livro de estudos literários i

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livro de estudos literários i
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) –
Biblioteca do ILC/ UFPA-Belém-PA
________________________________________________________
________
Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários (4.: 2013: Belém, PA)
[Anais do] IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários
[recurso eletrônico] / Organização: Germana Sales, [et al.] . ---- Belém: Programa de
Pós-Graduação em Letras da UFPA, 2013.
626p. : il.
Modo de acesso: <http://www.ufpa.br/ciella/>
Congresso realizado na Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto da
Universidade Federal do Pará, no período de 24 a 27 de abril de 2013.
ISBN: 978-85-67747-01-9
1. Lingüística – Discursos, ensaios e conferências. 2. Literatura –
Discursos, ensaios e conferências. I. Sales, Germana, org. II. Título.
410
CDD -22. ed.
___________________________________________________________________
COMISSÃO ORGANIZADORA
Dra. Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira
Presidente da comissão organizadora
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Germana Maria Araújo Sales
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras Vice-Coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Letras
Ma. Cinthia de Lima Neves
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)
Ma.Alinnie Oliveira Andrade Santos (UFPA)
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras
Msc. Edvaldo Santos Pereira (UFPA)
Ma. Eliane Costa (UFPA) Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos
Linguísticos)
Ma. Izenete Nobre (UFPA/UNICAMP)
Jaqueline de Andrade Reis (UFPA)
Juliana Yeska (UFPA)
Discente da Faculdade de Letras
Márcia Pinheiro (UFPA)
Discente da Faculdade de Letras
Ma. Marília Freitas (UFPA)
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)
Sara Ferreira (UFPA)
Discente da Faculdade de Letras
Ma.Silvia Benchimol (UFPA/Campus de Bragança)
Ma. Simone Negrão
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Linguísticos)
Thais Fiel (UFPA)
Discente da Faculdade de Letras
Thiago Gonçalves (UFPA/UERJ)
Veridiana Valente Pinheiro (UFPA)
Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Literários)
Wanessa Regina Paiva da Silva (UFPA/UERJ)
COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Dr. Abdelhak Razky (UFPA)
Prof. Dr. Alvaro Santos Simões Junior (UNESP)
Profa. Dra. Ana Cristina Marinho (UFPB)
Profa. Dra. Andréia Guerini (UFSC)
Profa. Dra. Antônia Alves Pereira (UFPA/Altamira)
Profa. Dra. Aurea Suely Zavam (UFC)
Prof. Dr. Benjamin Abdala Júnior (USP)
Profa. Dra. Carmem Lúcia Figueiredo (UERJ)
Prof. Dr. Daniel Serravalle de Sá (UFPA/Marabá)
Prof. Dr. Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti (UFBA)
Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho (UFRJ)
Profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho (UFC)
Profa. Dra. Franceli Aparecida da Silva Mello (UFMT)
Profa. Dra. Gláucia Vieira Cândido (UFG)
Prof. Dr. Hélio Seixas Guimarães (USP)
Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)
Prof. Dr. José Carlos Chaves da Cunha (UFPA)
Prof. Dr. José Horta Nunes (UNICAMP)
Prof. Dr. José Sueli Magalhães (UFU)
Profa. Dra. Josebel Akel Fares (UEPA)
Profa. Dra. Juliana Maia de Queiroz (UNESP)
Prof. Dr. Lucrécio Araújo de Sá Júnior (UFRN)
Prof. Dr. Marco Antonio Martins (UFRN)
Profa. Dra. Maria da Glória Corrêa Di Fanti ( PUC-RS)
Profa. Dra. Maria de Fátima do Nascimento (UFPA)
Profa. Dra. Maria Elvira Brito Campos (UFPI)
Profa. Dra. Mariângela Rios de Oliveira (UFF)
Profa. Dra. Marly Amarilha (UFRN)
Profa. Dra. Milena Ribeiro Martins (UFPR)
Profa. Dra. Odalice de Castro Silva ( UFC)
Prof. Dr. Otávio Rios Portela (UEA)
Prof. Dr. Rauer Rodrigues Ribeiro (UFMT)
Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza (UFRJ)
Profa. Dra. Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)
Profa. Dra. Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC)
Profa. Dra. Silvia Lucia Bijongal Braggio (UFG)
Profa. Dra. Simone Cristina Mendonça (UFPA/ Marabá)
Profa. Dra. Socorro Pacífico Barbosa (UFPB)
Profa. Dra. Soélis Teixeira do Prado Mendes (UFPA/ Marabá)
Profa. Dra. Solange Mittmann (UFRGS)
Profa. Dra. Stella Virginia telles de Araújo Pereira Lima (UFPE)
Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos (UFRN)
Profa. Dra.Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC)
Profa. Dra. Teresa Cristina Wachowicz (UFPR)
Profa. Dra. Walkyria Alydia Grahl Passos Magno e Silva (UFPA)
Profa. Dra. Vanderci de Andrade Aguilera (UEL)
Profa. Dra. Regina Celi Mendes Pereira da Silva (UFPB/CNPq
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
Prof. Dr. Carlos Edilson de Almeida Maneschy
Reitor
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Pró-Reitoria de Ensino e Graduação
Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho
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Pró-Reitoria de Extensão
Prof. MSc. Edson Ortiz de Matos
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João Cauby de Almeida Júnior
Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal
Prof. Dr. Erick Nelo Pedreira
Pró-Reitoria de Planejamento
INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO
Dr. Otacílio Amaral Filho Diretor Geral
Dra. Fátima Pessoa Diretora Adjunta
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Dra. Germana Maria Araújo Sales
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Marília de N. de Oliveira Ferreira
Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal do Pará
Instituto de Letras e Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Letras
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APRESENTAÇÃO IV CIELLA
É com imensa satisfação que publicamos os textos dos participantes do
Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia
(CIELLA) em sua quarta edição. A primeira versão do evento ocorreu em 2006, no então
Curso de Mestrado em Letras (CML). O evento consolidou-se, em edição bianual, e hoje,
iniciado pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará, tem
como objetivo principal reunir estudiosos das áreas de Linguística e Literatura e de áreas
afins para discutir e partilhar os resultados de suas pesquisas e dos trabalhos desenvolvidos,
no âmbito de seus programas de pós-graduação e faculdades de letras, envolvendo
estudantes de graduação e de pós-graduação. O caráter transversal e interdisciplinar do
CIELLA está circunscrito à apresentação de trabalhos e debates nas áreas de Linguagem,
Línguas, Literaturas, Culturas e Educação sob vários aspectos. Em 2013, o IV Congresso
Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (IV CIELLA),
ocorreu no período de 23 a 26 de abril de 2013, sob o tema FRONTEIRAS
LINGUÍSTICAS E LITERÁRIAS NA AMÉRICA LATINA. Nessa edição, o evento
coroa a criação recente do nosso Curso de Doutorado e superamos todas as expectativas,
quando a comissão organizadora do evento recebeu um público aproximado de 1200
pessoas, entre estudantes de graduação, de pós-graduação, professores e pesquisadores de
instituições locais, nacionais e internacionais, professores da Educação Básica (Ensino
Médio e Ensino Fundamental) e profissionais de áreas afins.
O Congresso contou com renomados convidados internacionais, considerados
referência em suas especialidades, e convidados nacionais e locais que contribuíram para
que o evento fosse bem sucedido. O sucesso do evento deveu-se, também, à programação
científica que reuniu cerca de oitocentos trabalhos da área de Letras e Linguística, em várias
modalidades – Conferências, Mesas Redondas, Minicursos, Simpósios, Sessões de
Comunicação, Pôsteres, e Relatos de experiência.
A presente publicação, que reúne os trabalhos oriundos do IV CIELLA, conta com
268 textos de docentes e de alunos de graduação e de pós-graduação brasileiros. São 109
textos de Estudos Linguísticos e 159 textos de Estudos Literários, resultantes de pesquisas
em desenvolvimento na área de L&L.
A aquiescência do Congresso pela comunidade acadêmica levou-nos a organizar um
evento de grande envergadura para as áreas de Letras e de Linguística e, nesta quarta edição
consolidamos a internacionalização do evento, que contou com nomes de grande vulto,
como Inocência Matta, Inocência Mata (Portugal); Rosário Alvarez (Espanha); Rebecca
Martinez (Estados Unidos); Enrique Hamel (México); Christine Sims (Estados Unidos);
Pilar Valenzuela (Estados Unidos); Rubem Chababo (Argentina); Alicia Salomone (Chile) e
Host Nitchack (Chile).
Para a concretização do evento, agradecemos o fomento recebido da CAPES e
CNPq, além do apoio irrestrito da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, na figura do
Pró-Reitor, Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho; do Instituto de Letras e Comunicação,
na pessoa do Diretor Otacílio Amaral Filho, a quem devemos infindos agradecimentos.
A concretização do evendo deveu-se, certamente, ao apoio financeiro, mas
ressaltamos a efetiva participação da secretaria, formada por alunos de graduação e de pósgraduação, que cuidaram com esmero para a ocorrência do IV CIELLA. Nosso
agradecimento especial aos alunos que conduziram com eficiência a secretaria: Eliane
Costa, Márcia Pinheiro, Alinnie Santos, Cinthia Neves, Thais Fiel, Sara Vasconcelos,
Wanessa Paiva, Veridiana Valente, Edvaldo Pereira e Jaqueline Reis.
Também aos professores do PPGL, alunos e monitores do evento nosso muito
obrigada!
O CIELLA foi um momento de congregar forças, mas também se configurou
como espaço de apresentação não só da quantidade de trabalhos na área de Letras &
Linguística, mas da qualidade desses trabalhos, que aqui estão reunidos.
A EXPERIENCIAÇÃO DO INSÓLITO EM ―O REFLEXO PERDIDO‖, DE E.T.A.
HOFFMANN
ALAN FERREIRA COSTA
ANTÔNIO MÁXIMO FERRAZ
DAS PÁGINAS DE UM JORNAL PARA AS PÁGINAS DE UM LIVRO: MARQUES
DE CARVALHO REESCREVE UM CONTO
ALAN VICTOR FLOR DA SILVA
GERMANA MARIA ARAÚJO SALES
NARRATIVAS ORAIS DA ILHA DE MOSQUEIRO: MEMÓRIA E SIGNIFICADO
ALCIR DE VASCONCELOS ALVAREZ RODRIGUES
IVÂNIA DOS SANTOS NEVES
TRADUÇÕES PORTUGUESAS DE PAUL DE KOCK NO ACERVO DO GRÊMIO
LITERÁRIO PORTUGUÊS DO PARÁ
ALESSANDRA PANTOJA PAES
VALÉRIA AUGUSTI
UM CANTO AOS QUATRO CANTOS: O PROCESSO DE UNIVERSALIZAÇÃO
DA NARRATIVA O CANTO DA MULHER LOIRA
ALEXANDRE RANIERI
REFLEXÕES CRÍTICAS ACERCA DO ENSINO DE LITERATURA EM SALA DE
AULA
ALINE CRISTINA GARCIA
LINHA DO PARQUE: O ROMANCE PROLETÁRIO DE DALCÍDIO JURANDIR
ALINNIE SANTOS
MARLÍ TEREZA FURTADO
A INSERÇÃO DA ESCRITA PÓS-COLONIAL NA PRODUÇÃO LITERÁRIA DE
DALCÍDIO JURANDIR
ALMIR PANTOJA RODRIGUES
ENTRE A HONRA E A CIVILIDADE EM O CORONEL SANGRADO
ANA CAROLINE DA SILVA RODRIGUES
MARLÍ FURTADO
O SALTO DA ÍNDIA: ―(RE)VISÕES DO CORPO DAS ÍNDIAS E NEGRAS‖
ANA CHIARA
SÉCULO XIX, TRADUZIR PARA EDUCAR: AS PRIMEIRAS TRADUÇÕES
BRASILEIRAS DAS FÁBULAS DE LA FONTAINE
ANA CRISTINA CARDOSO
CLAUDIA BORGES DE FAVERI
A CIRCULAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA NO RIO DE JANEIRO
OITOCENTISTA: UM ESTUDO DAS REVISTAS CORREIO DAS MODAS (18391840) E NOVO CORREIO DE MODAS (1852-1854)
ANA LAURA DONEGÁ
MÁRCIA AZEVEDO DE ABREU
A TRANSFIGURAÇÃO POÉTICA DO CORPO NA LINHA-D’ÁGUA,
DE OLGA SAVARY
ANDRÉA JAMILLY RODRIGUES LEITÃO
ANTÔNIO MÁXIMO FERRAZ
ALUÍSIO AZEVEDO: O TRABALHO LITERÁRIO-FOLHETINESCO COMO
ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA E POLÍTICA ILUSTRADA
ANGELA MARIA RUBEL FANINI
JOÃO HERNESTO WEBER
LITERATURA, CIÊNCIA E TESTEMUNHO: NOTAS SOBRE A HIBRIDEZ
DISCURSIVA D‘OS SERTÕES, DE EUCLIDES DA CUNHA, E DA OBRA EM
PROSA DE RUY DUARTE DE CARVALHO
ANITA M. R. MORAES
SENHOR DA LUZ: A LIBERTAÇÃO DECORRENTE DO CONHECIMENTO
15
23
36
47
57
75
86
96
106
116
126
135
146
155
166
175
2
ANTÔNIO ADAILTON SILVA
ENSINO DE LITERATURA: O ROMANCE MACAU NO CONTEXTO DO
SISTEMA LITERÁRIO NACIONAL
MARIA APARECIDA DE ALMEIDA REGO
HUMBERTO HERMENEGILDO DE ARAÚJO
NAEL ―CENTRO DE CONSCIÊNCIA‖ E ―ESPELHO POLIDO‖, A FIGURA DO
NARRADOR EM ―DOIS IRMÃOS‖, DE MILTON HATOUM
ASSUNÇÃO DE MARIA SOUSA E SILVA
HOMOAFETIVIDADE NA INFÂNCIA E RELAÇÕES DE PODER NA
PERSPECTIVA DO CONTO FREDERICO PACIÊNCIA
BENEDITO TEIXEIRA
FERNANDA MARIA ABREU COUTINHO
A LIDA E O LIDADOR: PORTUGAL SOB O SIGNO DA GUERRA
BENJAMIN RODRIGUES FERREIRA FILHO
O (DES)ENSINO DE LITERATURA NO ENSINO MÉDIO: LETRAMENTO
LITERÁRIO E MEDIAÇÕES DOS LIVROS DIDÁTICOS – CONSIDERAÇÕES
INICIAIS
BONFIM QUEIROZ LIMA PEREIRA
MÁRCIO ARAÚJO DE MELO
A FESTA PAGÃ: ANÁLISE E REFLEXÃO SOBRE ―DEUS E O DIABO NO RIO
DE JANEIRO‖ DE EDUARDO GALEANO
BRENO PAUXIS MUINHOS
MARIA DO SOCORRO SIMÕES
AS MISSIVAS SOBRE A SECA NO IMPÉRIO: LITERATURA E HISTÓRIA NO
JORNAL A OPINIÃO.
CAMILA M. BURGARDT
―RORAIMA É TERRA BOA‖: MIGRAÇÃO NORDESTINA E CORDEL EM
RORAIMA
CARLA MONTEIRO DE SOUZA
CORES COMO MEDIADORAS DO DIÁLOGO ENTRE ARTE E CIÊNCIA NA
CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM
CLEICIANE MAIA FERREIRA
ALLISON LEÃO
MACUXANA: MEMÓRIA, IDENTIDADE E LITERATURA RORAIMENSE
CLEO AMORIM NASCIMENTO
CARLA MONTEIRO SOUZA
IMAGENS DA PRIMEIRA REPÚBLICA NO BRASIL EM LIMA BARRETO
CRISTIANE DA SILVEIRA
CONFIGURAÇÕES MEMORIALISTICAS DO ESPAÇO FEMININO NOSPOEMAS
DOS BECOS DE GOIÁS E ESTÓRIAS MAIS DE CORA CORALINA
CRISTIANE VIANA DA SILVA
ALGEMIRA DE MACEDO MENDES
CENAS PITORESCAS DA INFÂNCIA BRASILEIRA OITOCENTISTA NAS
CRÔNICAS DE RAUL POMPÉIA
DANILO DE OLIVEIRA NASCIMENTO
TODO O ENCANTO DIABÓLICO NA FIGURA DO BOTO AMAZÔNICO
DANTE LUIZ DE LIMA
SALMA FERRAZ
FICTIONAL REALITIES X FACTUAL LIES: THE AMAZON CROSSING SPATIAL
AND TEMPORAL BOUNDARIES
DAVI SILVA GONÇALVES
FAUS(ELIO)TINO: AS CONFLUÊNCIAS ENTRE ELIOT E FAUSTINO
DAYANA CRYSTINA BARBOSA DE ALMEIDA
IZABELA GUIMARÃES GUERRA LEAL
A VOZ DE UM VAQUEIRO EM MEMÓRIAS DO MARAJÓ
DÉLCIA PEREIRA POMBO
186
195
205
215
225
234
244
254
265
274
286
297
311
321
331
340
350
JOSEBEL AKEL FARES
O JORNAL DIÁRIO COMO INSTÂNCIA DE DIVULGAÇÃO LITERÁRIA
EDSON TAVARES COSTA
O PROCESSO DE TRANSCULTURAÇÃO COMO PRINCÍPIO DA ORALIDADE
EM ―BATUQUE‖, DE BRUNO DE MENEZES
EDVALDO SANTOS PEREIRA
JOSÉ GUILHERME DOS SANTOS FERNANDES
A REPRESENTAÇÃO DO POBRE EM DALCÍDIO JURANDIR: A TRAJETÓRIA
DE EUTANÁZIO EM CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA
JOSÉ ELIAS PEREIRA HAGE
MARLI TEREZA FURTADO
UM JOGO DE MEMÓRIAS: A CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA LITERATURA
INFANTOJUVENIL
ELISANDRA LORENZONI LEIRIA
ROSANE MARIA CARDOSO
A VIÚVA SIMÕES E A AUDÁCIA DESSA MULHER: UNIVERSOS
CONTRASTANTES
ELÓDIA XAVIER
A ESCRITA FEMININA EM CADERNOS NEGROS- OS MELHORES CONTOS
(1998): UM MERGULHO NO TERRITÓRIO SELVAGEM
EMÍLIA RAFAELLY SOARES SILVA
ALGEMIRA MENDES DE MACEDO
ALFREDO SOB O PESO DA LUCIANA
ERIKA GUIOMAR MARTINS DE AQUINO
NOS BASTIDORES DA RESISTÊNCIA:
JUÓ BANANÉRE NO CONTEXTO DE O PIRRALHO
FRANCISCO CLÁUDIO ALVES MARQUES
REPRESENTAÇÃO DO CÁRCERE NA POESIA DE RESISTÊNCIA DE
CHARLOTTE DELBO (FRANÇA) E LARA DE LEMOS (BRASIL)
ÉVILA FERREIRA DE OLIVEIRA
VIAGEM PELO ESPACITEMPO DO ENTRE-LUGAR
EM CANDOMBLÉ LISBOA
FÁBIO RODRIGO PENNA
MARIA TERESA SALGADO
DE NARRATIVAS E CEREJAS: PARA SEMPRE, OUTRORA
FERNANDA COUTINHO
ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
A TRANSGRESSÃO NA OBRA DE HILDA HILST: A OBSCENA SENHORA D
FERNANDA SHCOLNIK
ANA CHIARA
IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÃO DO FEMININO NA NARRATIVA MÍTICA
DA MATINTAPERERA
FERNANDO ALVES DA SILVA JÚNIOR
MARIA DO PERPÉTUO SOCORRO GALVÃO SIMÕES
MEMÓRIA DA ALTAMIRA DE ANTIGAMENTE
FERNANDO JORGE DOS SANTOS FARIAS
ANDREIA LUCIANA KNISPEL
CÁSSIA SILVA ARAÚJO
REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DA LITERATURA JUVENIL BRASILEIRA:
UM ESTUDO DA TRAJETÓRIA EDITORIAL DE A ILHA PERDIDA, DE MARIA
JOSÉ DUPRÉ
FERNANDO RODRIGUES DE OLIVEIRA
MARIA DO ROSÁRIO LONGO MORTATTI
ESPAÇO E IDENTIDADE: A PERCEPÇÃO DA PAISAGEM NA PRODUÇÃO
LITERÁRIA DE JOSÉ SARAMAGO
358
369
377
386
395
400
411
419
428
437
448
460
468
484
495
506
FLÁVIA ALEXANDRA PEREIRA PINTO
MÁRCIA MANIR MIGUEL FEITOSA
NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES NA LITERATURA BRASILEIRA
INFANTO-JUVENIL: LEITURA DE MEUS DOIS PAIS, DE WALCYR CARRASCO,
E DE OLÍVIA TEM DOIS PAPAIS, DE MÁRCIA LEITE
FLÁVIO PEREIRA CAMARGO
LITERATURA E HISTÓRIA NA AMAZÔNIA: A RETOMADA HISTÓRICA NO
ROMANCE GALVEZ, IMPERADOR DO ACRE, DE MÁRCIO SOUZA
FRANCISCO EWERTON ALMEIDA DOS SANTOS
MITOPAISAGENS E IDENTIDADES EM THE SLEEPERS OF RORAIMA, DE
WILSON HARRIS
GABRIEL CAMBRAIA NEIVA
ROBERTO CARLOS DE ANDRADE
PRODUÇÃO CULTURAL EM RONDÔNIA: A SIGNIFICAÇÃO DO COTIDIANO
PELO VIÉS LITERÁRIO
GEANEVALESCA DA CUNHA KLEIN
GISÉLE MANGANELLI FERNANDES
NARRATIVA ORAL EM DEBATE: UMA ANÁLISE ALÉM DAS PALAVRAS DO
NARRADOR
MARIA GEORGINA DOS SANTOS PINHO E SILVA
CARLA MONTEIRO DE SOUZA
HERTA MÜLLER. AUTORA ROMENA? DE LÍNGUA ALEMÃ? PRÊMIO NOBEL?
GERSON ROBERTO NEUMANN
A POESIA E SUA REPRESENTAÇÃO NOS JORNAIS
PARAIBANOS DO SÉCULO XIX
GILSA ELAINE RIBEIRO ANDRADE
ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: POR UMA NOVA MANEIRA DE ESTUDAR OS
TEXTOS LITERÁRIOS NAS AULAS DE LITERATURA DO ENSINO MÉDIO
GISLÃNE GONÇALVES SILVA
ANDRÉ TEIXEIRA CORDEIRO
O IMAGINÁRIO POÉTICO: UMA ANÁLISE A PARTIR DO POEMA HINOS
DIONISÍACOS AO BOTO, DO AUTOR JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO
GLENDA DUARTE
RENILDA BASTOS
518
531
544
555
567
579
587
597
606
15
A EXPERIENCIAÇÃO DO INSÓLITO EM “O REFLEXO
PERDIDO”, DE E.T.A. HOFFMANN
Alan Ferreira Costa1 (UFPA)
Antônio Máximo Ferraz2 (UFPA) (Orientador)
Resumo: A literatura fantástica tem como definição proposta por Tzvetan
Todorov, a hesitação diante de acontecimentos ditos insólitos: ocorrências que quebram o
cotidiano e deixam o individuo entre duas explicações possíveis, quais são, real ou
sobrenatural. No entanto, a realidade com a qual tal evento rompe nunca é questionada.
Faz-se necessário, portanto, pensar a relação real/insólito também pelo viés da questão do
que é o real. O escritor alemão E.T.A. Hoffmann (1776 - 1822), em suas narrativas, pensa
tal relação, como em seu conto O Reflexo Perdido (Das VerloreneSpiegelbild) (1815), no qual um
personagem não se vê mais refletido em superfícies especulares. A obra, embora não seja
uma das mais reconhecidas do escritor alemão, nos dá a base para os mais diversos
questionamentos oferecidos pela chamada Literatura Fantástica. Partindo dos pressupostos
da Teoria Literária a respeito Fantástico, o trabalho se põe na verdade como questionador
dos rótulos impostos por tal teoria, mostrando que mais do que simplesmente constatar a
presença ou não de elementos ―sobrenaturais‖, devemos nos perguntar sobre o significado
deste enquanto representação dos limites real/irreal.
Palavras-chave: Insólito; Real; Espelho; Hoffmann
Abstract:The Fantastic Literature is defined by TzvetanTodorov as the hesitation before
the unusual events: the occurrences that break the everyday and leave the individual
between two possible explanations, which are real or supernatural. However, the reality
that such breaks an event is never questioned. It is necessary, therefore, to think about the
real / unusual also trough by the question of what is real. The German writer E.T.A.
Hoffmann (1776 - 1822), in his narratives, thinks about this, as in his short story The Lost
Reflection (Das VerloreneSpiegelbild) (1815), in which a character does not see himself reflected
in specular surfaces anymore. The tale, is not one of the most recognized masterpiece od
this German writer, but it gives us the basis for various questions offered by the called
Fantastic Literature. Based on the assumptions of Literary Theory about Fantastic, this
article actually intents to educe questions about the labels imposed by this theory, showing
more than simply checking for the presence or gap of the "supernatural" elements in a text,
1
Mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará. Pesquisador no Núcleo Interdisciplinar
Kairós – NIK. E-mail: [email protected]
2Prof. Adjunto da Graduação e do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Pará –
UFPA; Coordenador Núcleo Interdisciplinar Kairós - NIK . E-mail: [email protected]
16
we should ask ourselves about the meaning of this elements while representation of the
limitation between real / unreal.
Keywords:Unsual; Real; Mirror; Hoffmann
O estudo da chamada literatura fantástica ainda se prende às definições propostas
pela Teoria Literária, nas quais se definem as características das narrativas a partir de
estrutura puramente textuais. Por exemplo, o que TzvetanTodorov define como
pressuposto para um texto tido como fantástico é basicamente a não definição do que é
real e o que não o é. Meu projeto preocupa-se em interpretar as obras como uma pergunta
da própria obra sobre o que o real. E.T.A Hoffmann, considerado um dos destaques nesse
tipo de narrativa, questiona em suas obras não só o que é o insólito, mas também o que é o
real.
Embora o insólito apareça como fenômeno na literatura através das mais variadas
sensações, é através dos olhos que esta é apresentada de maneira mais exuberante. Mas,
mais que simplesmente constatar a presença do olhar, devemos questionar o significado
deste enquanto representação dos limites real/irreal. Dessa forma devemos percorrer a
questão do que representa o espelho, do que seria o real, como acontece a experienciação
do insólito na narrativa de Hoffman, e como esta mostra a abertura das questões.
O Reflexo Perdido
A narrativa O Reflexo Perdido (Das VerloreneSpiegelbild) (1815), de E.T.A Hoffmann,
conta a história de um jovem alemão, Erasmo Spikher, que, durante uma estada na Itália,
conhece uma florentina chamada Giulietta por quem se apaixona perdidamente,
esquecendo a sua mulher e seu filho na Alemanha. Após uma série de desentendimentos,
Erasmo é obrigado a fugir da Itália. Esta separação desespera a Erasmo e a Giulietta. Então
abraça a Erasmo e pede:
―Ah! se ao menos – sussurrou ela de forma íntima – poderias
deixar teu reflexo, e assim ele seria sempre meu e tu serias sempre
meu.
[...]- Meu reflexo!... quepensas?... Meu reflexo!... – balbuciou
Erasmo, desconcertado - Mas como poderias se ele anda comigo a
qualquer lugar?
- Como podes recusar? – Nada me restará da lembrança, nem
mesmo esta imagem que me sorri do fundo do espelho! Nem
mesmo a tua imagem pode ficar comigo me acompanhar na pobre
vida? (HOFFMANN)3
3
As citações da obra O Reflexo Perdido, foram feitas com base naobra disponível no Project Gutemberg,
em alemão, portanto, sem paginação e ano de publicação. Dessa forma todas as citações desta obra,
17
O personagem assim, o faz: deixa se reflexo com a tal Giulietta. Ao se olhar num
espelho próximo, não mais se vê. É de se esperar que Erasmo logo se desespere com a
ideia de não poder enxergar a si mesmo. Mas existiram outros problemas em sua vida a
partir daí. Ele passa a sair somente à noite, evitando qualquer oportunidade de se pôr
diante de superfícies especulares. Uma certa noite, em uma hospedaria, descuidadamente se
pôs diante de um vidro, e o garçom, ao perceber que Erasmo não tinha sua imagem
refletida, gritou:
―– Quem é este homem sem reflexo? É um maldito, um
enfeitiçado, ou o Diabo em pessoa!
Erasmo salvou-se fechando-se no quarto onde contava poder
passar a noite. Todavia, logo depois vieram agentes da polícia
dizer-lhe que, em nome dos magistrados, deveria ou mostrar seu
reflexo ou deixar a cidade sem perda de tempo.
Forçado a fugir através dos campos, para evitar as caravanas que
cruzavam o caminho, ele não entrava nos albergues senão ao cair
da noite; pedia ao proprietário para cobrir os espelhos.‖
(HOFFMANN)
Nota-se que Erasmo era discriminado por onde andava. Não poderia mais ser um
respeitável chefe de família, como mais tarde diria sua própria esposa. Então, foi embora e
se pôs a caminho em busca de seu reflexo.
―-
Meu amigo – disse-lhe ela com doçura – agora sei da
aventura que tiveste na Itália. Estou contristada; vê como são
astutas as partidas pregadas pelo Demônio, que te roubou o
reflexo que eu tanto gostava de ver sorrindo para mim, no espelho!
De hoje em diante não podes mais continuar a ser um respeitável
chefe de família; todos de apontarão com o dedo. Sugiro que te
ponhas a caminho e comeces a viajar em busca do teu reflexo. Tão
logo o encontres, conforme espero, apressa-te em voltar. Esperarte-ei com impaciência e rever-te-ei com alegria. Beija-me e parte
com Deus. Lembra-te de enviar, de vez em quando, algum
confeito ou brinquedo ao teu filho, para que ele não te esqueça.‖
(HOFFMANN)
O conto não é um dos mais conhecidos e estudados, de Hoffmann, mas vi nesse
umaoportunidade de trazer a tona não só a questão do sobrenatural, como sempre faz a
feitas neste artigo possuirão apenas o nome do autor. Vale ressaltar que existe uma tradução do conto
para o português, mas em uma coletânea já esgotada há muitos anos. Existem também traduções feitas
em alguns fóruns de internet, mas sem comentários sobre o processo de tradução ou tradutores. Assim,
usei como base o texto original, já citado.
18
Teoria Literária, quando rotula obras como sendo do gênero fantástico, mas aquilo que
excede os rótulos, as questões do que seja o homem.Nesse caso, a ausência da imagem no
espelho faz a Erasmo (e também a nós) uma série de perguntas: quem é aquele que se vê
refletido (ou não) no espelho? Quem é você? O que é o homem? O que é o real?
Fantástico
O termo fantástico é comumente associado como algo oposto ao real, o fictício. O
teórico búlgaro, Tzvetan Todorov, em sua obra Introdução à Literatura Fantástica, apresenta
uma conceituação do fantástico na literatura, na qual o Fantástico ocorre na incerteza entre
o racional ilógico e o irracional lógico, diante da impossibilidade de escolher ou aceitar uma
ou outra explicação em uma época em que o sobrenatural, o extraordinário, o insólito era
posto à prova pelo poder crescente do racionalismo cientificista. Ele comenta várias obras
literárias (a maioria do século XIX) e define o que os caracteriza como fazendo parte de tal
gênero: o sobrenatural. Segundo o teórico, a partir de um acontecimento sobrenatural, a
narrativa poderia tomar um rumo onde tal texto seria definido como fantástico, estranho,
ou maravilhoso. Felipe Furtado compartilha dessa definição:
―Apesar das diferenças existentes entre quase todas as abordagens
antes referidas e da diversidade das respectivas conclusões,
verifica-se que elas concordam por completo num ponto, pelo
menos: qualquer narrativa fantástica encena invariavelmente
fenómenos ou seres inexplicáveis e, na aparência sobrenaturais‖
(FURTADO, 1980, p.19).
Sobrenatural aqui, são entidades ou ocorrências que ultrapassam a natureza
conhecida. Situa-se, geralmente, num plano exterior e ao mesmo tempo superior. De
acordo com Filipe Furtado, a tentativa de qualificar elementos deve ser deslocada para o
sujeito humano do conhecimento, e melhor nomeada como ―metaempíricos‖ ao invés de
sobrenaturais. Ou seja, elementos que pareçam algo além da natureza em determinado
momento talvez possam ser explicados racionalmente em outro. Portanto, o termo
metaempírico recobre não só as manifestações denominadas sobrenaturais, mais também
outras que, mesmo não sendo, podem ser igualmente assustadoras.
―Com ele [o termo meta-empírico] se pretende significar que a
fenomenologia assim referida está para além do que é verificável
ou cognoscível a partir da experiência, tanto por intermédio dos
sentidos ou das potencialidades cognitivas da mente humana,
19
como através de quaisquer aparelhos que auxiliem, desenvolvam
ou supram essas faculdades‖. (FURTADO, 1980, p.20).
Partindo do termo metaempíricotemos três variantes possíveis, que são dadas pela
reação à ocorrência: aceitação, rejeição e dúvida. Conforme Tzvetan Todorov (2004), no
maravilhoso (aceitação) a manifestação metaempírica nunca é negada ou posta em dúvida.
O estranho (rejeição), por outro lado, evoca a manifestação para uma explicação racional.
E, por fim, o fantástico adota a posição de dúvida: nem afirma e nem nega a eventualidade
da sua existência, é uma posição ambígua.
No caso da narrativa de Hoffmann, a Teoria Literária define que O Reflexo Perdido é
um conto fantástico porque não define ao final o porquê de Erasmo perder seu reflexo no
espelho. Apesar de sua mulher afirmar que se tratava de uma ―partida pregada pelo
demônio‖, não se diz se era mesmo isso ou não, deixando assim, um final ―aberto‖. Mas
notemos que em todas essas possibilidades de interpretação, recorremos somente à
superficialidade daobra, apenas o seu texto.
Mas pensemos também que talvez aí resida o que temos como ponto principal, ao
fim da narrativa, quando não se explica o acontecimento, deixa-se que as questões
aconteçam como experienciação e não como experiência. Não se toma o partido da ciência,
que diz que tal ocorrência é real ou irreal. A narrativa de Hoffmann não coloca como
questão apenas o acontecimento insólito como questão, mas sim, a realidade, a existência
do homem quando diante da abertura das questões. O fantástico, portanto seria o que toda
literatura proporciona, pois através de imagens (do grego, phantásma) são apresentadas as
questões.
O insólitoa realidade e o espelho
Em seu ensaio, O Estranho (Das Unheimliche) (1919) (cuja melhor tradução para mim,
seria O Insólito)4, Sigmund Freud discute como um acontecimento que quebra o cotidiano
é encarado pelo homem. Pra ilustração de sua tese, Freud utilizou o conto O Homem da
Areia (Der Sandmann) (1817), de E.T.A. Hoffmann, cuja narrativa fala sobre como um
personagem da infância do protagonista volta a atormentá-lo na vida adulta, mesmo que
não haja nada na narrativa que afirme com todas as letras que o personagem exista daquela
forma. Existe, portanto a dúvida quanto aos acontecimentos. Seria real, ou seria apenas
4
Unheimlich é o antônimo de heimlich, termo geralmente traduzido como familiar, doméstico, cotidiano. Nos
leva a outro termo alemão: Heim, pátria. Portanto heimlich seria o conforto de algo já conhecido, já familiar e
habitual, e unheimlich ao contrário, ao desconhecido presente no cotidiano. A dificuldade de tradução do
termo leva a muitos equívocos na leitura do texto de Freud, e consequentes erros de interpretação. O próprio
Freud, no artigo, afirma que no italiano e no português não há termos correlatos para unheimlich.
20
loucura do protagonista? O importante não é necessariamente, se é real ou irreal, mas o que
é o real.
O insólito, portanto, nos dirige no sentido daquilo que não é habitual, mas não
apenas no sentido de existirem, ou não, fantasmas, espíritos e outros seres. Podemos partir
do que seja o insólito em sua raiz etimológica. Segundo Castro:
―Por isso estamos nos debatendo com a questão do in-sólito. Apelemos
para a origem da palavra, que no seu caso corresponde também ao
étimo. Sólitus, em latim (de onde se forma a palavra portuguesa) diz o
costumeiro, o habitual, aqui-lo que fazemos repetida e cansativamente,
aquilo que já se tornou hábito, costume. O prefixo in- indica negação.
Portanto, o insólito é simplesmente o não-costumeiro, o não-habitual. A
palavra costume diz em português o comportamento de alguém a partir
de valores, dos valores e costumes vigentes dentro de um mundo. Por
isso, a força e vigor do insólito está em quebrar os valores dominantes,
em por em questão um certo mundo.‖ (CASTRO, 2008, p.27)
Assim, aquilo que está fora do habitual, mas ao mesmo tempo, dentro do habitual.
A psicanálise traz a tona constantemente o tema do insólito. E define tal termo
como unheimlich, aquilo que não é familiar, e que, dentro do cotidiano, causa temor, ou ―o
efeito de estranheza que atinge as coisas conhecidas e familiares, tornando-as motivo de
ansiedade.‖ (CESAROTTO, 1996, p.113). Um outro termo viria como tradução de
unheimlich: sinistro. Tal termo existe em geral como oposição a destro. A oposição destes
polos, nos leva ao ‗estágio do espelho‘, termo cunhado por Lacan, onde há a cristalização
do eu, no espelho.
Ainda utilizando-se dos termos da psicanálise, na tentativa de ver a si mesmo, o
sujeito busca no espelho a integridade, a busca por um parâmetro externo para ver o seu
interior, mas o resultado dessa busca mostra um outro. ―Numa primeira tentativa de
identificação consigo mesmo, o sujeito se aliena de si quando, mais se esperava integrar.‖
(CESAROTTO, 1996, p.115). Dessa forma, aquilo que seria familiar, a sua imagem, vira o
sinistro, o estranho.
O que apreendemos a partir daí é que a ideia de real e irreal parte do próprio
homem. Como diria Alberto Caeiro, ―O universo não é uma idéia minha. A minha idéia de
universo é que é uma idéia minha‖ (PESSOA, 2004 p.129). Portanto, se temos o insólito
como uma quebra da realidade, essa quebra nos leva a questionar a base de onde partimos,
a nossa ideia de realidade. No caso do espelho na narrativa, o insólito acontece com o
21
desdobramento daquilo que o homem é, ou melhor como a pergunta de quem ele é. A
imagem que se tem no espelho, não é um outro, mas um desdobramento dele, uma
indagação sobre sua existência.
Erasmo não se vê mais no espelho. Mas será que ele realmente não se via? Ao
deixar mulher e filhos em sua pátria, e se entregar radicalmente à uma paixão, ele não seria
aquilo que via e não via no espelho? Aqui há a questão do espelho (speculum), do especular
(speculare), inclusive no sentido de pensar. O espelho é a dinâmica em que Erasmo se vê
refletido, desdobrado. Nesse desdobramento, se manifesta o que ele é e o que ele não é. É,
portanto, um diálogo o que acontece, isto é, uma movimentação dentro (diá) do logos, da
questão.
Assim, o insólito é a fissura na realidade cotidiana, mas devemos entender essa
fissura como um questionamento numa via de mão dupla: não questiona-se apenas o
insólito como acontecimento inaugural, mas também a própria realidade que se tem por
parâmetro. Ou seja, sempre que ocorre um acontecimento inaugural no cotidiano, abre-se
uma série de questionamentos à realidade que se tem por verdade (e não seria essa também
uma característica de toda a literatura?).
A verdade, a partir do termo grego alethea, nos leva justamente a essa ideia: de que o
real, sempre se desvela ao mesmo tempo que se re-vela. Alethea acaba portanto nos levando
de volta ao termo unheimlich, que segundo Scheling é ―tudo aquilo que, devendo permanecer
oculto, acabou se manifestando.‖ (SCHELING apud CESAROTTO, 1996, p.115). Temos
assim um paradoxo: a realidade é notada a partir do que é irreal.
No ensaio do Prof. Manuel Antonio de Castro, intitulado A Realidade e o Insólito, de
2007, observamos essa questão. Neste, o autor coloca a o real e o insólito como um
paradoxo, e como tal, uma questão.
Partindo do que se tem por paradigma, chegamos ao conceito. Mas o paradigma é
uma determinação da ciência do que é o real e o insólito. Isso no leva a outra questão: o
que é o científico? Segundo Castro, ―A ciência é a teoria do real. Como teoria não funda o
mundo assim como não funda a realidade, mas cria paradigmas de delimitação de mundos.
A cada paradigma corresponde um mundo dentro do mundo.‖ (CASTRO, 2008, p. 11).
22
Dizer que a ciência é uma teoria do real é na verdade uma definição científica, mas
sim, filosófica, já que a ciência não se questiona sobre o que ela é.A partir daí podemos
voltar às características do que se costuma rotular de literatura fantástica. A Teoria literária
afirma que a palavra chave para se entender o fantástico é hesitação. ―‘Cheguei quase a
acreditar‘: eis a fórmula que melhor resume o espírito do fantástico. A fé absoluta, como a
incredulidade total, nos levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida‖.
(TODOROV, 2006, p.150).
O personagem que se encontra diante do desconhecido, do insólito, fica sempre
entre uma ou outra explicação para tal acontecimento. Ou o personagem, e por
conseguinte o leitor, se apoia no real, dito pela ciência, onde não existem fantasmas,
monstros ou seres espirituais, ou aceita aquilo como parte da existência. Mas o que seria
este explicar? E mais importante, como explicar algo, com base naquilo do que não se sabe,
nesse caso, o real?
A necessidade de explicar (vinda sobretudo com a ascensão dos ideais positivistas
do século XIX) nos leva à diferença entre explicar e experienciar. Quando tentamos
explicar algo, por exemplo, a perda da sombra, ou a perda do reflexo no espelho, tentamos
na verdade anular a questão, ―resolvê-la numa determinação racional‖ (CASTRO, 2008,
p.14).
Já a experienciação se dá como o acontecer da questão, é portanto ―o acontecer do
real como realização de mundo, sentido e verdade. Erasmo, ao se entregar, perdeu seu
mundo, sentido e verdade, e assim perdeu-se de si mesmo.
Vivemos em um mundo onde só se pode explicar algo a partir da ciência, o insólito,
o fantástico, não pode ser explicado. A única realidade aceita é a científica. Daí que Erasmo
fica desnorteado, após perder o seu reflexo no espelho. A se despedir da família, sai em
busca de seu reflexo (de seu mundo, sentido e verdade). O percurso feito não é descrito,
mas ele parte na companhia de uma pessoa que também experienciou o insólito, Peter
Schlehmil, um homem que não possuía sua própria sombra5.
5
Aqui, o cruzamento com outra obra, A Maravilhosa História de Peter Schlemihl(1814), de AdelbertvonChamisso.
Nela, o personagem vende sua sombra em troca de uma bolsa de moedas de ouro, cujo conteúdo era infinito.
Em posse da bolsa Peter a sofrer com a discriminação, já que alguém sem sombra só poderia ser um
resultado de forças demoníacas.
23
Podemos apreender daí, que o homem sempre vai estar diante de acontecimento
inaugurais. A arte é um acontecimento insólito, no sentido de que traz tona questões,
indaga a nós mesmos quem somos. Ao ler o conto de Hoffmann, não vamos ler o que
aconteceu quando Erasmo saiu em busca de seu reflexo, e nem é necessário. O fato de sair
nessa busca, nos leva perguntar a nós mesmos: O que é aquilo que vejo (e não vejo)
quando olho meu reflexo no espelho?como buscamos aquilo que somos (e não somos), o
nosso próprio?
É diante desse paradoxo que o homem se encontra. A ciência se propôs a explicar o
real, mas não consegue delimita-la. Dai a nossa permanente busca pelo o que não
compreendemos, pelo o que nos excede. Enquanto questões, elas jamais serão explicadas,
mas sim nos levarão a mais questões.
REFERÊNCIAS
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Alea: Estudos Neolatinos, junho/dezembro vol.5, número 002. Rio de Janeiro, 2003.
CASTRO, Antonio Manuel de. A Realidade e o Insólito. In: GARCIA, Flávio (org.).
Narrativas do Insólito: passagens e paragens. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2008. pp.8 – 31
CESAROTTO, Oscar. No olho do outro – “O Homem da Areia” segundo Hoffmann, Freud e
Gaiman. São Paulo: Iluminuras, 1996.
COSTA, Gisleyne Cássia Portela. Romantismo: Iluminismo, Nacionalismo e Sentimento. In:
Revista
Ao
Pé
da
Letra.
Vol.
6.2.
Disponível
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http://www.revistaaopedaletra.net/volume6-home.html>.
FURTADO, Filipe. A construção do Fantástico na Narrativa. Lisboa: Horizonte Universitário,
1980
HOFFMANN, E.T.A. Nachtstücke – Text und Kommentar. Frankfurt am Main: Deutscher
Klassik Verlag, 2009;
_____________.
Die
Geschichte
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verlorenen
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Disponível
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_____________. O Pequeno Zacarias, chamado Cinabre (Prefácio). Trad. Marion Fleischer. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
_____________. Contos Fantásticos – O Vaso de Ouro, Os Autômatos e O Homem da Areia.
Trad. Claudia Cavalcanti. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
24
MANSUETO KOHNEN, O.F.M. História da Literatura Germânica. Salvador: Editora
Mensageiro da Fé, 1962.
PESSANHA, Fábio Santana.O insólito na Dimensão do Poético: o movimento de um questionar. In:
GARCIA, Flávio (org.). Narrativas do Insólito: passagens e paragens. Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2008. pp 32-48.
PESSOA, Fernando. Caeiro. São Paulo, Companhia das Letras,2004.
RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
ROSENFELD, Anatol. História da Literatura e do Teatro Alemães. São Paulo: Perspectiva:
Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Universidade Estadual de
Campinas, 1993.
__________Letras germânicas. São Paulo: Perspectiva / Edusp; Campinas: Edunicamp,
1993.
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantik. Eine deutsche Affäre. München: Carl Hanser Verlag, 2007.
SCOTT, Walter. Sobre Hoffmann e as Composições Fantásticas. In: HOFFMANN, E.T.A. O
Pequeno Zacarias, chamado Cinabre (Prefácio). Trad. Marion Fleischer. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
TODOROV, Tzvetan. Introdução a Literatura Fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. 3
ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
__________ As Estruturas Narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 4 ed. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
25
DAS PÁGINAS DE UM JORNAL PARA AS PÁGINAS DE UM
LIVRO: MARQUES DE CARVALHO REESCREVE UM CONTO
Alan Victor Flor da Silva6
Profa. Dra. Germana Maria Araújo Sales (Orientadora)7
Resumo: O político, diplomata, jornalista e escritor paraense João Marques de Carvalho
nasceu em Belém, capital do estado do Pará, em 6 de novembro de 1866, e faleceu em
Nice, no sul da França, em 11 de abril de 1900, aos 43 anos. Além do romance naturalista
Hortência (1888), sua obra mais conhecida, publicou os livros Contos Paraenses (1889), Entre as
Ninfeias (1896) e Contos do Norte (1900). Deixou grande parte de sua produção ficcional,
tanto em prosa quanto em verso, não apenas em jornais que fizeram parte da constituição
histórica da imprensa jornalística paraense, como Diário de Belém, A Província do Pará e A
República, como também em periódicos de pequeno porte e vida efêmera, como Comércio do
Pará e A Arena. Entre seus diversos textos ficcionais dispersos em folhas periódicas,
Marques de Carvalho publicou na coluna Folhetim do jornal A Província do Pará o conto
―Que bom marido!‖ no dia 25 de dezembro de 1885 e, posteriormente, relançou-o no livro
Contos Paraenses, divulgado em 1889. Ao cotejarmos tanto a versão em jornal quanto em
livro, percebemos que esse conto foi reescrito, pois sofreu algumas alterações, como
inserções, supressões e substituições de palavras, expressões, frases e períodos, além de
reconstruções de passagens e parágrafos. Objetivamos, portanto, com este trabalho,
analisar a reescritura de um conto publicado primeiramente nas páginas de um jornal e
depois nas páginas de um livro.
Palavras-chave: Marques de Carvalho; Reescritura; Conto.
Résumé: João Marques de Carvalho a été politicien, diplomate, journaliste et écrivan. Il est
né à Belém, capitale du état du Pará, le 6 novembre 1866, et il est mort à Nice, au sud de la
France, le 11 avril 1900, à l‘âge de 43 ans. Au-delà de l'œuvre naturaliste Hortência (1888),
son romance plus connu, il a publié les livres Contos Paraenses (1889), Entre as Ninfeias (1896)
et Contos do Norte (1900). Il a laissé beaucoup de sa production fictionelle, tant en vers qu‘en
prose, en journaux qui ont fait partie de la constituition historique de la presse au Pará,
comme Diário de Belém, A Província do Pará et A República, et en petits périodiques de vie
éphémère, comme Comércio do Pará et A Arena. Parmi ses divers textes fictionnels épars en
feuilles périodiques, Marques de Carvalho a publié dans la colonne Feuilleton du jornal A
Província do Pará le conte « Que bom marido! » le 25 décembre 1885 et après il l‘a relancé
dans le livre Contos Paraenses, diffusé en 1889. Quando nous comparons les deux versions,
tant en jornal qu‘en livre, nous apercevons que ce conte a été réécrit, parce que il a souffert
certains changements, comme insertions, suppressions et substitutions des mots, des
expressions, des phrases et des périodes. Ce travail, ainsi, a pour objectif d‘analyser la
réécriture d‘un conte publié avant dans les page d‘un jornal et après dans les pages d‘un
livre.
Mestrando em Estudos Literários da Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CNPq. E-mail:
[email protected]
7 Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected]
6
26
Mots-clés: Marques de Carvalho; Réécriture; Conte.
1. Para início de conversa...
O político, diplomata, jornalista e escritor paraense João Marques de Carvalho
nasceu em Belém, no estado do Pará, no dia 6 de novembro de 1866, e faleceu em Nice, no
sul da França, no dia 11 de abril de 1910, aos 43 anos.
Preocupado com o lugar da produção literária paraense em nível nacional, Marques
de Carvalho idealizou e ajudou a fundar em 1900, conjuntamente com outros escritores
locais, como Paulino de Brito e seu irmão Antônio Marques de Carvalho, a Academia
Paraense de Letras.
Publicou, em 1888, a obra naturalista Hortência, cujo enredo apresenta como
temática principal um caso de incesto. Segundo Paulo Maués Corrêa (2007), esse romance é
considerado o primeiro a representar a paisagem urbana da cidade de Belém. Além de
aventurar-se pelo gênero romanesco, Marques de Carvalho publicou alguns livros de
contos, como Contos Paraenses (1889), Entre Ninfeias (1896) e Contos do Norte (1900).
Considerando-se sua carreira jornalística, contribuiu para diversos jornais que
circularam pela capital paraense no século XIX, como o Diário de Belém, A Província do Pará e
A República. Além disso, fundou algumas folhas periódicas de pequeno porte e vida
efêmera, como Comércio do Pará e A Arena.
Nesses periódicos, aliou sua carreira de jornalista à de escritor e deixou grande parte
de sua produção ficcional, como poemas, contos e romances. Na coluna Folhetim do jornal
A Província do Pará, por exemplo, publicou apenas no ano de 1885 quatro textos em prosa
de ficção: o romance ―A leviana: história de um coração‖, além dos contos ―A Cereja‖, ―A
comédia do amor‖ e ―Que bom marido!...‖. No rodapé do jornal A República, divulgou em
1887 o romance naturalista ―O Pajé‖.
Na coluna Parte Literária do jornal Diário de Belém, ocupando quase totalmente a
primeira página, o escritor lançou em 1889 o conto ―O preço das pazes‖. No periódico
literário A Arena, destinado apenas à publicação de textos assinados por autores paraenses,
publicou em 1887 os contos ―Ao soprar da vela‖, ―História incongruente‖ e ―A medalha
do soldado‖.
Segundo José Eustáquio de Azevedo (1990), o conto ―Que bom marido!‖ apresenta
uma trajetória de publicação interessante. Marques de Carvalho iniciou sua carreira
jornalística, em 1884, no jornal Diário de Belém. Em dezembro de 1885, rompeu seus laços
27
com esse periódico, que se recusou a publicar o conto em questão, declarando-o imoral e
impublicável. No dia 25 de dezembro de 1885, o escritor paraense o publicou na coluna
Folhetim do jornal A Província do Pará e o reproduziu posteriormente, em 1889, no livro
Contos Paraenses.
A trajetória de publicação do conto ―Que bom marido!‖, narrada por Eustáquio de
Azevedo, no entanto, parece não ter muito fundamento por duas razões. Primeiramente,
porque o conto não apresenta cenas licenciosas nem censuráveis para ser acusado de
imoralidade; em segundo lugar, porque Marques de Carvalho, após o suposto conflito,
continuou a contribuir para o jornal Diário de Belém com poemas, artigos jornalísticos e
tradução de textos.
Independente de o conto ter sido recusado ou não pelo Diário de Belém, o fato é que,
ao transpor o conto ―Que bom marido!‖ das páginas do jornal A Província do Pará para as
páginas do livro Contos Paraenses, percebemos que Marques de Carvalho fez várias alterações
no corpo do texto. Considerando-se, portanto, que essas modificações não foram gratuitas
nem aleatórias, objetivamos, com este trabalho, analisá-las para descobrirmos quais foram
as intenções que o levaram a fazê-las.
2. A instabilidade dos textos
Dificilmente escrevemos um texto sem que posteriormente façamos várias e
exaustivas modificações. Para chegarmos ao texto que julgamos ser o ideal, trocamos
frases, períodos e até parágrafos de lugar, substituímos uma palavra por outra mais
adequada, suprimimos fragmentos que julgamos ser repetitivos ou dispensáveis,
acrescentamos informações que faltavam, corrigimos problemas de concordância e de
regência que passaram despercebidos e reconstruímos frases. Em resumo, perdemos alguns
minutos elegendo as melhores palavras e algumas horas escrevendo e apagando até
conseguirmos o texto perfeito ou quase perfeito, uma vez que quase nunca estamos
totalmente satisfeitos com os textos que produzimos.
Algumas pessoas, no entanto, acreditam que os escritores não se enquadram nesse
grupo, pois eles possuem o dom da escrita e, portanto, escrevem textos impecáveis, de
grande excelência, sem nenhuma dificuldade, iniciando-o com a letra maiúscula e
concluindo-o com o ponto final.
Essa ideia, porém, não passa de um mito, pois, depois da escrita, o texto muitas
vezes é reescrito, às vezes até mesmo após a publicação. Roger Chartier (2002), por
28
exemplo, relata a história editorial do romance O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha,
de Miguel de Cervantes Saavedra.
No capítulo XXV da primeira edição do romance, lançada em 1605, o burro do
personagem Sancho Pança é roubado. Quatro capítulos depois, Sancho aparece
caminhando a pé, sem o burro, enquanto Dom Quixote aparece montado em seu cavalo,
Rocinante. Contudo, sem nenhuma explicação, o burro reaparece no capítulo XLII, como
se jamais tivesse sido furtado. Ao perceber o equívoco, Miguel de Cervantes, na segunda
edição do romance, publicada apenas alguns meses mais tarde, inseriu duas breves histórias
para justificar a reaparição imprevista do burro logo após este ter sido roubado. A primeira
história foi inserida no capítulo XXIII e relata como Guinés de Pasamonte roubou o burro
enquanto Sancho dormia. A segunda, por sua vez, foi inserida no capítulo XXX e narra
como o fiel escudeiro reconhece o ladrão e encontra novamente seu animal. Apesar das
modificações que foram feitas, em razão de uma frase que não foi corrigida no início do
capítulo XXV, a incoerência ainda persistiu e só foi finalmente corrigida na edição lançada
em 1607.
A história editorial do romance de Cervantes serve para ilustrar o que Roger
Chartier chama de ―instabilidade dos textos‖. Segundo o autor,
As tribulações do roubado, mas sempre presente burro traz dupla lição.
Em primeiro lugar, elas nos introduzem na instabilidade dos textos. Suas
variantes, estranhezas ou extravagâncias resultam da pluralidade das
decisões ou dos erros crassos espalhados pelos diferentes estágios de
suas publicações. Os descuidos do autor, os erros dos tipógrafos, as
inadvertências dos revisores, tudo contribuiu para a construção dos
sucessivos textos do ―mesmo‖ trabalho. (CHARTIER, 2002, p. 40)
Com o surgimento da imprensa por Gutenberg em meados do século XV,
acreditou-se que todas as edições de um mesmo texto, ao serem confrontadas, não
apresentariam mais variantes, razão pela qual se passou a acreditar na suposta estabilidade
dos textos. Entretanto, assim como podemos perceber no exemplo do romance de Miguel
de Cervantes, é possível que haja alterações na materialidade do texto ao cotejarmos uma
edição com a outra, em virtude dos diversos fatores já apontados por Chartier, como os
descuidos do autor, os erros tipográficos e as inadvertências dos revisores.
A ideia de que um determinado texto, escrito por um determinado autor, apresenta
variantes levanta, segundo Chartier, algumas discussões. Diante das diferentes formas
sucessivas em que um trabalho foi publicado, é necessário recuperar o texto tal qual o autor
o escreveu, compôs ou idealizou; ou é indispensável que cada encarnação de uma mesma
29
obra seja considerada distinta e deva ser respeitada e compreendida? Roger Chartier é
adepto da segunda opinião, pois, para o historiador do livro, nada é mais ilusório e abstrato
do que a ideia de que há um texto original, como podemos perceber no excerto a seguir:
O conceito de um ideal texto ―original‖, visto como uma abstrata
entidade linguística presente atrás das diferentes instâncias de um
trabalho, é considerado uma completa ilusão. Assim, editar um trabalho
não deve significar a recuperação desse texto inexistente, mas sim tornar
explícito tanto a preferência dada a uma das diversas ―formas
registradas‖ do trabalho quanto as escolhas concernentes à
―materialidade do texto‖ – isto é, mostrar suas divisões, sua ortografia,
sua pontuação, seu layout etc. (CHARTIER, 2002, p. 41)
A instabilidade, portanto, é uma das principais características dos textos. Embora
seja uma prática antiga, é muito comum observarmos atualmente nas capas dos livros as
seguintes informações sobre as edições mais recentes: ―revisado‖, ―ampliado‖,
―atualizado‖, ―adaptado‖, entre outros.
Essas alterações textuais de uma edição para outra podem ocorrer por múltiplas
razões: seja por negligência dos autores, dos tipógrafos ou dos revisores, que precisarão
corrigir as incoerências ou os erros ortográficos, gramaticais e textuais nas edições
posteriores; seja por um desejo particular do próprio autor, que sente a necessidade de
reescrever o próprio texto de acordo com os novos paradigmas, com as novas convenções
ou com sua nova forma de perceber e compreender o mundo que o cerca; seja por
insistência dos leitores, que muitas vezes se sentem coautores das obras que leem; seja por
questões políticas, como no caso do novo acordo ortográfico entre países de língua
portuguesa, que entrou em vigor a partir 1º de janeiro de 2009.
As diversas formas consecutivas em que um trabalho é publicado, até mesmo as
mais estranhas e as mais inconsistentes, conforme conclui Roger Chartier, devem ser
compreendidas, respeitas e possivelmente editadas de modo a transmitir o texto em uma
das múltiplas modalidades de sua escrita e de sua leitura, pois, assim como o universo dos
textos influenciam na percepção e na concepção do mundo, questões históricas, políticas,
sociais, ideológicas e linguísticas influenciam tanto na escrita quanto na reescrita dos textos,
de tal modo que, na maioria das vezes, essas transformações na materialidade textual não
são gratuitas nem aleatórias.
3. Reescrevendo o conto...
30
Como já foi aludido anteriormente, Marques de Carvalho publicou, no dia 25 de
dezembro de 1885, em um único fascículo, o conto ―Que bom marido!‖ na coluna Folhetim
do jornal A Província do Pará e depois o reproduziu no livro Contos Paraenses, em 1889, com
algumas modificações.
O conto apresenta como temática principal um caso de adultério. A personagem
Elvira, uma linda moça de apenas dezoito anos, é casada com Bonifácio, um velho
quarentão, amanuense de secretaria e obeso, e mantém um romance com o jovem e
galanteador Jacinto apenas por meio da troca de cartas – uma verdadeira relação amorosa
epistolar.
Na primeira versão da narrativa, encontramos a seguinte epígrafe latina: ―Non
concupisces quicquam proximi tui‖. Esse elemento paratextual traz um dos mandamentos
da lei de Deus: ―Não cobiçarás coisa alguma do teu próximo‖. Na versão para o livro,
Marques de Carvalho substitui a epígrafe em latim por outra em português: ―Não desejarás
a mulher do teu próximo‖.
Percebemos nas duas versões da narrativa que as epígrafes apresentam uma função
moralizante, pois reforçam a ideia de que o adultério não é uma ofensa apenas ao cônjuge,
mas também uma desonra a Deus, uma vez que o adúltero ou a adúltera coloca a vontade
humana acima da vontade divina. Notamos, porém, que a epígrafe da primeira versão
possui um sentido mais abrangente, referindo-se ao fato de que o ser humano não pode
cobiçar nada que venha do próximo, incluindo nesse conjunto o marido ou a esposa alheia.
A epígrafe da segunda variante da narrativa, por sua vez, é mais específica, pois se restringe
apenas à cobiça da mulher de outro homem.
É possível inferir, portanto, que Marques de Carvalho tenha substituído a primeira
epígrafe por outra porque a segunda estava mais de acordo com a temática central do
conto, uma vez que Jacinto era a razão pela qual Elvira estava traindo o próprio marido.
Além disso, é provável que, embora talvez não tivesse tido essa consciência ao publicar a
primeira versão da narrativa em folhetim, o autor paraense, ao transpor o conto do jornal
para o livro, tenha preferido substituir a epígrafe em português pela epígrafe em latim por
acreditar que muitos de seus presumíveis leitores não teriam condição suficiente para
compreendê-la, justamente por falta de conhecimento acerca da língua latina.
Além de substituir a epígrafe, Marques de Carvalho faz inúmeras alterações no
corpo do texto, desde a mudança de uma palavra por outra até a reconstrução total ou a
inserção de um período. Ao cotejarmos as duas versões, percebemos que as modificações
31
foram feitas por meio de quatro procedimentos: substituição, acréscimo, supressão e
reconstrução.
Entre todas as alterações feitas na narrativa, há o acréscimo de um período que
modifica significativamente a estrutura do conto, como ilustra a citação a seguir.
[Versão do jornal] D'então em deante, apezar d'estes receios,
continuaram as cartinhas a passar dos bolsos de Jacintho para o seio
d'Elvira, e do seio d'esta para os bolsos d'aquelle.
Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões
além d'aquellas innocentes missivas platonicas. (CARVALHO, A
Província do Pará, 25/12/1885, p. 2)
***
[Versão do livro] D'então em deante, apezar d'esses receios continuaram
as cartinhas a passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do
seio d'esta para os bolsos d'aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira
entrou a confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as
reminiscencias de muitas leituras romanticas déram causa á correspondencia
criminosa.
Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões
além d'aquellas innocentes missivas platônicas. (CARVALHO, 1889, p.
51, grifos nossos)
Assim, ao confrontar as duas versões, podemos perceber que Marques de Carvalho
acrescenta uma informação que sugere que o adultério cometido pela esposa de Bonifácio
– a troca de cartas de amor entre Elvira e Jacinto – foi influenciado pela leitura das obras
românticas com as quais a jovem esposa tinha contato.
Sobretudo nos séculos XVIII e XIX, atribuir a má índole das mulheres à leitura de
romances era uma prática muito comum em obras do Realismo/Naturalismo. As
discussões em relação aos efeitos que essa espécie de leitura causava em seus leitores eram
muito acirradas e geravam diversos embates: de um lado, havia os detratores, que não
perdoavam o fato de que um gênero tão sem prestígio ganhasse tantos adeptos; de outro,
havia os defensores, que logo arranjavam um contra-argumento para que o romance,
associado sempre ao entretenimento, ao deleite e ao ócio, recebesse a mesma importância
dos gêneros da Antiguidade firmados pela tradição clássica, como a tragédia e a epopeia
(ABREU, 2003). É por essa razão que não é à toa que toda a discussão em torno do
romance tenha se tornado objeto de debate dentro do próprio universo romanesco.
Na obra Madame Bovary, de Gustave Flaubert, por exemplo, a personagem que dá
título ao romance – Emma Bovary – sonhava com um marido que lhe proporcionasse um
amor idealizado igual ao qual ela havia lido nos romances. No entanto, ao se casar com
Charles Bovary, um homem tranquilo, pacífico e muito dócil, seu sonho não se tornou
realidade, uma vez que o marido não se comparava aos heróis das histórias que Emma
32
tanto lera, nem lhe despertava uma paixão tão avassaladora e intensa como a que
imaginava.
Antes de casar, ela julgara ter amor; mas como a felicidade que deveria
ter resultado daquele amor não viera, ela deveria ter-se enganado,
pensava. E Emma procurava saber o que se entendia exatamente, na
vida, pelas palavras felicidade, amor, embriaguês, que lhe haviam
parecido tão belas nos livros. (FLAUBERT, 2010, p. 51)
Do mesmo modo, no romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós, a personagem
Luísa era casada com Jorge, levava uma vida muito confortável, pacata e dedicada ao ócio,
passava a maior parte dos dias a ler romances. Porém, assim como Emma Bovary, Luísa
queria viver as mesmas aventuras que as heroínas dos romances que tivera a chance de ler e
vira essa oportunidade em seu primo Basílio. O desejo por viver essas sensações tão
intensas era tão forte que Luísa sentia-se mais atraída pela situação proibida em si do que
pelo próprio Basílio.
Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. E estava muito
nervosa: não dominar, desde pela manhã, um medo indefinido que lhe
fizera pôr um véu muito espesso, e bater o coração ao encontrar
Sebastião. Mas ao mesmo uma curiosidade intensa, múltipla, impelia-a,
com um estremecimentozinho de prazer. — Ia, enfim, ter ela própria
aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos! Era uma
forma nova do amor que ia experimentar, sensações excepcionais! Havia
tudo — a casinha misteriosa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações do
perigo! Porque o aparato impressionava-a mais que o sentimento; e a
casa em si interessava-a, atraía-a mais que Basílio! (QUEIRÓS, 1979, p.
135-136)
Assim como ocorreu com Emma Bovary e Luísa, personagens muito famosas de
romances realistas/naturalistas, Elvira cometeu uma espécie de adultério, pois foi
supostamente influenciada pela leitura perigosa dos romances, que mostravam um universo
totalmente diferente da realidade na qual estava inserida.
Elvira era uma mulher muito formosa e tinha apenas dezoito anos e vivia com o
marido uma rotina infringível. Além disso, Bonifácio apresentava uma fisionomia grotesca,
tinha uma idade já um pouco avançada e não dava uma atenção especial à esposa, ao deixála de lado todas as tardes para jogar cartas com os amigos. Jacinto, por sua vez,
demonstrava ser a representação desse homem ideal, condizente com o perfil dos heróis
das leituras românticas, em razão de sua jovialidade e de seu zelo por Elvira.
33
Defender, portanto, dentro do próprio universo romanesco que as mulheres
praticavam o adultério em razão da leitura de romances românticos era uma forma que os
escritores realistas/naturalistas encontraram para criticar as concepções do Romantismo,
estética literária à qual se opunham veementemente. Não é sem razão, portanto, que os
personagens estereotipicamente românticos, em obras realistas/naturalistas, sempre são
apagados e ofuscados pelos personagens que estão mais de acordo com os princípios
desses dois movimentos literários pós- e anti- românticos. Elvira, por exemplo, é um
exemplo de personagem que sofre em razão de sua própria personalidade romântica.
Além de trazer para o mundo ficcional da narrativa a discussão a respeito da leitura
de romances, percebemos que Marques de Carvalho, ao reescrever o conto, desenvolveu o
caráter psicológico de Elvira. O desenvolvimento da psicologia das personagens é uma
característica das obras realistas, pois os escritores que seguiam esse modelo estético
preocupavam-se com a análise do caráter humano, alcançada por meio da investigação
psicológica, social, moral e ideológica.
Para atribuir particularidade psicológica às personagens de qualquer narrativa, é
necessário que a construção da personagem seja impregnada de questões ligadas aos
conflitos internos e externos, aos questionamentos sobre as próprias atitudes, sobre seu
comportamento e sobre a própria existência e às incertezas em relação ao passado, ao
presente e ao futuro.
Assim, bem à maneira das heroínas das obras realistas, Elvira, por meio da voz do
narrador, encontra-se no meio de um grande dilema: preservar seu casamento junto ao
marido Bonifácio e, consequentemente, sua estabilidade financeira e seu lar, ou entregar-se
a uma perigosa aventura de amor, paixão e desejo ao lado do amante Jacinto, como ilustra a
citação a seguir:
[versão do jornal] Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era
pontual áquella entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que
tambem não deixava de ir para a janella assim que lá na varanda, o sr.
Bonifacio, o taberneiro, e o vizinho começavam no passo e no sólo.
Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. (CARVALHO, A
Província do Pará, 25/12/1885, p. 2)
***
[versão do livro] Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era
pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que
tambem não deixava de ir para a janella assim que, lá na varanda, o sr.
Bonifacio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bólo. É que a
interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não podía se
contentar com os sós affagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, nenhum
passo mau desejava dar. Entregava-se áquillo a que chamava “uma distracção”, mais
para satisfazer uma vaga curiosidade do que para commetter um crime.
34
Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. (CARVALHO,
1889, p. 48, grifos nossos)
Por meio da voz do narrador, podemos perceber que Elvira, em meio aos próprios
conflitos internos, procura motivos para atenuar a culpa que sente por estar traindo o
marido e elenca argumentos para justificar sua má conduta. Primeiramente, defende que ela
é uma mulher de espírito ardente e, portanto, não pode se contentar com os afagos
demorados e frios de Bonifácio. Em segundo lugar, afirma que entregar-se a Jacinto não
passa de uma pequena distração, mais para satisfazer uma curiosidade do que para cometer
um delito.
Ao tentar justificar seu comportamento, notamos que Elvira apresenta certo grau
de inteligência e racionalidade, pois astuciosamente procura transferir a culpa pelo adultério
que recai sobre si para o marido, com o intuito de que sua falta seja amenizada ou
resignada. Na versão folhetinesca da narrativa, percebemos que havia uma ausência total de
particularidade psicológica. Porém, na versão em livro, embora o conto tenha sido escrito
em terceira pessoa, notamos que a psicologia da personagem feminina central ganhou uma
dimensão que anteriormente não existia.
Compreendemos, portanto, que as alterações pelas quais o conto ―Que bom
marido!‖ passou não foram aleatórias nem gratuitas. Marques de Carvalho objetivava
inserir a narrativa dentro da estética realista/naturalista, ao atribuir particularidade
psicológica à personagem Elvira e ao transfigurar para o universo ficcional, assim como
fizeram Gustave Flaubert e Eça de Queirós, a discussão sobre a leitura feminina de
romances.
Marques de Carvalho foi um escritor que defendeu e idealizou com veemência o
Naturalismo na Amazônia, retrucou severamente as críticas desfavoráveis que foram
destinadas a esse movimento estético-literário, censurou os escritores que ainda se
mantinham vinculados à escola romântica, rebateu de antemão os presumíveis julgamentos
que poderia receber de seus leitores nos prefácios de seus romances, de tal modo que sua
vinculação ao Naturalismo, portanto, não pode ser desprezada. No prólogo do romance
―O pajé‖, publicado no rodapé da página do jornal A República, por exemplo, percebemos
que o autor paraense se enaltece ao atribuir a si mesmo o título de precursor do
Naturalismo no estado do Pará.
É O Pajé o primeiro trabalho de seu gênero escrito por um paraense:
cabe-me essa glória, tenho a máxima honra em reclamá-la. Desejei fazer
um romance que fosse simplesmente um estudo físico-psicológico desse
35
personagem astucioso e hipócrita que é o terror dos espíritos fanáticos
do povo de minha província; para isso, alienei-me da velha escola
romântica, desprezei-lhe os abusos e prolixidades, para deixar-me levar
pela grande orientação literária da nossa época. (CARVALHO, A
República, 18 jan. 1887, p. 3)
Nesse sentido, não podemos ignorar a filiação de Marques de Carvalho ao
movimento realista/naturalista. Inferimos, portanto, que o conto ―Que bom marido!‖ foi
reescrito pelo autor paraense para aproximar essa narrativa da mais nova estética literária
que entrava em voga no Brasil nas últimas décadas do século XIX, pois Marques de
Carvalho prova, em artigos jornalísticos da imprensa periódica de Belém no final do século
XIX, que leu Émile Zola, Gustave Flaubert, Guy de Maupassant, Eça de Queirós, Franklin
Távora, Edmond e Jules de Goncourt, entre outros. O escritor paraense, por conseguinte,
demonstra ser um conhecedor dos princípios realistas/naturalistas e um intelectual atento à
produção literária não apenas na Amazônia, como também no restante do Brasil e na
Europa.
REFERÊNCIAS:
ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras; Associação de Leitura
do Brasil (ALB); São Paulo: FAPESP, 2003.
AZEVEDO, José Eustáquio de. Antologia Amazônica. Belém: Livraria Carioca Editora,
1918.
______. Literatura Paraense. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves; Secretaria
de Estado da Cultura, 1990.
CARVALHO, João Marques de. Que bom marido! In: ______. Contos paraenses. Belém:
Pinto Barbosa & C. Editores, 1889.
______. Que bom marido!... A Província do Pará, Belém, 25 dez. 1885, p. 2.
______. Da crítica literária. A Arena, Belém, 9 jun. 1887, p. 7-8.
______. O pajé. A Província do Pará, Belém, 18 jan. 1887, p. 3.
CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo:
UNESP, 2002.
CORRÊA, Paulo Maués. Leitura mítico-simbólica d‘O banho de tapuia, de Marques de
Carvalho. In: CORRÊA, Paulo Maués; FERNANDES, José Guilherme dos Santos (Orgs.).
Estudos de literatura da Amazônia: Prosadores paraenses. Belém: Paka-Taku/EDUFPA, 2007.
p. 35-53.
QUEIRÓS, Eça de. O Primo Basílio. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Abril,
2010.
36
NARRATIVAS ORAIS DA ILHA DE MOSQUEIRO: MEMÓRIA E
SIGNIFICADO
Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues8
Orientadora: Profa. Dra. Ivânia dos Santos Neves9
Resumo:Esteestudoapresenta a análise de narrativas orais de moradores da ilha do
Mosqueiro, distrito e balneário de Belém, capital do Pará, transcritas e analisadas com o
propósito de demonstrar − principalmente no caso da quase total ausência de
documentação – que a oralidade, a História oral, pode ser relevante fonte de geração de
dados para a preservação, estímulo e valorização da memória espácio-temporal e humana
da ilha, permitindo assim ao pesquisador a apreensão de fatos e informações fidedignos a
respeito do funcionamento da estrutura sócio-histórico-cultural da comunidade local. Para
isso, buscou-se fundamentação em alguns eminentes autores, cujas contribuições
forneceram um norte a esta pesquisa, a partir dos campos de atuação de cada um deles edas
linhas teóricas que adotaram, enriquecendo este trabalho, conferindo-lhe caráter
interdisciplinar. Tais autores são, entre outros, Vladímir Propp, Claude Lévi-Strauss,
Bronislaw Malinowski, Paul Tompson e ClifordGeertz, que, de um modo ou de outro,
desenvolveram relevantes pesquisas sobre a oralidade, valorizando, com suas investigações,
saberes que eram antes negligenciados pela intelligentsia, até então extremamente
escriptocentrista. Além disso, esta pesquisa busca não somente demonstrar que as
narrativas orais da ilha de Mosqueiro podem ser consideradas ―documento vivo‖, mas que
podem também ajudar no resgate do imaginário popular e na preservação da memória
coletiva, incentivando, com isso, a sabedoria popular, principalmente a dos idosos,
geralmente vítimas de preconceito, que é alimentado pela mesma sociedade que lhes
deveria dar todo o respeito que merecem.
Palavras-chave:Narrativas orais; Ilha do Mosqueiro; Memória; Significado.
ORAL NARRATIVES OF THE ILHA DE MOSQUEIRO: MEMORY AND
SIGNIFICATION
Abstract:This study presents analysis of oral narratives of resident men of Ilha do
Mosqueiro, transcribed and analysedwith the objective of demonstrate that − principally in
almost total non-existence of documentation − the orallity, oral History, it can beimportant
data fountain to preserve and to give value to spatial ,temporal and human memory of the
island, permitting thus to the searcher the apprehension of the credible facts and
informationsregarding the functioning of the culture, history and social structure of the
community of the Ilha do Mosqueiro. To this, we are basing in some eminent authors,
whose contributions furnished a north to this search, conferringto it interdisciplinary
character. This authors are, among others, VladímirPropp, Claude Lévi-Strauss, Bronislaw
8
9
Mestre em Estudos Literários (UFPA 2009), SEDUC/PA, SEMEC/Belém. E-mail: [email protected]
Doutora em Linguística pela UNICAMP (2009), docente da UNAMA. E-mail:[email protected]
37
Malinowski, Paul Tompson e Cliford Geertz that, of a way or of other, developed relevant
search about orallity, given value, with their investigations, acquirements after despised for
the intelligentsia, until then very scriptocentrist. On the other side, this search to looks for
not only to demonstrate then oral narratives of the ilha do Mosqueiro can be considered
―living document‖ but also they can to help in the rescue of the popular imaginary and in
the preservation of the collective memory, stimulating, with this, popular wisdom,
principally that of the old persons, generally victims of prejudice, who is sustained for the
same society that for them would have all respect that they earn.
Keywords: Oral narratives; Ilha do Mosqueiro; Memory; Signification.
1
Introdução
Em Mosqueiro, muitos pessoas lembram ainda com vivacidade dos tempos de
infância e das histórias que ouviam dos pais, dos parentes e dos vizinhos, à noite, na frente
de suas casas. Há uma enorme diversidade temática nessas narrativas orais na ilha, sejam
elas sobrenaturais ou não. Partindo dessa constatação, nasceu esta pesquisa, denominada de
Narrativas orais da Ilha deMosqueiro: memória e significado. Ainda resistindo na
memória dos mais idosos moradores da Ilha, tais histórias já começam a cair no
esquecimento das gerações mais novas. Felizmente, embora de modo esparso, há seus
registros gráficos, como é o caso dos livros Mosqueiro, ilhas e vilas (1978), de Augusto Meira
Filho; Ilha, capital Vila (1972), de Cândido Marinho Rocha; Mosqueiro:lendas e mistérios (2005),
de Claudionor dos Santos Wanzeller, entre outros.
Frequentemente veiculadas de forma oral, essas narrativas − que coletamos por
meio de gravações feitas em entrevistas e depoimentos informais − contam
histórias/estórias, ainda vívidas na memória de muitos mosqueirenses, e vêm de tempos
idos de décadas atrás, da época do transporte fluvial, do bonde puxado a burro, da
implantação da Fábrica Bitar (de borracha), do trenzinho ―Pata Choca‖ (como o
denominava carinhosa e ironicamente o povo), das lamparinas e dos candeeiros, ou mesmo
ainda um pouco mais próximo da atualidade, do tempo da usina de força, quando a energia
elétrica só era fornecida até às 23:00h; ou quando, após a construção da ponte sobre o Furo
das Marinhas (inaugurada em 12/01/1976), a energia − ―a luz‖ −, vez por outra, faltava.
Nessa época, anterior à construção de Tucuruí, com os frequentes blackouts, as famílias, e
pessoas vizinhas, reuniam-se em frente de suas casas, à espera de voltar a luz. E, para
passar o tempo, contavam casos de visagens, assombrações, aparições, fantasmas, matintas,
casos de metamorfoses, procissões de almas-penadas, etc.
38
Os mais velhos contavam com extrema vivacidade e imenso prazer esses ―fatos‖,
que causavam nos mais novos um misto de curiosidade e medo, satisfação e tensão.
Contudo, as gerações mais novas, atualmente, quase que desconhecem essas narrativas
(sobrenaturais ou não; anedotas do cotidiano da Ilha, relacionadas ao trabalho doméstico, à
pescaria, à caça − antes de ser proibida −, ao futebol, ao serviço público, aos costumes
antigos e já desaparecidos, por exemplo), que poderiam correr o risco de se perder por não
serem mais veiculadas. Porém, essa riqueza cultural pode e deve ser preservada, não
obstante os diversos fatores que concorrem negativamente para tal.
1.1
Estudiosos& oralidade
Para atingir com eficiência o objetivo de analisar narrativas orais, com o intuito de
detectar nelas toda uma riqueza de traços sócio-histórico-culturais, que estimulam e
preservam a memória espácio-temporal e humana, este artigo pautou-seem estudos de
Vladimir Propp (formalismo/funcionalismo), Lévi-Strauss (estruturalismo), Malinowski
(‗trabalho de campo‘), Paul Tompson (História oral) e Geertz (interpretativismo e
etnoconhecimento), todos esses que, de um modo ou de outro, desenvolveram trabalhos
teórico-práticos sobre a oralidade, estudo até então negligenciado pela intelligentsia
extremamente escriptocentrista. O estudo desses autores e suas obras constituíram
relevante norte para a análise das narrativas de dois informantes (ilhéus de nascimento,
septuagenários que viveram a maior parte de seus anos na ilha de Mosqueiro), fato este que
constitui o cerne, o motor, a razão de ser deste estudo.
No entanto,a postura em geral adotada pelos pesquisadores é a de quase repúdio à
prática de usar narrativas orais como fonte de dados relevantes para o conhecimento de
uma realidade em geral desprovida de documentação escrita, como se a oralidade não
pudesse ser fonte significativa para estruturação de conhecimentos sociais, históricos e
culturais. Porém, Paul Thompson (1992, p. 10) discorda desse fato, e conclui ser mais
democrática e socialmente consciente a história oral, que tem por sujeito o povo
10
,
geralmente anônimo e sem vez e voz, quando se trata de uma posição metodológica de
estudos conservadora, que só tem olhos para os greatmen.Para esse autor, é extremamente
necessário ―[...] preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a
memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a
evidência dos fatos coletivos.‖
10
O homem ordinário, segundo Freud, citado por Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano, 1984, pág. 61.
39
Todavia, Thompson é autor bem mais contemporâneo. Por isso, convémreconhecer
o trabalho precursor, inovador do russo Vladimir Propp, que publicou, em 1928, a obra
Morfologia do conto maravilhoso, em que sistematiza estudos de oralidade a partir da análise
formal e funcionalista dos contos de fadas, em cuja estrutura encontra 150 elementos, 31
funções e 7 personagens constantes. Mais tarde, nos anos de 1950, o antropólogo Claude LéviStrauss se valerá da pesquisa do autor russo, dando origem à corrente de pensamento
chamada de estruturalismo11, para analisar mitos de povos ditos ―primitivos‖. É necessário
enfatizar que tal vocábulo (mito), em português, é polissêmico, isto é, engloba inúmeros
sentidos (dependendo do contexto em que esteja sendo empregado), dentre os quais este,
do estudioso MirceaEliade (2002, p.11):
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Em outros termos, o mito
narra como, graças às façanhas dos Entes sobrenaturais, uma realidade passa a
existir, seja uma realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha,
uma espécie de vegetal, um comportamento humano, uma instituição.
É relevante destacar a funcionalidade dessa conceituação de Eliade para
compreender com clareza queLévi-Strauss foi quem pela primeira vez adaptou a técnica de
análise linguística ao estudo crítico dos mitos de povos ditos ―primitivos‖, para isso
cunhando o termo mytème, claramente em analogia com a análise linguística. Em outras
palavras, o eminente antropólogo francês ( autor de, entre outras obras, Mitoe significado,
1970; Antropologia estrutural dois, 1996; O pensamento selvagem, 1997), supera a formalidade da
análise somente das funções proppianas, na busca do sentido para a criação dos mitos em
dada cultura, afirmando refletir-se neles a estrutura das relações sociais do povo que deu
origem à narrativa mitológica. Outro relevante trabalho é o do polonês Bronislaw
Malinowski, antropólogo que, entre outros ensaios, escreveu Magic, science and religion (and
otheressays), de 1954, de cujo texto foi utilizado o excerto ―A coleta e a interpretação dos
dados empíricos‖, importante material de orientação sobre o ‗trabalho de campo‘, que tem
origem na viagem e permanência desse estudioso durante alguns anos nas ilhas Trobiand
(de junho de 1915 a maio de 1916 e depois retorno em 1917), no Pacífico sul, na Oceania,
estudando o povo dali, com seus costumes ditos ‗exóticos‘.
Na esteira dessas obras precursoras, outras surgiram, de autores que se debruçaram
sobre o tema da pesquisa da oralidade. Pode-se destacar, entre outros, citados no livro
Segundo o Próprio Lévi-Strauss, estruturalismo seria ―[...] a busca de invariantes ou elementos invariantes
entre diferenças superficiais‖ (1978, 20).
11
40
Cultura, escrita e oralidade, de David R. Olson e Nancy Torrance: Herbert Marshall McLuhan(
A galáxia de Gutenberg, de 1962), Jack Goody e Ian Watt ( o artigo ―As conseqüências da
cultura escrita‖, 1963) e Eric Havelock ( Prefácio para Platão, de 1963). Não é uma lista
exaustiva, portanto. As orientações básicas para o desenvolver da pesquisas advém dos
autores citados em primeiro plano: Propp, Lévi-Strauss e Thompson.
Clifford
Geertz desperta crucial interesse, também, por seu paradigma hermenêutico, por buscar
relativizar o conhecimento, que se transforma, assim, de fato, em etnoconhecimento, já que
a ‗interpretação‘ dos fatos da cultura de um povo ─ segundo esse autor ─ depende dos
dados culturais de quem realiza a tal ‗interpretação‘, sendo de vital importância o lugar , o
ângulo onde se põe o pesquisador. Seria injustos não revelarque este trabalho dependeu,
também, dos estudos do russo MirceaEliade (Mito e realidade, 1986) para nossas futuras
deduções sobre os mitos ―vivos‖ que povoam o imaginário da comunidade à qual se refere
a pesquisa. E é bom salientar que tudo a que se reportou até aqui diz respeito a questões
teóricas, indicadoras essenciais de um norte para as análise que se seguedo corpus relativo à
transcrição de narrativas orais, entre outras que foram registradas em entrevistas com
moradores da Ilha de Mosqueiro.
2
Narrativas orais da ilha de Mosqueiro: memória e significado
Os Srs. José Brígido da Trindade (1933-) e José Bentes Bahia (1934-) concederam
entrevistas em que relataram inúmeros fatos e prestaram esclarecimentos relevantes,
gerando dados de extrema riqueza a ser explorada, de natureza histórica, social, geográfica,
pedagógica, religiosa, etc. Abaixo, seguem excertos resultantes de recortes, tanto das
entrevistas quanto das análises, tendo em vista a concisão necessária à economia deste texto
acadêmico, o que direcionou a alternativa de trabalhar com apenas um informante e sua
respectiva narrativa:
Eu gostava de estudar. À noite, pegava a lamparina, acendia a
lamparina,e ficava, sabe, estudando. Estudando mesmo. Quando chegava
na escola, já tava tudo na cabeça. Então, ia fazer sacanagem... (...) rendia
castigo pra gente, né. Por exemplo, no Grupo Velho... Eu comecei a ter
raiva de terço, desde aquela altura, que era castigo você rezar o terço... e
botava de joelho, que era aquele Cristo que ainda tá lá... desde o Grupo
Velho. Botava lá de joelho a gente, sabe. Aquele negócio de ajoelhar no
monte de milho, tinha também, aí. Não era fácil, não.
41
Agora, eles não me botavam de joelho porque... eu ia ter de ficar só com
um joelho, o outro não tem nada...12 (Ele riu bastante, contagiando
também o entrevistador.)
Então, tinha uma diretora... uma boa professora, professora Noêmia. Ela
teve um problema que ela tinha uma bochecha maior do que a outra.
Égua! Mas a mulher, sabe?,era muito inteligente. Mas ela era perversa
também. Gostava de dar castigo pra gente. E um dia... o Grupo Velho,
ainda... (...)
Aqui o Sr. Brígido revela uma ‗peraltice‘ sua dos tempos de estudante, pela qual
foram (ele e colegas) duramente castigados, trancados no banheiro.
Outro trecho relevante:
Eu saí em 46. Tenho o diploma e tudo... guardado. Gosto daquele
diploma. E, naquelas alturas, no interior, com 13 anos terminava a 5ª
série. Era barra! Mas... Agora, Inglês de Sousa... Não sei por que botaram
o nome de Inglês de Sousa. Se bem que eu tenho até um livro dele aqui.
(...) Herculano Marcos Inglês de Sousa. (...)
O que passava pela frente era o trem, né, o trem: uma locomotiva
movida a lenha, né, com três, quatro vagões. Um dia vinha com três,
vinha com quatro. (...)
Então, ela passava lá. Ela vinha lá do Porto Artur, Chapéu Virado,
passava pela 3ª Rua. Aí, entrava pela Pratiquara... porque onde é o atual
mercado, lá era a estação da...da... porra da maria-fumaça... (...)
Ela vinha devagar, sabe? Dava vontade da gente morcegar... (risos) E
terminava a aula e poder... Ela passava bem na frente do Grupo e ela
sempre devagar, sabe. Dava pra gente pular... Sabe como é... (...)
...estudante... moleque também... (...)
Em sua narrativa, no início, o Sr. Brígidoreporta-se ao uso da lamparina para
estudar à noite, o que permite a inferência de que energia elétrica não havia no Mosqueiro
daquela época (década de 1940) em que ele era estudante. Só décadas depois éque seria
criada, pelo Município de Belém, a Usina de Força, que funcionava irregularmente e
deixava de fornecer ―luz‖ após as 23 horas. A partir da energia vinda da hidrelétrica
O Sr. Brígido tem deficiência física em uma perna, causada por poliomielite, por não haver vacinação
contra a doença ‗naquela época‘.
12
42
deTucuruí, já na década de 1980, é que passaria a haver energia elétrica na ilha 24 horas por
dia.
Devido à carência generalizada de infraestrutura fornecida pelos governos (estadual
e municipal), a educação só atendia a população até a 5ª série, dita ginasial, naquele tempo,
no Grupo Escolar do Mosqueiro (do sistema estadual), chamado comumente pelo povo de
Grupo Velho, que mais tarde receberia a denominação de Inglês de Sousa, chamado de
Grupo Novo. Essa escola ainda existe: fica na Vila, na R. Tenente Coronel José do Ó (ou,
para o povo, 3ª Rua), e atendiatoda a Ilha, tendo os alunos que se deslocar dos pontos mais
distantes, quase sempre a pé, e tendo que sair bem cedo, para não perder as aulas. Uma
enorme dificuldade.
O Sr. Brígidoinforma como era a ‗disciplina‘ escolar na época. Sem quase liberdade
alguma, aos alunos eram infligidos castigos físicos, como ficar ajoelhado no monte de
milho, ou morais, como ficar rezando o terço, ajoelhado em frente a uma imagem de Jesus
Cristo. Claro que se deve evitar interpretações anacrônicas; contudo, quase não se
podedeixar de opinar sobre o que se pensa seremequívocos educacionais (no que diz
respeito à metodologia e didática de aplicação de medidas ―socioeducativas‖ ‗daquele
tempo‘) e religiosa (no que diz respeito à mistura de religiosidade/fé e temor). Ambas −
educação e religião −impunham valores por intermédio da opressão, do medo, do terror
mesmo. Não poderia dar certo, nem em uma, nem em outra, mesmo em se tratando da
religião católica, já que o Brasil é a maior nação católica do mundo; tanto que o
entrevistado diz, numa passagem de sua entrevista: ―[...] eu detesto esse negócio de terço
[...]‖. Diríamos ser, também, detestável a maneira de ‗estimular‘ os estudantes por meio da
sabatina: quem errasse o cálculo, ou uma data qualquer de um fato histórico, apanhava com
a palmatória.
O entrevistado faz alusão ao trenzinho, uma locomotiva do tipo maria-fumaça, que
conduzia de três a quatro vagões, ligando a Vila ao chapéu Virado. Buscando apoio em
Brandão; Dantas (2004, p. 69), encontram-se as seguintes informações:
O primeiro transporte oficial aproximando a ‗Vila‘ do ‗Chapéu virado‘
foi inaugurado em 1904, o Ferril-Carril, bonde com tração animal,
propriedade de Arthur Pires Teixeira. Com o aumento de passageiros,
provocado pela instalação da linha fluvial Belém-Mosqueiro, o FerrilCarril é substituído por uma pequena locomotiva conhecida como ‗Pata
Choca‘ que se encarregava de levar quatro ou cinco vagões.
43
Sobre a denominação Chapéu-Virado, de uma praia, de um bairro e de um antigo
hotel, convém lembrar o seguinte: C. Wanzeller (2005, p. 47) explica a denominação deste
modo:
[...] Para aquele local, conhecido na época como ‗o lugar onde o chapéu
vira‘, convergiam vários caminhos, alguns vindos do interior da ilha e
outros que levavam à praia, onde os pescadores moqueavam o peixe. O
vento, canalizado por esses caminhos, chegava à clareira com grande
violência, arrebatando os chapéus de palha da cabeça dos caboclos
desprevenidos e lançando-os a distância.
Já em Brandão; Dantas (2004, 65), encontramos os seguintes esclarecimentos:
Colonos portugueses fabricavam no local chapéus com abas
denominadas beiras. Para alguns historiadores a expressão ‗chapéu
beirado‘ teria se convertido, com a pronúncia portuguesa, em ‗chapéu
birado‘ e depois ‗chapéu virado‘. Outra possibilidade é a da corruptela
cabocla que identificava a beira como a parte virada do chapéu.
O informante refere-se a um topônimo: Porto Artur. Era um comendador que
possuía um chalé em frente à praia que hoje recebe o nome de Porto Artur, por causa do
porto que ficava em frente a sua casa, onde podia aportar o barco que trazia sua família
para o aprazível fim-de-semana. Hoje, além da praia, um logradouro também tem seu
nome: Trav. Artur Pires Teixeira. A razão de se dar importância a esse ilustre frequentador
da Ilha é que foi ele fundador, além da linha férrea, do primeiro e único cinema de
Mosqueiro: o Cine Guajarino, que, conforme Pedro Veriano (1999, p. 40), funcionou de
1912 até 1976.
O Sr. Brígido falou, ainda, de dois logradouros: a 3ª Rua e a Pratiquara. O nome
oficial da 3ª Rua é Tenente Coronel José do Ó. É bem comum na Vila esse fato, pois a
grande maioria dos moradores costuma nomear os logradouros de 1ª, 2ª, 3ª, etc., até a 8ª
Rua. Porém, todas têm nomes oficiais de personalidades históricas que, de um modo ou de
outro, foram relevantes para a história do Mosqueiro de outrora. Pratiquara é o nome de
uma travessa importante na Vila, bairro mais antigo da Bucólica (que é outra denominação
da Ilha). É de origem tupi o vocábulo e originou-se a partir do principal rio que banha
Mosqueiro, o Pratiquara,que , em português, significa ‗rio das pratiqueiras‘. Muitos outros
44
topônimos no Mosqueiro são de origem tupi: Mari-Mari, Ariramba, Carananduba,
Sucurijuquara, etc.
A expressividade de nosso entrevistado vem de sua espontaneidade ao falar, de seu
ótimo humor, da coloquialidade de sua fala. Por exemplo, emprega a palavra ‗morcegar‘
que, segundo Houaiss (2004, p. 1959), significa, no contexto usado, ―[...] embarcar ou saltar
de (trem, bonde etc) em movimento.‖ E, de certa forma, sentimo-nos também com
vontade de morcegar, tanto o trenzinho, quanto a narrativa contada, tamanha a vivacidade
e importância de suas reminiscências.
3
Considerações finais
A resposta que se pretendeu dar com esta pesquisa ése as narrativas orais da Ilha de
Mosqueiro constituem ―documento vivo‖, preservando, em sua estrutura, traços sóciohistórico-culturais, ou seja, se podem elas ser fonte de dados fidedigna sobre economia,
relações sociais, fatos históricos relevantes, geografia local, hábitos cotidianos, eventos
cíclicos festivos tradicionais, variantes lingüísticas, etc. A-gora, com conhecimento de
causa, já procedidas as análises das narrativas orais de moradores ilhéus, pode-se afirmar,
categoricamente, que em tais narrativas há presença de traços sócio-histórico-culturais que
preservam a memória local (no que diz respeito a aspectos tais como economia, relações
sociais, fatos históricos relevantes, geografia local, hábitos cotidianos, eventos cíclicos
festivos, variantes linguísticas, etc.).
No entanto, em grande parte devido a preconceitos contra a oralidade, perdem-se
opor-tunidades ímpares, a partir da História oral, de geração de dados para pesquisas em
áreas diversas do conhecimento, com amplas possibilidades de produção científica coletiva
e interdisciplinar. De outro lado, entende-se que, ao registrar entrevistas e depoimentos de
pessoas de idade já avançada, contribui-se para o resgate do imaginário popular e, de certa
forma, valoriza-se a sabedoria dessas pessoas, muitas vezes vítimas do preconceito contra
idosos, pessoas que geralmente não têm da sociedade a gratidão pela qual fizeram por
merecer o respeito que lhes é negado. São, os idosos, um repositório de riqueza cultural e,
desse modo, deveriam ser vistas e prestigiadas.
De modo algum pode ser considerado lamentável o fato de se realizar pesquisa de
campo. O autor desta pesquisa, que tanto prezava o conhecimento apenas livresco e quase
que menosprezava a oralidade em sua imensa riqueza de expressão e significado, pensa
bem diferente neste momento, pelo muito que aprendeu e apreendeu com a pesquisa, seja
45
ela no segmento a partir do referencial teórico, isto é, bibliográfica, seja a parte da pesquisa
de campo − ambas têm igual valor.
Por tudo isso, não é à toa que se deve gradecer aos senhores que concederam
atenciosa, educada e sinceramente seu valioso tempo, para que com eles o pesquisador
pudesse aprender da lição da sabedoria do tempo, da experiência, do conhecimento
pragmático, empírico, e, acima de tudo, da humildade e da simplicidade de que, em diversas
situações, a academia prescinde. Pôde-se observar que, antes de realizar esta pesquisa, mais
importância, em diversas situações, era dadaao macro do que ao micro, sem se perceber o
quanto do macrocontexto está contido em um microcontexto, e vice-versa. Aprendeu-se,
também, a dar maior relevância ao mito como estruturador das relações sociais. E não seria
exagero fazer a assertiva de que o mito quase que direciona o processo de interação social,
seja ela em estrito ou abrangente contexto.
Assim, conhecer mais a terra de origem e a gente que nela vive,a memória e o
significado destas para a própria trajetória de vida, seja a memória intra ou interpessoal,
passou a ter, sem dúvida nenhuma, um valor de grau bem superior a antes deste estudo. E
pergunta-se: ―Que seria das pessoas sem a memória, seja ela coletiva, ou individual e
egocêntrica?‖ ―Nadasão sem a memória. Ela dá sentido à existência, à vida‖. Esta é a
melhor resposta que a pesquisa pôde encontrar para essa questão, mas pode não ser a
única, claro. E sabe-se que, neste exato momento, estão todos a criar memória para o
futuro, fazendo história, todos, a Historyfrombellow. Espera-se, sinceramente que estudo
tenha contribuído para preservar a memória espácio-temporal e humana da Ilha de
Mosqueiro e estimular o estudo de seu significado para a comunidade local em seu
cotidiano processo de interação.
REFERÊNCIAS:
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de Lévi-Strauss e Geertz. Campinas: UNICAMP, 1993.
BRANDÃO, Eduardo Jorge Cardoso; DANTAS, Amaury Braga. Encantos e encantamentosem
uma ilha no Rio-Mar. Belém: 2004. 84 p.
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CAMPBELL, Joseph. O poder do mito.Org. por Betty SueFlowers; trad. Por Carlos Felipe
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46
____. A imagem mítica. Trad. Marina Keney, Gilbert E. Adams.
Campinas, SP: Papirus,
1994.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 8ª ed. Petrópolis: Vozes,
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DURHAM, Eunice Ribeiro. Bronislaw Malinowski. SP: Editora Ática, 1986.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Perspectiva e debates.6ª ed., SP: Perspectiva, 2002, cap. 1, 2,
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HOUAISS, Antônio et al. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. RJ: Ed. Objetiva, 2004.
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THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. RJ: Paz e Terra, 1992.
VERIANO, Pedro. Cinema no tucupi. Belém: SECULT, 1999. 92p.
WANZELLER, Claudionor dos Santos. Mosqueiro: lendase mistérios. Belém: Grupo
RBA,2005.
47
TRADUÇÕES PORTUGUESAS DE PAUL DE KOCK NO ACERVO
DO GRÊMIO LITERÁRIO PORTUGUÊS DO PARÁ
Alessandra Pantoja Paes13
Profª Drª Valéria Augusti (Orientadora) 14
Resumo: Paul de Kock foi um prolífico escritor francês muito popular no século XIX,
tanto na França quanto em outros países, sobretudo, por intermédio das traduções de suas
obras. Ao consultarmos os catálogos de bibliotecas e livrarias existentes no Brasil durante o
Oitocentos veremos que as obras do escritor tinham ampla circulação nessas instituições.
Em pesquisa sobre a prosa de ficção presente no acervo do Grêmio Literário Português do
Pará, instituição fundada em 1867 pela comunidade portuguesa, observou-se que Paul de
Kock se destacava como um dos romancistas franceses com maior número de obras.
Grande parcela dessas obras são traduções portuguesas, algumas enviadas diretamente de
Lisboa pelo livreiro correspondente do Grêmio Literário Português do Pará em Portugal,
Antonio Maria Pereira. O objetivo do presente trabalho consiste em discorrer sobre alguns
dados editoriais dessas traduções, dentre os quais se inserem data de publicação, tradutores,
editores, locais de edição etc., bem como abordar determinadas questões relativas às
mudanças nos títulos de parcela dessas edições portuguesas operadas pelos tradutores.
Palavras-chave: Paul de Kock; Traduções portuguesas; Grêmio Literário Português do
Pará.
Résumé: Paul de Kock a été un prolifique écrivain français très populaire au XIXème
siècle, en France ainsi que dans d‘autres pays, surtout à travers des traductions de ses
œuvres. En consultant les catalogues des bibliothèques et des librairies existant au Brésil
pendant le XIXe siècle, on voit que les œuvres de l'écrivain ont eues grande diffusion dans
ces institutions. Dans une recherche sur la fiction en prose dans la collection du Grêmio
Literário Português do Pará [Guilde Littéraire Portugais du Pará], une institution fondée en
1867 par la communauté portugaise, on a observé que Paul de Kock s'est imposé comme
l'un des romanciers français avec le plus grand nombre d'œuvres. Grande partie de ces
ouvrages sont des traductions portugaises, certaines envoyées directement par le
correspondant libraire du Grêmio Literário do Pará au Portugal Antonio Maria Pereira.
L'objectif de cet article est de discuter de certaines données éditoriaux de ces traductions,
entr‘euxs‘insèrent la date de publication, des traducteurs, des éditeurs, local d‘édition, etc.,
ainsi que de traiter certaines questions relatives aux changements des titres de ces éditions
portugaises par les traducteurs.
Mots-clés: Paul de Kock ; Traductions portugaises ; Grêmio Literário Português do Pará.
1. Introdução:
Charles Paul de Kock, mais conhecido em terras brasileiras como Paulo de Kock,
nasceu em Passy, Paris, em 21 de maio de 1793 e faleceu em 29 de agosto de 1871. Viveu a
maior parte de sua vida no Boulevard Saint Martin, onde escreveu e publicou dramas,
Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected]
14 Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected]
13
48
vaudevilles, óperas cômicas e uma quantidade significativa de romances, que fizeram dele um
dos romancistas franceses mais populares no século XIX (MIRECOURT, 1856, p.8).
Denominado por alguns críticos literários como o ―romancista das cozinheiras‖, Paul de
Kock, como assinalou Pinheiro Chagas, ―fez rir mais de uma geração de leitores‖ (KOCK,
S.d., p. 5) por meio de seus romances cômicos, gênero no qual se consagrou.
Contudo, atualmente o romancista é pouco conhecido. Isso porque Paul de Kock
faz parte de um grupo de autores que muito embora tenha tido suas obras amplamente
difundidas em sua época foram, de certa maneira, esquecidos pela posteridade, ou pelo
menos considerados como escritores de segunda categoria pelas instâncias legitimadoras da
produção literária. Uma das razões que explicam tal ―esquecimento‖ reside no fato de esses
autores, apesar de muito apreciados pelos leitores em sua época, terem sido pouco
valorizados pelos homens de letras, que consideravam suas produções literárias ―menores‖.
Assim, grande parte das leituras consideradas ―populares‖ em determinada época não
foram consideradas canônicas pelas histórias literárias de seus respectivos países, as quais
privilegiaram outros autores como representativos das literaturas nacionais (ABREU, 2008,
p. 15). Todavia, se consultarmos os catálogos de livrarias e bibliotecas brasileiras do século
XIX, perceberemos que o autor francês tinha ampla aceitação entre os leitores, sobretudo,
graças às traduções portuguesas, que sugerem a penetração do romancista francês também
entre os habitantes de Portugal.
Em pesquisa realizada no acervo do Grêmio Literário Português do Pará,
instituição fundada em 1867 pela comunidade portuguesa, no que se refere à presença da
prosa de ficção francesa em seu acervo, chama a atenção a quantidade significativa dos
exemplares referentes ao escritor Paul de Kock, constando atualmente 87edições
disponíveis do romancista, incluindo edições do século XIX e do século XX. Dessas,
apenas uma está em língua francesa, sete são edições nacionais publicadas em língua
portuguesa e setenta e nove, a maioria esmagadora, são traduções portuguesas. Grande
parcela dessas traduções foi enviada diretamente de Portugal ao Gremio Literário
Portugues do Pará por Antonio Maria Pereira, livreiro correspondente dessa instituição em
Lisboa15.
2. Traduções portuguesas de Paul de Kock nas estantes do Grêmio Literário
Conforme as listas de envio de livros remetidos ao Grêmio Literário Português do Pará por Antonio Maria
Pereira, documentos que acompanhavam as remessas de obras enviadas de Lisboa para Belém, de Paul de
Kock, entre 20 de outubro de 1868 e 26 de maio de 1871 foram remetidos 45 títulos, sem contar os repetidos.
Atualmente nem todos os títulos registrados nos documentos referidos se encontram disponíveis no acervo
da instituição. Conferir: Listas de envio de livros remetidos ao Grêmio Literário Português do Pará.
15
49
Português do Pará:
A análise dos dados editoriais das traduções portuguesas de Paul de Kock,
atualmente presentes no Grêmio Literário Português do Pará, mostra uma diversidade de
tradutores que contribuíram para a difusão das obras do escritor em países onde a língua
portuguesa era a língua materna.
As traduções portuguesas mais antigas são as realizadas por António Joaquim Nery,
um dos primeiros tradutores portugueses de Paul de Kock. Durante a década de 1830
publicou inúmeras traduções de diferentes autores e outros escritos de sua autoria na
tipografia de Felipe Nery denominada Typographia de Nery16. Publicou ainda em outras
tipografias, como a Comercial Portuense e a Patriótica. Alguns anos depois, já detentor de
uma tipografia, passou a editar as próprias traduções em nome da Tipografia que
denominou Neryana. (LISBOA, 2012, p. 14) Assim, além de tradutor, Joaquim Nery
passou também a exercer o ofício de editor e tipógrafo. A partir de 1841, o essencial de sua
produção consistiu em traduzir Paul de Kock, de quem, segundo João Luís Lisboa
―public[ou] mais de duas dezenas de títulos‖ (IBIDEM, 2012, p. 14).
Dentre as edições de Paul de Kock presentes no acervo do Grêmio Literário
Português do Pará, onze são traduções de António Joaquim Nery referentes ao período em
que este já possuía a Typographia Neryana. Essas edições, todas elas editadas pelo próprio
tradutor, são todas da década de 1840. Segue abaixo um quadro com todos os dados
editoriais referentes às traduções portuguesas de Paul de Kock realizadas por Joaquim Nery
presentes no acervo do Grêmio Literário Português do Pará17.
Título do
original
La famille Gogo
Data de
publica
ção do
original
[183?]
La laitière de
Montfermeil
1827
Jean
[18??]
André le savoyard
1825
Georgette ou la
1820
Título da
tradução
A família Gógó
(4 tomos)
A leiteira de
Montfermeil (4
tomos)
João (4 tomos)
André, o
saboyano (4
tomos)
Georgetta, ou a
Data de
publicaçã
o da
tradução
1845
1843-1844
1846
1844
1842
Menção
do
tradutor
Menção
da língua
de origem
Editor
Local de
edição
Traducção
de Nery
Traducção
de Nery
Não consta
Joaquim
Nery
Joaquim
Nery
Typographia
Neryana
Typographia
Neryana
Traducção
de Nery
Traducção
de Nery
Não consta
Joaquim
Nery
Joaquim
Nery
Typographia
Neryana
Typographia
Neryana
Traducção
Não consta
Joaquim
Typographia
Não consta
Não consta
Não se sabe, até o presente momento, se há algum parentesco entre Felipe Nery e Joaquim Nery, tendo em
vista que ambos tinham o mesmo sobrenome.
17 Optou-se por disponibilizar, ainda, no quadro informativo o título do romance na língua original, bem
como o ano da primeira publicação de tais títulos.
16
50
Nièce du tabellion
Ce Monsieur
[183?]
l’Homme de la
nature et l’Homme
Police
[182?]
Le jeune homme
charmant
[181?]
Magdalena
[18??]
Sans cravate ou les
comissionnaires
[18??]
sobrinha do
tabellião (4
tomos)
Este senhor! (4
tomos)
Homem da
natureza e o
homem civilisado
(4 tomos)
Hum jovem
encantador(4
tomos)
Magdalena (4
tomos)
Sem gravata, ou
os moços de
recados (4 tomos)
de Nery
1842
Nery
Neryana
Joaquim
Nery
Joaquim
Nery
Typographia
Neryana
Typographia
Neryana
Traducção
de Nery
Traducção
de Nery
Não consta
1846
Traducção
de Nery
Não consta
Joaquim
Nery
Tipographia
Neryana
1844
Traducção
de Nery
Traducção
de Nery
Não consta
Joaquim
Nery
Joaquim
Nery
Typographia
Neryana
Typographia
Neryana
1843
1845
Não consta
Não consta
Conforme se observa no quadro acima, as edições das obras de Kock traduzidas e
publicadas por Nery foram sucessivas. Apenas no ano de 1844 publicou e traduziu pelo
menos três edições das obras do escritor francês: os quatro tomos de Magdalena, os quatro
tomos de André, o saboyano, e os dois últimos tomos de A leiteira de Montfermeil.
Denominadas de ―Traducção de Nery‖, essas traduções não fazem referência à língua de
origem dos textos originais, tampouco aos textos fontes utilizados pelo tradutor. Contudo,
sabe-se que até a década de 1840, várias edições em língua francesa de Paul de Kock,
posteriormente traduzidas por Joaquim Nery, já haviam sido publicadas ou reeditadas. Na
década de 1830, por exemplo, Gustave Barba, irmão de um dos primeiros editores de Paul
de Kock, Jean-Nicolas Barba publicou ou possivelmente reeditou uma coleção de vários
romances do escritor já anteriormente publicados por seu irmão, dentre esses se
encontram: l’Homme de la nature et l’Homme Police, de 1831; Madeleine, de 1835; Georgette ou la
Nièce du tabellion, de 1833; André le savoyard, de 1835; La laitière de Montfermeil, 1836, dentre
outros. Mais tarde, na década de 1840, Gustave Barba reeditou todos os romances dessa
mesma coleção18. Há que se destacar também a possibilidade da circulação em Portugal de
contrafações belgas dos romances de Paul de Kock, publicadas, sobretudo em Bruxelas e
que circularam tanto na Europa quanto na América durante o século XIX (MIRECOURT,
1856, p. 57). Atualmente, encontram-se disponíveis online várias edições de Paul de Kock
que referenciam, em suas páginas de rosto, Bruxelas, como local de impressão, indicando
tratar-se provavelmente de textos contrafeitos. Dentre esses textos encontra-se uma edição
de 1844 de La famille Gogo, uma edição de 1837 de André le savoyard, uma edição de 1841
Várias edições dos romances de Paul de Kock publicadas por Gustave Barba, sobretudo, nas décadas de
1830 e 1840 estão disponíveis no site: http://archive.org/index.php
18
51
de Ni jamais, ni toujour dentre outras19. Desse modo, verifica-se ser muito difícil se chegar a
uma hipótese dos supostos textos fontes que teriam sido utilizados não apenas por Nery,
bem como pelos outros tradutores portugueses já citados.
Além de Joaquim Nery, há também outro tradutor que aparece com frequência nas
edições portuguesas de Paul de Kock presentes no Grêmio Literário Português do Pará: J.
A. Xavier de Magalhães. Este tradutor, que geralmente também desempenhava a função de
editor das obras que traduzia, é responsável pela tradução de catorze das edições de Paul de
Kock disponíveis no acervo da instituição referida. Dessas, doze foram publicadas pela
Typographia de Salles, uma pela Imprensa de Lucas Evangelista Torres e uma pela
Imprensa Minerva. Segue abaixo um quadro com todos os dados referentes às traduções
portuguesas de Paul de Kock realizadas por Xavier de Magalhães presentes no acervo do
Grêmio Literário Português do Pará.
Título do
original
Les petits
ruisseaux
Data de
publicaçã
o do
original
1867
Título da
tradução
Os pequenos
regatos formam
os grandes
ribeiros
O professor
Ficheclaque
Data de
publicaçã
o da
tradução
1867
Le Professeur
Ficheclaque
1867
Le petit
bonhomne du
coin
1871
O rapaz
misterioso da
esquina
1871
L’amoureux
transi
[18??]
Um namorado
caloiro (2vl)
1871-1872
Friquette
1873
Friquette
1873
Les étuvistes
[18??]
O bandido
Giovanni (2vl)
1866-1867
Les bains
[18??]
Os banhos
1868
La journée d'un
monsieur qui
n'a pas le temps
[18??]
O dia de um
homem que não
tem tempo
1868
19
1867
Conferir: http://archive.org/details/pauldekock00mireuoft
Menção
do
tradutor
Menção
da língua
de origem
Editor
Local de
edição
Tradutor
J. A.
Xavier de
Magalhães
Tradutor
J. A.
Xavier de
Magalhães
Tradutor
J. A.
Xavier de
Magalhães
Tradutor
J. A.
Xavier de
Magalhães
Tradutor
J. A.
Xavier de
Magalhães
Tradutor
J. A.
Xavier de
Magalhães
Tradutor
J. A.
Xavier de
Magalhães
Tradutor
J. A.
Xavier de
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Typographia
de Salles
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Typographia
de Salles
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Typographia
de Salles
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Typographia
de Salles
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Typographia
de Salles
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Typographia
de Salles
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Typographia
de Salles
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Typographia
de Salles
52
Les compagnos
de la truffe
[186?]
Os
companheiros
das Tuberas
1870
Un monsieur
très- tourmenté
[18??]
Um Homem
atribulado
1868
La mare
d'Auteuil
(Benjamin
Godichon)
Título
desconhecido
[18??]
Benjamin
Godichon
Não consta
[18??]
Jorgezinho
1895
Magalhães
Tradutor
J. A.
Xavier de
Magalhães
Tradutor
J. A.
Xavier de
Magalhães
Versão de
Xavier de
Magalhães
Versão de
Xavier de
Magalhães
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Typographia
de Salles
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Typographia
de Salles
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Imprensa
Minerva
Não consta
J. A. Xavier
de Magalhães
Imprensa de
Lucas
Evangelista
Torres
Conforme se observa no quadro acima as edições referentes às traduções de Xavier
de Magalhães para a Typographia de Salles pertencem às décadas de 1860 e 1870. Xavier de
Magalhães traduziu sucessivamente mais de um romance por ano conforme os dados
expostos acima. Em 1867, por exemplo, concretizou as traduções de: O Professor Ficheclaque,
Os pequenos regatos formam os grandes ribeiros e o segundo volume de O bandido Giovanni, todas
elas editadas pelo próprio tradutor. Esses dados demonstram que as traduções de Paul de
Kock tinham bastante saída no mercado editorial português da época, uma vez que
observamos a tradução de várias obras em um mesmo ano. Interessa ainda notar que
algumas das traduções realizadas por Xavier de Magalhães foram publicadas no mesmo ano
que as edições originais. Esse é o caso de Os pequenos regatos formam os grandes ribeiros (1867),
tradução de Les petits ruisseaux (1867); O professor Ficheclaque (1867), tradução de Le professeur
Ficheclaque (1873); O rapaz mysterioso da esquina (1871), tradução de Le petit bonhomne du coin
(1871) e Friquette (1873), tradução de Friquette (1873). Desse modo, observa-se que
determinadas traduções portuguesas de Paul de Kock eram realizadas simultaneamente ao
período das publicações das obras originais, fato que ratifica a popularidade de suas obras
em Portugal.
Alguns títulos das edições traduzidas por Xavier de Magalhães conservam o título
original sem traduzi-lo, como é o caso da tradução do romance Friquette, ou são traduzidos
para o português conservando dentro dos limites possíveis da língua a semântica do
original, nos casos das traduções de La journée d'un monsieur qui n'a pas le temps [18??],
traduzido para O dia de um homem que não tem tempo ; Le Professeur Ficheclaque (1867), traduzido
para O professor Ficheclaque e Les compagnos de la truffe [18??], traduzido para Os companheiros da
tuberas. Contudo, há títulos em que novas informações foram acrescentadas em relação ao
original. Esse é o caso de Les petits ruisseaux que foi traduzido para Os pequenos regatos formam
53
os grandes ribeiros. Observa-se que a tradução portuguesa além de traduzir as três primeiras
palavras que compõem o título original adicionou mais três a essas formando, ao que
parece, uma expressão ou provérbio na língua portuguesa. Já o romance Les étuvistes,
publicado em 1857 por Alexandre Cadot foi traduzido para O bandido Giovanni, obra em que
o título do original foi completamente alterado, sem, no entanto, haver qualquer
informação a esse respeito na edição traduzida.
Interessa observar que a edição publicada pela Imprensa Minerva, traduzida por
Xavier de Magalhães, publicou a segunda parte da obra La mare d'Auteuil, intitulada
―Benjamim Godichon‖ como se fosse um novo título, visto que transformou o título da
segunda parte do romance em título da obra sem fazer qualquer menção ao título La mare
d’Auteuil. No que tange à edição publicada pela Imprensa de Lucas Evangelista Torres em
1895, denominada por Xavier de Magalhães de Jorgezinho, se desconhece o romance original
que teria servido como texto fonte para essa tradução, dificuldade resultante, sobretudo,
em virtude do título adotado pelo tradutor português. Acredita-se que no momento de
verter para sua língua materna o título original do romance, ele o tenha modificado
completamente tal como fez quando da tradução de Les étuvistes, uma vez que dentre a
prosa de ficção de Paul de Kock não foi possivel encontrar título equivalente ou mesmo
próximo daquele denominado por Xavier de Magalhães.
Algumas traduções portuguesas como as publicadas pela Empresa da História de
Portugal em primórdios do século XX silenciam o nome desse importante personagem da
história do livro que é o tradutor. Contudo, revelam a prática da tradução ao serem
caracterizadas nas páginas de rosto como ―versão portugueza‖. Grande parte dos títulos
dessas traduções foi vertida para o português sem, contudo, alterarem significativamente os
títulos originais. La fille aux trois jupons (1863), por exemplo, foi traduzida para A menina das
três saias, Une jeune homme mystérieux [18??] foi traduzida para Um rapaz mysterioso, Le sentier aux
prunes (1864) em português foi intitulada A vereda das ameixas. Todavia, alguns títulos
sugerem uma liberdade maior por parte do tradutor. Esse é o caso da tradução de Un
monsieur très-tourmenté [18??] vertido em português para Uma vida atribulada. O pronome de
tratamento monsieur foi modificado pelo substantivo comum vida. Convém lembrar que
Xavier de Magalhães, como já mencionado, também realizou em 1868, trinta e oito anos
antes, uma tradução desse romance, o qual intitulou diferentemente da tradução da
Empreza da História de Portugal, Um homem atribulado. Já as traduções intituladas Os novos
trovadores e O neto de Cartouche, segunda parte do primeiro romance, suprimiram os subtítulos
que as compunham, uma vez que os originais das traduções acima foram intitulados Les
54
nouveaux troubadours: suíte des enfants du boulevard e Le petit-fils de Cartouche: suit des enfants du
bulervard, respectivamente. Nessas traduções também não há nenhuma menção quanto à
língua original nem ao texto fonte que teria sido utilizado pelo tradutor anônimo.
Vale atentar para a possibilidade de essas traduções serem na verdade retraduções,
visto que todos esses títulos traduzidos pela Empresa da História de Portugal já haviam
sido traduzidos anteriormente no século XIX e publicados por outras tipografias e casas
editoras como a Typographia de Salles, que nas décadas de 1860 e 1870 publicara traduções
de grande parte desses títulos. Das traduções publicadas pela Empreza da História de
Portugal, somente a de Um galucho não foi possível verificar se já havia sido realizada
anteriormente, visto que por meio desse título não foi possível chegar ao título do romance
original, provavelmente por tratar-se de um título com significado bem diverso do original,
como tantas outras traduções portuguesas de Paul de Kock. Contudo, não há como saber
de fato se essas traduções do século XX são novas traduções ou retraduções, pois como
mencionado, elas não fazem referência ao texto fonte utilizado, tampouco mencionam a
existência de outras traduções portuguesas anteriores dos títulos de Paul de Kock, ou
mesmo assinalam a língua dos romances originais, como se observa no quadro abaixo:
Título do
original
Data de
publicação
do original
Título da
tradução
Data de
publicaç
ão da
tradução
1907
Menção
do
tradutor
Menção da
língua de
origem
Editor
Local de edição
La petite Lise
1870
A menina
Lisa
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
O homem dos
três calções
(2vl)
O campo das
papoulas (3vl)
1907
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
1908
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
1864
A vereda das
ameixas
1909
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
La mare
d'Auteuil
[18??]
A lagoa
d’auteuil (3vl)
1906
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
La fille aux
trois jupons
1863
A menina das
três saias
1906
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
Une femme à
trois visages
[18??]
A mulher das
três caras (3vl)
1908
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
L’amour qui
passe et l'amour
qui vient
Gustave ou le
mauvais sujet
[18??]
Amor que
acaba e amor
que começa
Gustavo, o
estroina (2vl)
S.d
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
1908
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
Empresza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
L'homme aux
trois culottes
[18??]
La prairie aux
coqueticots
1862
Le sentier aux
prunes
(1821)
55
Título
desconhecido
[18??]
Um Galucho
(2vl)
1911
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
Souer Anne
[18??]
Irmã Anna
(2vl)
1911
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
La jolie fille du
faubourg
[18??]
1911
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
Les nouveaux
troubadours:
Les enfants du
boulevard (1 vl)
Un petit-fils de
Cartouche: Les
enfants du
boulevard (2vl)
Le concierge de
La Rue Du
Bac
Une jeune
homme
mystérieux
Monsieur
Choublanc à la
recherche de sa
femme
Un monsieur
très- tourmenté
1864
Menina bonita
do arrabalde
(2vl)
Os novos
trovadores
1909
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
1864
O neto de
cartouche
1909
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
Empreza da
História de
Portugal
1869
O porteiro da
Rua Du Bac
1906
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
[18??]
Um rapaz
mysterioso
1907
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
[18??]
O Sr.
Choublanc á
procura da
mulher
Uma vida
atribulada
1906
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
1906
Não
consta
Não consta
Henrique
Marques
[18??]
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
Empreza da
História de
Portugal
3. Conclusão:
Muito embora, no presente trabalho não tenha sido possível analisar todas as edições
portuguesas de Paul de Kock presentes no Grêmio Literário Português do Pará, apenas por
meio das que foram contempladas neste trabalho é possível perceber que houve uma
frequência contínua de publicação das obras do escritor em Portugal. Joaquim Nery
publicou edições consecutivas na década de 1840. Traduzir Paul de Kock era o essencial de
sua produção, e segundo Maria de Lourdes dos Santos, quando Nery ―já não tinha mais
romances de Kock para traduzir, o havia de imitar na tentativa de conservar a ‗galinha dos
ovos de ouro‘‖ (SANTOS, 1985, p. 5). De Xavier de Magalhães foram no mínimo 14
edições traduzidas, ao longo das décadas de 1860 e 1870, conforme demonstram as edições
atualmente presentes no Grêmio Literário Português do Pará. No século XX o romancista
também foi consecutivamente editado, sobretudo pela Empresa da História de Portugal,
que entre 1905 e 1911 publicou dezoito edições, geralmente mais de uma por ano, como o
demonstra o ano de 1906, em que constam cinco edições publicadas por essa empresa.
Por meio dessas edições traduzidas podemos verificar, ainda, que muitos dos títulos
originais dos romances de Paul de Kock ganhavam novos títulos quando traduzidos para a
56
língua portuguesa. Tal fato nos faz atentar para a questão da tradução e da função do
tradutor no século XIX, que não se limitava a simplesmente verter um texto de uma língua
para outra. A respeito da função do tradutor no Oitocentos Márcia Abreu assinala: ―seu
ofício não se resumia, de forma alguma, à passagem de um texto de uma língua a outra e se
desenvolvia numa zona incerta no interior da criação‖ (ABREU, 2008, p. 18). Sem as
restrições impostas pela noção de autoria e direitos autorais, durante o século XIX as
traduções
não
tinham
qualquer
obrigação
de
fidelidade
ao
texto
original.
(VASCONCELOS, 2002, 9-10). Tal fato deixava os tradutores ―livres‖ para realizarem nas
obras as intervenções que julgassem necessárias. Assim Les Étuvistes transforma-se em
Fidalgos e plebeus e La mare d’Auteuil em Benjamim Godichon. Muito embora não saibamos
ainda que outras alterações foram realizadas por esses tradutores além das mudanças de
títulos, é possível que corte de capítulos, acréscimo de episódios, etc., tenham sido
realizados20. Em virtude das mudanças de títulos, pode-se supor, no entanto, que as
traduções portuguesas possam ter operado outras e diversas alterações nos textos originais.
Isso implica em pensar que aqueles que liam as obras de Paul de Kock mediados por essas
traduções talvez lessem romances muito diversos dos originais escritos pelo autor.
REFERÊNCIAS:
ABREU, Márcia. Trajetórias do Romance: circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII e XIX.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2008.
KOCK, Paul de. Memorias de Paulo de Kock. Tradução de Pinheiro Chagas. Lisboa: C.S.
AFRA e Cia. s. d.
LISBOA, João Luís. Do editar ao editor: Portugal e as transformações no mundo do impresso no século
XIX, p. 12. In: Escola São Paulo de estudos avançados sobre a globalização da cultura no
século XIX. Disponível em: www.espea.iel.unicamp.br
MIRECOURT, Eugène. Les contemporains : Paul de Kock. 6. ed. Paris: Gustave Havard,
Éditeur,
1856.
Versão
eletrônica.
Disponível
em:
http://archive.org/details/pauldekock00mireuoft
RAMICELLI, Maria Eulália. Narrativas itinerantes: aspectos franco-britânicos da ficção brasileira, em
periódicos da primeira metade do século XIX. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2009.
SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos. As penas de viver da pena (aspectos do mercado nacional do
livro no século XIX). Análise social, vol. XXI, 1985, pp. 187-227. Disponível em:
analisesocial.ics.ul.pt/.../1223477558I9uAH0jy3Un61TI1.pdf
VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira de. Leituras Inglesas no Brasil oitocentista. In:
Crop: revista da área de língua inglesa e norte – americana do Departamento de Letras
Modernas/ FFLCH. USP, n. 8, 2012, pp. 223-247.
Para saber mais acerca dos procedimentos tradutórios realizados durante o Oitocentos no que tange à
prosa de ficção conferir: RAMICELLI, Maria Eulália. Narrativas itinerantes: aspectos franco-britânicos da
ficção brasileira, em periódicos da primeira metade do século XIX. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2009.
20
57
UM CANTO AOS QUATRO CANTOS:
o processo de universalização da narrativa O canto da mulher loira*
A SONG TO THE FOUR CORNERS:
the process of universalizing narrative The song woman's blonde
Alexandre Ranieri (UEL/SEDUC-PA)21
Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar o processo de adaptação da
narrativa O canto da mulher loira presente no CD-ROM Caleidoscópio Amazônico em
comparação com a transcrição da narrativa homônima retirada do livro Belém conta...
que deu origem a versão do Caleidoscópio, com vistas a entender o processo de
adaptação e tradução da narrativa como fator de universalização da mesma e investigar
de que forma a recriação e a tecnologia utilizadas ainda permitem a narrativa conservar
traços do "etnotexto" descrito por PELEN (2001) e representar uma "comarca oral"
segundo PACHECO (1992). Ou seja, se o mesmo ainda reflete a visão de mundo, usos e
costumes, mesmo que esse texto tenha sido recriado num outro formato, para outro fim
e público diverso. Portanto, pretende-se entender até que ponto a narrativa, no formato
em que se encontra, sofreu um processo de "desenraizamento" (WEIL 1943)ou, até que
ponto ela ainda encontra-se enraizada já que ainda conserva traços de "etnotexto" e
ainda representa, de certa forma, a "comarca oral" da Amazônia Paraense. Para tanto,
usaremos, também, como arcabouço teórico os estudos de autores como ZUMTHOR
(2005) e LEVY (1999).
Palavras-chave: Mulher Loira; Caleidoscópio; Narrativa; Universalização.
Abstract: This article aims to analyze the process of adapting the narrative The song
woman's blonde in this CDROM Caleidoscópio Amazônico compared to the transcript
of the story from the book of the same name Belém conta ... that originated version of
Kaleidoscope, aiming to understand the process of adaptation and translation of the
narrative as the same universal factor and investigate how technology used to recreate
and still allow the narrative preserve traces of "etnotext" described by PELEN (2001)
and represent an "oral region" according PACHECO (1992). That is, if it still reflects
the worldview and customs, even if the text has been recreated in another format, for
another purpose and diverse audience. Therefore, we intend to understand the extent to
which the narrative in the format in which it is, underwent a process of "uprooting"
(WEIL 1943), or to what extent it is still rooted since still retains traces of "etnotext"
and still represents somehow, the "oral region" Amazon of Pará. Therefore, we will use
also as theoretical studies of authors such as ZUMTHOR (2005) and Levy (1999).
* Artigo apresentado como requisito parcial para a conclusão da disciplina Texto e Hipertexto, ministrada
pelo professor Dr. Alamir Aquino Corrêa.
21
Doutorando em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Londrina sob a orientação do
Prof.Dr. Frederico Fernandes. Professor licenciado da Secretaria de Educação do Estado do Pará.
58
Keywords: Blond Woman; Caleidoscópio; Narrative; Universalizing.
1. Os primeiros cantos
Segundo Lotman (1975, P.291) a cultura não é um depósito de informações e
sim, um mecanismo organizado de modo extremamente complexo e que conserva as
informações, elaborando continuamente os procedimentos mais vantajosos e
compatíveis, recebendo as coisas novas traduzindo-as para outro sistema de signos.
Podemos citar como exemplo disso o "canto das sereias". Segundo uma das
muitas hipóteses acerca da "questão homérica" o mesmo (se é que realmente existiu)
teria coletado muitas das narrativas orais que circulavam na Grécia Antiga e as
compilou em dois livros que chegaram até os nossos dias: Ilíada e Odisseia.
No canto XII da Odisseia, Ulisses, ao retornar para Ítaca depois de uma jornada
de cerca de dez anos encontra com as sereias do mar. Todavia é alertado para os perigos
de escutá-las e pede aos seus companheiros de viagem que o amarrem na proa do navio
para que não seja levado pelo canto das sereias. (HOMERO, 2007 p. 150-160)
A história é clássica e até hoje encanta e aguça o imaginário em várias partes do
mundo. Filmes, representações teatrais, livros em vários gêneros e em variadas épocas,
desenhos animados, culturas afro, narrativas orais....
A narrativa que apresentamos, O canto da mulher loira, que foi retirada do CDROM22 Caleidoscópio Amazônico: uma aventura de imagens e cores, lançado em 1998,
é um exemplo disso: fez vários percursos desde sua provável origem até adquirir o
formato multimidiático que se apresenta no objeto analisado.
Em relação ao processo que fez com que a narrativa chegasse até a informante do
projeto IFNOPAP (O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia
Paraense), nada podemos afirmar com precisão. Claro, podemos imaginar um percurso
desde a cultura oral grega Antiga, passando pela Odisseia de Homero, retomando um
caráter oral na Idade Média e sendo difundida por toda a Península Ibérica (ou se
espalhando pelo mundo através da dominação romana), depois se infiltrando novamente
na cultura escrita, chegando ao Brasil através de Portugal até se readaptar novamente a
cultura oral da Amazônia paraense. No entanto, essas seriam apenas suposições e nunca
teremos a certeza de quais ou quantas maneiras o mito chegou em várias partes do
mundo.
22
Disco compacto que possibilita apenas o acesso aos dados, sem permitir que o usuário altere o
conteúdo apresentado.
59
O objetivo deste artigo é analisar até que ponto a narrativa O canto da mulher
loira é enraizada ou universal, levando em consideração não apenas os primeiros mitos
das sereias dos quais temos notícia, mas todo o processo que vai desde a coleta da
narrativa até uso da tecnologia digital como suporte multimidiático da história contida
no Caleidoscópio Amazônico.
2. Enraizamento e reenraizamento do canto
Sabendo que o presente artigo tem como objetivo analisar essa possível
universalização da narrativa em questão é importante ressaltarmos que a sua temática
por si só, como vimos anteriormente, já passou por um processo de universalização,
tendo em vista que se espalhou por várias partes do mundo antes ou ao mesmo tempo
em que se enraizava na cultura oral da Amazônia.
No entanto, isso só foi possível graças ao processo atribuído ao suposto Homero
de ter adaptado a cultura oral grega antiga às epopeias clássicas Ilíada e Odisséia. Para
Pierre Levy (LEVY, 1999, p.115) a escrita condiciona o universal, portanto, segundo
ele, não há universalidade sem escrita. Então, seguindo esse princípio, as narrativas de
sereias saíram de um estado enraizado na cultura oral popular grega antiga e passaram
por um processo de universalização até se enraizar novamente na cultura oral amazônica
que, como qualquer outra cultura pautada na memória coletiva, como vimos acima, nas
palavras de Lotman, se apropria do que lhe é
vantajoso, conforme tentaremos
Enraizamento
Gráfico 1: Enraizamento e universalização do canto das sereias
Narrativas
Orais
Da
Amazônia
Cultura de
massa e senso
comum do Sec.
XX
Grandes
Navegações
Domínio e
Expansão
romana
Ilíada e
Odisséia
Oralidade
Grega
demonstrar no gráfico abaixo:
Enraizament
o
Universaliza
ção
60
O gráfico acima mostra um eixo "X" de enraizamento que possui setas
apontando tanto para a direita quanto para a esquerda, o que significa dizer que o
processo de enraizamento do mito das sereias não segue uma única direção, para ambos
os lados pode haver um enraizamento. No entanto, os pontos em que isso ocorre com
maior destaque está nas extremidades do eixo.
Como não temos como saber onde exatamente começaram a ser difundidos os
mitos de sereia, a oralidade grega é nosso ponto de partida. Todavia, deixamos um
espaço entre a oralidade grega e o final da seta para a esquerda no intuito de explicitar
essa impossibilidade de sabermos se poderia haver algum outro ponto anterior às
narrativas orais gregas.
Entre o enraizamento a esquerda da tabela e o eixo de universalização ("Y")
destacamos alguns processos que contribuíram para tornar o mito universal. Entretanto,
é importante destacar que eles não foram os únicos. Temos, por exemplo, as inúmera
referências literárias em distintas épocas como o classicismo, o neoclassicismo e até
mesmo a modernidade. Temos traços, desde as novelas de cavalaria na Idade Média,
passando por autores como Camões até uma infinidade de referências na modernidade
como Kafka, por exemplo.
As narrativas orais da Amazônia, por outro lado, se encontram no extremo
oposto, um ponto em que o mito foi reenraizado em outra cultura distinta e separa pelo
tempo. Por certo, devem haver outros processos de enraizamento do mito em muitas
outras culturas mas, ou eles já aconteceram, ou acontecem de maneira concomitante a
das narrativas orais amazônicas.
Por isso que essas narrativas encontram-se tão próximas do eixo de
universalidade. Afinal de contas, foi graças a essa universalização que o mito pode ser
novamente enraizado em outra cultura. É por conta disso que precisávamos entender
esse processo, pois, temos uma narrativa amazônica como objeto deste estudo que,
diferente de outras analisadas por mim em outros estudos similares, já parte para um
processo de universalização que tem início em sua própria temática.
3. Desenraizamento e reuniversalização do canto
Segundo Jean-Noël Pelen, existe um Etnotexto com E maiúsculo, que seria uma
língua de legitimação da comunidade, aquilo que reflete hábitos, usos, costumes,
61
religião, imaginário em que a "comunidade se espelha, se reproduz, se codifica e se
decifra, se desenrola e principalmente, se garante e se legitima" (PELEN, 2001, p. 73).
Por outro lado, o etnotexto com "e" minúsculo seriam as múltiplas manifestações,
consideradas imperfeitas se comparadas com o Etnotexto. Esse suposto etnotexto seria
somente um traço (ou traços) do Etnotexto fora do contexto de produção e enunciação
propriamente dito.
O conceito de Etno e etnotexto se coaduna com o conceito de enraizamento
proposto por Simone Weil que afirma que:
O Enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais
desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de
definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real
ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva
vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do
futuro. Participação natural, isto é, que vem automaticamente do
lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente. (WEIL, 1943,
p. 411)
Portanto, o processo oposto ao descrito por WEIL e PELEN é o que chamamos
de desenraizamento ou universalização tendo em vista que o texto sai de uma
coletividade específica fruto do nascimento, da profissão e/ou do ambiente para uma
coletividade muito mais ampla. Portanto, a "aldeia amazônica", palco para a narrativa
aqui analisada, vai se tornando o que Mcluhan (MCLUHAN, 1972, p.58) chama de
"aldeia global". E, para entendermos um pouco melhor como esse processo funciona no
Enraizament
o
Gráfico 2: Processo de universalização da narrativa O canto da mulher loira
Animaçã
o
Áudi
Traduç
ão
Transcriç
ão
Gravaçã
o
"Contaçã
o"
Coleta
Etnotexto
Retextualizaçã
o
Caleidoscópio Amazônico, o gráfico abaixo pode ser esclarecedor.
Universalida
de
etnotexto
62
No diagrama acima, temos um eixo X chamado de Etnotextual e um eixo Y
poético oral ou etnotextual, no eixo Y encontram-se todas as fases de produção do CDROM do Caleidoscópio Amazônico: coleta, gravação, transcrição, retextualização,
tradução, gravação de áudio e a produção das animações. No ponto de interseção entre
os eixos, temos o momento de plenitude Etnotextual que, no exemplo das narrativas
orais amazônicas, é o momento performático único da transmissão oral, quando a avó,
por exemplo, conta uma história ao neto ou quando a uma família se reúne na porta de
casa para contar histórias aos amigos, parentes e vizinhos, o que Walter Benjamin vai
chamar de "experiência que passa de pessoa a pessoa" (BENJAMIN, 1994, p. 197).
A contação, portanto, é o momento de maior enraizamento da narrativa, ainda
que a sua temática emane de tempos idos. Por outro lado, do último item (Animação)
em diante temos um processo de universalização mais acentuado, no entanto, o que
acontece depois do encerramento dos trabalhos de confecção do CD-ROM, ainda não
puderam ser estudados. Mas podemos prever que, como o CD foi lançado na França e a
grande maioria das suas cópias ficaram com a UNESCO, podemos prever que seu
processo de universalização alcançou um nível elevado. Se, por outro lado, eles ficaram
em gavetas das quais nunca mais saíram, então, de pouco adiantou todo o processo.
Num segundo momento, um pouco mais afastado do eixo Etnotextual, temos a
coleta da narrativa, feita por um pesquisador treinado e que tem um objetivo diferente
da de qualquer membro da comunidade: o estudo, sociológico, antropológico, literário
etc., da mesma maneira que o informante, quando se predispõe a contar uma das
narrativas de seu cancioneiro pessoal não tem mais a intenção de educar, divertir, ou
entreter um dos membros da sua comunidade e que Carlos Pacheco (1992) denominará
"comarca oral". Ou seja, por mais próximo que esta fase esteja do Etnotexto pleno ela
não o é, pois já perdeu parte do seu sentido para a comunidade.
Todavia, ainda que afastado do Etnotexto, para José Carlos Bom-Meihy a coleta
ou entrevista ainda reflete a tradição oral:
Ainda que a tradição oral também implique entrevista com uma
ou mais pessoas vivas, ela remete às questões do passado
longínquo que se manifestam pelo que chamamos de folclore e
pela transmissão geracional, de pais para filhos ou de indivíduos
para indivíduos.
(...)
63
Os casos de tradição oral implicam o uso do que se chama de
narrativas emprestadas. Como para explicação do presente a
tradição de aspectos transmitidos por outras gerações, dá-se o
empréstimo do patrimônio narrativo alheio, quase sempre
herdado dos pais avós e dos velhos (BOM-MEIHY, 1996. p.
45).
Momento posterior é o da gravação, ele se desprende da fase anterior no
momento em que o instante performático no qual o informante conta ao pesquisador o
seu relato chega ao fim e fica registrado numa fita k7 de áudio e/ou vídeo ou qualquer
mídia que vai ser levada a um ambiente acadêmico onde será estudada ou transcrita (4º
momento da escala acima). Sobre o registro em mídia, Paul Zumthor em seu livro
Introdução a poesia oral diz:
A transmissão pela mídia implica, em geral, inscrição nos
“arquivos” sonoros. O texto é dessa forma liberado das amarras
do tempo: no momento da performance, a canção e o poema
existem ao mesmo tempo num presente e, virtualmente, num
futuro limitado apenas pela existência material do disco ou da
fita. Assim que termina a performance acrescenta-se a essa
dimensão, e nos mesmos limites, o passado (ZUMTHOR, 1997,
p. 6).
Para o autor, existe um momento (presente) no qual a performance da narração
acontece - tal qual o momento da encenação teatral . Quando esse momento é gravado
em mídia, ele passa a ter um passado arraigado e dependente da existência material do
instrumento de armazenamento.
A fase de transcrição é outro momento do processo. Daí em diante, a decisão da
equipe de pesquisadores de como fazer é importante. Na coletânea Belém conta... os
pesquisadores decidiram respeitar o modo de falar do informante, tentando adequá-lo à
transcrição escrita, recriando em texto escrito os momentos de oscilação e pausa, por
exemplo, usando reticências nesse caso ou colchetes quando não é possível para o
pesquisador entender o que foi dito pelo informante. Todavia, a transcrição deixa passar
muitas das características do perfil linguístico da comunidade.
Em entrevista concedida no dia 24 de julho de 2012, a pesquisadora Socorro
Simões, coordenadora do projeto IFNOPAP, afirma que o critério de transcrição não
levou em consideração os fatos fonéticos porque o objetivo do projeto era outro que não
necessariamente o linguístico. Então, a transcrição foi feita à maneira de um ditado
escolar, respeitando a gramática da língua portuguesa, sendo que, ao final da entrevista
64
as palavras que o entrevistador não compreendesse seriam perguntadas ao informante
para a formação do glossário.
A retextualização é uma recriação da mesma narrativa (ou de várias com o
mesmo tema) em que boa parte das marcas de pessoalidade são atenuadas ou pagadas
(dependendo do objetivo do texto).
Tanto a transcrição quanto a retextualização são processos de escrita e
representam um estágio superior no processo de universalização. A primeira ainda se
aproxima da oralidade por tentar simular os fatos da língua cotidiana tais como pausas,
inversões, coloquialismos... A segunda faz com que a primeira se coadune ao padrão da
gramática normativa, facilitando assim a assimilação por lusófonos e possibilitando uma
melhor tradução para outras línguas, em especial as do CD-ROM.
Pierre Levy afirma que:
“A escrita abriu um espaço de comunicação desconhecido pelas
sociedades orais, no qual tornava-se possível das mensagens
produzidas por pessoas que encontravam-se a milhares de
quilômetros, ou mortas há séculos, ou então que se expressavam
apesar de grandes diferenças culturais ou sociais. A partir daí, os
atores da comunicação, não dividiam mais necessariamente a
mesma situação, não estavam mais em interação direta”. (LEVY
1999, p. 115)
A escrita, como vimos anteriormente, é um fator de universalização dos mais
importantes por permitir o registro, muitas vezes, atemporal e ageográfico do que foi
contado.
Após a retextualização, as narrativas foram traduzidas. Em seguida, a gravação
de áudio foi feita ao mesmo tempo em que as animações em flash foram editadas. Ao
final, todas as partes foram agregadas às músicas de fundo.
4. O suporte ao canto
O projeto Caleidoscópio, é uma iniciativa da UNESCO (United Nations
Educational, Scientific and Cultural Organization) e da UNAMAZ (Associação de
Universidades Amazônicas) que visou à divulgação de obras de domínio público como
narrativas orais amazônicas contidas em CD-ROM.
O dispositivo digital apresenta quinze narrativas amazônicas recontadas por
pesquisadores do projeto todas com links de hipertexto, narradas em português por
65
Úrsula Vidal23, com versões em inglês, espanhol e francês, sendo que apenas cinco
delas possuem animações em Flash24.
A narrativa conta a história de um pescador que, na praia do "Vai quem quer",
na Ilha de Cotijuba, no município de Belém, escuta uma bela canção vinda de uma
mulher muito bonita que estava com um espelho admirando-se sentada em uma pedra.
A moça se dizia "encantada" e pede ao pescador que lhe retire o encanto. Entretanto,
mesmo fazendo todos os procedimentos que a mulher loira havia lhe pedido, no último
instante o homem sente medo e acaba não concluindo a tarefa.
A transcrição a partir do relato da informante Sandra Correia, encontra-se no
livro Belém Conta...(SIMÕES; GOLDER, 1995), antologia de narrativas coletadas pelo
projeto no ano de 1994 que deram origem à série Pará conta... que lançou também os
livros Abaetetuba conta... e Santarém conta.... O projeto também vislumbrava lançar
outros números referentes a outras cidades nas quais houve coleta de narrativas.
Fator importante ao processo de universalização da narrativa em questão, a
tecnologia empregada na construção do CD-ROM é o que lhe permitiu sair de um
estágio puramente oral de transmissão para a multimidialidade na qual se encontra.
Assim, é importante descrevermos o suporte digital no qual se encontra a narrativa para
posteriormente entendermos a sua importância no processo.
Todo o CD foi feito em Flash, programa que trabalhava em princípio, somente
com gráficos vetoriais25, no entanto, a partir da sua quinta versão, o Flash 5.0, foi
possível criar aplicações completas com botões que interagem com o usuário e
hiperlinks para navegação. Vamos descrever alguns deles até percorrermos o caminho
necessários para se chegar a narrativa O canto da mulher loira.
23
"Ursula Vidal tem 40 anos, é Jornalista, Apresentadora, Locutora, Diretora e Produtora Executiva.
Tem 25 anos de experiência na área da comunicação. Em 1987, começa a trabalhar como locutora,
passando pelas rádios Belém FM, Cultura FM e Liberal FM, de Belém do Pará. Em 1989, passa a
trabalhar como repórter e apresentadora da TV Cultura do Pará.
Ainda como locutora, mas já morando no Rio de Janeiro, trabalhou na Rede Globo de Televisão, durante
4 anos, narrando quadros do programa FANTÁSTICO. Também atuou como locutora das chamadas da
Televisão Educativa (TVE Brasil) e da TV digital SKY.
De volta a Belém, em 2000, assume a direção de jornalismo do SBT, onde editou e apresentou o "Jornal
SBT Pará" por 10 anos. Atualmente dirige e apresenta o programa " Etc & Tal"." (VIDAL, 2012, S/N)
24
Programa utilizado para a criação de animações interativas em gráficos vetoriais.
25
Ou seja, que se movem num eixo x espacial e num eixo y temporal, criando avatares que se movem
num espaço e num tempo predefinidos.
66
Figura 1: Abertura do CD-ROM Caleidoscópio Amazônico
De início, ao som do violão de Salomão Rabib26 vemos ao centro uma imagem
representativas de todas as histórias contadas no CD. A esquerda um menu com
"Apresentação" que pode levar a um texto de apresentação que trata da idealização do
projeto e sua abrangência; "O Caleidoscópio Amazônico", com informações sobre as
narrativas contidas no dispositivo; "As narrativas", com as histórias propriamente ditas;
"Bases de dados", com narrativas do projeto IFNOPAP e algumas teses e dissertações
feitas a partir desse material. Por fim, o botão "Sair" encerra o aplicativo.
Abaixo, temos links que levam a versões em inglês, francês e espanhol, além de
um botão, com uma nota musical que serve para diminuir ou aumentar o volume em
todo o programa tanto da música de fundo quanto das narrações. Há também, no canto
inferior esquerdo, um link que leva até os créditos.
Clicando em "As narrativas":
26
Músico violonista paraense de renome internacional
67
Figura 2: Submenu de narrativas
Temos outro menu que exibe as cinco primeiras narrativas além de botões,
representados por botos da Amazônia, que levam, de maneira cíclica a outras cinco
narrativas tanto para frente quanto para trás. Abaixo, um botão de retorno ao menu
inicial.
Acessando o botão "O canto da mulher loira" temos acesso a narrativa que será
melhor descrita adiante em comparação com a sua transcrição original.
5. O canto da mulher loira
O botão acima especificado nos leva imediatamente a narrativa que, como
podemos ver abaixo possui imagens de fundo com a mulher loira em várias poses, uma
barra de rolagem estilizada, um botão de retorno ao menu anterior e um botão e um
botão com uma nota musical tal qual o do menu inicial, mas que, quando clicado dá
inicio a narração na voz grave de Ursula Vidal.
68
Figura 3: O canto da mulher loira
A narrativa é uma das dez, presentes no CD-ROM, que não possui animações em
flash. Caso contrário, haveria um botão a mais para se inicializar a apresentação
concomitante a narração e a leitura do texto.
Sobre a voz de Ursula é importante ressaltar que mesmo tendo nascido no Pará, a
pessoa quem empresta a sua voz para a narração dificilmente seria caracterizada como
nativa do Estado. Sua voz trabalhada, de quem, durante quatro anos foi narradora do
programa Fantástico da Rede Globo de televisão em muito pouco lembra o sotaque
tipicamente paraense.
A escolha da voz foi feita, supostamente, por sua beleza e timbre únicos. Então,
um traço da multimidialidade que poderia, de certa forma, resgatar o ato de se contar
histórias como uma experiência sonora próxima da espontaneidade não se cumpre pois,
uma voz tão bem trabalhada e que apenas lê (ainda que dando certa interpretação) o que
foi escrito, acaba por afastar ainda mais o texto do seu enraizamento e mandá-lo mais
adiante no processo de universalização.
69
A música de fundo Depois da chuva do Maestro Tó Teixeira27 tão pouco contribui
para uma identificação de um nativo pois, como autor de música erudita, suas
composições nunca circularam entre as camadas mais populares. O som exótico lembra
a Amazônia, mas não a população que faz circular as lendas e mitos e sim uma
Amazônia turística envolta nos mistérios que a música parece representar.
A narrativa começa com a frase " Aquela senhora conta essa história e diz que é
verídica." em comparação com versão transcrita temos o seguinte:
Bem, isso foi um causo que uma senhora contou. Ela falou que
foi verídico, lá na ilha do Cotijuba. Que foram dois senhores
pescar. Eram pescadores mesmo e, quando eles chegaram lá,
nesta ilha, no "Vai Quem Quer". Eles pescando... Aí, um ouviu
um canto muito bonito. Aquele canto, um canto lindo mesmo, e
ele disse:
- Quem é que tá cantando? Aí ele foi, foi, foi, ... Ele deixou o
outro lá e foi remando para onde vinha aquela música e aquele
canto maravilhoso. Quando ele viu, uma mulher muito bonita.
(SIMÕES; GOLDER, 1995, p. 43).
É interessante observar que a mesma formula narrativa que exime a
responsabilidade do narrador sobre o que está sendo narrado é utilizada, todavia de
maneiras diferentes. No primeiro caso, o pronome demonstrativo "aquela" é utilizado na
função de pronome indefinido. "Aquela", nesse caso, não aponta ninguém em especial.
O autor da recriação se aproveita da impessoalidade da variante de prestígio para fazer
esse jogo com o leitor.
No segundo caso, uma senhora é indicada como autora do causo, a expressão
"uma senhora" tem a mesma carga semântica, nesse caso, de "aquela senhora". Tendo
em vista que no momento da gravação o informante tinha o entrevistador bem na sua
frente não seria possível usar esse recurso pois, normalmente, se deve apontar para a
pessoa a quem se refere como "aquela". Sobre essa formula a Socorro Simões diz:
A aceitação pacífica da inter-relação entre dois mundos, o do
natural e do sobrenatural, manifesta-se na enunciação com
marcas impressivas de testemunhos da verdade do tipo: "eu vi",
"aconteceu com o meu avô", "ele conta até hoje", "a azagaia
ainda está atrás da minha porta", "foi verídica mesmo, todo
27
Antônio Teixeira do Nascimento Filho violonista erudito paraense de que morreu em meados do Século
XX
70
mundo conhece", "e o Raimundo, esse meu marido, viu uma
matinta" (SIMÕES, 2011, p. 191).
Então, mesmo sendo uma recriação, o primeiro texto reflete uma particularidade
da cultura oral paraense. O autor decidiu deixar esse traço mesmo reestruturando a
narrativa.
A expressão "Região do Cotijuba" encontra-se em destaque porque é um
hiperlink, clicando nele, abre-se a seguinte janela com informações sobre, e uma foto da
vila de Cotijuba e da praia do "Vai Quem Quer":
Figura 4: Região do Cotijuba
Qualquer pessoa que resida na cidade de Belém, conhece (ainda que apenas
tenho ouvido falar) a ilha de Cotijuba. Não haveria necessidade de incluir um link para
explicar onde fica, o acesso e as atrações se o CD tivesse sido feito para circular na
capital do Estado. O que nos leva a crer que, o mesmo foi feito para pessoas de fora.
Inclusive, adjetivos e informações meramente turísticas podem ser observadas tais como
71
"paraíso", "charmoso", "passeio de charrete", "city-tour"... reforçam a ideia de que o
objeto não foi feito para o público local.
Ainda levando em consideração os trechos acima é, no mínimo curioso,
constatar a diferença na descrição do canto. No segundo caso, não há dúvidas sobre a
beleza do canto, no entanto, sua sobrenaturalidade não é sequer sugerida, enquanto que
no primeiro a expressão "não existia" já o sugere.
O pescador depois de encontrar com a mulher loira que cantava tão bem,
descobre que a moça, metade mulher, metade peixe era encantada. A bela mulher lhe
pede ajuda para desfazer o encanto. Pelen nos diz que um dos deveres das narrativas
orais é "definir os limites entre o mundo natural e o mundo sobrenatural, o aqui e o
além, e são os contos de fadas, as lendas e as narrativas de experiência (narrativas
fantásticas)" (PELEN, 2001, p. 56).
Dando continuidade:
Figura 5: O canto da mulher loira
Na transcrição:
Ele conversou com ela e foi embora. Quando foi no dia em que
ela marcou, ele veio. Como eles saem de madrugada para
pescar, neste dia ele saiu mais cedo. A mulher dele disse:
- Poxa, Fulano, tu vais saindo tão cedo.
Então, ele falou que não era para falar para ninguém aquilo. Não
era para contar nem para o amigo dele. Aí quando chegou
naquele dia, ele levou a corda e ajeitou aquele pau bem grande
mesmo, e a mulher dele:
- Para quê isso?
72
Ele:
-Não, eu vou levar, que eu vou ver se eu faço uma pesca
boa.(SIMÕES; GOLDER, 1995, p. 44).
O senso comum não acusa problemas no entendimento da palavra "pescadores".
A mesma encontra-se no léxico da língua portuguesa em qualquer região do Brasil,
então, por que a mesma precisou, no CD-ROM, de uma explicação para o seu
significado? Podemos supor que para as versões em outras línguas a explicação em
torno do nome poderia se fazer necessária, mas por um equívoco da equipe, a
explicação também acabou sendo usada em português. O que reforça tal ideia é a
apresentação do CD:
Observando a apresentação do CD, vemos que suas pretensões são em escala
mundial e, portanto, o público-alvo não é o brasileiro, em específico, mas pessoas e
instituições de outros países, o que explica, em partes, alguns hiperlinks parecem tão
óbvios aos falantes da língua portuguesa.
73
É provável que os organizadores do projeto tenham, portanto, se preocupado em
demonstrar ao grande público de outros países que a pesca é uma das principais
atividades dos caboclos da região amazônica, a qual ainda tem territórios inexplorados e
vive, em grande parte de culturas de subsistência.
Não nos preocupamos, neste artigo, com as diferenças, algumas vezes óbvias,
existentes entre os textos, tais como: repetições e desvios a norma culta, comuns na fala
cotidiana e que procuram ser simulados na transcrição - que por si só, a meu ver, já
demonstram o enraizamento da narrativa- e sim, tentamos analisar as adaptações que
levaram ou não em consideração o perfil cultural da sociedade em questão.
6. Aos quatro cantos
Procurando justificar o presente artigo trago à luz um dos questionamentos de
Pelen:
[...] se a literatura oral dos nossos dias tende a diminuir, quais
foram as instituições de produção e de reprodução do sentimento
da comunidade que a substituíram. Seguindo qual dinâmica e
por quê? Por outro lado, quais são os seus polos de resistência?
(PELEN, 2001, p. 70).
A afirmação do autor é indiscutível e já vinha sendo afirmada por Walter
Benjamin no início do século XX. Com o advento da microinformática, essa tradição
parece diminuir ainda mais. No entanto, iniciativas como as do Caleidoscópio não
seriam esses polos de resistência, ainda que representem ao mesmo tempo uma espécie
de "fossilização"? Essa "fossilização" e a versão para uma plataforma informatizada não
contribuiriam para uma universalização de fatos restritos de uma comunidade, em prol
de uma comunidade cada dia mais globalizada?
Sobre isso Marshall McLuhan nos diz:
[...] certamente as descobertas eletromagnéticas recriaram o
"campo" simultâneo de todos os negócios humanos, de modo
que a família humana existe agora sob as condições de uma
"aldeia global". Vivemos num único espaço compacto e restrito
em que ressoam os tambores da tribo. E isto, em tal grau, que a
preocupação pelo "primitivo" é hoje em dia tão banal quanto a
do século dezenove pelo "progresso" e igualmente irrelevante
para os nossos problemas (MACLUHAN, 1972, p. 58).
74
Então, quando encontramos numa narrativa como O canto da mulher loira, um
determinado fato específico da região norte ou do município de Abaetetuba descrito, no
qual notamos traços de culturas diversas ao redor do mundo, não estamos inserindo a
narrativa nessa aldeia global, em que "primitivo" se torna irrelevante?
Na análise, observamos muitos desses traços comuns a muitas culturas, assim
como encontramos muito de específico e etnotextual. Talvez a análise de outras
narrativas do corpus possa nos ajudar a entender um pouco melhor esse processo em
que o enraizamento é aos poucos substituído pela universalização.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 197-221.
BOM-MEIHY. José Carlos. Manual de história oral. São Paulo: Edição Loyola, 1996.
HOMERO. Odisseia. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2007.
LOTMAN, Iúri. Tipologia della cultura. Milano: Bompiani, 1975.
MACLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg. São Paulo: Editora Nacional, 1972.
PACHECO, Carlos. La comarca oral: la ficcionalizacion de la oralidad cultural en la
narrativa latinoamericana contemporanea. Caracas : Ediciones La Casa de Bello, 1992.
PELEN, Jean-Noël. Memória da literatura oral. A dinâmica discursiva da literatura oral:
reflexões sobre a noção de etnotexto. Trad. Maria T. Sampaio. In: Projeto História –
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de
História (PUC-SP), v.22, pp. 49-77, 2001.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. p. 157-167.
SIMÕES, Maria do Socorro; GOLDER, Christophe. Belém conta... Belém: CEJUP,
1995.
SIMÕES. Maria do Socorro. Memória e marcas de enunciação na voz do contador de
narrativas amazônicas. In: EWALD, Felipe Grüne... et al (org). Cartografias da voz:
poesia oral e sonora: tradição e vanguarda. São Paulo: Letra e Voz. Curitiba: Fundação
Araucária, 2011.
WEIL, S. (1943) A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Antologia
organizada por Ecléa Bosi. 2.ed.ver. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, pp. 413-440.
ZUMTHOR, P. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
CD-ROM
CALEIDOSCÓPIO Amazônico: uma aventura em imagens e cores. Produção: Ana
Prado e Osmar Aruok. Local: Belém -PA, 1998. CDROM.
Entrevista
SIMÕES, Maria do Socorro.Professora da UFPA. Entrevista concedida a Alexandre
Ranieri. Belém, 24 jul. 2012. Gravação digital 50min estéreo.
Sites
VIDAL, Ursula. Apresentação. Disponível em:
http://www.vozfemininaursulavidal.com.br/index.php/apresentacao. Acesso em 28/12/2012 às 19h40.
75
REFLEXÕES CRÍTICAS ACERCA DO ENSINO DE LITERATURA
EM SALA DE AULA
Aline Cristina Garcia
Resumo: O ensino da Literatura está tangenciado por uma crise, a qual é ocasionada de
um lado por estratégias de ensino inadequadas e, de outro, pelo advento da cultura de
massas e seus pseudo (ou não) benefícios. Diante dessa constatação, buscamos a
compreensão da crise da Literatura nessa nova era - no mundo globalizado e digital. E, no
início desse percurso, ressaltamos que toda crise aponta para dois caminhos: um é do
perigo e o outro, o da oportunidade. Sendo assim, nesse artigo, procuramos pontuar os
perigos e as oportunidades, para o ensino da arte literária, que esse novo tempo, conduzido
pela globalização, pelas evoluções tecnológicas e pelas mudanças sociais e
comportamentais, gera. Enfocaremos a importância da assunção da Literatura enquanto
objeto estético e não como objeto histórico ou moral, pois é importante pontuar que o
texto literário dialoga e poetiza a história social, mas nunca a reproduz fielmente. Sendo
assim, é preciso promover o ensino da Literatura focalizando-a enquanto produção estética,
e não enquanto retratos históricos articulados por uma linguagem bem elaborada; e, ainda
evidenciar que sua função é promover, antes da formação moral, a experiência estética.
Além disso, refletiremos como a literatura dialoga com outras linguagens, mas não pode ser
substituída por elas. Finalmente, o texto se volta para uma reflexão sobre a relação entre a
Literatura e a escola, seus problemas e suas soluções.
Palavras-chave: Realidade Educacional; Magia literária; Reflexões; Sala de aula.
Abstract: The teaching of literature is tangent to a crisis, which is on one side caused by
inadequate teaching strategies and on the other, by the advent of mass culture and its
pseudo(or not) benefits. Given this finding, we seek to understand the crisis of literature in
this new era-ina globalized and digital world. And at the begin ning of this journey, we
emphasize that every crisis points to two ways: one is the dangerand the other, opportunity.
Therefore, in this paper, we point out the dangers and opportunities for the teaching of
literary art, this new era, driven by globalization, the technological and social change, and
behavioral causes. Focused on the importance of the assumption of Literature as an
aesthetic object rather than an object of historical or moral, it is important to point out that
the literary text dialogues and poet social history, but never reproduces faith fully. There
fore, it is necessary to promote the teaching of literature while focusing on the aesthetic
production, and not as historic portraits linked by a well-designed language, and still show
that its function is to promote, before the formation of moral, aesthetic experience. In
addition, we will reflect how literature speaks too their languages, but can not be replaced
by them. Finally, the text turns to a discussion on the relationship between literature and
school,
their
problems
and
their
solutions.
Keywords: Educational Reality; Literary Magic; Reflections; The classroom.
76
INTRODUÇÃO
Nossas preocupações com a arte literária se despontam nos textos que os livros
didáticos apresentam aos alunos. Textos vagos e redimensionados que não transmite ao
leitor a palavra viva, a dialética, à concepção de palavra enquanto signo variável e flexível.
Na tentativa de analisar as relações entre a literatura² e a escola tentaremos
desmistificar alguns conceitos para compreender o ensino da literatura em nossa sociedade,
cujo estudo, permite formar cidadãos capazes de não só ―ler‖ o mundo, mas também ―ler‖
a si mesmos e aos outros. Isso porque a recepção dos textos literários nos faz pensadores
da própria vida.
Sabendo que a literatura é a única arte que dialoga com todas as outras linguagens.
O ato de ler torna-se um processo abrangente e complexo, um processo de compreensão e
de intelecção de mundo, onde envolve uma característica essencial e singular do homem
desde a sua capacidade simbólica e de interação com o outro pela mediação da palavra.
Nessa perspectiva vamos esboçando recursos que podem solucionar esse fracasso escolar
que é o ensino de textos literários.
Entre idas e vindas por textos e autores literários vamos ―caracterizando‖ os
sabores e dissabores do ensino da literatura. É como se fosse uma montanha-russa, há
prazeres e desprazeres. E nessa trajetória, vamos fazendo algumas reflexões acerca do
ensino da literatura em sala de aula.
Buscaremos tornar mais nítidas as relações entre literatura e educação. Como se
sabe, essas relações são antigas, mas vamos centrar nossa atenção em como se tem
ensinado literatura no Brasil e as consequências dessa tarefa na formação dos leitores
literários.
77
_________________
²A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se
dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada.
78
1- REFLEXÕES CRÍTICAS ACERCA DO ENSINO DE
LITERATURA EM SALA DE AULA
A literatura é um discurso carregado de vivência íntima e profunda que suscita
no leitor o desejo de prolongar ou renovar as experiências que veicula. Constitui
um elo privilegiado entre o homem e o mundo, pois supre as fantasias,
desencadeia nossas emoções, ativa o nosso intelecto, trazendo e produzindo
conhecimento. Ela é criação, uma espécie de irrealidade que adensa a realidade,
tornando-nos observadores de nós mesmos. Ler um texto literário significa
entrar em novas relações, sofrer um processo de transformação.
(CHIAPPINI, 1998, p. 22-23)
Para explorar a realidade educacional literária, pintamos um quadro com poucas
cores, muitos rabiscos e uma incógnita a desvendar. Neste cenário perturbado que vamos à
busca da verdade... À busca de despertar o prazer pela leitura.
Sendo necessário que o ensino da Literatura efetive um movimento contínuo de
leitura, partindo do conhecido para o desconhecido, do simples para o complexo, do
semelhante para o diferente, com o objetivo de ampliar e consolidar o repertório cultural
do aluno.
Cabe aqui o deleite de contar um pouco sobre histórias de grandes personalidades
literárias que fizeram à diferença no Brasil. Um dia, José de Alencar, com sua simplicidade,
sentara ao lado de sua mãe e de outras mulheres da família para ler em voz alta folhetins
açucarados, que elas ouviam, às lágrimas, enquanto costuravam e faziam tarefas domésticas.
No mesmo panorama, descrevo a viagem ao sertão, essa que Guimarães Rosa pedia
notícia de tudo e tudo anotava ―ele perguntava mais que padre‖, consumiu ―mais de 50
cadernos de espiral, daqueles grandes‖, com anotações sobre a flora, a fauna e a gente
sertaneja, seus usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos anedotas, canções,
casos, estórias... Surge então uma nova efervescência na crítica literária, um novo êxito de
público.
Essas duas transcrições literárias partem do estilo de cada autor. E para Massaud
(2000, p. 43) ―só a literatura pode expressar o redemoinho profundo que constitui a
essência e a existência do homem posto em face dos grandes enigmas do Universo, da
Natureza e de sua mente‖. Ler implica troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor,
mas também com a sociedade onde ambos estão localizados. Compartilhar visões de
mundo entre os homens no tempo e no espaço é uma boa pedida para explicar um pouco
dessa magia literária. É nessa interação e necessidade que se busca a verdade, quanto, ao
ensino de literatura e o seu aprendizado... O prazer de ler.
79
Na leitura e na escritura do texto literário encontramos o senso de nós mesmos e da
comunidade a que pertencemos. A literatura, como afirma Cosson (2011, p.17) nos diz o
que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. Nada mais é
que uma experiência a ser realizada!
De fato, é o texto literário que possibilita ao leitor mergulhar no universo ficcional;
identificar-se com personagens, fatos históricos e culturais; vivenciar injustiças sociais;
conhecer lugares e épocas anteriores ao seu nascimento; experimentar a catarse e, quando
voltar à tona, encontrar-se numa terceira margem, da qual poderá rever-se, ampliando seu
conhecimento de mundo e de si mesmo.
Considerando que a literatura é a representação ficcional de todo um imaginário
coletivo, o leitor, aparentemente preso nas malhas do texto, salta para a vida e para o real
na medida em que a leitura da palavra escrita pode conduzi-lo a uma interpretação do
mundo. Disso podemos depreender que o papel do professor é acima de tudo inserir o
aluno num universo cultural literário, como afirma Perissé (2003, p.91):
A cultura literária é uma das melhores influências que podemos provocar em
nós mesmos, e praticamente a única se quisermos escrever com mais segurança,
com mais agudeza. Cultura é cultivo, é cultivar-nos, é receber com bom grado e
desenvolver em nós o que outras pessoas já pensaram, já disseram, já
escreveram. A formação cultural é a condição para desenvolvermos nossos
talentos adormecidos, nossas inclinações ainda mal conhecidas, nossos
raciocínios ainda esboçados, nossa criatividade talvez um pouco tímida, nossa
originalidade necessitando crescer em intensidade.
Em outras palavras, o aluno ao ser inserido nessa cultura literária terá todas as
possibilidades de escrever melhor, produzir ciência e, acima de tudo, de ser um cidadão
crítico.
Mas a grande dificuldade de ensinar literatura não reside somente no fato dos
professores não trabalharem com o texto em sala de aula, muitos até o fazem. O problema
maior está em como esse texto é trabalhado. Até que ponto a prática dessa leitura é
significativa para o leitor? Quantos alunos conseguem realmente ultrapassar a etapa da
simples decodificação dos signos, passar ao nível da compreensão e chegar, de fato, a
interpretação do texto?
Sabemos que a existência da literatura só toma corpo por meio da prática da leitura,
portanto o leitor não pode deixar de exercer seu papel no processo da criação literária. O
texto literário exige não só o leitor comum, que lê sem nenhum compromisso com o ―fazer
literário‖, mas também cobram àqueles leitores capazes de seguir os passos de leitores
80
profissionais, os quais, além de sentir a poeticidade do texto literário, conseguem analisá-la,
descrevê-la ou interpretá-la.
Para isso, é preciso que nossos professores leiam as obras em sala com seus alunos
de uma perspectiva crítica, ou melhor, é necessário que nossos professores sejam leitores
críticos e conheçam os meios para se entrar num texto literário.
Nesta perspectiva que Cosson (2011, p. 45) elaborou estratégias para o ensino de
literatura; uma sequência básica do letramento literário: motivação, introdução, leitura e
interpretação. Cada passo, com sua responsabilidade de inserir o aluno neste universo! Ao
seguir as etapas, o professor sistematiza seu trabalho e oferece ao aluno um processo
coerente de letramento literário.
O ato de ler é um processo abrangente e complexo; é um processo de
compreensão, de intelecção de mundo que envolve uma característica essencial e singular
ao homem: a sua capacidade simbólica e de interação com o outro pela mediação da
palavra. Por isso, o bom professor não motiva seus alunos a decifrar signos e sim a
compreender todo o seu contexto, como já mencionado anteriormente.
Trazemos agora outro exemplo de obra que com sua linguagem rica, sobressaiu as
demais na Semana da Arte Moderna - A obra Macunaíma (1965), de Mário de Andrade,
escrito pelo autor em suas férias junto com o cheiro da natureza, junto com as frutas e
aves... Mangas, abacaxis e cigarras de Araraquara; um brinquedo. Alusões sem malvadeza
ou sequência... Existe a fantasia! Não se escutava as proibições, os temores, os sustos da
ciência ou da realidade – apitos dos policiais, breques por engraxar... Assim, surge o herói
sem nenhum caráter.
São histórias intrigantes, que despertam atenção dos interlocutores de plantão. Os
textos de Manoel de Barros comparados com doces de cocos... Quanta beleza em sua
linguagem... Quanta fantasia na sua arte de transcrever sentimentos! Como pudera dizer
que ―a quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso‖ torna-se prazeroso elevar essa fruição.
Só a literatura pode oferecer a imaginação pela ficção, independente da falta de
público, da carência das escolas... Uma coisa é certa - não podemos viver sem essa
imaginação! Portanto, a literatura aparentemente destrói o real ao enunciar um mundo
construído pela palavra.
A Literatura Brasileira, desde os jesuítas, já mudou muito no Brasil. Cada século,
ano, traz algo de novo no mercado. E convenhamos, que ao passar dos anos, os textos
literários se tornaram ainda mais fragmentados, ainda mais desvalorizados. Alguns
estudiosos previram até a morte dos livros e do hábito de ler devido o avanço do cinema,
81
da televisão, dos videogames, da internet, tudo isso iria tornar a leitura obsoleta. Retrato,
pintado ao vivo!
Recentemente a Revista Veja (2011, nº. 2217, p. 99 - 108) divulga a nova geração
que descobre o prazer em ler. Muitos jovens já sentem gosto em perder (ou ganhar) horas
em uma livraria, assim, como confessam que eram leitores imaturos, na época do Ensino
Médio, tempos em que professores cobravam uma interpretação de Machado de Assis.
Além do mais, o mercado livresco juvenil se expandiu, as vendas dos sucessos
globais, como Harry Potter, Crepúsculo e Percy Jackson, já invadem o gosto da moçada. Barthes
(1971, p. 13) em meio a suas pesquisas já dissera que ―a literatura não é mais sentida como
um modo de circulação socialmente privilegiado, mas como uma linguagem consciente,
profunda, cheia de segredos, dada ao mesmo tempo como sonho e como ameaça.‖ Dois
caminhos distintos que se guia o leitor. O texto literário é um labirinto de muitas entradas,
cuja saída precisa ser construída uma vez e sempre pela leitura dele.
Ao mediador, é necessário que ele se abstenha de seu papel de guardião do saber,
sem abdicar, contudo, de sua condição de leitor mais experiente. Essa competência préestabelecida pressupõe que o professor trabalhe efetivamente a leitura da obra literária com
seus alunos.
Outra de nossas responsabilidades enquanto mediador de leitura é desenvolver a
noção de que a Literatura dialoga e poetiza a história social, mas nunca a reproduz
fielmente e, devemos, por isso, promover o ensino da arte literária enquanto objeto
estético, não enquanto objeto histórico, pois ―quando se estuda a sociedade, conforme as
imagens literárias, sempre se assimilam formas falsas e distorcidas, porque a obra de arte
nunca reflete a realidade em toda a sua plenitude e em toda a sua verdade‖ Vigotski (2003,
p.228). Isso ocorre, segundo Vigotski (2003, p. 228) porque a literatura é uma recriação da
realidade, ela ―representa um produtosumamente complexo, elaborado pelos elementos da
realidade, ao qual aporta um conjunto de elementos totalmente alheios‖.
Portanto, estudar a obra de arte como um objeto estético significa possibilitar ao
aluno a vivência estética da obra, a percepção e a leitura criadora do texto, uma atitude
estética autônoma, flexível, independente de regras morais fragmentadas por textos pobres
exibidas no material didático, que, muitas vezes, posiciona-se enorme, colossal, no mais
alto degrau em que se postaram os saberes promovidos por sua história pessoal, e, em
decorrência disso, apresenta uma visão disforme (aos olhos do aprendiz que não comunga
com essas experiências e deforma a poética do objeto artístico). Esse procedimento dá
82
vazão aos resultados negativos tanto para o professor quanto para o aluno, por que como
nos elucida Vigotski (2003, p. 221):
Subtende-se que, com esse critério, a obra de arte fica desprovida de seu valor
independente, transforma-se em uma espécie de ilustração de uma tese moral
geral; toda a atenção concentra-se justamente nesse último aspecto, e a obra de
arte fica fora da percepção do aluno. Na verdade, com essa concepção não se
criam nem educam atitudes e hábitos estéticos; não se comunica a flexibilidade,
a sutileza e a diversidade das formas às vivências estéticas; pelo contrário
transforma-se em regra pedagógica a transferência da atenção do aluno para seu
significado moral.
Confere ao ensino de Literatura uma natureza completamente díspar dos seus
objetivos verdadeiros: a compreensão da arte em seus sentidos: original _ a arte catártica;
clássico _ a arte pelo próprio processo de composição artística: processo equilibrado,
perfeito, a arte pela arte; romântico _ a explicitação subjetiva dos momentos do processo
de emaranhamento sentimental em que se reconcebe a catarse; realista_ a arte como
instrumento de denúncia e, até mesmo do sentido moderno, como todo o processo de
desconstrução e reconstrução purista ou antropofágica.
O ensino da Literatura está tangenciado por uma crise, a qual é ocasionada de um
lado por estratégias de ensino inadequadas e, por outro, pelo advento da cultura de massas
e seus pseudo, ou não, benefícios, os quais foram elencados por Bosi, em Os estudos literários
na Era dos Extremos, como: projeção direta do prazer ou do terror, a desmaterialização da
literatura pela imagem visual, a transparência que nega a mediação, a substituição dos
efeitos poéticos do significado e do significante pelos efeitos imediatos e especiais, ou seja,
a mídia, em função do interesse popular no imediato, no sintético (interesse que a ela
mesma educou), no simplificado e traduzido, transforma um capítulo de um livro em uma
cena de cinco minutos e, nesse processo de condensação acaba por valorizar o enredo em
detrimento da poética, o que destitui o texto de sua função literária.
Bosi, (1994, p. 109-110) por meio da Sociologia da Literatura e da Estética da
recepção, busca entender a relação entre o escritor e o público nessa Era dos Extremos:
O indivíduo-massa, a personalidade construída a partir da generalização da
mercadoria, quando entra no universo da escrita (o que é um fenômeno deste
século), o faz com vistas ao seu destinatário, que é o leitor-massa, faminto de
uma literatura que seja especular e especular. Autor e leitor perseguem a
representação do show da vida, incrementado e amplificado. Autor-massa e
leitor-massa buscam a projeção direta do prazer ou do terror, do paraíso do
consumo ou do inferno do crime _ uma literatura transparente, no limite sem
mediações, uma literatura de efeitos imediatos e especiais, que se equipare ao
cinema documentário, ao jornal televisivo, à reportagem ao vivo... O filme,
imagem em movimento, teria tornado supérflua, para não dizer indigesta, a
descrição miúda... Uma cena de um minuto supriria, no cinema, o que o
83
romancista levou mais de uma dezena de páginas para compor e comunicar ao
seu leitor.
A reflexão sobre o estudo atenta para o fato de que não se pode ignorar o advento
dessas ―culturas de massa‖, produtora de adaptações e bestsellers; é essa linguagem que, se
por um lado, afastar nossos alunos da profundidade literária, por outro, é uma forma de
representação que mimetiza a história social, de certa forma, produz a arte catártica do
homem contemporâneo e, por ser a linguagem que o representa é com ela que,
primordialmente, estabelecerá diálogos e será nela, reconhecer à presença do que satisfaz
seus interesses e suas necessidades.
O desafio aqui é (re) descobrir o sentido e a posição que a literatura ocupa na
sociedade, quais são seus principais modos de representar tempos e espaços, quais são suas
principais indagações e anseios. E, quanto mais indefinido, maior é a vontade de
reconhecer cientificamente sua natureza e seu locus literário.
Por mais que procuremos encontrar o lugar do romance na literatura brasileira
contemporânea, ele será sempre oscilante, tal como é a realidade hodierna. O que nos
instiga a investigar o processo literário – é o desafio de compreender essa esfinge que se
coloca a nossa frente em forma de arte literária.
CONCLUSÃO:
Vivemos em um mundo de fronteiras difusas. Um mundo acostumado ao trânsito
entre espaços, tempos e linguagens, por onde uma multidão se movimenta continuamente
como em um formigueiro, onde operárias correm de um lado a outro sem, no entanto, sair
do lugar.
Na literatura brasileira contemporânea, devido a suas profundas mudanças
cronotópicas, o individuo acaba por vivenciar o deslocamento entre ‗eu‘ e mundo, pois não
conhece os lugares de origem, configurando-se num desterrado em sua própria terra,
podemos até dizer que o poeta moderno está condenado a viver no subsolo da história, a
solidão define o poeta moderno. Isso faz dele, um ser de cisões, descolado de uma
identidade, vivendo a todo o instante um processo de transculturação.
Podemos até confirmar que―a literatura é um sistema vivo de obras, agindo umas
sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes vivem, decifrando-a,
aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem
este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito‖.Cândido (2000, p.68)
84
já respondia aos mestres, que indagavam ―o que é literatura? Por que a linguagem da
revista, da bula, de remédio, do comentário esportivo ou do manual de instruções não é
literária?‖
Há muitos questionamentos sobre a literatura, desde a sua função, como a sua
transmissão. Como já dissera, anteriormente, este é um cenário perturbado e elucidativo. E
quando questionado, o seu ensino em sala de aula... Surge uma série de apontamentos e
reflexões para quebrar certos tabus, que ainda existem.
Essas indagações, entre outras, causadoras de nossa angústia, conduziram esta
pesquisa reflexiva em busca de alternativas para mudar este panorama. Não elaboramos
―receitas de aulas de literatura‖, até porque, não existem fórmulas mágicas capazes de
reverter esse quadro.
Apenas ressaltamos a importância de ensinar literatura, a sua função de formar
cidadãos críticos capazes de julgar a si mesmo e ao mundo, quando se tem conhecimento.
Cosson (2011, p. 29) aponta o maior segredo da literatura, que é justamente o
envolvimento único que ela nos proporciona em um mundo feito de palavras. O
conhecimento de como esse mundo é articulado, como ele age sobre nós, não eliminará seu
poder, antes o fortalecerá porque estará apoiado no conhecimento que ilumina e não na
escuridão da ignorância.
O romance é a representação literária do devir humano, dos processos que levam à
mutação do ser e do mundo – é isso que ele procura insistentemente através de seus
espaços imagéticos e lingüísticos. Por isso, ele se configura como um espaço aberto, sem
fronteiras, pois somente assim ele poderá assimilar a vida em sua plenitude e degradação.
E aos mediadores de leitura cabe criar as condições para que o encontro do aluno
com a literatura seja uma busca plena de sentido para o texto literário, para o próprio aluno
e para a sociedade em que todos estão inseridos. E, sobretudo, porque o hábito de leitura,
além ser prazeroso, nos fornece instrumentos necessários para conhecer e articular com
proficiência o mundo feito de linguagem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. Trad. Anne Arnichand e Álvaro Lorencini.
São Paulo: Cultrix, 1971.
BOSI, A. Os estudos literários na era dos extremos. Rio de Janeiro: São Paulo,1994.
CANDIDO, Antônio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2000.
85
CHIAPPINI, Lígia. Aprender e ensinar com textos didáticos e paradidáticos. 2ªed.
São Paulo: Cortez, 1998.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2011.
MOISÉS, MASSAUD. A criação literária: poesia. 14ª ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
PERISSÉ, Gabriel. A arte da palavra: como criar um estilo pessoal na comunicação
escrita. Barueri, SP: Manole, 2003.
VYGOTSKI, L.S.Psicologia pedagógica. Trad. Claudia Schileing. Porto Alegre: Artmed,
2003.
PERIÓDICO:
VEJA, Editora Abril. Ed. nº 2217 – ano 44, nº 20. 18 de maio de 2011.
86
LINHA DO PARQUE: O ROMANCE PROLETÁRIO DE
DALCÍDIO JURANDIR
Alinnie Santos28
Profa. Dra. Marlí Tereza Furtado (Orientadora)29
Resumo: Em 1934, foi usada pela primeira vez a expressão Realismo Socialista para
designar o estilo artístico oficial da União Soviética – cunhado por dirigentes e artistas da
URSS. Essa estética se estendeu também a outros países por meio de seus partidos
comunistas. No Brasil, muitos romances proletários foram escritos sob o enfoque de tal
estilo encomendados pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Dentre os escritores que
aceitaram essa incumbência, figura o autor paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979),
membro do PCB desde sua juventude. Esse escritor, conhecido pela publicação dos
romances que compõem o chamado Ciclo do Extremo Norte, escreveu também o
romance de temática proletária Linha do Parque (1959). Essa obra narra a história de duas
gerações do movimento operário na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, no
decorrer da primeira metade do século XX. Este trabalho, portanto objetiva analisar a
referida narrativa a fim de identificar as características do Realismo Socialista, bem como
do romance histórico presentes no texto dalcidiano, além de refletir sobre as manifestações
ideológicas presentes nessa obra. Investigar esse romance se faz necessário para melhor
compreender o direcionamento da literatura brasileira naquele período.
Palavras-Chave: Romance Histórico; Linha do Parque; Realismo Socialista.
Abstract: In 1934 the term to designate the Socialist Realism was used at forst time to
designate the official artistic style of the Soviet Union. This aesthetic has also extended to
other countries by their communist parties. In Brazil, many proletarian novels were written
under the focus of such style commissioned by the Brazilian Communist Party (PCB).
Among the writers who have accepted this mandate there was Dalcídio Jurandir (19091979), a member of the PCB since his youth. This writer known for publishing the novels
that make up the so-called cycle of Extremo Norte, also wrote the novel Linha do
Parque (1959), a story of two generations of the labor movement in the city of Rio
Grande, in Rio Grande do Sul, during the first half of the twentieth century. This study
aims to examine this narrative in order to identify the characteristics of Socialist Realism
and also the historical novel present in Dalcídio texts and reflect on the ideological
manifestations present in this work. It is necessary to investigate this novel to understand
the
direction
of
Brazilian
literature
in
that
period.
Keywords: Historical Romance; Linha do Paque; Socialist Realism.
28
Mestranda em Estudos Literários na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CAPES. E-mail:
[email protected]
29 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
E-mail: [email protected]
87
1. Introdução
O escritor paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979) escreveu os dez romances que
compõem o chamado Ciclo do Extremo Norte – Chove nos Campos de Cachoeira (1941),
Marajó (1947), Três Casas e um Rio (1958), Belém do Grão Pará (1960), Passagem dos Inocentes
(1963), Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Os Habitantes (1976), Chão de Lobos
(1976) e Ribanceira (1978), os quais tematizam sobre a vida e o cotidiano na Amazônia
paraense.
No entanto, sua trajetória literária não se limitou a esse conjunto de obras. Dalcídio
escreveu textos para diversos jornais e revistas, tanto no Pará, como também no Rio de
Janeiro, dentre os quais podemos destacar: O Imparcial, O Estado do Pará e Crítica; revista
Escola, Novidade, Terra Imatura e A Semana, O Radical, Diretrizes, Diário de Notícias, Voz
operária, Correio da Manhã, Tribuna Popular, O Jornal, Imprensa Popular, revista Literatura, revista O
Cruzeiro, A Classe Operária, Para Todos, Problemas e Vamos Ler.
Além disso, por ser um militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), recebeu a
incumbência deste de escrever um romance de temática proletária, sob os postulados do
Realismo Socialista, estética oficial da União Soviética entre as décadas de 1930 e 1960, a
qual pretendia divulgar os ideais socialistas e enaltecer o governo soviético e que se
estendeu aos demais países por meio de seus partidos comunistas. O romance Linha do
Parque, escrito nos anos iniciais da década de 1950 e somente publicado em 1959, foi o
resultado da referida encomenda.
A obra narra a história do operariado na cidade de Rio Grande (RS) no período de
1895 a 1952, apresentando duas gerações de trabalhadores, uma que seguia as ideias
anarquistas e outra que defendia o comunismo. Nessa narrativa, as mulheres operárias
lideram e participam ativamente de greves e motins, tendo em vista melhores condições de
trabalho e por salários mais dignos nas fábricas que trabalhavam. Por essa atividade, elas se
colocam em pé de igualdade com os homens membros da União Operária, possuindo a
mesma importância desses trabalhadores na organização do movimento operário.
Sendo assim, este trabalho tem por objetivo analisar a referida narrativa a fim de
identificar as características do Realismo Socialista, bem como do romance histórico
presentes no texto dalcidiano, além de refletir sobre as manifestações ideológicas presentes
nessa obra.
88
2. O Realismo socialista no Brasil
Cunhado na União Soviética de Lênin, o Realismo Socialista foi um estilo artístico
que defendia a exaltação ao governo soviético, bem como a divulgação dos seus ideais
por meio da arte. Em 1934, essa estética foi criada em comum acordo com políticos,
como Andrei Jdanov e artistas, como o escritor Máximo Gorki, mas com o passar dos
anos, o Realismo Socialista tornou-se uma camisa de força ideológica para os artistas
filiados, como atesta Dênis de Moraes:
O zdanovismo esmagaria a atividade criadora, subordinando-a a cânones
dogmáticos. A literatura e a arte deveriam exercer papel exclusivamente
pedagógico, difundindo os esforços para a construção de um ―mundo
novo‖ e de um ―homem novo‖ nos países socialistas. Em lugar da
cultura burguesa ―decadente e degenerada‖, escritores e artistas se
empenhariam em edificar a ―cultura proletária‖, a única capaz de
desmistificar os valores morais da classe dominante e sustentar o caráter
revolucionário da obra de arte. As inovações estéticas passariam a ser
condenadas como anti-soviéticas e contra-revolucionárias. (MORAES,
1992, p.259).
Essa doutrina não ficou restrita somente à União Soviética, mas também foi
divulgada para outros países por meio de seus partidos comunistas. No caso do Brasil,
especificamente, o Partido Comunista Brasileiro (PCB)30 começou a seguir e difundir a
referida doutrina, por volta do ano de 194531, com o auxílio dos escritores e artistas
filiados a ele.
No caso do Brasil, a postura sectária foi adotada para que os artistas e intelectuais
filiados ao Partido fizessem uso do Realismo Socialista nas suas produções. Dessa
maneira, o autor que não escrevesse suas obras aos moldes desse estilo artístico, era
30
É interessante ressaltar que desde a sua origem até o inicio dos anos 1960, o partido chamava-se
Partido Comunista do Brasil, com a sigla PCB. Como em 1962, um novo partido político foi criado com a
designação anterior do PCB e que existe até os dias atuais, optamos neste trabalho, por fazer uso do atual
nome do PCB, Partido Comunista Brasileiro.
31
Em sua dissertação de mestrado, Mônica da Silva Araújo, afirma que já em 1945, os periódicos
comunistas apresentavam críticas ao Realismo Socialista, nos levando a entender que essa estética já
havia chegado ao solo brasileiro nesse ano: “Podemos afirmar com certeza que as teses do realismo
socialista passam a ser divulgadas no Brasil pelo PCB a partir de 1945. Note-se que o importante trabalho
de Denis de Moraes, intitulado O Imaginário Vigiado, focaliza o ano de 1947 como o marco inicial da
divulgação do realismo socialista no Brasil. Mas (...) estas teses ganham na imprensa comunista pelo
menos dois anos antes.” (ARAÚJO, Mônica da Silva. A arte do Partido para o Povo: o Realismo
Socialista no Brasil e as relações entre os artistas e o PCB (1945-1958). Rio de Janeiro: UFRJ, 2002 –
dissertação de mestrado).
89
violentamente criticado e provocado. Leandro Konder apresenta um exemplo dessa
crítica:
A Carlos Drummond de Andrade, [Osvaldo] Peralva atribuía opinião
favorável ao emprego da bomba atômica, simpatia pelos intelectuais
nazistas e vocação de traidor, classificando-o como anticomunista
raivoso, para quem a lealdade jamais constituiu uma pedra no meio do
caminho. (KONDER, 1980, p.85).
Há de se salientar que esse estilo artístico passou a vigorar oficialmente no Brasil a
partir de 1948, quando o Comitê Central impôs tal estilo como padrão estético que
deveria ser utilizado em suas obras por todos os artistas filiados ao PCB, a fim de se
disseminar a ideologia socialista no País, por meio de uma arte com objetivos sociais e
revolucionários, na visão dos dirigentes comunistas.
Nos anos posteriores, a direção comunista adotou uma política cultural que seguia à
risca todos os postulados do Realismo Socialista. As editoras do Partido publicaram
biografias de líderes e artistas revolucionários, além de romances de escritores
socialistas brasileiros, ao quais cultuavam a figura do herói, seja ele personificado em
um líder revolucionário, ou um operário que luta por melhores condições de trabalho e
salários mais dignos nas fábricas.
Assim, na Literatura, em função dessa exigência, muitos romances proletários
foram escritos e publicados no Brasil sob a égide do estilo artístico soviético, ao quais
objetivavam difundir a ideologia socialista entre os leitores brasileiros. Entre os
escritores que escreveram esse tipo de narrativa ficcional, podemos mencionar Jorge
Amado com a trilogia Os subterrâneos da Liberdade (1954); Alina Paim com as obras A
Hora Próxima (1955), Sol do Meio Dia (1960) e A Correnteza (1979) e Dalcídio Jurandir
que escreveu Linha do Parque (1959), nosso objeto de análise neste trabalho.
Apesar de uma considerável produção desse tipo de romance em solo brasileiro, o
estilo artístico soviético não se conciliava com a realidade aqui encontrada. Ora, se o
Realismo Socialista, de modo geral, era uma estética que servia como instrumento de
exaltação ao governo socialista e para legitimação do Estado Soviético, como um
escritor brasileiro poderia escrever seus romances aos moldes do que propunha essa
estética, ambientando suas histórias em um País capitalista? Além disso, como subjugar
as particularidades do processo criativo de um autor e do fazer literário a uma fôrma
pré-estabelecida?
90
Os artistas e intelectuais brasileiros não compreenderam ao certo como aplicar o
realismo socialista à literatura aqui produzida. Apesar disso, o PCB coagia seus
membros a aderir a essa estética na produção de sua arte. Os que se recusavam sofriam
a acusação de ter se contaminado com a literatura burguesa e de que não queriam
defender os ideais dos comunistas. Foi nesse contexto que Dalcídio Jurandir escreveu o
romance Linha do Parque.
3. O Romance Proletário Linha do Parque
Em meio à escritura e publicação dos romances do Ciclo do Extremo Norte, Dalcídio
Jurandir é solicitado pelo PCB, na década de 1950, a escrever um romance aos moldes
do Realismo Socialista. Linha do Parque é o resultado desse trabalho. Para a construção
dessa obra, o romancista paraense viajou até a cidade de Rio Grande (RS) para a
realização de pesquisas sobre a atuação do movimento operário no início do século XX
nessa cidade.
O romance proletário de Dalcídio Jurandir, no entanto, curiosamente, não agradou
os dirigentes do Partido, os quais rejeitaram editar a obra que eles próprios haviam
encomendado. O romance somente foi publicado alguns anos mais tarde, no final da
década de 1950, por empreendimento do próprio escritor:
Mesmo os romances de encomenda tropeçaram na censura partidária e
custaram a ser editados. Alina Paim e Dalcídio Jurandir tiveram que
mudar os seus, várias vezes, por ―inconveniências‖. [...] Linha do Parque
adormeceu anos nas gavetas dos dirigentes e permaneceu inédito até
1959, o que permitiu a Dalcídio elaborar a versão final sem os rigores do
início da década. (MORAES, 1994, p. 162).
Em 1959, então, Linha do Parque é finalmente publicado por uma editora comunista.
Nesse período, os dirigentes do PCB não adotavam mais uma postura sectária em
função do seu descontentamento com as ideias stalinistas. Além disso, o Partido havia
passado por uma reorganização e agora estava mais aberto ao diálogo com os seus
membros, o que fez com que a obra de Dalcídio fosse publicada, inclusive sendo
traduzida e editada também na União Soviética, no ano de 1961.
Essa obra, obviamente, não faz parte do Ciclo do Extremo Norte e destoa do restante
de sua produção literária, primeiramente por não ser ambientada nem na capital
paraense, nem na Ilha do Marajó – espaços recorrentes nos seus demais livros – como
também pelo fato de o escritor abrir mão, em seu romance proletário, do seu estilo, da
91
sua técnica narrativa e da densidade que atravessa os outros dez romances de sua
autoria. Dessa forma, é como se o autor de Linha do Parque fosse outro escritor que não
Dalcídio Jurandir, como foi percebido por Nunes:
Linha do Parque, está fora do ciclo, é uma outra escrita. Dalcídio não
podia afinar com o realismo socialista, prescrito pelo Partido, sem trair
seu sonho da juventude. E para não traí-lo ou trair-se fez-se outro
escrevendo Linha do Parque. Sem pseudônimo. Outrou-se, como diria
Fernando Pessoa, na criação de uma escrita romanesca diferente (...). O
autor é aí uma outra personalidade literária, diferente. Um heterônimo.
(NUNES, 2009, p. 324).
Sendo assim, esse romance não só pela sua temática, como também pela forma em
que foi escrito, diferencia-se da face mais conhecida do romancista paraense. Dalcídio
pretendeu conciliar o sonho de produção do seu projeto literário com a sua fidelidade
ao que lhe era ordenado pelos dirigentes comunistas. Essa conciliação somente foi
possível com a escritura de um romance deslocado das demais obras.
Nessa obra, é narrada a história de duas gerações de trabalhadores que exerceram as
suas atividades na cidade de Rio Grande, no estado do Rio Grande do Sul, durante toda
a primeira metade do século XX e aderiram aos ideais dos movimentos operários. A
narrativa tem início com a chegada do espanhol Iglezias, em 1895, com o objetivo de
espalhar suas ―ideias‖ na América Latina. O espanhol, então, aproxima-se da União
Operária e tenta divulgar o anarquismo entre os seus membros, apoiando a prática de
motins e greves nas fábricas em que eles trabalhavam.
Os operários, mesmo sem compreender o anarquismo em sua plenitude, começam
a realizar greves nos seus locais de trabalho, com destaque para a primeira paralisação
mencionada na obra, feita exclusivamente por mulheres, para proteger uma das
operárias que recebeu ameaças de ser suspensa de suas atividades na fábrica. Além
disso, os membros da União Operária da cidade realizavam também manifestações nas
ruas, exigindo melhores condições de trabalho, o que fez com que eles fossem presos e
seus familiares perseguidos e vigiados pela polícia.
Após a fase anarquista, Ângelo, filho de Iglezias, continua o trabalho iniciado por
seu pai, mas com algumas diferenças, pois o anarquismo nesse momento passa a ser
questionado e criticado e as novas concepções socialistas passam a ser defendidas pelos
participantes do movimento operário.
Dessa forma, ocorre uma divisão entre os membros de tal movimento, pois parte
deles defendia que as concepções anarquistas ainda deveriam ser mantidas como base
92
das suas atividades, e outra parte achava que essas ideias não se enquadravam mais nas
ações que o movimento operário pretendia executar. A divisão gerou dissensões entre
os operários, mas o socialismo acabou por prevalecer na União Operária. O grande
desfecho do romance é o ―conflito da Linha do Parque‖ ocorrido no dia 1º de Maio de
1950, que deveria ter sido apenas uma passeata feita pelos operários, mas que se
transformou em um confronto com a polícia, o qual culminou com a morte de alguns
dos manifestantes.
Na descrição desse enredo, podemos perceber os motivos que fizeram com que o
romance proletário dalcidiano, como também observar como o autor põe em prática o
Realismo Socialista em sua obra. Esse romance não apresenta apenas o cotidiano de
trabalho de seus personagens, mas também evidencia os seus dramas pessoais, como
problemas familiares, amores não correspondidos, doenças e até mesmo o conflito
psicológico de alguns que pensaram em desistir de participar do movimento operário.
Esses dramas mostram os trabalhadores não como os heróis idealizados que o
Realismo Socialista queria, mas como seres humanos comuns com seus embates e
limitações e que ansiavam e lutavam por melhores condições de trabalho nas fábricas.
Porém, muito mais do que um elogio ao governo socialista – que era, grosso modo, o
que pretendia o estilo artístico soviético –, e de apresentar os operários como heróis
idealizados, Dalcídio, nesses escritos, adapta a estética de Jdanov à realidade brasileira,
denunciando as mazelas sociais e as condições precárias de trabalho e de vida desses
trabalhadores, mostrando todo o sofrimento pelo qual eles passavam para poder
sobreviver, sem dar um ―final feliz‖ para seus personagens.
Nessa obra, os personagens são apresentados como pessoas comuns, com
problemas pessoais e profissionais, que aderiram ao anarquismo e depois ao
comunismo, simplesmente como uma alternativa para melhorar a situação dificultosa
de trabalho nas fábricas. Além disso, o romance mostra que nem todos os operários
tinham certeza se deveriam seguir os ideais socialistas, pois muitos personagens
chegaram a pensar até mesmo em desistir do movimento operário.
O texto dalcidiano apresenta ainda outras dificuldades enfrentadas pelos
trabalhadores socialistas, que, por seu envolvimento com tais ideias sofrem prisões e
tem suas vidas e as de seus familiares controladas pela polícia, dificultando ainda mais a
manutenção de seus empregos nas fábricas, como também a defesa dos ideais
socialistas e o trabalho desenvolvido na União Operária.
93
Nessa obra, o autor paraense mostra uma realidade triste, cruel e sofrida, vivida
pelo operariado gaúcho, evidenciando a pobreza desses homens e mulheres. O escritor
não deu aspectos folhetinescos aos seus personagens, nem tampouco idealizou os
operários, nem engrandeceu em todo o momento as suas virtudes, como era de se
esperar em um romance proletário baseado na estética do Realismo Socialista.
Dessa forma, por não encontrar na obra de Dalcídio um texto que seguisse à risca
os postulados do Realismo Socialista, o Partido não aceitou publicá-lo. E, por sua
postura intransigente na época apenas emite uma nota composta de uma única frase,
demonstrando seu posicionamento sobre o romance em questão.
Além disso, como veremos no terceiro capítulo, no início da narrativa os operários
defendiam o anarquismo. Iglezias um dos mais importantes personagens do romance,
que tem seus feitos lembrados e exaltados, mesmo depois de sua morte, é um militante
anarquista. Muito depois, os trabalhadores aderem ao comunismo, mas sempre
recordando o passado e os líderes anarquistas.
É provável, então, que a direção do Partido Comunista Brasileiro, ao ler os
manuscritos do romance proletário do escritor paraense, não tenha aprovado a
descrição do movimento anarquista presente no livro. Assim, esse pode ter sido um
dos motivos que fez com que fosse vetada a publicação dessa obra.
4. Considerações Finais
A direção comunista brasileira estava tão obcecada em seguir os ditames dos
soviéticos que encomendou a escritura de romances a alguns autores filiados ao PCB,
exigindo que estes adotassem os postulados da doutrina jdanovista em sua narrativa.
Porém, algumas dessas obras foram censuradas pelo próprio Partido que rejeitou publicálas, sem emitir uma explicação para essa recusa.
Tendo em mente a postura sectária do Partido na época, é possível entender os
motivos que levavam os dirigentes comunistas a desistir da publicação de obras que eles
próprios tinham encomendado, pois, provavelmente, na visão deles, esses romances
apresentavam certas inconveniências com relação ao estilo artístico soviético, já que tais
obras não atenderam exatamente as expectativas que o PCB depositara nelas. Em outras
palavras, a direção comunista queria que se produzisse no Brasil um tipo de romance que
somente fazia sentido em uma sociedade comunista, uma vez que, como já dissemos, o
Realismo Socialista surgiu para, de modo geral, exaltar e enaltecer o socialismo em uma
94
comunidade na qual estava em vigor. Assim, era tarefa difícil para o escritor brasileiro
construir uma narrativa sob essa estética, mas ambientada em uma sociedade capitalista.
O romance Linha do Parque, do paraense Dalcídio Jurandir escrito na década de
1950, foi uma das obras que sofreu a censura partidária e somente foi publicado anos
depois de sua finalização, após o término da onda de sectarismo do PCB. O autor paraense
estava comprometido com as questões defendidas pelo Partido, tanto que esse
comprometimento se desdobrou em seu trabalho literário com a publicação de tal
romance. Essa obra também evidencia o posicionamento político-ideológico do escritor,
uma vez que ele por meio de seu livro pode discutir e denunciar questões sociais relativas à
situação da classe operária no Brasil. Mesmo assim, Dalcídio não foi capaz, com o seu
extenso romance proletário, de agradar os líderes comunistas brasileiros.
Não é possível saber ao certo o porquê desse romance não ter sido aceito para
publicação pelo PCB, já que este emitiu um parecer sobre a obra de apenas uma linha que
pouco ajuda a entender a opinião da direção do Partido sobre a narrativa. Podemos apenas
fazer conjecturas, tais como: a ênfase ao anarquismo no primeiro momento da narração
pode ter desagradado os dirigentes da obra; Linha do Parque não foi escrito sob todas as
regras do Realismo Socialista e isso fez com que o romance não fosse publicado.
Apesar da dificuldade em conciliar o estilo jdanovista com a realidade brasileira,
encontramos em Linha do Parque algumas teses defendidas por essa estética: esse romance
segue a ordem cronológica dos acontecimentos históricos, de 1895 a 1952. Além disso, esse
livro não está centrado nos dramas e problemas pessoais dos personagens, apesar de estes
surgirem no decorrer da obra, tanto que alguns operários desaparecem completamente da
narrativa, sem a apresentação do seu desfecho. A ênfase de Linha do Parque está na história
do movimento operário rio-grandense na primeira metade do século XX. Sendo assim,
todos os personagens, bem como suas histórias pessoais, servem apenas como um
instrumento para a narração dos acontecimentos e eventos que marcaram a história do
operariado naquela cidade.
Outro aspecto do Realismo Socialista presente na obra é a presença do herói
positivo, honesto e que fielmente luta em prol da causa do proletariado e que incentiva os
outros trabalhadores a se juntar a ele na luta do movimento operário. Iglezias, na primeira
geração, e seu filho Ângelo, na geração seguinte, defendem a qualquer custo ideias que
buscavam auxiliar os operários a conseguir melhores condições de trabalho nas fábricas.
Todavia, não encontramos nessa narrativa uma exaltação ao modo de vida e ao
governo de uma sociedade socialista, talvez porque isso fosse muito distante da realidade
95
vivida pelo leitor brasileiro. No lugar do elogio, há um forte tom de crítica na obra à
condição miserável de vida e de trabalho dos operários nos diversos setores e tipos de
fábricas da cidade, como também há a descrição da movimentação dos trabalhadores para a
execução de greves e motins, apontando que esse era o único caminho que eles poderiam
trilhar para conseguir a vitória sobre a classe dominante. Dessa maneira, o Realismo
Socialista se configura no texto dalcidiano como uma denúncia social das mazelas
enfrentadas pelo proletariado brasileiro.
REFERÊNCIAS:
ARAÚJO, M. D.S. A Arte do Partido para o Povo: o realismo socialista no Brasil e as relações
entre artistas e o PCB (1945-1958). 2002. 273 fls. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2002.
JURANDIR, Dalcídio. Linha do Parque. Rio de Janeiro: Vitória, 1959.
KONDER, Leandro. A Democracia e os Comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
MORAES, Dênis de. O Imaginário Vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no
Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
__________. O Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1992.
NUNES, Benedito. Conterrâneos. In: ___. A Clave do Poético. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
SEGATTO, José Antônio. Breve História do PCB. São Paulo: LECH, 1981.
96
A INSERÇÃO DA ESCRITA PÓS-COLONIAL NA PRODUÇÃO
LITERÁRIA DE DALCÍDIO JURANDIR32
Almir Pantoja Rodrigues33
Resumo: A tentativa de compreender os problemas sociais postos pela colonização
europeia e suas consequêniciasresultaram no aparecimento dos estudos Pós-Coloniais. Na
perspectiva da descentralização, o Pos-colonialismo ―coloca alternativas epistemológicas
centralizadas em três blocos de questões que são: a crítica ao modernismo como teologia
da história, busca de um lugar de enunciação híbrido pós-colonial e crítica à concepção de
sujeito das Ciências Sociais‖ (COSTA, 2009, p. 118). Vale mencionar que o Orientalismo
de Edward Said (1978) ajudou estabelecer o campo da Teoria Pós-Colonial ao examinar a
construção do outro oriental pelos discursos europeus do conhecimento. A partir desse
momento, a escrita Pós-Colonial transformou-se numa tentativa de intervir na construção da
cultura e do conhecimento e para os intelectuais que vêm de sociedades pós-coloniais, de
escrever seu caminho de volta numa história que anteriormente fora escrita pelos de fora. É
esse contexto que estamos transpondo para a Amazônia e situando Dalcídio Jurandir como
uma voz que entre a sua ―gente miúda‖ procura denunciar as malezas sociais do Marajó, do
interior da Pará e da periferia de Belém, pois sabemos que a produção literária de
Dalcidiana apresenta resquícios da crise social e política provocada. Afinal, o escritor
recorreu à estética literária como campo de luta, para expressar a sua indignação social e
incorporar nas páginas ficcionais brasileiras o humano amazônico. Dessa forma, podemos
estabelecer relações comparativas entre Dalcídio Jurandir e o pensamento Pós-Colonial,
pois da mesma maneira que essa teoria procura desconstruir os essencialíssimos, referência
epistemológica, criticar as concepções dominantes de modernidade, o escritor desconstrói
os paradigmas estabelecidos por uma elite dominante que controlou o sistema social
amazônico do século XX. Assim, a proposta deste artigo objetiva mostrar que Dalcídio
Jurandir tornou-se uma forte voz na literatura aos moldes dos estudos Pós-Colonial e tem
contribuído com estudos acadêmicos em diferentes áreas do conhecimento, a exemplo da
Antropologia.
Palavras chave:Dalcídio Jurandir; Literatura; Pós-colonialismo.
Abstract:The attempt to understand the social problems posed by European colonization
and its consequences resulted in the emergence of Post-Colonial Studies. In view of
decentralization, the Post colonialism "puts epistemological alternatives centered on three
blocks of issues that are critical to modernism, as the theology of history, seeking a place
of hybrid postcolonial criticism enunciation and the concept of the subject of Social
Sciences "(COSTA, 2009, p. 118). It is worth mentioning that Edward Said's Orientalism
(1978) helped to establish the field of Postcolonial Theory to examine the construction of
the other Eastern European discourses of knowledge. Thereafter, the Post-Colonial writing
became an attempt to intervene in the construction of culture and knowledge and
intellectuals coming from post-colonial societies, to write their way back into a story that
had been previously written by foreigners. It is this context we are transposing to the
Amazon and placing DalcídioJurandir as a voice amongst his "short people" aiming to
denounce the social problems of Marajó, Pará‘s countryside and the outskirts of Belém,
because we know that the literary production of Dalcídio shows remnants of the social and
32Artigo
apresentado ao IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia
(CIELLA).
33Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará UFPA. E-mail: [email protected]
97
political crisis provoked. After all, the writer turned to literary aesthetics as a battlefield, to
express their outrage and social pages incorporate the human fictional Brazilian Amazon.
Thus, we establish relations between comparative DalcídioJurandir and the Postcolonial
thought and therefore the same way that this theory seeks to deconstruct the essentialisms,
epistemological reference, and to criticize the dominant conceptions of modernity, the
writer deconstructs paradigms established by a ruling elite that controlled Amazon social
system of the twentieth century. Thus, the purpose of this article is to show that
DalcídioJurandir became a strong voice in the mold of Postcolonial literature studies and
has contributed to academic studies in different fields of knowledge, as in Anthropology.
Keywords: DalcídioJurandir; Literature; Post-colonialism.
1. Introdução
Este artigo tem a intenção de apresentar algumas considerações a respeito da
trajetória literária de Dalcídio Jurandir como resultado de um fazer etnográfico cuja
fundamentação teórica adquiriu sustentação nos estudosda escritaPós-Colonial.
A ideia de desenvolver um projeto de pesquisa a partir da trajetória literária do
escritor marajoara surgiu da leitura do artigo História e Literatura no regime das águas: práticas
culturais afroindíginas na Amazônia Marajoara,34 autoria de Agenor Sarraf Pacheco,35onde o
autor menciona que:
A grande fonte de informação dalcidiana baseou-se em suas
vivências de infância e adolescência, narrativas que ouviu a mãe, o
pai, vizinhos parentes e amigos contaram sobre os habitantes dos
municípios de Ponta de Pedras, Muaná e Cachoeira do Arari, lugar
onde morou durante 12 anos. (PACHECO, 2009, p. 412-413).
Do mesmo modo, Jurandir sofreu influências de leituras de obras nacionais e
estrangeiras, correspondências com amigos literatos, etnólogos e folclorista. Um aspecto
que impressiona na forma como o romancista deu luz a seus romances é a grande
preocupação com o levantamento de informações, a comprovação das narrativas. Não na
perspectiva de checar os fatos, mas no sentido de saber se as práticas culturais eram
recorrentes naquele determinado espaço. (PACHECO, 2009, p. 413).
Artigo publicado na Amazônica – Revista de Antropologia, vol. I, ISSN 184-6215, setembro de 2009. Esta
revista é um periódico científico transnacional, voltado a promover o debate, a construção do conhecimento
e a veiculação de resultados de pesquisas científicas relativas às populações amazônicas, nos quatro campos da
Antropologia.
35 Doutor em História Social (PUC-SP, 2009), Professor Adjunto II, da Universidade Federal do Pará
(UFPA), coordenador do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais na Amazônia (GECA/CNPq/UFPA).
34
98
As proposições de Pacheco apresentam fortes indícios de que Dalcídio Jurandir
além de ter sido um grande literato na Amazônia no século XX, viveu uma experiência
diferenciada em sua trajetória como escritor, pois para compor suas obras, preocupava-se
em valorizar vivências compartilhadas e levantar informações de fatos e rituais constituintes
dos modos de vida amazônicos.
Aos moldes da Teoria Pós-Colonial, DalcídioJurandir, por meio de uma abordagem
sociologia, em suas páginas ficcionais, emerge vozes de sujeitos marginalizados, excluídos
socialmente, vistos pela perspectiva do colonizado, fato que nos permite inserir a escrita de
Pós-Colonial num contexto Amazônico.
Para melhor compreender como redigiu o rico acervo literário que legou à literatura
brasileira e amazônica é preciso realizar um estudo sistemático que respondam as principais
indagações levantadas sobre o tema deste estudo: Como se constituiu a experiência
antropológica no fazer literário de Dalcídio? De que maneira apropriou-se dos contatos
estabelecidos em circuitos familiares, intelectuais e políticos para o seu fazer literário? Que
fontes de pesquisa serviram de informação para o escritor compor seu processo de criação
literária? De que maneira, é possível estabelecer uma intersecção entre a Teoria Pós-Colonial
a Literatura de Expressão Amazônica produzida por DalcídioJurandir?
Considerando a importância que o escritor tem para o mundo das letras,
especialmente aquele que foi sendo constituído na Amazônia, este estudo propõe como
tema principal analisar influências e sentidos da trajetória de vida social, intelectual e
política de Dalcídio Jurandir na construção do seu projeto literário, pois estudos
preliminares realizados em leituras de seus romances, documentos escritos e textos
acadêmicos de estudiosos que se debruçaram sobre o conjunto de sua obra apontam que a
produção literária do escritor seguiu pegadas de práticas de pesquisas antropológicas,
especialmente em etapas constituintes do método etnográfico, sob o olhar teórico da
escrita Pós-Colonial.
2.Uma visão panorâmica sobre as pesquisas dalcidianas
Um levantamento sobre as pesquisas em torno do romancista e poeta amazônico
Dalcídio Jurandir aponta que há uma variedade de trabalhos acadêmicos a respeito do
escritor nortista voltados para a questão estética. São pesquisas que se debruçaram em
explorar metáforas, aspectos narrativos, representação ficcional, análise das personagens,
99
categoria temporal. Sem dúvida, são estudos que dentro do universo literário têm um valor
inquestionável e que contribuíram para uma nova recepção da obra dalcidiana.
Pressler (2004) informa que em 1984 aparece o primeiro trabalho acadêmico
estético sobre Dalcídio Jurandir. Trata-se da primeira dissertação de mestrado, defendida
por Enilda Tereza N. Alves, na PUC/Rio de Janeiro, intitulada Marinatambola: construindo o
mundo Amzônico com apenas Três Casas e um Rio, seguida de Olinda Bastos Nogueira explora o
universo da Psicanálise, com uma tese de doutorado apresentada na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), intitulada: Dalcídio Jurandir: Revelação do Norte Sul.A partir de 1998,
começaram a surgir em Belém trabalhos de divulgação enfatizando o código estético
literário, de estudiosos como Paulo Nunes, Marli Furtdo e José Arthur Bogéa.
Nunes (1998), na dissertação de mestrado intitulada Aguanarrativa: uma leitura de
Chove nos Campos de Cachoeira, apresenta um estudo que traz à tona um texto único nas mais
variadas produções literárias brasileiras cuja intenção é, por meio da narratologia, restaurar
moisacos.
Em 2002, a Professora Marli Furtado36 defende na UNICAMP a tese Universo
derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. De acordo com a pesquisa, ―a obra de Dalcídio
Jurandir, escrita entre 1939 e 1978, quebra como tradição literária sobre a Amazônia,
marcada pela grandiloquência de imagens, na tentativa de revelar uma Natureza opulenta e
majestosa. Ao seguir a trajetória do protagonista Alfredo, de menino do interior e rapaz
urbano, o autor traça um painel da Amazônia pós período áureo do ciclo da borracha e nos
leva as fantasmagóricas desse ciclo econômico na região.‖ (FURTADO, 2002).
Após o trabalho de Furtado, Bogéa publica Bandolim do diabo: Dalcídio Jurandir:
fragmentos, (2003), editadopela editora Paka-Tatu que ajuda a legitimar o nome e a produção
literária do escritor não apenas como uma produção literária regionalista, mas enfatizando a
relevância de uma Literatura de Expressão Amazônica que ultrapassa os limites da
dependência, fazendo dela o marco diferencial para se transformar em universal.
Na Universidade da Amazônia, surgem dissertações de Mestrado e a tese de
doutorado de Paulo Ornela.O Curso de Mestrado em Letras, da Universidade Federal do
Pará, investe em Projetos Acadêmicos, junto aos Projetos de Iniciação Científica e
Trabalhos de Conclusão de Cursos (TCC).
36
A Professora Marli Tereza Furtado é uma das principais autoridades a respeito de Dalcídio Jurandir, na
área dos Estudos Literáriose desenvolve um movimento acadêmico por excelência em torno do escritor,
na Universidade Federal do Pará.
100
Dentre uma infinidade de pesquisas sobre Dalcídio, apresento, numa sequência
cronológica, algumas dissertações que contribuíram para a divulgação do esquecido
Dalcídio Jurandir. Cito: Cidade e antíteses: uma leitura do romance Passagem dos Inocentes de Dalcídio
Jurandir (2005), de Marcos Monteiro de Almeida, Tra[D]ição e o jogo da diferença em Marajó, de
Dalcídio Jurandir (2006), de Guilherme dos Santos Júnior, Marajó: espaço, sujeito e escrita (2007),
de Ivone dos Santos Veloso, De Cachoeira a Belém: a inflexão das ilusões de Alfredo (2008), de
Paulo Jorge de Moraes Ferreira, Três Casas e um rio de Dalcídio Jurandir (2008), de
Marcilene Pinheiro Leal, Espaço ficcional no romance Ponte do Galo, de Dalcídio Jurandir (2009),
deAlcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues e O Grotesco em Dalcídio Jurandir:Chove nos
campos de Cachoeira e três casas e um rio (2011), da pesquisadora Viviane Dantas Moraes.
Em 2012,surge um novo trabalho sobre Dalcídio Jurandir. Trata-se do livro
intitulado A Obra de Dalcídio Jurandir e o Romance Moderno (2012), organizado pelo professor
Wenceslau Otero Alonso Jr. que contém oito artigos que foram escritos no período de
2010 / 2011. É um livro que nasceu de um dos projetos do Professor Alonso Jr. cuja ideia
central residiu em verificar o quanto Dalcídio Jurandir estava sintonizado com as
experiências mais significativas - em termo de novas pesquisas estéticas – da literatura
nacional e universal do século XX, para então, explicar, em parte, o seu processo criativo.
Por último, foi publicado mais um olhar acadêmico sobre o renomado escritor
marajoara. Na ocasião do 18º Fórum Paraense de Letras (UNAMA) que aconteceu em
setembro de 2012, foi feito o lançamento da Revista Asas da Palavra, nº 26, que
homenageou mais uma vez o escritor nortista. Paulo Nunes, na apresentação da revista,
afirma que ―Dalcídio Jurandir é um dos mais vigorosos escritores brasileiros da
contemporaneidade, por isso talvez seja o único que até hoje mereceu por três vezes
integrar esta Asas da Palavra”. A revista comemora os cento e doze anos do nascimento do
escritor e apresenta dezoito artigos e ensaios que são resultados de estudos acadêmicos
sobre a obra dalcidiana cujas autorias pertencem a autoridades intelectuais que
desenvolvem pesquisas sobre o escritor amazônico.
Como se observa, o movimento acadêmico que surgiu sobre Dalcídio Jurandir
ajudou a tirar o escritor do vazio do esquecimento e da desvalorização que outrora fora
cometido pela crítica literária brasileira.
3- Dalcídio Jurandir: um literato antropólogo na Amazônia
101
Atualmente, é inegável a contribuição que o literato Dalcídio Jurandir tem para o
mundo das Letras. Dentre os autores da Amazônia do século XX, sem dúvida, o escritor é
um dos mais destacados na área ficcional que devido ao seu grau de importância, levou
Jorge Amado a fazer a seguinte declaração sobre o marajoara: ―Romancista que não se
parece com nenhum outro dos grandes ficcionistas brasileiros‖ (BOGEA, 2003, p. 40). No
entanto, uma análise sistemática da obra dalcidiana composta pelo famoso Ciclo do Extremo
Norte aponta que a produção romanesca do autor foi construída, em seu bojo, a partir de
pesquisas feitas pelo próprio escritor sobre a região investigada, pois os costumes, as
crenças, os hábitos e os aspectos físicos dos povos que habitaram a Amazônia do século
XX constituem matéria prima do romance dalcidiano. É essa atitude de investigador,
pesquisador e conhecedor da cultura marajoara e de Belém do Pará que se intenta
investigar e compreender o escritor como um literato antropólogo da Amazônia.
Trata-se de uma temática que apesar de ainda se manifestar de forma tímida é um
caminho a ser percorrido e que oferece conteúdo para discussão, análise e pesquisa que irão
dar a figura de Dalcídio, uma nova roupagem. É o olhar sobre Dalcídio como um literato
antropólogo que viveu na Amazônia do século XX.
A vida social da Amazônia é uma das grandes temáticas da literatura produzida por
Dalcídio Jurandir. A narrativa do Ciclo Extremo Norte mostra uma abordagem sociológica e
antropológica das peculiaridades da vida no Marajó.
Dalcídio Jurandir, caminhando em experiências etnográficas ao utilizar vivências
compartilhadas durante sua vida marajoara e sua grande paixão pelo mundo amazônico,
construiu um cenário da vida social do homem amazônida. De uma forma geral, o Ciclo
Extremo Norte aborda duas grandes temáticas: ―a exclusão – seja do homem em relação ao
universo e à sociedade, seja da população cabocla da região amazônica em relação à
sociedade nacional brasileira - e a hibridação como processo social‖ (CASTRO, 2007, p.
23).
Pacheco (2009) também registra suas impressões a respeitodas abordagens
temáticas do projeto literário de Dalcídio que estãotematizadas no universo marajoara ao
afirmar que:
Utilizando-se, com virtuosidade, de uma linguagem cujas marcas
da oralidade regional são preservadas, Dalcídio traz à tona as
dimensões de vivências de diferentes grupos sociais, em suas
maneiras desiguais de viver as contraditórias dimensões de miséria
social, riquezas e esbanjamento. As histórias, aventuras e
desventuras da região são contadas a partir da valorização de ações
102
e reações de personagens do seu mundo real, consentindo-lhes o
direito de falar, gritar, reclamar e deixar conhecer seus sofrimentos,
conquistas, intrigas, projetos, em meio a uma natureza peculiar que
dita regras de convivências. (PACHECO, 2009, p.413).
As palavras de Pacheco mostram o quanto Dalcídio conhecia os pormenores, os
―segredos‖ do Marajó, da natureza, de uma forma muito particular. Essa intimidade do
escritor com a Amazônia, em especial com o Marajó e Belém que se apresentam nas
páginas dos seus romances, deixa claro que o literato era um profundo conhecedor da
realidade, do mundo amazônico: linguagem, folclore, crenças, sofrimentos, problemas
sócias, costumes, hábitos, aspectos físicos do povo que habitou a Amazônia do século XX.
Um estudo sistemático sobre a produção dos romances dalcidianos mostra que a
pesquisa sobre a Amazônia muito contribuiu para a produção do seu ciclo romanesco, pois
desde sua juventude o escritor viajava pelo interior do Marajó e por cidades do estado do
Pará. Nessas andanças, ele registrava tudo o que percebia no que se referem ao espaço
geográfico, crenças, costumes, profissões, como se observa no livro Dalcídio Jurandir:
Romancista da Amazônia, organizado por Benedito Nunes.
Uma etapa importante do processo de criação de Dalcídio era a
pesquisa sobre a Amazônia em geral e, em específico, sobre
Marajó e Belém: os hábitos do povo, as lendas, os ditos e crenças
populares, a geografia e diversas profissões, etc. Tudo ajudava a
compor seus romances, tudo era matéria para sua reelaboração
ficcional, como esclarece em carta de 1956 para Ritacínio: ―Apenas
tomo dados sobre os quais trabalho com a invenção e a
possibilidade de novos episódios e incidentes ou situações‖
(NUNES, 2006, p. 162).
Nunes (2009) informa que em 1940 Dalcídio exerceu o cargo de Inspetor Escolar
em Salvaterra e a função exigia que ele viajasse pelos interiores em visitas às escolas da
região. Em seguida, foi convidado a trabalhar no Recenseamento, em Santarém e devido as
obrigatoriedade da função que lhe tinha sido delegada, o escritor teve que viajar 15 dias
pela Amazônia. No período de viagem, ele escreveu uma carta a esposa Guiomarina. O
conteúdo da carta ratifica o homem Dalcídio atento aos detalhes da cultura, do contexto
amazônico que lhe cercava e que lhe serviram como fonte de inspiração para sua
composição literária.
Fizemos uma viagem de 15 dias pela enorme Amazônia. Pensei em
poemas, no romance e na guerra. Estive em Terra Santa, lugar a
103
beira do lago algodoal. Maravilhoso [...] Estive em Faro, mas não
vi os pajés nem choquei pedras ou caroço como diziam. Vi a boca
do Rio Nhamunda que leva a gente pros índios, montanhas,
cachoeiras e castanhais virgens. Estive em Oriximiná, pequena
cidade á boca do Trombetas outro grande rios que nos leva pros
mucambos antigos de pretos, índios, cachoeiras, as Guianas.
Gostei de Faro [...], o rio que leva também para o Espelho da Lua,
o lago onde a lenda diz que as Amazonas buscavam os muiraquitãs
para na hora do amor darem aos homens. [...] (NUNES, 2009, p.
75).
O espírito de investigação, o desejo de comprovar, conhecer ou confirmar as
práticas culturais da região que viveu, transformaram as vivências de Dalcídio em
experiências antropológicas sobre a Amazônia do século XIX. Pacheco (2009) atesta a
atitude de pesquisador do escritor:
O romancista escreveu ainda ter dormido uma noite no tapari de
um amigo para assistir ao drama dos viradores da madeira.
Durante a madrugada, acordou para acompanhar a viragem
noturna, espetáculo dos troncos humanos, curvos e viciosos,
atracados a um toro imenso que não quer subir um lombo de terra,
que escorrega do trilho ou corre numa descida. (PACHECO, 2009,
p. 419)
Como se observa, no fazer literário de Dalcídio há uma experiência antropológica,
pois o escritor utiliza-se de uma etapa do método etnográfico: a observação participante.
Para produzir seus romances o escritor investiga a cultura, o modo como as pessoas
executam as suas funções e práticas culturais que diferem dos paradigmas da perspectiva
europeia, do não colonizador.
Na Revista Asas da Palavra, nº 17, de 2004, Audemaro Taranto Goulart, no artigo
Marajó:sob o signo da antropologia e da estética, menciona a dimensão antropológica da obras de
Dalcídio, em particular o Marajó, a partir do jogo literatura e antropologia.
Começo, pois, dizendo do que me seduziu nesse livro e que são as
instigantes ligações que ele revela com mundos e valores que, a
princípio, parecem estar inteiramente separados no tempo e no
espaço. À medida que a leitura da narrativa evoluía, ia ficando mais
nítida, para mim, sua dimensão antropológica. Os ecos de Totem e
Tabu, de Freud, soavam mais alto a cada página e eu ia
confirmando a importância do texto de Dalcídio na evocação
desse sentido revelador do trânsito que o homem realizou da
natureza para a cultura, como se deu a transformação do indivíduo
em sujeito do mundo simbólico. (ASAS DA PALAVRA, 2004, P.
17).
104
Goulart (2004) descreve como se dá a relação Antropologia e Literatura nos
romances marajoaras. Dalcído utilizando-se do signo estético, primeiramente seduz o leitor
com uma narrativa atraente para registrar, documentar, relatar suas vivências, isto é, aquilo
que viu, investigou e conheceu nas páginas de seus romances:
...a obra de Dalcídio é tão instigante que que poucos não se
deixam seduzir por ela. Entretanto, não há como negar que o
próprio das obras de qualidade é justamente isso: lançar o canto de
sereia – representado numa narrativa atraente – e, logo em seguida,
quando já tem o leitor enredado na sua sedução, pôr em relevo um
mundo enigmático que confronta o leitor com o desafio de sua
decifração (GOULART, 2004, p. 34).
Dalcídio trabalha com pesquisas, memórias, jornais, documentos históricos,
depoimentos e por meio de observações, através da vivência entre os povos da Amazônia,
conseguiu recolher informações que lhe foram úteis não somente para composição do seu
ciclo romanesco, mas, inseridas nas páginas de seus romances, no sentido de servir como
material de análise e estudo em diversas áreas do saber humano: História, Sociologia,
Antropologia, por exemplo.
Em síntese, a leitura dos romances dalcidianos leva-nos a defender a tese de que
Dalcídio Jurandir foi um literato-antropólogo na Amazônia do século XX, que investigou a
cultura, as histórias, os hábitos, as relações sociais e familiares, a decadência econômica, as
riquezas e exuberância do universo amazônico.
4- A Inserção da escrita Pós-Colonialna Produção Literária de Dalcídio
Jurandir
Os Estudos Pós-Coloniais surgiram da tentativa de compreender os problemas postos
pela colonização europeia e suas consequências. Nesse sentido, as instituições e
experiências Pós-Colonial, da ideia de nação independente à ideia da própria cultura,
misturam-se com as práticas discursivas do Ocidente. A partir dos anos 80, o aparecimento
cada vez maior de textos impulsionou o debate sobre a relação entre a hegemonia dos
discursos ocidentais, as possibilidades de resistência e a formação dos sujeitos colonial e
pós-colonial: sujeitos em mesclas, que surgem da superimposição de línguas e culturas
conflitantes. Nessa perspectiva da descentralização, o Pós-Colonialismo ―coloca alternativas
epistemológicas centralizadas em três blocos de questões que são: a crítica ao modernismo
105
como teologia da história, busca de um lugar de enunciação híbrido pós-colonial e crítica à
concepção de sujeito das Ciências Sociais‖ (COSTA, 2009, p. 118).
Vale mencionar que o Orientalismo de Edward Said (1978) ajudou a estabelecer o
campo da Teoria Pós-Colonial ao examinar a construção do outro oriental pelos discursos
europeus do conhecimento. A partir desse momento, a escrita Pós-Colonial se transformou
numa tentativa de intervir na construção da cultura e do conhecimento e para os
intelectuais que veem de sociedades pós-coloniais, de escrever seu caminho de volta numa
história que anteriormente fora escrita pelos de fora.
De acordo com Sérgio Costa (2006) ―os estudos Pós-Coloniais não constituem
propriamente uma matriz teórica única‖. Trata-se de uma variedade de contribuições com
orientações distintas, mas que apresentam como característica comum o esforço de
esborçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica
crítica às concepções dominantes da modernidade.
Influenciado por um pensamento marxista, leninista e humanista, Dalcídio
construiu um projeto literário que buscava mudanças sociais em favor da sua sofrida gente
marajoara. Nota-se que o literato surge como uma voz responsável e ansiosa por mudanças
sociais, no sentido de desconstruir estereótipos criados pela modernidade em relação à
cultura amazônica, pois sua escrita literária ―é marcada pela subversão, em temas e formas
ao expressar a experiência de povos colonizados, em uma espécie de contra escrita colonial
(SANTOS, 2010, p. 343).
É esse contexto que estamos transpondo para a Amazônia e situando Dalcídio
Jurandir como uma voz que entre a sua ―gente miúda‖, expressão de próprio punho do
autor, procura denunciar as malezas sociais do Marajó, do interior da Pará e da periferia de
Belém, pois sabemos que a produção literária de Dalcídio apresenta resquícios da crise
social e política provocada. Afinal, o escritor recorreu à estética literária como campo de
luta, para expressar a sua indignação social e incorporar nas páginas ficcionais brasileiras o
elemento humano amazônico.
Dessa forma, podemos estabelecer uma relação entre Dalcídio Jurandir e o
pensamento Pós-Colonial, pois da mesma maneira que essa teoria procura desconstruir os
essencialismos, referência epistemológica, critica às concepções dominantes de
modernidade, Dalcídio procura também desconstruir, por meio de um pensamento
marxista, os paradigmas estabelecidos por uma elite dominante que controlou o sistema
social amazônico do século XX.
106
A literatura de Dalcídio a partir de sua trajetória de vida, histórica e política
apresenta por meio de suas personagens os problemas sociais, os sofrimentos e as dores
vividos pelo homem amazônico. Assim, o escritor surge como uma voz cuja intenção é a
desconstrução de uma sociedade dominante. Nesse sentido, é possível observar pontos de
intersecção entre o texto literário de Dalcídio e a teoria Pós-Colonial.
A ficçãodalcidiana apresenta uma inter-relação com pensamento Pós-Colonial ao
propor em seus romances a descrição do mundo amazônico, do seu povo, visto pela
perspectiva do colonizado, pois o olhar de Dalcídio sobre a vida em movimento vai de
encontro ao pensamento europeu cartesiano e iluminista que ―constituem-se de polaridades
entre o Ocidente – civilizado, adiantado, desenvolvido, bom – e o resto – selvagem,
atrasado, subdesenvolvido, ruim (COSTA, 2006, p. 119). Do contraste desse binarismo,
nasce das páginas de Dalcídio a intersecção entre o escritor marajora e a teoria Pós-Colonial.
De forma não intencional, Dalcídio Jurandir propõe ―uma arqueologia pós-colonial
da modernidade‖ com o intuito de reinserir as histórias e experiências dos historicamente
marginalizados, conforme sugere HomiBhabha (1998), além de ―criar um tempo e espaço
novos, in-between, indo além das observações das relações culturais que asseveravam as
impurezas, os hibridismos e as mesclas culturais e disfarçam a dominação existente nos
centros de poder‖.
5- Considerações finais
Tendo em vista estudos preliminares realizados a partir de uma significativa
pesquisa bibliográfica foi constatado que DalcídioJurandir não é somente o artista da
palavra, mas um pesquisador, um antropólogo que por meio da ficção deixou um rico
material de pesquisa que descreve minuciosamente o Chão de Dalcídioe o tornou uma forte
voz na literatura brasileira de expressão amazônica aos moldes dos estudos Pós-Colonial,
além de contribuir, academicamente, com o avanço de estudos científicos em diversas áreas
do conhecimento, em particular a Antropologia.
É uma pesquisa que tem como área de concentração a Antropologia Social e está
direcionada para a discussão de uma temática amazônica, considerado a relação
antropólogo e sujeitos sociais, respectivamente. Dalcído Jurandir descreve o homem
amazônida, em particular os sujeitos marajoaras do século XX, além de trabalhar com
representações de natureza entre sociedades ocidentais e tradicionais da Amazônia ao longo
107
do tempo para compreender a diversidade cultural dos povos tradicionais sob as óticas
nativas e acadêmicas.
Para finalizar enfatizo que estassingelas considerações são apenas o início de uma
discussão que tem um vasto campo em torno de pesquisas acadêmicas sobre o escritor
marajoara Dalcídio Jurandir, com ênfase na relação Literatura e Antropologia na Amazônia.
REFERÊNCIAS:
ASSIS, Rosa (Org.) Estudos comemorativos Marajó: Dalcídio Jurandir: 60 anos. Belém: Editora
UNAMA, 2007.
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A cidade dos encantamentos: pajelança, feitiçaria e religiões afrobrasileiras na Amazônia. A constituição de um campo de estudo, 1870-1950. Dissertação de
Mestradoem História, Unicamp, Campinas/ SP, 1996.
FURTADO, Marli Tereza. Universidade Estadual de Campinas. Universo derruído e corrosão do
herói em Dalcídio Jurandir. Tese (doutorado em Letras) – UNICAMP 2002.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
LIMA, Luiz Costa. Documento e ficção. In: LIMA, Luiz Costa. Sociedade e Discurso Ficcional.
Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e
pensamento limitar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
NUNES, Benedito. Dalcídio Jurandir: romancista da Amazônia. Belém: Secult, 2006.
PACHECO, Agenor Sarraf.Em El corazón de laAmazonia: identidades, saberes e religiosidades no
regime das águas marajoaras. Tese de Doutorado, Programa de Pós Graduação em História
Social, PUC-SP, São Paulo, 2009.
108
ENTRE A HONRA E A CIVILIDADE EM O CORONEL
SANGRADO
Ana Caroline da Silva Rodrigues37
Profª Drª Marlí Furtado (Orientadora)38
Resumo: No século XIX as ideias positivistas, em que o racionalismo e o cientificismo
prevaleciam, traziam uma nova forma de pensar e encarar os problemas em sociedade. Essa
nova ordem se chocou com a tradição e os costumes de lugares que estão distantes tanto
geograficamente quanto socialmente dos centros urbanos. Na literatura produzida sobre a
Amazônia, durante esse período, esse aspecto aparece, quase sempre, em conflito, pois as
leis vindas da nova ordem social se mostram insuficiente para satisfazer a manutenção dos
costumes e acabam gerando um desequilíbrio nas relações entre os indivíduos. Na obra O
Coronel Sangrado, isto pode ser visto no embate que existe entre a busca da Honra e o
perdão, na história dos personagens Miguel Fernandes e Tenente Ribeiro que no passado
foram inimigos e agora se reencontram com o retorno de Miguel, após este ter passado um
tempo longe da cidade de Óbidos. Diante disso, este trabalho busca analisar as diferenças
entre os pensamentos ditados pelo Positivismo e os pensamentos do homem da Amazônia
e da ordem social o qual está inserido concentrando-se na temática da Honra e nos
conceitos de civilização. A análise também considerará importante o deslocamento sofrido
pelo personagem Miguel, evidenciando as consequências desse distanciamento da terra
natal e as mudanças ocorridas nas suas formas de pensar e agir. Para a análise serão
utilizadas teorias sobre o Naturalismo (Coutinho e Bosi), Regionalismo (Ligia M.Leite),
Exílio (Edward W. Said) e Civilização (Tzvetan Todorov).
Palavras- Chave: Regionalismo, Civilização, Deslocamento.
Abstract: In the nineteenth century positivist ideas, in which rationalism and scientism
prevailed, brought a new way of thinking and the problems facing society. This new order
clashed with the traditions and customs of places that are distant both geographically and
socially from urban centers. In literature produced over the Amazon during this period,
this aspect appears almost always in conflict, because the laws coming from the new social
order are shown insufficient to meet the maintenance of customs and end up generating an
imbalance in relations between individuals. In the work Colonel Bled, this can be seen in
the clash that exists between the pursuit of honor and forgiveness, in the history of the
characters and Lieutenant Miguel Fernandes Ribeiro who were enemies in the past and
now are reunited with the return of Miguel, after it has passed time away from the town of
Obidos. Thus, this paper seeks to examine the differences between positivism and thoughts
dictated by the thoughts of man of the Amazon and the social order which is inserted
concentrating on the theme of Honor and the concepts of civilization. The analysis will
also consider important the displacement suffered by the character Miguel, showing the
consequences of distancing the homeland and the changes in their ways of thinking and
acting. For the analysis will be used theories of Naturalism (Coutinho and Bosi)
Regionalism (Ligia M.Leite), Exile (Edward W. Said) and Civilization (Tzvetan Todorov).
Keywords: Regionalism, Civilization, Displacement.
1. Introdução
Num momento em que as ideias do Naturalismo tinham destaque na literatura
brasileira, Inglês de Sousa desempenhou um importante papel na exibição do espaço
Mestranda em Estudos Literários (UFPA) E-mail: caroline [email protected]
Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
E-mail: [email protected]
37
38
109
amazônico perante o cenário nacional, visto que por meio de suas obras é possível ver, não
somente, o espaço descrito, mas uma sociedade que até então tinha sua imagem pouco
mostrada ou ainda estigmatizada na constituição do povo brasileiro. Assim temos, em suas
obras, configurada a literatura regional sobre a qual Afrânio Coutinho define pela influência
de ―maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e que a fizeram
distinta de qualquer outra‖ (COUTINHO, 1969,p.220). Dentre as obras produzidas pelo
autor, ressaltaremos, neste trabalho O Coronel Sangrado e demonstraremos de que forma este
tipo de conflitos de valores acontece.
O autor natural da cidade de Óbidos, onde se passa a história, buscou descrever por
meio de suas obras, o cotidiano do homem da Amazônia, intitulando o conjunto de sua
obra ―Cenas da Vida no Amazonas‖. A crítica literária assim o descreve:
Causídico respeitável e perito em letras de câmbio, Inglês de Sousa
não foi menos escrupuloso como narrador de casos amazônicos
com que antecipou o próprio Aluísio no manejo da prosa analítica.
As datas de publicação de seus primeiros romances,1876 (O
Cacaulista) e 1877 (O Coronel Sangrado) fazem-no
contemporâneo dos regionalistas, Taunay e Franklin Távora, mas
Inglês de Sousa já mostrara nessas páginas de juventude um
temperamento frio, inclinado ao exame dos ―fatos‖, (BOSI,
2006,p.192-193).
Examinar os fatos era uma das principais características do Naturalismo. Assim,
comumente é possível ver esse exame por meio da fala dos próprios narradores dos
romances que não somente descrevem, mas também emitem suas opiniões e juízos de
valores acerca das situações apresentadas. Especificamente, tratando-se de uma obra que se
enquadra também como obra regionalista, este item se revela como um diferencial, posto
que é possível cristalizar opiniões, por vezes, preconceituosas acerca do homem do meio
rural ou revelar assim uma imagem dele mais próxima do real, na descrição das ações
inseridas dentro da cultura local e não dissociadas desta. Essa forma de produção é mais
complexa do que simplesmente a descrição dos espaços, como outrora era associado ao
Regionalismo:
É preciso, então, ultrapassar o critério conteudístico e levar em
conta o modo de formar, observando como certas obras, para
além do assunto regional, buscam harmonizar tema e estilo, matéria
prima e técnica, revelando mais do que paisagens, tipos ou
costumes, ―estruturas cognoscitivas‖ e construindo uma verdadeira
linhagem de representação/apresentação dos brasileiros pobres de
culturas rurais diferenciadas (LEITE, 1994, p.668)
110
Adicionados a estes, na estética Realista e Naturalista temos a linguagem objetiva, o
cientificismo, o materialismo, determinismo, entre outros, utilizados a fim de tornar a
narrativa fria e lenta, consistindo em descrever o comportamento do homem no seu
espaço, chegando assim, no romance experimental. E é neste tipo de romance em que
aparecem os conflitos do homem frente ao meio em que se vive. Em O Coronel Sangrado,
Inglês de Sousa exibe o conflito interior de Miguel Fernandes, personagem protagonista.
Na obra, vemos o retorno de Miguel à cidade de Óbidos, da qual ele teve que sair,
forçadamente, após uma briga com um inimigo de sua família (este fato foi descrito no
romance anterior: O Cacaulista). Passados mais de cinco anos na cidade de Belém, ele,
agora, retorna e a população da cidade espera que ele se vingue do seu antigo inimigo fato
que não acontece, pois Miguel depois do tempo que esteve fora, volta com valores
diferentes, frustrando as expectativas das pessoas.
2. O retorno à terra
Na viagem de retorno para a cidade de Óbidos, Miguel manifesta sua ansiedade de
rever sua terra natal. Ao escrever para um amigo que partira para o Maranhão ele destaca:
―Depois de mais de cinco anos de exílio ia eu rever a família, os amigos da meninice,
aquelas grandiosas terras do Amazonas que nunca se cansa a gente de admirar, e que uma
vez vistas deixam na alma uma impressão profunda e duradoura‖ (SOUSA, 2003, P.42). O
tempo que passara em Belém trouxe muitas mudanças na vida do personagem, posto que
ele teve contato com um espaço em que os valores sociais destacados eram baseados na
ciência, nos valores próprios do Positivismo, no Humanismo, entre outros, e não
privilegiavam as tradições locais, por isso ele sente-se exilado.
Segundo Edward Said (2003), ―o exílio é uma solidão vivida fora do grupo: a
privação sentida por não estar com os outros na habitação comunal‖ (SAID, 2003, p.50).
Isso faz com que o indivíduo se sinta um ―estranho‖ dentro do novo grupo tornando
também o espaço em um lugar desagradável. Vemos isso em outro trecho da carta de
Miguel:
―Fora com impaciência viva que eu aguardara o dia da saída do
vapor, sorvendo o vermelho pó da aborrecida Belém. Eu ia rever o
Amazonas(...)A minha imaginação, excitada pelos livros e pela
incerta recordação do passado, que deixara a descuidada infância,
prometia-me uma mundo de magníficas realidades,um paraíso de
água e de verdura, em que, livre dos atentados do homem, se
revelava a natureza com toda a força e poesia!‖ (SOUSA, 2003,
p.42).
111
A cidade de nascimento de Miguel (Óbidos) aparece, agora, como refúgio da
modernidade do século XIX porque é nela em que o personagem estará ―livre dos
atentados do homem‖. Nesse caso, o lugar do exílio (Belém) é posto quase como ficcional
posto que ―o novo mundo do exilado é logicamente artificial e sua irrealidade se parece
com a ficção‖ (SAID, ano, p.54), ao passo que o lugar de origem (Óbidos) é colocado
como a possibilidade de se encontrar ―um mundo de magníficas realidades‖ ainda que isso
seja baseado em ―incerta recordação do passado‖.
Outro ponto a ser destacado aqui é o acesso aos livros, símbolo do conhecimento
institucionalizado, objeto este mais presente na vida cotidiana dos habitantes das capitais e
que passou também a fazer parte da vida de Miguel no tempo em que esteve em Belém:
―No Pará, Miguel fora empregado na casa de um excelente homem que o tratou como
filho. O rapaz teve, pois, tempo de instruir-se lendo alguma coisa‖ (SOUSA, 2003, p.68). O
acesso às leituras o acaba colocando frente às mudanças exigidas a fim de que seu modo de
pensar e agir se enquadrem a ordem social estabelecida na cidade de Belém, que aqui
aparece como o símbolo de transformações no pensamento advindos da Modernidade.
Desta forma, há uma dualidade na descrição de Miguel, a qual pode ser entendida
como a síntese da imagem do próprio personagem, que resiste às transformações impostas
pela sociedade do lugar de exílio (ainda que involuntariamente), evidenciada na descrição
do narrador:
O corpo era elegante, não dessa elegância afetada dos nossos
ridículos goumeux; mas de uma elegância natural, quase selvagem.
Via-se que a vida das cidades dificilmente moldara à sua feição
uma natureza virgem. Por vezes, pelos movimentos bruscos que
como descuidadamente o assaltavam, via-se perfeitamente aparecer
o filho do mato sob o invólucro mentiroso do cidadão. Um
observador veria sob as vestes da moda bater o peito do matuto
ingênuo e simples. Para os que o cercavam, porém, o passageiro
do Madeira era um moço do tom que viera trazer da capital as
últimas modas e as últimas notícias. Era um objeto de inveja,
porque decerto excitaria a imaginação de todas as moças da terra.
(SOUSA, 2003, p.42) (grifo do autor)
Miguel se destaca por se diferenciar dos demais de forma peculiar, isso acontece de
forma natural e inerente à sua essência. Mesmo quando ele tenta se parecer com os
habitantes do novo espaço, no seu modo se vestir, por exemplo, se torna algo mentiroso.
No entanto, para os seus conterrâneos, a marca da diferença era vista como um privilégio
para poucos e por isso objeto de desejo. SAID afirma, ainda que para aquele que sai do seu
112
lugar de origem ―os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem
inevitavelmente contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro ambiente
(SAID, 2003, p.59)‖. Dessa forma o personagem tem em sua vivência dois ambientes, os
quais são reais e se dão conjuntamente se contrapondo um ao outro.
3. O ressurgimento do conflito
O retorno de Miguel faz renascer a história não acabada entre ele e o tenente
Ribeiro, desestabilizando a situação de tranquilidade que estava instaurada desde sua ida
para Belém. Por este motivo a expectativa sobre a sua chegada é a dúvida sobre os motivos
de sua volta, os quais se justificariam pelo desejo de vingança do rapaz. Mas a incerteza
sobre a sua decisão evidenciam a visão da comunidade sobre aquele que se distancia por
longo tempo, pois este não é mais reconhecido como igual entre eles, estando passível de
receber as influências diferentes dos conceitos tradicionalmente valorizados na terra como
o respeito aos mitos, a manutenção da honra, o crédito aos mais velhos, mesmo quando
estes entram em choque com os pensamentos do saber científico, etc. Neste caso, essa
expectativa ‗tensa‘ chega a se aproximar com a da chegada de um estrangeiro que por ter
valores ainda desconhecidos pode causar medo e ameaça para as comunidades tradicionais.
Já o personagem fugindo do conflito que vive de não pertencer à cidade de Belém,
deposita neste retorno a oportunidade de encontrar consigo mesmo, em sua terra natal.
Mas ao chegar, Miguel se depara com uma terra diferente da idealizada onde a ambição
pelo poder político, os conflitos pelas terras, os casamentos arranjados estão presentes e os
comportamentos são justificados pelas posições que cada indivíduo quer representar para a
sociedade local.
Na cidade de Óbidos quem o recebe é o tenente-coronel Severino de Paiva que
também tem como inimigo o tenente Ribeiro e por isso planeja ajudar Miguel numa
possível tentativa de vingança. No entanto, ao falar sobre o assunto, obtém de Miguel a
seguinte resposta:
- Senhor tenente-coronel; penhora-me muito o interesse que me
toma pela minha causa e o afã que mostra em querer vingar-me
das injúrias de homem. Mas cumpre-me fazer, desde já, uma
declaração. Eu não voltei para esta terra com projetos de vingança,
não. Há muito tempo, que esqueci as injúrias que recebi, e por
forma alguma desejo lembrar-me delas agora. O que me trouxe a
Óbidos foi o natural desejo de rever a terra do meu nascimento e
de abraçar a minha pobre mãe e obter dela o perdão da minha
falta. (SOUSA, 2003, p.61)
113
A reação de Miguel deixa Severino de Paiva bastante desapontado, pois além de
ajudá-lo na vingança, queria envolvê-lo na política da cidade lançando-o como vereador e
aliado de seus interesses. Além disso, também pretendia casamento para a sua filha. A
posição de Miguel é explicada pelo narrador da seguinte maneira:
O rapaz tomara, muito antes de voltar a Óbidos, e logo ao projetar
essa volta, a resolução de esquecer tudo o que se passara com a
família Ribeiro. Queria esquecer as injúrias recebidas. Era isto
efeito do poderoso impulso da civilização, que lhe alargara a
órbita estreita das ideias. Mas já dissemos que, se a civilização
lhe modificara as ideias, não havia tido grande influência sobre
seus sentimentos. (SOUSA, 2003, p.68) (grifo nosso)
Aqui, temos claramente a diferença que se faz entre o ambiente da sociedade da
capital e do povo das cidades interioranas. Segundo Todorov ―o civilizado é quem sabe
reconhecer plenamente a humanidade dos outros‖ só podendo receber esse qualificativo
após transpor duas etapas: ―no decorrer da primeira, descobre-se que os outros têm vida
modos de vida semelhantes aos nossos; e, durante a segunda etapa, aceita-se que eles sejam
portadores de uma humanidade semelhante à nossa‖ (TODOROV, 2010, p.32-33). Assim,
essas definições implicam a identificação entre os indivíduos. Todorov ainda ressalta a
definição de Kant sobre a ideia de civilização, definido-a por ―pensamento ampliado‖,
conceito coincidente com o utilizado pelo narrador que fala em ―alargar a órbita estreita das
ideias‖. O autor ainda explica que o termo ―civilizado‖ não deve ser atribuído a pessoas,
mas às atitudes tomadas por elas, sendo desta forma uma característica transitória no
indivíduo e não fixa, como querem os que se beneficiam das diferenças de classes sociais.
Nesse sentido, também, civilização está atrelado à análise fria e racional dos fatos na qual as
ideias devem ser postas de modo mais amplo sem grande influência de suas emoções e
qualquer atitude que não sejam baseadas neste conceito é posta como um atraso ou
regresso na constituição do sujeito, passando assim a um patamar inferior no que tange aos
valores sociais ditados pelas cidades civilizadas. Mesmo assim, o personagem se vê, por
vezes, em conflito consigo mesmo porque embora querendo esquecer-se das humilhações
do passado, teme por sua imagem na cidade de Óbidos, em que o perdão pode representar
a falta de coragem, medo ou fraqueza.
Na oportunidade em que esteve frente a frente com seu antigo inimigo- o tenente
Ribeiro- Miguel é recebido por ele como um amigo e relembra de seu antigo amor, Rita
(filha de Ribeiro que já está casada com o Alferes) e teme sofrer as mesmas humilhações do
passado:
114
Na melindrosa situação em que estava era preciso todo o cuidado,
necessitava de toda a atenção para não incorrer naquilo que o
moço mais temia: o ridículo.
Precisava apresentar-se de forma que impusesse o respeito que lhe
era devido. Que mostrasse que o homem de hoje não era mais a
criança de outro tempo.
No fundo do coração de Miguel havia, porém, um sentimento cuja
voz se fazia ouvir baixinho, mas repetidas vezes. Era a vaidade. O
moço entendia que não lhe era possível deixar de tirar uma
desforra passada. (SOUSA, 2003, p. 84) (grifos meus)
No excerto, vemos que a preocupação do personagem com a sua imagem perante a
sociedade de Óbidos se dá não mais tendo como base a instrução recebida na capital, mas
nos valores que são reconhecidamente importantes pela sociedade de sua cidade natal.
Desta forma, se o Perdão é valorizado por uma comunidade que privilegia a razão, neste
caso ele poderia levá-lo a exposição ao ridículo, tão temida por ele. Outro ponto a ser
destacado é o ressurgimento do sentimento da Vaidade que o fez sair de Óbidos para
Belém, o qual insistentemente o levava para a conclusão de que ―não lhe era possível deixar
de tirar uma desforra passada‖ (SOUSA, 2003, p. 84). Esse impasse sofrido pelo
personagem dura todo o romance, mas tem sua resolução definitiva baseada no amor dele
por Rita que fica livre de impedimentos após a morte do Alferes Moreira, marido da moça.
Por fim, Miguel abandona todas as regalias oferecidas pelo Tenente Severino de Paiva, para
casar-se com seu antigo amor entrando para a família de seu inimigo de outrora.
Esse tipo de desfecho revela, segundo a crítica literária, a tendência ainda forte de
uma influência do período romântico na produção de Inglês de Sousa e coloca a
subjetividade como centro das decisões. Porém, também podemos ver que a utilização da
razão na tomada das decisões, especificamente no ato de esquecer e perdoar as ofensas
sofridas no passado revela o período de transição de um estilo literário para o outro na
obra do autor paraense. No romance, a subjetividade do amor toma como base a
racionalidade para se justificar e se consumar. Este tipo de comportamento nos mostra a
assimilação dos conceitos sociais próprios da cidade, em que se valoriza a boa convivência
entre os homens a fim de se chegar ao idealismo de fraternidade, e também revela como o
personagem usa isso ao seu favor no intuito de realização emocional, mas sempre
preocupado com a imagem dele perante a sociedade da cidade de Óbidos.
4. Considerações Finais
O personagem Miguel é a imagem das identidades resultantes dos processos
migratórios, dados de forma planejada ou não. Esses deslocamentos fizeram com que
115
surgissem novos pensamentos e práticas sociais, transformando, também, as estruturas já
existentes. Muitos foram os autores que abordaram essa temática na literatura produzida na
Amazônia, podendo citar, além de Inglês de Sousa, Dalcídio Jurandir, Abguar Bastos, entre
outros, e grande parte deles passaram por processos migratórios similares a de seus
personagens. Não queremos, aqui, equiparar os objetivos de autores e personagens, visto
que as obras não se tratam de autobiografias, mas vale ressaltar a importância desses
escritos ficcionais na construção e reconhecimento da identidade da sociedade que vive na
Amazônia, a qual até os dias atuais, ainda passam pelos mesmos processos.
REFERÊNCIAS:
BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira- 43 ed. – São Paulo: Cultrix,
2006.
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record, 1969.
LEITE, Lygia C. Moraes. Velha Praga? Regionalismo Literário Brasileiro. In.:
América latina: Palavra,literatura e cultura. Org. Ana Pizarro. Vol.II. Emancipação do
Discurso. São Paulo: editora Unicamp, 1994.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Rio de Janeiro: Companhia
das Letras, 2003.
SOUSA, H. M. Inglês de. O Coronel Sangrado. – Belém: EDUFPA, 2005 – (Coleção
Amazônia)
TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além dos choques das
civilizações. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. – Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2010.
116
O SALTO DA ÍNDIA: “ (RE)VISÕES DO CORPO DAS ÍNDIAS E
NEGRAS”
Ana Chiara39
Resumo: examino a performance O Confete da índia , de Andre Masseno, em suas variáveis
figurações do corpo da índia/índio, do corpo da negra/negro, como metonímias
―presentificadas‖ da cultura brasileira, em termos da assimilação, tensão ou confronto,
levando em conta o idealismo da tradição identitária nacional, de modo aberto e exposto à
dúvida. Estas imagens de corpos atravessam, oferecendo resistência, o contínuo cultural, e,
a partir delas, penso o corpo da cultura e corpos na cultura num recorte temporal que se
concentra no modernismo/e no chamado pós-modernismo.
Palavras chave : Performance, corpo, índia (o), negra(o)
Resumé : j‘examine la performance O Confete da Índia, d‘André Masseno, avec ses variables
de figurations du corps de l‘indienne/indien, du corps de la noire/ noir en tant que
métonymie ‗‘présentifiées‘‘ de la culture brésilienne en termes d‘assimilation, de tension ou
de confrontation, en prenant en compte l‘idéalisme de la tradition identitaire nationale, de
façon ouverte et exposée au doute. Ces images de corps traversent, tout en offrant une
résistance, le continuum culturel, c‘est à partir de celles-ci que je pense le corps de la culture
et les corps dans la culture dans un découpage temporel se concentrant dans le
modernisme/ et dans ce qui est appelé le post-modernisme.
Mots clés : performance, corp, indienne, nègre.
1. Preâmbulo
Salto. Substantivo masculino, ação ou efeito de saltar; pulo, (1) movimento
brusco, com expansão muscular, pelo qual o corpo se eleva do solo para ultrapassar
certo espaço ou recair no mesmo lugar; (2) movimento de reflexão por efeito de
queda numa superfície, ricochete (de um projétil); (3) espaço ou altura que se vence
com um salto [...] ; (4) queda d´água; (5) ato de sair à estrada para roubar, assalto,
pilhagem saque; (6) mudança rápida de posição ou de situação; (7) (por extensão)
transformação abrupta; (8) tacão de calçado; (9) intervalo, espaço de tempo; (10) fig.
movimento vibratório, trepidação, agitação, palpitação; (11) cópula do cavalo ou
touro padreação; (12) erro tipográfico [..]; (14)subida abrupta da voz fora de
compasso; (15) qualquer intervalo melódico que ultrapasse a segunda; (16) rede para
apanhar certos peixes [...] (HOUAISS, 2001, p.2504).
A frase ―O salto da índia‖ guarda, neste trabalho, a maioria destes sentidos
como uma mina de guerra enterrada num solo instável, pronta para explodir em
muitas direções: histórica, cultural, corporal, erótica, extática e de gênero. É uma
39
Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ/ Pesquisadora CNPq)
117
frase performática, no sentido de afetar o outro, querendo que salte também de seu
escudo de saber, de seu conforto social ou de gênero. Querendo ser um projétil em
ricochete a partir dos corpos indígenas ou negros que compõem o imaginário
histórico da nação brasileira desde a chamada Primeira Carta, a qual dava notícias ao
rei das terras encontradas e que, escrita por Pero Vaz de Caminha, eternizou uma
imagem de terra selvagem, erótica e gentil à espera da ‗Europa civilizada‘:
―A feição deles é serem pardos maneira d`avermelhados de
bons rostros e bons narizes bem feitos. Andam nus sem nenhuma
cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas
vergonhas e estão acerca disso com tanta inocência como têm de
mostrar o rosto‖ [...]‖ (CAMINHA, Pero Vaz apud. BOSI, 1979,
p.17) .
Desde então, a partir das circunstâncias de uma cultura iletrada, a formação
iconográfica da nação brasileira abusa (em amplos e vários sentidos) da figura da
indígena (aqui chamada ambiguamente de índia), para estabilizar uma noção de
afabilidade (ou de cordialidade), recalcando certa feição melancólica assim como face
violenta do colonizador branco e europeu.
Seguiram-se, por exemplo, a essa primeira fabulação imagética, com caráter
edênico das cartas dos viajantes nos séculos 17 e 18 duas posições sobre os indígenas
a formarem um acervo de imagens verbais e pictóricas. Por um lado, a via realista dos
registros que fiéis à observação in loco a partir do contato com os selvagens por parte
de expedições missionárias. Ideologicamente uns os representavam idealizados como
dóceis e podendo receber a carga religiosa e cultural do colonizador e outros a
vertente dos que desejando a repressão dos ―bárbaros selvagens‖ os ―pintavam‖
como bugres, nômades, irrecuperáveis.
No início do século XIX, com a vinda da Corte para o Brasil chegam as
missões artísticas40. Repetindo as esterotipias do corpo indígena, o do negro será
apresentado nas telas do imaginário tropical de modo equívoco. A vinda de NicolasAntoine Taunay, na condição de pintor (principalmente de paisagens) é exemplar
como exemplo da ficcionalização destes corpos nos quais a violência sofrida será
disfarçada. Lilia Schwarz, em seu estudo sobre o período demonstra a elisão do
corpo do negro, pela estratégia do deslocamento para a periferia da tela, criando algo
como os ―trópicos improváveis‖ :
40
Debret, Spix, Martius, Rugendas e Weed.
118
―Só quem não conhece as telas italianas de Taunay pode considerar suas
paisagens brasileiras ´cópias perfeitas da natureza tropical‘ [...] A
ambivalência de Taunay estará toda presente em suas telas, que fazem
um jogo duplo entre apresentar e esconder. Ao mesmo tempo que as
pinturas revelam a escravidão, não a trazem para o centro da tela.‖
(SCHWARCZ, 2008,p.257)
Se, por exemplo, considero as virgens mortas, destaco o quadro ―Moema‖, de
Vitor Meirelles 41, inspirado na necrofilia simbolista (e baudelaireana) do final do
século e de influência romântica dos escritores brasileiros. O pintor catarinense fixa
uma imagem de índia de segundo grau, não realista, como a sucessão dos trágicos
corpos das índias mortas na e pela literatura42, usados como estratégia para a
construção da idéia de nação. Pintores que talvez sequer tenham tido a experiência de
ver índias reais, ou por pintarem na Europa, aonde iam também em missões ou por
conta do tamanho o genocídio indígena perpetrado pela colonização eurocêntrica o
que os distanciava cada vez mais do contato com essa população. No quadro de
Meireles, tepidez, lascívia, entrega amorosa convivem ainda no triste corpo afogado
que veio dar à praia, depois da infrutífera tentativa da índia Moema de reencontrar
seu amor português como reza o poema Caramuru de Santa Rita Durão. Moema
pintada, antes voluptuosa do que cadáver, oferece seu corpo ao estrangeiro tal qual a
terra e cultura locais. Também a morte trágica de Lindóia, pintada, em 1882, por José
Maria de Medeiros (1849–1925) vem corroborar para a associação de amor e morte
nos enredos de fundação tema amplamente explorado. No adiantado do século XIX,
também Iracema, urdida pela fábula literária de José de Alencar, criador da língua
literária brasileira insiste neste modelo de infelicitação amorosa que contribui para o
panorama latinoamericano comum, conforme indica Doris Sommer43. Todavia, não
trato, neste trabalho, exclusivamente deste corpo representado para a simbologia do
surgimento da pátria. São outros os corpos que saltam para dentro destas linhas.
Também seria necessária a retomada de textos basilares sobre a cultura
brasileira – como o ―Estilo tropical‖ (ARARIPE Jr, In. ACÍZELO, 2011) ou ―O
homem Cordial‖ de Raízes do Brasil (BUARQUE DE HOLLANDA, 1933) - no
sentido de se compreender o modo como a morte, a melancolia e o tédio conformam o
Vítor Meireles de Lima, Florianópolis, Santa Catarina, 1832 – Rio de Janeiro, 1903
Basílio da Gama, Santa Rita Durão, José de Alencar e José de Alencar, por exemplo.
Doris Sommer em SOMMER, D. ―Amor e pátria na América Latina: uma especulação alegórica sobre
sexualidade e patriotismo?.‖ In: Papéis avulsos n. 10. Rio de Janeiro: CIEC-UFRJ, 1989, p. 1 Estuda essa
construção de imagens de nação a partir de imagens de jovens nativas apaixonadas pelo elemento invasor (o
estrangeiro) e traidoras de suas tribos. Ver também ―Iracema ou A fundação do Brasil‖ IN. RIBEIRO.
Renato Janine. A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
41
42
43
119
estado de privação do sujeito indígena ou negro e se inscrevem com disfarces
insidiosos, até então subvalorizados, no discurso da cordialidade brasileira, como
vírus inoculado no corpo da cultura da alegria. André Masseno, o artista de O
Confete da índia, reflete, em suas pesquisas, sobre essas questões no artigo, ―Sabores
e dissabores de uma realidade tropical‖ (2012):.
O tropical é muitas paisagens, e uma delas é a de ser uma
resposta à dominação histórica, cultural e econômica do
imperialismo sobre o território latino-americano; ou pode ser o
tropical um traço estilístico dos vencidos, que o transforma em
linguagem no esforço de extirpar o engasgo deixado pelo contínuo
banho de sangue dado em prol de um discurso unilateral da
História.44
2. O Salto da ìndia
Um corpo toma de assalto o espaço de um retângulo e faz com que outros
corpos desejantes se colem às paredes/ um corpo em transe suga o ar deixando um
vácuo irrespirável em torno como se todo o ar estivesse sendo exalado dos pulmões/
um corpo se arrasta, se esfrega, grita, corre, respinga suor, excreta mijo, cospe/
enquanto outros corpos, cujos nojo, espanto, piedade só podem se manifestar em
músculos tesos, mãos atadas, sorrisos, em olhares que se desviam da manifestação
de um excesso, restam estáticos, contidos, espremidos contra muros, na expectativa
de uma queda, de cacos de uma garrafa, um ferimento, restos de arroz, feijão, milho
cuspidos, restos de sidra espirrando nas roupas, um tombo por cima,/ com um grito
‗get out’ libertando, soltando, convocando demônios/ corpo-música, corpo-rítmicocorpo singular, corpo-coletivo, corpo- isso, corpo- aquilo, um corpo alucinado entre
corpos contidos/ um corpo extático, envultado por entidades - multidão, lugar de
passagem dos gestos culturais, dos confetes da índia (da Índia?) / corpo
macunaímico em mímicas diversas, colagem de máscaras, de poses, corpo perverso
polimorfo, corpo - proteiforme, corpo- cultura, corpo-político, corpo- endemoniado
44
Masseno continua: ―O tropical seria, também, a condição para uma reivindicação éticopolítica bastante cara ao movimento tropicalista, no qual se inserem as escritas de José
Agrippino de Paula, Torquato Neto e Capinam [...]. Seus textos, em vez de descrever
fidedignamente a realidade brasileira daqueles anos, optam pelo jogo ironicamente festivo e
espetacularizado da vida. O tropical surge não como ilusão, mas sim como nossa
crua/cruel configuração do real[...] com sua espetacular e assombrosa exuberância
melancólica e vertiginosa. O tropical se apresenta como estilo e noção disparadores de
escritas do/com o real – este aqui compreendido não como fato, mas sim como espaço de
experiências. O tropical torna-se local de uma língua ferida devido ao sabor desesperado e
suculento do fruto tropical; espaço ofegante diante da diversidade excessiva de uma
paisagem dispendiosa e repleta de son(h)o. (MASSENO, 2012, p. 74)
120
contra corpos-policiados, corpos de espectadores, corpos expectadores, corpos-quenão-dançam-não-gritam-não-fodem-não-podem-não-explodem/
enquanto
um
corpo convite, corpo que seduz, corpo que chama, corpo em chamas, corpo
xamã, corpo-desbunde contra estes corpos domesticados/ um corpo-animal, corpocobra/ corpo tudo pode/ tudo fode, fode com tudo, corpo-deboche/ corpo- acorpo contra corpo-social deixando exposto o código de conduta que se implantou
como um chip sob a pele dos chamados cidadãos de respeito/.
Ao artista é permitido ‗pirar‘ (enlouquecer) porque entra e sai da experiência,
porque a conduz. A platéia obedece às regras da não interferência para não se
entregar também sem volta, para não manifestar seu corpo numa comoção erótica
e/ou extática. Eis a equação corporal exposta: o teatro, a performance como
"miroitement", como "éclat" (DIDI_HUBERMAN,2008, 86-87) dos corpos do
público, do corpo-público. Trato aqui da performance O Confete da índia concepção,
direção, coreografia e execução de André Masseno e realizada nos dias 10 a 20 de
setembro de 2012 no Solar de Botafogo e nos dias 05 e 06 de Outubro no Centro
Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro45.
No centro de um retângulo, envolto por um saco de lixo preto, encontra-se um
corpo do qual só se vêem as canelas equilibradas sobre enormes saltos de um sapato
vermelho, ele dança ao ritmo da canção portuguesa ―milho verde‖, o público está em
pé, encostado às paredes. Daí por diante serão sucessivas coreografias (e sucessivos
saltos mutações) com trocas de música, de roupa, ingestão de bebidas, de comida,
com urina e suor em cena. Neste trabalho o corpo do artista é levado a extremos
incômodos. Não raro se podem ver arranhões, esfoladuras na pele, num circuito de
dentro (o suor, o sangue, a urina) para fora (a superfície da pele, poros, furos),
desdobramentos, desdobras, de um exercício de corpo-pensamento, saltos,
sobressaltos, assaltos, pilhagem da cultura brasileira, de seus estereótipos, de seus
clichês, ao mesmo tempo em que se faz o desmonte dessas imagens congeladas e
reatualizadas no ritual xamânico do transe cultural, de seus trânsitos. Não se trata de
uma remissão ao passado, nem de uma projeção do futuro, o tempo da performance
é um aqui e agora, uma anarqueologia, no sentido que aponta Hilan Besusan,( 2012) ,
ou seja, no sentido que revê as teorias eufóricas e também as disfóricas do corpo
45
Essa performance foi premiada com o Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança 2011 e FADA 2011 Fundo de Apoio à Dança, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.
121
cultural brasileiro, projetando este corpo numa deriva incondicional, a deriva da
ficção.
A performance do êxtase n´‖O Confete da índia‖ nada deve à moral. Religiosa,
mergulhada até a medula num ritual, é profana, ou ainda de profanação do que é
tomado como sagrado em nossa cultura, efetuando-se de maneira desafiadoramente
blasfema e perturbadora, como ânsia de complementaridade, de abarcar o todo (de
uma história?), mas trazendo em si inoculado o vírus de uma conseqüente derrelição,
de desamparo e de vazio. As leituras dos místicos (Santa Teresa D´Ávila, São João de
La Cruz) ajudam a compreender o êxtase, neste espetáculo, como ―violento processo
de extropecção de si/ introspecção de uma possessão‖ no qual o corpo, em agitada
comoção exterior fora do âmbito do ‗em-si mesmo identitário‘, mergulha numa
experiência do sensível, em processo de contraposição ao desgaste dos ―usos do
corpo‖ efetuados na mediania midiática da cultura brasileira histórica e
contemporaneamente .
Neste caso, de O Confete da índia, a figura ambígua em cena (homem/mulher/
animal/ coisa), embora exposta em toda a superfície da pele quando nua, guarda algo
como uma sede de profundezas, abismações, quando, sob o saco de lixo que a
envulta, ou quando, sob a máscara carnavalesca de um Clóvis46 ou sob uma peruca,
traz em si um enigma indecifrável, ou quando, soltando o grito gutural, incomoda
por reação contrária ao excesso de superfície e ao superficial desmonta nossos clichês
de representação como um salto, subida abrupta da voz fora de compasso.
O corpo desta índia impõe-se como necessidade de reagir à atividade frenética
e/ou totalmente exteriorizada e banal que pode ser encontrada nas imagens da
cultura chamada midiática. Assim de um extremo total da introversão/ devoração de
estereotipias da cultura brasileira, ela/ele salta ao movimento contrário da
extroversão total por meio dos líquidos, dos gritos, das expressões faciais. São os
estados gloriosos do corpo47. Nesse corpo, desdobram-se os caminhos que vão da
arte de experimentação ou encenação do erótico ao campo da presentificação da
morte (o corpo some, desaparece ao final). O corpo- índio- índia- negro- negrahomem- mulher do performer, no movimento de alçar-se e de desmaiar, arrastandose pelo chão imundo, perturba todas as noções de física, contraria a ordem do
46
Os Clovis ou Bate-bolas são fantasias que cobrem todo o corpo e com uma máscara só com orifícios
comuns às brincadeiras carnavalescas da periferia carioca.l,
47 Cf. a exposição de foros de Arthur Omar:‖Antropologia da face gloriosa”
122
mundo, desmente a moral que separa gozo e beatitude, excesso e privação, deleite e
nojo. A graça aparece numa dimensão ao mesmo tempo divina (dos caboclos e dos
orixás) e profana (dos mascarados, das dançarinas de dancing, dos corpos alucinados
nas boates), como um apelo irrecusável aos sentidos, como materialização poética do
coração de um país, aqui indicado pela retomada da metáfora oswaldiana de
Pindorama, terra das palmeiras, espaço não oficial, mas culturalmente exposto, como
um desafio à razão, que poucos podem atingir.
A experiência do público de estar espionando uma dimensão vedada às pessoas
comuns raia o silêncio total, é incomunicável, nela implodem as palavras, as palavras
perdem a capacidade comunicativa, se ditas são potências. O corpo da índia também
se potencializa, torna-se dádiva, entrega total. Como diz Bataille a propósito do sol,
excede, mas também pode queimar se tocar o corpo público. Nesta coreografia do
desejo, tudo ameaça se romper. E o público teme tocar o nada. Junto da experiência
radicalmente arrebatadora do êxtase, sobrevém a da transgressão como no domínio
da poderosa literatura da crueldade sadiana, com seu opressivo clima de violência e
da vontade maníaca voltada para o mal, assim como da positivação do excesso
erótico de um melancólico, como Bataille em seus festins mortíferos, pensados aqui
como antecessores tal como desfiadas e desafiadas na desafiadora performance. Sendo
assim, as imagens das índias mortas são convocadas por força da música e da longa
peruca. Elas surgem pobrezinhas, as infelizes, e sarcásticas, depravadas, como corpos
fantasmáticos do passado cultural, envultadas, sozinhas, abandonadas, a fazerem
simpatias de sedução como a de coar café na calcinha. Quem essas índias querem
conquistar? Que assalto, pilhagem, que revirão atópico insinuam?
Mas não só d´O Confete da índia quero tratar. Falo a partir de figuras de corpos
de índios, de negros, mas também de outros corpos. Volto a 1945, quando um poeta
paulistano encosta o peito no peito escuro do rio Tietê. Peito com peito, abraço
indissolúvel na densidade negra da noite, Mario de Andrade escreve ―Meditação
sobre o Tietê‖48, um testamento-testemunho, lamento, mantra político, como se
adivinhasse a contração fatal do coração exausto, pesado, devastado, contraído e
enfartando. O poeta modernista mergulha rio adentro, em 330 versos contrariados.
Neste admirável e sombrio poema, as águas escuras do rio preparam o mergulho do
poeta heroico, do vanguardista da pauliceia desvairada, do poeta arlequinal, do poeta
48
Todas as referências do poema referem-se à edição de Poesias Completas,1972, e serão indicadas por
MT e a página.
123
que ―ouviu‖ histórias de Macunaíma, herói sem caráter, herói de nossa gente. No
poema-suicida se pressente a uiara, a moça do furo na nuca nas águas da lembrança,
misto de indígena, de negra e encantada, ela puxa o herói para um mergulho
mortífero e contaminador. Também a índia de salto n´O Confete repete os
movimentos coleantes e sedutores da uiara, citados do filme Macunaíma 49de Joaquim
Pedro de Andrade, no qual se podia pressentir o furo na nuca da moça sob o
movimento ondulante dos cabelos. Por este furo na nuca da moça, o herói foi
tragado ao fundo do rio e despedaçado; pelo furo do negrume denso do rio na
Meditação, as esperanças do poeta, no poema, esvaem.
Se as figuras de índio românticas, como Iracema, foram revisitadas por Mario
de Andrade em Macunaíma, envenenando o herói modernista com a melancolia final
do livro e do poema ―Meditação‖, Masseno, ao coreografar O Confete da índia, revisita
anarqueologicamente (cf. Besusan, 2012) os anos 70, no corpo de Gal Costa,
convocada à performance d´O Confete e reatualizada em trilhas musicais dance. Gal
Costa, a única tropicalista a ficar no Brasil enquanto os outros foram obrigados a se
exilarem é apropriada por Masseno na revisão dos anos 70. No corpo entidade
tropical, Gal Costa revisita a guarânia ―Índia‖, composta pelos paraguaios Assunción
Flores e Manoel Ortiz Guerreiro e rgravada, no início de 1953, por Cascatinha e
Inhana. A regravação de Gal, em 1973, apontava ironicamente para certa falsificação
e embaralhamento das fronteiras latinoamericanas, a maioria à época ensaguentadas
por ditaduras. Sua interpretação guarda um sabor amargo e espinhento como o dos
frutos tropicais, metáforas do país de Pindorama e sua fantasia é vermelho-sangue
como o pensamento de Masseno no artigo citado. Em 73, os produtos vendidos na
fronteira paraguaia eram considerados falsos. A falsa índia guardava, portanto, a
imagem falsificada do herói romântico junto à de vítima explorada. São
sobreposições difratadas de um corpo sem alívio, um corpo também sem uma
origem certa, a índia de Masseno é um corpo esgotado que se enche e se esvazia sem
nunca estar pleno.
Contrapõe-se à derrisão momentânea dos saltos dessa índia, a figuração de
uma negra na obra de Mario de Andrade50. Em carta a Carlos Drummond (1924), o
poeta paulistano recortara de um cortejo carnavalesco a imagem de uma negra cuja
alegria imprime forte impressão em seu espírito: ―Dançava com religião. Não olhava
49
“Macunaíma”, filme de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969, baseado em obra homônima (1924) de
Mario de Andrade.
50
Referência ensaística de Silviano Santiago.
124
para lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. [...] Aquela negra me ensinou o que
milhões, milhões é exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a
felicidade‖ (apud. Santiago, 2006, p.69) . O corpo da negra na dança se desembaraça
dos códigos culturais esgotados e faz emergir uma aparição, ou aquilo que
Gumbrecht (2010) explica como produção de presença. Esta figura do corpo em
transe da negra afetou Mario e, provavelmente, o leitor daquela carta, provocando-o
com o desejo e a inveja dessa vivência tão magnificamente plena, ao mesmo tempo
individual (não olhava para lado nenhum) e coletiva (dançava com religião). O corpo
da negra contamina com a potência de perder-se um pouco na multidão dos corpos.
O corpo da negra ensimesmado não se afoga, nem se sobressalta, ele gira.
Como contraponto à atitude corporal tensa e quase fixa de Mario em
―Meditação‖, a índia de O Confete fará também da fricção de seu corpo roçando, por
vezes, o do público, uma estratégia corporal para a desmontagem de estereótipos,
usando o saco de lixo, como um parangolé de Hélio Oitica, os dois vestidos de noite,
máscara e peruca para repensar o meio tropical em seus cruzamentos com a estética
pop. È o modo como a índia de André Masseno se desequilibra no salto alto, no
modo como entre a dança e o salto (pulo ou queda) ela parece instável, isso reflete a
própria instabilidade da criação de nossos mitos de origem, de uma busca que do
passado ficcionalizado salta para uma projeção de país do futuro, como um grande
negaceio de nossas responsabilidades para com o presente.
Evoco – para finalizar este conjunto de corpos emblemáticos da cultura
nacional- a presença de um negro junto à índia romântica e à negra no desfile de
carnaval. Este negro encarna no corpo de poeta Itamar Assumpção que surgiu nas
noites do Teatro Lira Paulistana, em 1980, como um dos nomes da cena alternativa,
conhecida como Vanguarda Paulista, cujos poetas eram chamados ―Malditos‖51.
Assumpção recusou-se a submeter sua carreira ao controle do sistema fonográfico,
corpo que se esquivou ao sistema, este crioulo com sotaque paulistano-paranaense,
dicção e divisão harmônica singularíssima entre o samba, o soul, o jazz e outras
influências afrolatinas, aproxima-se de Mario pela identificação com a cidade de São
Paulo, metonímia do Brasil. Assim como o coração de Mario de Andrade, o coração
de Itamar ficou identificado, ligado, às veias da cidade. Na letra de ―Persigo São
Paulo‖, ele confessa: ―Não, não/ São Paulo é outra coisa/Não é exatamente amor/
É identificação absoluta‖. De algum modo, estes dois poetas encarnaram uma
51
junto a Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premê (Premeditando o Breque), dos Pracianos - Dari Luzio,
Pedro Lua, Paulo Barroso, Le Dantas & Cordeiro e outros.
125
possibilidade tradutória da experiência das ruas da cidade; uma possibilidade
tradutória da cultura nacional. Se para o modernista de 22, século XX, o herói de
nossa gente é sem caráter, polimorfo perverso, piá com cabeça grande, consciência
na ilha de Marapatá, para o maldito dos anos 80/90 do século XX, o herói é isca de
polícia, Negro Dito, senha para o século XXI. Não se trata mais da Antropofagia
Cultural, do Oswald, amigo do Mário, nem sequer da atual política afirmativa das
cotas. Trata-se de uma possibilidade erótica, de sedução do outro, de (con)fusão com
o outro, possibilidade irônica de uma transa, de tesão.
No caso dos poetas da Vanguarda Paulista, no caso de Itamar, o furo por onde
passar, o muro a saltar, passava a ser a cicatriz do muro de Berlim, não uma cerca,
não o que cerca, mas naquilo que liberta o próprio desejo e mobiliza para o outro,
mobilizando o outro. No corpo musical de Itamar Assumpção, o caminho, não é
mais atalho, é atrapalho e a mistura étnica, fusão globalizada. Na letra de
―Aculturado‖, Itamar ironicamente aponta para a confusão cultural do brasileiro:
―Culturalmente confuso/Brasileiro é aculturado/ Líbio, libanês, árabe turco/ Acha
farinha do mesmo saco/ Não saca croata, curdo/ Não saca iugoslavo /Nem belga,
nem mameluco/ Não saca Platão, nem Plutarco‖52. Registro o viés crítico de Itamar,
para positivar a palavra confusão, no que etimologicamente traz de desrecalque e
fusão. Vinda diretamente do «lat[im] confusĭo,onis, "ação de juntar, reunir, misturar";
neste sentido a desordem cultural, o vazio avacalhado, para ser redundante, cede vez
à capacidade da experiência do poeta de desafiar a ordem imposta, de misturar as
influências e de atrapalhar as definições e rótulos.
Não se trata mais de antropofagia, de digestão, assimilação da cultura do outro,
de acesso ao que falta, mas de inversão de pólos, de oferecimento, de dádiva e de
gozo. Do mesmo modo que a índia de Masseno vomita o excesso pleno de
gozo/morte trans-antropofágicos, o que este negro, este preto, este crioulo tinha a
dizer, por exemplo, em Berlim, em 1993, no Podenville, aos europeus? Disse: Ich
liebe disch, de modo afirmativo, de quem sabe ter feito um trabalho ―às próprias
custas‖ (título de um dos seus CDs, de 1989). O corpo deste herói posmoderno,
cibernético, peito nu, óculos espaciais, índio, africano ensina ao outro o gozo
52
Essa aculturação confusa se aproxima do conceito de avacalhado para o comportamento cultural
brasileiro, que foi tomado de empréstimo, por Silviano Santiago, a Rogério Sganzerla. Silviano Santiago
define assim a avacalhamento da cultura: “Qualifico o pensamento crítico e arte avacalhados, se for
verdade que na etimologia do verbo avacalhar, como atesta o dicionário,está a noção de vazio, de
vácuo. O avacalhado é aquilo que o cidadão desprovido, falto de recursos, experimenta ao buscar
acesso ao que ambiciona” (SANTIAGO, 2011, 37)
126
diferente, gozo do diferente. E o gozo é a dimensão estética da sustentabilidade,
como disse Marina Silva no evento Back to Black de 2011.
Na letra de ―Ir para Berlim‖, Itamar brinca: ―Vc quer por mar/ Ir para
Berlim/ Quer mudar de ar/ Qualquer coisa assim/ Mas é melhor levar/ limão,/
Feijaozin/ Café, guaraná/ meu cuidar sem fim [...]‖ Podia ser a tópica romântica da
saudade no exílio, mas creio que não. São outros tempos para os poetas de São
Paulo. A letra da canção continua com a sedução para que o outro/a não se vá :
―Tudo que tenho é Lou Reed/ possível que cê duvide/Alzira, Zélia, Daúde/ Cássia,
sua mãe e swing.‖. Termina com um dar de ombros bem humorado ―Tudo que
tenho é humilde/Sou do mato/ Sou mulato/ Alfiderzen‖. É um outro coração, não
o coração do sacrifício da índia, do artista do poeta, não o coração transtornado de
Mario de Andrade, mas o coração-tesão: Ich liebe dich frau /em Tubigen Munique
ou Gerdau/ Duzist / meine gau/ genau genau
Silviano Santiago cita, no artigo ―Destino: Globalização. Atalho:
Nacionalismo. Recurso: Cordialidade‖ ( ANDRADE, 2011) , um poema de Adão
Ventura, cuja metáfora central retoma a imagem do coração ferido e tumultuado de
Mario de Andrade, dizem os versos de Adão Ventura: ―para um negro/a cor da
pele/é uma faca/que atinge/muito mais em cheio/o coração‖. Este poema traduz
séculos de exclusão e lutas, unindo, no sentido adorniano, o individual ao coletivo;
entretanto, apesar de bela e cortante, a imagem da faca no coração, ainda faz com
que o negro apareça de forma vitimizada tal como os quadros de índias citados
anteriormente. Contra este coração exposto, crístico, proponho a bela metáfora da
orquídea de Itamar.
Assim como Tom Zé, que ganhou a vida como jardineiro em São Paulo
durante uma época, também como Lenine, é sabido que Assumpção cultivava
orquídeas, essa singular, e difícil, espécime de flor, entre o selvagem e a jardinagem,
entre a força da natureza e a ordem da cultura, flor que não serve para cura, não
serve para os chás, só embeleza a vida. Esta flor rara – a orquídea – plantada, por
Itamar, numa lata de óleo de cozinha - fura camadas de ressentimento e melancolia,
encarna o artístico, o bem simbólico a conquistar, cultivar e oferecer.
O Confete da índia expõe juntos num só todos estes corpos como o Nu descendo a
escada, de Duchamp, entre gritos de dor e de gozo, numa conjunção de tempos, ela
atinge em cheio, como explosão, o coração da cultura brasileira. Assim como uma
flor exótica, macho nos pistilos e fêmea em suas fendas, como uma orquídea
127
cultivada e selvagem, N´O confete um corpo em espiral dança, grunhe, num reino onde
se abolem as diferenças entre o alto e o baixo, o macho e a fêmea, o humano e o
animal, a selva bruta e o urbano demoníaco, subindo e descendo do salto. A índia é
transformação abrupta; tacão de calçado; intervalo, espaço de tempo; movimento
vibratório, trepidação, agitação, palpitação; padreação de cavalo e égua, cópula; erro
tipográfico; subida abrupta da voz fora de compasso; qualquer intervalo melódico
que ultrapasse; rede para apanhar certos peixes. Vinda de não sei onde, a índia
bamboleia, coleia, inferniza e some não se sabe pra onde.
A índia somos nós. A índia é aqui.
Referências bibliográficas:
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apresentação de Jorge M.B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed.34, 2003. (65-89)
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______. Poesias Completas.3ª ed.São Paulo Martins; Brasília:INL,1972.
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Bandeira, org e notas : Marco Antonio Moraes. São Paulo: EDUSP: IEB, 2001, p.670).
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sexualidade e patriotismo?.‖ In: Papéis avulsos n. 10. Rio de Janeiro: CIEC-UFRJ, 1989, p. 1
128
Discografia de Itamar Assumpção:
Caixa preta: SESC/SP
129
SÉCULO XIX, TRADUZIR PARA EDUCAR: AS PRIMEIRAS
TRADUÇÕES BRASILEIRAS DAS FÁBULAS DE LA FONTAINE
Ana Cristina Cardoso
Profa. Dra. Claudia Borges de Faveri (Orientadora)
Resumo: Há no Brasil uma tradição clássica de tradução que começou no século XIX. As
primeiras traduções brasileiras das fábulas do autor francês Jean de La Fontaine datam
justamente dessa época. Pesquisar sobre tradução é ao mesmo tempo conhecer história
literária e fazer história da tradução, desvendando o texto traduzido, revelando o tradutor e
observando as possíveis influências dessas traduções na cultura de chegada. No livro A
prova do estrangeiro (2002: 14) Antoine Berman afirma que ―Fazer a história da tradução é
redescobrir pacientemente essa rede cultural infinitamente complexa e desconcertante na
qual, em cada época, ou em espaços diferentes, ela se vê presa. E fazer do saber histórico
assim obtido uma abertura de nosso presente‖ (grifo do autor). Visamos neste trabalho
apresentar os primeiros tradutores de La Fontaine no Brasil, assim como apontar o(s)
objetivo(s) com os quais essas traduções foram realizadas. Por que e para quem traduzir as
fábulas lafontainianas? Quem são os seus tradutores? Quais são e de quando são essas
traduções? Quais as editoras que publicavam as traduções das fábulas
Palavras-chave: La Fontaine; História da tradução; Século XIX.
Abstract: There is in Brazil a classic translation tradition which has begun in the XIX
century. The first Brazilian translations of the fables of French author Jean de La Fontaine
date from this time. Searching on translation is at the same time knowing literary history
and making the history of translation, unveiling the translated text, revealing the translator
and observing the possible influences of these translations in the target culture. In the book
A prova do estrangeiro (2002: 14) Antoine Berman says "To write the history of translation is
to patiently rediscover the infinitely complex and devious cultural network in which
translation is caught in each period or in different settings. And it is to turn the historical
knowledge acquired from this activity into an opening of our present "(emphasis added). In
this paper, we aim to present the first Brazilian translators of La Fontaine, as well as to
show and analyze the objective(s) with which these translations were made. Why and to
whom were La Fontaine‘s fables translated? What are and from when are these
translations? Which publishers published the translations of the fables?
Keywords: La Fontaine, History of translation, XIX Century.
1. Introdução
130
Este trabalho tem como principal fonte de pesquisa o acervo da Biblioteca
Nacional do Brasil. Nossa investigação foi iniciada nos catálogos online dessa instituição e
em seguida foi realizada uma pesquisa in loco.
O século XIX foi o século no qual as traduções lafontainianas começaram a ser
editadas e realizadas no Brasil. O livro mais antigo de traduções de La Fontaine que
encontramos na Biblioteca Nacional é o do clérigo português Filinto Elísio, datado de
1839. Embora a obra Fábulas escolhidas de La Fontaine seja a primeira tradução em português
a circular pelo Brasil, não será objeto de estudo no presente trabalho, uma vez que temos
por objetivo apresentar as primeiras traduções realizadas por tradutores brasileiros. Com
isso, não deixamos de reconhecer a sua importância na história das traduções lafontainianas
no Brasil.
Iniciaremos este estudo apresentando em ordem cronológica, as primeiras
traduções verdadeiramente brasileiras, assim como seus tradutores. Em seguida, veremos
por que e para quem foram feitas essas traduções e para terminar, apontaremos as editoras
e os mecenas que publicaram/fomentaram as traduções.
2.
Os primeiros tradutores brasileiros de La Fontaine e suas traduções
1. Justiniano José da Rocha
Collecção de Fabulas imitadas de Esopo e de La Fontaine – 1ª edição de 1852.
Após a primeira edição brasileira das fábulas lafontainianas, traduzidas pelo
português Filinto Elísio, temos na pessoa do professor, escritor, político e jornalista
Justiniano José da Rocha o primeiro tradutor brasileiro dessas fábulas.
Justiniano José da Rocha nasceu no Rio de Janeiro em 1811 e faleceu na mesma
cidade em 1862 (CARDIM : 1964, 07-11, 88). Fez os estudos secundários na França e ao
retornar formou-se em Direito no ano de 1833, em São Paulo. Figura atuante no
jornalismo brasileiro durante o Segundo Império, foi grande defensor e partidário do
Partido Conservador.
O jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras, Elmano Cardim comenta,
na introdução da biografia de Justiniano, que o biografado
merecia ser melhor conhecido, para que sobre a sua personalidade se
viesse a formar um conceito justo, desfeitas muitas das dúvidas
existentes sobre a sua vida, retificadas algumas inexatidões,
revelados fatos e dados que pudessem contribuir para um melhor
juízo de sua atuação na sociedade brasileira e do seu papel de
jornalista, que o foi por vocação, marcando pelo seu valor uma
época na imprensa brasileira. (CARDIM, 1964: 01)
É certo que a obra de Cardim contribuiu para que se fizesse um melhor juízo da
atuação de Justiniano como jornalista no Brasil dos Oitocentos e que desde então vários
estudos sobre o jornalista foram realizados. Localizamos uma quantidade considerável de
trabalhos acadêmicos, entre artigos e dissertações de mestrado, onde vemos reconhecida a
importância do jornalista, do professor, do escritor e do parlamentar que foi Justiniano.
131
Porém, pouco se sabe do seu trabalho como tradutor, suas traduções são sempre citadas, é
verdade, mas pouco analisadas ou estudadas. Na bibliografia de Justiniano, apresentada por
Cardim (1964: 137 e 138), encontramos uma lista de traduções por ele realizadas. Além das
traduções elencadas, Cardim (1964: 138) comenta, sem listar, que Justiniano traduziu outros
romances que foram publicados em folhetim no Jornal do Comércio não somente durante
a época em que foi redator, de 1839 a 1840, mas também depois como colaborador desse
jornal.
No acervo da Biblioteca Nacional do Brasil (doravante BN), existem quatro
exemplares da tradução, Collecção de Fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine, de autoria de
Justiniano José da Rocha. Desses quatro exemplares pertencentes à BN, três estão
catalogados no acervo Obras Raras – a 1ª edição publicada em 1852, que inclusive faz parte
da coleção D. Thereza Christina Maria; a 3ª edição publicada em 1863 e outra publicação
de 1873 sem número de edição. Já o quarto exemplar – 8ª edição de 1907 – está catalogado
no acervo Geral-Livros.
Contrariamente ao tradutor português que traduz as fábulas em verso, o primeiro
tradutor brasileiro as traduz em prosa. Conforme anunciado no título da obra, as fábulas de
Justiniano são uma imitação daquelas de Esopo e de La Fontaine. O tradutor, na realidade,
escreve textos curtos em prosa, com a moralidade quase sempre apresentada de forma
explícita no parágrafo final do texto.
Ao cotejar três das quatro edições da tradução de Justiniano existentes na BN,
pudemos observar que da primeira para a terceira edição de 1868, foram realizadas
modificações quanto à ordem das fábulas, quanto à ortografia e também quanto ao título
de algumas delas.
Diferentemente das traduções de Filinto Elísio, nunca encontramos nas coletâneas
de fábulas de autores diversos, uma única versão de fábula de Justiniano. Estudiosos
reconhecem a existência da tradução realizada pelo brasileiro, mas não encontramos, como
já comentamos anteriormente, pesquisas sobre o tema nem tampouco traduções de fábulas
de Justiniano alhures. Só vimos traduções de Justiniano na sua própria coleção de fábulas.
Esse fato nos chama atenção porque sabemos que até 1908 essa coleção de fábulas foi
reeditada pelo menos oito vezes. A edição do século XX traz na capa o comentário de que
aquela edição era ―muito melhorada com numerosas vinhetas, adaptada para leitura nas
escolas‖.
João Cardoso de Meneses e Sousa - Barão de Paranapiacaba
Fábulas de La Fontaine – 1ª edição de 1883.
João Cardoso de Meneses e Sousa, o Barão de Paranapiacaba, é considerado, de
fato, o primeiro tradutor brasileiro de La Fontaine. É como se a Coleção de Fabulas imitadas de
Esopo e de La Fontaine, de autoria de Justiniano, não existisse enquanto tradução, suas
reiteradas edições são ignoradas. Uma possível explicação para o reconhecimento do Barão
como primeiro tradutor das fábulas lafontainianas é o fato de ele ter traduzido, em verso, o
conjunto completo de fábulas do autor francês.
O Barão de Paranapiacaba nasceu na cidade de Santos em 1827 e faleceu em 1915
no Rio de Janeiro aos 88 anos. Formou-se em Direito na capital paulista em 1848. Foi
professor em escolas particulares santistas, morou em Taubaté, tendo ali ensinado no liceu
da cidade as matérias de geografia e história. Em seguida mudou-se para o Rio de Janeiro,
advogou até 1858 e depois entrou para o funcionalismo público. Trabalhou no Tesouro
Nacional até aposentar-se como diretor geral dessa instituição. Foi também deputado por
Goiás, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Conservatório
Dramático do Rio de Janeiro. Em 1883 por decreto imperial recebeu o título de Barão de
Paranapiacaba.
2.
132
Na sua História da literatura: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da
literatura brasileira, Sílvio Romero (1980) afirma que o Barão de Paranapiacaba nunca teve
um temperamento literário e menos ainda poético. Segundo esse autor, o Barão passou o
sentido das fábulas, mas a poesia evaporou-se. Ele critica ainda as notas da tradução. Para
Romero elas são longas demais e apenas repetem notas explicativas, de mitologia, de
autores franceses.
O primeiro volume da tradução das fábulas lanfontainianas do Barão de
Paranapiacaba foi publicado pela primeira vez em 1883. Em 1886 saiu uma segunda edição
do primeiro volume e em 1887 foi publicado o segundo volume. O primeiro volume
contém os seis primeiros livros do texto fonte e o segundo volume os outros seis livros.
A tradução das fábulas do Barão foi dedicada a Sua Majestade o Imperador do
Brasil. Na dedicatória (1886: 06, 07) a D. Pedro II, o Barão reclama para si a autoria das
traduções:
A presente versão, Senhor, é toda e exclusivamente de lavra própria,
em verso rimado, com raríssimas excepções, variando o metro
quanto possível e sem repetição na mesma peça poética de rima de
igual desinência, condição esta que até hoje nenhum poeta se impôz.
Ele comenta a difícil tarefa de traduzir:
Que tenacidade de esforços, que apuros de paciência tive de
empregar para conduzir ao fim esse difficilimo empenho!
Mas, louvado seja Deus, está concluída a versão. Entrego-a à
proteção de Vossa Magestade Imperial, rogando-lhe seja benévolo,
attenta a reconhecida impossibilidade de reproduzir fielmente numa
transladação o gênio gaulez, a naturalidade, a graça e belleza do
Homero da Poesia Franceza.
Mostra-se convencido de que a língua portuguesa se presta àquele tipo de tradução
e anuncia que o 2° volume está no prelo:
Demais, estou convencido que nossa formosa língua se presta como
nenhuma a encerrar a Idea em curtos períodos cadenciados, como o
fizeram Babrius, ou Gabrias e Loqman nos apologos de sua lavra.
O 2° volume está no prelo.
Após a dedicatória à D. Pedro II, a edição de 1886 traz vários prefácios que foram
publicados na primeira edição de 1883. Esses prefácios escritos pelo Barão vão da página
XI até a página LXXVIII. Eles estão separados por temas: I - Algumas palavras ao leitor; II
– Esboço sobre a fábula; III – Juízos sobre La Fontaine; IV – Si convém ensinar fabulas e
de cor as crianças e V – Mythologia.
Na primeira parte do prefácio, Algumas palavras ao leitor, o Barão não se furta a
criticar Filinto Elísio. Segundo ele, o português ―desfigurou‖ La Fontaine, e se o fabulista
francês ―pudesse erguer-se do tumulo, talvez que intentasse contra seu traductor processo
de contrafacção‖ (PARANAPIACABA 1886: 16). Mas logo em seguida reconhece, no
entanto, que não houve por parte do tradutor português a intenção de cometer tal crime.
Nas outras partes, o Barão explica o que vem a ser a fábula, defende o gênio de La
Fontaine e argumenta que as crianças devem aprender as fábulas de cor, criticando
inclusive a crítica feita a esse respeito por J.J. Rousseau na sua obra La Fontaine et les
133
Fabulistes. Para terminar o prefácio, faz uma longa explanação sobre mythologia e se
defende de uma crítica que lhe fora feita quanto às notas que ele escrevera na sua obra
Camoneana Brazileira também adotada pelo Governo Imperial.
Depois desse longo e demasiadamente explicativo prefácio, o Barão inicia
finalmente a tradução, começando pela dedicatória feita por La Fontaine a Monsenhor o
Delphim.
O segundo livro das traduções foi publicado em 1887, pela mesma editora com o
apadrinhamento do Imperador. A apresentação é feita por Ferreira Vianna, magistrado,
jornalista e político. Vianna declara ao Barão: ―A tua traducção é um verdadeiro original; a
propriedade da expressão, a harmonia do verso e a elegância da phrase vernacula nunca
faltaram á elevação do pensamento do grande poeta‖ ‖ (PARANAPIACABA 1887: 05, 06)
3. Por que e para quem traduzir as fábulas?
A função educativa da tradução das fábulas é claramente anunciada pelos dois
tradutores brasileiros do Século XIX. Tanto Justiniano José da Rocha, quanto o Barão de
Paranapiacaba, dizem nos seus prefácios que têm como meta tradutória a utilização das
suas traduções nas escolas. De fato, eles traduziram com o intuito de educar a mocidade.
Embora se refira à tradução das Escrituras Sagradas, Bassnett aponta no capítulo 2
do seu livro Estudos de Tradução: fundamentos de uma disciplina o caráter educativo da tradução.
Para a autora (BASSNETT, 2003:91) ―O papel educativo da tradução das Escrituras vem
de muito antes dos séculos XV e XVI‖. Bassnett (2003:92) comenta ainda sobre o
entendimento da tradução como uma atividade que tem um papel moral e didático a
desempenhar. Identificamos em Justiniano José da Rocha e no Barão de Paranapiacaba
essa compreensão da tradução como instrumento educativo e moralizante da qual fala
Bassnett.
A 1ª edição da Collecção de Fabulas imitadas de Esopo e de La Fontaine de Justiniano José
da Rocha, datada de 1852, foi dedicada a S. M. o Imperador D. Pedro II e oferecida à
mocidade das escolas. Na dedicatória ao Imperador, Justiniano (1852: 02) diz não ter
nenhum merecimento por aquela tradução e que foi ―o pensamento de utilidade que o
inspirou, e o desejo de dar às escolas um livro de leitura, adaptado ao espírito dos seus
jovens frequentadores‖.
A utilização da sua tradução na instrução dos jovens estudantes brasileiros é o
leitmotiv da sua obra, essa ideia é reforçada por Justiniano no prefácio. O tradutor comenta
que uma vez que fora excluída da coleção de leitura do curso de instrução primária a coleção
de fábulas de Esopo, ele achou por bem oferecer uma nova versão mais agradável e cativante
de fábulas. Segundo Justiniano, a exclusão da versão anterior a sua, era compreensível, pois
aquela versão de fábulas era enfadonha e nunca poderia cativar a atenção dos meninos.
Ainda no prefácio, o autor critica a versão antecedente e justifica a sua versão.
Não se poderia dessa antiga collecção de fabulas escolher as
melhores, dar-lhes mais simplicidade, mais movimento na narração,
mais justeza na moralidade, não se poderia, em uma simples
imitação, pedir a Lafontaine algumas das suas composições, e fazer
um livro util à infância, e adaptado á instrução pública?
A resposta a essa pergunta que nos fizemos, foi a collecção de
fábulas que ahi segue.
Temos a convicção de haver procurado fazer um livro util; não
temos porém o desvanecimento de o haver conseguido.
Offerecendo esse opusculo á infância, trabalho inglório, cujo único
merecimento está no seu pensamento que o dictou, e que
134
apresentamos como desculpa da inferioridade da execução, de
sobejo remunerados nos acharemos se, despertando com o nosso
exemplo, os nossos litteratos comprehenderem que á mocidade, tão
privada de bons livros que deleitando a instruão, formem-lhe o
gosto, e deem-lhe o amor da leitura, devem elles parte de seu tempo
e do seu talento. (1852: 04)
A tradução do Barão de Paranapiacaba, assim como a tradução de Justiniano, teve
um caráter educativo. Essa tradução é o segundo livro do Barão que faz parte da coleção
Bibliotheca Escolar da Imprensa Nacional. A primeira obra desse autor a fazer parte dessa
coleção foi a Camoniana Brasileira de 1886. Ambas as obras foram adotadas nas aulas
primárias e eram financiadas pelos cofres públicos.
4. As editoras
A figura do mecenas é muito importante quando se trata das traduções brasileiras
das fábulas de La Fontaine realizadas no século XIX. Para Lefevere (2007: 34) o mecenato
pode ser exercido por aquele que está no poder, ou próximo ao poder. O mecenato
controla o sistema literário fomentando ou impedindo a circulação das obras no sistema.
No caso das traduções lafontainianas foi o Imperador D. Pedro II que não somente
autorizou a sua impressão e circulação, mas favoreceu a sua adoção pelas Escolas
Primárias. Ainda segundo Lefevere (2007: 34) ―O mecenato está comumente mais
interessado na ideologia da literatura do que em sua poética, poder-se-ia dizer que o
mecenas ―delega autoridade‖ ao profissional no que diz respeito à poética‖. A obra Fábulas
de La Fontaine do Barão de Paranapiacaba, foi impressa no Rio de Janeiro pela Imprensa
Nacional. Quanto à tradução de Justiniano, várias foram as editoras, mas entre elas figura a
Typographia Nacional.
5. Conclusão
Conforme anunciado, nosso objetivo era apresentar os primeiros tradutores
brasileiros de La Fontaine no Brasil. Ao longo deste trabalho mostramos
cronologicamente, as primeiras traduções brasileiras das fábulas, assim como seus
tradutores. Em seguida, analisamos por que e para quem foram feitas essas traduções e
para terminar, comentamos sobre a importância da figura do mecenas quando da
publicação dessas traduções.
Embora tenha circulado no Brasil uma tradução portuguesa de 1839 de fábulas do
autor francês, a primeira tradução realizada no Brasil foi aquela de Justiniano José da Rocha
de 1852. A primeira tradução em verso das 240 fábulas foi a do Barão de Paranapiacaba de
1883. Como foi dito, as duas traduções visavam educar a juventude.
Para terminar, gostaríamos apenas de relacionar os componentes do sistema
tradutório do Século XIX do nosso estudo, ou seja: obra traduzida / função da tradução /
figura do mecenas. Sendo assim, temos como obra traduzida uma obra de caráter moralista
ideológico – As Fábulas de La Fontaine - como função tradutória a educação, traduzir para
educar e como mecenas o representante do poder, o Imperador D. Pedro II.
135
REFERÊNCIAS:
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Vivina de Campos Figueiredo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
CARDIM, E. Justiniano José da Rocha. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964.
LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Tradução de
Claudia Matos Seligmann. Bauru, SP: Edusc, 2007.
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Janeiro: Typographia, Chalcographia e Livraria da Educação de C.H.-Furay, 1839.
PARANAPIACABA, Barão de. Fábulas de La Fontaine. Vol. I. Rio de Janeiro: Imprensa
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__________ Barão de. Fábulas de La Fontaine. Vol. II Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1887.
ROCHA, Justiniano José da. Collecção de fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine. Rio de
Janeiro: Typographia Episcopal de Agostinho de Freitas Guimarães, 1852.
__________ Collecção de fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1863.
__________ Collecção de fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine. Rio de Janeiro:
Typographia Cinco de Março, 1873.
__________ Collecção de fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine. Rio de Janeiro: F. Alves,
1907.
ROMERO, Sílvio. História da literatura: contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da
literatura brasileira. Rio de Janeiro: JoséOlímpio, 1980.
136
A CIRCULAÇÃO DA LITERATURA PORTUGUESA NO RIO DE
JANEIRO OITOCENTISTA: UM ESTUDO DAS REVISTAS
CORREIO DAS MODAS (1839-1840) E NOVO CORREIO DE
MODAS (1852-1854)
Ana Laura DONEGÁ53
Profa. Dra. Márcia Azevedo de ABREU54
Resumo: A história editorial brasileira no século XIX teve profundas conexões com o que
acontecia na Europa nesse período. Obras do Velho Mundo circulavam amplamente deste
lado de cá do oceano, o que favorecia o contato dos leitores com a produção além-mar e
fortalecia os laços culturais do Brasil com o exterior. Além de enviar livros para o mercado
nacional, a Europa marcava presença com a imprensa periódica, uma vez que alguns de
seus jornais e revistas eram vendidos em estabelecimentos comerciais localizados no Rio de
Janeiro ou mesmo nas províncias. Periódicos lançados em território brasileiro costumavam
copiar indiscriminadamente matérias e artigos desses impressos europeus sem fornecer
qualquer indicação sobre a fonte. A prática era assegurada devido à inexistência de leis
protetoras dos direitos autorais, mas mesmo assim causava polêmica entre os letrados. A
fim de compreender melhor o papel da imprensa nacional na difusão da cultura de origem
europeia, selecionamos para análise duas revistas femininas editadas pelos irmãos Eduardo
e Henrique Laemmert na corte brasileira Oitocentista, o Correio das Modas e o Novo Correio de
Modas. Nosso recorte recairá sobre as narrativas ficcionais de origem portuguesa difundidas
pelas duas impressões em questão e sobre o papel da cultura lusa na intermediação entre o
Brasil e outros países europeus.
Palavras-chave: Eduardo e Henrique Laemmert; Correio das Modas e Novo Correio de Modas;
Literatura portuguesa.
Abstract: The Brazilian editorial history of the nineteenth century was strongly connected
with the European one. Books published in the Old Continent were commonly sold on the
other side of the ocean too, making it possible for Brazilian readers to be in contact with
that production and strengthening the cultural relations between Brazil and Europe.
Besides sending books to the national market, Europe had a major presence in the
periodical press, since some of its newspapers and magazines were sold in Rio de Janeiro
and even in the provinces. Periodicals published in Brazil usually copied texts and articles
from the European publications without giving any information about the sources. There
were no laws preventing this practice – although it was criticized by the writers of the time
– which made it an usual occurrence. Aiming to understand the role played by the national
press in the cultural diffusion of European materials, we selected two Brazilian magazines
for our study, both published by the Laemmert brothers Eduardo and Henrique in Rio de
Janeiro at that time: Correio das Modas and Novo Correio de Modas. We intend to analyze the
fictional texts written originally in Portugal and published by both magazines in order to
understand the role played by the Portuguese culture in the intellectual relation established
between Brazil and Europe.
Doutoranda em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista
CNPq. E-mail: [email protected].
54 Professora do Departamento de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Email: [email protected].
53
137
Key-words: Eduardo and Henrique Laemmert; Correio das Modas and Novo Correio de Modas;
Portuguese litterature.
1. A imprensa feminina dos irmãos Laemmert
Entre os diversos comerciantes estrangeiros que participaram do mercado de
livros no Brasil Oitocentista, merecem destaque as figuras de dois irmãos provenientes de
Rosenberg – cidade situada no território hoje conhecido como Alemanha –, chamados
Eduardo e Henrique Laemmert. A trajetória dos Laemmert no país teve início em 1827,
quando Eduardo chegou ao Rio de Janeiro para trabalhar como representante na filial de
uma livraria francesa. Alguns anos mais tarde, inaugurou seu próprio estabelecimento
comercial e convidou o irmão mais novo para fazer parte dos negócios. Juntos, eles
abriram uma oficina tipográfica, chamada Tipografia Universal, que se tornou
especialmente famosa pela publicação de almanaques e guias com informações úteis para o
cotidiano dos moradores da corte e das províncias – o Almanaque Administrativo, Mercantil e
Industrial do Rio de Janeiro e as Folhinhas de Laemmert (HALLEWELL, Laurence, 2005, p. 239248; EL FAR, Alessandra, 2006, p. 19-20).
O investimento em obras destinadas a públicos amplos rendeu-lhes lucros
surpreendentemente altos e ainda renome entre autoridades e instituições. Contudo,
Eduardo e Henrique Laemmert não se limitaram às impressões acima mencionadas. Pelo
contrário, o projeto editorial dos irmãos foi, além de ambicioso, bastante diversificado.
Eles investiram também em livros didáticos, científicos e históricos, em obras de referência
– como dicionário e enciclopédias –, em traduções de clássicos infantis e em manuais
técnicos autoinstrutivos sobre temas variados, incluindo agricultura, culinária, etiqueta e
medicina. Além disso, participaram do mercado de belas letras, ajudando a resguardar
árcades brasileiros – como Tomás Antonio Gonzaga e José Bonifácio – e a impulsionar a
carreira de escritores iniciantes – como Gonçalves Dias e Sousândrade, que a essa altura
estreavam no mundo das letras e publicavam seus primeiros livros.
O trabalho dos irmãos europeus com a literatura pode ser igualmente averiguado nos
dois periódicos femininos impressos pela Tipografia Universal, entre os anos de 1839 a
1854. No dia 05 de janeiro de 1839, o estabelecimento lançou o Correio das Modas: jornal
critico, litterario, das modas, bailes, theatros etc. Dedicada ao sexo feminino, a revista trouxe
modelos de figurino e debuxos de bordados para as assinantes, bem como narrativas
ficcionais, poesias e charadas. Inicialmente teve periodicidade semanal, saindo sempre
aos sábados. O êxito entre as leitoras fez com que ela logo passasse a aparecer duas
vezes por semana, sempre às quintas-feiras e aos domingos. Ao todo, somou 131
138
fascículos, dos quais pouco mais da metade chegaram aos nossos dias, porque somente
o primeiro semestre de 1839 e o segundo semestre de 1840 foram conservados.
Alguns anos mais tarde, os Laemmert voltaram a participar da imprensa
periódica feminina. No começo de 1852, eles publicaram o hebdomadário Novo Correio de
Modas: novellas, poesias, viagens, recordações historicas, anedoctas e charadas. A revista apresentou
inúmeras diferenças em relação a sua antecessora, a começar pela presença de outros
nomes entre os redatores e colaboradores. Ademais, trouxe matérias que não haviam
aparecido nas páginas do Correio das Modas, como, por exemplo, viagens e recordações
históricas. Por fim, teve outra organização, sendo iniciada com uma narrativa e finalizada
com a exposição de uma gravura de moda, exatamente o contrário do que ocorrera com a
anterior. Dessa forma, o adjetivo ―novo‖ não parecer ter sido utilizado como mero
acessório. Ele indica a intenção de retomar um periódico e de alterá-lo parcialmente por
meio de algumas inovações.
Apesar das diferenças, as duas publicações apresentaram textos ficcionais imbuídos de
finalidades práticas, que visaram à moralização, à instrução e ao entretenimento das
leitoras. Tais narrativas tiveram origens diversas: algumas foram escritas por autores
nacionais (engajados em impulsionar a ainda recente literatura brasileira) e outras, por
estrangeiros, principalmente do continente europeu. Ao acolherem essas produções
importadas e as difundirem na capital do Império, O Correio das Modas e o Novo Correio de
Modas exerceram o papel de mediadores entre o Brasil e a Europa. Em outras palavras,
eles ajudaram na circulação da produção literária do Velho Mundo desse lado de cá do
Atlântico e estimularam o contato dos habitantes do Rio de Janeiro com culturas
diferentes.
A apropriação de textos estrangeiros era uma prática recorrente na imprensa da época,
permitida devido à inexistência de leis que regulamentassem a atividade, protegessem os
autores e lhes garantissem os direitos sobre suas produções. De acordo com Ramicelli, a
medida tinha a finalidade de ―enriquecer o meio cultural brasileiro, reconhecidamente
incapaz de fornecer por si só toda a variada matéria cultural de que um periódico se
alimenta‖ (RAMICELLI, Maria Eulália, 2004, p. 2-3). É possível, no entanto, que em
certos casos decorresse mais de comodismo do que de qualquer objetivo patriótico. Ao
menos é o que indica a introdução da narrativa ―A morte de uma filha‖, publicada pelo
Correio das Modas, no dia 16 de fevereiro de 1839. Segundo o tradutor Josino do
Nascimento Silva, a ―falta de talento próprio‖ teria feito com que ele optasse por utilizar
um texto de um dos ―mais elegantes escritores Franceses‖:
―Mas o artigo... É verdade! Em falta de talento próprio, deve aproveitarse o alheio. O artigo que vos ofereço, é d‘um dos mais elegantes
escritores Franceses, e, para me servir da linguagem e comparações de
autores antigos, é uma rosa colhida no jardim do amor paterno e
materno. Li-o no Journal des Enfants e chorei... (...). O Periódicos dos Meninos
é uma das mais belas Coleções de novelas que hei visto, e não se
persuada alguém que são histórias para acalentar crianças. (...)‖ (SILVA,
139
Josino do Nascimento, ―A morte de uma filha‖, Correio das Modas, Rio de
Janeiro, 16/02/1839, n. 7, p. 51).55
A menção feita pelo tradutor ao Journal des Enfants foi uma exceção. Quando folheamos
as revistas impressas pela Tipografia Universal – assim como outros periódicos lançados
no Brasil no século XIX –, raramente deparamo-nos com dados como esse. Na maioria
das vezes, não se indicava nem a fonte utilizada, nem mesmo o nome do autor, de
modo que o leitor da época não conseguia diferenciar se se tratava de uma tradução ou
de uma produção própria dos periódicos. Para superar ao menos parte dessa lacuna,
avaliar de que maneira as publicações dos Laemmert colocaram os leitores brasileiros
em contato com a ficção estrangeira, descobrir quem eram os autores mais recorrentes,
os assuntos abordados e as fontes utilizadas, buscamos a origem de 278 narrativas
veiculadas pelo Correio das Modas e pelo Novo Correio de Modas, sendo 96 da primeira
revista e 182 da segunda. 56
Nossos dados indicaram que a França ocupou posição de destaque: se
considerarmos tanto os textos publicados em livros, quanto os lançados na imprensa sob
assinatura de algum escritor francês, podemos estipular que os textos originários desse país
compuseram ao menos 33,09% do total difundido pelos periódicos. Esses números fizeram
da nação francesa a maior fornecedora da seção dedicada à prosa de ficção das duas
impressões. Em segundo lugar, apareceram as narrativas escritas por ingleses, com 12,59%;
em terceiro, as redigidas por brasileiros, com 12,23%; em quarto, as de origem portuguesa,
com 7,19% e, em quinto, as de língua alemã, com 4,32%. Embora em menor número,
textos inicialmente escritos em espanhol, italiano, polonês, russo e árabe também
compuseram o rol da ficção em prosa divulgada pelos periódicos.
2. Narrativas portuguesas no Correio das Modas e no Novo Correio de Modas
Depois da França e da Inglaterra, Portugal foi o país europeu com maior
contribuição nos espaços dedicados às narrativas nos periódicos. Os textos em prosa de
ficção exportados pelos lusitanos compuseram 8,33 % do total encontrado no Correio das
Modas e 6,60 % do total localizado no Novo Correio de Modas. O compartilhamento de um
mesmo idioma entre as duas nações certamente esteve por detrás desses índices, uma vez
que a reprodução de textos escritos em língua portuguesa eliminava os gastos decorrentes
com a tradução. O mesmo não acontecia com as narrativas redigidas em idiomas
Optamos por atualizar a ortografia de acordo com as normas do português do Brasil hoje em vigor.
Mantivemos inalterados apenas os nomes dos periódicos, dos livros e dos títulos das narrativas.
56 Localizamos a origem de 65,62% das narrativas do Correio das Modas (ou seja, 63 textos) e de 79,12% do
Novo Correio de Modas (ou seja, 144 textos). Algumas narrativas não foram encontradas durante a pesquisa, mas
mesmo assim elas constam nesses valores, porque ajudam a representar o total publicado pelas revistas.
55
140
estrangeiros, as quais demandavam a intermediação de um profissional qualificado a passar
o conteúdo para o português. Nesse sentido, Portugal oferecia uma vantagem a mais em
relação a outros países europeus, pois a cópia de matérias originárias da imprensa lusitana
era ainda mais fácil e barato.
Como seria de se esperar, tal prática não agradou os literatos portugueses: um
dos autores mais ―pirateados‖ desse momento, Almeida Garrett, chegou a tentar
estabelecer uma série de acordos internacionais a fim de proibir as contrafações. Antonio
Feliciano de Castilho mudou-se para o Rio de Janeiro numa tentativa de acompanhar de
perto as impressões ilegais de suas obras e minimizar as perdas. Pinheiro Chagas foi ainda
mais longe que os outros dois e redigiu uma carta aberta, endereçada ao imperador D.
Pedro II, exigindo o reconhecimento da propriedade literária por parte das autoridades
brasileiras (ZILBERMAN, Regina, 2002, p. 11-12). Os editores lusos também não viram
com bons olhos a atividade. Isso porque os leitores brasileiros constituíam um importante
mercado para as publicações da antiga metrópole e a existência de cópias indevidas acabava
repercutindo negativamente em suas finanças.
O principal fornecedor português do Correio das Modas foi o jornal lisbonense O
Beija-flor: semanario d’ instrucção e recreio dedicado ao bello sexo. A metáfora em torno do título do
periódico não é aleatória: no primeiro número, de 15 de agosto de 1838, ele revelou a
intenção de atuar como o pássaro cujo nome lhe servia de título, visitando diversas
publicações em busca do melhor ―néctar‖ literário:
―Haverá o maior cuidado e escrúpulo em não repetir aquilo que o que os
outros Jornais publicarem, nem reproduzir suas ideias. Esta advertência
porém se entende tão somente a respeito dos Jornais Portugueses
contemporâneos, porque o BEIJA-FLOR não será todo original. – O
seu título metaforicamente derivado d‘uma ave do Brasil, que voejando
de flor em flor delas extrai o mel para seu sustento, está indicando que
ele irá buscar quanto houver de melhor dentro da órbita que se propôs
girar, em qualquer parte que ele exista; e por isto muito estimaria ter
correspondentes que lhe enviassem suas produções quando sejam
escritas no sentido do Jornal‖ (―Prólogo‖, O Beija-flor, Lisboa, 15/08/1838, n.
1, p. 1).
Ao que parece, apenas matérias de origem portuguesa escaparam de serem
reproduzidas pelo jornal – provavelmente devido ao objetivo de não causar atritos com
as publicações conterrâneas, já indignadas com as contrafações brasileiras. Entre as
narrativas de origem estrangeira veiculadas nas páginas d‘ O Beija-Flor, encontramos, por
exemplo, ―The fisherman of Scharpout. Two chapters from an old story‖, uma
produção de G. P. R. James, que foi lançada no The keepsake, em 1836 (JAMES, G. P. R.,
―The fisherman of Scharpout. Two chapters from an old story‖, The keepsake, London,
Paris, Berlin, 1836, p. 133-156). Dois anos mais tarde, em 24 de outubro de 1838, o
periódico português publicou uma tradução, intitulada ―O pescador de Ostend‖, sem
indicar qualquer informação a respeito de sua origem (―O pescador de Ostend‖, O Beija-
141
flor, Lisboa, 24/08/1838, n. 11, p. 81-86). Um ano mais tarde, entre 29 de novembro e
03 de dezembro de 1840, foi a vez do Correio das Modas proceder da mesma forma,
copiando o texto apresentado pela publicação lusitana (―O pescador de Ostend‖, Correio
das Modas, Rio de Janeiro, 29/11/1840, n. 44, p. 346-352 e 03/12/1840, n. 45, p. 353355). Vale dizer ainda que, logo após seu lançamento na Inglaterra, o texto foi
reproduzido pelo periódico norte-americano Museum of foreign literature and science (―The
fisherman of Scharpout. Two chapters from an old story‖, Museum of foreign literature and
science, Philadelphia, january to june 1836, v. XXVII, p. 151-156).
Os periódicos português e brasileiro tiveram diversos pontos em comum: ambos
dirigiram-se principalmente ao público feminino e veicularam anedotas e charadas para
o divertimento das leitoras. Mais significativa, porém, foi a intenção de educá-las
moralmente, recorrente tanto n‘ O Beija-flor quanto no Correio das Modas. De acordo com
o jornal luso, os artigos apresentados em suas páginas objetivavam corrigir a má
educação da época, salvando ―almas por ventura bem formadas, corações sensíveis
nascidos para a virtude, jovens infelizes roubados à sociedade, da qual poderiam ser
brilhante adorno‖. Sendo assim, a publicação empenhar-se-ia em oferecer ―um sopro da
vida pura‖, capaz de ―abrir nos corações um manancial de virtudes sociais‖ por meio da
seleção de textos contendo ―quadros da moral e da virtude‖ (―Prólogo‖, O Beija-flor,
Lisboa, 15/08/1838, n. 1, p. 1). A escolha d‘ O Beija-flor como manancial para as
narrativas não parece ter sido fortuita: se os redatores pretendiam colaborar com a
elevação moral de suas assinantes, nada melhor do que selecionar títulos veiculados em
um jornal com a mesma preocupação.
Ao longo de seu período de existência, o Correio das Modas reproduziu oito
narrativas retiradas do jornal português O Beija-Flor: ―A esposa na adversidade‖; ―A
fugida do castelo de Lochlevin‖; ―Seymour e Harley. Historia inglesa‖; ―Os dois
irmãos‖; ―Uma viagem a Saumur‖; ―A donzela do Tarso‖; ―A casa de Boscovel‖ e a já
mencionada ―O pescador de Ostend‖ (O Beija-flor, Lisboa, edições de 04/09/1838,
12/09/1838, 19/09/1838, 26/09/1838, 24/10/1838, 05/12/1838, 15/08/1840,
22/08/1840, 19/12/1840 e 26/12/1840, respectivamente; Correio das Modas, Rio de
Janeiro, edições de 29/11/1840, 03/12/1840, 06/12/1840, 10/12/1840, 17/12/1840,
20/12/1840, 24/12/1840, 27/12/1840 e 31/12/1840, respectivamente).
O Novo Correio de Modas seguiu o mesmo caminho trilhado por sua antecessora,
utilizando textos extraídos dos seguintes periódicos lusitanos: Revista Popular: seminario de
litteratura, sciencia e industria – ―O pagamento de uma divida‖; ―O chim na exposição de
Londres‖ e ―Os velhos retratos. Novella‖ –; O Panorama: jornal litterario e instructivo – ―O
passeio do phantasma. Lenda do século XV‖ e ―O conde de Penhacerrada‖ – Archivo
popular: leituras de instrução e de recreio – ―O vampiro‖ – e O Recreio: jornal da familia –
―Suzana Herbez, intitulada filha natural de Carlos X‖ (Revista Popular, Lisboa, edições de
janeiro e abril de 1852; O Panorama; Lisboa, edições de 1842 e 1843; Archivo popular,
Lisboa, edição de 06/08/1842; O Recreio, Lisboa, edição de abril de 1836; Novo Correio de
Modas, Rio de Janeiro, edições de 2 o. sem. de 1852, n. 3, 2o. sem. de 1852, n. 8-9, 1o. sem.
de 1853, n. 2 e n. 9, e 2o. sem. de 1854, n. 10, 18 e 25).
Conseguimos descobrir o nome de cinco escritores portugueses cujos textos
foram difundidos pelo Novo Correio de Modas. O primeiro deles foi Alexandre Herculano,
o único que teve seu nome vinculado a uma narrativa. Nessa altura, ele já era um
escritor reconhecido, por isso a estratégia poderia ter o objetivo de atrair a atenção do
leitor que costumava ler seus textos. ―O castelo de Faria (1373)‖ apareceu nas páginas
da revista no primeiro semestre de 1852 (HERCULANO, Alexandre. ―O castelo de
Faria (1373)‖. Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 1o. sem. de 1852, n. 5, p. 33-36).
142
Trata-se de uma narrativa histórica que descreve o feito heróico realizado pelo alcaide
Faria na luta contra o domínio do reino de Castela.
De acordo com Viana, um texto encontrado na Crônica de Dom Fernando, de
Fernão Lopes, serviu de inspiração para o autor português, que utilizou algumas
passagens da crônica para compor uma nova versão do evento (VIANA, Liane Cunha,
1996, p. 158). Ainda segundo a pesquisadora, a narrativa veio a lume pela primeira vez
no periódico O Panorama, em 1838, que, como vimos anteriormente, constituiu uma
importante fonte para o Novo Correio de Modas. Entretanto, é mais provável que os
redatores da revista brasileira tenham utilizado o texto localizado na obra Lendas e
narrativas, de 1851. Dois números após a veiculação da narrativa, o cronista D. Sallustio
emitiu o seguinte parecer a respeito do livro do escritor:
―(...) não quero deixar de recomendar às minhas estimadíssimas leitoras o
2º. Vol. de Lendas e Narrativas, que o ilustre autor do Eurico acaba de
publicar em Lisboa, e de que há alguns exemplares no Rio de Janeiro. É
um livro precioso este. Como tudo quanto é filho do estudo daquele
vasto talento, este livro é mais um monumento glorioso para a literatura
portuguesa.‖ (D. SALLUSTIO, ―Chronica da Quinzena‖, Novo Correio de
Modas, Rio de Janeiro, 1o. sem. de 1852, n. 7, p. 55).
No mesmo semestre em que foi veiculado o texto de Herculano, apareceu a
narrativa ―As tres deosas. Charada em prosa‖, escrita pelo romancista, poeta e
folhetinista Antonio Pedro Lopes de Mendonça (MENDONÇA, Antonio Pedro Lopes
de, ―As tres deosas. Charada em prosa‖, Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 1o. sem. de
1852, n. 19, p. 148-150). Conta a história de um jovem desafiado a escolher a mais
bonita entre três moças cobiçadas por todos os mancebos de um baile. Lembrando-se
da lenda em torno da Guerra de Tróia, ele preferiu seguir um caminho diferente do
trilhado por Páris e afirmou ser incapaz de se decidir.
Três narrativas de origem portuguesa publicadas pelo Novo Correio de Modas
saíram da pena de uma mulher. A portuense Maria Peregrina de Sousa foi autora dos
seguintes textos veiculados pelo periódico no decorrer de 1854: ―O homem dos
provérbios‖; ―Uma vida amargurada‖ e ―O cavalheiro do Cruzado Novo e o cavalheiro
do botão de rosa‖. Pouco conhecida entre os leitores contemporâneos, a escritora
colaborou em jornais como Arquivo Popular, Restauração da Carta, Revista Universal
Lisbonense, Íris e Aurora (PEREIRA, Esteves, RODRIGUES, Guilherme, 1904-1915,
p. 1061). De acordo com as informações apresentadas na biografia da autora feita por
Antonio Feliciano de Castilho, as narrativas copiadas pela revista brasileira apareceram
inicialmente no Periódico dos Pobres, em 1848 (CASTILHO, Antonio Feliciano de, 1861, p.
273-312).
―O homem dos provérbios‖; ―Uma vida amargurada‖ e ―O cavalheiro do
Cruzado Novo e o cavalheiro do botão de rosa‖ giram em torno da temática familiar,
tratando de temas como amores proibidos, desavenças conjugais e conflitos entre pais e
filhos. A primeira narrativa traz a história de Luiza e Roberto, dois irmãos de criação
que se apaixonaram perdidamente. Como não passava de uma agregada da família, que
havia sido acolhida por piedade, a menina procurava resistir ao sentimento. O jovem
casal somente conseguiu se casar depois que foi revelado que Luiza também tinha
ascendência nobre, pois descendia de um poderoso conde (Novo Correio de Modas, Rio de
Janeiro, 1o. sem. de 1854, n. 3-6). A segunda narrativa trata da desventura de um jovem
rapaz que planejava assassinar a própria mãe, julgando-se abandonado quando bebê. Na
realidade, ela havia sido enganada, porque lhe disseram que o filho morrera durante o
parto. Quando a verdade veio à tona, mãe e filho se reconciliaram. Contudo, o pai do
143
rapaz não perdoou a antiga mulher e procurou atingi-la com um punhal. Quem tomou o
golpe foi o filho, que acabou morrendo para a tristeza de todos (Novo Correio de Modas,
Rio de Janeiro, 1o. sem. de 1854, n. 16-18). Por fim, a terceira narrativa conta a história
de amor de Adelaide e Pedro. Inicialmente o romance foi proibido pela família da moça,
porque o rapaz tinha má fama e morava em uma casa muito singular, com uma fachada
humilde e um interior esplendoroso. A tia de Pedro interferiu e disse aos pais de
Adelaide que tudo não passava de uma estratégia de seu irmão para não se apegar
demasiadamente ao dinheiro. Diante dessa explicação, o casamento do jovem casal se
realizou (Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 2o. sem. de 1854, n. 1-5).
Além de ter ocupado o posto de um dos principais fornecedores de textos em
prosa de ficção para o Correio das Modas e o Novo Correio de Modas, Portugal atuou ainda
como mediador entre o Brasil e a Europa.57 Tomemos como base, por exemplo, a
narrativa ―Joana, ou um amor contrariado‖, publicada pelo segundo periódico, no
primeiro semestre de 1852. Trata-se de uma tradução de ―Comment on se fait aimer de
sa femme‖, de Charles Monselet, título originalmente veiculado na Revue pittoresque:
Musée littéraire rédigé par les premiers romanciers et illustré par les premiers artistes, de 1850. A
narrativa original começa com o seguinte parágrafo:
―Le vieux braconnier ne se metait jamais em campagne sans être escorté
de son chien et de as fille. Son chien était um animal fort laid, fort sale et
fort intelligent, auquel il avait donné le nom ironique de Gendarme. Quant
à sa fille, elle s‘appelait Jeanne. Vous avez vu de ce belles et fortes
natures chez les Arlésiennes et chez les Basquaises. Elle portait firèment
ses dix-sept ans écrits en flammes noires dans sés yeux curieux et grands,
et dans ses cheveux tordus en cable, débordant par derrière sur le cou.
Un beau brin de fille, disaient les paysans en parlant d‘elle, et cet éloge
robuste, Jeanne ne l‘avait pas volé. Seulement, trop de dédains peu-être
éclatait sur sa lèvre d‘un rouge sombre cerise écrasée, aux parfums
enivrants; ce front, traversé dans son sommet par um pli grave et baigné
d‘ombre vers les temps, accusait peut-être une énergie trop virile, mais
em revanche, dans le duvet rose de ses joues, et surtout dans la fossette
de son menton, il y avait suffisament de quoi faire oublier le sérieux de
certaines lignes, l‘aspect de certains contours. As gorge aurait brisé trois
corsets de marquise. Jeanne était grande et la mieux faite de toutes les
paysannes qui dansaient le dimanche la sabotière sous les chênes‖
(MONSELET, Charles, ―Comment on se fait aimer de sa femme‖, Revue
pittoresque, Paris, 1850, p. 24).
É provável que a narrativa tenha entrado no Brasil por intermediação da Revista
Popular, a qual reproduziu uma tradução do referido texto francês, intitulada ―O que fez um
marido para que sua mulher o amasse‖, em 1852. A versão brasileira apresenta, assim como
a lusitana, algumas diferenças em relação ao texto original de Charles Monselet. Logo no
começo, encontramos o enxugamento da descrição da personagem Joana:
―(...) O caçador, já velho, nunca ia bater mato, sem levar consigo o cão e
a filha.
O cão era feíssimo e sujo: mas tinha muito instinto e chamava-se
Gerdarme. A filha chamava-se Joana, era de boa estatura, forte, vermelha:
tinha dezessete anos, olhos pretos e formosos cabelos com que fazia
A respeito da influência da cultura portuguesa como intermediária entre o Brasil e a França, consultar:
PONCIONI, Cláudia. Emile Zola em português: um estudo das traduções de Germinal no Brasil e em Portugal. São
Paulo: Annablume, 1999.
57
144
uma trança, que andava sempre caída no pescoço. Era uma guapa moça,
como lhe chamavam os portugueses das cercanias, e a mais airosa das
que dançavam ao domingo debaixo dos castanheiros‖ (―O que fez um
marido para que sua mulher o amasse‖, Revista Popular, Lisboa, 1852, p.
28).
―(...) O caçador, já velho, nunca ia bater mato, sem levar consigo o cão e
a filha.
O cão era feíssimo e sujo: mas tinha muito instinto e chamava-se
Gerdarme. A filha chamava-se Joana, era de boa estatura, forte, vermelha:
tinha dezessete anos, olhos pretos e formosos cabelos com que fazia
uma trança, que andava sempre caída no pescoço. Era uma guapa moça,
como lhe chamavam os portugueses das cercanias, e a mais airosa das
que dançavam ao domingo debaixo dos castanheiros‖ (―Joana, ou um
amor contrariado‖, Novo Correio de Modas, Rio de Janeiro, 1o. sem. de
1852, n. 18, p. 137).
O desfecho da narrativa também comprova que a versão publicada pelo Novo
Correio de Modas foi realizada a partir da tradução portuguesa. O texto d‘ O Panorama termina
com um trecho curioso, não localizado no original, dedicado a comentar o comportamento
da protagonista e sua tentativa de assassinar o marido:
―Vejam o que faz às vezes um tiro, quando é dado a tempo, e por uma
mulher que tem mão certa. Mas não sirva este exemplo, para as
mulheres, casadas contra sua vontade, tratem os maridos como se
fossem cotovias ou patos bravos‖ (―O que fez um marido para que sua
mulher o amasse‖, Revista Popular, Lisboa, 1852, p. 30).
O mesmo excerto está presente na versão encontrada no Novo Correio de Modas. Isso
não significa, no entanto, que os textos reproduzidos pelos periódicos sejam exatamente os
mesmos. Os redatores da revista brasileira efetuaram algumas mudanças na narrativa da
Revista Popular com o objetivo de adaptá-la para o português do Brasil. Eles substituíram,
por exemplo, a terminação do pretérito perfeito ―-ram‖ por ―-rão‖, como era mais usual na
imprensa nacional no período. Assim a sentença: ―Ahi vai uma a qual faltaram bem poucas
formalidades para apparecer sob a rubrica de tribunaes‖ foi trocada por ―Ahi vai uma à qual
faltárão bem poucas formalidades para apparecer sob a rubrica de tribunaes‖. Além disso,
escolheram outro título para a história, dando ênfase ao papel da protagonista e a seu
sentimento em relação ao amado. Mesmo assim, tais modificações foram pouco
significativas. Quando se tratava de utilizar um texto saído de periódicos lusitanos, o mais
comum era mantê-lo praticamente idêntico ao original, restringindo as mudanças à grafia
de algumas palavras e, no máximo, ao título.
145
REFERÊNCIAS
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Portugal e Brasil. Lisboa: Escritório da Revista contemporânea de Portugal e Brasil. Abril de
1861. p. 273-312.
EL FAR, Alessandra. O livro e a leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. Tradução de Maria da Penha Villalobos, Lólio
Lourenço de Oliveira e Geraldo Gerson de Souza. 2a. edição. São Paulo: EDUSP, 2005.
PEREIRA, Esteves, RODRIGUES, Guilherme. Portugal: Dicionário Histórico, Corográfico,
Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico. Lisboa, João Romano Torres. 19041915. v. VI.
PONCIONI, Cláudia. Émile Zola em português: um estudo das traduções de Germinal no Brasil e em
Portugal. São Paulo: Annablume, 1999.
RAMICELLI, Maria Eulália. Narrativas itinerantes: aspectos franco-britânicos da ficção brasileira em
periódicos do século XIX. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
VIANA, Liane Cunha. ―‗O castelo de Faria‘: resistência à ‗perda‘ do passado e da
identidade nacional‖. Revista Itinerários: narrar e resistir. n. 10. Araraquara: UNESP, 1996.
p. 155-166.
ZILBERMAN, Regina. ―Eça entre os brasileiros de ontem e hoje‖. In.: Eça e outros: diálogo
com a ficção de Eça de Queirós. ZILBERMAN, Regina et al. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
p. 7-19.
Periódicos consultados
Archivo popular: leituras de instrução e de recreio (1839-1842)
Correio das Modas: jornal critico, litterario, das modas, bailes, theatros etc. (1839-1840)
Museum of foreign literature and science (1836)
Novo Correio de Modas: novellas, poesias, viagens, recordações historicas, anedoctas e charadas (18521854)
O Beija-flor: semanario d’ instrucção e recreio dedicado ao bello sexo (1838)
O Panorama: jornal litterario, cientifico e instructivo (1840-1843)
O Recreio: jornal da familia (1836)
Revista Popular: seminario de litteratura, sciencia e industria (1852)
Revue pittoresque: musée littéraire rédigé par les premiers romanciers et illustré par les premiers artistes
(1850)
146
The keepsake (1836)
147
A TRANSFIGURAÇÃO POÉTICA DO CORPO NA LINHAD‟ÁGUA,
DE OLGA SAVARY
Andréa Jamilly Rodrigues Leitão 58
Prof. Dr. Antônio Máximo Ferraz (Orientador) 59
Resumo: O presente trabalho intenta perquirir a transfiguração poética do corpo à luz do
elemento da água nos poemas ―Signo‖ e ―Só na Poesia?‖ da obra Linha-d’Água (1987), de
Olga Savary. A saber, interpretar o modo pelo qual a dinâmica da água se manifesta na
escritura dos poemas, sobretudo em relação à recriação dos corpos na união erótica, no
sentido de conjugar e integrar o ser humano ao domínio da natureza, como uma
possibilidade autêntica de reconciliação (PAZ, 1994). O movimento das águas transmuta-se
no envolvimento sinuoso dos corpos, levando à plenitude a comunhão amorosa, e, por
outro lado, eclode fecundamente na própria construção da poesia. Em diálogo com a
hermenêutica de Paul Ricoeur (1990), toda obra de arte opera a proposição de mundo,
revelado diante do texto, no próprio tecer da linguagem. Há a projeção de novas dimensões
e possibilidades de realização do ser-no-mundo, as quais instauram, ao mesmo tempo,
novos sentidos à dinâmica da existência do homem. Sendo assim, Linha-d’Água manifesta,
por meio das construções metafóricas de seus poemas, uma nova experiência do homem
com o mundo. Pois, ao transfigurar o corpo dos amantes sob a mobilidade e a fluidez do
signo das águas, a poesia de Olga Savary encena a possibilidade de recuperação do vínculo
originário entre o ser humano e a natureza.
Palavras-chave: Corpo; Água; Transfiguração poética.
Abstract: This paper attempts to assert the poetic transfiguration of the body in the light
of the water element in the poems "Signo" and "Só na Poesia?" of the book Linha-d’Água
(1987), by Olga Savary. Namely, the way we interpret the dynamics of water is manifested
in the writing of poems, especially in relation to recreation bodies in erotic union, in order
to combine and integrate the human in realm of nature, as a real possibility of
reconciliation (PAZ, 1994). The movement of water is transmuted in engagement winding
bodies, leading to completion communion loving and, on the other hand, breaks fruitfully
in the construction of poetry. In dialogue with the hermeneutics of Paul Ricoeur (1990),
every work of art operates the world proposition, revealed before the text, weaving in own
language. There is a projection of new dimensions and possibilities of realization of being
in the world, which instauram, while new meanings to the dynamics of human existence.
Therefore, Linha-d’Água manifests through the metaphorical constructions of its poems, a
new man's experience with the world. Well, to transfigure the body of lovers under the
mobility and fluidity of the sign of the waters, the poetry of Olga Savary enacts the
possibility of recovering the original link between human and nature.
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected]
59 Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected]
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148
Keywords: Body; Water; Transfiguration poetic.
1. Introdução
A escritora paraense Olga Savary (1933) possui uma extensa e rica produção
literária, distribuída em diversos livros premiados pela crítica. A fim de contribuir para a
expansão da fortuna crítica da rica produção literária da escritora, a proposta deste trabalho
intenta perquirir a transfiguração poética dos corpos à luz da dinâmica do elemento da
água, de modo a lançar um novo olhar acerca do corpo e suas inter-relações com a
sexualidade e a experiência amorosa. O percurso interpretativo desenvolve-se a partir dos
poemas ―Signo‖ e ―Só na Poesia?‖, da obra Linha-d’Água (1987).
Dentro do universo literário da escritora, a obra em questão compartilha ―da sua
obsessiva procura de integrar à sua poética a sensualidade e os movimentos da natureza.
Mas, neste caso, a presença ecológica [...] se torna bem mais forte, quase primitiva‖ (LUIZ,
1987). Sendo assim, este trabalho remete à possibilidade de interpretar o modo pelo qual a
―presença ecológica‖ se manifesta na escritura dos poemas, especificamente em relação à
figuração e à recriação poética do corpo sob o vigor da união erótica, no sentido de
conjugar e integrar o ser humano ao domínio do mundo natural, a uma instância originária
onde vigora a plena unidade entre eles. A fluidez do movimento das águas transmuta-se no
envolvimento sinuoso dos corpos, levando à plenitude a comunhão amorosa, e, por outro
lado, eclode fecundamente na própria construção da poesia.
A riqueza da escritura poética de Olga Savary reside na construção metafórica dos
poemas que, ao incorporar e transfigurar o humano sob o vigor dos elementos vitais do
mundo natural, opera o movimento de retorno à sua origem, à sua raiz telúrica, como uma
possibilidade autêntica de reconciliação com a natureza (PAZ, 1994). Em alguns poemas,
inclusive, há a incorporação de vocábulos de origem tupi, os quais recuperam a memória de
uma convivência harmônica e divinatória com a natureza. Além disso, em diálogo com a
hermenêutica de Paul Ricoeur (1990), a obra Linha-d’Água projeta uma nova experiência do
homem com o mundo. Pois, ao transfigurar o corpo dos amantes em consonância com o
movimento das águas, encena a possibilidade de recuperação do vínculo originário entre o
ser humano e a natureza.
2.
Água e movimento: a figuração poética do corpo
149
Na poética corporal de Olga Savary, o elemento primordial da água encena o
dinamismo e a envergadura da união erótico-carnal, a entrega ―desaguada‖, absoluta e
visceral dos amantes com singular plasticidade, ao mesmo tempo que evoca o fundamento
primitivo, a origem, a própria dinâmica da existência nas suas mais diversas dimensões e
manifestações. Desse modo, a água manifesta a gênese, a ―fonte de vida, a origem da
energia se formando‖
60
no corpo dos amantes, que pulsa em meio às emanações do
espírito de Eros. Como está aludido em um dos versos do poema ―Çaiçuçaua‖ – do Tupi:
amor, amado –, que também integra a obra em questão de Olga Savary, ―em tua água sim
está meu tempo,/ meu começo‖ (SAVARY, 1987, p. 27).
No seio da natureza repousa o acontecer pleno do amor, sob as emanações do espírito de
Eros, na medida em que conduz o ser humano às origens, à morada originária, ao reencontro da
unidade perdida. A experenciação corporal não somente do sentimento amoroso, mas também da
própria sexualidade proporciona a reconciliação do homem com o mundo natural, em que aquele se
reconhece como hŭmus
61
– que significa solo, terra –, de onde germina a vida, ou seja: se
compreende sendo em meio ao movimento orgânico cíclico e incessante, transfigurando-se nas
próprias forças vitais da natureza:
A idéia de parentesco dos homens com o universo aparece na origem da
concepção do amor. É uma crença que começa com os primeiros poetas,
permeia a poesia romântica e chega até nós. A semelhança, o parentesco
entre a montanha e a mulher ou entre a árvore e o homem, são eixos do
sentimento amoroso. O amor pode ser agora, como foi no passado, uma
via de reconciliação com a natureza. Não podemos nos transformar em
fontes ou árvores, em pássaros ou touros, mas podemos nos reconhecer
em todos eles (PAZ, 1994, p. 193).
Em relação à recriação poética dos corpos, a pesquisadora Angélica Soares,
interpretando a poética de Olga Savary, comenta que o envolvimento carnal dos humanos
metamorfoseia-se paralelamente no dinamismo dos fenômenos vitais do mundo natural,
cuja mútua correspondência – além de restabelecer o vínculo originário – instaura uma real
conexão e sincronia no diálogo entre as suas manifestações. Diz a autora:
Perfeitamente inseridos na dinâmica natural, os corpos dos amantes se
conectam e se complementam, na entrega plena e recíproca. Pela
integração entre o ser humano e a Natureza, a linguagem dos corpos não
é apenas deles, mas do mar, do animal, da flor, do fruto (SOARES, 1999,
p. 63, grifo do autor).
Trecho do poema homônimo, que inicia a obra Linha-d’Água (SAVARY, 1987, p. 17).
Inclusive, o termo latino hŭmus está relacionado etimologicamente com a palavra homem. As referências
etimológicas citadas neste trabalho podem ser conferidas no estudo feito por José Pedro Machado (1995).
60
61
150
Como se poderá ver mais adiante, a transfiguração poética dos corpos – à luz dos
elementos pertencentes à realidade natural – vislumbra a encenação poético-ontológica do
princípio da unidade entre o ser humano e a natureza, do vigor que o reconduz às suas
raízes telúricas, ao espaço ecológico
62
em que desde sempre esteve, tornar a ser o que
simplesmente já se é, na medida em que reconhece e ressalta o seu próprio corpo enquanto
hŭmus; levando-o, assim, a uma experiência primordial e originária.
No poema intitulado ―Signo‖, vê-se a importância da figuração dos elementos
naturais, tais como o ar, a terra e a água, na tessitura da obra poética de Olga Savary. Estes
contribuem para a encenação de uma convivência harmônica entre a natureza e o homem
e, mais do que isso, se incorporam à própria envergadura dos corpos amantes em meio à
comunhão amorosa. Há, porém, a predominância da substância da água, como se pode
notar abaixo no poema transcrito em sua íntegra:
Há tanto tempo que me entendo tua,
exilada do meu elemento de origem: ar,
não mais terra, o meu de escolha
mas água, teu elemento, aquele
que é o do amor e do amar.
Se a outro pertencia, pertenço agora a este
signo: da liqüidez, do aguaceiro. E a ele
me entrego desaguada, sem medir margens,
unindo a toda esta água do teu signo
minha água primitiva e desatada.
(SAVARY, 1987, p. 26).
O elemento da água, enquanto ―aquele que é o do amor e do amar‖ por excelência,
acaba por se sobrepujar sobre os demais com a sua vastidão líquida indomável, na sua
vazão implacável, ―sem medir margens‖. A entrega desmedida e ―desaguada‖ desemboca
na união dos corpos, os quais se transmutam, sob o vigor da encenação erótica, no próprio
movimento das águas. Estas, por sua vez, evocam o princípio originário da vida, o
fundamento ―primitivo‖ da criação. Neste sentido, a fluidez do signo das águas alude à
diluição das formas humanas, que se configuram livres e ―desatadas‖ no instante da cópula
carnal, em direção à unidade e à plenificação do amor.
Segundo Marlene de Toledo (2009, p. 84), a qual se debruçou significativamente
sobre o conjunto da obra da escritora paraense, ―o erotismo explode em Linha-d’Água,
como, de resto, em toda a poesia savaryana, como vida, energia. A natureza é mais que
natureza: é a natureza do corpo, a água do corpo, a água do orgasmo‖. A natureza vigora
62
Compreende-se o radical eco- a partir do sentido do grego oíkos, que significa casa.
151
na constituição carnal do homem em meio à potência erótica dos amantes, a vida se
derrama no esplendor da figuração do corpo. Em suma, a poética da escritora paraense
conduz o ser humano à reconciliação com as forças vitais da natureza, ou melhor, com a
natureza do seu próprio corpo.
O poema ―Só na Poesia?‖, por sua vez, estrutura-se em forma de diálogo, iniciando
em tom de questionamento, o que já se figura desde o título. Segue abaixo, na íntegra:
Eu te pareço bela ou bela
é só minha poesia quando
só assim me entrego?
Depois de derrubada, foi em mim
que te ergueste fortaleza
– fortaleza de água, de igapó
e igarapé (a que me comparas).
Então aposso-me do teu rio
que corre para minhas águas
e me carrega ao momento de entrega:
ensolarada.
(SAVARY, 1987, p. 30).
A beleza, referida na primeira estrofe, reside não somente no plano físico ou
estético, mas que diz respeito ao próprio, à poesia de cada um que se deixa descortinar,
revelar na intensidade da entrega amorosa: ―Eu te pareço bela ou bela/ é só minha poesia
quando/ só assim me entrego?‖. Não diz respeito ao belo que paira na esfera do sublime –
sob um viés platônico –, mas à experiência de busca pela instância criativa, na qual se
constitui não somente o operar inaugural da arte, mas da própria existência. Em suma, ao
conhecimento e à sabedoria que acometem a dimensão concreta do corpo, conduzindo-o a
um momento de revelação: a carne se faz palavra.
Mais do que apenas a conjugação de palavras, a poesia acontece no encontro
erótico das águas, no enlace sinuoso dos corpos, na vida que vige potencialmente em cada
homem. A própria metáfora sexual, tecida ao longo do poema, revela a poesia operando, na
medida em que possibilita o ―comparar‖, ou melhor, o transfigurar da materialidade dos
corpos no movimento das águas em meio à pulsão erótica do envolvimento carnal. Octavio
Paz (1994, p. 12) revela uma forte ligação entre o erotismo e a poesia, chegando a exprimir,
por meio de sua genuína veia literária, que ―o primeiro é uma poética corporal e a segunda
uma erótica verbal‖. O corpo constitui-se como a tessitura de um texto, como o espaço da
criação e do lavrar dos sentidos; ao passo que a poesia se realiza no corpo da linguagem, na
fecundidade do gesto criador, no movimento de cópula de sonoridades, de imagens e de
152
metáforas. Neste sentido, o escritor mexicano defende a existência de uma instância
inventiva e criativa que impulsiona tanto a fruição da pulsão sexual quanto a dimensão da
criação: ―O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que
move o ato erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a
linguagem em ritmo e metáfora‖ (PAZ, 1994, p. 12).
Na segunda estrofe, após ser ―derrubada‖, despida e deflorada na nudez do seu
corpo, o ser feminino revela-se plenamente, à luz da atividade fecunda de semeadura. O
―tu‖ da interlocução, com sua força e vigor, erige a sua ―fortaleza‖, o seu domínio na
encenação erótica, o qual não se sustenta, uma vez que os corpos se encontram regidos e se
interpenetra sob o movimento intermitente e incessante do fluxo das águas: ―fortaleza de
água, de igapó/ e igarapé‖.
A cópula sexual constitui-se mais do que simplesmente a soma de dois corpos
envolvidos pelo ardor do desejo, mas a abertura para o momento ―ensolarado‖ e
resplandecente de comunhão carnal entre duas existências que se entregam e se
autodesvelam na vigência plena do amor, o qual os reúne em uma unidade, a partir da
posse concreta das águas do amante no movimento vertiginoso de encontro e de entrega:
―Então aposso-me do teu rio/ que corre para minhas águas‖. Deste modo, a poesia opera
aberturas e revelações, remetendo à dignidade humana nas suas possibilidades inaugurais e
criativas de realizar-se, seja pela dimensão iniciática do corpo, seja pelo engendrar fecundo
da própria arte.
A obra de arte alude à imagem de um corpo verbal que se manifesta em um
movimento instaurador de sentido no espaço da poíēsis. A partir de uma dimensão erótica, a
linguagem é o próprio corpo, em cujo tecido a escritura imprime suas marcas. A palavra é a
instância onde vigora a fecundidade do gesto criador, constituindo-se como a semente na
qual o élan de fertilidade promove o germinar do poético, o desabrochar do corpo-mundo
na vivacidade plena da poesia, na vigência da unidade da criação. A arte, mediante a
comunhão amorosa do escritor com a palavra, engendra as potencialidades criativas e
genuínas da existência humana, reconstruindo e renovando os sentidos sempre moventes
da realidade, sem jamais esgotá-la. Mesmo porque a própria realização poética encontra-se
regida sob o movimento incondicionado do elemento da água, o qual não se deixa estagnar,
fixar ou delimitar pelas ―garras‖, pelas margens do registro escrito:
Poesia: fera absoluta,
escorregadia enguia,
água, bicho sem pêlo
153
onde poder agarrar. 63
3.
Entre metáforas e transfigurações, a encenação do ser-no-mundo
Segundo Paul Ricoeur (1990), a tarefa da hermenêutica é reconstruir a dinâmica
interna do texto e, por outro lado, restabelecer a possibilidade de a obra projetar-se na
configuração de um mundo no espaço da escritura. Ricouer defende, à luz de uma teoria
ontológica da compreensão, a noção de ―mundo do texto‖ e o empenho de interpretação
consiste em reconhecê-lo dentro de um horizonte possível de significação.
Em outras palavras, toda obra de arte opera a proposição de mundo, revelado
diante do texto, mediante o próprio tecer da linguagem. A força manifestativa da linguagem
é capaz de restituir, em absoluto, a dimensão fundadora ao universo literário. Neste
sentido, a experiência com a linguagem possibilita reconstruir o real em diferentes vigências
e matizes. A criação é, aqui, entendida essencialmente enquanto ficção, no sentido de
modelar, fabricar, esculpir, plasmar de sentidos em uma determinada figuração. Cada obra
literária configura a sua própria poíēsis criativa, a sua própria interpretação acerca do mundo,
constituindo-se como a irrupção de uma realidade inaugural que é a do texto.
A experiência da criação poética instaura a configuração de imagens e metáforas, as
quais revelam novas dimensões e horizontes de significação acerca da existência do ser
humano, doando-se na abertura extra-ordinária fundada pelo mundo de cada obra literária.
Para Paul Ricoeur (1990, p. 57), é
pela ficção, pela poesia, [que] abrem-se novas possibilidades de ser-nomundo na realidade quotidiana. Ficção e poesia visam ao ser, mas não
sob o modo do ser-dado, mas sob a maneira do poder-ser. Sendo assim,
a realidade quotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que
poderíamos chamar de variações imaginativas que a literatura opera
sobre o real.
Neste sentido, a obra de arte projeta novas dimensões e possibilidades de realização
do ser-no-mundo – termo emprestado de Martin Heidegger, da obra Ser e Tempo –, as quais
instauram, ao mesmo tempo, novos sentidos e modos figurativos à dinâmica da existência
do homem em meio à realidade a sua volta. Em relação à obra Linha-d’Água manifesta, por
meio das construções metafóricas de seus poemas, uma nova experiência do homem com o
mundo. Pois, ao transfigurar o corpo dos amantes em consonância com o movimento
63
Trecho do poema ―Catêretê‖ (SAVARY, 1987, p. 34).
154
regenerador
64
da água, a poesia de Olga Savary encena a possibilidade de renascer,
mediante o movimento de recuperação da unidade originária entre o ser humano e a
natureza; de operar o retorno ao estado primordial do Paraíso; e, assim, de desfazer a
condição de exílio do homem, como comenta o escritor Octavio Paz (1994, p. 196):
Ao nascer, fomos arrancados da totalidade; no amor sentimos voltar à
totalidade original. Por isso as imagens poéticas transformam a pessoa
amada em natureza – montanha, água, nuvem, estrela, selva, mar, onda –
e, por sua vez, a natureza fala como se fosse mulher. Reconciliação com
a totalidade que é o mundo.
Além disso, dentro do projeto literário de Olga Savary, vislumbra-se o
reconhecimento da experiência amorosa a partir da manifestação plena da sexualidade na e
pela dimensão física do corpo. Deste modo, conduz à reconciliação com a natureza do seu
próprio corpo, com a raiz telúrica do homem, cumprindo o seu destino humano em meio
ao devir e à medida inexorável do tempo, ao movimento incessante e contingente da
realidade das coisas, que constitui a própria dinâmica da vida:
O amor humano, quer dizer, o verdadeiro amor, não nega o corpo nem
o mundo. Tampouco aspira a outro e nem se vê como caminhando em
direção a uma eternidade para além da mudança e do tempo. O amor é
amor não a este mundo, mas sim deste mundo; está atado à terra pela
força da gravidade do corpo, que é prazer e morte (PAZ, 1994, p. 185,
grifo do autor).
A transfiguração poética do corpo presente nos poemas interpretados manifesta,
metaforicamente, uma estrutura de realização do ser-no-mundo, a saber, a própria condição
do homem no mundo que habita. Assim, evoca não uma dimensão supraterrena, imutável e
atemporal, porém a realização concreta, ambígua e perecível do ser humano. Este que é e
está sempre sendo num constante vir-a-ser, a partir da vigência do princípio vital que rege a
existência na Terra, do fluxo contínuo e cíclico do acontecer da realidade, sob a mobilidade
e a fluidez do signo das águas. Como já anunciava um dos poemas da obra Sumidouro
(1977):
Não falo mais do céu fora de alcance;
falo do que os pés alcançam,
falo da terra que me cabe,
da terra que me cobre
e que me basta. 65
64
Segundo Mircea Eliade (2008, p. 110), ―o contato com a água comporta sempre uma regeneração: por um
lado, porque a dissolução é seguida de um ‗novo nascimento‘; por outro lado, porque a imersão fertiliza e
multiplica o potencial da vida‖.
65 Trecho do poema ―Quarto de nuvens‖ (SAVARY, 1998, p. 141).
155
4. Considerações finais
A riqueza da escritura poética de Olga Savary reside, portanto, na reconfiguração do
erotismo e do corpo em meio ao vigor imperante da natureza, dos elementos que
compõem as forças do mundo natural, cujo tônus vital proporciona o retorno do homem
ao lugar em que desde sempre já esteve: a terra. Sobretudo, os poemas ―Signo‖ e ―Só na
Poesia?‖ realizam a reconciliação do homem com o seio telúrico, a sua morada originária,
lembrando que o homem é húmus. Neste sentido, sob o vigor do elemento da água, há a
evocação da realização concreta, ambígua e perecível do homem, o qual sempre é e está
sendo no interior da dimensão inexorável do tempo, do fluxo incessante das coisas, como
manifestação autêntica da dinâmica do seu próprio existir, da sua própria condição de serno-mundo.
Sendo as metáforas criadoras de realidades, por excelência, as que se apresentam
nos poemas da escritora paraense articulam uma nova relação do homem com a natureza,
em que estes se encontram plenamente reconciliados, confundindo-se em suas próprias
manifestações. Deste modo, a poesia de Olga Savary possibilita uma verdadeira imersão nas
águas originárias do ser humano nas suas mais diversas possibilidades de realização. Entre
metáforas e imagens, experiências e descobertas, o homem perfaz a sua travessia em
comunhão com a sua própria natureza: cíclica, contraditória e contingente.
REFERÊNCIAS:
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução de Rogério
Fernandes. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
LUIZ, Macksen. Poesia ecológica. Manchete. Rio de Janeiro, 1987. Seção ―O que há para
ler‖.
MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa: com a mais antiga
documentação escrita e conhecida de muitos dos vocábulos estudados 7. ed. Lisboa: Livros
Horizonte, 1995. 5 v.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladir Dupont. 2. ed. São
Paulo: Siciliano, 1994.
RICOEUR, Paul. A função hermenêutica do distanciamento. In: Interpretação e ideologias.
Organização, tradução e apresentação de Hilton Japiassu. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1990. p. 43-59.
156
SAVARY, Olga. Linha-d’Água. São Paulo: Massao Ohno/Hipocampo, 1987.
______. Repertório selvagem: obra reunida – 12 livros de poesia (1947-1998). Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional/Multimais/Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.
SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na
poesia brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1999.
TOLEDO, Marleine Paula Marcondes e Ferreira de. Olga Savary: erotismo e paixão.
Colaboradores Heliane Aparecida Monti Mathias e Márcio José Pereira de Camargo. Cotia,
SP: Ateliê Editorial, 2009.
157
ALUÍSIO AZEVEDO: O TRABALHO LITERÁRIOFOLHETINESCO COMO ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA E
POLÍTICA ILUSTRADA
Profa. Dra. Angela Maria Rubel Fanini66
Prof. Dr. João Hernesto Weber (Orientador) 67
Resumo: Nesta comunicação apresenta-se o resultado de pesquisa junto aos romancesfolhetinescos de Aluísio Azevedo (Condessa Vésper, Girândola de Amores, Filomena Borges,
Mattos, Malta, Mata, A mortalha de Alzira e Livro de uma sogra), concluindo que a publicação
dessas obras obedecia a, basicamente, dois propósitos. O escritor, por não ser funcionário
público, precisava sobreviver materialmente de sua produção literária e, então, escrevia
romances ―industriais‖, publicados em jornais da Corte, que agradavam ao público e assim
podia se manter no Rio de Janeiro. Entretanto, afora essa direção material, essas
publicações, em vários periódicos, também visavam a educar um público leitor pouco
afeito a romances de análise cuja linguagem se vinculasse a um ideário real-naturalista. Essa
dupla orientação das obras em tela é, inclusive, informada pelo próprio escritor em prefácio
a um dos romances mencionados, ou seja, o literato tinha consciência de que sua
linguagem, nas obras mencionadas, era de caráter híbrido entre o real-naturalista e o
folhetinesco. O veículo impresso dava-lhe notoriedade visto que primeiramente os
romances se publicavam em forma de folhetim e, posteriormente em forma de livro,
funcionando como uma maneira de comprovar sua aceitação. A crítica, majoritariamente,
desvaloriza esses romances, considerando-os subliteratura. Entretanto, a leitura apurado
dos mesmos, levou-nos a perceber que neles há a concretização de um projeto ilustradopedagógico do escritor que objetivava inserir passagens de romance de análise dentro dos
romances-folhetins a fim de ilustrar o leitor aos poucos devido ao fraco contexto de leitura
da época.
Palavras-chave: Romance-folhetim brasileiro; Trabalho do escritor; Aluisio Azevedo.
66
Professora Dra. da Universidade Tecnológicca Federal do Paraná (UTFPR). Apoio Fundação AraucáriaParaná. E-mail: [email protected]
67 Professor Dr. do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
158
Abstract: This paper is a rereading of the serialized sensation novels Condessa Vésper (1882), Girândola
de amores (1882), Filomena Borges (1884), Malta, Mattos ou Mata? (1885), A mortalha de Alzira
(1894) and Livro de uma sogra (1895), written by Aluísio Azevedo, a 19 th century writer regarded as the
forerunner of realist-naturalist narrative in Brazil. These novels have been classified as sub-literature by
Brazilian literary historians. A closer reading of these works, under a theoretical perspective that articulates
literary form and socio-historical reality, revealed that the hybrid literary discourse does not indicate lack of
consistency on the writer’s part, but rather, formalizes the real contradiction lived by the Brazilian society in
the 19th century, caught between slavery and liberalism, the latter linked to a conservative renewal project –
and thus attached to the realist-naturalist discourse – and the former, linked to an outdated conservative
project, and therefore attached to the universe of romantic values. It can also be seen that Aluísio Azevedo’s
hybrid language was used to materialize the writer’s illuminist-bourgeois project that consisted in educating
the reading public, prompting them to realize the immaturity, weakness and deception of the romantic
language, by gradually feeding them realist-naturalist literature in serialized sensation novels. Theses novels
also support a material demand because literature was a mean of living for Aluisio. He abandons literature
when he reaches a public work.
Key words: Brazilian serialized sensation novels; The work of the writer; Aluisio Azevedo.
Neste estudo, investigamos, majoritariamente, os romances de Aluísio Azevedo considerados, por
boa parte da crítica literária canônica,68 como romances subliterários69 no conjunto da produção artística do
escritor. A cronologia dessa produção romanesca de Aluísio abarca as seguintes obras: Uma lágrima de
mulher (1880); Memórias de um condenado, renomeado A Condessa Vésper (1882); Mistérios da Tijuca,
renomeado Girândola de amores (1882); Filomena Borges (1884); Mattos, Malta ou Matta? (1885); A
mortalha de Alzira (1894); Livro de uma sogra (1895).
A fortuna crítica da obra de Aluísio Azevedo tem se ocupado, especialmente, do
conjunto de romances considerados literários e relevantes (O mulato, Casa de pensão, O cortiço)
para a história da Literatura Brasileira. Estudos sobre a produção considerada folhetinesca
são, no entanto, escassos.
Acreditamos que esses romances, que se acham fora do cânone, têm interesse
cultural visto que se constituíram em formas vivas de comunicação social na sociedade
oitocentista, pois foram publicados em jornais de renome (O Paiz;; A Gazetinha; Folha Nova;
Gazeta de Notícias; A Semana), sendo lidos por uma quantidade considerável de leitores.
Constituíram-se quase como um fenômeno de literatura de massa e esse fato é relevante
para quem estuda a produção literária como um processo cultural interligado às outras
esferas sociais. O apreço por um determinado discurso literário revela o valor social,
político e histórico desse discurso atribuído pela comunidade que o lê. Esse discurso
Antonio Candido, Alfredo Bosi, Lúcia Miguel-Pereira, Nelson Werneck Sodré, Afrânio Coutinho, Massaud
Moisés.
69 Além desse termo que desqualifica a obra já desvalorizada quando considerada menor, outros epítetos são
usados para depreciar essa produção, tais como: de ―caráter industrial,‖ ―mercadológica,‖ ―literatura de
massa,‖ ―folhetinesca‖ etc.
68
159
literário produzido, apreciado, lido, criticado, polemizado, pode revelar as imbricações
entre literatura e sociedade. O discurso literário tanto refere o mundo real quanto nele
intervém, sendo, portanto, um registro valioso para se compreender uma dada época
histórica e suas relações com a literatura. Sabemos que o jornal no século XIX era
importante veículo de comunicação e muitos escritores ali publicavam seus romances e
suas opiniões no espaço destinado para tanto, ou seja, o espaço do folhetim. Os escritores
adquiriam popularidade e visibilidade a partir de sua aparição nos jornais. Muitos dos
romances saíam primeiro no jornal e depois em forma de livro.
Aluísio Azevedo foi bastante consciente das condições de produção e de leitura de
sua época e isso incluía uma visão bem nítida de seu público leitor. O escritor sabia para
quem estava escrevendo e os romances-folhetins70 não eram dirigidos para a crítica literária
e sim para o público leigo que via na literatura um meio de entretenimento e talvez também
de acesso a algum conhecimento. Ler os romances-folhetins estrangeiros ou nacionais era,
na época, parte da cultura letrada da sociedade alfabetizada oitocentista, não somente no
Brasil como em França e Inglaterra de onde advinham boa parte dos romances importados.
Um sem número de situações narrativas no romance do século XIX brasileiro faz menção
a esse tipo de leitura entre os personagens, atestando um fato social, quer seja, a leitura de
folhetins. O público exigia obras românticas e a crítica exigia romances realistas. A solução
encontrada por Aluísio foi a elaboração de um discurso ―híbrido‖71 entre as duas estéticas.
Os romances aqui estudados foram publicados em forma de folhetim em rodapés de jornais
brasileiros e revistas ilustradas (A Gazetinha; Folha Nova; Gazeta de Notícias; A Semana; O Paiz;).
A definição romance-folhetim, no entanto, comporta outros aspectos além do fato de se vincular à
publicação em periódicos. Essa adjetivação também comporta uma definição ideológico-estilística.
O vocábulo folhetim, designando um tipo de romance, tem estado culturalmente marcado a partir,
sobretudo, de valores negativos. Boa parte dos estudos em teoria literária definem a narrativa
folhetinesca em contraposição à literatura ―de qualidade‖. O romance folhetim é apreendido como
artefato literário simples, apresentando uma estrutura discursivo-ideológica que se repete em
qualquer obra denominada de folhetim. Os componentes reiterados, majoritariamente, são: o
enredo é movimentado e inflacionado por inúmeras peripécias; as personagens são elaboradas de
modo maniqueísta; a realidade social é simplificada e não é capturada em suas contradições; a
mensagem é conservadora, atendendo a um projeto ideológico da classe dominante; a linguagem é
menos sofisticada; a condição cronotópica não provoca modificação de ordem biológica; social,
psicológica nas personagens. Porém, muitos desses aspectos se encontram em um sem número de
romances e teríamos uma exemplificação muito vasta tanto no tempo como no espaço.
71 Aluísio Azevedo, em prefácio à obra Mistérios da Tijuca, foi o primeiro a definir a sua estética
como híbrida entre o romantismo e o real-naturalismo. Esse prefácio será objeto de estudo mais
adiante. Eugênio Gomes afirma que há desconhecimento por parte da crítica sobre esse prefácio:
―Por via de regra, a crítica não comentava os romances enquanto estes eram publicados em forma
de folhetins, de modo que essa passagem [o prefácio] reveladora, suprimida de O mistério da Tijuca,
ao sair com outro nome em livro, parece ter passado despercebida completamente a todos os que
se ocuparam dessa ficção. Quando, mais tarde, alguns críticos passaram a estranhar a dosagem de
romantismo que Aluizio Azevedo aplicara em suas criações, modeladas pela ciência experimental,
através do documento humano, conforme as regras de Zola, não faziam mais do que escancarar a
70
160
Isso desagradava a crítica, pois os romances considerados subliterários, além de
incorporarem os novos paradigmas discursivos (realismo/naturalismo), apresentavam,
também, uma linguagem menos determinada pelos ―preceitos do bem escrever,‖ não
seguindo um certo ordenamento e protocolo impostos ao discurso literário, incorporando
toda sorte de expedientes literários rocambolescos, folhetinescos e fantasiosos que se
afastam do ideário racional-burguês da narrativa real-naturalista.No entanto eram lidos e
considerados pelo público.
Já que não se dirigia para uma audiência social oficial (a crítica canônica), o escritor
se permitia trabalhar com uma linguagem mais plural, mais multifacetada, não atada à
camisa de força da estética real-naturalista. Essa simbolizava, naquele momento, o centro, a
força centrípeta que tentava uniformizar e homogeneizar o discurso literário; em
contraposição, os romances-folhetins eram marginais, gravitando fora do centro oficial da
crítica, constituindo-se em forças centrífugas para o universo romanesco.
A divisão qualitativa da obra de Aluísio Azevedo entre dois conjuntos de romances
diferenciados não impedia, no entanto, que o público leitor transitasse de um conjunto a
outro visto que tanto os romances considerados literatura menor quanto os romances
autorizados pela crítica eram publicados em rodapés de jornais e em revistas e a eles o
público tinha acesso indiscriminadamente. Prova disso é que os críticos liam os romancesfolhetins, nem que fosse para desqualificá-los. Embora houvesse esse trânsito livre de
leitura, a divisão da obra aluisiana pela crítica já se inicia no tempo do escritor, uma vez que
a crítica contemporânea ao escritor passa a estabelecer uma tipologia classificatória,
excluindo do cânone certas obras. Essa divisão se intensifica quando as historiografias da
literatura brasileira posteriores operam uma desqualificação dos romances-folhetins, ora
silenciando sobre a existência dessas obras, ora depreciando-as, recuperando certo discurso
crítico oitocentista que desvaloriza esses romances.
Esse espaço democrático dos periódicos em que não havia discriminação que
categorizasse os romances hierarquicamente por valores estéticos diferenciados fazia com
que o leitor dos romances de rodapé se deparasse com discursos romanescos díspares e
talvez em menor ou maior grau, dependendo de seu cabedal cultural, percebesse a
diversidade de estilos. A simultaneidade dessa publicação diferenciada propiciava um
confronto lingüístico de onde surge uma visão dialógica da produção de Aluísio Azevedo.
porta que o romancista deixara voluntariamente aberta. Fora ele, na verdade, o primeiro a denunciar
o hibridismo de sua estética de transição. Que não tinha a esperança de evitar esse hibridismo é
coisa que igualmente deixara fora de dúvida, pois confiava a quem viesse depois o exercício da arte
naturalista.‖ (O hibridismo estético de Aluísio Azevedo, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 4 out.
1954)
161
Já não se lerá a sério o romance O homem, que é o mais ortodoxo no sentido de seguir as
teses deterministas, do final do século XIX, pois essas são parcialmente desacreditadas no
romance A mortalha de Alzira, por exemplo, e carnavalizadas em Livro de uma sogra. A
problemática da histeria feminina em O homem é tratada a partir das lentes cientificistas da
época. O discurso literário aí abriga o científico para se legitimar. Já em A mortalha de Alzira,
o histerismo feminino é dado em uma chave fantasiosa e fora dos padrões da lógica. Em
Livro de uma sogra, o romance de tese é carnavalizado. O confronto ocorre também entre a
leitura de Casa de pensão e Filomena Borges, ambas publicadas no mesmo ano, 1882, esta uma
forma arquitetônica cômica, aquela uma obra em que predomina uma arquitetura dramática
e séria. Em Filomena Borges, inclusive, há a satirização da linguagem e do ideário românticos.
A heroína é vítima de um bovarismo que aprendeu nos livros românticos. A visão do
conjunto da produção literária de Aluísio Azevedo mostra inclusive que o escritor tinha
consciência das limitações da estética realista e isso nos é revelado se lermos a produção
considerada menor, por exemplo, Mattos, Malta ou Matta?. Nessa obra, encontramos um
outro escritor, pois elabora uma linguagem mais plural onde se questiona de modo bem
jocoso, simpático e divertido a relação de desajuste entre as palavras e as coisas. Condessa
Vésper ou Memórias de um condenado explicita os perigos da visão romântica de mundo e de
como essa interfere na tomada de decisão desatrosa para os personagens. Em Girândola de
Amores o Romantismo també é fruto de crítica. Entretanto o que ocorre nesses romances é
que se instituem por uma linguagem híbrida que abrigam toda sorte de expediente
folhetinesco e também um outro discurso que critica tais expedientes. É a linguagem do
folhetim sendo agenciada e ao mesmo tempo criticada. A linguagem dessas obras, em
matizes diferentes é bivocal, pois nela concorrem duas vertentes discursivas, ou seja, vale-se
da narrativa folhetinesca e rocambolesca e simultaneamente critica essa narrativa. Ora
pende para o rocambolesco, ora para o sério.
A historiografia acadêmica mais lida nos cursos de Letras, negando validade estética a
esses romances, fez com que se estabelecesse uma cisão entre a obra considerada literária e
artística e a obra denominada subliterária, folhetinesca e mercadológica. Essa cisão
fundamenta-se em uma concepção de linguagem literária homogênea, discriminando parte
da obra de Aluísio Azevedo em que a linguagem se institui de modo mais plural no sentido
de abrigar registros de linguagem bastante díspares (o humor, a paródia, a carnavalização, a
hibridização) em comparação à linguagem dos romances considerados literários.
Observamos que a obra do escritor é desigual, afastando-se de uma totalidade homogênea,
mas percebemos que se constitui como uma totalidade heterogênea no sentido de que entre
162
as obras singulares, incluindo os dois conjuntos, estabelece-se um diálogo e um confronto.
Dessa interação pudemos detectar um sentido literário, político e pedagógico que permeia a
obra em sua totalidade. Aluísio Azevedo, por diversas vezes, explicitou um conteúdo
programático para a sua produção literária que consistia tanto em fazer literatura empenhada
(CANDIDO, 1981) em dizer e construir a nação quanto em informar e ilustrar o leitor via
literatura, inclusive pela via dos romances-folhetinescos.
Embora não parcelamos a obra de Aluísio Azevedo, analisando-a em sua totalidade,
não negamos a divisão que há na obra de Aluísio Azevedo, inclusive explicitada por ele
mesmo em vários prefácios das obras consideradas subliterárias. Percebemos que Aluísio
Azevedo não é ingênuo em relação à linguagem, tomando-a como um simples código que
se bem manejado pode apresentar a realidade tal qual ela é. A linguagem é
ininterruptamente problematizada, quer nos romances-folhetins, quer em prefácios
introdutórios que destacam a necessidade de se deixar para trás o código romântico, quer,
ainda, pela vontade de o autor elaborar uma linguagem real-naturalista que capte a realidade
de modo mais fidedigno ou, ainda, quando o escritor ultrapassa tanto um código quanto o
outro, carnavalizando-os, desprendendo-se do monologismo. A produção ―subliterária‖
revela um prisma marcadamente metalinguístico, o que não ocorre na produção valorizada
pela crítica acadêmica. É nesse sentido que lemos a obra literária de Aluísio Azevedo, ou
seja, como um conjunto de romances diferentes entre si, mas que apresentam um certo fio
condutor que se institui primeiramente pela problematização da linguagem e
posteriormente pela tentativa de estabelecer uma linguagem transparente e de
nomenclatura do real. É como se os romances-folhetins servissem de crítica da linguagem e
preparassem a vinda dos romances literários em que a linguagem documental deveria se
constituir no último estágio de um projeto literário-político exitoso e atingido plenamente.
Aluísio Azevedo viveu e escreveu, nas últimas décadas do século XIX, em um tempo
histórico em que as contradições sociais, políticas e econômicas se acirravam. O embate
entre paradigmas diferentes estava posto e a obra de Aluísio Azevedo registra uma luta
discursiva entre o romantismo e o real-naturalismo. Essa tensão entre paradigmas
diferentes é registrada, especialmente, a partir de uma linguagem ―híbrida‖ presente nos
romances folhetinescos, como já mencionado.
Essas décadas são objeto de vários estudos históricos em que aparecem como
momentos importantes para a história nacional no sentido de que provocam mudanças de
paradigmas. As mudanças que aconteceram nesse período não romperam totalmente com
o passado e é nesse sentido que pudemos entender o ―hibridismo‖ da produção aluisiana,
163
refletindo simultaneamente o passado que persiste e o novo que se impõe. O passado
regido pela economia escravista agro-exportadora dos senhores de terras, vinculado a uma
dimensão romântica idealizadora e conservadora, e o presente, atrelado à economia liberal,
ao modelo norte-americano de democracia e associado ao cientificismo e ao realnaturalismo. São duas perspectivas diferentes para a nação e requerem linguagens diversas.
Nesse sentido, percebemos que a linguagem ―híbrida‖ de Aluísio Azevedo se vincula
diretamente à realidade social das duas últimas décadas em que a contradição entre o
escravismo e o liberalismo é estrutural da sociedade brasileira. Enquanto os valores
conservadores, monológicos, unilaterais e homogeneizantes de um romantismo idealizador
ainda perduram, o discurso real-naturalista, embora se dirija para o futuro, prometendo o
progresso, também não deixa de se vincular a um projeto conservador e autoritário. Desse
modo, tanto o romantismo como o real-naturalismo, ambos homogeneizantes e
monologizantes, podem conviver no interior do mesmo enunciado romanesco, embora um
aponte para o passado e outro para o futuro. A obra aluisiana formaliza essa realidade
contraditória entre o conservadorismo e a modernidade, ora vinculando-se a um passado
não totalmente inativo, preservando-o e fortalecendo-o, ora objetivando mudar essa
realidade, instaurando o discurso real-naturalista, apegado a um projeto de nação
modernizante e conservador. Esse ir e vir da obra considerada menor entre um paradigma
e outro, constituindo-se como um discurso ―híbrido‖, em algumas obras consideradas
subliterárias, é rompido por uma visão carnavalizada que se afasta da imposição de um
centro discursivo monológico.
Aluísio Azevedo foi um dos primeiros a atentar para a linguagem híbrida de sua
obra, pois elaborava seu texto consciente de dirigi-lo a duas audiências distintas: o gosto
popular dos leitores e o gosto da crítica. Aluísio Avezedo, quando da estréia do folhetim
Mistério da Tijuca, entremeou a publicação com uma análise crítica sobre o hibridismo
discursivo de sua produção, texto já citado anteriormente neste ensaio. O escritor expõe a
sua arte poética, enfatizando que o intuito da publicação dos folhetins é nobre, pois visa a
familiarizar o leitor para a literatura naturalista. O escritor se desculpa antecipadamente da
escritura dos folhetins, mas passa a enobrecê-los. Temos aí um jogo do ficcionista, pois há
duas audiências para a sua fala: endereça à crítica e aos leitores ávidos por romancesfolhetins. Para aquela se desculpa da escritura de literatura de massa, mas passa a enobrecer
essa produção à medida que enfatiza o caráter híbrido da obra cujo intuito é oferecer boa
literatura, em doses homeopáticas, para o leitor. Aí temos o caráter pedagógico do projeto.
Os folhetins então se salvam, pois não visam apenas à literatura comercial e de diversão
164
fácil. Há todo um projeto pedagógico que orienta essa produção. Já para os leitores, essa
explicação funciona como um alívio da má consciência, pois o autor lhes assegura que
estão lendo folhetins e também se instruindo, reforçando o princípio horaciano da arte, em
que educar e divertir são faces da mesma moeda. Há ainda outra faceta dessa explicação de
Aluísio Azevedo, pois o leitor, acostumado a folhetins meramente de episódios
aventurescos, é avisado antecipadamente de que o livro pode descontentá-lo, pois é uma
adaptação do gênero. O caráter híbrido pode não satisfazê-lo, mas é já anunciado para o
consumidor. Retomemos algumas passagens desse prefácio:
E já que avançamos tanto, diremos logo com franqueza que todo o
nosso fim é encaminhar o leitor para o verdadeiro romance
moderno. Mas isso – e o prestidigitador apresenta ostensivamente
os derradeiros truques – já se deixa ver, sem que ele o sinta, sem que
ele dê pela tramóia, porque ao contrário ficaremos com a isca
intacta.(...) É preciso ir dando a coisa em pequenas doses,
paulatinamente: um pouco de enredo de vez em quando; uma ou
outra situação dramática de espaço a espaço, para engordar, mas
sem nunca esquecer o verdadeiro ponto de partida – a observação e
o respeito à verdade. Depois, as doses de romantismo irão
diminuindo gradualmente, enquanto que as do naturalismo se irão
desenvolvendo; até que um belo dia, sem que o leitor o sinta, esteja
completamente habituado ao romance de pura observação e estudo
de caracteres.
(...)
No Brasil, quem se propuser a escrever romances consecutivos, tem
fatalmente de lutar com grande obstáculo - é a disparidade que há
entre a massa de leitores e o pequeno grupo de críticos. Os leitores
estão em 1820, em pleno romantismo, querem o belo enredo, a
ação, o movimento; os críticos porém acompanham a evolução do
romance moderno em França e exigem que o romancista siga as
pegadas de Zola e Daudet.
(...)
Por conseguinte, entendemos que, em semelhantes contingências o
melhor partido a seguir era conciliar as duas escolas, de modo a
agradar ao mesmo tempo ao gosto do público a ao gosto dos
críticos; até que se consiga por uma vez o que ainda há pouco
dissemos - impor o romance naturalista. Mas, enquanto não
chegarmos a esse belo posto, vamos limpando o caminho com
nossas produções híbridas, para que os mais felizes, que porventura
venham depois, já o encontrem desobstruído e franco.
(AZEVEDO, Introdução, Girandola de Amores, s/d)
O romance publicado em forma de folhetim em jornais diários ou semanais, no entanto,
apresenta algumas características formais. O meio jornalístico imprimia certa padronização
aos romances que se publicavam em forma de folhetins. O período da publicação
165
(diariamente); o objetivo da publicação (aumentar a vendagem do jornal, majoritariamente)
e a audiência a que se destinam os folhetins interferiam na estruturação discursiva da
narrativa. Essa interferência ocorre em vários níveis, pois a linguagem do folhetim tende a
ser menos sofisticada, visto que é influenciada pela linguagem jornalística e pelo público
menos letrado e erudito. A publicação diária em um mesmo espaço da página interfere na
montagem da fábula visto que esta é picotada, dada em capítulos mais ou menos com a
mesma extensão. Os folhetins deveriam ser atraentes e cativar o público para manter ou
aumentar a vendagem dos jornais. Nesse sentido precisam se estender no tempo,
prendendo a atenção da audiência. Isso se mantém, sobretudo, a partir do uso do suspense
e da repetição de situações estereotipadas que mantêm o interesse do leitor e promovem a
identificação.
Outro fator explicativo da publicação de romances que agradassem o público, com certeza,
vincula-se à questão material e de sobrevivência.
Aluísio Azevedo não detinha um
emprego público como a maioria de seus contemporâneos também escritores. Desse
modo, tinha que viver da literatura e isso era bastante difícil no Brasil, país que tinha quase
90% de anlfabetos no final do século XIX. Daí que a escritura de romances-folhetins
consecutivos também servisse para a sua subsistência. A vida frugal que levava com a
venda dos livros é atestada por Coelho Neto na obra A conquista em que as agruras e
penúrias por que passava Aluísio e outros escritores é relatada. A dependencia material
exclusivamente da pena literária era sofrível para eles. Esse lado comercial da publicação
aluisiana é também comentado por vários críticos. Exemplifica-se a seguir:
(...) Aluísio Azevedo elabora os seus romances em pouco mais de
um decênio, e elabora-os sobre a pressão da necessidade,
passando do folhetim romântico mais vadio aos livros em que
capricha na feitura e em que se realiza. Confessa, em documentos
íntimos, o drama de subsistência que o força a compor Mistérios da
Tijuca, quando desejaria escrever os grandes romances do tipo de O
cortiço, mas, quando encontra solução prática para o problema,
abandona a pena e, vivendo no estrangeiro, nem faz folhetins e nem
escreve literatura autêntica.
Aluísio é um exemplo, no naturalismo brasileiro, do escritor que
trabalha constrangido pela fórmula e que vacila entre o
desregramento romântico, a que se submete demasiado facilmente,
embora lamentando o fato, e o espartilho naturalista, que o deixa
peado, a que obedece a contragosto. Não poderia haver contenção
absoluta na obediência, daí a mistura de elementos românticos,
quando a vigilância afrouxa, e de elementos simpáticos ao autor,
quando os costumes aparecem e ele os faz desfilar. (SODRÉ, 1982.
p. 390)
166
Assim, interrompida em plena maturidade, entremeada de
romances fabricados tendo em vista apenas o lucro, a obra de
Aluísio Azevedo não realizou inteiramente a vocação de seu autor.
Em dezesseis anos de atividade literária produziu doze romances,
dez peças de teatro, que variaram do drama à revista, um volume de
contos, sem falar nas colaborações na imprensa. De tudo isso só
ficaram O Cortiço, O Mulato e Casa de Pensão, sendo que destes
apenas o primeiro é realmente um grande livro. Os outros, mesmo
aqueles que fez caprichadamente como O Homem, O Coruja,
Filomena Borges e O livro de uma sogra, são hoje, a bem dizer,
ilegíveis. Mas O Cortiço basta para lhe assegurar a posição de
primeiro plano na nossa literatura.( MIGUEL-PEREIRA, 1988, p.
142) (Grifos nossos)
Alfredo Bosi também vai de certo modo reforçar essa tradição crítica que divide a
obra de Aluísio Azevedo entre os folhetins mercadológicos e a obra séria. Desta elege O
cortiço como a melhor produção. Nas palavras de Alfredo Bosi:
Em Aluísio Azevedo a influência de Zola e Eça é palpável; e,
quando não se sente, é mau sinal: o romancista virou produtor de
folhetins. Aliás, trata-se de um caso raro e precoce de
profissionalização literária: Aluísio Azevedo - disse Valentim
Magalhães - é no Brasil talvez o único escritor que ganha o pão
exclusivamente à custa de sua pena, mas note-se que apenas
ganha o pão: as letras no Brasil ainda não dão para a manteiga. Essa
luta com a pena pelo pão certamente explica o desnível entre seus
romances sérios (O Mulato, Casa de Pensão, O Cortiço) e os
pastelões melodramáticos de „pura inspiração industrial”, no
dizer de José Veríssimo (Condessa Vésper, Girândola de Amores, a
Mortalha de Alzira...). E talvez à mesma causa se possa atribuir o
estranho abandono das letras que se lhe nota a partir dos quarenta
anos, quando entra para a carreira diplomática e se elege membro da
Academia recém-fundada. ( BOSI, 1984. p.210) (Grifos nossos)
Percebe-se nessas passagens a crítica em relação ao lado comercial da produção
aluisiana. Entretanto não concordamos com ela em sua totalidade uma vez que, ao
analisarmos as obras de modo detalhado e monograficamente, vimos que há aí uma
intenção pedagógica por parte do autor em fornecer ao público leitor uma narrativa
mais simples para cativá-lo e depois lhe ofertar obras mais complexas, alfabetizando-o
literariamente como já referido. Além disso, essas obras tem uma linguagem híbrida
entre o romantismo e o real-naturalismo, espelhando uma realidade social em embate
entre essas perspectivas culturais. Além disso, Aluísio está ciente de que o realnaturalismo é uma camisa de força e se embate contra ela. Em passagem na obra A
Mortalha de Alzira, Aluísio endereça uma crítica feroz aos naturalistas. Parece que sente
167
alívio em redigir narrativas em que a ordem e a lógica se rompem. O próprio Aluísio
Azevedo, em prefácio à obra A mortalha de Alzira, sob o pseudônimo de Vítor Leal,
critica severamente a narrativa real-naturalista cujo objetivo fizera parte de seu projeto
ilustrado. Na citação a seguir, nesse prefácio, Vítor Leal mantém, inicialmente, um
discurso educado e civilizado para o seu interlocutor: os naturalistas. Entretanto, no
desenvolvimento de sua crítica ao ideal impassível dos naturalistas, passa a insultá-lo por
intermédio de uma linguagem agressiva e extremamente satírica. O discurso realnaturalista é caricaturizado e desentronizado, sobretudo o seu caráter fatalista e
pessimista:
O romance, quando digno desse nome deve desenrolar diante de
nossos olhos sublimes quadros e edificantes exemplos de moral e
honra, e não cenas banais e ridículas da vida de todo dia, da vida
terra-a-terra que nenhum interesse pode despertar em quem quer
que seja, como também nenhum ensinamento pode trazer àqueles
que lêem com louvável fim de se instruir, formando e
desenvolvendo conjuntamente seu caráter. O romance deve, ao
mesmo tempo que deleitar o espírito, confortar o coração.
Foi isso que o entenderam os bons mestres da primeira e melhor
metade do século e é assim que eu igualmente o entendo.
(...) Vamos, senhores naturalistas, façam uma grande bagagem de
tudo quanto é brilhante, de tudo que é formoso e de tudo que é
balsâmico! Carreguem com o Sol que é a cor, carreguem com as
flores que são o perfume, carreguem com as aves que são a música;
carreguem com a mulher que é o amor e a vida. Vamos! Dispam-lhe
de toda a natureza! Rasguem-lhe os vestidos, furem-lhe os olhos.
Arranquem-lhe os cabelos! Vamos, senhores naturalistas, apaguem
as estrelas, mandem dar uma mão de piche sobre o azul do céu!
Corram a pontapés as rosas e as borboletas! Vamos, levem tudo isso
que é poesia e que não fique senão a podridão e o mal.
Querem fazer da terra um lameiro vil, nauseabundo? Pois, então,
que arranquem a alma e convertam-nos o coração, em máquina de
julgar e não de sentir.
(...) Se me acoimarem de visionário, direi que mais iludido é aquele
que supõe alcançar glórias pervertendo o gosto do público com as
repugnantes descrições de cenas escabrosas. (BROCA,1991.p.162)
Afora essas explicações, entendemos, baseados no contexto cultural oitocentista
brasileiro, que a publicação de tais obras também atendia a um propósito material. A obra
folhetinesca também responde a um propósito de sobrevivência material, fazendo com que
Aluísio Azevedo seja um dos primeiros escritores a viver da pena, contribuindo para que se
estabelecesse o mercado dos bens simbólicos na sociedade brasileira. Aluísio Azevedo tinha
um acurado senso das condições de produção cultural de sua época, pois sabia para quem
168
escrevia. A sua produção tinha uma audiência bastante concreta e o seu discurso se
formalizava em boa parte de acordo com o leitor, como pudemos averiguar pelos próprios
depoimentos do autor. Consta que Aluísio Azevedo também foi um bom publicitário de
sua obra, pois fazia, dentro dos limites dos meios promocionais de seu tempo, toda uma
campanha publicitária anterior ao lançamento de seus livros. Havia, portanto, uma
preocupação com a leitura e a venda dos livros que se efetivava em estratégias publicitárias.
A questão da sobrevivência material de Aluísio via literatura vai cessar quando,
finalmente o escritor consegue um cargo píublico que tanto almejara. A partir desse
momento, passa a exercer a profissão de vice-consul e daí por diante nada mais publica em
termos de discurso literário. Liberta-se das Letras e inclusive, atesta essa libertação como a
melhor solução para a sua vida. A passagem seguinte comprova essa despedida e também
contem precioso documento sobre a parca qualidade de nossa vida de leitores à medida que
informa qua a existência material via produção literária é um suplício e um sacrifício no
século XIX. Em confidência Coelho neto, queixa-se de ser escritor:
Dão-me as letras para viver mas eu é que sei como vivo! Digo-te apenas
que no dia – que aliás não espero – em que conseguisse alguma coisa que
me garantisse o teto e a mesa, deixava de mão pena, papel e tintas e tôdas
essas burundangas, que só têm servido para me incompatibilizar com o
clero, a nobreza e o povo. De letras eu estou até aqui. Os editôres
enriquecem como os fazendeiros de outrora: à custa dos escravos. O
Garnier, por exemplo, dizem-se que tem milhões e dá-me seiscentos mil
réis chorados pela edição de um romance. O meu ideal é um emprego
público, coisa aí como amanuense ou escriturário, com vencimentos
certos. (MAGALHÃES JÚNIOR, 1957)
Finalizamos com uma última passagem em que se revela um escritor amargurado
com as Letras que muito o ocuparam, mas pouco lhe deram. O excerto demonstra que
Aluísio era bem consciente sobre o contexto cultural e literário do Brasil oitocentista. Às
vésperas de embarcar para seu primeiro pôsto consultar, em Vigo, a 1º de janeiro de 1896,
escreve, por exemplo, dêste modo, a Eduardo Ribeiro, seu companheiro de lutas
jornalísticas no Maranhão:
(...) o demônio desta vida de escrevinhador fêz-me da tinta preta e
da folha branca os terríveis espectros do meu tormento; de sorte que
– escrever – tem sido até hoje aqui no Rio a minha grilheta, muito
pesada e pouco lucrativa, da qual livro pulsos e tornozelos sempre
que posso‖.
Da mesma data é este final de carta a outro amigo, Pedro Freire:
Recomenda a teus filhos que evitem a carreira das letras no Brasil –
é um aviso de amigo experimentado. (LIMA, 1960)
169
REFERÊNCIAS
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AZEVEDO, Aluisio.Girândola de amores. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d.
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de Antonio Candido.
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AZEVEDO, Aluisio.O livro de uma sogra. 12. ed. São Paulo: Livraria Martins Editora/
Brasília: INL, 1973.
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Técnicos e Científicos; São Paulo: Edusp, 1978.
BROCA, Brito. Naturalistas, parnasianos e decadistas: vida literária do realismo ao prémodernismo. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira (Movimentos decisivos). 6. ed. v.2.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1981.
GOMES, Eugenio. O hibridismo estético de Aluizio Azevedo. Correio da Manhã, Rio de
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LIMA, Herman. Alguns aspectos de Aluísio Azevedo. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 21
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170
LITERATURA, CIÊNCIA E TESTEMUNHO: NOTAS SOBRE A
HIBRIDEZ DISCURSIVA D‟OS SERTÕES, DE EUCLIDES DA
CUNHA, E DA OBRA EM PROSA DE RUY DUARTE DE
CARVALHO
Profa. Dra. Anita M. R. Moraes72
Resumo: Nesta comunicação pretendo traçar paralelos entre Os sertões (1902), de Euclides
da Cunha, e aspectos da produção em prosa do escritor e antropólogo angolano Ruy
Duarte de Carvalho. Pretendo lidar com passagens selecionadas de Como se o mundo não
tivesse leste (1977), da trilogia Os filhos de Próspero (2000-2009) e de Vou lá visitar pastores (1999).
Meu interesse será investigar o teor testemunhal da produção de ambos os autores,
distantes no tempo por cerca de um século. Tomarei, assim, como elemento de
comparação, o fato de ambos denunciarem crimes de máxima brutalidade: o extermínio de
populações ―resistentes‖ ao chamado ―progresso da civilização‖. No caso angolano, dos
povos nômades do sul de Angola, em particular os kuvale; no caso brasileiro, da população
de Canudos. Euclides da Cunha e Ruy Duarte de Carvalho testemunharam eventos de
extrema violência, e, para denunciá-los, desenvolveram um discurso híbrido, entrecruzando
o literário e científico. Será, contudo, o modo como diferem na elaboração desta hibridez
entre ciência e literatura que me interessará particularmente investigar.
Palavras-chave: civilização e barbárie; discurso ficcional e não-ficcional; ideologia do
progresso; literaturas de língua portuguesa.
Abstract: In this paper I intend to draw parallels between Os sertões [Rebellion in the
Backlands] (1902), by Euclides da Cunha, and aspects of the prose production of the
Angolan writer and anthropologist, Ruy Duarte de Carvalho. I intend to deal with selected
passages from Como se o mundo não tivesse leste [As if the World had no East] (1977), the
trilogy Os filhos de Próspero [Prospero‘s Sons] of (2000-2009) and Vou lá visitar pastores [I'm
Off to Visit Shepherds] (1999). My interest is to investigate the proportion of testimony in
the production of both authors, separated in time by about a century. I will also take, as a
point of comparison, the fact that both authors denounce crimes of the greatest brutality:
the extermination of populations "resistant" to the so-called "progress of civilization". In
the case of Angola, the nomadic peoples of southern Angola, in particular the Kuvale; in
the Brazilian case, the Canudos population. Euclides da Cunha and Ruy Duarte de
Carvalho witnessed events of extreme violence, and in order to denounce them, they
developed a hybrid discourse, interweaving the literary and the scientific. It is, however, the
manner in which they differ in the development of this hybrid between science and
literature that I am particularly interested in investigating.
Keywords: civilization and barbarism; fictional and non-fictional discourse; ideology of
progress; literatures in Portuguese.
72
Professora de Teoria
[email protected]
da
Literatura
na
Universidade
Federal Fluminense
(UFF)
E-mail:
171
1.
Em 2006 o escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho publicou Desmedida: crônicas do
Brasil, espécie de relato de viagem pelo Rio São Francisco. Trata-se de um livro curioso: à
narrativa da viagem articula-se o relato de leituras feitas pelo autor, produzindo-se uma
trama densa de discursos e representações sobre o sertão brasileiro. Dentre os textos
referidos por Ruy Duarte de Carvalho, encontra-se Os sertões, de Euclides da Cunha.
Destaco o seguinte comentário:
É assim que tudo me vem apoiar quando coloco Os sertões na tal categoria
de ‗certos livros‘ a que desde sempre venho aludindo quando me detenho
em modalidade de escrita. São livros desses, os tais certos livros.
Convocam tudo, vários saberes e várias vias de apreensão e expressão, de
que resulta um produto que responde simultaneamente à expectativa do
entendimento e da emoção. Para além, portanto, das
transdisciplinaridades. Um convocacionismo. Uma poligrafia, quer dizer,
uma escrita que actua em vários terrenos, e mesmo diversos. Uma
actuação da palavra não limitada por campos disciplinares nem por
delimitações institucionais. (...)
Em Os sertões, andei a ler, há um enorme lastro de erudição, há intuições
poderosas, fantasia e razão crítica, poesia e ciência, uma dialética entre o
descobrir e o encobrir, explicar e murmurar, elucidar e iludir, espaço dado
ao incomensurável, ao desmedido, ao irracional, ao horroroso, ao
esmagador, indizível, paradoxal. (...)
E é também um grande livro, insisto, pela volta que Euclides leva, em
Canudos. (CARVALHO, 2006; p.287-288).
A admiração pela obra de Euclides da Cunha revela uma espécie de identificação:
trata-se de um tipo de livro que aposta em cruzamentos discursivos como os que o próprio
autor angolano produz em sua escrita. Pretendo explorar aqui esta convergência de
projetos, sugerindo que tanto Os sertões como a produção em prosa de Ruy Duarte de
Carvalho (aqui não tratarei de sua poesia) cruzam fronteiras disciplinares e mesclam
diferentes tipos de discurso para lidar com desafio semelhante: testemunhar eventos de
violência perpetrados em nome do ―progresso da civilização‖. De certa maneira, para falar
do que se passa no sertão brasileiro e no deserto do Namibe, é preciso ―convocar tudo‖.
Já em ―As águas do Capembáua‖, conto que integra o volume Como se o mundo não
tivesse leste, de 1977, estamos diante de um texto literário de forte teor testemunhal: a política
colonial portuguesa afetando a organização social de pastores do sul de Angola, impedindo
a transumância (prática de nomadismo própria de atividade pastoril em equilíbrio com o
regime das secas e das chuvas do Namibe) e, com isso, produzindo precariedade e fome.
172
Ao estabelecer propriedades em território angolano, cercando-se terrenos para a criação de
ovelhas caracul, os portugueses e seus parceiros sulafricanos transtornam o manejo do
gado local, situação que se torna crítica em regime de seca. A descrição do fenômeno
climático ecoa passagens da primeira parte d‘Os sertões. Nas palavras do narradorpersonagem do conto:
A seca é um drama que ciclicamente se repete nas calcinadas vastidões
desses dilatados suis. (...)
Apartam-se os horizontes. Os montes ganham distância, mergulhados
numa espessa e nebulosa atmosfera, ofuscante em si mesma, opressiva de
brumas e poeiras. Dir-se-ia que o ar coalha em goma, poalha de cal,
fumaça de enxofre.
(...)
O sol: uma luz crua, distante, ardendo indefinidamente no céu limpo,
como se a sua regular jornada, o seu nascer e pôr-se, não dissesse respeito
à terra e aos homens, um sol sozinho, metido em si mesmo, esquecido da
companheira e dos filhos, vistos assim distantes como coisa alheia,
silhuetas negras na crosta crestada de um chão que é seco e se transmuda
em pó. (...) (CARVALHO, 2006; p. 29-30)
Tanto n‘Os sertões como no conto ―As águas do Capembáua‖, temos populações
que desenvolveram estratégias de sobrevivência em meio adverso. Curiosamente, é de seca
e manejo do gado que se trata nos dois casos. O narrador-personagem do conto angolano é
técnico agrícola que vai trabalhar na propriedade dos brancos, participando, portanto, do
programa colonial que deveria levar ―progresso‖ à região (trata-se, inclusive, de traço
autobiográfico, já que o autor foi regente agrícola na juventude, tendo trabalhado com
rebanhos de ovelhas em Angola e morado em Londres, como o narrador-personagem do
conto); Euclides da Cunha é repórter do Estado de São Paulo, tendo publicado antes de ir a
campo dois artigos em que argumentava ser Canudos ―A nossa Vendéia‖. O narradorpersonagem de ―As águas do Capembáua‖ descobre, contudo, que as cercas da fazenda
teriam afetado as populações pastoris de forma perversa, conduzindo-as à fome; Euclides
da Cunha levará ―uma volta‖, como diz Ruy Duarte de Carvalho, ao testemunhar o
contraste entre a coragem do sertanejo e a brutalidade dos soldados (lembremos da
pavorosa prática da degola testemunhada por Euclides).
Será somente aos poucos, e em decorrência de uma série de coincidências, que o
narrador-personagem do conto de Ruy Duarte de Carvalho poderá conhecer os eventos
que se sucederam na fazenda antes de sua chegada. O conto resvala para o policial,
estratégia que será retomada pelo escritor na trilogia Os filhos de Próspero. Penso que o traço
detetivesco das ficções deste escritor angolano está associado a uma meta específica:
173
representar o modo como os pastores, com o auxílio de seus adivinhos (os kimbandas),
estabelecem relações entre eventos. No caso do conto em questão, os pastores investigam
as causas para a seca. A seca, claro sinal de descontentamento dos antepassados segundo os
kimbandas consultados, teria como causa a mudança da onganda (local sagrado) para a
criação da tal fazenda dos brancos. Penso que o andamento policial permite interessante
efeito: o leitor se engaja em atitude de desvendamento paulatino de causas secretas,
semelhante ao que se passa com os pastores empenhados na prática da decifração.
Estamos, certamente, no domínio da ficção. E se trata de recorrer à ficção para representar
uma racionalidade ―outra‖, que entende o mundo como pleno de significados a serem
desvendados. Como virá a sugerir o autor em Vou lá visitar pastores: ―Navegamos em pleno
na glória do pensamento analógico, recurso patrimonial de artistas e pastores.‖
(CARVALHO, 1999; p. 353)
O conto ―As águas do Capembáua‖ parece-me conter em gérmen a obra futura do
autor – penso especialmente em Vou lá visitar pastores e na trilogia Os filhos de Próspero.
Atravessa também essa produção posterior a denúncia de crimes cometidos contra os
povos pastores que habitam território angolano: repetidos massacres, desde o século XIX,
culminando na guerra de extermínio dos kuvale em 1940-1941, são referidos. Esta guerra é
mencionada repetidamente. Vejamos uma passagem:
A guerra dos Mucubais, para os Portugueses, terá sido o remate de um
processo de eliminação de um obstáculo à sua plena soberania e a um
arbítrio que remontava às primeiras questões e ações de razia e contrarazia, sensivelmente a meados do século passado [XIX], portanto. Para os
Kuvale ela revelou-se uma razia final contra eles desencadeada, já que 95%
do gado que detinham lhes foi extorquido, e sobretudo, talvez, uma rusga
despropositadamente devastadora. Foi uma guerra que arrancou tudo,
gado e gente, e por isso é referida como a guerra de Kakombola: kakombola é
arrancar uma coisa, arrancar tudo, não deixar nada. Morreu muita pessoa.
Aqueles que iam sendo agarrados eram depois conduzidos presos, aquele
que estava cansado era morto, aquele que não andava depressa era morto também. Às
mulheres, matavam só as que não queriam dormir com eles. (CARVALHO, 1999;
p. 79)
Ao final dessa citação, em itálico, surge voz de testemunha do massacre, ouvida por
Ruy Duarte de Carvalho. Minha sugestão é que, para lidar com este evento e,
especialmente, para tratar da resistência kuvale, Ruy Duarte de Carvalho entrecruza
modalidades discursivas, atravessando as fronteiras entre literatura e ciência.
Destaco que na obra de Ruy Duarte de Carvalho ganha destaque a resistência
kuvale: tanto em Vou lá visitar pastores como na trilogia Os filhos de Próspero, trata-se de
testemunhar a resistência e a reconstrução da sociedade kuvale. O brutal massacre não foi
174
testemunhado diretamente pelo autor, que registra os relatos dos mais velhos e se empenha
em pesquisa documental para produzir o seu próprio relato. O testemunho do autor,
contudo, é da assombrosa capacidade de reorganização dessa sociedade pastoril: após a
guerra de extermínio, os prisioneiros levados para as fazendas de São Tomé foram, aos
poucos, regressando e recuperando seu rebanho. Surpreendentemente, o presente kuvale é
resultado desse esforço bem sucedido de recuperação. Certamente, as pressões
permanecem, não sendo possível prever a capacidade de resistência dessa sociedade diante
de futuras investidas para exploração econômica de seu território. Certa caracterização
negativa, estereotipada, vigente no cenário nacional angolano certamente aponta para
resquícios da hostilidade que caracterizava a atitude colonial. As atribuições de atraso,
primitivismo, imoralidade (roubo e abuso de bebida), seriam, segundo o autor, as mais
recorrentes (CARVALHO, 1999; p. 298). O perigo apontado é, hoje como ontem, a
expansão do modo de vida ocidental (e da economia capitalista, portanto), cuja ideologia
permanece sendo a do ―progresso da civilização‖. Vejamos:
O Mwatyipula é, nos tempos que correm, um homem próspero que para
tal tem que atuar de acordo com a gramática que lhe garante precisamente
essa prosperidade, seja ela aplicada à gestão dos recursos naturais, à dos
bois à do seu lugar nas grelhas institucionais ou as relações com o
impalpável. Uma prosperidade, aliás, que se processa à margem do
progresso e das ideologias do crescimento que o pregam. Progresso e
prosperidade não são sinônimos, e também a isso nós, observadores,
somos chamados a estar atentos se queremos preservar alguma lucidez e
não nos reconhecermos palermamente condicionados pela atitude
etnocêntrica que a educação, a ideologia e a cultura tudo fizeram para nos
inculcar. (CARVALHO, 1999; p. 298)
Dos livros de Ruy Duarte de Carvalho aqui referidos, Vou lá visitar pastores (1999) é
o que mais se assemelha a Os sertões. Trata-se de um ensaio etnográfico da sociedade kuvale,
ensaio que antecede a trilogia Os filhos de Próspero. Apesar de ter elementos que podem ser
tidos como ficcionais (como o recurso a um interlocutor, Felipe), o empenho em situar o
interlocutor/leitor no ―presente kuvale‖ mantém certa similaridade com o empenho de
Euclides da Cunha: revelar ao Brasil o sertanejo. Como sabemos, o sertanejo fora vítima
dos equívocos da ―ideologia do progresso‖. Este é justamente o crime testemunhado pelo
autor: em nome da civilização, a regência da barbárie – o massacre da população de
Canudos. Também Euclides da Cunha enfatiza a assombrosa capacidade de resistência do
sertanejo, como sabemos. Penso, contudo, que as diferenças entre as obras são mais
importantes: em Vou lá visitar pastores, as ideias de nação e de progresso são objeto de clara
e contundente crítica; no caso d‘Os sertões, de engenhosa reformulação, mantendo-se
vigorosas.
175
2.
A interpretação de Luiz Costa Lima d‘Os sertões, desenvolvida em Terra Ignota, sugere
uma tensão subjacente à escrita desta obra, tensão devedora de uma aposta absoluta na
ciência por parte de Euclides da Cunha, aposta que produziria uma hierarquização interna
dos tipos de discurso – científico e literário – em termos de tema e ornato, centro e
margem, estando, o literário, relegado à condição de ornato/margem. Contudo, como
argumenta o estudioso, a resistência do objeto à investida científica (a própria ―terra
ignota‖ torna-se figura deste objeto resistente) por vezes conduz o texto a um
funcionamento diverso, em que a hierarquia pretendida é subvertida. Nesses casos, produzme um discurso outro, em que o literário passa a funcionar autonomamente, não se
submetendo à condição ilustrativa (de ornato). Forma-se, então, o que Costa Lima chama
de ―subcena‖. Miriam Gárate apresenta a proposição de Costa Lima da seguinte maneira:
Segundo Costa Lima, Euclides da Cunha teria se esforçado em combinar a
expressão científica com a expressão literária dispondo ambos os registros
em diferentes lugares, de modo a configurar uma hierarquia específica no
interior da obra. O exame pormenorizado dessa hierarquia leva o crítico a
desenvolver uma série de oposições organizadas em duplas: tema-ornato,
centro-margem ou borda e, em linhas gerias, a camada poética assume o
lugar do ornamento, da margem, da borda, enquanto que o discurso
científico é tema, centro, cena. (...) Mas haveria certas zonas do livro em
que essa economia da escrita é extravasada, gerando o que o autor
denomina de subcena – em outras palavras, gerando um ‗texto sem
disposição discursiva‘, insubmisso à hierarquia mencionada e
implicitamente questionador da mesma, espécie de ‗terceiro modo de
expressão, não integrado nem ao descritivismo científico, nem à fantasia
do literato‘ (Terra ignota, p. 172). (GÁRATE, 2001; p. 115-116)
Costa Lima entende que há imagens no texto euclidiano que extrapolam o objetivo
da descrição, produzindo-se ―massas imagéticas‖ que passam a funcionar por conta
própria. Sugiro que a resistência do objeto – o próprio massacre – pressiona o discurso
euclidiano; ou seja: é seu teor testemunhal que reorganiza o discurso de maneira imprevista,
produzindo-se esse regime de excessos que seria a ―subcena‖. Afinal, é o massacre que,
pavoroso, se insinua: as plantas chamadas cabeças-de-frade anunciam e ecoam os corpos
dos massacrados (CUNHA, 1979; p. 40)73; a terra em que a vida ainda se preparava
―Aparecem, de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no tamanho, na conformidade, no
modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo,
numa desordem trágica.‖ (CUNHA, 1979; p. 40)
73
176
(CUNHA, 1979; p. 23)74 assemelha-se à nova raça que surgia. Para Costa Lima,
―verificando-se o estágio quanto à vida em que se encontrava a própria terra, alarga-se
imageticamente o caráter de denúncia. Destruiu-se o que, permanecendo isolado, em um
estado de incubadeira, podia ser líquen e homem.‖ (COSTA LIMA, 1997; p. 172)
A leitura costalimiana é arguta ao evidenciar um problema, que seria próprio da
intelectualidade brasileira como um todo (devedora, segundo o autor, do gesto euclidiano):
a esquivança da reflexão teórica, da discussão sobre os próprios pressupostos de que parte.
Para Costa Lima, a tensão do texto euclidiano decorre da recusa a se colocar em questão a
própria teoria científica de que o autor partia. Nas palavras de Luiz Costa Lima:
A subcena era elemento de desvio que possibilitava ao autor não ser...
mero copista. Mas é exatamente isso que sua concepção de ciência quer
que ele seja. Acentue-se pois a tensão que atravessa Os sertões. Sua
importância não está em recuperar Euclides para a literatura mas sim em
mostrar um traço que ele próprio não consegue domar. Indomável, esse
traço é extremamente minoritário. Pois devemos admitir: Euclides termina
por soterrá-lo. Seria ele ao invés estimulado caso pudesse haver-se
conectado às dúvidas e impasses plantados na cena textual. Mas, em vez de
enfrentá-los, Euclides deles se desvia. (COSTA LIMA, 1997; p. 187)
Mantendo a ciência como discurso totalizante e absoluto, Euclides não se permite
questionar as premissas evolucionistas e racialistas com que lidava, premissas que se
mantêm operantes n‘Os sertões apesar de não permitirem a compreensão do massacre – pois
que, se mantidos os pressupostos rácico-evolucionistas, o massacre surge como evento
―catalizador‖ de inevitável ―evolução‖ das sociedades humanas. Euclides, ao invés de
colocar a teoria em questão, adapta-a: os mestiços sertanejos seriam retrógrados; os
mestiços proteiformes do litoral, degenerados. A explicação rácico-evolucionista se
mantém e o crime ganha alcance novo: o massacre dos sertanejos de Canudos foi o
assassinato de uma nova raça que surgia, de uma sub-raça que formaria a nacionalidade
brasileira, por parte de mestiços, estes sim, degenerados. Com esta engenhosa inversão dos
polos (pois que, mesmo que retrógrado, o sertanejo, por ter se mantido isolado no interior,
protegido de novas mestiçagens, seria já um tipo humano mais equilibrado que os mestiços
litorâneos), a ciência se mantém ilesa; mas há consequências: Euclides da Cunha recorre ao
mito, inventa um mito de origem (fracassada) da nacionalidade, que no âmbito da armação
discursiva, faz do literário mais que ornato.
Entendo que a tensão notada por Costa Lima no texto euclidiano não se apresenta
na escrita de Ruy Duarte de Carvalho. Aproximadamente um século separa a produção de
―Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se para a vida: o líquen ainda ataca a pedra,
fecundando a terra. E lutando tenazmente com o flagelar do clima, uma flora de resistência rara ali entretece a
trama das raízes (...).‖ (CUNHA, 1979; p. 23)
74
177
cada um dos autores, século em que a teoria antropológica não apenas abandonou os
pressupostos biológicos com que Euclides operava, como se tornou autorreflexiva. A
autorreflexividade da antropologia, que se radicaliza a partir de Clifford Geertz – com A
interpretação das culturas (1973) – e ganha formulação pós-moderna com James Clifford – de
que se destaca Writing Culture: the Poetics and Politics of Ethnography (1986), certamente cria um
ambiente propício para articulações não-hierárquicas entre literatura e ciência, em que a
própria ciência se apresente como construto, tendo dimensão textual, espessura e limites.
Não será construindo uma hierarquia entre os domínios discursivos que a escrita de Ruy
Duarte de Carvalho articulará ciência e literatura, ao contrário. O literário não surge como
ilustração do científico, mas como recurso para colocar a ciência em evidência: constroemse personagens, tramas, que contextualizam o conhecimento científico, colocando em cena
os agentes de construção deste conhecimento – que se faz, então, necessariamente parcial,
marcado pela experiência de um sujeito individual, limitado. Além disso, via ficção
exploram-se outras formas de pensamento, como o analógico (o mundo pleno de
significados dos pastores ressurge, como vimos, no traço policial dos enredos de ―As águas
do Capembáua‖ e dos romances que compõem a trilogia Os filhos de Próspero). Não me
parece, nesse sentido, haver tensão na escrita de Ruy Duarte de Carvalho, mas sim trânsito
e costuras entre os domínios discursivos, que permitem a revisão de suas próprias
fronteiras.
A leitura de Terra Ignota permite, assim, que se destaquem diferenças entre a escrita
de Euclides da Cunha e a de Ruy Duarte de Carvalho. Podemos pensar que o que seria
minoritário e recalcado n‘Os sertões, o pensamento especulativo, ganha espaço, esparramase, na obra de Ruy Duarte de Carvalho (em especial em As paisagens propícias e A terceira
metade). No entanto, a pressão do inapreensível – o próprio massacre de Canudos – daquilo
que não se podia apreender pelos regimes de verdade/discurso então vigentes, produzira a
subcena. Penso que Ruy Duarte de Carvalho está atento para esse comportamento
imprevisto do discurso euclidiano, notando-o em termos de excesso, de desmedida. Em
sua própria escrita, é nele que aposta.
REFERÊNCIAS:
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(Primeiro volume da trilogia Os filhos de Próspero)
_________. Vou lá visitar pastores. Lisboa: Cotovia, 1999.
178
_________. Como se o mundo não tivesse Leste. Lisboa: Cotovia, 2003.
_________. As paisagens propícias. Lisboa: Cotovia, 2005. (Segundo volume da trilogia Os
filhos de Próspero)
_________. Desmedida: crônicas do Brasil. Lisboa: Cotovia, 2006.
_________. A terceira metade. Lisboa: Cotovia, 2009. (Terceiro volume da trilogia Os filhos de
Próspero)
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de
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COSTA LIMA, Luiz. Terra Ignota. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
GÁRATE, Miriam Viviana. Civilização e barbárie n’Os sertões. Campinas: Mercado de
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro : LTC, 1989.
179
SENHOR DA LUZ: A LIBERTAÇÃO DECORRENTE DO CONHECIMENTO
Antônio Adailton Silva75
Resumo: O objetivo do artigo é interpretar uma obra da banda inglesa Iron Maiden, Lord
of light. A tradução literal de ―Lord of light‖ é ―Senhor da Luz‖. E ―Senhor da Luz‖ guarda
o sentido atribuído a Lúcifer, cujo significado é ―portador da luz‖. Trata-se do discurso de
um eu-lírico refletindo sobre as relações entre a humanidade e seus atos receosos ou
destrutivos, devido a sua ignorância, permeada pela fé. Interpreta-se a luz como aquilo que
possibilita conhecer, sendo extensão de refletir. Assim, a ignorância pode ser superada, e os
homens podem buscar explicações não metafísicas para fenômenos diversos. Contudo, há
instâncias que se esforçam para terem a primazia de dizer o que deve ou não ser estudado e
conhecido pelos demais. Bastante metafórico, o texto dá indícios de que a criação de entes
malignos sobrenaturais pode servir para justificar maldades, tradição típica da religião cristã.
Transferir a própria culpa para tais seres, que dependem somente da fé, dá àqueles que
cometem atos cruéis a tranquilidade de serem perdoados nos casos em que se arrependam.
Lúcifer, na obra examinada, ao invés de ser entendido como um ente a ser evitado por ter
se desviado do caminho, simboliza o guia humano capaz de lançar luzes sobre o mundo.
Ele ilumina e permite ver o escondido, dando poder ao homem através do conhecimento,
libertando-o da ignorância a que está submetido por não ousar contra aqueles que se dizem
representantes de Deus na terra.
Palavras-chave: Lúcifer; Luz; Conhecimento.
Abstract: The objective of this paper is interpreting a work of the English band Iron
Maiden, Lord of light. The literal translation of ―Lord of light‖ into Portuguese is ―Senhor da
luz‖. ―Lord of light‖ keeps the meaning given to Lucifer, whose meaning is ―The lightbringer‖. It is the discourse of self-lyrical reflecting on the humanity relationships and his
acts fearful or destructive, due to their ignorance, permeated by faith. The light is
interpreted as something that enables to acquire knowledge, being a extension to reflect.
Thus, the condition of ignorance can be overcome, and men can seek non metaphysical
explanations for various phenomena. However, there are instances that effort to have the
primacy to say what should or should not be studied and known by others. Quite
metaphorical, the text hints that the creation of evil supernatural entities can serve to justify
committed evil, typical tradition of the Christian religion. Transferring own fault for such
beings, which depend only on the faith, gives those who commit cruel acts the tranquility
of being forgiven when they repent. Lucifer, in the present work, rather than being
understood as a being that should be avoided for strayed from the path, symbolizes the
human guide able to shed light on the different objects in the world instead. He enlightens
and enables anyone to see the hidden, empowering man through knowledge, freeing him of
ignorance he is submitted due not to dare against the ones who call themselves God
representatives on earth.
Keywords: Lucifer; Light; Knowledge.
1. Introdução
Mestre em Ensino de Língua e Literatura na Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail:
[email protected].
75
180
No texto analisado, Lord of light, os autores empregaram a palavra ―luz‖ com os
significados de conhecimento e de vida, dois elementos positivos. Para fazer a sua
abordagem, contudo, introduziram a figura do diabo, vista como o que há de mais negativo
dentro da cultura cristã. Ele é tomado na obra como sendo o fator determinante para o
alcance do conhecimento e o usufruto de uma vida vivida com sabedoria.
A figura central do poema é Lúcifer. Ele oferece ao seu enunciatário a verdade
através de revelações. Ao se pronunciar, ele afirma a existência de um ―plano estranho‖.
Tanto Lúcifer quanto a humanidade não seriam mais do que parte desse plano, objetos e
não sujeitos. Buscando o sentido mais amplo da obra, infere-se aqui que parte da
humanidade, por ter se rendido a esse plano, o que equivale a seguir intransigentemente os
preceitos bíblicos, nega-se a ver tudo o que há fora do projeto original (Bíblia). E por isso
não consegue viver a vida plenamente, com sabedoria, mesmo com o exemplo dado pelo
próprio Lúcifer, que optou pela autonomia, ―afastou-se do caminho‖. A punição por sua
ousadia é usada como exemplo ameaçador contra a humanidade. ―Causar medo‖, diz
Muchembled (2001, p. 32), era ―uma obsessão diabólica em fins da Idade Média‖. Uma
forma de desencorajar o abandono do ―plano‖. Possivelmente, a maior metáfora do poema
é a importância de se libertar por meio da inquietude, da dúvida, da ousadia, do
conhecimento, da razão, da sabedoria, para viver a vida mais plenamente. Dar a vida ao
Senhor da luz, como sugere a letra da canção, pode ser uma metáfora que representa esta
ideia de busca da própria liberdade.
A análise do texto é interpretativa. O desenvolvimento do artigo é dividido em três
partes principais. Inicia com uma discussão sobre a terminologia que envolve o ser
considerado a fonte de todo mal, inimigo de Deus e tentador do homem. Coloca-se em
questão a equivalência de sentidos entre os nomes Lúcifer e Satanás. Este é citado na
Bíblia, aquele não. A sua equivalência de sentido, portanto, precisaria ser esclarecida para
que o poema analisado pudesse ser interpretado a contento.
A seguir é discutida a questão que se coloca entre medo e liberdade, tema
recorrente no poema. No que diz respeito ao plano referido (―plano estranho‖), o homem
deve cumpri-lo a contento, no sentido de se manter unido àquele que elaborou o projeto.
Trata-se da noção de pecado e arrependimento, o que na obra recebe tratamento de
transferência (―todos os nossos pecados atribuímos a você‖). Lúcifer, por ser considerado
o inspirador de todo mal, é o ser a quem se atribuem os pecados humanos.
A parte final da discussão é a interpretação do poema. Trata-se da interpretação de
um objeto estético, da parte literária de uma canção. Apesar de seus autores terem
181
escolhido como metáfora a Bíblia e diversos de seus elementos, a letra da canção apenas
chama a atenção para o fato de que o homem é o único responsável pelos problemas que
ele próprio enfrenta. E que a alternativa mais viável para superar seus conflitos e
dificuldades é assumir sua ignorância e libertar-se dela.
2. A questão da (in)equivalência entre Lúcifer e Satanás
Lúcifer é uma palavra que remete, inevitavelmente, à religião cristã, cujos preceitos
estão contidos no livro denominado ―Bíblia Sagrada‖. Os seguidores dessa religião
defendem a existência de um Deus único, criador do universo, eterno, onipotente e
onipresente, chamado também de ―Pai‖, ―Senhor‖ ou simplesmente de ―Criador‖. O livro
deixa evidente ainda a existência de uma entidade não pertencente ao mundo físico, mas
capaz de influenciar o homem, criado por Deus à sua imagem.
Tal entidade teria sofrido uma consequência conhecida como ―queda‖. Luther Link
afirma ser controversa a sua causa: ―Mas quem é exatamente expulso? E por quê?
Diferentes pessoas em diferentes épocas dão respostas diferentes‖ (LINK, 1998, p. 172).
Seja por orgulho ou por tentativa de ―estabelecer seu próprio reino independente‖, no final
foi ―expulso por seu superior enraivecido‖ (LINK, 1998, p. 175). Caiu juntamente com
diversos outros anjos que partilhavam de suas ideias.
Trata-se de Satanás, descrito na Bíblia como uma antítese de Deus, capaz de
inspirar ações danosas, por meio de tentações. Ao fraquejar e cometer atos contra as leis de
Deus, o homem comete o que se denomina de pecado. São célebres duas tentações
relatadas na Bíblia. A de Jó, homem muito rico, íntegro, reto e temente a Deus. Vítima de
uma espécie de aposta entre Deus e Satanás (Jó 1:12. ―Pois bem!, respondeu o Senhor.
Tudo o que ele [Jó] tem está em teu poder; mas não estendas a tua mão contra a sua
pessoa‖), ele resistiu às mais duras investidas, como a perda de suas terras e posses (Jó
1:14-17), doença grave (Jó 2:7 ―lepra maligna‖) e até mesmo a morte dos próprios filhos (Jó
1:18,19).
A outra foi a de Jesus, filho de Deus. Conforme o Evangelho de Mateus (Mateus
3:1) e o de João (5:17 a 5:27), Jesus foi tentado por Satanás no episódio conhecido como
―Tentação de Cristo‖. O Evangelho de Mateus (Mateus 4:10) relata que Jesus respondeu
―para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás‖
(BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA, 2013, p. 915).
182
A palavra ―Lúcifer‖ não aparece em Bíblias traduzidas para línguas vernáculas.
Satan, segundo Link (1998), é uma palavra hebraica e significa ―adversário‖; e nos
Evangelhos de Lucas e Mateus, o diabo é chamado Diabolus, que foi traduzida para o Latim
como Diabolos. Sua origem é grega e significa ―acusador‖, ―difamador‖ (LINK, 1998). E,
segundo esse autor, ―Diabo‖ também é designado por dáimon em grego, ou demônio, e
assim é referido em Apocalipse 12:9. Logo, apesar das diferentes circunstâncias em que tais
denominações surgiram, tornaram-se equivalentes. Mas e quanto a Lúcifer? Se tal nome
não consta no livro que contém toda a doutrina da religião cristã, tal associação,
aparentemente, seria, no mínimo, absurda ou indevida. Tal fenômeno merece
esclarecimento.
―Bíblia‖ é uma palavra de origem grega. ―A Europa Medieval‖, diz Burgess (1996,
p. 52), ―conhecia a Bíblia em latim‖. A versão do seu texto em latim é a mais clássica, e
teria sido fruto do trabalho de São Jerônimo (347 dC – 420 dC), tradutor dos textos
originais, escritos em aramaico, grego e hebraico. Segundo Maria Esther Maciel (2001, p.
55), ―[...] o nome Lúcifer, usado para identificar o anjo satânico da luz, foi uma contribuição
de São Jerônimo para o léxico religioso, aparecendo, pela primeira vez, nessa acepção, na
Vulgata, como substitutivo da expressão grega ‗Phosphorus’, presente na Septuaginta‖.
Durante muitos anos não houve Bíblia escrita em outra língua, sendo, por isso, acessível
apenas aos que denominavam o seu código escrito, especialmente os membros da Igreja
Católica.
Houve muitas iniciativas para traduzir a Bíblia: a de John Wyclif, por volta de 1380;
a revisão por John Purvey da tradução de Wyclif, por volta de 1395; a de William Tyndale,
em 1525 (tradução do Velho Testamento do grego para o inglês) e em 1535 (tradução do
Velho Testamento do hebraico para o inglês); a tradução autorizada pelo rei Jaime I (King
James), da Inglaterra, por 47 eruditos por ele designados, de 1604 a 1611 (BURGESS,
1996); e Lutero, que traduziu o Novo Testamento para o alemão em 1521. Em 1532 faz o
mesmo com o Velho Testamento (HENRY THOMAS, 1982).
Link (1998, p. 28) também assegura que ―Lúcifer – como o nome do diabo – não
está nas escrituras. Lúcifer, na verdade, não é nome de ninguém: significa apenas ‗o que
leva a luz‘‖. O nome Lúcifer não é mais do que o resultado de um processo de derivação de
palavras que, em Latim, são grafadas como ―lux‖ ou ―lucis‖, ambas relacionadas à luz.
Em Isaías 14:12, há o seguinte registro: ―quomodo cecidisti de caelo lucifer qui
mane oriebaris corruisti in terram qui vulnerabas gentes‖ (THE BIBLE LATIN
VULGATE, 2013, grifos meus). Sua versão na Católica diz: ―Então! Caíste dos céus, astro
183
brilhante, filho da aurora! Então! Foste abatido por terra, tu que prostravas as nações!‖
(BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA, 2013, p. 703, grifos meus).
Entretanto, há um grave engano na interpretação como tentativa de atribuir o nome
―Lucifer‖, mencionado no Livro de Isaías, a Satanás. Naquele versículo a referência feita é
ao rei da Babilônia, o que pode ser verificado em dois outros versículos do mesmo
capítulo: ―3. Quando o Senhor te tiver aliviado de tuas penas, de teus tormentos e da dura
servidão a que estiveste sujeito, 4. cantarás esta sátira contra o rei de Babilônia, e dirás:
Como? Não existe mais o tirano! Acabou-se a tormenta!‖ (BÍBLIA SAGRADA
CATÓLICA, 2013, p. 703, grifos meus).
O nome Lúcifer, portanto, é o fruto de uma construção humana decorrente de uma
tradução da Bíblia para o Latim vulgar. Seu significado mais próximo em português é ―o
que leva a luz‖. Não há qualquer incidência sua na Bíblia traduzida para línguas vernáculas,
e mesmo assim passou a ser equivalente de Satanás. Mais do que um simples nome, ganhou
status de um personagem que, mesmo não sendo bíblico, passou a ocupar um lugar cada
vez maior e mais significativo especialmente nas sociedades ocidentais, onde o cristianismo
predomina como religião.
3. Tentação, pecado, culpa, medo, arrependimento e absolvição: transferência
Lúcifer é referido como o oponente de Deus. Ousou contra o seu criador, foi
punido com a expulsão do paraíso celestial, e agora é visto como a origem de todo mal. Por
essa ótica, o ser humano tende a ser bom. Quando comete algum mal, o faz por ter sido
tentado e não ter resistido, uma vez que lhe cabe a opção de não aceitar as propostas de
Satanás, a exemplo do que fez Jesus no deserto.
Resta, contudo, ao homem, a opção do arrependimento, uma forma bastante
conveniente e atraente de apagar da própria história os episódios de males cometidos por si
e obter o perdão de Deus. Gregório de Matos (1992) abordou esse tema em um de seus
poemas:
AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido,
184
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:
Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada;
Cobrai-me; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
Irônico, o poema delata um comportamento hipócrita e oportunista de um eu-lírico
que, conhecedor da Bíblia (―Sacra História‖) e do jogo de conveniência entre pecar e ser
perdoado em caso de arrependimento, mostra que, do modo como são difundidas essas
noções pela religião cristã, pode-se depreender que Deus (―Pastor Divino‖) apenas
participa de um jogo no qual é controlado pelo homem (―vossa ovelha‖). Deus, nesse caso,
é manipulado pelo homem, que pode acioná-lo através do arrependimento (―um só
gemido‖), independentemente da natureza do pecado (ou crime) cometido.
Pullella (2013), em matéria para o site Brasil 247, relatou o seguinte discurso do
Papa Francesco, em 17 de março de 2013: "O Senhor nunca se cansa de perdoar, nunca!
Nós é que nos cansamos de pedir perdão" e "Vamos pedir a graça de nunca cansar de pedir
perdão, porque ele nunca se cansa de perdoar". Esse discurso corrobora a ideia de que
Deus se empenha em perdoar, por mais que se peque, como disse o eu-lírico de Gregório
de Matos. O poeta, de certa forma, não foi tão irônico.
Eis o que a própria Bíblia relata, em Atos dos Apóstolos 3:17-19:
17. Agora, irmãos, sei que o fizestes por ignorância, como também os
vossos chefes.
18. Deus, porém, assim cumpriu o que já antes anunciara pela boca de
todos os profetas: que o seu Cristo devia padecer.
19. Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos para serem apagados
os vossos pecados (BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA, 2013, p. 1023,
grifos meus).
Matos apenas interpretou a Bíblia e poetizou tal interpretação: está à disposição do
homem pecar, arrepender-se e alcançar o perdão divino. O poema torna-se profano ao
atribuir a Deus enorme sentimento de prazer (―Glória e tal prazer‖) em perdoar grandes
pecadores, dada a afirmação de que o empenho de Deus cresce na medida em que é maior
a delinquência do pecador. Um gemido é suficiente para abrandar a ira do Senhor,
denotando o caráter da submissão de Deus às regras que Ele mesmo criou. Há em Lucas
15:4-7 uma construção com sentido semelhante ao posto pelo poeta:
4. Quem de vós que, tendo cem ovelhas e perdendo uma delas, não
deixa as noventa e nove no deserto e vai em busca da que se perdeu, até
encontrá-la?
5. E depois de encontrá-la, a põe nos ombros, cheio de júbilo,
185
6. e, voltando para casa, reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes:
Regozijai-vos comigo, achei a minha ovelha que se havia perdido.
7. Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por um só pecador
que fizer penitência do que por noventa e nove justos que não
necessitam de arrependimento (BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA,
2013, p. 1166, grifos meus).
Célebre também é o episódio da Bíblia Sagrada Católica (2013, p. 919), em Mateus
8:28-32:
28. No outro lado do lago, na terra dos gadarenos, dois possessos de
demônios saíram de um cemitério e vieram-lhe ao encontro. Eram
tão furiosos que pessoa alguma ousava passar por ali.
29. Eis que se puseram a gritar: Que tens a ver conosco, Filho de Deus?
Vieste aqui para nos atormentar antes do tempo?
30. Havia, não longe dali, uma grande manada de porcos que pastava.
31. Os demônios imploraram a Jesus: Se nos expulsas, envia-nos para
aquela manada de porcos.
32. Ide, disse-lhes. Eles saíram e entraram nos porcos. Nesse instante
toda a manada se precipitou pelo declive escarpado para o lago, e morreu
nas águas.
Envolvido nesta tensão da batalha entre Deus e seu opositor, o homem vive o
conflito de ter que atender a um e resistir ao outro. Na história em que predominou a
hegemonia da Igreja Católica, e mesmo onde os puritanos dominaram, não foram poucas
as atrocidades cometidas contra pessoas acusadas de seguir do diabo. Convictos de serem
representantes de Deus, julgaram e mataram. Levar a sério a suposta ligação com o diabo
pode ter fundamentação na Bíblia. Mas não se pode transferir demônios para porcos, o que
determinava a morte de inocentes. Tal procedimento foi um artifício perfeito para calar
vozes contrárias à Igreja. Podem ter ocorrido também por ignorância e medo. Viver assim
assemelha-se a um aprisionamento. Sem liberdade para ir além do texto sagrado, das
interpretações pelos ―representantes de Deus‖, não se vê que o homem comete maldades,
mas não por inspiração de um ser sobrenatural. Transferir culpas em nada contribui para se
aprimorar a si mesmo.
4. Senhor da luz: um inspirador anjo que escolheu o próprio caminho
A canção Lord of light (SMITH; HARRIS; DICKINSON, 2006) é a nona faixa do
álbum A matter of life and death, lançado pela banda inglesa Iron Maiden em 28 de agosto de
2006 (IRON MAIDEN, 2013). A faixa tem duração de 07 minutos e 23 segundos. A letra
possui 37 versos distribuídos em sete estrofes, sem contar as repetições. A tradução a
seguir, realizada pelo próprio autor do presente artigo, foi feita buscando a melhor
186
equivalência de sentidos entre o idioma inglês e o português. Os versos foram numerados.
Optou-se por não repetir o refrão (versos 21 a 24).
SENHOR DA LUZ
[01] Há segredos que você guarda
[02] Há segredos que você guarda
[03] Há segredos que você conta para mim [quando está] sozinho
[04] Eu não posso alcançar coisas que eu não posso ver
[05] Você não vê esse mundo estranho do mesmo modo que eu vejo
[06] Não negue a mim o que eu sou
[07] Nada está escondido, você é que falha em ver a verdade
[08] Estas são coisas que você não pode revelar.
[09] Estas são coisas que você não pode revelar.
[10] Nós somos parte de um mesmo plano estranho
[11] Por que a carnificina da irmandade do homem?
[12] Sacrifício hediondo do inferno
[13] Rastro de fogo indica o caminho
[14] Montes de corpos, todos queimando como se fossem um só
[15] Vingar-se é viver no passado
[16] É tempo de olhar para dentro de um novo milênio.
[17] Caminho em espiral conduz através do labirinto
[18] Descendo até o submundo ardente
[19] Rastro de fogo indica o caminho
[20] Lúcifer foi apenas um anjo que se afastou do caminho.
[21] Liberte sua alma e deixe-a voar
[22] Dê a sua vida ao Senhor da luz
[23] Guarde seus segredos e chova sobre mim
[24] Tudo o que eu vejo são mistérios
[25] Não somos merecedores de seus olhos negros e brilhantes
[26] Nós juntamos demônios no espelho todo dia
[27] A ponte de escuridão lança uma sombra sobre todos nós
[28] E todos os nossos pecados a você atribuímos neste dia
[29] Outros esperam sua vez, suas vidas foram feitas para durar
[30] Use a sua sabiamente enquanto a luz está se extinguindo
rapidamente
[31] Liberte a sua alma e deixe-a voar
[32] A minha foi capturada, eu não posso tentar
[33] O tempo retorna novamente para punir a todos nós.
[34] Nós fomos expulsos pela mão sangrenta de nosso pai
[35] Nós somos estranhos nesta solitária terra prometida
[36] Nós somos sombras de um espírito profano
[37] Em nosso mundo de pesadelo, o único em quem nós confiamos.
O poema foi dividido em seis partes. Na primeira (estrofe 01), o vocábulo ―você‖
(enunciatário) é empregado em sete dos nove versos, e subentendido no verso 06 (―Não
negue‖). Lúcifer, o eu-lírico, enfatiza a importância de guardar segredos e solicita sigilo
sobre algumas revelações. A palavra ―luz‖ pode ser aquilo que possibilita enxergar, logo,
187
conhecer. Esse mundo complexo é mesmo difícil de compreender. Muitos não fazem esse
movimento intelectual, preferem o mundo sensível, contentam-se com o senso comum.
Usando a sua ―luz‖, conhecimento sobre assuntos incompreensíveis para o ser humano
(―segredos‖, ―Você não vê‖), Lúcifer ajudará o seu interlocutor a ver o que deseja revelar.
Na primeira revelação (verso 04), alerta que não pode compreender coisas que não
vê. Na segunda, diz que não ―vê‖ (interpreta) esse ―mundo estranho‖ como o enunciatário,
uma crítica sobre a limitação humana em compreender a realidade. E a terceira é que a
verdade, tão evidente, não é captada pelo homem. Tais afirmações mostram que o diabo
construído pelo Iron Maiden é um ser limitado (ele não vê tudo), averso ao mundo,
chamado por ele de ―estranho‖, e ciente de que o homem se recusa a assumir seus defeitos
(―falha em ver a verdade‖). Trata-se, pois, de uma variação em relação ao diabo ubíquo
descrito por Muchembled (2001, p. 27): ―Capaz de estar em toda parte ao mesmo tempo‖.
Na parte 02, afirma existir um ―plano estranho‖ (verso 10), no qual se inclui
juntamente com a humanidade (―nós‖). Questiona os motivos que levam os homens a se
destruírem mutuamente (―carnificina‖), qualificando o resultado como sacrifício pejorativo
(―hediondo‖). Nos versos 13 e 14, afirma que a história da humanidade (―caminho‖) é
marcada pela destruição de vidas (―montes de corpos, todos queimando‖), repetindo-se ao
longo do tempo (―como se fossem um só‖). Nos versos 15 e 16 fala da dificuldade do
homem para aprender com a história, repetindo erros (―vingar-se‖). Recomenda ―olhar
para dentro de um novo milênio‖ (verso 16); apesar do progresso, persistem
comportamentos justificáveis por ignorância ou negligência. Os versos 17, 18 e 19
reforçam a ideia dos erros recorrentes, uma humanidade perdida (―labirinto‖), andando em
círculos (―caminho em espiral‖), e do mundo como um lugar onde viver é sofrer
(―submundo ardente‖). Falando de si na terceira pessoa, tenta convencer que são exageros
o que dizem sobre ele. O vocábulo ―foi‖ indica que não é mais um anjo, e ―apenas‖ atenua
a magnitude que o homem lhe atribui. Ter se ―afastado do caminho‖ encerra a sua
discordância do plano original. Sua insatisfação foi não ter a permissão para contestá-lo.
Na terceira parte, sugere ao enunciatário que liberte sua alma e deixe-a voar. Os
versos das partes 01 e 02 procuram construir a humanidade como uma espécie manipulada,
que repete os mesmos erros, incapaz de ver a verdade e aprender. O homem pode ser mais
feliz (―voar‖), desde que enxergue a si próprio como um ser autônomo (―alma liberta‖).
Basta seguir as recomendações do Senhor da luz.
Na parte 04 (verso 25 a 28), o enunciatário das três primeiras passa a enunciador.
Concorda com as reflexões de Lúcifer, e conclui que a humanidade não é digna de ―seus
188
olhos negros e brilhantes‖. Ao ter suas formas definidas pelo homem, o diabo ganhou
olhos negros e brilhantes (MUNCHEMBLED, 2001), e tal é a menção feita pelo Iron
Maiden. O verso 26 alude a outra marca cristã, a não assunção das próprias culpas,
atribuindo-as a seres sobrenaturais (―demônios‖). A metáfora do ―espelho‖ é a consciência
da própria culpa. Contudo, o verso 28 reforça a ideia da transferência. Lúcifer é o alvo, o
que se constata pelo pronome ―você‖ neste mesmo verso.
―Nós juntamos demônios no espelho todo dia/A ponte de escuridão lança uma
sombra sobre todos nós/E todos os nossos pecados a você atribuímos neste dia‖. Ou seja,
mesmo tendo consciência de suas fraquezas e erros (―demônios‖), o homem prefere se
esconder por trás de subterfúgios (―ponte de escuridão‖), como transferir as próprias
culpas para entes sobrenaturais. Para racionalizar esse procedimento, os homens se
associam no compartilhamento desse engano intencional. É a busca da paz de espírito
forjada (―nossos pecados atribuímos a você‖) na incapacidade de assumir erros.
Na quinta parte (versos 29 a 33), Lúcifer retoma o discurso, contestando a crença
de que a vida é longa; ―esperar a própria vez‖ indica que certos homens escolhem viver
esperando alguma grande recompensa, uma relação com a cultura de fazer o bem visando
ao paraíso. Sabe, contudo, que a vida é curta (―luz se extinguindo rapidamente‖). Por isso, é
preciso ―usar a vida com sabedoria‖. Aconselha o enunciatário a superar suas limitações
para ser livre, o que não pode mais fazer, sua ―alma foi capturada‖, provável alusão à
queda. Afirma, por fim, que o homem, por não aprender com suas experiências, vive à
mercê de sua ignorância e teimosia (―o tempo retorna para punir a todos nós‖).
A expulsão referida no verso 34 alude à queda e ao desterro do Éden (―nós‖). ―Mão
sangrenta de nosso pai‖ refere-se a Deus, mas atribuindo-Lhe valor pejorativo, incapaz de
perdoar falha de seres ingênuos. ―Sombras de um espírito profano‖ é uma referência ao
mesmo tempo amargurada e irônica ao fato de o homem ter sido criado à imagem
(―sombra‖) de Deus, que, de forma rancorosa, é chamado de espírito ―profano‖ ao invés
de ―santo‖. Contudo, nesse mundo de sofrimento (―mundo de pesadelo‖), é nesse Deus
que a humanidade prefere confiar (―o único em quem confiamos‖).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lúcifer (Satanás) é o arquétipo do questionamento, da não aceitação passiva de
verdades. Seus questionamentos incomodaram aquele que exigia plena concordância,
suscitando a ira do seu Senhor e a consequente punição. Tal é o comportamento de certas
189
autoridades constituídas. Por não suportarem questionamentos, procuram doutrinar as
pessoas desde cedo para assentir. Na metáfora da queda, Deus é a autoridade; Satanás é o
subordinado, o que deveria receber ordens sem duvidar nem questionar. Tal é a tendência
de se formar a imagem de Lúcifer. Muchembled (2001, p. 10), contudo, apresenta uma
noção do diabo que se aproxima bastante da traçada liricamente pelo Iron Maiden:
Encerrar a figura de Satã em uma definição filosófica ou simbólica do
Mal que todo ser humano tem que enfrentar também não nos traz uma
chave de interpretação suficiente. A não ser para os pensadores
desejosos de descobrir uma unidade profunda da natureza humana,
válida para todos os tempos e lugares.
A música de Lord of light tem a marca do lamento e da revolta. Sua letra tem a
súplica para que a humanidade se esforce para evoluir como espécie através da libertação
por meio do conhecimento ("Liberte sua alma e deixe-a voar/Dê a sua vida ao Senhor da
luz"). Não aceitar verdades cegamente, pois nenhuma é eterna. Tudo muda, não há por que
ser irredutível. Na abordagem, contudo, fica patente a compulsividade dessa espécie em
reprocessar os mesmos velhos erros ("Vingar-se é viver no passado"). Trata-se da espiral
referida na canção. O passado volta sempre.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA SAGRADA CATÓLICA. O Velho Testamento. O Novo Testamento. Disponível em:
<http://bvespirita.com/B%C3%ADblia%20Sagrada%20%20O%20Velho%20e%20o%20Novo%20Testamento%20(autores%20diversos).pdf>.
Acesso em: 17 mar 2013.
BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. São Paulo: Ática, 1996.
IRON MAIDEN. A matter of life and death. Disponível em: <http://ironmaiden.com/14-amatter-of-life-and-death.html>. Acesso em: 13 mar 2013.
LINK, Luther. O diabo: a máscara sem rosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MACIEL, Maria Esther. São Jerônimo em tradução: Júlio Bressane, Peter Greenaway e
Haroldo de Campos. Revista Aletria. Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 53-59.
MATOS, Gregório de. Obra Poética. 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Record, 1992.
MUCHEMBLED, Robert. Uma história do diabo: séculos XII-XX. Rio de Janeiro: Bom
Texto, 2001.
PULLELLA, Philip. Deus nunca se cansa de perdoar. Sítio eletrônico Brasil 247.
Disponível em http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/96438/Deus-nunca-se-cansade-perdoar.htm. Acesso em: 17 mar 2013.
SMITH, Adrian; HARRIS, Steve; DICKINSON, Bruce. Lord of light. In: IRON
MAIDEN. A matter of life and death. England: EMI, 2006. 1 CD-ROM.
THE BIBLE LATIN VULGATE. Disponível em:
<http://www.fourmilab.ch/etexts/www/Vulgate/>. Acesso em: 13 fev 2013.
190
THOMAS, Henry. Lutero. In: VIDAS NOTÁVEIS. Vol. 2. Porto Alegre: Globo, 1982,
pp. 1-12.
191
ENSINO DE LITERATURA: O ROMANCE MACAU NO
CONTEXTO DO SISTEMA LITERÁRIO NACIONAL
Maria Aparecida de Almeida Rego76
Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo77
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar uma proposta de estudo do romance
Macau (1934), de Aurélio Pinheiro, escritor norte-rio-grandense, inserido no contexto do
chamado ―Romance de 30‖ do movimento modernista da literatura brasileira, período em
que as literaturas regionais contribuiram para a formação do próprio Modernismo
brasileiro. Apresentaremos também uma leitura deste romance em sala de aula de Ensino
Médio. Para isso faremos uso das ideias de Cosson (2009) que concebe letramento literário
com um conjunto de práticas sociais na construção de sentidos do mundo e Compagnon
(2009) e Candido (1995) ao verem a literatura como ferramenta que instrui deleitando e
torna-se fator indispensável para a humanização. Estudos como esse contribuem para o
processo de formação da tradição literária do Rio Grande do Norte e torna possível
entender o texto literário como um meio de aprofundar discussões relacionadas ao
desenvolvimento do sistema literário nacional, sem perder de vista a sua aplicabilidade ao
ensino de literatura brasileira.
Palavras-chave: Literatura; Ensino; Romance Macau.
Abstract: The objective of this work is to present a propose of study of the novel Macau
(1934), from Aurelio Pinheiro, norte-rio-grandense writer, inserted in a context named
―Novels from 30´s‖, from the modernist movement of the Brazilian literature, once that
the locals literatures produced on this time contributed to the formation of the Brazilian
Modernism. It´s presented also a reading of this novel to the High School level education.
For this it will be used the ideas of Cosson (2009) that conceives literary literacy as a group
of social practices in the building of the senses to the world and Compagnon (2009) and
Candido (1995) in the way that all theses authors see literature as tool that instructs
delighting and also becoming a necessary factor to humanization process. Studies like this
one contribute with the formation process of the literary tradition of Rio Grande do Norte
and it becomes available the study of the literary text as a way of to deepen the discussions
related to the development of the national literary system in conformity with its
applicability with the teaching of Brazilian literature.
Keywords: Literature; Teaching; Macau novel
Introdução
As reflexões acerca das práticas de ensino com o texto literário vêm se
consolidando nos últimos anos, a exemplo de Paulino e Cosson (2009), Pinheiro (2006),
Compagnon (2009), dentre outros que apresentam possibilidades de maior aproximação do
Aluna de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). [email protected]
77 Orientador. Professor Titular vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEL/UFRN). [email protected]
76
192
leitor ao texto literário. No âmbito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no
que se refere às pesquisas sobre a literatura e cultura do Rio Grande do Norte, estudos
anteriores já contemplam análises das representações literárias ocorridas no estado no
contexto da moderna literatura brasileira. Esses estudos confirmam a presença do
movimento modernista no Rio Grande do Norte e os efeitos da modernização no estado.
A partir dessas pesquisas, o romance Macau (1934), de Aurélio Pinheiro, encontra-se como
uma das representações da prosa no contexto dos anos 1930 e em consonância com o
romance de 30 em relação ao cânone consagrado pela historiografia literária brasileira.
Nesse cenário, além de Aurélio Pinheiro, também se destacaram os escritores norte-riograndenses Polycarpo Feitosa (1867-1955) e José Bezerra Gomes (1911-1982).
Aurélio Pinheiro inicia na prosa com o romance O desterro de Umberto Saraiva (1926).
Tal romance foi digno de prêmio da Academia Brasileira de Letras de 1926. A segunda
obra é Gleba Tumultuária (1927) e, em seguida, com a publicação de Macau (1934) 78, o
escritor recebeu observações de Agripino Grieco, crítico literário em atuação à época, que
apresenta a importância do ficcionista: ―Mesmo sem estar empenhado em caçar ridículos,
colheu minúcias bem expressivas de uma estreita vida municipal que é uma espécie de
intimação à mediocridade‖ (GREICO, 1935, p. 96-97).
Neste sentido, o trabalho ―Ensino de Literatura: o romance Macau no contexto do
sistema literário nacional‖ se propõe a apresentar uma relação desse romance no contexto
literário dos anos 30, com a intenção de ampliar a compreensão do processo literário
brasileiro nas suas manifestações regionais e nas suas implicações com o processo de
modernização da sociedade. Apresentaremos ainda resultados de uma leitura do romance
Macau por alunos de 3ª série do Ensino Médio do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), Campus Zona Norte, Natal.
Macau e os anos de 1930
O romance Macau, por meio de um narrador que relata os fatos sem participar da
história, sem apresentar marcas de subjetividade, apresenta a cidade de Macau/RN. A voz
responsável pelo registro da narração demonstra ser a de uma pessoa esclarecida. De início,
delineia a viagem do jovem macauense Aluísio, recém-formado em Direito, no Recife, de
78
A partir de um estudo comparativo com as três edições do romance (1934, 1983, 2000), identificamos que a
1ª edição, publicada pela Aderson-editores/Rio de Janeiro, apresenta a ausência do capítulo XIV. Tal capítulo
corresponde ao convite que o Oliveira envia ao Coronel Teotônio, por intermédio do capanga Chico Torto,
para propor o início do processo contra José Ribeiro. Este capítulo também revela o quanto o rábula
humilhava sua esposa por esta desconhecer determinados vocábulos.
193
volta à sua terra natal, onde irá exercer a profissão submetendo-se aos jogos políticos. O
leitor tem ciência do trajeto da viagem; do estilo de vida que o jovem estudante adotava
durante os anos da faculdade; de umas férias vividas em Macau em que toma conhecimento
da falência financeira do pai, Coronel Edmundo, ex-dono de manadas incontáveis de gado
e de montanhas de sal. A narrativa mostra ao leitor a mudança de comportamento de
Aluísio, que, mesmo contra seus princípios, se submete às vilezas da política macauense
para conseguir trabalho na tentativa de reerguer a família:
– Justamente hoje estou nervoso, e a hipocrisia desse povo que esteve
aqui aborreceu-me ainda mais. Em Natal disseram-me que eu procurasse
aproximar-me do Oliveira. [...] É estúpido! É cruel! Tenho repugnância
desse homem. E sou forçado a bater-lhe à porta, a sorrir, a recalcar os
escrúpulos. [...] Que poderá fazer um advogado oposicionista numa terra
em que não há oposição, nem civismo, nem dignidade, nem vergonha,
dominada há mais de vinte anos por uma família? (PINHEIRO, 2000, p.
78).
Esse fragmento situa a chegada do Aluísio a Macau, onde irá residir e exercer a função de
Promotor. O enredo é todo marcado por intrigas pessoais e políticas; jogos de interesses e
favoritismo, fruto do coronelismo sob o qual vivem as principais personalidades da cidade,
inclusive o promotor, em um espaço provinciano e limitado.
À medida que o enredo se desdobra, o narrador descreve as paisagens, os lugares da
cidade, as regiões salineiras, a instalação de empresas, laboratório químico e alguns aspectos
de desenvolvimento da cidade. Percebe-se o quanto Macau está em consonância com os
processos de desenvolvimento brasileiro ocorridos nas primeiras décadas do século XX e
como o narrador descreve a configuração modernizante na cidade. Nessa teia narrativa, em
que personagens interagem, revelando os conflitos entre o ritmo de vida provinciano e o
ritmo de vida de um espaço em modernização, encontra-se a presença do químico Dr.
Moreira:
Químico da usina de sal recentemente instalada ao fim da cidade, junto
ao aterro. Simples, modesto, acanhado, sempre às voltas com exames e
maquinismos, vivendo para a sua Química, [...] jamais se adaptara ao
meio estreito e mexeriqueiro do lugar. Era baixo, corcunda, risonho
excessivamente cortês. Verdadeiro sábio, com a simplicidade e a
ingenuidade dos sábios, [...] vivia a cometer gafes sem conta naquela
sociedade maliciosa e ignorante (PINHEIRO, 2000, p. 72).
O fragmento acima dá conta de um dos elementos do processo de modernização
identificados no romance. O Dr. Moreira reside em Macau, mas por vim de um espaço
mais citadino não faz parte das intrigas locais por seu tempo ser ocupado em atividades
científicas. A partir desse conflito, identificamos os lampejos de modernização que a cidade
recebe por consequência da indústria do sal.
194
O romancista apresenta uma obra significativa, inserida no contexto das primeiras
décadas do século XX da literatura brasileira. O romance referido se apodera de motivos
sociais locais (a cidade Macau) para estruturar a teia narrativa que constitui representações
da cultura brasileira e dos conflitos sociais nele apresentados, considerados, de certo modo,
nacionais, por exemplo, a política dos coronéis e a industrialização. Neste sentido, é preciso
considerar a literatura sob uma perspectiva histórica, seguindo uma tradição literária
apontada por Candido:
As obras não podem aparecer em si, na autonomia que manifestam,
quando abstraímos as circunstâncias enumeradas; aparecem, por força da
perspectiva escolhida, integrando em dado momento um sistema
articulado e, ao influir sobre a elaboração de outras, formando, no
tempo, uma tradição (CANDIDO, 2000, p. 24).
No plano da cultura e da literatura, a década de 1930, no Brasil, é considerada
marco histórico. As reformas que ocorrem no ensino, na cultura e na política e, sobretudo,
uma tomada de consciência foram reflexos do movimento renovador da década anterior.
Para Candido (1987, p. 182), ―os anos 30 foram de engajamento político, religioso e social
no campo da cultura‖. Nesse contexto, verifica-se ―a extensão das literaturas regionais e sua
transformação em modalidades expressivas cujo âmbito e significado se tornaram
nacionais, como se fossem coextensivos à própria literatura brasileira‖ (CANDIDO, 1987,
p. 187).
Naquele momento da literatura brasileira, o romance do Nordeste representava a
própria realidade da região. Os escritores, consciente ou inconscientemente, estavam
imbuídos ideologicamente e a prosa se voltava às questões da cor local, com interesses
pelas expressões linguísticas tipicamente brasileiras, pelas regiões geográficas e,
principalmente, pelos conflitos sociais e políticos como objetos preferenciais para a prosa
romanesca.
Da mesma forma que os poetas da primeira geração modernista procuravam se
afirmar através de um livro de poema inaugural, os romancistas de segunda geração
modernista, em várias regiões do país, mostravam essa afirmação através da prosa de cunho
sociológico, fosse apresentando a seca, e/ou as desigualdades sociais. Entretanto, caberia
ao romance conciliar o social com o estético, como bem defende Candido:
A preocupação absorvente com os ―problemas‖ (da mente, da alma, da
sociedade) levou muitas vezes a certo desdém pela elaboração formal, o
que foi negativo. Posto em absoluto primeiro plano, o ―problema‖ podia
relegar para o segundo plano a sua organização estética, e é o que
sentimos lendo muitos escritores e críticos da época (CANDIDO, 1987,
p. 196 – Grifo do autor).
195
A observação apresentada pelo crítico é pertinente, já que o romance de 30 representava a
passagem do ―projeto estético‖, conquista dos anos 20, para o ―projeto ideológico‖,
encaminhamentos dos anos 30 (LAFETÁ, 2000). O que justifica também essa preocupação
ideológica é o caráter empenhado que o romance brasileiro apresenta. Bosi (2003, p. 217)
afirma que ―só em torno de 30, e depois, o Brasil histórico e concreto, isto é, contraditório
e já não mais mítico, seria o objeto preferencial de um romance neo-realista e de uma
literatura abertamente política‖. A partir dessa compreensão, observamos o romance Macau
em diálogo com essa tradição por dar conta de um pensamento ideologicamente
preocupado com as questões sociais e políticas.
Tomaremos como referência de literatura empenhada a filiada direta ou
indiretamente à concepção marxista, por ―reconhecer que a forma artística é produto do
‗conteúdo‘ social, mas ao mesmo tempo lhe atribui um alto grau de autonomia‖
(EAGLETON, 2011, p. 79). Nesse mesmo entendimento, em A teoria do Romance, Lukács
(2000) afirma que o romance surge quando a harmonia entre homem e natureza é
desconstruída e que os maiores artistas são aqueles que conseguem recapturar e recriar a
totalidade harmoniosa da vida humana. Nessa direção, Candido (1995) aponta que a
literatura empenhada no Brasil se deu com maior forma nos anos 30:
No Brasil isto foi claro nalguns momentos do Naturalismo, mas ganhou
força real, sobretudo no decênio de 1930, quando o homem do povo
com todos os seus problemas passou a primeiro plano e os escritores
deram grande intensidade ao tratamento literário do pobre (CANDIDO,
1995, p. 255).
Nesse sentido, no romance Macau gente do povo tem relevância na voz do
narrador, por apresentar figuras sociais desfavorecidas pela configuração política da
sociedade. Este trabalho adota a concepção de literatura centrada na convicção ética do
autor revelada ao exprimir sua visão de mundo através da expressão artística tecida na
relação literária com o contexto social e cultural.
A teoria da narrativa apresentada por Walter Benjamin (1985) estabelece o
pressuposto de que prática política e atividade narrativa estão juntas. No ensaio Sobre o
conceito de história, o crítico apresenta uma reflexão, seguindo a concepção materialista de que
a história é ―capaz de identificar no passado os germes de uma outra história, capaz de
levar em consideração os sofrimentos acumulados e de dar uma nova face às esperanças
frustradas‖ (BENJAMIN, 1985, p. 08). Os estudos de Benjamin apóiam as análises dos
processos de modernização presentes no romance Macau.
A Estética da Recepção de Hans Robert Jauss ressalta a importância do crítico para
determinar o valor artístico de uma obra literária. Para Jauss (1994), a história da literatura é
196
um processo que necessita de autor, leitor e crítico, os quais conferem a atualização da obra
por meio da recepção ―que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor
que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles
reflete‖ (JAUSS, 1994, p. 25). Nesse sentido, um dos elementos-chave dos horizontes de
expectativas defendidos por Jauss é a coexistência do escritor, do crítico e do leitor para se
constituir a história literária. Da mesma forma, para Candido (2000), uma obra literária não
vive sem produtor e receptor.
Ensino de Literatura
Algumas pesquisas recentes, a exemplo de Martins (2006), sobre os desafios
enfrentados pelos professores de Literatura no Ensino Médio, e Pinheiro (2006), sobre as
reflexões e estratégias do uso do livro didático de Literatura no Ensino Médio, ambos do
livro Português no Ensino Médio e formação de Professor, apresentam o modo como o ensino da
literatura vem se configurando nas escolas de Ensino Médio e como o texto literário é lido
ou não no contexto escolar. Historicamente, o texto literário foi usado na escola para fins
didáticos como: formar leitores, ensinar a escrever bem e estudar as regras gramaticais.
Dessa forma, a literatura foi usada por muito tempo para fins de estudo da língua
vernácula.
Diante dessa exposição, percebemos que a função da literatura, de construir e
humanizar, não deve ser vista como secundária. Nesse caminho, o letramento literário é
uma prática social que deve ser inserida no contexto escolar. Como qualquer outro
conhecimento, a literatura exige compromisso e clareza quanto aos objetivos de ensino e de
discussão sobre como a escola irá desenvolver essa atividade sem tirar a função
humanizadora da arte literária.
Nessa direção, a teoria desenvolvida por Theodor W. Adorno, sobre literatura e
educação, dará um embasamento para encaminhar o sentido de uma educação dirigida a
uma autorreflexão crítica a partir do enfrentamento da consciência reificada ou coisificada
que gera ―a inaptidão à existência e ao comportamento livre e autônomo em relação a
qualquer assunto‖ (ADORNO, 2006, p. 60). Candido (1995) considera a literatura uma
necessidade universal que precisa ser satisfeita, e a inclusão desta disciplina nos currículos
escolares é fundamental para o processo educacional de uma sociedade. Compagnon (2009)
apresenta o ensino da literatura como responsável pela transmissão e preservação de
experiências, por formar leitores melhores e capazes de combater a barbárie. Assim, a
197
integridade espiritual, adquirida a partir da literatura, pode ser garantida pelo acesso ao
deleite intelectual proporcionado pelo objeto literário.
Salinas: de Macau à sala de aula
Uma experiência recente de estudo sobre o romance Macau deu-se em turmas de 3ª
série do Ensino Médio dos cursos subsequentes Eletrônica e Técnico em Comércio do
IFRN, Campus Zona Norte, Natal/RN. Na ocasião o professor de Língua Portuguesa (a
disciplina de Literatura, nesta instituição, está inserida no currículo de Língua Portuguesa)
ministrava conteúdos referentes ao modernismo brasileiro, anos 30, e fez a indicação de
leitura do romance Macau por ser considerada uma obra que representa tal movimento no
contexto da literatura norte-rio-grandense. Foi apresentada uma versão do romance em
PDF, uma vez que a última edição (2000) encontra-se esgotada. Com a utilização dos
recursos tecnológicos todos os alunos tiveram acesso ao texto literário na íntegra.
Por desenvolvermos pesquisa de mestrado com o romance Macau, fomos
convidados a dialogar com os alunos a respeito do enredo e de seu objeto de pesquisa com
o romance. Como suporte teórico para a abordagem do texto literário em sala de aula foi
utilizado alguns elementos da sequência didática apresentada por Rildo Cosson (2009) em
Letramento Literário, em que concebe a literatura como uma prática social acertada ao ensino
de forma significativa para os alunos.
A conversa foi intercalada por questionamentos acerca do romance e de seu autor,
foram apresentados alguns aspectos que compuseram o cenário político, social e
econômico do país nas primeiras décadas do século XX, além de alguns aspectos
identificados no romance que serão investigados durante a pesquisa acadêmica, entre eles
os elementos que compõem a temática da modernidade presente na narrativa. Tais
informações são vistas a partir da presença da tradição oral representada pela figura do
velho Sousa, simbolizando a resistência à modernização79; o conflito marcante entre o
arcaico e o novo, representado pelos papéis sociais do bacharel e do rábula, traço este
desenvolvido pelo movimento modernista nacional iniciado na década anterior e, por fim, a
política do coronelismo ameaçada pela chegada da democracia. Tais elementos são
desenvolvidos no espaço de uma cidade interiorana que recebe a indústria salineira com
todo seu aparato com consequências que possivelmente representam o declínio da
Segundo Benjamin (1985), o processo de modernização presente nas sociedades capitalistas acarreta na
diminuição da transmissão de experiência de uma geração à outra.
79
198
produtividade artesanal do sal, apresentando novos processos em que estão conflitantes o
artesanal e o industrial80.
O diálogo serviu para subsidiar a leitura dos alunos e aumentar seus conhecimentos
sobre traços marcantes do romance. Tiveram oportunidades de identificar alguns elos
intertextuais presentes em Macau com outros romances da mesma década, por exemplo,
com os romances de José Lins do Rego que registram o momento de transformação social
e econômica na decadência dos engenhos com a chegada das usinas, consequência do
processo de industrialização. Sobre a obra de José Lins do Rego, o livro Literatura Brasileira:
um diálogo com outras literaturas e outras linguagens, do Ensino Médio, apresenta um comentário
do crítico Peregrino Júnior:
José Lins do Rego nos põe diante dos olhos [...] o conflito dos patriarcas
rurais com os jovens bacharéis fracassados, a luta do progresso da
industrialização contra o atraso feudal (a usina devorando o bangüê); o
espetáculo dramático do fanatismo popular e as tropelias heroicas dos
bandoleiros soltos a fazer justiça com as próprias mãos, truculentos e
brutais; as intrigas miúdas da política municipal [...] (PEREGRINO
JÚNIOR, 1975, p. 17 apud CEREJA; MAGALHÃES, 2009, p. 470).
Identificamos no romance Macau também a figura de bacharéis, até antes de Aluísio,
fracassados, o processo de industrialização do sal e as intrigas miúdas de uma política
municipal ainda presa às práticas do coronelismo, mas que também enfrenta
transformações.
Embora o romance Gabriela, Cravo e Canela (1958), de Jorge Amado, tenha sido
publicado em décadas posteriores, foi possível aos alunos fazerem uma aproximação dessa
trama com o romance Macau por seu enredo ser ambientado na década de 1920 e ter sido
adaptado, recentemente, para minissérie da rede Globo. Os alunos argumentaram que
ambos apresentam a situação política do coronelismo, a presença de um julgamento,
representando o espaço da razão como propício para resolver os conflitos (não mais o
jagunço), e a presença das personagens ―solteironas‖ que ora são mostradas como
puritanas por transmitir ao leitor desconhecimento de idade e de sexo, ora são modernas,
como D. Fefinha, que funda em Macau um centro político-social em sua casa.
A interpretação leva à conscientização de que o aluno, enquanto leitor, está inserido
em uma comunidade discursiva que amplia seus horizontes de leitura. A ―contextualização
presentificada‖ (COSSON, 2009) faz correspondência da obra com o momento presente
da leitura. Aqui o papel do leitor é fundamental, pois ele irá fazer relações da leitura com
elementos de seu mundo social.
80
Esses aspectos são analisados por Schwarz (1987) em ―A carroça, o bonde e o poeta modernista‖.
199
Como resultado desse estudo, os alunos apresentaram a recepção do romance em
respostas a atividades encaminhadas, nas quais estão explícitas as capacidades de várias
habilidades, dentre elas, interpretativa, perceptiva e argumentativa. A seguir, estão
transcritos fragmentos das atividades dos alunos que serão identificadas por E1 (estudante
1), E2 (estudante 2) e E3 (estudante 3):
[...] A obra retrata uma cidade do interior bem estruturada para a época,
com um sistema político bem delineado a ponto de ser motivo de
disputa entre alguns dos personagens. A economia da cidade
representada gira em torno da indústria do sal, muito lucrativa na época,
e também das embarcações, pois, pelo fato de a cidade ser litorânea, elas
também contribuíram para a geração de trabalho remunerado. [...] (E1)
[...] Podemos perceber a divisão de classes na sociedade macauense no
romance. Divide-se entre as famílias tradicionais, algumas relativamente
abastadas, outras falidas; famílias emergentes que alcançaram algum
status social; famílias pobres, que prestam algum tipo de serviço aos mais
favorecidos economicamente; os comerciantes bem sucedidos e os
profissionais liberais como o médico e o químico. Esse cenário mostra a
luta pelo poder e status entre os personagens em decadência e os que
desejam ascender socialmente. [...] (E2)
[...] Alguns personagens tornam-se tão próximos do leitor quanto são do
narrador. Um deles é Teotônio, o rábula mais famoso da região, que
nunca perdera uma batalha no modesto tribunal da cidade e sua fama
alcançava grande parte do interior do estado do Rio Grande do Norte.
Como sobrevivia desses embates jurídicos, era natural que se
preocupasse com a chegada do Dr. Aluísio à cidade, pois como o jovem
possuía o título de bacharel, Teotônio almejava desqualificá-lo para que
ele não representasse uma ameaça. Apesar de suas ações de profissional
antiético, era fato a vaidade intelectual impregnada em Teotônio, mas é
também fato que mudava de lado político de acordo com suas
necessidades com a mesma naturalidade com que caminhava nas ruas e
fazia mexericos na cidade. [...] (E3)
Considerações finais
Longe de esgotar questões voltadas aos estudos sobre o romance Macau, bem como
ao ensino de literatura, o presente trabalho apresentou alguns encaminhamentos
pertinentes sobre o romance na década de 1930, a presença da prosa regionalista como
extensão da prosa brasileira e o estudo do texto literário em sala de aula. Tais aspectos
mostram a pertinência de pesquisas de âmbito acadêmico quanto aos estudos literários
voltados para a compreensão do moderno romance brasileiro.
Deixa-se claro que as escolhas temáticas enfocadas nesse trabalho não são as únicas
a serem exploradas no romance em questão. O importante é proporcionar conhecimentos
sobre a literatura do Rio Grande do Norte, a partir de leituras e pesquisas que possibilitem
200
conhecimentos da memória cultural e da tradição literária brasileira, conforme Bueno
(2006, p. 27) afirma: ―É possível projetar para discuti-los, muitos dos elementos que
fizeram do romance de 30 um passo decisivo de nossa tradição literária, cujos efeitos se
espalham até hoje por toda a cultura brasileira‖.
Levam-se em consideração os elementos formadores dessa tradição literária,
objetivando aproximar as pesquisas acadêmicas ao ensino, tornar o aluno um leitor
consciente de seu papel enquanto observador e crítico, fazer reflexões sobre a obra lida,
sabendo externar seus posicionamentos, além de adquirir o diálogo com outros textos.
Nessa perspectiva, torna-se possível formar um estudante leitor e escritor proficiente.
Ainda, como iniciativa do grupo de pesquisadores vinculados ao Núcleo Câmara
Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses, da UFRN, pretendemos, por meio do site
Portal
da
Memória
Literária
(<http://www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/>),
Potiguar
disponibilizar
a
pesquisadores e ao público em geral o texto do romance Macau na sua integralidade, por se
tratar de uma obra de domínio público. Assim, a disponibilidade virtual de acesso gratuito
permitirá aos leitores uma experiência estética para reflexão sobre o efeito atual da obra
para consolidar uma compreensão do desenvolvimento histórico da recepção do texto de
Macau.
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202
NAEL “CENTRO DE CONSCIÊNCIA” E “ESPELHO POLIDO”, A
FIGURA DO NARRADOR EM “DOIS IRMÃOS”, DE MILTON
HATOUM81
Assunção de Maria Sousa e Silva 82
Resumo: Nael é o fio condutor de uma narrativa memorialística cujo objetivo
primordial talvez seja a busca do narrador pelo conhecimento de sua origem e de sua
história. Todavia no intento de percorrer sua labiríntica busca, este personagem-narrador
nos lega uma história de histórias construídas por uma junção de estratégias em que
vigora o jogo edificador da experiência estética. Tais recursos resultam em um romance
moderno, aglutinador de faces e interfaces discursivas intercaladas sob a tensão de
vozes enunciativas que o margeiam. O romance Dois Irmãos, do escritor amazonense
Milton Hatoum reverbera a memória do passado, “fantasmas de retratos” que indiciam
sentidos fortalecedores da subjetividade do personagem-narrador, mas também sentidos
que redimensionam a realidade do contexto social e político amazonense. Para
discorremos sobre essas configurações, embasaremo-nos nas considerações sobre o
narrador, sobretudo na sua função e perspectiva narrativa, enquanto sujeito que aglutina
um “conjunto de forças que se potencializam”, levando em conta as indicações de
Wayne Booth, em Retórica da ficção”, de Walter Benjamim, em “O narrador
Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” cujas abordagens ajudam a elucidar
aspectos que prevalecem no romance de Hatoum como estratégias discursivas e de
Wolfgang Iser, em O jogo do texto.
Palavras-chave: Narrador; Memória; Vozes; Romance; Dois irmãos.
Abstract: Nael is the thread of a memorial narrative whose primary objective is perhaps
the narrator's quest for knowledge of its origin and its history. However in an attempt to
navigate their labyrinthine search, this character-narrator leaves us with a story of
stories constructed by a combination of strategies that force the game builder of the
aesthetic experience. These features result in a modern novel, unifying faces and
interfaces discursive merged under the strain of enunciative voices that border it. The
novel „Two Brothers‟, by amazon writer Milton Hatoum, echoes the memory of the
past, "ghost pictures" suggest that empowering sense of subjectivity character-narrator,
but also senses that resize the reality of the social and political Amazon
(Baziliannorthernregion) context. To carry on about these settings, we have base in
consideration of the narrator, especially in its function and narrative perspective, as a
subject that brings together a "set of forces that leverage," taking into account the
indications of Wayne Booth in Rhetoric of Fiction", Walter Benjamin in "The
Storyteller considerations on the work of Nikolai Leskov” whose approaches help to
elucidate aspects prevailing in the novel Hatoum as discursive strategies and Wolfgang
Iser in “The play of the text..”
81
Este artigo é parte de um estudo mais detido sobre o narrador no romance supracitado, desenvolvido para
disciplina Teorias Críticas do Programa de Doutorado em Literatura de Língua Portuguesa – PUC Minas.
82
Doutoranda em Letras na Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC MINAS). Bolsista FAPEPI. Email: [email protected].
203
Keywords: Narrator. Memory; Voices; Novel; Dois Irmãos.
1. Introdução
No poema epígrafe que Milton Hatoum acolhe e introduz o romance Dois
Irmãos, Drummond reclama a materialidade do espaço familiar. A liquidação83 enuncia
a venda da casa com as lembranças, os pesadelos, os pecados, o bater de portas e os
imponderáveis. O poema de uma estrofe traduz com finura e concisão o sentido primevo
do romance de Hatoum. A história contada é também a história da casa da família
libanesa vendida com suas lembranças e seus imponderáveis e a tragédia ali passada é
senão em razão de encantos, desejos e pecados. A casa é a metonímia da cidade
flutuante que também é demolida em vista ao progresso da cidade de Manaus. No
entanto, a casa para além do espaço físico, ensombreado com a seringueira centenária,
traz a rasura do conceito moral-afetivo de lar, porque envolvido de sonegações,
transgressões e danosa tensão e rivalidade entre os seus habitantes.
O enredo são histórias que se entrecruzam através de eixos estruturantes
caracterizados pelo desejo, ansiedades, carências e orfandades. Assim acontece com
Zana, a matriarca, Halim, o pai, os gêmeos, Omar e Yagub e Domingas. Todos estão
ligados umbilicalmente pelo crivo da orfandade e quando não pela carência de afeto
como Rânia e Nael, o personagem-narrador. Dito isso, é válido ressaltar que tais
prerrogativas apresentam-se como fato positivo para a construção das estratégias
discursivas que o narrador vai assegurar. O narrador, construção e participe da voz
autoral,
re-conduz
o
contar
por
entrecortes
espácio-temporais,
flashbacks,
intercalamentos entre presente, passado, passado do passado no presente, como a deixar
valer o domínio da memória.
Mas esse narrador-personagem talvez não contasse essa história sem as vozes
assonantes que com ele vivenciaram os acontecimentos, por isso Halim representa um
co-narrador porque contribui sobremaneira para preencher até o possível as lacunas
impregnadas na memória do narrador. Desta forma, entendemos que o narrador se
caracteriza como centro de consciência e espelho polido, visto que aglutina os fios e une
as pontas, reconhece os jogadores e suas jogadas para então construir o seu jogo próprio
como narrador performático. Sobre estes enfoques e para iluminar teoricamente este
83
Liquidação é o título do poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro Boitempo, 1968.
204
trabalho, recorremos às ideias de teóricos importantes no campo da discussão da
presença do narrador no texto ficcional: Walter Benjamim (1994), no seu ensaio “O
narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” e Wayne Booth (1980), em
Retórica da ficção que precisamente nos esclarece sob o papel e perfil do narrador e
seus modos de narrar.
É deste autor, portanto, que aceitamos a configuração de
narrador como “centro de consciência” e “espelho polido” no jogo edificante da
experiência estética, e Wolfgang Iser (2000), em “O jogo do texto”.
2 O narrador e seus efeitos de sentido
Em Retórica da ficção, Booth (1980) trata dos tipos de narradores e delineia o
que seriam narradores dramatizados e não-dramatizados; observadores e agentes
narradores, para em seguida deter-se nas funções e comportamento do narrador no
romance moderno. Inicialmente o teórico aponta que a diferença mais importante do
efeito narrativo seja o modo como o narrador é dramatizado individualmente e de suas
características serem compartilhadas pelo autor.
Aceitando a linha de raciocínio de Booth (1980), o narrador-personagem de Dois
Irmãos estabelece determinadas conduções narrativas que nos fazem pensar em sua
dimensão dramatizada. Daí indagarmos: que aspectos de narrador dramatizado podemos
identificar em Nael?
Nael está qualificado para narrar a história à medida que ele conta o que ouviu,
viu e vivenciou. Está apto a fazê-lo pela “perplexidade com que viveu” assim como
entende Walter Benjamim (1994:201) quando trata do narrador ao analisar a obra de
Nikolai Leskov. A disposição do narrador de recolher o esquecido pelo tempo de sua
memória e da memória daqueles que viveram as histórias confere a ele a legitimidade
que todo narrador tende a se sustentar.
Por outro lado, Booth enfoca que
a ficção moderna, os narradores não acreditados mais
importantes são os “centros de consciência” na terceira pessoa,
através dos quais os autores filtram as suas narrativas”. Estes
são, então, “refletores” como James Joice lhe chamou, podem
ser espelhos muito polidos que reflectem experiência mental
complexa, os „olhos da câmara‟ bastante torvos, inclinados para
os sentidos (...) mas que cumprem precisamente a função de
205
narradores confessos – embora possam acrescentar intensidades
próprias.(BOOTH, 1980: 68-9)
Temos de convir que isto se realiza pelo distanciamento que tais elementos
impõem-se no ato de contar. Em Dois Irmãos, como já visto, Nael não conta sozinho,
portanto, não traz o estatuto de onisciência. Ele dispõe de outros co-narradores que mais
se assemelham aos contadores de histórias filiados a dois grupos já esclarecidos por
Benjamim: do imigrante e do mestre sedentário. Desta forma, focando o olhar sobre a
presença e a relação de intimidade de Halim e Nael, inferimos que Halim representa
esse contador de história necessário e produtivo como fornecedor da matéria discursiva
que Nael vai transformar em experiência estética. Os narradores secundários: Halim,
Domingas, principalmente, contam suas versões dos episódios mais por um gesto
utilitário (necessidade) de mostrar e contar sua experiência no mundo em que atuam do
que por e para construir um jogo discursivo, uma atitude performática que resulte no
texto ficcional, como faz Nael.
É através de interconexões que Nael vai tecendo seu discurso ficcional em
conjunto com as vozes dos sujeitos movedores dos eixos estruturantes dos quais
tentamos esboçar na primeira parte deste artigo.
Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu
mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo.
Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui o observador desse
jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final. (HATOUM,
2006:23)
O narrador de Dois Irmãos não se limita a descrever cenas, ele vai além, costura
os episódios, forja mistérios e enigmas para responder a indagações como: qual sua
origem? quem é seu pai? Como se entrecruzam as pontas do contado e se preenche as
lagunas que deságuam em mistérios? A voz autoral constrói este narrador que
embaralha o contar no tempo, do presente volta ao passado e do passado do passado
volta ao presente, deixando o leitor em sobressaltos para, em seguida, quando a tensão
amortece, este, novamente, se estende sobre o episódio com outras nuances, a fim de
desenrolar o fio que ficou em suspenso.
Noutra medida, percebemos o macro jogo que se realiza entre o texto, o autor e
nós leitores, a partir daquela interconexão a que se refere Iser (2002) cujo processo
desemboca em algo que até então não existia. O jogo do texto está em insinuar e ao
206
mesmo tempo despistar o leitor. O constante movimento do narrador sobre os fatos que
vêm a sua memória, na mente dos demais personagens e nas ações que empreendem
lacunas que devem ser preenchidas pelo leitor.
Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. O
próprio texto é resultado de um ato intencional pelo qual o autor
se refere e intervém em um mundo existente, mas, conquanto o
ato seja intencional, visa a algo que ainda não é acessível à
consciência. (ISER, 2002: 107)
Isso aponta para a construção textual, composição para Iser, em que o texto é
“composto de um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a
incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo” (ISER, 2002:107). A encenação
do narrador de Dois Irmãos pelo modo como articula os eixos narrativos no tempo
permite-nos reforçar a ideia de jogo que enuncia o “mundo repetido no texto” assentado
os elementos intratextuais que espelham o mundo extratextual. Aceitamos, então, o que
Iser enuncia:
Jogo do texto, portanto, é uma performance para um suposto
auditório, e como tal, não é idêntico ao jogo cumprido na vida
comum, mas, na verdade, um jogo que se encena para o leitor, a
quem é dado um papel que o habilita a realizar o cenário
apresentado. (Iser, 2002:116)
Diz ainda:
O jogo encenado do texto não se desdobra, portanto, como um
espetáculo que o leitor meramente observa, mas é tanto um
evento em processo como um acontecimento para o leitor,
provocando seu envolvimento direto nos procedimentos e na
encenação. (Iser, 2002:116)
Temos, portanto, um modelo de representação em Dois Irmãos que nos garante
visualizar pistas do narrador desnudando prováveis sentidos advindos da atuação dos
sujeitos atuantes. Visto isso, o leitor de Dois Irmãos necessita também fazer um
exercício de recolhas e atenção no mundo encenado para compreendê-lo e interferir na
busca dos efeitos de sentidos e entender o projeto ali colocado em construção. O próprio
207
autor, Milton Hatoum, assevera que o romance é construído pelo crivo da memória: a
memória presente e a memória da cidade:
sempre me impressionou a destruição da cidade, do patrimônio
histórico, dos espaços habitados da infância, e na infância de
gerações (...) alargar um pouco o drama familiar e transformar
bem numa espécie de tragédia humana, tragédia de minha
cidade que pode ser metáfora de tantas cidades da América
Latina. É, vamos dizer, uma perspectiva (...) histórica, na
medida em que um dos irmãos, espécie de ideólogo do regime
militar, ditadura, aparece também no conflito de outro irmão que
ficou em Manaus. (Entrelinhas, Programa TV Cultura)
Pela memória também o autor recupera o diálogo intertextual conduzido pela
epígrafe de Carlos Drummond de Andrade e pelo personagem professor Antenor Laval,
quando, antes de ser preso apresenta para os alunos o poema “Os cegos” de Baudelaire,
revelando, desta forma, as vias de sentidos em que a narrativa se fixa; como também
quando evidencia o pano de fundo do enredo: a segunda guerra mundial, o golpe de 64,
a expansão e decadência de Manaus na vida dos personagens. São, portanto, esses
pontos que estão problematizados pela via do não dito, ou do apenas prenunciado que
redimensionam a visão do duplo e acentua o mistério e o enigma: a história da tragédia
da família, a origem de Nael e a orfandade dos personagens e seus desatinos.
Nael parece ter consciência de si como narrador. Apresenta de forma precisa, em
mais de um momento, sua relação vital com a escrita. Quando escreve a história já é
professor e no decorrer da vida vai recolhendo os projetos de Yaqub, guardando os
poemas avulsos de Laval, envolvendo-se emocionalmente sobre história com a de Pocu,
quando o mesmo vai à procura de Omar e vê dois amantes morando sozinho em paz no
barco. Nesta passagem, Nael mostra sua consciência quanto ao que está em jogo quando
se narra: o sentido de verdade, a convicção de quem narra e o que o legitima. A
experiência de leitura de Nael está agregada a sua experiência de escrita e a sede de reconstituição da memória já referida neste trabalho. Para escrever, ele também lê o
mundo, as personagens, espreita os sujeitos e com isso movimenta seu tabuleiro.
Com o episódio de Pocu, Nael aproveita para os breves momentos de reflexão
sobre a escrita, sobre a medida e os limites entre o que é invenção e realidade; sobre o
que viria a ser verdade ou mentira nas palavras de um narrador. Era preciso convicção
no contar. Pocu é como um marujo que carrega consigo a arte de narrar, inebriado de
um eloquência vivaz conta com uma verdade íntima. O que estatui a história como
208
história de verdade é o fato de um leitor ou ouvinte pensar sobre ela? Cada um ao seu
modo. Nael expõe as agruras de escrever, visto que o tempo é o senhor da memória e a
morte graveto para a combustão que faz acender o desejo de trazer o passado dissipado.
Naquela época, tentei em vão, escrever outras linhas. Mas as
palavras parecem esperar a morte e o esquecimento;
permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para
depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de
contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz
esquecer também é cúmplice delas. Só o tempo transforma
nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras, disse Halim
durante uma conversa, quando usou muito o lenço para enxugar
o suor do calor e da raiva ao ver a esposa enredada ao filho
caçula. (HATOUM, 2006:183)
O tempo é que conduz a verdade das palavras emitidas, relembra o narrador na
esteira do personagem, co-narrador Halim. É do tempo que se elabora o produto – texto
– composição enunciativa a expor/contrapondo presença/ausência do narradorpersonagem na feitura do “mundo repetido”. Pelo tempo é que se revela, a partir da
intenção da voz autoral, a forma como o narrador se posiciona, alternando com menos
ou mais distanciamento sua função narrativa.
Algumas considerações finais
O romance Dois Irmãos de Milton Hatoum nos oferece leituras instigantes.
Depende do leitor a escolha de que caminhos seguir. Nós optamos por ler o romance
atentando para a forma como o narrador se posiciona e põe-se a narrar, por parecer de
grande propósito entender o projeto e o percurso trilhado para edificar a narrativa. Os
eixos aqui ventilados foram meios encontrados para cobrir as várias faces que a história
interpõe. O narrador-personagem Nael, imbuído de contar, em tempos futuros o que foi
fraturado no passado, recorre à memória para trazer à tona vivências, disputas e
rivalidades movidas pelo amor e ódio, mas, sobretudo, pelo desejo, visto que todos
estão desnutridos, forjados em carência e por isso se vale de construção de sentidos para
tecer a construção de agenciamentos. Para além, as vozes que confluem para o “centro
de consciência” que se configura no narrador são advindas e, ao mesmo tempo,
209
provocadoras de reflexões, de anseios e de desilusões sobre a sociedade nos quais estão
incluídos.
A trajetória decadente da família em que não encontramos sinal de
harmonização ou prosperidade, a não ser de forma efêmera e frágil, está intimamente
ligada à trajetória do narrador-personagem que se vale das várias vozes para compor sua
memória e assim narrar. No entanto, Nael não narra apenas para contar uma história
como prestação de contas com o passado, ele narra com um propósito construtivo,
edificador, ciente de seu papel e de suas funções. Mas isso não consiste em uma
autonomia, já que ele também é fruto de uma construção ficcional e não se enquadra em
uma narrativa tradicional em que o narrador paira sobre a história com controle e
domínio. Nael conta a partir de sua precária existência, e aquilo que não sabe de fato
acolhe dos demais sujeitos, co-narradores como Halim e Domingas, por exemplo.
Sob este efeito, ele usa estratégias importantes em relação ao contado. A
presença / ausência na narrativa é o recurso principal nas relações que se estabelecem.
Nael expressa o olhar dos outros sobre si, a indiferença de Zana e de Omar reforça sua
figura de ser à margem e isso nos moldes tradicionais não seria prerrogativa para quem
é o centro aglutinador e refletor de luzes nos acontecimentos, no entanto ele o é. Nael
reflete sobre seu lugar, expõe sua posição de intruso na casa e na família; e confessa ao
leitor que para Zana ele é apenas “um rastro dos filhos dela” (HATOUM, 2006:28).
Então, podemos dizer que ele está no mundo indiferente a si e é daí que ele tira sentido
para enredar. Significativa é a passagem do romance sobre as roupas herdadas de Yagub
ao narrador-personagem: “mas a roupa dele me esperou crescer e foi se ajustando ao
meu corpo; as calças, frouxas, pareciam sacos; e os sapatos, que mais tarde ficaram um
pouco apertados, entravam meio na marra nos pés: em parte por teimosia, e muito por
necessidade. O corpo é flexível” (HATOUM, 2006:30). Os sentidos são flexíveis e
aplanados pelo tempo. A roupa esperando Nael crescer simboliza o próprio transcurso
do tempo para a maturidade dos sentidos das coisas e suas apropriações.
Outro aspecto a ressaltar na narrativa de Hatoum é a dualidade. A narrativa
enverga-se pela condição dual (presença /ausência) do narrador; pela rivalidade
emaranhada de semelhanças e dessemelhanças entre os irmãos, pelo caráter paradoxal e
comovente de Halim, enfim, existências de personagens com defeitos e virtudes
nivelados. Omar e Yagub não são totalmente maus, nem totalmente bons. Como
também, o próprio narrador empenha-se em narrar pelo caráter da dualidade: é isso e
210
aquilo, o “aqui mas ao mesmo tempo o ali”, conforme o próprio autor ressalta na
entrevista “É preciso coragem para escrever”, postada no Youtube.
Por fim, o narrador-personagem de Dois Irmãos emitindo duplamente a visão de
dentro e de fora imprime suas subjetividades e revigora o tom híbrido na forma de
contar. Nael é narrador-personagem do enredo, mas inegavelmente exerce o papel de
escritor, trazendo à tona suas memórias guardadas, “soterradas, petrificadas em estado
latente” para depois materializar-se em composição ficcional cuja configuração é
plural, tão instigante e envolvente.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond. Boitempo, José Olympio, 1968.
BAUDELAIRE, Charles. Os cegos. (Trad. Ivan Junqueira) 1988, p.178. Disponível em
http://www.plataforma.paraapoesia.nom.br/ermelinda_ensaios4.htm,
acessado
em
21/10/2012.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.
197-221.
BOOTH, Wayne. C. A Retórica da Ficção. Lisboa-Portugal: Arcádia. Trad. Maria Teresa H.
Guerreiro, 1980.
DELEUZE, G. O abecedário de Gilles Deleuze. In. Deleuze em entrevista a Claire Parnet, em
2005,
sobre
sua
obra
e
parceria
com
F.Gattari.
Disponível
em,
http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemid
=1, acessado em 11/02/2013.
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia Das Letras, 2006.
_______________.
É
preciso
coragem
para
escrever.
Disponível
http://www.youtube.com/watch?v=vCnOyUn9Ui0, acessado em 08/09/2012.
ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In. A literatura e o leitor. 2ª Ed. São Paulo: Paz e Terra,
2002.
em
211
HOMOAFETIVIDADE NA INFÂNCIA E RELAÇÕES DE PODER
NA PERSPECTIVA DO CONTO FREDERICO PACIÊNCIA
Benedito Teixeira¹
Profª. Drª. Fernanda Maria Abreu Coutinho²
Resumo: A comunicação que iremos apresentar tem o objetivo de mostrar como a
homoafetividade na infância é apresentada na literatura brasileira moderna, enfatizando de
que forma as relações de poder perpassam os relacionamentos homoafetivos durante a fase
que se convencionou chamar infância e/ou pré-adolescência. Por meio da análise literária
do conto Frederico Paciência, de Mário de Andrade (in: Contos Novos, 1947), única narrativa em
que o escritor modernista aborda, mesmo que tangencialmente a homossexualidade,
pretendemos identificar os mecanismos de poder que atravessam a narrativa. Na Literatura
Brasileira, o tema da homoafetividade na infância aparece pela primeira vez ainda no século
XIX, com O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, seguido por mais experiências em outros
contos e fragmentos, que pretendemos citar durante esta pesquisa. Para analisar as relações
de poder, que surgem no conto de Mário de Andrade, adotaremos uma perspectiva
foucaultiana. Michel Foucault defende a ideia de que o poder é exercido por pessoas ou
grupos através de atos de soberania, dominação ou coerção. Para ele, o poder apresenta-se
de forma difusa, diluído nas relações sociais.
Palavras-chave: homoafetividade, infância, poder, Foucault, Frederico Paciência
Abstract: The communication that we will present to show how homoaffectivity in
childhood is presented in modern Brazilian literature, emphasizing how the power relations
permeate the homoaffective relationships during the phase what is conventionally called
childhood and / or pre-teens. Through the literary analysis of the short story "Frederico
Paciência",by Mário de Andrade (in: Contos Novos, 1947 ), single narrative in which the
modernist writer approaches, even tangentially the homosexuality, we intend to identify the
mechanisms of power which cross the narrative . In Brazilian literature, the theme of
homoaffectivity in childhood first appeared in the nineteenth century, with O Ateneu
(1888), by Raul Pompéia, followed by further experiments in other short stories and
fragments, wich we intend to cite during this research. To analyze the power relations that
arise in the short story by Mário de Andrade, we will adopt a Foucaultian perspective.
Michel Foucault defends the idea that power is exercised by persons or groups through acts
of sovereignty, domination or coercion. For him, power is presented in a diffuse way,
diluted in the social relations.
Keywords: homoaffectivity, childhood, power, Foucault, Frederico Paciência
A descoberta homoafetiva durante o período caracterizado como infância e/ou
transição para a adolescência é marcada tanto na vida real como no mundo da narrativa
ficcional por relações de poder potencializadas pela estigmatização e pela proibição
existentes desde a Antiguidade. Esse tipo de relacionamento carrega duas fontes de
rejeição: o próprio fato de se materializar entre pessoas do mesmo sexo e o peso oriundo
da questão etária, tendo em vista que o período de descoberta sexual/afetiva marca uma
212
quebra do paradigma que considera a infância como uma fase em que relações de cunho
afetivo-sexual são consideradas inaceitáveis.
Mesmo na Grécia Antiga, apesar da aceitação dos relacionamentos entre meninos
(erômenos) e rapazes mais velhos (erastes), sendo estes últimos uma espécie de protetores dos
primeiros, a manifestação de afeto público e físico não era tão naturalizada como se pensa.
Segundo K. J. Dover, em A homossexualidade na Grécia Antiga (2007), entre os gregos havia
uma atitude complacente da sociedade com respeito ao desejo homossexual, com
manifestações claras na literatura e nas artes plásticas. No entanto, havia limites
estabelecidos nas normas que regiam os costumes gregos, em especial em Atenas, sobre a
pederastia, já que o termo ―homossexual‖ só surgiu no século XIX com o advento das
intervenções psiquiátricas no campo das análises sobre os casos de pessoas que faziam sexo
com outras do mesmo sexo.
Dover (2007) mostra que o ―aceitável‖ pela sociedade ateniense daquele período era
que as relações homossexuais ocorressem entre parceiros em idades diferentes – o erastes,
mais velho e ―ativo‖, protetor, e o erômenos, mais jovem e ―passivo‖, protegido. Fora desse
padrão, a homossexualidade era pouco tolerada, tendo em vista que esse tipo de relação
deveria ser provisória, já que, ao ficar mais velho, o natural era que o erômenos casasse com
uma mulher, tivesse filhos e se tornasse um erastes. Outro ponto de vista dos gregos naquele
período era que as relações sexuais entre esses dois polos poderiam não ocorrer
obrigatoriamente, com o erômenos sendo orientado a resistir às investidas do erastes.
A partir da era judaico-cristã os valores de proibição e de anti-naturalização do
comportamento homoafetivo ficaram cada vez mais rigorosos. O tema passou a
representar um tabu. A condenação da prática homoafetiva está presente na Bíblia desde o
relato de Sodoma e Gomorra (Gn 19: 4-5) e no período dos Juízes (Jz 19: 22). Moisés
também fez referências a essa prática sexual entre o povo de Israel (Lv 18: 22; 20:13),
considerando-a passível de punição com a morte. No Novo Testamento, a referência
clássica à homoafetividade está na epístola de Paulo aos Romanos (Rm 1: 26 e 27).
Em se tratando da correlação da homoafetividade com o período caracterizado
como infância, a barreira sociocultural é ainda maior. No contexto da idade infantil esse
tabu é reforçado tendo em vista que criança e sexo ainda são duas dimensões para muitos
213
indissociáveis e, quando detectada essa relação, deve ser reprimida, tal como afirma Michel
Foucault, em História da Sexualidade I: a vontade de saber (1988):
As crianças, por exemplo, sabe-se muito bem que não tem sexo:
boa razão para interditá-lo, razão para proibi-las de falarem dele,
razão para fechar os olhos e tapar os ouvidos onde quer que
venham a manifestá-lo, razão para impor um silêncio geral e
aplicado. Isso seria próprio da repressão e é o que a distingue das
interdições mantidas pela simples lei penal: a repressão funciona,
decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também
como injunção do silêncio, afirmação da inexistência e,
consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada
para dizer, nem para ver, nem para saber. (FOUCAULT, 1988,
p.10)
O próprio conceito de infância e sua existência ao longo da história passaram e vêm
passando por diversas transformações e formas de definição. Na Antiguidade, o Estado
ideal defendido por Platão teria a responsabilidade de educar as crianças, consideradas
criaturas ríspidas, astutas e insolentes. Fernanda Coutinho, em Imagens da infância em
Graciliano Ramos e Antoine de Saint-Exupéry (2012), explica:
Por esta razão, caberia ao Estado ideal uma prática pedagógica de
teor coercitivo, e, assim, a pólis platônica só adotará a criança
como base, em função da necessidade de moldar-lhe o caráter. Já
em A República, o modelo educacional segregara-a do convívio
dos demais, salvo dos preceptores, na intenção de fazê-la alcançar
o reto caminho do Bem, da Verdade e da Justiça. (COUTINHO,
2012, p. 25).
Em História social da infância e da família (1981), Philippe Ariès avalia que, até o século
XIII, a infância ainda não havia sido descoberta. As crianças eram consideradas pequenos
adultos, ignorados em suas singularidades. Ou seja, ela ainda não existia no mundo
medieval e sua existência como sujeito social seria, na verdade, resultado de transformações
culturais recentes trazidas pelo modernismo (ARIÈS, 1981, p. 28).
Colin Heywood, em Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no
Ocidente (2004) resgata o status que a infância veio adquirindo ao longo do tempo na
sociedade ocidental e constata que: ―a infância é pois, em grande medida, resultado das
expectativas dos adultos‖. (HEYWOOD, 2004, p. 21). ―Idade da deficiência‖, ―adultos
imperfeitos‖. Assim os pequenos eram vistos aos olhos dos adultos desde a Antuiguidade.
De um olhar menos atento na época medieval, a infância ganhou, com o advento do
Cristianismo, um cuidado maior: era preciso educá-los de acordo com os preceitos da
214
Bíblia. E essa visão ―instrutiva‖ e ―educacional‖ foi reforçada pelo surgimento do
capitalismo na Europa ocidental, entre os séculos XV e XVIII, e, logo depois, pelo
Iluminismo e os primeiros românticos.
Na análise final, Locke não escapa de maneira alguma de uma
concepção negativa sobre a infância, o que se pode ver em seu
desejo de desenvolver a capacidade de raciocinar nas crianças já a
partir de uma idade precoce, ―até mesmo desde o próprio Berço‖.
Com o descuido, a desatenção e a alegria que lhe são
característicos, as crianças precisavam de ajuda: eram ―pessoas
fracas sofrendo de uma enfermidade natural‖. (HEYWOOD,
2004, p. 38).
A infância seria, para os filósofos das Luzes, um ―domínio perdido‖, que, por meio
da educação, é considerada fundamental para a criação do ―self adulto‖. A partir do século
XX, com o surgimento do conceito de ―adolescência‖ e a consolidação da América como
polo econômico e cultural no mundo ocidental, a preocupação dos estudiosos com a
infância americana ganhou importância. Como afirma Heywood:
G. Stanley Hall preocupava-se com o fato de que a América, como
―terra anistórica‖, estivesse especialmente em risco: ―nunca os
jovens foram expostos a tais riscos de se deixar perverter e possuir
como em nossa própria terra e em nossa época‖. Ele apontava
especificamente para ―a vida urbana crescente, com suas tentações,
precocidades, ocupações sedentárias e estímulos passivos‖. Uma
forma óbvia de inverter a maré era cuidar da saúde, da educação e
da moral da geração que surgia: ―a criança de hoje tem a chave
para o reino de amanhã‖, nas palavras de um jornal britânico de
1910. (HEYWOOD, 2004, p. 44).
O historiador defende que a infância passava a merecer uma abordagem que a via
como um constructo social. Portanto, era salutar reprimir sua sexualidade e prolongar sua
educação em escolas e faculdades. Ser ―frágil e vulnerável‖, a criança e/ou o adolescente
tinha que ser mantida longe das tentações do mundo adulto e submetida a uma disciplina
rigorosa.
Mesmo que, a partir do século passado, as teorias da psicanálise freudiana tenham
admitido que há sim manifestações de sexualidade na infância, essas constatações na vida
real e nos textos da literatura brasileira a partir do fim do século XIX, com O Ateneu (1888),
de Raul Pompéia, são permeadas pelos valores da religião, da pedagogia, da medicina e da
psiquiatria em tons repressivos, em que o silêncio tenta escamotear e esconder aqueles
sentimentos proibidos e considerados anormais, como bem retrata Michel Foucault em
215
seus estudos sobre a vigilância, a punição, as relações do chamado micropoder e a
anormalidade.
João Silvério Trevisan, em Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à
atualidade (2011), resgata o histórico dessa repressão sexual no Brasil ancorada na
heteronormatividade, e que pode ser vista, mesmo que sutilmente, nos registros literários
que tratam da questão. A visão religiosa, importada da forte dominação católica na
Península Ibérica, imperou no Brasil desde a fase de colônia portuguesa e se defrontou
com os habitantes nativos da nova terra, cujas práticas chocaram os cristãos recémchegados. Segundo Trevisan (2011), a prática que mais chocava o europeu era a do
―pecado nefando‖, da ―sodomia‖ e da ―sujidade‖.
A prática contrária ao preceito bíblico da reprodução foi considerada durante todo
o período colonial como crime gravíssimo e sem prescrição. Multas, prisão, confisco de
bens, banimento, trabalho forçado, marcação a ferro, execração, açoite público, castração,
amputações, forca, morte na fogueira, empalhamento e afogamento eram algumas das
punições reservadas aos praticantes do pecado nefando. Segundo Michel Foucault, em
História da sexualidade I: a vontade de saber (1988): ―Na lista dos pecados graves, separados
somente por sua importância, figuravam o estupro (relações fora do casamento), o
adultério, o rapto, o incesto espiritual ou carnal, e também a sodomia ou a ―carícia‖
recíproca‖. (FOUCAULT, 1988, p. 39).
Mesmo que com o surgimento do Império, as penas para esse comportamento
tenham se abrandado no Brasil, passando a vigorar o que até hoje se chama ―atentado
público ao pudor‖, ―não seria absurdo imaginar que as inúmeras, reiteradas e violentas
proibições à sexualidade desviante talvez tenham engastado no desejo homossexual um
pânico arquetípico, quase ao nível da pulsão‖. (TREVISAN, 2011, p. 163).
A indefinição do conceito de ―infância‖ que percorre toda a história ocidental
também permite visões diferenciadas de como tratar o sujeito infante em relação à
sexualidade. No entanto, a partir do século XIX, com a separação cada vez maior do
mundo dos adultos imposta às crianças seja pela religião, pela psiquiatria, pela medicina,
pela educação escolar, a submissão moral aos adultos e ao Estado aumentou
216
consideravelmente. Trevisan (2011) cita o exemplo do domínio médico sobre as práticas
educacional, familiares e afetivo-sexuais a partir do século XIX:
Brandindo a pederastia como uma forma de admoestação e um
exemplo negativo, a higiene médica extraía dela consequências
preventivas, para fins educacionais; e, com isso, buscava
domesticar melhor a infância, impondo uma educação
cientificamente programada, através da qual os meninos deveriam
se esmerar em exercícios físicos para evitar a efeminação, e
aprender a amar o trabalho, para evitar uma perigosa indolência
moral. (TREVISAN, 2011, p. 174).
O tempo das punições e dos castigos selvagens havia terminado, mas toda essa
longa trajetória do exercício do poder de repressão sobre a sexualidade desviante contribuiu
para formar sujeitos auto-reprimidos, obedientes, medrosos e silenciosos. Recorremos ao
que Michel Foucault, em Vigiar e punir (1987), chama de microfísica do poder. ―Trata-se de
alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições
(...)‖. (FOUCAULT, 1987, p. 26).
Diante desse pequeno resgate histórico sobre o tratamento que a homossexualidade
e a infância receberam ao longo de séculos no Ocidente, fica mais claro perceber que a
literatura, enquanto arte da escrita ficcional e, portanto, licenciada para fazer um recorte
que inclusive subverta a realidade histórica, na verdade é considerada um excelente registro
de como a sociedade brasileira vem tratando a questão da homoafetividade na infância.
Nesse trabalho, trazemos à tona como a literatura brasileira em prosa aborda as
relações homoafetivas que acontecem com personagens em idade de descoberta sexual,
mais precisamente no período de transição entre a infância e a adolescência. E este artigo é
parte da pesquisa de Mestrado que pretendemos realizar, mapeando o que na narrativa
literária brasileira já foi abordado, mesmo que parcialmente, sobre essa questão, e
mostrando como a narrativa trata esse tipo de relacionamento. Analisar neste trabalho o
conto Frederico Paciência, de Mário de Andrade, (in Contos novos, 1947), do ponto de vista das
relações de poder que envolvem a questão da descoberta afetiva entre pessoas do mesmo
sexo, com base principalmente nos estudos de Michel Foucault sobre o exercício do poder
entre os indivíduos, é apenas uma pequena parte de um esforço maior de pesquisa.
Mário de Andrade se destaca na literatura brasileira por ser um dos expoentes do
Modernismo, movimento caracterizado no cenário artístico brasileiro a partir da década de
217
20 do século passado por promover na pintura, na literatura e na música, questionamentos
sobre o que se apresentava na realidade social e política brasileira. Em se tratando de
Frederico Paciência, o conto faz parte de uma coletânea lançada pós-morte do autor, em 1947,
e apresenta um texto mais intimista e introspectivo de Mário de Andrade. É a primeira e
única manifestação do autor sobre o tema da homoafetividade.
No geral, a literatura brasileira que aborda a temática homoerótica ou homoafetiva
tem evoluído quantitativamente, nesse aspecto, desde o século XIX, quando surgiram os
primeiros romances dedicados total ou parcialmente ao tema, a exemplo de O Ateneu (1888)
e Bom-crioulo (1895), de Adolfo Caminha. Em especial na literatura contemporânea, a partir
da segunda metade do século XX, esse tipo de literatura tem aparecido e crescido,
principalmente no segmento "best-seller", mas também no que a crítica chama "alta
literatura". O recorte dado para a infância nos apresenta novos desafios.
Em Frederico Paciência, as relações de poder, seja na escola, na rua, na família, a
repressão e a auto-repressão em torno da descoberta homoafetiva, manifestam-se na voz
de um narrador em primeira pessoa, Juca, que num tom de memória, constrói uma
narrativa repleta de interrupções, confusões, impressões sentimentais conturbadas sobre a
relação entre dois garotos, ele e Frederico Paciência, que se conhecem na escola. Mesmo
que a narração parta do próprio protagonista, percebe-se que o discurso assume uma
posição de submissão aos valores heteronormativos presentes entre os adultos, com claras
manifestações desse poder e desse controle descritos por Foucault, que não estão apenas
nos aparelhos de Estado, não partem apenas do soberano em direção aos seus súditos, mas
aparecem como uma tecnologia de poder sobre os corpos, sobre as almas.
A história dessa microfísica do poder punitivo que se exerce mais
do que se recebe seria então uma genealogia ou uma peça para
uma genealogia da ―alma‖ moderna. A ver nessa alma os restos
reativados de uma ideologia, antes reconheceríamos nela o
correlativo atual de uma certa tecnologia do poder sobre o corpo.
Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito
ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que
é produzida permanentemente, em torno, na superfície, do interior
do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os
que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são
vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os
escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho
de produção e controlados durante toda a existência.
(FOUCAULT, 1987, p. 28).
218
Ou seja, para o estudioso francês, quanto mais natural for a mecânica de exercício
desse poder mais eficiente ele será. (FOUCAULT, 1987, p. 87). E é isso que se apreende na
narrativa andradiana de Frederico Paciência. A repressão ao despertar da homoafetividade
parte, principalmente, do inconsciente do próprio Juca. A todo instante, ele quer o outro,
mas o rejeita ao mesmo tempo.
Na visão de Juca, Frederico era a ―aspiração ao nobre, ao correto‖, o modelo de
perfeição masculina, de imitação, contraponto à sua feição ―fraca‖ e ―feia‖; à sua falta de
espontaneidade, de coragem; sua tendência aos vícios e à preguiça. Desde o começo do
texto, o sentimento erótico confuso de Juca por Frederico aparece mesmo que sutilmente,
quando ele afirma: ―Senti logo uma simpatia deslumbrante por Frederico Paciência, me
aproximei franco dele, imaginando que era apenas por simpatia. (...). Tive ânsias de imitar
Frederico Paciência. Quis ser êle, ser dêle, me confundir naquele esplendor, e ficamos
amigos‖. (ANDRADE in DAMATA, 1967, p. 83).
―Único‖ amigo. A narrativa destaca o adjetivo único com ênfase porque esse único
talvez queira dizer um algo mais que um amigo. Além disso, o erotismo se apresenta nos
momentos em que Juca se pega absorto na beleza do companheiro. ―Frederico Paciência
estava maravilhoso, sujo do futebol, suado, corado, derramando vida‖. Rapidamente, a
narrativa evoca o sentimento de rejeição por parte do outro e de auto-rejeição, de vergonha
da parte de Juca. ―Me olhou com uma ternura sorridente. Talvez houvesse, havia um pouco
de piedade. Me estendeu a mão a que mal pude corresponder, e aquela despedida de
costume, sem palavras, me derrotou por completo . Eu estava envergonhadíssimo, me
afastei logo, humilhado, andando rápido para casa, me esconder‖. (ANDRADE in
DAMATA, 1967, P. 85).
O narrador chega a denominar a infância, com um tom negativo, a relação entre os
dois amigos. ―O pior é que Frederico Paciência depusera tal confiança em mim, me fazia
tais confissões sobre instintos nascentes que me obrigava a uma elevação constante de
pensamento. Uns dias quase o odiei. Me bateu clara a intenção de acabar com aquela
―infância‖. Mas tudo estava tão bom‖. (ANDRADE in DAMATA, 1967, p. 85).
Supomos que essa comparação entre a relação homoafetiva que crescia entre os
dois e a fase caracterizada como ―infância‖ remete ao histórico de repressão e exclusão que
219
a idade que antecede a vida adulta sofre desde muitos séculos no Ocidente. Foucault (2001)
em Os anormais: curso no Collège de France (1974/1975) trata dessa questão das práticas de
exclusão dos leprosos na Idade Média, remetendo a outros grupos historicamente
rejeitados pela sociedade ocidental.
Em suma, eram de fato práticas de exclusão, práticas de rejeição, práticas de
―marginalização‖, como diríamos hoje. Ora, é sob essa forma que se descreve, e
a meu ver ainda hoje, a maneira como o poder se exerce sobre os loucos, sobre
os doentes, sobre os criminosos, sobre os desviantes, sobre as crianças, sobre os
pobres. Descrevem-se em geral os efeitos e os mecanismos de poder que se
exercem sobre eles como mecanismos e efeitos de exclusão, de desqualificação,
de exílio, de rejeição, de privação, de recusa, de desconhecimento; ou seja, todo
o arsenal dos conceitos e mecanismos negativos da exclusão. (FOUCAULT,
2001, p. 54).
Pressionado pelos valores da sociedade, o próprio Juca rejeita a relação que se torna
cada vez mais intensa com Frederico Paciência. Ao mesmo tempo em que o deseja
eroticamente – ressalte-se que a consumação da relação sexual entre os dois não fica clara
em parte alguma da narrativa – Juca quer excluí-lo de sua vida. ―Em mim, fiz mais foi
calcular depressa quantos anos faltava para me livrar do meu amigo‖. (ANDRADE in
DAMATA, 1967, p. 85).
O episódio em que Juca empresta um certo livro proibido para Frederico,
―Histórica da prostituição da Antiguidade‖, ilustra a impregnação de que o tema da
sexualidade estava sujeito no contexto e época em que se passa a narrativa. Como se
representasse um ritual de silêncio, um pacto pela exclusão de tais sensações eróticas de
suas vidas, o livro foi destruído por Juca.
E as ruas foram sujadas pelos destroços irreconstituíveis da ―História da
Prostituição na Antiguidade‖. Eu sabia que ficava um veneno em Frederico
Paciência, mas isso agora não me inquietava mais. Êle, inteiramente entregue,
confessava, agora que estava liberto do livro, que ler certas coisas apesar de
horríveis, ―dava uma sensação esquisita, Juca, a gente não pode largar.
(ANDRADE in DAMATA, 1967, P. 89).
Foucault (1988) assinala bem esse poder que obriga os indivíduos a reprimir certas
sensações, em especial a que estão relacionadas com o sexo:
Dir-me-ão que, se há tanta gente, atualmente, a afirmar essa repressão, é porque
ela é historicamente evidente. E que se falam com uma tal profusão e há muito
tempo, é porque essa repressão está profundamente firmada, possui raízes e
razões sólidas, pesa sobre o sexo de maneira tão rigorosa, que uma única
denúncia não seria capaz de liberar-nos; o trabalho só pode ser longo. E tanto
mais longo, sem dúvida, quanto o que é próprio do poder – e, ainda mais, de um
poder como esse que funciona em nossa sociedade – é ser repressivo e reprimir
220
com particular atenção as energias inúteis, a intensidade dos prazeres e as
condutas irregulares. (FOUCAULT, 1988, p. 15).
No momento da narrativa andradiana em que a relação do poder repressivo dos
outros sobre a amizade dos dois garotos se manifesta com mais veemência, Frederico e
Juca recorrem à agressão física para reagir. A literatura apresenta-se como mais um registro
histórico de como se tratam as questões que envolvem contatos homoafetivos, em especial
no contexto escolar. A punição explícita e selvagem deu lugar a um suplício silencioso,
proveniente de múltiplas fontes e situações de persuasão, como bem destaca Foucault em
Vigiar e punir (1987). Vejamos trecho do conto que aborda essa situação:
Diante de uma amizade assim tão agressiva, não faltaram bôcas de serpentes.
Frederico Paciência, quando a indireta do gracejo foi tão clara que era
impossível não perceber o que pensavam de nós, abriu os maiores olhos que lhe
vi. Veio uma palidez de crime e êle cegou. Agarrou o ofensor pelo gasganete e o
dobrou nas mãos inflexíveis. (...). Frederico Paciência só grunhia: ―Êle me
ofendeu‖, ―Êle me ofendeu‖. Afinal – todos já tinham tomado o nosso partido,
está claro, com dó de Frederico Paciência, convencidos da nossa pureza – afinal
uma frase de colega esclareceu os podres. (ANDRADE in DAMATA, 1967, P.
89).
Logo depois é o próprio Juca quem vai acertar as contas com o colega difamador,
na busca por resgatar a ―pureza‖ da relação que mantinha com Frederico Paciência e sua
honra de ―homem-feito‖. Depois de dar uma surra no adversário, ele afirma: ―Não era
glória nem vanglória, nem volúpia de ter vencido, nada. Era um equilíbrio raro – êsse
raríssimo de quando a gente age como homem-feito, quando se é rapaz... Puro. Impuro‖.
(ANDRADE in DAMATA, 1967, p. 91).
O episódio da ação repressiva do colega nos remete ao que Foucault (1988)
argumenta sobre o controle da sexualidade infantil, que foi reforçado a partir do século
XIX pelas campanhas contra a masturbação durante a infância. Esforço que mobilizou as
sociedades ocidentais em torno do sexo das crianças, com mecanismos fortes de vigilância
em casa, nas escolas, na rua, espalhando o medo e a culpa. Prazer e poder andavam lado a
lado, numa constante interpenetração.
Prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga,
apalpa, revela; e, por outro lado, prazer que se abrasa por ter que escapar a esse
poder, fugir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo. Poder que se deixa invadir pelo prazer
que persegue e, diante dele, poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de
escandalizar ou resistir. (FOUCAULT, 1988, p.45).
Tal episódio também nos faz voltar a destacar a ―microfísica do poder‖ que
Foucault detectou nos mínimos detalhes das interações entre os indivíduos que se passam
221
no cotidiano. O poder não precisa do direito ou da violência para ser exercido. É um poder
disciplinar que tem o objetivo ao mesmo tempo de reprimir, corrigir e produzir saber,
produzir uma verdade e ser produzido por essa verdade. Roberto Machado, em prefácio da
25ª edição brasileira de Microfísica do poder (1979) explica:
O que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto um
deslocamento do espaço da análise quanto do nível em que esta se efetua. Dois
aspectos intimamente ligados, na medida em que a consideração do poder em
suas extremidades, a atenção a suas formas locais, a seus últimos lineamentos
tem como correlato a investigação dos procedimentos técnicos de poder que
realizam um controle detalhado, minucioso do corpo – gestos, atitudes,
comportamentos, hábitos, discursos. (FOUCAULT, 1979).
O próprio Foucault explica essa questão da manifestação do poder que advém de
certas verdades institucionalizadas pela sociedade, sendo uma dessas verdades a rejeição ao
padrão homoafetivo nas relações.
O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder
(não é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as
funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o
privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é
produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados
de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ―política geral‖ de
verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os
enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
(FOUCAULT, 1979, p. 12).
A ocorrência do primeiro beijo entre os dois amigos trouxe à tona novamente a
ambiguidade que permeava a relação, cada vez mais forte e cada vez mais arriscada.
―Precisamos tomar mais cuidado‖, constataram, após o beijo. Num misto de atração
irresistível e rejeição daquele sentimento, a relação de amizade entre Juca e Frederico
Paciência durou até perto da transição para a fase adulta, ou seja, os 18 anos.
E esta técnica, feita de afastamentos e paciências, naquele estádio de verdades
muito prêto e branco era uma pequena, voluntária desagregação impensada. De
maneira que adquiríamos uma convicção falsa de que estávamos nos afastando
um do outro, por incapacidade, ou melhor: por mêdo de nos analisarmos em
nossa desagregação verdadeira, entenda quem quiser. No colégio éramos apenas
colegas. De noite não nos encontrávamos mais, ele estudando. (ANDRADE in
DAMATA, 1968, p. 89).
O próprio título do conto, ―Frederico Paciência‖, nome que é repetido na narrativa
de 18 páginas ao todo 57 vezes, pode ser tomado como uma metáfora do que nos
apresenta a narrativa sobre a descoberta homoafetiva de dois garotos na São Paulo da
primeira metade do século XX. Paciência para suportar uma verdade que submetia a
222
relação a um poder disciplinador. Paciência, em fim, que durou o suficiente para marcar
para sempre a memória do narrador.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Mário de. Frederico Paciência. In: DAMATA, Gasparino (Org.). Histórias do
amor maldito. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1968.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. Rio de
Janeiro: LTC Editora, 1981.
COUTINHO, Fernanda. Figurações da infância. In: ______. Imagens da infância em
Graciliano Ramos e Antoine de Saint-Exupéry. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil,
2012
DOVER, Kenneth James. A homossexualidade na Grécia antiga. Tradução de Luís Sérgio
Krausz. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2007.
FOUCAULT. Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 25.
ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
______. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1979.
______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
______. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Tradução de Eduardo Brandão.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.
HEYWOOD, Colin. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente.
Tradução de Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2004.
LOPES, Denilson. Uma história brasileira. In: ______. O homem que amava rapazes e
outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à
atualidade. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
223
A LIDA E O LIDADOR: PORTUGAL SOB O SIGNO DA GUERRA84
Benjamin Rodrigues Ferreira Filho85
Resumo: Na Península Ibérica, durante o século XII, está em andamento um período de
terríveis batalhas entre cristãos e seguidores do Alcorão, pois desde o ano 711 os árabes
tinham iniciado a conquista de terras de Espanha e os povos ali estabelecidos lutavam pela
reconquista; a Dinastia de Borgonha da Coroa Portuguesa é fundada a partir de lutas
internas, que dividem o Condado Portucalense e lançam Dom Afonso Henriques contra
sua própria mãe, Teresa. No conto ―A morte do Lidador‖, Alexandre Herculano se refere
aos últimos combates do cavaleiro Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, que morre, em
luta contra os islâmicos, aos noventa e cinco anos de idade. No Quarto Livro de Linhagens,
onde se encontra a narrativa ―De dom Gomçallo Meendez da Maya o Lidador e das
batalhas que ouue‖, é narrada, da mesma maneira, a morte heróica do guerreiro lusitano.
Este cavaleiro também é personagem do romance O bobo, de Herculano, onde aparece,
mais uma vez, como um combatente valente e orgulhoso. Tendo como ponto de partida os
referidos textos literários, este trabalho aborda o tempo histórico do estabelecimento do
Reino de Portugal, sob Dom Afonso Henriques (Dom Afonso I, que reina de 1139 a
1185): trata-se de um tempo de guerra e carnificina, quando os portugueses lutam para
reconquistar as terras lusitanas dos árabes e pretendem organizar o seu reino.
Palavras-chave: Portugal; Idade Média; Guerra.
Abstract: On the Iberian Peninsula, during the XIIth Century, a period of intense battles
was underway between Christians and the followers of the Koran. Such battles had been
waged since the year 711, when the Arabs began to conquer lands belonging to Spain and
the population who had established their livelihoods on these lands fought to reconquer
their losses. During the same time period, the Portuguese House of Burgundy was
founded, based on internal fighting which divided the County of Portugal and lanced Don
Afonso Henriques to battle against his own mother, Teresa. In the story The Death of the
Lidador , Alexandre Herculano refers to the last battles fought by the knight Gonçalo
Mendes da Maia, known as the Lidador for his fearlessness, who dies at the age of ninetyfive in battle against the followers of Islam. In the Quarto Livro de Linhagens, a peerage
book compiled in Portugal in the Medieval period in which the lineages of the nobility were
recorded, one finds the narrative De dom Gomçallo Meendez da Maya o Lidador e das
batalhas que ouue, in which the heroic death of the Portuguese knight is told in the same
manner. The same knight is also found as a character in the romance The Fool , written by
Herculano, where he once again appears as a valiant and proud combatant. Taking as
reference the above-mentioned literary texts, this paper addresses the turmoil of the
historical period in which the Kingdom of Portugal is established, under the leadership of
Don Afonso Henriques (Don Afonso I, who reigns from 1139 to 1185): it is a time of war
and carnage, when the Portuguese must fight to reconquer Lusitanian lands from the Arabs
and organize their reign.
Este trabalho está ligado ao Projeto de Pesquisa ―Brasil e Portugal: o processo colonial‖, desenvolvido na
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus Universitário de Rondonópolis, por sua vez
vinculado ao Grupo de Pesquisa ―As vicissitudes da civilização brasileira‖, cadastrado no Cnpq desde 2010.
85 Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus
Universitário de Rondonópolis.
E-mail: [email protected]
84
224
Keywords: Portugal; Middle Ages; War.
O primeiro rei de Portugal, Dom Afonso Henriques (Dom Afonso I), reina de
1139 a 1185 e, quando inaugura a Coroa Portuguesa, vive muitos efeitos da longa história
daquela terra peninsular. Um dos principais problemas que enfrenta é a presença dos
árabes, chegados aos sítios de Espanha desde 711, período em que os godos estavam
estabelecidos na faixa territorial em que hoje se assenta Portugal. Os godos, por sua vez,
tinham instalado o seu poder no local no contexto das chamadas Invasões Bárbaras, que
destituíram o domínio romano. Antes dos romanos estavam os celtiberos e antes dos
celtiberos havia vida humana no chão que é Portugal desde a Idade da Pedra. Toda história
se perde em um passado longínquo, na escuridão irrecuperável. E as vibrações de tempos
muito distantes chegam até o presente. Qualquer presente. O passado está perdido, mas
todo passado é presente.
Assim, ainda está em andamento a constituição do Reino de Portugal. Afonso
Henriques derrota Teresa, sua mãe, na Batalha de São Mamede (1128); proclama-se rei
após a Batalha de Ourique (1139), quando, segundo a lenda, Cristo teria aparecido em
pessoa para ele, o que dá à tradição portuguesa um aspecto religioso bastante saliente e este
estímulo venerando (entre todos os outros, evidentemente) justifica os combates e as
carnificinas. ―Mas já o Príncipe Afonso aparelhava / O lusitano exército ditoso, / Contra o
mouro que as terras habitava / De além do claro Tejo deleitoso‖, canta Luís de Camões,
em Os lusíadas (1988, p. 87; canto III, estrofe 42). A bênção e a espada se estreitam e a
união da arma com a fé perdura durante os séculos, como registra Fernando Pessoa, em
Mensagem (2010, p. 27): ―Pai, foste cavaleiro. / Hoje a vigília é nossa. / Dá-nos o exemplo
inteiro / E a tua inteira força! // Dá, contra a hora em que, errada, / Novos infiéis
vençam, / A bênção como espada, / A espada como bênção!‖. O historiador, o ficcionista,
o poeta e o leitor vivem, em suas figurações, o momento em que nasce essa dinastia, que
traça uma história. Os movimentos sociais, políticos, econômicos e culturais relacionados
aos lusitanos se dão, em forma de presente pulsante, na dinâmica de cada aproximação —
cognitiva e emocional.
Dom Afonso Henriques vive, por exemplo, em O bobo, de Alexandre Herculano,
enfrentando sua própria mãe, como futuro rei fundador. E sua figura e suas ações são
elementos orgânicos de uma história. Em ―Arras por foro de Espanha‖, o povo, ―envolto
nos seus eternos farrapos‖, insatisfeito com o envolvimento afetivo do rei Dom Fernando
com Dona Leonor Teles (que não pode deixar de ser político, perigosamente político),
225
manifesta a sua cólera, na praça pública; e vemos, então, no conto e na história, a dialética
do poder popular, ―ridículo e feroz‖, ―sublime e terrível‖, promissor e decepcionante
(HERCULANO, 1985, p. 148). Componentes importantes da cultura portuguesa, essas
imagens estão em vigor, presentemente. Como indaga Walter Benjamin (1994, p. 223),
―Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas
vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?‖.
O passado, então, como aquilo que efetivamente aconteceu, de uma forma e não de
outra, está vivo e é presente. A Guerra do Peloponeso ocorreu, Roma ocorreu, as Cruzadas
ocorreram; e as consequências e vibrações do havido se prolongam. A Guerra do
Peloponeso ocorre, Roma ocorre, as Cruzadas ocorrem. O Brasil é colonizado por Portugal
e não por Espanha, França ou Holanda. Cada cena histórica — como drama representado,
como quadro real — está ainda em andamento. A cada leitura (interpretação do
acontecimento), o drama histórico pode ganhar nova roupagem e novos sentidos, porém
não é da energia de sua realização existencial, latejante, que devem provir os textos,
historiográficos ou literários, que os registram, mesmo que o acesso ao fenômeno seja
problemático, mesmo que a história seja precária, mesmo que tudo seja invenção e que este
mesmo drama histórico esteja definitivamente perdido? Se o olhar só pode ser turvo e não
pode compreender nunca o que acontece, nem por isso deixam de se realizar, vivas, as
coisas.
Uma vez que a história ocorreu, ela é inevitável; uma vez que é inevitável, porque
ocorreu, ela perdura no tempo humano; uma vez que perdura, é sempre presente.
No século XII, em Portugal, cristãos e árabes se enfrentam; aproximam-se e se
afastam; influenciam-se e se matam mutuamente. A guerra entre cristãos e mouros é um
componente tão importante da Idade Média ibérica que a cor vermelha do sangue
derramado está presente em todo o quadro geral, juntamente com o cotidiano das
povoações, com o seu funcionamento social e os seus apuros. Basicamente, portanto, há os
confrontos entre cristãos e árabes, porém há também: convivência, escravidão de ambos os
lados, cristãos a serviço de árabes, árabes a serviço de cristãos, cristãos contra cristãos,
árabes contra árabes. A dinâmica humana que se afigura, então, não é simplesmente de
conflitos binários; nunca é assim, pois a história é sempre múltipla e complexa.
―Nas terras onde se ia desagregando o domínio sarraceno ou naquelas que os
cristãos conquistavam não se ‗restaurou‘ propriamente uma estrutura política anteriormente
existente‖, afirma José Hermano Saraiva; ―Em vez disso‖, continua, ―nasciam poderes
novos que se iam moldando ao sabor das circunstâncias, poderes representados por chefes
226
locais entre os quais se estabelecia uma hierarquia nem sempre bem definida, intercalada de
episódios de submissão e de rebeldia‖ (1991, p. 41).
A situação política na península Ibérica, pois, não é nada estável. Ainda de acordo
com José Hermano Saraiva (1991, p. 42),
Alguns nobres governavam terras por nomeação dos reis, outros por as
terem eles próprios conquistado ou ocupado; nas tradições da nobreza
de Espanha ficaram muitos vestígios dessa nobreza que entendia não
dever nada aos reis. Os títulos desses governadores eram os de condes
ou de dux; eram um misto de proprietários e de guerreiros, de
governadores e de salteadores. Faziam a guerra quando o rei os chamava,
compareciam nas reuniões mais solenes que ele mandava reunir. Mas não
faltam exemplos de eles próprios fazerem guerra entre si ou contra o rei
e até ao lado dos reis mouros contra os reis cristãos. Quando Almançor,
no fim do século X, foi a Compostela arrasar a cidade (que por essa
altura se tornara centro de peregrinações) e roubar os sinos da catedral, ia
acompanhado por condes cristãos.
O governo de Dom Afonso Henriques sobre o Condado Portucalense começa com
a luta contra sua própria mãe que, morto o conde Dom Henrique (marido de Teresa e pai
de Dom Afonso Henriques), une-se ao conde de Trava (Fernando Peres), o que resulta em
tendência de ligação com a Galiza e de submissão a Leão e Castela. Como o Condado
Portucalense está mais propenso à independência política de que à obediência a Leão e
Castela, as próximas etapas são, efetivamente, a luta entre Dom Afonso Henriques e sua
mãe (batalha de São Mamede, em 1128) e sua autoproclamação como rei (em 1139 ou
1140). Este reinado, primeiro da Coroa Portuguesa, é assim resumido por Albert-Alain
Bourdon (2011, p. 17): Dom Afonso Henriques —
viria a alcançar a independência de Portugal. Após ter expulsado Teresa,
sua mãe, que procurava ligar Portugal à Galiza, recusou-se a prestar
homenagem ao primo Afonso VII, que em 1137, pelo tratado de Tui,
reconheceu a sua autoridade até a fronteira do rio Minho. Mas só o
prestígio alcançado na luta contra os mouros lhe viria a permitir a plena
realização dos seus desígnios. Em 1139, segundo a tradição, obteve a
célebre vitória de Campo de Ourique. Foi na sequência desta batalha que
tomou o título de rei, que Afonso VII só lhe reconheceu em 1143, pelo
tratado de Zamora. E só em 1179 o papa Alexandre III confirmou o
título. Do Minho ao Mondego estendia-se assim o jovem reino de
Portugal, que, além de Guimarães, a capital, e Braga, a metrópole
eclesiástica, compreendia duas cidades já importantes, Porto e Coimbra.
Trata-se de um reinado marcado por muito empenho, tomado pela guerra, banhado
de sangue. Entre os cavaleiros a serviço do rei, dedicados aos esforços das pelejas cruéis,
destaca-se o lendário Dom Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador.
227
Em O bobo, de Alexandre Herculano, a figura do Lidador aparece acompanhada das
melhores considerações. Ainda anônimo, pois no momento o narrador esconde do leitor a
identidade do personagem, assim vem qualificado Gonçalo Mendes da Maia: ―era um
cavaleiro que mostrava ter pouco mais de trinta anos, membrudo, alvo, cabelos anelados e
louros — um verdadeiro nobre da raça germânica dos visigodos‖ (1967, p. 34). Adiante,
agora identificado e distinto, o Lidador recebe, por parte do narrador, outros qualificativos
elogiosos: ―era o célebre Gonçalo Mendes da Maia, ao qual, em verdes anos, extremadas
gentilezas de armas tinham feito dar o apelido de Lidador, de que por toda a sua larga vida
ele se havia de mostrar constantemente digno‖ (1967, p. 37). Em O bobo, o Lidador é um
nobre muito preocupado com a situação política que lança Dom Afonso Henriques contra
Dona Teresa e o conde de Trava e, embora se esforce para que não ocorra o levante do
filho contra a mãe, não tem nenhuma dúvida em apoiar o seu suserano.
A narrativa ―De dom Gomçallo Meendez da Maya o lidador e das batalhas que
ouue‖ está no Livro de linhagens do Conde Dom Pedro — o escrito aqui considerado consta na
Antologia de textos medievais de José Pereira Tavares (1957, p. 233-237) e a grafia adotada
obedece a essa edição. O texto do livro de linhagens, sucinto e positivo, já tem no início o
sinal de adição, indicando que o herói nobre empreendeu mais batalhas e obteve mais
vitórias do que está narrado na obra (―e vemçeo muitas lides de que aqui nom falamos‖).
Em Beja, como cavaleiro encarregado da guarda da cidade, Gomçallo Meendez da Maya
enfrenta duas batalhas, uma contra o grupamento de Almoliamar, outra contra os
guerreiros de Alboaçem (rei de Tanger), que chegam para auxiliar Almoliamar. Quando
enfrenta Almoliamar (que é um homem extraordinariamente forte, pois ―avia tall força que
em todo homem que posesse a lamça nom lhe valia armadura que se lhe nom quebrasse
que lha nom metesse pelo corpo‖), o Lidador o mata, porém também é golpeado,
mortalmente. Ferido, seus companheiros o recolhem, contentes pela vitória parcial, mas já
apreensivos, por avistarem as hostes de Alboaçem, que correm em auxílio dos árabes.
Informado sobre a chegada da tropa inimiga, abatido pelas lesões, o Lidador chama os seus
fidalgos e dialoga com eles. Primeiramente, diz que todos sabem como foi vontade de
Deus que Dom Afonso Henriques (―dom Affomso Amrriquez‖, no texto) o nomeasse
guarda da fronteira de Beja; aqui, a marca da vassalagem: acima do merecimento de
Gomçallo Meendez da Maya está a vontade do rei. O Lidador entende que cada um
daqueles nobres guerreiros portugueses merece comandar a defesa de Beja; mas, dada a
urgência da hora perigosa, em que o inimigo vem velozmente, cresce em número e força e
não permite uma longa assembleia, ele pede que lhe permitam emitir o seu parecer sobre a
228
situação. Todos concordam, pois, ali, não são apenas companheiros de luta que estão
diante de um guerreiro ferido, mas sim camaradas que amam o cavaleiro batido. O Lidador,
então, pede um ―dom‖, solicita que lhe concedam o que requer. A resposta comum é que
não há o que peça o Lidador que eles todos não outorguem, pois todos estão certos de que
o pedido só pode ser razoável, só pode implicar em mais honra para todos. O Lidador sabe
que está mortalmente ferido, sabe que perde as forças, mas esconde isso de seus amigos;
tudo é urgente, pois a vida está se acabando e é preciso resolver questões políticas de
organização da guerra contra os árabes; o seu pedido é que, perecendo ele na peleja, que
seja substituído por Dom Egas Gomes de Sousa, nobre ―de boa linhagem e de gramdes
bomdades‖. Casado com Dona Gontinha Gonçalves, Dom Egas Gomes de Sousa é genro
do Lidador. O rosto de Gomçallo Meendez da Maya perde cada vez mais a cor; Affomso
Ermigic Bayam percebe sua fraqueza crescente e lhe diz que se desarme e sossegue, a um
canto, de onde veja os seus companheiros morrerem ou vencerem o inimigo, que outra
cena não há para contemplar senão a destruição da guerra. A resposta do Lidador é que
Deus não queira que ele esconda sua força enquanto ela possa durar e ser usada a favor de
seus amigos, de tais amigos. Os mouros se aproximam rapidamente, sabendo que a batalha
com os homens de Almoleymar atingiu a força dos cristãos e portanto favoreceu os
islâmicos, facilitando a vitória árabe. Então Gomçallo Meendez da Maya se ergue e
pronuncia: Guerreiros! — ―senhores, estes mouros veem com gram loucura, vaamollos
rreçeber‖! Lançam-se à batalha. Logo o Lidador cai de sua montaria, fraco, mais ferido
ainda, porém imediatamente ajudado pelos amigos, ―que já o nom podiam vimgar se ali o
nom vimgauam‖. A força do afeto pelo cavaleiro aumenta a força da violência; a força da
amizade multiplica o ímpeto contra o inimigo. E a luta se faz, determinante, partindo armas
e armaduras, despedaçando os corpos humanos, lançando ao chão o sangue que antes
corria nas veias e dava vida à carne. Os estragos são tantos e de tal ordem que cristãos e
mouros, vendo os sinais do embate, não podem crer que os golpes ali desferidos tenham
vindo de ação humana. Os corpos humanos, jogados ao chão, estão dilacerados, cortados
pela metade, aos pedaços; também jazem por terra os cavalos, animais que não decidem
pela razão de que lado político ou religioso estão, apenas obedecem aos homens, mas
perecem igualmente. Não faltam cadáveres nos campos de batalha. Diz a lenda que o
próprio Santiago lutou ao lado dos portugueses. Corre entre o povo que os golpes que
causaram tais destroços só podem ter sido feitos em uma ocasião maravilhosa, fantástica,
sobrenatural, no caso, Santiago, com a força de Deus, teria agido ali. Consta no Livro de
linhagens do Conde Dom Pedro (TAVARES, 1957) que — ―a verdade foy esta‖ — estes golpes
229
―forom dados por os muy boos fidallgos com ajuda de Santiago‖. Os mouros são
derrotados. O Lidador é encontrado morto pelos seus amigos de armas. Tristeza e dó é o
que podem oferecer, dignos e altivos, porém acabrunhados, os cavaleiros portugueses. O
defunto (agora o Lidador é apenas um morto) é recolhido dignamente, com as honras que
merece. Tinha noventa e cinco anos de idade. Era chamado já há bastante tempo de
Lidador. Agora é um cadáver de guerreiro e é chamado pelos amigos de ―o boo velho
lidador‖. Olham para o seu corpo morto e verificam que suas feridas, tão grandes, estão em
partes fatais. Perguntam-se como pôde a força do herói durar tanto, se tão frágil ele estava;
e testemunham a lenda do Lidador.
A fama dessa batalha junta-se à fama de feitos anteriores e logo vai adicionar mais
heroísmo à tradição popular e literária do Lidador e dos cavaleiros portugueses — à
tradição popular, à lenda e ao mito do nobre português, alimento forte do nacionalismo
dos lusíadas. É por isso que Vitorino Nemésio (1967) entende que, depois, já no século
XIX, Alexandre Herculano, como historiador e escritor romântico, tem a intenção de usar
o passado (o heroísmo pretérito) para encorajar os homens do presente, ao olhar de
Herculano tão inferiores e mesquinhos, em relação aos nobres portugueses da Idade Média.
O conto de Alexandre Herculano, ―A morte do Lidador‖ (1985, p. 107-118) tem
marca temporal específica e precisa, julho de 1170, e começa com a voz de Gonçalves
Mendes da Maia, que reclama de pajens e cavaleiros as armas e apetrechos de guerra, para
celebrar, no campo de batalha, os seus noventa e cinco anos de idade. Parecem ser palavras
imprudentes, tanto que Mem Moniz chama a sua atenção, alertando que Almoleimar ronda
os arredores de Beja, munido de armas que superam dez vezes os aparatos bélicos dos
portugueses. O Lidador, porém, desdenha da sensatez de Mem Moniz, alegando que o rei
não o encarregou da defesa de Beja para ficar no castelo espreitando de longe os inimigos,
―como velha dona‖, vigiando se chegam, para logo correr, fechar as portas e ladrar de cima
contra eles, ―como usam os vilãos‖. Entusiasmados, todos os cavaleiros riem, e então é a
vez de Mem Moniz mandar a precaução às favas, atirar violentamente o guante ao chão e
dizer que não fica no castelo enquanto houver lidas contra mouros; ele desafia o Lidador
para disputar quem primeiro atinge os inimigos; e a tropa sai; os ferros das armaduras
percutem no chão de mármore e logo a cavalaria aumenta os ruídos da partida, na
iminência da guerra. O narrador de Herculano convida o olhar do leitor para um passeio
pelos campos de Beja, cultivados por escravos mouros, e a voz histórica deste mesmo
narrador considera os séculos de luta entre cristãos e árabes na Península Ibérica. O
momento é de ameaça, os confrontos estão prestes a ocorrer. As duas facções de guerreiros
230
logo se encontrarão. Almoleimar está muito próximo e a tropa portuguesa avança. Mais de
uma vez Alexandre Herculano se refere a números: seriam trinta fidalgos portugueses
unidos a cerca de trezentos escudeiros e pajens; do lado mouro, o contingente é cinco
vezes maior. ―A rudeza e a força da raça gótico-romana iam, ainda uma vez, provar-se com
a destreza e com a perícia árabes‖, alerta o narrador. ―Encontraram-se! Duas muralhas
fronteiras, balouçadas por violento terremoto, desabando, não fariam mais ruído, ao bater
em pedaços uma contra a outra, do que este recontro de infiéis e cristãos‖: a voz do
narrador é partidária. A guerra, plena, pode espalhar destruição e morte. Armas são
quebradas, carnes são rasgadas, ossos são partidos e os homens se matam entre si. Durante
os combates, Mem Moniz responderá, não apenas uma vez, à brincadeira do Lidador, feita
logo no início da ação do conto, no castelo de Beja, demonstrando que ficou sentido, talvez
ofendido, pois tomou contra si a imagem da velha que vigia de longe os mouros e grita
contra eles, protegida pelos muros, como vilão ordinário. O melindre entre os dois acaba
sendo um ponto afetivo importante do conto, sendo que Lourenço Viegas (o Espadeiro)
intervém energicamente e parece resolver a questão. Palavras, palavras: tanto acalmam
quanto ferem. Claro que Almoleimar e o Lidador se encontram no campo de batalha e se
enfrentam. Na luta, Almoleimar morre e o Lidador fica ferido de morte. A imagem de
Herculano é marcante, porque, contra os ódios recíprocos e contra a definitiva
impossibilidade de reconciliação, o escritor chama a atenção para a união dos sangues
inimigos: ―Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue godo misturado com
sangue árabe‖. Tanta repulsa, tanta ira entre os homens, para tudo acabar na solidariedade
odiosa dos sangues inimigos unidos: ―Onde está o ódio entre esses homens próximos,
abraçados, cujos sangues se procuram, pintando o mesmo desenho no chão desolado?‖
(FERREIRA FILHO, 2008, p. 180). O Lidador desfalece no campo, é socorrido e levado
para um lugar seguro, enquanto a labuta, agora em gradação descendente, continua
aumentando o número de mortos. ―O tinir dos golpes era já muito frouxo e sumia-se no
som dos gemidos, pragas e lamentos que soltavam os feridos derramados pela veiga
ensanguentada‖. Chegam, porém, novos guerreiros mouros; e o Lidador se ergue, fraco,
mas revigorado pela cólera, para matar quantos possa e morrer lutando, como bom
cavaleiro e como cristão dado às armas. De fato, antes de cair, morto, sobre o chão da
Espanha banhada em sangue, Gonçalo Mendes da Maia, como guerreiro, faz estragos; suas
forças, contudo, se esgotam e sua vida chega ao fim. Em O bobo, sua voz poderosa já havia
proclamado, em presságio: ―eu, o homem que, ao abrir os olhos no mundo, a primeira luz
que vi foi o reflexo brilhante de armas polidas, e que espero, ao cerrá-los para sempre, vê-
231
las reluzir no volver derradeiro deles‖ (HERCULANO, 1967, p. 44). De volta ao conto,
eis a morte do Lidador, sob o foco romântico do escritor-historiador e dos olhos atentos
do leitor. A notícia se espalha e entre os portugueses também espalha lágrimas. A peleja,
contudo, não acabou. A tropa de Ali-Abu-Hassan chega à praça de guerra. A luta se
intensifica. Gritando o nome do Lidador, o Espadeiro mata Ali-Abu-Hassan. Os mouros,
em número muito maior, fogem. Cabe citar a imagem do sombrio retorno dos guerreiros,
depois do combate:
Os portugueses, senhores do campo, celebravam com prantos a vitória.
Poucos havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse as
armas falsadas e rotas. O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta
que naquela jornada tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes,
foram conduzidos a Beja. Após aquele tristíssimo préstito, iam os
cavaleiros a passo lento, e um sacerdote templário, que fora na cavalgada,
com a espada cheia de sangue metida na bainha salmeava em voz baixa
aquelas palavras do livro da Sabedoria‖.
Sim, a guerra é santa — o conflito é religiosamente aberto e o final do conto é
litúrgico. As palavras do livro da Sabedoria, em latim, são divinas: ―Justorum autem animae in
manu Dei sunt, et non tangent illos tormentum mortis‖.
Antônio José Saraiva e Óscar Lopes ([S.d.], p. 688) consideram em Alexandre
Herculano ―certo culto do cavaleiresco, bem mais incoerente num homem que se dizia
‗burguês dos quatro costados‘, do que no seu modelo, Walter Scott, que era um passadista
intencional‖; e dizem ainda que ―Os belos lances de armas que o burguês de 1840 ligava à
recordação dos brasões extintos, a defesa da honra à ponta de espada ou de punhal, etc.,
enchem muitas páginas do autor da Voz do profeta‖. De fato, Herculano parece valorizar,
como Friedrich Nietzsche, a ―alma nobre‖, orgulhosa e superior. Em Além do bem e do mal
(1998, p. 181; seção 265), Nietzsche desfia: ―Com o risco de desagradar a ouvidos
inocentes eu afirmo: o egoísmo é da essência de uma alma nobre, quero dizer, aquela
crença inamovível de que, a um ser ‗tal como nós‘, outros seres têm de sujeitar-se por
natureza, e a ele sacrificar-se‖. Em uma passagem anterior, o severo filósofo alemão elucida
que ―A casta nobre sempre foi, no início, a casta de bárbaros: sua preponderância não
estava primariamente na força física, mas na psíquica — eram os homens mais inteiros (o que
em qualquer nível significa também ‗as bestas mais inteiras‘ —)‖ (1998, p. 170; seção 257).
Como escritor romântico, Alexandre Herculano glorifica o passado lusitano,
querendo assim elevar um pouco o presente decadente de seu tempo (século XIX). Em ―A
morte do Lidador‖, o narrador declara: ―Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que
no mês de julho de 1170 se deram na veiga da fronteira de Beja, notá-los-á de fábulas
232
sonhadas‖; explica, em seguida: ―porque nós, homens corruptos e enfraquecidos por ócios
e prazeres de vida afeminada, medimos por nosso ânimo e forças as forças e o ânimo dos
bons cavaleiros portugueses do século XII‖; e, finalmente, enfatizando a imagem do
prolongamento das vozes e dos rumores históricos no tempo, conclui: ―e todavia, esses
golpes ainda soam, através das eras, nas tradições e crônicas, tanto cristãs como agarenas‖
(HERCULANO, 1985, p. 116).
Embora o desejo sanguinário de vingança do escravo mouro que cultiva a terra
portuguesa não deixe de aparecer em ―A morte do Lidador‖ — ―esperava ele salvação ou,
ao menos, vingança; ao menos, um dia de combate e corpos de cristãos estirados na veiga
para pasto dos açores bravios‖ (HERCULANO, 1985, p. 109) —, a perspectiva cristã, que
pretende espalhar sua fé pelo mundo todo, prevalece, claro. O ponto de vista islâmico,
entretanto, pode defender igual missão universal: ―os árabes, a partir da morte de Maomé,
se sentiram encarregados de transmitir sua mensagem aos não-árabes, missão essa que lhes
conferiu para sempre um sentimento de superioridade‖ (SOURDEL, 2011, p. 26). Verdade
sagrada de um lado, verdade sagrada de outro. A realidade é que essas questões — políticas,
econômicas, religiosas, culturais — não estão esgotadas ainda hoje (2013), tempo que
também não eliminou a guerra, nem inúmeros outros problemas, tão antigos quanto o
próprio homem (e que parecem derivar exatamente dele, homem).
Neste mundo essencialmente econômico, as disputas de interesses, os conflitos
políticos, os choques culturais, os embates de poderes e tantos outros agravos grassam
sobre a Terra, enquanto as vidas humanas grafam suas histórias belas e terríveis. Nas redes
dos enredos, continuamente há contas a acertar e a guerra é sempre atual.
REFERÊNCIAS:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet; prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
BOURDON, Albert-Alain. História de Portugal. Lisboa: Texto & Grafia, 2011.
CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1988.
FERREIRA FILHO, Benjamin Rodrigues. Comédia negra e outros assombros: política, história e
guerra na ficção de Rubem Fonseca. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. Disponível em:
http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/trabalhos/2008/benjamimferreira_comedianegra.pdf.
Acesso em 9 de março de 2013.
HERCULANO, Alexandre. O bobo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.
233
_____. Contos. 2. ed. Introdução e seleção: Fernando Correia da Silva. São Paulo: Cultrix,
1985.
NEMÉSIO, Vitorino. Prefácio. In: HERCULANO, Alexandre. O bobo. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1967, p. 5-10.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. 2. ed.
Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Abril, 2010.
SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 14. ed. Mem Martins: EuropaAmérica, 1991.
SARAIVA, Antônio José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 3. ed. Porto: Porto
Editora, [s.d.].
SOURDEL, Dominique. História do povo árabe. Tradução: Cândida Leite Georgopoulos. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2011.
TAVARES, José Pereira. Antologia de textos medievais. Lisboa, Sá da Costa, 1957.
234
O (DES)ENSINO DE LITERATURA NO ENSINO MÉDIO:
LETRAMENTO LITERÁRIO E MEDIAÇÕES DOS LIVROS
DIDÁTICOS – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Bonfim Queiroz Lima Pereira86
Prof. Dr. Márcio Araújo de Melo (Orientador)87
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar algumas considerações sobre
uma proposta de pesquisa e análise do processo de escolarização da literatura em escolas de
ensino médio da rede estadual de ensino do município de Xinguara no estado do Pará.
Nosso interesse em investigar o referido assunto se justifica pela tentativa de contribuir
com os debates a respeito do uso de textos literários e dos livros didáticos de Português no
ensino de literatura, práticas estas norteadas por relações muito complexas, que carecem de
estudos, reflexões de discussões. Como esta pesquisa encontra-se em fase inicial o que
propomos aqui é refletir sobre a importância do ensino de literatura para a formação de
leitores literários, principalmente no ensino médio, pois será para muitos estudantes o
último contato sistemático com tal disciplina. Articulamos tais reflexões em dois
momentos: primeiro levantaremos considerações a respeito do termo letramento e sua
aplicabilidade no campo dos estudos literários e depois abordaremos algumas
considerações a respeito da escolarização da literatura e o papel do livro didático de língua
portuguesa nesse processo de ensino.
Palavras-chave: Ensino de literatura, Letramento literário, Livro didático.
Abstract: The present work has as objective to present some considerations about a
proposal of research and analysis of the process of schooling of the literature in schools of
high school of the state network of teaching of the county of Xinguara in the state of Pará.
Our interest in investigating the referred subject is justified by the attempt of contributing
with the debates about the use of literary texts and of the textbooks of Portuguese in the
literature teaching, these practices guided by very complex relations, that lack of studies,
reflections and discussions. As this research is in the initial phase what we propose here is
to reflect about the importance of the literary teaching for the formation of literary readers,
mainly in the high school, because it will be for many students the last systematic contact
with such subject. We articulate such reflections in two moments: firstly we raise
considerations about the term literacy and its applicability in the field of the literary studies
and after we will discuss some considerations about the schooling of the literature and the
role of the textbook of Portuguese language in this teaching process.
Mestranda em Ensino de Língua e Literatura do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Tocantins. E-mail: [email protected]
87 Professor do Programa de Pós-graduação em Ensino de Língua e Literatura, da Universidade Federal do
Tocantins. E-mail: [email protected]
86
235
Keywords: Literature teaching, Literary literacy, Textbook.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho apresenta uma proposta de investigação científica em andamento,
intitulada ―O (Des)Ensino de Literatura no Ensino Médio: letramento literário e
mediações dos livros didáticos‖, cujo objetivos são: compreender como se dá o processo
de escolarização da literatura em escolas estaduais de ensino médio no município de
Xinguara, estado do Pará, investigando a presença do livros didáticos de língua portuguesa
nas aulas de literatura e sua influência no processo de formação do leitor. Pretende ainda,
para melhor compreender o espaço da literatura no ensino escolar, levantar e descrever as
orientações para o ensino de literatura nos documentos oficiais como os Parâmetros e
Orientações Curriculares Nacionais dentre outros.
As considerações a serem apresentadas foram organizadas em duas seções. Num
primeiro momento são apresentados alguns pressupostos teóricos que embasarão está
pesquisa, num segundo momento apresentaremos algumas discussões relevantes a respeito
do ensino de literatura e do livro didático.
2. LETRAMENTO E LETRAMENTO LITERÁRIO
Nas últimas décadas do século passado, houve uma modificação profunda na
maneira de se compreender a leitura e a escrita. A linguagem passou a ser vista como um
processo dinâmico e o letramento começou a ser discutido no meio educacional brasileiro.
Conforme Magda Soares (2010) o vocábulo letramento foi usado pela primeira vez
no Brasil, por Mary Kato, no texto publicado pela editora Ática, No mundo da escrita: uma
perspectiva psicolinguística, em 1986. Dois anos depois, passou a representar um referencial no
discurso da educação, ao ser definido por Tfouni (1988) em Adultos não alfabetizados: o avesso
do avesso e retomado em publicações seguintes.
A partir de então, o termo tem despertado uma ampla discussão entre os estudiosos
de diversas áreas, como: Educação, Antropologia, Linguística e, mais recentemente, dos
Estudos Literários, gerando, dessa forma, inúmeras concepções, pois um consenso em
relação a uma única definição de letramento torna-se impossível, já que tal conceito
envolve aspectos ideológicos, operacionais e políticos.
236
De acordo com Soares (2010), é difícil estabelecer uma linha divisória que
determine quais indivíduos são letrados e quais seriam iletrados, pois ―o letramento é uma
variável contínua, e não discreta ou dicotômica‖ (p.71). Ainda segundo Soares, na busca
por traçar essa linha divisória, vários autores tentaram definir o conceito de letramento nos
últimos anos, porém acabaram enfatizando apenas uma das dimensões do letramento: ou a
individual ou a social. Quando é focalizada apenas a primeira dimensão, o letramento é
visto como a posse individual de tecnologias complementares aos atos de ler e escrever;
quando enfatizado na perspectiva social pode ser definido como ―o conjunto de práticas
sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto
social‖ (SOARES, 2010, p. 72). Em suma, Magda Soares considera que o letramento ―é um
contínuo, variando do nível mais elementar ao mais complexo de habilidades de leitura e
escrita e de usos sociais‖. (SOARES, 2010, p. 89).
Assim a inserção social do indivíduo está condicionada a compreensão dos usos
sociais da leitura e da escrita, desta forma ser letrado e ser alfabetizado são condições
relacionadas, porém diferentes. Encontramos indivíduos alfabetizados que não são capazes
de utilizar a leitura e a escrita socialmente, não letrados, chamados por muitos autores de
analfabetos funcionais; e muitos indivíduos analfabetos, que mesmo não tendo domínio do
código escrito, não tendo passado pelo processo de escolarização, apropriam-se desse
código em diversas práticas sociais. Um exemplo dessa apropriação, citado por Magda
Soares (2010), é o ditado de uma carta feita por um analfabeto, em que são utilizadas todas
as convenções desse gênero textual.
Dessa forma, o letramento não acontece apenas na escola, podem-se observar
inúmeras formas de letramento. Isso significa usos da escrita em diversos ambiente como
no trabalho, em associações de bairro, clubes, em comunidades religiosas, no ambiente
familiar, entre outros. Não existe, assim, um único tipo de letramento.
Considerando o letramento como conjunto de práticas sociais que usam a escrita
como sistema simbólico, para finalidades específicas e para contextos específicos, percebese que este conceito pode ser utilizado no campo dos estudos literários quando se
compreende a escrita e a leitura dentro das especificidades do texto literário.
Uma definição para o letramento literário é encontrada nas Orientações
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio: ―podemos pensar em letramento literário
como estado ou condição de quem não apenas é capaz de ler poesia ou drama, mas dele se
apropria efetivamente por meio da experiência estética, fruindo-o.‖ (BRASIL, 2006, p. 55).
237
Assim o letramento literário não é apenas a condição de ser capaz de ler e
compreender textos literários, mas aprender a gostar de ler literatura, e fazê-la por escolha,
pela descoberta de uma experiência única em cada leitura, associando este ato ao prazer
estético.
Para Paulino (1999, p. 16) ―o letramento literário, como outros tipos de letramento,
continua sendo uma apropriação pessoal de práticas de leitura/escrita, que não se reduzem
à escola, embora passem por ela‖. Essa passagem pela escola é muito importante para
formação do leitor de literatura e requer uma apreciação a parte.
3. A ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATUARA
O ensino de literatura que se desenvolve hoje nas escolas está aquém do desejado
por muitos professores, literatos e até dos próprios alunos. Pois o que se ensina na maioria
das aulas é a história da literatura, a gramática e a teoria literária através das tão estudadas
―escolas literárias‖. O conceito de literatura tomado como base para o ensino escolar difere
muito do desejado por Todorov e Candido, para esse:
A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser
satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar
forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos reorganiza, nos
liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é
mutilar a nossa humanidade. (CANDIDO, 2004, p. 186).
E para aquele: ―A literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras
maneiras de concebê-lo e organizá-lo‖. (TODOROV, 2009, p. 23). ―Ela nos proporciona
sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno sentido e mais belo‖
(TODOROV, 2009, p. 24). Se essa não for a visão adotada pelos educadores, a literatura
perde o real motivo de existir. E como consequência temos crianças e adolescentes que não
leem textos literários com grande frequência, a não ser naquelas situações em que as
leituras são cobradas pela escola ou num processo seletivo.
A descaracterização da literatura no processo de ensino vem suscitando inúmeras
discussões, inclusive, a respeito da sua permanência, como disciplina, no currículo escolar,
porém, para Rildo Cosson e Magda Soares esse não deve ser o foco do debate, e sim como
tornar tal ensino mais eficaz:
[...] devemos compreender que o letramento literário é uma prática
social e, como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser enfrentada
não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, como bem nos
alerta Magda Soares, mas sim como fazer essa escolarização sem
238
descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si mesma que
mais nega do que confirma seu poder de humanização (COSSON, 2009,
p. 23)
A escola tem adotado uma postura tradicional em relação ao ensino de literatura,
que acaba distanciando os alunos da leitura literária, pois na maioria das aulas o texto não
tem o seu sentido construído na interação autor/leitor, seu significado vem pronto de
acordo com crítico, o livro didático, e/ou o professor. A esse respeito Martins (2006, p. 85)
afirma ser ―preciso que a escola amplie mais suas atividades, visando à leitura da literatura
como atividade de construção e reconstrução de sentidos‖.
A literatura pode ser veículo de conhecimento e formação, desde que este não seja
o seu fim e sim uma de suas possibilidades, como afirma Todorov: ―todos os ‗métodos‘ são
bons, desde que continuem a ser meios, em vez de se tornarem fins em si mesmos‖ (2009,
p. 90).
Além disso, nenhum procedimento de interpretação ou leitura literária deve
desprezar ou descaracterizar sua natureza.
Venturelli (2002) afirma que a questão da leitura do texto literário para os
professores é uma obrigação burocratizada, não passa de uma tarefa muitas vezes
sistematizada e enfadonha que nada tem de relação com a vida do aluno. Segundo o autor,
a escola tornou a leitura do literário uma prática fossilizada, que não prepara o aluno para
constituir sentido para o texto literário.
Ler não é mais produzir significado, entrar no texto para reescrevê-lo e
por meio dele captar as sondas que o autor lançou sobre dores e alegrias
humanas. Literatura, na escola, é questão de enredo e personagem, título
e características. É vista como se os autores tivessem uma fórmula
mágica, a qual se submeteriam para produzir o texto. Linguagem, visão
de mundo, diálogo com a tradição e com as outras produções não são
levados em conta. (VENTURELLI, 2002, p. 151).
No ensino médio a responsabilidade de ensinar literatura é significativa, já que esses
três últimos anos na escola são decisivos para a formação do gosto literário, com exceção
dos estudantes que farão o curso Letras, é a última vez que terão aulas dessa disciplina.
Embora a escola não seja o único lugar de formação de leitores literários, se o aluno sai da
escola não gostando de tal leitura será mais incerta a adoção dessa prática em sua vida
cotidiana. Como afirma Cosson (2006, p. 26), ―a leitura fora da escola está fortemente
condicionada pela maneira como ela nos ensinou a ler‖.
Desta forma, o ensino de literatura não deve atender apenas às demandas que os
processos seletivos propõem, deve respeitar o aluno como um leitor em potencial,
239
oferecendo-lhe diversos textos, inclusive textos que estejam próximos de sua realidade
histórico-social, a fim de fornecer caminhos para que ele possa construir sua identidade,
enquanto leitor, além de se tornar um sujeito ―agindo sobre o mundo para transformá-lo e,
para, por meio de sua ação, afirmar sua liberdade é fugir à alienação‖, como afirma
Chiappini, (2005, p. 109).
3.2 O ENSINO DE LITERATURA E O LIVRO DIDÁTICO
Tratando da intervenção da escola na formação do gosto estético Bourdieu (apud
MARTINS, 2013, p. 03) salienta que há uma inclinação da pedagogia em procurar
―substitutivos à experiência direta, oferecendo atalhos ao longo encaminhamento da
familiarização‖ com as obras. A atitude historicamente constituída na escola para o ensino
de literatura costuma adotar a postura destacada por Bourdieu, pois utiliza o livro didático
como substituto às obras literárias.
Ademais é bom ressaltar que o agravante a essa situação, segundo Egon Rangel
(2005), é que na maioria das vezes, o aprendizado literário na escola fica restrito totalmente
ao livro didático, que, para muitos alunos, é o único meio de acesso ao texto literário:
[...] muitos brasileiros escolarizados dependem do LD, pois este tem sido
o principal meio de acesso ao mundo da escrita. E o LDP, com suas
atividades de estudo de texto, o instrumento por excelência de
aprendizagem da leitura e de concepção do que deva ser uma boa
leitura‖ (RANGEL, 2005, p.131).
Em seu artigo ―Reflexões sobre o livro didático de literatura‖, Pinheiro (2006) relata
sua própria experiência enquanto professor iniciante de língua materna, para quem os livros
didáticos foram um verdadeiro socorro a sua falta de prática com o ensino escolar, porém
com o passar do tempo verificou a ineficácia e incompletude de tais manuais.
Pinheiro (2006) discute uma série de questões envolvendo a utilização do livro
didático no ensino de literatura, dentre as quais destacamos o seu caráter mercadológico,
embora seja grande a diversidade de livros e reedições, a maneira de conceber o ensino de
literatura e a apresentação dos textos aos alunos tem pouca alteração, pois não há uma boa
aceitação dos manuais inovadores.
Outra problemática elencada por Pinheiro refere-se ao modelo seguido nos livros
didáticos para o estudo da literatura, não se estuda as obras em particular, estuda-se a
história da literatura. ―Por eleger uma formação de caráter enciclopédico, acaba-se por se
240
conhecer muito pouco cada obra, sobretudo no que ela tem de singular‖ (PINHEIRO,
2006, p. 110).
Além disso, ―sabe-se, pelas pesquisas recentes, que é durante a interação que o
leitor mais inexperiente compreende o texto: não é durante a leitura silenciosa, nem durante
a leitura em voz alta, mas durante a conversa sobre aspectos relevantes do texto‖.
(KLEIMAN, 2007, p.24). Infere-se, a partir dessa afirmação, a importância das atividades
de leitura realizadas em sala de aula, sobretudo aquelas relacionadas com a compreensão do
texto.
Ressaltando a importância da interação para compreensão do texto por parte do
leitor em formação, observa-se que, mesmo que o texto seja lido na integra pelo aluno, a
mediação é necessária para que todos os sentidos possam ser integralizados. Tem-se, então,
que investigar como é feita essa mediação pelo livro didático, que muitas vezes nem ao
menos disponibiliza o texto na integra para o aluno, e se a mediação feita pelo professor
corresponde às necessidades de formação de leitores literários.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, a escola é um dos principais meios onde se efetuam as práticas de
letramento literário, dessa forma o livro didático – que muitas vezes é o único recurso
utilizado pelo professor – é a principal via de acesso dos alunos ao mundo da literatura,
porém o modo como à escola conduz o processo de formação de leitores literários deve ser
reavaliado, segundo Pinheiro (2006), visando a busca de alternativas para um ensino
realmente capaz de motivar os alunos à leitura por prazer.
Na visão de alguns autores como Bordini & Aguiar (1983, p. 17), por
exemplo, os problemas do ensino de literatura não estão nos conteúdos
trabalhados em sala de aula, mas no modo como eles são abordados,
dada a ausência de uma discussão metodológica capaz de auxiliar a
prática pedagógica. (PINHEIRO, 2006, p. 91)
Nota-se, portanto a relevância de realizarem-se mais estudos dedicados a esse
ensino, para que se tenha uma dimensão de como se desenvolve nas escolas e nos livros
didáticos as práticas de letramento literário.
Muitas outras questões permeiam o processo de escolarização da literatura, tais
como o espaço das aulas de literatura na matriz curricular, a formação docente, as
bibliotecas escolares, a relação com as novas tecnologias, entre outras. As que
241
apresentamos aqui são apenas as primeiras inquietações que se apresentam em nossa
pesquisa, que deverá se aprofundar, buscando realizar uma investigação relevante que
contribua com o trabalho efetivo em sala de aula.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Departamento de
Políticas
de
Ensino
Médio.
Orientações
Curriculares
do
Ensino
Médio.
Brasília:MEC/SEB, 2006.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4. ed. São Paulo: Duas
Cidades, 2004.
CHIAPPINI, Ligia. Reinvenção da Catedral: língua, literatura, comunicação: novas
tecnologias e políticas de ensino. São Paulo: Cortez, 2005.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Editora Contexto,
2009.
KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria e prática. 11 ed. São Paulo: Pontes, 2007.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Compreensão de texto: algumas reflexões. In: BEZERRA, Maria
Auxiliadora; DIONISIO, Angela Paiva. (Orgs.) O livro didático de português: múltiplos
olhares. 3 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005
MARTINS, Aracy. Algumas reflexões sobre a relação literatura/escola. Disponível em:
www.anped.org.br/reunioes/24/T1008587950265.doc. Acesso em: 08/03/2013.
MARTINS, Ivanda. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor?. In: BUZEN,
Clécio; MENDONÇA, Márcia (orgs). Português no ensino médio e formação de
professor. São Paulo: Parábola editorial, 2006.
PAULINO, Graça. Letramento Literário: cânones estéticos e cânones escolares. Caxambu-MG:
ANPED. Texto encomendado: GT 10 - Alfabetização Leitura e Escrita. Texto eletrônico,
1999.
242
PINHEIRO, Hélder. Reflexões sobre o livro didático de literatura. In: BUZEN, Clécio;
MENDONÇA, Márcia (orgs). Português no ensino médio e formação de professor.
São Paulo: Parábola editorial, 2006.
RANGEL, Egon. Letramento Literário e Livro Didático de Língua Portuguesa: Os Amores Difíceis.
In PAIVA, Aparecida; MARTINS, Aracy; PAULINO, Graça; VERSIANE, Graça (orgs).
Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces – O jogo do livro. Belo
Horizonte: Ceale; Autêntica, 2005.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica,
2010.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro:
DIFEL, 2009.
VENTURELLI, Paulo. A leitura do literário como prática política. In: Revista Letras, Curitiba,
n. 57, p. 149-172. jan./jun. 2002.
243
A FESTA PAGÃ: ANÁLISE E REFLEXÃO SOBRE “DEUS E O
DIABO NO RIO DE JANEIRO” DE EDUARDO GALEANO
Breno Pauxis Muinhos88
Prof. Dr. Maria do Socorro Simões (Orientadora) 89
Resumo:O jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano utiliza como cenário a América
Latina em muitos de seus textos. Os assuntos traçam desde a política (fortemente discutida
em As Veias Abertas da América Latina) do período colonial, passando pela devoção religiosa
latino-americana, traçando heróis e vilões de nossa cultura, até reflexões críticas e
apaixonadas sobre o futebol. E é sobre religiosidade, Literatura e futebol que esta
comunicação se debruçará. Em Futebol ao sol e à sombra, tradução de Eric Nepomuceno, o
premiado escritor uruguaio desvela as maravilhas do jogo e suas personagens, e as
amarguras e maquinações políticas e comerciais que cercam a "festa pagã". Na presente
comunicação, a crônica Deus e o Diabo no Rio de Janeiro será o objeto de enfoque, no qual irá
se observar e analisar os elementos religiosos (das particularidades de determinados
símbolos religiosos ao sincretismo latente) e literários (apontando estilo e recursos
utilizados) presentes em tal texto.
Palavras-chave:Eduardo Galeano; Literatura & Futebol; Literatura & Religião;
Abstract: The Uruguayan journalist and writer Eduardo Galeano uses Latin America as
setting in many of his texts. The subjects are about the colonial period politic (especially in
As Veias Abertas da América Latina), the Latin-American religious devotion, the heroes and
the villains from our culture, and the critics reflections and passionate about football. It‘s
about religious, Literature and football what this communication will discuss. In Futebol ao
sol e à sombra, Eric Nepomuceno translation, the awarded Uruguayan writer reveals the
wonders of the game and its characters, the bitterness and commercial-politics
machinations what are around the ―pagan festival‖. In this presentation, the chronicle Deus
e o Diabo no Rio de Janeiro will be the focus object, that will be note and analyze the religious
elements (particularities from determinate religious symbols and latent syncretism) and
literary ones (observing style and resources utilized) presents in the text.
Keywords: Eduardo Galeano; Literature & Football; Literature & Religion.
1. Introdução
Embora, atualmente, possa ser percebido como um elemento intrínseco da cultura
popular brasileira e de diversas nações latino-americanas, é fato que o futebol não é um
esporte originário do Brasil ou de qualquer outro país americano. A história do
88
Mestrando em Estudos Literários na Universidade Federal do Pará (UFPA).
[email protected]
89Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
E-mail:[email protected]
E-mail:
244
desenvolvimento do futebol brasileiro não é muito diferente da de outros países sulamericanos, aonde o esporte chegou vindo da Europa. O processo de introdução e difusão
do esporte vai ocorrer de uma maneira complexa, ainda que similar, de início, em muitos
desses países. As relações culturais das quais irá se atrelar serão complexas e pertinentes e
alvo de diversos estudos e pesquisas. É inegável a produção de símbolos que se observa em
torno do futebol: hinos, livros, crônicas, poemas, enciclopédias, almanaques, bandeiras,
escudos e suas relações com o campo religioso:
O autodiscurso da ―coisa‖ é aceitável, sim. Ele é possível somente no
campo das ciências humanas, pois só ali a linguagem e suas formas de
expressão do humano são possíveis. Só o humano pode nela – na
linguagem – habitar. [...]
[…] As ciências que se orientam por uma diretriz notadamente
hermenêutica, ao reconhecerem que as dinâmicas humanas fazem apelo a
um processo de decodificação de suas múltiplas expressões (arte,
arquitetura, religião, política, economia etc.), passam a ter certo
protagonismo no campo das ciências humanas. Esse é o caso da teologia.
Portanto, o discurso crível das ciências sobre a religião não deve somente
levar em conta os seus estabelecimentos sociais, a sua face mais
observável ou mesmo, como não é raro, do ponto de vista
metodológico, aquilo que ideologicamente, em tese, a religião esconderia
– esse é um dos pressupostos da sociologia. (CONCEIÇÃO, 2011, p.
891)
Os estudos símbolos religiosos devem ser avaliados a partir de um estudo religioso.
Existem instrumentos que apenas o campo da Ciência da Religião pode trabalhar. Todavia
um texto literário que possua ambos os elementos pode ser avaliado com visões advindas
tantoda Teoria Literária quanto dos estudos a respeito de religiosidade.
Todos compõem uma grandiosidade de significados atribuídos a um grupo – a uma
comunidade, que está associada a contextos mergulhados em religiosidade. Não são poucos
os que já estudaram essas manifestações em torno do futebol; exemplo:
Um vazio assombroso: a história oficial ignora o futebol. Os textos de
história contemporânea não o mencionam, nem de passagem, em países
onde o futebol foi e continua sendo um símbolo primordial de
identidade coletiva. Jogo, logo sou: o estilo de jogar é uma maneira de
245
ser, que revela o perfil próprio de cada comunidade e reafirma seu direito
à diferença. Diz-me como jogas que te direi quem és: há muitos anos que
se joga o futebol de diversas maneiras, expressões diversas da
personalidade de cada povo, e o resgate dessa diversidade me parece,
hoje em dia, mais necessário do que nunca. Estes são tempos de
uniformização obrigatória, no futebol e em tudo mais. (GALEANO,
2009, p. 204)
Em Futebol ao sol e à sombra (2009), do jornalista e escritor uruguaio Eduardo
Galeano, percebe-se que o futebol na América Latina é mais do que um simples esporte.
Apesar de muitos escritores nacionais como Lima Barreto e Graciliano Ramos terem-no
entendido como banalidade, ao criticar as competições e disputas, muitos também o
defenderam, considerando-o não somente como uma metáfora da guerra (ou da vida – ou
de ambas), mas como representação cultural de um povo.
Leonardo Pereira (2000) demonstra que o futebol foi alvo de inúmeros debates por
parte dos escritores brasileiros e que, progressivamente, se transformou em um elemento
fundamental para a construção da identidade nacional no início do século XX.
O futebol, praticado todos os dias em todo país, e algumas vezes ignorado por
estudiosos, foi alvo, no entanto, da atenção de diversos cronistas pertencentes ao cenário
literário nacional. Em suas crônicas, atribuíram os mais diversos sentidos ao esporte, desde
sua chegada ao Brasil no início do século XX. De Coelho Neto e Lima Barreto, escritores
que confrontaram opiniões sobre o ―fidalgo sport‖, a Carlos Drummond e Nelson
Rodrigues, que escreveram diversas crônicas sobre os triunfos, derrotas e personagens do
esporte, assistimos à consagração de um esporte que se tornou símbolo da identidade
nacional, arrebatando milhões de brasileiros.
Eduardo Galeano trata de personagens essenciais ao futebol: a bola, o estádio, o
árbitro, o jogador, o torcedor. Constantemente há paralelos com outras manifestações
culturais:
Quando termina a partida, o torcedor, que não saiu da arquibancada,
celebra sua vitória, que goleada fizemos, que surra a gente deu neles, ou chora sua
derrota, nos roubaram outra vez, juiz ladrão. E então, o sol vai embora, e o
torcedor se vai. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nos
degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz,
enquanto vão se apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o
torcedor também volta à sua solidão, em um eu que foi nós; o torcedor
246
se afasta, se dispersa, se perde, e o domingo é melancólico feito uma
quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval. (GALEANO, 2009,
p. 15)
Ainda que ao compor a tese se necessitar o assumir de um papel de pesquisador, a
vontade empregada deverá ser inabalável como o torcedor assinalado por Eduardo
Galeano. Decerto que a motivação para desenvolvê-lo, será pautada na personificação deste
torcedor, contemplado pelos textos (escritos ou não) de outros torcedores: trançando
paralelos constantes e relevantes, ao exemplo de Paul Tillich (apud SILVA, 2006, p. 106):
―(...) o elemento religioso na cultura é a profundidade inexaurível de uma criação genuína.
Podemos chamá-lo de substância ou fundamento a partir do que vive a cultura.‖
2. “DEUS E O DIABO NO RIO DE JANEIRO”
As referências diversas sobre a religiosidade latino-americana são esboçadas no
texto a partir de situações que envolvem os três grandes clubes do Rio de Janeiro: Vasco da
Gama e a maldição de Arubinha, o Flamengo e o padre Goes, o Fluminense e o padre
Romualdo. O ponto de partida para a discussão do texto é o cristianismo e seu sincretismo
com as diversas manifestações religiosas presentes no Rio de Janeiro.
Certa noite de muita chuva, enquanto morria o ano de 1937, um
torcedor inimigo enterrou um sapo no campo do Vasco da Gama e
lançou sua maldição:
- Que o Vasco não seja campeão por doze anos! Se existir um Deus no céu, que o
Vasco não seja campeão!
O nome deste torcedor de um time humilde, que o Vasco da Gama tinha
goleado por 12 a 0, era Arubinha. Escondendo um sapo de boca
costurada nas terras do vencedor, Arubinha estava castigando o abuso.
(GALEANO, 2009, p. 68)
O sapo e a má sorte são elementos comumente associados, não somente nos cultos
religiosos afro-brasileiros, todavia tal paralelo parece bem difundido em diversas outras
culturas:
El sapo es para nosotros senónimo de fealdad y de torpeza. Muy
distintas significaciones tiene en Asia. Los chinos han visto, durante toda
la antigüedad, un sapo en la luna: la mujer de Yi-el-Buen-Arquero, que se
247
ha fugado tras haberle hurtado la droga de la inmortalidad que él había
recibido de la Reina Madre de Occidente, llega a La Luna y se transforma
allí en sapo. Desde entonces es su divinidad. Lo que podría asimilarse, al
menos a título de curiosidad, al antiguo proverbio referido por Littré: «Ki
erapaud aime, lunelte (lunita) ti semble.»» También un sapo devora la luna en
el momento de los eclipses. Aunque la tradición china parece a veces
dudar entre um aspecto yin y un aspecto yang del sapo, es el primero el
que predomina, lo que se explica por la predilección del animal por los
refúgios sombríos y húmedos. El sapo por outra parte no siempre se
distingue perfectamente de la rana, y el viejo sapo, a condición de haber
sido secado, permite como ella obtener la lluvia. Además, el sapo protege
de
lãs
armas
y
las
devuelve
al
tirador.
(CHEVALIER
&
GHEERBRANT, 1986, p. 910)
Observa-se, portanto, uma associação poderosa do animal aos caminhos tortuosos
aos quais ele pode levar. Ainda que, segundo o narrador, o Vasco tenha se libertado da
maldição um pouco mais cedo do que o esperado: ―Finalmente, em 1945, o time ganhou o
troféu do Rio e quebrou a maldição. Tinha sido campeão pela última vez, em 1934. Onze
anos de seca. / - Deus nos fez um descontinho – declarou o presidente.‖ (GALEANO, 2009, p.
69).
O padre Goes é um personagem que garante vitória ao Flamengo, que passava por
um momento ruim, na década de cinquenta, se os jogadores participarem das liturgias antes
de cada jogo:
Assim, o Flamengo conquistou o campeonato três anos seguidos. Os
times rivais protestaram ao cardeal Jaime Câmara: o Flamengo estava
usando armas proibidas. O padre Goes se defendeu alegando que não
fazia mais que iluminar o caminho do Senhor, e continuou rezando junto
com os jogadores seu rosário de contas vermelhas e pretas, que são as
cores do Flamengo e de uma divindade africana que encarna ao mesmo
tempo Jesus e Satanás. Mas no quarto ano, o Flamengo perdeu o
campeonato. Os jogadores deixaram de ir à missa e nunca mais rezaram
o rosário. O padre Goes pediu ajuda ao papa, que nunca respondeu.
(GALEANO, 2009, p. 69)
248
O pedido de benção e iluminação é feito ao lado dos jogadores por parte do padre
Goes. Mas o rosário de contas pretas e vermelhas é um elemento essencial: as cores do
Flamengo e de Exu. Uma divindade que o narrador associa a Jesus e Satanás. Entretanto há
uma complexidade diferenciada para aqueles que estudam tais manifestações:
O santuário natural, conhecido como um espaço mágico-religioso,
reproduz-se nos territórios sacralizados conhecidos como ―terreiros de
candomblé‖, enquanto espaço ritual, social e físico, onde organizam-se,
simbolicamente, as divindades do universo afro-brasileiro enquanto
patrono das águas, do ar, do fogo; os ancestrais, etc. É neste conjunto
representativo das divindades que um elemento intermediador, singular,
manifesta-se: EXU. (SODRÉ, 2009, p. 3)
A associação promovida pelo narrador é comum a muitos cristãos que tentam
compreender o complexo papel de tal entidade nos diversos cultos afro-brasileiros.
Exu: Representante das potências contrárias ao homem. O Diabo na
tradição afro-brasileira, embora alguns considerem que Exu foi errônea e
precipitadamente assimilado ao diabo pela Igreja Católica, incapaz de
compreender seu complexo papel na tradição afro.
Para se conseguir alguma coisa é preciso antes fazer um despacho para
Exu, para que ele não atrapalhe. É também chamado de Homem da
Encruzilhada. O bode, o galo e o cão são animais sacrificados a Exu.
Suas cores são o vermelho e o preto. (DEL DEBBIO, 2004, p. 93)
O padre Romulado frequentava os treinos, os jogos e era sócio do Fluminense. Era
surdo; tal condição nos permite levantar alguns elementos exteriores ao texto: no panorama
medieval europeu, havia diversas superstições com relação aos surdos: desde azar à
inocência.
O padre Romualdo, em troca, obteve permissão do Papa para se tornar
sócio do Fluminense. O padre assistia a todos os treinos. Os jogadores
não gostavam nem um pouco. Fazia doze anos que o Fluminense não
ganhava o campeonato do Rio e era de mau agouro aquele passarinhão
de plumagem negra ali de pé, na beira do campo. Os jogadores o
249
insultavam, ignorando que o padre Romualdo era surdo de nascença.
(GALEANO, 2009, p. 70)
Os nobres, para não dividirem suas heranças com outras famílias, realizavam
muitos casamentos entre os próprios familiares e isso acabava por provocar o aumento do
nascimento de pessoas surdas. A problemática é que, de acordo com os preceitos da Igreja
Católica, a alma somente poderia ser salva se os cristãos realizassem o ritual de Confissão,
ou seja, revelar seus pecados aos sacerdotes. Com tal preocupação em incluir os surdos de
famílias nobres à cristandade – como também reafirmar o vínculo entre o Clero e a
Nobreza – que acontece o início das tentativas de educá-los e torná-los indivíduos aptos a
uma comunicação mais próxima da dos outros (FRIZANCO & HONORA, 2009).
Um belo dia, o Fluminense começou a ganhar. Conquistou um
campeonato, e outro, e outro. Os jogadores já não podiam treinar a não
ser à sombra do padre Romualdo. Depois de cada gol, beijavam a sua
batina. Nos finais de semana, o padre assistia às partidas da tribuna de
honra e murmurava sabe-se lá o que contra o juiz e o adversário.
(GALEANO, 2009, p. 70)
3. CONCLUSÃO
O futebol, praticado todos os dias em todo país, e algumas vezes ignorado por
estudiosos, foi alvo, no entanto, da atenção de diversos cronistas pertencentes ao cenário
literário nacional. Em suas crônicas, atribuíram os mais diversos sentidos ao esporte, desde
sua chegada ao Brasil no início do século XX. De Coelho Neto e Lima Barreto, escritores
que confrontaram opiniões sobre o ―fidalgo sport‖, a Carlos Drummond e Nelson
Rodrigues, que escreveram diversas crônicas sobre os triunfos, derrotas e personagens do
esporte, assistimos à consagração de um esporte que se tornou símbolo da identidade
nacional, arrebatando milhões de brasileiros.
Conclui-se o presente trabalho como o torcedor assinalado por Eduardo Galeano.
Decerto que a motivação para desenvolvê-lo, foi semelhante à personificação deste
250
torcedor, contemplado pelos textos de muitos outros torcedores. Textos pequenos que se
assumem como próprios do tempo, de seu tempo; as crônicas. Nenhum outro gênero
poderia ser mais adequado para expressar a melancolia, revolta ou felicidade
proporcionadas pelo futebol.
Como o torcedor de Eduardo Galeano, que se vai ao término do espetáculo
esportivo, afirmo que este estudo não está concluído por ora, pois existem muitos
jogos/estudos ainda a serem realizados.
4. REFERÊNCIAS:
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Diccionario de los Simbolos. Barcelona:
Editorial Herder: 1986.
CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. A religião em cena: Perspectivas de investigação.
Belo
Horizonte:
Horizonte,
2011.
Disponível
em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.21755841.2011v9n23p883/3
343.>
DEL DEBBIO, Marcelo. Demônios: A Divina Comédia. São Paulo: Daemon Editora,
2004
FRIZANCO, Mary L. E. HONORA Márcia. Livro ilustrado de Língua Brasileira de Sinais:
Desvendando a comunicação usada pelas pessoas com surdez. Ciranda Cultural, 2009.
GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra [trad. De Eric Nepomuceno e Maria
do Carmo Brito]. 3ª ed. Porto Alegre: L&PM Pocket: 2009.
SILVA, Antonio Almeida Rodrigues da. Teologia da cultura: A essência do
incondicionado nas multiformes expressões culturais. Revista Eletrônica Correlatio: São
Paulo,
2006.
Disponível
em:
<http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio10/pdf/silva2.pdf >
SODRÉ, Jaime. Exu – A forma e a função. Revista VeraCidade Ano IV, Nº 5: Salvador,
2009. Disponível em: < http://www.veracidade.salvador.ba.gov.br/v5/pdf/artigo4.pdf>
.
251
AS MISSIVAS SOBRE A SECA NO IMPÉRIO: LITERATURA E
HISTÓRIA NO JORNAL A OPINIÃO.
Camila M. Burgardt90
Resumo: O presente trabalho é resultado de leituras empreendidas durante uma pesquisa
PIBIC/CNPq91, e tem como objetivo pensar o gênero epistolar tendo como corpus, em
específico, algumas cartas publicadas acerca da seca de 1877-79 no órgão paraibano A
Opinião, à época Imperial da década de 70. Pretendemos compreender qual era o lugar
desse gênero literário no século XIX, de acordo com os manuais de epistolografia que
apregoavam uma série de prescrições e normas para esses escritos tão utilizados e
necessários naquela época, para regularizar a função secular de comunicação à distancia que
as cartas exerciam há muito tempo, sobretudo, nos jornais da época. Para tanto,
percorremos o caminho histórico do conceito de literatura, do conceito das epístolas, o
papel e a importância das missivas naquele século. No que tange ao momento histórico
paraibano, o fenômeno climático da seca, procuramos compreendê-lo através das cartas e
dos documentos históricos da época, bem como levando em consideração a nossa fonte de
pesquisa, o jornal. Portanto, procuramos com essa investigação estabelecer a relação do
contexto histórico e do contexto literário nas produções epistolares no século XIX. Para
tanto, nos valemos dos estudos sobre a literatura e a arte epistolar de Roquette (1860),
Abreu (2003), Tin (2005), Barbosa (2007; 2010), e dos estudos sobre o contexto histórico
de Almeida ([1923] (1994)), Almeida (1978), e Mello (1995).
Palavras-chave: Literatura e História; Gênero epistolar; Século XIX.
Abstract: This work is the result of readings taken during a PIBIC/CNPQ research and
aims to reflect about the epistolar gender having as corpus, in particular, some letters
published on the 1877-1879 drought in the paraibano newspaper A opinião at the time of
the Imperial 70‘s. We aim to understand what was the place of this literary gender in the
nineteenth century, according to the epistolography manuals which prescribed a series of
requirements and standards for those writings so used and necessary at that time, in order
to regulate the secular function of distance communications, which these letters exercised
for a long time, especially in newspapers. Therefore we followed the historical path of the
literature concept, the epistles concept, the role and importance of missives in that century.
Regarding the historical moment in Paraiba and the climatic phenomenon of drought, we
seek to understand it trought the letters and historical documents of the time, as well as
taking into consideration our research source, the newspaper. Therefore, this research tried
to establish the relationship of the historical and literary context in nineteenth-century
epistolary productions. For this, we use studies of literature and art of epistolary by
Roquette (1860), Abreu (2003), Tin (2005), Barbosa (2007, 2010), and studies on the
historical context of Almeida ([1923] (1994)), Almeida (1978), and Mello (1995).
Keywords: Literature and History; Epistolary Gender; XIX Century.
1. Introdução
90
Mestranda em Letras na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bolsista CAPES. E-mail:
[email protected]. Trabalho realizado sob orientação da Prof.ª Dr.ª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa
91 O jornal como fonte para uma história da literatura paraibana no oitocentos: a escrita epistolar. Pesquisa financiada
pelo CNPq durante os anos 2008-2010, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Socorro de Fátima Pacífico Barbosa.
252
O conceito de literatura passou por algumas mudanças ao longo dos anos e, mesmo
hoje, este conceito ainda não está definido, pois não há um consenso sobre ele entre os
estudiosos da área (ABREU, 2003). No século XVIII, o termo literatura relacionava-se à
habilidade do indivíduo ler e, por meio disto, ter um conhecimento que abrangia vários
ramos do saber como matemática, filosofia, retórica, gramática, entre outros, formando um
grande conjunto de textos que levava o leitor, como bem cunhou Diderot e D‘Alembert
em sua Enciclopédia (ABREU, 2003, p. 14), à literatura, ao conhecimento, à ciência.
Dentre esses vários escritos, até o século XIX, as cartas também eram consideradas
como gênero literário e, por isso, apresentavam certa rigidez formal que era passada aos
leitores através dos manuais, escritos desde a Antiguidade, que versavam sobre a arte de
escrevê-las. Esses manuais, em grande parte, consistiam em um farto exemplário de cartas
trocadas entre pessoas consideradas cultas e letradas e que eram tomadas como modelo da
boa escrita, como, por exemplo, o do Padre José Inácio Roquette escrito já em meados do
século XIX.
Assim, esse breve estudo pretendeu compreender qual era o lugar do gênero
epistolar no século XIX, sobretudo nos jornais da época, em especial durante um
fenômeno climático, no periódico paraibano A Opinião, pois percebemos a recorrência das
missivas e notícias que eram divulgadas, sempre em decorrência do constante ‗sol
abrasador‘, que castigava o solo paraibano entre os anos de 1877 a 1879.
Para isso, é necessário compreender a natureza e o lugar das cartas até o século
XIX, que se apresentam como uma relevante fonte de pesquisa do momento literário e
histórico pelo qual as sociedades paraibana e brasileira passavam.
2.
O gênero epistolar e a Literatura
A literatura, mesmo hoje, não apresenta um significado claro e específico dentro
das artes literárias, pois os teóricos buscam uma acepção única e definitiva suscitando
definições divergentes entre si. Observamos com clareza esta dificuldade até mesmo em
um dicionário comum como é o Houaiss eletrônico, que apresenta cerca de oito conceitos
bem diferentes para o mesmo termo.
À época Imperial o termo ‗literário‘ tinha um sentido bem diverso do atual e para
compreendermos melhor o percurso histórico desse termo ao longo do tempo, recorremos
a Abreu (2003), que disserta sobre o caminho que os escritos e suas classificações
253
percorreram desde que esse vocábulo foi cunhado pela famosa Enciclopédia de Diderot e
D‘Alembert (1751-1772) até os dias atuais.
O termo literatura, no século XVII, significava ―[...] conhecimento e não um
conjunto de escritos. Fazia-se uma tênue distinção entre os campos: ao mesmo tempo em
que se separavam Belas-Letras, buscava-se mostrar sua ‗íntima união‘.‖ (ABREU, 2003, p.
15, grifo da autora). Mesmo no século XIX esse conceito de literatura era válido e corrente
e juntava-se a ele também ―[...] o ‗conhecimento‘ de um conjunto vasto de saberes, os quais
se distinguem em termos de amenidade e utilidade.‖ (ABREU, 2003, p. 18), junto com as
categorias de ‗gosto‘ e ‗beleza‘, assim, a nossa compreensão atual do termo enfrentou uma
série de circunstâncias desconcertantes, próprias à rigidez conceitual em qualquer área do
conhecimento.
Barbosa (2010), afirma que nesse percurso conceitual da literatura as missivas já
ocupavam o lugar de escritos denominados abrangentemente de literatura, pois segundo o
cônego Fernandes Pinheiro em seu Curso de Literatura Nacional, publicado em 1862, a
literatura estava dividida em duas grandes seções: a ‗clássica‘ que imitava os modelos que
nos legou a antiguidade e a ‗romântica‘ que era fiel às ideias das sociedades modernas.
Desse modo, o gênero epistolar era tido como objeto literário, visto que existia manuais
que regulavam a forma mais ou menos estável do gênero e que circulavam com grande
prestígio até fins do século XIX. Esses manuais ou mesmo os tratados de retórica surgiram
para regular a função secular de comunicação à distância que as cartas exerciam há muito
tempo. Essa escrita tão necessária deveria ter suas próprias regras que seriam do
conhecimento de quem precisava escrevê-las, apesar de ser uma escrita restrita aos letrados,
para que seu entendimento fosse, na medida do possível, claro. Assim, alguns desses
escritos eram tão especializados, refinados e esteticamente tão bem feitos que se tornaram
modelos para uma escrita, por excelência, dos ‗homens de letras‘.
Portanto, podemos constatar através dos periódicos do dezenove a diversidade de
escritos que eram considerados como literatura até o século XIX que ia desde o político ao
recreativo, passando pela escrita científica.
2.1
A arte epistolar
Os primeiros jornais que circularam pelo país já contavam com a publicação das
missivas, e nesse suporte elas ganharam um espaço respeitado e considerável, pois, a
pedido dos editores, os leitores podiam tornar-se colaboradores dos periódicos com a
publicação de suas cartas. Assim, os jornais do século XIX, ―[...] mais que arquivos de
254
textos, representaram, [...], o instrumento pelo qual circulou a cultura letrada da província.‖
(BARBOSA, 2007, p. 15).
Com Gómez (2002), compreendemos como se dava a prática da escrita epistolar e
suas funções desde o início do século XVII, na Espanha, como também em outros países.
Da sua importância, descrição e da função presentificadora oriunda da oralidade que a
antecede. Da mesma forma, os paraibanos se guiavam na escrita de suas cartas, de acordo
com os manuais que circulavam pelo mundo.
Esses manuais, como o do Padre José Inácio Roquette, em seu livro Novo Secretario
Portuguez ou Codigo Epistolar, de 1860, utilizavam como exemplo as cartas de pessoas
importantes da época para explicar sua tessitura, suas regras e conveniências, pois a arte da
escrita epistolar ganhava cada vez mais uma rigidez textual que a caracterizaria enquanto
gênero textual.
Tin (2005) faz um apanhado das referências epistolares, resgatando muitos homens
da Era Clássica e do Renascimento que pensaram sobre a arte epistolar e teorizaram sobre
esse gênero, sempre enfatizando os modelos da Antiguidade como exemplos a serem
imitados e seguidos. O autor afirma que a Escola de Bolonha e outras escolas
transformaram a arte de escrever cartas, devido às circunstâncias, em algo mais rígido e
formal atrelando-a ainda mais à retórica medieval, que trata das regras de composição das
cartas e se concentra no exórdio e nos ―enfeites‖, isto é, nos tropos e figuras de linguagem.
As cartas eram divididas de acordo com três gêneros de causas tradicionais da
retórica: demonstrativo, que consistia no elogio e no vitupério, ou seja, elogiar ou depreciar
uma pessoa, um objeto ou um lugar; deliberativo, que ―[...] compreende muitas espécies de
cartas, e realmente são as cartas suasórias e dissuasórias, exortatórias e não-exortatórias,
petitórias, monitórias, amatórias [...].‖ (TIN, 2005, p. 122-123); e, por último, o judicial, em
que suas funções mais importantes são a de acusação e defesa de uma pessoa ou de uma
ação, assim buscamos verificar em que medida essas regras e definições cabem às cartas
escritas pelos paraibanos ao periódico A Opinião, de 1877.
Mesmo com várias prescrições sobre a arte de escrever cartas, Tin (2005, p. 56)
finaliza observando que ―[...] Em suma, a carta é um gênero proteiforme, ao qual é ridículo
e vão querer impor uma forma e uma figura únicas, o que não significa que seja um gênero
sem limites. [...]‖.
Segundo Barbosa (2010), ―[...] A carta foi por excelência o gênero pelo qual a
escrita se mascarou, ao confundir o espaço público e o privado, o anônimo com o famoso
e se constituir como ficção, quando era história.‖ (p. 3). Nesse sentido, compreendemos o
255
jornal como um espaço acessível para algumas pessoas, principalmente para os letrados e,
por conseguinte, também pelo autor letrado ‗comum‘ das cartas que eram publicadas nele,
pois havia uma grande variedade de sujeitos e de modos de escritos que eram aceitos pelos
editores dos jornais, desde os mais cultos aos mais coloquiais.
O uso do autor anônimo foi muito bem aceito e, por vezes, respondia por apelidos,
tais como ―O veterano da liberdade‖, ―um estimado amigo e colega‖, ―carta particular‖,
―Justus‖, ―O sertanejo‖, ―L.‖, e mesmo símbolos como ―***‖ entre outros, e isto visto
somente nas cartas de um ano do jornal analisado, A Opinião.
A esse tipo de leitor-autor que Barbosa (2010, p. 4) chamou de repórter
observamos que ―[...] ao escrever sua carta ao redator, seleciona o assunto e escreve a
matéria e nesta prática de escrita o que é mais interessante é o fato de muitas vezes esta já
ter sido matéria de outro jornal.‖. Uma prática também comum era terminar a carta
pedindo a ajuda ou o favor de uma autoridade, como, por exemplo, o ‗presidente da
província‘, como veremos adiante.
Por conta dessas diversas circunstâncias, buscamos uma leitura das missivas que
nos forneça uma chave para uma compreensão relevante sobre a escrita epistolar do século
XIX, que se apresenta como uma fonte de pesquisa para compreendermos o momento
literário e histórico da época, para isso vamos adentrar o momento histórico representativo
que foi o ano de 1877 para todo o atual Nordeste brasileiro e que ficou marcado no
imaginário popular como uma das piores seca já enfrentadas até então.
3.
A Paraíba em 1877
Segundo Almeida (1994), o atual Nordeste brasileiro sofreu com a chamada ―seca
grande‖ que começou em 1877 e perdurou até fins de 1879. Foi uma época em que os
famintos migraram para as cidades mais desenvolvidas, como Mossoró, no Rio Grande do
Norte, por exemplo. Na Paraíba a situação não foi diferente e acarretou a morte de
centenas de pessoas pela fome ou pelas doenças que se alastravam como uma epidemia.
As finanças da província eram precaríssimas e, devido aos repiquetes92 dos anos
anteriores, a seca instalou-se e propagou-se rapidamente por todo o interior da província.
No dia vinte e oito de Abril de 1877, o presidente da província, Drº Esmerino Gomes
Parente, convocou várias pessoas, sem distinção política, a fim de ajudá-lo a encontrar os
92
São pequenas manifestações de secas, ocorreram nos anos de 1851, 1853, 1860, 1865, 1866, 1869 e 1870.
256
meios adequados para socorrer os famintos e criou a comissão de socorros. (Relatório dos
presidentes de província – Biblioteca de Chicago)
Do interior da Província chegavam muitas cartas relatando as consequências da
inaptidão do governo em cuidar dos seus, dando, por exemplo, notícias de assaltos e
assassinatos a que veio somar-se a miséria. Na cidade de Campina Grande partiu do
vereador Irineu Jóffily93 a ideia de apelar para o governo provincial para que ele
concordasse com a construção de uma cadeia pública e que enviasse uma remessa em
dinheiro para começar as obras que empregariam os homens que ainda tinham forças para
trabalhar a pedir esmolas. Na mesma época, também ocorreu à construção do Paço
Municipal de Campina Grande, graças ao juiz de direito Meira Henriques que fazia parte da
comissão de socorros. (ALMEIDA; 1978)
Não à toa esta seca em específico não só rendeu muito para os periódicos da época
como também serviu de pano de fundo ou mesmo de personagem inanimado para a
construção de romances como Os retirantes (1879), de José do Patrocínio (1853-1905); A
fome (1890), de Rodolfo Teófilo (1853-1932); e Luzia-Homem (1903), de Domingos Olímpio
(1850-1906), além de ter inspirado outras narrativas e escritores consagrados. Nessas obras
observa-se que a crença religiosa do sertanejo na providência divina o faz suportar
resignado, como ‗obra‘ ou ‗castigo‘ de Deus as suas adversidades e, nesse sentido, eles
deveriam padecer toda e qualquer humilhação, até mesmo dos poderes públicos, que muito
se omitiam na ajuda aos mais carentes.
Nesse contexto histórico em que a Paraíba estava inserida, percebemos que a
questão da seca, no jornal A Opinião era tratada do ponto de vista do jornal, órgão dirigido
pelo Partido Liberal que já vinha de alguns anos na situação de oposição, por isso era
importante para os dirigentes utilizarem esse espaço com o intuito de atacar o governo,
representado pelo Partido Conservador, esmiuçando as desgraças o máximo possível a fim
de direcionar a opinião da população de maneira geral. Assim, a seca de 1877-79 é fruto de
uma construção histórica e social e não apenas um fenômeno natural.
No rol dos exemplares pesquisados observamos não só várias cartas que retratam o
problema da seca, mas também, em outras matérias do periódico, notamos o registro
constante das consequências em vários exemplares, como podemos observar na coluna
Noticiario (sic), a matéria intitulada Fome e peste94, de 17/05/1877, no trecho que segue:
93
Irineu Jóffily (1843-1902) foi jornalista, redator, advogado, político, geógrafo, pesquisador e promotor
paraibano.
94 Transcrita respeitando a tipografia e a ortografia da do jornal e da época.
257
Fome e peste. – Uma carta recebida do Catholé do Rocha da-nos a
triste certeza de que é cada vez peior o estado dos sertões da provincia.
A secca continua devoradora, a mortandade dos gados, a fome e miseria
da população menos favorecida, augmenta de dia em dia. Os famintos de
mà indole, reunidos a alguns salteadores de profissão, [...] (sic) (grifos
nosso)
Raros são os exemplares que não trazem alguma notícia ligada direta ou
indiretamente a esse fenômeno natural, que traz consigo tantas sequelas ruins a população,
utilizando uma linguagem carregada de significados fortes e termos tristes para retratar o
sofrimento do paraibano, na expectativa de sensibilizar o leitor e as autoridades perante o
horror sofrido pela população.
4.
As cartas no jornal A opinião, de 1877
O corpus do trabalho conta com 33 exemplares do jornal A Opinião, de maio a
dezembro de 1877, fundado na capital, era um órgão dirigido pelo diretório do Partido
Liberal, publicado duas vezes por semana e impresso na Typographia (sic) dos herdeiros de
José Rodrigues da Costa. Araújo.
No exemplar número oito, do dia 24/05/1877, o periódico divulga na coluna sobre
notícias que o jornal O Cearense ―[...] estimado orgão da imprensa liberal do norte [...]‖ (sic),
relata aos seus leitores a publicação do periódico A Opinião, e transcrevem na íntegra a
notícia publicada no referido jornal, nomeando os responsáveis pelo periódico:
O diretorio liberal depois do passamento de seu illustre presidente,
commendador Felisardo (Toscano de Brito), ainda não foi completado.
Compõe-se hoje dos Srs. – Dr. Antonio da Cruz Cordeiro, presidente
interino, Jeronymo Cabral Rodrigues Chaves, secretario, Dr. Antonio
Manoel de Aragão e Mello, Padre Felippe Benicio da Fonceca Galvão,
João José Botelho e Benjamin Franklin de Oliveira e Mello.
[...]
Cabe-nos, entretanto, fazer uma rectificação: são também membros do
Directorio Liberal d‘esta provincia os nossos dignos correligionarios Dr.
João Leite Ferreira, Dr. Vicente do Rego Toscano Barreto e capitão
Antonio da Costa Rego Moura. (sic)
Nesse recorte, foi encontrado um total de 37 cartas que versavam sobre diversos
assuntos, desde temas políticos a religiosos, incluindo a situação da seca no interior do
estado, até solicitações de restauração da verdade sobre cartas publicadas em outros jornais.
258
Dentre essas cartas, devido a brevidade do trabalho, três95 foram selecionadas, enquanto
representativas desse momento histórico que foi a seca de 1877-79.
O Padre Roquette, em seu livro Novo Secretario Portuguez ou Codigo Epistolar, de 1860,
faz um apanhado sobre a arte de escrever cartas e traz normas e modelos para 24 tipos
diferentes de cartas e situações, nesse manual ele afirma tratar somente das cartas
particulares e assim as define:
As cartas de que tratâmos neste opusculo, e para a composição das quaes
nos propomos a dar algumas regras e modêlos, são as privadas e
particulares que se escrevem entre amigos, parentes ou conhecidos, sem
tenção que se publiquem, ou sejão de simples amizade e respeitosa
cortezania, ou sobre negocios particulares ou publicos. (p. 19) (sic)
Mesmo o padre tendo definido as cartas particulares como aquelas que não se tem
intenção de publicá-las, percebemos que todas as cartas encontradas no periódico
respeitam as normas e prescrições propostas por este manual de epistolografia que se
baseia nos ―[...] modelos mais perfeitos que existem desd‘a antiguidade até nossos dias.
[...]‖(sic) (p. 21)
Do total de nossas cartas, trinta e sete, dezesseis tratam direta ou indiretamente da
questão da seca. Outras também tratam das consequências causadas diretamente por ela,
como as poucas chuvas que estão caindo na região, a agricultura da cidade que sofre com
as poucas chuvas e que tendem a desaparecer com o passar dos dias, o crescimento
desordenado dos retirantes que ali buscam abrigo, a ação dos criminosos, que andavam
pelas cidades matando e roubando sem nenhum temor, o desespero das pessoas com
relação à escassez dos gêneros alimentícios não só em decorrência da seca que os ataca,
mas também porque tem de dividi-los com os animais, questões de saúde, o sofrimento
dos sertanejos e o clamor pela ajuda do presidente da província, isto é, dos poderes
constituídos é recorrente, a violência utilizada pelos soldados em suas diligencias entre
outros.
A carta publicada em 31/05/1877, mas datada do dia 19/05/1877, exemplar
número 10, encontra-se na coluna Noticiario (sic), sob o título Febres. Trata-se de um
extrato, isto é, aquilo que foi extraído de determinado lugar, neste caso da ―carta de um
amigo‖ e, quando o editor diz isso confere legitimidade a notícia visto que se aproxima do
escritor, que se refere a um correspondente da cidade de Cabaceiras. Roquette (1860,
As cartas mantêm a grafia da época, bem como os erros de tipografia, ortografia e impressão oriundos do
jornal.
95
259
p.403) a enquadraria nas chamadas cartas de participação ou notícia, e se caracterizam pelas
notícias ‗indiferentes‘, como o padre afirma:
As cartas que chamámos indifferentes são as de noticias pliticas, ou
d'outra especie; não pedem a ordem seguida nem o estylo relevado das
gazetas, pelo que, sem mais cremonia que fazer separação dos
paragraphos, se tratão ellas differentes assumptos singélamente sem
transições. (sic)
A referida carta se enquadra nas cartas noticiosas de natureza pública, como
podemos observar esse tipo de carta proposta pelo padre era muito comum de se encontrar
no periódico A Opinião de 1877, que num total de 36 cartas, 10 se encaixam nessa
categoria.
A missiva em questão versa sobre a questão da saúde na cidade de Cabaceiras. O
autor não só dá notícias, mas também clama por ajuda, como podemos observar no trecho
que segue:
«Só da Divina Omnipotencia esperamos recursos, ou [...] aos males que
nos apprimem.»
Vê-se, pois, que é horrivel o estado da população de Cabaceiras Flagellada pela fome e pela peste!
É de crer que o Exm. Sr. presidente tome em consideração tamanha
calamidade e remetta para alli ao menos medicamentos.» (grifos nossos)
(A OPINIÃO, 31/05/1877, p. 2)
A ausência da citação do nome do presidente da província, em específico, em várias
cartas encontradas, pode ser justificada pelo grande número de homens que ocuparam esse
cargo num curto período de tempo, cinco nomes só no ano de 1877. (MELLO, 1995)
Com relação às prescrições que eram feitas as missivas até o século XIX, elencadas
anteriormente, podemos afirmar, que essa carta se enquadra dentro do gênero deliberativo,
bem como várias outras que seguem este modelo, pois mesmo sendo fragmentos,
observamos o seu caráter persuasivo, petitório em relação ao socorro dos flagelados da
seca da localidade em que se vive.
Essas cartas passaram pelo crivo do editor do jornal e, dessa forma, percebemos
que ele as transformou em uma notícia, inserindo-as por meio de uma breve explicação,
selecionando partes dela para o público.
Nessa seleção, o editor ressaltou a narratio, isto é, a apresentação dos fatos, e a
petitio, em que se pede alguma coisa, no caso, a ajuda das autoridades. Essa escolha não foi
casual, pois permitiu que a carta se transformasse em uma ‗reportagem‘, como assim
260
menciona Barbosa (2010), e a ser publicada na coluna intitulada Noticiario (sic), como
notamos na abertura da carta – ―Febres: - De carta de um amigo de Cabaceiras, datada de
19 do corrente, extrahimos o seguinte: [...]‖ (sic) (A OPINIÃO, 31/05/1877, nº10, p. 02).
Este tipo de introdução das missivas é muito comum, como podemos observar na abertura
de outras cartas:
Bananeiras - Carta de um amigo dessa villa, escripta á 3 do corrente,
diz-nos: (sic) (A OPINIÃO, 14/06/1877, nº14, p. 02)
Ingá - São desanimadôras as noticias que acabamos de receber dessa
comarca. As lavouras, que ainda restam, e que teem podido resistir ao
sol, estão servindo de pasto ao gado para ali retirado do sertão em
numero avultadíssimo.
Eis o que a respeito diz-nos uma carta de 12 corrente: - (sic) (A
OPINIÃO, 19/07/1877, nº24, p. 03)
Campina Grande - Um amigo escreve-nos dessa comarca, em 11 do
corrente, o seguinte: (sic) (A OPINIÃO, 18/11/1877, nº58, p. 01-2)
Um fator importante, quando analisamos essas cartas, é perceber como estes
escritos nos fornecem uma dimensão social dos mais variados setores da sociedade, seja ela
na questão da saúde, da segurança pública, da falta de víveres ou das injustiças cometidas,
por exemplo, naquele momento histórico em que é escrita. É importante ressaltar que a
questão da seca não se reduz só à falta de chuvas. Ela traz consigo muitas consequências
sérias para o sertanejo e nas cartas em questão podemos mais ou menos visualizar as
dificuldades enfrentadas pelos sertanejos.
Devemos levar em conta que nossas cartas não são de cunho oficial, mas também
não são pessoais, pois segundo Barbosa (2010) o ―leitor-repórter‖ sabia da publicação e as
mandava com essa finalidade, a de ser lido e ouvido.
Estruturalmente, percebemos que as cartas, de certo modo, obedecem a uma
tradição retórica a qual pertence a ars dictaminis, isto é, a arte de redigir documentos ou
cartas que nasceu a partir do momento em que as artes epistolares da antiguidade não
satisfaziam mais as necessidades de seus escritores criando, assim, normas mais rígidas e
formais para a tessitura das epístolas. Ao mesmo tempo também podemos observar
algumas mudanças na ordem de suas partes, por exemplo, bem como uma adaptação aos
objetivos que cada autor tinha ao escrever a missiva.
5.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
261
Constitúe o genero epistolar pela universalidade dos assumptos que póde abranger
verdadeira pedra de toque do talento do escriptor. Não ha quem não faça uma carta;
poucos porém sabem conservar-se no justo meio que lhe é prescripto pelo bom gosto.
(sic)
Cônego Fernandes Pinheiro.
Após uma breve apreciação do periódico A Opinião, do ano de 1877, bem como de
extratos de algumas missivas, relatados em nosso trabalho observamos que as cartas eram
inseridas nos jornais nas mais diversas sessões, como ―Correspondencias‖ (sic),
―Noticiario‖ (sic), ―Publicações Solicitadas‖ ou ―Colaboração‖, nem sempre destinados
unicamente às cartas, mas sim um lugar em que era comum encontrá-las. Elas eram
consideradas, de acordo com o breve levantamento bibliográfico do termo literatura, um
gênero literário devido ao fato de que esse termo denominava de forma abrangente um
vasto conjunto de saberes, também associado às categorias de ‗gosto‘ e beleza‘.
Assim, chegamos aos manuais de epistolografia que apregoavam uma série de
prescrições e normas para esses escritos tão utilizados e necessários naquela época, para
regular a função secular de comunicação à distância que as cartas exerciam há muito tempo.
Verificamos ainda, que mesmo no fim do século XIX, em 1877, as normas da ars dictaminis,
ainda vigoravam em maior ou menor grau, a medida da necessidade e dos objetivos do
autor dessas missivas com as quais trabalhamos.
Constatamos a importância não só literária, mas também histórica que esses
registros, escritos a partir do ponto de vista das vítimas da ‗seca grande‘, enquanto
denunciadores de uma triste situação, até mesmo de abandono por parte das autoridades,
representam enquanto documentos literários e históricos da Paraíba do fim do século XIX.
Diante das considerações acima expostas afirmamos que o uso corrente do gênero
epistolar no suporte jornal e também das cartas não oficiais sobre os mais diferentes
assuntos, além de ser uma prática comum e corrente, visto que foi um artifício que
circulava em todos os meios sociais, também influenciaram sobremaneira na conduta das
262
pessoas e no direcionamento da língua e cultura da época, pois segundo Barbosa (2007, p.
38), a carta nesse veículo ―possuía a qualidade de promover o debate dos mais variados
assuntos‖.
REFERÊNCIAS
ABREU, Márcia. Letras, Belas-Letras, Boas Letras. In: BOLOG-NINI, Carmem Zink (Org.).
História da literatura: o discurso fundador. Campinas: Mercado de Letras, ALB, FAPESP,
2003. (Coleção Histórias de Leitura).
ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. 4ª Ed. Brasília: Senado Federal,
[1923]1994.
ALMEIDA, Elpídio de. História de Campina Grande. 2ª Ed. Campina Grande-PB: Editora
Universitária / UFPB, 1978.
BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Literatura e periódicos no século XIX: perspectivas
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263
“RORAIMA É TERRA BOA”: MIGRAÇÃO NORDESTINA E CORDEL EM
RORAIMA
Carla Monteiro de Souza*
A Amazônia Brasileira é um lugar de migrantes, de muitos e diferentes que buscam na
região o sonho mítico do paraíso e da terra das riquezas sem fim. Os migrantes chegam à
região, empurrados por circunstâncias diversas, situadas em conjunturas socioeconômicas
que historicamente que aproximam as regiões Nordeste e Norte. O movimento constante
de entrada de nordestinos na Amazônia enseja trocas culturais e engendra modos de viver,
que se apresentam sob os mais diversos formatos artísticos e que dão sentido a experiência
complexa de migrar. Este trabalho aborda os cordéis ―Vida de cutião‖ (2008) e ―Roraima
terra bendita‖ (2009), da autoria de Otaniel Mendes de Souza, um maranhense radicado em
Roraima desde 1982. Discute a relação entre memória, história e narrativa nestes textos,
evidenciando questões relativas à experiência migratória a (re)significação dos vínculos com
os lugares de origem e de destino, ressaltando o acentuado caráter autobiográfico das duas
obras.
Palavras-chave: Cordel; Migrações; Roraima
The Brazilian Amazon is a place of migrants, many and different in the region seeking the
mythical dream of heaven and earth riches without end. Migrants arriving in the region
pushed by several circumstances, situated in social economic situations that historically near
the Northeast and North. The constant motion input northeastern Amazon entails cultural
exchange and engenders ways of living, which are presented in the most diverse and artistic
formats that give meaning to experience migrating complex. This paper addresses the
strings "Cutião Life" (2008) and "Roraima blessed land" (2009), authored by Otaniel
Mendes de Souza, a maranhense rooted in Roraima since 1982. Discusses the relationship
between memory, history and narrative in these texts, highlighting issues relating to
migratory experience (re) signification links with the places of origin and destination,
highlighting the sharp character of the two autobiographical works.
Keywords: Cordel; Migration; Roraima
Este artigo tem como objetivo suscitar a discussão sobre a presença nordestina em
Roraima, através da apresentação de alguns aspectos e algumas reflexões sobre a questão,
levando em conta em primeira instância a imagem cunhada pela geógrafa Ana Lia Vale, que
Roraima é um grande mosaico social (2005). A partir de uma abordagem historiográfica da
questão, visando dar a conhecer a sociedade regional e a importância das migrações
nordestinas em sua constituição, será discutida uma das formas como estas identidades se
expressam, tomando como base dois livretos de cordel produzidos por um migrante
maranhense radicado em Roraima Otaniel Mendes de Souza, intitulados ―Vida de Cutião‖
(2008) e ―Roraima, Terra Bendita (2009)‖.
Roraima é o estado brasileiro localizado mais ao norte. Possui uma extensa
fronteira internacional, com a República Bolivariana da Venezuela e a República
Cooperativista da Guiana. Nesta tríplice fronteira confinam três línguas nacionais,
*
Doutora em História. Professora do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em
Letras da UFRR.
264
português, espanhol e inglês, e várias línguas indígenas. Esta região foi município do
Amazonas até 1943, quando passou a ser Território Federal do Rio Branco (em 1962
passou a chamar-se TF de Roraima), o qual foi transformado em estado em 198896.
Localizado em uma região de parcas ligações com o restante do país, Roraima tem a
menor população do Brasil, concentrada na capital, Boa Vista. Nos 15 municípios
existentes na atualidade, convivem uma população formada por não índios, migrantes e
seus descendentes, e indígenas de várias etnias. O seu perfil socioeconômico aponta para
uma economia baseada no serviço público e no setor de serviços, bem como em atividades
rurais, como a pecuária, as lavouras de produtos alimentícios e a produção de
subsistência97. Neste contexto, historicamente o poder público e as iniciativas e ações
governamentais têm um forte papel, inclusive no que diz respeito ao povoamento e às
migrações, característica esta compartilhada com outros estados amazônicos.
O estudo do povoamento da Amazônia e de Roraima em especial, na sua dimensão
estrutural e conjuntural, permite afirmar que existe uma espécie de ―corredor de acesso‖
entre as regiões Nordeste e Norte. Estes são condicionados em grande parte pela expansão
dos meios de transporte e de comunicação e pela quantidade e qualidade dos estímulos
engendrados pela dinâmica econômica e geopolítica que historicamente visam ocupar o
―vazio‖ amazônico, que findam por criar as chamadas condições de atração de nordestinos.
Fazendo uma projeção histórica, os estudos sobre várias épocas mostram que os
nordestinos há muito povoam a Amazônia e estão em Roraima desde os primórdios de sua
ocupação. Neste caminho, nos deteremos na migração que liga o Nordeste à Roraima na
atualidade, traçando um sucinto painel que permita dimensionar a sua abrangência e
importância na sociedade local.
Segundo dados do IBGE98, boa parte dos migrantes que chegam à Roraima são
provenientes da própria Região Norte (Pará e Amazonas) e, principalmente, do Nordeste,
destacando-se os maranhenses. Quanto aos maranhenses, além de sua realidade
socioeconômica excludente, também podemos arrolar como fatores facilitadores da
migração a proximidade geográfica com o Pará e o fato de parte do território do Maranhão
integrar a Amazônia Legal. No geral, os migrantes que vieram para Roraima nas últimas
quatro décadas podem ser caracterizados como populações provenientes de áreas do
interior, onde os padrões de vida tendem a ser baixos, devido a fatores como a
concentração fundiária, economia frágil e instável, mercado de trabalho acanhado etc.
96
97
98
Sobre estas informações ver: Barros, 1995; Oliveira, 2003; Santos, 2004; Souza, 2004.
A esse respeito ver: Secretaria Estadual de Planejamento, http://www.seplan.rr.gov.br.
Ver: Censos Demográficos de 1980, 1991, 2000, 2010.
265
Argumentamos, ainda, que o ato de migrar implica a interação de dois planos: um
fundamentado nas relações sociais, estruturalmente relacionado à fatores socioeconômicos
e políticos; outro relacionado ao plano individual, que, em última instância, determina a
decisão de migrar. Por sua complexidade intrínseca, acreditamos que na análise das
migrações devemos considerar que a decisão pelo deslocamento envolve a ponderação de
prós e contras, bem como a ação das redes de contato e de informação. Nas entrevistas
com migrantes por nós, realizadas até hoje, verificamos que sonho e realidade por vezes se
confundem, principalmente frente àquelas situações limite que tornam a vida insustentável,
o que aponta para a necessidade da análise das questões subjetivas, afetivas e psicológicas
(SOUZA, 2005).
Historicamente os deslocamentos dos nordestinos e a sua decantada necessidade e
capacidade de migrar, independentemente do estado de origem, são tradicionalmente
associados ao fenômeno da seca. Ainda que os vetores dos fluxos migratórios venham se
alterando, ainda hoje se atribui ao Nordeste o rótulo de região atrasada e subdesenvolvida,
lugar de mão de obra barata e desqualificada pronta para migrar.
No bojo da relação centro-periferia os discursos e as práticas regionalistas
instituíram uma ―verdade‖ sobre as regiões, que permanece baseada em certos padrões,
características, estereótipos, epítetos e símbolos que, se por um lado, baseiam-se em
argumentos e aspecto factíveis, por outro, desfiguram-na. Construída historicamente, a
ideia que nomeia e define cada região brasileira se naturaliza, ainda que se operem
mudanças socioeconômicas, políticas e culturais visíveis. Este processo de formulação e
instituição das regiões está introjetado sobremaneira na sociedade brasileira, no plano
coletivo, social e individual.
A comparação entre a parte Norte e a Sul do Brasil – nomenclatura genérica que
vigorava antes da atual divisão por regiões – é fundamental na compreensão da construção
da ideia do Nordeste como região. Seus contornos remontam ao final do século XIX e
início do XX, momento em que a ciência passa a ocupar lugar de destaque na explicação
dos fenômenos naturais e dos processos sociais. No Brasil, a construção das ideias
regionalistas foi fundamentada no discurso sobre o imperativo da modernização para
romper com a herança colonial e promover o progresso, e pelas disputas entre as elites
políticas locais.
Albuquerque Jr., em seu trabalho já clássico intitulado A invenção do Nordeste, explica
que o meio ambiente e a seca eram a principal justificativa para quase tudo no Nordeste,
inclusive para a propensão para migrar imputada ao homem nordestino (1999, p. 38-39).
266
Complementando, Haesbaert explica que isso também fundamenta as explicações do
porque historicamente o migrante nordestino procura os grandes centros ou as frentes de
expansão agrícola, como a Amazônia. (1997, p.82). No entanto, como referido acima, por
mais evidentes que sejam os fatores estruturais que justifiquem uma migração, esta sempre
dependerá em boa parte da escolha pessoal entre partir e ficar e de que haja uma relação de
complementaridade entre o lugar de origem e o lugar de destino.
Nesta seara, a migração de nordestinos para a Amazônia ganha característica de
fluxo na época do primeiro boom da borracha e a partir daí vem se mantendo, momento em
que se consolida a visão de que as possibilidades de povoamento e ocupação de Região
Norte historicamente estão associadas aos problemas estruturais do Nordeste. Em tempos
mais recentes ganhou notoriedade na máxima proferida do presidente militar Emílio
Garrastazu Médici: ―levar os homens sem terra do Nordeste para as terras sem homens da
Amazônia‖ (OLIVEIRA, 1991, P. 74).
No tocante a Roraima, os nordestinos sempre desempenharam um papel
fundamental na configuração da sociedade local. Destaca-se, entretanto, que ainda há
poucos trabalhos que fazem distinção entre as migrações provenientes dos vários estados
do Nordeste. Nos estudos sobre a questão prevalece o uso da categoria englobante
―nordestinos‖, que aqui também será adotada, mesmo sabendo dos sérios riscos das
generalizações.
Segundo o geógrafo Rogério Haesbaert, a construção de uma ―identidade
nordestina‖ se baseia no que ele define como uma transposição geográfica. Explica que a
identidade nordestina construída a partir das imagens do sertão semiárido, transformaram
o habitante do semiárido e da caatinga no elemento definidor da população daquela região
do Brasil. Para ele, esta identidade tem um caráter extremamente ambíguo, já que está
presente no discurso da elite política e da burguesia regional, mas também fora da região,
configurando a ―mentalidade‖ dos que convivem com ―migrante nordestino‖. Neste
caminho, observa que a maioria da população local da região se identifica muito mais com
seu estado de nascimento (HAESBAERT, 1997, p.72-84). Esta identidade nordestina
homogeneizadora, portanto, não abrange as múltiplas referências culturais e identitárias
vivenciadas e (re)significadas cotidianamente pelos sujeitos que vivem na região e pelos que
migram.
Contudo, não se pode negligenciar que o ―nordestino‖ é uma construção simbólica
e identitária bastante sólida e que se perpetua por meio de uma série de mecanismos de
divulgação e de atualização. O nordestino popularizado pela mídia de massa tem um
267
sotaque padronizado, apresenta uma série de comportamentos e certas características
marcantes, sendo apresentando geralmente como uma espécie de sertanejo standartizado.
As manifestações culturais e identitárias nordestinas não estão imunes a esse processo
histórico, antes se movem no seu interior, seguem algumas rotas e se constituem por meio
de formas e linguagens socialmente consolidadas, como o cordel, reconhecidamente uma
forma de expressão nordestina.
Segundo estudos clássicos sobre e da cultura brasileira, como os produzidos por
Manuel Diégues Jr e Luiz da Câmara Cascudo, a literatura de cordel se caracteriza com uma
das expressões mais genuínas da cultura popular brasileira. Sua origem remonta à literatura
oral, às trovas lusas e francesas, às formas variadas de dizer em verso, rimadas e ritmadas.
Luciany Santos historia brevemente a institucionalização entre este tipo de literatura
e a cultura nordestina. Explica que, até meados do século XX, literatura de cordel ―era
reconhecida pelos produtores e consumidores nordestinos como versos, folhetos ou
romances e eram vendidos nas feiras livres em bancas ou expostas no chão‖. No período
de 1960 a 1970 ―a expressão ‗literatura de cordel nordestina‘ passa a ser empregada pelos
estudiosos‖, denominação que passa a ser empregada também pelos poetas populares.
Neste período, a sistematização de estudos e pesquisas sobre o tema – tendo como um dos
centros irradiadores a Fundação Casa de Rui Barbosa – definiu ―uma historiografia sobre a
literatura de folhetos brasileira‖, bem como a formação de um ―quadro acadêmico que
legitimou e canonizou poetas, regras, conceitos e denominações sobre a literatura de
cordel‖ (2010, p. 78-79). Definitivamente o cordel estava consagrado como um dos
marcadores identitários da cultura nordestina no sentido englobante.
Neste contexto, a vinculação entre a literatura de cordel e as migrações de
nordestinos ganha contornos de objeto de estudo. Os livretos se estabelecem como um
recurso legitimado para o migrante se expressar, para falar de suas experiências, suas dores,
conquistas e saudades, para contar sobre os caminhos trilhados, as partidas e as chegadas, o
ser e o estar em outro lugar que não o seu de origem.
Todorov, no seu livro ―O homem desenraizado‖ (1999), fala do estranhamento e
da busca por se encontrar no lugar de adoção. As estratégias para deitar raíz neste outro
lugar, vivenciar as contradições e os conflitos decorrentes do deslocamento, se inserir
social, econômica e culturalmente remetem a ideia de que um movimento constante de
desenraizar e enraizar, que se dá em via de mão dupla, entre o migrante e sua bagagem
cultural e existencial e a sociedade local, que varia de acordo com situações específicas de
migração e de vida.
268
Pensando nisso, apresentamos o autor dos cordéis ―Vida de Cutião‖ (2008) e
―Roraima, Terra Bendita‖ (2009), Otaniel Mendes Oliveira, natural de São José das Curicas,
zona rural do município de Vitorino Freire, no Maranhão, vive hoje na vila Central,
município de Cantá, Roraima. Em entrevista concedida a Nogueira, em abril de 2011,
explica que já andou por vários lugares: sua primeira passagem por Roraima se deu em
1970, onde ficou até 1978, quando por uma desilusão amorosa migrou para Rondônia,
retornando apenas em 1982 (2011, p. 54-55).
Na entrevista supracitada conta que aos três anos de idade empreendeu sua
primeira migração, quando a família migrou para Pindaré-Mirim, para trabalhar na
produção de tiquira, uma aguardente feita de mandioca. Sobre a saída da família de
Pindaré-mirim evidencia um fenômeno típico de muitas regiões rurais brasileiras: ―os
fazendeiros iam comprando os terrenos [os que forneciam a mandioca], então, a busca por
matéria prima ficava mais distantes e ela era feita no lombo de animais‖, ou seja, a expansão
das fazendas engole os pequenos produtores, sufoca a produção e estrangula o mercado de
trabalho. A partir dai recorda a sua trajetória e, luz da lembrança dos deslocamentos
empreendidos, afirma que ―o nordestino vive buscando melhorar de vida, e a vida dele é
buscar‖ (NOGUEIRA, 2011, p. 55).
Segundo Nogueira, para o cordelista, ―entre as idas e vindas, Roraima se constituiu
na terra bendita, o lugar dos sonhos e da segurança‖. Isso fica explícito na maneira como
Seu Otaniel se apresenta no cordel Vida de Cutião: ―Otaniel Mendes de Souza /
Maranhense de verdade / Fazendo quarenta anos / Que moro nesta cidade / Por tudo que
já passei / Felicidade encontrei / Estou vivendo à vontade!‖ (2008, p. 2). Este conjunto de
versos que compõe a apresentação do livreto, reúne os elementos que caracterizam a
migração: o local de origem, o local de destino, a trajetória, o tempo transcorrido e os
resultados alcançados. Interessante registrar que após a breve apresentação, o livreto conta
com um prefácio, de uma página, assinado pelo jornalista roraimense José Aroldo Pinheiro,
no qual realça as qualidades do autor.
Este foi o primeiro cordel do Seu Otaniel e nos fala das agruras e do cotidiano do
trabalhador que vive em um lote em uma área de assentamento para pequenos
proprietários, localizado em uma vicinal, em Roraima. Logo nos primeiros versos define o
que é ser ―cutião‖ logo na primeira página após o prefácio: Vou contar uma história /
Quero que prestem atenção / É sobre um homem que trabalha / Para defender o seu pão
/ No mato vive sozinho /Sem mulher sem carinho / É chamado cutião (2008, p. 4).
A vida de cutião é dura! Seu Otaniel se utiliza de termos fortes e carregados de
269
sentidos que remetem a ideia de sofrimento, de sacrifício, de abandono, de carência: ―É
uma vida solitária (…) Oh! Que vida precária!‖ (2008, p. 5). Ao longo do texto o cotidiano
de solidão e o trabalho exaustivo exigido pelas lides com a terra, aliado às vicissitudes
impostas pelo meio ambiente e pelo clima da região, dão forma a versos que são, ao mesmo
tempo, um lamento e uma exaltação de algumas virtudes como a coragem, a tenacidade, a
falta de preguiça, a capacidade de suportar as agruras, que nos remetem à máxima
euclidiana que ―o sertanejo é, antes de tudo, um forte‖.
Neste livreto Seu Otaniel dá ênfase à vida vivida no local de destino. Da escrita
emerge o cotidiano, colorido com as tintas fortes do presente em curso. Toques de
amargura coexistem com os de bom humor. Nas duas primeiras páginas após o prefácio
fala sobre ser um ―cutião‖, da vida solitária que leva: ―Mulher lhe faz muita falta / Porque é
dura a solidão / Sempre sozinho no mato Ele é um verdadeiro ermitão / Olha pra sua
figura / E vê a vida dura / Apela pra sua própria mão‖ (2008. p. 4).
A partir disso, nos retrata um dia na sua vida de ―cutião‖, do amanhecer, passando
pela tarde e chegando a noite. Amanhece o dia: ―Com muita coragem e fé/ Ele come até
em pé/ Pegando o enxadão‖. No meio do dia: ―O sol quente e fatigante/ Volta pra casa
apressado/ Com uma fome daquelas/ Quando descobre a panela/ O feijão está
queimado‖. Na volta para casa: Que uma etapa venceu/ Mas tem que preparar/ Alguma
coisa pra jantar/ Porque o almoço perdeu‖. E no dia seguinte começa tudo de novo: ―A
noite inteira dormindo/ Amanhece o dia sentindo/ Que está recuperado‖. No fim de
semana: Se manda pra currutela/E vai tomar um traguinho.
O caráter autobiográfico está absolutamente manifesto. No entanto, esta é a sua
vida e também a de um sem número de migrantes estabelecidos nas vicinais e projetos de
assentamento espalhados por Roraima e pela Amazônia. A memória dos dias condensada
no texto segue um ciclo, dando força aos versos que nos contam sobre a vida de inúmeros
brasileiros que penetraram a fronteira do humano, como José de Souza Martins (2009) bem
caracterizou a expansão recente da ocupação da Amazônia.
Este caráter coletivo que pode ser lido nos versos de Seu Otaniel reivindica uma
experiência de quem já passou e viveu em vários lugares, lembrando o que afirma
Halbwachs, que ―o espaço é uma realidade que dura (…), é nele que nosso pensamento tem
de se fixar para que essa ou aquela categoria de lembranças reapareça‖ (2006, p. 170). Neste
caso, os espaços por onde o autor passou e o espaço onde vive se fundem em sua memória
narrada no cordel, dando vida e identidade a um certo tipo de indivíduo e a um certo tipo
de existência, aquela do ―cutião‖.
270
Diferentemente do primeiro, o livreto Roraima: terra bendita parece se inscrever em
uma outra fase da vida do autor. Maior em número de páginas – este tem 29, o anterior, 10
páginas – o texto revela um homem mais solto ao escrever e otimista para falar sobre a
realidade vivida em Roraima. O próprio título, anuncia o tom de exaltação do texto, um
tanto laudatório e ufanista também.
A edição mais bem cuidada conta com agradecimentos, apresentação, dedicatória e
prefácio e, ainda, com a chancela do SESC/RR e da XIX Feira de Livros do SESC,
Federação das Indústria de Roraima-FIERR, dentre outros patrocínios. Nos dois primeiros
conjuntos de versos inicia se referindo ao Brasil e ao Norte: ―No norte do Brasil /
Encontramos coisas sem fins (sic) / Saindo Rio Branco Acre / Chegando a Tocantins /
Passando pelo Pará / Encontramos o Boi Bumbá / Nas terras de Parintins (2009, p. 5).
A partir daí se dedica a cantar Roraima, partindo da fronteira norte – na qual o
estado confina com a Venezuela – passeia por muitas áreas do estado. Enumera os lugares
emprestando-lhes características: ―Encontramos Pacaraima/Com seus bonitos lavrados‖; É
também no Jundiá/Que existe barreira‖; ―Rorainópolis: uma cidade/De crescimento
constante‖; É São João da Baliza/Lá tem muito produtor; ―Caroebe é muito bom/É a terra
da banana‖. Sem fazer distinções político-administrativas, entre cidades, vilarejos, ou
simples povoados, imprime nos lugares por onde passa sua escrita marcas identificadoras
elogiosas em sua maioria.
Não obstante, o texto é pontuado por versos que podem ser traduzidos como
comentários afinados com a conjuntura regional de produção do texto e, também, com as
parcerias estabelecidas pelo autor: ―Tem muita gente estrangeira / De olho em nossa
riqueza / Com muito ouro e diamante / E nós vivendo na pobreza / Se não prestar
atenção / Vamos acabar na mão / Da burguesia inglesa (2009, p. 13). Os cinco conjuntos
de versos seguintes tratam do mesmo tema: a cobiça estrangeira pela Amazônia e por
Roraima em especial. É bom lembrar que este foi um período de intensa polarização
política e ideológica em Roraima, em função da demarcação em área contínua da Terra
Indígena Raposa Serra Sol, cujo processo redundou na retirada de todos os não-índios da
área, e mexeu sobremaneira com os interesses dos grandes fazendeiros de arroz que lá
atuavam, fato que mobilizou a elite política e econômica local contra esta demarcação. Um
dos eixos principais do discurso que fundamentava este movimento era aquele que alertava
para a existência de poderosos interesses internacionais por trás da demarcação.
Esse discurso teve uma repercussão muito grande na sociedade local, notadamente
entre aqueles que viviam da terra. E foi repetido à exaustão pelos meios de comunicação e
271
em todos os espaços onde se abordava o assunto, partidários de ambas as posições levavam
a cabo discussões acaloradas e Seu Otaniel entra neste circuito: ―Tem muitas ONGs
estrangeiras / Com grande área de terra / Pra tomar nossa Amazônia / Eles fazem até
guerra / Mas nós vamos expulsar / E não deixar mais entrar / Este papo se encerra‖
(2009, p. 13). De maneira explicita os versos de Seu Otaniel repercutem este momento e o
autor, como tantos outros, toma posição: ―Depois que apareceu / Estrangeiro interessado
/ Que índio tem que viver / Em território isolado / Daí começou a crise / Assim que os
índios dizem / O estrangeiro culpado‖ (2009, p. 26).
Neste sentido, Guillen se refere ao poeta de cordel como ―um grande narrador da
vida cotidiana nordestina‖, alguém que toma posição sobre o que narra (2002), ele é um
comentador que utiliza as palavras com habilidade. A forma como o cordel é composto
nos leva a encará-lo como um texto espontâneo, tributário da oralidade rimada, embora,
por excelência, fundamente-se na arguta observação social, na crítica, observando-se o
engajamento radical às temáticas postas à sociedade no calor da hora. Observa-se, no
entanto, que a espontaneidade e a agilidade do cordel não implicam a ausência de objetivos
bem definidos a serem veiculados. As temáticas se vinculam aos seus autores e aquilo que
cerca, este é o mote para compor os versos, falar do local e do cotidiano. No ―passeio‖ que
faz por Roraima, o autor se debruça sobre
os vários lugares roraimenses, com
familiaridade e benevolência. Como vimos acima, a mensagem é que cada canto de
Roraima oferece algo que pode ser apreciado, que merece ser destacado e enaltecido. O
conjunto destas partes forma Roraima, a terra bendita mencionada no título.
Isto nos leva a ressaltar novamente que mudanças se operaram na vida de Seu
Otaniel e na forma como ele se coloca em Roraima. Se no primeiro livreto observamos um
homem encerrado em uma realidade restrita, comandada por um ciclo natural do
amanhecer ao anoitecer, dos dias e das semanas, contada com laivos de amargura e certo
desencantamento, no segundo, vemos um homem livre, que ―sobrevoa‖ um espaço amplo,
a área estadual, e conta o que vê de forma dinâmica e otimista.
Pontua o seu ―passeio‖ pelos lugares, enumerando as suas gentes: ―Gente do Brasil inteiro
/ Pode prestar atenção / Tem gente do Paraná / E também do Maranhão / Tem paulista e
capixaba / Sulista que não se acaba Grande miscigenação‖ (2009, p. 7). Fala da diversidade
de gentes, ou seja, dos muitos migrantes: ―Tem gente de toda parte / Deste Brasil de meu
deus / Maranhense e cearense / Descendente de europeu / De gente que mora ali / Estou
dizendo para ti / Tem gente até dos zezéus‖ (2009, p. 11)
Contudo, o que fica claro neste segundo livreto é a mudança operada na escrita do
272
autor. Muda a temática, o que não é novidade para a literatura de cordel, dinâmica e
pautada em temas do cotidiano, próximos os autores; muda também a forma de escrever e
de abordar lugar que foi adotado pelo autor. Fica patente uma mudança na relação do autor
com Roraima, ou melhor, na maneira como Seu Otaniel vê Roraima e se vê neste lugar
onde vive: ―Roraima é terra boa / Assim está na escrita / Todos que chegam aqui / É claro
que acredita / E logo que vem chegando / Chega pulando e gritando / Roraima terra
bendita‖ (2009, p. 27). Seu Otaniel se vê e se coloca como migrante nordestino, como
maranhense e como roraimense: ―Eu sou feliz não importa / Aquilo que alguém pense /
Quem me conhece sabe / Que eu sou maranhense / Eu só quero ser feliz / Até brigo com
que diz / Que eu não sou roraimense‖ (2009, p. 27.) Neste texto se declara integrado,
inserido, pacificado, principalmente se levarmos em conta o livreto anterior.
Silva, na leitura que faz das ideias de Stuart Hall, explica que, na
contemporaneidade, ―as identidades não são nunca unificadas‖, mas ―cada vez mais
fragmentadas, fraturadas, (…) multiplamente construídas ao longo dos discursos, práticas e
posições que podem se cruzar ou ser antagônicos‖. Exposta a uma historicização radical, a
identidade estaria ―constantemente em processo de mudança e transformação‖ (2000, p.
108). Os processos migratórios engendram transformações naquilo que se é, na maneira
como o indivíduo se vê e se coloca no mundo. Define também as formas empregadas para
explicar e compreender a sua trajetória, ou seja, o quê fala e como fala.
O autor lança mão de uma forma socialmente reconhecida para falar de si e do
mundo que o cerca. O cordel, como manifestação legítima e legitimada da cultura popular
brasileira e da nordestinidade, somada ao talento e a habilidade de Seu Otaniel com as
palavras e as rimas, traz para si uma identidade nordestina, mas também maranhense e
roraimense, sem prejuízos ou aparentes hierarquizações. Nos dois livretos, a bagagem
cultural migrante do autor compõe um quadro que mostra, por um lado, o migrante sofrido
e exposto às vicissitudes e sacrifícios condizente com a visão consagrada do migrante
nordestino, e de outro, o migrante integrado, inserido, conhecedor e partícipe da sociedade
de destino há mais de 25 anos.
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274
CORES COMO MEDIADORAS DO DIÁLOGO ENTRE ARTE E
CIÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM.
Cleiciane Maia Ferreira99
Prof. Dr. Allison Leão (Orientador) 100
RESUMO
A investigação dos pressupostos teóricos sobre o fenômeno cromático na poesia e na arte,
especificamente na pintura, se fundamentam, entre outras abordagens, nas contribuições de Johann
Wolfang von Goethe, em seu Farbenlehre, A Teoria das Cores – um diário de estudos prolongados
que apresenta tanto o rigor do discurso científico, quanto o refinamento literário. Esta ambivalência
que as cores proporcionam em suas manifestações implicam em dois gêneros de discurso: um
científico e outro poético investigados neste artigo em duas literaturas especificas e abordadas por
Willi Bolle em ―Amanhecer no Amazonas. Cultura e natureza a luz da Teoria das Cores de
Goethe‖, publicado na revista científica Literatura Interfaces Fronteiras pela UEA Edições. São
elas, Viagem pelo Brasil, de Carls Friedrich Philipp von Martius e O turista aprendiz de Mário de
Andrade. A pesquisa como um todo se orienta a pensar na relação dialética entre o discurso
rigoroso objetivo da ciência e arte mediado pelo fenômeno cromático experienciado em meio à
natureza.
Palavras-chaves: Ciência; Poesia; Cores.
ABSTRACT
The investigation of the theoretical assumptions about the phenomenon color in poetry and art,
specifically painting, are based, among other approaches, the contributions of Johann Wolfgang
von Goethe, in his Farbenlehre, The Theory of Colours - a diary study shows that prolonged both
the rigor of scientific discourse, as the literary refinement. This ambivalence that colors provide in
its manifestations imply two kinds of discourse: a scientific and other poetic investigated in this
paper in two specific literature and addressed by Willi Bolle in "Dawn on the Amazon. Culture and
nature in light of Goethe's Theory of Colours ", published in the journal Interfaces Borders for
UEA Literary Editions. They are, by Brazil Travel, Carls Friedrich Philipp von Martius and The
apprentice tourist Mário de Andrade. The research as a whole is oriented thinking in dialectical
relationship between discourse rigorous objective science and art mediated by chromatic
phenomenon experienced in nature.
Keywords: Science; Poetry; Color.
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas UEA. E-mail: [email protected],br
99
Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade do Estado do Amazonas –
UEA .E-mail: [email protected]
100
275
INTRODUÇÃO
Ao buscar entender a relação entre discurso cientifico e metafórico literário incluindo o
fenômeno cromático do amanhecer, a pesquisa acabou se norteando ao inicio do pensamento
sistematizado sobre cores. Tomando como ponto de partida o Renascimento, acabamos
percebendo que antes se tornará necessário entender a análise comparativa da relação entre pintura
e poesia neste período. A influencia do humanismo nos remete ao aforismo ―a pintura é a poesia
calada e a poesia é a pintura que fala‖, ut pictura poesis; a recicprocidade entre pintura e poesia.
O aporte científico de um estudo sobre cor é verdadeiramente percebido quando Goethe,
em contraposição a teoria física de Newton, escreve ― Teoria das Cores‖. Os trabalhos de Goethe,
em Teoria da Cores, denotam o reciprocidade entre discurso científico e poético, pois a própria
construção do texto tem, ao mesmo tempo, caráter científico com conotações literárias dos
experimentos realizados ao ar livre, sobretudo, durante amanhecer.
Semelhante ao que acontece com Goethe, no artigo de Willi Bolle, Amanhecer no Amazonas.
Cultura e natureza e luz da Teoria de Goethe, publicada pela revista científica Amazonas: Literatura,
Interfaces Fronteiras, o diálogo entre ciência e arte são demonstrados pelo autor em duas literaturas
especificas: a primeira emViagem pelo Brasil de Carls Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Pix
e a segunda em O turista aprendiz de Mário de Andrade, ambas como relatos de viagem, apresentam a
intenção da descrição científica objetiva paralela a uma linguagem metafórica e literária diante do
amanhecer na região amazônica.
CORES COMO MEDIADORAS DO DIÁLOGO ENTRE ARTE E
CIÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM.
O estudo sobre a cor de modo geral é algo passível de diversas variáveis de pensamento
sobre as suas manifestações na pintura e na poesia; além do uso metódico e subjetivo na história da
arte. Ao longo dos tempos, observamos que existiram poetas e pintores que realizam suas obras
inspirados por um motivo ou tema. Inicialmente, alguns destes motores de inspiração advêm de
uma relação de dialética entre duas manifestações de arte, a pintura e a poesia. Em outros
momentos, percebemos que o uso da cor, mesmo em literaturas com objetivos científicos, confere
aspectos de refinamento literário. Pensando na relação entre pintura e poesia, devemos relembrar a
renascença, sobretudo, a arte italiana.
A pintura, neste período, estabelece a relação direta com
os temas épicos gregos. As manifestações artísticas são percebidas pela sistematização das cores que
começam ainda com os pintores medievais. Os reformadores de Veneza interessavam-se menos
pela cor que pelo desenho, considerando seu uso um ornamento adicional à obra. Entretanto, os
pintores venezianos não consideraram o uso da suplementar. Giovanni Bellini, por exemplo, ao
pintar o altar-mor em 1505, na igreja de S. Zacarias, expôs sua intenção de considerar o uso da cor
sob uma perspectiva diferente destacando uma riqueza em cores, além do caráter subjetivo de
276
interpretações. A utilização de uma perspectiva humanista faz com que os pintores conseguissem
criar espaços reais em superfícies planas (telas ou paredes), dando a noção de profundidade e
volume graças a técnicas de cores e luz, as quais permitem destaque de alguns pontos e disfarce de
outros.
Os artistas renascentistas inspirados pelos épicos gregos retrataram musas, ninfas entre
outras personagens que pertencem a este contexto mitológico greco romano. Giorgione (1478?1510) ao pintar tempestade, estabelece um diferencial ao reproduzir harmoniosamente o jogo de luz e
cor. Daí a possibilidade de ser a obra tempestade uma representação da história de uma mulher com
seu bebê que fora expulsa e que é acordada por um pastor no ermo. Mas além da simbologia que
possa conter a obra, o que chama atenção é como a paisagem que é ilustrada: como tema autônomo
e não como pano de fundo para as figuras que a compõem; o quadro é uma combinação
harmoniosa de luz e cor. Dessa forma, podemos dizer que Giorgione pensou verdadeiramente na natureza.
(...) a terra, as árvores, a luz, o ar, as nuvens, e os seres humanos com
suas cidades e pontes – como um todo indivisível. De certo modo, isso
foi um avanço quase que tão grande para o novo domínio na arte de
pintar quanto a invenção da perspectiva o fora antes. Doravante, a
pintura era mais do que a soma de desenho e colorido. Era uma arte com
suas próprias leis e estratagemas secretos. (COMBRINCH, 331p)
Na renascença a arte vale em muito pelo que ela representa, ou seja, pelo significado que
ela contém. Contudo, esta mesma verdade pode ser superada pelo ornamento que carrega consigo:
movimento, luz, cor, profundidade e volume. Tudo isso são dados importantes que compõem a
obra para possíveis significações. Esta relação entre poesia e pintura foi bastante discutida entre os
séculos XVI a XVIII, quando ocorreram sobre várias interpretações da Poética de Aristóteles
(sobre o conceito de mímeses) e o aforismo de Simônides, ―a pintura é a poesia calada e a poesia é a
pintura que fala‖, ut pictura poesis. O objeto de inspiração artística dos pintores era calçada na
literatura grega.
Em 1766, Lessing em seu livro ―Laconte‖, abre a discussão sobre o princípio na qual a
qualidade essencial da arte é a ideia. Segundo ele, a sincronia no espaço da pintura, e a sucessão do
tempo na poesia são, ambas, fenômenos físicos. Sobre os trabalhos de Lessing, Goethe acentua esta
distinção contrapondo não só poesia e pintura, mas também, pintura e desenho. Segundo ele,
pitamos com cores; esta é, portanto, o objetivo (início e fim) da pintura.
Somente nos séculos XIX, com romantismo, a polêmica entre pintura e poesia tem uma
aparente trégua. O desenvolvimento da poesia lírica e da pintura, especificamente, se dará frente à
oscilação entre estes dois pólos enquanto manifestações de arte. As artes plásticas, de modo geral,
tem uma aparente vantagem em relação às outras artes nesta libertação, visto que sua natureza
objetiva e pura força-nos um estímulo poderoso independente dos sentidos: ou fala algo, ou não
fala; e ainda, fala de forma diferente em uma dimensão prática da cor. A poesia, porém, fala de
maneira mais vaga, estimula o sentimento de cada um, segundo a natureza de cada leitor. Torna-se
277
ainda mais complexa a recepção do leitor quando a poesia trás consigo ornamento de subjetivação,
a cor.
O estudo sobre a cor expressa na literatura remete a uma análise que se desdobra
novamente em duas vertentes principais: arte e ciência; as quais estabelecem uma relação de
complementaridade na medida em que se observa tanto um discurso cientifico quanto literário em
obras que investem no aprofundamento do conhecimento sobre as cores em geral. Isto é percebido
em ―Teoria das Cores‖ de Goethe (1810). Sobre a relação de cor e arte, J. W. Goethe ainda na
introdução faz uma reflexão sobre as cores de modo geral.
Dizíamos que a totalidade da natureza se revela ao sentido da visão
através da cor, agora, por estranho eu pareça, afirmamos que o olho não
vê alguma coisa, uma vez que somente claro, escuro e cor, constituem,
juntos, aquilo que distingue para a visão de um objeto de outro e uma
parte de um objeto de outra. E assim construímos o mundo visível a
partir do claro, do escuro, e da cor, e com eles, também tornamos
possível a pintura, que é capaz de produzir, no plano, um mundo visível
muito mais perfeito que o real. (GOETHE APUD GIANONTTI, 2011)
Para entender a Teoria das Cores de Goethe é necessário conhecer previamente os tipos de
experiências por ele descritos, ou melhor, como o fenômeno da cor se articula com a experiência da
cor. É preciso esclarecer que sua obra não visa particularmente às artes plásticas; a obra tem tanto
um aspecto filosófico quanto prático. Na obra, Goethe causa certa confusão no leitor devido à
apresentação dos conceitos da teoria em uma estrutura de fragmentos dispersos no texto. Há certa
dificuldade de interpretação decorrente deste estilo que ora apresenta um rígido discurso científico,
ora um refinamento poético:
Certa vez, durante o entardecer, ao entrar numa hospedagem, uma moça
corpulenta de feições resplandecentes, cabelos negros e um corpete
escarlarte seguiu-me ate o quarto; de um acerta distância, observei-a
atentamente na penumbra. Logo que se virou para sair, vi contra a
parede branca um rosto preto, rodeado por um brilho claro, e as vestes
dessa figura perfeitamente nítida pareciam um lindo mar verde.
(GOETHE, 65p)
Goethe procurou sua investigação ao ar livre, pois, segundo ele, a cor deve ser pensada na
sua relação com o órgão específico da visão, o olho, onde este olhar encontra a natureza; o foco é a
analise sobre a cor na luz em contraposição a teoria física de Newton, o qual procurava derivar a cor
da luz. Quando Goethe fala observando os acontecimentos da natureza, ao ar livre, denomina seu
método de Arquefenômeno, ou seja, o fenômeno primordial (Urphänomem). Para ele, fenômeno
cromático se dá através da interrelação polarizada entre luz e escuridão. Neste meio entre luz e
escuridão as cores nascem e isto é o arquefenômeno na formação das cores.
A metodologia de Goethe, seu estilo de questionar e seu comprometimento em descobrir,
faz com que se lance aos experimentos e também solicita o mesmo ao leitor. O discurso que usa,
sem mostrar de pronto as conclusões, quer fazer o convite ao leitor sobre o caminho a trilhar na
experimentação, vivenciando as observações do fenômeno cromático. Goethe pretende manter a
278
questão sobre a verdade da criação ao nível da natureza, neste caso, ―estetizada‖ para preservar a
consciência como ponto de referência para o conhecimento, mesmo que isto o torne ainda mais
poético. Natureza não é, para ele, o que decorre dos experimentos; mas sim, o que reside no
conceito de cor. A aurora e o entardecer, por exemplo, fora por ele observados em diversos
momentos como tentativa do registro, ora com tons mais analíticos, ora com nuances literárias.
O vermelho da aurora e do crepúsculo surge pelo mesmo motivo.
Brilhando através de uma intensa massa de vapores, o sol se anuncia
através de um vermelho. A medida que desponta, o brilho se torna cada
vez mais claro e amarelo.(GOETHE, 89p.)
Devido ao grande prestígio físico inglês, os estudos de Goethe ficaram durante muito
tempo em descrédito pela comunidade científica até o século XX quando os pintores modernos
Paul Klee e Kandinsky retomam suas observações. Der Blaue Reiter (o cavaleiro azul), foi um
movimento fundado por Wassily Kandinky e Franz Marc. O nome representa a denúncia a
permanência de laços com a cultura simbolista. A interioridade passa a ser entendida como força a
espiritual e evolui para abstração mais rigorosa. Paul Klee, experimentador eclético, adere ao
movimento. Os artistas escolhem a via da abstração, tentado exprimir sentimentos e sensações
através da cor.
Ao tentar propor que as cores tem uma linguagem específica, inaugura também as formas
de abordá-las, aquilo que numa proposta fenomenológica significa a necessidade de adequarmos a
arte a uma linguagem apropriada de expressão. Na sexta parte de ―Teoria da Cor‖, apesar da
descrição técnica aplicada com caráter enciclopedista, Goethe analisa a relação entre cor e pintura;
trata, especificamente, dos efeitos estéticos e morais.
Goethe parece preceder aquilo que os modernos enfatizaram grandemente: a cor como
possibilidade de expressão autônoma, garantindo a legitimidade das artes plásticas em relação e poesia e
vice versa. É nesse sentido que a cor pode ser distinguida da poesia. A experiência cromática na
pintura não poderá ser pensada da mesma forma que a experiência cromática na poesia: ―Alegra-me
ver como poesia e artes plásticas podiam se influenciar reciprocamente (...). Somente num ponto
não tem a menor clareza, o colorido.‖ (GOETHE APUD GIANNOTTI, 2011).
Na quinta seção, procura analisar as diferentes relações com diversas disciplinas, entre elas
com a história natural. Segundo ele, essa disciplina tende a ser uma dedução de manifestações dos
fenômenos naturais a partir de fenômenos exteriores: ―(...) apresentando-se ao olho em uma grande
variedade, a cor se torna, na superfície dos seres vivos, uma parte importante dos signos exteriores
através dos quais percebemos o que se passa no interior deles.‖ (GOETHE APUD. GIANNOTTI,
2011).
Semelhante ao que acontece com Goethe quanto à investigação científica e a narrativa
poética, o artigo de Willi Bolle, Amanhecer no Amazonas. Cultura e natureza e luz da Teoria de Goethe,
publicada pela revista científica Amazonas: Literatura, Interfaces Fronteiras, mostra este diálogo entre
ciência e arte em duas literaturas específicas: Viagem pelo Brasil de Carls Friedrich Philipp von Martius e
279
Johann Baptist von Pix e O turista aprendiz de Mário de Andrade, ambas como relatos de viagem,
apresentam a intenção da descrição cientifica objetiva paralela a uma linguagem metafórica e
literária diante do amanhecer na região amazônica. Carls Friedrich Philipp von Martius, é um
naturalista botânico, contemporâneo ao romantismo que empreendeu uma viagem pelo Brasil no
período de 1917 a 1820. Tem como companheiro nesta viagem o zoólogo Johann Baptist von Pix.
Ambos se formaram em contato com a obra de Goethe ―A história e a filosofia da natureza‖ e seus
conhecimentos geográficos advém dos estudos de Alexander von Humboldt. Em Viagem pelo Brasil,
o autor pausa o discurso científico rigoroso para inserir uma folha de seu diário íntimo em que
manifesta características particulares de sensações diante do amanhecer em um terraço da casa em
que esteve hospedado em frente ao rio Amazonas na região do Pará em agosto de 1823.
O lugar sagrado, onde todas as forças se reúnem harmonicamente e
ressoam como canto triunfal, amanhece sensações e pensamentos. (..)
Cada vez mais claro torna-se o ar; o dia começa; uma indizível majestade
paira sobre a natureza: a terra está esperando o noivo.(Martius, 1981)
Inicialmente, ao autor esclarece o porquê da linguagem por ele escolhida, relato de viagem,
e faz isso extensamente em uma introdução de quase mil páginas. O gênero representava para ele, a
mediação perfeita entre ciência e arte. Neste momento, o autor documenta sua tendência ao
―espírito de compreensão‖ diante da experiência. As evidências dos traços estilísticos de
subjetivação são expressos pela identificação do Eu no texto.
Diariamente lanço-me na meditação do grande e indizível quadro da
natureza e, embora seja fora do meu alcance compreender sua finalidade
divina, ele me enche de deliciosas emoções. – São três horas da
madrugada; levanto-me da rede e não consigo mais dormir de excitação;
abro as venezianas e olha para a noite escura e solene. Magníficas
brilham as estrelas, e o rio resplandece como o reflexo da lua poente.
Como tudo é quieto e misterioso em torno de mim! Ando de lampião
para a fresca varanda e contemplo os meus amigos queridos, as árvores e
os arbustos em redor da casa. (MARTIUS, 1981)
Ao amanhecer, o autor atribui características metafóricas literárias na construção do texto,
percebidos nos versos destacados por Willi Bolle: ―O lugar sagrado, onde todas as forças se reúnem
harmoniosamente e ressoam como canto triunfal, amadurece sensações e sentimentos‖. Neste
ponto a evidência da tentativa de Martius em captar uma nova percepção calçada no subjetivismo
do amanhecer. A tentativa de captar a linguagem da natureza dos fenômenos cromáticos ligados ao
amanhecer e de traduzí-los em meios literários são percebidos na descrição do amanhecer na
evidente mediação entre percepção científica e estética. Neste ponto, Willi Bolle retira do texto
Viagem pelo Brasil, os trechos em que há o aparente diálogo entre discurso exato cientista e
sensibilidade literária pautada nas manifestações das cores.
As formas das árvores aproximam-se cada vez mais; o terral, que se
levanta do leste, agita-nos lentamente e já aparecem reflexos róseos nas
copas, lembrando abobadas dos troncos de Caryocar, Bertholeia e
Symphonya. Os falhos e as folhas agitam-se; sonhadores despertam e
banham no ar fresquinho da manha; besouros voam, mosquitos
280
zumbem, pássaros cantam, macacos trepam gritando nas brenhas; as
mariposas retiram-se lucifugas a noite da mata; nos caminhos há
movimento, os roedores fogem para o pardieiro e a irara pérfida se afasta
de mansinho do galinheiro, no qual o pomposo galo anuncia a manha‖.
(MARTIUS, 1981)
O segundo texto mencionado no artigo de Willi Bolle é o de Mário de Andrade, um
representante do modernismo brasileiro. O turista Aprendiz é fruto de uma viagem que faz a região
amazônica em 1927. Neste livro o autor segue a descrição do nascimento das cores numa escola
entre a escuridão e o aparecimento da luz do sol, seguindo a linha de Goethe sobre a polarização
entre luz e escuridão. Em Mario de Andrade, particularmente, este diálogo entre ciência e arte,
entremeado pelas cores é percebido no poema Crepúsculo Matinal. Nele, as cores atuam associadas
ao ar, aos sons e temperaturas. O autor segue a mesma trajetória de Martius ao incluir as cores no
texto literário e segue a linha dos Tableaux de la nature, quadros da natureza de Alexander von
Humboldt. No Brasil, o tableau de Mario de Andrade é o seu jornal de viagem focado na descrição
representativa da paisagem brasileira. A obra esta dividida em duas partes: o prelúdio entre as trevas
e, a segunda, o surgimento das cores específicas.
Na primeira parte, o poeta anuncia as cores assegurando o estado inicial de escuridão.
Gradativamente são inseridas as cores com a progressão da luz. O texto inicial é, para Willi Bolle, ―a
gênese das cores ou a sua cosmogonia‖ enfatizada pela sensação de retardamento do nascimento da
cor propriamente dita. No poema as cores são protagonistas do texto e antropomorfizadas junto
com a natureza. A segunda parte do texto é inteiramente dedicada ao aparecimento efetivo das
cores que se apresentam em cinco movimentos diferentes começando pelo primeiro movimento
composto pelas cores novas; o segundo pelas cores emphatici (remetendo a Goethe); o terceiro
movimento é representando como um jogo de cores. Os próximos movimentos não pertencem
mais ao céu, e sim, a superfície do rio e, finalmente, a última fase, novamente o azul e diversas cores
em plural.
No primeiro movimento, as cores novas são aquelas em que o olhar está disposto a receber
depois da escuridão. A primeira cor que surge é o azul como resultado da luz do sol. A gradação da
cor faz surgir novas cores em seguida, o rosa, definida por ele como ―sem graça‖. A próxima
manifestação de cor é o amarelo que discretamente vai ficando branco. Em seus versos, o autor diz:
O azul se define, cor de enfeite de Nossa Senhora. (...) Um roseado
muito sem graça, trêmulo, malteiro se arroja no ar e logo tem um
desmaio sem alarde, vira duma amarelo incolor e acaba ficando branco.
É só o tempo de acender um cigarro e até o azul nítido de há pouco foi
branqueado e também temos um agradável céu branco, com nuvens de
cinza adiante. E é só. (ANDRADE, 1986)
No segundo movimento, a narrativa de Mário de Andrade, reteme a teoria de Goethe sobre
as cores emphatici. O surgimento das cores se dão por meio a gradação de luz. O movimento de cores
parte do roxo para o escarlate. Esta cor é, para Goethe e Mário de Andrade, o grau máximo de
intensificação produzindo extrema energia. Todas as cores convergem para tons roseados de bordas
281
douradas. O terceiro movimento é o conjunto de cores. As nuvens e a natureza, de modo geral, são
personificadas: ―As nuvens criam coragem. Até longe, bem no alto céu, vejo um farranchon delas,
todas vestidas de luz clara, são laranjas perfeitos e uns brancos louros com ar de vida infantil.‖.
(ANDRADE, 1983). No quarto movimento, os fenômenos cromáticos situam-se na superfície do
rio e o espetáculo descrito no céu é novamente visto no espelho das águas dos rios num espectro
de cores que parte do ―azul vivíssimo‖ para gradativamente revelar cores em formas plurais (rosas,
marrons, verdes laranjas e amarelos). Depois de apresentadas as cores, o desaparecimento delas é
mediada pelo amarelo reforçada pela claridade refletida das águas. Em ambas as literaturas mostram
aparentemente como as cores nascem em meio natural através da dinâmica polarizada entre luz e
escuridão, tal qual a proposta de Goethe. Depois dos apontamentos de Bolle, sobre a recorrência
das cores nas literaturas, outro apontamento é lembrando pelo autor segundo a proposta de
goetheana sobre o surgimento das cores: a observação da natureza, que a partir do século XIX
esteve a margem devido ao experimentalismo científico que a época vivenciava. Mas que as artes
preservariam em suas manifestações entre elas, novamente, a pintura; e neste caso, a pintura de
paisagens.
A pintura de paisagem é no século XIX, sobretudo na Alemanha, a representação do
contexto político das nações. O componente nacional do Romantismo tinha grande influência
sobre a formação da identidade das nações, sobretudo, no Brasil com os artistas modernistas, como
Mário de Andrade. Segundo Bolle, ―A paisagem é um lugar da natureza construído pelo olhar do
observador‖, o arquefenômeno é o amanhecer. Dessa forma, o diálogo verbal objetivo da ciência
com a linguagem poética culminam em um objeto específico de arte, a pintura abstrata (não
figurativa) da natureza.
Que, enfim, a cor autorize uma interpretação mística, é fácil de perceber.
Pois como o esquema que permite a representação da variedade
cromática remete a relações primordiais, que pertencem a intuição
humana quanto a natureza, não há duvida de que e possível utilizar de
algum modo as ligações primordiais, que não se apresentam de modo tão
forte e variado ao sentidos. (GOEHTE APUD GIANNOTTI, 2011)
A natureza cada vez mais ―estetizada‖, com fins de se chegar ao conhecimento,
paralelamente, torna-se cada vez mais poética. Willi Bolle, seguindo os passos de Goethe e
aceitando o convite implícito na Teoria Cores, relata que sua preparação sobre o tema se deu de uma
experiência empírica do amanhecer do rio Amazonas. Podemos dizer que, Goethe é, portanto,
tanto um poeta que pesquisa a natureza? Eis a possível mediação entre ciência e arte, em que
ambas, servindo-se da representação de cores inseridas no discurso que carregam, trazem consigo o
motivo que, além de se inspirarem mutuamente, inspiram outras manifestações, entre elas, a pintura
de paisagem.
CONCLUSÃO
282
A Teoria das Cores de Goethe não definiu seu gênero. A oscilação entre linguagem
cientifica ou poética da obra é adequada (no sentido pragmático) para esclarecer o fenômeno que
lhe compete; o qual não aparece somente na descrição física do surgimento e desaparecimento da
cor, mas inscrito no olhar do observador, melhor dizendo, na retina.
A linguagem simbólica da obra faz parte desta impressão que poderíamos definir como
única: uma linguagem única das cores, aquilo que Wittgenstein tanto criticou devido aos conceitos
sucessivos de identidade de cor convencionados pela sociedade. O que Wittgenstein não atentou foi
para o objetivo de Goethe sobre os conceitos independentes de cor: ―nada pode ser exterior a nos,
o mundo se reflete no sujeito‖, Goethe não desvincula o homem do mundo. As manifestações das
cores se dão através do órgão da visão. Ele diz que ―o olho é sola‖, ou seja, olhar deve sua
existência à luz do mundo manifesto na natureza.
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283
MACUXANA: MEMÓRIA, IDENTIDADE E LITERATURA
RORAIMENSE
Cleo Amorim Nascimento101
Carla Monteiro Souza (orientadora)102
Resumo: Os sujeitos trazem em sua essência a soma das histórias vividas, a memória, à
qual eles recorrem na tentativa de buscar suas representações identitárias no convívio diário
com a coletividade social. Inúmeros estudos vêm buscando explicar como a memória é
constituída e qual a sua importância para a construção das identidades dos indivíduos.
Portanto, este artigo busca apresentar algumas considerações teóricas acerca da memória,
sua relação com a história e a identidade social a partir do discurso poético. Na produção
literária roraimense, elege como objeto de análise o poema Macuxana, do cantor,
compositor e poeta Zeca Preto, a fim de apontar características da cultura roraimense
referentes aos processos históricos de migração, colonização e o seu contato com a cultura
indígena fortemente arraigada no estado, e como estes aspectos que compõem a memória e
a história de Roraima estão representados na literatura regional. Nesta perspectiva, o artigo
busca, a partir da análise do poema em foco, mostrar como a literatura roraimense a partir
da década de 1980, por intermédio do Movimento Cultural Roraimeira, passou a divulgar a
cultura regional, na intenção de reavivar costumes, rememorar fatos históricos e difundir a
cultura e a identidade roraimense.
Palavras-chave: Memória; História; Identidade; Literatura Roraimense.
Resúmen: Los sujetos aportan en su esencia la suma de las historias vividas, la memoria, la
cual utilisan para tratar de conseguir sus representaciones de identidades en su contacto
diario en la colectividad social. Numerosos estudios han tratado de explicar cómo se forma
la memoria y cuál es su importancia para la construcción de las identidades de los
individuos. Por lo tanto, este artículo trata de presentar algunas consideraciones teóricas
acerca de la memoria y su relación con la historia y la identidad social apartir del discurso
poetico. Desde la producción literaria roraimense, elige como objeto de análisis el poema
Macuxana, del cantante, compositor y poeta Zeca Preto, con el fin de señalar las
características de la cultura roraimense que se refieren a los procesos históricos de la
migración, colonización y su contacto con la cultura indígena muy arraigada en el estado, y
cómo estos aspectos que conforman la memoria y la historia del Estado de Roraima están
representados en la literatura regional. En esta perspectiva, el artículo busca en el análisis
interpretativo del poema en foco, mostrar cómo la literatura roraimense apartir de los años
1980, a través del Movimiento Cultural Roraimeira, comenzó a publicar la cultura regional,
en un intento de revivir las costumbres, recordar hechos históricos y difundir la cultura e
identidad roraimense.
Palavras clave: Memoria; Historia; Identidad; Literatura Roraimense.
Aluna do Mestrado em Letras, na linha de pesquisa Literatura, Artes e Cultura Regional, do PPGL da
Universidade Federal de Roraima (UFRR). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
102 Doutora em História. Professora do Dep. de História da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e do
Mestrado em Letras do PPGL da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Pesquisadora do Grupo de
Estudos Literários (UFRR). E-mail: [email protected]
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1. Introdução
Os estudos sobre a memória têm tentado há muito explicar qual a importância do
ato de lembrar e qual a relação das lembranças com a construção das identidades dos
sujeitos. A memória é parte importante na compreensão do sujeito enquanto partícipe de
uma sociedade, o lembrar confere ao sujeito o poder de relacionar o que viveu ao tempo
hodierno, ao passo que confirma sua presença e define seu sentimento de pertencimento
ao lugar que escolhe como referência de identificação.
A memória remete o sujeito as suas origens, é um processo interativo e dinâmico
que se constrói individual e coletivamente à medida que o indivíduo interage com as
práticas discursivas em seu meio social, e nesta interação social constroem-se
gradativamente as identidades.
Portanto, os estudos teóricos aqui destacados visam conceituar e classificar a
memória, explicar a sua relação com a história e a identidade social à luz de teóricos como
Halbwachs (1990), Pollak (1992), Bosi (1994), Bergson (1999), Cuche (2002), Hall (2002),
Mello (2010) e Souza (2010). E para discutir como esta relação encontra-se disposta dentro
da literatura regional roraimense, a análise do poema Macuxana, do poeta, cantor e
compositor Zeca Preto, servirá de base para mostrar a preocupação dos artistas locais em
divulgar a história, a cultura e a identidade desta localidade tão peculiar, que abriga em seu
seio a diversidade e a pluralidade.
2. Memória, história e identidade social
A palavra memória vem do termo latim memoria, que traz como significado a
―faculdade de reter as ideias, impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente
(FERREIRA, 2004, s.p‖), e abriga ainda em seu cerne significativo os termos lembrança,
reminiscência, recordação. E assim, ao longo das décadas, este termo vem ganhando
inúmeras atribuições históricas, afetivas e artísticas entre outras.
O registro de testemunhos, depoimentos e narrativas orais, como afirma Alberti
(2005 Apud SOUZA, 2010, p. 2), permitem acessar as ―histórias dentro da História‖. Neste
contexto fica claro observar a estreita ligação entre a memória e a história, pois ambas são
constituídas a partir de depoimentos, testemunhos e registros perpassados entre gerações
ao longo do tempo.
Em definição que corrobora este pensamento, Mello (2010, p.5) afirma:
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A memória é sempre historicamente datada e, portanto, moldada
no tempo histórico. Ela está sempre reorganizando o passado,
pautada por projetos individuais ou coletivos que garantem
inteligibilidade para um presente no qual as identidades se mantêm
em constante reelaboração, em função dos conflitos entre o
projeto pessoal com outros projetos individuais e coletivos.
Rememorar e narrar, escrita ou oralmente, requer um contínuo relacionamento
solidário e interativo com outras lembranças, a configuração de contextos, de paisagens, de
lugares que, como ―cenários‖, abrigam e dão sentido ao que está sendo lembrado e contado
(SOUZA, 2010, p.2). O que implica dizer que as memórias e relatos históricos não se dão
de maneira isolada, pois estas só adquirem sentido quando são frutos da interação entre as
lembranças e relatos dos indivíduos, e as lembranças e relatos do contexto social no qual
este indivíduo esteja inserido.
Com relação a ligação entre a memória e o passado cabe citar a contribuição do
importante teórico dos estudos sobre a memória, Henri Bergson, que em seu livro
intitulado Matiére et Mémoire (1896), traduzido para a língua portuguesa como Matéria e
memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito (1990), elenca fatores que
conceituam a fenomenologia da lembrança, e define, portanto a memória como processo
de conservação do passado.
Para Bergson (1990, p.170) ―nossas lembranças formam uma cadeia do mesmo
tipo, e que nosso caráter, sempre presente em todas as nossas decisões, é exatamente a
síntese atual de todos os nossos estados passados‖. De acordo com o teórico o fenômeno
da lembrança estaria relacionado ao ato de deixar aflorar do passado o que estava
submerso, ou seja, ―a memória permite a relação do corpo presente com o passado
(BOSI,1995, p.46)‖.
Destarte, a memória seria vista, portanto como ―o lado subjetivo de nosso
conhecimento das coisas (BERGSON 1990 apud BOSI, 1995, p.47)‖, o que daria a
memória o ato de lembrar cabível a cada indivíduo sem que necessariamente precise da
influência de outros para existir, a menos que seja para fins de ―adestramento cultural‖, o
que Bergson define como memória-hábito.
Em contrapartida a ideia de memória enquanto atividade subjetiva, Maurice
Halbwachs, ―principal teórico das relações entre memória e história pública (BOSI, 1995,
p.53)‖ atribui à memória um caráter de coletividade no qual se dá o processo de
reconstrução do passado. Em seus estudos, Les cadres sociaux de lá memoire e La memóire
collectiva, Halbwachs dedica-se exploração do que ele define como ―quadros sociais da
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memória‖, pois segundo este teórico ―o maior número de nossas lembranças nos vem
quando nossos pais, nossos amigos, ou outros homem, no-las provocam (HALBWACHS
1990 apud BOSI, 1995, p.54)‖. Nessa afirmação Halbwachs se contropõe ao caráter
subjetivo da memória disposto por Bergson, e apresenta a memória como um processo no
qual se pode reconstruir lembranças e experiências do passado.
Em consonância a este pensamento Mello (2010, p.3) afirma: ― as lembranças e
experiências vividas permitem a reconstrução de trajetórias de vidas que ganham
significado na medida em que são ordenadas numa relação com o passado‖. Ainda de
acordo com esta vertente, Halbwachs (1990 apud BOSI, 1995, p.55) acrescenta que: ―A
lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição,
no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual‖. Diante disso, fica
claro que passado e presente então não aparecem como momentos rigorosamente
distanciados, mas como elos que se vinculam por intermédio das lembranças.
Para POLLAK (1992, p. 204) ―a memória é um elemento constituinte do
sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também
um fator extremamente importante do sentimento de continuidade de coerência de uma
pessoa de um grupo em sua reconstrução de si‖. São, portanto, nas lembranças construídas
a partir da coletividade de representações que povoam as consciências dos sujeitos que
ocorrem as identificações pessoais, ou seja, os indivíduos se reconhecem como
pertencentes às imagens, representações ou símbolos sugeridos pelas situações vividas, e
constroem as suas identidades.
3. Movimento Cultural Roraimeira: Identidade Roraimense
Na década de 1980, um grupo de artistas locais preocupados em discutir o
problema da identidade cultural roraimense organizou um movimento cultural
comprometido com a produção de uma arte baseada nos elementos da vida e da paisagem
local. Este movimento foi batizado como Movimento Cultural Roraimeira, sendo que a
expressão que deu nome a este movimento ―Roraimeira‖ é uma homenagem a Música de
mesmo nome, composta pelo cantor e compositor paraense Zeca Preto, considerada pelos
artistas locais como a primeira canção que fala do povo e da paisagem de Roraima
(OLIVEIRA; SOUZA; WANKLER, 2009).
Nesta década, a cidade de Boa Vista recebia um intenso processo migratório em
decorrência da busca pelo garimpo de ouro pelos garimpeiros advindos de várias partes do
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país, de indígenas que vinham para a capital, motivados pelos conflitos com estes
garimpeiros, pois as zonas de garimpo situavam-se nas áreas indígenas, e das levas de
migrantes, especialmente nordestinos, trazendo também seus costumes e tradições
(OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009, p.31). Esse intenso processo migratório e os
conflitos ocasionaram um choque entre as diferentes culturas desses povos, implicando em
mudanças nas identidades pessoais e causando deslocamento ou descentralização do sujeito
(perda de um ―sentido de si‖), Hall (2002) afirma que esse deslocamento pode vir a
desencadear uma crise de identidade, ocasionada pelo duplo deslocamento dos indivíduos
tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos.
Para Woodward (2000, p.22):
Essa dispersão das pessoas (...) produz identidades que são
moldadas e localizadas em diferentes lugares e por diferentes
lugares. Essas novas identidades podem ser desestabilizadas, mas
também desestabilizadoras. (...) identidades que não têm não têm
uma ―pátria‖ e que não podem ser simplesmente atribuídas a uma
única fonte.
Com relação a esta desestabilização das identidades por conta do convívio de
diferentes culturas em um mesmo lugar Cuche (2002, p.176) afirma: ―(...) as estratégias de
identidade podem manipular e até modificar uma cultura que não terá então quase nada em
comum com o que ela era anteriormente‖.
Preocupados com a difícil tarefa de definir um perfil cultural para essa região,
devido a pluralidade de culturas conviventes em Roraima, um grupo de artistas composto
pelos poetas, cantores e compositores Eliakin Rufino, Zeca Preto e Neuber Uchôa, dentre
outros, iniciaram o Movimento Cultural Roraimeira que buscou por intermédio da junção
de várias expressões artísticas (música, literatura, dança, entre outras) construir uma
identidade cultural para o povo de Roraima, conforme afirma o próprio Rufino quando diz:
No movimento Roraimeira nós tentamos esboçar uma fisionomia
cultural para cá, porque até então se dizia que aqui não tinha cultura,
isso era um comentário recorrente. Talvez a nossa grande
contribuição, do roraimeira, é acabar com a crise de identidade que
Roraima padecia (OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009, p. 28).
Daniels 1993 (apud WOODWARD, 2000, p.23) explica que: ―Para lidar com a
fragmentação do presente, algumas comunidades buscam retornar a um passado perdido,
ordenado ... por lendas e paisagens, por histórias de eras de ouro, antigas tradições, (...) e
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destinos dramáticos localizados em terras (...) cheias de paisagens e locais sagrados...‖. E foi
exatamente isso que as manifestações artísticas organizadas a partir do Roraimeira
buscaram expressar em sua produções.
Cumpre destacar que este movimento cultural teve duas fases distintas, na primeira
que cumpriu o período de 1980 a 2000, as produções artísticas deste período buscavam
destacar elementos da paisagem natural, a imagem do índio como figura importante das
origens do estado e as diversas origens, costumes e tradições trazidas pelos migrantes. Na
segunda fase, após o ano de 2000, e que se estende até a atualidade, houve uma acentuada
mudança nas produções artísticas que tiveram como característica marcante posturas de
tom crítico ou irônico. As produções já não fazem apenas alusão às belezas naturais, mas
mesclam elementos de Roraima com a Amazônia, e até mesmo, de outros estados do país
ou situações de representação nacional (OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009).
Vale ressaltar que neste artigo será dada ênfase a uma das produções que se
enquadra na primeira fase deste movimento, pois o objeto de análise deste estudo é um
poema que trata de fatos históricos, aspectos da colonização do estado de Roraima,
exaltação das belezas naturais e representação da cultura indígena.
4. Macuxana: memória, identidade e literatura roraimense
A expressão macuxana é um neologismo criado pelo poeta Zeca Preto que faz a
junção de duas grandes etnias que compõem a população indígena do estado de Roraima,
os Macuxis, grupo indígena de maior população no estado, ―a estimativa da população
Makuxi (ano base 2000) distribuída no estado é de 16.500 pessoas (COSTA E SOUZA,
2005, p.46)‖, e os Wapixanas, ―segundo maior grupo indígena do Estado de Roraima,
estimado em 6.500 pessoas habitando em Roraima (COSTA E SOUZA, 2005, p.43)‖.
Esta expressão foi cunhada pelo poeta para nomear o poema Macuxana, no qual por
intermédio de um discurso poético e laudatório descreve fatos que estão ligados a ocupação
e urbanização do estado como a corrida do ouro, ocorrida na década de 80, retrata os
processos históricos da colonização e ocupação inicial desta região pela ordem religiosa dos
carmelitas e o contato com as etnias indígenas presentes no estado, bem como também
descreve as belezas naturais peculiares a esta região.
Macuxana
Nesse mundo de lendas o tempo passou
De real só Roraima você que ficou
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Seu folclore existe não ressuscitou
Não confunda não tema o tempo revelou
Do rio Branco o boto saiu pra dançar
Cobra grande respeita Mãe D'água Iemanjá
Cunhantã já dormiu ao som do maracá
Senhora Wapixana pode descansar
Mas domingo eu tô lá no Caracaranã
Pra matar a saudade meu amor
Carmelita me pacificou me ensinou
A rezar, a cantar, compreender quem eu sou
De Rio Branco a Roraima Cresceu, tu cresceu
Contador de histórias desapareceu
És meu norte, meu livro, meu canto no cio
Água grande levando os amores de abril
Macuxana pescando encanto pra viver
São remadas de ubá no meu entardecer
(PRETO, Zeca. Macuxana. Disponível em: http://letras.terra.com.br/zeca-preto)
Neste ponto cabe ressaltar que o poeta Zeca Preto não é natural do Estado de
Roraima, nasceu em Belém (PA) e vive em Boa Vista acerca de 30 anos. Portanto, faz-se
necessário elencar os seguintes questionamentos: Como explicar os relatos históricos que
compõem seus discursos poéticos? Qual o seu grau de conhecimento acerca dos processos
antigos da colonização do Estado que aparecem nos versos de seus poemas?
Michael Pollak (1992, p.202), um dos grandes estudiosos da memória, apresenta
elementos definidos por ele como acontecimentos, os vividos pessoalmente ou aqueles
―vividos por tabela‖. Segundo o teórico tais acontecimentos desencadeiam a projeção ou a
identificação dos indivíduos com a memória do grupo social no qual estão inseridos. Mas,
afinal o que seriam os acontecimentos vividos por tabela?
Estes acontecimentos são então definidos pelo teórico da seguinte maneira:
(...) são os acontecimentos (...) vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos
dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que, no imaginário,
tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase
impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos
mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se
juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo
de uma pessoa ou de um grupo (POLLAK, 1992, p.202).
Alguns dos acontecimentos descritos pelo poeta Zeca Preto no poema Macuxana
são parte de uma memória construída por tabela, ou seja, por mais que ele descreva fatos
que datam de muito antes de sua vinda para o Estado, o seu convívio com os poetas da
região como Eliakin Rufino e Neuber Uchôa, o fez desenvolver um sentimento de apego e
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identificação, fazendo com que eles se projetasse nas suas composições a um passado
herdado, e que ele por intermédio do seu eu poético interpreta e canta como vivenciado,
sentido em sua plenitude, conforme descrito na análise que se segue.
Nos versos 1 e 2: ―Nesse mundo de lendas o tempo passou/De real só Roraima
você que ficou‖, há uma referência a corrida do ouro, a ilusão de enriquecimento fácil que
atraiu muitos migrantes para o estado de Roraima na década de 1980, mas precisamente no
período de 1987 a 1990, atraídos pela ideia de grandes jazidas de ouro que estariam ainda
inexploradas no estado. Nesse período a população quase dobrou o número de habitantes.
Cumpre informar que alguns anos depois a desarticulação do garimpo pôs fim a está ilusão
coletiva, e a realidade de Roraima passou atrair migrantes por outros meios (OLIVEIRA;
WANKLER; SOUZA, 2009).
―Seu folclore existe não ressuscitou/ Não confunda não tema o tempo revelou (v. 3
e 4)‖, nestes versos o eu poético ratifica a existência do folclore roraimense que envolve
lendas, danças e costumes particulares a esta região, e que posteriormente são elencados no
poema.
―Do rio Branco o boto saiu pra dançar/ Cobra grande respeita Mãe D'água Iemanjá
(v. 5 e 6)‖, aqui transparece o imaginário mítico que versa sobre as lendas que povoam o
imaginário dos contadores de história das tribos indígenas do estado, e que interligam as
lendas do estado às lendas de outros estados da região amazônica, pois ―os costumes e
tradições trazidos pelos migrantes foram somados a cultura indígena já existente,
contribuindo assim para o pluralismo cultural – marca da identidade roraimense
(OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009, p. 32)‖.
Segundo a lenda o boto, peixe encontrado nos rios da Amazônia, se transforma em
um belo e elegante rapaz durante a noite, quando sai das águas à conquista das moças às
margens dos rios, quando vão tomar banho ou mesmo nas festas realizadas nas cidades
próximas aos rios. O Boto vai aos bailes e dança com elas, que logo se envolvem, se
apaixonam e engravidam deste rapaz. É por esta razão que ao Boto é atribuída a
paternidade de todos os filhos de mães solteiras, nascidos nas regiões ribeirinhas (AFCA,
2012103).
A Lenda da cobra grande povoa o imaginário popular da Amazônia, adotando
diferentes conotações de acordo com a região em que é contada: é Boiúna, protetora do
Rio Branco, em Boa Vista-RR; nos rios Solimões e Negro (Amazonas), aparece como a
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Associação
Folclórica
e
Cultural
de
Ananindeua
(PA).
Disponível
<http://associacaoafca.blogspot.com.br/p/ lendas-e-mitos.html. >Acesso em: 20. jun 2012
em:
291
cobra grande, fruto de um cruzamento sobrenatural entre uma mulher indígena e uma
visagem (espírito); no Acre, é uma entidade mítica, que se transforma em uma linda moça,
que durante as noites de São João seduz rapazes inocentes (COÊLHO, 2012. s.p).
A cobra grande respeita a mãe D‘água, a sereia das águas amazônicas, que segundo
a lenda da região atrai os homens pela sua beleza e os leva para o fundo do mar. Percebe-se
ainda nestes versos a confluência das lendas, o ir e vir por histórias que perpassam
fronteiras geográficas, uma só lenda viaja por determinadas culturas e as une ao mesmo
tempo em que as diferencia em algumas particularidades.
Quando diz: ―Cunhantã já dormiu ao som do maracá / Senhora Wapixana pode
descansar (v. 7 e 8)‖, se reporta as tradições indígenas nas quais a cunhantã (menina, moça)
dorme ao som do maracá, espécie de chocalho indígena, que no poema embala o sono da
cunhantã. O chocalho provavelmente é tocado pela Senhora Wapixana, que conta histórias
antigas da tribo e canta cantigas herdadas da sua cultura para que a cunhantã durma, e
então ela possa descansar.
O eu poético nos versos: ―Mas domingo eu tô lá no Caracaranã / Pra matar a
saudade meu amor (v. 9 e 10)‖ refere-se à ida ao lago do caracaranã, importante ponto
turístico da região que resguarda belezas naturais intocáveis, no poema ele aparece como a
fonte de deleite para o poeta matar a saudade da forma antiga e pacífica de viver, da
Roraima de antigamente, o seu verdadeiro amor.
Nos versos: ―Carmelita me pacificou me ensinou/ A rezar, a cantar, compreender
quem eu sou (v. 11 e 12)‖, há uma referência ao processo de colonização do estado, no
qual os carmelitas foram designados para a evangelização dos silvícolas da região e que
fundaram a Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (1858) que posteriormente originou a
cidade de Boa Vista.
No entanto, cumpre informar que no poema aparece uma versão idealizada, utópica
do que fora realmente o processo de missionamento carmelita no rio Branco. Na tentativa
de ―civilização‖ dos indígenas as missões religiosas, enviadas pela coroa portuguesa, eram
encarregadas de catequisar os indígenas, ou seja, doutriná-los na fé católica, e para tanto
alfabetizavam os gentios na língua portuguesa, e assim aos poucos os índios iam sendo
destituídos de suas tradições religiosas, da sua língua e de seus costumes, e viviam ―sob o
domínio da influência lusitana (Costa e Souza, 2005, p34)‖.
―De Rio Branco a Roraima Cresceu, tu cresceu / Contador de histórias desapareceu
(v. 13 e 14)‖, estes versos trazem a narrativa da criação do estado, que de acordo com
Souza (2010) deu-se à partir de 1943, ano da criação do Território Federal do Rio Branco,
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e que a partir de 1962, passou a chamar-se Território Federal de Roraima, e no dia 05 de
outubro do ano de 1988 foi elevado a condição de Estado, passando então a chamar-se
legalmente como Estado de Roraima (VERAS, 2009).
O crescimento do estado unido à grande miscigenação proporcionada pelo contato
dos indígenas com migrantes foi modificando as culturas indígenas, bem como diminuindo
a prática da contação de histórias. Entre os indígenas é comum a escolha de uma pessoa
específica para contar as histórias, uma pessoa mais velha, a qual ―neste momento de
velhice (...) resta-lhe, (...) uma função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família,
(...) do grupo (BOSI, 1995, p.63)‖.
A respeito deste costume Halbwachs (1990 apud BOSI, 1995, p.63) afirma: ―Nas
tribos primitivas, os velhos são os guardiães das tradições, (...) porque eles as receberam
mais cedo que os outros (...) e dispõem de lazer necessário para fixar seus pormenores ao
longo de conversações com outros velhos, e para ensiná-los aos jovens (...)‖. Sua função,
portanto é manter vivas as lembranças dos costumes, tradições e crenças indígenas, para
que os mais novos possam identificar-se e reafirmarem a sua identidade indígena.
Quando o eu poético diz: ―És meu norte, meu livro, meu canto no cio/Água
grande levando os amores de abril / Macuxana pescando encanto pra viver/São remadas
de ubá no meu entardecer (v. 15 à 18)‖, ele assinala Roraima como ponto norteador, faz
referência ao livro que o poeta Zeca Preto escreveu, o Beiral, no qual ele por intermédio de
muitos poemas canta seu deslumbramento e sua paixão pelo Estado. Faz-se também
referência as águas do Rio Branco que levam e trazem pessoas, e com elas sonhos e
amores. A Macuxana pesca neste grande Rio o alimento pra sua sobrevivência bem como
os encantos pra viver, as histórias de sua tribo que narram e significam a sua própria
existência.
5. Considerações finais
Pretendeu-se neste artigo salientar os aspectos relevantes para a compreensão do
fenômeno da memória e a sua importância para a construção da identidade de um povo.
De acordo com Pollack (1992, p. 204 ) ―a memória é um fenômeno construído social e
individualmente, (...) podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito
estreita entre a memória e o sentimento de identidade‖, pois à medida que lembramos
significamos e resignificamos o sentimento de pertencimento a uma determinada cultura.
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As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico
com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas tem a ver,
entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura
para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos (HALL,
2000).
É importante ressaltar que no contexto roraimense a literatura tem cumprido esse
papel de divulgadora dos fatos sociais que favorecem a compreensão de alguns aspectos
culturais do estado de Roraima, que surgiram no passado, mas que se vinculam ao presente,
e que são de grande importância para a construção da identidade.
Portanto, é importante compreender que a memória não é um fenômeno isolado,
mas um conjunto de lembranças construídas individual e coletivamente, e que se molda ao
que Halbwachs define como ―quadros sociais da memória‖, num movimento constante
que perpassa o espaço-tempo cronológico. Manter contato com a memória permite ao
indivíduo ―a compreensão das relações dialógicas que ocorrem entre as suas representações
identitárias, (...) no processo de leitura de mundo entre o tempo presente e o tempo
passado (SANTOS, 2005, s.p)‖, pois é por intermédio das relações sociais que os
indivíduos estabelecem com os outros que eles moldam suas opiniões, constroem suas
histórias de vida e assumem as suas identidades.
6. Referências
Associação
Folclórica
e
Cultural
de
Ananindeua
(PA).
Disponível
<http://associacaoafca.blogspot.com.br/p/lendas-e-mitos.html. >Acesso em: 20.
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Vozes, 2000.
295
IMAGENS DA PRIMEIRA REPÚBLICA NO BRASIL EM
LIMA BARRETO
Cristiane da Silveira104
Resumo: Este trabalho possui como objetivo refletir sobre os (des)encontros entre a
história e a literatura, e partindo dessa discussão compreender os primeiros anos da
República no Brasil, tomando como fonte os escritos de Lima Barreto e as reflexões
instigadas por suas narrativas literárias, em especifico do romance Recordações do escrivão
Isaías Caminha. A atualidade da produção literária de Lima Barreto vem despertando
crescente interesse entre pesquisadores, pois sua literatura constitui-se num testemunho
singular de seu tempo. Os escritos de Lima Barreto traz a tona os sentimentos instigados
com o advento da República. Neste trabalho nos deteremos nas figuras marginais do que
denominamos cidadão periférico, ou seja, sujeitos que viviam à margem da sociedade, mas
que em seu cotidiano criavam ações singulares para se inserirem no meio econômico, social
e político. A trajetória do personagem Isaías Caminha nos permite interessantes reflexões
sobre a discussão da literatura como fonte para a pesquisa em história.
Palavras-chave: Lima Barreto; Cidadão Periférico; Primeira República.
Abstract: This work aims to reflect on the (mis) matches between history and literature,
and starting this discussion to understand the early years of the Republic in Brazil, using as
source the writings of Lima Barreto and reflections instigated by their literary narratives,
specific in the novel Memories Registrar Isaiah walks. The actuality of the literary
production of Lima Barreto is attracting growing interest among researchers because their
literature constitutes a unique witness of his time. The writings of Lima Barreto brings out
the feelings instigated by the advent of the Republic. In this paper we will consider the
marginal figures of what we call citizen peripheral, ie individuals who lived on the margins
of society, but in their daily actions created to fit into the natural environment economic,
social and political. The trajectory of the character Isaiah Walk allows us to interesting
reflections on the discussion of literature as a source for historical research.
Keywords: Lima Barreto; Peripheral Citizen; First Republic.
5.
Introdução
Nosso intuito neste trabalho foi pensar a história do Brasil, em suas primeiras
décadas republicanas, a partir de um romance. Essa proposta carrega um duplo objetivo:
refletir sobre os (des)encontros entre a história e a literatura, e partindo dessa questão
compreender os primeiros anos da República no Brasil, tomando como testemunho o
romance e as reflexões instigadas pelas narrativas literárias.
As ―mãos/olhar‖ que nos guiou no destrinchar dos fios dessa história foram os de
Lima Barreto, em especifico do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. Sabemos que
estamos lidando com uma história que não a sacralizada pelos discursos daquele momento,
no entanto, se fizeram presentes no cotidiano de muitos os homens e mulheres. Aqui
104
Professora do curso
[email protected]
de
História
da
Universidade
do
Estado
do
Amazonas.
E-mail:
296
também buscamos a ação-reação do sujeito que denominamos de cidadão periférico, ou seja,
aquele que vivia às margens da sociedade, mas que encontrava formas singulares, e por
vezes inusitadas, de se inserirem no meio econômico, social e político que os excluía
diariamente.
Para alcançar as reflexões propostas o presente texto se divide em três momentos.
No primeiro apresentamos algumas questões pertinentes ao instigante debate sobre o usos
da literatura como fonte para a pesquisa histórica. Num segundo, buscamos Lima Barreto
no seu tempo, arriscamos algumas interpretações sobre o geral da sua obra, e como
suscitou diferentes olhares ao longo da construção do debate que se coloca na
contemporaneidade brasileira. Já no terceiro momento, nos voltamos para a análise do
romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
6.
Enlaces entre a história e a literatura
A literatura como fonte para a pesquisa em história suscita discussões, visto que a
produção literária ao transitar entre a ficção e a realidade, permite-nos uma (re)leitura dos
aspectos e das semelhanças da realidade vivida numa temporalidade passada. Marc Bloch
(1997), Walter Benjamim (2005), Nicolau Sevecenko (1993) nos guiam na compreensão
do(s) uso(s) da literatura para a construção do conhecimento histórico, possibilitando-nos
ampliar nosso entendimento sobre o conhecimento histórico e suas fontes.
Mesmo não sendo historiador, Walter Benjamim (2005), filósofo e crítico literário,
foi expressão importante na renovação historiográfica ocorrida a partir dos anos de 1930.
Viveu num momento de profunda crise política, de violência, de horror e de destruição
praticada pelo nazismo. Sua obra difusa e inacabada tornou-se singular no pensamento
intelectual contemporâneo, e nos surpreende com novo entendimento sobre a história,
sendo esta com pés fincados no momento presente, mas inovadora, pois rompe com a
ideia de contínuo e progresso. Negar esse fenômeno, significa compreender que o
progresso não é um processo natural, mas que muitas outras possibilidades se colocam no
tempo passado e presente.
Ao analisar as teses da História, Löwy (2005) chama a atenção para o fato de que
Benjamim nos fala sobre uma postura que nega o progresso como fenômeno natural, mas
que para além desse fato, ele não é inevitável e irresistível. Neste sentido, é possível
vislumbrar um caminho que traz a tona outros rumos para a escrita da história, que não por
meio da contínua busca progresso, mas da descontinuidade e da possibilidade do novo vir a
297
ser, que em certa medida instiga a se pensar a história a partir de outros marcos, que não as
comumente usada no discurso dos vencedores, ou como nos coloca Benjamim, numa
história à contra-pelo.
Benjamim critica a história escrita pela ótica das classes dominantes e aponta para a
necessidade da reação das classes oprimidas para a transformação da história e do tempo
presente. Para o autor ―A história é objeto de uma construção, cujo lugar não é formado
pelo tempo homogêneo e vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-agora (Jetzeit)‖
(BENJAMIM, 2005, p.119).
Aqui temos um novo olhar sobre a história que nos instiga a pensar sobre as fontes,
que é um instrumento que nos permite construir outras perspectivas de história que não a
que nos é constantemente passada pela ótica dominante. Nesse sentido a obra literária
torna-se fonte estratégica, pois consegue em muitos momentos recuperar pensamentos e
sonhos do momento em que foi construída.
Para Nicolau Sevecenko (1993) a produção da obra literária está associada ao seu
contexto histórico, refletindo em suas narrativas angústias e sonhos de agentes sociais
contemporâneos à sua criação, mesclando elementos de ficção e realidades possíveis, pois o
escritor não está além de seu tempo, mas junto com ele, olhando-o de modo singular, mas
o que escreve está colocado nas múltiplas possibilidades de realidades a serem vividas. A
obra de ficção lida com ações sonhadas, com sentimentos compartilhados, com a
intermediação entre o real e as aspirações individuais e coletivas, e talvez por isso, ao
tornar-se documento para a se construir narrativas sobre a história fabrica um artefato que
ao revelar a fala de sujeitos que se encontram fora do que é socialmente aceito ou desejável,
muitas vezes é interpretado como fonte de menor valor.
A obra literária constitui-se como parte do mundo, das criações humanas e
transforma-se em relato de um determinado contexto histórico-social. Por isso, ―qualquer
obra literária é evidência histórica objetivamente determinada – isto é situada no processo
histórico‖ (CHALLOUB e PEREIRA, 1998, p.07). Ao lidar com o testemunho literário
estamos trabalhando com uma evidência história que permite problematizar os anseios e os
sonhos de quem viveu no passando, e nos permitem lidar com as falas que muitas vezes se
foi colocada como marginais na sociedade e por isso se perderam no ar rarefeito da
História.
7.
Lima Barreto e sua produção literária
298
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no dia 13 de maio de 1881, nos
subúrbios do Rio de Janeiro, local que passou toda sua vida. Neste contexto, a sociedade
brasileira passava por processo de reestruturação social e econômica e crescente
conturbação política, pois foi a última década do regime monárquico. Sua morte, em
novembro de 1922, foi outro marco importante da história brasileira, pois foi momento de
grande efervescência intelectual, com a Semana de Arte Moderna e os novos rumos
trilhados pela literatura brasileira, atrelado ao contexto político. A obra de Lima Barreto é
vasta, constituída por romances, crônicas e contos.
Paula Beigueman (1997) em artigo comemorativo dos 100 anos da morte de Lima
Barreto fala da sua incontestável importância na literatura brasileira. Se em vida o escritor
encontra dificuldades para publicar, o mesmo não acontece após sua morte. Em 1956 uma
reedição das obras completas foi lançada; dirigida por Francisco de Assis Barbosa (São
Paulo: Brasiliense), com a colaboração de Antonio Houaiss e Cavalcanti Proença.
A posição que Lima Barreto adotou frente a seu tempo foi, então, de crítica aos
seus contemporâneos, seja pela passividade, buscando a re-ação por parte das classes
oprimidas, seja para trazer a tona a realidade de infertilidade intelectual e política pela qual
o país vivia. Assim, Lima Barreto foi integrante de pequena parcela da população brasileira,
que por meio de sua escrita teceram ferozes críticas ao país com o fim do trabalho escravo
e a instauração da República, evidenciando os (des)encontros e as injustiças sociais, na
maioria das vezes tramadas a partir da raça e da posição social.
Em seu tempo e ao longo da história literária do Brasil, a criação de Lima Barreto foi vista
como obra de menor envergadura, muitas vezes, mal acabada. A partir dos anos de 1930
foi que se processou, no pensamento brasileiro, crítica mais apurada sobre a real
significação da produção do romancista para o entendimento das relações travadas no
Brasil do início do século XX, principalmente no que diz respeito à realidade vivida pelos
homens e mulheres negros e pobres. Assim, a atualidade da produção literária de Lima
Barreto foi despertando crescente interesse entre pesquisadores de diferentes áreas do
conhecimento, pois constituiu-se num testemunho singular de seu tempo.
Não esqueçamos que os escritos de Lima Barreto traz a tona os sentimentos
instigados com o advento da República, num misto de alegria e tristeza. Alegria por ser um
momento em que todos acreditavam que o país iria se acertar e caminhar em passos firmes
para uma realidade de modernidade e progresso. Tristeza, pois, muito cedo os tipos
marginais, leia-se aqui: os ex-escravos, os homens e as mulheres pobres e os mulatos,
começaram a perceber que não chegara o momento de uma realidade menos opressora e
299
com melhores possibilidades de vida. Naquele período os ideais de branqueamento e o
preconceito social eram fortes. Assim, sua figura (porque mulata), sofre muito do
preconceito e hostilidade dirigida aos pretos e mulatos, de maneira geral, aos pobres.
8.
Pelas margens ou uma cidadania às avessas? Uma análise da trajetória do
escrivão Isaías caminha
Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha Lima Barreto narra a trajetória de um
personagem mulato, que saindo do interior do Estado do Rio de Janeiro, transfere-se para a
capital em busca do sonho de se tornar um grande poeta. A cidade carioca significava para
Isaías um instrumento de coroação de suas qualidades intelectuais:
Quando acabei o curso do liceu, tinha uma boa reputação de estudante,
quatro aprovações plenas, uma distinção e muitas sabatinas ótimas.
Demorei-me na minha cidade natal ainda dois, dois anos que passei fora
de mim, excitado pelas notas ótimas e pelos prognósticos de minha
professora, a quem sempre visitava e ouvia. Todas as manhãs, ao
acordar-me ainda com espírito acariciado pelos nevoentos sonhos de
bom agouro, a sibila me dizia ao ouvido: "Vai, Isaías! Vai!... Isto aqui não
te basta... Vai para o Rio!... . (BARRETO, 2001, p.122)
Na passagem acima evidencia os sonhos que agitavam o jovem Isaías Caminha.
Temos, então, um sujeito que acreditando em seu potencial e nas condições de igualdade
da sociedade, busca caminhos para o seu reconhecimento no meio intelectual, nesse
momento ainda não percebe que seu nascimento humilde o fazia inferior no que ele
acreditava ser uma situação de igualdade. A partir dessa premissa, a realidade
experimentada, em muito distanciou-se, num primeiro momento, do sonho que o motivou
a sair de sua terra natal.
Com a chegada ao Rio de Janeiro Isaías vive momentos de intenso sofrimento e de
privações econômicas e sociais. Essas o fez se deparar com os (des)encontros do sonho
de ser escritor. A realidade das primeiras décadas na republicana brasileira arrastava Isaías
para longe do ideal sonhado. Assim, segue o desabafo do jovem Isaías Caminha, que
dirigindo-se meio sem rumo pelas ruas da capital, sem perspectivas de uma vida melhor e
impedido de conquistar uma colocação que lhe possibilitasse o mínimo necessário para sua
sobrevivência, mesmo que as expectativas estivessem abaixo das suas qualificações,
percebendo, assim, toda a injustiça social reinante:
Veio-me um assomo de ódio, de raiva má, assassina, destruidora; um
baixo desejo de matar, de matar muita gente, para ter assim, o critério da
minha existência de fato. Depois dessa violenta sensação na minha
natureza, invadiu-me uma grande covardia e um pavor sem nome: fiquei
amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da
sociedade, senti-os por toda a parte, graduando os meus atos, anulando
300
os meus esforços, senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me,
reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente [...] Saltara dos
meus desejos heróicos para imaginar expedientes com que saísse da
miséria em perspectiva. Aceitaria qualquer coisa, qualquer emprego [...].
(BARRETO, 2001, p.82)
Essa situação poderia tanto representar o relato da própria vivência de Lima
Barreto, como também a de qualquer outro cidadão em suas condições que sai em busca de
uma colocação no mercado de trabalho, mas encontra pouca ou nenhuma oportunidade.
Na citação estão expressos os sentimentos que povoavam os pensamentos de Isaías, que ao
andar pelas ruas da cidade, sente-se aprisionado, asfixiado.
Neste sentido verificamos que a sensação de aprisionamento do personagem é tão
fortemente sentida, que, para expressá-la Lima Barreto utiliza-se de elementos de tortura
ligadas ao cárcere – cordas e roldanas. Esses são facilmente remetidos a lembranças do tempo
da escravidão negra no Brasil. O racismo camuflado vivenciado na realidade de Isaías não
ameniza sua dor, mas sugere uma sensação de pequenez perante a sociedade. Por isso,
Isaías, nesse momento, acreditava ser incapaz de romper, facilmente, essas amarras e
conquistar seu sonho de reconhecimento intelectual.
Para além do aprisionamento social, torna-se perceptível a indignação do
personagem que sente o preconceito da cor da sua pele. E assim, mesmo pensando nas
formas de rompê-lo, Isaías se vê esmagado em todos os âmbitos de sua vivência – política
e econômica – , pelo preconceito, na medida em que este era também um inimigo
silencioso, que se escondia por entre as brechas de uma sociedade dita igualitária.
A luta travada por Isaías foi contra toda uma longa tradição conservadora que não
se desfez com a abolição do trabalho escravo na sociedade brasileira. Isso significava ir de
contra o imaginário social que considerava o negro e o mulato como um animal domesticável.
As sensações de medo, incapacidade e aprisionamento ressaltada na fala do personagem
Isaías, acima citada, demonstram como estavam enraizados os (pré)conceitos sociais,
tornando ainda mais difícil a vontade/missão de rompê-los. E, assim, mesmo que num
primeiro momento essa insatisfação levasse os cidadãos marginais, como no exemplo de
Isaías, à ação, logo o desejo de libertar-se das amarras impostas pelo sistema republicano
da época era vencido pelas várias barreiras encontradas em um cotidiano de misérias e
injustiças.
Um olhar atento ao processo de finalização do trabalho cativo no Brasil demonstra
que ele se deu, principalmente, por motivos econômicos e não por princípios humanitários,
o que dificultou ainda mais a vivência dos ex-escravos, que eram lançados ao mercado de
301
trabalho livre sem grandes expectativas de sobrevivência. Conforme afirma Ianni 105, houve
uma série de fatores que contribuíram para o fim da escravidão negra no Brasil, dentre os
quais o início da industrialização e o impulso à imigração, situação que acenava para a
imposição das relações capitalistas no país.
Isaías Caminha deixa vir à tona uma realidade que demonstra que a legalização da
abolição do trabalho escravo não trouxe consigo outro imaginário sobre os pretos e os
mulatos, mas manteve o preconceito e o mesmo negativismo sobre as pessoas de cor.
Assim, ―à medida que os negros e mulatos eram libertos, carregavam consigo atributos do
grupo original. Na cor, na especialização profissional, no universo verbal, no modo de
vestir-se, de comportar-se, levavam atributos socialmente definidos como específicos dos
ex-escravos” (IANNI, 1988, p.209).
Os efeitos da tempestade da escravidão negra ainda não haviam se desfeito. O
personagem Isaías e seu criador Lima Barreto, que se viram forçados a trabalhar muito
jovens, depararam-se com a seguinte realidade:
Sendo obrigado a trabalhar, o trabalho era-me recusado em nome de
sentimentos injustificáveis. Facilmente generalizei e convenci-me de que
esse era o proceder geral. Imaginei as longas marchas que teria que fazer
para arranjar qualquer coisa com que viver; as humilhações que teria que
tragar; e de novo, me veio aquele ódio (...) Revoltava-me que me
obrigassem a despender tanta força de vontade, tanta energia com coisas
que os outros poucos gastavam. Era uma desigualdade absurda, estúpida,
contra a qual se iam quebrar o meu pensamento angustiado e os meus
sentimentos liberais que não podiam acusar particularmente o padeiro.
Que diabo! eu oferecia-me, ele não queria! que havia nisso demais! / Era
uma simples manifestação de um sentimento geral e era contra esse
sentimento, aos poucos descobertos por mim, que eu me revoltava.
(BARRETO, 2001, p.101)
O aflorar dos sentimentos de revolta, ódio e frustração toma conta do íntimo de Isaías,
pois percebera como fora enganado. A exigência que a sociedade fazia aos excluídos como
ele não era a mesma dirigida aos trabalhadores de melhor posição social. Para a sociedade
da época, Isaías era apenas mais um jovem mulato que transitava pelas ruas da cidade e, por
isso, era alvo fácil de injustiças e incompreensão.
A personagem Isaías Caminha traz à tona elementos que denunciam a exclusão
social presente nos primeiros anos da República. Essa situação instiga-nos à reflexão de que
o preconceito dos homens brancos para com os negros, cristalizando a imagem do negro
como inferior, apenas capaz de desempenhar funções indignas para o homem branco (o
trabalho braçal) e, sendo então considerado inapto ao trabalho livre. Neste sentido, valores
105
Ressaltamos que vários foram os pesquisadores que se debruçaram sobre essa temática, entre eles citamos:
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. (3 vls.) São Paulo: Ática, 1978. SALLES,
Iraci Galvão. Trabalho, progresso e a sociedade civilizada: o Partido Republicano Paulista e a política de mão de
obra (1870-1889). São Paulo: HUCITEC; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1986.
302
como capacidade intelectual e física deixam de possuir créditos e o mercado de trabalho
ficava à mercê do preconceito e de uma violenta política de exclusão social capaz de calar
as necessidades e os direitos de acesso dos ex-escravos e homens e mulheres pobres ao
mercado de trabalho.
Na trama do romance, Isaías pretendia desempenhar uma função qualquer,
inclusive busca por uma colocação que não necessitavam de nenhuma qualificação – como
de acompanhante de cestos de pães. Essa função certamente lhe renderia parcos
rendimentos:
- Foi o senhor que anunciou um rapaz para ... / - Foi; é o senhor?
Respondeu-me logo sem dar tempo de acabar. / Sou, pois não. / O
gordo proprietário esteve um instante a considerar, agitou os pequenos
olhos perdidos no grande rosto, examinou-me convenientemente e disse
por fim, voltando as costas com mau humor: / - Não me serve. / - Por
quê? Atrevi-me eu. / - Porque não me serve. (BARRETO, 2001, p.101)
O diálogo entre o “mulato” e o “patrão” se fez rapidamente. Porém, as qualidades
de Isaías em nenhum momento foram questionadas, pois a marca de sua possível serventia
estava marcada em sua pele. Na passagem, está presente a luta de Isaías para conquistar seu
próprio espaço, por isso ele não se calou diante da primeira resposta negativa do dono do
estabelecimento, e tentou travar com ele um diálogo. Isaías é vencido não pelo medo, mas
por
uma
imposição
maior,
que
era
social
e
de
difícil
ruptura,
a
descaracterização/negatividade da figura do negro e do mulato diante de uma sociedade
cujo conservadorismo dos tempos da escravidão ainda estava latente.
Assim, é que nos anos que antecederam e nos que sucederam a abolição da
escravidão negra no Brasil foram marcados pelo significativo aumento da imigração de
trabalhadores europeus, o que ocasionou uma explosão demográfica expressiva no Brasil106.
Assim, houve partir da segunda metade do século XIX uma revolução no mercado de
trabalho e no imaginário brasileiro da época, consolidando-se a idéia de que os
trabalhadores de direito eram os brancos vindos de diversos países como Portugal, Itália,
Espanha e, mais tardiamente e em menor número Japão. Em função disso, o trabalhador
nacional pobre, negro e mulato, começava a enfrentar uma realidade ainda mais cruel que a
vivida na escravidão, pois encontravam-se com poucas perspectivas de inserção no
mercado de trabalho107.
De acordo com José Murilo de Carvalho a população do Rio de Janeiro quase dobrou entre 1872 e 1890,
passando de 266 mil a 522 mil. A cidade teve ainda de absorver uns 200 mil novos habitantes na última década do século. Só
no ano de 1891, entraram 166.321 imigrantes, tendo saído para os estados 71.264. (CARVALHO, 1985, p.119).
107 Realidade essa que era ainda mais violenta com a imagem de depreciação que se consolidava a respeito do
negro, demarcando de antemão o seu lugar no corpo social: O negro e o mulato passaram a ser discriminados como
ex-escravos, como trabalhadores não qualificados, como aqueles que deveriam ficar trabalhando nas ocupações rejeitadas pelos
106
303
Cabia aos imigrantes assumirem as posições mais qualificadas e, conseqüentemente,
melhor remuneradas, enquanto os ex-escravos sofriam uma marginalização cada vez mais
visível nos espaços (re)construídos na concepção de cidade moderna e civilizada. E nesse
contexto o trabalhador nacional perdia a possibilidade de se inserir no mercado de trabalho
e sofria cotidianamente a frustração de ser um cidadão que vivia na periferia da República
brasileira.
Mas voltemos ao nosso romance. Até o momento seguimos o caminho de Isaías
perdido por entre as injustiças econômicas e sociais presentes nas primeiras décadas
republicanas no Brasil. Mas agora veremos outros elementos para se pensar a trajetória
desse cidadão periférico. A reviravolta em sua vida começa por um acaso - o suicídio do
jornalista Floc na redação do Jornal -, pois a partir desse episodio Isaías, começa a fazer
parte de um circulo restrito de amizade do diretor e com isso "ganha" uma colocação como
jornalista, o que lhe rende algum dinheiro e certa posição social, afastando-o da antiga vida
de privações e marginalidade:
E toda essa modificação tão imprevista no meu viver, viera-me do
suicídio do Floc. Tendo surpreendido na casa da Rosalina, em plena
orgia, o terrível diretor, vexei-o. Nos primeiros dias ele nada me falou;
mas já olhava mais, considerava-me, preocupava-o no seu pensamento
[...].
Certo dia o gerente, espantado e cobiçoso, notificou-me que eu ia servir
na expedição e o meu ordenado estava aumentado de cinqüenta mil réis.
(BARRETO, 2001, p.248)
A mudança se faz de maneira repentina. E se olharmos atentamente não seguiu
critérios que colocavam em evidência a sua capacidade intelectual. Isaías apenas foi avisado
que seu salário e posição mudaram a partir daquele momento. Se antes Isaías era invisível
aos olhos de quem o cercava em seu ambiente de trabalho, a nova posição gera atitudes de
re-ação, mas também de ação individual para se fazer respeitar:
Nos primeiros dias lutei com alguma dificuldade. Os colegas receberamme mal. Sonegavam-me as notas, procuravam desmoralizar-me,
ridicularizar-me diante dos empregados. Há neles em geral uma
hostilidade pelos novos. Sentem que o ofício é fácil e se eles ainda por
cima o facilitarem, perderão em breve o prestígio. Levei alguns furos,
mas dei outros, graças às relações que travei com um sargento
protocolista do Estado-Maior. Leporace quis destituir-me, mas Loberant
não o permitiu. (BARRETO, 2001, p.248-249)
Uma re-ação latente é a do sujeito que já possui certo privilégio na sociedade e se vê
ameaçados por Isaías e sua antiga posição social, e aqui temos a figura de Leporace. No
entanto, acreditamos que a re-ação mais interessante de ser analisada é a do próprio
brancos. É claro que assim se limitaram a continuam a limitar-se as condições de circulação social do negro e do mulato.
IANNI, Octavio. Escravidão e Racismo. 2ª Ed., São Paulo: Hucitec, 1988, p.146.
304
Caminha. Para se fazer jornalista, Isaías, mesmo que não seja respeitado de início, se
movimenta para conseguir se manter na posição, os laços de amizade estabelecido são
essenciais, mas há de se ressaltar a sua ação para se fazer respeitar enquanto jornalista. Há,
assim, um briga corporal com outro jornalista e nesse movimento as reflexões de Isaías são
iluminadoras para compreendermos seu lugar na sociedade:
Na delegacia, a minha vontade era de rir de satisfação, de orgulho de ter
sentido por fim que, no mundo, de orgulho de ter sentido por fim que,
no mundo, é preciso o emprego da violência, do murro, do soco, para
impedir que os maus e covardes não nos esmaguem de todo.
Até ali, tinha eu sido a doçura em pessoa, a bondade, a timidez e vi bem
que não podia, não devia e não queria ser mais assim pelo resto de meus
dias em fora.
Ria-me, pois tive vontade de rir-me, por ter descoberto uma cousa que
ninguém ignora. Felizmente não foi tarde... (BARRETO, 2001, p.248)
Aqui temos a re-ação de Isaías, que a partir de um ato de violência física contra
outro jornalista, começa o seu "despertar" para a realidade de opressão e desigualdade que
havia vivido, mas também para o fato que o momento que vivia lhe permitia lutar contra
ela. Palavras como doçura, bondade e timidez revelam, naquele contexto, sua anterior posição
na sociedade, essas que o colocavam numa posição de inferioridade perante os outros. O
rir-se, no entanto, para um sujeito que fora privado de tantas benesses da sociedade
capitalista, indica o início de outra realidade econômica e mesmo social.
Enfim, compreendemos que o personagem Isaías Caminha se faz exemplo
esclarecedor desse cidadão periférico, ou seja, os sem lugar na sociedade brasileira moderna,
pois sendo pobre, mulato e recém chegado do interior ao Rio de Janeiro, o jovem moço se
vê jogado na mais completa miséria, sem possibilidade imediata de transpor as barreiras do
preconceito de cor e posição social. No entanto, esse cidadão construiu - ou foi construído
pelo acaso - instrumentos, ao longo de sua trajetória, para romper com as fortes barreiras
impostas pela sociedade. O seu viver é conflituoso, pois não se distancia de fato de sua
antiga situação, mas ruma para uma posição mais estratégica na sociedade. Essa realidade
viabilizou, em certa medida, a inserção de um sujeito da classe marginalizada no círculo de
relacionamento do diretor do jornal. Mas para além desse fato, ao analisar sua trajetória de
vida, Isaías sente-se frustrado, pois em seu refletir não experimentou uma vivência muito
digna, mas isto é assunto para outro momento.
REFERÊNCIA
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto 1881-1922. 7ª ed., Belo Horizonte:
Editora Itatiaia Limitada, 1988.
305
BEIGUEMAN, Paula. Leia Livros Ano IV, 15 de maio de 1981.
CARVALHO, José Murilo de. O Rio de Janeiro e a República. In: Revista Brasileira de
História. ANPUH, v.5, nº8/9, setembro de 1984/abril de 1985, p.119.
CHALLOUB, Sidiney e PEREIRA, Leonardo de Lima. A História Contada. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988.
FIGUEREDO, Carmem Lúcia Negreiros. Lima Barreto e o fim do Sonho Republicano. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro.
HOUAISS, Antônio, NEGREIROS, Carmem Lúcia (cordenadores). Triste Fim de Policarpo
Quaresma. Edição Crítica Espanha: ALLCA XX, 1997, (Colección Archivos: 1ª, 30).
IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo. 2ªed. São Paulo; Hucitec/Curitiba: Scietia et
Labor, 1988.
SEVECENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na 1ª
República. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.
VASCONCELLOS, Eliane (org). Recordação do Escrivão Isaías Caminha. In: Prosa Seleta.
BARRETO, Lima. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.
306
CONFIGURAÇÕES MEMORIALISTICAS DO ESPAÇO FEMININO NOS
POEMAS DOS BECOS DE GOIÁS E ESTÓRIAS MAIS DE CORA
CORALINA
Cristiane Viana da Silva108
Profa. Dra. Algemira de Macedo Mendes (Orientadora)109
RESUMO: O presente artigo teve como objetivo fazer uma breve análise das
configurações memorialísticas do espaço feminino tendo como objeto de estudo a obra
Poemas dos becos de goiás e estórias mais, de Cora Coralina. Nele, a sensibilidade poética de Ana
Lins do Guimarães Peixoto Brêtas, captou o cotidiano de Vila Boa através da experiência
de sua exclusão. Observa-se como a poeta registrou, através da memória dos becos, a
história de mulheres do interior de Goiás no Brasil dos séculos XIX e XX. O presente
estudo teve como aporte teórico Barbosa (2002), Delgado (2003) e Yokozawa (2002), Bosi
(1994), dentre outros.
PALAVRAS – CHAVE: Literatura. Memória. Mulher.
RESUMÉ: Cet article vise à donner une brève analyse des paramètres mémorialistes des
espaces féminines où l'objet de l'étude est l'oeuvre Poemas dos becos de goiás e estórias mais, de
Cora Coralina. Dans ce document, la sensibilité poétique de Ana Lins Guimarães Bretas
Peixoto a capté la vie quotidienne de Vila Boa travers l'expérience de leur exclusion. On
peut noter comment Cora Coralina a enregistré, par la mémoire des ruelles, l'histoire des
femmes à l'intérieur de Goiás au Brésil dans les XIXe et XXe siècles. La recherche a
comme apporte théorique Barbosa (2002), Delgado (2003), Yokozawa (2002), Bosi (1994),
entre autres.
MOTS-CLÉS : Littérature. Mémoire. Femme.
Introdução
A história da mulher brasileira é marcada pelo estabelecimento da ordem patriarcal
que, legitimada pela religião cristã ocidental, transmitiu o silenciamento do feminino em
todas as esferas sociais. A mulher do Brasil oitocentista, formada e constituída socialmente
nesta ordem, era subordinada e dependente do pai ou do marido, sendo feita propriedade
do homem e silenciada por ele.
Aluna do Mestrado Acadêmico em Letras da UESPI
Professora adjunta da Universidade Estadual do Piauí /Mestrado em Letras/ Universidade Estadual do
Maranhão / E-mail: [email protected].
108
109
307
A educação de meninas no Brasil Colônia se dava em seminários e conventos,
embora não houvesse, a rigor, escolas propriamente ditas (BONNICI, 2007). Aos homens,
instruíram-se a leitura e aritmética e, mais tarde, os mais promissores eram enviados a
Portugal para estudar teologia ou direito; às segundas ensinavam-se alguns trabalhos
manuais estereotipados, como música, bordados e orações. O estereótipo feminino era o
da timidez, recato, silêncio e comportamento passivo constituíam o foco de atenção das
instrutoras para a manutenção do padrão falocêntrico.
Rompendo com os padrões da época falocêntrica, nasce Ana Lins do Guimarães
Peixoto Brêtas, ou ainda Cora Coralina, grande poetisa do Estado de Goiás. Em 1903 já
escrevia poemas sobre seu cotidiano, tendo criado, juntamente com duas amigas, em 1908,
o jornal de poemas femininos A Rosa. Em 1910, seu primeiro conto, Tragédia na Roça, é
publicado no Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás, já com o pseudônimo de Cora
Coralina. Em 1911 conhece o advogado divorciado Cantídio Tolentino Brêtas, com quem
foge. Vai para Jaboticabal (SP), onde nascem seus seis filhos: Paraguaçu, Enéias, Cantídio,
Jacintha, Ísis e Vicência.
O presente artigo tem como objetivo portanto,
fazer uma breve análise das
mulheres ambientalizadas na obra de Cora Coralina. Alongevidade da autora contribuiu
para que sua obra manifestasse distintas influências e retratasse elementos que, em
conjunto, possibilitam recompor as relações entre gêneros, classes e gerações, as
representações dos modos de vida, valores e crenças, enfim, as mediações entre os
indivíduos e a sociedade na qual esteve inserida. As imagens tecidas através de sua
criatividade ampliam as perspectivas de análise das lutas travadas nos séculos XIX e XX no
interior brasileiro e, em um diálogo entre texto poético e contexto sócio-histórico,
denunciam e refletem entraves e belezas, desnudando múltiplas e silenciadas nuanças da
sociedade goiana.
Para Barbosa (2002), a memória é o fio que Cora Coralina utiliza para
esboçar o plano do livro: a poetisa acredita na memória capaz de recuperar o passado
coletivo, mas reconhece que essa tarefa é desempenhada a partir de uma perspectiva
particular: a memória da mulher, da mulher anciã, da mulher que escreve para recriar e
poetizar sua própria vida.
O amálgama entre autobiografia e memorialismo está na tessitura da escrita e dos
depoimentos de Cora Coralina, que são, ao mesmo tempo, momentos de construção de
uma memória autobiográfica e uma forma específica de criação da memória coletiva.
308
Em todos seus livros, ela "escreve e assina os autos do Passado" ao compor
poemas e contar histórias cujos enredos emergem do jogo da linguagem com as múltiplas
camadas do tempo, interligando o passado, o presente e o futuro pela memória que
reconstitui os espaços da cidade de Goiás.
A escrita da memória de Cora Coralina transfigura as casas, o rio, os becos, as
paisagens em matéria literária e em marcos da memória que se abrem ao rememorar
infinito do tempo entrecruzado com a vida. A paisagem urbana emerge entrelaçada a
poeta, tornando-se espessa de múltiplos sentidos, temporalidades e memórias.
(BARBOSA, 2002).
A cidade de Goiás se transformou em palco para o estabelecimento desta memória
repleta de significados, captados e reconstruídos por Coralina entre um exercício de
afetividade e percepção crítica. Para Machado (2000), constata-se que dentre as cenas
repletas de conteúdo sociológico, as imagens do beco se sobressaem no imaginário da
autora. Em vários poemas e contos a vida da cidade é traduzida a partir da vida nos
becos, dos personagens que neles residem e circulam, das relações e reações que
provocam como palco ou bastidor.
Após definir a caracterização do lugar, dos personagens e destinos, em uma espécie
de considerações iniciais sobre a cidade-vida e suas relações, Coralina deteve sua análise
na tematização de um beco em especial, o Beco da Vila Rica, fonte de um rico imaginário
em virtude talvez de ser o mais próximo de seu cotidiano, que interage com os fundos da
Casa Velha da Ponte. Eis o poema:
No beco da Vila Rica
tem sempre uma galinha morta.
Preta, amarela, pintada ou carijó.
Que importa?
Tem sempre uma galinha morta, de verdade.
Espetacular, fedorenta.
Apodrecendo ao deus-dará.
No beco da Vila Rica,
ontem, hoje, amanhã,
no século que vem,
no milênio que vai chegar,
terá sempre uma galinha morta, de verdade.
Escandalosa, malcheirosa.
Às vezes, subsidiariamente, também tem
- um gato morto
(CORALINA, 2003, p. 96).
De acordo com Machado (2000) a ideia do beco pode ser considerado como algo
representativo da tradição. É o lugar da degradação, do resíduo que agride pelo mau
cheiro e pela perenidade. Esta perenidade é caracterizada pela autora quando destaca as
309
origens do desprezo pelos becos e realiza a projeção futura: ―ontem, hoje, amanhã, no
século que vem, no milênio que vai chegar terá sempre uma galinha morta‖. Suas imagens
remetem ao imobilismo de Goiás, ao conservadorismo onde o passado e o presente
fecham as perspectivas de mudanças.
Cora Coralina aparentemente oferece no poema dois eixos sociologicamente
significativos. O primeiro é a ampliação da descrição do lugar: o beco como
representativo do conservadorismo e como baliza da cidade, referência e limite. O
segundo eixo caracteriza a função dos becos como meio de as mulheres circularem e lugar
dos segregados, revelando o modo de vida do elemento feminino, que deveria ser
―resguardado a sete chaves‖, não se expondo, traduzida na autorização dos mais velhos
para sair e entrar pelos portões dos becos, cobertas com o xale e através das janelas de
tabuleta.
O beco como baliza tanto significa uma referência quanto um limite. De acordo
com Gomes (2004), as mulheres sempre tiveram um papel de destaque na cidade de
Goiás, tanto na participação doméstica, quanto fora do lar, e a vida de Cora Coralina teria
contribuído para que a poetisa se tornasse um marco na luta pela expansão feminina na
cidade. Todavia, conforme referido, era apenas uma falsa ideia de matriarcado visto que:
através do exercício da autoridade, adquire muito poder no
espaço doméstico e acaba por adquiri-lo, também, no espaço
público, na medida em que consegue independência econômica
através do trabalho que exerce fora de casa. [...] Por outro lado
[...] as mulheres elevam a figura e a força do homem, reforçando
sua construção de mandonismo masculino; e os homens, por sua
vez, valorizam a mulher, estabelecendo-se, a partir daí, um
espírito de cumplicidade e amizade. A vilaboense/matriarca
comporta-se como uma pseudoprisioneira, reforçando, no
homem, uma característica machista que visa atender a costumes
tradicionais, mais do que à própria realidade (BITTAR, 2002,
p.160-162).
A escrita da memória de Cora Coralina compõe movimentos de apropriação da
cidade como forma de encontrar-se a si mesma. Em um único movimento, o trabalho
mnemônico delineia um mapa afetivo e a autobiografia da poeta, tal como na poesia
Minha Cidade:
Goiás, minha cidade...
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
310
saindo
uma das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
(Cora Coralina, 2003, p. 34 à 36)
No poema supracitado é possível analisar em um dado momento, que Cora
Coralina afirma que é a mulher que ficou velha e esquecida. Assim sendo, o
esquecimento, aqui, pode ser configurado abandono, rejeição e exclusão. Consequências
vis de uma velhice.
O poema supramencionado ainda pode refletir que a identidade assumida pela
posição enquanto mulher enriquece seu discurso, como sujeito que refez sua caminhada,
se colocando no lugar do outro, sempre defendendo e assumindo o sofrimento, o
esquecimento, a indiferença para transformar em discurso poético.
Voltando ao século XIX, Michelle Perrot, em seu estudo, fala sobre o prazer da
leitura tolerado ou furtivo, único jeito das mulheres se apropriarem do mundo, do universo
exótico das viagens e do universo erótico dos corações, já que a leitura foi para as mulheres
da burguesia, muitas vezes obrigadas a ficar em casa, uma ocupação, uma evasão, um
acesso ao sonho, à história e ao mundo (PERROTT, 1998, p.32).
No começo do século XX, em pleno processo da desestruturação própria do
Modernismo Brasileiro, surge, no cenário literário, a voz inovadora de Cora Coralina. Sem
sair do espaço privado, reservado somente às mulheres, a poeta avança para o espaço
público, antes reservado aos homens, liberando-se não só das amarras literárias do século
anterior, mas também fazendo da conquista da palavra escrita importante capital cultural na
luta pela resistência social à exclusão.
Cora não fugindo do espaço doméstico e da vida familiar, ou seja, do privado, lança
para o espaço público seu viver privado, usando das estratégias para burlar os
impedimentos, nos passos de uma atitude bem picaresca. A solidariedade da vida e sua
representação são celebradas, ao mesmo tempo em que a autora desarticula a linguagem, na
construção de uma poesia sem malabarismos e invencionices gramaticais, resgate simples
do seu viver. Descreve alguns costumes sociais, como por exemplo, os rituais de mandar
portador de confiança para solicitar a liberação para visitas, passeios ou participar de festas
religiosas. São rituais que, conforme relata a poetisa, foram ―conservados através de
gerações‖ e contribuem para a visualização do cotidiano e da mentalidade da mulher de sua
época:
Andar pelas ruas. Atravessar pontes e largos,
311
as moças daquele tempo eram muito acanhadas.
Tinham vergonha de ser vistas de ―todo o mundo‖...
[...]
Era comum portador com este recado:
- ―Vai lá na prima Iaiá, fala pra ela
mandar abrir o portão, depois do almoço,
que vou fazer visita pra ela...‖ (CORALINA, 2003, p.105)
Ao analisar o poema supracitado, é possível perceber que as mulheres não deveriam
―andar pelas ruas, atravessar pontes e largos‖ e nem serem ―vistas de todo o mundo‖. Em
Becos de Goiás, a autora acenou as características gerais dos becos e sua função de
repositório dos marginalizados na primeira metade do século XX.
Segundo Brito (2007), a imagem do beco evidencia a consciência crítica da poetisa.
É o relicário da história e, por isso, os sentimentos provocados para intitular seu primeiro
livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. A partir dos becos, Coralina construiu as outras
estórias e histórias revelando Goiás, como cidade e Estado, para além da Serra Dourada e
dos limites do Paranaíba.
É nesse sentido que ela faz uma literatura causadora de tensões, em que denuncia a
situação de descaso e abandono dessas pessoas pela justiça social, levando o leitor a refletir
sobre o assunto. Ao tematizar a vida deles, principalmente das mulheres, também está
falando de si mesma e, nesse momento, há a desconstrução de sua mundividência, que é
baseada na cultura patriarcal, e, assim, a poeta se desloca, também, para margem.
Essas informações aparentemente fortalecem a afirmação de que a história dos
becos seria a ―estória da cidade mal contada‖, pois não se encontra inserida nos ―autos
oficiais do passado‖. Para Cora Coralina, a história da cidade se pauta no conservadorismo,
em um conjunto de discursos característicos da involução e do preconceito, pois dialoga
com a das vidas destinadas ao confinamento nos becos. Portanto, deve ser lida não apenas
nos registros oficiais, mas em seus interstícios, nas relações cotidianas de classe, gênero,
poder, cor e geração:
Interessante nesse sentido é a opção da autora pela palavra estória
para denominar a sua produção, seja a vazada em verso ou em
prosa. Hoje nos parece imprópria a distinção entre
história/estória. Isso porque já caiu no vulgo que a história,
mesmo e, sobretudo, aquela escrita com H, não passa de uma
interpretação do passado, sendo, portanto,relativa, ficcional, e
que a estória, assumidamente ficcional, muita vez, desvela o
passado de uma maneira muito mais ―verdadeira‖ que as histórias
que se querem factuais. [...] Mas Cora escreve em uma época em
que essa diferença ainda é sustentada e a poetisa mantém a
denominação de estórias para os autos do passado por ela
312
recuperados literariamente. [...] Negando-se a ser uma
historiadora e assumindo-se como uma legítima contadora de
estórias, Cora termina por subverter a memória coletiva
oficializada,por promover um rearranjo da história. [...] A estória,
em Cora, é contra a história. Contra uma história e uma memória
coletiva uniformizadoras e opressoras (YOKOZAWA, 2002, p.
6-7).
As reflexões da poetisa ultrapassam a definição dos becos como baliza/referência
da história, retratando-os também como baliza/ limite. Inicialmente, um limite físico
representado pelos muros, portões e pelo lixo que incomodava. Depois um limite social,
demonstrado pelas proprietárias dos muros - velhas donas herdeiras da tradição que se
protegiam da vida/morte dos becos através do exercício de repor as telhas destruídas e
manter seus portões fechados - e pelas pessoas que neles viviam ou aproveitavam do que o
lixo poderia oferecer como as boninas utilizadas pelas meninas pobres:
Velhos portões fechados.
Muros sem regra, sem prumo nem aprumo.
(Reentra, salienta, cai, não cai,
entorta, endireita,
embarriga, reboja, corcoveia...
Cai não.
Tem sapatas de pedras garantindo.)
Vivem perrengando
de velhas velhices crônicas.
Pertencem a velhas donas
que não se esquecem de os retalhar
de vez em quando.
E esconjuram quando se fala
em vender o fundo do quintal,
fazer casa nova, melhorar.
E quando as velhas donas morrem centenárias
os descendentes também já são velhinhos.
Herdeiros da tradição
- muros retelhados. Portões fechados
(CORALINA, 2001a, p. 97-98).
A referência às ―velhas donas herdeiras da tradição‖ indica a ideia de um aparente
matriarcado na cidade de Goiás. A preponderância da autoridade feminina é citada devido a
um grande número de mulheres solteiras - havia uma ―lei familiar em Goiás, uma das filhas
renunciar ao casamento para cuidar dos pais na velhice e reger a casa‖ (CORALINA, 2003,
p. 91) - e viúvas, em virtude dos homens geralmente se ocuparem com trabalhos fora da
cidade.
Cora Coralina ocupava lugar privilegiado na sociedade, pois pertencia a uma família
de certa tradição na velha Villa Boa de Goyaz, e era detentora da fala, a qual usou para dar
313
voz aos marginalizados como menores abandonados, presidiários, lavradores e mulheres do
povo: lavadeiras, prostitutas entre outros.
De acordo com Pinheiro (2003) Cora Coralina fez parte do grupo de mulheres que
se bateram contra a postura hegemônica masculina e contra os limites impostos pelo
machismo. Ela criou estratégias femininas para gerar possibilidades de resistência social à
exclusão e fazer mudar a História. Cora percebeu sua exclusão do espaço público e
explicitou, em suas obras, seu papel social, onde são planteados problemas de práticas
institucionais e da situação da mulher na sociedade, de ontem e de hoje:
A Lavadeira
Essa Mulher...
Tosca.Sentada. Alheada...
Braços cansados
Descansando nos joelhos...
olhar parado, vago,
perdida no seu mundo
de trouxas e espuma de sabão
- é a lavadeira.
Mãos rudes, deformadas.
Roupa molhada.
Dedos curtos.
Unhas enrugadas.
Córneas.
Unheiros doloridos
passaram, marcaram.
No anular, um círculo metálico
barato, memorial.
Seu olhar distante,
parado no tempo.
À sua volta
- uma espumarada branca de sabão
Inda o dia vem longe
na casa de Deus Nosso Senhor
o primeiro varal de roupa
festeja o sol que vai subindo
vestindo o quaradouro
de cores multicores.
Essa mulher
tem quarentanos de lavadeira.
Doze filhos
crescidos e crescendo.
Viúva, naturalmente.
Tranqüila, exata, corajosa.
Temente dos castigos do céu.
Enrodilhada no seu mundo pobre.
Madrugadeira.
Salva a aurora.
Espera pelo sol.
314
Abre os portais do dia
entre trouxas e barrelas.
Sonha calada.
Enquanto a filharada cresce
trabalham suas mãos pesadas (...)
Cora Coralina (2003, p. 205-207)
Para Lima (2011) a lavadeira é para Cora símbolo de força e luta da mulher que
precisa se sustentar e os seus filhos. Ela ganha destaque no poema A lavadeira. A lavagem
de roupa era uma das principais atividades econômicas praticadas por mulheres pobres em
Villa Boa de Goyaz. Ao valorizar as lavadeiras, é como se Cora estivesse se vendo nelas,
pois também teve de sustentar a si e os seus filhos nos diferentes espaços em que viveu,
sendo agricultora, comerciante e doceira.
O referido autor afirma que o poema tem 58 versos. Os versos são curtos, dando
um ritmo ágil aos poemas, como se estivesse reproduzindo o processo da lavagem de
roupas. Quanto ao desenvolvimento dos poemas, há descrições físicas das lavadeiras e do
seu ofício. O eu lírico ressalta a pobreza dessas mulheres, geralmente viúvas com
―filharada‖ para criar, como fator determinante para escolha dessa profissão e sob um
mesmo espaço poemático, a autora funde objetos de trabalho – ―tina d‘água‖, ―ferro de
brasa‖, ―prendedores‖ – às angústias e necessidades da lavadeira, que de certo modo, se
combinam com suas atividades e preocupações.
Cora Coralina também faz referências as prostitutas:
Mulher da Vida
Mulher da Vida, minha Irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e
carrega a carga pesada dos mais
torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.
Mulher da Vida, minha irmã.
Cora Coralina (2003, p. 201- 204)
No poema supramencionado a presença de uma ―mulher da vida‖, no discurso
coraliniano é posto de lado, como minha irmã. Em muitos momentos a figura da prostituta
é recordada por Cora como uma mulher da vida, mas não como o sujeito secundário, mas
igual, ou seja, de acordo com Cora, minha irmã.
315
A voz de Cora Coralina se levanta na defesa das prostitutas no poema supracitado
escrito em ―contribuição para o Ano Internacional da Mulher – 1975‖, a poeta lembra que
as prostitutas sempre existiram na história da humanidade. Embora seja ―De todos os
tempos./De todos os povos‖, não respeitadas na sociedade, sendo denominadas por
apelidos pejorativos como ―Mulher da zona,/Mulher da rua,/Mulher perdida,/Mulher àtoa‖.
Além dessas humilhações psicológicas, ela denuncia o descaso público e social em
relação a elas, nos idos da segunda metade do séc. XX, pois ―Nenhum direito lhes
assiste./Nenhum estatuto ou norma as protege‖. Mas mostra que as prostitutas superam
todos maus tratos e ―Sobrevivem como a erva cativa dos caminhos‖, que são ―pisadas‖,
entretanto ―renascidas‖. Ao substituir ―erva daninha‖ por ―erva cativa‖, metaforicamente a
poeta as reabilitam e simultaneamente aponta para a condição delas: cativas, prisioneiras
dos preconceitos e descasos sociais.
Todas as Vidas é um poema composto por 59 versos curtos e de ritmo oscilante,
cujas seis estrofes recriam, em cada uma delas, vários tipos femininos: uma ―cabocla velha‖,
―a lavadeira‖, ―a mulher do povo‖, ―a mulher roceira‖ e ―a mulher da vida‖. Estas
mulheres humildes são representadas pelo eu lírico, que assimila as dificuldades financeiras
e qualidades – como a honestidade, a disposição pelo trabalho – das lavadeiras e das
mulheres roceiras; a simplicidade da mulher do povo; o sofrimento das mulheres da vida.
Ao transmutar-se nesses seres obscuros, ―está incorporando possibilidades de criar
novos seres, consubstanciando o próprio ser na essência do outro‖ (FERNANDES, 1992,
p. 177) e conclui que tem ―a vida mera das obscuras‖. Assim, ―entre todas as mulheres,
gênero condenado por longo tempo ao limbo do esquecimento, a poeta se sensibiliza,
sobretudo, com aquelas sobre as quais pesa um silêncio ainda maior, aquelas que, além de
mulheres, constituem a escória da sociedade a que pertenceu Cora‖ (YOKOZAWA, 2002,
p. 8).
O que leva Cora a se identificar com as ―obscuras‖ é o fato de ela ser, também, essa
―mulher do povo‖ que fora lançada à margem pela velha sociedade vilaboense, devido à
sua postura bem à frente do seu tempo e transgredir algumas normas de educação feminina
daquela época. Como dito antes, Cora se ligou a um homem casado e fugiu com ele par
São Paulo, onde constituiu família. Viúva,voltou à cidade de Goiás 45 anos depois e
tornou-se doceira.
Segundo Zolin (2005) as mulheres fizeram emergir uma tradição literária feminina
até então ignorada pela história da literatura. Assim sendo, é possível perceber que Cora
316
Coralina, acuada e submetida à imagem e representação da ―verdadeira mulher‖, encontrou
na literatura a forma de expressar suas leituras de mundo e denunciar os construtos sociais
que permeavam a sociedade de seu tempo. Assim, as criações de Cora Coralina, apresentam
uma autora e mulher produzida no gênero e produtora de literatura, pois sua poesia
expressa o cotidiano das mulheres no âmbito familiar e nos demais espaços de sua
sociedade. Mulheres confrontadas e modeladas pelos rígidos preconceitos da época,
conformadores do modelo normativo de mulher de sua época, como ela mesma
poeticamente descreve:
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compressão dos
rígidos preconceitos do passado.
Preconceitos de classe,
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos,
Férreos preconceitos sociais.
(Coralina, 1976, p.12-13)
A singularidade autobiográfica das obras de Cora Coralina elucida vários momentos
de sua vida pessoal. Seus versos poéticos expressam e reafirmam como as mulheres eram
conformadas pelas representações de gênero, constitutivas da organização da sociedade
vilaboense, dentre outras, como as de classe, cor, raça, escolaridade, religião, geração etc.
O uso de pseudônimo pela autora parece constituir uma de suas táticas de
resistência, pois, segundo Zolin (2005), era preciso se valer de pseudônimos masculinos
para escapar às prováveis retaliações a seus escritos, assim ao ocultar o nome oficial
encharcado de todos os estereótipos que sua condição de mulher, dona de casa e do
interior goiano carrega, parece tornar visível o de sua criação, livre de amarras e de rótulos,
libertária o bastante para despojar-se de preconceitos e criar o novo.
Nessa mesma direção, é possível notar o trabalho do escritor Saturnino Pasquero
Ramón (2003), que, ao transitar entre o biográfico e o literário numa perspectiva
psicológica, traçou algumas projeções sobre Cora Coralina, instigando o leitor a repensar o
mito de Aninha através da linguagem poética de seus versos. Para esse autor, o nome em
todas as culturas, têm um caráter mágico e sagrado e, nesse sentido, o enigma do
pseudônimo de ―Cora Coralina‖ representou o seu talismã, fortificou e valorizou o
metafórico de sua poesia. Ele acredita que:
O pseudônimo Cora Coralina acaba sendo uma senha, um
sinônimo, equivalente a lavadeira do Rio Vermelho... o
substantivo cora ou, popularmente, quarar, com seu significado de
branquear roupas, expondo-as ao sol. Libertária sim, pois com a
fantasia magnânima e com êxtase da poesia, lava a sujeira, os
317
monturos da vida, o pó da mesquinhez humana... as lavadeiras,
em sua grandeza, fazem o cotidiano mais limpo e perfumado.
Cora, a lavadeira do Rio Vermelho, purga a mesmice do
cotidiano, elevando todos os sonhos‖. (Ramón, 2003, p.24)
Com efeito, é significativo que se tenha uma leitura poética e política das lavadeiras
do Rio Vermelho, expressa no poema em que as homenageia. Cora Coralina desenha essas
mulheres sofridas e fortes a partir de várias marcas impelidas em seus corpos e gestos na
experiência das lavadeiras, das mães, das viúvas, das trabalhadoras, das mulheres, dos
indivíduos, isto é, Cora em processo paródico, dialoga com essas mulheres e pode-se dizer
que suas obras se organizam a partir da preocupação da linguagem.
Essa mulher...
Tosca. Sentada. Alheada ...
Braços cansados
Descansando nos joelhos ...
Olhar parado, vago,
Perdida no seu mundo
De trouxas e espumas de sabão
- é a lavadeira.
Mãos rudes deformadas.
Roupa molhada.
Dedos curtos.
Unhas enrugadas.
Córneas.
Unheiros doloridos
Passaram, marcaram.
No anular, um círculo metálico (Coralina, 2003, p.205-209)
No poema sobredito, segundo Teixeira (apud Denófrio, 2006, p. 38) ―pela poesia
de Cora pode ver (...) a mulher na sua realidade, em seu cotidiano esquecido, como tema
público‖. As identidades assumidas em Cora legitimam seu discurso originário. Em Cora
transcendem todas as vozes femininas de sua sociedade machista patriarcal, onde o lugar
da mulher se recria ao lar, dona de casa, esposa, mulher submissa aos comandos do
esposo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
318
O texto poético de Cora Coralina traz à tona a paixão pela juventude e a
maturidade dos seus anos mais avançados em um lirismo aparentemente tão singelo, mas
tão marcante quanto os lugares e as pessoas que aparecem nos seus textos. E é nesse
tempo-espaço que esta poeta vivencia discriminações familiares, sofre desamparos e perdas,
conhece o amor, rebela-se contra a moralidade de sua família.
Os textos de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas revela a posição de uma
mulher frente ao seu tempo. Mulher forte e defensora da vida em todas as suas dimensões.
A formação discursiva de Cora permite assumir as mais diversas vozes de um discurso
autêntico e marcado por uma ideologia. Cora fala da vida do campo, da cidade, da
memória, das coisas cotidianas, da mulher e das memórias dos becos de Goiás.
Cora Coralina permite que o seu leitor decifre um Brasil com total autonomia de
expressão, através de sua poesia histórica e memorialística. Burlando os becos da vida, a
autora investe no desejo de se livrar da discriminação sócio-cultural contando, com seu
discurso feminino e sinestésico, fatos da brasilidade cotidiana.
Em resumo, a escrita de Coralina apresenta personagens, na sua maioria, mulheres
do povo (caboclas velhas, lavadeiras, cozinheiras, roceiras e prostitutas). A partir de sua
poética, Cora Coralina conseguiu revelar entraves acenados e negligenciados pela
historiografia, descrevendo nas tematizações e denunciando através dos personagens, cenas
e bastidores significativos à compreensão da sociedade goiana. Além da obra se constituir
em representação da sociedade em Goiás entre os séculos XIX e XX, a própria vida da
escritora, seu compromisso com os obscuros e sua crítica social, dentre outras
características que podem justificar as inúmeras abordagens testemunhadas em sua herança.
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320
CENAS PITORESCAS DA INFÂNCIA BRASILEIRA
OITOCENTISTA NAS CRÔNICAS DE RAUL POMPÉIA.
Danilo de Oliveira Nascimento110
RESUMO: Durante a última década do século XIX, Raul Pompéia (1863-1895) publicou
uma série de crônicas no Jornal do Comércio, na Gazeta de Notícias, no Diário de Minas de Juiz
de Fora em que relata a presença de crianças como vítimas e autoras de crimes e como
participantes de festas populares e religiosas. A frequência de tais relatos possibilitou ao
cronista perceber sua conformação ao esquema de reprodução de notícias e adequação à
retórica folhetinesca na escritura das crônicas nas quais ele carregou no tom sensacionalista
e melodramático. A repetição dos mesmos temas e dos mesmos relatos instigou a postura
desdenhosa do cronista que rotulou tais crônicas de Cenas Pitorescas, rótulo a partir do qual
se destacam tanto a ironia que descontrói, veladamente, o modelo em voga quanto acentua
a imagem marginal e marginalizada da criança relatada. A presente comunicação, portanto,
pretende discutir a imagem da infância que rouba, mata, dança e reza que se reflete em
crônicas publicadas em folhas noticiosas cujo modelo de impressa foi o francês.
Palavras-chave: Crônicas; Infância; Raul Pompéia.
ABSTRACT:Duringthelastdecadeofthe 19thcentury, Raul Pompéia (1863-1895) published
a series ofchronicles in Jornal do Comércio, Gazeta de Notíciasand in Diário de Minas from Juiz
de Fora. In these papers, Pompéia describes the presence of children as victims and
authors of crime, as well as children who participate in popular and religious events.
Pompéia, with the frequency of these descriptions, realized his resignation to news
reproduction and serial rhetoric adjustment in the writing of chronicles. Due to these
factors, he overused a sensationalist and melodramatic tone in his writings. The repetition
of the same topics and descriptions instigated a disdainful posture in the writer who labeled
these chronicles CenasPitorescas(Picturesque Scenes). The irony is accentuated in these topics
and descriptions. This model can be a veiled deconstruction of the irony as well as an
accentuation of the marginal and the marginalized image of the described child. The
present communication aims to discuss the image of the childhood who steal, kill, dance
and pray. This image is reflected in published chronicles in newspapers, which model of
press was French.
Keywords: Chronicles; Childhood; Raul Pompéia.
Introdução:
Reconhecido pelos leitores e aclamado pela crítica literária como autor de um único
romance, O Ateneu (1888), Raul Pompéia (1863-1895) publicou durante os anos de 1886 a
1895, nos rodapés do Jornal do Comércio, da Gazeta de Notícias, do Diário de Minas, de Juiz de
Fora – MG e entre outros jornais, uma série de crônicas em que relata, com acentuada
frequência,situações de abandono da criança, da orfandade, da exploração do trabalho
infantil e da exploração sexual da criança;em que manifesta deslumbramento com respeito
à participação de crianças em festas religiosas, natalinas e popularese também crônicas em
110
Prof. Adjunto de Teoria Literária e Literatura Brasileira do Departamento de Letras da Universidade
Federal de Mato Grosso.
Mestre e Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas – SP.
321
que discuti os problemas sociais e educacionais da criança e propaga os ideais republicanos
de formação educacional, artística e política da criança brasileira das duas últimas décadas
do século XIX.
Como produtos culturais consumidos na hora do ócio e para o entretenimento, os
noticiários e crônicas folhetinizadas acentuam a imagem da infância marginal e
marginalizada na vida e também na leitura descartável da vida.Apesar de condicionado a
este sistema de reprodução de folhetins, notícias e crônicas, Raul Pompéia mostra sua
indignação com respeito à situação da infância brasileira e cuja condição, ainda que
pincelada de tom sensacionalista e melodramático nas páginas de jornal, possibilita revelá-la
como vítima indefesa do sistema sociale o cronista como sujeito que, ao ironizar a retórica
folhetinesca, coloca-se próximo da criança real agredida, abandonada e órfã. Neste sentido,
o folhetinista cede lugar, aos poucos, ao repórter que se atribui estatuto de historiador do
cotidiano urbano e substitui, também aos poucos, aquela retórica folhetinesca ao tom
memorialístico, uma vez que traz para as crônicas ou suas memórias pessoais e familiares
ou seus valores pessoais e políticos sobre a infância.
1.
Cenas Pitorescas da infância nas crônicas de Raul Pompéia.
Ao relato frequente de festas populares e religiosas e de crimes em que se percebe a
presença da criança e do adolescente, Raul Pompeia rotulou de Cenas Pitorescas, tal rótulo
traduz sua crítica mordaz ao sistema de reprodução de notícias, ao modelo de rubrica, à
realidade social, educacional e criminal da infância e da adolescência, mas também indica a
natureza do texto, sempre no limite entre o documental e o jornalístico; o ficcional e o
literário, assim comoa aproximação do cronista Raul Pompéia com as artes plásticas e a
valorização do olhar e do visual, esta mais evidente em sua prosa ficcional, como se nota,
por exemplo, em O Ateneu.
A utilização do termo pitoresco nas crônicas de Raul Pompéia como referência às
festas populares brasileiras e especifica e sarcasticamente ao alto índice de crimes praticados
por crianças e adolescente e crimes contra tais faixas etárias ultrapassa aquela visão de que a
crônica deve ―captar o lado engraçado das coisas, fazendo do riso um jeito ameno de
examinar determinadas contradições da sociedade‖ (SÁ, 2002, p. 23). Nas crônicas
pompeianas, o termo traz consigo certa carga semântica relacionada às artes plásticas, neste
sentido, pitoresco é adjetivo cunhado a partir de ―pitoresca‖, categoria de pintura de
paisagem que traduz a natureza representada como algo acolhedor e generoso, mas
também irregular, imperfeito, mutável e relativo. A utilização do termo em sua função
adjetiva traz consigo outras flexões de sentido e aplicação trata-sedesinônimo de exótico e
322
folclórico e que adotado pelo cronista identifica a presença da criança e do adolescente nas
festas populares e no mundo do crime como elementos que constituem a própria paisagem
pitoresca social do Rio de Janeiro.
1.0
Cenas Pitorescas criminais.
Da leitura dos registros constantes de situações criminais podemos notar uma
acentuada ênfase à ficcionalização ou ―folhetinização da informação‖ (MEYER, 2005,
p.225)que configura as rubricas de jornais nesse momento histórico da imprensa brasileira.
A ficcionalização do registro já se indica e já é indicada pelo próprio cronista como
processo e produto do pitoresco uma vez que remete às instâncias das artes plásticas, do
turismo, da literatura e até do drama, por sua vez a utilização do termo ―pitoresco‖ traduz a
ironia de Raul Pompéia tanto com respeito ao que se registra quanto com respeito ao meio
a partir do qual se registra.
A crônica é rubrica pitoresca porque produto brasileiro e carioca, como afirma e
reafirmar uma dezena de críticos e historiadores literários brasileiros, e também
porqueregistra situações sociais, políticas, econômicas e criminais caracteristicamente
brasileiras, como ironiza Raul Pompéia. Neste sentido, ao lado da paisagem natural
pitoresca do Rio de Janeiro, temos a paisagem social e cultural da cidade tão pitoresca
quanto a primeira e na qual, as crônicas figuram como uma espécie de ―ponto‖ ou ―objeto‖
turístico (Ibidem, 2005, p.76) muito valorizado por leitores pitorescos que apenas se
satisfazem com o relato ficcionalizado dos ―fatos criminais‖ e com o vislumbre das ―cenas
criminais‖.
Ainda que gênero brasileiro e carioca, a denominação de Cenas Pitorescas
especialmente para aquelas crônicas que relatam crimes e atrocidades implica na alusão à
―literatura pitoresca francesa‖ (CHEVALIER, 1978, passim) cujos tipos e gêneros tinham
como tema crimes urbanos e cujo ―halo‖ ficcional se nutria de dados estáticos da
criminalidade urbana parisiense do século XIX, especialmente àqueles referentes ao
infanticídio e ao abandono de crianças. Essa literatura, ao transformar os dados estatísticos
criminais em matéria ficcional, se configura como crônicas de viagens às avessas, tétricas
pinturas de paisagens que representa perseguidores e perseguidos, fortes e fracos, viciados e
virtuosos.
323
A apropriação do ―gênero‖ ou ―modelo‖ pode significar a permanente busca de
artistas e escritores brasileiros por formas e modos de representação da realidade local em
conformação com os padrões artísticos da Europa Ocidental, neste caso, a França. No
entanto, é a aparente cópia do modelo que proporciona ao cronista ironizar a importação
de costumes estrangeiros, como por exemplo, os duelos teatralizados de rapazes, os raptos
consentidos pelas donzelas, a dramatização de crimes passionais ou suicídios e as ações de
aparente natureza criminal cujos autores e atores se inspiravam em leituras
rocambolescas.A paródia ao modelo de escritura de texto comporta a paródia à exportação
de costumes sociais especialmente entre jovens estudantes e da elite, desse modo, para o
relato de situações postiças e teatrais apenas um modelo de texto que além de se mostrar
flexível em aceitar os mais diversos códigos discursivos e textuais, revela que a dificuldade
de estabelecer limites entre o documental e o ficcional; o jornalístico e o literário decorrem
de uma realidade que se apresenta fictícia e ficcionalizada. Neste contexto, ―fábrica de
publicidade‖, ―romanesco‖ ―sensação de sucesso‖, ―assuntos ardentes‖, ―ocorrências de
sensação‖são expressões que o cronista utiliza para se referir às crônicas de crimes forjados
pela juventude leitora dos Crimes de Paris, enquanto que ―noveleiros‖ e ―fabricantes de
publicidade‖ aos cronistas que ao escreverem sobre práticas criminais teatrais ou
teatralizadas ou sobre situações criminais reais tanto banalizam as grandes obras literárias
quanto diluem o fato criminal e a individualidade de criminosos e de vítimas.
Além das crônicas sobre rapazes duelistas e moças susceptíveis ao rapto
representando no ―teatro da vida social‖, há aquelas sobre escândalos familiares,
assassinatos e suicídios como consequência dos ―dramas de amor‖, das ―represálias de
ciúme feroz‖ e das ―intrigas sanguinárias‖que suprem diretamente ―as necessidades
instintivas do público‖ (ANGRIMANI, 1994, passim) ou, segundo o próprio Raul Pompéia,
que satisfazem o ―sentimento grosso‖ dos leitores ―que tem a alma pronta para as emoções
violentas e súbitas‖ (POMPÉIA, 1982, p.203, vol. 6). Como um dos elementos que faz
parte deste sistema, o leitor é rotulado,por Raul Pompéia,como ―diletantes de sangue‖, tal
denominação irônica considera o interesse de alguns leitores por crônicas através das quais
satisfazem o prazer de visualizar cenas escabrosas e chocantes de pura carnificina, prazer
que já se manifesta nas crianças leitoras, cuja ―candura de uma carinha angélica‖ disfarça o
prazer pela leitura de noticiários de crimes rotulados, por Raul Pompéia, de ―a Tragédia do
Barba Azul‖.(Idem, 1983, p. 32-3, vol.7)
É também em razão do interesse pelos leitores em visualizar o crime, a cena do
crime, atores e vítimas que as crônicas de crime parecem semelhantes, no que se refere ao
324
modo de descrição, àquelas em que Raul Pompéiavisita as galerias de artea ênfase no ato de
olhar e na conjugação do olhar do cronista e do leitor. Se ao leitor das crônicas de arte é
possibilitado usufruir visualmente das pinturas de artistas plásticos, expostas em galerias
visitadas pelo cronista – uma vez que seus comentários críticos sobre as pinturas são relatos
de minuciosa descrição das telas -, aos leitores de noticiários também é possibilitado ―estar
na cena do crime‖, porque o cronista a visita e a descreve.É da leitura das minúcias
descritivas que se cria a sensação de que o nosso olhar se funde ao olhar do cronista uma
vez que ele está, aparentemente, presente na cena do crime. Essa sensação não resulta em
impressões visuais e sensoriais apenas, provoca outra impressão no leitor, a de que ele
acompanha junto com o repórter-cronista os trabalhos de investigação criminal. Neste
sentido, muitas crônicas se constituem tanto do relato das etapas destes trabalhos quanto
da representação do ofício de profissionais responsáveis em cada uma destas etapas. Ele é
repórter, é fotógrafo, é médico legista, mas é também psicólogo e pintor, uma vez que a
representação do cadáver considera, além da descrição da autopsia propriamente dita, a
dissecação psicológica para a sua idealização do corpo dissecado como ornamento artístico.
As notícias sensacionais de crimes que satisfaz a curiosidade popular por detalhes e
minúcias ainda que salientem a imagem do cronista repórter e do cronista psicólogo
criminal não perdem seu caráter de mercadoria que se simula ato simbólico de violência e
que, por isso, serve de exemplo para o que Freitas(1997) rotulou de ―violência simbólica‖
contra a infância e a adolescência. Neste contexto, Raul Pompéia, ao relatar os mais
diversos casos de violência doméstica contra a infância pobre, abandonada e negra, aponta
tais relatos como outro modo convencional e consentido de sacrifício de crianças, modo
que o faz aludir a Moloque, divindade a quem os fenícios ofereciam crianças em sacrifício.
1.1
Cenas Pitorescas Festivas.
Como um dos seus temas mais recorrentes, o registro da presença de crianças e
adolescentes em festas revela o prazer do cronista Raul Pompéia em assistir à participação
delas nos eventos, admirá-las como elementos que deflagram o espetáculo visual de cores e
nuanças, assim como o prazer de Pompéia em instituir o registro como sua versão pessoal
dos acontecimentos, como uma constituição de uma paisagem impressa sob ―um evidente
matiz subjetivo‖ (BULHÕES, 2007, p. 140), o que caracteriza o cronista como um artista
plástico, além de ―historiador‖ do cotidiano.
Mais do que registro de acontecimentos sociais e familiares ou de festas religiosas e
populares, as crônicas nas quais se evidencia a presença da criança se diferenciam das
325
demais no instante em que Raul Pompéia pode expressar seus sentimentos sobre a infância
e sua própria memória da infância que além de agregarem à representação dos sentimentos
e desejos infantis, singularizam a volta para o ser e sentir criança e para o desejo de
experimentar os desejos da infância. Tais crônicas se nutrem, portanto, das recordações
pessoais especialmente àquelas que registram festas no âmbito familiar, como por exemplo,
as festas natalinas, mas elas também possibilitam ao cronista fugir daqueles temas da
realidade do cotidiano, ―do drama da vida com suas pesadas grosserias graves ou cômicas‖
(POMPÉIA, 1983, p. 436, vol.9). Desse modo, a imagem da criança feliz das festas, dos
mitos, das fadas, dos ―risos argentinos‖ não se dissocia da imagem do cronista, que se
reconhece como adulto e no mundo dos adultos, em que só é possível reviver a infância
apenas como fato que compõe o contexto de escritura das crônicas natalinas: (...) só de ver
ao redor de uma mesa onde se abrisse um grande jornal atravessado da crônica folhetinesca
das crianças formar-se um nimbo dourado de cabecinhas loiras, inquietas (...) Escrevamos
(...) as crianças rainhas da hora. (Ibidem, p. 61)
Nos relatos dos acontecimentos festivos, o cronista relativiza e afrouxa sua postura
de observador distanciado, quando opta pela primeira pessoa do discurso e quando,
sobretudo, carrega o texto de informações pessoais, neste sentido, suas crônicas servem de
exemplo para aquela compreensão de que as crônicas podem ser um ―gênero menor‖
quando demonstram a interligação entre literatura e vida e aproximação com os leitores
reais no instante em que ―consegue sem querer transformar a literatura em algo íntimo com
relação à vida de cada um‖ (CÂNDIDO, 1992, passim). A aproximação não decorre apenas
da identificação do leitor com os temas das crônicas ou com as experiências da infância, do
período escolar e das festas familiares como o natal e o entrudo, mas também de linguagem
acentuadamente sinestésica que deve provocar a delícia visual de ser criança: ―um grande
esplendor convidativo de brilhantes cofres de confeitos e áureos adereços de árvores do
natal e turbilhões de anjinhos de cromo‖. (POMPÉIA, 1983, p. 463, vol.9)
O discurso adocicado sobre as festas natalinas que atrai o leitor imediatamente o
conduz a experimentar as críticas amargas do cronista com respeito à importação do
modelo europeu de comemoração do natal em pleno verão tropical e suas considerações
filosóficas sobre a existência humana. Da crítica aos costumes importados, o cronista elogia
aqueles que souberam adequar a comemoração do nascimento de Cristo à realidade
climática brasileira: ―Os povos do Norte foram mais inteligentes no Brasil. (...) Criaram-se
os bailes rústicos das lapinhas, as danças pastoris do Norte, meio religiosas, meio lascivas,
onde se aproveita para folguedo e deleite.‖ (Idem, 1982, p. 130, vol. 6). Além dessas críticas
326
de costumes, as festas natalinas e religiosas possibilitam a manifestação de uma consciência
senão trágica pelo menos fatalista, a de que a comemoração do nascimento de Cristo
implica a meditação de ―tristíssimas lembranças‖ do infanticídio promovido por Herodes,
assim como a visualização do ―pobre corpozinho tenro e frágil, rosado da nudez e do frio
matinal, exposto à inclemência do desabrigo do seu berço‖. (Ibidem, p. 220)
A expressão de melancolia e de pessimismo do cronista, no entanto, não bloqueia
seu olhar estetizante sobre o registro de festas populares religiosas ou Dia de Finados, pelo
contrário acentua a representação pictórica da celebração da morte e da comiseração cristã.
Trata-se de registros nos quais se notasua forte atração visual pelo colorido das roupas, pela
movimentação dos fiéise, sobretudo pela liturgia em que a se destaca a presença do corpo
pálido e esquálido de crianças inocentes, de feição doentia, as quais o cronista parece impor
o estatuto de pequenos anjos ou pequenos cadáveres. Seduzido pela visualidade da liturgia,
Raul Pompéia descreve-a sob o efeito de encantamento meio profano meio místico, que
quase o converte ao culto de crianças divinizadas em espetáculo de ternura infantil. Se não
há conversão, há confissão e há iluminação, uma vez que o registro se assemelha à
profissão de fé de um cronista que confessa adorar a imagem da infância. Tal confissão
ilumina não apenas a representação do ritual, mas aquele que o representa como uma
criança deslumbrada com a iluminação da liturgia, desejosa de participar do evento. Desejo
semelhante àquele de uma criança perdida, que busca voltar-se para junto da mãe. Senão
criança junto a outras crianças, ao menos cronista que expressa sensação de êxtase diante
da liturgia, visualmente experimentada, como seus personagens pintores da sua prosa
ficcional no ato da pintura de telas:
Essa permanente ênfase na percepção visual sobre aspectos e fatos das festas
populares e religiosas redunda na constituição de textos acentuadamente visuais, ou seja,
feitos para os olhos e para o prazer visual. O olho que pinta identifica tanto certa tendência
às artes plásticas, quanto certo prazer voyeur de relatar, por exemplo, as festas carnavalescas
de rua ou de clube:―(...) nós que vemos apenas o espetáculo dessa alegria forçada (...)
vamos também em espírito e em ideia, promiscuamente, foliões entre foliões, e nos
alegramos de ver e de assistir, como se tomássemos parte...‖ (POMPÉIA, 1983, p. 183, vol.
9)
O repórter, atrás da folia e das notícias sobre o Carnaval, no instante em que
reconhece a festa como celebração da felicidade, da inversão e das aparências, estabelece
distinção notável entre a mocidade do comércio e a mocidade das letras. Se Raul Pompéia
celebra o carnaval e alude à mocidade do comércio, que brinca o carnaval como ―os
327
representantes efetivos da alegria pública‖ (Idem, 1982, p. 208-10, vol. 6.), também critica a
melancolia e a sisudez dos jovens intelectualizados, marcas que os identificariam artistas e
que os distinguiriam socialmente: ―A mocidade letrada acha gosto em ser triste e passar por
triste‖ (Ibidem, p. 208-10). Desse modo, mais do que crítica sobre a participação ou não na
festa, é crítica sobre a admissão de certos códigos, trejeitos e posturas, que identificariam o
jovem talentoso, ainda que sob a aparência de velhos cansados e tristes: ―Arranja, logo que
pode uma miopia às pressas, que desculpa os óculos precoces, o grave apêndice de
senilidade e aros de tartaruga que lhes garante um bom acolhimento entre os velhos (...)‖.
(Ibidem, p. 208-10)
A alegria contagiante, decorrente das aparências sedutoras do Carnaval, também
inspira o sarcasmo e a ironia em relação aos vários discursos, propagados pela elite moral e
intelectual da sua época, contra a festa popular, em nome da civilidade e dos bons
costumes; discursos que são reflexos do ―processo de aburguesamento da paisagem
carioca‖ (SEVCENKO, 2003, p. 47). Irônico ao reconhecer, também, que o país só
funciona depois do Carnaval, o cronista reproduziu a concepção da festa como a mais
republicana de todas, uma vez sincera no acolhimento tanto da ―gentinha miúda‖ quanto
das classes mais altas, que participam das festividades, movidas por uma curiosidade de
fachada, semelhante à daquela donzela que, atrás das cortinas da janela de sua casa, observa
absorta a ―suntuosidade do impudor‖ (POMPÉIA, 1983, p. 45, vol. 8) do carnaval de rua,
―e que, solidária com tudo isso pela atenção, olhos piscos, narinas trêmulas, lábios em
febre, aplaude tudo com todas as veias da sua admiração‖ (Ibidem, p. 46).
Ao se apropriar dos discursos difundidos por literatos e jornalistas sobre o carnaval,
como uma festa da ―inversão e da permissividade‖, ou da ―maledicência e da pornografia‖
(PEREIRA, 2004, p. 47), o cronista parodia-os e os rotula de ―caricatura da moralidade da
high life‖, porque são sintomas de ―hipocrisias forçadas da gravidade‖ de ―um tipo qualquer
metido a circunspecto‖ (POMPÉIA, 1983, p. 276, vol. 7), cuja vontade reprimida de
participação e cuja alegria recalcada acabam, vez ou outra, explodindo em ―horrorosos
furúnculos‖ de hábitos factualmente condenáveis, como o rapto de crianças e adolescentes
ou a exploração do corpo da criança pelo homem adulto em bailes carnavalescos, situação
que ele considera como uma das causas do suicídio de crianças e adolescentes: (...) Lembrase do menino suicida?... O carnaval seria uma fábrica de monstros dos tais (...) E viam
todos a criança sorrindo com os grandes olhos úmidos, e o seio à mostra na cava decotada
do corpete (...) O carnaval é um perigo perigosíssimo. Para que metermos em apuros os
inocentes? (POMPÉIA, 1983, p. 53, vol. 7)
328
Considerações finais.
Publicadas nas duas últimas décadas do século XIX, momento altamente
significativo da Puericultura e da Pedagogia, dos estudos nas áreas da Psicanálise, da
Sociologia e da História Social, as crônicas de Raul Pompéia podem, sem sombra de
dúvida, ser considerada exemplar, no que tange à representação da infância e da
adolescência e aos sentimentos e problemas referentes a tais faixas etárias.Ao lado de O
Ateneu, de contos e de novelas que narram os sofrimentos das faixas etárias e dos abusos
contra elas, as crônicas se destacam como instrumento utilíssimo para ele emitir seus
pontos de vista sobre a condição da infância e da adolescência; para fazer suas denúncias
sobre exploração de menores; e, sobretudo, para ecoar discursos das mais diversas áreas de
conhecimento sobre a necessidade de cuidar de tais faixas etárias, especialmente daquelas
desprovidas de lar, de assistência e da presença do Estado, objetivando, dessa forma, a
manutenção da ordem e do progresso. Nas crônicas de Raul Pompéia, percebe-se o
empenho de republicanos a favor de tais faixas etárias, pois são reconhecidas como
importantes na consolidação do regime que se instaurava no final do século XIX.
Assim como sua ficção, as crônicas de Raul Pompéia sinalizaram, acentuadamente,
cada uma a seu modo e conforme seus códigos, a condição da infância e da adolescência e
o sentimento do cronista e dos narradores para com ambas as faixas etárias. Além de elas
servirem de material que esclarece aspectos uma da outra, elas se geram uma da outra e
emprestam temas uma da outra.
Como repórter do cotidiano, Raul Pompéia, em princípio, valorizou o espaço
urbano e suas cenas como matéria coletada em ritmo de reportagem. No ato da elaboração
da rubrica, o cronista se resolve como escritor de ficção, mas não resolve a natureza de seu
texto, sempre no limite do jornal e da literatura. Nesse sentido, as crônicas não são apenas
―laboratório‖ da ficção, elas são matéria-prima da ficção, se entrosam na ficção. Das
crônicas, surge O Ateneu. Nele, os fatos recebem nome de ficção no subtítulo de seu único
romance publicado: Crônicas de Saudade. Da realidade às páginas do jornal, e dessas à prosa
de ficção oitocentista, a prática do jornalismo literário, segundo Arnst (2001), influenciou
decisivamente a vida cultural brasileira e lançou as bases do nosso romance romântico e
realista. A relação entre novelas, contos e crônicas, possível dentro dos limites das folhas
noticiosas da imprensa, muitas vezes dificulta a classificação de textos a partir da teoria dos
gêneros, porque permite uma série de reapropriações e de empréstimos, especialmente no
que diz respeito ao tema: o relato folhetinizado de crianças roubadas ou exploradas no
ambiente doméstico ou de trabalho parece mais adequadamente real quando tema de
narração de alguns de seus contos. De outro modo, o jornal vende a infância abandonada,
329
prostituída e explorada sob os laivos de um melodrama ou de um folhetim francês. As
notícias de crimes contra a infância e a adolescência são produtos da ―ficcionalização‖ ou
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2003.
330
TODO O ENCANTO DIABÓLICO NA FIGURA DO BOTO
AMAZÔNICO
Prof. Msc. Dante Luiz de Lima111
Prof. Dra. Salma Ferraz (orientadora)112
Resumo: Os mistérios da Amazônia fascinam e encantam, deste lugar enigmático com
muita vegetação, animais exóticos, rios grandiosos e igarapés de águas geladas surgem
várias lendas que povoam o imaginário dos habitantes locais, principalmente os ribeirinhos.
Uma das lendas mais instigantes é a do boto, que com seus sortilégios enfeitiça a mente das
mulheres bonitas e assusta os homens viris da região amazônica. Neste trabalho fazemos a
análise da figura do boto como sendo uma criatura diabólica, que com seu carisma e poder
de sedução leva as moças solteiras e até mesmo as mulheres casadas à perdição. Comparo a
figura do boto a de um íncubo não onírico que tem dotes maléficos e características
claramente luciferianas: como o poder da sedução, a beleza angelical e a capacidade de
metamorfosear-se, dentre outras que ressaltaremos no corpo deste trabalho. Para que
façamos essa leitura usaremos como fontes primárias dois contos de escritores paraenses, o
primeiro é O Baile do Judeu de Inglês de Souza (1892), o segundo é A lenda do Boto (2009) de
Alberto MoiaMocbel, nativo e residente da cidade de Cametá. A escolha de tais contos
evidencia o fato de que a lenda do boto sobreviveu ao tempo, haja vista que mais de cem
anos separam a publicação dos contos. Também abordaremos algumas outras
características do boto que não estão presentes nos contos, mas que estão vivas nas
narrativas orais dos habitantes da região amazônica, sendo que para tal nos embasaremos
em materiais já publicados com depoimentos de moradores locais e também teóricos que
estudam o folclore brasileiro.
Palavras Chaves: Boto, Amazônia, Diabo, Lenda
Abstract: The mysteriesof the Amazon regionfascinateand delight people, from
thisenigmaticplacewith lots of greenery, exotic animals, magnificentriversand streamsoficy
waterappearsseveral legendsthat inhabitthe imagination oflocals, especially those who live
by the river. One of themost intriguingtalesisthe story of thedolphin (Boto), which with
itscharmsbewitchesthe mindofbeautiful women andscares the virile men fromthe Amazon
region. In this study we analyzethe figure of thedolphin (Boto)as being
adiabolicalcreaturewho, withhis charisma andpowers of seductiontakestheunmarried
girlsand even the married womento perdition. We comparethe figure ofthedolphin
(Boto)to a non-oneiric devil who has evilpowers and oustandingLuciferiancharacteristics:
such as the powerof seduction, angelic beautyand the ability tometamorphose, among
others thatwe will highlightin the bodyof this study. In order to accomplishthiswe will useas
primary sourcestwo short storiesby writersfrom Pará, the first one isO Baile do Judeuby
Inglês de Souza(1892), the second one is A lenda do Boto(2009)by AlbertoMoiaMocbel,
native andresidentin the town of Cametá. The choiceof thesestorieshighlightsthe fact
thatthe legend of thedolphinsurvived the time, considering that more than a hundredyears
separatethe publications. We alsodiscusssome other featuresofdolphinthat are not presentin
the stories, buttheyare alivein theoral narrativesof the inhabitantsof the Amazon region,
and for thiswe will base ourselvesonmaterial already published with the testimony of local
residentsand
alsotheoristswho
studyBrazilian
folklore.
Key Words: Boto, Amazon, Devil, Legend
Professor da Universidade Federal do Pará, atualmente doutorando em Teoria Literária na Universidade
Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]
112 Professora do programa de Pós Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Email: [email protected]
111
331
A região amazônica não é apenas um dos lugares mais exóticos do mundo, mas é também
fonte de inspiração para escritores e poetas, que muitas vezes baseados em narrativas orais,
passam para a palavra escrita as lendas e os mitos criados pelo povo da região. A fertilidade
mental do povo amazônico é facilmente justificável pela situação geográfica desta área da
AméricaLatina onde a natureza é exuberante,possui rios grandiosos, igarapés de águas frias
e escuras, furos sinuosos, animais e insetos de tamanhos e formas variadas e uma situação
climática que propicia longas pausas para reflexão e contemplação de tudo em que está em
volta. Todos estes fatores são atenuantes para que a imaginação crie não somente crie asas,
mas vá muito mais além, como justifica João de Jesus Paes Loureiro:
Na realidade amazônica o mundo físico tem limites sfumatos,
fundidos ou confundidos com osupra-real, daí por que nela homens
e deuses caminham juntos pela floresta e juntos navegam sobre os
rios. Situam-se no impreciso limite entre aquilo que é e aquilo que
poderia ser, nesse sfumatopoetizante que interpenetra o real e o
imaginário (LOUREIRO, 2001, p. 94).
Portanto, levando-se em consideração as palavras de Loureiro, podemos afirmar que o
onirismo (in)voluntário do habitante da região amazônica é algo inerente a sua própria
natureza, pois os mesmos parecem inebriar-se com a imensidão de mistérios que o cercam,
o fictício passa a ter o status de verdadeiro e vice-versa. Deste universo multifacetado e
místico surgiram várias mitos e lendas que povoaram e ainda povoam o imaginário popular,
dentre estas destacamos a lenda do boto, a qual será a fonte primária deste estudo.
O boto, chamado por alguns de Don Juan das águas113, já foi cantado em verso e
prosa, normalmente ele éassociado a um homem galante e muito bem apessoado que leva à
perdição mulheres indefesas que entregam a ele seus corações e também seus corpos
sedentos de amor e desejo, como explica Loureiro: ―O Boto é um encantado da
metamorfose por excelência, expansão de uma espécie de êxtase dionisíaco, que deixa as
mulheres fora de si mesmas, fazendo-as esquecer todas as normas para seguir somente o
impulso ardoroso desse ser de puro gozo, é de amor sem ontem nem amanhã‖
(LOUREIRO, 2001, p.208). Esse prazer exacerbado proporcionado por essa entidade
vinda das águas, possivelmente tem origens nefastas. Portanto, neste estudo compararemos
113
“O Boto-vermelho é o Don Juan das águas, sedutor de moças donzelas e mulheres casadas”
(LOUREIRO, 2001, p. 208).
332
o boto à figurade um demônio que possui todos os encantos diabólicos, pois suas
características luciferinas são bastante evidentes e serão expostas no corpo deste trabalho.
Para que façamos esta leitura usaremos dois contos de escritores paraenses, que
provavelmente baseados em narrativas orais, escreveram a lenda do boto de acordo com
seus pontos de vistas. Os contos escolhidos foram O Baile do Judeu de Inglês de Souza
(1892) e A lenda do Boto (2009) de Alberto MoiaMocbel, nativo e residente da cidade de
Cametá. A escolha de tais contos deu-se pelo fato de ambosescritores serem paraenses, o
que pode vir a legitimar suas narrativas, pois sendo moradores da região eles têm um
conhecimento mais aprofundado sobre a lenda que se propuseram a escrever. Outro fator
determinante para tal escolha foi a data em que tais contos foram escritos, o primeiro no
final do século XIX e o segundo no início do século XXI,este fato mostra que a lenda do
boto sobreviveu ao tempo, haja vista que mais de cem anos separam as duas publicações.
Finalmente, levou-se também em consideração a abordagem inovadora que cada autor deu
a seu protagonista, destacando de antemão que o boto de Inglês Souza é um ser quase que
disforme, opondo-se a maioria das narrativas orais que rezam que o cetáceo
metamorfoseado em homem é um ser bastante atraente. Mocbel, por sua vez, nos traz o
boto convencional, bonito e sexualmente ativo, isto é, aquele que veio emprenhar a
inocente menina ribeirinha da região amazônica.
Mas por que dentre tantos animais o boto foi escolhido para personificar o irresistível
homem sedutor da região amazônica? Segundo Loureiro (2001) são várias as explicações, a
começar pelo modo com que a criatura se move dentro das águas, seus movimentos
lembram os movimentos rítmicos da cópula, isto é, o animal não parece estar nadando e
sim se deleitando com o que está fazendo, neste sobe e desce dentro dos rios o boto parece
estar espreitando suas vítimas e ao mesmo insinuando o prazer que pode lhes
proporcionar. Além disso, segundo o mesmo autor, a cabeça do boto tem uma semelhança
com a glande masculina, essa característica fálica do boto pode ter cooperado para dar mais
intensidade na criação do mito. Portanto, como podemos notar, mitos como o do boto
parecem nascer da contemplação da natureza e suas possíveis (re)significações. Afinal, o
mistério é parte integrante da vida de todo ser humano pensante, pois ao deslumbrar-se
com o mundo que o cerca, fica procurando explicações e fazendo elucubrações para
compreender a ―realidade‖ que o cerca. A lenda do boto vem somar especulações sobre o
mundo metafísico que tanto nos instiga. Apesar de haver todo um romantismo envolvendo
a figura do Don Juan Amazônico, também podemos encontrar neste sercaracterísticas
diabólicas, pois: ―Muitas vezes, especialmente na literatura, o Anjo abatido apresenta-se
333
como uma criatura polida e benigna, como um gentil-homem que conhece a arte de fazer
corte às damas e aos varões. Mostra, quando quer, ser um hábil conviva, um adulador
obstinado‖ (PAPINI, s/d, ps.224,225). Sendo assim, o boto amazônico, com sua
capacidade de frequentar a sociedade e passar-se por um cidadão comum e com seu grande
poder de encantamento, pode indubitavelmente serequiparado a uma das criaturas das
trevas, com poderes sobrenaturais equiparados ao do próprio diabo.
O boto na maioria das narrativas orais e escritas é um rapaz bonito e loiro. Se levarmos em
consideração a aparência física dos habitantes da região amazônica, nos perguntaremos
porque ele não tem características regionais, seria muito mais sensato, uma vez que ele faz
parte do imaginário amazônico e como se sabe a maioria dos habitantes da região tem
traços herdados dos povos indígenas. Segundo Cascudo apud Veloso, Silva e Valente:
[...] como nenhuma figura encantada, marítima ou fluvial, tivesse os
atributos do boto nos séculos XVI, XVII, XVIII, as lendas e
proezas que lhe são atestadas seriam de origem branca e mestiça,
com projeção nas malocas indígenas ribeirinhas e não saídas destas
(CASCUDO, 2000, s/p).
Sendo assim, podemos deduzir que a criação do mito não tem suas raízes no folclore
amazônico, mas sim que foi trazida do além-mar pelos colonizadores europeus e
provavelmente foi adaptada pelos habitantes locais para justificar o nascimento de crianças
que não tinham uma paternidade definida e depois foi também usada pelos povos
amazônicos para legitimar filhos procedentes de relações ilícitas, muitas vezes
incestuosas.A partir daqui podemos começar a nossa associação do boto com a figura
luciferiana, pois como o ser humano tem dificuldades em aceitar seu lado obsceno teve que
inventar uma criatura mais terrível que ele para assumir suas culpas, o diabo vem cumprir
este papel. A seguir começaremos aanálise dos contos levando-se em consideração que
estamos explanando sobre uma figura maligna e não um inocente Don Juan dos rios.
Começaremos explorando o que os dois contos tem em comum, ambos falam de um ser
que vem das profundezas dos rios, um lugar escuro e misterioso que aguça a curiosidade
dos seres humanos. Este lugar pode ser associado ao inferno, que por não ser um lugar
telúrico, nos leva a reflexão sobre o mundo metafísico. Que segredos o fundo dos rios e o
inferno nos reservam? Sobre os rios os exploradores aquáticos já podem nos dar bastantes
informações, mas lembremos de aqui estamos falando de fantasia e misticismo,portanto
nossas mentes podem ir além dos fatos relatados pela ciência. Sendo o boto uma criatura
pertencente ao panteão do imaginário podemos fazer várias ponderações sobre esse reino
334
aquático, inclusive podemos compará-lo a um inferno não incandescente, que ao invés de
fogo possui apenas a escuridão e um guardião (demônio) sedutor que em noites de lua
cheia sai a procura de vítimas. O inferno, por sua vez, como é de conhecimento popular, é
regido por um príncipe maldito que comanda uma legião de demônios que também deixam
seus habitats para vir a terra para induzir os mortais ao pecado. Lembremos também que
Satã foi e ainda é mostrado de várias formas, inclusive como um ser aquático, segundo
Kelly (2008) o diabo foi também retratado como um monstro marinho alegórico, uma
combinação de dragão de múltiplas cabeças chamado Leviatã. Sendo assim nosso boto
também pode ser considerado um Leviatã amazônico.
Outro ponto em comum entre os contos é o local da aparição do boto, ele aparece
em uma festa dançante (baile), aliás, esse ser, supostamente aquático, tem desenvoltura de
um exímiobailarinho quando metamorfoseado em homem. De acordo com Loureiro:
A festa é um dos momentos recorrentes e cíclicos, como um
refrão, nas aparições do Boto. Seja a festa dançante comum
no interior da Amazônia, seja a festa anual do santo
padroeiro. Costuma ser comentado o nascimento de filhos do
boto nove meses após a festa do padroeiro (LOUREIRO,
2001, p. 219).
Esta é mais uma características que pode ser atribuída ao diabo, pois divertimento parece
não sãoser atributos de um bom cristão. Existe inclusive um ditado popular que diz que
quando as pessoas vão a um baile elas vão montadas no diabo, mas quando voltam o diabo
é que vem montado nelas, esta observação, provavelmente de origem religiosa, vem
mostrar que bailes não são aprovados por Deus, nosso suposto criador. Portanto, a
aparição do boto em um evento desta natureza é mais uma pista da sua origem maligna,
além disso, o objetivo dele não é apenas dançar, mas também seduzir alguma mulher
carente e levá-la a cometer o pecado da luxúria, para depois abandoná-la com um filho
ilegítimo nas mãos.
Os contos se diferem quanto a descrição do boto, na narrativa de Mocbel ele é
descrito da seguinte forma:
Seria meia-noite quando um rapaz, bem parecido, claro, de
olhos azuis, trajando fato branco e gravata verde,
aproximou-se de Marieta e a convidou para dançar. Marieta
335
prontamente aceitou e, coisa estranha, sentiu um arrepio no
corpo.
Já no conto O Baile do judeu ele é mostrado da seguinte forma:
Às 11 horas da noite , quando mais animado ia o baile,
entrou de repente um sujeito baixo, feio, de casacão
comprido e chapéu desabado, que não deixava ver o rosto,
escondido também pela gola levantada do casaco. Foi direto
a dona Mariquinhas, deu-lhe a mão, tirando-a para uma
contradança que se ia começar.
Como podemos perceber temos dois botos distintos nas duas descrições, um loiro bonito e
europeizado e outro feio com ares de brasileiro, especialmente pela baixa estatura. Como o
objetivo deste estudo é comparar a figura do boto ao diabo, a explicação poderia ser
encontrada na evolução da figura Luciferiana através dos tempos. Como sabemos Lúcifer
era o anjo mais bonito e perfeito do reino dos céus, o processo de transformação de sua
imagem em um a figura horrenda foi cristalizado na Idade Media, Cousté, estudioso desta
área explica que:
[...]o Diabo sofreu um processo de degradação física que
deve ser atribuída principalmente à imaginação popular. O
deslumbrante ser que nos fala a Bíblia adquiriu, aos olhos do
povo, características físicas em correspondência com a sua
moral depravada: se ele é corrupto, mentiroso, inimigo de
Deus e dos homens, perjuro, sacrílego, violador, maligno no
mais alto grau, deverá necessariamente ser horrendo, disforme e
repulsivo como nenhuma outra criatura (COUSTÉ, 1996,
p.32).
Analisando-se a explanação de Cousté e partindo-se do pressuposto que o boto é o diabo
vindo das águas, podemos dizer que a criatura (re)criada por Inglês de Souza tem
características do diabo que foi idealizado na Idade Média, isto é, feio e repulsivo, mas
mesmo assim, perigoso por seu alto poder de sedução. Em contrapartida o boto
Mocbeliano tem as características angélicas que Lucífer possuía quando habitava o empíreo,
bonito e atraente. Sendo assim, podemos dizer que na maioria das narrativas sobre o Boto
temos um demônio com características angelicais, isto é, um ser belo, mas que no fundo
336
tem uma índole maldita, mas que no conto de Inglês de Souza o boto extenua fisicamente a
maldade que lhe é inata.
Em ambos os contos o boto seduz a mulher que escolheu e a leva a perdição, pois como o
diabo usa de vários artifícios para engambelar suas vítimas, principalmente quando estas
são do sexo feminino e que de acordo com Nogueira:
Incorporando, pois, todas as crenças da Antiguidade,
amplificado pelo discurso da Igreja. O Diabo preside a vida
da comunidade cristã. Em toda parte se vê o diabólico, o
mundo inteiro é por ele invadido. E sua vítima é por
excelência, a mulher(NOGUEIRA, 2002,p. 42).
Desta forma, podemos afirmar mais uma vez que o boto pode ser comparado ao diabo,
pois suas vítimas são sempre mulheres. Nos contos em questão as seduzidas são Marieta,
jovem bonita de dezoito anos que acaba sendo engravidada pelo boto e termina seus dias
cuidando do filho e sonhando com amado que jamais retornou. Cousté ao falar da
performance sexual do diabo explica que: ―Como se trata de um excepcional amante, seu
desaparecimento deixa a vítima em permanente ansiedade e nostalgia [...]‖ (COUSTÉ,
1996, p. 46)114. Especula-se que, especialmente durante a Idade Média, muita mulheres se
entregavam ao tinhoso e com ele tinham momentos inesquecíveis de luxúria, depois eram
abandonadas e ficavam lamentando a ausência do amado infernal, portanto, Marieta pode
ser comparada a essas mulheres frustradas da era medieval que ficaram a espera desse amor
utópico e maldito.No conto de Inglês de Souza a seduzida é dona Mariquinhas, jovem
bonita e recém-casada com um tenente-coronel, a qual acaba sendo levada para o fundo
das águas pelo amante cetáceo. Como podemos notar as duas mulheres em questão
sofreram consequências por se envolverem com o maligno, uma foi condenada a solidão e
a outra parece ter sido levada a morte, pois a história termina com ela sendo arrastadapela
criatura para dentro do rio, o próprio narradoradmite que o ser que levou dona
Mariquinhas é diabólico: ―E em vez de ser homem era um boto, um grande boto, ou o
demônio por ele, [...]‖. Desta forma, é bastante plausível se comparar a figura do boto a de
um demônio.
Os botos de ambas narrativas se deixam denunciar pelas suas características
sobrenaturais e que podem ser associadas a figura do diabo. No conto de Inglês de Souzaa
revelação acontece da seguinte forma: ―No meio dessa estupenda valsa, o homem deixa
cair o chapéu, e o tenente-coronel, que o seguia assustado para pedir que parasse, viu com
114
Cousté refere-se aqui a figura do diabo, que na nossa leitura pode ser o próprio boto.
337
horror que o tal sujeito tinha a cabeça furada.‖ O furo na cabeça é algo bastante recorrente
nas narrativas orais e escritas em que o boto aparece, pois de acordo com Loureiro: ―Nessa
nova e eventual condição, o único sinal identificador que guardam é um buraco no meio da
cabeça, por ordem respiram com certo ruído‖ (LOUREIRO, 2001, p. 208). Por isso o boto
sempre usa um chapéu para esconder tal deformidade. Este furo em sua cabeça, também
pode ser considerado uma manifestação demoníaca, afinal nem um ser vivo apresenta tal
característica, este detalhe vem mostrar que os demônios são capazes de camuflar muito
bem suas características sobrenaturais, o chapéu torna-se um artefato de primeira
necessidade para estas criaturas das trevas, o boto para esconder para esconder seu orifício
e o diabo para esconder suas guampas115. Outra hipótese que podemos levantar é que o
boto possuia um corno que foi arrancado e no lugar ficou apenas o buraco. A maioria das
representações, principalmente da era medieval, mostram o diabo com dois chifres, mas há
algumas em que ele aparece apenas com um grande corno sobre a cabeça.
Já no conto de Mocbel o boto é delatado por seus pés: ―De repente alguém gritou
Ei!... Cuidado pessoal!... Cuidado!... Ele não é gente!!!... É um boto!!!... É um boto
encantado!!!... Olha o pé dele!... Olha o pé dele!... O carcanha é pra frente!...‖ Como pode
ser observado o boto aqui lembra bastante o curupira, que é considerado um demônio das
matas. Lembremos que a partir da Idade Média a iconografia do diabo sofreu grandes
transformações, do anjo belíssimo criado por Deus pouca coisa restou. A partir de então o
diabo poderia assumir qualquer forma, desde que fosse feio. Tais representações invadiram
o imaginário popular de tal modo, que a partir de então o maligno poderia estar presente
em qualquer criatura que não possuísse a estética almejada pelos olhos humanos, inclusive
em pessoas com deficiências físicas. O estético parece estar sempre associado ao benéfico,
por essa razão é que a iconografia de Jesus Cristo sempre mostra um homem de beleza
celestial e o diabo como um ser abominável. Nogueira explica que:
As representações dos inimigos desenvolveram-se numa
quase
ilimitada
variedade
de
formas
grotescas
e
fantasmagóricas, uma vez que esses seres de pesadelo
simbolizam um crime contra o Criador e, portanto, contra a
Sua Criação: a Natureza. Demônios com anatomias animais
ou semi-humanas ou deformadas: coberto de pelos ou
escamas,
com
cabeças
demasiadamente
grandes
ou
demasiadamente pequenas em relação ao corpo, dotados de
115
Alusão a música de Raul Seixas: Eu nasci há dez mil anos atrás. “E pra aquele que provar que eu to
mentindo eu tiro meu chapéu”.
338
olhos saltados[...] [...]enfim quantas outras monstruosidades
a imaginação pudesse criar (NOGUEIRA, 2002, ps.63,64).
Portanto, os calcanhares invertidos do Boto Mocbelianosão também uma marca de sua
monstruosidade e diabolismo. É interessante notar que os demônios, apesar de ter astúcia e
o poder da metamorfose, jamais conseguem esconder todas suas marcas de bestialidade. O
Boto do conto em questão, mesmo mantendo sua beleza angelical, não conseguiu esconder
seus pés disformes e o do conto de Inglês de Souza não conseguiu camuflar o buraco na
cabeça.
Podemos assim dizer que os contos trabalhados nos mostram dois botos muito
similares quanto ao poder de sedução, característica obviamente diabólica, mas que
fisicamente e na maneira de se trajar se contrapõem. O boto mocbeliano possui a beleza
angelical do anjo caído, inclusive, veste-se de branco, cor normalmente associada aquilo
que é puro e celestial. Em contrapartida o boto de Inglês de Souza é feio e baixo,
características que nos levam a pensar sobre a deformação que Lúcifer sofreu durante os
séculos para que se tornasse repugnante aos olhos da humanidade. Quanto aaltura do
monstrengo podemos especular que talvez Inglês de Souza quisesse dar ao seu boto uma
maior brasileirade, uma vez que não é uma característica dos habitantes dar região
amazônica ter uma estatura elevada, mas ao mesmo isto pode ser visto de uma maneira
bastante preconceituosa, isto é, o boto não é o monstro europeu que veio roubar e seduzir
a mulher ingênua do interior brasileiro, mas é sim produto da nossa terra. Dessa maneira
derrubasse-se aquela ideia que o diabo vem sempre do estrangeiro ou terras desconhecidas.
Finalmente uma observação deve ser feita sobre os título dos contos, o deMocbel
é bastante explícito e não deixa dúvidas do que a narrativa vai tratar A Lenda do Boto, já o de
Inglês de Souza é intitulado O Baile do Judeu, título que a princípio não revela muita coisa,
mas que durante a leitura nos mostra um anti-semitismo por parte do narrador: ―Era de
supor que ninguém acudisse ao convite do homem que havia pregado as bentas mãos e os
pés de Nosso Senhor Jesus Cristo em uma cruz‖ [...]. Supõe-se que uma criatura das trevas
não apareceria em uma festa se o local estivesse sob a proteção de Deus, mas como o povo
judeu é acusado de ter assassinado Jesus Cristo, tal local estaria à mercê de demônios, uma
vez que supostamente traíram o suposto criador de todas as todas coisas, levando seu único
filho à morte. Finalizamos esta análise nos questionando sobre os mistérios da vida e nos
perguntado até que ponto a realidade não é ficcional, e até que ponto o ficcional não é
verdadeiro. O porquê de algumas narrativas orais e escristas serem chamdasde mitos e
339
lendas e outras tão ficcionais quantos estas serem chamadas de ―verdadeiras‖, como as
históriascontadas no livro mais lido e mais estudado de todos os tempos, a Bíblia. Sendo
assim, Lúcifer , o maior vilão de todos os tempos, sai do texto bíblico e migra para a
literatura, com disfarces variados, e como argumenta este trabalho, devido as características
sombrias, o boto poderia ser um dos seus demônios.
BIBLIOGRAFIA:
COUSTÉ, Alberto. Biografia do Diabo: o diabo como sombra de Deus na história. Rio de Janeiro:
Editora Rosa dos Ventos: 1996.
KELLY, Henry Ansgar. Satã – Uma biografia. São Paulo: Editora Globo: 2008.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário. São Paulo:
Escrituras Editoras: 2001.
MOCBEL, AlbertoMoia. Luzes da Inspiração. 5ª ed. Cametá: Gráfica da Prelazia: 2009.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no Imaginário Cristão. 2ªEdição. Bauru: Editora da
Universidade do Sagrado Coração: 2002.
PAPINI, Giovanni. O Diabo. Trad. Fernando Amado. Porto Alegre: Editora Globo: s/d.
SOUZA, Herculano Marcos Inglês de. Contos Amazônicos. 3ª Reimp. São Paulo: Editora
Martin ClaretLtda: 2011.
VELOSO,Ivone dos Santos. Leliane de Cássia Gonçalves Silva. Ocleane Batista Valente.
“Mito do Boto Pirento” Uma abordagem simbólica. Trabalho de Conclusão de Curso, CametáPará: Universidade Federal do Pará: 2002.
340
FICTIONAL REALITIES X FACTUAL LIES:
THE AMAZON CROSSING SPATIAL AND TEMPORAL
BOUNDARIES
Davi Silva Gonçalves116
Resumo: De acordo com Derrida a literatura é uma instituição contra-institucional que
pode ser tanto subversiva quanto conservadora (58), enquanto que, para Foucault, o
discurso não ‗é simplesmente aquilo que traduz conflitos ou sistemas de dominação, sendo
esse discurso o próprio conflito (53). Tendo isto em mente, o objetivo desse estudo é
demonstrar como, no romance The Brothers, o desenvolvimento diaspórico e híbrido dos
personagens e, de certa forma, do próprio Milton Hatoum permitem que essa ficção seja
capaz de contradizer discursos hegemônicos acerca do progresso e desenvolvimento da
região amazônica que se provam falaciosos, apesar de persistentemente privilegiados e,
sendo assim, erroneamente considerados ―não-fictícios‖. No romance, personagens
marginalizados que não acreditam nem endossam as estórias contadas pelo imperialismo
parecem tentar propor outras possibilidades quanto ao futuro, apesar de terminarem a
narrativa completamente suprimidos pelos discursos neocolonizadores. Quando traduzido
para a língua inglesa, o potencial de questionamento contra-hegemônico do romance,
originalmente chamado Dois Irmãos, é empoderado consideravelmente já que sua zona de
impacto é ampliada incomensuravelmente; o retrato da Amazônia, logo, se aproxima do
mundo material e significante e se distancia do mundo mítico e exótico onde ela
inicialmente era concebida. A contemporaneidade é um momento de crise, e, para passar
por tais crises, mitos são inúteis, como Said argumenta, já que mitos apresentam problemas
como se estes já estivessem sido analisados e solucionados (312). Afinal de contas, como
Hatoum demonstra, a atmosfera sonhadora que sempre acompanhou aqueles que apoiaram
e apoiam a ocidentalização da Amazônia acaba chocando inevitavelmente nos cruéis mas
inerentes efeitos colaterais de tal processo.
Palavras-chave: Amazônia; Tempo; Espaço; Hatoum.
Abstract: According to Derrida ―literature is a counter-institutional institution that can be
both subversive or conservative‖ (58), while Foucault poses that ―discourse is not simply
that which translates struggles or systems of domination, but is the thing for which there is
struggle‖ (53). That taken into account, the objective of this study is to show how, in the
Brazilian novel The Brothers, Milton Hatoum‘s and his characters‘ diasporic and hybrid
identities help this fictional piece to debunk specious hegemonic discourses of progress and
development in the Amazon that have been persistently privileged and inaccurately
regarded as ―nonfictional‖. In the novel, marginalised characters who do not believe or
endorse the tales told by Imperialism endeavour to propose other possibilities of future but
end up being discredited and suppressed by the supremacy of neocolonising discourses.
116
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Língua Inglesa, Centro de Comunicação e Expressão,
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - [email protected]
341
Nevertheless, when translated into English in 2002 The Brothers‘s potential for questioning
official discourses is considerably empowered since its impact zone is immeasurably
broadened; the portrait of the Amazon thus becomes closer to the material world and
farther from a myth. Contemporaneity is a time of crises, and to overcome such crises
myths seem to be useless, as Said agues, since they represent problems ―as already analysed
and solved‖ (312). Ultimately, and as Hatoum demonstrates, the fanciful atmosphere that
has accompanied those who supported the westernisation of the Amazon inevitably
impinges upon the callous but inherent byproducts of such process.
Keywords: Amazon; Time; Space; Hatoum.
1. Introduction: Who are The Brothers?
In the beginning of The Brothers, Nael, the son of an Amerindian sold to a Lebanese
woman, already gives readers some clues about the fact that the brothers Omar and Yaqub
do not have many things in common. Besides growing up much more attached to Yaqub,
not exactly physically but through some sort of platonic esteem: ―I grew up with Yaqub‘s
photos, listening to his mother reading his letters. In one of the photos, he posed in an
Army uniform; a sword again, but this time the two-edged weapon made the reserve officer
look all the more formidable‖ (HATOUM,2000,p. 53), since this first moment the narrator
is already aware that one of the brothers must be his father, and for the reader it is clear
that he prefers the one who fits best in the hegemonic model, one that represents
everything that is admirable and respectful in a gentleman: ―For years, this image of the
dashing young man in uniform was imprinted on me. An Army officer, a future engineer
from the Polytechnic School…‖ (HATOUM, 2000, p. 53).
This crystal clear image, that here the narrator shares with the readers, is forged by
the context of that specific moment. There seems to be an important analogy between
Yaqub‘s portrait and the relations of power being reinforced in Brazilian society, he, in a
way, represents the hands of military; which also comprises the idea of future, of
improvement, of strength. Moreover, it is interesting to ponder upon his choice to become
an Engineer and not a doctor or lawyer, perhaps the writer wants us to think of Yaqub as
the embodiment of construction of a new country, as that who constructs and sets the
framework for a new country to be born.
Also, in that historical moment, most medical students would be involved in
resistance activities one way or another. Likewise, his not going to the university–where
critical thinking and theoretical reflections are ubiquitous–but to the polytechnic school
might be due to his sole intention to become a tool, to deal with material and concrete
342
issues in this mission of nation reconstruction. Yaqub does not seem to be interested in
questioning the system, he just wants to become on top of it as soon as possible.
The boastful nature of Yaqub‘s construction as a character is reinforced by this
story is told by Nael that ―one morning, in August 1949, the twins‘ birthday, Omar asked
for money and a new bicycle. […] Yaqub refused the money and the bicycle. He asked for
a gala uniform for Independence Day. It was his last year at the College, and now he was
going to parade with the others, with a sword by his side‖ (HATOUM, 2000, p. 30).
Yaqub, who is about to travel to the Lebanon, seems to be pretty attracted to the chance of
performing and exhibiting his westernised adulthood as much as possible. He is getting
ready for progress, for the future, for the great revolutions of development.
Omar, on the other hand, seems to be much more attached to the present, to the
now, and is afraid of leaving Manaus, he does not seem to see any future elsewhere. Omar
prefers to pursue happiness therein, through simple, ludicrous and pleasurable activities as
we can see on the following excerpt. While Yaqub‘s happiness depends on the
performance of his mission, on Independence day ―Omar was looking at the spectacle
from his bicycle, a slightly dopey look on his face, and a strange smile, whether of
resentment or mockery there was no way of knowing. He took no notice of the parade, or
of Independence‖ (HATOUM, 2000, p. 33). Taking ―no notice of the parade, or of
Independence‖ does not necessarily imply that Omar‘s indifference is a sign of resignation,
but perhaps one of conscious skepticism. He does not seem to be attracted to the
progressive tale as Yaqub seems to be.
Incorporating the regime, Yaqub‘s image becomes one of primary importance for
him: ―He [Yaqub] was already smart in mufti, so you can just imagine how he looked in his
white uniform with gold buttons, his epaulettes decorated with stars, his leather belt with a
silver buckle, his spats and white gloves, and the shining sword he gripped in front of the
mirror in the drawing room‖ (HATOUM, 2000, p. 31). A metaphorical connection,
conscious or not, between the portrait of Yaqub and the portrait of Brazil seems to be
gradually articulated by Nael‘s observations.
Yaqub sustains his image as an ideological icon, admiring his reflection as
representative of a great and shinny future, to which he is willing to fight for–even if that
means functioning as a hammer in the hands of the regime. Just like the future of the
country, Yaqub‘s own image, covered by beautiful and glowing details, is nothing but a
façade. The surface might seem pure and innocent, but the ―shining sword‖ that
accompanies the package makes us remember that all that exuberance does only thrive for
343
it is implemented through violent means. Moreover, in the final part of this quotation we
can see a clear reference by Nael interconnecting Brazil and Yaqub:
The parade in his gala uniform had been Yaqub‘s farewell: a little show
put on for the family and the city. In the Salesian College they had a
ceremony in his honour. He got two medals and ten minutes of
speeches: he was also praised by the Latinists and mathematicians. The
faculty knew that their ex-pupil had a glorious future ahead of him; at
that time, both Yaqub and Brazil itself seemed to have a promising
future (HATOUM, 2000, p. 32).
Besides foreshadowing Yaqub‘s future hideous actions, since the ―glorious future
ahead of him‖ is one that will be achieved through the implacable destruction of his
parents and siblings lives, this quotation shows us how, although being twins, the brothers
represent pretty distinct realms of Brazilian historical layers. And if ―both Yaqub and Brazil
itself seemed to have a promising future‖ we can think about this idea of ―future‖ as
problematic, at least, if you will. At this moment both Yaqub and Brazil are in the process
of ―development‖, and I would say there is a high level of blind faith endorsing both their
paths. I use the word faith because faith has no basis on evidence, and this has been exactly
the case if one stops to think about underdeveloped countries in Latin America, whose
processes of development are much more intricate than is generally perceived.
According to Galeano (1997, p. 245), ―Latin American underdevelopment is not a
stage in the road to development, but the counterpart of development elsewhere; the
region ‗progresses‘ without freeing itself from a structure of ‗backwardness‘‖. He sees our
victories as symbolic, and ―the symbols of prosperity are symbols of dependence. Modern
technology is received as railroads were received in the past century, at the service of
foreign interests which model and remodel the colonial status of these countries‖
(GALEANO, 1997, p. 245). The isolated Amazon might be backward but it is, at the same
time, more independent than the integrated Amazon. Yaqub is looking for a future dictated
by others, where people, no matter how many possessions or accumulated wealth they
have, have no freedom. Just like a wax statue when set under the sun, the illusion of
freedom offered by capitalism, by neoliberalism, by this future so eagerly expected, melts as
soon as it is exposed.
The layers of development depend on an ongoing wave of a self-destructive circle
game that has no place to stop, when everything gets melted a new statue is built. Likewise,
western progress has not only decimated values which had been shared by Amazonians
before its chaotic arrival, but also created brand-new symbols of modernity, things that
344
stand for principles which are far more abstract than their materialistic representations.
From his childhood to his adulthood, Yaqub will work hard to share those values. His
intention seems to be of killing his past, he wants to be identifiable as closer to the future,
to fit in this new society by destroying any debris of his Amazonian, backward, historical
background.
Controversially, in order to become fixed in the future he has to be malleable in his
present, getting rid of his past in order to become adaptable enough to become a statue of
development, he wants to be forged by the fires of progress) through the help of such
values. In order to be forged by the fires of progress, Yaqub will ultimately be getting
married, moving to São Paulo, and becoming a ―successful‖ professional–an extraordinary
neoliberal capitalist and, consequently, if you will, an awful human being. If the narrator
finds it difficult to define the ―strange smile‖ in Omar‘s face, if his values are hard to be
described as representing this or that, Yaqub‘s expression seems to represent almost
everything about him.
Perhaps ―represent‖ is not the most plausible word here, since Yaqub might indeed
resemble his–Western–values but actually rarely represents such values and/or rarely is
sufficiently represented by them. Such resemblance is dual, reflexive, and, unlike
representation, symmetric. Yaqub is like a river reflecting the image of progress, a
fluctuating and uneven mirror, its gruesome lineament; and while he might endeavour to
represent progress, progress‘s agenda does not include any worry about representing
people like him.
In the words of Nelson Goodman (1976, p. 04) ―B is as much like A as A is like B,
but while a painting may represent the Duke of Wellington, the Duke doesn‘t represent the
painting‖. This supposed dichotomist reflection is generally taken for granted; Yaqub is
eluded by a system which buys his loyalty with symbols such as ―two medals and ten
minutes of speeches‖, manipulating his principles in return, and increasing the profundity
of the growing abyss separating Omar and himself. Are these symbols the result of his
achievements? Or are his achievements the result of these symbols?
2. Omar‟s Deviation from his (pre)established path
If Yaqub is the liquid reflection of development, gradually surfacing from under the
river Negro to become more intelligible–closer to the concrete and objective ideals of
Western thinking – Omar seems to be its monstrous counter-reflection, plunging into the
Negro and unintelligibly deviating from the main course of the stream. This does not mean
345
at all that, while Yaqub‘s character is strongly influenced by development, Omar is
unaffected by it. He, like Yaqub, is also a consequence of progress, even though an
unexpected one. In the medicalisation of the Amazon, while its disease is invented by the
west, people like Yaqub are the medicine, and the ones like Omar the collateral effect.
But from this beginning doesn‘t it already look like provocation two twins – two
―identical‖ individuals – seemingly going to opposite directions? Not at all; the novel is just
showing what Goodman (1976, p. 04) has posed: ―a man is not normally a representation
of another man, even his twin brother. Plainly, resemblance in any degree is no sufficient
condition for representation […]. A picture that represents–like a passage that describes–an
object refers to and more particularly, denotes it‖. It is, indeed, through their difference
that Yaqub and Omar are denoted and, ultimately, bounded. Their resemblance, even
though insufficient ―condition for representation‖, seems to be, moreover, necessary for
Hatoum to problematise the outer shell of development, for the reader to understand that
what seems to be does not necessarily need to be.
Omar never leaves Manaus, never gets married or finds a steady job, never adapts
in the system. What I mean by his unfitness in the ―system‖ can be illustrated by Omar‘s
girlfriends, for instance, who are not very well seen by his family, since they are:
‗nameless‘ women, women of whom nobody in the neighbourhood
could say: she‘s the daughter, granddaughter, or niece of so-and-so. They
were unknown women, who never went to the fashionable beauty
salons, much less to the Green Salon in the Ideal Club; he courted girls
who had never left Manaus, never gone to Rio de Janeiro (HATOUM,
2000, p 93).
Yaqub‘s obsessive worry with the performative appropriateness of his image does
not seem to be shared by his brother. Omar enjoys going against the ―natural order‖ of
events, he does not worry about not fitting in how things are supposed to be. His
behaviour when looking for girlfriends who deviate from the patterns manufactured by
hegemony perhaps explain his behaviour when it goes to development. He does not care
about the status of his girlfriends just like he does not care about the status of a
―developed‖ Amazon.
Later on, when Omar leaves home to live with one of his girlfriends–a project that
does not last long due to his mother‘s interference–the readers can see one more time both
his father and the narrator‘s uneasiness due to Omar‘s lack of attachment to contemporary
worries and values. The problem is that Omar does not want to be accepted on the
grounds of normativity, he does not want any professional or educational prospects, he is
346
not willing to be westernised. When Yaqub offers money for his family to become more
integrated in a changing society Nael observes that ―Omar was contemptuous of the
renovation of the house and the shop. He didn‘t allow them to paint his room, and
deprived himself of any signs of material comfort coming from his brother‖ (HATOUM,
2000, pp. 125-126).
Omar‘s obstinateness and unyielding reaction to the modern and postmodern foxy
mirages devised by Imperialism is pivotal for him not to become the slave of a future that
never comes. Such a hope in the future, that seems to be misleading, if you will, appears to
deceive those who surround him, but does not prevent him from positioning and
historicising a more meaningful and evocative present. His living status is an affirmation of
a more believable possibility of existing in the future and in the past, for it is attained to
personal convictions derived from experience rather than from the hegemonic discourses.
In fact, and just like Omar does, it is by acknowledging the present that one might
be able to dream about a winsome but reasonable future; according to Colás (1994, p. 08)
―only by insisting on doing that which contemporary culture prohibits–namely, thinking
the present historically–and only by summoning the return of a seemingly eliminated space,
can the concept of a utopian future be kept alive‖. The Amazon is one of these ―seemingly
eliminated space(s)‖, and it is only by allowing its survival–not as a source of profit but of
meaning–that what now is defined by hegemonic culture as a ―utopian future‖ might have
any chance of thriving. What we see as utopia is, in the end, what the system wants us to
see as a utopia, for hegemony is interested in making us give up; it depends on our
resignation to endure.
3. Final Remarks: Liquefying time, fragmenting identities
Worried about money, materialisms, physicalities, numbers, and the future, but
disregarding more subjective facts of the present, Yaqub is infatuated with the idea of
progress; he does not look around, he does not see what Nael sees–and slowly starts to
ponder upon–when he walks through the outskirts of Manaus. The boundaries separating
the centre of the Amazonian capital and its outskirts as observed by Nael can be thought of
as an analogy for the centre of progress–developed countries–and its margins–developing
ones. Although the hegemonic view on the matter of development emphasise only its
assets whilst it ignores its drawbacks, the developed centre needs the underdeveloped
margins such as the centre o Manaus needs its outskirts to sustain itself; that is, one cannot
exist without the maintenance of the other.
347
Moreover, if people like Yaqub can decide whether or not to look at what
surrounds the centre of the city and the assets of progress, people like Nael have no choice
whatsoever: ―He‘d [Halim] taken me to a small bar at the very end of the Floating City.
There we could see the shanties of the Educandos, and the huge creek separating this
amphibious neighbourhood from the centre of Manaus. It was the busy time of day‖
(HATOUM, 2000, p. 114). The ―amphibious existence‖ of these people that Nael observes
can be interpreted as a metaphor for the postmodern and postcolonial existence of the
marginalised Amazonians.
Amphibians are not defined nor restricted by the water as they are not by the land.
They are not going from one place to the other but, as amphibians, they are defined by
their gooey transitory nature per se, never belonging anywhere. We can think of this in
almost Darwinian terms: both the amphibians and the margin of the Amazon are deemed
as in the process of ―evolving‖, ―adapting‖, but they are still far from the homestretch; and,
since for capitalism it is not the survival of the fittest but the survival of the richest that
defines our society, I dare to say they will never be able at all:
The labyrinth of houses built on wooden posts was humming: a swarm
of canoes wound their way between the floating houses as the
inhabitants returned from work, walking in single file along the narrow
planks that allow people to circulate in this labyrinth. The more daring
carried a large flagon, a child, or sacks of manioc-flour; they had to be
acrobats not to fall into the Negro. From time to time, one would
disappear into the darkness of the river and turn into a news item
(HATOUM, 2000, p.115).
The fact that these people – whose lives are here watched and reflected upon by
both Nael and Halim – live in ―houses built on wooden posts‖ on the river can be
interpreted as an allegory; they have lost their ground and are now on a liquid surface,
situation that emphasises their non-spatial and non-temporal condition. One could say that
there is a lack of ―chronological sense‖ in the water, such as the chronological sense of the
lives of the marginalised Amazonians observed by the narrator is also puzzling.
That is, the water is always the same but it is also always different; these new
―floors‖ for the houses of Amazonians are almost never-ending whilst it is also everchanging. The chronological instability of these peoples‘ floor is just like the chronological
instability of their past, present, and future, which seem to be interwoven in a hybrid space
and time and not in impermeable closed boxes as we are generally made believe. Their
liquid floor is a continuation of their fluid selves, their identity is not going through a
transition; their identity is transition itself.
348
REFERÊNCIAS:
COLÁS, S. Postmodernity in Latin America: The Argentine Paradigm. Durham: Duke
UP, 1994.
DERRIDA, J. This Strange Institution Called Literature. In. _____. Acts of Literature.
Routledge: New York, 1992.
FOUCAULT, M. The Order of Discourse. In. Young, R. Untying the Text: A PostStructuralist Reader. London: Routledge & Kegan Paul, 1981. (49-78)
GALEANO, E. Open Veins of Latin America. Trad. Cedric Belfrage. New York:
Monthly Review Press, 1997.
GOODMAN, N. Languages of Art. Indianapolis: Hackett, 1976
HATOUM, M. The Brothers. Trad. John Gledson. Bloomsbury Publishing:
2002.
349
FAUS(ELIO)TINO: AS CONFLUÊNCIAS ENTRE ELIOT E FAUSTINO
Esp. Dayana Crystina Barbosa de Almeida117
Prof. ª Dr. ª Izabela Guimarães Guerra Leal118
RESUMO:
Mário Faustino, além de poeta, também foi tradutor, exercendo essa atividade em
diferentes momentos de sua carreira e, por meio de suas traduções, dialogou com diversos
autores, tornando-os parte de sua obra. Faustino também foi colaborador do suplemento
literário Arte-Literatura, do jornal A Folha do Norte, e entre alguns poemas e contos
traduziu ―Death by water‖, de T. S. Eliot. Neste mesmo período, Faustino fez parte do
―Grupo dos Novos‖, alcunha dada à geração literária de 1940 de Belém. Os membros deste
grupo, assim como autores e críticos já conhecidos pelo público, mas, principalmente da
geração de jovens poetas, ficcionistas e críticos estreantes no mundo literário, entre os
quais se destacam as referências nas áreas de filosofia, poesia e crítica literária, Benedito
Nunes e Mário Faustino respectivamente, utilizaram o Arte-Literatura como meio de
divulgação da produção literária e crítica. Assim, a partir da comparação entres os poemas
―Nam Sibyllam‖, publicado no livro de Faustino ―O homem e sua hora‖, e ―Death by water‖,
traduzido por Faustino no Arte-Literatura, esta comunicação se propõe a mostrar, levandose em consideração a teoria da intertextualidade de Kristeva, como Faustino deu origem a
um novo poema a partir da obra de Eliot.
PALAVRAS-CHAVE: Mário Faustino; T. S. Eliot; Tradução.
ABSTRACT:
Mario Faustino, besides being a poet, was also a translator, exercising this profession in
different moments of his career and, through his translations, he dialogued with several
authors, making them part of his work. Faustino was also a collaborator at the Literary
Supplement, ―Arte-Literatura‖, in the newspaper ―Folha do Norte‖, and among some poems
and short stories, he also translated ―Death by water‖, from T. S. Eliot. In this same period,
Faustino belongs to ―Grupo dos Novos‖, a sobriquet given to literary generation of 1940 from
Belém of Pará. Members of this group, as well as the authors and critics already known to
the public, but mainly the young generation poets, novelists and new literary critics. So,
among which stand out the references in the areas of philosophy, poetry and literary
criticism, Benedito Nunes and Mario Faustino, respectively, used the Art-Literature as a
means of dissemination of literary production and criticism. Thus, based on the
comparison between the poems ―Nam Sibyllam‖ and ―Death by water‖, this article seeks
to demonstrate how Faustino create a new poem from Eliot‘s work, taking into account
the notion of intertextuality of Kristeva.
KEYWORDS: Mário Faustino; T. S. Eliot; Translation.
Mestranda de Letras - Estudos Literários da UFPA. Bolsista pela Fapespa. Integrante do projeto de
pesquisa ―Poetas em tradução no jornal A Folha do Norte‖. Especialista em Tradutor e Intérprete pela FIBRA.
Graduada em Letras-Inglês pela UFPA. E-mail: [email protected]
118
Professora de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Literatura
Portuguesa pela PUC-Rio. Doutorado em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Pós-Doutorado na área de
Estudos da Tradução. Desenvolve um projeto de pesquisa intitulado ―Poetas em tradução no jornal A Folha
do Norte”. E-mail: [email protected]
117
350
1. INTRODUÇÃO
O suplemento literário intitulado Arte-Literatura, do jornal paraense A folha do
Norte, foi o lugar em que o poeta Mário Faustino iniciou sua carreira, publicando seus
primeiros poemas, contos e traduções. Faustino, juntamente com outros poetas e escritores
como Ruy Guilherme Barata, Paulo Plínio Abreu, Carlos Drummond, Manuel Bandeira,
Cecília Meireles e Aurélio Buarque de Holanda, traduziu inúmeros autores estrangeiros no
referido suplemento entre os anos 1946 e 1951.
Faustino deu continuidade ao seu ofício de tradutor quando dirigiu, de 1956 a 1959,
o suplemento literário Poesia-Experiência, do Jornal do Brasil. No livro ―Poesia Completa
Poesia Traduzida‖, Benedito Nunes tentou reunir todas as traduções feitas por Mário
Faustino, e, embora a lista seja extensa – há poemas traduzidos de Horácio, Shakespeare,
Goethe, Höelderlin, Pound, cummings, Brecht e Artaud – a mesma está incompleta, pois
não constam, por exemplo, traduções de poemas como ―Transfiguração‖ e ―Antípodas à
vista‖, do poeta norte-americano Robert Stock, publicadas somente no ano de 2012, em
uma plaqueta intitulada ―Meretriz imaginária‖119, e também não foram incluídas as
traduções feitas no Arte-Literatura, à exceção de ―Death by water‖. A inclusão do poema
traduzido de Eliot neste livro, ao invés de outros, pode ter uma explicação inicial na nota
escrita pelo próprio Benedito Nunes:
Os poemas traduzidos, alguns datando da adolescência do autor,
outros procedentes de ‗Poesia-Experiência‘, pertencem ao seu
universo poético tanto quanto a crítica de poesia a que se dedicou,
como organizador dessa Página do Suplemento Dominical do
‗Jornal do Brasil‘. (NUNES, 1985, p. 10).
Podemos inferir que a poesia de Faustino resulta da soma de poetas que ele leu, em
diferentes momentos, tais como: Mallarmé, Yeats, Rilke, cummings, Joyce e Pound, deste
último se utilizou do tema ―repetir para aprender, criar para renovar‖. Já T. S. Eliot, cujas
ideias se refletiram na crítica de Faustino, também se fez presente no poema ―Nam
Sibyllam‖. Assim, este artigo se propõe a investigar a presença de Eliot na obra de Faustino
não como mera ―influência‖, mas sim como uma relação de intertextualidade, de acordo
com Kristeva (1974).
119
STOCK, Robert. A meretriz imaginária. Belém: Edição do Escriba, 2012.
351
2. LITERATURA NACIONAL E A ESTRANGEIRA: ROMPIMENTO DE
HIERARQUIAS
Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é
absorção e transformação de um outro texto; ele é uma escrituraréplica (função e negação) de outro (dos outros) texto(s). (Kristeva,
1974. p.62)
Julia Kristeva (1974), a cunhadora do termo intertextualidade, esclarece que o texto
literário nunca é algo isolado, e sim um cruzamento de planos textuais, de conversas entre
diferentes escrituras que apontam para o próprio escritor, o destinatário e o contexto
cultural atual ou anterior (Kristeva, 1974, p.62). Contudo, o estudo da intertextualidade
objetiva o exame do processo em que ocorre a produção de um novo texto, os processos
de rapto, absorção e integração de elementos alheios na criação da obra nova, e não se
detém na ideia da existência de influência ou mesmo da relação entre modelo e cópia.
Silviano Santiago (1978), no ensaio ―O entre-lugar do discurso latino-americano‖,
sugere uma discussão relacionada às noções e implicações dos conceitos de modelo e de
cópia quando se analisa a relação entre as literaturas latino-americanas e as literaturas
europeias, por exemplo, pois não está mais em questão o uso das noções de original e
cópia, ou de fonte e influência, o que estabeleceria a priori uma hierarquização das obras
literárias, sendo os modelos europeus considerados superiores às imitações que surgem na
América latina. As noções de modelo e cópia põe em evidência um conceito de valor que é
determinado por condições históricas. Consequentemente, vem à tona uma ideia de
dependência das culturas das ex-colônias em relação às ex-metrópoles e os impasses que se
originam a partir daí são irremediáveis.
Para escapar desse determinismo, Silviano Santiago já chamara a atenção para o
processo de ―interiorização do exterior‖, imprescindível à formação cultural brasileira,
relendo de forma crítica a Poesia Pau Brasil, de Oswald de Andrade. Silviano sugere que a
antropofagia de Oswald já antecipava questões muito atuais ao fazer uma nova leitura da
dinâmica
desempenhada
pelo
jogo
de
forças
entre
interior/exterior,
colonizado/colonizador. Santiago esquematiza a questão do seguinte modo:
Para o Brasil poder se exteriorizar com dignidade é preciso que
acate antes o exterior em toda a sua concretude. A consciência
nacional estará menos no conhecimento do seu interior e no
complexo processo de interiorização do que lhe é exterior, isto é,
do que lhe é estrangeiro. (Santiago, 2006, p.135).
352
Souza (2007, p.51), em ―O discurso crítico brasileiro‖, acrescenta, mediante o
confronto entre o já citado artigo de Santiago (1982) e o de Haroldo de Campos ―Da razão
antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira‖ (1983), que ambos os textos
retomam a antropofagia como ―conceito operatório‖, em razão de se mostrar ainda eficaz
―no processo de desconstrução das culturas estrangeiras‖. Desse modo, a literatura
nacional é pensada em termos de igualdade em relação à estrangeira, por meio da certeza
no aspecto positivo da transculturação.
3. O LEGADO DE ELIOT NA OBRA FAUSTIANA
Boaventura (2009, p. 33), a organizadora de obras de Faustino como ―Artesanatos
de Poesia‖ (2004), ―De Anchieta aos Concretos‖ (2003) e ―O homem e sua hora‖ (2009),
em seu ensaio ―Um militante da poesia‖, nos diz que Mário Faustino objetivava manter
distância, no mínimo do ponto de vista teórico, ―da aparente facilidade estético-formal
modernista e nada mais sintomático do que o encantamento por modelos de poesia como a
de Yeats, Eliot etc.‖. Benedito Nunes (1985) complementa dizendo que Faustino obteve
lenta assimilação dos melhores padrões da linguagem poética das literaturas brasileira e
portuguesa, pelas poesias francesa e alemã e pelos poetas da língua inglesa, dentre os quais
destaca T. S. Eliot, por tê-lo influenciado de modo positivo, mas de quem ele se afastou
rapidamente.
No entanto, Benedito Nunes (1977) afirma:
É possível identificar diálogos entre ‗O homem e sua hora‘ e
‗Invenção de Orfeu‘, como, por exemplo, as diversas citações nas
duas línguas clássicas ou em modernas línguas estrangeiras,
localizadas ao longo de ambos, recurso destacado por Faustino no
primeiro número da página ‗Poesia-experiência‘, pelo uso que dele
fez Eliot, para quem este intercâmbio de línguas constituía um
fator de revitalização da literatura. (Nunes, 1977, p. 278).
De acordo com a citação de Nunes, ocorreu uma confluência entre Mário Faustino
e Eliot por meio do uso de citações em línguas clássicas, bem como em línguas estrangeiras
modernas em busca da revitalização da literatura no poema ―O homem e sua hora‖ e,
podemos acrescentar, no poema ―Nam Sibyllam120‖, a partir do qual surgiu, ainda em
Belém, a confluência entre Mário Faustino e T. S. Eliot, quando Faustino foi colaborador
do suplemento literário Arte-Literatura, do jornal A Folha do Norte, e traduziu ―Death by
120
―Nam Sibyllam‖ é um dos poemas de ―Sete sonetos de amor‖, a segunda parte do livro ―O homem
e sua hora‖ (1955).
353
water‖. Nesta época, de acordo com Marinilce Coelho (2003), em sua dissertação
―Memórias literárias de Belém do Pará: o Grupo dos Novos, 1946-1952‖, Faustino fez
parte do ―Grupo dos Novos‖, alcunha dada à geração literária de 1940 de Belém. Os
membros deste grupo, assim como autores e críticos já conhecidos pelo público, mas,
principalmente da geração de jovens poetas, ficcionistas e críticos estreantes no mundo
literário, entre os quais se destacam as referências nas áreas de filosofia, poesia e crítica
literária, Benedito Nunes e Mário Faustino respectivamente, utilizaram o Arte-Literatura
como meio de divulgação da produção literária e crítica. Assim, esse suplemento exerceu
importante papel em relação à formação de outros literatos e críticos, devido ao conteúdo
que divulgava nessas páginas (Coelho, 2003, p.12).
Em suma, esse suplemento reuniu uma nova geração da literatura brasileira, que
anunciou um pensamento aberto em relação ao tempo presente e às gerações literárias
anteriores. Assim, passemos à tradução de Faustino do poema de Eliot:
DEATH BY WATER121
Poema de T. S. ELIOT
Tradução de MÁRIO FAUSTINO
Phlebas the Phoenician, a fortnight dead,
Forgot the cry of gulls, and the deep sea
swell
And the profit and loss.
Phlebas, o fenício, morto há quinze dias,
Esqueceu-se do grito das gaivotas e da profunda
ondulação do mar
E dos lucros e perdas.
Uma corrente submarina
Picou-lhe os ossos, murmurando. E subindo e
descendo
Ele passou o tempo da velhice e da juventude
E penetrou na voragem.
A current under sea
Picked his bones in whispers.
As he rose and fell
He passed the stages of his age and youth
Entering the whirlpool.
Ó vós todos, judeus ou gentios,
Gentile or Jew
Vós que moveis o leme e olhais a barlavento
O you who turn the wheel and look to Lembrai-vos de Phlebas, que foi um dia belo e alto
windward,
como vós.
Consider Phlebas, who was once handsome
and tall as you
(De ―The Waste Land‖)
T. S. Eliot, dentre os poetas do século XX, é geralmente lembrado como um dos
que teve mais amplo alcance sobre os contemporâneos. Embora não tenha ocorrido ampla
divulgação da tradução feita por Faustino, ―Death by water‖ destaca-se como uma das
primeiras traduções de Eliot no Brasil, ocorrida em 1950. O poema completo, ―The waste
land‖, só obteve uma tradução na íntegra em 1956, intitulado ―A Terra Inútil‖ feita por
Transcrição do Poema ―Death by Water‖ e de sua tradução no Suplemento Arte Literatura de A
Folha do Norte de 22 de janeiro de 1950, n. 144.
121
354
Paulo Mendes Campos, o qual também foi, na década de 50, colaborador do suplemento
Arte-Literatura.
4. DA TRADUÇÃO À INTERTEXTUALIDADE ENTRE ELIOT E
FAUSTINO
O poema ―Nam Sibyllam‖, foi publicado por Faustino no livro ―O homem e sua
hora‖ cinco anos após a tradução que ele mesmo fez de ―Death by water‖ no suplemento
Arte-Literatura. Podemos perceber a relação de intertextualidade entre Faustino e Eliot,
pois o título do poema, ―Nam Sibyllam‖, é o começo da epígrafe apresentada em ―The Waste
Land‖, que Eliot havia retirado do capítulo XLVIII do livro Satiricon, de Petrônio: ―Nam
Sibyllam quidem Cumis ego ipse oculis meis vidi in ampulla pendere, et cum illi pueri dicerent: Σίβυλλα τί
θέλεις; respondebat illa: ἀποθανεῖν θέλω‖122
Para Bender (2008), em sua dissertação de mestrado ―O homem e seu tempo na
poesia de Mário Faustino‖, em ―Nam Sibyllam‖ são fortemente notados os traços típicos do
lirismo moderno como a incorporação de elementos diversos e a ambiguidade de sentidos.
Podemos observar abaixo o poema ―Nam Sibyllam‖:
Lá onde um velho corpo desfraldava
As trêmulas imagens de seus anos;
Onde imaturo corpo condenava
Ao canibal solar seus tenros anos;
Lá onde em cada corpo vi gravadas
Lápides eloquentes de um passado
Ou de um futuro arguido pelos anos;
Lá cândidos leões alvijubados
Às brisas temporais se espedaçavam
Contra as salsas areias sibilantes;
Lá vi o pó do espaço me enrolando
Em turbilhões de peixes e presságios —
Pois na orla do mundo as delatantes
Sombras marinhas, vagas, me apontavam.
Bender (2008, p.109) acrescenta que as imagens diretas, presentes no poema, são
excedidas por um amplo ―afluxo de metáforas‖, que pode ser observado no quarto verso
―Ao canibal solar seus tenros anos‖. Este verso mostra que o tempo é visto como um
De acordo com Ivan Junqueira, a frase tem a seguinte tradução: ―Pois com meus próprios olhos vi
em Cuma a Sibila, suspensa dentro de uma ampola, e quando as crianças lhe diziam: ‗Sibila, o que queres?‘; ela
respondia: ‗Quero morrer‘‖. (ELIOT, T. S. Poesia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 99).
122
355
―canibal solar‖ que se alimenta dos ―tenros anos‖, relembrando o mito de Cronos, o pai de
Zeus, o qual receava que a profecia de que ele fosse tirado do poder por um de seus filhos
se concretizasse, por isso devorava os próprios filhos, em uma analogia à inevitabilidade do
tempo. Abaixo, os dois poemas:
Death by Water
Nam Sibyllam
T. S. Eliot
Mário Faustino
Phlebas the Phoenician, a fortnight dead,
Forgot the cry of gulls, and the deep sea swell
And the profit and loss.
Lá onde um velho corpo desfraldava
As trêmulas imagens de seus anos;
Onde imaturo corpo condenava
Ao canibal solar seus tenros anos;
A current under sea
Lá onde em cada corpo vi gravadas
Picked his bones in whispers.
Lápides eloquentes de um passado
As he rose and fell
Ou de um futuro arguido pelos anos;
He passed the stages of his age and youth
Lá cândidos leões alvijubados
Entering the whirlpool.
Às brisas temporais se espedaçavam
Contra as salsas areias sibilantes;
Gentile or Jew
Lá vi o pó do espaço me enrolando
O you who turn the wheel and look to windward,
Em turbilhões de peixes e presságios
Consider Phlebas, who was once handsome and tall —
as you
Pois na orla do mundo as delatantes
Sombras marinhas, vagas, me
apontavam.
Podemos então fazer uma comparação entre ―Nam Sibyllam‖ e o poema ―Death by
Water‖, iniciando-a com o estabelecimento de uma cadeia metafórica na confluência entre
Eliot, em ―Death by water‖, e Faustino, em ―Nam Sibyllam‖, pois as similaridades entre os
poemas inicia com semelhanças de cunho semântico:
Eliot
Sibyllam
a fortnight
dead
Swell
Picked
age and youth
Whirlpool
who was once
Faustino
Sibilante
imaturo
corpo
Vaga
Desfraldava
tenros anos
Turbilhões
um passado
E também, em ambos os poemas encontramos semelhanças de cunho imagístico
que fazem com que surja uma estreita relação entre eles. O conjunto de imagens
356
encontrados em ―Death by Water‖ são: um naufrágio, morte por afogamento, a incitação o
esquecimento, o mar, a inexorabilidade do tempo, a transitoriedade da vida, o vazio e um
presságio. O naufrágio faz parte de ―Death by Water‖, pois ele é mencionado nas outras
seções de ―The Waste Land‖ e, de acordo com Cechinel (2012, p.115), há uma importante
imagem de um naufrágio, inspirado na peça ―A Tempestade‖ de Shakespeare, que se faz
presente na IV seção: ―A current under sea / Picked his bones in whispers. / As he rose and fell /
He passed the stages of his age and youth / Entering the whirlpool.‖. Em ―Nam Sibyllam‖, o
naufrágio não é tão explícito, mas pode ser inferido em razão da morte no mar, e que
provavelmente ocorreu por afogamento: ―Lá onde um velho corpo desfraldava‖. E em
―Death by water‖, essa morte do personagem, no caso Phlebas, é descrita logo no começo
do poema ―Phlebas the Phoenician, a fortnight dead‖, porém a causa da morte por afogamento
só é descrita na segunda estrofe: ―A current under sea / Picked his bones in whispers.‖
A imagem do esquecimento é encontrada logo no começo do poema ―Forgot the cry
of gulls, and the deep sea swell / And the profit and loss.‖, pois com a morte todos os valores
mundanos se desfazem, ou seja, ocorre o apagamento dos valores relacionados à vida. O
personagem de ―Nam Sibyllam‖ passa pelo mesmo processo ―Lá onde em cada corpo vi
gravadas / Lápides eloquentes de um passado / Ou de um futuro arguido pelos anos‖, pois
as memórias dele não lhe pertencem mais, ele não possui nem passado e muito menos
futuro, nada mais é importante.
O mar é uma das imagens mais sugestivas, pois desempenha o papel de um cenário
onde se desenrola o poema, e também pelo mar representar força e imperecibilidade. No
poema de Eliot, na segunda estrofe ―A current under sea / Picked his bones in whispers.‖,
descreve o corpo de Phlebas é arrastado por uma corrente marinha, que, de tão forte,
picou-lhe ou roeu-lhe os ossos em surdina, ato que nos leva a outra imagem, a
inexorabilidade do tempo na vida dos indivíduos, porque o mar é implacável, a ponto de
destruir um corpo por completo: ―Lá cândidos leões alvijubados / Às brisas temporais se
espedaçavam / Contra as salsas areias sibilantes‖, como é descrito por Faustino em seu
poema. E ainda, em Eliot, também na segunda estrofe ―As he rose and fell / He passed the
stages of his age and youth / Entering the whirlpool.‖, podemos encontrar a imagem do vazio, pois
enquanto o corpo de Phlebas emergia e afundava, ele relembrava de momentos de sua
velhice e juventude até ser sucumbido por um redemoinho e sumir para sempre.
Um vazio similar é encontrado em Faustino, pois o personagem de seu poema diz:
―Lá vi o pó do espaço me enrolando / Em turbilhões de peixes e presságios‖, então este
personagem, assim como Phlebas, também desaparece entre pó de areia e turbilhões de
357
criaturas marinhas e presságios, justamente a última imagem do poema: ―Pois na orla do
mundo as delatantes / Sombras marinhas, vagas, me apontavam‖. Estes dois últimos
trechos de ―Nam Sibyllam‖ são comentados por Benedito Nunes (1986, p.26), que afirma
que há uma ambiguidade nos mesmos em razão da sinuosidade da palavra vaga, que tanto
pode ser um substantivo que significa onda, quanto pode ser um adjetivo que significa algo
indefinido ou sem precisão. Assim este vocábulo reforça a nota apocalíptica da
agressividade com a qual o tempo se apodera dos corpos e afirma o sentido dominante e
fascinante do poema.
Em ―Death by water‖ a imagem do presságio também se faz presente ao final do
poema, pois o narrador do poema diz ―Gentile or Jew / O you who turn the wheel and look to
windward, / Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you‖, assim, tal fala se assemelha
a um presságio, um alerta para aqueles que giram o leme: aqueles que se creem responsáveis
por suas próprias decisões e donos do próprio destino, que se lembrem de Phlebas, que um
dia já foi belo e alto, mas agora é apenas um nada dentro do mar.
Como podemos perceber, na confluência entre Mário Faustino e T. S. Eliot ocorreu
um processo de apropriação por parte de Faustino com relação a Eliot, mas este fato não
inferioriza o trabalho de Faustino, pelo contrário, a assimilação feita por ele deu origem a
um novo poema, que é belo em decorrência de uma ―modulação rítmica das mais perfeitas
na poesia faustiniana‖ (Albeniza Chaves, 1986, p.104). De acordo com Kristeva (1974),
uma obra literária, sob a ótica da intertextualidade, não é simplesmente um resultado da
escrita de um único autor, é um nascimento decorrente do seu relacionamento com outros
textos e estruturas da própria linguagem. Assim, Faustino recorreu a uma fonte que foi
necessária para que ele pudesse usá-la e transformá-la criativamente, indo muito além da
mera noção de influência.
5. REFERÊNCIAS
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(Mestrado em Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso-africanas) - Universidade Federal
do Rio Grande do Sul – Porto Alegre, 2008.
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Companhia das Letras, 2009
CECHINEL, A. A dramaticidade da poesia não dramática de T. S. Eliot: The waste land e outras
observações. Itinerários, Araraquara, n.34, p.109-121, Jan./June, 2012.
CHAVES, Albeniza. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Belém: Universidade Federal
do Pará, 1986. p. 104.
358
COELHO, Marinilce Oliveira. Memórias literárias de Belém do Pará: o Grupo dos Novos,
1946-1952/. Campinas, SP: [s.n.], 2003
ELIOT, T. S. Death by Water e sua tradução. In: Suplemento Arte Literatura de A Folha do
Norte. De 22 de janeiro de 1950, n. 144.
KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
NUNES, Benedito. A obra poética e crítica de Mário Faustino. Belém: CEJUP, 1986, p. 26.
NUNES, Benedito. A poesia do meu amigo Mário. In: BOAVENTURA, Maria Eugênia
(Org.); FAUSTINO, Mário. O Homem e sua Hora e Outros Poemas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
NUNES, Benedito (Org.). Nota sobre esta edição. In: FAUSTINO, Mário. Poesia Completa
Poesia Traduzida. São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 10.
NUNES, Benedito (Org.). Poesia-experiência. In: FAUSTINO, Mário. Poesia-experiência.
São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 278
SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos
trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
SOUZA, Eneida Maria de. O discurso crítico brasileiro. In: Crítica Cult. Belo Horizonte:
UFMG, 2002.
359
A VOZ DE UM VAQUEIRO
EM MEMÓRIAS DO MARAJÓ
Délcia Pereira Pombo123
Orientadora: Profª. Dra. Josebel Akel Fares124
Resumo: Com base nos conceitos de cultura, memória, oralidade e educação, este artigo
busca compreender os processos de construção identitária do vaqueiro marajoara e
contribuir para estimular a reflexão sobre os aspectos ligados aos seus saberes, assim como
o reconhecimento social dessa profissão. Para tanto, utilizo as trajetórias de vida como
procedimento metodológico, pautado no emprego de narrativas, o que a memória como
objeto da história oral propicia, fazendo um recorte (auto)biográfico das fontes orais, por
considerar que são instrumentos relevantes de análise e assim identificar os fenômenos
intrínsecos à atividade pecuária, sejam eles reais ou imaginários. É um estudo que pretende
traçar os saberes do vaqueiro do Marajó e colaborar com a caracterização da educação local
em um processo que envolve socialização e aprendizagem como uma parcela de cunho
investigativo decorrente dos múltiplos cotidianos, sendo que a vivência se reveste da
tradição oral, por meio dos quais o homem marajoara constrói o seu saber.
Palavras-chave: Vaqueiro marajoara; Cultura; Memória; Oralidade; Educação.
Abstract: This article seeks to understand through the concepts of culture, memory, orality
and education, the processes of cowboy‘s identity construction and contribute to stimulate
the reflection about the aspects of their knowledge, well as the recognition of the
profession of social . Therefore, I will use the life‘s trajectories as methodological
procedure based in the employment of narratives, what memory as an object of oral history
provides, making a biographical snip of the oral sources by considering that they are
relevant instruments and thus indentify the intrinsic‘s phenomenon to the cattle industry,
whether real or imaginary. It is a study that wants to contribute to the characterization of
marajoara‘s education as a share of investigative nature that traces the marajo‘s cowboy
knowledge in a process that involves socialization and learning resulting of multiple daily,
Mestranda em Educação; Área de Saberes Culturais e Educação na Amazônia pela Universidade do
Estado Pará (UEPA). Integrante do grupo de pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas (CUMA- UEPA) Email: [email protected]
123
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003); mestra
em Letras: Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará (1997). Possui estágio pos-doutoral em
Educação (PUCRS, 2012). É licenciada em Letras. Atualmente é professora adjunto da Universidade do
Estado do Pará/ Departamento de Artes e Programa de Pós-Graduação (mestrado) em Educação. Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, pesquisa principalmente temas ligados à Amazônia,
como poéticas orais, cultura, literatura, leitura, Educação e Arte. Coordena o grupo de pesquisa Culturas e
Memórias Amazônicas (CUMA- UEPA); participa do Centro de Estudos da Oralidade (PUC/SP); do
Estudos de Narrativas na Amazônia (UFPA), todos filiados ao Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil
(CNPQ). Membro de entidades científicas, tais como a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Letras e Linguística (ANPOLL/ GT de Literatura Oral e Popular), a Associação de Pesquisa e Pós
Graduação em Educação (ANPED) e a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC).
124
360
being that the experience is of the oral tradition, whereby the marajoara‘s man builds his
knowledge.
Keywords: Marajoara‘s cowboy; Culture, Memory; Orality; Education.
1. INTRODUÇÃO
A região amazônica é conhecida pela biodiversidade, beleza e mistérios,
incorporados constantemente ao cotidiano das populações, principalmente as de
localidades mais afastadas dos centros urbanos, como é o caso dos campos do Marajó. Tais
pensamentos levam a mergulhar na pluralidade cultural amazônica que ―consiste tanto de
valores e imaginários que representam o patrimônio espiritual de um povo, quanto das
negociações cotidianas através das quais cada um de nós e todos nós tornamos a vida
possível e significativa‖ (BRANDÃO, 2002, p. 24).
Em busca de significados inerentes ao exercício da atividade pecuária e de traçar os
saberes do vaqueiro do Marajó é que este trabalho tem como objetivo ―recolher a voz‖
desse profissional dos campos por meio da coleta de narrativas (auto)biográficas. Por isso
a intenção de se utilizar as trajetórias de vida como procedimento metodológico pautado
no emprego de narrativas e a partir daí fazer um recorte biográfico das fontes orais por
considerar que a vivência se reveste da tradição oral. Segundo Todorov (2006), as narrativas
orais são narrativas da vida e, nesse caso, a ação de contar.
a invenção de si mesmo é costurada em torno da dimensão temporal que
dá significado as fases da infância, juventude, idade adulta, etc. Através
da ficção e criatividade do narrador, esta biografia, objetivada pela fala,
vai se configurando e ganhando existência própria a partir do amálgama,
muitas vezes inconsciente ou não, que representa o conjunto de
experiências vividas (ATAÍDE, 2006, p. 313).
Convém dizer que o ato da palavra vai ter sequência nos relatos fixados na
memória. Por meio dessa voz, que é, sobretudo, memória, pretendem-se recortar fatos
relacionados ao entorno do vaqueiro marajoara, sejam eles reais ou imaginários. A memória
que é infinita, pois:
[...] toda consciência é mediatizada por ela [...]. Contudo, nossa principal
preocupação vai para o pensamento que explicitamente se refere a
acontecimentos e experiências passados (sejam eles reais ou imaginários);
com efeito, a experiência passada recordada e as imagens partilhadas do
passado histórico são tipos de recordações que têm particular
361
importância para a constituição de grupos sociais no tempo presente.
(FRENTNESS & WICKMAM, 1992, p. 9)
O fio que tece a vida do homem marajoara permite o entrelaçamento dos
elementos culturais, históricos e do que se aprende também através da memória. Nesse
sentido a sociedade marajoara afirma sua identidade, sobretudo, porque têm um modo de
vida, indumentária, lendas, mitos, rituais, instrumentos e artifícios próprios de sua própria
educação, de sua sabedoria.
A relevância do estudo reside na necessidade de se registrar o vivido, a experiência
do narrador, para que não se percam os valores culturais do homem marajoara, da memória
que permanece pela funcionalidade e encanto como conceito engrandecedor do saber
popular. Assim, os relatos, as vozes poéticas de pessoas simples contam o que ouviram ou
presenciaram e nesse contexto, nos lembra Walter Benjamin (1994) somente quem viveu
experiências diversas tem o que contar.
2. O VAQUEIRO MARAJOARA: REPRESENTANTE TÍPICO DO LUGAR
O Arquipélago do Marajó, localizado ao norte do Estado do Pará, reúne
diversidade de culturas, formas de vida e organização social ao longo de dezesseis
municípios entrecortados por numerosos rios, pelo oceano Atlântico e pela Baía de Marajó.
Possui uma área com extensão territorial de 104.606,90 Km² e sua população de 379.203
habitantes detém um dos mais elevados percentuais de residentes no campo, já que desse
montante 231.908 (61,16%) vivem na área rural.
A formação étnica é baseada na população de origem indígena, negra e portuguesa.
Esta mistura favoreceu o desenvolvimento da identidade marajoara dotada de um linguajar
peculiar e de um universo cultural cheio de lendas e superstições que permeiam o
imaginário da comunidade local.
Esse mosaico cultural configura o mapa da própria possibilidade da vida social, em
um cenário multifacetado e polissêmico, o que nos permite compartilhar o pensamento de
Fares (2003, p. 77), para quem o ―Marajó não é uma paisagem, mas muitas paisagens, não é
uma ilha, mas um arquipélago, não é uma civilização, mas civilizações sobrepostas umas as
outras‖.
Numa superfície coberta por extensos campos na zona oriental da ilha, propícios
para o criatório, o homem do campo adquiriu lição da natureza e implantou um gênero de
362
atividade corrente – a pecuária. Como representante do lugar surge o vaqueiro marajoara,
reconhecido pelo seu modo desconfiado de ser e pela sua indumentária ―pois se compõe
de calça e blusa, chapéu de palha e, no inverno, uma manta de baeta; monta descalço
colocando apenas um ou dois dedos dos pés no estribo‖ (MIRANDA NETO, 2005, p. 72).
Ressalta-se que os vaqueiros mais antigos atendem a essa descrição, mas os vaqueiros da
nova geração seguem nova tendência: a calça de brim foi substituída pelo jeans, o chapéu
de palha pelo boné, e a manta de baeta cedeu lugar às capas plásticas, mas ainda permanece
o hábito de se montar descalço e colocar apenas dois dedos no estribo125.
Para se conseguir ter um diálogo com um deles, precisa antes de tudo, conquistar
sua confiança. Este é, possivelmente, um comportamento proveniente de uma herança
cultural dos índios que assim procediam. Conhecem tudo sobre a ilha, pois vivem nos
campos, nas fazendas, à margem de rios e igarapés, e o contato fica quase que restrito aos
outros moradores da fazenda.
Na intenção de estabelecer esse diálogo apresento o vaqueiro marajoara Sr. Irandir
Vasconcelos. Tio Iranda como é conhecido em toda região, e é um profundo conhecedor
dos campos. Em conversas preliminares pode-se notar um enorme prazer em relatar suas
experiências e os saberes que adquiriu ao longo de sua vida proveniente das gerações que o
antecederam na profissão e dos companheiros com quem compartilha a vivência do dia a
dia na labuta do serviço, no jogo de dominó. Na religiosidade se destaca o profundo
respeito que têm pelos santos de devoção, Nossa Senhora da Conceição e São Benedito,
seus padroeiros, ou nas crenças advindas dos saberes práticos de rezas, das plantas que
curam, do poder do pajé, ou do pastor evangélico assim como demais atividades rotineiras
vivificadas nas extensões de terra a perder de vista que compõem o cenário das fazendas na
Ilha do Marajó.
O vaqueiro é um homem do campo, que convive em harmonia com o seu meio na
maior simplicidade. Há uma compreensão que se inicia com o respeito aos elementos da
natureza que independem do indivíduo. Na concepção de Edgar Morin é preciso educar os
saberes, considerando a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis
educativos e em todas as idades, ―o desenvolvimento da compreensão pede a reforma das
mentalidades‖ (MORIN, 2007, p.17)
Ciente de que o profissional vaqueiro é elemento de grande significância no
contexto não somente marajoara, mas universal é que sua voz ecoa em diversas áreas do
125 Estribo
é um aro de metal, suspenso por uma correia de cada lado da sela e sobre o qual o cavaleiro apoia
o pé. No léxico do vaqueiro marajoara há uma variação para estrivo ou balança, sendo esta a forma mais
usual.
363
conhecimento e viaja nos estirões imensos dos nossos rios e desemboca em outros
afluentes.
3. UMA VOZ QUE SE TRADUZ EM SABERES
O habitante dos campos do Marajó é singular embora envolvido numa
multiplicidade de fatores pertinentes aos afazeres diários, às crenças, ao léxico, à
alimentação, aos mitos e como toda sociedade comporta mecanismos e por meio deles
transmite e recria sua cultura. Com os marajoaras não é diferente.
Eles constroem, se inserem ou se apropriam de seus ambientes
pautando-se por saberes acumulados e configurados por meio do
trabalho e de outros significados simbólicos que atribuem a
determinados meios e que transcendem a dimensão do trabalho (SILVA,
2008, p.55)
Os vaqueiros do Marajó detêm um vasto conhecimento empírico do mundo onde
vivem marcado pelo respeito ao meio ambiente, pois adotam um sistema de manejo, que
lhes é próprio. Estas são práticas educativas voltadas à perspectiva da comunidade
tradicional e à luz de sua experiência o eco de suas vozes.
É pelo corpo que nós somos tempo e lugar: a voz o proclama emanação
do nosso ser. A escrita também comporta, é verdade, medidas de tempo
e espaço: mas seu objetivo último é delas se liberar. A voz aceita
beatificamente sua servidão. A partir desse sim primordial, tudo se colore
na língua, nada mais nela é neutro, as palavras escorrem, carregadas de
intenções, de odores, elas cheiram ao Homem e a terra (ou aquilo com
que o homem os representa) (ZUMTHOR, 1997, p. 157).
A voz assume um lugar, se insere em seu espaço e adota um posicionamento que
evidencia a sua marca identitária, pois reflete as vivências partilhadas com o coletivo, narra
a classe dos trabalhadores dos campos. Nesse aspecto, os saberes que emergem da voz do
vaqueiro marajoara trazem ―o prestigio da tradição, e, certamente, contribui para valorizálo; mas o que integra nessa tradição é a ação da voz‖ (ZUMTHOR, 1993, p. 19) sobre os
ouvintes. São frutos de uma experiência de vida e a partir das quais o grupo se identifica
como tal, troca informações entre si, interpreta a realidade em que vive.
4. CONTAR HISTÓRIAS SOBRE SI: UM ATO DE CONHECIMENTO
364
Intérprete de sua cultura, Tio Iranda é um homem com muitas histórias para
contar. O Vaqueiro, o homem nativo em seu local de trabalho e posteriormente, já
aposentado, vivendo na cidade passa a narrar a própria vida, como um testemunho
decorrido da necessidade que ele tem de lembrar.
A arte de evocar, narrar, atribuir sentidos às experiências permite ao sujeito
interpretar suas recordações em duas dimensões.
Primeiro, como uma etapa vinculada à formação a partir da
singularidade de cada história de vida e, segundo, como um
processo de conhecimento sobre si que a narrativa favorece. O
processo de formação e de conhecimento possibilita ao sujeito
questionar-se sobre os saberes de si a partir do saber-ser –
mergulho interior e o conhecimento de si – e o fazer-saber-pensar
sobre o que a vida lhe (sic) ensinou (SOUZA; ABRAHÃO, 2006,
p. 144).
Essa observação decorrente da experiência de vida do narrador, as condições de
vida em seu habitat natural se darão em entrevistas no intuito de se fazer o registro da
memória individual e coletiva desse indivíduo em busca de dados que possibilitem que a
voz, o fio que tece a rede do homem marajoara adentre os espaços escolares em estudo que
possa ser útil para a formação de novos olhares para o arquipélago do Marajó e com
inclusão da ideia de memória, na articulação de educação e cultura advindas das narrativas
orais pertinentes às trajetórias de vida traçadas em torno do vaqueiro marajoara.
5. CONCLUSÃO
O vaqueiro do Marajó por meio do ato de contar sua própria vida e as ações que
norteiam sua prática profissional constrói um conhecimento a respeito de si mesmo, sobre
os outros e sobre o que acontece na sua comunidade em certo momento histórico.
Também descreve e caracteriza seu universo cultural com marcas evidentes que indicam o
tecido mestiço, híbrido que forma esse povo.
Assim, a cultura se define como ―um lugar onde se articulam os conflitos sociais e
culturais, onde se atribuem sentidos às coisas do mundo através do corpo, do imaginário,
do simbólico, da participação, da interação, da poesia, do cotidiano. Nela se constituem os
sujeitos e a sua identidade‖ (TÁVORA, 2008, p. 87).
A partir das vozes que permeiam este trabalho, pode-se dizer que a narrativa segue
o curso da vida, ela não se explica à parte da vida, simplesmente flui e os fatos surgem
acompanhando a memória do narrador, ―que não se preocupa com o encadeamento exato
365
de fatos determinados, mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas‖
(BENJAMIM, 1994, p. 209).
E exatamente por se encontrar em um espaço privilegiado de observação daquilo
―que está na base dessas culturas, na fonte da energia que as anima, irradiando todos os
aspectos de sua realidade‖ (ZUMTHOR, 2007, p. 12) que esse narrador marajoara dá uma
pequena amostra dos ensinamentos e lições de vida que lhes foram repassados de geração a
geração através da voz ou das vozes poéticas inseridas no centro da cultura marajoara e
concede ao sujeito o papel de ator e autor de sua própria história.
E o Marajó abre suas porteiras para que outras culturas tenham acesso ao
conhecimento que o povo dessa região possui, mas com um olhar atento aos saberes que
essas gentes têm e o reconhecimento da sociedade em geral sobre a importância do papel
social desses profissionais com vistas à promoção dos sujeitos dos campos, em que se
valorizem as práticas produtivas de um conhecimento focado neste universo particular com
evidente estímulo à reflexão sobre os aspectos ligados aos saberes dos vaqueiros do Marajó.
.
REFERÊNCIAS
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SOUZA, Eliseu Clementino; ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. Tempos,
Narrativas e Ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In.
Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 2002.
FARES, Josebel Akel. Cartografia Marajoara: cultura, oralidade e comunicação. 2003.
São Paulo: Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Programa de Pós-Graduação
em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/ PUC-SP,
2003.
FRENTNESS, James & WICKMAM, Chris. Memória Social: novas perspectivas sobre o
passado. Lisboa: Editorial Teorema, 1992.
MIRANDA NETO. Manoel José de. Marajó: desafio da Amazônia. 3. ed. rev. e atual.
Belém, PA: EDUFPA, 2005
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Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2007.
366
SILVA, Maria da Graça. Meio ambiente: múltiplos saberes e usos. In: OLIVEIRA, Ivanilde
Apoluceno de (Org.). Cartografias ribeirinhas: saberes e representações sobre práticas
sociais cotidianas de alfabetizandos amazônidas. Belém: EDUEPA, 2008.
SOUZA, Eliseu Clementino; ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. Tempos,
Narrativas e Ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006
TÁVORA, Maria Josefa de Souza. Cultura: cultura primeira, cultura de massa e cultura
elaborada. In: OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de (Org.). Cartografias ribeirinhas:
saberes e representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazônidas.
Belém: EDUEPA, 2008.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Perspectiva, 2006
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ZUMTHOR, Paul. Perfomance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e
Suely Fenerich. São Paulo: Cosacnaify, 2007.
367
O JORNAL DIÁRIO COMO INSTÂNCIA DE DIVULGAÇÃO
LITERÁRIA
Edson Tavares Costa126
Resumo
Ao longo do tempo, a obra literária foi vista com certo puritanismo pelos que refletiam
sobre Literatura, que tão somente comentavam o texto em si, deixando de levar em conta
aspectos importantes, ligados à materialidade da obra, definidores, inclusive, de sua maior
ou menor difusão e permanência no cotidiano literário do país. Este artigo pretende
enfocar o aspecto da divulgação do livro enquanto produto, especificamente através do
jornalismo diário, instância importante na massificação da informação a respeito das obras,
o que, naturalmente, resultava em vendas dessa mercadoria e seu consumo por maior
número de leitores. Como suporte de análise, será utilizada a coluna ―Escritores e Livros‖,
mantida pelo jornalista literário José Condé, ao longo de quase duas décadas, no jornal
carioca Correio da Manhã, estabelecendo uma relação com os livros de diversos autores,
encontrados em sua biblioteca particular. A reflexão se dará a partir da contribuição teórica
de Chartier (1999; 2007) e Darnton (2010).
Palavras-Chave: Jornalismo literário; Livro; Divulgação.
Abstract
Over the time, the literary work was seen with a certain prudishness by those who reflected
on Literature, merely commented the text itself and failing to take into account important
aspects connected to the materiality of the work, definers including its major or minor
diffusion and permanence in the country literary everyday. This article aims to focus on the
aspect of the book disclosure as a product, specifically through the daily journalism, that is
a important instance in the mass information about the works, which naturally resulted in
sales of this commodity and its consumption by more readers. The column " Escritores e
Livros", maintained by the literary journalist José Condé during almost two decades in the
Rio de Janeiro newspaper Correio da Manhã, will be used as the support for the analysis by
establishing a relationship with the several authors' books, found in his private library. The
reflection will occur from the theoretical contribution of Chartier‘s (1999, 2007) and
Darnton‘s (2010) theoretical contributions.
Keywords: Literary Journalism; Book; Disclosure.
Introdução
Durante muito tempo, associou-se o texto escrito, notadamente o literário, a uma
espécie de aura divinal, sendo o escritor algo como uma figura etérea, inatingível, vivendo
num plano diferente do de seus leitores, dissociado de questões mundanas, materiais. A
obra literária adquiriu um status de diafaneidade que não coadunava com a materialidade de
seu suporte, e, assim, toda análise literária restringia-se ao texto em si.
É relativamente recente a constatação de que outros aspectos ligados ao texto
literário devem ser objeto de análise, de reflexão, uma vez que interferem de maneira
preponderante em sua produção, seu significado, seu objetivo, seu propósito. Questões
126
Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected]
368
como o ambiente histórico e social em que o texto foi concebido; o público específico a
que se dirige; as relações sociais e mesmo familiares e interpessoais do autor; e,
notadamente, o suporte do texto literário, o livro, visto agora desnudado de sua auréola de
santidade e integrante de um sistema de circulação como qualquer outra mercadoria
comercial.
Em outras palavras, como que se descobriu que o livro que o leitor tem em mãos
não é produto apenas de um escritor, mas que, como afirma Chartier (2007, p. 13), ―o
processo de publicação, seja lá qual for sua modalidade, é sempre um processo coletivo que
requer numerosos atores e não separa a materialidade do texto da textualidade do livro‖. E
sendo verdade o que diz o mesmo Chartier (1999, p. 17), ratificando a afirmativa de Roger
Stoddard, que ―os autores não escrevem livros: não, eles escrevem textos que se tornam
objetos escritos, manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados‖, faz-se
necessário que o crítico literário reveja essa posição purista de ignorar o livro enquanto
objeto e o tenha também como foco de reflexão.
Neste artigo, pretendemos enfocar o aspecto da divulgação do livro enquanto
produto, especificamente através do jornalismo diário, tendo como suporte de análise a
coluna ―Escritores e Livros‖, mantida pelo jornalista literário José Condé, ao longo de
quase duas décadas, no jornal carioca Correio da Manhã, estabelecendo uma relação com os
livros de diversos autores, encontrados em sua biblioteca particular – por nós catalogada
para pesquisa de doutoramento.
Condé, o jornalista literário
No Brasil dos anos 50 e 60, registramos uma considerável produção literária,
catapultada por eventos literários diversos e por uma mídia de divulgação nos jornais de
grande circulação, que geralmente ocupava largos espaços de cadernos específicos de
cultura e artes. Cada grande jornal tinha seu editor literário, que, além de colunas informais
sobre literatura, fazia publicar igualmente artigos analíticos e críticos, resenhas e entrevistas
com autores, por ocasião de lançamentos de livros.
Na coluna literária do Correio da Manhã, a que já nos referimos, José Condé
publicava notas sobre o livro recentemente lançado ou a lançar em breve, planos e
atividades de escritores, eventos e prêmios literários, entre outros assuntos correlatos.
Segundo Moraes (1971, p. 4), Condé ―era generoso (...) com muita gente, no sentido de
conceder oportunidade à divulgação de livros e autores. Tinha como ninguém, porém, o
justo senso das medidas. Não dava evidência além do limite, a quem fosse apenas seu
369
amigo, sem maiores méritos intelectuais ou literários‖; o que foi corroborado por Bonald
(1971, p. 3): ―falava-nos com franqueza, pondo-nos à vontade para pedir sugestões, críticas
ou simplesmente apresentações aos possíveis editores do Rio‖. Temos, assim, José Condé,
de certa forma, transformado em produtor de cânone, uma vez que sua indicação poderia
significar uma venda considerável de exemplares, e a aceitação pela crítica e leitores.
Souza e Miranda (2003, p. 12) chamam a atenção para o fato de que ―o material
paraliterário existente nos acervos do escritor, como a correspondência entre colegas,
depoimentos, material iconográfico, entrevistas, documentos de natureza privada, assim
como sua biblioteca [grifo nosso] e seus objetos pessoais‖ são elementos dignos de nota
num ―esboço de biografia intelectual‖. Analisando o acervo remanescente de sua biblioteca
particular, doada à Biblioteca Pública Municipal de Caruaru-PE, sua cidade natal,
procedemos minucioso levantamento, com diversos objetivos, um dos quais, a relação dos
livros recebidos de autores e editores e sua efetiva divulgação pelo jornalista em sua coluna.
Observamos, então, as dedicatórias autografadas que chamavam a atenção para esse
detalhe, como poderemos ver a seguir:
a) A solicitação explícita de publicidade, feita pelas editoras, como no caso do livro
A época contemporânea – Tomo VII – 1º vol O declínio da Europa. O mundo
soviético, de Maurice Crouzet, com tradução de J. Guinsburg e Vítor Ramos, lançado em
1958, dentro da Coleção História Geral das Civilizações, da Editora Difusão Europeia do
Livro, cujo cartão foi encontrado no interior do compêndio: ―Ao Sr. José Condé, com os
cumprimentos de Braulio Pedroso – Publicidade.‖ Ou ainda a obra de Molière As
sabichonas – Escola de mulheres, traduzida por Jenny Klabin Segall, pela Editora
Martins, de São Paulo, na qual foi encontrado também um cartão: ―Para o querido Condé,
com os cumprimentos de Livraria Martins Editora e o afetuoso abraço do Martins, que
pede sua melhor atenção para esta nova série. XI-63‖
b) Ou a solicitação mesma dos escritores, como o livro do autor português Luis
Forjaz Trigueiros Sombra do tempo, composto de conferências e temas literários, lançado
pela Bertrand de Lisboa, que traz o seguinte apelo do autor: ―Esse José Condé, camarada
que há tanto tempo conheço de nome, cuja crítica tanto queria. Com um abraço do seu
amigo Luís Forjaz‖. Ou ainda, a obra Juventude em crise (de Sartre a Marcuse), de R.
A. Amaral Vieira, publicada pela Editora Bit, do Rio de Janeiro, em 1970: ―Ao José Condé,
com a esperança que este ensaio despretensioso venha a merecer sua crítica. Rio, 22/9/70‖.
c) Há também os apelos disfarçados, sutis: ―José Condé, peço carinho e amor para
este Aruanda. Amiga Eneida. Natal, 1957‖, no livro de crônicas Aruanda, da jornalista
370
Eneida de Moraes, prefaciado por Edison Carneiro e publicado pela José Olympio, em
1957. Ou ainda: ―A José Condé, com a melhor admiração de Gilberto Freyre. / / P.S. Peço
sua melhor atenção para este livro. Re, 61‖, em Sugestões de um novo contacto com
universidades européias, editado pelo autor em 1961.
d) Há também os agradecimentos. Dias Gomes ofertou O Pagador de Promessas
(3ª edição), de 1967, no ano do seu lançamento, e que recebeu divulgação por parte de
Condé; dois anos depois, outro exemplar do mesmo livro é oferecido a Condé, com o
autógrafo: ―Para José Condé, sinceramente grato por suas animadoras palavras, com um
abraço do amigo Dias Gomes. Rio, 17-1-69‖. O mesmo aconteceu com Homero Senna,
que enviou a Condé o seu Gilberto Amado e o Brasil, lançado em 1968, pela José
Olympio, e o reenviou no ano seguinte, em segunda edição, com palavras de gratidão: ―Ao
caro José Condé – que tanto fez pela divulgação da 1ª edição – com o abraço amigo do seu
Homero Senna. Rio, agosto 69‖.
Havia ainda as solicitações de divulgação pagas pela editora, como podemos
constatar num recibo encontrado dentro do livro Estudos de História Contemporânea
– A civilização posta à prova. O mundo e o Ocidente, de Arnold J. Toynbee, traduzido
por Brenno Silveira e Luiz de Sena, terceira edição, de 1967, publicado pela Companhia
Editora Nacional, que, através do seu Departamento Editorial e de Produção, enviava este
e mais dois compêndios (A maturidade mental, de H. A. Overstreet, e Um espírito que
se achou a si mesmo, de Clifford Whittingham Beers – não encontrados na biblioteca de
Condé), para ―crítica literária e registro bibliográfico‖ no Correio da Manhã. Constam ainda
do recibo, datado de 31/07/1967, os valores pela divulgação (o de Toynbee, 6,00; os
outros dois, 5,00 cada), e a informação de que deveriam ser enviados para a editora os
―recortes de notícias e críticas‖, além da ―devolução do recibo da presente Nota, que
assegurará a continuidade de nossas remessas‖. Em anexo, um release da editora com todas
as informações sobre os volumes.
Como se vê, a construção do nome de um autor ou de uma obra pode passar pela
divulgação paga, como de qualquer outro produto comercial. Isso remonta à distante
França setecentista, tempos em que a famosa STN (Société Typographique de Neuchâtel)
dominava a publicação, distribuição e divulgação de livros, como afirma Darnton (2010, p.
141):
Toda a questão da propaganda do livro requer exame. Muito se
aprenderia sobre as atitudes em relação aos livros e o contexto de
sua utilização estudando a maneira como eram apresentados – a
estratégia do apelo, os valores invocados pelo discurso empregado
371
– em todos os tipos de publicidade, das notícias dos jornais aos
cartazes de muro.
Desta forma, jornais e revistas especificamente literários, para discutir – e,
consequentemente, divulgar – obras recém-lançadas, eram uma espécie de ansiada vitrine
para quem desejasse ver seus livros vendendo a rolo, nas livrarias – desejo tanto do autor
quanto do editor/distribuidor. Para atender a esse público interessado em literatura,
mesmo os jornais diários, noticiosos em sua essência, criavam seções que faziam um pouco
esse papel de promotor de objetos literários. Nos dois casos, encontramos José Condé,
tanto como criador do Jornal de Letras, quanto colunista do Correio da Manhã, espaços
midiáticos para divulgação literária, que exerciam grande força de atração sobre os
escritores.
Os questionamentos, agora, são: quais dos livros recebidos por José Condé, com as
discretas (ou nem tão sutis) insinuações de divulgação em ―Livros e Escritores‖, ou sem
elas, foram comentados pelo jornalista em sua coluna no Correio da Manhã? Que escritores
eram mais divulgados? Que impacto poderia haver tal divulgação na vendagem dos livros?
Naturalmente, não é possível, neste trabalho, realizarmos um levantamento dos dezessete
anos em que este espaço de divulgação circulou, para conferirmos se os livros encontrados
na biblioteca de Condé foram efetivamente divulgados – o que poderá ser um fio solto que
deixamos, para futuros enredos. Por enquanto, e a título de amostragem, escolhemos um
ano – 1960 – para fazer o referido levantamento.
A coluna “Escritores e Livros” em 1960
Com o intuito de refletir, ainda que de forma a requerer futuro aprofundamento,
sobre a relação entre a divulgação de livros através de jornais noticiosos diários, no
presente caso o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, com o sucesso dos compêndios entre o
público leitor, e, em outra instância, com sua presença no cânone literário nacional;
também com o fito de verificar a importância de José Condé nesse contexto, como
divulgador literário e sua convivência com os colegas escritores; levantamos os livros
divulgados nas 210 edições de sua coluna, durante o ano de 1960: foram, ao todo, 920
obras divulgadas, sem contar, aqui, aquelas que eram apenas citadas como uma espécie de
perífrase do escritor (por exemplo, ―A Academia Pernambucana de Letras resolveu
aumentar o número de suas cadeiras. Para uma delas deverá ser eleito o poeta Carlos Pena
Filho, autor do „Livro Geral‟ [grifo nosso]” (CONDÉ, 1960a, p. 2)), o que, embora não
sendo o foco da notícia, já se caracterizava como uma divulgação indireta do compêndio.
372
O ano de 1960 foi escolhido para esse levantamento obedecendo a alguns critérios,
por nós inventariados:
a) Foi o ano em que consta, em sua biblioteca, a maior quantidade de livros
oferecidos a José Condé: 38. Naturalmente, havemos que considerar alguns
aspectos:
a. Nem todos os livros recebidos por Condé eram autografados; como
afirmamos anteriormente, apenas 37,4% do total encontrado em seu
acervo o foram. Então, é provável que muitos outros dos 1770
exemplares localizados por nós em seu acervo tenham sido oferecidos
ao escritor no ano de 1960.
b. É igualmente possível que tenha sido divulgado em 1960 algum livro
recebido no ano anterior, como também alguma obra recebida no final
desse ano pode ter sido divulgada em 1961.
c. Não podemos esquecer que os 1770 livros catalogados na biblioteca
particular de Condé naturalmente não correspondem ao seu total, uma
vez que desfalques podem ter acontecido, desde o envio, pela família
(os familiares podem não ter doado todos os exemplares pertencentes
ao escritor), até as constantes mudanças de guarda desse material,
recebido pela Biblioteca Pública Municipal de Caruaru na década de
1980, (as condições de acondicionamento, por vezes precárias, devem
tê-lo diminuído).
b) Foi um ano politicamente atípico no Brasil: vivia-se a efervescência gerada pela
mudança da capital federal do Rio de Janeiro para a recém-construída Brasília;
os muitos anos do Rio como sede política do país fizeram sedimentar raízes dos
mais diversos matizes, que resistiam teimosamente à transferência para o meio do
nada, no cerrado brasileiro – Brasília jamais conseguiu usurpar do Rio de Janeiro
o posto de capital cultural do Brasil. É um ano em que podemos verificar, por
esta coluna jornalística, a publicação de várias obras abordando esse tema.
c) Culturalmente, o país respirava os primeiros ares das novidades que ganhariam
o público na década de 60: o feminismo, as novas bossas, o rock e outros
produtos norte-americanos, aqui desembarcados pelos filmes produzidos em
Hollywood. Literariamente, vivia-se um período de transição, com o
amadurecimento da chamada geração de 1945, embora boa parte da de 1930
373
ainda estivesse atuante, e os primeiros frutos do movimento concretista iniciado
em São Paulo na metade da década anterior.
d) A publicação da obra mais conhecida de José Condé, Terra de Caruaru,
lançada em novembro desse ano.
Inicialmente, fazemos um levantamento comparativo dos livros encontrados na
biblioteca particular de José Condé, a ele oferecidos em autógrafos dos próprios autores,
datados de 1960, com a divulgação dessas obras ao longo desse ano. Com isso, intentamos
demonstrar a relação existente entre o envio de compêndios ao jornalista literário e a
efetiva divulgação da obra em sua coluna ―Escritores e Livros‖.
1.
2.
3.
4.
5.
AUTOR
Aluisio Inojosa
Urbano T. Rodrigues
Zora Seljan
Zora Seljan
Faustino Nascimento
6.
Aziz N. Ab‘Saber et al.
7.
8.
9.
10.
Raimundo de Menezes
Cândido Motta Filho
João Felício Santos
José Francisco de
Camargo
Jorge Medauar
Oiliam José
Ribeiro Couto
Gilberto Amado
Ascendino Leite
Brito Broca
Otto Maria Carpeaux
A. C. Carvalho
J. Carlos Lisboa
Miran de Barros Latif
Marcos Carneiro de
Mendonça
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
22. Aziz N. Ab‘Saber et all
23.
24.
25.
26.
27.
28.
29.
30.
31.
32.
33.
34.
35.
36.
37.
38.
Orígenes Lessa
Peregrino Júnior
Raymundo Moraes
Edison Carneiro
Cruz Costa
João Cabral Melo Neto
Leandro Tocantins
Jorge Amado
Jorge Amado
Jorge Amado
VÁRIOS
Cassiano Ricardo
Cassiano Ricardo
Lúcio Cardoso
Carmen Mello
Joaquim Ribeiro
OBRA
História de um caixeiro viajante
Nus e suplicantes
As moças do corpo cheiroso – A donzela Teodora
Os negrinhos
Antologia poética
A época colonial – Tomo I – 1º vol Do descobrimento à expansão
territorial
Emílio de Menezes, o último boêmio
Notas de um constante leitor
Major Calabar
Êxodo rural no Brasil – Formas, causas e conseqüências econômicas
principais
A procissão e os porcos
A propaganda republicana em Minas
Poesias reunidas
Depois da política
Dois romances: A viúva branca – O salto mortal
A vida literária no Brasil – 1900
História da Literatura Ocidental
Olho mecânico
A casa do bode
As Minas Gerais
O Marquês de Pombal e o Brasil
A época colonial – Tomo I – 2º vol Administração, Economia,
Sociedade
Balbino, homem do mar
A mata submersa e outras histórias da Amazônia
Na planície amazônica
A insurreição praieira (1848-49)
Panorama da história da Filosofia no Brasil
Quaderna
Amazônia – Natureza, homem e tempo
São Jorge de Ilhéus
Seara vermelha
Jubiabá
Anísio Teixeira: pensamento e ação
O homem cordial e outros pequenos estudos brasileiros
Montanha Russa
Diário I
A donzela do gave
História da romanização da América
DIVULGAÇÕES
02
–
–
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02
05
12
–
01
374
Relação de livros localizados na biblioteca particular de José Condé, oferecidos ao autor com autógrafos datados de 1960,
e divulgados (ou não) na sua coluna.
Observamos, então, que o expediente de enviar os livros para o colunista era
praticamente garantia de divulgação. O percentual de difusão de 81,5% dos livros recebidos
diz bem do sucesso dessa relação. E o colunista fazia questão de fechar cada edição com o
explícito lembrete: ―Para remessa de livros: Voluntários da Pátria, 381. Ap. 402‖, endereço
de Condé. Fica clara, pois, a rotina de se enviarem obras para jornais, quando era do
interesse do editor ou do autor sua disseminação nas livrarias, como foi evidenciado por
Condé, quando comenta que o editor José Olympio ―costuma remeter suas edições à maior
parte – ou à quase totalidade – dos críticos e dos colunistas‖ (CONDÉ, 1960b, p. 2), com o
explícito intuito de divulgação. Por esta razão, presumimos ter sido bem maior o acervo
particular de Condé, nas mais de duas décadas em que trabalhou como jornalista literário.
Em alguns momentos, eram tantos os livros sobre sua mesa, que José Condé
promovia uma espécie de força-tarefa assumida – como ocorreu pelo menos nos dias
21/02/1960 e 12/08/1960; no primeiro, Condé afirma que ―nem sempre é possível ao
colunista registrar imediatamente o livro que recebe‖ e que, por conta disso, várias obras
ficam ―aguardando sua vez na mesa do redator‖, e completa: ―desta vez os volumes se
acumularam de tal maneira, que preferimos dedicar toda a coluna deste domingo ao seu
registro, embora breve e puramente informativo‖ (CONDÉ, 1960c, p. 2).
Algumas questões, entretanto, ficam abertas, dentre as quais, destacamos duas:
a) por que os livros de Urbano Tavares Rodrigues, Oiliam José, A. C. Carvalho,
Carmen Mello, os dois de Aziz Ab‘Saber e um dos recebidos de Zora Seljan, não foram
divulgados?
b) que critérios utilizava Condé para divulgar mais uns que outros? Por exemplo, o
livro de Franklin Oliveira, Rio Grande do Sul, um novo Nordeste, ―dez reportagens
publicadas no Correio da Manhã, RJ, sobre o empobrecimento do Rio Grande do Sul‖
transformadas ―em livro, editado pela Civilização Brasileira‖ (TIMM, 2012), foi o mais
divulgado nesse ano, aparecendo em ―Escritores e Livros‖ nada menos que dezessete
vezes, mais até que o próprio livro de Condé, Terra de Caruaru, lançado nesse ano, que
foi divulgado catorze vezes em 1960. Depois da Política, obra escrita por Gilberto
Amado quando se afastou de sua atuação política, recebeu treze divulgações, entre janeiro e
setembro de 1960.
Certamente tais questionamentos apenas encontram respostas agasalhadas em
hipóteses, meras suposições – que até podem ser alicerçadas por outros dados porventura
observados, mas sempre guardarão a pecha de alguma incerteza; somente o jornalista José
375
Condé teria como explicar. No entanto, trata-se de assunto demais atraente a futuras
análises, o que decerto ocorrerá, senão de imediato, mas muito breve, principalmente
porque, numa feliz iniciativa da Biblioteca Nacional, todo o acervo do Correio da Manhã
encontra-se digitalizado, com acesso livre a todos os pesquisadores, através do site
http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx.
O jornal Correio da Manhã circulava de terça-feira a domingo, e a coluna de José
Condé, que procurava manter certa regularidade diária (sem, no entanto, conseguir), não
saía aos sábados, quando o jornal publicava um suplemento literário, também sob a
responsabilidade do escritor caruaruense. Havia várias seções fixas na coluna condeana,
durante algum tempo, com sugestivos nomes: ―Negrito & Claro‖; ―Uma coisa e outra‖; ―5
Notas‖; ―Estante‖; ―Dizem...‖. O objetivo principal da coluna, como podemos perceber
claramente pela leitura contínua de cada edição, é a divulgação de eventos literários e
principalmente de livros, para o que Condé tinha acesso privilegiado a informações sobre
as obras antes de sua publicação, e até mesmo aos originais, como podemos depreender
desta nota (CONDÉ, 1960e, p. 2):
Numa linguagem direta e nervosa, Paulo Rodrigues faz com que o
leitor não se conserve indiferente diante dos problemas que agita
com bastante acuidade psicológica. Pelo menos foi esta a
impressão do colunista, que acaba de ler “Cidade nua” nos
originais [grifo nosso]. Trinta e seis histórias – todas elas
contendo menos de duas páginas dactilografadas – serão
enfeixadas no volume (...).
Em relação a um terço dos livros divulgados (306), em 1960, o colunista informa de
seu próximo lançamento, ou que o autor estava escrevendo, ou ainda pensando em escrever.
Justifica-se esse antecipar-se do jornalista, tanto pelas fortes relações de amizade no meio
literário da época, quanto pelas contribuições em forma de notícia, vindas de várias partes
do país. A quase totalidade do material divulgado é regada com os mais efusivos elogios,
seja em termos de conteúdo, seja de vendagem, seja, ainda, de receptividade do público. A
única exceção de 1960 configurou-se num ácido comentário ao jornalista português Manuel
Anselmo, redator da revista ―Cadernos de Manuel Anselmo‖, e que enviara alguns
exemplares ao colunista – este o denomina ―bajulador de nossa literatura‖ (CONDÉ,
1960d, p. 2), sem, no entanto, entrar em detalhes quanto ao pouco lisonjeiro epíteto.
Por outro lado, registramos certo estranhamento na notícia de que ―estará amanhã
nas livrarias o anunciadíssimo [grifo nosso] livro de Álvaro Lins, ‗Missão em Portugal‘,
que a Editora Civilização Brasileira apresenta num alentadíssimo volume com mais de
quinhentas páginas‖ (CONDÉ, 1960f, p. 2). O curioso é que, apesar dos superlativos, José
Condé não divulgara sequer uma vez, em 1960, o volume do antigo protetor, colega de
376
jornal e conterrâneo, só passando a fazê-lo a partir desse dia e por mais seis vezes, até o
final do ano. Teria Álvaro Lins, ―impulsivo, temperamental e insubmisso‖ (RODRIGUES,
2006, p. 214), homem conhecido pelas suas dificuldades de relacionamento, sonegado
informações a Condé a respeito da obra que preparava? Se sim, por que razão faria isso? Se
não, o que teria acontecido?
A coluna de Condé, apesar de ser formatada, invariavelmente, de um modo a
proporcionar uma leitura rápida (porque em pequenos textos) e agradável (porque num
estilo leve e objetivo), constituindo-se de uma matéria principal e uma série de pequenas
notas, a tornar dinâmico o espaço para o leitor, por vezes se ocupava de um único assunto,
desde que se fizesse importante, aos olhos do redator, tendo ocorrido onze vezes em 1960.
Eram também divulgados outros órgãos midiáticos literários, como O Jornal de Letras, a
revista Leitura, o Anuário Literário Brasileiro, dentre outras, a cada edição lançada.
Observa-se, ainda, nesse ano, um envolvimento do jornalista com a campanha
política de pelo menos dois colegas: Antonio Olinto, que se candidatou a deputado, não
logrando êxito, mas rendendo um livro – O Candidato –, cuja preparação foi divulgada
por três vezes na coluna; e o deputado Fernando Ferrari, postulante à vice-presidência da
república, na chapa encabeçada pelo então prefeito de São Paulo Adhemar de Barros, e que
ficou em terceiro lugar, atrás de Teixeira Lott e Jânio Quadros, este, o eleito. A campanha
de Olinto, na coluna, dava-se divulgando eventos literários que este promovia, para se
apresentar como candidato, enquanto que a de Ferrari, através das nada menos que doze
divulgações do livro-plataforma do político, Mensagem renovadora.
Considerações finais
Como podemos observar, a coluna ―Escritores e Livros‖ era uma cobiçada vitrina
de divulgação para autores, editores e todos aqueles que circulavam em torno da literatura,
tanto no centro cultural do país, o Rio de Janeiro, quanto nas mais diversas regiões, que se
mantinham em constante contato com José Condé. Entretanto, mais do que esse espaço
noticioso, a coluna ―Escritores e Livros‖ inscreve-se como interessante fonte de registro
da dinâmica literária de um determinado tempo e lugar, a exemplo do que comenta
Barbosa (2007, p. 73) a respeito dos periódicos brasileiros do século XIX: ―Algumas
resenhas e comentários eram (...) fruto da amizade, do patrocínio e, muitas vezes, do
pagamento que o autor [ou a editora] fazia para ter seu livro comentado, citado em um
jornal‖. Publicidade, como qualquer outro produto que se deseja vender.
377
Referências
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BONALD, Olimpio. José Condé. Jornal Vanguarda, Caruaru-PE, 07/11/1971, 1º Caderno,
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séculos XIV e XVIII. Trad. de Mary Del Priori. Brasília: Universidade de Brasília, 1999.
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Luzmara Curcino Ferreira. São Paulo: Unesp, 2007.
CONDÉ, José. Coluna ―Escritores e Livros‖, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06/01/1960a,
2º cad., p. 2.
______. Coluna ―Escritores e Livros‖, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18/02/1960b, 2º
cad., p. 2.
______. Coluna ―Escritores e Livros‖, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 21/02/1960c, 2º
cad., p. 2.
______. Coluna ―Escritores e Livros‖, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 08/05/1960d, 2º
cad., p. 2.
______. Coluna ―Escritores e Livros‖, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 07/12/1960e, 2º
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20/04/2013.
acesso
em
378
O PROCESSO DE TRANSCULTURAÇÃO COMO PRINCÍPIO DA
ORALIDADE EM “BATUQUE”, DE BRUNO DE MENEZES
Edvaldo Santos Pereira127
José Guilherme dos Santos Fernandes128
RESUMO: Este estudo toma como base o poema ―Louvação do Cavaleiro Jorge‖, do
livro Batuque, de Bruno de Menezes, publicado em 1931. O poema em questão não
constitui uma representação específica da literatura oral, mas um texto escrito que traz em
sua construção recursos discursivos característicos da oralidade, o que leva ao objetivo
deste trabalho de demonstrar, pela literatura, que o intercâmbio cultural ocorrido no
processo de formação de uma identidade brasileira tem como um de seus substratos a
expressividade da oralidade africana.Nesse sentido, surge a hipótese de que o processo de
transculturação;conceito antropológico proposto por Fernando Ortiz e transposto para a
literatura por Ángel Rama; é demonstrado no poema, visto sob o método interpretativo, e
caracterizado pela fusão entre a cultura portuguesa e a cultura africana, tendo na oralidade a
força de sua expressividade. Assim, sob essa perspectiva surgem complexas transmutações
em diversos aspectos culturais, abrangendo também as formas de manifestação das culturas
que determinam a identidade cultural de um povo, e, pelo contato e cruzamento
intercultural,levam ao surgimento de novas formas culturais, diferenciadas daquelas que lhe
deram origem. Assim, o sincretismo religioso, enquanto marca desse processo, é percebido
em cada uma das três partes que compõem o poema (Louvação, Canto e Bênção) como
expressões que caracterizam a poética da oralidade em escritos literários.
Palavras-chave: Transculturação, Oralidade, Identidade cultural.
ABSTRACT: This study builds on the poem "Laud Knight George" in the book Batuque,
of Bruno de Menezes, published in 1931. The poem in question is not a specific
representation of oral literature, but a written text that brings in its construction features
characteristic of oral discourse, which leads to the objective of this study of the
demonstrate literature cultural exchanges that occurred in the training process a Brazilian
identity has as one of its substrates expressiveness of African orality. In this direction, the
hypothesis that the process of transculturation; anthropological concept proposed by Ortiz
and transposed into literature by Ángel Rama, is shown in the poem, since under the
interpretive method, and characterized by the fusion of Portuguese culture and African
culture having the force of orality in their expressiveness. Thus, from this perspective
emerge complex transmutations in various cultural aspects, covering also the
manifestations of cultures that determine the cultural identity of a people, and, by crossing
intercultural contact and lead to the emergence of new cultural forms, distinct from those
you originated. Thus, religious syncretism, as a mark of this process is realized in each of
the three parts that make up the poem (Worship, Song and Blessing) as expressions
characterizing the poetics of orality in literary writings.
Keywords: Tranculturation, Orality, Cultural identity
Sob as premissas de que os Estudos Culturais são processos culturais vinculados às
relações sociais; de que a cultura envolve poder; e que a cultura é um local de diferenças e
lutas sociais, o ensaio O que é, afinal, Estudos Culturais?, escrito por Richard Johnson (SILVA,
127
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA, na Linha de Pesquisa dos Estudos
Literários (Literatura, Cultura e História) - e-mail: [email protected]
128
Doutor em Letras pela UFPB; Professor Associado da UFPA – Orientador na elaboração deste artigo.
379
2000) coloca em questão a cultura enquanto resultado do desenvolvimento da humanidade
para sua própria existência, cuja evolução transita entre a ―consciência‖ e a ―subjetividade‖,
e que as práticas culturais se modificam pelas relações entre grupos culturais distintos.
Nesse sentido, a linguagem, não somente como forma de comunicação, mas também de
expressão artística, está presente em todos os campos de mediação dessas relações.
Publicado em 1931, o livro Batuque, de Bruno de Menezes, é uma coletânea de
poemas que, como representação etnicocultural, traz em sua composição aspectos de
identidade cultural da cidade de Belém do início do século XX, que teve em seu processo
de colonização a fusão de três etnias, das quais duas estão representadas no poema
Louvação do Cavaleiro Jorge, que enfatiza o sincretismo religioso, como forma de
manifestação da religiosidade africana em cultos originariamente católicos, trazidos pelo
colonizador europeu.
Como introdução ao poema, há um texto no qual é enfatizada a existência do culto
religioso em devoção a um mesmo símbolo, como marca do sincretismo que foi
estabelecido em decorrência da proibição à expressão religiosa africana, havendo, portanto,
a fusão entre São Jorge, santo católico, e Ogum, divindade dos cultos de origem africana:
São Jorge foi príncipe da Capadócia. No ano 303, tempo de
Deocleciano, morreu martirizado. A igreja católica festeja-o no dia 23 de
abril. Na corrente dos xangôs é o grande Ogum, também invocado como
Cavaleiro Jorge, havendo muitos dos seus devotos, que o louvam,
rezando ladainhas, com cantos sacros e música de atabaques. Este poema
tem sido cantado por ocasião dessas celebrações em muitas ladainhas.
(MENEZES, 2005, p.59)
Na condição de dominado que não podia demonstrar livremente o culto a seus
deuses, o africano aprendeu a manifestar sua religiosidade de forma escondida, por trás dos
santos de devoção católica, cuja representatividade se assemelhava. Assim, Ogum, o deus
guerreiro africano passou a ser cultuado como São Jorge, o cavaleiro guerreiro canonizado.
A presença de indícios de oralidade na criação poética de Bruno de Menezes, como
as ladainhas, denotam a fusão entre a linguagem oral e a linguagem escrita como formas de
expressão que, embora independentes, podem estar interligadas, motivo pelo qual
representam aqui o interesse maior deste estudo que objetiva focalizar o fenômeno de
transculturação, tendo como foco de observação o poema ―Louvação do Cavaleiro Jorge‖.
Essa transculturação, como propôs o cubano Fernando Ortiz, implica na ―perda ou
desarraigamento de uma cultura precedente, o que se poderia dizer uma parcial
desaculturação, e, além disso, significa a conseguinte criação de novos fenômenos culturais
que poderiam ser denominados ‗neoculturação‘‖(RAMA, 2001, p. 259).
380
Como característica discursiva da oralidade,a musicalidade dos versos, que dão a
ideia de ladainhas cantadas pelos fiéis, é expressa pela divisão do poema em partes distintas,
intituladas Louvação, Canto e Bênção, que sugerem a evolução de uma cerimônia religiosa
marcada pelo sincretismo entre o catolicismo; devotado ao cavaleiro guerreiro que se
tornou santo; e os cultos africanos em louvor a Oxum; o deus guerreiro que protege os
fracos em defesa da lei e da ordem. Afusão dos cultosdenota o intercâmbio cultural
organizado a partir da oralidade como forma de invocação de proteção e devoção ao
sobrenatural, direcionandoa compreensão de que
A fala é a substância ou alimento do poema, mas não é o poema. A
diferença entre o poema e essas expressões poéticas reside no seguinte: o
primeiro é uma tentativa de transcender o idioma; as expressões poéticas,
por sua vez, vivem no mesmo nível ideal da fala e são o resultado do
vaivém das palavras na boca do homem. Não são criações, obras. A fala,
a linguagem social, se concentra no poema, se articula e levanta. O
poema é linguagem erguida. (PAZ, 2012, p.43)
Os traços de marcas estilísticasque caracterizam a transculturação ocorrida entre o
português e povos de origem africana surgem no poema como forma de disseminação de
diversas etnias que habitavam a costa oeste do território africano, trazidas ao Brasil no
período colonial, sob a condição de escravos. Assim, na comunicação entre senhores e
escravos, a linguagem oral foi a modalidade de comunicação que facilitou as relações intra e
interculturais e, embora em graus diferenciados de evolução, o ponto de partida é sempre
o mesmo no qual ―o ser humano natural não é escritor ou leitor, mas falante e
ouvinte‖(HAVELOCK, 1995, p.27).
No início do poema essa modalidade é evidenciada pela louvação ao mártir que foi
transformado em santo: ―Cavaleiro Jorge/que mártir morreu/tem lança e espada/com que
combateu‖. A exaltação ao mártir que morreu lutando em defesa dos menos favorecidos,
como representação religiosa do catolicismo foi associada à figura do deus africano Ogum,
que também tem como propósito agir em favor dos fracos e necessitados.
Ao considerar a linguagem oral como ponto de partida para o surgimento do
poema, há de se considerar também que, durante muito tempo da trajetória da
humanidade, a transmissão cultural apoiava-se nas práticas voltadas à oralidadenas quais a
cultura africana difundiu-se, sobretudo na América, para onde o negro era trazido como
escravo, sendo a linguagem oral o meio de comunicação de maior eficácia, visto que o
acesso à escrita era restrito a poucos, no início da colonização, e até meados do século XX,
sobretudo na América Latina e África, período no qual a obra de Bruno de Menezes foi
publicada; e o poema, embora escrito, ao apresentar traços de oralidade, favoreceria a
aproximação entre o poeta e seu público. Assim, ―as relações entre a fala e a escrita não são
381
óbvias nem lineares, pois elas refletem um constante dinamismo fundado no continuum
que se manifesta entre essas duas modalidades de uso da língua. Também não se pode
postular polaridades estritas e dicotomias estanques (MARCUSCHI, 1999. p.34)‖.
Envolvidas em um mesmo processo de comunicação, as expressões orais e a escrita
são modalidades de linguagem que se complementam e favorecem as relações interculturais
e, ―admitir que um texto, num momento qualquer de sua existência, tenha sido oral é tomar
consciência de que um fato histórico não se confunde com a situação de que subsiste a
marca escrita, e que jamais aparecerá ‗a nossos olhos‘.‖ (ZHUMTHOR, 1993, p. 35).
Observa-se, então, que apesar da singularidade entre cada uma dessas modalidades, em
algum momento será possível chegar à indivisibilidade desse processo, como acontece no
poema em estudo que, inicia pela louvação, uma característica da oralidade apresentada em
cultos religiosos, transcrita pelo poeta em sua composição literária.
As duas outras partes que compõem o poema; o Cantoe a Bênção têm como marca
de oralidade a presença do outro a quem se dirige o eu lírico para, num primeiro momento
exaltar o poder do guerreiro que dominou o dragão, como representação do mau, que pode
ser vencido pela fé, cantada nos versos: O Gênio do mal/só tu dominaste/porque meu São
Jorge/com crença lutaste. Nesse sentido, FERREIRA129considera que ―não seria
demasiado repetir que chamamos Poesia Oral ou Poéticas da Voz àquilo que requer sempre e
impreterivelmente a presença do outro. Esteja ou não presente, o outro é uma finalidade,
um compromisso.‖
Na última estrofe, a pluralização do eu lírico dá ao poema a amplitude de uma
manifestação cultural que congrega toda uma comunidade em torno de um mesmo
propósito que é a obtenção da bênção dispensada pelo santo aos seus devotos, observada
no final do poema: São Jorge no dê seu manto/nos olhe por vosso bem/São Jorge querido
Santo/para sempre e sempre/Amém!
Livre de análises mais profundas, durante muito tempo a história da humanidade
era contada de uma geração a outra em narrativas que favoreciam a memorização como
forma de continuidade cultural que era repassada pela tradição oral, que chegou também à
criação poética, cujas expressões ―vivem no mesmo nível da fala e são o resultado do
vaivém das palavras na boca dos homens. Não são criações, obras. A fala, a linguagem
social, se concentra no poema, se articula e levanta. O poema é linguagem erguida‖ (PAZ,
2012, p. 43). Essa é a marca inicial de uma comunicação em cujos recursos estava garantida
129
Jerusa de Carvalho Pires Ferreira – Pensando poesia oral e transmissão (texto consultado pela
internet em 14/04/13, disponível em http://escritablog.blogspot.com.br/2013/04/quando-o-assunto-epoesia-oral-jerusa.html
382
a perpetuaçãoda singularidade de grupos sociais; uma condição que Walter Benjamin assim
definiu:
Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria
concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade
com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a
história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se
assimilará à própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à
inclinação de recontá-la um dia. (BENJAMIN, 1985, p. 204)
O contato intercultural que, segundo Canclini (2008, p. XXVI/XXVII), pelo
processo de hibridação ―torna possível que a multiculturalidade evite o que tem segregação e
se converta em interculturalidade‖, sempre ocorreu entre diferentes culturas desde o início da
história da humanidade, promovendo uma redefinição da transmissão cultural.
Vista também como referência para o estudo do poema sob o enfoque da
manifestação religiosa nele apresentada, a fusão entre duas diferentes culturas; a do
colonizador europeu e a do africano trazido sob a condição de escravo que, sem poder
expressar livremente sua religiosidade, fazia os rituais a seus deuses ao mesmo tempo em
que o colonizador festejava seus santos, passando assim ―das misturas religiosas a fusões
mais complexas de crença‖(idem, p. XXVIII).
O domínio do colonizador que impôs sua cultura aos índios, primitivos habitantes
da terra, e aos negros vindos da África, é marca da desigualdade das condições sociais. As
diferenças culturais, embora evidentes, pareciam absorvidas por índios e negros,
demonstrando-se assim a hegemonia da cultura europeia, como é percebida no poema, que
tem como tema a religiosidade expressa pelo povo; com a supremacia do catolicismo em
detrimento de outros cultos e que caracteriza a aculturação; processo considerado por
antropólogos americanos do século XIX; que pela mistura de culturas, dá origem a nova
cultura, na qual os traços identitários adquirem novas formas de expressão; exemplo que
pode ser observado na mestiçagem brasileira, que se originou da mistura étnica e dos
intercâmbios culturais.
Surgido do conceito de ―aculturação‖, o termo ―transculturação‖ traz como
princípio a abertura aos intercâmbios culturais decorrentes do contato entre diferentes
sociedades. Ao reconhecer a limitação do conceito de aculturação, aplicado ao processo de
desenvolvimento cultural latino-americano, Fernando Ortiz propôs essa nova denominação
considerando-a como a principal condição para a interculturalidade que caracterizou o
fenômeno da hibridizaçãoque ocorreu na América, sobretudo nos países latinos.
Diferente da aculturação, a transculturação tem como representação mais
significativa desse fenômeno o processo de colonização que deu origem às miscigenações e
383
o surgimento de fronteiras culturais nas quais as diferenças étnicas exercem influências
culturais, numa complexa relação de reciprocidade que leva a modificações mútuas.
Trazida para a literatura pelo escritor uruguaio Ángel Rama, a questão da
transculturalidade é ainda vista a partir dos estudos antropológicos propostos por
Fernando Ortiz sob a afirmação de que
Entendemos que o vocábulo ‗transculturação‘ expressa melhor as
diferentes fases do processo de trânsito de uma cultura para outra,
porque este não consiste somente em adquirir uma cultura, que é o que
em rigor indica o vocábulo anglo-americano ‗aculturação‘, mas que o
processo implica também, necessariamente, a perda ou desarraigamento
de uma cultura precedente, o que se poderia dizer uma parcial
desaculturação, e além disso significa a conseguinte criação de novos
fenômenos
culturais
que
poderiam
ser
denominados
‗neoculturação‘.(RAMA, 2001, p. 259)
No poema, o processo transcultural que aparece de forma velada, nada mais é do
que a representação de uma condição imposta por um momento histórico no qual o
africano, impedido da liberdade, escondia-se por trás dos santos católicos, sem abrir mão
de sua religiosidade, o que não caracterizava a passividade de quem aceita essa condição
como forma de aproximação da cultura europeia, o que Antonio Candido (2012), num
estudo crítico em relação à literatura produzida no Brasil no período colonial afirma:
Enquanto se tratava de cantar as mães-pretas, os fiéis pais-joões, as
crioulinhas peraltas, ia tudo bem; mas na hora do amor e do heroísmo o
ímpeto procurava acomodar-se às representações do preconceito. Assim,
os protagonistas de romances e poemas, quando escravos, são
ordinariamente mulatos a fim de que o autor possa dar-lhes traços
brancos e, deste modo encaixá-los nos padrões da sensibilidade branca.
(CANDIDO, 2012,p. 590)
As marcas de uma mestiçagem já se manifestavam em nossa literatura, mas ainda
sob uma visão europeizada, visto que nossos escritores pertenciam, em sua grande maioria,
a uma elite de origem europeia e ―[O] negro, escravizado, misturado à vida cotidiana em
posição de inferioridade, não se podia facilmente elevar a objeto estético, numa literatura
ligada ideologicamente à estrutura de castas‖ (CANDIDO, p. 589). Essa condição de
subalternidade não significa que o negro, ao esconder seus deuses por trás dos santos do
catolicismo, absorvia os princípios e valores dessa religião, mas sim criava alternativas para
manifestação de sua religiosidade.
No final do século XIX e, sobretudo, com a abolição da escravatura, que no Brasil
aconteceu em 1888, o negro e seus descendentes mestiços passaram a reivindicar espaços
numa sociedade que antes não os considerava como membros, deixando-os à margem,
condição na qual permaneceram, mesmo depois de terem alcançado a liberdade, iniciando-se
então uma nova luta pela igualdade de direitos, pois, apesar abolida, a escravidão
384
permanecia na memória como força motriz de um movimento de recuperação da herança
africana, escondida sob as cinzas de um longo período negro da história.
Nesse contexto, surge Bruno de Menezes, poeta afrodescendente, que buscou na
tradição africana a inspiração para as suas criações poéticas publicadas no livro Batuque.
Porém, a pureza de uma cultura genuinamente africana já não era possível de ser cantada
em seus versos devido à miscigenação que deu origem a um povo híbrido, que
demonstrava em suas manifestações culturais uma diversidade de traços de diferentes
culturas. Assim, como consequência dessa transculturalidade:
A solução intermediária é a mais comum: lançar mão das contribuições
da modernidade, revisar à luz delas os conteúdos culturais regionais e
com ambas as fontes compor um híbrido que seja capaz de continuar
transmitindo a herança recebida. Será uma herança renovada, mas que
ainda pode se identificar com o seu passado. (RAMA, 2001,p. 255/256)
Na solução proposta por Rama, a renovação da herança cultural consiste, portanto,
em reconhecer no presente as identificações com o passado, ciente de que essas
identificações são passíveis de adaptações de uma vida presente, na qual Canclini considera
que:
Ser culto, inclusive ser culto moderno, implica tanto não vincular-se a
um repertório de objetos e mensagens exclusivamente modernos, quanto
saber incorporar a arte e a literatura de vanguarda, assim como os
avanços tecnológicos, as matrizes tradicionais de privilégio social e
distinção simbólica‖ (CANCLINI, 2008, p.74).
A formação cultural que se dá pela transitoriedade entre presente e passado está sob
a condição de contínua mudança e, no entrecruzamento de diferentes manifestações
culturais, que serviu de base a Fernando Ortiz para o surgimento do conceito de
transculturação, estabelece-se um processo de contatos e diálogos entre essas diferenças,
não sendo apenas uma assimilação ou adaptação a modelos culturais fixos, mas também
um processo no qual existem trocas que ocasionam transformações mútuas.
Essa demonstração na cultura moderna, que, nos países latino-americanos
reformula conceitos e tradições culturais, reforça também o caráter híbrido desses países, o
que fez de Bruno de Menezes um poeta que trouxe em sua obra a mistura de culturas que
caracterizam o povo brasileiro, em cuja herança cultural a presença africana é marca
constante, sobretudo pela musicalidade de suas representações culturais que marcam a
oralidade de culturas que, ainda não tendo domínio dos sinais gráficos de uma linguagem
escrita, manifestavam-se pelo som de suas cantigas e pelas tradições repassadas de uma
geração a outra.
385
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SILVA, Tomaz Tadeu da, (organizador e tradutor). O que é, afinal, Estudos Culturais? –
Belo Horizonte: Autêntica, 2ª edição, 2000
ZHUMTOR, Paul. A Letra e a Voz: a ―literatura‖ medieval. Tradução de Amálio Pinheiro
e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
386
A REPRESENTAÇÃO DO POBRE EM DALCÍDIO JURANDIR: A
TRAJETÓRIA DE EUTANÁZIO EM CHOVE NOS CAMPOS DE
CACHOEIRA
José Elias Pereira Hage130
Prof.ª Dr.ª Marli Tereza Furtado (orientadora)131
Resumo: Em dez romances, publicados entre 1941 e 1978, o escritor paraense Dalcídio
Jurandir (1909 – 1979) construiu o ciclo Extremo Norte, no qual intentou revelar o viver
Amazônico do ponto de vista de personagens fortes e de heroica humanidade. Em Chove
nos campos de Cachoeira, primeira obra do ciclo, nos deparamos com o personagem
EUTANÁZIO, que no decorrer do romance se envolve com alguns traços característicos
da pobreza amazônica. Dalcídio Jurandir expõe uma realidade de carestia em seu romance.
A falta de bens e serviços essenciais e a carência de recursos econômicos são vistas como
uma forma de exclusão social, que ganha evidência por conta de uma postura
preconceituosa de alguns personagens em relação ao caboclo do interior do estado.
Eutanázio se sente marcado pela terrível carência financeira em que vive. A falta de
dinheiro repercute nele internamente, criando uma série de conflitos e divagações que o
levam a escolhas pessoais que determinam sua desestruturação. A carência financeira
reverbera na obra de Dalcídio explicitando também em outros personagens a consequência
da pobreza. Em Chove nos campos de Cachoeira em diversos trechos, a pobreza circula
Eutanázio e invade a sua intimidade em suas elucubrações internas. Seu corpo tomado por
uma doença que se prolifera, contra a qual não consegue (ou não quer) somar forças para
lutar, expõe a sua falta de capacidade diante dos fatos da vida. O jogo de aparências em que
vive exposto, o deixa ainda mais revoltado com sua condição, visto que, as pessoas têm-no
como alguém de posses e muitos o olham com interesses diversos. Esse trabalho pretende
estudar essas relações.
Palavras-chave: Chove; Eutanázio; Pobre.
Abstract: In ten novels, published between 1941 and 1978, the writer of Para Dalcídio
Jurandir (1909 - 1979) built the cycle Extremo Norte, which brought the live reveal
Amazon's point of view of strong characters and heroic humanity. It Chove nos campos de
Cachoeira, the first work cycle, we encounter the character EUTANÁZIO, during which the
novel engages with various types characteristic of poverty Amazon. Dalcídio Jurandir
exposes a reality of famine in his novel. The lack of essential goods and services and the
lack of economic resources are viewed as a form of social exclusion, which earns evidence
because of a prejudiced stance against the hillbilly in the state. Eutanázio feels terrible
marked by lack financial lives. The lack of money affects you internally, creating a series of
conflicts and digressions that lead to personal choices that determine its demise. The lack
of financial reverberates in the work Dalcídio explaining also other characters in the
130
Mestrando em Estudos Literários na Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected]
131
Professora do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail:
[email protected]
387
consequence of poverty. It Chove nos campos de Cachoeira in several passages, poverty
circulates Eutanázio and invades their privacy in their internal ruminations. His body taken
by a disease that proliferates, against which you cannot (or will not) join forces to fight
exposes their lack of ability on the facts of life. The game appearances in which he lives
above, the leaves even more disgusted with his condition, since people have him as one of
the many possessions and look with different interests. This work aims to study these
relationships.
Keywords: Rains; Eutanázio; Poor.
1. Introdução
A palavra ―pobre‖ deriva do latim ―pauper‖, que vem de pau- = ―pequeno‖ e pario
= ―dou à luz‖ e originalmente referir-se-ia a terrenos agrícolas ou gado que não produziam
o desejado. De acordo com o dicionário Aurélio a palavra é definida como: ―1. Que não
tem o necessário à vida; sem dinheiro ou meios. 2. Que denota pobreza. 3. Fig. Pouco
produtivo. 4. Fig. Pouco dotado. 5. Pessoa pobre. 6. Mendigo, pedinte‖. (FERREIRA,
2001. p. 541)
A pobreza causa impacto e é determinada por fatores externos ao ser humano,
impulsionando o leitor a analisá-la a fim de entender o motivo do estado. Pode ser
entendida em vários sentidos: carência de bens e serviços essenciais, como alimentação,
vestuário e alojamento; carência de recursos econômicos; e a carência social, que trata da
exclusão social, a dependência e a incapacidade de participar da sociedade.
Apesar de a pobreza ser vista em grandes proporções nos países subdesenvolvidos,
ela existe em todas as regiões do mundo. Em países desenvolvidos ela se manifesta com a
existência de subúrbios, abrigos e favelas. Quando saímos do macrocosmo mundial e
trazemos a visão para o Brasil, essas diferenças são notadas no que dizem respeito às áreas
industrializadas e às áreas rurais, como também nos grandes centros urbanos e nas
periferias que os circundam.
Com o incrível progresso industrial aumentamos o conforto até alcançar
níveis nunca sonhados, mas excluímos dele as grandes massas que
condenamos à miséria; em certos países, como o Brasil, quanto mais
cresce a riqueza, mais aumenta a péssima distribuição dos bens.
Portanto, podemos dizer que os meios que permitem o progresso podem
provocar a degradação da maioria. (CANDIDO, 2004. p. 169).
Diante desse quadro, é evidente que essa projeção social será refletida na literatura
produzida no país. Qual é então o enfoque dado para a pobreza na literatura brasileira?
Mais especificamente: qual o tratamento dispensado para a pobreza na literatura produzida
sobre a região norte do Brasil?
388
2. A presença do pobre na literatura ocidental
Historicamente foi a partir do Romantismo que começou a surgir um romance
social voltado para a realidade do pobre. Desse momento em diante é que o tratamento
dispensado a essa camada da população recebeu a devida dignidade. Com o Naturalismo
houve uma expansão desse quadro, visto que, passou para o eixo central das obras uma
faixa da população, que por muito tempo foi tão discriminada: operários, prostitutas,
desvalidos e tantas outras categorias consequentes da miséria, fruto da espoliação
econômica.
A partir do período romântico a narrativa desenvolveu cada vez mais o
lado social, como aconteceu no Naturalismo, que timbrou em tomar
como personagens centrais o operário, o camponês, o pequeno artesão,
o desvalido, a prostituta, o discriminado em geral. Na França, Émile Zola
conseguiu fazer uma verdadeira epopeia do povo oprimido e explorado,
em vários livros da série dos Rougon-Macquart, retratando as
consequências da miséria, da promiscuidade, da espoliação econômica, o
que fez dele um inspirador de atitudes e ideias políticas. (CANDIDO,
2004. p. 184)
No Brasil o Naturalismo também se destacou nesse aspecto, e evidenciou esses
traços sociais, no entanto, foi na década de 1930 que se notabilizou a presença em destaque
desses personagens advindos do povo, com todas as suas problemáticas. Foi a partir desse
momento que o tratamento dado ao pobre na literatura ganhou em intensidade.
A crítica corrosiva tomou o lugar da simples denúncia retórica e acompanhada de
um radicalismo generalizado incentivou os ânimos alterados, provocando a exposição
desmedida das mazelas sociais de forma explícita ou implícita. Muitos autores
empenharam-se em denunciar os problemas do país: Jorge Amado, Graciliano Ramos,
Rachel de Queiroz e tantos outros esquecidos, que contribuíram para expor a miséria e a
exploração econômica.
Assim, o pobre entra de fato e de vez na literatura como tema
importante, tratado com dignidade, não mais como delinquente,
personagem cômico ou pitoresco. Enquanto de um lado o operário
começava a se organizar para a grande luta secular na defesa dos seus
direitos ao mínimo necessário, de outro lado os escritores começavam a
perceber a realidade desses direitos, iniciando pela narrativa da sua vida,
suas quedas, seus triunfos, sua realidade desconhecida pelas classes bem
aquinhoadas. (CANDIDO, 2004. p. 183).
389
As mazelas sociais vividas pelo brasileiro não têm a mesma configuração do Norte
ao Sul do país, então claro está que a representação literária vai se manifestar de maneira
diferente nos diversos pontos do território. O Norte brasileiro possui uma representação
muito peculiar dessa realidade. É ainda a luta pela superação entre o querer e o poder, uma
impossibilidade de aceitação de uma realidade limitada, mas ainda assim, é uma forma
diferente de perceber essa realidade.
Sim, essa representação existe. Em muitos casos como coadjuvante de um eixo
central, fundamental como análise de paradoxo de realidades, mas também como foco
principal de enredos. Em alguns casos essa representação não tem um compromisso
ideológico, é exposta apenas como paisagem humana, mas noutros casos está no centro da
ficção.
3. O ciclo Extremo Norte
Em dez romances, publicados entre 1941 e 1978, o escritor paraense Dalcídio
Jurandir (1909 – 1979) construiu o ciclo Extremo Norte, no qual ―pretendeu revelar o que
chamava de uma Amazônia de forte e heroica humanidade, a Amazônia de uma aristocracia
de pé no chão‖ (FURTADO, 2012).
Em Chove nos campos de Cachoeira, primeira obra do ciclo, nos deparamos com o
personagem EUTANÁZIO, ele mesmo um pobre, que no decorrer do romance se envolve
com outros traços característicos da pobreza amazônica. O próprio personagem digladia-se
internamente em várias situações pela falta de dinheiro.
Dalcídio Jurandir refrata a realidade da carência das coisas em seu romance. Existe
a carência de bens e serviços essenciais; a carência de recursos econômicos e a exclusão
social, que é evidenciada pela postura preconceituosa de alguns personagens em relação ao
caboclo do interior do estado.
―É o diabo ter a vida marcada pela horrível falta de dinheiro!‖ (JURANDIR, 1997.
p. 43). Essa exclamação repercute dentro do personagem Eutanázio e reverbera na obra de
Dalcídio que explicita também em outros personagens as consequências da pobreza em
várias situações. Existe uma inconformação diante da situação de pobreza, que gera desde a
indisposição com o lugar que se vive até a revolta com a própria situação socioeconômica.
Em Chove nos campos de Cachoeira em diversos trechos, tudo se passa como se só
houvesse pobreza para Eutanázio, visualizadas ao seu redor, e em suas elucubrações
internas, passando por seu corpo tomado por uma doença que se prolifera e que amplia a
sua condição de incapacidade diante da vida, contrapondo o olhar das pessoas, que em
390
diversas circunstâncias têm-no como alguém de posses, o que possibilita outra realidade,
ligada a um jogo de aparências, com os mais diferentes intuitos.
É possível observar em várias situações no romance uma tomada de posição do
autor em relação aos pobres, desmascarando uma sociedade que alimenta a exclusão e que
só enxerga algum valor no sofrimento do povo oprimido apenas como uma forma de se
prevenir da mesma desgraça, e esse posicionamento tem um propósito claro, visto que, não
existe tomada de posição sem algum tipo de intenção. ―Não há, nem pode haver
enunciados neutros. Todo enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto
cultural saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo, isto é, uma
tomada de posição neste contexto‖ (FARACO, 2009. p. 25), portanto como todo texto tem
um posicionamento de valor com relação à realidade a que se refere, é natural que o autor
criador refrate na obra o seu posicionamento, já que a mesma não é um simples espelho da
realidade, mas um conjunto de eventos direcionados por ele.
O universo de Dalcídio está, portanto, na luta de situações opostas que envolvem o
desejo de algo sempre limitado pela impossibilidade cerceadora da pobreza, que faz o
ambiente em diversas situações chegar a ser claustrofóbico, e cria relações tensas entre
Eutanázio e outros personagens, o que acaba por conduzi-lo a digressões internas quase
intermináveis.
(...) mas como comprar os charutos de Raquel? Dinheiro não tem. Seria
bom bater na porta de Felícia e lhe pedir dois mil-réis. Ela devia ficar
sumida na sombra do crucifixo e os arranha-céus avançariam sobre ele.
Não tem dinheiro. Sua vida foi sempre marcada por esse epitáfio: NÃO
TEM DINHEIRO. (JURANDIR, 1997. p. 43)
Eutanázio encontra-se envolvido em relações que o tempo todo o colocam diante
do seu estado degradante, de ausência de condições para realizar o que deseja e da presença
crescente da sua doença. Por meio dele em várias situações na obra é possível perceber
uma reflexão, sobre as consequências da pobreza. Na casa do seu Cristóvão, o desejo das
mulheres pelo casamento como forma de mudança de vida é um sintoma evidente da
inconformidade com a própria situação, bem como o interesse de alguns personagens em
manter Eutanázio sempre por perto para conseguir as mais diversas coisas, desde tabaco
até dinheiro emprestado. Ele mesmo se prevalece dessa espécie de autoridade para
continuar próximo de Irene
Raquel lhe pedira charutos. É preciso de qualquer modo dar sempre
presente na casa de seu Cristóvão. Pelo menos manteria alguma
391
autoridade moral. A sua pressão moral em cima das velhas, das moças.
Irene mesmo não podia fazer uma hostilidade contínua porque era
tolhida pelo desejo de umas chinelas, duns sapatos, um corte, que sua
mãe arranjaria por intermédio de Eutanázio. (JURANDIR, 1997. p. 42)
4. A vida marcada pela ausência do dinheiro
O romance inicia com o segundo protagonista da obra Alfredo voltando para casa,
vindo dos campos queimados de Cachoeira, no final da tarde, início da noite. No trajeto até
seu chalé, o narrador nos apresenta algumas características da localidade, expõe as
condições socioeconômicas da família de Alfredo e os personagens com os quais ele mora:
D. Amélia e Major Alberto, seus pais, Mariinha, sua irmã e Eutanázio, seu meio-irmão, que
tem uma doença, ―misteriosa moléstia essa que parecia invadir todo o chalé‖ (JURANDIR,
1997. p. 16).
Doente, Eutanázio sente-se imundo, como se fosse um excremento. O seu estado
de saúde o faz refletir sobre sua existência e questionar as dificuldades em que vive. Não
aceita nenhum tipo de ajuda e nem se permite conversar com ninguém a respeito de seu
estado. ―– vão ter pena do diabo mas não dele. Deixem ele com a sua doença!‖
(JURANDIR, 1997. p. 25). A enfermidade foi descoberta quando sua madrasta encontrou
sua roupa suja no banheiro. Imediatamente contou ao pai de Eutanázio que questionou o
estado deste, sempre fazendo alusão a questões financeiras.
- Como diabo você anda por aqui com essa imundície? Ficas podre em
vida. Quem depois aguenta com as despesas sou eu, o besta. Por que não
ficou se tratando em Belém? Foi a bem dizer morto e volta com essa...
Por que não se tratou lá? Só um insensato. Você não se emenda. O besta
que pague. O pai da tropa. O besta que esprema o bolso. (JURANDIR,
1997. p. 24)
Eutanázio acha que adquiriu a doença de Felícia ao se deitar com ela, num ímpeto
de desespero ao sair da casa de seu Cristóvão atormentado pela grosseria de Irene. Felícia é
descrita pelo narrador com detalhes que evidenciam a pobreza de sua condição, reforçando
assim, o núcleo de personagens indigentes que rodeiam e caracterizam as relações de
Eutanázio: ―Uma mulher que cheirava a poeira, a poeira molhada. Cheirava a terra depois
da chuva. A fome. Fedia a fome. Estava descalça, gripada, assoando o nariz, no fundo do
quartinho (...)‖. (JURANDIR, 1997. p. 25) o ambiente inóspito e úmido também reforça a
sensação de sujeira, descaso e pobreza: ―Um pote d‘água destampado, um caneco jogado
no chão, um pedaço de esteira (...) dentro do quartinho escuro e sujo‖. (JURANDIR, 1997.
p. 25)
392
Na noite em que acredita ter adquirido a doença de Felícia, concluiu que havia ido
ali somente para isso e desejou sair pelo mundo contaminando todas as mulheres que
pudesse, ―a todas as mulheres aristocráticas do mundo‖. (JURANDIR, 1997. p. 27). O
destaque para aristocráticas serve para evidenciar o seu estado de pobreza, pois se sentiu mais
miserável do que nunca. Nesse trecho é possível perceber um posicionamento do
personagem quanto à realidade em que vive, um posicionamento questionador em relação à
divisão de classes sociais, que aumenta o abismo de sua condição.
Na mesma digressão, logo depois, Eutanázio questiona inclusive os poderes de
Deus para acabar com a fome de Felícia: ―por que Cristo não transformou a pequena cruz
em pão para Felícia?‖ (JURANDIR, 1997. p. 27). É possível perceber uma inconformação
com o poder e com a realidade social, por conta da situação de indigência que rodeia o
personagem. O questionamento dos valores religiosos, reflete um olhar singular do autor,
que será explorado noutras obras do ciclo.
Mas é na casa do seu Cristóvão que Eutanázio se depara com os maiores problemas
de sua condição, pois se vê o tempo todo diante de situações que necessitam de dinheiro.
Alguns personagens o têm como bem de vida e por conta disso vivem a pedir coisas, como
tabaco e até mesmo dinheiro emprestado. Para não desapontar a ninguém, Eutanázio se
põe a fazer até o que não deve, como pedir fiado na mercearia do Ezequias, onde já tem
uma conta grande e até mesmo se apropriar do dinheiro dos outros, como é o caso dos
trinta mil-réis de Felícia. Tudo para poder continuar frequentando a casa de seu Cristóvão
para ver Irene.
Ia pedir fiado no Ezequias. Tem já uma conta grande. Mas Raquel não
tem charutos para limpar os dentes, mascar um bocadinho. Tem de dar
um pulo no Ezequias. Ezequias fará uma cara franzida inevitavelmente.
As mãos sem vontade de Ezequias tirarão da caixa os charutos...(...) Tem
de apressar a marcha, comprar os charutos de Raquel e chegar a tempo
na casa de seu Cristóvão. (JURANDIR, 1997. p. 43).
5. O riso de Irene
Irene motiva no personagem um sentimento ambíguo: de raiva e amor. A relação
com ela evidenciava ainda mais a sua condição de desfavorecido. Em uma situação levou
pra ela presentes que comprou em Belém, mimos esses desprezados pela amada, que os
qualificou como porcaria, desdenhando e rindo de tudo. A desilusão provocou nessa
mesma noite, o encontro com Felícia, da qual contraiu a doença, que o levou à morte. O
desdém de Irene com os presentes que comprou com tanto carinho o deixou
completamente desnorteado e revoltado.
393
D. Tomázia recebera os presentes que ele trouxera de Belém para Irene.
Irene apareceu e começou a rir dos presentes. O par de meias era
vagabundo. A pulseira de se comprar na doca do Ver-o-Peso para as
caboclinhas do Puca que nunca usaram pulseiras. Os sapatos parecendo
de segunda mão. A fazenda do corte era duma cor para enganar
babaquara. E assim Irene foi rindo e a mãe ralhando, até que ela num
safanão jogou com os troços no soalho (...). (JURANDIR, 1997. p. 34)
Ardendo em febre numa rede, reduzido à pele e osso, a morte chegou para
Eutanázio somente após a visita de Irene, seu corpo se negava ao descanso eterno, sem vêla pela última vez. Irene que foi a grande responsável pelas suas caminhadas noturnas, pela
sua entrega aos males de Felícia e por essa necessidade infindável de degradar-se em vida.
Viveu para amar aquele riso.
Irene chegou bela e com um sorriso manso. Uma nova Irene. Grávida e com um
olhar diferente. Não reconheceu mais aquela a quem dedicou tudo o que sentia, aquela por
quem foi capaz de furtar trinta mil-réis, aquela que só com sua presença evidenciava o
estado de pobreza em que Eutanázio sempre viveu.
Não, não era a mesma. Não era a mesma que o levava para as
caminhadas noturnas, para Felícia, para aquele fundo de rede na saleta,
para aquela insondável necessidade de degradação. Irene era outra. Seria
capaz de amar essa desconhecida? De cair pelos caminhos, de furtar
trinta mil-réis de Felícia, de morrer afinal, por uma Irene assim sem o
riso, o olhar, a maldade da outra? (JURANDIR, 1997. p. 286)
No seu leito de morte fechou os olhos em busca da Irene verdadeira. Cansou de
viver da aparência de ter algo para alguns. Cansou de viver uma vida marcada por não
conseguir as coisas pela falta de dinheiro. A pobreza que sempre o rodeou e estava
entranhada em seu corpo provocou uma existência desvalida, desesperançada e privou-o de
viver o amor. Eutanázio refletia em si a realidade que o circulava: pobre, doente, ignorada e
sem amor.
3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Schwarz, Roberto (org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 170174.
394
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Belém: UFPA, 2011. Vol. 14, n.1.
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Cidades, 2004.
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FARIAS, Fernando Jorge Santos. Representação de Educação na Amazônia em Dalcídio Jurandir:
(des) caminhos do personagem Alfredo em busca da educação escolar. Belém: UEPA, 2009.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário da
Língua portuguesa. 4ª ed. rev. Ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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1992.
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PANTOJA, Letícia souto. Representações acerca da escola pública e das práticas de escolarização nas
obras literárias de Dalcidio Jurandir: tecendo análises para se compreender as relações de poder e de classes
em Belém-pa. Campinas: Revista HISTEDBR On-line, 2011.
SCHWARZ, Roberto. Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
395
UM JOGO DE MEMÓRIAS: A CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA
LITERATURA INFANTOJUVENIL
Elisandra Lorenzoni Leiria132
Prof. Dra. Rosane Maria Cardoso (Orientador) 133
Resumo: A dez anos da Lei 10.639, o debate sobre a inclusão étnico-racial ainda é um
desafio para a escola, espaço socialmente delegado para atender à formação do leitor
criança. Pensar sobre a cultura afro-brasileira na literatura infantojuvenil pressupõe trazer à
tona o diálogo entre a natureza artística e simbólica do texto literário e as diretrizes
estabelecidas pela Lei, seus entraves e suas possibilidades na formação de leitores e de uma
sociedade mais compreensiva diante da diversidade. Pretendemos refletir, neste texto,
sobre a obra de literatura infantojuvenil de temática étnico-racial O menino que comia lagartos,
de de Mercè López, oferecida pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE).
Nosso foco de estudo é a narrativa sobre as origens afro-brasileiras. Neste ponto,
analisamos a construção das personagens e o papel da memória como forma de
reconhecimento da multiplicidade étnica do país. Ainda resta um longo caminho para a
ruptura do preconceito e pairam muitas dúvidas sobre o quanto o texto literário poderá
influenciar nessa mudança. Por outro lado, a Lei oferece a oportunidade de democratizar a
discussão sobre a diversidade étnica no Brasil desde a infância, oferecendo ao leitor de
todas as origens novas formas de ver o outro.
Palavras-chave: Narrativa infantojuvenil contemporânea; Memória; Cultura afro-brasileira
Abstract: The debate on ethnic and racial inclusion is still a challenge for the school after
tem years of promulgation of the law 10.639. To think about Afro-Brazilian culture, in the
juvenile literature, presupposes bringing up the dialogue between the artistic and the
symbolic nature of the literary text and the directives established by Law; its drawbacks and
possibilities in the formation of readers and a more understanding view on diversity. We
intend to reflect, in this text, upon the work of juvenile literature called "O Menino Que
Comia Lagartos" (The Boy Who Ate Lizards), written by Mercè López offered by
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Our focus of study is the narrative about
the Afro-Brazilian origins. At this point, we analyze the construction of the characters and
the role of memory in the recognition of the country's ethnic multiplicity. There is still a
long way to overcome prejudice and there are a lot of doubts about how literary texts can
influence this change. On the other hand, the Law provides an opportunity to democratize
the discussion on ethnic diversity in Brazil since childhood, offering readers of all
backgrounds new ways to perceive the other human beings.
Keywords: Contemporary juvenile narrative; Memory; Afro-Brazilian culture
132
Mestranda em Letras - Leitura e Cognição na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). E-mail:
[email protected]
133 Professor do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
E-mail: [email protected]
396
1. Introdução
Refletir sobre a inclusão da cultura afro-brasileira na literatura infantojuvenil
pressupõe trazer à tona o diálogo entre a natureza artística e simbólica do texto literário e
as políticas públicas que valorizam a história e a cultura dos povos negros e reconhecem a
diversidade étnico-racial. Configura-se, portanto, um trabalho bastante complexo, já que
envolve diversos aspectos sociais e legais com o processo estético próprio da literatura.
É perceptível nas propostas literárias disponíveis em nossas livrarias e comprovado
por pesquisas, o crescimento significativo da inclusão da temática étnico-racial e de
personagens negras com real participação nas histórias na literatura destinada ao público
infantil e juvenil. Esse aumento considerável pode ser entendido como resposta à Lei
10.639/2003 e à Resolução n. 1/ 2004, do Conselho Nacional de Educação, que
determinam o ensino obrigatório da história e cultura afro-brasileira nos currículos da
educação básica. A literatura infantojuvenil que, no Brasil, já vinha sendo marcada por uma
abertura ao social e pela tematização do contemporâneo desde a década de 1970
(CADEMARTORI, 1986), incorpora de uma maneira intensa as demandas dos
movimentos sociais e as exigências da lei, buscando atender os princípios de uma educação
multicultural e democrática como consta no edital que seleciona as obras inscritas no
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE):
Serão selecionadas obras com temáticas diversificadas, de diferentes
contextos sociais, culturais e históricos. [...] Não serão selecionadas
obras que apresentem didatismos, moralismos, preconceitos,
estereótipos ou discriminações de qualquer ordem (BRASIL, 2007,
p.15).
Começa, então, uma grande produção de textos que oferecem histórias sobre a
origem afro-brasileira, que apresentam personagens negras de maneira positiva,
promovendo a identificação com os leitores e que tratam de maneira direta a questão da
desigualdade racial, chamando a atenção para suas consequências na elaboração da
identidade dos sujeitos. Contudo, segundo Hunt (2010), é preciso estar atentos ao acervo
de livros que se disponibiliza para as crianças, pois este é permeado por uma cultura de
massa que ganha a mídia e que reflete o universo ideológico de um grupo tendencioso à
banalização de valores e conteúdos, sem o cuidado com a dimensão estética. O autor
ressalta a importância de estarmos atento às escolhas das obras, pois colocamos, por meio
delas, pontos de vista ideológicos em discussão.
397
Assim, pretendemos, nesse breve estudo, discutir questões relacionadas à inclusão
da cultura afro-brasileira na literatura infantojuvenil a partir do texto O menino que comia
lagartos, (2011), de Mercè López, analisando a maneira como o texto valoriza o que antes
era invisibilizado pelo descaso social e político, e em que medida propicia o preenchimento
de lacunas que possam reivindicar a diferença, denunciar e desconstruir os estereótipos.
2. O menino que comia lagartos: memória e cultura afro-brasileira
Catalogado como ficção infantil e infantojuvenil, o livro O menino que comia
lagartos134 (2011), de Mercè López, ilustrado pela própria autora, apresenta uma narrativa
ambientada no oeste da África e proporciona o conhecimento da cultura local, herdada do
antigo Império Maliense e que sobrevive à colonização e à absorção das religiões. A autora
destaca na construção estética a importância de preservar, por meio da música, do
espetáculo, das festas tradicionais e da espiritualidade, alguns traços da cultura africana, tão
valorizada por seu povo e, muitas vezes, esquecida, desconhecida ou desprezada pelo olhar
estranho.
A história é conduzida pelo protagonista Tikorô, um menino conhecido no seu
povoado por zanzar pelas ruas de estilingue em punho caçando lagartos. É um garoto
bonito, esperto, sensível e com semblante alegre e tranquilo. Certa manhã, encontrou um
imenso lagarto branco, triste e debulhado em lágrimas. Sentindo pena do lagarto, que
perdeu suas cores e sua lembrança, o menino é tomado pelos problemas do animal e busca,
primeiramente, a ajuda do ―marabuto‖, sacerdote muçulmano. Este, por meio de um ritual
mágico, decreta: ―seu lagarto se esqueceu de onde veio, quem é e para onde vai. Com as
lembranças, também suas cores se foram, como ocorreu com os filhos da África...‖
(LÓPEZ, 2011). Então, guiados por antigos símbolos e tradições africanas, Tirokô e o
animal partem numa longa jornada contra o esquecimento em busca das lembranças de
―sua terra, de seu tempo, de sua vida e morte e de sua alegria de viver‖ (LÓPEZ, 2011)135.
Logo no início da obra, o narrador, em primeira pessoa, estabelece uma relação
com o leitor, contando como recebeu a história que será apresentada. ―Recebi de Sidiki,
irmãozinho de Alima, a história que você vai ler. Foi Buba quem lhe contou.... e ele mesmo
a ouviu da boca da vizinha, no salão de beleza de Fatu.‖ (LÓPEZ, 2011). Essa passagem
da narrativa pode desvelar a importância da tradição oral, uma das características
134 A obra foi traduzida por Pádua Fernandes e faz parte do acervo do MEC 2012, enviado pelo Programa
Nacional Biblioteca Escolar (PNBE), para as bibliotecas das escolas públicas brasileiras..
135 Os livros infantis, em sua maioria, não apresentam número de páginas. Contudo, os trechos citados
podem ser facilmente recuperados pelo leitor ao manusear a obra.
398
fundamentais da cultura africana. Mesmo as civilizações africanas que dominam a escrita
consideram o testemunho transmitido oralmente e as histórias contadas como um meio de
preservação da sabedoria dos ancestrais.
A oralidade é uma questão de atitude diante da vida, e é possível perceber a
valorização desse elemento em várias passagens do texto. Ele aparece, principalmente, nas
soluções que vão sendo apresentadas na narrativa para curar o lagarto e, geralmente,
apontam para a transmissão de conhecimentos relacionados a costumes e tradições
africanas, por meio de histórias orais, ao longo dos anos. No final da obra, também são
abordadas questões relacionadas à importância de preservar e dar continuidade à tradição
oral pelas gerações posteriores. Isso se percebe quando o lagarto, em agradecimento à ajuda
do menino, concede a ele e a todos os que contarem a história, o dom de sempre voltarem
a sorrir após uma provação.
A narrativa, portanto, pode representar uma possibilidade de perpetuação de
elementos importantes da cultura africana para seus descendentes espalhados por todas as
partes do mundo, principalmente no Brasil. Com relação à questão da herança cultural,
Cunha Júnior (2010) sustenta que o conceito de ancestralidade está profundamente
enraizado no modo pelo qual o povo africano interpreta a realidade. O autor salienta que:
A tradição africana estabelece a sua própria lógica no princípio da
ancestralidade. Nesse sentido, o que importa é a história de um
povo, aquilo que foi construído ao longo do tempo e não a
afirmação egoísta do eu. O eu não é nada sem a tradição porque
está vinculado ao seu passado, à memória daqueles que vieram
antes e regulam a vida de seus descendentes distribuindo sua força
e harmonia. Portanto, podemos dizer que o conceito de
ancestralidade está diretamente ligado ao conceito de identidade,
um não existe sem o outro (JÚNIOR CUNHA, 2010, p. 28).
Segundo Cunha, a identidade de um povo está presente na memória individual e
coletiva dos indivíduos. Ela está inscrita nas artes, na música, na literatura, na arquitetura,
na mídia, na tradição oral, no folclore, pelos quais é transmitida. Assim, uma das leituras
possíveis da obra O menino que comia lagartos é que, em meio à magia e ao mundo
encantador, a criança é convidada a participar da busca de Tikorô e do lagarto pela
memória e pelas cores do animal. E, envolvida nessa aventura, a criança tem a
oportunidade de conhecer povoados e símbolos da cultura africana que podem levá-la a
refletir sobre o valor da tradição cultural e a reconhecer elementos que são apenas
diferentes de outros povos e costumes, mas jamais inferiores ou menos válidos que os
demais.
399
Por meio de um cuidadoso processo estético de positivação do legado e dos
costumes africanos, são apresentados alguns símbolos que representam a cultura africana
como o ―grigri‖ (amuleto africano), os rituais dos mascarados (homens sábios que
conhecem a língua das máscaras e são os guardiões de todos os mistérios), a receita e o
ritual dos três chás (o primeiro, amargo como a vida, o segundo, doce como o amor e o
terceiro, suave como a morte) e as danças em ritmo hipnótico de tambores. Para a cultura
africana, dançar não é apenas se divertir, é uma maneira de falar com o corpo e demonstrar
sentimentos. Na narrativa, o lagarto, ao recuperar quase todas as cores de seu corpo, foi
tomado por uma vontade irresistível de cantar e dançar. Somente quando ―a música e as
palavras foram penetrando todo o corpo do animal, ele enfim parou de chorar‖, e
recuperou suas lembranças, sua alegria de viver e, consequentemente, as suas cores.
O personagem-animal, quando branco e triste, contrasta com o colorido vibrante
dos ambientes e das roupas africanas e com a satisfação e alegria estampadas por largos
sorrisos nos rostos de todos os personagens negros. Além disso, pode ser entendido como
uma metáfora do esquecimento e da falta de reconhecimento e valorização dos ancestrais e
da cultura de um povo para a construção de identidade e da harmonia da vida. O lagarto
havia esquecido quem era e por esse motivo encontrava-se ―tão pálido, que não dava
apenas medo, mas também pena‖ (LÓPEZ, 2011). Aos poucos, vai reconhecendo sua
cultura e recuperando o legado deixado pelos que vieram antes e, assim, consegue regular
novamente sua vida e recuperar sua força. O animal sem cores também pode ser entendido
como a representação daqueles que esquecem experiências das origens africanas como
dançar, cuidar da espiritualidade, buscar seu tempo, o contato com a natureza e com a
terra, tão importantes para se atingir o equilíbrio necessário da existência, Conforme Paiva
(2008, p. 47), o uso de estratégia metafórica na literatura infantil oferece à criança um
amplo grau de abertura, conduzindo-a ao mundo complexo, para que ela tente,
interiormente, justificar acontecimentos que ainda não compreende totalmente.
Ainda que muitos outros sentidos possam ser desvelados da obra O menino que comia
lagartos, pois os significados estão sempre se reconstruindo, é possível perceber que a
memória exerce um papel importante na narrativa, e é valorizada em praticamente todo o
processo estético da obra. O protagonista, mesmo sendo criança, é chamado de ―Tikorô, o
Velho‖, para lembrar seu avô. A representação dos ―Griôs‖, poetas, músicos e cantores
andarilhos africanos que guardam a memória e as tradições de uma comunidade é outro
elemento apresentado na narrativa que pode remeter ao vínculo entre a memória e
valorização dos antepassados.
400
Para Elizabeth Jelin (2012) a memória é um elemento constitutivo da identidade
individual ou coletiva, na medida em que é reconhecida como um fator essencial do
sentimento de continuidade e coerência do sujeito ao constituir a si mesmo e aos outros.
Para a autora, o que sustenta a identidade é o fenômeno de poder recordar e rememorar
algo do passado, considerando que núcleo de qualquer identidade individual ou coletiva
está ligado a um sentido de permanência ao longo do tempo e do espaço. Contudo, Jelin
destaca que, nesta relação de mútua constituição da memória e da identidade, é preciso
refletir sobre os marcos sociais instituídos pelas tradições que são incorporados por
gerações sucessivas e norteiam a elaboração das memórias, definindo os limites da
identidade do sujeito individual ou coletivo. A autora sustenta que para poder transmitir os
sentidos do passado é necessário que: ―primero que existan las bases para um proceso de
identificación, para una ampliación intergeneracional del nosotros/as. Segundo, dejar
abierta la posibilidad de que quienes ―reciben‖ le den su proprio sentido, reinterpreten y
resignifiquen – y no repitan o memoricen‖ (JELIN, 2012, p. 151).
Apoiando-se na definição de Jean-Yves Tadié e Marc Tadié (1999), Zilberman
(2008), define a memória como parte fundamental da constituição do indivíduo, sendo o
elo entre o que fomos e o que somos, além de ser responsável por nossa personalidade e
identidade pessoal. A autora enfatiza a narrativa como um dos elementos responsáveis pela
preservação da memória, pois institui o espaço em que a rememoração se manifesta em
forma de relato retrospectivo. Desse modo, a obra em estudo, proporciona a reflexão
sobre o valor dos antepassados e apresenta uma possibilidade de reconstrução das
memórias. A partir disso, pode contribuir para o questionamento de certos preconceitos
culturais ainda presentes em nossa sociedade e sugerir que os saberes e sentidos do passado
podem ser uma questão aberta para a multiplicidade de atores e para a diversidade de
experiências e significados do passado expressos pela memória.
Nessa linha de pensamento, avulta a importância da real participação de
personagens negras e de elementos da cultura afro-brasileira na literatura infantojuvenil,
pois acreditamos que a identificação com narrativas próximas de seus costumes, com
personagens que descrevem alegrias e problemáticas semelhantes às suas, possa levar a
criança a reflexões próprias sobre o seu papel na sociedade, contribuir para a afirmação de
uma identidade étnica e para o reconhecimento e respeito da diversidade. Conforme
Cardoso (2011), realidades ficcionais que permitam à criança negra reconhecer-se como
protagonista e como parte desse mundo mágico, podem contribuir para sua autoestima e
para seu reconhecimento no mundo. Além disso, para a criança não negra, pode
401
representar uma oportunidade de formação cultural pelo reconhecimento das diferenças
étnicas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O enfrentamento de questões fundamentais da existência humana atinge as crianças
com intensidade semelhante à que atinge os adultos. Por trás de nossa, ainda, pretensa
proteção, as crianças se confrontam em seu cotidiano com temas como morte, medo,
separação, abandono, sexualidade, diversidade e preconceito. Não podemos mais
subestimar a capacidade das crianças de lidar com a realidade e com a presença desses
temas na literatura.
Ao reconhecer que, historicamente, a escola tem sido considerada como um dos
espaços para a democratização social, acreditamos que a proposta da lei 10.639/2003 de
inclusão da temática étnico-racial por meio da literatura pode proporcionar ao leitor criança
o acesso de textos literários que valorizam a diversidade cultural pela seleção mais criteriosa
realizada pelo PNBE das obras destinadas para as escolas públicas brasileiras. Desse modo,
pode ocorrer a democratização da leitura de obras como O menino que comia lagartos e outras
que valorizam a etnia africana e que estimulam o imaginário e a sensibilidade da criança.
Nessa obra, encontramos a ludicidade e a fantasia, elementos importantes para a
formação do leitor, além da busca da afirmação da identidade negra a partir de uma
narrativa de positivação da imagem física e intelectual e do resgate das origens. Por meio do
tema da memória, é possível que o leitor reflita sobre a multiplicidade de sentidos do
passado e sobre a importância de valorizar os que vieram antes de nós e deixaram seu
legado. A abordagem do tema também pode proporcionar o afastamento de posturas
preconceituosas, pois o leitor passa a entender que as diferenças culturais são heranças de
nossos antepassados, que precisam ser reconhecidas e reelaboradas.
Tivemos a intenção de ressaltar, nesse estudo, o fascínio provocado pela literatura e
a possibilidade de, por meio da ficção, enquanto processo estético, problematizarmos a
complexidade das relações sociais em termos de convivência com o diferente e investir nas
emoções do ser humano frente à vida. Para isso, acreditamos que seja necessário abandonar
a literatura de entretenimento adaptada à função de ferramenta pedagógica e aos anseios do
mercado editorial e garantir a literariedade na produção para a criança, de maneira que o
conteúdo seja apresentado por meio de boa qualidade textual e temática, com projetos
gráficos cuidadosos, criativos e estimulantes.
402
Nessa perspectiva, verificamos nas pesquisas de Debus (2010; 2012) que, a partir da
sanção da lei 10.639/2003, ocorreram mudanças positivas na produção literária destinada
ao público infantil e juvenil em relação à maneira como se apresenta a temática étnicoracial, e ainda, em relação aos títulos que passam a incluir a real participação de
personagens negras, costumes afro-brasileiros e informações culturais produtoras de
identificação entre o leitor e a narrativa. Nessas pesquisas, constatamos que, aos poucos, a
politização das diferenças tem produzido mudanças de rumo e de concepções,
problematizando o direito à diferença. Nesse contexto, Martins e Gomes (2010, p. 144)
afirmam que ―a literatura tem ocupado um lugar importante, em virtude de seu caráter
mágico, ficcional e, principalmente, por propiciar a introdução de discursos afirmativos,
humanizadores, sobre diferenças tratadas de forma desigual no contexto social.‖
Acreditamos, então, que um dos caminhos para o entendimento e consciência
acerca da pluralidade cultural está também na apropriação da leitura literária que possibilita
a elaboração de identidade por meio da inclusão étnico-racial e da valorização da
ancestralidade e do resgate da memória e dos costumes, como no livro O menino que comia
lagartos e outros. A obra em estudo representa situações vividas pela criança, de brincadeiras
comuns ao cotidiano infantil. Sua narrativa é ancorada em cenários que exaltam o colorido
da terra, da luz e das roupas e por personagens alegres, que expressam sua energia de viver.
A partir da maneira como se relacionam todos os elementos na narrativa – conteúdo,
linguagem, imagens - vários sentidos vão sendo desvelados, como a importância de
preservar e valorizar as características marcantes da cultura de um povo e, principalmente,
sugerir que, ao esquecermos ou renegarmos nossas origens, nossos costumes e nossa
ancestralidade, poderemos perder nossa força e nossa identidade. Se esquecermos de onde
viemos, corremos o risco de não entender quem somos e para onde vamos. Contudo,
salientamos que numa sociedade étnico plural, como a brasileira, faz-se necessário elaborar
memórias e lembranças no lugar de apenas revivê-las.
Enfim, podemos considerar que a representação do negro e da cultura afrobrasileira, apresentadas na obra de Mercè López, realiza, conforme definição de Martin e
Cosson (2008, p. 59), ―uma operação estética de positivação do que era desvalorizado pelo
olhar estranho ao grupo, reivindicando a diferença, preenchendo lacunas e desconstruindo
os estereótipos‖. O jogo de memórias, reelaboradas a partir dos avanços da literatura
quanto à inclusão da cultura afro-brasileira, contribui para refletir sobe as origens culturais,
sobre o reconhecimento da diferença e construção de identidade étnica positiva.
403
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Lei n.º10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9394/96, de 20 de
novembro de 1996. que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir
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Horizonte: Ceale, Autêntica, 2008.
404
A VIÚVA SIMÕES E A AUDÁCIA DESSA MULHER : UNIVERSOS
CONTRASTANTES.
Elódia Xavier (UFRJ)
Em 1897, Júlia Lopes de Almeida publica A Viúva Simões, romance que, embora surgido
pós assinatura da Lei Áurea e da Proclamação da República, ainda guarda os valores de um
passado tradicional e conservador. O script tem todos os componentes da repressão
patriarcal, onde as relações de gênero são rigidamente demarcadas e vigiadas pela
―expressão severa do retrato do Comendador Simões‖, pendurado na parede da sala. A
casa, aqui, funciona como a proteção contra as tentações da vida exterior, para que a viúva
preserve seu status de senhora respeitável e de boa dona de casa.
Ernestina, a protagonista do romance, é e será sempre a ―Viúva Simões‖, e o preto a cor
oficial de suas roupas. A própria filha, ainda adolescente, defende a permanência dos
hábitos tradicionais. A situação inicial do romance é marcada pelo apego da protagonista à
casa. O narrador, depois de relatar os cuidados com o jardim, a horta, o pomar e o
galinheiro, detém-se nas exigências propriamente domésticas.
A cozinha tomava-lhe horas. Passava os dedos nas panelas e nos ferros
do fogão, a ver se estavam limpos; cheirava as caçarolas; obrigava a
Benedita a arear de novo tachos e grelhas, a lavar a tábua dos bifes e o
mármore das pias e da mesa. Se havia alguma torneira pouco reluzente
ou alguma nódoa no chão, detinha-se, exigindo que se corrigisse a falta
logo ali, à sua vista. E era assim por todos os compartimentos,
minuciosa, ativa, severa. (p.36)
Essa fixação pelos deveres domésticos, narrada de forma enfadonha pela insistência do
pretérito imperfeito, revela-se logo um recurso para fugir aos desejos recalcados. Ernestina
lembra a personagem Ana do conto ―Amor‖, de Clarice Lispector. Aqui, a rotina doméstica
protege a protagonista do ―perigo de viver‖, como os afazeres do lar mascaram os
desfalecimentos, os desejos irrealizáveis da viúva. Mas num domingo, vivendo um
momento de melancolia e uma certa revolta contra ―a pacatez da sua vida sem emoções‖
(p.38), eis que lhe surge, voltando de uma viagem a Paris, Luciano, a quem amara antes de
se decidir pelo casamento com o comendador Simões. A casa, como uma couraça, deve lhe
garantir o prestígio de mulher acima de qualquer suspeita. Mas a presença constante de
Luciano vence todas as barreiras, até mesmo o retrato do ―marido terrível e ameaçador‖,
que acaba sendo retirado da parede. Sara, a filha,a princípio não lhe é simpática, mas os
esforços da mãe para torná-la aceita pelo namorado acabam, com o tempo, fazendo-a
amada por ele, que fica dividido entre a sensualidade madura da mãe e a juventude
exuberante da filha. E, aqui, temos o clímax do drama narrado: um triângulo amoroso
405
formado por Luciano, a viúva e a filha. Como Ernestina mantém seu namoro com Luciano
em sigilo, uma vez que preza a fama de mulher honesta, Sara ignora o que se passa entre os
dois e a revelação de que a mãe ama o mesmo homem que ela, será desastrosa. O golpe
violento provoca em Sara um abalo cerebral, deixando-a idiota. Ernestina, restabelecida de
uma pneumonia, passa a se dedicar completamente à filha, pedindo a Luciano que nunca
mais volte àquela casa. Um folhetim bem ao gosto do século XIX! O castigo pela
transgressão de Ernestina não afeta o destino de Luciano, que ao final da narrativa embarca
novamente para Paris.
E o leitor se questiona: de quem a culpa pelo trágico desfecho? De Luciano? De
Ernestina? Da sociedade? Provavelmente, das relações de gênero que pautam os
comportamentos sociais, impondo rígidos papéis às mulheres em contraste com a
flexibilidade comportamental atribuída aos homens. Pierre Bourdieu, em A dominação
masculina, mostra como esses papéis são construídos socialmente pelo poder falocêntrico. ―
A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar
duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza
biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada.‖ (p.33)
Graças ao trabalho de teóricas feministas e pensadores contemporâneos, como Pierre
Bourdieu, por exemplo, o processo de naturalização das diferenças entre os gêneros
tem sido desconstruído, revelando- se uma estratégia aliada do poder falocrático. A
literatura de autoria feminina tem feito seu dever de casa, inicialmente, insistindo na
vitimização das mulheres, para depois atacar criticamente as relações de gênero, em
contos e romances. De forma explícita ou implícita, a ficção de autoria feminina
dramatiza, nesta fase, as relações de gênero, causadoras do sofrimento feminino. Hoje,
vivemos um outro momento, onde as escritoras , diante das mudanças sociais, criam
universos onde as relações de gênero não se constituem na temática dominante.
Narradores e protagonistas masculinos povoam esse universo e os dramas narrados
têm a ver com a realidade social contemporânea. Liberdade, segurança, violência,
pertencimento, deslocamentos, são temas que permeiam tanto os textos de autoria
feminina como os de autoria masculina.
Ana Maria Machado publica, mais de um século depois de A Viúva Simões, A audácia
dessa mulher(1999), romance que contrasta visivelmente com o universo criado por Júlia
Lopes de Almeida. A protagonista da história, Bia, é uma jornalista que trabalha na
seção de turismo, em constantes viagens pelo mundo a fora. Seu namorado, Fabrício,
com quem tem uma relação estável mas não possessiva, se encontra nos Estados
406
Unidos a trabalho. Ao se envolver com uma equipe de pesquisadores sobre o Rio
antigo, para a realização de uma série televisiva, ela conhece Virgílio, divorciado com
dois filhos e muito charme. A atração mútua cria um relacionamento que dura até o
final da narrativa sem nenhum desenlace. Bia se sente dividida, mas a relação estável
com Fabrício perdura até o final, na iminência de um reencontro. Ela se refugia na casa
de
campo, sozinha, para melhor ponderar suas escolhas. Não segue caminhos
preestabelecidos. ―Era uma mulher com seu próprio projeto pessoal, que a
entusiasmava e impedia sua dedicação irrestrita a uma pessoa.‖ (p.220) Como conciliar
essas coisas? Simone de Beauvoir, em seu livro O Segundo Sexo, já apontava para a
dificuldade das mulheres conciliarem vida profissional e vida afetiva.
O privilégio que o homem detém, e que se faz sentir desde sua
infância, está em que sua vocação de ser humano não contraria seu
destino de homem. Da assimilação do falo e da transcendência, resulta
que seus êxitos sociais ou espirituais lhe dão um prestígio viril. Ele não se
divide. Ao passo que à mulher, para que realize sua feminilidade, pede-se
que se faça objeto e presa, isto é, que renuncie a suas reivindicações de
sujeito soberano. É esse conflito que caracteriza singularmente a situação
da mulher libertada. (p.452,v.2)
A protagonista procura, no silêncio do Recanto, em contato com a natureza, achar seu
centro, ter a coragem de impor limites a si mesma para poder chegar mais fundo em suas
decisões.
Via a si própria e a Fabrício com outras lentes. Um casal realista, com
coragem de desafiar os modelos consumistas de uma sociedade de
massa, que confunde amor com arrebatamentos hollywoodianos e prega
o modelo das pessoas descartáveis. Um par de cúmplices, tentando não
seguir a moda amorosa da época, mas inventar um padrão novo, em que
fossem fiéis a si mesmos e leais um ao outro. Com um sentido de
permanência que não se oferece nas vitrinas. Difícil, reconhecia. Mas
possível, esperava. (p.224)
Um caderno de receitas, de propriedade ignorada, que Virgílio empresta a Bia, como uma
relíquia familiar, tem uma importância fundamental dentro da narrativa. A protagonista se
interessa pelas receitas e, sobretudo, por uma carta que esclarece todas as dúvidas. A
autora, Lina, a Capitu de Machado de Assis, na carta a sua amiga Sancha, conta a versão
dos fatos que a levaram a Suiça onde construiu uma nova vida. Passados quarenta anos e
desenganada pelos médicos, resolve contar os fatos ocorridos depois da separação de
Santiago. Uma história de coragem e determinação que acaba mexendo com a cabeça da
407
protagonista, que lê avidamente o caderno emprestado. O fato de Lina não ter se matado,
conforme a versão de Bentinho, mas ter construído uma vida nova e ter tido ―a audácia de
se parir de novo‖, numa época em que as mulheres sozinhas pouco ou nada podiam fazer,
é admirável. E vem ao encontro das ideias modernas de Bia.
O ciúme é um dos temas explorado aqui por Ana Maria Machado. Elemento fundante na
história de Bentinho e Capitú, ele se materializa na relação entre Ana Lúcia e o namorado,
rapaz ciumento e possessivo que não aceita a independência da moça. Esta encontra em
Bia uma conselheira decidida a não aceitar dominação masculina. Diante da indecisão de
Ana Lucia em trocar de namorado, Bia incentiva: ―Isso, menina, vá em frente, você merece.
Os homens doces são raros e valem ouro.‖ (p.177)
Numa comparação superficial entre A Viúva Simões e A audácia dessa mulher, no que diz
respeito às relações de gênero, percebe-se que a protagonista do primeiro romance foi
vítima das injunções sociais que decidiam o destino da mulher. Uma vez casada, cabia a ela
ser esposa, mãe e dona de casa, com a identidade atrelada ao marido, mesmo viúva.
Ernestina está presa ao ―destino de mulher‖ e sofre as consequências de sua transgressão,
enquanto Bia se ocupa em construir o destino, de forma consciente e de acordo com sua
vontade.A casa couraça não é suficiente para livrar Ernestina da paixão por Luciano, mas
Bia vai saber conciliar sua vocação profissional e seu desejo de aconchego, numa mistura
equilibrada e feliz.
Da mesma forma jamais poderia se sentir feliz se não soubesse que ia
estar sempre viajando. Mas nunca seria plena se não pudesse voltar
sempre para um canto que a acolhesse, um território animal que fosse
seu, num chão que pudesse lhe injetar vida quando o pisasse descalça, a
caminhar entre sons, visões e odores que costuravam a sua memória.
Não podia viver no exílio. Mas não podia transformar casa em cárcere.
(p.207)
O projeto de vida da Bia se assemelha ao que Zygmunt Bauman chama de difícil equilíbrio
entre segurança e liberdade. No ―destino de mulher‖prevalece a segurança, pois o caminho
já está traçado. Bia, ao contrário de Ernestina, escolhe seus caminhos com a desenvoltura
de uma mulher liberada, mas não rejeita a segurança que um canto acolhedor, sem dúvida,
garante.
408
Referências Bibliográficas
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Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
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Bertrand Brasil, 1999.
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1999.
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Record: Rosa dos Tempos, 1998.
________. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007.
________. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2012.
409
A ESCRITA FEMININA EM CADERNOS NEGROS- OS
MELHORES CONTOS (1998): UM MERGULHO NO
TERRITÓRIO SELVAGEM
Emília Rafaelly Soares Silva136
Algemira Mendes de Macedo (Orientadora)137
Resumo: A escrita feminina, marcada pelo silenciamento e exclusão históricos, apresentase de forma multifacetada e opaca, incipiente de paradigmas de interpretação. Nesse
contexto, a crítica feminista surge numa perspectiva revisionista no sentido de romper com
os discursos sacralizados pela tradição e trazer à tona as vozes que foram silenciadas. Este
estudo tem por objetivo analisar como a escrita feminina das autoras afrobrasileiras
(Miriam Alves, Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira e Sônia Fátima) adentra
no território selvagem da crítica literária, espaço este dominado tradicionalmente pela
hegemonia do homem branco e letrado.Para tal estudo, utilizar-se-á como corpus de análise
os contos publicados pelas referidas autoras na antologia do grupo Quilombhoje Cadernos
Negros: os melhores contos (1998), a saber: Ana Davenga, Guarde Segredo, Operação Candelária, Alice
está morta e Obsessão. Nesse intuito, utilizaremos aportes teóricos que conduzem a um
melhor entendimento sobre o gênero conto, como as definições elaboradas por Cortázar
(2006) e Gotlib(1998); sobre a crítica feminista e a escrita feminina, através das discussões
de Showalter (1994), Branco (1991), Zinani (2006) e Zolin (2005); e sobre as relações de
poder implicadas, nas acepções de Bourdieu (2011), Ludmer (2002) e Saffioti (1987).
Palavras-chave: Crítica Feminista, Escrita Feminina, Relações de Poder.
Resumé: L'écriture féminine, marquée par l'exclusion et faire taire les présents historiques
ainsi multiformes et opaque paradigmes émergents d'interprétation. Dans ce contexte, la
critique féministe arrive à un point de vue révisionniste, afin de briser les discours
prononcés par la tradition sacrée et de faire ressortir les voix qui ont été réduits au silence.
Cette étude vise à analyser la façon dont l'écriture des auteurs femmes afro-brésiliennes
(Miriam Alves, Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira et Sonia Fatima) pénètre
dans le territoire sauvage de la critique littéraire, un espace traditionnellement dominé par
l'hégémonie de l'homme blanc et letrado.Para cette étude sera utilisée comme analyse de
corpus des récits publiés par ces auteurs dans l'anthologie du groupe Quilombhoje Black
Books: les meilleurs contes (1998), à savoir: Ana Davenga, Gardez Candelaria opération secrète, Alice
est morte et Obsession. À cette fin, nous utilisons des apports théoriques qui conduisent à une
meilleure compréhension du genre court récit, que les définitions élaborées par Cortázar
(2006) et Gotlib (1998), à propos d'une critique des femmes féministes et l'écriture, à
travers des discussions Showalter (1994), Blanc (1991), Zinani (2006) et Zolin (2005), et sur
136
Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Área de Concentração: Estudos
Literários. Email: [email protected]
137
Doutora em Teoria Literária pela PUC-RS. Professora do Mestrado em Letras da Universidade Estadual
do Piauí. Email: [email protected]
410
les relations de pouvoir impliquées dans le sens de Bourdieu (2011), Ludmer (2002) et
Saffioti (1987).
Mots-clés: Critique Féministe, Women Writing, Relations de Puissance.
1. Introdução
Os olhares dos estudiosos atualmente estão cada vez mais voltados para a literatura
feminina, com o intuito de inserir, no apertado território selvagem, nas palavras de Elaine
Showalter (1994), as autoras que, pelo fato de serem mulheres, foram renegadas
historicamente ao silêncio. Não somente pelo fato de serem mulheres, mas pela condição
feminina subnutrida de direitos sociais e políticos, estes que foram recém-conquistados.
Somente a partir da década de 60 o movimento feminista ganha fôlego para protestar e
garantir espaço para a mulher na sociedade. A crítica feminista aparece, nesse contexto,
como uma alavanca que as escritoras dispõem para adentrar nesse território da crítica,
comumente reservada aos homens brancos e letrados. Em se tratando de escrita feminina e
de escrita feminina negra, esse espaço parece ainda mais fechado e difícil de transpor.
Este artigo tem por objetivo estudar a escrita feminina a partir dos textos de autoria
feminina extraídos da antologia Cadernos Negros- Os Melhores Contos (1998), bem como
posicionar a obra no tocante a teoria feminista. Para um melhor entendimento,
analisaremos também como as autoras afro-brasileiras, presentes nessa antologia,
constroem suas visões de mundo a partir das especificidades do gênero conto.
Sobre a complexidade em se definir o que vem a ser o conto, Júlio Cortázar (2006)
afirma que é um gênero de difícil definição, visto que é esquivo nos seus múltiplos e
antagônicos aspectos. Isso acontece, segundo o pesquisador, porque o conto trabalha com
ideias que tendem para o abstrato, como um ―tremor de água dentro de um cristal‖, ou
seja, algo limitado em um espaço que possui uma fugacidade dentro de uma permanência,
uma matéria viva (água, ideia) dentro de uma forma condensada.
Gotlib (1998), ao estudar o conceito de unidade de efeito descrito por Poe,
percebeu que a composição literária causa no leitor um estado de ―excitação‖ ou de
―exaltação da alma‖ que deve ser feita de forma dosada pelo contista. O mais importante é
que o leitor consiga ler o conto ―de uma só assentada‖ para que a unidade de efeito possa
ser identificada, assim como acontece na poesia.
411
O conto, segundo Cortázar (op.cit.) é significativo quando possui uma energia
espiritual iluminadora que vai muito além da simples história que se conta. E para que isto
ocorra é necessário que o tempo e o espaço estejam condensados. Outro elemento citado é
a intensidade que constitui na eliminação de todas as ideias ou situações supérfluas. Diferente
da intensidade é a tensão que é o aproximar lentamente daquilo que o autor nos quer contar.
É como a imagem de uma argila na qual o modelador vai pouco a pouco montando de
dentro para fora até a sua tensão maior, na forma esférica: que é a forma do conto. Uma
forma esférica como uma bolha de sabão que atrai a nossa atenção por sua beleza e força
por tentar manter-se íntegra.
Em Cadernos Negros: Os melhores contos (1998) percebemos como os conceitos de Poe,
Gotlib e Cortázar podem ser aplicados. Nessa antologia os contos apresentam-se de forma
breve e procuram apontar elementos narrativos de forma condensada para aguçar a
imaginação do leitor. Os contos mostram algumas cenas cotidianas (como se fossem
fotografias) que apontam para uma realidade que transcende o micro-mundo ficcional: a
inserção do negro e da escrita feminina num espaço literário que, tradicionalmente, nunca
pertenceu a esse grupo.
2 Escrita Feminina em Cadernos Negros- Os melhores contos
Dentre os contos apresentados, selecionamos os de autoria feminina para compor o
corpus de análise deste artigo, são eles: Ana Davenga de Conceição Evaristo,Guarde Segredo de
Esmeralda Ribeiro, Operação Candelária de Lia Vieira, Alice está morta de Miriam Alves e
Obsessão de Sônia Fátima.
O conto Ana Davenga, de Conceição Evaristo, mostra-nos uma protagonista que
morava num barraco com o ―seu homem‖ Davenga. A história inicia-se já criando uma
tensão sobre o paradelo de Davenga, um sujeito chefe de um grupo de bandidos que tinha
um coração bom, mas que, quando confrontado, parecia o diabo. As descrições de
Davenga, a sua demora em chegar e as várias pessoas na casa de Ana Davenga, que não
explicam o motivo de estarem lá, criam um clima de suspense (tensão) como se uma tragédia
estivesse iminente:
O peito de Ana doía de tremor. Todos estavam ali, menos o dela. [...]
Onde estava Davenga? Teria se metido em alguma confusão? Sim, seu
homem só tinha tamanho. No mais era criança em tudo. Fazia coisas que
ela nem gostava de pensar. Às vezes ficava dias e dias, meses até,
foragido, e quando ela menos esperava dava com ele dentro de casa.[...]
(EVARISTO,1999, p.32-33)
412
Davenga era um homem de pele ―negra, esticada, lisinha e brilhosa‖ e tinha uma
característica peculiar que o distinguia dos outros homens: o seu ―gozo-pranto‖. Durante a
relação sexual, Davenga chorava e parecia sofrer muito a ponto de Ana às vezes preferir
não dormir com ele para não causar-lhe sofrimento. Mas esse sentimento era uma mistura
de doçura, gozo e dor.
Segundo Bataille (1987), o erotismo é uma atividade humana que implica sempre na
união ou no movimento para que se alcance este fim. Pode ser a união entre corpos, daí
falamos em erotismo dos corpos, ou a conexão com o cosmo ou com Deus, erotismo sagrado, ou
uma união amorosa espiritual, erotismo dos corações. O objetivo dessas experiências seria um
encontro, um contato com a totalidade, na busca da continuidade perdida.
Em Ana Davenga encontramos o erotismo dos corpos, como podemos perceber no
seguinte fragmento:
[...] Davenga estava ali, na cama, vestido com aquela pele negra,
brilhante, lisa que Deus lhe dera. Ela também, nua. Era tão bom ficar se
tocando primeiro. Depois haveria o gozo de Davenga, tão doloroso, tão
profundo,
que
ela
ficava
adiando
o
gozo-pranto.
[...](EVARISTO,1998,p.40)
O erotismo dos corpos é descrito como algo ―pesado‖ e ―sinistro‖, talvez porque
envolva o corpo e mais objetivamente a nudez que coloca o ser num estado propício à
fusão erótica. Os corpos se abrem para uma continuidade através dessa comunicação entre
corpos que faz com que o ser perceba a si mesmo. A paixão coloca o homem numa
desordem extremamente violenta cujo gozo arrebata uma felicidade tão paradoxal que se
confunde com o sofrimento, ―pois há para os amantes mais chance de não poder se
reencontrar longamente do que gozar de uma contemplação alucinada da continuidade que
os une‖ (Bataille,op.cit.,p19).
Davenga era um homem possessivo. Isso podemos notar quando o narrador relata
o caso de amor entre Davenga e Maria Agonia, uma mulher crente, filha de Pastor,
instruída e que gostava de visitar os presídios para ―levar a palavra de Deus‖. Envolve-se
sexualmente com Davenga no primeiro encontro, mas quando ele lhe propôs que
morassem juntos ela não quis. Revoltado, Davenga manda matar sua amada a balas.
Segundo Bourdieu (2011,p.29-30) as relações entre os gêneros aparecem de forma
assimétrica, nas quais o homem ocupa a posição de superioridade (alto sexual) e a mulher a
posição de inferioridade (vazio). Dessa forma, o ―ato sexual em si é concebido pelos
homens como uma forma de dominação, de apropriação, de ‗posse‘.‖.
Com Ana é diferente, visto que ela aceita resignadamente o ―seu homem‖ indo
morar junto dele e assumindo seu sobrenome ―Davenga‖. Ana nunca questionou o modo
413
de vida de seu amante e ficava em casa esperando notícias dele. Sabia dos riscos que corria
ao lado desse homem, contudo ela o desejava corporalmente e isso a fazia viver, mesmo
sabendo que a vida ao lado de Davenga seria bem curta.
Ana Davenga estava grávida e temia pela sorte de seu filho, pois ela sabia que o
futuro chegava muito rápido e o tempo para o bebê crescer era breve. O conto chega ao
seu clímax com a chegada de Davenga extremamente feliz e anunciando que era uma festa
surpresa. Ana era tão ligada à vida de ―seu homem‖ que não recordara de seu próprio
aniversário. E é na primeira comemoração de sua vida que ela é morta por policiais
juntamente com Davenga. Ana morre ―protegendo com as mãos um sonho de vida que ela
trazia na barriga‖.
Em Guarde Segredo, da escritora Esmeralda Ribeiro, encontramos uma escrita
feminina que busca reescrever uma história das mulheres. Em dois sentidos: um literário e
outro para além do literário. O conto é envolto numa atmosfera surreal e intimista. Essa
trama nos surpreende com um extraordinário diálogo com a obra Clara dos Anjos e com o
próprio autor Lima Barreto.
A história é uma carta-resposta a uma amiga da avó da narradora-personagem. A
partir dessa carta misteriosa ficamos sabendo que a neta, depois de ser despejada com a
família de uma quitinete em Copacabana, vai morar com a sua avó Olívia, uma senhora
firme e autoritária. A casa da avó era muito antiga e revela muitos segredos. Tinha vários
quartos, mas todos ficavam sempre trancados, e isso deixava sempre a neta encabulada.
Olívia andava sempre com as chaves dos quartos no bolso, o que aumenta a tensão
narrativa. Outro fato que aumenta a expectativa é o aparecimento de um misterioso
homem que aparecia de vez em quando e brincava com a narradora. Mais tarde
descobrimos que esse homem é o autor Lima Barreto.
Passam-se alguns anos e a narradora deixa de ser criança e começa a namorar Cassi
Jones, um sujeito que, semelhante à obra Clara dos Anjos, era um sedutor barato. A partir
daí a história se entrecruza com a de Lima Barreto e os personagens transitam de uma
história para outra, gerando um acontecimento extraordinário no conto.
A mãe de Cassi Jones é contra o namoro, e insulta a jovem por conta de sua cor:
―Você é a quinta negra que meu filho deflorou e também não vai ficar com ele. Nesse
exato momento está com outra garota‖ (RIBEIRO, 1998, p.70-71). Indignada, a narradora
compra uma faca, num átimo de coragem e de luta contra a discriminação social e racial, e
golpeia várias vezes o Cassi Jones até ele cair desfalecido.
414
Sobre as mulheres que matam na literatura, Ludmer (2002, p.332) afirma que elas
―formam parte de uma constelação de novas representações femininas mas se diferenciam
nitidamente das demais. São o reverso ou contraface das vítimas.‖
Após decidir o novo final para a obra, Lima Barreto se despede e agradece a Olívia,
que sentencia à sua neta a seguinte mensagem de resistência: ―Nós não temos que aceitar o
destino com resignação‖. Dessa forma, Olívia, uma voz feminina, reescreve uma história de
subordinação de que circunscreve as mulheres negras e pobres. É a transformação da
mulher como sujeito de sua própria história, não mais representada por uma voz masculina.
Clara dos Anjos, como podemos perceber, é substituída por uma personagem forte,
consciente, que não se resigna perante a sociedade patriarcal. A personagem de Lima
Barreto representa um passado em que uma mulher pobre e negra é renegada socialmente,
até mesmo por um escritor reconhecidamente irmanado pelas causas sociais. A proposta
de Esmeralda Ribeiro é revisionista no sentido de se propor novas personagens femininas
que resgatem uma dignidade historicamente sucumbida a partir de personagens-sujeitos.
Zolin (2005) elucida que os debates promovidos pela crítica feminista objetivam a
modificação da condição da mulher enquanto objeto subjugado.
Trata-se de tentar romper com os discursos sacralizados pela tradição,
nos quais a mulher ocupa, à sua revelia, um lugar secundário em relação
ao lugar ocupado pelo homem, marcado pela marginalidade, pela
submissão e pela resignação. (ZOLIN, 2005, p.182)
Adentrar no ―território selvagem‖ da crítica tem sido uma tarefa cara à crítica
feminista. Esse território teórico, essencialmente masculino, como anuncia Showalter
(1994) é a arena pleiteada pela crítica e história feministas. Partindo da premissa de que
―toda crítica feminista é de algum modo revisionista‖, a ensaísta critica algumas críticas
feministas que ainda esperam pela aprovação dos White fathers que não desejam incluir a
escrita feminina no cânone, este estritamente destinado aos brancos letrados. Showalter
(1994) defende, ao invés disso, uma nova crítica feminista formada a partir de novas
premissas:
Está na hora de a crítica feminista decidir se entre religião e revisão
podemos reivindicar alguma área teórica sólida para nós mesmas. Ao
postular uma crítica feminista que seja genuinamente centrada na mulher,
independente e intelectualmente coerente, não pretendo endossar as
fantasias separatistas visionárias feministas radicais ou excluir de nossa
prática crítica uma variedade de instrumentos intelectuais. Mas
precisamos indagar muito mais minuciosamente o que queremos saber e
como podemos encontrar respostas às perguntas que surgem da nossa
experiência. Não creio que a crítica feminista possa encontrar um
passado útil na tradição crítica androcêntrica. Ela tem mais que aprender
a partir dos estudos da mulher do que dos estudos literários e culturais
da tradição anglo-americana, mais a aprender a partir da teoria feminista
415
internacional do que de outro seminário sobre os mestres. [...]
(SHOWALTER, 1994, p. 28-29)
Operação Candelária de Lia Vieira critica as corporações que desvalorizam os direitos
adquiridos por meio de lutas sociais. O conto revela os preparativos para uma operação da
polícia que tinha por objetivo exterminar menores infratores, o massacre de 23 de julho
1993 que ficou mundialmente conhecido como ―Chacina da Candelária‖. O conto de Lia
Vieira descreve a frieza dos preparativos para a operação. As minúcias apresentadas pela
autora, ao detalhar os espaços luxuosos e a organização do grupo de extermínio, tomam
caráter irônico quando comparadas à pobreza e ao descaso social.
Apesar do grosso agasalho, sentia frio. E também um intenso desejo de
fumar, mas não se animara a tirar a mão do profundo bolso da calça de
lã.
Divididos entre uma esquina e outra, meninos e mendigos, sem agasalho,
enfrentavam o frio.. [...] (VIEIRA, 1998, p.95)
Os Bestas, como eram chamados os componentes do grupo de extermínio, temiam
a ―concorrência‖ dos ―pivetes‖ que ameaçavam os negócios. O oficial Átila do Batalhão de
Operações Especiais era um dos líderes do grupo que tinham interesse de eliminar esses
meninos de rua que atrapalhavam a tranquilidade da corporação.
Os homens de Bestas haviam atuado com eficiência, e em breve tudo
aquilo não seria mais que notícias que logo deixariam as páginas dos
jornais para se transformarem numa lembrança ou talvez numa lição, ou
ainda num alerta. (VIEIRA, 1998,p.95)
A operação era incomum e pouco rotineira, mas os integrantes confiavam no
descaso com que seria tratado o assunto e no esquecimento da mídia e das pessoas em
pouco tempo.
O grupo ridicularizava os direitos que as crianças e os adolescentes adquiriram
través do Estatuto da Criança e do Adolescente, que ainda era muito recente na época e
cujos policiais ainda haviam assimilado esses direitos.
O tenente Rolando, a mando do capitão Sarmento, ambos participantes do grupo
de extermínio, é quem averigua os corpos e o caso. Diante dos cadáveres de crianças,
adolescentes e jovens, reflete ironicamente: ―Os pobres de hoje não exageram quando
dizem que não tem onde cair mortos.‖ (VIEIRA, 1998,p.102).
O conto de Lia Vieira, como podemos perceber, é dotado de críticas e ironias sobre
o descaso com que um fato foi tratado pela imprensa e pela polícia. O estilo da escrita se
destaca pelas várias descrições que expõem a meticulosidade e a extrema organização dos
envolvidos na chacina que ocorreu próximo à Igreja da Candelária.
416
Em Alice está morta temos um conto de forte temática existencialista. No conto de
Miriam Alves, a mulher é representada pela figura metafórica de Alice, que ora tem feições
de um bebê ora feições de mulher. A existência de Alice é tratada pelo narrador às vezes de
forma insignificante, num ritual de dependência da figura masculina.
Miriam Alves, nesse conto, representa o olhar masculino sobre o feminino,
mostrando de forma pessimista como essa relação se constrói. Alice, sempre na escolta da
figura masculina, era dependente até para locomover-se como uma espécie de ―boneca
negra de pano‖. Alice vivia sempre ao lado desse homem tomando ―porres de esperança‖ e
―fumando estranhos cigarros de crença‖. A vida entre eles, na visão do narrador, torna-se
então monótona, apesar do sexo atlético que faziam e o do fato dela ser o par perfeito, ou
seja, o fato da subserviência de Alice.
Alice tem sua identidade esboçada a partir das vontades de seu companheiro que
representa o olhar patriarcal. Sobre a identidade feminina, Heleieth Saffioti (1987) afirma
que
A identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída
através da atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver
cumpridos pelas diferentes categorias de sexo. A sociedade delimita, com
bastante precisão, os campos em que pode operar a mulher, da mesma
forma como escolhe os terrenos em que pode atuar o homem.
(SAFFIOTI,1987,p.8)
O estilo de Miriam Alves nessa obra aproxima conto de poesia, numa atmosfera
metafórica que desnuda a condição feminina sujeita a uma figura masculina violenta (moral
e física) que destrói as esperanças e o amor. Através de períodos sintáticos curtos, a autora
demonstra a frieza do homem em oposição aos sonhos da mulher. O título Alice está morta
representa que a esperança está morta. A existência de Alice é muito leve, seu discurso é
repetitivo como um disco quebrado, e ela nem ao menos tem voz no conto, cabendo
apenas ao narrador carregá-la nos braços e conduzi-la ao seu destino, impondo, dessa
forma sua violência simbólica.
Sobre a dominação masculina e a violência simbólica, Bourdieu (2011) discorre que:
[...]Também vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e
vivenciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal,
resultante daquilo que eu chamo de violência simbólica, violência suave,
insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente
pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou,
mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em
última instância, do sentimento [...].‖(BOURDIEU, 2011,p.8)
417
Aos poucos a relação vai piorando, e o narrador vai dando os motivos que virão a
explicar o seu ato criminoso. Ele a culpa por sua infelicidade, pela sua vida monótona e
vazia, como podemos perceber no trecho abaixo:
Convivência sem grandes encantos. Eu e ela na casa de cômodos,
escorando-nos. Meus filhos soltos neste mundo sem notícias. Trabalho.
Noite. Dia. Sexo. Um pouco do choro de vez em quando. Odiei Alice.
Culpei-a. Realidade insuportável.[...] (ALVES, 1998,p.132)
Ao mesmo tempo em que a odeia, ele também julga amá-la, motivo que o mantém
sempre junto dela, em especial quando ela retirava os seus três anéis antes de ir para a
cama, num ritual erótico.
Pelo fato de Alice não está com os seus sedutores anéis na fatídica madrugada, o
amante a odeia novamente. O amante atira Alice no fundo de uma ribanceira, alegando não
ter esperanças para oferecer e nem dinheiro: ―O poço estava seco. Tinha apenas para
continuar acordando, dormindo, trabalhando, tomando cerveja nos dias de domingo.‖
(ALVES, 1998, p.133)
Nesse conto analisado, podemos perceber também a relação entre poder e prazer,
em que a mulher constitui um objeto de desejo para o macho dominante em busca de sua
presa.
Quer quando o homem desfruta de uma posição de poder no mundo do
trabalho em relação à mulher, quer quando ocupa a posição de marido,
companheiro, namorado, cabe-lhe, segundo a ideologia dominante, a
função de caçador. Deve perseguir o objeto de desejo, da mesma forma
que o caçador persegue o animal que deseja matar.[...] Para o macho não
importa que a mulher objeto de seu desejo não seja sujeito desejante.
Basta que ela consinta em ser usada enquanto objeto. (SAFFIOTI,
1987,p.18)
Obsessão, de Sônia Fátima, também é um conto que possui um narrador masculino.
A história inicia com o narrador-personagem buscando uma camiseta xadrez que a sua
esposa prometera jogar fora por considerá-la caipira e com cores berrantes. Laura, a esposa,
tinha medo do que as pessoas iriam pensar ao ver o marido usando uma camisa tão velha:
―- O que vão pensar os outros? Que este pobre infeliz não tem mulher?‖
(CONCEIÇÃO,1998,p.173).
Eles tinham um filho chamado Marcos que quando nasceu fora recebido com
muitas ―cores vivas‖, porém inquietava ao pai o tom claro da pele do menino. O narrador
conta as inquietudes do acompanhamento do crescimento de Marcos, fala das febres e das
brincadeiras intermináveis. Imaginava como seu filho seria vitorioso na fase adulta,
transpondo todos os obstáculos que a vida lhe impusesse.
418
Laura procurava conciliar ideias e posições conflitantes. De acordo com Soffieti
(1987,p.37) ―À mulher impõe-se a necessidade de inibir toda e qualquer tentativa agressiva,
pois deve ser dócil, cordata, passiva‖. Temia que os vizinhos pudessem falar que ela não era
uma perfeita dona do lar. Seu marido parecia uma pessoa extremamente obsessiva com a
preservação da aparência afrodescendente, uma vez que acredita que seu filho ―traiu‖ a
beleza de sua mãe ao casar-se com uma mulher pálida e sem vida. A ideia do neto não foi
feliz como havia sido o nascimento de Marcos. O pai vê até como uma forma de violência
a falta de beleza da nora.
[...] Foi inevitável o choque. Ela não trazia, nem de longe, a forma bela
de Laura. Um rosto pálido, sem vida. Um cabelo sem energia, força ou
ousadia. Uma expressão pobre no olhar.(CONCEIÇÃO, 1998, p.176177)
O conto nos apresenta alguns conflitos de uma família tradicional e da obsessão do
marido com relação à aparência das pessoas que o cercam. O conto chega a ser cômico
pelas fúteis preocupações com apegos materiais, velhice e aparência física.
Os temas encontrados na literatura produzida por mulheres versavam sobre a
maternidade, o corpo, a casa e a infância, num universo do lar e do eu, o que emergiu um
caráter mais intimista dessa escrita. No entanto, o feminino não se restringe somente à
mulher, mas tem a ver com a mulher, observa Branco (1991). No referido conto de Sônia
de Fátima encontramos temas relacionados ao espaço privado, em que a mulher ainda se
preocupa com a imagem de ―rainha do lar‖.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas análises aqui empreendidas, buscamos salientar alguns aspectos da escrita
feminina das autoras afro-brasileiras presentes na antologia Cadernos Negros: os melhores contos.
O enfoque desse tipo desse tipo de escrita, na maioria dos contos estudados, foi para as
personagens femininas, pois, mesmo quando se tratava de narradores masculinos estes não
tinham nomes, a exemplo dos contos Obsessão e Alice está morta. Já as mulheres
apresentadas, em sua maioria tinham nome e a elas era dedicada a condução da simpatia
narrativa pelas autoras. Muitos contos também tiveram a semelhança da escrita mais
intimista, voltada para a existência feminina, utilizando-se da relação do erotismo dos
corpos para compor o binômio vida e morte tão intensos, como podemos perceber nas
análises dos contos Ana Davenga e Alice está morta. Outros contos apresentaram mais causas
político-sociais, como Guarde Segredo, que reflete sobre a condição da mulher negra, e
419
Operação Candelária, que apresentou a frieza de um grupo de extermínio contra crianças,
jovens e adolescentes negros.
REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. O erotismo.Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre:
L&PM, 1987.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
BRANCO, Lúcia Castello. O que é escrita feminina. 1ª Ed. Coleção Primeiros Passos.
São Paulo: Brasiliense, 1991.
CORTÁZAR, Júlio. Alguns Aspectos sobre o conto. In: Valise de cronópio. Tradução de
Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. Série Debates. São Paulo: Perspectiva, 2006.p
147-165.
GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do conto. 8ª ed. São Paulo: Ática, 1998.
LUDMER, Josefina. O corpo do delito. Um manual. Tradução de Maria Antonieta
Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
QUILOMBHOJE. (Org.). Cadernos Negros: os melhores contos. São Paulo:
Quilombhoje, 1998.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. (Coleção
Polêmica).
SHOWALTER, Elaine.
A crítica feminista no território selvagem. In:Tendências e
impasses: o feminismo como crítica da cultura. Heloísa Buarque de Hollanda (Org.).
Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-57.
ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero: a construção da identidade
feminina. Rio Grande do Sul: Educs, 2006.
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica feminista. In: Teoria literária: abordagens históricas e
tendências contemporâneas. Orgs. Thomas Bonnicci e Lúcia Osana Zolin. 2 ed. rev. e
ampl. Maringá: Eduem, 2005.
420
ALFREDO SOB O PESO DA LUCIANA
Erika Guiomar Martins de Aquino138
Resumo: Luciana é uma personagem do escritor paraense Dalcídio Jurandir que perpassa
três romances, Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971) e Os Habitantes (1976), não como
personagem principal, mas como personagem referencial que ronda constantemente o
protagonista Alfredo. Ele realiza o desejo de estudar em Belém e se sente instigado por ela
não ter ido ao Liceu como ele. Portanto, Luciana é uma personagem da memória que se faz
presente na vida de uma personagem do enredo. Alfredo, assim como Luciana, se
inquietava, nos primeiros romances da série do Extremo Norte (Chove nos Campos de
Cachoeira, 1941, e Três Casas e um Rio, 1947), com a permanência no vilarejo da ilha, porém,
ao contrário da jovem, alcança seu desejo de ir morar na capital para estudar. O objetivo
deste trabalho é abordar a construção de uma personagem feminina no mundo ficcional
romanesco de Dalcídio Jurandir apresentando algumas questões concernentes à Luciana e
como a personagem que é referencial exerce influência em Alfredo e sua relação com o
novo ambiente em que se encontra.
Palavras-chave: Primeira Manhã, construção de personagem, Luciana.
Resumen: Luciana es un personaje del escritor paraense Dalcídio Jurandir que recorre tres
novelas, Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971) y Os Habitantes (1976), no como
personaje principal, sino como personaje referencial que ronda constantemente al
protagonista Alfredo. Él realiza el deseo de estudiar en Belém y se siente instigado porque
ella no fue al Liceo como él. Por lo tanto Luciana es un personaje de la memória que se
hace presente en la vida de un personaje del enredo. Alfredo, así como Luciana, se
inquietaba, en las primeras novelas de la serie del Extremo Norte (Chove nos Campos de
Cachoeira, 1941, e Três Casas e um Rio, 1947), con su permanencia en la pequeña aldea de la
isla, sin embargo, al contrario que la joven, alcanza su deseo de ir a vivir en la capital para
estudiar. El objetivo de este trabajo es abordar la construcción de un personaje femenino
en el mundo ficticio novelesco de Dalcídio Jurandir presentando algunas cuestiones
relacionadas a Luciana y como el personaje que es referencial ejerce influencia en Alfredo y
su relación con el nuevo ambiente en el que se encuentra.
Palavras-clave: Primera Mañana, construcción del personaje, Luciana.
138
Mestranda em Estudos de Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:
[email protected]
421
Luciana é uma personagem enigmática que aparece na série de romances de
Dalcídio Jurandir não fazendo parte efetivamente da narrativa desde a primeira referência
em Primeira Manhã (1967):
Porém, à noite, ontem, com o pouquinho de sono, nas visões da rede e
sequioso de miragens, à espera do amanhecer para uniformizar-se e
partir, chegava-lhe de novo a voz da velha parteira contando-lhe,
naqueles dias sem uniforme: Era um outubro seco, queimando os
campos, o rio debaixo da lama e de repente a trovoada, o raio no
taperebazeiro, dezesseis porcos matava, dentro da casa racha um esteio, e
o quarto, onde estava presa a Luciana, tão brusco escancara-se
(JURANDIR, 2009, p. 31).
Esse trecho que está logo no início de Primeira Manhã, coloca-nos em várias
situações temporais: ―ontem‖, ―naqueles dias sem uniforme‖ e ―outubro seco‖. A
lembrança de Luciana se confunde com todos os tempos da narrativa, mas no decorrer da
narração o leitor perceberá que ela é um personagem que não faz parte do enredo, visto
que vive na memória de outros, é sempre lembrança, rememoração, divagação e toda vez
que seu nome é citado ou história é mencionada causa certa inquietação. Ela é a
‗desabençoada‘ de quem se fala num sussurro, pois para a família, ainda que
metaforicamente, morreu. Não damos certeza de seu destino já que não é uma informação
facilmente identificável: a ausência de Luciana é cercada de dúvidas, indefinições e
mudanças de sentido de morte.
É através dessa ausência que Alfredo acredita ocupar um lugar na casa do Coronel
Braulino Boaventura, pai de Luciana, para continuar seus estudos como ginasiano (ensino
fundamental maior hoje em dia). E assim como na família, sobre ele começa também a
pesar o mistério do destino de Luciana: ―De Luciana, a velha parteira pouco falava, mas
toda a casa, toda a família, sob o peso da Luciana‖ (DALCÍDIO, 2009, p.66).
Pensando a personagem como uma reflexão dos modos de existência e ligada ao
ato criativo do fazer artístico, este texto se foca em questões referentes à Luciana tomando
por base o romance Primeira Manhã. Explanaremos como a personagem influencia a
percepção de Alfredo sobre o novo espaço em que se encontra numa perspectiva que a vê
como representação de seu universo psicológico.
***
Luciana é apresentada com maior frequência em três romances, Primeira Manhã
(1967), Ponte do Galo (1971) e Os Habitantes (1976), entretanto nos dois últimos romances
422
publicados da série Chão dos lobos (1976) e Ribanceira (1978) ainda há vestígios de sua
lembrança, pois como Dalcídio Jurandir tinha o projeto de contar em vários romances a
trajetória de seu herói, personagens são constantemente retomadas, às vezes, só citadas
rapidamente na sequência do livro em que aparecem. Em Primeira Manhã a filha do coronel
não adentra a série como personagem principal, porém está constantemente nos
pensamentos do protagonista Alfredo. Luciana é uma personagem da memória (tempos
narrados) que se faz presente na vida de um personagem do enredo (tempo da narrativa).
Em outras palavras, a filha do coronel Braulino aparecerá na história pelo discurso de
outras personagens que narrarão uma série de acontecimentos sobre ela, revelando...
escondendo detalhes... ou pondo em dúvida outros pontos sobre a vida de Luciana.
No processo de criação do autor notamos, assim como constatado por Nunes
(2006) em Dalcídio Jurandir: as oscilações de um ciclo romanesco, a procura cada vez mais de
refinar a técnica, o crítico comenta que em passagens dos inocentes a valorização da forma
que se prende mais nos tempo narrados do que da narrativa é ainda mais ressaltada pelo
caráter memorialista que a obra apresenta. Em Primeira Manhã, seguindo essa linha, há a
predileção de Dalcídio em penetrar o consciente e o inconsciente das personagens. São elas
que dão o ritmo à narração e nos confundem com suas memórias, pois nos levam para um
percurso do devaneio e das incompletudes do pensamento. Nunes aponta que em:
Passagens dos inocentes, a voz do narrador tende a ser neutralizada pela
dos personagens, a que dá plena iniciativa nos diálogos que entretêm. É
como se em Primeira Manhã, Ponte do Galo, Os Habitantes, Chão de
Lobos a dialogação conduzisse a narração e com a narração se
confundisse como maneira de ver e sentir o mundo dos personagens em
afluência. (NUNES, 2006, p. 249)
Uma das dificuldades que a obra de Dalcídio nos impõe é o entendimento do
enredo. Dentro da perspectiva do romance moderno, pensar no enredo como um
encadeamento dos fatos não faz sentido, pois dentre outras características, encontra-se em
Primeira Manhã: fragmentação do foco narrativo, minimização do ato de narrar, omissão do
tempo ou mistura dos períodos temporais, fluxo da narração imitando o fluxo do
pensamento. Sobre o conjunto de romances, em Dalcídio não há uma ordem de narração.
É necessário o conhecimento das outras obras para que tenhamos uma maior apreensão da
trajetória das personagens, já que Alfredo vive voltando ao passado e fazendo referência a
personagens que passaram em sua trajetória de vida.
Desse modo, definir o enredo de Primeira Manhã não é tarefa fácil e acompanhar a
busca que o menino de cachoeira, agora rapaz com a ―moleira amadurecendo‖ começa a
fazer por Luciana também não. São em conversas de Alfredo com d. Santa e d. Dudu
423
(respectivamente mãe e filha) que o leitor tem a possibilidade, a partir da memória delas,
formar um esboço de quem é/foi Luciana. Com as divagações de Alfredo também
entramos num trabalho de detetive tentando compreender quem foi Luciana, o que sentia,
o que desejava, porque fugiu, porque não volta, por que foi renegada, morreu? Por que
tanto mistério em torno dela?
Em Primeira Manhã também percebemos a multiplicidade de vozes, sendo este um
dos aspectos que contribuem para dúvidas acerca do enredo. Torna-se difícil definir-lo
porque nesse romance, a maior parte do que é narrado acontece nos tempos narrados,
fazendo o leitor voltar a histórias do passado. E é nesse enredo fragmentado, nessa
confluência de vozes, nesse labirinto de histórias que encontramos Luciana. É um tipo de
personagem sedutora, visto que, ao começarmos a ler o romance, começamos, juntamente
com Alfredo, sua busca. Justamente pela ausência, ela se faz presente, por não saber onde
está, como era, Alfredo des

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