momento de revivescência, que é
propiciado pelo palhaço. O palhaço é o centro do espetáculo, ou seja, em vez de
lições de moral o publico quer o riso festivo, a “folia”, como diz Bebé
(BOLOGNESI: 2003, 171 e 172).
Os artistas do Circo de Teatro Tubinho costumam dividir as comédias em duas
categorias: as comédias de linha e as chanchadas.
Em ambas, o jogo cênico está centrado no desenrolar das situações dramáticas,
e não no texto dramatúrgico propriamente dito. Porém, nas comédias de linha a comicidade
está centrada mais nas situações criadas e no modo como Tubinho e os outros personagens
reagem diante delas, do que na figura do palhaço propriamente dito e suas piadas,
principalmente verbais. Dessa forma, nas comédias de linha conta-se mais linearmente a
história, com uma quantidade menor de inserções de Tubinho.
246
Figura 81: Dedé Santana e Tubinho na comédia de linha Tubinho, o tigrão de Sorocaba. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Já nas chanchadas, o palhaço Tubinho praticamente entra em cena para contar
piadas e, como os próprios artistas dizem, tudo é uma grande bagunça – no bom sentido,
claro. Diante de toda e qualquer deixa do escada, Tubinho dispara uma sequência de piadas
acerca do tema anteriormente levantado, de modo que a história da peça cessa por alguns
instantes. Então, o escada assume a importante função de retomar o fio da narrativa e
encaminhar os acontecimentos dramáticos.
Ana Dolores comentou em entrevista:
A chanchada é um tipo de espetáculo em que você se arruma pra entrar em cena,
mas não sabe direito nem o que vai acontecer lá no palco, porque o que vier você
vai rebater e existe uma situação em que você vai jogando... É lógico que já tem
fala que fica, mas 90% é improviso 154.
Veremos mais adiante que este tipo de improviso desenvolvido pelos circenses
não é algo ditado apenas pela imprevisibilidade, sendo construído sobre uma série de
pressupostos que delimitam alguns pontos de apoio para os artistas.
154
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014
247
Figura 82: Chanchada Tubinho no velório. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Tanto as chanchadas quanto as comédias de linha têm em comum o fato de
serem potagonizadas pelo palhaço Tubinho e levarem o seu nome nos títulos.
O palhaço sempre teve grande destaque no espetáculo circense e, a partir da
década de 1970, ocorreram algumas transofrmações na configuração do espetáculo e os
circenses entenderam que inserir o nome do palhaço nos títulos das peças era um
verdadeiro chamariz de público. Assim sendo, ainda hoje o Circo de Teatro Tubinho leva as
tradicionais peças de circo-teatro com os títulos modificados, que incorporaram o nome da
grande estrela da companhia: a comédia Que mãe que eu arranjei virou Tubinho de
minissaia; o drama Castigo do céu virou a comédia Tubinho, o rei do gatilho; o drama
Honrarás tua mãe virou a comédia Tubinho na Casa da Mãe Joana e o drama A escrava
Isaura virou a comédia Tubinho e a escrava Isaura, por exemplo.
Nestes exemplos citados acima, percebe-se ainda outra tendência comum aos
chamados circos de teatro: a transformação de peças originalmente dramáticas, enquanto
gênero, em comédias. Isso ocorre devido ao fato do circo sempre se adaptar às mudanças
ocorridas através dos tempos. Os gostos e costumes das plateias atingidas se modificaram e,
248
consequentemente, as companhias de circo-teatro se reorganizaram para continuarem se
encaixando na vida dessas pessoas que, por sua vez, mantêm o circo vivo pela bilheteria.
Como exemplo claro da importância do gosto do público para a construção do
espetáculo e de como este se altera ao longo dos tempos, cito um trecho de uma das
conversas com Zeca durante a minha primeira estadia no Circo de Teatro Tubinho:
Meu pai sempre falava: “Eu não concordo com isso de pegar os dramas e fazer
comédia... isso não está certo... no meu tempo não era assim!”. Então eu
respondia: “Mas pai, vocês faziam drama porque o público queria ver, não?
Agora o público quer ver comédia, então eu faço comédia!” 155.
Em outra conversa, Zeca contou, ainda, uma divertida passagem: era a estreia
da peça Tubinho na Casa da Mãe Joana, originalmente o drama Honrarás tua mãe,
transformado em comédia. O pai de Zeca, Bambí, disse “Quer fazer isso faz, mas não me
põe no elenco”. Zeca, porém, ainda não contava com um elenco grande e seu pai precisou
ser escalado. Contrariado, Bambí entrou em cena como o galã, mas para surpresa de todos
resolveu criar uma personagem extremamente afeminada. Ao final do espetáculo, só disse a
Zeca: “Se é pra avacalhar, então vamos avacalhar!”.
Essa passagem mostra como que, apesar de contrariado – afetado,
principalmente, pelas lembranças do circo de antigamente – o pai de Zeca compreendeu
que a mudança era necessária, passando a “brincar” em cena com isso.
Além de adaptar para o gênero cômico peças de origem dramática, Zeca
também é autor de diversos espetáculos, baseados na adaptação e mistura de diversos
esquetes e roteiros, já da tradição circense. Este tipo de criação baseada no rearranjo de
roteiros já existentes é um artifício desenvolvido comumente pelos circenses ao longo dos
anos, de modo que estes artistas, como Zeca, recriam parte da tradição, baseados no intenso
movimento artístico e dinamismo presente no empreendimento circense.
A peça Tubinho, Rocky Mão Boa, por exemplo, já deixa claro no título a
temática da luta de boxe pela referência ao famoso filme Rocky Balboa. O roteiro criado
por Zeca, em 2004, reúne, no primeiro ato, os esquetes tradicionais O Macumbeiro e A cara
155
Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013.
249
do burro do pai e, no segundo ato, o conhecido esquete circense A luta de boxe. Para
“amarrar” a dramaturgia da peça e servir de fio condutor da narrativa, Zeca criou a história
do pobre menino Bibi, por quem Tubinho luta em busca de um prêmio em dinheiro.
A peça Tubinho na Casa do Nenonho, por exemplo, foi criada por Zeca
literalmente de um dia para o outro. “Isso é coisa do Nenonho” é um dos inúmeros bordões
criados por Zeca que caíram no gosto da plateia. Após uma apresentação de grande sucesso
em que utilizava muitas vezes essa expressão, Zeca anunciou que, na noite seguinte, levaria
a peça inédita Tubinho na Casa do Nenonho. O elenco, que nunca havia ouvido falar na
peça pôde prever a loucura que o empreendimento exigiria: Zeca escreveu a peça – através
do rearranjo de vários esquetes circenses – depois da apresentação, de madrugada, e no dia
seguinte houve um ensaio de dia e a apresentação à noite. A peça, como comumente ocorre
no circo de Tubinho, foi muito bem aceita pelo público e hoje se configura como uma das
comédias de maior sucesso do repertório da companhia.
Inspirado em tendências atuais do cinema e da televisão, Zeca criou inúmeros
outros espetáculos, como Tubinho, o capitão da tropa de elite, Tubinho na casa do Big
Brother, Tubinho o Todo Poderoso e Tubinho, o sobrevivente do Titanic.
Figura 83: Jailson Martins e Zeca em Tubinho, o capitão da Tropa de Elite. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
250
Além disso, a intensa troca entre as companhias de circos de teatro continua a
existir, de forma que um texto escrito por Zeca, Tubinho, o homem da pistola torta, é
apresentado em outros circos, como o Teatro Biriba, por exemplo. Em julho de 2014 eu
estava em Blumenau, para a 27ª edição do Festival Internacional de Teatro Universitário de
Blumenau, e pude assistir a um espetáculo do Teatro Biriba, que estava armado na cidade.
Assisti ao Biribinha e o caso da língua que foi engolida, um exemplo de esquete que foi
estendido, misturado a outros esquetes e que virou uma peça de mais de uma hora de
duração. Na portaria do circo, pude ver que nesta mesma semana, seria apresentada a
comédia Biribinha, o homem da pistola torta.
Um acontecimento que merece destaque foi o ocorrido em maio de 2013 na
cidade de Itapetininga. Num país em que a telenovela é mania nacional, Zeca mostrou toda
sua audácia e coragem ao anunciar na sexta-feira, dia do último capítulo da novela Salve
Jorge, da Rede Globo, o espetáculo Corre Jorge. Nesse dia, o Circo de Teatro Tubinho
conseguiu a façanha de lotar a lona e mobilizar centenas de pessoas da cidade para assistir,
ao invés do último capítulo da novela, à sátira criada pela companhia. O sucesso foi
tamanho que a peça precisou ser reprisada no fim de semana. Um acontecimento como esse
me mostra o tamanho da força exercida pelo Circo de Teatro Tubinho e seu poder de
inserção no cotidiano das cidades por onde passa.
Figura 84: Tubinho em Corre Jorge. Itapetininga, 2013.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet.
251
Além das comédias, o Circo de Teatro Tubinho eventualmente divide o
espetáculo em duas partes, sendo que na primeira é apresentada a peça do dia e na segunda
um esquete com Tubinho e seus comediantes.
O esquete geralmente é levado em três ocasiões: a primeira, quando a comédia
apresentada é relativamente curta, não contabilizando o tempo médio de duas horas de
espetáculo todas as noites.
A segunda ocasião ocorre quando, eventualmente, é levado um drama, pois
segundo Zeca, o público não admite ir ao circo e não ver o palhaço.
A terceira ocasião acontece quando a comédia não agradou da maneira como
devia e o esquete serve como uma “carta na manga”, uma última cartada para agradar da
maneira que o circo necessita para que o público volte na noite seguinte. Acerca disso,
Tiche Vianna, especialista em commedia dell’arte, comentou a relação existente entre o
lazzo na comédia italiana e o esquete no Circo de Teatro Tubinho:
Um dia eles terminaram o espetáculo e o Tubinho entrou pra agradecer,
agradeceu e falou “Agora nós vamos pra última parte do espetáculo”. Eu pensei
"Nossa, eu não sabia que tinha essa parte". Mas eu olhei pras pessoas do elenco e
pensei "Cara, ninguém sabia q ia ter essa parte!”. E ninguém sabia, ele tinha
acabado de decidir isso. Eu pensei: “Pô, porque será que ele decidiu?”. Mas
também foi visível isso. O espetáculo foi um espetáculo engraçado, todo mundo
riu e tal, mas não... parece que o Tubinho tem uma medida da força. Dentro de
uma escala, ele sabe aonde o espetáculo aconteceu. E é claro que ele depende do
público e o público não pode ter a menor dúvida se volta amanhã... Ele não vai
botar em dúvida isso, ele vai fazer o cara sair dali tendo certeza absoluta de que
vai voltar amanhã. (...) Quando acabou, eu fui falar com o Tubinho e falei "Ué,
porque você botou o esquete?". Ele falou: "Eu achei que não tava na pegada, que
faltou... Tudo bem, as pessoas entraram, mas faltou aquele...". E eu
imediatamente pensei: “Isso é lazzo na commedia dell'arte. Aquilo que a gente
dizia, „Ah uma carta na manga, que se o público não tava... Pegava uma máscara,
entrava, fazia uma... Isso existia né, então isso é lazzo”. O esquete no Tubinho é o
lazzo na commedia dell'arte. Eu tenho que deixar o público junto comigo, (...) ter
um trunfo na mão, que você sabe que você vai mudar de alguma maneira ainda
mais o humor, enfim o tesão da plateia. E ela vai querer voltar 156.
Em seu diário de bordo, escrito em 2011 e cedido gentilmente para esta
pesquisa, Ana Dolores conta que na noite de 17 de janeiro daquele ano o circo havia levado
156
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
252
o esquete Apagar a Vela. Ana descreve, então, o que é um esquete e reflete sobre para a
peculiar característica dos atores serem chamados pelos próprios nomes:
O esquete tem a situação e o texto é todo improvisado, então nunca se sabe o que
realmente vai acontecer. Depende muito do horário e com isso o esquete pode
levar 5 minutos ou 20 minutos. É meio louco fazer esquete, pois geralmente o
ator ou atriz é chamado em cena pelo próprio nome, mas nem sempre você é você
mesmo. Hoje, por exemplo, fiz uma mulher míope, que entra em um concurso
para apagar uma vela com um tiro e precisa de um voluntario para segurar a vela
acesa 157.
Lucélia Reis também escreveu, no ano de 2010, um diário de bordo e
gentilmente permitiu que eu o utilizasse nessa pesquisa. No dia 09 de janeiro de 2010 havia
subido à cena no esquete “Sonâmbula” e escreveu:
Hoje a preparação é diferente. Faço bem poucos esquetes desde que entrei aqui e
sinto que ainda é onde tenho uma maior dificuldade. São engraçados esses
artifícios do circo de teatro e muito inteligentes também. Quando se entra para
fazer um esquete após um espetáculo que caiu no agrado do público se entra
tranquilo. E foi o que aconteceu hoje. Essas mini-histórias encenadas na segunda
parte do espetáculo nos dão uma maior chance de trabalhar inteiramente com o
improviso. E ele surge de maneira tão natural que quando se é combinado dá
errado. Por isso é improviso. Sinto que nesse esquete em particular posso
desenvolver uma melhor expressão corporal e facial principalmente na hora em
que a personagem entra sonâmbula. Porém com um exagero contido. Lembro-me
quando cheguei no circo e fui fazer meu primeiro esquete; era “ A fila do
ônibus”. Lembro-me que senti uma dificuldade tão grande de estar em cena em
uma situação de total improviso e naturalidade que fiquei muda e imóvel. Sintome grata pela oportunidade de desenvolver essa linguagem com segurança e
verdade hoje 158.
Para existir a possibilidade de uma encenação tão livre a ponto de poder variar
de cinco a vinte minutos, utilizando o exemplo levantado por Ana Dolores, o elenco precisa
estar totalmente afinado e conectado. E isso vem com o tempo de trabalho em conjunto e
com a criação de um repertório em comum a cada apresentação, noite após noite.
157
158
Ana Dolores em seu diário de bordo, concedido à autora.
Lucélia Reis em seu diário de bordo, concedido à autora.
253
Figura 85: Luciane Rosã e Tubinho no esquete O piano. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Além das comédias e esquetes, todas as terças-feiras são apresentados os
espetáculos infantis, sendo que estes não contam com a presença do palhaço Tubinho. Zeca
afirma que Tubinho não é um palhaço para crianças – apesar de sua enorme popularidade
entre o público infantil – e que se o pai quiser levar seu filho ao circo nas noites de
comédia, levará sabendo disso.
A maioria dos espetáculos infantis levados foram montados ainda com a
Zezinho Produções e Promoções Artísticas. Com o projeto de reelaboração de repertório
financiado pela Petrobrás o infantil O príncipe, a bruxa e o feiticeiro foi redirigido por
Paulo Faria, da companhia Pessoal do Faroeste, de São Paulo. Além disso, atualmente, um
dos espetáculos que mais agrada o público infantil é A Orquestra dos Bichos, um belíssimo
espetáculo musical, criado e dirigido por Zeca.
254
Figura 86: Angelita Vaz e Jailson Marins em O Príncipe, a Bruxa e o Feiticeiro, s.d.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet.
Figura 87: Nicolas Alexandre, Angelita Vaz, Cristian Bryan e Alexandre Vieira em A orquestra dos
bichos. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
255
Mantendo a premissa de que o espetáculo de circo é sempre contemporâneo ao
seu tempo, Zeca também absorveu e retrabalhou, à sua maneira, o stand up, fenômeno atual
de grande sucesso. Em Senta que o Tubinho vai entrar – show em comemoração aos dez
anos de atuação como Tubinho – Zeca conta piadas de cara limpa, como de costume entre
os comediantes de stand up.
Porém, também nos apresenta uma gama de personagens cômicos, como o
velhinho ranzinza Seu Cornélio, o ex-bêbado Mandioca, uma homenagem através de uma
elaborada imitação de seu ídolo Jerry Lewis na famosa cena da máquina de escrever e,
finalmente, o personagem mais querido entre o público, o palhaço Tubinho.
Ao representar estes diversos personagens cômicos, com o auxílio de alguns
acessórios e figurinos, mas baseados principalmente num trabalho de composição de tipos,
Zeca se distancia da influência do stund up americano, aproximando-se mais de um modo
brasileiro de se fazer comédia, que conta com representantes como os humoristas Oscarito,
Chico Anysio e Ronald Golias.
Figura 88: Zeca em Senta que o Tubinho vai entrar. Itapetininga, 2015.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
256
Outra vertente explorada e destinada somente ao público adulto é conhecida
entre os integrantes do Circo de Teatro Tubinho e seu público como comédias picantes.
Estas peças, apresentadas às quintas-feiras, chamadas de “quintas quentes”, não contam
com a presença do palhaço Tubinho, devido às suas temáticas, predominantemente sexuais.
A de maior sucesso, Tudo em cima da cama, é uma das comédias que Zeca leva também
em apresentações pontuais em edifícios teatrais de cidades vizinhas a que o circo está
armado.
No capítulo anterior, dissertei sobre como era comum nos circos-teatro a
apresentação de números de artistas contratados, principalmente das rádios; no Pavilhão
Arethuzza, por exemplo, chegaram a se apresentar nomes como Tonico e Tinoco e Sílvio
Santos.
Na contemporaneidade, a tendência se mantém e no Circo de Teatro Tubinho
humoristas como Nany People, Matheus Ceará e Marlei Cevada comumente apresentam
seus shows em sessões especiais no circo. Além disso, a recorrente presença do eterno
trapalhão Dedé Santana sempre é um atrativo para o público, que lota a lona para ver o
palhaço Tubinho e seu escada ilustre.
Figura 89: Cartaz de divulgação do show de Nany People no Circo de Teatro Tubinho.
Araçoiaba da Serra, 2012.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet.
257
Além das comédias também são encenados, ainda que em menor escala, dramas
tradicionais circenses, como Ferro em Brasa, O seu único pecado (Maconha, o veneno
verde), ...E o céu uniu dois corações, O pagador de promessas, O Ébrio e A canção de
Bernadete.
Zeca contou que os dramas dificilmente são levados na primeira semana da
temporada, sendo apresentados somente após o circo “ganhar a praça”, ou seja, após ter se
estabelecido e caído no gosto do público da cidade. Isso porque, segundo ele, a associação
entre “circo” e “drama” não é tão direta, no pensamento do público, quanto a existente
entre “circo” e “comédia/palhaço”.
Ricciley Lunardi disse, em entrevista:
O drama hoje é mais complicado. A gente mantém alguns dramas no repertório,
como O pagador de promessas, Deixe-me viver, O seu único pecado, O Céu Uniu
Dois Corações - que são clássicos desse nosso circo-teatro. É um xodozinho,
porque a gente se criou vendo essas peças serem levadas. Hoje dá um trabalho
muito grande, a gente procura fazer uma montagem bonita, ensaiar bem, mas não
se tem - quando você anuncia um drama - não se tem o retorno de público. Você
anuncia lá “A Canção de Bernadete”, você vai ter 200 pessoas assistindo, meia
casa, 300, por ai. Daí você no outro dia anuncia "Tubinho e o Morto que não
Morreu" e tem a casa lotada, entende?159
Figura 90: Zeca e Ana Dolores no drama O pagador de promessas, 2012.
Fonte: Acervo do Circo de Teatro Tubinho.
159
Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
258
Há alguns anos, Zeca percebeu que a constante atualização que ocorre nos
espetáculos cômicos não ocorria do mesmo modo nos espetáculos dramáticos, tornando-os,
de certa forma, anacrônicos. Dessa forma, de 2010 a 2013, com o projeto de reelaboração
de peças do repertório, através do edital do Ministério da Cultura e Petrobrás, o Circo de
Teatro Tubinho retrabalhou, além de algumas comédias, o melodrama Maconha, o veneno
verde com o diretor Fernando Neves e Zeca redirigiu o drama religioso A canção de
Bernadete.
Uma das maiores preocupações de Zeca é a manutenção e constante atualização
de um repertório necessariamente múltiplo, capaz de atender e satisfazer os mais diversos
públicos. Isto ficou claro, para mim, ao assistir a versão da companhia para o drama ...E o
céu uniu dois corações, de Antenor Pimenta.
Vários pontos me chamaram atenção nesse espetáculo. O primeiro foi o fato de
que, apesar de continuar sendo levado no circo de Zeca como drama, ...E o céu uniu dois
corações é anunciado com o chavão “Venha rir com o intérprete do Tubinho fazendo um
gago!”. Dessa forma, o texto original é modificado e diversas piadas são inseridas por Zeca,
que interpreta o menino gago Juca.
Outro ponto relevante diz respeito aos elementos da encenação do espetáculo.
Como eu já havia visto o drama O seu único pecado, retrabalhado por Fernando Neves,
estava muito influenciada por esta referência, de modo que a primeira ideia que me passou
pela cabeça – e que se assemelhava ao trabalho desenvolvido por Neves – foi a de que ...E
o céu uniu dois corações também merecia ser retrabalhado e contextualizado numa época
do passado, que traria uma estética específica para os elementos da cenografia e figurino.
Conversando com Zeca no dia seguinte ao espetáculo, pude compreender
melhor o porquê dos elementos do espetáculo estarem arquitetadas daquele modo.
Primeiramente, Zeca explicou que entende que a peça também necessita ser retrabalhada e
que estava, inclusive, buscando meios para tornar essa empreitada possível, através do
envio de um projeto para um edital público.
Zeca explicou, então, que a peça é anunciada com o atrativo “Tubinho fazendo
o gago” e que, portanto, o público precisa rir. Dessa forma, ele procura inserir a comicidade
259
em momentos que não interfiram diretamente nas cenas dramáticas das outras personagens.
Por esse motivo, por exemplo, o texto original foi alterado e Juca não aparece no último
ato, momento ápice da dramaticidade da peça, em que ocorre o velório da mocinha da
trama, Neli.
Então, perguntei: “Mas por que você anuncia a peça desse modo?”. Fiz essa
pergunta porque, na minha cabeça, só conseguia pensar que isso “atrapalha” o espetáculo,
pois diminui a sua potência dramática. Então, Zeca me explicou:
Eu trabalho com vários dramas anunciados como dramas. E o retorno de público
é muito pequeno... A gente tem um público muito pequeno. E O céu eu gosto de
trabalhar assim, usando o nome do Tubinho, que eu construí durante a praça, pra
trazer o público. Porque é uma peça que eu quero que as pessoas vejam. E quando
eu digo isso não estou falando de dinheiro, não estou falando de bilheteria. Eu
quero que as pessoas vejam essa história porque é uma história que, pra mim, é
um marco do circo-teatro. O cara falar assim “Ah, teve uma temporada de circoteatro na minha cidade, mas não fizeram O céu”... Pra mim é café com leite, não
valeu, entende? Por isso, eu acho que mesmo retrabalhando, eu continuo
anunciando como “A peça em que o Tubinho faz um gago” pra poder trazer as
pessoas pra conhecer essa história. (...) Além disso, pra mim O céu é um
melodrama. Tem gente que fala que melodrama não é drama misturado com
comédia. Pra mim sempre foi. Pra mim melodrama é: partes de comédia, partes
de drama. E acho que O céu é um grande representante disso. De como você
flutuar entre a comédia e o drama 160.
Eu, ingenuamente, continuei com minhas dúvidas, acreditando que o espetáculo
redirigido por Fernando Neves poderia ser usado como “uma fórmula de sucesso” e
aplicado diretamente a todos os outros dramas da companhia. Por isso, perguntei acerca da
transposição do tempo dramático da encenação para uma década passada, de modo a
contribuir para a construção de um acabamento estético para os elementos da encenação.
Zeca, então, me mostrou mais uma vez como seu pensamento está à frente do que eu
poderia imaginar:
Eu acho que sempre que a gente fala de trabalhar esteticamente a nossa primeira
fuga é “Bota numa época que a gente consegue deixar ele mais estético”. E eu
acho que a história do “Céu” é uma história que pode acontecer hoje, do lado da
minha casa, entendeu? É uma coisa que não precisa estar numa época, só pra
gente ter a fuga de deixar mais bonita a estética. Se for só por isso acaba não me
convencendo, porque ela é uma história extremamente atual. Então eu acho que
160
Zeca em entrevista concedida à autora em 23/08/2014.
260
quando a gente puxa ele pra realidade de hoje o desafio de deixar a estética bonita
é muito maior. E também tem outra questão, Fer, que o espetáculo que você viu a
gente sobe ele com dois ensaios, né? Então quer dizer foram dois ensaios...
Passando por uma reformulação, daí é claro que a gente ensaia um ou dois meses
esse espetáculo e passa por todo um pensamento, né? Quando eu vou erguer um
espetáculo com dois ensaios, obviamente, eu tento usar muito mais do que já tem
sido feito, pra não complicar pro ator... Evitar mudanças muito grandes, pra poder
o espetáculo e fazer a noite 161.
Depois de toda essa conversa interessantíssima com Zeca, sempre solícito e
generoso, compreendi que se pensarmos o espetáculo isoladamente, talvez a escolha de
outros elementos cênicos e interpretativos pudessem, sim, auxiliar na constituição de um
melhor acabamento. Porém, isso aos meus olhos, de alguém que estuda teatro, que advém
do meio acadêmico, que tem uma visão mais crítica sobre o assunto etc.
Já para o público que o Circo de Teatro Tubinho quer e precisa atingir – aquele
do interior, que vai da dona de casa ao prefeito da cidade – o espetáculo como está funciona
e agrada. Esse espetáculo é apenas um entre os tantos outros que esse público assiste
durante a temporada, de maneira que compreendi que o fato de se assistir à dezenas de
espetáculos e ver o palhaço Tubinho nas mais diversas situações é mais marcante para o
público do que a análise de um espetáculo em si.
Além disso, em uma conversa anterior, ainda em 2013, Zeca havia destacado o
fato de que o repertório do circo é amplo e possibilita, portanto, a exploração de variados
estilos, que visam agradar o público, também pela diversidade:
O público que a gente atinge tá muito acostumado com a novela, demais
acostumado com a novela. Quando a gente foi fazer O céu, eu peguei e falei
assim "Gente, eu vou pegar O céu e vou transformar praticamente numa
novelinha, como se fosse a novela das nove. Então eu vou pegar a trilha de amor,
vamos pegar o que tiver tocando na rádio, o que tiver, tocar e tal”. O elenco falou
"Meu Deus, mas o que é isso? A gente acabou de vir de um processo, modernizou
o circo-teatro e agora você vai pegar música que toca na rádio e vai fazer o tema
de amor dos dois?". E eu falei "Vamos fazer e vamos ver no que dá?". Fizemos.
A hora que tocava - era uma música sertaneja, uma dupla da moda –, a hora que
tocava assim, eu tava fazendo o Juca, eu desci e fui pra plateia. A hora que entrou
a música, que era uma música que o cara escuta na casa dele, a plateia inteira fez
“Ahhhh”. Por quê? Porque o cara tá acostumado com a novela, é o que ele tá
acostumado a ver. Aí o próprio elenco falou "Agora a gente que não tá
entendendo porque você traz o pessoal de São Paulo pra modernizar e você
mesmo puxa pra trás?!". Aí é que eu falo: não precisa ser oito ou oitenta, a gente
161
Zeca em entrevista concedida à autora em 23/08/2014.
261
tem mais de 100 espetáculos. Hoje vamos fazer uma novelinha, porque o cara
gosta de ver uma novelinha, amanhã a gente faz uma outra coisa. Então eu acho
que isso abriu um leque pra gente, esse pensamento abriu um leque pra gente. Por
exemplo, o Ferro em brasa é uma peça que me não permite transformar em uma
novelinha. Agora O céu uniu dois corações é um cara que é super malvado, que
quer destruir o amor de dois jovens e que pra isso ele tem um comparsa e ele
mata a menina e vai no velório da menina pra ver se ela morreu... Isso é muito
novela, é muito novela, você entendeu? Então porque é muito novela, a gente
trabalha com um público que gosta de novela, então por que não? 162
Figura 91: Drama ...E o céu uniu dois corações. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Dessa forma, o Circo de Teatro Tubinho tem em seu repertório mais de cem
peças, sempre levadas à cena de modo muito dinâmico, utilizando-se muitas vezes de
músicas, cenas cantadas e coreografias. O público é completamente incluído no jogo
cênico, apesar de ser mantido no escuro, com a luz de plateia sendo acesa em momentos
pontuais em que Tubinho se dirige diretamente a alguém do público ou em cenas que
utilizam o corredor entre as cadeiras como espaço cênico.
162
Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013.
262
Para finalizar, a seguir listo as principais peças que compõe o repertório do
Circo de Teatro Tubinho. A relação foi disponibilizada por Zeca e distribuída em categorias
elencadas em consonância com a própria nomenclatura utilizada pelos artistas do circo
163
:
Quadro 2 – Lista do repertório de peças do Circo de Teatro Tubinho
Comédias
1.
Casamento do Tubinho (O)
2.
Como sequestrar a minha sogra?
3.
Divórcio do Tubinho (O)
4.
E o Tubinho apareceu (original: comédia “O Aparício”)
5.
Ghost ou não Goste, Tubinho do outro lado da vida
6.
Marido numero 5 (O)
7.
Tubinho a Garota verão
8.
Tubinho candidato a prefeito de ________ (nome da cidade onde o circo
está)
9.
Tubinho contra a Múmia do Faraó Kuekakagadam
10. Tubinho contra Lampião, o rei do Cagaço
11. Tubinho contra o chupa cabra
12. Tubinho contra o Frankenstein
13. Tubinho contra o Gaúcho de Passo Fundo
14. Tubinho contra o Lobisomem
15. Tubinho contra o Louco do 2º andar
16. Tubinho de Mini Saia
17. Tubinho e a cobra do Alibabá
18. Tubinho e a Escrava Isaura (original: drama “A Escrava Isaura”)
19. Tubinho e a mulher do trem
20. Tubinho e a mulher nota mil
21. Tubinho e a noiva do defunto ou A Bomba
22. Tubinho em Lua de mel a três
23. Tubinho e o ET de ________ (nome da cidade onde o circo está)
24. Tubinho e o morto que não morreu (original: “Tagadagadá”)
25. Tubinho e Sua Família na capital
26. Tubinho e Todo mundo em pânico ou A Casa dos fantasmas
163
Zeca afirmou em entrevistas que sua companhia possui em torno de sento e vinte peças no repertório, de
forma que esta lista, disponibilizada pelo próprio Zeca, encontra-se incompleta.
263
27. Tubinho na Casa da Mãe Joana
28. Tubinho na Casa do Big Brother
29. Tubinho na Casa do Nenonho
30. Tubinho no espeto
31. Tubinho no Velório
32. Tubinho o advogado de mulheres
33. Tubinho o agente 00 quase 7
34. Tubinho o caçador de ídolos (original: comédia “A agência Marinelli”)
35. Tubinho o capitão da Tropa de elite
36. Tubinho o craque do futebol
37. Tubinho o domador de Mulheres
38. Tubinho o exterminador do teu furo (original: drama “Os bandidos da serra
morena”)
39. Tubinho o Falso Conde ou Tubinho o hóspede da pensão maluca
40. Tubinho, o homem da pistola torta
41. Tubinho o Irresistível Gostosão
42. Tubinho o leiteiro do bairro _________ (nome de um bairro famoso da
cidade onde o circo está)
43. Tubinho o Macumbeiro
44. Tubinho o professor aloprado (Cabocla Bonita)
45. Tubinho, o rei do gatilho (original : drama “O castigo do céu”)
46. Tubinho o sobrevivente do Titanic
47. Tubinho, o soldado trapalhão
48. Tubinho o terrível beijoqueiro
49. Tubinho, o Tigrão de ________ (cidade onde o circo está)
50. Tubinho, o Todo Poderoso
51. Tubinho quer mamar
52. Tubinho vai ser mamãe (O)
Dramas
53. Canção de Bernadete (A)
54. Deixe-me viver
55. Ébrio (O)
56. Em busca da paz
57. E o céu uniu dois corações
58. Ferro em Brasa
59. Filhos de ninguém (Os)
264
60. Meu filho, minha vida
61. Não Julgueis
62. No rancho fundo
63. Pagador de promessas (O)
64. Seu único pecado (O) (original: “Maconha, o veneno verde”)
65. Alladin e o gênio da lâmpada
Infantis
66. Cinderela, A gata borralheira
67. Elefantinho que caiu do rabo do cometa (O)
68. Gasparzinho, o fantasminha camarada
69. Gênio travesso (O)
70. Gnomos - uma aventura encantada
71. Marcelino pão e vinho
72. Orquestra dos bichos (A)
73. Pinocchio
74. Príncipe, a bruxa e o feiticeiro (O)
75. Rei Leão (O)
76. Ursinho pimpão (O)
Comédias picantes
77. Bobeou a gente pimba!
78. Casa dos Prazeres (A)
79. CSI _______ (nome de um bairro da cidade em que o circo está)
80. Sexo por encomenda
81. Tem um defunto na Zona da Chica
82. Tudo em cima da cama
Stund up
83. Senta que o Tubinho vai entrar
Espetáculo de
84. Obrigado _________ (nome da cidade em que o circo está)
despedida
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho
3.4 Elementos da encenação
O Circo de Teatro Tubinho baseia sua cenografia, assim como os circos-teatro
do passado, como o próprio Pavilhão Arethuzza, na utilização do recurso do telão, sempre
articulado com outros elementos cenográficos. Os telões geralmente são pintados à mão por
Dionísio Martins, primo de Zeca, que também é um excelente ator.
265
Quando assisti a peça Biribinha e o caso da língua que foi engolida, no Teatro
Biriba em Blumenau, também foi utilizado um telão ao fundo, porém não pintado à mão,
mas sim uma plotagem, uma foto ampliada do interior de uma casa. A tentativa de
reprodução, em duas dimensões, de uma casa “real” me soou menos interessante do que a
utilização do telão pintado, que se articula melhor com os demais elementos da encenação,
criando-se uma estética mais condizente com o caráter anti-ilusionista do circo-teatro.
Em entrevista, Dionísio Martins contou que seu dom para o desenho foi
descoberto ainda durante a infância, pois gostava muito de copiar desenhos de histórias em
quadrinhos, como o Mickey e o Pateta. Ao crescer, sempre trabalhou no meio teatral e os
amigos de outros grupos o chamavam para pintar alguns cenários e telões; desse modo,
num aprendizado autodidata, Dionísio pesquisou e praticou desenho e pintura de telões,
cenários e até carretas.
Dionísio relatou que Zeca lhe dá as diretrizes básicas do que é necessário que
seja pintado no telão (se deseja, por exemplo, a ambientação do interior de uma casa rica ou
de uma casa pobre) e que ele realiza a pintura, após algumas pesquisas, principalmente na
internet.
A respeito dos materiais utilizados, Dionísio afirma que, para a confecção dos
telões, utiliza vários tipos de materiais, não só o tecido:
(...) tem vários tipos de materiais... Pode ser compensado, eucatex, que a gente
chama, eu trabalho com EVA, espuma... Eu sou bonequeiro também. Tem um
espetáculo aqui o Tubinho, o rei do gatilho que foi pintura em tecido e também
em compensado. São vários materiais que são usados, mas geralmente a base do
circo-teatro é telão em tecido. E eu uso tinta látex a base de água. Em madeira, às
vezes, a gente usa esmalte sintético, eu trabalho também com pistola de gravidade
que é parecido com o grafite. 164
Dionísio ainda frisou o fato de que um mesmo telão deve ser pintado de modo a
poder ser utilizado em várias peças. Este fato tem uma explicação simples: é inviável que
uma companhia itinerante com um repertório de cem peças transporte um cenário diferente
para cada uma delas. Desse modo, um telão que representa o interior de uma casa rica, por
164
Dionísio Martins em entrevista concedida à autora em 15/03/2014.
266
exemplo, pode ser utilizado em várias encenações, alternando-se apenas os elementos
cenográficos constituintes da cena e suas disposições.
Além dos telões, utilizados desde a estreia do circo em 2001, encontramos mais
recentemente na cenografia do Circo de Teatro Tubinho o que os circenses chamam de
arcada – uma espécie de sobreposição de telões ou um telão e uma cortina, que aumenta a
profundidade do palco – e cenários em três dimensões, como a casa e a capela, armada em
meio ao público, de Cabocla Bonita, redirigida por Ésio Magalhães.
Com relação aos figurinos, Ana Dolores contou em entrevista que, nas
primeiras praças, os vestuários eram guardados em caixas de papelão nas casas alugadas
pelos circenses nas cidades. Hoje, o Circo de Teatro Tubinho conta com uma carreta só para
o acervo de figurinos e acessórios, que contabiliza mais de seis mil peças. Lucélia Reis,
Cristina Martins, Débora Ignácio e Viviane Martins são as encarregadas de, todos os dias,
montar e separar os figurinos do elenco que subirá ao palco na peça da noite. Em entrevista
Débora Ignácio contou sobre a rotina de trabalho na carreta de figurinos:
Bom o figurino, ele é separado por peças. Algumas roupas são próprias do
figurino de cada peça e outras são montadas. Tipo, um cômico normalmente já é
pronto, agora um terno e uma gravata a gente monta na hora. Tem coisas que já
são fixas daquele figurino e tem coisa que a gente monta na hora. Então tem umas
três araras de roupa que é só de figurino pronto e o resto da carreta, que é a maior
parte, são peças soltas, que são só calças, camisas, paletós, ternos, vestidos. Aí
tem os “malões” de madeira que são onde fica os adereços, que é uma peruca, um
lenço, uma gravata; e daí a gente monta de acordo com o personagem. E nós
temos cadernos e no computador também... Tem anotado o nome de cada peça,
com cada personagem e tudo que usa. E a gente sempre segue isso, porque são
muitas peças... Mais de cem agora. (...) Então tem um relatório com o nome da
peça, nome da personagem, normalmente até quem faz o personagem, pra daí a
165
gente lembrar... logico que às vezes troca...
165
Débora Ignácio em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
267
Figura 92: exemplo de lista de figurino da peça Tubinho o rei do gatilho, 2013.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
268
Através do registro fotográfico dos espetáculos do Circo de Teatro Tubinho,
desde sua estreia até os dias de hoje, percebemos nitidamente a transformação e o
refinamento pelos quais os elementos da encenação dos espetáculos passaram. O
crescimento financeiro da empresa foi acompanhado pelo crescimento artístico dos
circenses, que, além de atores, também desenvolvem as funções ligadas à concepção e
confecção dos cenários, figurinos, iluminação e trilha sonora dos espetáculos.
Figura 93: Tubinho contra o Lobisomem, em 2008.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
269
Figura 94: Tubinho contra o Lobisomem, em 2008.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
Figura 95: Tubinho contra o Lobisomem, em 2014.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
270
Figura 96: Tubinho contra o Lobisomem, em 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Figura 97: Tubinho, o exterminador do teu furo, em 2008.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
271
Figura 98: Tubinho, o exterminador do teu furo, em 2008.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
Figura 99: Tubinho, o exterminador do teu furo, em 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
272
Figura 100: Tubinho, o exterminador do teu furo, em 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Figura 101: Tubinho o rei do gatilho, em 2002.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
273
Figura 102: Tubinho o rei do gatilho, em 2013.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
Nas entrevistas, todos os artistas do circo de Tubinho foram unânimes em
afirmar que o grande salto, ligado às questões de ordem estética dos espetáculos, ocorreu
através do contato com os diretores convidados e suas equipes no projeto de reelaboração
de repertório do Ministério da Cultura e Petrobrás. Os artistas afirmaram que este projeto
foi um divisor de águas na história da companhia, pois lhes proporcionou o entendimento e
reconhecimento do trabalho técnico que já possuíam, bem como a abertura a novos olhares
e a apreensão de novos elementos para a criação artística.
O projeto ocorreu de 2010 a 2013 e estabeleceu as seguintes parcerias:
Fernando Neves, da companhia Os Fofos Encenam, de São Paulo, redirigiu o melodrama
Maconha, o veneno verde, que passou a ser anunciado como O seu único pecado; Paulo
Faria, da Cia Pessoal do Faroeste, de São Paulo, redirigiu o infantil O príncipe, a bruxa e o
feiticeiro; Ésio Magalhães, do Barracão Teatro, de Campinas/SP, redirigiu a burleta caipira
Tubinho, o professor aloprado, que passou a ser anunciada como Cabocla Bonita e Hugo
274
Possolo, da companhia Parlapatões, Patifes e Paspalhões, de São Paulo, redirigiu a comédia
Tubinho, o rei do gatilho.
Além disso, impregnado pelos novos conhecimentos adquiridos e pela
constatação dos já existentes, Zeca redirigiu o drama religioso A canção de Bernadete e
dirigiu um novo espetáculo infantil, escrito por ele mesmo, A orquestra dos bichos.
Zeca é um artista de circo e, como tal, percebeu a necessidade de seus
espetáculos se revitalizarem, incorporando as tendências atuais capazes de auxiliar na
consolidação de um melhor arcabouço para o desenvolvimento técnico dos atores e dos
elementos da encenação, visando sempre, em última instância, a melhor comunicação com
o público.
Zeca vislumbrou que, com este projeto de reelaboração de repertório, os
espetáculos de sua companhia poderiam crescer significativamente com o auxílio de um
olhar de fora, de artistas competentes e sensíveis, que entendessem a lógica que rege o
espetáculo no circo. Em entrevista, contou:
Porque o primeiro momento - eu podia te inventar milhões de coisas, mas não dá
- o primeiro momento, eu pensei “Eu preciso de um projeto de peso pra comissão
olhar e falar „quero aprovar o projeto‟”. E aí qual foi a primeira coisa que eu
pensei "Como é que eu posso fazer isso que tenha esse peso, que o projeto seja
aprovado, mas que seja interessante pra gente?". Aí eu pensei nessa questão de
que a gente - como é que eu vou te explicar? A gente tava começando a ter um
nome... A galera começou a falar "Tubinho, Tubinho" e eu sabia que a nossa
qualidade de espetáculo era a mesma de quarenta anos atrás... Era igualzinho,
sabe? Então eu falei "Eu acho que tá na hora de dar uma chacoalhada. Mas como
dar essa chacoalhada?” Aí eu pensei nisso de abrir as portas pra que alguém
viesse mexer no nosso trabalho. Quando eu escrevi isso, foi muito fácil,
entendeu? "Ah, vai ter um tanto de diretores, vão mexer em tais peças". Quando
começou e a gente falou assim "Vai mexer na Maconha”, que era o primeiro... A
gente tinha levado o Maconha há pouco tempo e, nossa, acabou a plateia tava
chorando, vinha abraçar a gente e tal. Eu falei "Gente do céu... vai mexer, vai
mudar tudo, vai ficar uma porcaria!", Sabe, aquela coisa toda... E daí quando a
gente foi lá e começou a trabalhar com os Fofos a gente foi vendo que era
exatamente o que a gente fazia, modificado e que também funcionava! 166
Riccielly Lunardi contou em entrevista que, num primeiro momento, o restante
do elenco também ficou apreensivo e receoso diante das mudanças, assim como Zeca:
166
Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013.
275
Riccielly Lunardi: (...) A gente tem um trabalho muito bonito, porque esses
textos estavam muito atrasados, eles vinham da década de 50, 60, 70 e a gente
nunca mexia, a gente levava hoje como era naquela época. Até que ano passado,
com o projeto que o Pereira França Neto fez, a gente conseguiu trazer diretores de
São Paulo, pessoas com nome muito conceituado e criamos coragem de mexer
nesses espetáculos. E aprendemos a tirar a carga excessiva que, nós, atores do
pavilhão antigo trazíamos na bagagem. Então isso aumentou em muito a nossa
criatividade, nossa experiência. (...) A gente tinha “peninha” de mudar alguma
coisa que a gente aprendeu a gostar muito, tipo o espetáculo Maconha, o Veneno
Verde. A gente via que tava errado, que tinha que ser feito com alguma coisa, mas
sempre "Ah, vai mexer? Mas sempre foi levado assim. o que os mais antigos que
assistiram vão dizer? Puxa, olha o que fizeram com o espetáculo e tal". Mas
chegou um tempo que “Ou mexe ou para de levar”. Então a gente optou por
mexer e o resultado foi muito bom 167.
Na entrevista que Zeca concedeu ao Serviço Social do Comércio (Sesc) de
Santo André-SP, em 15/10/2014, fica claro como o ousado projeto se apresentou como algo
determinante nos rumos da companhia e como o elenco se mostrou aberto às novas
possibilidades levantadas pelos diretores convidados:
A primeira preocupação era fazer como eles queriam sem tentar... Não seria
“discutir” a palavra... Sem tentar se apegar à tradição. (...) Porque quando você
faz a mesma coisa há cinquenta anos do mesmo jeito e vem alguém e fala “Agora
você vai fazer diferente”, você fala “Opa!”. A primeira coisa é que você bota um
escudo na frente. E isso a gente falou “Não vamos fazer. Vamos entender e
depois, em cima disso, modificar o que a gente entender que é interessante”. E
isso foi muito bacana porque teve coisas que a gente viu, assim, que não
funcionaram e que a gente tinha razão e falou “Olha, isso não podia ter sido
mudado”. Mas, por outro lado, teve muita coisa que a gente falou assim “A gente
achava que isso não ia dar certo e veio outro olhar e nos mostrou que também dá
certo”. O que a gente fez foi abrir a cerca do circo, né? Porque é outro mundo...
Às vezes a gente tá numa cidade e a gente fala assim “Ó, tô indo na cidade!”.
Quer dizer, você tá no centro da cidade, mas você vai sair da cerca, você fala “Tô
indo na cidade”. Você entendeu? E isso acontece também com os saberes da
gente. (...) E a gente conseguiu fazer isso: abrir a cerca e dialogar e entender que
a gente também precisava se modernizar, eu acho que isso foi a melhor coisa que
aconteceu com a gente. Foi entender que o nosso espetáculo estava funcionando,
estava lotando, mas que a gente podia se comunicar melhor com o nosso público
através dessa troca com essas outras companhias 168.
Como exemplo de um dos trabalhos realizados, cito o desenvolvido por
Fernando Neves e a companhia Os Fofos Encenam, sempre mencionado nas entrevistas
167
Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
Trecho da entrevista de Zeca ao Serviço Social do Comércio (SESC) de Santo André-SP, em 15/10/2014.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=57J7XQD4WCI
168
276
com os artistas do Circo de Tubinho como algo extremamente importante na evolução da
companhia.
Fernando Neves foi o primeiro diretor convidado a trabalhar com o elenco de
Zeca na remontagem, em 2010 e 2011, de Maconha, o veneno verde, chamada agora de O
seu único pecado. Tive a oportunidade de assistir ao espetáculo em 2010, antes do trabalho
com Neves, quando o circo fazia uma temporada especial no Memorial da América Latina,
em São Paulo.
Lembro-me que o desempenho dos atores e a verdade e fé cênica com as quais
contavam a história me impressionaram, principalmente porque os elementos da encenação,
ao invés de lhes amparar e alavancar a representação, quase fazia o caminho oposto. O
cenário era simples e o figurino pouco teatral, no sentido de se assemelhar às roupas do
cotidiano da atualidade. Além disso, a trilha sonora era excessivamente dramática, o que
quase levava ao riso, e composta por diversas referências musicais.
Porém, ao entrevistar os artistas o que ouvi foi que o espetáculo como estava
antes da remontagem funcionava muito bem e levava o público às lágrimas. Percebi então
que a impressão que tive é típica de um público mais especializado, pois o espetáculo já
agradava o público para o qual o circo comumente trabalha – o do interior, mas que vai da
dona de casa ao empresário bem sucedido. Porém, com a direção de Fernando Neves, o
novo espetáculo passou a dialogar ainda melhor com o público típico do circo e a dialogar
com outros públicos, inclusive o especializado. E tive certeza disso no dia em que o Circo
de Teatro Tubinho apresentou este espetáculo na sede do Barracão Teatro, em Campinas,
em maio de 2014. O público – composto em sua maioria por estudantes de teatro e artistas
de Barão Geraldo, que desenvolvem trabalhos dos mais diversos estilos teatrais – ficou
simplesmente extasiado com a apresentação.
Nesta remontagem, Fernando Neves abordou o trabalho pelo viés da encenação
e da interpretação dos atores. Em relação às questões de ordem da encenação, destaco que o
espetáculo passou a ser ambientado na década de 1950 e de 1970 – após uma passagem de
tempo na trama –, o que tornou a história contada mais verossímil, sendo que todos os
figurinos, criados por Carol Badra e a cenografia, de Marcelo Andrade, seguiam os estilos
das duas épocas. Além disso, houve uma grande mudança com relação à trilha sonora,
277
concebida por Fernando Esteves, e ao desenho de luz, criado por Eduardo Reyes. Todos
esses artistas da companhia Os Fofos Encenam receberam assistência para a criação do
próprio elenco do circo de Tubinho, que pôde aprender novas técnicas e conceitos que
passaram a ser aplicados aos demais espetáculos da companhia.
No documentário realizado pela Esfera Produções acerca deste projeto do Circo
de Teatro Tubinho em parceira com a Petrobrás, Marcelo Andrade, responsável pela
reelaboração do cenário do espetáculo em questão diz:
Quando eu entrei em contato com eles a maioria dos painéis, que essa é uma
característica do circo-teatro, esses painéis que são pintados, onde você determina
o local onde está se passando a situação... É que eram telões pintados
basicamente no látex... A tinta bem carregada, os traços bem carregados... E na
revisitação desse trabalho dentro da nossa companhia, a gente procurou pensar
numa coisa de uns tons mais pastéis, na coisa não tão grifada.
Desse modo, os telões de O seu único pecado foram desenhados em giz de cera,
trazendo mais leveza e mais descrição para a encenação.
Ainda sobre o trabalho com a companhia Os Fofos Encenam, os artistas do
circo de Tubinho destacaram em entrevista a importância do trabalho desenvolvido junto a
Carol Brada, de concepção e confecção dos figurinos, e a oficina de maquiagem ministrada
por Leopoldo Pacheco.
278
Figura 103: Maconha, o veneno verde, 2009.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
Figura 104: Maconha, o veneno verde, 2009.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
279
Figura 105: O seu único pecado, 2012.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
Figura 106: O seu único pecado, 2012.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
280
Após ter aprendido e se reinventado com o trabalho guiado por Fernando Neves
e os demais diretores convidados para este projeto, Zeca finalizou-o dirigindo o espetáculo
A canção de Bernadete.
Nesta remontagem, Zeca inovou o espaço cênico do circo ao utilizar não só o
palco, como também o chão do interior da lona, para o desenvolvimento da ação dramática.
Neste espetáculo, o público é disposto numa arena circular, criando uma espécie de
picadeiro onde se desenrola parte da peça, enquanto o palco é utilizado como a gruta onde a
Virgem Maria aparece para Bernadete.
Em entrevista, a atriz Cristina Martins disse que, num primeiro momento,
duvidou da escolha cênica de Zeca. Porém, este se mostrou, mais uma vez, um artista
ousado e aberto à incorporação de novas possibilidades de construção de cena; ao mesmo
tempo, o elenco também “comprou a ideia” de Zeca, mostrando a grande disponibilidade
para o trabalho existente nesta companhia. O resultado não podia ser outro: um espetáculo
belíssimo e um verdadeiro sucesso de público. Cristina Martins chegou a afirmar, ao final
da entrevista que, para ela, A canção de Bernadete é, no momento, o espetáculo mais
bonito do Circo de Teatro Tubinho.
Figura 107: Drama A canção de Bernadete, 2013.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
281
Figura 108: Drama A canção de Bernadete, 2013.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
3.5 Ensaios e processos de criação
A primeira visita que fiz ao Circo de Teatro Tubinho, como parte da pesquisa
de campo dessa pesquisa, ocorreu de 03 a 08 de dezembro de 2013, quando o circo estava
armado na cidade de Boituva/SP. Apesar de já conhecer Zeca, não tinha muito contato com
restante do elenco e era a primeira vez que eu passaria vários dias seguidos num circo.
Quando cheguei estava extremamente ansiosa e, ao mesmo tempo, me sentindo
muito envergonhada por não conhecer ninguém. Porém, rapidamente fui acolhida por Zeca
e sua esposa Angelita, que me apresentaram àquelas que se tornariam minhas grandes
amigas: Morgana Lunardi, Débora Ignácio, Lucélia Reis e Ana Dolores.
Ao chegar ao circo, no período da tarde, Zeca me levou até sua carreta onde
Angelita estava digitando o texto da peça que seria levada aquela noite. Era uma terça-feira,
dia dos espetáculos infantis, e a peça apresentada seria O ursinho Pimpão. Angelita estava
atualizando a última versão escrita do texto, pois naquele dia ela iria substituir a irmã de
Zeca, Luciane Rosã, que estava se recuperando de uma cirurgia.
282
O papel que Angelita iria assumir era justamente o do protagonista da peça, o
ursinho Pimpão. Por esse motivo, Angelita estava apreensiva, pois apesar de conhecer bem
o espetáculo, nunca havia feito aquele personagem. Ao terminarem de atualizar o texto,
Angelita e Zeca conversaram:
Angelita: Amor, não vai quase nada pelo texto.
Zeca: Mas isso você já sabia. Você tem que botar na cabeça que você vai fazer o
palhaço! A história tá aí e é só botar caco.
Angelita: Eu sei, mas não pode correr senão fica curta... 169
Angelita e Zeca partiram, então, para a lona, onde o restante do elenco que
participaria da peça os aguardava para o único ensaio antes da apresentação. Com o texto
nas mãos, Angelita dava suas falas em um tom completamente neutro, sem intenção e até
com pouco volume. Ana Dolores assumiu a posição de ensaiadora e ia passando as
marcações, inclusive, de ações e intenções para Angelita.
Angelita contracenava, na maior parte do tempo, com Viviane Martins e
Nicolas Alexandre, que interpretavam duas crianças. Durante o ensaio “a frio”, Rafael,
responsável pela iluminação e sonorização dos espetáculos, passava as suas marcas, alguns
outros artistas circulavam pelo palco, montando o cenário para a noite e algumas crianças
brincavam pela lona.
Angelita ensaiava e, ao mesmo tempo, vigiava os filhos. Ela lia, “a frio”, o
tempo todo o texto e não se recordava de algumas marcas. À medida que os artistas
terminavam de ensaiar suas cenas, iam se retirando da lona e voltando para suas casas. Ao
fim do ensaio, Angelita soltou: “Bom, seja o que Deus quiser”.
Confesso que foi o que eu pensei também. A minha sensação era de que,
certamente, o espetáculo dali a algumas horas seria uma catástrofe. E qual não foi minha
surpresa quando, à noite, Angelita surgiu muito bem caracterizada de ursinho Pimpão e
com uma complexa construção física de personagem, na qual voz e corpo se encaixavam de
tal forma que era impossível acreditar que aquela mesma atriz, cheia de receios há algumas
horas, interpretava tão bem aquele personagem.
169
Conversa entre Angelita Vaz e Zeca no dia 03/12/2013.
283
Angelita parecia se lembrar do que Zeca havia lhe dito à tarde e atuava como o
palhaço da peça, arrematando todas as piadas muito bem levantadas pelos demais atores.
Ao fim do espetáculo, as crianças que haviam aparentemente se divertido durante toda a
peça, ainda levaram para casa um brinde da companhia, uma jogada de marketing que Zeca
desenvolve há alguns anos e que alavancou a noite das crianças no circo. Após o espetáculo
Zeca passou por mim sorridente e falou: “Pode falar que você ficou assustada quando viu o
nosso ensaio, vai!”.
Realmente havia ficado assustada, mas o susto maior ainda estava por vir: dias
depois, Zeca me escalou para fazer a mocinha Sofia da peça Tubinho na Casa do Nenonho.
O espetáculo criado por Zeca – um compilado de vários esquetes e enredos tradicionais –
traz à cena diversos personagens que receberam uma carta misteriosa para comparecer a
uma festa num castelo. Porém, ao chegarem ao local descobrem que apenas um deles sairá
vivo de lá.
À tarde eu e o elenco tivemos um ensaio rápido, de marcação das minhas cenas,
de forma que só foram passadas as cenas em que eu estava presente. Ou seja, Zeca me
narrou uma sinopse da história, mas eu só iria conhecê-la mesmo a noite, na hora da
apresentação!
Minha personagem entrava em cena apenas no fim do primeiro ato e no
segundo ato fazia muitas escadas diretamente para o palhaço. Havia, por exemplo, uma
cena longa de paquera, bem conhecida no universo circense, que transcorria da seguinte
forma: o amigo de Tubinho paquerava uma mulher e Tubinho, então, decorava os dizeres
do amigo para usar com minha personagem, pensando que, como o amigo estava se saindo
bem, se ele fizesse exatamente a mesma coisa comigo também me conquistaria. Porém,
quando ele vinha falar comigo eu lhe fazia perguntas diferentes das que a mulher havia
feito a seu amigo, que lhe exigiriam respostas diferentes. E exatamente nesse ponto
residiam as piadas: eu lhe perguntava algo e ele repetia exatamente a frase dita pelo amigo,
independente da minha pergunta. Por exemplo:
Mulher: Você tem uma fazenda?
Amigo: Tenho.
Mulher: E o que você cultiva lá?
284
Amigo: Eu planto a mandioca.
Mulher: E tem animais?
Amigo: Galinha.
Mulher: Ah, galinha?
Amigo: É, e uma vaca também.
Tubinho ouvia o que o amigo dizia à moça e vinha, então, falar comigo:
Fernanda: Você tem mesmo algum carinho por mim?
Tubinho: Tenho.
Fernanda: E se passássemos a noite juntos? O que você faria?
Tubinho: Eu planto a mandioca.
Fernanda: Você pensa que eu sou o que?
Tubinho: Galinha.
Fernanda: Uma galinha?
Tubinho: É, e uma vaca também.
Além do exemplo acima, havia outros tantos diálogos que se desenrolavam da
mesma forma. Ou seja, eu não poderia errar a ordem das perguntas feitas a Tubinho de
modo algum, senão a piada não se completaria. E ainda havia outras tantas piadas entre
Tubinho e minha personagem.
Quando acabou o ensaio Angelita me ajudou a lembrar, novamente, da ordem
das piadas e eu, então, as escrevi em meu caderno e corri para a carreta de Ana, onde fiquei
até à noite, tentando decorá-las. Parei por uns instantes para ir à carreta de figurino e
Débora me ajudou a escolher um vestido. Perto das 21 horas fui para o palco. Todas as
personagens, com exceção da minha, entravam pelo corredor da plateia, ou seja, eu estava
sozinha na coxia.
Havia muito tempo que eu não ficava tão nervosa antes para entrar em cena. Eu
estava fazendo o papel de uma mocinha, que comumente não faço em meus trabalhos, e era
tudo tão incerto que eu mantinha um único pensamento: “Vou fazer o meu melhor para não
atrapalhá-los”. Assim a peça começou e só então vi os atores, já no palco, muito bem
caracterizados. O espetáculo se desenrolou bem e eu estava totalmente ligada e atenta, pois
um descuido naquela situação tão improvisada comprometeria todo o elenco.
No meio do segundo ato, em uma das cenas, Tubinho me mostrava uma foto
sua de infância. E não é que Zeca entrou em cena sem a foto, denunciou o erro para a
plateia – que acredito ter sido proposital – e foi até a coxia buscá-la, me deixando sozinha
no palco? Estremeci por dentro. A minha vontade era de gritar “Tubinho, volta aqui pelo
285
amor de Deus!”. O que fiz? Escapei pela minha via “palhacística” e soltei um “Ói, que
tonto!” para a plateia, um dos bordões mais conhecidos de Tubinho. Como respostas
vieram algumas poucas risadas e uma certeza: eu não estava ali para fazer piada, para ser
engraçada. Isso era função de Tubinho. Eu estava ali para ser a mocinha e lhe servir de
escada. E isso já era suficientemente complicado.
A peça continuou e, somente após minha última cena no terceiro ato, me dei
conta de que não sabia como a peça terminava! Enfim, a peça terminou e descobri a história
por completo. Pronto! Havia estreado num circo de teatro e agora podia voltar a respirar!
Eu nunca havia passado por uma experiência artística parecida com aquela, que me suscitou
milhões de sensações e uma vontade enorme de tentar de novo.
Dias depois, quando retornei para Campinas ainda fui surpreendida pelo fato de
que diversos espectadores que estiveram no circo naquela apresentação, acharam meu perfil
no site de relacionamento Facebook e me enviaram solicitações de amizade. Essas pessoas,
que já tinham ido algumas vezes ao circo, queriam saber quem eu era, se eu havia entrado
para a companhia, etc.
Depois desses primeiros dias, desses primeiros sustos seguidos de deliciosas
surpresas, ao assistir aos outros ensaios e na convivência com os artistas fui
compreendendo melhor como se dava a rotina de trabalho naquele circo e, principalmente,
como se estruturava a arte de ator daqueles artistas.
Quando o circo estreou em 2001, segundo Ana Dolores, a companhia ensaiava
de manhã, de tarde e ainda à noite, depois do espetáculo. Isso porque era necessário criar
um repertório amplo, que possibilitaria a realização de temporadas mais extensas em cada
cidade. Não havia textos escritos e tudo era passado oralmente, ou nas palavras dos
próprios circenses, de “orelhada”.
Com o tempo, o repertório se solidificou e eles passaram a registrar por escrito
os textos, como uma forma de documentação do trabalho desenvolvido.
Hoje, após quase quinze anos de estrada e apresentando todas as noites, os
ensaios continuam acontecendo, porém com menos frequência, geralmente quando o
espetáculo foi levado há meses e precisa ser rememorado ou no caso de substituição no
elenco.
286
E mais uma vez, percebo as afinidades existentes entre o circo-teatro e a
commedia dell’arte. Dario Fo comenta acerca de Franca Rame, organizadora de seu livro
Manual Mínimo do Ator e descendente de uma família de cômicos dell’arte:
Por descender de artistas de teatro, Franca teve a grande sorte de viver, quando
criança, o clima da comedia à italiana. Em sua família todos eram atores que
percorriam a alta Lombardia realizando récitas. (...) O fato de esse grupo ter um
repertório tão rico em comédias, dramas e farsas permitia que se apresentassem
durante meses na mesma praça, mudando de espetáculo a cada noite. Segundo
Franca, não existia a necessidade de ensaiar ou bater o texto. O poeta da
companhia, o tio Tommaso, juntava os atores e distribuía os papéis, recordavalhes as trama descrevendo-a por quadros e atos, depois afixava na coxia uma
espécie de escala, no qual estavam escritas as várias entradas e o argumento de
cada cena. Acontecia também de montarem um espetáculo completamente novo,
tirado de uma crônica ou de um romance. Tio Tommaso, o poeta, lia aos
integrantes da companhia o roteiro por ele preparado, recheando-o dos mais
vivazes e interessantes detalhes, e depois distribuía os papéis. Não se efetuavam
ensaios; subia-se no palco e, após dar uma olhada na “escala” das sequências e
das entradas, começava-se a atuar completamente de improviso. Cada um
conhecia uma infinidade de diálogos apropriados, que naturalmente variavam de
acordo com a ocasião, e principalmente saia de cor e salteado os assuntos de
abertura e encerramento, isto é, as frases e os gestos convencionados que
indicavam aos outros intérpretes as variantes, as mudanças de situação ou
aproximação do final de um quadro, do ato ou do espetáculo. (...) Evidentemente,
as confusões nesse tipo de atuação eram frequentes, havia perdas de ritmo,
congestionamento de piadas, que se anulavam umas às outras. Girava-se em torno
do nada, o espetáculo parecia enjoativo, e o riso era um fim em si mesmo. Mas
havia os que conseguiam manter o espetáculo sempre de pé. Isso dependia
também do rigor que o diretor da companhia sabia impor ao elenco... mas acima
de tudo estava a habilidade e a feliz cumplicidade que se conseguia estabelecer
entre os cômicos e o público a cada récita. (FO, 2011: 19, 20 e 23).
Dessa forma, o ensaio representa, para os atores circenses, assim como
representava para os cômicos dell’arte, algo diferente do que representa para um ator com
formação mais ligada ao teatro oficial – como é meu caso. Esta última categoria de ator, por
não se apresentar todas as noites, tem no ensaio um importante momento de busca de sua
técnica pessoal. Porém, o fato de não estar diante de um público, muitas vezes, leva este
ator a ensaiar de forma displicente. A velha ideia de que “treino é treino e jogo é jogo”
prevalece e, portanto, a apropriação do ato de se ensaiar de maneira contundente é algo que
o ator deve buscar por toda a vida. Em relação a isso, Yoshi Oida comenta:
287
Quando estamos fazendo um exercício, tendemos a pensar „ah, isso é só um
exercício; se eu cometer um erro, não tem a menor importância‟. Entretanto, se
cometemos um erro no palco, temos de seguir adiante e tentar compensá-lo. Não
podemos parar e recomeçar. Na verdade, não podemos, de modo algum, nos dar
ao luxo de cometer erros. Atores tradicionais que constantemente “testam” seu
trabalho na frente de um público de verdade estão acostumados com esse tipo de
problema, e seu trabalho tem um foco definido e imediato, mesmo quando estão
apenas treinando. Todos os atores deveriam pensar desse modo quando se
exercitam. Quando praticamos, é bom imaginarmos que estamos fazendo os
exercícios na frente de um público. Rapidamente isso se torna importante, de
modo que nos comprometemos totalmente, escapando de um certo desleixo.
Desse jeito, a qualidade de nosso trabalho irá aumentar, e o treinamento será
verdadeiramente útil. (...) O corpo aprende alguma coisa quando percebe que está
sendo “observado”. Isso não é narcisismo ou exibicionismo, e nosso próprio
corpo simplesmente fica acostumado a ser observado. Sendo assim, quando
estamos realmente de frente a um público real, nosso corpo já está habituado a
isso, de modo que não seremos surpreendidos por situações inesperadas e
aterrorizantes. Na realidade, o público é o verdadeiro espelho. Não sei realmente
como interpretar meu papel até o momento em que esteja em frente a uma plateia.
É naquele instante que eu descubro. A sala de ensaio é apenas a preparação que
leva à descoberta. O público é quem me diz como devo atuar (OIDA, 2007: 44,
45, 46 e 88).
O artista circense é aquele que se forma, ao longo de muitos anos,
primeiramente pela observação diária dos artistas mais experientes da companhia, de forma
que ele vai sendo inserido, aos poucos e em pequenos papéis nas representações. Após este
período de adaptação, o artista passa a se formar também no palco, no exato momento da
representação diante do público todas as noites, e não na sala de ensaio. Desse modo, ele
tem a oportunidade de se exercitar e construir sua técnica pessoal sem precisar imaginar
que está diante do público, porque ele realmente está, noite após noite.
E mais: ele se forma já na “linha de fogo”, por estar diante da plateia e, assim
como descrito por Oida, não pode se dar ao luxo de errar. O artista circense, então,
necessariamente precisa agradar e fazer com que o espectador volte na noite seguinte.
Afora tudo isso, ainda há o desafio de levar a cena um espetáculo diferente todas as noites.
Lucélia Reis escreveu em seu diário de bordo, no dia 21 de janeiro de 2010, sobre os
desafios envolvidos no trabalho do ator circense:
Aqui um desafio me surgiu. Uma das mais notáveis e comentadas vilãs da
história do circo de teatro me caiu como uma pedra do alto do céu nas mãos. E eu
preciso segurá-la com todo o conforto que uma boa atriz seguraria. Nesse
momento, a menos de 24hs da encenação do espetáculo e eu nem com 50% do
texto decorado vejo a personagem de várias formas: um desafio, uma bomba, um
288
medo, uma crença... Mas, acima de tudo uma prova. Vários pensamentos me
surgem: Se eu tivesse mais tempo! Mas a prova é justamente essa no circo de
teatro: o tempo para se compor um personagem é mínimo e ele tem que existir
verdadeiramente. Minha expectativa é comigo mesmo. Meu desafio é meu.
Minha crença é minha. Minha prova eu me coloco. Penso em sua voz, em seu
corpo, mas o que me intriga é a alma de Irmã Terese; e tenho apenas uma
madrugada para conhecê-la. Para conseguir ganhar a sua confiança de modo que
ela se abra para mim e me mostre seus defeitos e segredos mais íntimos. Preciso
conquistar irmã Terese em uma única oportunidade de encontro com ela 170.
Com o relato anterior de Lucélia percebo algo ressaltado, inclusive por outra
atriz, Ana Dolores, em entrevista. Ana me atentou para o fato de que no Circo de Teatro
Tubinho, assim como nos demais circos de teatro, o trabalho de criação do ator é, na
maioria das vezes, um ato solitário. Geralmente não há a elaboração de processos criativos
coletivos e, dessa forma, cada ator percorre o caminho que melhor lhe convém para a
criação de suas personagens. Numa espécie de auto-direção, o ator constrói seus
personagens e, num segundo momento, Zeca, o diretor artístico da companhia, ressalta
alguns pontos, dependendo de como se desenrolou a apresentação.
Acerca disso a própria atriz Lucélia Reis levantou em entrevista:
Cada ator sabe... Cada um estipula seu limite, até onde você quer ir, até onde
você tem que aquecer o seu corpo, a sua voz, porque você que vai saber até onde
vai. O trabalho do todo, ele é muito... Isso eu acho muito engraçado... Porque
como é que você consegue essa unidade cênica, se você não tem processo? Eu
acho muito louco isso 171.
Refletindo sobre esta questão suscitada por Lucélia, levanto a possibilidade de
que chega-se à unidade cênica, apesar dos artistas trabalharem pelo viés da criação de modo
mais individual, porque existem paradigmas muito concretos que fundamentam o trabalho
de todos. E, dentro deste contexto, buscando a sua continuidade e permanente incisão na
vida das cidades por onde passa, o circo precisou manter alguns destes paradigmas e alterar
tantos outros.
Uma das maiores mudanças ocorridas nos circos-teatro das regiões Sudeste e
Sul, já mencionada anteriormente, foi o fato de que as poucas companhias remanescentes
170
171
Lucélia Reis em seu diário de bordo, concedido à autora.
Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
289
passaram a se dedicar exclusivamente às peças de teatro, não apresentando mais a primeira
parte dos números de variedades. Dessa forma, esses circos driblaram as adversidades e se
reinventaram, de modo que a maioria dos espetáculos teatrais passou a ser protagonizada
pela figura do palhaço, que se tornou o carro-chefe dessas companhias, chamadas de circo
de teatro.
Porém, essas companhias mantiveram a característica de representar uma peça
diferente a cada noite, de um repertório de dezenas de espetáculos. Este fator ainda é o que
mais intensamente determina os alicerces da arte de ator num circo de teatro como o do
Tubinho, por exemplo. E a articulação destes alicerces constrói, por sua vez, uma rede de
combinações que sustenta todo jogo cênico “brincado” entre atores e plateia.
O primeiro alicerce, num circo de teatro como o de Tubinho, consiste no fato de
todos estarem em cena a serviço do palhaço. Ele é a figura central da companhia e, em
cena, arremata todas as piadas – verbais e físicas – levantadas pelos outros atores,
conhecidos como escadas, que continuam a utilizar da tipologia para a construção das suas
personagens.
A maioria dos espetáculos – que pertencem ao gênero da comédia – não está
centrada na encenação do texto dramatúrgico, mas sim na situação de jogo criada entre os
atores e a plateia. E este jogo abre grande margem ao improviso que ocorre, porém, não de
maneira totalmente livre e aleatória, mas sim embasado em diversos recursos, sendo o
principal a criação de um repertório em comum e a afinada cumplicidade cênica
desenvolvida ao longo dos anos entre esses artistas.
A questão da improvisação se estende, no Circo de Teatro Tubinho, para a
relação espacial dos atores em cena. Diferentemente do que vimos no capítulo anterior
acerca do Pavilhão Arethuzza, no circo de Tubinho não há a marcação rígida do
posicionamento dos atores em cena e a divisão do palco por áreas e setores. Porém, apesar
disso, há um intenso jogo criado pelos deslocamentos em cena, incorporado ao fazer desses
artistas, e a utilização de termos como “cair” e “tomar a cena”. Sobre isso, Zeca comentou
em entrevista:
Na cena é mais a questão de entender até uma questão de jogo cênico que quando
290
uma pessoa chega ela demora um pouquinho a entender, mas com duas semanas,
três semanas a pessoa já entendeu. Porque as peças não são marcadas né, não tem
marca de cena, você vai pra lá você vem pra cá, você tá no meio você tá... Isso
não existe então, quer dizer é uma marca de cena meio no olho assim, se tem um
ator vindo pra cá eu automaticamente vou me colocar em outro ponto da cena
porque a cena naquele momento é daquele ator, né? E quando a cena não é minha
eu também tenho que entender que eu tenho que tá olhando pro outro ator que tá
fazendo pra eu seguir a linha de raciocínio dele porque isso não tá marcado, né?
Essa é uma coisinha que ás vezes o ator quando chega aqui meio que se bate meio
que "ih onde eu fico, onde eu vou?" porque não tá marcado, e entre a gente vira
quase que um ping- pong assim: eu tô aqui eu cruzei pra cá. Se eu tô cruzando pra
lá, você pode ter certeza que no meio da minha fala o outro ator já atravessa pra
outra marca pra limpar onde eu tô indo, né? Isso é uma coisa que acho que
demora um pouquinho mais pra entender que o improviso. O improviso a pessoa
entende um pouquinho mais rápido porque ela entende que é uma grande
brincadeira, que é uma “tiração de sarro”, que eu vou “tirar sarro” da pessoa e que
a comédia vive de improviso, mas acho essa questão cênica de marcação sem
estar marcado que é uma combinação que a gente tem, sem combinar, é o mais
difícil de entender 172.
Há alguns anos, algumas peças no circo de Tubinho usavam o recurso do ponto,
que constituía, portanto, mais um alicerce para os atores em cena. No documentário Circo
de Teatro Tubinho (2006), da pesquisadora Ana Lúcia Ferraz, há uma cena do espetáculo
Maconha, o veneno verde, antes de ser retrabalhado por Fernando Neves, em que Lucélia
“ponta”, da coxia, uma cena entre Luciane Rosã e Zeca. Em relação a esse período em que
utilizavam o ponto, Lucélia Reis destacou em entrevista o aprendizado proveniente de se
“pontar” uma peça:
Lucélia Reis: Eu aprendi muito, que na época em que eu cheguei aqui no circo,
ainda se trabalhava com ponto. Então eu aprendi muito pontando, tempo de
piada, eu aprendi pontando, tempo de texto, tempo de risada... (...) Porque você
quando você tá pontando, você tem que ouvir muito a cena, ouvir muito o
público, pra saber o momento certo de você pontar. Entende? Então eu aprendi
muito pontando, então uma das características também pra você estar no circo
teatro é você estar atento o tempo inteiro 173.
Outro alicerce mantido ao longo dos anos diz respeito ao fato de que no Circo
de Teatro Tubinho, assim como nos demais circos de teatro, o público continua ocupando o
centro das atenções, participando ativamente da representação e constituindo o vértice de
maior peso no jogo da triangulação.
172
173
Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
291
E, por fim, a máxima circense “comédia é pra rir e drama é pra chorar”
continua viva, apesar do público, hoje em dia, apresentar-se inclinado, quase que em sua
maioria, apenas à comédia. Acerca disso, Zeca disse em entrevista:
Zeca: Eu acho muito bacana que o teatro tenha um porquê, tenha um motivo, que
tenha uma mensagem ou que tenha uma visão política. Mas aqui não há lugar.
Você entendeu? Se o cara quiser vir aqui é falar: "Eu quero assistir uma peça pra
mudar a minha vida", ele não vem aqui. Não é aqui que ele vai vir. Porque aqui
ele vai sentar e vai dar risada duas horas ou ele vai se emocionar duas horas. E as
duas coisas tem que ser muito.
Fernanda Jannuzzelli: E isso muda a vida dele sim, Zeca!
Zeca: É, muda, mas de outra maneira. Mas não pelo pensamento. Pela emoção.
Mas tanto na comédia como no drama tem que ser muito. Se o cara assistir uma
comédia ele tem que rir muito. Se for um drama, ele tem que chorar muito. (...)
Mais ou menos não serve pra nada. Tanto pra uma coisa quanto pra outra 174.
Baseados em todas essas premissas, os atores constroem e desenvolvem suas
técnicas pessoais sempre pelo viés da criação, no sentido de que cada um apreende,
incorpora e retrabalha os mais variados estímulos, num trabalho individual de
reconhecimento da articulação possível entre eles. Sobre isso, Tiche Vianna, baseada no
trabalho que desenvolveu junto ao elenco do circo de Tubinho, disse:
E é muito engraçado, porque até hoje quando vou ver os espetáculos eles colocam
pra mim: “Você viu que eu usei, você viu que agora eu faço isso, agora eu faço
aquilo?”. Então é muito interessante ver o quanto eles absorvem. Então é uma
coisa muito diferente de um estudante de teatro... Porque o estudante de teatro,
ele fica muito no teu pé pra saber como ele usa uma coisa que ele tá fazendo ali
em sala, como é que ele se serve disso pra criar. E esse trabalho é eminentemente
do criador. Então eu digo: todos aqueles atores ali são criadores. A sensação que
eu tenho é que todos aqueles atores que estão ali no Circo de Teatro Tubinho, eles
trabalham pelo viés da criação 175.
Na entrevista com Ana Dolores pude entender bem o que Tiche Vianna quis
dizer a respeito destes atores trabalharem pelo viés da criação, no sentido de que se
apropriam das mais diversas referências e fazerem uso delas da maneira que melhor lhes
cabe:
174
175
Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
292
Ana Dolores: Não digo que todo mundo faça
isso, mas tem muita gente que quando pega isso,
depois que a gente teve a oficina aqui que vieram
os diretores de fora, você vê também muita
mudança de trabalho. Porque muitas vezes, as
pessoas que trabalhavam no circo, achavam
loucura esse negócio de aquecimento de voz,
aquecimento de corpo. E a gente acabou
acatando isso, que eu acho que é muito isso: você
estar aberto a receber essas coisas e usar. Tem
muitas coisas que precisa usar, tem muita coisa
que não precisa, que EU, Ana, não preciso. De
repente, VOCÊ, Fernanda, precisa. Eu acho que
teatro é muito isso, o ator tem muito disso, eu
acho.
Fernanda
Jannuzzelli:
Algo
de
autoconhecimento?
Ana Dolores: É... Você acaba... É o que você
precisa fazer e o que você não precisa.
Fernanda Jannuzzelli: Pra que, Ana, no final
das contas?
Ana Dolores: Ah, o objetivo maior é o
Figura 109: Ana Dolores como Filoca e Tubinho em
espetáculo ser bom... Bom pro público. E pra
Tubinho, o Tigrão de Sorocaba. Sorocaba, 2014.
você. Por exemplo, quando eu vou fazer um
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
personagem que me exige muito trabalho
corporal, eu aqueço. Quando não, eu não aqueço. Por quê? Porque eu também
tenho que pensar em mim como corpo-matéria-de-trabalho. Se eu me machucar,
eu posso não poder fazer o espetáculo no outro dia, entendeu? Mas não são todos,
tem espetáculo que eu até tenho... Filoca, que tem uma carga de trabalho
corporal, que é no Tigrão, que a gente fez com o Dedé agora no final de semana.
Ela corre o espetáculo inteiro... Difícil uma cena que ela não esteja, é muito
difícil. Só que, por exemplo, o meu corpo já tá condicionado ao corpo desse
personagem. Então eu não preciso aquecer tanto, se eu tiver com alguma dor, eu
dou uma esticada, dou uma alongadinha e tal. Agora, por exemplo, o Rafik do Rei
Leão que eu preciso trabalhar nas pernas e tal, eu tenho que dar uma aquecida
maior. O macaco do Rei Leão. Então eu acho que é muito do ator, tem
personagens que você já domina inclusive corporalmente. Então você não precisa
ficar uma hora se aquecendo, aquecendo o corpo... Porque você já sabe... Já como
vai colocar seu corpo, onde você vai colocar a sua voz, sabe?176
Neste trabalho de criação, os atores se valem de diversas referências,
confirmando-se a ideia de que os circenses incorporam, retrabalham e rearranjam os mais
variados estímulos, provenientes das mais diversas fontes.
Acerca disso, Rubens Brito, ao descrever as lições aprendidas com os artistas
dos circos-teatro visitados pelo Mambembe na década de 1970, escreveu:
176
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
293
A lição primeira é a de causar espanto: o descompromisso do artista em relação a
qualquer tipo de medo. O medo de errar, o de não agradar, o de ser ridículo, o de
ser “pichado” pela crítica. Liga-se a essa primeira, a segunda lição: a liberdade de
se apropriar de tudo aquilo que ele quer a fim de criar sua personagem. Ele se dá
o poder de incorporar a ela, a música que está no primeiro lugar da parada, o
figurino da moda ou o sotaque de algum personagem conhecido da televisão. É
no tablado do circo-teatro que se entende claramente o que é liberdade de criação
(BRITO, 2006: 80).
Ao entrevistar Nicolas Alexandre, sobrinho de Zeca, encontrei nas palavras
deste adolescente de dezesseis anos as mesmas ideias apontadas por Rubens Brito no trecho
acima, acerca da total disponibilidade do ator circense:
Eu acho que, a primeira coisa é que não deve ter medo de trabalhar. Porque por
exemplo, teve muita gente que veio... Algumas pessoas que vieram pra cá que
estavam acostumadas a um mês, dois meses de ensaio, e chega aqui, chega na
hora são dois ensaios, e pronto, acabou. Sabe como? Então, uma das coisas é
essa, de meter a cara a tapa e fazer, sabe? Uma das coisas. Outra coisa também
é... não ter medo do palhaço brincar com você, das pessoas brincarem com você
em cena, acho que é mais ou menos isso 177.
O primeiro ponto determinante na criação da técnica pessoal desses atores é
que, muitas vezes, eles têm como grande referência o trabalho de algum parente mais
antigo, que interpretava os seus personagens anteriormente. Portanto, quando o personagem
chega ao ator, ele já vem construído e carregado de uma forte carga emocional e grande
empatia, afinal quem o representava antes era um de seus parentes.
No drama A canção de Bernadete, por exemplo, Nicolas Alexandre protagoniza
uma das cenas mais belas e tocantes do espetáculo: trata-se do momento em que seu
personagem volta a enxergar após lavar os olhos com a água milagrosa revelada à
Bernadete pela Virgem Maria.
Infelizmente só pude ver a montagem em DVD, pois assim como todos os
outros dramas, A canção de Bernadete é pouco levada no circo. Porém, o desempenho de
Nicolas é tão impressionante que a cena, mesmo por gravação, me arrepiou por completo.
Ao questionar Nicolas sobre como se preparou para o papel, obtive a seguinte resposta:
177
Nicolas Alexandre em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
294
Na verdade assim, antes quem fazia esse personagem era o pai do Dionísio e do
Jailson, então eu já assistia ele fazendo e fui pegando meio que de base. Minha tia
(Ana), meu tio (Zeca), sempre falando para mim “Faz assim”, “Não faz”, “Esse aí
ficou bom” e “Esse aí não”. Eu usei mais a visão das outras pessoas do que a
minha própria visão do personagem. Eu usei bastante o que os outros pensavam
sobre o personagem também 178.
Figura 110: Nicolas Alexandre em A canção de Bernadete, 2013.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
A fala de Nicolas exemplifica, então, o caminho de criação utilizado no circoteatro o qual propõe ao artista um exercício de alteridade baseado na apropriação de um
material exterior a ele, que já lhe é dado por um parente mais antigo e que será retrabalhado
de maneira a se manter vivo, atual e em diálogo com o público daquele momento.
Esse caminho foi possível de ser trilhado, pois, ao ver desde pequeno seus
parentes atuando, Nicolas introjetou uma série de conhecimentos que hoje lhe soam como
algo completamente natural, tamanho o seu grau de pertencimento. Em entrevista, Zeca
discorreu acerca disso:
Então, isso é tão natural pra gente no nosso dia a dia, que hoje eu botei o Nicolas
pra fazer um esquete que ele nunca fez, que ele nunca subiu pra fazer escada pra
mim e todas as escadas dele foram certas. Todas! Não teve uma que ele titubeou.
E isso é feito exatamente como eu te falei: ele cresceu vendo e desde criança ele
178
Ibidem.
295
"Isso tava errado, isso tava certo, isso tava errado, isso tava certo". E aquilo
entrou na cabeça dele... Hoje ele entrou pra fazer, a escada tava pronta!179
Outro exemplo nesse sentido me veio da entrevista com Ana Dolores, que
contou acerca do drama O céu uniu dois corações:
É difícil eu falar do Céu uniu dois corações porque a Santa é a menina dos meus
olhos, né? Porque eu lembro que eu chorava muito com minha vó - eu era criança
- e com a minha bisavó fazendo. Então eu tenho um carinho muito grande pelo
espetáculo, tenho um carinho muito grande 180.
Hoje, neste espetáculo, Ana interpreta Dona Santa, que um dia já foi
interpretada por sua avó, e sua sobrinha Lívia interpreta Neli quando criança, que um dia já
foi interpretada pela própria Ana.
Figura 111: Ana Dolores e sua sobrinha Lívia em ...E o céu uniu dois corações. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Outro exemplo acerca da criação baseada na apropriação de materiais
desenvolvidos por outros artistas foi o trabalho que as atrizes Ana Dolores e Cristina
Martins desenvolveram juntas na composição da personagem Madre Terese, interpretada
179
180
Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
296
por Cristina no drama A canção de Bernadete. Em entrevista as atrizes relataram:
Ana Dolores:
A Cris... A grande pegada dela foi quando ela pegou a Terese pra fazer e eu fazia
a Bernadete. E daí ela se apavorou, então eu pegava ela, ficava no meu quarto e a
gente passava horrores, assim, o espetáculo. Eu já tinha trabalhado com outras
Tereses e aí era “Vamos pegar uma coisa boa dessa aqui, uma coisa boa dessa
aqui... Ó, fulana usava isso e funcionava muito bem... Põe o teu jeito, mas nessa
intenção”. Então é esse tipo de coisa, né? Pra ficar legal, sabe? 181
Cristina Martins:
Terese é uma personagem que eu já namorava desde que eu conheci o Dionísio e
eu vi uma prima dele fazendo. E eu sempre gostei mais dos vilões do que dos
mocinhos. Daí na época, quando o Zeca lançou esse espetáculo, ele... Eu digo
sempre que ele me presenteou com ela. Eu fui logo pedindo ajuda pra Ana.
Porque a Ana, no caso, na época, era a Bernadete. Então a gente tinha muitas
cenas juntas, eu pedia pra ela me ajudar, porque senão eu não conseguiria ajudála também, né? Então foi a Ana que me preparou muito pra essa personagem. E
daí a gente vai descobrindo que, por exemplo, eu já ouvi a vó do Dionísio, que
fez muito tempo a Terese, ela disse pra mim uma vez: "Nossa, muito bem, muito
bem, foi muito bem na Terese. Eu fazia diferente". E eu fiquei interessada, né?
“Mas como? Será que eu posso aproveitar essa diferença?” Aí ela disse "Eu fazia
má, você faz cínica." E eu descobri que realmente, eu fazia cínica. E eu vejo a
Terese até um certo momento do espetáculo, enquanto ela é uma professora, eu
vejo ela má, pouco perversa, um pouco malvada, com a menina. Ela pega muito
no pé da menina porque a menina não aprende, ela não tem muita paciência. E
depois é mais cinismo e é inveja mesmo, a inveja é tão grande que ela chega a
debochar, vira um deboche. É uma personagem muito forte, eu gosto muito. E ela
tem uma postura... Teve uma vez que em uma das minha cenas, eu me lembro
bem dessa situação, eu dei uma gaguejada, e quando eu sai de cena, a Ana me
pegou com firmeza brava e disse "Uma vilã desse porte jamais pode gaguejar, ela
tem que ter muita força, ela sabe muito o que ela quer dizer, ela tem muita
firmeza, ela fala com muita convicção tudo, então você não pode gaguejar
nunca." E ontem ainda eu assisti o DVD, né? Tem uns colegas visitando aqui, e
eles não viram ela mudada depois, né, com a nova direção do Zeca. Daí a gente
tava assistindo e eu percebi que eu ainda abaixo muito o olhar. Essa gravação foi
a segunda apresentação que a gente fez, e a gente comete mesmo o erro e depois a
gente vai modificando, vai corrigindo, né? No DVD eu vejo que eu olho muito
pro chão e eu aprendi numa oficina de teatro que eu fiz com a Tiche e o Ésio, a
Tiche deu uma boa dica de vilão, que eles tão sempre olhando por cima, com ar
de superioridade, os ombros muito retos, uma postura... Então eu aprendi isso e
depois eu fui modificando, mas nessa gravação eu vi que eu ainda pecava nisso,
mas é porque eu ainda não sabia muito 182.
181
182
Ibidem.
Cristina Martins em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
297
Figura 112: Cristina Martins como Madre Terese em A canção de Bernadete, 2013.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
Além de se basear no trabalho dos artistas mais antigos da companhia, os atores
circenses buscam referências no trabalho de quem mais lhes servir para a melhor
construção de suas personagens, de modo que o ato de copiar não é visto como algo
negativo. Acerca disso Lucélia Reis escreveu em seu diário de bordo, no dia 27 de julho de
2010, sobre o espetáculo infantil Aladin:
Agora falando particularmente sobre meu trabalho em Aladin. Fui escalada para
substituir Luciane Rosã, que por sua vez foi escalada para substituir Angelita Vaz
que está nos observando atentamente da plateia com Lívia mamando
incansavelmente. Meu presente foi o Servo. Já havia ouvido muitas histórias
sobre esse simpático personagem. Soube que foi bravamente defendido por
Maurem Miranda para quem a gralha cantou183 e depois por Luciane que sem ter
visto Maurem seguiu pela mesma linha de trabalho. Porém eu não vi Maurem,
mas vi Luciane e sem vergonha alguma de dizer a plagiei. Aqui no circo isso é
engraçado. Quando você não tem muito tempo para pesquisar e compor um
personagem você copia exatamente o que o ator que o representava fazia; pelo
menos você não compromete o espetáculo. E para mim o Servo ainda está nesse
ponto: apenas não compromete o espetáculo. O defendi apenas três vezes com
cinco ensaios. Espero sinceramente poder defendê-lo mais uma vez para que ele
nasça em mim e participe verdadeiramente e humanamente do espetáculo ao
invés de apenas não comprometê-lo 184.
183
184
Referência ao prêmio do teatro paranaense Gralha Azul.
Lucélia Reis em seu diário de bordo, concedido à autora.
298
Figura 113: Jailson Martins e Lucélia Reis em Aladin. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Angelita Vaz destacou em entrevista:
“Copiar” no circo teatro não é ruim de uma certa forma. Como é tudo muito
rápido, você não tem um tempo pra construir um personagem. Como se eu
chegasse e falasse assim pra você “Ah, Fer, vamos fazer tal papel. Você dá uma
lida no texto...”. Não dá pra construir o personagem, não tem como. Então você
“Ah, vou ter referência do que estavam fazendo, vou pegar aquela linha...”. Até
mesmo porque tem outra galera trabalhando com você em cena, então você tem
que seguir uma linha ali, pros outros atores também não se perderem né?185
Dessa forma, os artistas bebem das mais diversas fontes para a criação de sua
técnica pessoal. Ana Dolores, por exemplo, contou em entrevista que para a construção de
sua personagem Dona Santa, além de se inspirar nas interpretações de sua avó e bisavó,
também se baseou no sistema stanislavskiano, estudado por ela há muitos anos, para a
composição da personagem, principalmente no que diz respeito à sua cegueira:
Na Santa eu usei muita coisa do método do ator, do Stanislavski. Muita coisa.
Tipo, quando o Zeca falou "Vou levar o Céu e você vai fazer a Santa", eu passei
muito tempo sozinha na minha casa vendada. Fazendo as coisas vendadas, depois
tirando a venda, mas com o olho ainda fechado, depois com a luz apagada, depois
185
Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
299
com o olho aberto, tendo a mesma sensação desde a venda, desde o olho fechado,
pra sentir... Fiquei com a canela roxa, bati muito a mão, cotovelo, mas teve uma
época da venda que eu conhecia o meu quarto vendada, eu achava agulha assim
com o olho vendado 186.
Já Nicolas Alexandre e Lucélia Reis exemplificaram a questão da extrema
liberdade de criação que o circo proporciona aos atores e como estes estão sempre a se
reinventar:
Nicolas Alexandre:
No Tubinho, Rock Mão Boa, por exemplo, é uma luta de boxe e eu sou o juiz e eu
já tentei fazer uma coisa diferente, tentei buscar o do UFC. Porque já era
comédia, era tudo esculhambado mesmo, Então, meio que busquei o narrador do
UFC, até em caracterização do personagem mesmo, do cabelo, de pintar o cabelo
de branco mesmo. Eu já busquei apresentadores, só que de outra categoria,
diferentes também 187.
Lucélia Reis:
Você compõe em cena, você compõe o personagem em cena. Você ensaia, você
tem uma ideia do que você vai fazer, daí você joga essa ideia na hora da peça. No
CSI aconteceu comigo isso, eu fiz o meu personagem numa linha e meu
personagem não existiu! Eu falei "Meu Deus, eu preciso mudar essa linha, porque
é um personagem bom". Eu mudei completamente, assim, uma coisa que não
tinha nada a ver, absurda assim, eu falei "Meu Deus, é absurdo, mas eu preciso
acreditar em alguma coisa... É nisso que eu vou acreditar agora." A gente já levou
essa peça em outras praças e tal... E até então meu personagem era aquilo. E eu
percebi que o meu personagem podia ter mais, ele pedia mais, eu precisava criar
alguma coisa nele além. Daí quando estreou aqui, eu fiz a simples riquinha filha
dum magnata, louca, que toma remédio... Mas eu falei "Putz, mas cabe mais, né?
Pô, é tão livre pra gente fazer, o que que eu podia fazer nessa liberdade toda?".
Daí eu fiz... Depois que foi duas vezes o CSI eu fiz ela viciada em academia.
Então numa cena eu entrava pulando corda, na outra com pesinho na perna, outra
eu entrava com halteres, o velho morria e na cena da morte eu entrava com toca
de natação e óculos de natação e ficava exercitando... São coisas absurdas mas
pode... Pode, cabe tudo... Entende? E isso é foda, isso é fantástico assim. E vai da
sua crença. Eu nunca entendi a tal da fé cênica, "Ah, a fé cênica, a fé cênica..."
Aqui eu entendo o que é fé cênica, pode tudo desde que você acredite no que
você tá fazendo, né? 188
Outro caminho usado por alguns dos artistas do Circo de Teatro Tubinho para a
construção de suas personagens é o recurso da criação da gênese da personagem. Ana
Dolores, em entrevista, contou:
186
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
Nicolas Alexandre em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
188
Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
187
300
Eu, às vezes... Tem uma cena que é do Gaúcho de Passo Fundo que a Bruna faz,
e eu sempre converso com ela. Tipo, a Bruna diz "Ai, eu não consigo fazer, não
consigo". E daí eu falei pra ela “Bruna, senta na sua casa e escreve uma história
pra essa mulher. Por que ela casou com ele, o que ela...” Porque isso eu aprendi
também, que quando você tem - é lógico, como faço muitos personagens, eu não
faço isso com todos eles - mas quando eu tenho dificuldade com um deles, eu
faço isso. Tem que saber de onde vem, como vem, como chegou aqui, por que ele
tá falando isso, por que ele é daquele jeito, por que ele anda assim e tal. E daí eu
passei isso pra Bruna 189.
Em seu diário de bordo, Ana Dolores escreveu, no dia 16 de janeiro de 2011,
sobre a criação de sua personagem na peça Tubinho, o leiteiro de ________ (nome de um
bairro da cidade onde o circo está):
Quando a Cotinha me caiu na mão, fiquei muito feliz. É uma personagem
deliciosa, com nuances intrigantes. Ao compô-la pensei muito na primeira fase
dela: uma moça pobre, mas que não se preocupa com isso, pois é apaixonada pelo
marido e gosta do lugar onde vive. Resolvi então deixá-la com uma postura meio
infantil, voz quase de criança, mas com um certo ar de conselheira. É honesta e
cuida do Ventura (cunhado) como se fosse um filho. Ao ver a possibilidade de
ganhar um prêmio de loteria, não almeja grandes posses. Porém isso muda
quando o prêmio se torna realidade. Tem um certo deslumbramento com o
mundo dos ricos, até se ver nele. Não se acostuma com a alta sociedade e passa a
ser chorosa, se sente presa e não se conforma com o deslumbramento de Janjão
(marido). Nessa fase resolvi deixar Cotinha quase “caricata”, fugindo do
estereótipo da mocinha tradicional das comédias de circo-teatro. Andar meio
desengonçado e quase sem postura, típico de alguém que está no lugar errado 190.
Em entrevista, Cristina Martins também mostrou trilhar o caminho da criação
da gênese da personagem:
Tem um espetáculo, que agora tem um tempo que o Zeca não leva, que é o Chá
de Panela, são 5, 6 mulheres, não lembro direito. Quando ele lançou o
espetáculo, eu a Ana começamos a estudar o texto juntas, ela interpretava uma
prostituta e eu uma solteirona. E elas eram todas amigas, uma prostituta, uma
solteirona, uma casada, uma lésbica, um pura/virgem, que eu lembro era isso... Só
que todas eram amigas, todas diferentes, mas todas amigas. Então eu e a Ana
começamos a estudar esse texto e procurando saber, “mas porque que elas tão
diferentes... onde foi que isso tudo começou, essa amizade começou? Porque que
elas são amigas?” Então a gente começou a procurar coisas e dar identidade pra
cada uma delas. Pra conseguir ter um entrosamento e desenvolver uma história
189
190
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
Ana Dolores em seu diário de bordo, concedido à autora.
301
que convencesse todo mundo. E foi assim, foi gostoso, na época foi muito bom
191
.
Outro caminho de criação interpretativa levantado por todos os artistas
entrevistados do Circo de Teatro Tubinho diz respeito aos novos conhecimentos adquiridos
– e a constatação dos já existentes – com o projeto de reelaboração de repertório da
Petrobrás.
Nas entrevistas com os atores do Circo de Teatro Tubinho, foram citados,
muitas vezes, o trabalho com Fernando Neves e as oficinas com os demais artistas da
companhia Os Fofos Encenam, além do trabalho com Ésio Magalhães e a oficina com
Tiche Vianna.
Com relação ao trabalho com Fernando Neves, dissertei anteriormente a
respeito das mudanças que ocorreram nos elementos da encenação do espetáculo O seu
único pecado.
Em relação, agora, à interpretação, destaco que o trabalho de Neves se centrou
basicamente em limpar os excessos de intensidade dramática, não alterando a criação das
personagens baseada na tipologia, distribuída entre os atores de acordo com seus
temperamentos e physique du role. Todas as mudanças trouxeram novos elementos ou
revitalizaram os já existentes, que, dialogados, trouxeram uma unidade cênica ao espetáculo
e tornaram a história mais verossímil dentro dos parâmetros melodramáticos.
Sobre este processo, destaco os pontos levantados, em entrevista, por Riccielly
Lunardi, Luciane Rosã, Zeca e o diretor Fernando Neves:
Riccielly Lunardi:
A gente deu muita sorte porque o primeiro diretor que veio trabalhar com a gente
foi uma pessoa muito sensível, que foi o Fernando Neves. (...) Foi jogado o
primeiro ato pros anos 50 e 70. E o resultado foi magnífico, foi o primeiro
empurrão pra gente, foi o Fernando quem deu. Deu uma limpada no nosso circoteatro, na carga excessiva, como mexer nesses textos que realmente devem ser
feitos e tal, muito legal. Ele passou coisas pra gente, técnicas incríveis. Tipo: o
galã encontra a dama depois de anos e corre pro abraço, se agarram? Não. “Não
faz”, o Fernando passou “Não entrega. A plateia tá querendo isso, mas você não
vai dar isso. Você vai dar tempo...”. Puxa, umas coisas que funcionam, que é
muito legal e que a gente aprendeu e com isso a gente consegue montar os outros
espetáculos. Não só o Fernando, claro, veio um monte de profissional, cada um
191
Cristina Martins em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
302
somou numa parte, veio maquiagem, oficina de maquiagem. Na maquiagem era o
contrário, nós não exagerávamos, precisa ser exagerado, né... 192
Luciane Rosã:
Então, o Fernando veio com uma proposta pra gente de não dramatizar muito a
coisa. A gente vinha, eu trazendo a Maria de antes, ela era totalmente o extremo.
Ela ria muito e chorava muito. E o Fernando deixou esse lado cômico extravasar
bem mais e me permitiu fazer muito mais coisas no lado do cômico e me cortou
totalmente a parte dramática. Ele mostrou pra gente que o sentimento, quem tem
que chorar, é a plateia. Não é... Pra gente foi totalmente diferente. Eu ainda sinto,
porque eu sou muito assim, eu me entrego muito pros personagens. Então às
vezes ele falava assim "Segura aí, não chora, fica com essa cara, não chora, não
derruba uma lágrima". E eu segurava ali, segurava, sabe? Porque ele queria
aquilo, ele queria que a plateia chorasse. Ele queria que a gente segurasse o
máximo a dramatização pra não passar... Vir mais de lá pra cá do que daqui pra
lá, entendeu? Muito mais da plateia pro palco do que do palco pra plateia. E
funcionou de certa forma pra gente. Porque a gente viu que não tem essa
necessidade mesmo de se acabar ali em cena de chorar e o público às vezes chora
com você até certo limite, depois não acompanha a gente 193.
Zeca:
O Fernando mexeu na interpretação. Diretamente na interpretação. O espetáculo é
o mesmo, as falas são as mesmas, mas a forma com que elas são ditas aí mudou.
Primeiro ato tinha uma cena de despedida que era uma choradeira, a primeira
coisa que o Fernando colocou pra gente, foi assim "É bonito, emociona, mas por
que eles tão chorando, cara? Ele só vai a SP levar um dinheiro, ele não sabe nada
do que vai acontecer, entendeu? Ele vai a São Paulo em um dia e vai voltar no
outro, pra que essa tragédia toda?”. Então, quer dizer, hoje virou uma despedida
brincalhona, pra cima e tal, então mudou diretamente na interpretação. E eu acho
que quando isso aconteceu com a Maconha, influenciou todos os nossos dramas.
Diretamente. Às vezes eu sinto um pouco de falta quando eu vou assistir uns
espetáculos dramáticos fora do circo, eu acho um pouquinho de excesso desse
tratamento com os atores. Às vezes você vê que é uma cena que tá pedindo pra
cara dar uma explosão e o cara ainda assim está interpretando e tal e isso chegou
a acontecer com a gente em um determinado momento. Aí eu cheguei e falei
assim "Gente, é bacana, é legal, mas a gente tem que entender, porque senão o
espetáculo vai ficar frio, e não é isso que a gente quer". A Maconha,
especificamente falando deste espetáculo, eu concordo exatamente com o que o
Fernando dirigiu. Quando o Fernando veio, eles nos passaram muita coisa.
Porque ele veio, veio o Fernando, veio a Carol, Marcelinho, Du. Então chegou
uma galera que cada um pegou, por exemplo, a Carol ela falava "Eu vou botar um
botão nessa camisa... eu vou botar esse botão na camisa porque...", entendeu?
Tinha uma explicação porque tinha aquele botão. Isso eu acho que fez a gente
entender, aprender muita coisa, sabe? Isso foi um ponto muito interessante. E a
gente conseguiu entender que cada intervalo que a gente não tinha, tirava um
pouco da história. Então a gente tava pescando o público fechava a cortina “2
minutinhos e a gente já volta". Era um corte na cabeça do público. Então eu acho
que isso influenciou todo o lado dramático em cima do trabalho com Fernando.
(...) Agora tem um intervalo só. Pelo Fernando não teria nenhum. Mas a gente
192
193
Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
303
falou "Poxa, a gente também vive de pipoca, de... precisa ter né?". E você sabe
que isso foi uma coisa que a gente também aprendeu? A gente tinha cinco
intervalos, supostamente “se a peça que tem cinco intervalos, a lanchonete...” e
não. Não mexeu na nossa venda. A gente conseguiu conciliar as duas coisas 194.
Fernando Neves:
O Tubinho é muito inteligente. Eu quis fazer parte desse projeto deles porque ele
claramente está pensando “Como é que eu trago isso pro século XXI”? Então, no
caso da Maconha eu falei pra ele "Olha, primeira coisa: não vamos mudar texto".
Eu já sei que texto de circo é muito alterado, já montado. E tanto é que eles nem
tinham o texto escrito. Aí eles datilografaram, eles foram falando as falas e depois
mandaram o texto pra mim. Então já tá alterado, já tá nesse arranjo aí já há muito
tempo. Daí eu falei pra ele “Olha, a questão não é dramaturgia, mas vamos ver a
Maconha. Aqui diz que é um homem, quer dizer que é o gerente do banco, que
trabalha no banco e o gerente pede pra esse homem pegar uma pasta e depositar o
dinheiro aqui em São Paulo. (...) Não tem cabimento hoje em dia. Banco? Pega o
computador e transfere. Ninguém vai pegar uma pasta de dinheiro e pegar um
trem pra ir pra São Paulo e, primeiro que hoje você pega ônibus, carro ou avião,
não tem isso. Se a plateia não identifica, ela já começa a se distanciar. Você não
vai chegar na emoção que você quer. Agora, se a gente colocar nos anos 50, por
volta dos anos 50, o cara do interior... Ah, e outra coisa, como é que esse homem
agora no século XXI nunca ouviu falar em maconha? Que é isso! Tá na televisão,
tá no computador. A informação hoje não é problema, mas nos anos 50 era”.
Tocava Maria Gadú com a roupa de hoje em dia... Eu falei "No teatro como você
pode manter o seu texto... E vamos jogar pros anos 50, olha que bonito! Dá pro
Fernando Esteves fazer uma pesquisa com os hits dos anos 50... Vamos trazer
essas big bands, essas cantoras americanas dos anos 50. Então você transporta o
público aos anos 50, os costumes, o comportamento da mulher, isso tudo sem
mexer no seu texto”. Passa 20 anos e acontece o tal negócio que a mulher engana
ele e rouba o dinheiro e ele fica viciado, porque depois ninguém o conhece, ele é
dado como morto. “Vamos jogar pros anos 70, olha que legal os anos 70, o
figurino dos anos 70 como é teatral: calça boca de sino, já encanta a plateia. O
cenário, a gente vai mudar as mobílias, botar uns panos. A Carol pesquisou os
tecidos e estampas dos anos 50, dos anos 70, as minissaias, botas”. Daí termina
nos anos 70 e é absolutamente verossímil. (...) E eu trabalhei a interpretação.
Porque eles faziam muita coisa, muita cara. E eu falei "Vamos mexer na
interpretação, seja mais limpo, olha aqui, a plateia tá vendo, o quadro já tá muito
estabelecido... então não precisa fazer tudo isso”. (...) O único que eu deixei foi o
pai dele, então eu falei “Eu quero que todo mundo veja... Eu vou deixar todo
mundo numa linha de interpretação mais atual, mais contemporânea, mas deixar o
pai dele lá, pra todo mundo ver o ator antigo como ele... pra trazer esse requinte...
e eu acho que ficou bem legal”. Porque já tem um tipo, eles já sabem com o que
eles vão interpretar, tem um temperamento e cada um já está no seu lugar. Eles
não precisam encontrar esse lugar, eles já vão pro palco, eles já nascem artistas
sabendo qual que é, que lugar que ele tá. (...) Hoje em dia a história tá sendo
contada e a plateia é muito esperta, ela já sabe. O texto já é escancarado. Quando
começa a peça a plateia já sabe o fim, ela já tá preparada pra chorar que ela sabe
onde vai dar tudo isso. Não precisa ficar anunciando também. Então isso, que eu
trabalhei com limpeza, mas eu não interferi em quem ia fazer que papel, porque
eu sei que é assim! E no melodrama a música é muito presente. Agora, como
antigamente não, uma cena dramática entrava com uma música mais dramática
194
Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013.
304
pra plateia chorar, hoje em dia se a cena é muito dramática ou é o silêncio ou uma
música que sejam uns sons ... Você não pode melar demais. Se a cena é muito
dramática, então não bote uma música dramática, porque a plateia ri. Hoje ou
você faz no silencio ou pega uma música bem dodecafônica, sei lá, qualquer coisa
que traga um estranhamento, como se a cabeça da pessoa estivesse em
desorganização, você trabalha em outro sentido, por outro lado 195.
Figura 114: Cena final de O seu único pecado, 2012.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
195
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
305
Figura 115: Programa da peça O seu único pecado. Na foto o saudoso Bambí, pai de Zeca, 2011.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
Já na remontagem de Cabocla Bonita, o diretor Ésio Magalhães partiu pela
questão do rearranjo da dramaturgia e uma redistribuição dos personagens entre os atores.
Partindo do trabalho desenvolvido sobre a commedia dell’arte, Ésio propôs a readequação
da dramaturgia de modo a se enfatizar o riso pelas situações cômicas, e não pelas piadas do
palhaço, que segundo Ésio, às vezes desvirtuavam a história em demasia, perdendo-se o fio
condutor da narrativa. As músicas da burleta foram resgatadas e criou-se, então, uma
comédia com características diferentes das demais levadas no circo.
Porém, por outro lado, o espetáculo necessita de mais ensaios, o que faz com
que seja levada menos à cena e algumas das alterações precisaram ser revistas, como por
exemplo, o próprio nome Cabocla Bonita, pois o fato de não haver o nome de Tubinho no
título fez com que a quantidade de público nesta peça fosse menor que nas demais
comédias.
306
Figura 116: Luciane Rosã em Cabocla Bonita, 2014.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
Com relação ao trabalho desenvolvido com Tiche Vianna, este se centrou em
questões anteriores à cena, com o desenvolvimento de exercícios e jogos teatrais, inclusive
com máscaras. Os atores do circo de Tubinho sempre se referiam a este trabalho nas
entrevistas como um importante momento de retomada da dimensão do trabalho em grupo
para a construção da cena. Muito se falou, também, sobre o novo olhar que Tiche Vianna
lhes proporcionou acerca da importância do trabalho corporal na arte de ator. Sobre o
trabalho, Tiche comentou em entrevista:
Tiche Vianna: Eles têm uma investigação permanente, eles têm um estudo
permanente, tudo isso era aquilo o que o cômico dell'arte também fazia, porque
ele precisava se relacionar com o espectador. Então na verdade o que eu ensinei a
eles? Eu ensinei a eles que existe um modo de fazer a cena que não pode ser tão
displicente quando a gente tá na coxia. Porque a partir do momento que a gente
tem uma relação quase que familiar a gente ou se respeita demais pra não invadir
determinados aspectos que são pessoais ou a gente cria um amor entre todos nós,
que a gente entende tudo. Os dois casos podem atrapalhar nosso trabalho
coletivo. Então por mais que a gente tivesse fazendo exercícios e ações dentro da
cena, eu não tava ensinando a eles como fazer commedia dell'arte, eles já sabiam
fazer isso. Eu tava limpando uma esfera do trabalho que era cheia de
307
informações, na verdade. A gente tava se ajudando mutuamente, eu posso dizer
isso, a reorganizar o conhecimento e não a adquirir novos conhecimentos.
Fernanda Jannuzzelli: E a constatar que são conhecimentos, né?
Tiche Vianna: Exatamente. E admitir com toda coragem do mundo e todo
respeito do mundo que isso é conhecimento. Que a forma de organização deles,
que o modo de realizar, que o jeito de fazer teatro, que o jeito de montar
espetáculos, a preocupação de continuar caminhando, a preocupação em não
estagnar. Tudo isso fazia parte de uma coisa que eles tinham no grupo deles e que
isso muitos grupos, inclusive que saem da universidade, que tão aí não sei quanto
tempo não fazem. Trabalham de uma forma completamente diferenciada. Isso foi
muito importante. (...)Todo curso que a gente dá aqui no Barracão ele é sempre
inédito, né? Que a gente tem algumas matrizes que fazem parte do jeito de
abordar cada uma dessas coisas e de organizar depende um pouco de quem tá
vindo e qual o recorte que eu vou fazer, que o Ésio vai fazer, o que nós dois
vamos fazer se a gente tiver fazendo juntos. E com eles foi a mesma coisa. Parti
das mesmas matrizes. E eu fui fazendo um recorte pressupondo que não era um
grupo que não sabia trabalhar máscara, ele só não sabia que ele trabalhava
máscara. Era pra que ele entendesse isso, na verdade... que no fundo trabalhando
mesmo. E que existia ali um trabalho de corpo. Eles sofreram um pouco mais
com a coisa do corpo, porque a pegada de corpo é um pouco diferente. Por conta
de você ter uma afinação, ter um esforço físico e você tem que dominar esse teu
corpo nisso. Por exemplo, mesmo o Zeca que tem uma puta pegada de um monte
de coisa, tem um corpo super expressivo, o corpo dele faz aquilo, já fixou
determinados pontos de apoio. Então você reinventar isso ai, você achar outras
coisas que podem complementar... Também é uma investigação. E nisso, acho
que a gente precisaria de mais tempo de trabalho, pra conseguir ir além. O nosso
trabalho terminou num lugar que a gente ainda não conseguiria desconstruir pra
reconstruir. A gente abriu frestas, foi mais isso. Eles conseguiram olhar praquilo
que eles tinham, aquilo que eles faziam, e ter o desejo. Ter o desejo de encontrar
outras coisas e eles partiram pra isso. Em vários níveis, desde uma mudança de
expressão do rosto naquilo que eles faziam, pra um outro tipo de ritmo da cena ,
pra uma concentração. Então cada um foi achando percursos...196
Dessa forma, com este projeto de reelaboração das peças, Zeca e seu elenco se
mostraram extremamente audaciosos e generosos, ao entenderem que apesar de não
“deverem” nada ao teatro oficial, poderiam se apropriar de alguns elementos pertencentes a
este outro tipo de fazer teatral para o melhor desenvolvimento do teatro que realizam
debaixo da lona. Além disso, o projeto foi um momento de constatação e reconhecimento
dos elementos técnicos já presentes no trabalho da companhia. Acerca disso, Zeca disse, em
entrevista:
(...) Uma coisa que eu achei bacana nesse projeto é que teve algumas coisas em
algumas peças, não todas, que eu batia o olho e falava assim "Isso é legal, isso é
bacana, mas isso não vai funcionar lá na nossa lona", porém eu fazia. Quando
196
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
308
chegava e batia e não funcionava, eu comecei a entender o seguinte: eu conheço
esse público, eu entendo desse público. E isso foi uma certeza que o projeto me
deu. Porque eu sempre fazia, sabe? Fazia, apresentava, voltava pra casa e acabou.
Quando isso começou a acontecer, eu comecei a entender isso “Caramba, eu sei
trabalhar pra essa gente, eu sei o que esse público quer ver”. Tem algumas peças
que eu vou ver, em grandes teatros, grandes atores, que eu olho e eu falo "Isso no
interior, das duas, uma: ou ninguém vai ver, o cara vai trabalhar pra 30, 40
pessoas ou vai começar a lotado e vai terminar com 30, 40 pessoas.” Como a
situação inversa também acontece. A gente foi fazer o Lobisomem lá no
Parlapatões e 40% das piadas não funcionaram. Eu falei “E agora?” Na segunda
vez que a gente foi fazer no Parlapatões eu comecei a entender o que aquele
público queria ver e aí foi diferente. E isso que eu vou te falar não é uma crítica,
é uma constatação: o público que vem ao circo ele senta e fala "Ai, vou dar risada
hoje, hoje eu quero dar risada, tomara que o Tubinho esteja engraçado pra
caramba, quero rir!", ele vem com a família e ele quer rir. O público que vai pra
espaços como o Parlapatões, o Satyros, não sei o quê, ele senta, ele põe a mão no
queixo, entendeu, e ele começa a analisar aquilo, você entende? Eu acho que essa
é a grande diferença. E a gente demorou um pouquinho pra entender isso, mas a
gente conseguiu entender que a gente também consegue fazer rir lá. É diferente, é
diferente. Por exemplo, as piadas escatológicas e tal tipo "Ah, vai cagar! não sei o
que, não sei o que", aqui é um tiro, lá não. (...) Então eu acho que tem alguma
coisa meio pra esse lado. Não tô falando mal, tô falando o que aconteceu com a
gente, né? E eu acho que o público que vem ao circo, não. E é muito engraçado
que você pode pensar assim "Ah, mas, então é povão, não sei o quê". Mas se você
olhar a frente do nosso circo, você ver o cara chegando descalço e com o filhinho
na mão e você vê o cara encostar a BMW... Isso é bacana, é muito legal.(...)
Quando eu fui dirigir depois A orquestra dos bichos, o Abel197 que tava fazendo a
assistência de direção pra mim, ele propôs uma coisa e eu falei “Isso é legal”. A
segunda coisa que ele propôs “Legal!”, a terceira coisa que ele propôs eu falei
"Abel, eu não consigo aqui deixar o espetáculo extremamente marcado. Eu tenho
que pensar que esse espetáculo daqui dois, três meses vai ser levado com um,
dois ensaios”. Quando eu crio a direção, eu tenho que criar a direção pensando
em não deixar o espetáculo bonito só naquele dia. Eu preciso limpar o espetáculo
e ajeitar o espetáculo pra que depois eu consiga fazer ele com dois, três ensaios. É
a nossa forma de vida, e o Abel conseguiu entender isso e a gente conseguiu
colocar... O Cabocla Bonita ficou lindo, mas a gente não consegue fazer só com
dois ensaios. Então não é uma forma que eu consigo imprimir pra todos
espetáculos. O que aconteceu com A canção de Bernadete? Também a direção
era minha e eu não... Foi um dos aprendizados que eu trouxe da Canção da
Bernadete: eu preciso deixar o espetáculo melhor, eu preciso deixar o espetáculo
bonito, mas eu não posso deixar ele muito coreografado. Por quê? Porque amanhã
ou depois eu vou ter substituição no meu elenco e eu vou ter que ensaiar duas ou
três vezes porque a temporada tá rolando. Eu acho que tem o que a gente quer,
tem o que a gente não quer e tem o que é possível, então a gente tenta sempre no
que a gente quer e é possível 198.
Mais uma vez, estes artistas se mostraram como verdadeiros atores-criadores ao
incorporarem as novas referências advindas dos trabalhos com os diretores convidados e
197
198
Abel Saavedra , da Cia Serafim de Teatro, de Campinas-SP.
Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013.
309
entenderem o que lhes servia e era possível de ser feito no circo, além de reconhecerem
tecnicamente pontos do próprio trabalho que já realizavam há anos.
3.6 O palhaço Tubinho
Quando assisti ao palhaço Tubinho pela primeira vez eu simplesmente não
acreditava no que estava vendo.
Num primeiro e brevíssimo momento, estranhei o fato de um palhaço,
caracterizado como tal, contracenar com personagens em outro nível de estilização – que
não é tão “cotidiano” quanto um teatro de cunho realista, mas também não chega ao nível
de estilização característico da linguagem do palhaço.
Porém, pouquíssimo tempo depois eu já estava completamente envolta pelo
jogo teatral, de forma que o que soou, num primeiro momento, como um choque de
linguagens, se tornou algo completamente verossímil e até irrelevante. Isso porque aquele
elenco estava me propondo algo simples: apenas que brincássemos juntos.
Mas, ao mesmo tempo, apesar de estarmos cientes de que tudo não passava de
uma grande brincadeira, em nenhum momento o que acontecia no palco soava como falso.
Pronto! Eu estava completamente extasiada.
Todas essas reflexões acerca do que havia se processado comigo ocorreram a
posteriori, pois no momento em que estava assistindo ao espetáculo eu simplesmente ria
como uma criança. E, para alguém que é atriz, que estuda teatro e, portanto, desenvolve
uma visão crítica sobre seu trabalho, esses momentos de total envolvimento e
arrebatamento diante do fenômeno teatral se tornam cada vez mais raros.
E isso não aconteceu só comigo; acontece por onde o Tubinho e seu elenco
passam. Eu pude testemunhar em setembro de 2014, por exemplo, a participação de Zeca
como convidado de honra da 2ª edição do Encontro Geraldo Riso, organizado pelo Coletivo
Geraldo Riso, do qual o grupo que faço parte, Dupla Cia, é um dos integrantes.
Durante uma semana, Zeca nos passou “de orelhada” a comédia A noiva do
defunto, cujo palhaço era o outro grande convidado de honra do Encontro, Teófanes
Silveira, o Biribinha. Além disso, Zeca, Riccielly Lunardi e seu filho Ricciellyinho
310
participaram do Cabaré Geraldo Riso, apresentado pelos grupos organizadores e os grupos
convidados, na unidade do Sesc Campinas.
Como a cidade de Campinas ainda não foi visitada pelo Circo de Teatro
Tubinho, muitas das pessoas que constituíam o público ali presente não conheciam o
palhaço Tubinho. E até mesmo alguns dos artistas dos grupos que participavam do
Encontro Geraldo Riso conheciam a sua fama, mas nunca tinham o visto ao vivo. Zeca, por
sua vez, estava extremamente nervoso na coxia, pois sabia que entraria em cena para
apresentar para um público formado por muitas pessoas “da classe”, diferentemente do
público que frequenta o seu circo.
Como eu já esperava, a apresentação
de Tubinho e seus comediantes foi um sucesso e
quando o cabaré acabou os comentários eram
todos em torno deles. As pessoas queriam saber
quem era aquele palhaço que elas nunca tinham
visto na vida e com o qual tinham morrido de rir.
Além de todos esses acontecimentos,
me lembro desse dia com muito carinho, pois
nessa ocasião tive a oportunidade de estar, como
palhaça Begônia, no mesmo espetáculo que o
meu mestre Tubinho.
Zeca é, sem sombra de dúvidas,
Figura 117: Tubinho (Zeca) e Begônia
(Fernanda Jannuzzelli), no Cabaré Geraldo
Riso. Campinas, 2014.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
agraciado com um talento extraordinário. Beto
Magnani, ator da Cia Pessoal do Faroeste e amigo
íntimo de Zeca, disse no prefácio do livro de
piadas de Tubinho: “Pereira França Neto não
poderia fazer outra coisa senão ser o palhaço Tubinho. O seu talento é mais uma
condenação do que uma dádiva” 199.
199
In NETO, Pereira França (org). As melhores piadas do Rei do Riso. Santa Cruz do Rio Pardo: Editora
Viena, 2006.
311
Além de talento, Zeca possui vocação para a cena e também para a
administração dos negócios do circo. De 2001 até hoje o circo prosperou
significativamente, como vimos já no início desse capítulo e hoje Zeca, com apenas trinta e
cinco anos, é uma grande referência para o público em geral e para diversos renomados
artistas de circo e teatro. Tubinho faz jus ao slogan “O Rei do Riso” e o Circo de Teatro
Tubinho ao slogan “O mundo mágico da alegria”.
Zeca cresceu em meio a uma família circense, pintou a cara pela primeira vez
aos dois anos e trabalhou pontualmente como palhaço, antes do circo, em festas de
aniversário e eventos, porém ainda não com o nome de Tubinho.
Aos dezenove anos, resolveu retomar o circo da família, com o nome do
palhaço herdado de seu tio, Juve Garcia. Porém, como já descrito em uma passagem
anterior desta dissertação, a ideia inicial era que Riccielly Lunardi fizesse o palhaço, pois
ele possuía mais experiências em circo-teatro do que Zeca. Essa mesma história me foi
narrada por Zeca, em entrevista, ainda no ano de 2010, durante minha pesquisa de Iniciação
Científica 200:
Na verdade a maioria das peças não tinha o texto escrito, mas o meu pai sabia.
Daí veio o Ricielly... Na verdade eu contratei ele pra fazer palhaço pra mim,
quando eu contratei. Aí ele falou pra mim: “Cara, o palhaço é a figura central do
seu circo, você vai trabalhar em cima do nome do palhaço. Amanhã ou depois, sei
lá, por algum motivo eu resolvo ir embora, você perdeu todo o seu trabalho.
Então não adianta, o palhaço tem que ser você!”. Daí eu falei: “Mas cara, eu não
tenho gancho, eu não tenho pegada”. “Mas eu te ensino!”. Sabe o que ele fazia?
Em cena, ele preparava a piada, passava por mim e me dava o tempo da piada,
assim no ouvido. Daí eu pegava e dava o desfecho, em cena! E assim foi, ele me
ensinou bastante 201.
Zeca também disse em entrevista, em 2013, que não possui um único ídolo,
mestre ou referência, mas sim que possui vários, o que vai completamente ao encontro do
fato do trabalho desenvolvido no circo ser agregador de múltiplas formas e linguagens:
200
Esta mesma passagem, contada, porém, do ponto de vista de Ricielly, pode ser encontrada também nos
extras do DVD “Senta que o Tubinho vai entrar”, gravado em 07 de novembro de 2010, na cidade de
Cerquilho – SP.
201
Zeca em entrevista concedida à autora em 27/03/2010.
312
Meu trabalho é um pouco de olhar para o trabalho de todo mundo, sabe? Não
tenho, por exemplo, um cara que eu me espelho, que pra mim assim... Tem
algumas coisas que meu pai ensinou, às vezes tem coisas que eu vejo, sei lá, nos
Trapalhões e que eu também uso e, sabe... Então quando eu fui fazer o meu
escritório aqui no circo, eu coloquei tanta imagem assim porque realmente eu
acho que o meu palhaço é uma pitadinha de cada um. Assim, eu fui olhando,
vendo o que era legal, tentando entender o que porque que eles faziam rir, né? E
eu acho que não tem ídolo assim que eu fale "esse cara, me deu o direcionamento
e tal". Eu acho que não justamente por ser uma mistura de uma galera 202.
Figura 118: Escritório de Zeca, 2014.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Desse modo, a partir do fazer empírico, que propõe o aprendizado já no
momento da cena diante do público, Tubinho ganhou vida e amadureceu ao longo dos anos.
Em entrevista, Angelita Vaz comentou acerca do trabalho de seu marido e companheiro de
cena:
202
Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013.
313
É interessante eu falar do palhaço do Zeca, né? Como
eu tô desde o início, desde antes de surgir o Tubinho,
eu vi todo o processo de crescimento né? Hoje o
palhaço tá num amadurecimento... Engraçado que
muitas pessoas buscam uma justificativa pro nosso
trabalho. Porque assim, “Como pode hoje em dia você
atrair tantas pessoas pra baixo de uma lona, 600
pessoas pra baixo de uma lona, pra saírem de frente de
uma televisão, da frente de um computador, vir assistir
um palhaço, que é uma figura assim tão esquecida
pelas crianças de hoje e pelos adultos também... O que
faz essas pessoas virem até aqui, muitas vezes
chovendo, com frio, pisar no barro e ficar essas duas
horas aqui?”. Muita gente tenta achar uma explicação.
Ah, o Tubinho é uma entidade, ele veio e... Mas não é,
é fruto realmente de muito trabalho. Muita gente fala
que não tem explicação. No fundo tem: o Tubinho é
um personagem muito bem construído pelo Zeca, que
levou anos pra ser construído. E ainda está sendo,
porque ele aprende um pouco todo dia em cena. Uma
piada que ele joga hoje, ele sabe que funciona, amanhã
ele vai trabalhar um pouquinho mais essa piada, um
Figura 119: Tubinho em Tubinho de minissaia.
pouquinho mais a outra, vai excluir algumas... Então
Piedade, 2014.
quer dizer, às vezes eu acordo durante a noite ele tá
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
pesquisando algumas piadas, ele vê muito stand up,
tudo em relação à comédia. Se ele vai numa livraria e tem uma coisa de piada, ele
leva tudo. Então é isso, o Tubinho é fruto de um trabalho muito bem feito, muito
bem construído e tá sendo ainda e vai muitos anos trabalhando em cima dele. (...)
É fruto de trabalho, de pesquisa, ele sempre tá pesquisando pra entrar com
alguma coisa nova em cena, além de tudo isso, aquela coisa que eu brinco assim:
você dá vida pra aquele personagem e você tem que viver pra ele, não importa se
tá doente, se tá com febre, você tem que botar a roupa e pintar a cara toda noite...
203
Um palhaço de circo, circo-teatro ou circo de teatro, como o Tubinho, entra em
cena com um único e grande objetivo: fazer rir. E mais: fazer o público “se arrebentar” de
rir. Sem parar. Melhor ainda se chegar a doer a barriga!
Sobre a função atribuída ao riso, destaco brevemente, através das palavras de
Alice Viveiros de Castro, que:
Durante milênios e até nos dias de hoje valorizamos a sabedoria e a capacidade
para vencer, seja lá o que isso signifique. Por isso, a apologia do trabalho, da
moderação, do equilíbrio. Grandes valores, sem dúvida, mas a vida não é só isso:
existe a farra, a festa, o prazer! E assim o homem vai vivendo, equilibrando-se
entre os contrários, compreendendo a necessidade de “ganhar o pão com o suor
do seu rosto”, mas criando mecanismos para escapar das pressões cotidianas,
203
Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
314
reagir aos exageros dos puritanos e se contrapor à tristeza e à violência do mundo.
Millôr Fernandes complementou Aristóteles dizendo que “o homem é o único
animal que ri e é rindo que ele mostra o animal que é”. Pronto. A principal função
do riso é nos recolocar diante da nossa mais pura essência: somos animais. Nem
deuses nem semideuses, meras bestas tontas que comem, bebem, amam e lutam
desesperadamente para sobreviver. A consciência disso é que nos faz únicos,
humanos. (...) Quando Aristóteles diz que o homem é o único animal que ri está
chamando a atenção para o quanto a capacidade de rir nos aproxima dos deuses.
Se só o homem ri é porque o riso está ligado ao espírito e à razão, capacidades
próprias do humano, portanto o riso nos faz superior aos outros animais. Rimos
com o espírito, com a inteligência. Como bem sabe aquele que ri por último
porque demorou a entender a piada, é preciso compreender para achar graça. (...)
O palhaço está presente em todas as culturas, e a mais antiga expressão do
personagem é a que se faz presente nos rituais sagrados. Desde o início dos
tempos, o riso foi e ainda é utilizado como elemento ritual para espantar o medo,
especialmente o medo da morte. (CASTRO, 2005: 15, 17 e 18).
Inúmeros são os estudos que se aprofundam na questão social envolvida no ato
de rir. Porém, minha intenção com este trabalho não é a de adentrar este ponto da questão,
mas sim investigar os aspectos fundamentais, ligados ao riso, que podem servir ao trabalho
do ator.
Douglas Novais destaca:
Devemos observar que é, no mínimo, estranho haver tantas teorias sobre o riso e
tão poucas sobre a comicidade do ator. Entretanto, não devemos deduzir, com
isso, que seja uma insistência infértil produzir teoria para comediantes. Se assim
fosse, deteria minha escrita, deteria meu estudo. Mas, diante dessa disparidade,
temos que reconhecer que a teoria não está exatamente para aquele que quer ser
cômico, mas sim para aquele que quer compreender o cômico de um modo
consciente. Basta reconhecermos que, em termos práticos, engraçado é aquele
que faz rir, não aquele que estuda o fenômeno do riso. Engraçado é o Chaplin,
não o Henri Bergson ou o Aristóteles (NOVAIS, 2012: 63).
Apesar, portanto, de não adentrar profundamente a questão social envolta no
ato de rir, parto do pressuposto básico de que um palhaço entrar em cena para fazer rir é,
por si só, válido e necessário, pois o humor reafirma a sua humanidade, “(...) assim como a
daquele que ri de sua lógica inversa. Isso por que o riso, na sua acepção, se inclui nos
processos biológicos fundamentais do ser humano” (SOUSA JR., 2012: 73 e 74).
Alice Viveiros de Castro nos atenta ainda para o fato de que:
Um palhaço é um ser estranho que bota a mão no fogo, que põe a cabeça na
guilhotina e que se expõe nu em sua tolice e estupidez. O palhaço é diferente do
315
comediante. Ele não conta uma história engraçada. Ele é a graça, ele é o risível. A
torta bate primeiro no seu rosto, o pé encontra a sua bunda e o tapa, a sua cara.
Literalmente o palhaço dá a cara à tapa! Por isso não acho graça em palhaços
cheios de discursos moralizantes ou politicamente corretos. Palhaço quando faz
discurso fala besteira. Palhaço erra. Palhaço não fala sério. Quando o palhaço é
bom, nós, o público, é que escutamos e percebemos o quanto de sério e
verdadeiro pode estar entranhado nas tolices e patetices daquele ser tão
atrapalhado e estúpido. Palhaço não pode vir com legendas explicativas, senão
acaba a graça, acaba a palhaçada (CASTRO, 2005: 257).
Além de possuir uma importância por si só, o palhaço desempenha um papel
fundamental no espetáculo de circo. Segundo Roberto Ruiz: “Antolin Garcia, um dos mais
bem sucedidos empresários circenses do Brasil, afirma que „Circo sem palhaço é um
homem de muletas‟” (RUIZ, 1987: 11).
Repensando a afirmação de Antolin Garcia na atualidade, percebi que nunca
ouvi falar ou encontrei em minhas pesquisas um circo “tradicional” brasileiro, sob o qual
Garcia se refere implicitamente, que não tivesse um palhaço. Apesar desses circos
apresentarem espetáculos completamente diversos, um cirquinho do interior do nordeste
brasileiro e o Circo Tihany, por exemplo, têm em comum, pelo menos, o fato de reservarem
um espaço da apresentação para, pelo menos, um número de palhaço. Contudo, a função
deste personagem no espetáculo varia entre esses circos de grande, médio e pequeno porte:
Nos grandes, os palhaços têm pequenas participações no espetáculo, vindo a
ocupar breves intervalos de preparação do picadeiro para números grandiosos,
como a montagem de jaula, trapézio, etc. Isso provocou mudanças no repertório e
no modo de atuação dos palhaços. O uso da voz e de roteiros falados tornou-se
problemático e a preferência recaiu sobre curtos esquetes mudos. Em
contrapartida, os circos médios e pequenos têm no palhaço sua grande força
motriz, com atuações em entradas, reprises, quadros cômicos e encenações
teatrais diversas, como comédias e dramas (BOLOGNESI, 2003: 12).
Acerca destes circos de pequeno e médio porte, o autor ainda destaca:
A pluralidade do espetáculo circense brasileiro propiciou ao palhaço o
desempenho de papéis e funções que o espetáculo clássico europeu desconhecia.
(...) todo um repertório de comédias foi, aos poucos, sendo formado, de modo que
o artista cômico do picadeiro pôde expandir sobremaneira as suas formas de
atuação. Desse encontro adveio uma forma cênica aberta, formada e baseada na
capacidade de interpretação e de improvisação do palhaço, que teve a liberdade e
a audácia de não estar restrito a gêneros fechados (Idem: 53).
316
Nos circos de teatro da atualidade, que são, em sua maioria, de pequeno e
médio porte, o palhaço é a figura central da companhia. No Circo de Teatro Tubinho, por
exemplo, na marquise onde se instala a lanchonete do circo, há pôsteres de fotos dos
artistas e suas assinaturas. Todos estão com trajes de gala e assinam seu próprio nome,
exceto Zeca, que está caracterizado como Tubinho e assina como tal, e não como Pereira
França Neto.
No Circo de Teatro Tubinho, quando abre-se a cortina, o espetáculo começa
sempre com algum personagem já em cena, mas nunca Tubinho, pois a sua entrada é um
acontecimento à parte, que extrapola os limites da cena ficcional. Na maioria das vezes,
então, não demora muito a alguém chamá-lo, ao passo que ele entra sempre com a vinheta
“Tubinho, o rei do riso”, provocando a primeira quebra na ficção que havia sido
estabelecida.
Tubinho que, de imediato, já foi ovacionado
pela plateia, agradece o carinho do público
ainda com a vinheta ao fundo, em seguida faz
um gesto para que se interrompa a música e
solta um de seus famosos bordões, “Deus te
ajude!”, tirando o seu chapeuzinho e elevandoo para o alto, acima de sua cabeça. Nesse
momento
a
primeira
risada
coletiva
já
aconteceu e em vários pontos do circo já se
ouve
as
pessoas
repetindo
o
bordão
anteriormente proferido.
Em sua pesquisa que resultou no
Figura 120: Tubinho fazendo sua gag após o
bordão “Deus te ajude!” em Tubinho, o
exterminador do teu furo. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
livro Palhaços, Bolognesi comentou acerca de
uma situação análoga ocorrida no Circo-Teatro
Bebé, caracterizada por essa espécie de riso
espontâneo da plateia, “como se esta estivesse predisposta ao relaxamento e ao riso,
independentemente do enredo apresentado” (Idem: 184). O autor completa:
317
(...) Esse riso autônomo é assegurado por uma espécie de cumplicidade entre a
cena e a plateia, entre o palhaço e o público. Mas, evidentemente, ele ultrapassa o
estágio da predisposição para se tornar efetivo a partir do desempenho do artista,
isto é, de sua atuação (Idem: 184).
Após esse primeiro momento – em que a cumplicidade já está estabelecida pelo
histórico positivo da trajetória do circo naquela cidade, que contempla não só os
espetáculos, como também as demais ações nos campos ético e moral –, a peça se desenrola
e o palhaço “rouba o fio da história de modo a colocar os demais personagens gravitando ao
seu redor” (SOUSA JR., 2012: 95).
Fruto de um árduo trabalho de busca da técnica pessoal de Zeca, Tubinho é um
palhaço extremamente carismático e cativante, no qual percebe-se claramente a sinergia e
conexão existentes entre as suas dimensões interior e exterior, que resultam em uma
atuação verdadeiramente viva. Em Tubinho vemos, de maneira vibrante e enérgica, a
concepção descrita por Bolognesi do que vem a ser um palhaço:
A personagem-palhaço é tributária de um complexo simbólico que opera com um
tipo de cômico geral e uma inspiração individual. Como tipo, ela pode ser tomada
como uma máscara arquetípica, com traços tipológicos característicos. Essa
máscara, contudo, é individualizada e traz as marcas psicossociais que o artista
confere à personagem. (...) A construção da personagem, assim, obedece a um
determinado perfil individual, que se apoia nas características corporais do ator e
em sua própria subjetividade. Mas, para alcançar o estatuto da personagem, o ator
procura adequar suas matrizes internas às características tipológicas do palhaço,
oriundas da tradição da bufonaria. A síntese desses universos distintos propicia a
expressão de uma subjetividade por meio de um tipo cômico aparentemente
imutável. Isso confere ao palhaço um grau de universalidade que se manifesta de
forma particular. Logo, ele é, concomitantemente, único e universal. Assim, ele
materializa no corpo, na indumentária, nos gestos, na maquiagem e na voz os
perfis subjetivos e psicológicos que fundamentam sua personagem. Obviamente,
não se trata daquela psicologia profunda que caracteriza o teatro dramático de
cunho psicológico (BOLOGNESI, 2003: 197 e 198).
318
Figura 121: Zeca, como Tubinho, e seu filho Victor em Tubinho, o exterminador do teu furo. Sorocaba,
2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Tubinho é um palhaço extremamente verborrágico, característica comum a
tantos outros palhaços brasileiros. Veremos mais adiante que, apesar de não constituir um
tipo de teatro centrado no texto dramatúrgico, as encenações no Circo de Teatro Tubinho
exploram, consideravelmente, as ações vocais dos atores.
Porém, apesar de toda verborragia, Tubinho é dotado de um corpo
extremamente expressivo, que fixou determinados pontos de apoio que lhe conferem uma
identidade e que está “em constante alerta para a improvisação e que tem nas reações da
plateia seu necessário impulso”. (Idem:70).
Além disso, Zeca explora demasiadamente os seus diferentes registros vocais,
utilizando toda a extensão de sua voz, de modo que Tubinho tem um jeito próprio de falar –
carregado de seu sotaque curitibano –, que as crianças ao fazerem o personagem
Tubinhozinho, por exemplo, reconhecem facilmente e buscam reproduzir.
Além de todo esse apurado trabalho corporal e vocal, Zeca, assim como os
demais palhaços circenses, explora a composição de Tubinho também fazendo uso de um
figurino e de uma máscara/maquiagem. Como visto anteriormente nessa dissertação, estes
elementos seguem certa tendência de uma tradição de circos de teatro da região sul do país,
319
em que os palhaços usam ternos quadriculados e maquiagens extravagantes nas cores preta,
branca e vermelha. Zeca possui ainda um segundo figurino para Tubinho, também clássico,
composto por uma calça grande e preta, uma camisa amarela e uma grande gravata azul.
Em entrevista, Zeca contou que criou a maquiagem, que usa ainda hoje com
algumas modificações, quando tinha por volta de dezesseis anos, inspirando-se nas
maquiagens de outros palhaços, através da pesquisa em um livro que tinha em casa com
fotos de vários deles.
À primeira vista, um público especializado, porém habituado ao palhaço teatral
– e não ao do circo de teatro – tende a considerar a maquiagem de Zeca um tanto
exagerada, pois praticamente todo o seu rosto é coberto. Ésio Magalhães, por exemplo,
contou em entrevista:
Quando eu olhei a maquiagem do Tubinho pela primeira vez, eu pensei “Nossa...
Muito carregada! Eu jamais me maquiaria daquela forma!”. E, depois, vendo o
trabalho do Tubinho eu olho e eu digo “Mas são máscaras incrivelmente
desenhadas, por causa do rosto dele obviamente, mas a maquiagem ajuda”. A
maquiagem ajuda. Isso é muito bacana. Num primeiro momento eu achei que
aquilo nunca se mexesse. Entende? E não é. Quando você começa a ver o leque
de expressões que ele tem é incrível. E é muito físico, muito corporal 204.
Tubinho possui, então, uma maquiagem impactante e extremamente funcional,
que atua como uma verdadeira máscara, extremamente flexível e que lhe permite a
exploração de múltiplas expressões.
Um dos momentos que sempre me chama a atenção nos espetáculos para esta
questão do trabalho facial e de máscara do palhaço Tubinho ocorre quando, na trama,
algum personagem dá um texto consideravelmente mais longo e ele, mudo de ação verbal,
“joga na máscara” as reações ao que está sendo dito pelo outro personagem.
Ou seja, Zeca cria ações corporais para gerar códigos, capazes de serem
compreendidos pelos espectadores, que indiquem que algo está se processando
interiormente com Tubinho. Isso me faz pensar que, no circo, dificilmente os atores caem
na habitual armadilha de se deterem a aspectos da atuação ligados a ideias abstratas, e não
ao que é materialidade e concretude nesse ofício. Acerca disso, Yoshi Oida diz:
204
Ésio Magalhães em entrevista concedida à autora em 23/04/2013.
320
Como atores, não podemos interpretar uma filosofia, ou uma ideia, ou um estado.
É impossível. (...) Se estamos tentando comunicar o tédio, temos de interpretar
uma versão muito interessante do tédio. Se o público perceber que estamos nos
desviando dele, isso não é tédio no teatro, é teatro entediante. (...) Em vez de
interpretar um estado, devemos procurar por detalhes muito concretos, e, quando
tiverem sido todos reunidos, o público poderá perceber quem você é (OIDA: 105
e 106).
Dessa forma, se um personagem está lhe explicando algo ou lhe dando alguma
instrução, Tubinho nunca fica estático, apenas ouvindo o que lhe é dito. Zeca não tenta
interpretar o estado “estar ouvindo”. Ele realiza uma porção de ações – e por que não
caretas? – que transmitem aos espectadores a informação “o palhaço está pensando”.
Apesar de sua maquiagem se mostrar extremamente funcional, Zeca, como um
bom artista circense, está sempre dialogando com outros artistas e se renovando. De forma
que ele vem testando pequenas mudanças na maquiagem, baseado nas indicações do
trapalhão Dedé Santana que, há algum tempo, lhe sugeriu que diminuísse a largura dos
traçados pretos das sobrancelhas e da boca.
Figura 122: Tubinho e Jailson Martins em Tubinho no velório. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
321
Tiche Vianna, no trabalho desenvolvido com o Circo de Teatro Tubinho,
também levantou a possibilidade de alteração de partes pequenas da maquiagem de
Tubinho. Tiche contou em entrevista:
Eu sempre invoquei um pouco algo com a maquiagem dele. Porque eu tenho
dificuldade de ler os traços do rosto dele e eu gostaria de ler mais. Eu lembro
numa época, acho que quando a gente tava fazendo o curso, isso tava bem
acentuado, eu lembro que me espantou a qualidade das expressões de rosto do
Tubinho... Dele jogar mais com o traçado. Eu sei que agora, a última vez que eu
fui, eu falei “Pô, você tirou um pouco do preto”... Ele tá mexendo, acho que de
alguma forma ele tá buscando um caminho menos caricato entre aspas, bem entre
aspas, o caricato da maquiagem daquele palhaço. Eu sinto que ele tá dialogando
mais a musculatura do rosto dele com o traço. E acho que ela vai se transformar e
também vai melhorar do ponto de vista da expressão “máscara” do palhaço 205.
Nas imagens abaixo podemos ver como estes pequenos detalhes – a diminuição
da altura das sobrancelhas, da largura do risco preto lateral e também o detalhe vermelho na
boca – suavizaram a maquiagem de Tubinho, que passou a dialogar mais com a
musculatura e os traços de seu rosto:
205
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
322
Figura 123: Maquiagem antiga de Tubinho, 2014.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Figura 124: Atual maquiagem de Tubinho, 2014.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Figura 125: Tubinho com sua maquiagem antiga, 2008.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
323
Figura 126: Tubinho com sua nova maquiagem, 2014.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
Figura 127: Expressões faciais de Tubinho, 2014.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet. Fotos: Li Teles.
324
O saudoso pai de Zeca, Bambí, costumava reproduzir a afirmação, comum entre
os circenses, de que todo bom palhaço é um bom ator, mas não necessariamente um bom
ator é um bom palhaço.
Pensando sobre todos os bons palhaços que já vi atuando como outros
personagens e sobre todos os bons atores que já vi se aventurando pelo universo da
palhaçaria, me inclino a concordar com essa informação.
Zeca é um ator de extrema presença física e verdade cênica. E ele atua com
tamanha naturalidade que passa a impressão de que faz isso sem nenhum esforço. Ao ler o
trecho abaixo, escrito por Dario Fo, associei-o diretamente a sensação que tenho quando
vejo Zeca em cena:
Em teatro, o ator deve (...) dar a impressão de estar atuando sem esforço algum e
totalmente descontraído. Porem, não devemos economizar ou atuar em um tom
mais baixo. Devemos, isso sim, aprender a agir com perfeito equilíbrio e controle,
desenvolvendo uma grande potência em progressão inteligente, programada,
localizando cuidadosamente pausas e respirações, de maneira a dar impressão de
que não estamos fazendo absolutamente nenhuma força (FO, 2011: 131).
Um dos momentos que mais me chamou atenção em relação à potência do
trabalho de ator de Zeca foi a cena da morte de Tubinho no espetáculo Ghost ou não goste
– Tubinho do outro lado da vida.
Na trama, Tubinho é um pai de família, que vive estressado e resolve tomar
uma dose muito maior de seus remédios. A cena de sua morte é extremamente construída e
rica em detalhes: a família está em uma acalorada discussão e Tubinho começa a se sentir
um pouco mal, num registro bem menos estilizado do que lhe é costumeiro. O desconforto
vai aumentando e, de repente, a sensação de estranheza causada pela diminuição do nível
de estilização é quebrada por um cômico “Que esquésito”. Com o aumento do desconforto
ele se dirige ao fundo do palco – posição que dificilmente ocupa –, se descabela e solta,
com uma voz doce de criança, a frase “Eu não tô passando bem”, o que nos faz rir
novamente, porém de outro jeito, com certa pena dele.
Então ele toma uma overdose de remédios, que o faz melhorar à primeira vista
e, já dopado, sentencia um de seus famosos bordões, “É divertido!”. Nos momentos finais,
325
no ápice da crise anterior à morte, Zeca abusa dos recursos corporais e das expressões de
suas máscaras, em espasmos que o levam ao chão. Eis que surgem, então, suas últimas
palavras: “O que será que o Datena206 vai falar de mim?”. Pronto. Tubinho morreu, mas o
público está gargalhando.
Dentro da uniformidade de seu tipo, Tubinho transita, sempre de maneira
criativa e, claro, engraçada, pelas mais diversas situações. Dessa forma, em uma peça o
encontramos como o empregado da casa, noutra ele é um fazendeiro que chega à capital
com o restante da família, ou ainda é um professor, um cowboy temido, o capitão da Tropa
de Elite, um candidato ao prêmio do Big Brother Brasil, um lutador de boxe, um marido
medroso que vive preso a “rédeas curtas” pela esposa, um candidato a prefeito da cidade
onde o circo está, dentre outras dezenas de situações. Aqui reside um dos maiores atrativos
do circo de teatro: o público que vai um dia ao circo passa a querer ver Tubinho nas demais
situações sugeridas pelos atraentes títulos das comédias, anunciadas sempre nos intervalos,
também necessários à venda das defesas207 e propaganda dos patrocinadores da cidade.
206
José Luiz Datena é jornalista e apresentador do programa sensacionalista Brasil Urgente, da Rede
Bandeirantes de Televisão.
207
Defesa é como os artistas do Circo de Teatro Tubinho chamam os alimentos vendidos na lanchonete.
Atualmente há a defesa da pipoca, batata, maçã do amor, algodão doce, milho cozido, churros, refrigerantes,
água e cerveja. Além disso, também entra como defesa os anúncios de patrocinadores da cidade. Cada defesa
fica a cargo de um artista, que divide os lucros com a administração do circo.
326
Figura 128: Cartaz da peça O Tubinho quer
mamar, s.d.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de
Teatro Tubinho na internet.
Figura 130: Cartaz da peça Tubinho no velório,
s.d.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de
Teatro Tubinho na internet.
Figura 129: Cartaz da peça Tubinho o soldado
trapalhão, s.d.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de
Teatro Tubinho na internet.
Figura 131: Cartaz da peça Tubinho o sobrevivente
do Titanic, s.d.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro
Tubinho na internet.
327
Figura 132: Cartaz da peça Tubinho o
macumbeiro, s.d.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de
Teatro Tubinho na internet.
Figura 133: Cartaz da peça Tubinho o homem da
pistola torta, s.d.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro
Tubinho na internet.
Todos esses diferentes papéis assumidos por Tubinho sempre são extremamente
verdadeiros. Isso porque o palhaço de Zeca simplesmente brinca de fazer a peça, como uma
criança brinca de casinha. Porém, Zeca e o seu elenco não brincam sozinhos; eles convidam
o espectador a também entrar na brincadeira. E, nesse sentido,
Não há como envolver esse público na situação cômica, se não se conquistar a
sua cumplicidade. Para isso exige-se que o palhaço busque trazer a assistência
para a situação encenada. Aponta o ator e palhaço Domingos Montagner, do
grupo teatral La Mínima: (...) uma coisa muito importante é essa cumplicidade
que você tem que ter com a plateia, de combinar o jogo que você vai fazer. Todo
mundo tem que entender como é o jogo (...). Acho muito semelhante com uma
coisa de criança. Porque a criança brinca com muita verdade. Acho que o palhaço
tem muita semelhança com isso. Ele conta a verdade, mas deixa claro para a
plateia que é brincadeira (SOUSA JR., 2012: 80 e 81).
Essa brincadeira é tão bem estabelecida que torna-se irrelevante o fato de
Tubinho ser um palhaço em meio a outros personagens – que variam em nível de
328
estilização, mas não chegam ao nível do composto pelo palhaço. Ao conversar com Zeca,
em entrevista, sobre essa espécie de licença poética, ele disse:
É, então, eu já pensei várias vezes nisso. E sabe o que é o mais legal? É que
dentro dos contextos ele é normal, né? Não tem nenhum personagem que entra na
casa, estranha e fala "Nossa, um palhaço!". Não, ele é um personagem dentro
do... Só que eu acho assim, a plateia pode até estranhar no começo, no início do
espetáculo, depois que eles entendem, sabe? Sabe o que acontece muito? Quando
eu vou fazer um espetáculo específico numa cidade onde nunca passou um circo
teatro na vida e eu vou no teatro da cidade. Você entendeu? Aí na hora que o
palhaço entra, a plateia faz... sabe? "O que é isso?". Mas quando é no circo, nunca
aconteceu isso 208.
Ésio Magalhães em entrevista destacou acerca deste ponto também:
É até uma questão meio estética, né? Como é que dialoga... Aí eu te digo: No
popular isso dialoga muito bem. Eu logo esqueço e aquela figura me dá uma
licença. Entende? Eu acho muito interessante esse contraponto. Porque a figura
maquiada, aquela figura me dá uma licença, entende? De falar “Ah, vai cagar!”
(...) dá pra falar isso sendo palhaço, porque na vida... (...) não se resolve assim. Lá
a licença é do palhaço. Então nesse sentido eu acho que o nosso olhar de público
dá essa licença e a nossa vontade de ver o espetáculo, aquele acontecimento, logo
torna isso irrelevante. Não tem uma coisa... Não tem... É um convite ao
imaginário. Eu acho super pertinente assim, de verdade, a maquiagem e a
caracterização 209.
Figura 134: Tubinho e Dionísio Martins em Tubinho de minissaia. Piedade, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
208
209
Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013.
Ésio Magalhães em entrevista concedida à autora em 23/04/2013.
329
No Circo de Teatro Tubinho todo jogo cênico é “brincado” sobre um ritmo
extremamente ágil, ditado pelo próprio palhaço. Angelita Vaz destacou em entrevista:
Aqui no circo, pra gente o agradar... A pessoa tem que sair com dor de barriga de
tanto dar risada. Esse é o agradar pra gente, então a gente se preocupa muito com
isso... Se você for pesquisar outros circos-teatros, o timing deles é outro tipo do
nosso, é bem diferente. Eles são um pouco mais lentos, e quem dita isso também
é o palhaço. E o palhaço do Zeca ele é mais ágil. E quem trabalha com ele corre
atrás. Fica nessa mecânica assim “Vamos correr, vamos correr, riu – rárárá – tem
que vir outra piada, outra piada, outra piada”... 210
Zeca domina com maestria o tempo cômico e, para mim, isto ficou
completamente evidente em outra passagem da peça Ghost ou não goste – Tubinho do
outro lado da vida. Tubinho chega ao céu e narra para Matusalém que nos portões de
entrada avistou algo que parecia um relógio, mas que na verdade não era.
No dia em que assisti a essa peça, Tubinho deve ter ficado em torno de uns dez
minutos apenas nessa brincadeira do “Parece um relógio, mas não era um relógio!”. Ele
narrava um pouco mais da história de sua chegada ao céu a Matusalém, mas, a todo
momento, voltava ao ponto do “Parece um relógio, mas não era um relógio!”. Não sei
precisar ao certo quantas vezes Tubinho repetiu essa frase e permaneceu nessa piada. Só sei
que foram muitas e muitas vezes. E, a cada vez, Tubinho alterava algo, acrescentando um
detalhe no modo e no tempo de dizer, que levava o público cada vez mais às gargalhadas.
E, para arrematar, no fim da peça, quando Tubinho acorda e descobre que tudo
não passou de um sonho, a primeira coisa que conta a sua família é que avistou na entrada
do céu algo que “parecia um relógio, mas não era um relógio”. O público, por fim,
gargalhou e aplaudiu em cena aberta.
Os espetáculos, instaurados sobre este tempo cômico exato e justo, então,
centram-se na situação de jogo criada entre os próprios atores e também entre eles e a
plateia. O palhaço usufrui de uma extrema liberdade de criação e flexibilidade ao
improviso, sugerido pelas constantes referências incorporadas, responsáveis por manter o
espetáculo atual e em profundo diálogo com cada plateia pelas cidades por onde o circo
210
Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
330
passa. E isso, portanto, conduz os artistas circenses a “um jeito de representar mais
despojado e próximo da maneira de ser do público.” (VARGAS, 1981: 98).
A improvisação, alicerçada sobre um repertório rico e constantemente
renovado, está na base da arte de ator de diversas manifestações teatrais cômicas, das quais
o circo-teatro, inclusive, adveio. Dario Fo comenta sobre a commedia dell’arte:
Os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações, diálogos, gags,
lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória, as quais utilizavam no
momento certo, com grande sentido de timing, dando a impressão de estar
improvisando a cada instante. Era uma bagagem construída e assimilada com a
prática de infinitas réplicas, de diferentes espetáculos, situações acontecidas
também no contato direto com o público, mas a grande maioria era, certamente,
fruto de exercício e estudo. Os cômicos aprendiam dezenas de “tiradas” sobre os
vários temas relacionados com o papel ou a máscara que interpretavam (FO,
2011: 17).
Tubinho desenvolve, então, há anos, dentro dos parâmetros do modo de atuar
do palhaço de circo de teatro, um extenso repertório de gags físicas, gestos característicos e
infinitas piadas verbais e bordões. Um trabalho de criação como esse só pode ser feito a
base de muita dedicação, pesquisa e constante reformulação. Acerca disso, Lucélia Reis
comentou em entrevista:
O Zeca é um cara extremamente inteligente e atento, então ele não para. Eu acho
que o Zeca respira, sonha, dorme, come palhaço, trabalho, né? Então por isso ele
tem um repertório incrível... Ele pesquisa e não só pesquisa, ele é muito atento,
ele trabalha e parece que ele tem, assim, dez ouvidos. Ele escuta uma agulha que
cai na última fila e aproveita aquilo em cena. (...) E ele tá ligado em tudo o que
acontece. Tudo 211.
Tubinho criou, ao longo dos anos, diversos bordões e também agregou ao seu
repertório algumas expressões sulistas, comuns a outros palhaços de circo de teatro. Sempre
que solta um dos bordões, acionados nas mais diversas peças e nas mais variadas situações,
o público ri e muitas pessoas o repetem em voz alta. E, algumas vezes, acontece algo em
cena e o bordão não é dito não por Tubinho, mas sim por alguém do próprio público, que se
utiliza da expressão pertencente ao palhaço para exprimir a sua sensação diante da cena.
211
Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
331
O público, então, conhece e repete com Tubinho seus famosos bordões: “Deus
te ajude!”, “Ói, que tonto!”, “Eu fico prostituto”, “12345 tchau”, “Psionante”, “Senta e
arrodeia”, “Esterça”, “Ah! Vai cagar!”, “Não fala comigo... Tô em depressão”, “Eu tô
dimulido”, “É bucha!”, “É divertido!”, “Ai q dó que eu tô de mim”, “#chateado”, “Nada a
ver”, “Fodex”, “Ai que ódio!”, “Psuído pelo Nenonho”, “Chera meu pau”, “Ah! Fá favô,
né?”, “Eu a-do-rei!”, “Zazarento”, “Fio da purga”, etc.
Figura 135: Homenagem de fãs a Tubinho, s.d.
Fonte: Página de relacionamento de Na Estrada com o Tubinho na internet.
Além disso, Zeca utiliza com bastante frequência o recurso da quebra da ilusão
cênica, num jogo contínuo entre ficção e realidade. Ana Lúcia Ferraz destaca acerca de uma
das peças da companhia, Tubinho contra o lobisomem:
Tubinho traz para a cena o jogo do teatro, a brincadeira com a fábula, revelando a
sua construção, evidencia o erro dos atores, ri de verdade no palco (...). Traz
referências aos meios de comunicação de massa, invade o teatro com a
publicidade e a TV, desconstrói os meios de comunicação, desrespeita as
fronteiras das artes, revelando o jogo da representação. Recorro aqui às reflexões
de Denis Guénoun, diretor e pensador do teatro contemporâneo, para
332
compreender o que se deu neste episódio. O autor diz que “no teatro hoje só resta
o jogo dos atores” (:130), (...) “o jogo que não se apaga sob seus efeitos de
figura” (:131). Os atores mostram hoje que estão representando (:132). Mas o que
se desnuda assim não é a pessoa do ator, sua identidade plena, seu ser de antes
(ou de fora) da representação: é seu jogo (Guénoun, 2004:132). (...) Todas as
figuras mantêm a narrativa da fábula, mas o palhaço quebra o espaço da
representação denunciando-o, revelando-o. O elenco experiente sabe que é este o
jogo e retoma a fábula já revelada enquanto tal. Como diz o ator que faz o
palhaço Tubinho, somente com um elenco pronto para retomar a história e trazer
o espectador de volta do riso é que o teatro se mantém (FERRAZ, 2010: s/n) 212.
Figura 136: Juninho Assis, Tubinho e Jailson Martins em Tubinho o capitão da tropa de Elite. Sorocaba,
2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Eu poderia citar aqui uma lista interminável de momentos das representações
que assisti em que Tubinho rompia com a narrativa da peça, revelando algo do plano real.
Cito, entretanto, apenas alguns exemplos: num dos esquetes, em determinado momento
dois atores cochichavam algo que não deveria ser ouvido por Tubinho, que rebateu “Não
adianta falar baixinho que tem microfone e eu ouvi tudo!”. Na peça Tubinho contra o
lobisomem, o segundo ato inicia com o Lobisomem dançando com uma mulher ao som de
212
FERRAZ, Ana Lúcia. Inovação e tradição no Circo-Teatro brasileiro. In: Anais do VI Congresso da
Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2010. Disponível em:
www.portalabrace.org/vicongresso/territorios/Ana%20Lucia%20Marques%20Camargo%20Ferraz.pdf.
Acesso em: 10 nov. 2014.
333
Mistérios da meia noite. Mais adiante na narrativa, Tubinho solta: “O Lobisomem matou
oitenta pessoas, feriu quarenta e cinco e ainda achou tempo pra dançar uma música do Zé
Ramalho”.
Ao chegar ao céu na peça Ghost ou não goste – Tubinho do outro lado da vida,
Tubinho solta piadas como “Olha a voz de Deus sai das caixas!” e “Você não é um anjo!
Você é a menina da pipoca!”. Ainda neste espetáculo, Tubinho tem direito de fazer dois
pedidos a Deus. Então ele pede para ver sua família e para agilizar as obras da marginal em
Sorocaba, na qual o circo estava armado.
Assisti a este espetáculo no período em que estava ocorrendo a Copa do Mundo
no Brasil. Obviamente Zeca fez referências ao evento na peça em passagens como: “Eu não
posso morrer agora. Eu ainda não completei o meu álbum da copa”. Quando falou pela
primeira vez com Deus, representado por uma voz em off, Tubinho soltou: “Pai, Posso
fazer uma pergunta? Você pode tirar essa dúvida do meu coração?”. “Posso”. “Por que 7 a
1, pai?”. A referência ao placar do jogo do Brasil contra a Alemanha foi compreendida de
imediato pela plateia que riu e aplaudiu em cena aberta.
Na peça Tubinho e o morto que não morreu uma criança começou a chorar na
plateia, ao passo que Tubinho soltou “Mãe era Tihany, mãe! Tihany!”, em referência ao
circo que estava também na cidade de Sorocaba. Nesta mesma peça ele recebeu um
recipiente da atriz Angelita Vaz, que dizia ser estricnina. Tubinho, então, virou para plateia,
mostrou o frasco e disse “Dipirona!”. Depois, usou todo o veneno do frasco e,
surpreendentemente, tirou outro do bolso e soltou “Esse eu trouxe de casa... Eu vim no
ensaio e já sabia o que ia acontecer!”.
Para finalizar estes exemplos, cito uma passagem extremamente interessante do
espetáculo de encerramento da temporada, no caso o Obrigado, Sorocaba. Num dos
esquetes, Zeca e Angelita protagonizam uma discussão no plano ficcional em que Tubinho
foge para a plateia com medo da personagem de Angelita. Porém a discussão do plano
ficcional é recheada de referências ao fato real dos dois serem marido e mulher. Este é o
último espetáculo do circo na cidade e todos já sabem que eles são casados, de modo que as
brincadeiras em torno disso criam muitas camadas na representação, que se torna
extremamente envolvente e engraçada. Em entrevista, Angelita Vaz contou:
334
Olha que interessante: esse mesmo esquete a gente leva no segundo final de
semana da praça. Chama Escritório. Já é no primeiro sábado. E a gente faz esse
esquete sem nada dessas piadas que você viu, em relação de marido e mulher, não
tem nada daquilo. Eu sou uma mulher qualquer, que vem cobrar ele que não
pagou, tal e tal. No Obrigado, como tem aquela relação com o público... Eles têm
uma relação de muito carinho com a gente. Eles já sabem coisas da gente, sabem
se um ficou doente, se ficou com febre, coisas que a gente nem imagina como que
ficaram sabendo, mas eles já sabem, né? Ai, no Obrigado, quando a gente entra
pra fazer esse esquete, a gente brinca né? A plateia já tá ganha... A gente entra
com liberdade pra brincar com coisas da nossa relação... Então imagina a gente
entrar na cidade, já no primeiro fim de semana e levar o esquete da mesma forma
como a gente leva no Obrigado, vão falar “Que é isso? Não tem nada a ver isso
daí”. Então por isso que a gente brinca, como eles sabem que a gente é marido e
mulher então eles se divertem, né? Faz uns quatro anos eu acho, mais ou menos,
que o esquete é assim no Obrigado. A primeira vez surgiu assim, a gente entrou
pra fazer, eu e o Zeca, e não sei o que ele começou a falar do meu cabelo, meu
cabelo tava armado. Aí eu entrei pra fazer a esquete de cabelo preso num rabo de
cavalo, porque tava muito armado meu cabelo. Aí ele brincou com aquilo... falou
“Ah, tá preso assim porque tá desse tamanho, não sei o que...”. E o povo rachou o
bico de dar risada. Aí ele “Opa!”. E aí fez mais duas piadinhas. Ai ele falou “Oh,
que bacana, o povo gosta desse tipo de piada”. Aí depois ele sempre acrescenta
alguma coisa... 213
Figura 137: Tubinho, Riccielly Lunardi e Angelita Vaz no esquete O Escritório, no espetáculo Obrigado
Sorocaba. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
213
Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
335
Além de desenvolver continuamente seu repertório, outro grande mérito do
palhaço Tubinho é que Zeca consegue transitar continuamente entre a malícia e a
ingenuidade, o que confere ao personagem uma forte presença de espírito e dimensão
humana. Pensando que o palhaço é, ao mesmo tempo, universal e único (BOLOGNESI,
2003), a malícia advém do humor grotesco presente na parcela arquetípica da tradição do
palhaço e a ingenuidade, que lhe dá um ar infantil, é resultado da criação particular e
subjetiva de Zeca.
Segundo ele, Tubinho “apesar de ter uma malícia, não é maldoso. Ele tem uma
malícia bobona... Ele é um bobão que acha que é esperto” 214.
A tensão entre malícia e ingenuidade, aliada a um afinado senso de
contemporaneidade, fazem de Tubinho um palhaço especial, capaz de fazer rir sem
denegrir. Isso porque Zeca construiu Tubinho habilmente baseado nos jogos linguísticos da
sátira e da paródia; dessa forma, Tubinho nunca é irônico, pois a ironia trabalha pelo o viés
do destrutivo, uma vez que “parte do princípio da superioridade daquele que ironiza sobre
quem é ironizado” (BOLOGNESI, 2006: 16).
E, se tem algo que Tubinho não é, é ser superior a alguém. Quando vai
exprimir, por exemplo, a feiura de uma pessoa, usa como parâmetro a sua própria, com a
piada “Eu pedi pra nascer feio, mas esse aí implorou!”.
Ou seja, tudo não passa de uma grande brincadeira, de um convite ao
imaginário. Dessa forma, Tubinho pode expressar amor por uma personagem, por exemplo,
através da ingênua gag com os elásticos de sua calça, mexendo-se como um menino doce e
dengoso, com destaque para os movimentos de seus braços e mãos; ou através da maliciosa
gag em que sua comprida gravata é ressignificada, remetendo-se a um falo. Mas mesmo
nesse caso há espaço para a ingenuidade, pois Tubinho não é obsceno; ele realiza a gag em
que faz alusão à masturbação, porém tirando a sua atenção dessa ação, o que nos dá a
leitura de que ele a faz sem perceber.
Tubinho é, então, um palhaço que faz uma piada maliciosa como “- Minha
prima Marieta foi pra praia de lambreta, veio a onda de rosqueta e molhou sua canela”, “214
Trecho da entrevista de Zeca ao Serviço Social do Comércio (SESC) de Santo André-SP, em 15/10/2014.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=57J7XQD4WCI
336
Tubinho, não rimou, “- Não rimou porque a maré tava baixa!”; e também a inocente piada
“- Eu ouvo”, “- Ovo é de galinha Tubinho. É „ouço‟”, “- E osso é de cachorro!”. E ambas
fazem rir.
Na chanchada Tubinho e o morto que não morreu uma sobrinha gananciosa
trama a morte do tio, no dia de seu aniversário, para herdar toda sua herança. Tubinho e seu
parceiro de trambiques, apesar de não passarem de ladrões de galinha, são contratados
como músicos da festa, porém são obrigados pela sobrinha a fazer parte do plano de
assassinato do velho tio. Tubinho então repete várias vezes, de um modo extremamente
doce e infantil, “Mas eu não sou um assassino...”.
Na peça Tubinho e a escrava Isaura, drama clássico circense transformado em
comédia, tem-se toda a primeira cena, entre Isaura e Leôncio, ainda no registro dramático,
sem a presença de Tubinho. Quando ele entra em cena, mais adiante, a primeira frase que
solta é “Cheguei pra esculhambar, que essa peça tá uma bosta hoje!”.
No esquete “Cheira flor” um amigo de Tubinho lhe confidencia que comprou
um pó mágico, que faz com que as mulheres se apaixonem pelo primeiro homem a sua
frente. Tubinho, então, pede o pó mágico emprestado. Depois de pedir duas vezes, fofa e
delicadamente, com a frase “Me empresta um pouquinho do pó?” e este lhe ser negado, na
terceira, toma o pó da mão do amigo gritando “Dá essa bosta aqui!”.
Outra gag várias vezes utilizada por Tubinho, que mescla o grotesco e o
ingênuo, se dá da seguinte forma: quando ele é contrariado ou fica nervoso começa a falar,
porém sem emitir o som, apenas gesticulando os lábios, uma sequência de palavrões. O
elenco todo para e espera Tubinho terminar a ação. Ao fim, alguém lhe pergunta: “- O que
foi Tubinho?” e ele, então, dá o desfecho da gag de modo doce “- Ai, desabafei!”.
E, por último, uma de minhas gags preferidas, utilizadas em diversas peças é
quando Tubinho diz, num tom triste e melancólico, “- Eu quero ver minha „fabília‟...
Porque „fabília‟ dá mais dó no coração!”. E não é que a letra b no lugar da letra m
realmente nos dá pena e nos cativa mais?
Apesar de protagonizar momentos tão doces como esse acima, por transitar
também no campo da malícia, Zeca considera as suas comédias como desaconselháveis
337
para menores de doze anos. Porém, ainda assim, a figura de Tubinho é extremamente
popular entre as crianças. Lucélia Reis destacou em entrevista:
Eu questiono isso ainda, Fê, se o Tubinho é pra criança ou não... Porque tem
muita criança apaixonada pelo Tubinho. Nossa, tem crianças, que são vidradas no
Tubinho. Eu acho que o Zeca conseguiu atingir um nível de palhaço, que é uma
coisa muito rara, sabe? Porque ele consegue jogar umas piadas... As piadas que
ele joga... Porque ele sente que tem muita criança na plateia, a gente coloca que é
desaconselhável para menores de 12 anos, porém vem bastante criança. E ele
consegue botar na boca do palhaço umas certas besteiras com uma naturalidade,
sabe, com uma ingenuidade que não agride. Ele pode falar qualquer coisa que não
agride nada. Nada, nada, nada. Ele pega as coisas assim... Ele entra tanto pra
dentro do espírito do palhaço, que o palhaço dele tem tanto esse espírito
espontâneo e infantil, que o que vem ele solta! E vem, assim... E é o que mais
agrada 215.
Lidando, então, com extrema maestria com o fato de fazer rir sem ser agressivo,
Tubinho, sempre irreverente e despojado, tem piadas sobre uma infinidade de temas. Tiche
Vianna destacou em entrevista:
O Tubinho faz piada com o Capitão Nascimento, que virou o herói de uma
geração. Se fosse só isso... Ele faz piada com todas as formas de poder quando
ele bota em cena todos aqueles patrões, todos aqueles chefes, todos aqueles
fazendeiros, todos aqueles coronéis, todos aqueles delegados. Ele faz piada com
todas as formas de poder. (...) Mas, ao mesmo tempo, o Zeca, por exemplo, é
extremamente religioso. Ele nunca vai falar mal da Igreja lá, qualquer que seja
ela. Ele não vai criar uma personagem que vai se colocar contra a Igreja. Porque
brincar com a igreja, ele vai brincar. Mas vai brincar dentro do mais absoluto
respeito. Ele não vai se colocar em risco desrespeitoso junto à Igreja, por
exemplo. Nem ao poder público, porque ele depende do poder público. A
commedia dell'arte nunca... Eu digo que faltam máscaras na commedia dell'arte.
Falta a máscara do rei, que nunca existiu na commedia dell'arte. Falta a máscara
da Igreja. Porque eles não eram tontos. Os conteúdos críticos estavam ali na
própria forma de organizar aquelas relações, no modo de organizar as relações é
que o conteúdo é crítico. (...) É completamente diferente do programa Sai de
Baixo, ou Zorra Total. Entendeu? O que é o Zorra Total, por exemplo, o que são
aqueles tipos? O que são aquelas histórias? Aquilo pra mim tem esse tom
pejorativo de que assim, a pura graça sem nenhum, sem nenhum de nada... É uma
tiração de sarro da vida e do mundo, ponto final. Que pra mim funciona ao
contrário, porque os personagens não existem, você olha praquilo e diz “Aquilo
não existe. Aquilo não existe, aquilo é alguém fazendo”. E fazendo querendo tirar
um sarro, então é uma diminuição, é como se eu tivesse pejorativamente
mostrando as culpas da desgraça do mundo, tá certo? Como se eu tivesse
acusando. Essa é sempre a sensação que eu tenho. Não me envolve, não tem
graça e eu não sei que graça isso causa nas pessoas que assistem. Algumas devem
215
Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
338
gostar muito porque todo mundo liga lá a televisão, isso tem audiência, tem
ibope, por isso que tá lá. Mas eu entendo também, que as pessoas acabam
fazendo isso porque isso é um mastigável fácil, que é próprio ao poder... Ele vai
socando, certo? Ele vai socando, em quais pessoas? Naquelas pessoas que já
estão derrotadas por princípio, já estão em casa, num sábado a noite, não quer
fazer nada. Então são pessoas que já tem esse princípio. Mas vamos falar do
princípio das pessoas que não querem fazer isso, entendeu? Que querem outras
coisas, que saem na rua e não procuram este espetáculo, procuram aquele do
Tubinho. Não porque é mais fácil, mas porque ali alguma coisa acontece entre
nós 216.
Diante de Tubinho nada permanece intacto, pois ele se permite brincar, sempre
respeitosamente, com absolutamente tudo: “(...) família, autoridade, religião, moral,
doença, convenções sociais – nada escapa ao gesto ou palavra do palhaço, representante de
uma comicidade que desmistifica o caráter absoluto e intocável dessas instituições e
valores.” (MAGNANI, 1984: 112).
Porém, Zeca só tem abertura para brincar com todas essas instâncias por
construir, dia após dia, uma relação de intimidade e cumplicidade com a população da
cidade em que o circo se estabelece. Acerca desse estreitamento de laços, Fernando Neves
destacou em entrevista:
O circo, eu sempre falo, o circo é muito esperto. Os atores circenses são muito
espertos. Eles provocam, sim, a plateia, mas dentro de uma desfaçatez, de uma
forma tão dissimulada que a plateia não percebe. Também quando perceber, ela já
tá muito íntima desse ator. Ela tá muito íntima. É como se a gente fosse família e
em família a gente fala besteiras, fala as bobagens tudo e tá tudo em casa! O circo
se torna “em casa”. Ele vai na praça, na tal cidade, no tal bairro e ele estabelece
uma relação de família, então se está em casa. Entendeu esse movimento muito
inteligente do circo? Você vê isso no Tubinho claramente. O primeiro espetáculo
da praça e último... No primeiro espetáculo ele está mais contido e no último ele
tá falando aquela bandalheira, com vô, com neto na plateia e ninguém reclama...
Porque tá todo mundo em família. (...) Então é um ator, um artista que olha pro
público sim e o público é importante porque é absolutamente necessário que esse
circo esteja lotado. Duas praças que o circo vai mal eles têm que desmontar tudo,
vender as coisas e voltar para o lugar de origem pra começar tudo de novo,
porque não tem dinheiro nem pra tirar o circo do lugar 217.
Tubinho é, hoje em dia, um personagem tão bem construído que, para Zeca, é
como se tivesse vida própria. Em entrevista, Zeca explicou:
216
217
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
Fernando Neves em entrevista concedida à autora em 11/11/2013.
339
Eu, de verdade, eu sinto assim: quanto mais eu penso nele mais artificial ele fica.
Sabe? De verdade, eu não tenho o Tubinho como um personagem. Tenho ele
como uma pessoa. Então, ele tem o jeito dele de responder. Se você me fizer uma
pergunta e falar assim: "O que Tubinho responderia?" Eu não sei falar. Agora se
eu tiver de palhaço e você fizer qualquer gracinha eu te respondo. De bate pronto
218
.
Sobre esta mesma questão, Zeca comentou, ainda em 2008, numa entrevista
para a revista ET, de Barra Bonita:
Acho que o Tubinho tem sua própria vida, ele se comanda. Isso é muito
engraçado. Eu estava vendo o programa do Tubinho pela televisão hoje e minha
mulher disse: “Ele não é você”. E realmente não é. Ele tem seu próprio jeito de
falar que se você me pedir pra imitar posso tentar, mas será sempre apenas eu
tentando imitá-lo , não será o Tubinho. Ele se moldou dentro de mim e eu apenas
219
abro espaço para ele sair .
Teorizar sobre o que vem a ser o Tubinho é algo que não faz parte da natureza
da técnica pessoal, da arte de ator construída por Zeca e por tantos outros artistas
populares, de formação empírica. Porém, acredito que outras pessoas precisam realizar esse
trabalho de reflexão acerca do trabalho realizado por Zeca e sua companhia, para dar a
dimensão – a eles e aos demais artistas da atualidade – da importância e relevância do que
vem sendo apresentado neste circo.
Ésio Magalhães comentou, em entrevista, sobre o trabalho desenvolvido com a
remontagem de Cabocla Bonita, que seguiu exatamente nessa direção, de reconhecimento
dos saberes já existentes:
No nosso trabalho, um dia o Zeca falou assim: “Pô, Ésio, que louco. Eu nunca
tinha prestado atenção, eu tenho um jeito de andar, né?”. (...) É interessante
porque é como estudar português. Você fala “Nossa eu faço tudo isso? Eu ponho
substantivo e adjetivo e advérbio? E tem sujeito e predicado...” . Você começa a
falar “Nossa, que ligações eu faço. Agora eu sei, porque antes eu falava. E eu
continuo falando”, entende? Então o trabalho com o Tubinho, especificamente,
foi um pouco de reconhecer a linguagem que se tinha. Embora de reconhecer,
digamos assim, tecnicamente. Eu não tô dizendo que ele não sabia o que ele
queria dizer e fazia. Ele sabe muito bem o que ele tem na mão. E ele joga com
218
219
Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
Declaração de Zeca à revista ET 205 nº 850. Barra Bonita, 10/01/2008.
340
isso magistralmente. Mas de reconhecer, tecnicamente, que ali tem um lastro
técnico muito grande 220.
Ricciley Lunardi comentou acerca de Zeca, seu companheiro de cena, a quem,
no início, soprava os desfechos das piadas ao pé do ouvido:
Ele sempre foi muito rápido. Ele não tinha experiência de comédias de circo
teatro e já tinha essa rapidez. Depois que ele adquiriu a experiência, o
conhecimento das comédias, dos textos, das histórias, ninguém mais segurou o
cara, né? Hoje em dia ele é essa máquina de fazer rir aí. E incrível é que o
Tubinho é o palhaço que me faz rir até hoje... Que sempre tem coisa nova, ele
sempre surpreende a gente que tá acostumado a estar com ele todo dia. É
impossível fazer uma comédia e não rir. E o Tubinho, poxa... O Tubinho não se
explica, se assiste. Degusta-se esse monstro de gargalhadas que ele é 221.
Figura 138: Riccielly Lunardi e Tubinho em Tubinho de Minissaia. Piedade, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Já Tiche Vianna, em entrevista, deu o tocante depoimento:
Eu adoro o Tubinho. Me diverte.. Tem um carisma absurdo. Todo palhaço tem
que ter um carisma danado. (...) Claro que é um tipo de palhaço. E é um tipo de
espetáculo. É um palhaço contador de piadas... As afetações dele não vão nunca
fazer variar esse caráter, esse caráter vai passar... Ok, numa situação ficou mais
assim, ficou menos assim... É diferente do palhaço teatral. O que eu tô falando
aqui também é uma bobagem... Quem é o palhaço teatral, o palhaço circense?
Mas eu tô dizendo: no teatro, dentro de uma história, onde você precisa de uma
220
221
Ésio Magalhães em entrevista concedida à autora em 23/04/2013.
Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
341
lógica de história, esse palhaço vai ter que se conduzir diferente. Então eu acho
que ele é diferente desse tipo de palhaço. Colocando o Ésio e ele, por exemplo. O
palhaço do Ésio talvez seja um palhaço dramático. Tem toda a comicidade,
cômico pra caramba, mas talvez ele venha do drama humano. E o Tubinho venha
da comédia humana. Isso é uma coisa que tá me ocorrendo agora. (...) Eu acho o
Tubinho genial. Porque fazer o que ele faz, com a quantidade de pessoas que ele
tem, de quinta a terça né? Eu falo "É impressionante". E não só isso, como ator.
Já vi dramas. O primeiro espetáculo dele que eu vi foi A Canção de Bernadete. E
quando eu vi, eu fiquei impressionada com a encenação. Ele tinha acabado de
refazer, de mexer nela. E eu fiquei impressionada com a encenação porque,
assim... Não gosto do tema, não gosto do tipo de história, não é uma coisa que me
comova, nada. Agora, o comprometimento daqueles atores... Aquilo que está
acontecendo ali te envolve de uma tal maneira, que você não consegue
simplesmente... Aquilo não descola de você. A mesma coisa ele faz com o
palhaço. Aquilo não descola de você, você não consegue... Eu falei "Pô, esse cara
tem uma dimensão cênica interessantíssima, porque não tem escola, não tem essa
convivência direta com gente que tá discutindo estética”. Isso é uma coisa que ele
vai atrás, ele busca, ele observa, ele percebe e quer. Depois eu vi as comédias. A
primeira vez que eu vi o palhaço, eu não acreditei. Ele me tirava da cadeira! Uma
força espetacular, essa pra mim é uma dimensão... (...) Ele me ganhou 100%
quando eu assisti o stand up dele. Terminou o espetáculo e ele veio "Você
gostou?". Porque acaba todo espetáculo e ele fala com todo mundo, né? "Você
gostou?" Eu falei “Gostei, eu adorei... Eu detesto isso aí, eu não gosto nada desse
negócio, não serve pra nada, só pra ganhar dinheiro mesmo, entendeu? O povo
gosta, vai lá e faz. Mas aqui aconteceu alguma coisa, entendeu? Aqui aconteceu
alguma coisa. (...) E tem uma estética, tem uma preocupação estética, se
configura como linguagem, é um modo de articular códigos, que se combinam ali
dentro, entendeu? Ele faz isso. O teatro dele faz isso. O modo de combinar esses
códigos. (...) E o teatro não é o que eu faço. O teatro é o que se passa entre nós.
Se eu entender isso, isso explica tudo. Porque que o Circo de Teatro Tubinho é
fortalecedor. Porque que o stand up dele é alguma coisa que vai além do stand up
que você vê de um cara que chega e começa a contar um monte de piada. Porque
alguma coisa se processa com ele ali enquanto ele conta as piadas. E é isso que
me atrai. E é dele. Tem alguma coisa que acontece ali... E eu tenho que me render
a isso. Eu sou obrigada... Rende, ué! É talento? Não importa... É o que ele faz e
funciona! 222
Enfim, tentei dissertar um pouco sobre os elementos técnicos presentes no
trabalho de Zeca como palhaço Tubinho, porém acredito que grande parte desse trabalho é
resultado de algo que, apesar de estar para além da técnica e não ser passível de descrição,
deve estar na base do trabalho de todo artista. Estou falando da dimensão humana
envolvida no trabalho de Zeca, que salta aos olhos de todos que o conhecem e passam por
seu circo.
Ao ler a passagem abaixo, escrita por Oida, me lembrei imediatamente de Zeca
e seu cativante palhaço:
222
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
342
Quando estamos atuando o objetivo não é o de mostrar o personagem que
interpretamos. Para além do personagem, existe um ser humano mais
fundamental, e é esse ser humano fundamental que faz com que o palco seja vivo.
Apenas construir o personagem não é o suficiente (OIDA, 2007: 93).
Zeca é uma pessoa extremamente generosa, capaz de acolher com imenso
carinho todos os seus inúmeros fãs. E, foi com essa mesma generosidade que também fui
acolhida, não só por Zeca, mas por todo o restante do elenco.
Nas primeiras visitas, lembro que me surpreendi porque, ao final dos
espetáculos, Zeca me procurava ou me mandava uma mensagem pelo celular para saber a
minha opinião sobre o que tinha visto. E isso se repetiu todas as vezes que fui ao circo e
quando alguns de meus amigos me acompanhavam, ele também fazia questão de saber o
que eles tinham achado do espetáculo.
Zeca faz isso com todos que visitam o circo. Extremamente comprometido com
seu trabalho e visando sempre o melhor desenvolvimento dos espetáculos, ele está sempre
atento com o que acontece com o público, seja ele aquele a quem o circo se dedica com
mais ênfase no interior do estado de São Paulo, seja os artistas de origem não circense cada
vez mais interessados em conhecer o seu mundo mágico da alegria.
Figura 139: Zeca como Tubinho, 2014.
Fonte: Página de relacionamento na internet do fã clube Na estrada com Tubinho.
343
3.7 Os escadas
Uma companhia de circo de teatro como a de Tubinho tem, inegavelmente, o
palhaço como o centro da representação e em cima de sua imagem é feito todo o marketing
do circo. Porém, o seu desempenho cênico depende diretamente de um bom desempenho
do restante do elenco, que cumpre a função de lhe servir como escada.
No Circo de Teatro Tubinho, assim como em diversos outros circos-teatro do
passado e da atualidade, os escadas também utilizam da tipologia para a construção de suas
personagens. A divisão destes tipos entre o elenco continua sendo feita de acordo com o
temperamento e, principalmente, o physique du role dos atores.
Dessa forma, geralmente Luciane Rosã e Viviane Martins interpretam as
mocinhas, Lucélia Reis as caricatas, Maik Mello e Juninho Assis os galãs, Angelita Vaz as
damas centrais e coquettes, Ana Dolores as damas centrais e caricatas, Cristina Martins as
personagens com maior carga dramática, Débora Ignácio as coquetes, Dionísio Martins os
cômicos e Jailson Martins, Alexandre Vieira, Riccielly Lunardi, Nicolas Alexandre e
Cristian Bryan (Tito) os baixos cômicos.
Sobre seu elenco, Zeca comentou em entrevista:
A gente usa os tipos sim. Mas no nosso dia-a-dia, é tão corriqueiro o que a gente
faz que a gente não chama assim, sabe? "A ingênua", "a caricata", pra gente já é,
por exemplo, "a Filoca", "a Maria", "a Quequé", "a Dô". A gente não tem muito
assim de chamar pelo nome do tipo, a gente já vai direto no nome do personagem
porque cada ator já faz o que a gente tá falando, certo? Então, por exemplo, se eu
falar assim "A ingênua", vão falar "Qual delas. Então a gente já fala, mas no
nosso dia-a-dia não se usa muito essa denominação. Mas a gente tem dentro da
companhia sim quem faz mais cada tipo. Graças à Deus a gente tem uns dois
atores pra cada tipo. Isso me facilita muito. E isso também é muito legal. Você
fica quatro ou cinco meses numa praça e a cidade é pequena, o cara não vê toda
noite o mesmo elenco. Quer dizer, o cara vem hoje, trabalhou uma galera, ele
vem outro dia, são outras pessoas novas. O Tubinho tá ali, mas mudou todo
mundo 223.
223
Zeca em entrevista concedida à autora em 05/12/2013.
344
Figura 140: o baixo-cômico Alexandre Vieira em Tubinho de Minissaia. Piedade, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Como é comum ao circo-teatro, apesar de se encaixarem e interpretarem com
mais frequência esses determinados tipos, os atores do elenco de Tubinho podem variá-los,
de acordo com as necessidades e com o que se deseja para a encenação. Assim sendo, no
drama ...E o céu uniu dois corações, a mocinha Neli é interpretada por Angelita Vaz e no
drama O seu único pecado Juninho Assis integra o núcleo cômico, por exemplo.
Figura 141: Luciane Rosã, que geralmente interpreta as ingênuas, como o agente funerário de Tubinho
no velório. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
345
Apesar de haver a tipificação, varia-se bastante o nível de estilização das
personagens, de peça para peça e, muitas vezes, entre os personagens de uma mesma peça.
Porém, nenhuma delas – nem mesmo os cômicos e as caricatas – chega ao nível de
estilização característico do palhaço, a personagem principal dos espetáculos. A cena,
então, aponta para um único vetor e, independente da personagem e do tipo, todos servem
de escada ao palhaço.
Acerca disso, Lucélia Reis comentou:
Hoje em dia, eu entendo que existem definições, porque precisa ter, do baixocômico, da mocinha, etc. Mas hoje eu vejo que todos são escadas pro palhaço.
Que quanto mais o palhaço aparecer, quanto mais o palhaço acontecer em cima
de uma mocinha, de uma caricata, de um escada, dum qualquer coisa, é onde a
gente ganha, porque é o palhaço que tem que acontecer. Então a gente entra pra
fazer o palhaço acontecer. Então o que é o escada tradicional? Ele levanta a
piada, pro palhaço cortar. Mas eu vejo que a caricata levanta a piada pro palhaço,
com uma maquiagem, ou com uma postura cênica, ou com uma expressão,
também levanta uma piada. Ou até uma mocinha, dependendo duma chatice de
uma mocinha, também levanta uma piada pro palhaço 224.
Tiche Vianna atentou, em entrevista, para diferença existente entre a função
escada na commedia dell’arte e num circo como o do palhaço Tubinho e também dissertou
sobre a importância de cada parte, de cada escada, para a construção total da cena e o
melhor desempenho do palhaço:
Pra trabalhar máscara, você precisa de, no mínimo, duas. Uma máscara sozinha
não vai suportar o espetáculo inteiro. Lá no Tubinho você tem as escadas para o
palhaço, que é 01 figura. No jogo da commedia dell'arte, você tem uma escada
recíproca: eu agora sou escada e pode ser que na próxima cena você que vai ser
escada. E a escada não é exatamente a fonte para o riso, mas a fonte para a
situação que está sendo criada que vai desembocar numa situação cômica. (...)
Mas o fato de você construir a situação, você cria uma dependência muito maior
das relações. E aí o nível de importância de cada personagem dentro da estrutura
dramatúrgica passa a ter outro sentido. (...) Quer dizer que não há uma
“desimportância” em ser ou fazer como se faz pra chegar no palhaço: o palhaço
vai acontecer na sua melhor potência, na medida em que cada um daqueles
pedaços estiver na sua melhor potência 225.
224
225
Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
346
Acerca da importância do papel desempenhado pelo escada, Walter de Sousa
Junior afirma:
Como nos outros subgêneros da comédia, o escada desempenha o papel de apoio
para a construção das piadas, o que não reduz em nada a sua performance, pois
esta requer técnica e talento tanto quanto a situação cômica exige do excêntrico.
Como afirma Pururuca (Brasil João Carlos Queirolo), que por 35 anos atuou, de
cara limpa, como escada do pai, Torresmo: “Para você ser um bom palhaço, o
escada tem que ser melhor que o palhaço. Porque se o escada não souber dar a
deixa certinha para o palhaço, o palhaço se perde todinho. Se ele não der as
palavras certas, corretas, na hora certa, perde a graça, pois o palhaço não tem o
que repetir”. Aroldo Casali, o palhaço Charles, usa da própria metáfora da escada
para definir: “O palhaço precisa sempre do escada. Por que? Se o escada é ruim,
ele desce. Se o escada é bom, o palhaço sobe” (SOUSA JR., 2012: 80).
Tubinho é um tipo de palhaço que necessita de um contraponto em cena. De
todas as dezenas de peças que pude assistir no Circo de Teatro Tubinho, em apenas duas,
Tubinho o terrível beijoqueiro e Tubinho o hóspede da pensão maluca, o palhaço ficou
sozinho em cena, por cerca de poucos minutos. Em seu stand up Senta que o Tubinho vai
entrar, Zeca conta piadas de cara limpa e apresenta uma galeria de diferentes personagens.
O espetáculo todo se desenrola com Zeca sozinho no palco, porém quando chega a vez de
se apresentar como Tubinho, deixado estrategicamente por último, entra em cena um de
seus escadas, Riccielly Lunardi.
Os artistas do Circo de Teatro Tubinho comentaram em entrevista acerca da
função do escada em cena:
Morgana Lunardi:
O próprio nome diz já ne? É onde o palhaço sobe... é o cara que faz o palhaço
aparecer. O escada trabalha pro palhaço. Não trabalha pra ele. Um bom escada
trabalha pro palhaço, faz de tudo pro palhaço agradar. O palhaço sobe em cima e
todo mundo vê, todo mundo dá risada, ele aparece 226.
Luciane Rosã:
Você entra em cena e você quer fazer o seu melhor. E esse trabalho de escada é
justamente isso, a gente quer dar mais chances pro palhaço fazer graça... É essa a
função. (...) Cada personagem tem o seu degrau pro palhaço estar em cima. Então
eu acho que todos os personagens que trabalham em volta do palhaço são os
degraus. Então se tem dez personagens, tem dez degraus que o palhaço tem que
subir. E cada um tem o seu dever nessa peça que tem os dez, pra ele subir até o
226
Morgana Lunardi em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
347
topo, se ele ficar na metade, não tá bom. Se ele ficar abaixo disso, piorou ainda.
Então a gente trabalha em função dele. Então a gente tem que fazer o máximo pra
que aquele nosso degrauzinho esteja bom pra ele poder subir o próximo 227.
Riccielly Lunardi:
Eu procuro ser sempre muito rápido, sempre estar pensando rápido "Qual a
próxima piada que eu posso puxar?". Costurar rapidinho as piadas... Ser
simpático com a plateia, caras e bocas - sempre em excesso - sempre caras e
bocas, isso ajuda. Os errinhos forçados, errar o português às vezes é ótimo, essas
coisas gostosas 228.
Lucélia Reis:
Uma das características do circo-teatro é você ter consciência que você trabalha
pro palhaço. Essa é uma grande característica do circo-teatro. Você tem que
entender que é um caminho em que você trabalha pra uma pessoa, pra um cara
ali. Você não trabalha pro seu... Você não tem como defender o seu personagem
dessa maneira. Você tem que entender que o seu personagem tem um limite.
Você tem que fazer o povo rir? Tem. Mas a partir do momento em que o palhaço
está em cena, é o palhaço que tem que fazer o povo rir. Porque o povo vem pra
ver o palhaço. Então uma das características é essa, você ter consciência de que
você trabalha pro palhaço. Isso é fato, é fato mesmo! Então, caindo nessa questão,
eu quando eu vou trabalhar eu penso nisso, eu penso "Putz, quais cenas eu tenho
com o palhaço? O que eu posso oferecer pra ele?" Às vezes, um personagem que
eu vou fazer... Por exemplo hoje, O Casamento do Tubinho, que você assistiu...
Eu fazia uma comparsaria, mas o que penso: eu posso dar um gancho pro palhaço
dentro daquele contexto. Eu podia simplesmente entrar com o vestido caipira,
entrar em cena e estar ali, fazendo volume, mas seu eu boto uma maquiagem mais
carregada, boto uma peruca ridícula, boto um corpo e dou umas deixas, o palhaço
já pode fazer umas graças em cima. E o circo ganha com isso, o circo-teatro
ganha com isso229.
Angelita Vaz:
A gente trabalha mesmo pro palhaço. A gente vai levantando o espetáculo até a
entrada do palhaço. Se você for ver, todo o contexto vai sendo trabalhado antes
do palhaço entrar. Aí quando ele entra já tá quente. É ate engraçado, que a gente
trabalha tanto pro palhaço, que eu até brinco com o Zeca, eu falo assim “Eu vou
mudar meu nome, eu não vou mais me chamar Angelita”. Porque você vai em
algum lugar “Ah, a Angelita lá do Tubinho.” Ninguém sabe quem é Angelita. “A
mulher do palhaço... Ah, aquela loira!”. Sabe? É muito engraçado. Mas a gente
acaba até acostumando com isso né? (...) E as pessoas vem, elas querem ver o
palhaço, e isso é bom. Porque a gente trabalha pra isso, então tá dando resultado.
É até interessante, porque às vezes é até triste... Teve uns tempos atrás que o Zeca
não tava trabalhando, antes do meu sogro falecer... Meu sogro tava ruim, e o Zeca
não pode trabalhar porque ele teve que ir pra Curitiba. As pessoas vinham na
bilheteria pra comprar ingresso... Ia ter espetáculo, mas não tinha o Tubinho, as
pessoas voltavam pra trás. Guardavam o dinheiro e “Não, a gente quer ver o
Tubinho”, “Não, mas vai ter espetáculo, o espetáculo é bom!”, “Não, a gente quer
ver o Tubinho”. Foram três dias sem o palhaço. No terceiro dia ninguém mais
vinha no circo. Derrubou a praça em três dias... E a gente tava aqui, firme e forte,
227
Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
Riccielly Lunardi em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
229
Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
228
348
mas não eles queriam ver o palhaço. Então é bom, porque é um sinal que tá dando
certo. O ruim é que a gente depende exclusivamente dele. Porque as pessoas vêm
pra ver ele230.
Depois de tantos anos trabalhando juntos em espetáculos diários, Zeca e seu
elenco desenvolveram uma grande afinidade e um repertório de piadas e gags em comum,
que podem ser acionadas em diversos espetáculos. Essa é uma característica comum a
várias companhias de circo-teatro que, dependendo da audiência, estendem ou cortam
improvisações e incluem trechos de outros enredos e piadas de repertório nas mais variadas
peças.
Durante as entrevistas, vários dos artistas do Circo de Teatro Tubinho disseram
já conhecer Zeca “só pelo olhar”. Cabe ao escada, baseado nessa cumplicidade, estar atento
em cena, pois, sempre que possível, ele deve dar um “gancho” para o palhaço, ou seja,
preparar uma piada para que o palhaço a arremate ou mesmo puxar a piada que o palhaço
de algum modo mostrou desejar que seja feita. O escada deve, então, entender o “tempo”
do palhaço com o qual está trabalhando, de modo a deixá-lo livre para fazer suas graças e,
no tempo exato, retomar o fio da narrativa e encaminhar os acontecimentos da história. Isso
tudo com exata precisão das falas, pois apesar de não haver um texto rígido a ser seguido,
ele não pode se atrapalhar com o discurso e retardar o ritmo da cena, sempre executada
sobre um nível elevado de energia.
Nicolas Alexandre, sobrinho de Zeca, destacou:
Pra fazer escada tem que estar atento. Com ele (Zeca) tem que sempre estar
atento. Tanto é que teve um dia que a gente entrou pra fazer esquete, ele começou
a puxar piada, e puxar piada, e começou a puxar coisa que eu nunca tinha feito,
mas que eu já tinha visto. Então... E a gente tem que ir atrás. Tem que ir atrás. E
ele puxa piada, e a gente como escada também puxa. E,nesse caso, ainda também
tem que ficar atento para ver se a piada já não foi na comédia, no espetáculo de
ontem, anteontem. Isso também tem que ficar atento 231.
230
231
Angelita Vaz em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
Nicolas Alexandre em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
349
Já seu irmão, Dimitri Augusto, de apenas dez anos, também mostrou seu
conhecimento acerca de como se configura o modo de organização da cena do circo de
Tubinho:
Eu acho que tem que conhecer meu tio muito bem pra trabalhar aqui (Zeca)...
Porque meu tio faz muita surpresa em cena. Primeiro tem que saber fazer um
pouco de escada pro meu tio... Fazer um pouco de improviso, porque às vezes
meu tio faz uma piada que a gente nem conhece. E tem coisa que ele fala pra
gente antes de começar a peça e daí você tem que saber puxar a piada pra ele,
porque senão quebra um pouco da risada 232.
Figura 141: Juninho Assis e Tubinho em Tubinho, o hóspede da pensão maluca. Itapetininga, 2015.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Durante esta pesquisa realizei várias visitas ao circo de Tubinho e acabei por
me habituar a ver todo o elenco fazendo sua escada. Num primeiro momento, eu
compreendia que o escada desenvolvia um papel essencial para o melhor desempenho do
palhaço, mas essa função me parecia algo relativamente simples de ser executada.
Hoje entendo que, na verdade, isso me parecia simples porque o elenco de
Tubinho realiza a função com extrema competência e naturalidade. Compreendo que os
atores me passavam a impressão de estar atuando sem esforço algum, mas que isso, na
verdade, é fruto de um profundo trabalho, lapidado dia após dia, espetáculo após
espetáculo.
232
Dimitri Augusto em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
350
E eu pude compreender isso, de fato, quando, em setembro de 2014, montamos
o espetáculo Biribinha e a noiva do defunto, no 2º Encontro Geraldo Riso, em Campinas,
com o Coletivo Geraldo Riso e direção de Zeca.
Montamos a comédia em seis ensaios. Zeca ia passando, “de orelhada”, a peça e
íamos montando as cenas. Os atores que estavam atuando nessa comédia eram Aline Olmos
e eu, da Dupla Cia, Ésio Magalhães, do Barracão Teatro e Ivens Burg, Guga Burg e Joana
Piza, da Família Burg. Além disso, Thiago Sales, do Circo Caramba, foi o responsável pela
sonoplastia do espetáculo e Teófanes Silveira, Biribinha, era o palhaço da comédia.
Ou seja, com exceção de mim e de Aline, tratava-se de atores mais experientes,
com uma trajetória estruturada acerca da linguagem do palhaço. Porém era evidente que
todos nós, com exceção de Biribinha, não estávamos habituados e não tínhamos total
intimidade com o modo de trabalhar e operacionalizar proposto por Zeca, bem como com a
função específica de realizar a escada para o palhaço.
Ésio Magalhães, por exemplo, interpretava o velho Libório. Ele era o principal
escada da peça, pois quase todos os encaminhamentos da narrativa eram de sua
responsabilidade. Ésio tinha então que decorar a sequência de ações da peça e encaminhar a
história de maneira ligeira, desenvolvendo bem suas falas, apesar de não haver um texto
dramatúrgico a ser seguido. Para ganhar tempo e conseguir pensar nas próximas ações que
deveria puxar, Ésio caiu no automatismo de repetir várias vezes seguidas os nomes das
personagens. Dessa forma, falava “Biribinha, Biribinha, Biribinha”, antes da fala
propriamente dita, muitas vezes ao longo da peça, o que acabava por retardar o ritmo da
cena.
Além disso, Ésio usava o recuso de dar suas falas e, ao final, colocar uma
risada. E esse pequeno detalhe, esse pequeno “rabicho” deixado pela risadinha do velho, era
suficiente para quebrar o tempo da piada, que seria arrematada pelo palhaço Biribinha.
Zeca atentou Ésio para essa questão, que passou a prestar mais atenção para
preparar a escada de maneira certeira. Na estreia, Ésio conduziu com muita competência a
história.
351
Após essa experiência, Ésio gentilmente atendeu um pedido meu e redigiu o
pequeno texto abaixo, relatando algumas reflexões suscitadas pelo trabalho que
desenvolvemos no 2º Encontro Geraldo Riso:
Para mim, é notória a proximidade entre o que vemos atualmente nos circosteatro itinerantes e o que imagino ter acontecido no contexto da commedia
dell'arte, em que os artistas viajavam e, nas cidades por onde paravam,
apresentavam seu repertório de espetáculos com as máscaras que iam se tornando
conhecidas e familiares para o público ao longo de sua estada. Trabalhar com o
Zeca, o palhaçoTubinho, como diretor da peça A Bomba ou a Noiva do Defunto e
com o Theófanes, o palhaço Biribinha, como cômico principal no mesmo
espetáculo foi uma experiência incrível de criar um espetáculo baseado em um
roteiro de "orelhada", ou seja, que é transmitido via tradição oral, e vê-lo erigir-se
aos poucos e a partir da proposta de cada ator. Foi incrível perceber como os
textos e piadas iam sendo criados a partir do que deveria ser dito pelos
personagens para que sua ação ficasse clara e este roteiro, ou cannovaccio da
commedia dell'arte, fosse compreendido e aplaudido. Me chama a atenção que os
atores que nascem dentro desta tradição circo-teatral tem um vasto repertório com
o qual podem jogar e improvisar em cima dele. É um repertório comum e que se
mantém apesar de cada ator ir colocando sua marca autoral. No caso do Encontro
Geral do Riso, os atores que contracenavam e davam suporte para o palhaço
Biribinha fazer suas palhaçadas, são todos palhaços de formação. O maior
exercício, para mim, que sou palhaço e estava num papel de "escada", foi
controlar o ímpeto de querer fazer a piada ou a tirada cômica para preparar
terreno fértil para que o palhaço Biribinha pudesse completar a piada no seu
tempo cômico. Zeca sempre me pedia para controlar este ímpeto, pois todos os
outros papéis devem servir ao palhaço que é o centro cômico do espetáculo. Este
exercício de generosidade foi um grande aprendizado e me faz cada vez mais
admirar o Circo Teatro que acima de tudo visa o riso do público 233.
Com este exemplo obviamente não quis colocar em xeque o talento ou a
qualidade do trabalho de ator de Ésio, que são evidentes. O que desejei mostrar foi que
mesmo um excelente e experiente ator como Ésio Magalhães, referência nacional junto a
Tiche Vianna sobre commedia dell’arte e sobre a figura do palhaço, também encontrou
dificuldades em trabalhar com um tipo de teatro que não está habituado e em executar uma
função, no caso de escada, que normalmente não executa.
Além de Ésio, Ivens Burg e Guga Burg também escreveram depoimentos
acerca da experiência vivida na montagem de Biribinha e a noiva do defunto que
sintetizam, pelo olhar da prática, diversos pontos observados ao longo dessa dissertação:
233
Depoimento de Ésio Magalhães concedido à autora em janeiro de 2015.
352
Ivens Burg:
A primeira coisa que me chamou a atenção é a maneira como o Tubinho nos
transmitiu a comédia. A transmissão oral nos dá uma liberdade de criação
enorme, pois o texto parece vir em segundo plano, sendo as intenções e as deixas
mais relevantes, fortalecendo a função de cada personagem no todo.
Precisávamos falar determinadas coisas para as piadas funcionarem, sim, mas ao
mesmo tempo, o que acontecia entre uma piada e outra era totalmente livre,
possibilitando cada um criar e colorir o personagem a sua maneira, descobrindo
corporeidades e ações próprias. Ele nos dava total liberdade de escolha, se não
nos sentíamos bem fazendo tal coisa, não fazíamos. Penso também na
generosidade e disponibilidade do Tubinho para conosco... Como ele, mesmo
sendo de família tradicional de circo, tem uma mente aberta e antenada no que
acontece fora da lona. Me chamou a atenção o fato de algumas coisas que
descobríamos fazendo a comédia que ele mesmo passou, ele usar pro circo dele,
incorporando coisas novas que nós tínhamos descoberto, numa relação de troca
dinâmica, viva...
Guga Burg:
Para mim, o que ficou de mais forte foi o fazer coletivo. Algo que já havia
notado - que é para mim um ponto-chave - em outras experiências com circo, mas
também em experiências como a das rodas de Capoeira Angola e Samba. A
escuta, a atenção ao outro, a cumplicidade, o entendimento através de um olhar,
de um gesto, ou mesmo antes disso: um ritmo em comum. Além disso, como na
Capoeira, a relação de aprendizado mestre/discípulo. Primeiro você copia, não
sabe bem porque, não questiona, segue, confia. Aprende de tanto copiar e
conviver - depois entende tudo e acha seu caminho, que é ao mesmo tempo
tradicional e original (mistério!), leva uns 10 anos, por baixo... Houve poucos
momentos em que Tubinho interviu mais incisivamente, na atuação, e um deles
foi comigo (aliás, acho que foi o único momento em que ele realmente mostrou
como queria a cena)... O "galã" que eu fazia precisava ser mais enérgico, bravo
mesmo, ganhar o espaço. Tubinho fez a cena, seu caminhar era preciso e orgânico
com o texto, dividia o foco entre o palhaço e o velho Libório nos quais dava a
"bronca", e deixava a cena em seguida, era muito ágil... Era muito simples, vendo
a coisa feita, mas pra eu conseguir fazer, ainda mais "de prima", não foi tão
simples assim, nem sei se cheguei a fazer razoavelmente bem alguma vez... Pra
mim era difícil também um detalhe bobo: eu tinha que xingar e bater com jornal
no Velho Libório e no palhaço, ou seja, no Ésio e no Biribinha, dois mestres para
mim! Foi interessante fazer o galã que se transforma nessa peça, de moribundo
em marido folgado da casa. A atenção às deixas, em dar o texto no tempo certo
para a piada do palhaço funcionar é muito importante. Por exemplo: eu tinha que
tossir (tossia exagerado na cara do palhaço), além de dar o texto, e fui
descobrindo que esse tossir não podia ser a qualquer hora, se não eu podia cortar
um texto do palhaço ou do velho. Como na música, quando você toca nos
momentos de silêncio dos outros tocadores, no tempo certo e sem embolar,
precisando atenção e ritmo.
Depois dessa intensa experiência do 2º Encontro Geraldo Riso, em entrevista,
Zeca enfatizou a necessidade da precisão do escada. Ele disse que, principalmente a frase
final dita pelo escada, anterior ao arremate do palhaço, precisa ser certeira. Isso porque a
piada do palhaço sempre faz referência direta a esta última frase:
353
É quadrado! É um, dois, pá pum, pá pum... Por que? Porque você tira o tempo do
palhaço, né? Se o palhaço quiser fazer uma voltinha antes de dar o desfecho, ele
entende o que tá na cabeça dele, o tempo que tá na cabeça dele e vai funcionar.
Agora o escada não pode fazer isso. Porque ele não sabe o que tá na cabeça de
quem vai encerrar. Entendeu? E parece frescura, né? Parece Frescura. "Ah, mas
foi só um „não‟ que eu falei." Mas não pode falar. Tem que dar a escada, ne? 234
Zeca também falou em entrevista das dificuldades encontradas em seu próprio
elenco e da relação direta estabelecida entre o seu desempenho e o dos demais atores:
O meu elenco tem uma coisa que às vezes é bom e às vezes é ruim. Porque eles
são muito meu espelho. Ontem eu não tava bem na comédia. Eu não me achei na
comédia. Eu tava mal na comédia. E a comédia ficou toda torta. Todo mundo
ficou meio... Eles não sentem isso, mas eu sinto. E toda vez que eu entro em cena,
que eu erro meus tempos que eu tô meio que esquisito, a comédia fica esquisita.
A comédia fica meio fora de ponto, o cara erra também e então isso me dá uma
responsabilidade muito grande. Contanto que hoje era uma comédia muito mais
fraca que a comédia de ontem e agradou dez vezes mais que a de ontem. Porque
hoje eu entrei e chamei eles comigo: "Vem cá, vamo comigo". E quando eles
sentem que eu tô acertando uma atrás da outra, eles se sentem meio que
protegidos assim, sabe: "Opa, vamos brincar também". Quando eu entrei ontem
eu errei duas, eles deram uma respirada... E isso aconteceu ontem por uma
questão de cansaço... Mas até foi uma das coisas que eu pensei ontem depois do
espetáculo: "Eu não tenho o direito de estar cansado”. São duas horas do dia que
eu não tenho o direito de estar cansado porque todo o marketing que essas 55
pessoas fazem tá em cima de mim, né? Então eu não tenho esse direito. Ali
naquele momento eu tenho que tá pleno, tenho que tá de verdade. Ontem eu tava
muito cansado. Eu tava arrastado mesmo. Contanto que eu saí de cena ontem e já
chamei algumas pessoas pra fazer uma ação hoje para trazer o público de volta.
Porque se eu dependesse do público voltar por ter agradado, aquele público de
ontem não vai voltar. Pode voltar, mas não na quantidade que a gente precisa.
Então o que foi a ideia? A ideia foi hoje arrebanhar o público de novo porque eu
vi que o erro foi meu ontem e tentar consertar pra que quem não gostou ontem
seja abafado por quem gostou hoje 235.
Assim sendo, as encenações circenses, que são sempre recriações, dependem
completamente do bom desempenho dos atores para a obtenção do êxito. Cabe ao palhaço,
então, amparado por seu elenco, colocar sua marca, sua arte de ator, sua técnica pessoal
nas representações, mantendo viva a tradição circense, ao mesmo tempo em que a inova e a
reinventa.
234
235
Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
Ibidem.
354
3.8 Cena e improvisação
Subir à cena, todas as noites, com um espetáculo diferente, levado com poucos
ensaios e com um protagonista palhaço é algo que exige, sem sombra de dúvidas, um “jogo
de cintura” dos atores.
No caso do Circo de Teatro Tubinho, em que a maior parte do repertório é
composta por comédias, a abertura para a improvisação é algo que está na base da arte de
ator dos artistas. Tanto que todos os atores da companhia que foram entrevistados
destacaram a importância da questão do improviso no circo. Dentre algumas das
colocações, destaco:
Alexandre Vieira:
Pra trabalhar num circo-teatro a pessoa tem que ser ligeira e rápida em raciocínio,
né? Tem que ser rápida em raciocínio. Porque a gente aqui – como tem muita
peça de teatro – então, tem muitas peças que tem improviso no meio e você tem
que ser rápido. Como a gente decora todo esse texto... Porque dessas peças de
teatro, eu acredito que em umas oitenta peças eu trabalho com texto, não
comparsaria e ponta, né? Então você tem que ser rápido nesse improviso, tem que
ter agilidade pra ver o que o Zeca tá querendo. Porque às vezes você entra com
uma piada e não agrada e ele dá um lance, você precisa puxar outra piada já, aí
tem que saber o que ele tá querendo. Isso é convivência junto, né? Tempo de
trabalho. (...) Essa peça que vai hoje faz uns cinco meses que ela foi. Então, às
vezes tem cidade que vai uma vez na cidade e daí a gente só vai fazer depois de
seis meses de novo em outra cidade. é difícil, mas a gente guarda tudo na mente,
tem um espacinho pra guardar cada uma (risos) 236.
Cristina Martins:
O trabalho aqui exige muito improviso. Improviso é muito importante aqui
porque é um repertório muito grande e pouco tempo de ensaio, pouco tempo pra
decorar texto e cada dia um espetáculo diferente. Se a pessoa não tiver muito jogo
de cintura e muito improviso, eu acho que não dá conta. (...) Eu acho que por
causa de conviver todo mundo junto, você acaba pegando uma intimidade um
com o outro, acaba conhecendo pelo olhar e isso dá muita chance pra você
improvisar. Já acaba aprendendo em que você pode ajudar ou atrapalhar, você
acaba descobrindo como fazer. Mais por causa de convivência mesmo, e de um
conhecer o outro 237.
Ana Dolores:
Pra trabalhar aqui? Em primeiro lugar, improviso. Em primeiro. Porque é um
espetáculo diferente a cada dia, é praticamente impossível que se faça sempre a
236
237
Alexandre Vieira em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
Cristina Martins em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
355
mesma coisa e a gente trabalha com palhaço, que foge, foge! Então você tem que
tá pronto pra improvisar. (...) E eu acho que é meio que dom, eu acho que tem
ator que tem dom no improviso. Mas aqui no circo você acaba... Quem não tem
esse dom acaba aprendendo com a prática. A prática... Fazendo e vendo. Eu acho
que a improvisação é mais fazendo... É, é mais fazendo 238.
Zeca:
Eu acho que a primeira coisa é a disponibilidade de entender essa questão
principalmente do improviso, né? Se for um cara muito bitolado ali no texto
decorado e tal é o que mais dificulta quando a pessoa chega aqui, né? Porque eu
mesmo, mesmo em ensaio, às vezes eu falo um monte de coisa, mas chega à noite
me vem outra coisa na cabeça. A pessoa tem que entender que eu vou sair, que eu
vou voltar e que isso é uma coisa bem comum, né? Então quer dizer tem que tá
disposto a servir, entender que está disposto a servir, de ser o escada...239
Sobre os depoimentos acima, percebo que todos dizem respeito a um trabalho
de improvisação aplicado diretamente à cena. Porém, mostrando-se abertos a absorver
novos aprendizados, os artistas do circo de Tubinho puderam experimentar outro tipo de
improviso com o trabalho com Tiche Vianna pelo projeto da Petrobrás. Tiche Vianna
ministrou uma espécie de oficina para os atores, em que trabalhava exercícios e
improvisações, que ocorriam, portanto, não diretamente aplicados aos espetáculos. Sobre
esse trabalho, Tiche disse em entrevista:
No trabalho que desenvolvi com eles, de certa maneira, todo mundo tinha que
fazer o exercício, brincar e entrar. O que era pra eles mais difícil, eu dizia:
“Quando vocês entram em cena ali vocês vão lá e fazem. Aqui vocês tem que
fazer dentro de alguns parâmetros. Quando eu dou os parâmetros pra vocês, vocês
ficam ressabiados. Não é pra ficar ressabiado! É pra você botar o que você sabe
dentro desse parâmetro. Você acha que você não é capaz de fazer isso?”.
Entendeu? E aí, assim eles iam jogando, iam jogando, então foram jogando cada
vez mais. E isso foi dimensionando pra eles outras necessidades 240.
Este trabalho, em específico, de improvisação em ensaio proposto por Tiche
Vianna, sem sombra de dúvidas, auxiliou os artistas na compreensão de alguns aspectos da
cena, principalmente os ligados à corporeidade do ator. E acredito que isso remete
diretamente à ideia, levantada no início dessa dissertação, de que qualquer técnica tem
238
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
Zeca em entrevista concedida à autora em 18/11/2014.
240
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
239
356
serventia ao trabalho do ator, desde que ele saiba se apropriar e transpô-la para sua técnica
pessoal.
Acredito, então, que a dificuldade encontrada pelos artistas do Circo de Teatro
Tubinho, descrita por Tiche, existiu simplesmente porque esse tipo de trabalho é construído
sobre pressupostos diferentes dos encontrados no circo de teatro. Diferentes, porém não
excludentes.
Isso porque o improviso para o artista circense ocorre diretamente aplicado à
cena e este caminho – comum a minha formação, por exemplo – que propõe,
primeiramente, um processo criativo baseado em improvisações, experimentações e
laboratórios para uma posterior montagem de cenas não faz parte da arte de ator circense.
Ésio Magalhães comentou acerca da companhia circense:
Eles já têm um know-how 241 de como fazer. A improvisação, eles jogam muito
com a improvisação, mas geralmente parte do palhaço. O jogo aberto fica mais
com o palhaço. (...) É dele a parte da improvisação, da abertura, de jogar com o
texto. Então improvisar criativamente, ou seja, no processo de criação do
espetáculo não é muito o caminho deles, entende? O caminho deles é improvisar
criando na cena. Porque a improvisação é criativa dentro da cena já. Você já tá aí
de público e eu já estou improvisando com você daqui242.
Essa criação de maneira mais direta é facilmente entendida quando nos
deparamos com o fato de que estes artistas representam uma peça diferente a cada noite,
além de desenvolverem, durante todo o dia, diversas outras funções na empresa circense –
como ações administrativas, de confecção, manutenção e montagem de cenários e
figurinos, produção dos alimentos da lanchonete, etc.
À título de exemplificação de como os artistas têm de conciliar o trabalho
artístico com as demais funções no circo – e todos os seus percalços –, cito uma passagem
do diário de bordo de Ana Dolores, do dia 07 de janeiro de 2011, estreia do Circo de Teatro
Tubinho na cidade de Vargem Grande Paulista:
241
Know-how é um termo em inglês que significa literalmente "saber como" e é utilizado para descrever o
conjunto de conhecimentos práticos sobre como fazer alguma coisa.
242
Ésio Magalhães em entrevista concedida à autora em 23/04/2013.
357
Atraso na montagem e o corre-corre começa. Ambrosina, a personagem do dia, já
é de casa, mas no decorrer do dia resolvo dar um tempo diferente pra ela... Penso,
estudo... Tudo no meio de uma correria de limpar cadeiras e a torcida de que tudo
esteja pronto às 21h. Às 20h descubro que vai mudar o ator que dividirá a cena
comigo, mas vamos lá... Não dá tempo pra ensaiar, mas o “show” tem que
continuar!243
Com isso não quero dizer, portanto, que um processo como o desenvolvido no
meu tipo de formação não pode ser empregado para um elenco circense, tanto que este tipo
de trabalho foi desenvolvido com a companhia de Tubinho durante o projeto da Petrobrás.
Quaisquer técnicas podem servir ao trabalho do ator, desde que ele saiba como articulá-las.
Quero dizer apenas que este caminho do improviso anterior à cena pode servir ao ator
circense, mas que não faz parte comumente de sua arte, por não se afinar com o modo de
organização do trabalho no circo.
O improviso para o artista circense, portanto, é comumente aplicado de maneira
direta à cena e constitui um elemento primordial na composição dos espetáculos. Isso
porque o circo-teatro, assim como diversas outras manifestações teatrais tidas como
marginais à história do teatro oficial no Ocidente, se fundamenta não sobre o texto
dramatúrgico, mas sim sobre o próprio espetáculo teatral. Ou seja, não são textocêntricas.
Essas manifestações foram colocadas por questões políticas à margem da
história oficial do teatro no Ocidente que, assim como tantas outras histórias oficiais de
diversas áreas do conhecimento, é hegemonicamente contada do ponto de vista europeu, e
melhor dizendo, francês. Mesmo porque durante muitos anos – e até hoje, por que não? – as
tendências teatrais dos países europeus influenciam diretamente a cena de outros países,
como o próprio Brasil.
Com este “detalhe” em mente, destaco que, após o Renascimento, do século
XVII até os anos 1880, as teorias teatrais francesas desenvolvidas eram essencialmente
poéticas. Por razões ideológicas – que envolvem disputas de saberes e de poder –, quase
todos os estudos desse período tinham os textos das peças como objeto principal de análise.
A exceção à regra ficou a cargo do Paradoxo sobre o comediante, de Diderot,
243
Ana Dolores em seu diário de bordo, concedido à autora.
358
provavelmente a primeira abordagem teórica moderna sobre o trabalho do ator. Porém,
sabe-se que esse texto foi publicado somente após 1830 (ROUBINE, 2003).
As teorias teatrais francesas do século XVII acompanharam os principais fios
condutores do movimento renascentista, que visava à retomada dos paradigmas da
Antiguidade Clássica. Dessa forma, o teatro oficial francês do Classicismo tinha o projeto
comum de retomar, analisar e compreender a Poética, de Aristóteles, que havia sido
traduzida para o francês apenas em 1671. Roubine afirma:
A França letrada logo se apaixona pelos debates provocados pelo modelo
dramatúrgico descrito na Poética. Todo autor que pretenda qualidade ou que vise
conquistar um poder econômico-intelectual deve reivindicar um conhecimento
aprofundado da Poética e de seus comentadores (ROUBINE, 2003: 22).
Porém, deve-se ressaltar que o texto de Aristóteles, ao ser traduzido para o
francês, foi parcialmente modificado, sendo mal interpretado pelos tradutores e
comentadores. Roubine completa:
Assim, a teoria de Aristóteles, tal como a entendem os “doutos”, repousa em
leituras indefinidamente mediadas pelas obras italianas ou holandesas que lhe
eram consagradas e não é raro vermos atribuírem a Aristóteles fórmulas que, na
verdade, devem-se a um ou outro de seus exegetas. (...) Para a geração dos anos
1640, as “regras” (aristotélicas) constituem um modo de conhecimento científico
da arte teatral e uma tecnologia cuja eficácia as obras-primas antigas
comprovaram. O aristotelismo tem no fundo, em seu domínio, a mesma vocação
metodológica que o cartesianismo: os axiomas da arte encadeiam-se uns aos
outros e são logicamente deduzidos uns dos outros. Assim como a razão
cartesiana é a ferramenta da inteligibilidade do mundo, a razão “aristotélica” é a
ferramenta da perfeição criadora (Idem: 22, 26 e 27).
A partir, então, desta leitura equivocada e radical da Poética, inaugurou-se uma
tradição de um teatro textocêntrico, de desvalorização do espetáculo e afirmação da
superioridade, e até mesmo a supremacia, do texto dramático sobre os demais componentes
da encenação (Idem).
Com isso, o aristotelismo francês fundou um elitismo intelectual. Ainda
segundo Roubine,
359
Uma vez que o êxito do dramaturgo é objetivamente atestado pela conformidade
de sua obra às regras, quem poderá avaliar essa conformidade senão aqueles que
têm o mais perfeito conhecimento das ditas regras, ou seja, a casta dos
“eruditos”? (...) Diferentemente de todos os profissionais da cena para quem a
principal regra é agradar ao público, os aristotélicos recusam esse ponto de vista,
alegando que esse público, salvo exceção, é desprovido das luzes requeridas, isto
é, do conhecimento das regras. (...) O que estava em jogo (...) era a conquista de
um poder simbólico, mas também, não nos esqueçamos, econômico, que visava
dominar as atividades do teatro. A teorização aristotélica era parte de uma
estratégia que tinha como objetivo eliminar tudo o que podia ser obstáculo a essa
conquista. Eis porque o público, que julgava os espetáculos exclusivamente
segundo o critério de seu prazer, devia ser “recusado”, “deslegitimado”. (...)
Certamente os “doutos” podiam constituir um corpo de intendentes dedicados à
causa do poder monárquico, capazes de impor seu controle sobre as atividades do
teatro e sobre a ideologia que este difundia. O aristotelismo era em primeiro lugar
uma ordem, uma regulamentação. E é verdade que a tradição barroca que
repousava na liberdade de invenção dos criadores, que se apoiava não em uma
“panelinha”, mas no sufrágio de um público eclético, que veiculava a ideologia
nobiliária, o individualismo, a ostentação, a recusa da Lei...- é verdade que essa
tradição não podia ser senão suspeita para uma monarquia que lutava para
consolidar o absolutismo. A criação teatral – única pratica cultural, então, a reunir
as massas – era motivo político de disputa. O poder tinha necessidade de
assegurar seu controle do mesmo modo que se esforçava para controlar o ardor e
os caprichos de uma aristocracia inquieta (Idem: 27, 55 e 56).
Porém, o grande paradoxo é que, se voltarmos no tempo e observarmos como
eram as manifestações teatrais anteriores ao aristotelismo francês e à elitização
intelectual/artística, veremos que a ideia de teatro, desde os gregos, sempre se aproximou
mais das ideias de ação, de representação num tempo e espaço diante de um coletivo de
pessoas do que do texto dramático propriamente dito (CAMARGO, 2006).
E, seguindo essa linha, que acabou se tornando marginal, acabamos por
encontrar manifestações como os teatros de feira e mesmo a commedia dell’arte e,
consequentemente, as manifestações teatrais nos circos europeus e os chamados circosteatro no Brasil.
Camargo escreve acerca dos teatros de feira, realizados pelos artistas que
posteriormente passaram a se apresentar no espetáculo concebido por Astley:
Felizmente, não existiam teóricos que impusessem limites ou rigor a esta arte,
nem aqueles que pudessem reconhecer um estilo em seu meta-estilo. Seu
compromisso último como arte era com o público que devia encher seu auditório,
na busca das formas artísticas que agradassem mais à plateia, que deixaria um
pouco de seu numerário, previamente, na bilheteria. (...) Se o teatro francês havia
produzido e elaborado, sob o manto real, um metro clássico que o caracterizaria
360
por muito tempo, nas feiras estavam sendo decretados e praticados a flexibilidade
e o não classicismo. Era o gênero das diferenças dramáticas e da experimentação
apoiado na arte do ator e de seu espetáculo, não no texto dramático que se
escrevia sobre as regras da academia. Um teatro que não se baseava no texto
dramático escrito a ser seguido como forma organizativa, mas, no espetáculo.
Esta era sua unidade, ou melhor, seu princípio (CAMARGO, 2006: 28, 29 e 30).
As considerações de Camargo acerca dos teatros de feira são completamente
aplicáveis aos circos-teatro brasileiros, que também fundam um compromisso
exclusivamente com a plateia e se apoiam, principalmente, no desempenho dos atores,
amparados pelos demais elementos da encenação, para a construção de uma cena múltipla e
aberta à improvisação.
Ou seja, partindo das considerações de Camargo (2006), compreendo que o
circo-teatro advém de uma tradição em que a cena é constituída não a partir de uma lógica
de construção do texto literário/dramático, mas sim através de outra dimensão, de outro
texto: o texto espetacular, composto, por sua vez, pelo texto do ator e sua arte – com seu
corpo, mente, intelecto, etc. – em conjunção com o texto de cada elemento da encenação.
Ainda partindo das reflexões de Camargo (2006), destaco que a estrutura de
qualquer espetáculo teatral, e não apenas das manifestações tidas como marginais, é
composta por esses múltiplos textos internos (texto-cenário, texto-luz, texto-figurino, textosom, texto-gesto, texto-palavra etc.). Mesmo a ausência consciente de algum desses textos
constitui um texto, ou seja, quer dizer algo dentro do complexo formado pelos demais
textos em relação.
E é exatamente a tensão entre todos esses textos, concretizada por completo
somente no momento da representação diante do público, que constitui o fenômeno teatral.
Ou seja, em qualquer representação, o texto dramatúrgico, quando existente, deve ser
apenas um dos elementos que constituem o sistema significante do texto espetacular. Dario
Fo nos atenta para o fato de que:
Os atores precisam aprender a fabricar o próprio teatro. De que serve o exercício
da improvisação? Para tecer e impostar um texto com palavras, gestões e
situações imediatas. Mas, principalmente, para retirar dos atores a falsa e perigosa
ideia de que o teatro não é nada além do que literatura posta em cena, recitada,
cenografada, em vez de simplesmente lida. Não é assim. Teatro não é literatura,
mesmo quando e a qualquer custo querem enquadrá-la como tal. Brecht afirmava,
361
referindo-se a Shakespeare: “Infelizmente, é belo também à leitura. Esse é o seu
único defeito”. E tinha razão. Uma obra teatral de valor, paradoxalmente, não
deve de nenhum modo parecer agradável à leitura. Ela deve revelar seu valor
somente no momento da realização cênica (FO, 2011: 323 e 324).
No caso das manifestações tidas como marginais, como o circo-teatro, o texto
espetacular é fundamentalmente múltiplo, agregador de vários gêneros, estilos e linguagens
artísticas. Nesses teatros o texto dramatúrgico, quando presente, é criado não para ser
analisado como texto literário, mas sim para ser encenado e completado pelos demais textos
do espetáculo.
Mas ainda assim, o movimento teatral no circo é tão múltiplo que existem
algumas especificidades, em relação à função do texto nas encenações, ditadas,
principalmente, pelo contexto histórico-social em que as companhias se inserem. Como
exemplo, cito as duas companhias investigadas nessa pesquisa.
O Pavilhão Arethuzza, principalmente na sua fase na cidade de São Paulo,
levava à cena mais dramas – e melodramas – do que comédias, pois era o que mais
agradava a plateia daquele momento que, como destacou Santoro Júnior em entrevista,
ainda vivia uma espécie de Romantismo tardio.
Nessa mesma entrevista, Santoro Júnior me contou sobre o rigor que os artistas
tinham em relação aos textos, principalmente do gênero dramático, que deveriam ser
decorados por completo e que havia pouco espaço na cena para improvisação. Além disso,
nas diversas passagens em que ele declamou trechos das mais variadas peças, pude
perceber que os textos encenados eram compostos por construções linguísticas complexas e
palavras bastante rebuscadas. Então, me veio a dúvida: isso não é ser textocêntrico? O texto
não estava ali no centro da representação?
Depois de refletir um pouco e pesquisar os dados que já havia levantado
anteriormente, encontrei na entrevista com Fernando Neves algo que me ajudou a entender
um pouco melhor essa questão. Compreendi, então, que o texto constituía um elemento
importante nas representações do Pavilhão Arethuzza, mas que, acima de tudo, servia de
pretexto, de ponto de partida, para a encenação de grandes espetáculos, com grandes
atuações.
362
O texto era importante, mas o olhar daqueles artistas estava voltado
completamente para a criação cênica. Ou seja, o texto era relevante, mas não era
apresentado ali um teatro que parecia literatura, e sim um teatro com grande preocupação
com os elementos da encenação e o desempenho dos atores.
Já o Circo de Teatro Tubinho me suscitou outras dúvidas. Este circo trabalha,
principalmente, com as chanchadas, que apresentam roteiros de situação com inserção de
muitas piadas e improvisos, e com as comédias de linha, mais voltadas para a encenação de
uma história linear e de um texto fixo, porém agregado de inserções e modificações a toda
representação. Em ambas as manifestações cômicas há total abertura ao improviso, sempre
pautado por alguns alicerces.
Porém, apesar de reconhecer tudo isso, me veio a dúvida: no Circo de Teatro
Tubinho o texto não é o mais importante, mas, ao mesmo tempo, o texto é preponderante
em cena. Há, inegavelmente, a construção física dos tipos por parte dos atores, há a
exploração de elementos cenográficos, de figurino, luz, som, etc; mas pude contar nos
dedos quantas cenas vi, ao longo da pesquisa, que eram mudas de ação verbal. Todas as
cenas, praticamente, se resolvem pelo verbo, obviamente, em consonância com as ações
corporais dos atores e os demais elementos da encenação.
Em relação a essas dúvidas, Tiche Vianna me esclareceu em entrevista a
diferença entre textocentrismo e verborragia e como uma cena pode, apesar de não estar
centrada no texto, ser preenchida de ações verbais, que devem estar articuladas de modo a
não serem meramente informativas:
Fernanda Jannuzzelli: Com relação ao texto... Lendo sobre commedia dell'arte
ou mesmo circo-teatro, por exemplo, fala-se muito que não é textocêntrico... Não
é o texto que é o mais importante. Como você vê isso ali no Tubinho, Tiche? O
texto não é o mais importante, mas ele é preponderante, não? Eles falam muito
nas peças!
Tiche Vianna: Não, não é o texto. Não é textocêntrico mesmo, mas texto e
palavra e som são coisas distintas. O que eu entendo é que não é textocêntrico
porque não tem uma lógica de um desenvolvimento de uma história que, através
da organização das palavras, da escolha dos termos, da construção das frases e do
modo como esses conteúdos vão ser abordados pelo texto... Não é isso que vai
fazer com que todo mundo se envolva com a história. Isso não conta. Mas pra
mim existe uma questão que é: não ser textocêntrico não tem nada a ver com a
questão da palavra. Porque as pessoas sabem que não é textocêntrico, mas elas
entram lá e são verborrágicas, ok? Porque a palavra é um recurso muito forte que
363
a gente tem. Ainda mais quem vem do campo da piada, que vem pelo campo do
humor feito pela construção da piada. Você vai falar, você vai encontrar as
relações na fala. Você faz uma matriz de corpo, faz um tipo fixo – que não é o
tipo fixo da commedia dell'arte –, mas você fixa como se ele fosse de um jeito,
então ele vai entrar, falar e sair desse jeito. E essa é a figura cômica. E eu digo
“Não!”. Ele vai entrar desse jeito, ele vai falar ou não, mas algo vai acontecer
com ele e ele vai sair diferente do que ele entrou. Ou ele vai sair mais
intensificado naquilo que ele entrou ou ele vai sair transformado. Então, qualquer
cena pede ou intensificação ou transformação. Se não aconteceu nem uma coisa
nem outra, não aconteceu nada ali, pra esse tipo de teatro. Não aconteceu nada,
você só foi lá e informou. Então o perigo é você tirar o textocentrismo e botar o
informativo. Então a tua fala fica sendo as informações sobre o espetáculo, pras
pessoas poderem acompanhar. Ao invés de fazer a coisa, você informa sobre a
coisa. (...) Quando eu tô fazendo, quando eu tô em cena, eu não digo que eu vou
caminhar até a porta, eu caminho até a porta. Eu não digo “Você vai sofrer uma
coisa assim”, eu faço isso, entendeu? Eu não digo “Você vai levar um tapa”, você
leva o tapa. Que é toda uma construção desse tipo de linguagem, mas também do
cômico. Então é bem interessante essa sua questão, é uma abordagem interessante
de fazer... Que é justamente sobre isso, que é entender que o texto, o
textocentrismo como a gente fala, que você tem uma dramaturgia que constrói e
constitui a cena a partir de toda uma lógica de construção desse texto. Uma lógica
poética, literária, que passa por todos os universos que um texto passa pra ser
construído. Quando você tira o texto você não pode esquecer que essa dimensão
passou pro texto corporal, né? Há um texto corporal a ser dito. Senão, o que você
vai fazer ali é som da palavra, e aquilo vai ser... Você vai simplesmente tornar a
palavra uma coisa informativa. E a informação é chata. Porque você cria no
imaginário do espectador uma imagem que com certeza é infinitamente menor
que aquela que você é capaz de construir ali 244.
Compreendi, portanto, que, apesar de não estar centrado na encenação de um
texto dramatúrgico, o recurso da palavra é muito utilizado no Circo de Teatro Tubinho, pois
o tipo de humor desenvolvido pela companhia, e característico do palhaço Tubinho, é
predominantemente verbal, de construção de piadas. Porém, isso não quer dizer que as
encenações ficam restritas apenas às ações verbais dos atores e que as falas são
informativas.
Outra questão suscitada em relação ao texto na cena do Circo de Teatro
Tubinho me surgiu durante os ensaios da peça Biribinha e a noiva do defunto, no 2º
Encontro Geraldo Riso.
Zeca nos passou a comédia de “orelhada”, de modo que ele ia contando os
acontecimentos da peça e, ao mesmo tempo, dando algumas falas das personagens. Algo
mais ou menos assim: “Ésio, você entra pela porta da rua, com várias contas na mão e no
244
Tiche Vianna em entrevista concedida à autora em 06/09/2014.
364
meio tem uma carta. Você abre, lê só pra você e (gritando) „Amália, Amália, filha!‟. Daí
entra a Amália. Você entra, Fer, e „O que foi papai, que aconteceu?‟ „Minha filha você não
vai acreditar!‟ „Fala papai!‟”.
Nesse esquema fomos montando toda a comédia e num dia Zeca comentou:
“Engraçado... vocês repetem exatamente as mesmas falas; lá a gente não... Cada vez a gente
fala de um jeito diferente... sabemos a situação, mas cada vez a fala sai de um jeito”.
E eu então me dei conta de que realmente fazíamos isso. As falas que usamos
na primeira vez que passamos as cenas foram mantidas, como se fosse um texto fixo. Às
vezes, colocávamos umas falas a mais, improvisávamos, mas mantínhamos iguais as falas
“chaves”, diferentemente dos atores da companhia de Tubinho, que, a cada apresentação,
modificam suas falas, porém mantendo as situações.
Isso aponta para o fato de que os artistas circenses são, além de atores,
coautores dos textos encenados, por sempre “reescreverem” suas falas no momento da
apresentação, mantendo a situação, mas alternando as palavras escolhidas e a construção do
discurso, como apontado por Zeca no nosso trabalho no Encontro Geraldo Riso.
E, além disso, são coautores devido ao caráter improvisacional característico
desse tipo de fazer teatral, que incorpora “em ato” temas contemporâneos, acontecimentos
do momento e referências aos costumes locais (BOLOGNESI 2003; SILVA, 2007; SOUSA
JR., 2012).
Porém, este improviso em cena típico do trabalho do ator circense não ocorre de
maneira totalmente aleatória, mas sim baseado numa série de parâmetros que fixam alguns
pontos de apoio. Sousa Junior cita:
Uma metáfora que se aproxima muito desse processo vem da música. Aroldo
Casali define: “Entrada é como jazz. O tema central é esse, cada um improvisa
dentro do acorde do momento. É a mesma coisa. Ele pode improvisar o que
quiser. O palhaço é um ser imprevisível” (SOUSA JR., 2012: 85).
Este tipo de improvisação “sem sair do tema”, empregando mais uma vez a
metáfora musical, que está na base da arte de ator dos artistas de circo-teatro e que é
explorado nos circos também nas entradas de palhaços, faz parte da arte de ator de diversas
manifestações artísticas populares, como a commedia dell’arte, por exemplo. Dario Fo
365
disserta acerca da comédia italiana:
(...) os cômicos não possuíam sequer a tão decantada arte inatingível de inventar
de improviso diante do público situações e diálogos de extraordinário frescor e
atualidade. Pelo contrário; asseguram; toda aquela improvisação seria um truque,
fruto de uma ardilosa organização predisposta a situações e diálogos decorados
antecipadamente. O que é absolutamente correto. Mas o valor que se atribui a isso
depende de sua interpretação. No meu ponto de vista, é um fato totalmente
positivo. (...) Mas o conhecimento de tantos expedientes com certeza seria
insuficiente se o ator não possuísse o motor da fantasia e o famigerado dom da
improvisação, ou seja, a capacidade de dar a impressão de estar dizendo coisas
novas e pensadas naquele momento (FO, 2011: 17 e 20).
Num circo de teatro como o de Tubinho, o primeiro grande ponto de apoio e
referência aos artistas é o fato de que todos estão em cena a serviço do palhaço e que cada
pequena parte, construída por cada ator, é importante e significativa para se extrair um bom
desempenho dessa figura central.
Além disso, o uso da tipologia, que permite a verticalização – sem
engessamento – em determinados personagens tipos, cria um caminho claro a ser seguido
por cada ator em cena.
Destaco ainda que a convivência diária e o fato de se apresentarem todos os
dias possibilitam a criação de uma grande intimidade e cumplicidade cênica entre os atores,
além da criação de um extenso repertório em comum, ampliado a cada apresentação.
Zeca contou em entrevista, em 2010, como ocorreram as primeiras montagens,
no início da companhia, e como que, com o passar dos anos, o espaço para improvisação
foi sendo ampliado:
(...) E assim a gente foi refazendo os espetáculos. Por exemplo, tinha peça que
meu pai lembrava a história do começo ao fim, mas não lembrava os cacos, as
piadas, os floreios da peça. Então ele falou: “Vamos entrar com o texto e deixa o
Zeca trabalhar.” Então o que foi combinado com o elenco? Cada um tinha seu
texto, suas falas, eu abria a boca, eles paravam, esperavam eu fazer a minha
graça, e depois retomavam de onde tinham parado. E isso acabou dando pra gente
habilidade pra improvisar, então a gente brinca muito em cena. Tem muita coisa
na comédia que não é da comédia, uma piada que eu ouvi de tarde e boto à
noite... Às vezes você vê que o próprio ator ri porque ele não esperava aquela
piada, não conhecia. E então a gente vai trabalhando desse jeito. 245
245
Zeca em entrevista concedida à autora em 27/03/2010.
366
No final da fala anterior, Zeca destaca o fato de que, às vezes, os próprios atores
são surpreendidos em cena e riem “de verdade”. Esse recurso da quebra da ilusão cênica é
muito utilizado no circo de Tubinho por sempre agradar a plateia que, segundo Zeca, às
vezes realmente parece torcer para dar tudo errado. Isso porque o público gosta de ver o
ator se atrapalhando, quebrando o mecanismo estabelecido pela encenação e tendo que
improvisar com isso. Dario Fo nos conta:
Picasso afirmava: “O pintor imbecil está pintando e cai-lhe do pincel uma gota de
tinta. Uma mancha vistosa espalha-se na folha. Desesperado, o pintor imbecil
rasga o papel o papel e começa tudo de novo. No meu caso, ao invés, já que – se
me permitem – sou um pintor de talento, assim que cai a mancha, sorrio, observoa, viro e reviro a folha e, comovido, começo a desfrutar daquele acidente com um
grito de prazer. É justamente da mancha que, para mim, nasce a inspiração!” (FO,
2011: 90 e 91).
Figura 142: Exemplo de quebra da ilusão cênica em Cabocla Bonita. Sorocaba, 2014.
Fonte: Página de relacionamento do Circo de Teatro Tubinho na internet.
Transpondo a ideia de Picasso para o teatro, entendo que o ator deve aprender a
lidar com seus próprios erros e aproveitá-los como estopins para a revitalização da cena,
facilmente engessada, pois no erro há o inesperado e, portanto, há vida.
367
O erro, o “sair da norma”, é um prato cheio para qualquer palhaço e no Circo de
Zeca nenhum detalhe passa despercebido diante do palhaço Tubinho. O erro é sempre
aproveitado e incorporado à cena. E mais: o erro é tão bem-vindo que é falseado.
Certa vez eu estava assistindo Tubinho, o Tigrão de Sorocaba. Numa das cenas,
Lucélia Reis perseguia a atriz Ana Dolores em cena quando, de repente, foi tentar pular o
sofá do cenário, que acabou tombando e derrubando-a no chão. A cena parou por alguns
instantes, pois Lucélia e os demais atores não conseguiam parar de rir do incidente, assim
como o público, que ria e aplaudia em cena aberta.
Depois da apresentação fui perguntar à Lucélia se estava tudo bem e dizer que o
tombo no sofá, apesar de um incidente, tinha sido muito engraçado. Foi então que ela me
contou: “É de mentira, Fer. Eu caio toda vez”. Comecei então a rememorar com ela
diversos outros incidentes que havia visto em outras peças e descobri que também se
tratavam de “falsos improvisos”.
Depois disso, ao ler o Manual Mínimo do Ator, descobri que, o que eu estava
chamando de “falso improviso” Dario Fo chama de “falso incidente” e que este recurso era
comumente explorado na commedia dell’arte e outras manifestações cômicas.
Dario Fo (2011) conta uma passagem acerca da utilização do recurso do falso
incidente, encontrada em Crônicas da commedia dell’arte, de Vito Pandolfi. Certa vez, um
grande ator e cômico dell’arte chamado Cherea estava recitando o prólogo de uma peça de
Plauto, que não estava agradando muito, quando foi atacado por uma vespa. Primeiro, ele
tentou se livrar do inseto pra continuar a cena, escondendo o seu embaraço com a situação.
Porém, a vespa continuou a lhe perturbar e, por fim, entrou em sua roupa. Cherea, tentando
se livrar do inseto acabou despertando a risada de toda plateia. O ator então, experiente e
astuto, aproveitou-se da situação e, mesmo depois de ter se libertado do inconveniente,
começou a fingir que a vespa continuava o atacando, cada vez mais atrevida, ao mesmo
tempo em que recitava o monólogo.
Aliás, quando os outros atores entraram em cena, e o espetáculo realmente
começou, eles, atores experientes e sagazes, mimaram estar sendo apoquentados
pela vespa. Não satisfeito, Cherea mimou perseguir a vespa, dirigindo-se até a
plateia e, sob o pretexto de eliminar o inseto imaginário, distribuiu com
desenvoltura tapas a torto e a direito entre os espectadores. Logicamente, o
368
espetáculo foi para o espaço, como se costuma dizer, mas o sucesso da noite foi
absoluto (Idem: 117 e 118).
A cena hilariante agradou tanto que, no dia seguinte, a companhia decidiu
fabricar imitações de vespas e o incidente do dia anterior passou a ser reproduzido durante
toda a encenação da peça, chamada, a partir de então, A comédia da vespa. Nesse caso
narrado por Fo, um incidente externo, algo que aconteceu por acaso, foi fundamental para a
renovação e revitalização do mecanismo cômico.
Assim como nessa história, no Circo de Teatro Tubinho o recurso do falso
incidente geralmente surge de uma situação que realmente aconteceu imprevisivelmente
pela primeira vez e que, por ter agradado, passou a ser repetida sempre. O exemplo mesmo
anterior, da queda de Lucélia, transcorreu dessa forma: num determinado dia ela realmente
caiu sem querer e, a partir deste “erro”, descobriu-se um mecanismo cômico funcional que
foi mantido em cena.
Figura 143: O falso incidente de Lucélia Reis em Tubinho, o tigrão de Sorocaba. Sorocaba, 2014.
Fonte: Arquivo da fotógrafa Grah Assis.
Porém, o que mais me impressionou foi a verdade com que os atores realizam
esses falsos incidentes, a ponto de enganarem a todos, inclusive a mim, que estava
assistindo ao espetáculo não só com um olhar de espectadora, mas de investigadora.
369
Como atriz, sei como é difícil repetirmos, de maneira viva, algo que nos surge
por acaso numa improvisação ou mesmo no momento da apresentação. Aliás, a arte de ator
é baseada justamente nessa tensão existente entre técnica (artifício) e vida; entre repetição e
espontaneidade.
Portanto, a verdade com a qual os atores do Circo de Teatro Tubinho executam
o recurso do falso incidente é algo que realmente impressiona. Tanto a verdade do ator com
o qual o “incidente” ocorre, quanto a verdade com que os demais atores em cena reagem ao
acontecido, pois é justamente a reação desses outros que dá a dimensão, ao público, da
veracidade do “incidente”.
Para além de todos os improvisos programados há ainda, na companhia de
Tubinho, uma abertura para um tipo de improviso realmente ditado pelo acaso. E, diante
disso, os atores precisam estar sempre atentos, com um nível de energia elevado e extrema
prontidão. Sobre isso, Luciane Rosã e Lucélia Reis disseram, em entrevista:
Luciane Rosã:
Tudo pode mudar também e é isso, o palhaço pode fazer qualquer piada e tem que
estar atento. É o que eu sempre peço, quando eu vou entrar em cena, é estar
ligada. Estar “ligada no 220” pra ter muito mais audição, mais visão, muito mais
corpo, porque a gente tem que tá muito ligada nele. E hoje em dia a gente olha
pra ele e a gente sabe o que ele tá pensando. Agora, com esses personagens novos
que eu peguei, eu percebi muito isso. Por que? Porque quando eu já tava fazendo
os meus personagens , há treze anos fazendo, né?... Eu já tava no embalo, às
vezes as coisas fluem de um jeito que parece tão natural como se a gente tivesse
em casa. Quando eu peguei esses personagens novos, eu percebi umas trocas de
olhar dele comigo que eu me assustava em cena. Porque eu tava em outro
personagem, então eu não esperava, às vezes, atitudes dele e não conseguia trocar
como eu troco quando eu estou nos meus personagens normais. Então é um ping
pong totalmente diferente. Você tem que se reestruturar como atriz 246.
Lucélia Reis:
Você tem que entrar atento em cena, primeiro também porque você trabalha com
um palhaço que você nunca sabe o que vai vim dele. Então se você não tá atento
com o teu corpo atento, com teu olho atento, sabe, com a sua mente atenta ali,
você não tá inteiro em cena, você pode se dar mal... Você pode ser um excelente
ator, mas se você entra desatento, passou... O palhaço é imprevisível, você nunca
sabe o que vem dele, e você é escada o tempo inteiro 247.
246
247
Luciane Rosã em entrevista concedida à autora em 17/11/2014.
Lucélia Reis em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
370
As inserções, principalmente verbais, na encenação são chamadas, no teatro, de
“cacos”. Em muitas linguagens teatrais o “caco” é mal visto e acredito que seja porque esse
recurso talvez não sirva a todos os tipos de manifestações teatrais. Mas nas populares, como
o circo-teatro, esse recurso se enquadra perfeitamente à linguagem cênica e a arte de ator
de seus artistas.
Porém, improvisar é como estar numa corda bamba.
E digo isso por experiência própria, baseada principalmente no trabalho que
desenvolvo com um dos grupos que integro como atriz, a Damião Cia de Teatro. Faço parte
do espetáculo de rua As presepadas de Damião – de como fez fortuna, venceu o Diabo e
enganou a Morte com as graças de Jesus Cristo. Este espetáculo é o resultado da
montagem de formatura de parte da turma de 2009 do curso de Artes Cênicas da Unicamp.
Pude acompanhar parte deste processo criativo, pois havia sido convidada pela turma para
desenvolver o trabalho de preparação corporal, principalmente acrobática, para o
espetáculo, dirigido pelo professor Mário Santana. Depois de formados, parte do grupo
resolveu continuar com o espetáculo e foi, então, que passei a integrar o elenco,
substituindo duas atrizes que haviam saído da companhia.
Quando comecei a atuar em As presepadas de Damião, em 2013, já estava
muito envolvida com o trabalho desenvolvido por Zeca e seu elenco, de modo que,
influenciada pelo que via no circo, passei a abrir brechas de improvisos no espetáculo,
buscando um modo de me apropriar daquelas personagens que não haviam sido criadas por
mim. Eu também sentia que o espetáculo funcionava muito bem, mas que era necessário,
por se tratar de uma peça de rua, interagirmos mais com o local escolhido para a
apresentação, bem como com a plateia presente.
À medida que comecei a improvisar, os outros artistas do elenco rapidamente
entraram no jogo proposto, de modo que um passou a “dar corda” para o improviso do
outro. O espetáculo, então, cresceu de modo significativo, se tornou mais vivo e passou a
estabelecer um contato mais potente com a plateia.
Porém, como improvisar é estar na corda bamba, com o tempo, fomos dando
tanta abertura ao improviso que todos começaram a colocar vários cacos em diversos
momentos da peça, o que gerou um alongamento e uma consequente falta de ritmo das
371
cenas. Havíamos “perdido a mão” e exagerado na quantidade de inserções. Mas, por outro
lado, se “perdemos a mão” era porque estávamos experimentando e nos desafiando em
cena, ou seja, nos pondo realmente em risco.
Como em arte tudo é questão de medida, nosso trabalho tem sido, desde então,
caminhar nessa linha tênue do improviso, buscando sua medida exata para o bom
andamento do espetáculo.
Acredito que no Circo de Teatro Tubinho extrapola-se a medida exata com bem
menos frequência do que no caso da Damião Cia de Teatro, porque enquanto nesta última a
comicidade da peça é diluída entre as personagens, no circo tem-se a premissa básica de
que a figura central é o palhaço e que é dele a graça maior e final do espetáculo. Além
disso, por se apresentarem todas as noites, eles inegavelmente “treinam” e aprendem mais
do que nós, que apresentamos, geralmente, uma vez por mês.
Dessa forma, o Circo de Teatro Tubinho desenvolve seu trabalho pelo interior
do estado de São Paulo, já assistido por um público superior a um milhão de pessoas. Todas
as noites, a lona para seiscentos espectadores está lotada e todo o elenco se reveza nas mais
diversas funções para fazer a sessão acontecer.
Ao longo da pesquisa de campo pude ver o enorme respeito com o qual todos
do circo tratam os espectadores, a começar pela questão da pontualidade: todos os dias
exatamente às 21 horas ouve-se a vinheta “A festa vai começar, consulte o seu relógio, são
pontualmente 21 horas”, que dá início ao espetáculo da noite.
Pude acompanhar também como, ao longo da praça, Tubinho e seu elenco vão
conquistando a cidade. O circo se insere na vida das pessoas muito além do momento do
espetáculo, desenvolvendo diversas ações no campo social e construindo, com isso,
amizades que perduram depois que o circo se muda.
372
Figura 144: Reportagem sobre jogo beneficente do qual o Circo de Teatro Tubinho participou na cidade
de Ibiúna, em julho de 2010.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
Figura 145: Reportagem sobre homenagem à Zeca no Jornal Cruzeiro do Sul. Votorantim/Sorocaba,
05/02/2012.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello
373
No campo da configuração artística, o espetáculo de estreia da temporada é
sempre E o Tubinho apareceu. Nesta comédia de linha conhecida entre os circenses como
O Aparício, o palhaço demora um pouco mais para aparecer na trama do que em relação às
outras peças, o que aumenta a expectativa do público em querer ver Tubinho. Ana Dolores
disse em entrevista:
A peça da estreia sempre foi o Aparício. Sempre, desde o começo. Que foi meio
que uma mudança de tradição, porque a maioria dos circos de teatro estreavam
com o Falso Conde né? Que aqui é o Tubinho, o hóspede da pensão maluca. E o
Zeca resolveu levar o Aparício na estreia... Porque a gente falava "Zeca, no
Aparício, palhaço, demora muito pra entrar em cena". Daí ele falou "Não, mas eu
acho que tá bom pra estreia porque aí eu levo como O Tubinho apareceu... E até
vai aumentando a vontade de ver o palhaço, né? Vão ficar “não vai entrar, não vai
entrar?”248.
Na última semana da temporada, o circo faz o chamado Vale a pena ver de
novo, em que o público escolhe as peças que gostaria de rever.
No penúltimo dia sempre é levado O Casamento do Tubinho. Após um
primeiro ato engraçadíssimo, no segundo ato Zeca pede licença ao público para uma pausa
na história e chama ao palco os padrinhos do casamento, que são as pessoas das quais os
artistas ficaram amigos durante a temporada na cidade e também os patrocinadores do
circo. O clima é de celebração e de início de despedida, com todos envoltos na mesma
atmosfera que mistura realidade e ficção. Em Sorocaba, fui surpreendida com Tubinho
dizendo “Geralmente a gente chama dois casais de padrinhos para o noivo e dois para a
noiva. Mas dessa vez a gente vai abrir uma exceção e chamar uma pessoa que vem
acompanhando nossa família há um tempo: Fernanda Jannuzzelli!”. Não preciso dizer que
fui às lágrimas... No palco ao abraçar o elenco todos me agradeciam pelo tempo que
passamos juntos e eu não conseguia dizer nada mais do que “Muito obrigada vocês!”. Mais
uma vez pude ver quão generosos e carinhosos aqueles artistas são para com as pessoas que
se interessam pelo trabalho da companhia.
Depois deste emocionante momento, ainda entra em cena no espetáculo
Tubinhozinho, Alexandre Pereira, como um filho bastardo de Tubinho. Vemos então uma
248
Ana Dolores em entrevista concedida à autora em 08/09/2014.
374
engraçada e comovente cena em que o palhaço Tubinho faz escada para Tubinhozinho, ou
seja, em que Zeca faz escada para seu filho.
Por fim, é chegada a hora de Tubinho e sua noiva abrirem os presentes do
matrimônio, que o próprio público levou para o casal. Esta brincadeira é antiga nos circosteatro e mostra o tamanho da intimidade criada entre artistas e público ao longo da praça.
Em Sorocaba, Tubinho e a noiva ganharam os mais variados presentes: tinham objetos que
faziam referência às brincadeiras de Tubinho durante a temporada, como buchas de banho –
por causa do bordão “É bucha!” – e uma coxinha da “Real” – padaria sempre citada pelo
palhaço. Além disso, Tubinho ganhou presentes infantis como uma arma de atirar água e
também presentes “sérios”, como uma camisa oficial do Corinthians, time do coração de
Zeca, e placas de menção honrosa de famílias da cidade. E, mais uma vez, Tubinho me
impressionou, pois para cada presente aberto ele tinha uma piada na ponta da língua. Ao
abrir, por exemplo, um embrulho que continha um par de chifres, soltou de imediato
“Presente é assim gente, cada um manda o que tem!”, para delírio da plateia.
O último espetáculo da temporada, o Obrigado, é um espetáculo de
agradecimento da família Tubinho à cidade que os acolheu. Nesse dia, todo o elenco sobe
ao palco para a despedida, inclusive as crianças e adultos que não trabalham em cena.
Vemos então números musicais, de dança, esquetes, novamente Tubinhozinho e também
Cidinha Garcia, a representante mais antiga da família de Zeca, que não atua mais nos
espetáculos, declamar um lindo poema.
Há alguns anos, a procura pelo ingresso deste último espetáculo tem sido tão
grande que as pessoas passaram a acampar em frente ao circo para esperar a abertura da
bilheteria. Acerca disso, Lucélia Reis escreveu em seu diário de bordo no dia 23 de julho de
2011, quando o circo se despedia da cidade de Piedade:
Começo a escrever hoje com a certeza de não conseguir expressar com palavras o
que está acontecendo aqui. É madrugada. E madrugada fria, gelada... Acabei de
passar pela frente do circo e barracas estão armadas em frente à bilheteria. Em
pleno século 21 um circo mobiliza uma cidade inteira a ponto de pessoas
disputarem ingressos como se fosse uma turnê dos Beatles. Será que alguém
consegue imaginar o que é isso? Creio que não. Por isso disse que não
conseguiria transcrever o está acontecendo aqui. Temos um circo-teatro com
cerca de 600 lugares e em pleno século 21 trabalhamos com esses lugares todos
preenchidos a cerca de três meses e meio. Essa será nossa última semana nessa
375
cidade e o nosso fiel e inspirador público nem imagina que está nos fazendo
companhia no início da desmontagem de tudo. Enquanto eles estão acampando na
frente do circo passamos as últimas madrugadas desmontando um teatro inteiro.
Uma carreta lotada de roupas, uma carreta lotada de papéis, uma carreta lotada de
adereços, uma carreta lotada de cenários. E ainda alguns trailers, alguns ônibus...
Realmente é difícil dizer adeus.
Indiscutivelmente há algo de mágico nesse elenco, nesse circo. Mas também há
muito trabalho, dedicação e empenho. E a junção de tudo isso faz com que homens,
mulheres, senhores, senhoras, jovens, crianças, adultos, ricos, classe média, pobres,
empresários e iletrados frequentem o mesmo ambiente, independente de suas diferenças,
como seres iguais, como seres humanos.
Tiche Vianna disse em entrevista:
O espetáculo no Circo de Teatro Tubinho é catalisador de todas as coisas que se
armam ali. Aquela plateia, ela não vai ali pra ver um cara famoso, ela não vai ali
pra ver um cara melhor do que ela. Ela não vai ali pra ver uma coisa que ninguém
faz, embora isso também esteja implícito. Porque o cara que tá lá, ele não faz
aquilo que os caras fazem em cima do palco. Mas ele também brinca com a
família dele, na casa dele, no meio dos amigos, no trabalho, ele sabe que... Ele vai
ali porque, de alguma forma, aquilo dá um tamanho sentido de existência pra ele,
entendeu? Isso foi o que eu observei. Pelo modo como as pessoas chegam, pelo
modo como elas se colocam, pelo modo como elas saem. Aquele espaço é delas,
é pra elas. E do cara que pode ser o prefeito da cidade, que chegou lá com o seu
carro e sua comitiva, ao cara que vem a pé porque o circo chegou na cidade. É o
único lugar que eu conheço que coloca gente do Teatro Alfa, com gente do Folias
d'Arte, lá em São Paulo, usando dois parâmetros, entendeu?
376
Figura 146: Carta de aproximadamente 10 metros
de comprimento, enviada ao elenco do Circo de
Teatro Tubinho. São Francisco do Sul, 2001.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello.
Figura 147: Primeira página do abaixo assinado
enviado pela população de São Francisco do Sul ao
prefeito, pela permanência do Circo de Teatro Tubinho
na cidade. São Franscico do Sul, 2001.
Fonte: Arquivo Murillo Ramos Mello
Por onde passa, o Circo de Teatro Tubinho altera a rotina da cidade e se insere
na vida das pessoas, sendo que muitas delas passam a seguir o circo pelas outras cidades.
Alguns desses fãs gentilmente me escreveram os depoimentos que registro, com muito
carinho, abaixo:
Raquel Passos, 36 anos. Votorantim/SP:
Vou citar um trecho de uma música que toca sempre antes dos espetáculos, e
explicar: Tubinho é alegria, diversão, gargalhada e emoção... ALEGRIA porque
se diverte com as palhaçadas, com as piadas. Assisti muitas peças repetidas, ouço
muito as mesmas piadas e sempre estou rindo como se fosse a primeira vez, isso
me faz bem para a alma, é uma terapia. Eu estava em depressão e conhecer a
família do Circo de Teatro Tubinho salvou e mudou a minha vida... Literalmente
falando. Graças a Deus eu não preciso ir a psicólogo, vou ao Circo, rio com o
palhaço como se fosse a primeira vez, recarrego as minhas energias e saio muito
alegre para seguir a vida fora do reino mágico da Alegria. DIVERSÃO para toda
família, é tão bom frequentar um ambiente familiar, onde as pessoas te recebem
377
bem, de braços abertos. Nessa estrada de dez cidades, fiz grandes amizades,
únicas. Conheci pessoas incríveis que jamais imaginei ter contato, aprendi a amar
arte circense, agreguei valores a minha vida e conheci um amor para recordar a
vida toda... Dar GARGALHADAS é tão bom, nos deixa leve, revigora as
energias e nos dá força para lutar, levantar a cabeça e seguir em pé, firme na vida
real. São tantas EMOÇÕES, risos, gargalhadas e alegrias vividas em baixo
daquela lona que poderia ficar por horas aqui escrevendo para você... É tão bom
sair de casa ir para mais um espetáculo e voltar com a “SENSAÇÃO de
ALEGRIA, EMOÇÃO e ENERGIA POSITIVA”!!! As pessoas não cansam de
me perguntar se não enjoo. E a essas pessoas respondo: o Circo de Teatro do
Tubinho é mágico. Cada vez que ali estou me divirto e me sinto com a alma pura
de uma criança! Eu não me canso de agradecer a Deus por esses fantásticos
artistas existirem e eu ter tido o prazer de conhecê-los. Eles são tão mágicos e
iluminados em seus espetáculos que nos fazem rir, chorar, emocionar,
confraternizar, brincar, brigar, perseverar, esperar, viver e principalmente amar,
amar a vida, amar o circo, amar os artistas, amar os amigos que ali se fazem!!!
Por isso sempre repito que: “Cansei de tomar pequenas doses de alegrias, o que
eu quero é embriagar-me de felicidade com o Tubinho Circo de Teatro...”
Amoooo muito o Circo de Teatro Tubinho!!!
Nilton Pereira, 34 anos. Tatuí/SP:
Bom, sobre o Tubinho... Como o próprio slogan deles fala: O Mundo Magico da
Alegria. É maravilhoso estar lá, é um lugar muito abençoado por Deus, se a gente
vai triste volta feliz, todas as pessoas de lá são maravilhosas e recebem a todos
com muito carinho, cativam a gente pela simpatia, alegria, é fantástico estar
assistindo as peças. Eu se pudesse iria em todas, me sinto uma criança de tão feliz
que fico estando lá... Mas essa alegria, também se transforma em tristeza quando
eles vão embora... Fica difícil demais sem eles para alegrar a nossa cidade, tão
carente de coisas boas.... O Tubinho e sua família foi a melhor coisa que
aconteceu aqui na minha cidade, desde que eu nasci (risos).
Bruno Daniel Fogaça Freitas, 15 anos – Integrante do fã clube
Tubinhomaníakos, de Tatuí/SP:
Hoje posso dizer que a minha vida se resume em duas... Pré Tubinho e Pós
Tubinho... Quem me Conhece Sabe, o quão fanático eu fiquei por esse Mundo
Mágico, fora do comum, fora da realidade, chamado Teatro Tubinho... Depois de
05/07/2013 a minha vida e a de muitos, nunca mais foi a mesma... Tubinho
chegou para melhorar a vida de todos... Chegou para mostrar como é fácil dar
risada... Como é fácil ser feliz... Como um dia terrível em 1h45 é transformado no
dia mais feliz da vida!!! Pessoas nascem com dons... Umas tem o dom de ajudar,
outras tem o dom de ensinar, algumas tem o dom de curar! Tubinho é o cara
quem tem todos esses dons... Ele ajuda a te fazer sorrir, ele ensina você ser feliz,
ele cura toda a sua tristeza, todos seus problemas! Não tem como não gostar
dele!!! Quando ele entra em cena, todos vão ao delírio, aplaudem, gritam! Ele
retribui: DEUS TE AJUDE! Todos caem na gargalhada... E não importa quantas
vezes você ouve isso, você vai rir... O Cara é Fodex! E não sou só eu quem digo
isso... Hoje faz um ano que o vício começou. Já fui 56 Vezes, passei por quatro
Cidades e não paro por aqui!
Estes depoimentos me mostraram, definitivamente, que o Circo de Teatro
Tubinho é muito mais do que um espetáculo, de modo que meu interesse por essa
378
companhia foi despertado por algo que vai muito além da técnica teatral. As amizades que
fiz neste circo, com certeza, levarei por toda a vida, de maneira que não vejo a hora de lhes
fazer uma nova visita e poder rir, mais uma vez, como uma criança.
Encerro aqui esta parte da pesquisa certa de que, enquanto houver um circo
como o do palhaço Tubinho, percorrendo as cidades de nosso país, o Circo, o Teatro e a
Arte continuarão a transformar a vida das pessoas, unindo-as em sua dimensão mais
profunda, mais humana.
Figura 148: Tubinho em meio ao público do Circo de Teatro Tubinho, 2014.
Fonte: Arquivo Circo de Teatro Tubinho.
379
380
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante esses anos em que estive vinculada ao Programa de Mestrado em Artes
da Cena vivi um tempo de intimidade diária com a pesquisa. Cada vez mais, tudo que eu lia
nas referências bibliográficas, ouvia nas entrevistas e conversas informais e via no circo de
Tubinho começou a permear a minha prática artística, me lançando novas dúvidas,
questionamentos, reflexões, algumas certezas e, acima de tudo, me inspirando e me
suscitando uma enorme vontade de fazer teatro... E, mais especificamente, de fazer algo
análogo a esse tipo de teatro encontrado nos dois circos que investiguei.
A incessante procura pela consolidação de minha arte de ator encontrou no
diálogo entre a teoria dessa pesquisa e a prática do meu fazer artístico um terreno fértil, no
qual pude plantar algumas sementes, sendo que algumas já germinaram e outras ainda estão
sendo cultivadas.
Alguns problemas e contratempos surgiram no caminho e termino aqui com a
sensação de que, talvez, eu pudesse ter estabelecido um recorte ainda mais específico para
este estudo. Houve momentos em que me senti soterrada por tantas informações e novos
conhecimentos, mas por outro lado foi incrível tudo o que vivi nesses anos e acho difícil
dizer do que eu teria abdicado... Termino, então, com a sensação de que a dissertação ficou
um tanto extensa, pois tratei de um assunto ainda pouco investigado nas pesquisas
acadêmicas, o que me despertou a vontade – e também a necessidade –
de compartilhar
todos os conhecimentos assimilados e reflexões suscitadas ao longo da pesquisa.
Afora isso, acredito que, primeiramente, procurei da melhor forma possível
lidar com a complexidade que é a pesquisa em Artes na Academia. Durante as disciplinas
necessárias à integralização do curso, eu e meus colegas de Pós-Graduação discutimos
diversas vezes em sala de aula questões, como por exemplo, “É possível fazer Arte na
Academia?”, “Qual o lugar da Pesquisa em Artes na Academia?”, “O modelo prédeterminado e recorrente é cabível na Pesquisa em Artes?”.
Acredito que Arte e Ciência, apesar de serem de naturezas distintas, têm um
ponto fundamental em comum: devem necessariamente comunicar conhecimentos
381
(artísticos/ científicos) a outras pessoas. Em relação à pesquisa científica, creio que o
artista/pesquisador deve, necessariamente, assim como ao construir a obra de arte,
“construir um objeto que, como princípio, possa também servir aos outros” (ECO, 1989:
05), porém sem se esquecer de que a linguagem utilizada é uma metalinguagem. Eco nos
atenta para o fato de que
Um psiquiatra que descreve doentes mentais não se exprime como os doentes
mentais. Não quero dizer que seja errado se exprimir como eles: pode-se, e
razoavelmente, estar convencido de que os doentes mentais são os únicos a
exprimir-se como deve ser. Mas então terá duas alternativas: ou não fazer uma
tese e manifestar o desejo de ruptura recusando títulos universitários e
começando, por exemplo, a tocar guitarra; ou fazer uma tese, mas explicando por
que motivo a linguagem dos doentes mentais não é uma linguagem „de loucos‟, e
para tal precisará empregar uma metalinguagem crítica compreensível a todos. O
pseudopoeta que faz sua tese em versos é um palerma (e com certeza mau poeta).
De Dante a Eliot e de Eliot a Sanguineti, os poetas de vanguarda, quando queriam
falar de sua poesia, faziam-no em prosa e com clareza (ECO, 1989: 116 e 117).
Ao realizar uma pesquisa artística com abordagem qualitativa na Academia, o
pesquisador tem que estar ciente de que irá se confrontar, em muitos momentos, com
questões de ordem subjetiva, algumas aparentemente inexplicáveis ou impossíveis de serem
descritas através de um raciocínio lógico – e isso pode acontecer não só no campo das
Artes. Porém, esta imprecisão não pode trazer uma situação de comodismo ao pesquisador
em Artes, que muitas vezes refuta a ideia de um método para sua pesquisa, partindo do
pressuposto de que o seu produto não se encaixa em modelos pré-determinados.
A abertura que a pesquisa qualitativa permite não pode nos levar a supor que,
com ela, deixem de existir as exigências e critérios que devem regular uma
pesquisa. (...) O recurso ao qualitativo não pode servir para o pesquisador se
abrigar confortavelmente na rejeição aos métodos com a desculpa de que estes
são rígidos e castradores da inspiração criativa. Na pesquisa, sem método,
inspiração é mito, como é na própria arte, pois esta também se submete a métodos
que lhe são muito próprios (SANTAELLA, 2010: 91).
Observei também que, comumente, o artista/pesquisador comete o equívoco de
aplicar o método desenvolvido para criação artística diretamente na confecção da produção
científica. O método empregado na criação da obra de arte não deve ser o mesmo a ser
382
utilizado na produção da pesquisa sobre a referida obra, simplesmente porque Arte e
Ciência são de naturezas distintas e, portanto, necessitam de metodologias distintas.
Enfim, quero esclarecer que, com esta pequena problematização, não busco
enaltecer o conhecimento científico em detrimento do artístico. É fato que as Artes, em suas
diversas manifestações, propõem novas formas de apreensão e organização do real, gerando
assim conhecimentos tão relevantes quanto o conhecimento estritamente científico. É fato
também que a sensibilidade presente na alma do artista estará presente, inevitavelmente, na
forma, no sentido aristotélico, de sua pesquisa acadêmica. (Tanto que essa própria
dissertação tomou mais ares melodramáticos do que eu gostaria. Mas, ao mesmo tempo,
isso vai completamente ao encontro do que sou, enquanto pessoa e artista). Porém, o
artista/pesquisador nunca deve perder de vista que, tanto a obra de arte, quanto a pesquisa
científica visam, em última instância, a comunicação com o outro.
Desse modo, talvez minha crítica deva ser entendida não como uma posição
contrária à produção artística como forma de conhecimento na Academia, mas sim
contrária a um tipo de produção não alicerçada na premissa básica de que o
artista/pesquisador deve se fazer entender, por mais que a sua poética esteja fundamentada
no conhecimento e exploração de sua própria sensibilidade.
Devemos nos atentar para que o hermetismo inerente às gramáticas pessoais de
construção na cena teatral contemporânea não se instaure também no meio acadêmico,
responsável pela geração de conhecimento, que deve ser compreensível e passível de ser
difundido. E com isso, não quero dizer um conhecimento assertivo... Que sejam apenas
dúvidas e questionamentos, mas que estes sejam possíveis de serem compreendidos.
Diante de tanta complexidade, por diversas vezes, ao longo da pesquisa, me
perguntei: Mas por que diabos eu estou fazendo isso aqui então? Por que estou querendo
falar na Academia de uma arte que é realizada tão além de seus portões? Ou ainda: é
possível eu traduzir para a linguagem acadêmica esse teatro que acontecia e acontece
debaixo de uma lona de circo?
Hoje, acredito que falar sobre circo-teatro na Academia é reconhecer que nesses
circos reside uma escola – de teatro e de vida –, com metodologia própria e pautada sobre
uma infinidade de saberes. E essa constatação é necessária de ser feita pelos acadêmicos,
383
que acham “feio o que não é espelho”, mas também pelos próprios artistas circenses, que,
muitas vezes, não acreditam que a forma como se organizam, o jeito que montam os
espetáculos, a constante preocupação em continuar caminhando e não estagnar, são, sim,
conhecimentos de uma escola teatral que não deve nada ao chamado teatro oficial.
É claro que não é à toa que os circenses têm esse receio. Estranho seria se fosse
diferente, já que o circo-teatro foi excluído, por décadas, da história oficial do teatro
brasileiro. Acredito, então, que falar sobre circo-teatro na Academia é contar a história
dessas pessoas que, dia após dia, levam a arte teatral a localidades brasileiras nas quais o
teatro oficial ainda não sonhou em chegar.
E com isso não quero dizer que estou fazendo algo memorável, ou até mesmo
um favor para esses artistas. Pelo contrário: foram eles que fizeram algo indescritível por
mim. Eu não teria palavras para agradecer Fernando Neves, Santoro Junior (Toco), Zeca e
todo o restante de sua companhia por tantas coisas que me ensinaram, me fizeram
questionar e refletir. E, acima de tudo isso, as amizades que fiz no circo de Tubinho, com as
queridas Ana, Morgana, Lucélia e Débora, levarei por toda a vida.
Em nossas conversas, Fernando Neves sempre me falava que sua família
resolveu parar com o circo quando constatou que os tempos eram outros e que não seria
possível a manutenção do padrão artístico com o qual havia se consagrado, que contava
com espetáculos dramáticos luxuosíssimos e com várias horas de duração. Já outras
companhias resolveram continuar na estrada, apesar das adversidades, transformando parte
da tradição e se reinventando. Porém, muita coisa precisou se alterar, de forma que alguns
dos próprios circenses mais antigos não hesitam em dizer que o circo-teatro entrou em
decadência, acabou e que as poucas companhias que continuam a itinerar não fazem mais
circo-teatro, fazem outra coisa. (E aqui esclareço que estou falando das regiões Sudeste e
Sul).
Questão difícil essa acerca do fim do circo-teatro... Porque, ao longo dessa
dissertação, afirmei tantas e tantas vezes que o espetáculo circense é múltiplo e agregador
de variadas linguagens, de forma que torna-se difícil até mesmo falar em o circo-teatro
como um gênero/estética/linguagem únicos. Porém, por outro lado, será que não estamos
384
tentando encaixar sobre os mesmos formatos e rótulos fenômenos que deveriam ser vistos
como diferentes, reconhecendo-se as suas particularidades e especificidades?
Não sei dizer se o que o Circo de Teatro Tubinho faz hoje é tão diferente do que
o Pavilhão Arethuzza fazia, a ponto de terem de ser chamados por nomes diferentes. Só sei
que, com a pesquisa, pude reconhecer algumas características específicas a cada um e
algumas características extremamente próximas.
No que diz respeito aos pontos que aproximam as duas companhias,
compreendi, primeiramente, que é exatamente sobre essa tensão entre manutenção e
renovação que reside uma tradição. E o fato do circo-teatro estar alicerçado numa tradição,
que pressupõe a relação mestre e aprendiz é, sem dúvida, um dos pontos que mais me
chamou a atenção, pois permeia todo o meu fazer artístico e, a meu ver, deve constituir,
pelo menos em momentos iniciais, a formação de todo artista/ator. (E claro que esta mesma
relação pode ser encontrada em outras manifestações artísticas e – falando sobre o meu
foco de estudo – teatrais mundo a fora).
Durante a graduação em Artes Cênicas tive a oportunidade de ter aulas com o
professor Roberto Mallet que, desde então, tenho para mim como uma grande referência.
Assim como Charles Chaplin, Piolin, Shakespeare, Carequinha, Chespirito, Picolino,
Nelson Rodrigues, Grock, Oscarito, Al Pacino, Tubinho e tantos outros. Essa pluralidade de
referências não me soa como algo “esquizofrênico” e não há a mínima vontade, de minha
parte, de compará-las ou colocá-las sob o mesmo patamar.
O que me chama a atenção, de fato, nos trabalhos dos artistas acima
mencionados – e em tantos outros – vai além das questões de ordem estética; essas sim
podem ser consideradas discrepantes e até antagônicas, o que não me impede, porém, de
apreciar e ressaltar a relevância de cada uma. O que me une, portanto, a todos estes
“mestres” é o fato de que cada um, a seu modo, citando o também mestre Rubens Brito
(2004: 214), “está tentando desvendar o sentido da experiência humana neste imenso
universo”.
A ideia de “tradição” me situa no espaço e no tempo, me coloca na posição de
sujeito histórico e me permite uma noção de pertencimento, de que existiu algo antes de
mim e que, querendo ou não, sou fruto disto que passou.
385
Porém, uma tradição não deve ser vista como uma cópia, uma mera reprodução
de algo. Ou melhor: num primeiro momento, a tradição implica a cópia, mas não da figura,
e sim da forma, no sentido aristotélico, daquele fazer artístico. E, num segundo momento, o
artista imprime a esta forma algo que é seu e que lhe auxiliará a tornar vivo e verdadeiro
aquilo que lhe veio como um estímulo externo.
Além disso, lidar com os elementos de uma tradição é estar sempre em
dinâmica, pois há a constante necessidade de incorporação de elementos que a manterão
contemporânea e em diálogo com as pessoas de seu tempo. Dessa forma, numa tradição
algo se mantém – e que é responsável por caracterizá-la como tal – mas, ao mesmo tempo,
algo se altera, se metamorfoseia. Ou seja, a inovação deve ser vista como um elemento
próprio da tradição:
Há uma dialética da tradição, isto é, uma tradição só se firma e se mantém como
tal na medida em que é capaz de renovar-se, quando ocorrem mudanças históricas
que ameaçam sua sobrevivência ou exigem sua transformação. Se não se
transforma, a “tradição” está fadada ao desaparecimento249 (BRASIL, 2009: 7).
Outro ponto que me chama atenção no circo-teatro é o fato de todos esses
artistas dedicarem-se por completo ao ofício circense, sendo que muitos não optaram por
estar lá, mas apenas seguiram o caminho trilhado por seus pais. Os circenses têm a clara
consciência de que tudo é feito para agradar a plateia, que deve necessariamente rir muito
numa comédia e se emocionar muito num drama. E para que isso ocorra é necessário muito
trabalho e dedicação a atividades que vão além das relacionadas apenas ao espetáculo.
Simples assim. Diretamente assim. Sem muitas divagações ou áurea romântica – tão
comumente relacionada ao universo circense, porém claramente criada por um olhar
exterior e não de quem realmente vive diariamente nesse ambiente.
Porém não estou afirmando que só um artista de circo pode se dedicar 100% ao
seu ofício. Eu acredito que até eu mesma, de certa forma, faça isso. Porém a diferença é que
eu trilho, ao mesmo tempo, caminhos paralelos e que se entrecruzam em determinados
pontos. Dessa forma, desenvolvo meu ofício sobre diferentes frentes, como com a Dupla
249
Texto base 2a Conferência Nacional de Cultura - EIXO II – CULTURA, CIDADE E CIDADANIA,
disponível em http://blogs.cultura.gov.br/. Acessado em novembro de 2014.
386
Cia, a Damião Cia de Teatro, esse Mestrado em Artes da Cena, ministrando algumas
oficinas e fazendo outras tantas, etc. Já o artista circense trilha um único caminho, de modo
que toda sua vida, profissional e pessoal, está ligada diretamente ao circo. Tanto que Zeca
disse, em uma das entrevistas citadas nessa pesquisa, que eles costumam falar “Eu vou pra
cidade” quando saem do circo.
O convívio diário e intenso faz com que esses artistas se conheçam
profundamente, estabelecendo uma sintonia, intimidade e cumplicidade que estão
presentes, quase que inevitavelmente, nos espetáculos. Rosalina Viana, avó de Fernando
Neves contou em entrevista ao pesquisador Pedro Della Paschoa Junior, em 1972:
Mas isso é costume de todo artista... (...) Bom, cada um entrava na sua casa, fazia
café, tomava café com pão, daqui a pouco, outro ia na casa do outro, o outro ia
lá... Ficava ali... Reunidos... Ficávamos batendo papo. Conversando sobre coisas
assim de peças, ou de qualquer coisa que a gente tinha visto. Ou de um colega
distante. Qualquer coisa. Nós ficávamos, às vezes, conversando ate três, quatro
horas da manhã!250
Nas minhas visitas ao Circo de Teatro Tubinho eu brincava com as pessoas que,
ao chegar, eu precisava ajustar meu fuso horário, porque, assim como descrito por Rosalina
Viana, ali no Tubinho as conversas, festas e comemorações sempre adentram a madrugada.
A sensação nítida é que ali o tempo passa diferente, incrivelmente de maneira mais intensa
e, ao mesmo tempo, quase imperceptível.
Por outro lado, esse mesmo convívio diário pode trazer certo comodismo para
a companhia e um olhar cristalizado para as pessoas e seus trabalhos. E digo isso por já ter
passado por uma experiência análoga durante a graduação em Artes Cênicas. Por quatro
anos, eu e meus colegas de turma trabalhávamos praticamente o dia todo juntos, de forma
que, depois de um tempo, já havíamos estabelecido rótulos para cada um de nós, mesmo
sem querer. Dessa forma, numa discussão de turma eu já “sabia” como cada um reagiria e
numa cena eu também já “sabia” o que meu colega ia fazer... Ou seja, num convívio menos
intenso do que o do circo, em pouco tempo, eu e meus colegas não nos surpreendíamos
mais na vida e na cena.
250
Rosalina Viana em entrevista ao pesquisador Pedro Della Paschoa Junior em 1972.
387
Acredito, então, que numa companhia de circo-teatro itinerante como a de
Tubinho, por exemplo, que está na estrada há quase quinze anos, num convívio ainda mais
intenso, essa cristalização também pode ocorrer. Tanto que esse foi um dos motivos que
levaram Zeca a formular o projeto da Petrobrás, como uma alternativa de revitalizar não só
os espetáculos, mas as relações ali existentes.
Neste projeto, quem mais se dedicou à questão específica do trabalho em grupo
foi Tiche Vianna que, em entrevista, comentou as reflexões que suscitava no elenco do
Circo de Teatro Tubinho, tais como:
Refazer, remodelar, te surpreender, achar mais divertido aquilo que você tá
fazendo. Não deixar cair na mesmice, não deixar cair no “já sei, já vi”. Onde é
que tá o desafio pro meu companheiro de cena? Onde é que eu posso fazer um
desafio, que não é uma disputa, não é uma derrota, né, não é um ganhar ou
perder, pelo contrário é nós dois que temos que chegar ali. O que é que posso
jogar pro meu companheiro que faz ele vir pra outro lugar?
Essa convivência diária e a vida de dedicação exclusiva ao circo exigem dos
artistas total disponibilidade para viver na estrada, ficar longe da família, dos amigos, etc. e
realizar os mais diversos tipos de serviço necessários à sobrevivência e crescimento da
companhia, que vão muito além do momento de estar no palco.
Ana Dolores, do Circo de Teatro Tubinho, disse que, para ela, essa total
disponibilidade fica completamente evidente no momento após o último espetáculo da
temporada, o Obrigado, quando os artistas, que acabaram de se apresentar no palco,
elegantes e com trajes de gala, vão às suas casas, se trocam, colocam suas botinas e
começam a desmontar o circo.
A total disponibilidade do artista circense também comporta a premissa de que
o show nunca pode parar – talvez só em caso de uma terrível tempestade; afora isso, nada
mais faz com que o espetáculo não aconteça. Quando, por exemplo, o trailer de Juninho
Assis e sua família, do circo de Tubinho, pegou fogo em meio ao espetáculo, todos os
circenses ajudaram a apagar o incêndio, inclusive os que estavam atuando na peça, porém
sem interromper a sessão. A cada saída de cena, os atores, inclusive Juninho, corriam com
baldes e mangueira para apagar o fogo e voltavam para as suas próximas cenas. A família
perdeu tudo naquele dia, mas o público não perdeu seu espetáculo.
388
Rosalina Viana, do Pavilhão Arethuzza, contou na entrevista a Pedro Della
Paschoa Junior:
(...) Meu pai morreu, foi enterrado e de noite o meu irmão pintou a cara e foi
fazer graça. Sabe? Então pra mim... (...) artista é isso! O artista é isso. Não quer
saber se você está com dor, se você não está com dor. Se você está triste, com os
teus problemas, você larga na tua casa. Vai trabalhar sem problemas, quando
você voltar, pega eles outra vez e fique com eles. É teu. Não reparte com
ninguém.
Situação análoga ocorreu também com o Circo de Teatro Tubinho. Em uma de
nossas conversas, Zeca contou a triste coincidência envolvendo a morte de sua mãe. Ele e
as irmãs estavam prestes a entrar em cena quando foram avisados de seu falecimento. Sem
saber o que fazer, o espetáculo – que começa todos os dias pontualmente às 21h – foi
atrasado em dez minutos. Então o público, que lotava o circo, começou a gritar por
Tubinho, que entendeu que não poderia decepcioná-los. Naquela noite eles entraram em
cena e representaram, por ironia do destino, a comédia Tubinho no velório.
Cito ainda, um momento muito tocante da entrevista com Angelita Vaz que,
visivelmente emocionada, me contou:
Uma coisa que eu acho muito, muito difícil... Você tem que abrir mão da sua
vida, assim... Meus amigos eu não vejo mais, é muito difícil... Meus pais só
quando eles vêm me visitar, meu irmão também, entende? Isso é um lado que eu
acho muito triste do circo. Porque a gente trabalha todo dia, todo dia, todo dia...
Você não tem uma folga. Geralmente na folga você tem um espetáculo fora, aí
você esquece desse outro lado que é tão importante, que é o da família, então
você acaba abrindo mão. Esse é o lado triste que eu acho, porque às vezes eu fico
pensando “Poxa vida, queria passar uma semana com meu pai e com a minha
mãe. É pai e mãe...”. Quantos anos eu não passo uma semana com eles, sabe?
Que nem a Lucélia... Esses tempos a mãe dela tava doente, ela foi lá, não pode
ficar, teve que trazer a mãe junto pra cá. Então esse é um lado que eu acho muito
cruel do circo. Não só do nosso né, de todo circo. (...) É engraçado que a gente
encontra muitas pessoas querendo trabalhar no circo, no nosso circo... “Que legal,
queria trabalhar no Tubinho, que bacana e tal... Mas eu não quero largar das
minhas coisas, da minha casa e tal...”. Então esse é o lado que eu acho mais
difícil. É você abrir mão de um outro lado da sua vida que você sabe que vai
passar. E você não consegue dividir esse tempo. Ficar um pouco lá um pouco cá.
Não dá, porque todo dia é diferente... A gente respira o circo 24 horas por dia.
Você tá sempre pensando nisso, você acorda, você vai dormir e é isso... É
propaganda que tá saindo, é placa que foi pintada, guarda roupa que tá ali pra
montagem, então você vive... Muita gente pensa assim “Ah trabalhar no circo é
legal porque você só trabalha de noite”. E não é. Você trabalha o dia todo. Porque
se você for ver em cada trailer que você for, cada um tem sua família, cada um
389
tem seu filho, a sua necessidade. Eles fazem dívidas como qualquer ser humano,
vão, compram alguma coisa... O que eu digo é assim: de você ver as famílias se
formando aqui dentro, muitas nascem aqui e você ver que o futuro delas tá
diretamente ligado ao seu trabalho, ao seu pensar, ao teu “não levar o circo pra
uma praça errada”, entende? Porque é muita gente, e você não pode errar uma
praça... Então você não pode errar, você tem que todo dia pôr gente, tem que
agradar. Quem vem num dia tem que sair satisfeito e voltar. Porque a gente vive
da bilheteria. E essas famílias que dependem da gente, dependem da bilheteria.
Então é toda uma dinâmica que acaba vindo em cima disso, então é uma
responsabilidade...
No circo-teatro, o show não pode parar porque um dia sem peça é um dia sem
bilheteria. Na peça Tubinho, o caçador de ídolos, Tubinho e seu escada dão as seguintes
falas, que resumem bem o que quero dizer: “- As mulheres pintam a cara pela moda. - E eu
pela moeda. - As mulheres pintam a cara por vaidade. - E eu por necessidade”.
Dessa forma, esses artistas sobem ao palco todas as noites. E quem apresenta
toda noite, aprende toda noite, experimenta toda noite, se põe em risco toda noite, amplia
repertório toda noite, se aperfeiçoa toda noite.
Quando pediram a Nelson Rodrigues um conselho aos jovens, ele disse:
envelheçam. Acredito que de alguma forma “envelhece-se” artisticamente no circo-teatro
mais rapidamente, pois o fazer diário pode levar a uma maturidade artística “precoce”. É só
pensarmos que Nicolas Alexandre, por exemplo, do circo de Tubinho, tem dezesseis anos
de vida e quinze de carreira.
Lucélia Reis disse, em entrevista:
É engraçado porque o tempo aqui passa muito diferente, eu sinto passar diferente,
a gente... Parece que passa muito rápido, você não sente o tempo passar no circo,
porque você vive isso aqui e você vive o teatro o tempo inteiro. Não talvez por
isso que a gente não sente o tempo passar, porque a gente faz o que a gente gosta
o tempo todo. Então passa assim, voando né... Isso me assusta um pouco. E daí
foi assim que eu cheguei até aqui... (...) O Zeca falou "Por favor, fica um mês” e,
de repente, eu já tava há dois, há três, há quatro, há cinco... De repente eu tinha
comprado um trailer, fui ficando... e tô ficando há quase 11 anos...
E assim, desse fazer artístico diário, com o olhar totalmente voltado para o
público, constitui-se uma arte de ator pautada sobre modelos relativamente simples e
extremamente funcionais. Aprende-se quase sem se dar conta, observando a interpretação
dos parentes mais velhos e artistas mais experientes da companhia e agregando ao seu
390
trabalho as mais diversas referências, de forma que atuar lhes é tão natural quanto
caminhar.
Aprendi com estes artistas também o exercício da generosidade, tão
fundamental ao trabalho do ator. Tanto no Arethuzza como no Tubinho me chamou atenção
o fato de que todos os artistas representavam e representam, sem problema algum, tanto
grandes papéis quanto “pontinhas” e comparsarias. Jacira Viana, mãe de Fernando Neves,
disse na entrevista a Pedro Della Paschoa Junior:
É como eu sempre falo para o meu filho... “Fernando! Não é os grandes papéis
que fazem os grandes atores. É na pontinha que você vai ver quem é o ator! É
numa coisa sem importância que você vai ver se o nego é bom, ou se ele não é!”
– Porque se ele é bom, numa coisinha desse tamanho, você olha assim. Ele se faz
notar na plateia. É isso que eu falo sempre para o Fernando.
Dessa forma, lembro-me da história contada por Toco em que Guiomar, do
Arethuzza, fazia apenas uma comparsaria como empregada na peça A Filha do Mar e
quando outro personagem falava que houve um assassinato na casa ela “roubava a cena” a
ponto de pedirem para ela se esconder no fundo do palco. Lembro também de diversas
vezes que vi Léo, no circo de Tubinho, totalmente produzida, com colã, joias, aplique de
cabelo e maquiagem, para entrar em cena para fazer “apenas” uma comparsaria. Ana
Dolores me ensinou:
Você tem que entrar com tudo, “eu tô fazendo a protagonista”, por mais que não
seja. Porque você tem que se colocar, você tem que ter um feeling de não cobrir
cena e a gente tem muito pouco ensaio pra se passar tudo isso pra alguém que
esteja chegando.
Além disso, num circo de teatro como o de Tubinho, que tem o palhaço como
carro-chefe, tem-se a exata consciência de que todos estão em cena a serviço do palhaço e,
por fim, de que, com exceção dele, todos são substituíveis.
Compreendi também que este tipo de fazer teatral está alicerçado sobre
parâmetros diferentes dos quais eu estava habituada, pela minha formação acadêmica. No
circo-teatro, pelo uso da construção interpretativa baseada na tipologia, trabalha-se a partir
do temperamento de cada ator, valorizando o cada um sabe fazer de melhor, numa espécie
391
de via positiva, em que as suas características mais marcantes são valorizadas e,
principalmente, realçadas.
Ou seja: parte-se dessas características que lhes são naturais para a
reestruturação destas, em uma linguagem com alto teor de teatralidade, que comporta, ao
mesmo tempo, a naturalidade original desses estímulos e a artificialidade construída a partir
e em torno deles, que caracterizam o ato teatral, fazendo deste “uma fatia de bolo, e não
uma fatia da vida”, citando novamente Hitchcock.
Com isto não quero dizer que o ator não pode desempenhar um papel que não
lhe é inerente pela via da tipologia. É claro que um bom ator pode desempenhar qualquer
papel. O que quero dizer é que, através deste sistema de interpretação explorado no circoteatro – e em tantas outras manifestações tidas como populares –, o ator tem a oportunidade
de tomar consciência das características que determinam o seu modo de pensar e organizar
a cena e que, consequentemente, fazem dele o ator que é. Valendo-se disso, o ator tem a
oportunidade de desenvolver sua técnica pessoal de modo mais honesto e consciente,
podendo, então, escolher qual rumo deseja seguir a partir daí.
O caminho da tipologia em sinergia com o temperamento de cada ator não é o
único para se atingir uma boa representação, mas constitui, sim, um dos caminhos
possíveis.
Digo isso porque durante a minha graduação em Artes Cênicas ouvi, muitas
vezes, de meus professores que o ator deve se livrar de seus automatismos e se arriscar,
saindo de sua zona de conforto, pois só assim ele abre espaços internos para a criação de
algo realmente vivo. Nas aulas práticas quantas e quantas vezes, ao ver a cena de algum
colega, pensei: “Mas ele sempre faz isso... Ele não se arrisca, não se joga... É sempre a
mesma coisa...”. E tenho certeza absoluta que tantos outros pensavam a mesma coisa
quando me viam em cena.
Passaram-me, mesmo que não intencionalmente, a ideia de que o ator só se põe
em risco se sair de sua zona de conforto, se sair do terreno do que “sabe fazer” para um
terreno totalmente estranho e desconhecido. Naquele momento ainda não me passava pela
cabeça a ideia de que o ator também pode se livrar de seus automatismos e tudo o que lhe
tira a vida em cena através do caminho que prevê a valorização e aprofundamento do que
392
ele já sabe fazer, do que lhe é mais natural.
O que estavam fazendo era me ensinar pela tal da via negativa, que busca a
eliminação dos automatismos que levam o ator a uma interpretação pouco verdadeira,
através de estímulos que partem, num primeiro momento, do trabalho da dimensão interior,
num processo de auto revelação para, num segundo momento, articulá-lo a um processo de
contato com a dimensão física, onde encontram-se os códigos de representação, que devem,
por sua vez, ser articulados para a leitura do espectador.
Hoje, depois dessa pesquisa e de todo o trabalho prático que venho
desenvolvendo, não posso mais acreditar que esse seja o único caminho para a realização
do ato teatral. Ao ver um palhaço como o Tubinho, por exemplo, não posso acreditar que o
caminho traçado por ele foi do “interno” para o “externo” e que ele não está se pondo em
risco por estar trabalhando na zona que lhe é mais confortável e natural. Além de tudo isso,
Zeca me atentou para outro ponto da questão, em entrevista:
Uma vez um ator me perguntou, ele falou assim "Ô Tubinho, uma das coisas que
eu mais gosto é aquele friozinho na barriga da estreia. Você tem isso ainda,
depois de tantos anos fazendo isso?". E eu falei "Eu tenho todo dia! Todo dia
muda a peça e quando eu vou fazer a peça, faz três meses que eu já não faço ela”.
(...) E eu acho que esse frio é ainda maior pela responsabilidade do agradar, você
entende?
Quando vejo o Tubinho algo acontece com ele próprio e entre ele e mim. Ou
seja, quando vejo o Tubinho acontece teatro. E essa prova é absolutamente irrefutável.
Portanto, tão válido quanto o caminho de total distanciamento da sua zona de conforto para
a criação de algo realmente vivo é o caminho que propõe essa mesma criação justamente
nesta zona que lhe é mais natural. E digo mais: esse segundo caminho é, não só tão valido,
como tão complexo quanto o primeiro, pois não é uma tarefa fácil manter vivo algo que,
por lhe ser próximo, pode facilmente se tornar automático.
Dar vida a algo que parte de uma estrutura formal, e, portanto externa, para a
suscitação da vida de nossa dimensão interior é um caminho que exige muita dedicação,
disciplina e tempo. E, é claro que, mais uma vez, os orientais sabem disso melhor que a
gente. Segundo Yoshi Oida,
393
Muito frequentemente os atores constatam um “efeito” e decidem imitá-lo, mas
isso não irá resultar numa boa atuação. Ao contrário, precisamos entender onde se
origina aquele “efeito” e o que faz com que aquilo venha a ser o que é. Se
copiarmos a expressão externa de alguma coisa sem compreender sua estrutura
fundamental, nosso trabalho não terá nenhum sentido (OIDA, 2007: 110).
Acredito que um dos motivos que corroboram para que a interpretação
tipificada no circo-teatro funcione, quando executada por bons atores, claro, reside
justamente no fato de que ao interpretar um tipo que lhe é inerente, o ator compreende
profundamente a estrutura fundamental – que Aristóteles chamaria de alma – daquele
personagem. O tipo é, portanto, não a cópia de uma figura, mas sim a cópia de sua forma.
Aprendi com os circenses também a não ter medo de errar, até porque nessa
linguagem o erro é sempre um estopim para a criação de artifícios que reavivam a
encenação. Aprendi a não ter receio de utilizar toda e qualquer fonte como referência para
minha criação. Clichês são sempre bem-vindos e a partir deles estabelece-se uma relação
mais próxima com o público. Apropriar-se do trabalho criado por outra pessoa e imprimir a
ele sua marca é visto como algo completamente natural. Ana Dolores escreveu em seu
diário de bordo, no dia 08 de janeiro de 2011, sobre sua personagem na peça Tubinho, o
soldado trapalhão: “Fazer a Chica é uma delícia. A criação fica por conta da atriz Silvana
Pereira. Gostei do estilo e tomei para mim. Usando meu corpo e colocando meu jeito”.
Outro ponto que me chamou atenção é a verdade e fé cênica presente no
trabalho desses artistas. É impressionante a verdade e a contundência com que Santoro
Junior (Toco) me recitou, na entrevista, diversos trechos das peças que encenavam ou com
que Zeca atua como Tubinho nas comédias ou num drama, como o personagem Osvaldo de
O seu único pecado, por exemplo.
Toco, Zeca e diversos outros artistas circenses que tive a oportunidade de
conhecer, como por exemplo, o palhaço italiano Leris Colombaioni, falam sempre em
“fazer de verdade”, em “ser natural, ser verdadeiro”.
Em entrevista, Toco e Zeca disseram:
Santoro Junior (Toco):
Eu acho que eu nunca representei... E de pequeno já fui chamado de ator
dramático. Eu acho que a vivência já acabava fazendo isso. Não sei se eu já
contei a historinha... Tava levando A cabana do pai Thomas e a mulata Elisa ia
394
ser vendida com o filho dela. (...) Eu vi a tia Thusa chorando de um lado, a tia
Guiomar chorando de outro, todo mundo chorando... E eu fui vendo aquilo e
ficando muito emocionado. Eu comecei a chorar e pra parar de chorar? Aí foi ai
que começou... Eu fui pra casa chorando e acordei chorando no outro dia. Eu
tenho a impressão que essa minha melancolia vem daí. Só pode ser... Eu sofria
junto com eles todos. (...) E eles falavam “Isso aqui é teatro, mas teatro é verdade.
Teatro é a força do ator. O ator tá aqui, fazendo. Ator é pessoa normal. (...)É
gente. É gente”. E isso deu uma grande força para nós. (...) Dentro desse sistema
nada era falso e as pessoas do público começavam a se reconhecer,
principalmente nas peças de teatro, nos dramas... “Nossa, parece minha avó!”,
“Parece meu pai!”, “Esse parece comigo”... De tão verdade que era... Eles
contavam a verdade através deles, eles eram, simplesmente, veículos daquelas
falas. Isso a gente aprendeu desde pequenininho, já tinha que saber o que dizia
cada uma das falas. Tem que saber o porquê das falas que eu vou interpretar.
Tinha que falar no mesmo tom... Eles chamavam de diapasão. “Olha, o teu
diapasão não tá batendo”, eles faziam assim. “Ó, você tá falando aqui e eu tô lá”,
isso é diapasão. Você tem que afinar sua linguagem com a minha, falar alto todos
devem, mas afinado. E você tinha que ser natural.
Zeca:
Eu não sei como é pros outros atores... Normalmente quando eu vou pra cena eu
não penso em nada, eu faço de verdade, eu faço como se aquilo estivesse
acontecendo. Às vezes... Tem um espetáculo que é o Deixe-me viver, quando
termina o espetáculo, nossa! Parece que eu levei uma surra, cara. Levei uma
surra, assim, sabe, quando você tá pesado, pesado, pesado. Eu faço... Eu
enlouqueço. Extremamente louco o personagem, tenta matar o filho no final do
espetáculo e a hora que termina, nossa, eu saio cansadíssimo, porque eu não vou
pra fazer teatro, eu nunca subo no palco pra fazer teatro, eu subo pra fazer de
verdade. Essa é a forma que eu encontrei pra interpretar, sabe? Inclusive pra fazer
de palhaço. Em nenhum momento eu penso assim "Eu vou fazer essa piada agora
porque depois...", não. Eu vou e é o Tubinho naquela situação e ele como ele se
vira nessa situação, e ele tem que se virar, sozinho. Eu não tenho tempo pra
pensar, então eu acho que isso é uma coisa muito legal do nosso trabalho. E eu
vejo isso muito nos nossos atores também, se o cara tá de verdade.
Num primeiro momento essa questão em torno do “fazer de verdade, não
representar” me causou estranhamento, porque, geralmente, relacionamos a questão da
verossimilhança diretamente ao teatro de cunho realista e naturalista – que não é o caso do
circo. Porém, observando estes artistas em cena, refletindo e pesquisando passei a
compreender que, primeiramente, verossimilhança é diferente de veracidade.
Isso porque ao contrário da veracidade, que busca a realização fidedigna e
exata, a verossimilhança se baseia não sobre o real (o que efetivamente aconteceu), mas
sobre o possível (o que poderia ter acontecido), deixando ao artista uma margem de
maleabilidade e ao espectador uma liberdade de apreciação (ROUBINE, 2003).
395
Acredito, então, que os circenses são extremamente verossímeis dentro do tipo
de interpretação empreendido no circo-teatro e que ao usarem termos como “natural” e
“verdadeiro” para expressarem-se acerca deste tipo de interpretação, aproximam-se do
seguinte pensamento descrito por Yoshi Oida:
Os atores tentam parecer “naturais” no palco. Isso é verdade para todos os tipos
de teatro. Mesmo que o ator esteja trabalhando numa produção estilizada, seu
objetivo é o de estar naturalmente no palco. Por natural quero dizer humano: algo
real é gerado pelo ator e sentido pelo público (OIDA, 2007: 94).
Dessa forma, os artistas circenses são extremamente verdadeiros em suas
representações, no sentido destacado por Oida, ao mesmo tempo em que se distanciam da
linguagem de cunho realista e naturalista, principalmente por trabalharem com uma
linguagem estilizada e que inclui o espectador constantemente no jogo cênico, não
estabelecendo a famosa quarta parede. E essa interpretação, que se pretende, ao mesmo
tempo, “grande”, “exagerada”, porém verdadeira e justa constitui um grande desafio para
qualquer ator.
Fernando Neves usa a seguinte expressão para definir o tipo de interpretação no
circo-teatro, pelo menos de sua família: “O ator de circo acha que está fazendo realismo,
mas na verdade é expressionista!”.
Podemos entender a metáfora criada por Fernando Neves quando pensamos,
por exemplo, a questão da projeção vocal necessária ao ator que trabalha sob a lona ou
pavilhão, ambientes altamente dispersivos, seja pela falta de isolamento acústico e
consequente interferência de ruídos externos, pela venda de quitutes ou pela própria
acústica não privilegiada, que dificulta o entendimento do texto dito pelos atores.
Dessa forma, o ator de circo necessita projetar bem sua voz, que exige uma
valorização da articulação das palavras, que, por sua vez, exige outro tempo de enunciação
da fala – marcadamente teatral. Instala-se, então, um jeito e um tempo de fala que muito se
diferem do teatro de cunho realista; porém, apesar do ator levar mais tempo para pronunciar
suas falas, elas são ditas sempre num nível de energia elevado e vibrante, em que pequenas
ações e detalhes intimistas não encontram espaço para realização. É necessária, portanto, a
396
presença cênica de um corpo/voz ampliado, dilatado, de grandes gestos, sempre precisos,
limpos e justos.
Podemos entender a metáfora de Neves se pensarmos também a questão da
utilização do telão e da relação criada entre os atores e este elemento cenográfico. Em sua
tese de Livre Docência, o saudoso professor Rubens Brito narra uma passagem que
evidencia o estranhamento gerado, entre os atores do Grupo Mambembe, pelo uso dos
telões como cenário do espetáculo A vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo
Sancho Pança:
(...) por um lado está se trabalhando com um elemento que supostamente cria
uma ilusão (a do cenário exposto), a qual, por outro lado e, simultaneamente, não
passa de uma grande mentira (afinal, o cenário retratado não é real!). Estranha
sensação! (BRITO, 2004: 79).
Ressalto que o que se configurava, num primeiro momento, como algo estranho
para os atores do Mambembe, oriundos de uma formação acadêmica, é visto entre os atores
de circo-teatro como algo extremamente simples e natural.
A questão da dualidade de imagens (ou realidades) que se casam e se justapõem
na cena de circo-teatro, decorrente do fato do ator e o personagem contracenarem com o
telão, já foi analisada por Soffredini, em 1980, e também por Fernando Neves em seus
atuais estudos.
Neves, em entrevista, afirmou que essa era uma questão recorrente em sua
investigação. E que, ao revisitar os estudos de Soffredini, recordou momentos de sua
infância e reconheceu, no fenômeno apontado pelo dramaturgo/diretor e pesquisador, o que
ocorria no circo de sua família. Neves descreve uma cena teatral, resgatada de sua memória
de infância, em que sua tia Alzira interpreta uma personagem que tem o filho roubado e que
este partia em um navio. Alzira entrava em cena, olhava para o telão, que tinha pintado um
navio ao longe e, então, acenava para o filho. Neves destaca que Alzira, apesar de estar
olhando para um painel pintado, representava uma cena dramática, desempenhando uma
interpretação, para ela própria, de tom “realista” – na verdade, já estilizada, porém
verossímil. Contudo, ao mesmo tempo, do ponto de vista da plateia, apesar do tom
“realista” da interpretação o quadro total que se via, que englobava um navio pintado num
397
telão e que, portanto, não se movia, era altamente teatral, o que Neves chama de
“expressionista”. Entretanto, a grande mágica está no fato de que a plateia, apesar de ver
que é um telão, também é levada, pela interpretação da atriz, a ver este navio se afastando:
(...) Eu sempre acho que o circo é expressionista e o ator de circo acha que ele é
realista. Que ele tá fazendo realismo. Ele olha praquele cenário de pano, essa
cena pra mim é icônica disso que eu tô falando: eu vejo minha tia Alzira se
despedindo de um filho, acenando pra um filho, aparece um navio no telão, ele tá
parado, é telão, é pintura, e ela dá tchau, ela olha pra plateia... Ela tá tratando
aquilo como se tivesse movimento, como se aquilo fosse verdade. Não existe um
comportamento, uma interpretação de demonstração que ela tá vivendo aquilo,
mas tem um distanciamento porque é um telão. Não tem isso. Ela olha o telão e a
plateia também olha aquele telão como se tivesse vendo o navio se afastar. (...)
Por exemplo, eu posso fazer isso numa peça, mas muda meu gesto, muda meu
corpo... meu pensamento acompanha aquele telão, aí se cria uma linguagem que é
absolutamente coerente com aquilo. Agora, você olha praquilo, a plateia tá vendo
que aquilo é telão, que não se mexe, você fica fazendo... entendeu? Até o Fellini
fazia tudo, você vê que o mar dele não é mar, mas você vê que o resto também...
Muda tudo altera tudo, na interpretação. Aquele mar que não existe está de
acordo. Agora, no circo não. E o ator de circo acha que é realista. Trata tudo
aquilo que é extremamente teatral, ele te chama pra ver, fala que é teatro, mas na
cabeça dele é tudo naturalista251.
Este fenômeno, que causou estranhamento nos atores do Mambembe e que está
tão absorvido pelos artistas circenses que, muitas vezes, não chegam a percebê-lo e
reconhecê-lo, é descrito por Soffredini como um jogo de perspectivas:
Há uma imagem que a gente costuma repetir para tentar explicar o que é um jogo
de perspectivas: coloca-se um telão no palco. No telão está pintada uma estrada
(em perspectiva), que começa no palco e acaba no horizonte, lá longe, criando um
espaço ilusório, dando uma sensação de profundidade. Na frente desse telão põese um ator. Ilumina-se esse ator. A sua sombra será projetada num telão,
revelando a cortina de pano pintado que é o telão, revelando o espaço verdadeiro.
O resultado é o seguinte: a gente vê a sombra em suas dimensões (a verdade)
revelando o espaço verdadeiro, projetada sobre o telão da estrada em três
dimensões (a mentira) revelando o espaço ilusório. Essas duas imagens se
justapõem, se casam. E a gente acredita nas duas. É isso (SOFFREDINI, 1980 in
BRITO, 2004: 79).
Por fim, acredito que o fascínio que desenvolvi pelo circo-teatro tem a ver com
a técnica desenvolvida por estes artistas, mas tem a ver também com algo que vai para além
dela. Desde Diderot, o teatro tido como oficial desenvolve certa tendência que racionaliza e
251
Fernando Neves em entrevista concedida ao mestrando Rodrigo de Oliveira e Silva, em 2013.
398
busca transformar em técnicas todas as instâncias do trabalho do ator, excluindo-se, muitas
vezes, a dimensão humana contida neste trabalho, imprescindível para a concretização do
ato teatral.
Acredito, então, que o circo-teatro, assim como outras manifestações, como a
commedia dell’arte, segue na contramão dessa tendência, pois nessas manifestações ocorre
a dissolução da técnica, no sentido de que essa lhes serve não como finalidade, mas como
meio para a criação de relações humanas. Dario Fo nos disse acerca da comédia italiana as
seguintes palavras, cabíveis também ao circo-teatro:
Diderot imaginava um ator capaz de programar e controlar a própria exibição,
prevendo cada passagem por meio de exercícios, calculando todo o arco da
representação, sem dar margem a surpresas. Em resumo: racionalidade e
distanciamento da emotividade, sem deixar nada ao acaso ou ao incidental, muito
menos ao estado de ânimo e às tripas. Experimentar a emoção e conservar ao
mesmo tempo o senso critico não é impossível na prática, ao contrário do que
pensa Diderot. Tudo depende do quanto se está treinado para conter certos
estímulos, da sabedoria na administração do emocional e do racional, de um
equilíbrio capaz de se traduzir em efeito propulsor... e não estático. Em resumo,
enquanto Diderot opta pela estrutura coluna-viga, que permanece ali, parada,
travada, os cômicos dell’arte adotam o arco, com todos os estímulos e
contraestímulos dele derivados. Sabemos muito bem que, ao primeiro tremor de
terra, a estrutura coluna-viga desaba e o arco resiste maravilhosamente (FO,
2011: 24 e 25).
Ao ler esta passagem no livro de Dario Fo me lembrei, imediatamente, de
Nelson Rodrigues e o “ator búfalo da ilha de Marajó”. Nelson, sempre hiperbólico, fez uma
leitura radical acerca da formação do ator do teatro oficial de seu tempo, que
constantemente me vem à mente. Nelson diz:
A verdadeira vocação dramática não é o grande ator ou a grande atriz. É, ao
contrário, o canastrão, e quanto mais límpido, líquido, ululante, melhor. O
grande ator ou atriz é recente. Até poucos anos atrás, representava-se cinema e
teatro aos uivos e às patadas. Era hediondo e sublime. Ao passo que o grande
ator nada tem de truculento nem berra. É inteligente demais, consciente demais,
técnico demais; e tem uma lucidez crítica, que o exaure. O canastrão, não. Está
em cena como um búfalo da ilha de Marajó. É capaz de tudo. Sobe pelas
paredes, pendura-se no lustre e, se duvidarem, é capaz de comer o cenário. Por
isso mesmo, chega mais depressa ao coração do povo, deslumbra e fanatiza a
plateia 252.
252
Rodrigues, Nelson. A Menina sem estrela. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, pág. 63.
399
Sigo meu caminho, então, buscando um meio termo entre ser a atriz
extremamente consciente e controlada de Diderot e o búfalo da ilha de Marajó de Nelson.
E sinto que os mestres que escolhi no circo podem me ajudar nessa caminhada.
A pesquisa no Mestrado em Artes da Cena se encerra aqui, mas a busca pelas
questões suscitadas com este trabalho continua, individualmente, no campo teórico, e em
conjunto na prática artística. Para este próximo ano, a Dupla Cia juntamente com a Família
Burg, através do Fundo de Investimentos da cidade de Campinas (Ficc), realizará a
montagem de um espetáculo de circo-teatro (criado a partir da colagem de vários roteiros
de suspense e terror) para ser apresentado no prédio do Museu da Imagem e do Som de
Campinas (MIS), edifício histórico da cidade, com a direção de Zeca.
Além disso, Zeca também dirigirá outros dois espetáculos, através de um
projeto contemplado pelo Programa de Ação Cultural (ProAC) do estado de São Paulo com
a Dupla Cia, Barracão Teatro, Família Burg, Circo Caramba e Los Circo Los,: a chanchada
levada em seu circo como Tubinho no velório e a comédia de linha Tubinho, o tigrão de
______ (nome da cidade onde o circo está).
O palhaço das peças será rotativo, de modo que a comédia de linha será
protagonizada por Ésio Magalhães (palhaço Zabobrim) e Ivens Burg (palhaço Gonçalves).
Já com a chanchada, abriremos uma licença poética na arte da palhaçaria circense. Na
tradição circense o palhaço, mesmo quando representado por uma mulher, é uma
personagem masculina e comumente os temas das peças giram em torno do universo do
homem. Como nesta comédia, em específico, a temática principal não está ligada
diretamente a questões de gênero, lançamos o desafio de encenarmos uma peça de circoteatro estrelada por palhaças, no caso, eu, como Begônia e Joana Piza, como Sobolha.
Encerro esta dissertação certa de que a manifestação teatral do circo-teatro
merece e necessita de mais estudos, sob os mais variados pontos de vista; encerro, também,
com a esperança e desejo de que esta pesquisa suscite mais reflexões e questionamentos em
outros artistas que se interessam, assim como eu, pelo teatro realizado nos circos. Se este
trabalho, de alguma forma, auxiliar um ator na busca de sua criação poética, terá cumprido
seu intuito.
400
Por fim, termino este ciclo extremamente grata a todos estes artistas que me
inspiraram, me ensinaram e me auxiliaram ao longo da pesquisa. Dedico, então, essa
dissertação a todos estes artistas que tem o circo não só como uma profissão, mas também
como escolha de vida, dedicada inteiramente ao seu respeitável público.
401
402
5.
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b) Filmes e documentários:
Amores de Circo (2009), filme de Ana Lúcia Ferraz e realização do LISA (Laboratório de
Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo) e da Fapesp (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
A mulher do trem (2004), documentário produzido pela companhia Os Fofos Encenam e
Massangana Multimídia Produções.
Circo de Teatro Tubinho (2006), documentário de Ana Lúcia Ferraz e realização do LISA
(Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo) e da
Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Circo de Teatro Tubinho (2013), documentário produzido pelo próprio circo, em parceria
com a Esfera Produções, sobre o projeto de reelaboração de repertório do Ministério da
Cultura e da Petrobrás.
Clowns (1970), filme de Federico Fellini.
O Boulevard do Crime (1945), filme de Marcel Carné.
O palhaço o que é? (2007), documentário de Ana Lúcia Ferraz e realização do LISA
(Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo) e da
Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Senta que o Tubinho vai entrar (2010), gravação ao vivo do stand up de Pereira França
Neto na cidade de Cerquilho – SP.
c) Sites visitados:
http://www.saoroque.sp.gov.br/noticias/noticia.asp?id=869
407
http://www.panoramio.com/photo/26804236
http://www.grupotempo.com.br/sobre-o-metodo-das-acoes-fisicas/
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/patrimonio_historico/memoria_d
o_circo/largo_do_paissandu/index.php?p=7141
https://www.youtube.com/watch?v=57J7XQD4WCI
http://www.tubinho.com.br
d) Outras fontes:
Acervo pessoal de Antônio Santoro Junior.
Acervo da fotógrafa Grah Assis.
Acervo pessoal de Murillo Ramos Mello.
Diário de Bordo da atriz Ana Dolores, do Circo de Teatro Tubinho.
Diário de Bordo da atriz Lucélia Reis, do Circo de Teatro Tubinho.
Transcrição da entrevista de Rosalina Viana e Jacira Viana concedida ao pesquisador Pedro
Della Paschoa Júnior, no ano de 1972.
a) Entrevistas:
Alexandre Vieira, em 08/09/2014.
Ana Dolores, em 08/09/2014.
Angelita Vaz, em 17/11/2014.
Antônio Santoro Júnior, em 27/08/2014.
Cristian Bryan (Tito), em 18/11/2014.
Cristina Martins, em 08/09/2014.
Débora Ignácio, em 18/11/2014.
408
Dimitri Augusto, em 08/09/2014.
Dionísio Martins, em 15/03/2014.
Erminia Silva, em 24/03/2014.
Ésio Magalhães, em 23/04/2013.
Fernando Neves, em 11/11/2013 e 27/08/2014.
Lucélia Reis, em 08/09/2014.
Luciane Rosã, em 17/11/2014.
Morgana Lunardi, em 18/11/2014.
Nicolas Alexandre, em 08/09/2014.
Pereira França Neto (Zeca), em 05/12/2013 e 18/11/2014.
Riccielly Lunardi, em 17/11/2014.
Tiche Vianna, em 06/09/2014.
Wanderley Martins, em 05/11/2013.
409
410
6.
ANEXOS
Este DVD contém os acervos completos de Murillo Ramos Mello e Grah Assis
acerca do Circo de Teatro Tubinho. Nestes arquivos podemos encontrar o registro
fotográfico de diversas peças por Grah Assis e também reportagens de revistas, jornais e
televisão, fotos, vídeos e ofícios de prefeituras de menção honrosa coletados por Murillo
Ramos Mello.
Acreditamos que as compilações feitas por estes dois fãs da companhia de
Tubinho ao longo de anos constituem um rico e extenso material, que pode auxiliar o
trabalho de outros tantos pesquisadores que se interessam pelas representações teatrais
circenses na contemporaneidade.
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