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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO:
A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS
JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Coordenadores
Antenor Demeterco Neto
Rodrigo Pironti Aguirre de Castro
Organizadores
Eduardo Ramos Caron Tesserolli
Victor Hugo Domingues
Vinicius Klein
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO:
A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS
JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
2013
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
L784
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Neto, Antenor Demeterco – Coordenador.
Castro, Rodrigo Pironte Aguirre – Coordenador.
Temas de direito econômico : A copa do mundo de 2014 e
Os jogos olímpicos de 2016.
Título independente.
Curitiba : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013.
ISBN 978-85-99651-80-3
1. Direito econômico – risco.
2. Meio ambiente - sustentabilidade.
I. Título.
CDD 340
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Produção Editorial: Editora Clássica
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Séllos
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
Sumário
ARTIGO 1
DO PARTICULARISMO NORMATIVO EM MATÉRIA DE PROPRIEDADE
IMATERIAL: LEGISLAR PARA QUÊ(M)?
Marcia Carla Pereira Ribeiro e Giovani Ribeiro Rodrigues Alves. 09
ARTIGO 2
COPA DO MUNDO DE 2014 E DESENVOLVIMENTO
Rodrigo Pironti A. de Castro e André Luis A. Machado Martins... 29
ARTIGO 3
O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO NA ORDEM ECONÔMICA E SOCIAL: O
FOMENTO SOCIOAMBIENTAL POR MEIO DA PROMOÇÃO DE LICITAÇÕES
INCLUSIVAS E SUSTENTÁVEIS PARA OS GRANDES EVENTOS
Daniel Ferreira e Fernando Paulo da Silva Maciel Filho.................. 51
ARTIGO 4
A PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA COMO MODELO DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA PARA CONSTRUÇÃO OU REFORMA DE EQUIPAMENTOS PARA
OS GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS DE 2014 E 2016
Antenor Demeterco Neto.............................................................................. 79
ARTIGO 5
COPA DO MUNDO E INFRAESTRUTURA: NOTAS SOBRE O FINANCIAMENTO E
A MITIGAÇÃO DE RISCOS EM CONTRATOS PÚBLICOS
Fernando Menegat e Iggor Gomes Rocha................................................. 91
ARTIGO 6
NOTAS SOBRE A INFRAESTRUTURA AEROPORTUÁRIA ESTATAL NO BRASIL:
PASSADO, PRESENTE E FUTURO E SUA RELAÇÃO COM O REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES
Daniel Müller Martins e Eduardo Ramos Caron Tesserolli............ 123
ARTIGO 7
AS GRANDES OBRAS PARA A COPA DO MUNDO DE 2014: ASPECTOS DAS
DESAPROPRIAÇÕES E O ESTÁDIO JOAQUIM AMÉRICO GUIMARÃES
José Rodrigo Sade ............................................................................................. 151
ARTIGO 8
O POTENCIAL CONSTRUTIVO E O CASE “ARENA DOS PARANAENSES”: ALGUNS APONTAMENTOS JURÍDICOS E ECONÔMICOS
Victor Hugo Domingues................................................................................. 161
ARTIGO 9
O DIREITO DA CONCORRÊNCIA E A EXCLUSIVIDADE NOS CONTRATOS DE
TRANSMISSÃO DE GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS
Vinícius Klein e Caroline Sampaio de Almeida....................................... 177
ARTIGO 10
OS EVENTOS ESPORTIVOS DE 2014 E 2016 E O COMBATE AOS CARTÉIS
EM LICITAÇÕES NO BRASIL
Gustavo Flausino Coelho e Ricardo Villela Mafra A. da Silva....... 193
ARTIGO 11
A PERSONALIDADE JURÍDICA E A CAPACIDADE PROCESSUAL DO COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL
Martinho Martins Botelho.......................................................................... 213
ARTIGO 12
COOPERAÇÃO INTERGOVERNAMENTAL E PREPARAÇÃO PARA OS JOGOS OLÍMPICOS E PARAOLÍMPICOS DE 2016: O PAPEL DE MEDIA
DORA DA AUTORIDADE PÚBLICA OLÍMPICA
Ricardo Silveira Ribeiro................................................................................. 233
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
prefácio
O convite feito pelo Presidente da Comissão de Direito Econômico da
Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Paraná, Antenor Demeterco Neto,
para prefaciar esta obra, deve ser entendido como um prestígio àqueles que dirigem
e dirigiram os destinos da OAB-PR, aumentado diante da existência de tantos
nomes qualificados na advocacia paranaense. É ainda uma homenagem a todas as
comissões temáticas acolhidas no seio da OAB-PR, incentivadas pelas sucessivas
gestões, no interesse de proporcionar o debate e a difusão de conhecimentos.
Os eventos capitaneados pelo Brasil, nomeadamente a Copa do Mundo
e os Jogos Olímpicos, revelam a confiança internacional que alcançamos,
notadamente com a estabilidade do regime democrático e uma economia em
franco desenvolvimento. O estado democrático de direito e a prosperidade
econômica andam lado a lado. Para que o progresso econômico seja afiançado
pela sociedade brasileira, é necessário cultivar um ambiente jurídico de segurança
e respeito à lei. Essa é a lição a ser compreendida mediante os estudos de Direito
Econômico que compõem a presente obra, abordando uma perspectiva sobre os
grandes eventos que aportarão no Brasil nos próximos anos.
Em relação ao conjunto dos artigos que compõem este livro, fruto do
esforço individual e coletivo dos membros da Comissão de Direito Econômico
da OAB-PR, sua leitura levará à reafirmação do reconhecimento de seus autores,
que se dedicaram ao estudo dos impactos jurídicos e econômicos dos eventos
esportivos em nosso país, com a acuidade que o tema exige.
As modificações legislativas, demandadas pelas exigências que
decorrem da candidatura brasileira a tão importantes eventos esportivos,
resultaram no que se convencionou denominar de Lei Geral da Copa
sancionada pela Presidente da República em 06 de junho de 2012,
impõe a reflexão sobre as garantias fornecidas pelo Governo Brasileiro à
Federação Internacional de Futebol (FIFA) para a realização da Copa das
Confederações, em 2013, e do Mundial de 2014.
Neste cenário, há que se examinar o objetivo das alterações legislativas,
diante das políticas do Estado, inseridas num contexto de limitação da
atividade administrativa. Esta, por sua vez, não pode se afastar dos princípios
regentes da Administração Pública. Logo, o desenvolvimento econômico que
se espera alcançar, incentivando as obras públicas a serem realizadas para
receber os eventos esportivos, nesta obra é analisado diante da perspectiva do
desenvolvimento socioeconômico, levando em consideração os instrumentos
colocados à disposição do Estado para compor a infraestrutura dos eventos.
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Esse estudo é feito sob a ótica administrativa, econômica e jurídica, enfocando
institutos como as parcerias público-privadas (PPPs).
Da mesma forma, regimes de contratação pública de natureza sui generis,
como o recém criado Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC),
merecem o necessário enfoque multidisciplinar, para que a sua utilização não
revele um casuísmo, refratário às regras constitucionais inerentes à atividade da
Administração Pública.
As cidades que sediarão as competições e aquelas afetadas pela grandiosidade
que as envolvem, recebem recursos através de planos e financiamentos. Nesta obra
são estudados os seus riscos, pois embora constituam pontos indispensáveis para a
concretização da Copa do Mundo e das Olimpíadas, não se deve perder de vista a
cautela que recomenda o ordenamento jurídico quanto aos contratos públicos.
A matéria ambiental, frente à questão econômica, é também preocupação
dos autores. É fundamental o respeito ao meio ambiente, e o desenvolvimento
sustentável, contemplados mediante o mecanismo de fomento socioambiental, o
que se concretiza por meio da promoção de licitações inclusivas e sustentáveis.
A propósito, outro valor fundamental a ser observado quando se toca o acervo
dos direitos inclusivos, diz respeito aos portadores de necessidades especiais.
Em tais temas, o legado deixado pela realização das Olimpíadas no Rio de
Janeiro merece ampla abordagem neste trabalho.
Por fim, o peso de ter sido escolhida como uma das cidades-sede da Copa
do Mundo desvela na cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná, questões
atinentes ao campo de atuação do Direito Econômico, especialmente quanto ao
modelo de intervenção econômica baseado nos mecanismos de modificação do
espaço urbano e planejamento da cidade.
Esta obra acentua o estudo interdisciplinar, que no jurista se expressa ao
avaliar os fenômenos da intervenção do Estado no domínio privado. A obra lançada
pela Comissão de Direito Econômico da OAB-PR tem o grande mérito de contribuir
para o estudo do impacto e o reflexo das grandes obras esportivas no Brasil.
Ao concluir, parabenizo os participantes desta obra e a todos os
integrantes da Comissão de Direito Econômico da Ordem dos Advogados do
Brasil, Seccional do Paraná. O faço nas pessoas de seu Presidente Antenor
Demeterco Neto e de seu Vice Presidente Rodrigo Pironti Aguirre de Castro,
que atuaram com dedicação e competência para atingir o resultado final.
Boa leitura.
Curitiba, outono de 2013
José Lucio Glomb
Presidente da OAB-PR 2010-2012
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 1
DO PARTICULARISMO NORMATIVO EM MATÉRIA DE PROPRIEDADE
IMATERIAL: LEGISLAR PARA QUÊ(M)?
Marcia Carla Pereira Ribeiro1
Giovani Ribeiro Rodrigues Alves2
SUMÁRIO: Introdução. 1. Por que existe a propriedade? 2. A quem interessa a proteção
da marca? Por que protegê-la? Alguns exercícios de abstração. 3. A Lei Geral da Copa:
casuísmos x necessidades. 4. Conclusões. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Este artigo busca apresentar um panorama sobre o significado de propriedade
e as transformações ocorridas no transcurso da história, de forma a demonstrar que
garantir ou não a propriedade (material e imaterial) é tema recorrente e controverso
no Direito, possuindo peculiaridades conforme a modalidade de bem a ser protegido.
Especialmente a modalidade imaterial da propriedade submete-se a um
regime jurídico ainda em construção e do qual depende, em parte, o grau de
inovação das economias dos países.
Dentre as modalidades de propriedade industrial, destacam-se as patentes
de invenção e de modelo de utilidade e o registro das marcas. Muito embora a
legislação reconheça as marcas de produto e de serviço, marcas coletivas e de
certificação, além da marca notoriamente conhecida, este artigo abordará, para
atingir aos seus fins, apenas as marcas de produto e de serviço.
Conforme a linha de raciocínio que será exposta neste artigo, é possível
que se associe o reconhecimento de uma marca de produto ou de serviço ou
a vedação ao seu registro a dois diferentes objetivos: assegurar ao titular a
exploração exclusiva do sinal escolhido como referência de um produto ou
serviço ou impossibilitar que qualquer agente possa tomar como de uso próprio
e exclusivo um sinal visualmente perceptível tornado legalmente indisponível.
O trabalho parte da análise do significado da propriedade intelectual,
focando especialmente nas razões de se atribuir a alguém o privilégio sobre a
marca (que não possui em si a característica de rivalidade, como se reforçará
Professora Titular de Direito Societário da PUCPR. Professora Associada de Direito Empresarial
da UFPR. Pós-doutora pela FGVSP (2006) e pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
(2012). Pesquisadora Convidada da Université de Montréal - CA (2007). Advogada e Procuradora
do Estado do Paraná. Consultora da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR.
2
Advogado. Professor de Direito Comercial e de Direito Constitucional. Mestrando em Direito
das Relações Sociais pela UFPR.
1 9
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
a seguir). Na sequência, propõe-se a análise de produtos do intelecto que não
são passíveis de registro como marca pela Lei de Propriedade Industrial (Lei
9279/96 - LPI), para buscar aquilatar os potenciais efeitos das exceções previstas
no parágrafo único do art. 3° da Lei n° 12.663/2012 (Lei Geral da Copa - LGC),
em favor da FIFA (Fédération Internationale de Football Association), durante
a Copa das Confederações de 2013 e a Copa do Mundo de Futebol de 2014,
que buscam assegurar a proteção de símbolos que, pela Lei de Propriedade
Industrial, são tidos como, em princípio, não registráveis na categoria marca.
Permeia o artigo, a percepção de que a FIFA será a única habilitada a titular
como marca nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo no país (especificamente
no que se refere à Copa do Mundo de Futebol e à Copa das Confederações),
por ato ex oficio, com os direitos reconhecidos em todos os ramos de atividades,
independente do pagamento das taxas normalmente envolvidas.
Esta constatação permite que se avance para algumas considerações
sobre as potencialidades de se atribuir regime de exceção, mediante
particularismos legislativos.
1. POR QUE EXISTE A PROPRIEDADE?
Variadas são as discussões envolvendo a propriedade e, em especial,
o direito de propriedade. Discute-se a origem, a natureza, as obrigações,
os deveres e as funções. De Aristóteles a Bentham ou de Hobbes a Marx, a
propriedade foi alvo de acaloradas discussões, sempre envolvendo, direta ou
indiretamente, a figura do ente Estatal, já que não é possível ter direitos de
propriedade sem lei, e não há lei sem Estado3. Na Economia, o tema também
é alvo de estudos, buscando-se, primordialmente, prever os efeitos das formas
alternativas de propriedade sobre a eficiência e a distribuição4.
No século XXI, pouca dúvida permanece no que tange a importância do
direito de propriedade. O fracasso dos modelos socialistas abalou os pilares
de um conjunto de Estados que pretendia, em ultima ratio, a abolição da
propriedade privada5 e se deu concomitantemente à consagração do paradigma
capitalista que a tem como um de seus marcos centrais.
No decorrer da história, o direito de propriedade foi alvo de diferentes
interpretações, ora ampliando seu significado, ora o delimitando. Somente a
PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2005, p.101.
4
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito e Economia. Tradução de Luis Marcos Sander e
Francisco Araújo da Costa. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010, p. 90.
5
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Disponível em: http://www.
ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf, acesso em 07/10/2012.
3 10
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
título ilustrativo, na análise dos dois últimos séculos, observe-se que de uma
concepção individualista de propriedade, consagrada pela modernidade e seus
ideais burgueses/iluministas na redação do art. 544 do Código Civil Francês de
1804, passou-se a uma visão pluralística da mesma, não mais limitando o campo
de análise à figura do proprietário e de seu respectivo bem, mas vislumbrando
que a propriedade além de garantir direitos, também obriga seu proprietário a
praticar determinadas condutas, consoante o disposto no célebre art. 153 da
Constituição de Weimar.
Perguntas comuns relativas ao direito de propriedade, cujas respostas, já
se adianta, podem ser as mais variadas possíveis, dizem respeito às razões para
se proteger a propriedade e os motivos de se entender um bem como passível
de ser apropriado ou não.
Em relação ao primeiro questionamento, as razões de se proteger a
propriedade remetem a motivações no mínimo similares às justificadoras da
existência e necessidade do Estado e do Direito. Tutela-se a propriedade para
que os indivíduos convivam em harmonia, sabedores da esfera e dos bens que
podem livremente usar, gozar, fruir e dispor. Por outro lado, a percepção já
consolidada da importância da definição dos direitos de propriedade também
decorre da potencialidade de minimização dos custos de monitoramento em
relação ao bem titulado. Assim como o estado de natureza não contribui para
o manejo de uma sociedade apta a abarcar espaços para o desenvolvimento
geral do bem estar de seus integrantes, também os sistemas caracterizados por
direitos de propriedade fracos são pouco eficientes na geração de riquezas a
partir da negociação.
Individualmente tomados, os agentes são limitadamente racionais, agem
na busca da autossatisfação, valendo-se de condutas maximizadoras individuais
que não são aptas, a custos razoáveis, a delimitar o âmbito de atuação de cada
agente sobre cada recurso. Desta impossibilidade emerge a necessidade de um
ente fiscalizador e organizador (Estado) que ao mesmo tempo é regido e é a
fonte da qual emanam as regras de comportamento (Direito).
Do Estado, especialmente a partir da competência normativa, depende
o estabelecimento de um sistema suficientemente simples e claro, de forma a
favorecer a compreensão e a confirmação do direito de propriedade. Porém,
é deste mesmo ordenamento que provêm as delimitações não apenas em
relação a outros proprietários, como também por intermédio da consagração da
funcionalização do direito de propriedade.
Quanto ao segundo questionamento (razões pelas quais determinados
bens são apropriáveis e outros não), o foco da análise tradicional está na
rivalidade ou não rivalidade do bem, isto é, se a utilização de um bem por um
determinado sujeito inviabiliza ou não o mesmo uso (ou ao menos similar) por
11
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
outrem. O elemento ar, por exemplo, não pode ser apropriado já que o fato do
sujeito respirá-lo não impedirá o vizinho ou o eremita mais isolado do planeta
de também agir deste modo.
Outro prisma de análise se dá por intermédio da escassez e das
estratégias de maximização social dos recursos. Neste canal, torna-se possível
pensar a importância da proteção da propriedade e de atribuição do direito de
exclusividade em comparação ao reconhecimento de recursos sem titularidade
exclusiva, contemplada na passagem conhecida como Tragédia dos Comuns.
Os Comuns eram pedaços de terra (pasto) em que pastores criavam seus
respectivos rebanhos. Qualquer pastor poderia ter acesso, livremente, a esse
pedaço de terra, já que esta não era propriedade de ninguém. Nesta esteira, cada
um deles, visando a maximizar o proveito e a obter o maior benefício pessoal
possível - o que é inato à própria natureza humana - começou a inserir mais um
animal ao seu rebanho.
Ocorre que, como todos os pastores chegaram à mesma conclusão (de
aumentar o rebanho para obter um proveito pessoal maior), o pasto passou a
ser insuficiente para alimentar os rebanhos, o que ocasionou não só a ruína
dos rebanhos, como também redundou na tragédia dos comuns (terra)6- o
exaurimento do recurso comum.
Agustinho7 sintetiza o significado da Tragédia dos Comuns, ao apontar que:
Todo ser humano busca individualmente a maximização da sua utilidade
de forma infinita em um mundo cujos bens são finitos. Desse modo, o exercício
dessa liberdade, ao invés de representar o resultado positivo racionalmente
esperado por cada um isoladamente, conduz à sobre utilização e ao esgotamento
dos recursos naturais.
À luz da vertente econômica, no mesmo sentido da conclusão que se
extrai da Tragédia dos Comuns, Cooter e Ulen explicam as razões de haver bens
públicos e bens privados: “a eficiência exige que bens que implicam rivalidade
e exclusão sejam controlados por indivíduos (...), ao passo que bens que não
implicam rivalidade ou exclusão sejam controlados por um grupo grande de
pessoas, como o Estado8.”
As necessidades de proteção da propriedade e do reconhecimento de que
pertencem a alguém estão, portanto, diretamente relacionadas à maximização
racional de seu proveito e à impossibilidade de todos utilizarem os mesmos
bens. Reproduz-se a clássica assertiva: recursos são finitos, mas as necessidades
humanas são infinitas, ou seja, a escassez.
AGUSTINHO, Eduardo. As tragédias dos comuns e dos anticomuns. In: RIBEIRO, Marcia Carla
Pereira; KLEIN, Vinicius (coords.). O que é análise econômica do direito: uma introdução. Belo
Horizonte: Fórum, 2011, p. 52.
7
AGUSTINHO, op.cit., p. 52.
8
COOTER; ULEN, op. cit., p. 120.
6
12
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Há como se concluir que a definição da propriedade privada exclusiva
dos bens materiais tem como fundamentos primordiais a minimização dos
custos de monitoramento e a adoção de uma estratégia compatível com medidas
de maximização do proveito (individual e social) do bem.
No entanto, o direito de propriedade, em um primeiro momento, tinha
por objeto apenas os bens materiais. Contudo, aos poucos, a partir do paulatino
reconhecimento da importância dos bens imateriais para a sociedade, novas formas
de titularidade se apresentaram ao Direito, brotando do mundo dos fatos como
consequência das novidades tecnológicas, e, porque não dizer, do mundo das ideias.
O Direito deparou-se com a necessidade de premiar o criador de obra ou
invenção como forma de reconhecimento e retribuição pelos gastos que foram
necessários para se chegar ao resultado/produto, e, concomitantemente, servir
como estímulo para que outros fizessem o mesmo.
Depois de há muito tempo consolidado o conceito de propriedade dos
bens corpóreo, passa a integrar a pauta de reflexões a tutela de propriedades
incorpóreas.O Direito, portanto, ao tutelar bens incorpóreos respondeu a uma
necessidade tanto no campo da inovação e da oferta de novos produtos, como
no âmbito de incentivo à produção.
O ramo do Direito que estuda a propriedade imaterial é o Direito
Intelectual, visto como gênero, cujas espécies são Direito Autoral e Propriedade
Industrial. A diferença entre as espécies está centrada na aplicação empresarial
dos bens objetos de análise pelo Direito Industrial9. No presente estudo, a
análise se restringe aos assuntos ligados à Propriedade Industrial e, mais
especificamente, em um de seus objetos: a marca.
A proteção dos bens intelectuais era até o século XVII, dependente, única
e exclusivamente, da graça dos soberanos, não havendo leis que regessem a
matéria de maneira objetiva10. As autoridades simplesmente emitiam cartaspatentes que autorizavam uma determinada pessoa a utilizar-se de sua obra
intelectual de modo exclusivo, geralmente em troca de favores particulares11.
O artificialismo da proteção então conferida por meio de privilégios
outorgados é resultado da natureza do bem que se pretende proteger. Se a
propriedade dos bens corpóreos, uma vez definida, é facilmente identificável
pelos sentidos humanos, assim como naturalmente dotada de exclusividade,
o mesmo não ocorre com relação aos bens incorpóreos. O uso de uma patente
BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso Avançado de Direito Comercial.
6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 109.
10
DI BLASI, Gabriel; GARCIA, Marcio S.; MENDES, Paulo P. M. A Propriedade Industrial: os
sistemas de marcas, patentes e desenhos industriais analisados a partir da Lei 9.279, de 14 de maio
de 1996. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 04.
11
POSNER faz interessante abordagem sobre o assunto. POSNER, Richard A. Para Além do
Direito. Tradução de Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, fls. 42-51.
9
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
de invenção, de uma marca ou insígnia não excluiu automaticamente o uso
da parte de outro agente, pois são bens cujo uso potencial é ilimitado. Assim,
forja-se a exclusividade, num primeiro estágio, pela concessão de privilégios,
emanados do governante.
Esse modelo de proteção da propriedade foi alvo de severas críticas,
em especial na Inglaterra, em razão de sua arbitrariedade, vindo a culminar na
promulgação pelo Parlamento Inglês, no século XVII, do Statute of Monopolies,
que, além de estipular requisitos legais para concessão de privilégio ao inventor/
criador, determinava prazo de duração para o exercício dos benefícios a eles
concedidos12.
Saliente-se que a benesse concedida pelo Estado a um particular não foi
alterada pelo Statute of Monopolies, tendo sido somente objetivados os critérios
para a concessão do benefício, já que, uma vez preenchidos os requisitos, era o
ente Estatal quem conferia o privilégio ao particular.
Observe-se desde já que a noção de tutela de bens imateriais está
ligada ao reconhecimento pelo ente estatal de que o sujeito foi o criador/
inventor de um determinado bem e de que, como prêmio, disporá do direito de
exclusividade do uso de seu invento/criação por um determinado tempo, e/ou
determinadas condições. Terceiros somente poderão utilizar do bem mediante
a concessões, contratadas normalmente mediante pagamento de royalties ao
criador. Findo o prazo de exclusividade, no caso da patente de invenção e do
modelo de utilidade, a criação se torna de domínio público, acessível a todos
independentemente de concessões. Para a marca e outras formas registrais, há
a possibilidade, no regime brasileiro, de renovação do registro, atendidos os
requisitos estabelecidos na Lei de Propriedade Industrial. Se desatendidos, o
seu criador perde o direito antes protegido.
Como mencionado, a proteção à propriedade intelectual é um mecanismo
de duplo viés: (a) por um lado estimula novas criações conferindo royalties ao
criador, que teve de desenvolver esforço intelectual e financeiro para chegar ao
resultado criativo. Por outro lado, (b) ela limita o uso da criação, já que a partir
do momento em que se tem de pagar royalties para o criador ou que se garante
a ele a exclusividade, um número menor de pessoas poderá utilizar o produto
fruto da criatividade de um ou mais indivíduos.
Em face deste duplo viés é que, desde o Statute of Monopolies, se fixa
um tempo determinado para a exclusividade do indivíduo sobre sua criação,
sem possibilidade de prorrogação no que tange àquelas que impactam no estado
de técnica, qual seja, no que se refere à invenção e ao modelo de utilidade, e
com possibilidade de sucessivas prorrogações com relação à marca e outros
elementos indicativos de produtos e serviços.
DI BLASI; GARCIA; MENDES, op. cit., p.04.
12
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Para a invenção e o modelo de utilidade, após o tempo (que deve ser
mensurado a fim de que compense o investimento e ao mesmo tempo não se
impeça o desenvolvimento), o acesso às fórmulas e esquemas é liberado para a
sociedade que, por sua vez, tendo acesso a eles pode aprimorá-los, contribuindo
para o desenvolvimento social e econômico, independentemente de pagamento
de retribuição ao seu inventor.
Nada obstante, a lógica acima narrada (prazo determinado e benesse
estatal) prevalece apenas parcialmente no que tange à proteção do bem
imaterial denominado marca. Esta pode ser tomada como o conjunto de sinais
visualmente perceptíveis13 que distingue determinados produtos ou serviços
profissionais, ou, em outras palavras, o sinal nominal ou figurativo aplicado a
determinados bens14.
A lógica subsiste no que diz respeito ao necessário reconhecimento estatal
para que haja a atribuição dos privilégios ao seu criador. Entretanto, conforme
comentário anterior, diferentemente do que ocorre com a invenção e o modelo
de utilidade, as marcas podem ser renovadas – permanecendo de uso, fruição,
gozo e disposição exclusivos do seu proprietário – por quanto tempo desejar o
agente que a criou, atendidos os requisitos estabelecidos pela legislação para
fins de renovação do registro.
As razões para essas diferenciações de tratamento são de simples
constatação: (i) a marca é um elemento que distingue um determinado produto
ou serviço de outro, sendo fundamental para o reconhecimento feito pelo
consumidor acerca do que está sendo ofertado, e; (ii) a marca não tem um
caráter de inovação que possa auxiliar em futuras inovações como ocorre com
a invenção e o modelo de utilidade, estando um pouco mais afastada, portanto,
da noção de desenvolvimento social e econômico.
A respeito do assunto, Blasi, Garcia e Mendes15 elucidam que:
Ao estudar a patente, vimos que o seu principal propósito é dinamizar
o desenvolvimento dos países. A função da marca, no entanto, é diferente. Ela
atua, em essência, no plano comercial: do ponto de vista público, na defesa do
consumidor, evitando confusão; e do ponto de vista privado, auxiliando o titular
no combate à concorrência desleal.
Este brevíssimo panorama delineado auxilia, de início, a observar que o
significado de propriedade foi sofrendo transformações no transcurso da história
e que garantir ou não a propriedade (material e imaterial) é tema recorrente e
controverso no Direito, possuindo peculiaridades conforme a modalidade de
bem a ser protegido.
BERTOLDI; RIBEIRO, op. cit., p. 112.
DI BLASI; GARCIA; MENDES, op. cit., p. 161.
15
DI BLASI; GARCIA; MENDES, op. cit., p. 162.
13
14
15
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
O presente trabalho nos próximos tópicos analisará o significado da
propriedade intelectual no Brasil, focando especialmente (i) nas razões de se
atribuir a alguém o privilégio sobre a marca (que não possui em si a característica
de rivalidade, como se reforçará a seguir), (ii) na análise de produtos do intelecto
que não são passíveis de registro como marca pela Lei de Propriedade Industrial
(Lei 9279/96) e (iii) nos potenciais efeitos das exceções previstas no parágrafo
único do art. 3° da Lei n° 12.663/2012 (Lei Geral da Copa), em favor da FIFA
(Fédération Internationale de Football Association), durante a Copa das
Confederações de 2013 e a Copa do Mundo de Futebol de 2014, que buscam
assegurar a proteção de símbolos que, pela Lei de Propriedade Industrial, são
tidos como não registráveis na categoria marca.
2. A QUEM INTERESSA A PROTEÇÃO DA MARCA? POR QUE PROTEGÊ-LA?
ALGUNS EXERCÍCIOS DE ABSTRAÇÃO
Conforme narrado acima, a atribuição da propriedade a alguém pode
ser explicada a partir da impossibilidade das pessoas fazerem uso dos mesmos
bens, de maneira igual. Fenômeno que a economia chama de rivalidade.
Ao se ter em conta os bens materiais, esta lógica faz completo sentido,
vez que não é possível a utilização do lápis de seu colega, ao mesmo tempo
em que ele o utiliza, sem corromper a sua integridade, ou, não se pode beber
os mesmos 350 mililitros da sua lata de refrigerante, se ele o estiver tomando.
Entretanto, no que se refere aos bens imateriais, este raciocínio não é
plenamente válido. Para utilizar-se o exemplo da marca: o fato de um terceiro
utilizá-la, não inviabilizará o criador dela de fazer o mesmo uso. Em vista deste
aparente conflito, a doutrina por muito tempo discutiu se realmente seria condizente
atribuir a qualidade de propriedade aos bens imateriais16, como a marca.
Quando se fala em proteção da marca, as razões para sua proteção são
diferenciadas, bem como a sua tutela é distinta das outras espécies de propriedade
intelectual. Não se poderia invocar o argumento de que a marca contribui para novas
invenções, que, por sua vez, contribuiriam para o desenvolvimento tecnológico da
sociedade. Conforme explanado, essas são justificativas para a proteção das outras
espécies protegidas pela propriedade industrial, mas não da marca.
Protege-se, pois, a marca, não em proveito do desenvolvimento de uma
nova tecnologia ou seu aperfeiçoamento, mas, para garantir a propriedade
exclusiva a um sinal visualmente perceptível, relacionado a determinada
qualidades do produto ou do serviço, ou de forma inversa, para inviabilizar o
uso de determinados sinais na condição de marca.
A respeito do assunto ver: CERQUEIRA, João Gama.Tratado da Propriedade Industrial, vol. 1,
parte I. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1946, p. 148 e CORREIA, Miguel J. A. Pupo. Direito Comercial,
6 ed. Lisboa: Ediforum, 1999, p. 291.
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A marca, ao menos em princípio, a partir de seu potencial associativo,
permite que, rapidamente, o adquirente do produto ou do serviço leve em conta
a qualidade do que lhe é ofertado, suas características relativas, por exemplo, ao
material utilizado, durabilidade, expectativas para com a aquisição.
Neste diapasão, o produtor deve atentar para que a credibilidade da marca
se sustente no mercado, já que, em princípio, é ela que conduz à aceitação e
reconhecimento da marca, influenciando de forma fundamental na escolha por
contratar especificamente aquele produto ou serviço.
Por evidente, na sociedade contemporânea, em que o marketing e o seu
poder persuasório devem ser levados em consideração, mais importante do que
a realidade das características presumida pela simples projeção de uma marca, é
a percepção que o público tem destes caracteres como elementos fundamentais.
Percepção essa, muitas vezes forjada por dispendiosas campanhas de marketing,
que, ao associar os valores cuidadosamente selecionados pelos publicitários
como representativos para o público alvo, conseguem criar necessidades ou
fazer acreditar que determinada marca tem o poder da realização pessoal, ou de
elevar o status daquele que ostenta determinado produto ou serviço.
De toda forma, quer seja pelas características reais, seja pela percepção
das pessoas e dos grupos sociais, o uso de determinadas marcas é elemento de
alavancagem dos negócios, o que dota o bem imaterial marca de valor próprio,
para fins de transferência ou autorizações de uso, assim como valoriza o bem
no qual é reproduzida.
Portanto, a partir do reconhecimento atribuído a determinadas marcas,
lembre-se que na origem trata-se apenas de um sinal visualmente perceptível,
cria-se riqueza, quer seja relativamente a ela mesma (modalidade de propriedade
industrial), quer seja em relação aos bens ou serviços identificados pela marca.
Porém, para que o valor de uma marca se consolide num determinado
mercado, é preciso que exista uma distinção entre a generalidade dos produtos
ou serviços e aqueles associados à marca. Vale dizer, que se estabeleça uma
clara distinção entre estes e as demais ofertas. É assim que, por exemplo, uma
água engarrafada sob determinada marca de produto, ao ser distinguida de uma
água retirada da torneira, incorpora atributos de mais valia que só se sustentam
porque a água é apresentada numa garrafa sob determinada marca, ao invés de
ser simplesmente extraída de uma torneira ou filtro.
Nada obstante, nem todos os símbolos e emblemas frutos do intelecto
humano são passíveis de serem registrados como marca. Não é possível, por
exemplo, que se registre a simples letra “A” como marca, vez que se fosse
viável, qualquer pessoa que fosse utilizar a referida letra teria de pagar royalties
ao proprietário da marca. Há vedação para que bens de uso comum possam ser
utilizados como fonte de riqueza de um sujeito determinado.
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A respeito das vedações, é útil destacar-se três incisos, apenas a título de
demonstração e posterior análise, constantes de incisos do art. 124 da Lei de
Propriedade Industrial (Lei 9279/96), a seguir transcritos: Art. 124. Não são registráveis como marca:
I - brasão, armas, medalha, bandeira, emblema, distintivo e monumento
oficiais, públicos, nacionais, estrangeiros ou internacionais, bem como a respectiva designação, figura ou imitação;
II - letra, algarismo e data, isoladamente, salvo quando revestidos de
suficiente forma distintiva; (...)
XIII - nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo, artístico, cultural,
social, político, econômico ou técnico, oficial ou oficialmente reconhecido, bem
como a imitação suscetível de criar confusão, salvo quando autorizados pela
autoridade competente ou entidade promotora do evento.
Cada vedação possui um significado e uma justificativa, vez que se trata
de uma verdadeira opção expressa do legislador no sentido de impossibilitar o
registro de determinados elementos que poderiam ser visualmente distinguíveis
como marca.
Existem dois enfoques a serem considerados: (i) a inviabilidade do
reconhecimento de titularidade e uso exclusivo – cujo compartilhamento
pressuporia o pagamento de remuneração ao titular -; (ii) o impedimento de uso
do elemento visual de forma a caracterizar um específico produto ou serviço.
Em um exercício de abstração, poder-se-ia supor que em relação ao
inciso I, por exemplo, veda-se o registro da bandeira nacional como marca para
impedir que um patrimônio de todos os brasileiros, ou nacional, seja fonte de
riqueza de particulares, na postura de proprietários de um símbolo pátrio. Seria
impensável o pagamento de royalties por aquele que quisesse se utilizar de
um bem cívico. Por outro lado, também inconcebível em nosso sistema que a
bandeira nacional perca o status de elemento cívico para tornar-se uma fonte de
reconhecimento de atributos de produtos e serviços.
Da mesma forma, quanto ao inciso II, pode-se argumentar que se veda o
registro de letra, algarismo e data como marca, para impedir que determinado
sujeito possa se apropriar de algo que, necessariamente, será utilizado por
todos os cidadãos. Novamente, assim como a bandeira, trata-se de bem de uso
comum, cujo registro como marca configuraria manifesto contrassenso.
No que diz respeito ao objeto do presente estudo, destaque-se a análise
do contido no inciso XIII do art. 124, reproduzido acima, que afirma não ser
possível registrar como marca “nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo
(...), salvo quando autorizados pela autoridade competente ou entidade promotora
do evento”. Pergunta-se, em primeiro plano, qual é a vedação existente?
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Conforme a linha de raciocínio já exposta neste artigo, é possível que
se associe, quer seja o reconhecimento de uma marca ou a vedação ao seu
registro a dois diferentes objetivos: assegurar ao titular a exploração exclusiva
do sinal escolhido como referência de um produto ou serviço ou impossibilitar
que qualquer agente possa tomar como de uso próprio e exclusivo um sinal
visualmente perceptível tornado indisponível para este fim em decorrência do
disposto no art. 124.
Para fins de compreensão do teor do inciso XIII da referida norma, podese novamente utilizar como recurso o exercício de abstração. Em relação ao
âmbito de incidência da vedação, veja-se que, diferentemente, dos demais
incisos citados, não se está a proibir de forma genérica o registro de determinado
sinal como marca. Busca-se vedar que um terceiro tome a marca como sua, de
forma a se aproveitar dos benefícios gerados pela garantia de exclusividade e
seu subsequente potencial de ser comercializada, sem uma autorização emanada
da autoridade competente ou entidade promotora do evento, a fim de promover
o registro de nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo.
O propósito da norma parece ter sido conferir uma proteção para a
autoridade competente ou entidade promotora do evento esportivo em face
de algum indivíduo que buscasse aproveitar, sem qualquer contribuição
criativa ou de anterioridade, a notoriedade de determinado espetáculo
esportivo para obter lucro para si.
Exemplificando: se não houvesse a vedação, Paulo e José, sabedores
do quão representativos e chamativos são os elementos visuais distinguíveis
caracterizadores do Campeonato Brasileiro de Futebol, poderiam, na visão
do legislador, registrá-los como marca e todos que desejassem fazer uso dos
elementos, seriam obrigados a pagar royalties a Paulo e José. Sob este ponto de
vista, parece justificada a vedação expressa na Lei.
Em que pese a existência da referida norma específica relacionada a
evento desportivo, na qual se enquadraria perfeitamente a Copa do Mundo de
2014, para fins de regulamentação do consagrado evento que será realizado –
agora pela segunda vez – no Brasil, disciplinou-se o tema do registro de marca
de forma específica pela chamada Lei Geral da Copa.
3. A LEI GERAL DA COPA: CASUÍSMOS X NECESSIDADES
Sintetizadas as determinações normativas quanto à registrabilidade
de marcas, torna-se interessante comparar o regime previsto na LPI e aquele
disposto na LGC, no art. 3° e no seu respectivo parágrafo único:
Art. 3o O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) promoverá
a anotação em seus cadastros do alto renome das marcas que consistam nos
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seguintes Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA, nos termos e para os fins da
proteção especial de que trata o art. 125 da Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996:
I - emblema FIFA;
II - emblemas da Copa das Confederações FIFA 2013 e da Copa do
Mundo FIFA 2014;
III - mascotes oficiais da Copa das Confederações FIFA 2013 e da Copa
do Mundo FIFA 2014; e
IV - outros Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA, indicados pela
referida entidade em lista a ser protocolada no INPI, que poderá ser atualizada
a qualquer tempo.
Parágrafo único. Não se aplica à proteção prevista neste artigo a vedação
de que trata o inciso XIII do art. 124 da Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996.
De plano, observa-se que o legislador imputou dever de fazer ao INPI,
no sentido de que este promova a anotação em seus cadastros das marcas de
titularidade da FIFA, dentre elas, “emblemas da Copa das Confederações FIFA
2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014”, na qualidade de marca de alto renome.
Alguns aspectos já podem ser destacados na referida previsão: (i) as
marcas associadas à Copa das Confederações FIFA 213 e Copa do Mundo FIFA
2014 serão tomadas como marcas de alto renome. Vale dizer, serão enquadradas
na categoria prevista no art. 125 da LPI, qual seja lhes será assegurada proteção
especial, em todos os ramos de atividade; (ii) o registro das referidas marcas será
feito “de ofício” de parte do Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI.
Quanto ao alto renome, trata-se de um regime especial em relação ao
regime geral assegurado pelo LPI. Neste, se reconhece o direito do agente sobre
marca cuja originalidade e direito de exclusividade se refere a um específico
ramo de atividade – e não a todos os ramos de atividade. Esta extensão só é
reconhecida na Lei justamente à marca de alto renome, cuja afirmação depende
de expresso registro e reconhecimento perante o INPI.
O alto renome de uma dada marca e a garantia de uso exclusivo para
além de ramo de atividade podem encontrar sua justificativa na proteção dos
consumidores, assim como para evitar a prática conhecida como freerider, ou
caronistas que são aqueles que mesmo sem ter contribuído para o sucesso de
um determinado empreendimento, se aproveitam do sucesso dele para obter
êxito para si (na carona)17. Além do risco do efeito de carona, quanto aos
consumidores, o uso de uma marca muito forte em outro ramo de atividade
que não aquele em que a marca se consolidou, poderia induzi-los a acreditar
que se trata de produto ou serviço correlato, a que possa atribuir características
associadas ao produto ou serviço pertencente ao original. Assim, a depender
da força da marca no mercado geral, justifica-se o seu registro como de alto
COOTER; ULEN, op. cit., p. 120-121.
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
renome, o que impedirá que o mesmo sinal distintivo seja utilizado para qualquer
outra atividade, além daquela originária da marca, como forma de se evitar o
aproveitamento econômico daquele que pretende se beneficiar da posição de
uma marca no mercado sem ter participado das estratégias que conduziram a esta
posição. Trata-se também de estratégia de proteção do consumidor, evitandose confusões quanto às características dos produtos e serviços ofertados sob
uma determinada marca, que muito embora garantida num determinado ramo
de atividade, acaba por produzir efeitos em qualquer outro ramo.
Portanto, admitir-se que um agente se valesse do reconhecimento já
firmado num dado mercado relativamente a um produto ou serviço integrante de
outro mercado, seria desprestigiar o direito de propriedade intelectual conferido
a outro agente como decorrência de um processo econômico que envolve
investimentos relacionados à atividade criativa, e, sobretudo, às estratégias de
consolidação no mercado, o que significa o dispêndio de tempo e recursos. Se
antes se falou da potencialidade de geração de riqueza a partir da consagração de
uma marca –lembre-se aqui da marca como elemento diferenciador de produto
ou serviço, o que outorga ao seu titular a possibilidade de fixação de preço do
bem ou serviço, com relativa independência em relação aos seus concorrentes
diretos, assim como sua condição de bem valorável em si mesmo, passível de
negociação seja pela via da cessão definitiva ou de uso- deve-se agora concluir
que a aceitação da figura do caronista neste campo serviria como desestímulo a
que empreendedores investissem para a criação e manutenção de sua reputação,
diante da observação do favorecimento de terceiros de forma gratuita (sem
a partilha dos custos de entrada). E, na mesma linha de pensamento, este
desestímulo afastaria o potencial de geração de riqueza, incompatibilizando-se
com ideais de crescimento econômico.
Por outro lado, a LGC também determina de forma atípica e indesejável
que o INPI, de ofício, anote o registro de diversas formas de propriedade
intelectual ligadas aos eventos esportivos. Esta determinação implicitamente
afasta algumas das determinações da LPI relacionadas a quem pode pedir o
depósito de marca e quais os requisitos que deve ostentar.
A LPI determina em seu art. 128 que podem requerer registro de marca as
pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou de direito privado. Estabelece
no § 1º “que as pessoas de direito privado só podem requerer registro de marca
relativo à atividade que exerçam efetiva e licitamente, de modo direto ou através
de empresas que controlem direta ou indiretamente, declarando, no próprio
requerimento, esta condição, sob as penas da lei”.
A Lei prevê a necessidade de um requerimento apresentado por pessoa
física ou jurídica, ao passo que a LGC determina a anotação de marca de alto
renome. A LPI condiciona a que os pedidos apresentados por pessoas jurídicas
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
de direito privado refiram-se a produtos e serviço decorrentes de atividade que
exerçam efetivamente – observe-se aqui que a FIFA é uma pessoa jurídica de
direito privado registrada na Suíça. Conclui-se, portanto, que o interessado,
seja ele pessoa física ou jurídica é quem deve apresentar o pedido de registro
enquanto titular do direito.
Pela LGC, o legislativo obriga uma autarquia federal vinculada ao
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (órgão do
executivo) a fazer algo, de modo particularizado, para beneficiar uma entidade
(neste caso com o agravante de ser estrangeira e de natureza privada),
notadamente para tornar mais célere e abrangente o registro de sinais visualmente
distinguíveis remetentes à FIFA.
E a forma registral prevista é diretamente na categoria de marca de alto
renome, para fins de produção de efeitos relativamente a todos os ramos de
atividades. Aqui se opera mais uma derrogação da LPI. A Lei trata do “registro” de
marca, inclusive na categoria de alto renome. A LGC menciona uma “anotação”
realizada de ofício pelo INPI. No entanto, a LPI prevê em seu art. 136, tendo
como destinatárias as marcas, que as anotações se restringem aos atos:
I - da cessão, fazendo constar a qualificação completa do cessionário;
II - de qualquer limitação ou ônus que recaia sobre o pedido ou registro; e
III - das alterações de nome, sede ou endereço do depositante ou titular.
Com base no disposto na LPI, haveria uma impropriedade na determinação
contida na LGC quando esta prevê uma hipótese de anotação que, na verdade,
seria de pedido de registro- com as consequenciais formais daí decorrentes.
Não há como se interpretar como apenas a “anotação” de notoriedade de
marca, como mencionado na LGC, quando se trata de registro da marca. Registro
este de sinais que, em algumas de suas modalidades, são constituídos após a
definição do país no qual será realizado o próximo evento, e, normalmente,
mediante alguma forma de concurso, o que demanda tempo até que seja
definitivamente elaborada e registrada.
Por outro lado, como o dever de anotação é imposto ao INPI, há de
se concluir que o titular dos bens intelectuais estará isento das despesas
normalmente associadas ao pedido de registro, caracterizando-se mais um
privilégio para a FIFA.
Há uma questão de técnica legislativa que também merece ser considerada.
Pela redação do parágrafo único do art. 3° da LGC (que se repete no parágrafo único
do art. 4° da mesma lei), “não se aplica à proteção prevista neste artigo a vedação de
que trata o inciso XIII do art. 124 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996”.
A mencionada vedação é assim redigida: “Art. 124. Não são registráveis
como marca: (...) XIII - nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo,
artístico, cultural, social, político, econômico ou técnico, oficial ou oficialmente
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
reconhecido, bem como a imitação suscetível de criar confusão, salvo quando
autorizados pela autoridade competente ou entidade promotora do evento”.
Depreende-se do dispositivo do inciso XIII do art. 124 do LPI que é
vedado a terceiros fazer o registro de nome, prêmio ou símbolo de competição
esportiva, sem que tenha autorização da entidade promotora do evento ou
competente para tanto.
Assim, num simples exercício lógico, tem-se que pela interpretação
literal do parágrafo único do art. 3º da LGC, se está a retirar a vedação, ou seja,
permite-se que qualquer pessoa possa registrar como marca, independentemente
de autorização da entidade promotora do evento, os elementos visualmente
distinguíveis relativos a prêmio, nome ou símbolo de evento esportivo.
Por certo que não foi esse o objetivo do legislador, até mesmo por conta
da interpretação sistêmica da LGC, que deixa clara a intenção dos legisladores
de conceder todo tipo de benefícios e vantagens à FIFA, organizadora da Copa
do Mundo de Futebol, em prol das supostas (e desejáveis) vantagens que
devem resultar do fato de nosso país ter sido escolhido como sede dos eventos
esportivos, especialmente a COPA de 2014.
Desse modo, indubitavelmente, a única interpretação cabível passa a ser
de que a FIFA será a única habilitada a titular como marca nome, prêmio ou
símbolo de evento esportivo no país (especificamente no que se refere à Copa
do Mundo de Futebol e à Copa das Confederações), por ato ex oficio, direitos
reconhecidos em todos os ramos de atividades, independente do pagamento das
taxas normalmente envolvidas18.
Há de se questionar e considerar que, indiretamente, outras normas
procedimentais da LPI também foram afastadas pela LGC, ao determinar
a anotação de notoriedade das marcas da FIFA. O procedimento legalmente
estabelecido para registro de marca pressupõe o pedido de registro (depósito),
análise preliminar do pedido, abertura de prazo para oposição, concluindo-se o
processo com a decisão que irá deferir ou não o pedido de registro.
Há prazos e procedimentos estabelecidos na Lei porque os técnicos do
INPI e outros interessados devem ter a oportunidade de analisar a originalidade
do material apresentado, sua pertinência em relação à condição do solicitante,
se o pedido não esbarra em algum impeditivo legal, dentre outros aspectos.
Fugindo de forma contundente do regime geral, a LGC inclusive possibilita à
FIFA aditar novos elementos para anotação mediante aditamento à listagem.
Vale dizer: houve uma edição normativa especial para evento esportivo
de natureza especial, que, em atenção às exigências da FIFA, derrogou
De acordo com o site do INPI, a marca FIFA é registrada desde 1994, mas sem ser de alto
renome.Inclusive, no rol de marcas de alto renome não consta a da FIFA. Veja-se que a norma
comentada neste artigo da LGC inclui as marcas relacionadas à Copa do Mundo de 2014 e Copa
das Confederações. Disponível em: http://www.inpi.gov.br, acesso em 03 de novembro de 2012.
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
parcialmente a normativa vigente em vários temas, e, no que foi objeto deste
estudo, no regime jurídico reconhecido às marcas em nosso país.
Afastou-se legitimidade, custos, procedimentos e foram revogadas
temporariamente normas vigentes, sem que se discutisse se houve ou não algum
atentado à soberania nacional (criando-se regime de exceção) ou perda de
receitas para o Estado (que, em última análise, poderia ser o titular, até mesmo
por meio de entidade criada para isso) de direitos sobre algumas destas marcas,
sem se falar na imposição da anotação de ofício do INPI e independente do
pagamento de emolumentos.
Talvez os fins justifiquem os meios, talvez não haja interesse em se
questionar as imposições da FIFA, diante de uma população maravilhada pela
possibilidade de sediar a Copa do Mundo. Mas a ideia de particularismo conflita
com aquela de estado de direito, que se pressupõe estabelecido sobre bases
gerais e estáveis, não sobre particularismos justificadores do reconhecimento
de privilégios que conflitam com as dificuldades que enfrentam os demais
profissionais interessados em fazer uso do registro de patentes, modelos de
utilidade e marcas. Profissionais estes que normalmente enfrentam um sistema
considerado moroso que demanda no mínimo dois anos para a obtenção de um
registro. A justificativa para o prazo recai sobre a alegação de insuficiência dos
quadros técnicos.19
Há quem invoque os benefícios que acompanharão a realização da Copa
no Brasil, as almejadas melhorias de infraestrutura geral e voltada para os
esportes. Mas o que se pode dizer das melhorias que poderiam decorrer do
aperfeiçoamento do regime registral no Brasil, de forma que as nossas mentes
criadoras tivessem maior agilidade no registro de patentes, assim como se o
próprio regime definidor da titularidade sobre a propriedade industrial pudesse
atingir um estágio de desenvolvimento que nos permitisse sair da incômoda
58ª posição no ranking mundial de inovações da Organização Mundial de
Propriedade Intelectual, publicado em 2012, atrás de países muito menores
e com economias menos fortes como Brunei, Montenegro, Croácia, Chile,
Estônia, entre outros20.
De acordo com sites especializados, o tempo médio para obtenção do registro de uma
marca no INPI é de 4 a 5 anos. Disponível em: http://www.fec.uff.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=528. Acesso em 03 de novembro de 2012; http://www.riccipi.com.
br/paginas/servicos03.htm; e http://jus.com.br/revista/texto/13852/o-processo-administrativopara-obtencao-de-registro-de-marca.
20
Ranking completo disponível em: http://www.wipo.int/export/sites/www/freepublications/en/
economics/gii/gii_2012.pdf.
19
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
4. CONCLUSÕES
A modalidade de bens incorpóreos titulada como propriedade intelectual
teve seu reconhecimento na história dependente da outorga de privilégios de
parte dos governantes, de forma a garantir a exclusividade do titular, e, no que
se refere à propriedade industrial, a possibilidade de negociação dos direitos
mediante cessões onerosas de uso ou cessão da própria titularidade.
A outorga de privilégios, no entanto, conflita com a necessidade de
estabelecimento de critérios objetivos aptos a transmitir a mensagem de que
vale a pena investir na criação destes bens incorpóreos, sob a garantia da
titularidade exclusiva a ser comprovada pelo cotejo com tais critérios. Esta
foi a motivação para que os ordenamentos jurídicos passassem do regime de
privilégio governamental para o regime registral, criando-se mecanismos de
controle das propostas de registro e assecuratórios de direitos mínimos aos
legítimos titulares.
A titularidade dos bens imateriais precisa ser assegurada pela Lei de forma
eficiente, para ao mesmo tempo minimizar os custo de litígio sobre os bens,
desestimular o uso abusivo da propriedade imaterial e garantir aos agentes econômicos
o reconhecimento da exclusividade sobre tais bens de forma que possam se ressarcir e
remunerar de forma adequada, criando-se um ambiente de inovação.
O Brasil ostenta uma posição muito tímida no ranking de destaque por
inovação. O regime atual de registro de marcas e patentes ainda está longe de ser
suficiente para mudar esta situação. Observe-se ainda, que a própria definição
de titularidade, no caso das patentes, é um regime em construção (veja-se, por
exemplo a Lei de Inovação Federal e as Estaduais que vem sendo editadas).
A estrutura do INPI tem sido tomada como insatisfatória e o prazo de
registro, excessivamente longo.
Porém, a breve exposição trazida neste artigo demonstra que, no que se
refere às marcas associadas à Copa do Mundo, modificou-se legislativamente
a disciplina geral prevista na LPI, em diversos aspectos: (i) ao se determinar
a anotação de alto renome – sem menção ao registro da marca; (ii) ao prever
o dever do INPI proceder à anotação (sem a previsão de como os custos do
processo serão ressarcidos ao órgão registral); (iii) ao afastar os requisitos
que são impostos a quaisquer outros interessados. Para além destes aspectos
pontuais a que se poderia acrescentar vários outros, são estabelecidos privilégios
e facilidades que não encontram semelhança no tratamento dado a qualquer
outro empreendedor nacional ou estrangeiro.
Esta situação permite que se reflita: (i) por que conferir a benesse,
exclusivamente, para uma entidade estrangeira, para dois eventos esportivos
específicos, rompendo com o preceito de que as normas devem ser gerais e
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
abstratas?; (ii) em última análise, quais os efeitos dessa interpretação expansiva
dos direitos conferidos, em regime de exceção, à FIFA? Há perdas para o país?
É desnecessário fazer uma análise pormenorizada do princípio da
isonomia e da gravidade de exceções particularistas que assim se apresentem
ao sistema jurídico. Em apertada síntese, bastaria dizer que estar-se-ia bastante
próximo do regime do período anterior à promulgação do Statute of Monopolies,
em que as cartas de patente eram atribuídas somente aos amigos do rei, na base
de troca de favores. Mais do que isso: aceitar ofensas ao princípio da isonomia
pode ocasionar um perigoso precedente para futuras relativizações de outros
direitos e garantias fundamentais.
Desrespeitar as regras do jogo, criando particularizações por intermédio
de leis especiais e contingenciais pode ser atentatório à democracia. Não se está
discutindo os potenciais benefícios trazidos por um evento esportivo no país,
mas, sim, a necessidade de se compreender que o particularismo legislativo,
ainda que na atual situação pudesse ter a melhor das intenções (turismo, renda,
desenvolvimento social e econômico, etc.), pode macular os preceitos básicos de
uma sociedade que se pretende justa e igualitária. Se há algo a ser aperfeiçoado
em nossas instituições, que o seja mediante modificações normativas de caráter
geral e que resultem em aperfeiçoamentos de que se possam beneficiar todos os
empreendedores brasileiros e estrangeiros interessados em investir no Brasil.
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
REFERÊNCIAS
AGUSTINHO, Eduardo. As tragédias dos comuns e dos anticomuns. In:
RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; KLEIN, Vinicius (coords.). O que é análise
econômica do direito: uma introdução. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
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27
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 2
COPA DO MUNDO DE 2014 E DESENVOLVIMENTO
Rodrigo Pironti Aguirre de Castro21
André Luis Agner Machado Martins22
SUMÁRIO: Introdução. 1. A compreensão do desenvolvimento. 1.1 O Estado contemporâneo e a concepção do desenvolvimento. 1.2 Crescimento econômico versus desenvolvimento. 1.3 O desenvolvimento na ordem jurídica brasileira e seu reconhecimento como
direito fundamental. 2. O evento copa do mundo visto como medida do desenvolvimento
socioeconômico nacional. 2.1 O desenvolvimento e infraestrutura. 2.2 O aspecto social
envolvido no evento. 2.3 Os riscos do evento e a contramão do desenvolvimento. 3. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Não há como negar o fato de que escolha do Brasil para sediar um evento
de importância mundial como a Copa do Mundo proporcionará inúmeros benefícios ao país e aos brasileiros.
Um evento desse porte exige a estabilidade e organização administrativa
do país sede, a qual passará a ocupar uma posição de cobrança tanto de seus
cidadãos, como da comunidade internacional, incluindo a entidade FIFA23, que
Doutorando e Mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR. Especialista em Direito
Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Especialista em Direito
Empresarial pela PUCPR. Presidente da Comissão de Direito de Infraestrutura e Estudo das
Concessões Públicas da OAB/PR. Conselheiro Estadual da OAB-PR. Vice-Presidente da
Comissão de Direito Econômico da OAB-PR. Professor convidado da Universidade de La Plata
– ARGENTINA, da Universidade de San Nicolas de Hidalgo e da Universidade Tecnológica de
Monterrey – MÉXICO, da Escola de Gestão Pública Gallega e da Universidade Complutense
de Madrid – ESPANHA, do Centro Studi Giuridici Latinoamericani - ITÁLIA. Professor da
graduação e pós-graduação da Universidade Positivo. Autor das Obras: “Processo Administrativo
e Controle da Atividade Regulatória” (Ed. Fórum) e “Sistema de Controle Interno: uma perspectiva
do modelo de gestão pública gerencial” (Ed. Fórum).
22
Advogado. Formado pela Faculdade de Direito de Curitiba. Mestre em Direito Econômico e
Socioambiental (PUCPR). Especialista em Direito Administrativo (Instituto de Direito Romeu
Felipe Bacellar). Membro da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR. Sócio da Lee, Martins
& Pavoni Sociedade de Advogados.
23
A Federação Internacional de Futebol Associado (do francês: Fédération Internationale de
Football Association). Trata-se da instituição internacional que dirige as associações de futsal,
futebol de praia (português europeu) ou futebol de areia (português brasileiro) e futebol associado,
o esporte coletivo mais popular do mundo. Filiada ao COI, a FIFA foi fundada em Paris em 21 de
maio de 1904 e tem sua sede em Zurique na Suíça. Para maiores informações, sugerimos: http://
21
29
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
determina inúmeras exigências às premissas do atendimento e infraestrutura
(como estádios, mobilidade urbana, segurança, hotelaria, etc.).
No caso brasileiro, doze cidades foram escolhidas para recepcionar os
jogos da Copa, são elas: Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Natal, Rio de
Janeiro, Recife, Salvador, Brasília, Manaus, São Paulo, Cuiabá e Fortaleza.
Os investimentos vão além das obras de melhoria nos estádios das referidas cidades. O Poder Público em parceria com o setor privado, de fato concentrou grande parte dos investimentos nas cidades-sede: porém o que vem
ocorrendo, é uma aplicação considerável de recursos em todo o país, no que
diz respeito à mobilidade urbana e à infraestrutura. Ampliam-se deste modo, as
condições de bem receber turistas, acomodá-los, oferecer-lhes segurança adequada e ampla, o que por sua vez, ocasiona impactos não apenas na macroeconomia nacional, mas também nas questões sociais, como obras de melhorias em
aeroportos, portos e rodovias, transportes públicos bem como no que se refere
às questões ambientais e microeconômicas.
Um destes impactos positivos mais relevantes é a geração de empregos. O
cenário nacional já reporta um grande avanço na economia formal do país e reflete o significativo desenvolvimento social que se projeta para o período. De acordo
com um estudo realizado e divulgado pelo Ministério do Esporte24, é prevista a
criação de 710 mil empregos, sendo que desse total, quase a metade serão postos
permanentes. O estudo aponta ainda, que tal fato gerará um incremento de R$ 5
bilhões de reais no consumo das famílias brasileiras entre 2010 e 2014.
Diante de tamanho investimento em diferentes setores, a visão estratégica pretendida pelo país é de ter maior visibilidade no cenário internacional,
demonstrando capacidade para organizar um evento desse porte e consagrando-se como país em franco desenvolvimento.
Tais investimentos trarão efeitos positivos não apenas durante a realização do evento, perpetuarão em razão da exposição de produtos e serviços nacionais para toda a comunidade internacional, o que permite alavancar a economia
nacional de forma expressiva.
Os efeitos e investimento não estão adstritos às cidades que recepcionarão os jogos, mas várias outras que possuem apelo turístico internacional. Nesse
sentido é possível identificar investimentos em Foz do Iguaçu25 e cidades que
estão recebendo obras de melhoria em seus aeroportos ou portos como é o caso
de Campinas e Santos26 respectivamente.
pt.fifa.com/.
24
Disponível em: http://portal.esporte.gov.br/arquivos/assessoriaespecialfutebol/copa2014/.
25
Disponível em: http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20120601-3.html.
26
Disponível em: http://www.copa2014.gov.br/sites/default/files/publicas/05232012_iii_balanco_0.pdf.
30
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Ainda, não se pode deixar de mencionar os investimentos que deverão
ser efetuados por donos de hotéis, restaurantes e demais estabelecimentos, principalmente na capacitação de seus funcionários, visando o bom atendimento,
eficiente comunicação e interação com turistas estrangeiros. Tal investimento
ampliará a capacidade profissional de diversos funcionários o que, obviamente,
não cessará com o fim da Copa do Mundo.
Para que esses efeitos positivos sejam efetivamente concretizados, além
de considerado o custo-benefício dos investimentos realizados, é necessário
que se faça uma boa gestão desses recursos públicos e que se coordene de forma juridicamente responsável as relações do Estado com a iniciativa privada.
O presente artigo pretende conduzir ao raciocínio de que, a ocorrência
destes processos responsáveis de gestão dos investimentos são instrumentos
hábeis a consagração do desenvolvimento. Para tanto, mantém alheio às discussões ideológicas, pautando apenas a verificação do conteúdo jurídico normativo
sobre a realização do evento esportivo e seu viés como ação governamental
voltada à consagração do desenvolvimento.
1. A COMPREENSÃO DO DESENVOLVIMENTO
Da narrativa acima descrita, possível compreender que a Copa do Mundo
de 2014 importará na realização de um evento grandioso, realizado mediante
esforços de preparação prévia (como infraestrutura) e complexas operações
durante sua execução27, sendo os seus reflexos (diretos ou indiretos, temporários
ou duradouros) percebidos em diversos setores da economia e da sociedade.
Impossível negar que, com o preparo adequado, serão inúmeras as
oportunidades de desenvolvimento socioeconômico decorrentes deste fluxo de
bem-estar junto à sociedade nas mais variadas funções e setores.
Mas de que forma pode-se verificar tal evento internacional como uma
medida de desenvolvimento? Para responder tal questão, os próximos tópicos
trarão uma análise conceitual sobre o desenvolvimento e a sua compreensão.
1.1 O ESTADO CONTEMPORÂNEO E A CONCEPÇÃO DO DESENVOLVIMENTO
Do processo de inversão cíclica (ou pendular28), com a percepção
de desalinhamento do chamado Estado Liberal em relação às carências
Destas operações, destacamos o desenvolvimento de mecanismos de gestão administrativa na
condução dos investimentos que tenham origem em verba pública ou atividades de fomento, além
dos mecanismos de transparência e controle destes valores.
28
Esta questão do movimento pendular poderá ser compreendida pela leitura de: BOBBIO,
Norberto. Estado, Governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 4. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
27
31
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
sociais29, a figura do Estado adotou postura diametralmente oposta, a qual
estaria caracterizada justamente pelo forte intervencionismo junto às relações
econômicas, modelo conhecido como Estado de Bem-Estar Social. O
foco deste modelo intervencionista estava consubstanciado na provisão do
desenvolvimento econômico e social da população30.
Tal como o Estado Liberal, o modelo provedor esgotou-se e ruiu diante
de inúmeras crises31 e, de sua falência emergiu, nas últimas décadas do século
XX, uma série de discussões que trabalham com a amplitude e o papel do
Estado junto à economia e sociedade.
Estas discussões ocorrem num cenário marcado por uma onda
neoliberalizante, por efeitos econômicos da globalização e pela universalização
do capitalismo. Destes elementos, abre-se espaço para um modelo o qual, ainda
que revisitado o teor liberal do século XIX, passa a agregar novos elementos
aos contornos assumidos pelo Estado.
As recentes discussões acerca da regulação econômica evitam a
consideração da hegemonia e culto extremo ao mercado, entendido como
agente produtor do desenvolvimento.
Em virtude deste constante processo de adaptação que deve promover e
ao qual deve se submeter, e a partir da noção de que o Estado contemporâneo
há de assumir concomitantemente a posição de agente transformador e de
paciente transformado, revela-se extremamente difícil identificar um modelo
estatal específico e unificador de todas as organizações políticas desse início de
século. De todo modo há indícios suficientes no sentido de que a tarefa principal
do Estado contemporâneo não é a de realizar diretamente ações tendentes à
satisfação das necessidades coletivas. Ao menos não de modo monopolístico
e universal.32
“(...) o Estado liberal do século XIX, se peculiarizava por uma concepção omissiva. A função do
Estado era a garantia da manutenção das condições de liberdade, para propiciar aos agentes sociais
a realização de seus objetivos e finalidades”. JUSTEN FILHO. Marçal. O Direito Regulatório. In:
GUIMARÃES, Edgar (Coord.). Cenários do Direito Administrativo. Estudos em Homenagem ao
Professor Romeu Felipe Bacellar Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 351.
30
Marçal Justen Filho esclarece que: “ao longo do século XX, a ideologia do Estado de Bem-Estar
significou a assunção pelo Estado de funções de modelação da vida social. O Estado transformouse num prestador de serviços e empresário. Invadiu searas antes reputadas próprias da iniciativa
privada, desbravou nossos setores comerciais e industriais, remodelou o mercado e comandou
a renovação das estruturas sociais e econômicas.” In: O Direito das Agências Reguladoras
Independentes. São Paulo: 2002. p. 17.
31
Marçal Justen Filho prossegue no sentido de que “a multiplicação da população e a redução da
eficiência das atividades desempenhadas diretamente pelo Estado contribuíram decisivamente
para o fenômeno denominado de “crise fiscal”. A expressão passou a ser utilizada para indicar uma
situação de insolvência governamental (...).” In: Idem. p. 19.
32
OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Direito ao Desenvolvimento na Constituição
29
32
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
São as mais variadas teorias sobre este novo papel do Estado, e deste
conjunto teórico de análises, conceitos e reflexões de difícil consenso, percebese a emergência da figura contemporânea do Estado Regulador, desenvolvida a
partir da noção da existência de um núcleo mínimo de atividades essenciais do
Estado33, sendo uma destas funções típicas a regulação.
De certa forma, esta concepção regulatória de esvaziamento da figura
do Estado deve ser tratada com maior atenção. Atente-se ao fato de que não se
pode admitir a repetição de um modelo liberal que já demonstrou falibilidade.
A chamada “auto-regulação” do mercado é capaz de proporcionar um “custosocial”, já que a dinâmica do mercado está marcada por leis de eficiência,
sendo ignorada a necessidade de reequilíbrio espontâneo do mercado, que
sempre tenderá ao lado mais “forte”. A ausência deste equilíbrio, ou mesmo
a demora na sua realização, causaria um “sofrimento dramático de parcelas
enormes da população.”34
Este é o ponto crucial, ou seja, a atual função regulatória, não estará
consubstanciada puramente na regulação da economia, mas abarcaria ainda
a chamada “regulação social”. Outros serão os segmentos que compõem o
universo da sociedade que, embora não puramente econômicos, deverão ser
protegidos. O meio ambiente natural, a educação, a previsão e defesa dos
direitos de minorias, por exemplo, são elementos que a racionalidade pura
econômica poderia induzir em práticas reprováveis.
Trata-se da regulação social, que assume outras propostas. Constatouse que o mercado, ainda que em funcionamento perfeito, pode conduzir à não
realização de certos fins de interesse comum. A tais questões já eram sensíveis
mesmo os enfoques mais tradicionais, que reputavam cabível a intervenção
estatal orientada a assegurar a redistribuição de rendas e a produzir consumo
obrigatório de serviços (educação, por exemplo)35.
Assim, a atuação do Estado tende a visar, não apenas à regulação pura
econômica, mas também privilegia o chamado desenvolvimento humano e
comunitário. Existe uma expectativa de que a atuação estatal esteja consolidada
Brasileira de 1988. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador,
Instituto Brasileiro de Direito Público, n.º 16, novembro/dezembro/janeiro, 2009. p. 4.
33
Norberto BOBBIO apresenta este entendimento de feixe mínimo, definindo como atribuições
típicas de Estado: (i) o poder coercitivo (monopólio da força), (ii) o poder de impor tributos e (iii)
o poder jurisdicional (poder de julgar e decidir a razão e a sem razão, o justo e o injusto). Outras
atribuições não seriam características de Estado, mas de certos Estados (BOBBIO, Norberto. O
Dever de Sermos Pessismistas. In: _____. As ideologias e o Poder em Crise. 4. ed. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1999. p. 177-181. p. 178).
34
JUSTEN FILHO, Marçal Justen Filho. “O Direito das Agências Reguladoras Independentes”. São
Paulo: Dialética, 2002. p. 38.
35
Idem, p. 38.
33
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
na condição de agente financiador e fomentador de atividades que tenham por
fim gerar a transformação social36.
Este breve passeio sobre a evolução da figura do Estado, em especial as
reflexões do Estado contemporâneo, tem como objetivo concluir pela função
desenvolvimentista, ou seja, ao longo do tempo, a própria concepção de
desenvolvimento contemplou variações sempre relacionadas ao posicionamento
que o Estado adquiriu.
Durante o período liberal, a compreensão do desenvolvimento possuía
reflexos puramente econômicos, analisados de forma macroscópica, seguindo
critérios matemáticos que pudessem auferir a riqueza de uma nação37.
Compreendia-se que o próprio crescimento econômico seria capaz de promover
o bem-estar de uma sociedade.
Quando do período que concebia o Estado de Bem-Estar Social, a
questão do desenvolvimento seria contemplada em razão da prestação direta
dos serviços considerados essenciais. Justamente a ineficiência na prestação
destes serviços, causada até mesmo pelo agigantamento da figura e atribuições
do Estado, maculou a real satisfação do desenvolvimento.
Talvez a figura do Estado Regulador e a denominada regulação social,
revele uma preocupação em garantir o equilíbrio e a prestação de carências
sociais, ainda que sem a prestação direta.
A nova e discutida concepção regulatória notadamente apresenta algumas
construções teóricas preocupadas com a transformação social.
Dentre essas construções, é pertinente apresentar o chamado Estado do
Investimento Social, liderado em especial por Anthony GIDDENS. Essa é uma
construção marcada pela denominada “terceira via” e sua proposta seria a estrutura
de pensamento e prática política disposta a adaptar a social-democracia para um
mundo que se transformou fundamentalmente ao longo das duas últimas décadas.
Desta forma, propõe uma denominada economia mista, através da qual se busca
a sinergia entre os setores público e privado, com o dinamismo do mercado, no
entanto sem perder o foco de fundo do interesse público38. Outra destas novas construções é a chamada concepção desenvolvimentista
de Estado, formulada por Amartya SEN, e que tem como concepção a ideia de
que o desenvolvimento “é um processo de expansão das liberdades reais que as
pessoas desfrutam”39:
OLIVEIRA, Op. cit., p. 7.
FUSFELD, Daniel R. A Era do Economista. Trad. Fábio D. Waltenberg. São Paulo: Saraiva, 2003.
p. 262-265.
38
GIDDENS, Anthony. A TERCEIRA VIA: Reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da
social-democracia. Rio de Janeiro: Recordo, 2000. p. 36.
39
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. 7. reimp. São Paulo, Companhia das Letras,
2000, p. 17.
36
37
34
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
(...) um dos aspectos mais consideráveis do Estado desenvolvimentista
é que, embora SEN aponte que o Estado e sociedade têm ambos o papel de
fortalecimento das habilidades, capacidades e competências humanas, resta
claro tratar-se de função estatal a harmonização da perspectiva do crescimento
econômico com o desenvolvimento humano e comunitário.40
Desta onda desenvolvimentista, surge um contexto de função estatal:
promover a garantia de um crescimento econômico aliado à satisfação das
liberdades políticas, das oportunidades sociais, da transparência e equilíbrio
entre o econômico e o “não-econômico” na vida em sociedade.
Portanto, a atual concepção de Estado contemporâneo revela a necessidade
de atuação na garantia de mais uma medida de direito fundamental: o direito ao
desenvolvimento.
1.2 CRESCIMENTO ECONÔMICO VERSUS DESENVOLVIMENTO
A discussão teórica acerca do desenvolvimento é tarefa de profundo
interesse, mas igualmente exaustiva. Exaustiva porque busca refletir um
conceito que se encontra em constante mudança e não consensual, já que
contem inúmeras vertentes e reflexões.
Indiferente a ausência deste consenso, torna-se imprescindível
compreender que ganha espaço aqueles entendimentos que procuram dissociar
a histórica ideia de desenvolvimento como fruto de crescimento econômico.
Desde a formação dos Estados Modernos, a medição de suas riquezas
passou a ser sinônimo de poderio econômico. Os mesmos critérios de medição de
riqueza, percebidos através de mecanismos mais complexos, ainda interpretam
este “poderio” através do chamado Produto Interno Bruto - PIB, representando
a soma de todos os bens e serviços produzidos em um determinado país, durante
um determinado período de tempo.
É evidente que este critério de “desenvolvimento” não proporcionou
o chamado bem-estar intentado pelo Estado provedor, uma vez que o mero
somatório matemático do conjunto de bens e serviços não necessariamente
confere e representa a satisfação e bem-estar de uma sociedade41. OLIVEIRA, Op. Cit., p. 9.
Esta noção vinculada entre desenvolvimento e crescimento econômico começa a dissociarse quando, em 1961, a ONU institui o chamado 1º Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, o qual visava acelerar o progresso no intuito de um crescimento auto-sustentado
das nações. A iniciativa parte da constatação de que o problema do subdesenvolvimento adquiriu
caráter global, devendo ser discutido e solucionado da mesma forma. Em 1990 o PNUD divulga
o chamado IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, calculado partindo-se de premissas de
ordem econômica e social. Com a sua criação, foi possível dissociar definitivamente o calculo
do crescimento econômico do desenvolvimento. O método reforça a compreensão defendida
40
41
35
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A discussão é muito bem tratada por José Eli da VEIGA, que, ao criticar a
metodologia atual de medição da riqueza (o PIB), aponta, dentre outras falhas, a
ausência da consideração da depreciação dos ativos, tal como os ambientais. O
autor prossegue sua obra com a intenção de descolar a ideia de desenvolvimento
com a de crescimento econômico e, para isso, registra que, mesmo com um
crescimento econômico inferior, o Brasil progrediu de 1980 para cá em outros
indicadores de desenvolvimento, como o IDH da ONU e outros relativos aos
critérios de sustentabilidade42.
A análise de tantas considerações projeta uma noção atual de que o
desenvolvimento e o crescimento econômico possuem forte vínculo, sendo este
quantitativo e aquele qualitativo. Qualitativo no sentido de priorizar a melhoria
da condição de vida da população, daí que o Índice de Desenvolvimento
Humano - IDH passa a ser um melhor indicador do desenvolvimento nacional.
[S]e o desenvolvimento econômico não trouxer consigo modificações de
caráter social e político; se o desenvolvimento social e político não for a um
tempo o resultado e a causa de transformações econômicas, será porque de fato
não tivemos desenvolvimento43.
Sobre o assunto, Eros Roberto Grau discorre no sentido de que:
(...) a ideia de desenvolvimento supõe dinâmicas mutações e importa em que
se esteja a realizar, na sociedade por ela abrangida, um processo de mobilidade social
continuo e intermitente. O processo de desenvolvimento deve levar a um salto, de
uma estrutura social para outra, acompanhando da elevação do nível econômico e
no nível cultural-intelectual comunitário. Daí porque, importando e consumação de
mudanças de ordem não apenas quantitativa, mas também qualitativa, não pode o
desenvolvimento ser confundido com a ideia de crescimento44.
1.3 O DESENVOLVIMENTO NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA E SEU RECONHECIMENTO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Apresentada a evolução teórica acerca da concepção de desenvolvimento
e registrada a sua importância como função de Estado, fundamental verificar a
forma como a ordem jurídica brasileira recepciona o desenvolvimento.
por JOSÉ AFONSO DA SILVA, para quem o desenvolvimento deve ser considerado um evento
relacionado ao aspecto econômico, social, cultural e político cujo objetivo será o bem-estar
de toda a população e numa distribuição justa do seu resultado (in Comentário Contextual à
Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006).
42
As críticas ao método proposto pelo PIB estão presentes em todo o primeiro capítulo da obra A
Emergência Socioambiental (São Paulo: SENAC, 2007).
43
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Desenvolvimento e a Crise no Brasil: história, economia e
política de Getúlio Vargas a Lula. São Paulo: Ed. 34, 2003.
44
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 12. ed. rev. e atual. São
Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 216.
36
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Não se encontrará uma grande quantidade e referências à expressão
desenvolvimento junto ao corpo documental constitucional, fato que de
forma alguma diminui a sua importância em contexto normativo e prático.
Contrariamente, as poucas remissões permitem afirmar e delinear o principio
do desenvolvimento além da existência do princípio do empreendedorismo,
público e privado, e a sustentabilidade45.
A primeira das previsões expressas está localizada no próprio preâmbulo
da Constituição:
PREÂMBULO - Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em
Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus,
a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Assim, promulgada a constituição, a diretriz do desenvolvimento passou
a ser tratada como um dos objetivos fundamentais da República:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional.
O desenvolvimento proposto conta ainda com o artigo 174, o qual prevê
que a norma infraconstitucional estabeleça diretriz e base de planejamento para
o desenvolvimento nacional equilibrado, compatibilizando os planos nacionais
e regionais de desenvolvimento:
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica,
o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o
setor privado.
§ 1º - A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do
desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os
planos nacionais e regionais de desenvolvimento.
O corpo Constitucional, ao trazer consigo a previsão de desenvolvimento
nacional e regional como um preceito fundamental de eficácia vertical sobre
Uma análise das aparições do termo “desenvolvimento” na Constituição de 1988 foi realizada
por Luiz Alberto BLANCHET no artigo “Infraestrutura Nacional e Desenvolvimento Sustentável”
in DOTTA, Alexandre Godoy; HACHEM, Daniel Wunder, REIS, Luciano Elias. (Organizadores).
Anais do I Seminário Ítalo-Brasileiro em Inovações Regulatórias em Direitos fundamentais,
Desenvolvimento e Sustentabilidade e VI Evento de Iniciação Científica UniBrasil 2001 / Alexandre
Godoy Dotta; Daniel Wunder Hachem; Luciano Elias Reis – Curitiba: Negócios Públicos, 2011.
45
37
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
as três esferas de Poder, trouxe ao ordenamento jurídico a obrigação de que se
busquem mecanismos para sua consagração.
Sendo este um dos objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil, caberá à lei estabelecer diretrizes e bases de planejamento de um
desenvolvimento econômico equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará
os planos nacionais e regionais de desenvolvimento (§1º do art. 174)46.
Decorre, ainda, do artigo 23 a obrigação de que o legislador
infraconstitucional fixe normas para a cooperação entre a União, Estados,
Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento
e do bem-estar em âmbito nacional.
Três aspectos sobressaem, portanto: a) o sujeito, o titular dos interesses
não é o Estado, nem o Governo e tampouco os governantes, mas o povo;
b) o desenvolvimento não é apenas um anseio ideológico, e muito menos
ideológico-partidário, mas um dever do Estado; c) a Constituição define o
desenvolvimento como princípio, aponta os meios para sua busca e elege a
União como competente para cumprimento de tal tarefa47.
Mas ainda que exista a previsão interna e constitucional das necessárias
medidas de desenvolvimento como função típica do Estado moderno e a sua
aceitação como princípio, é possível conceber a existência de um direito
humano individual fundamental ao desenvolvimento? A questão deve ser
apreciada através da análise dos direitos fundamentais decorrentes, conforme
prevê o artigo 5º da ordem constitucional brasileira:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Assim, dada a concepção do desenvolvimento como função típica da
atuação estatal, prevista no ordenamento interno, é de se ressaltar que a ordem
internacional também reflete sua observância.
Trabalhando com a localização junto à ordem internacional recepcionada,
destaca-se a chamada Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento,
produzido pela Organização das Nações Unidas, a ONU, estabelece em seu
artigo 2º, item 1, que “a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento
e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento”.
Prossegue em seu item 3: “Os Estados têm o direito e o dever de formular
OLIVEIRA. Op. cit. p. 16.
BLANCHET, Op. cit., p. 33.
46
47
38
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem o constante
aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com
base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na
distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes”.
Daí a notória responsabilidade do Estado como agente principal na
efetivação deste direito humano ao desenvolvimento, inalienável, dotado
de aspecto individual e coletivo, caracterizado como direito fundamental de
terceira geração48.
A Constituição Federal busca alterar a estrutura social vigente no país, que
revela um modo social de produção. E busca fazê-lo mediante a definição de um
conjunto de políticas públicas que determinarão novas formas histórico-sociais,
econômicas e políticas que estão em constante modificação. Ao reconhecer as
contradições da realidade brasileira, a Constituição Federal gerou um sistema capaz
de rompê-las, dando as bases para a realização de seus princípios. Portanto, uma teoria
do desenvolvimento, aplicada à definição de diretrizes que cumpram ou venham a
cumprir o comando constitucional, deve se caracterizar pelo conjunto de iniciativas
que rompam com o modelo de subdesenvolvimento em vigor, promovendo outra
correlação de fluxo de renda, de modo a permitir ao Estado e à população, o
estabelecimento de níveis superiores de qualidade de vida, mais as bases produtivas
nacionais necessárias para a promoção do desenvolvimento de políticas de pesquisa
e desenvolvimento tecnológico. Uma teoria de desenvolvimento, digna deste nome,
deve garantir a vigência dos cinco pilares sustentáculos da democracia, a saber:
liberdade, igualdade, solidariedade, diversidade e participação49.
2. O EVENTO COPA DO MUNDO VISTO COMO MEDIDA DO DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO NACIONAL
O Brasil, no ano de 2003, apresentou sua intenção de candidatar-se a
pais sede da Copa do Mundo de Futebol de 2014 através de representação pela
Confederação Sul-Americana de Futebol - CONMEBOL. O resultado desta
candidatura e da concorrência internacional encerrou-se em 2007, quando a
Federação Internacional de Futebol Associado – FIFA elegeu o Brasil.
Deste prolongado processo, é possível reconhecer a ação do Poder
Público (em especial do Poder Executivo) a qual é justificada, juridicamente,
Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO conceitua “a primeira geração seria a dos direitos de
liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, completaria o lema da Revolução
Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade” (Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo:
Saraiva, 1995. p. 57).
49
SILVA, Guilherme Amorim Campos. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Método, 2004. p.
94-95.
48
39
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
no exercício da função desenvolvimentista. A análise de alguns expedientes
publicados pelo Poder Executivo Federal tem retratado esta natureza:
Ainda faltam quase três anos, mas desde que houve a definição do país
sede, em 20 de outubro de 2007, iniciou-se um abrangente esforço nacional.
Não se trata simplesmente de cumprir as exigências da organização e fazer
um bom papel aos olhos do mundo. Desde maio de 2007, quando houve a
ratificação das 12 cidades-sede, um trabalho de planejamento e execução de
empreendimentos estratégicos desencadeou um processo de desenvolvimento
que transcende qualquer parâmetro esportivo50.
É evidente que a medida proposta pelo Poder Executivo passaria agora
a necessitar o apoio de toda a estrutura pública administrativa, bem como
iniciativa privada, para a consolidação de resultados almejados.
Desta forma, a estrutura de governança do evento começa a ser definida
com a publicação, em 14 de janeiro de 2010, do decreto presidencial de criação
do chamado Comitê Gestor da Copa – CGCOPA. Em 26 de julho de 2011, o
novo decreto presidencial incluiu outros agentes nesta estrutura de governança.
Ambos os Comitês tem como principal objetivo definir, aprovar e
supervisionar ações previstas no Plano Estratégico do Governo Brasileiro para a
realização da Copa do Mundo da FIFA 2014 e contam com uma composição mista.
Definidos os Comitês de criação deste Plano Estratégico, formalizou-se
a chamada “Matriz de Responsabilidades” dos agentes envolvidos (públicos e
privados). Esse documento define cronogramas e responsabilidades em relação
às obras de infraestrutura e outras prestações.
A fiscalização da execução dessa matriz está sob a tutela dos Comitês
(interna), além da própria FIFA. Para acompanhamento e controle externo, foi
criado pela Controladoria-Geral da União, o Portal da Transparência51. Outras
formas de divulgação de números e cronogramas não oficiais estão disponíveis52.
Dessa estrutura de governança, atente-se à responsabilidade de
gestão financeira envolvida, já que serão vultosos os valores previstos para
investimentos, decorrentes desde linhas de crédito do BNDES, até verbas do
governo federal destinadas ao PAC53.
Políticas públicas específicas, ações governamentais, isenções fiscais e
outras formas de indução e fomento passarão a compor o ambiente regulatório
Disponível em: http://www.copa2014.gov.br/pt-br/sobre-a-copa/copa-de-2014.
Disponível em: http://www.transparencia.gov.br/copa2014/.
52
Disponível em: http://www.portal2014.org.br/.
53
Os investimentos em infraestrutura estão estimados na ordem de R$ 22 bilhões. Parte deste
valor será disponibilizado pelo BNDES, através de linhas de crédito. A primeira linha já anunciada
foi de R$ 4,8 bilhões. Outros valores são disponibilizados pelo Governo Federal, tal como R$ 9
bilhões do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), para obras de transporte, e recursos
do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.
50
51
40
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
do país. Algumas das medidas já publicadas foram o chamado “Regime
Diferenciado de Contratações” (Lei nº 12.462, de 5 de agosto de 2011) a chamada
“Lei de Isenção” (Lei nº 12.350, de 20 de dezembro de 2010) que dispõe sobre
medidas tributárias referentes à realização da Copa das Confederações FIFA
2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014 no Brasil) e a “Lei Geral da Copa” (Lei
nº 12.663 de 5 de junho de 2012), que tem por objetivo regulamentar todas as
questões previstas nas Garantias Governamentais, acordadas com a FIFA para a
realização da Copa 2014, exceto as que se referem à matéria tributária.
Toda esta mobilidade da máquina administrativa pretende, num primeiro
momento, atender às exigências impostas ao país-sede, mas num segundo
plano, referem-se a intensos investimentos permanentes em favor da sociedade.
No que diz respeito aos valores investidos e aos impactos socioeconômicos,
o estudo recente “Brasil Sustentável: Impactos Socioeconômicos da Copa do
Mundo de 2014”, desenvolvido pela empresa de auditoria Ernest & Young
Terco em parceira com a FGV54 apontou que os gastos estimados do megaevento
serão aproximadamente R$ 29,6 bilhões. Destes, R$ 12,5 bilhões virão do setor
público (o que representa 42%) e R$ 17,16 bilhões serão provenientes do setor
privado (representando 58% do total).
Já em relação aos benefícios derivados da realização da Copa do Mundo
de 2014, através de um estudo realizado pelo Ministério do Esporte55, estimase que os impactos econômicos decorrentes da realização do evento no Brasil
podem chegar a R$ 183,2 bilhões, sendo que desse valor, 26% dos impactos
são diretos (aqueles que estão diretamente relacionados ao evento, que dizem
respeito a infraestrutura, turismo, criação de emprego, consumo e tributos)
e 74% indiretos (aqueles que são contabilizados pelo estímulo às atividades
econômicas induzidos pelos efeitos diretos, comumente conhecido como
“recirculação” do dinheiro na economia)56.
Os benefícios econômicos diretos foram assim apontados pelo estudo
supramencionado (sendo que foram contabilizadas em cada uma das variáveis
de cálculo do PIB, e já considerando os efeitos de importação):
•investimentos em infraestrutura: beneficiará em R$ 33 bilhões;
•turismo incremental: benefício de R$ 9,4 bilhões;
•geração de empregos: 330 mil permanentes e 380 mil temporários;
Disponível em: http://www.ey.com/Publication/vwLUAssets/Brasil_Sustentavel_Copa2014_
novamarca/.
55
Disponível em: http://portal.esporte.gov.br/arquivos/assessoriaEspecialFutebol/copa2014/.
56 Já o estudo promovido pela Ernest&YoungTerco em parceria com a FGV concluem que a
competição deverá injetar, adicionalmente, mais R$ 112,79 bilhões na economia brasileira, com
a produção em cadeia de efeitos indiretos e induzidos. O estudo prevê a possibilidade de que o
país movimente R$ 142,39 bilhões adicionais no período de 2010 – 2014, gerando 3,63 milhões de
novos empregos-ano e R$ 63,48 bilhões de renda para a população.
54
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
•aumento no consumo das famílias: R$ 5 bilhões;
•arrecadação de tributos: R$ 16,8 bilhões.
Ainda, segundo dados fornecidos pelo Portal da Copa, site do governo
federal brasileiro, estima-se que a Copa do Mundo da FIFA 2014 agregará 183
bilhões de reais ao PIB do Brasil.57
Desse modo, conclui-se que o investimento total a ser aplicado para a
realização da copa corresponde a 16% dos benefícios que atingirão o Brasil e
sua população.
2.1 O DESENVOLVIMENTO E INFRAESTRUTURA
A discussão sobre infraestrutura revela a ausência de unanimidade
conceitual, seja na ciência jurídica ou econômica. Ainda que diversos os setores
econômicos que aproximam a regulação estatal da infraestrutura, não foram
muitos trabalhos que procuraram conceituá-la.
É de conhecimento notório na literatura econômica que os investimentos
alocados nos setores de transporte, saneamento, energia e outros setores da
infraestrutura, revertem em aumento do nível de emprego, melhoria da renda da
população e consequente favorecimento na distribuição da renda, aumento do
consumo, arrecadação tributária além de todas as reflexas transações correntes.
Dessa forma, quando tratamos do tema desenvolvimento, a questão da
infraestrutura está intimamente relacionada.
Em que pese a escassez desse princípio no corpo da Constituição, podese compreender infraestrutura, em linhas gerais como “o conjunto de estruturas,
equipamentos e instalações que constituem a base sobre a qual é produzida
a prestação de serviços considerados essenciais para a vida e/ ou para o
desenvolvimento de fins produtivos”58.
É de se reparar que a Constituição Federal, entretanto, destinou expressamente
o termo “infraestrutura” para apenas dois momentos, dos quais destacamos o artigo
2159, quando o texto constitucional define como competência material da União
a implementação e a exploração da infra-estrutura nacional, especialmente nas
Disponível em: http://www.copa2014.gov.br/pt-br/sobre-a-copa/copa-de-2014.
ROZAS, Patrício; SÁNCHES, Ricardo. Desarollo de Infraestructura y Crecimiento Econômico:
revisión conceptual. Santiago de Chile, CEPAL, 2004. p. 5 (Serie Recursos Naturales e
Infraestructura, n. 75).
59
Outra previsão está localizada no artigo 177, o qual determina atividades de monopólio da
União, quando prevê que “A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico
relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural
e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos: (...) II - os recursos
arrecadados serão destinados: (...) c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de
transportes.”
57
58
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
áreas de telecomunicações (inciso XI), de energia elétrica (inciso XII, alínea
‟a”), de navegação aérea, aeroespacial e de infra-estrutura aeroportuária (inciso
XII, alínea “b”), de transporte ferroviário, aquaviário e rodoviário (inciso XII,
alíneas “c” e “d”), e de desenvolvimento urbano (inciso XX).
Ainda que de aparição escassa, fundamental esclarecer que a sua
compreensão decorre ainda de outros elementos expressos e intrínsecos.
Luiz Alberto BLANCHET esclarece que a infraestrutura, como
o pressuposto físico do desenvolvimento, revela em seu processo de
normatização pelo legislador constituinte, um sincronismo com a continuidade,
sustentabilidade e o próprio desenvolvimento60.
Dessa forma, é de competência do Estado o aprovisionamento deste
pressuposto estático e físico do desenvolvimento, devendo ainda preocupar-se com
o pressuposto dinâmico de sua operação e funcionamento, qual seja: a logística.
Além disso, o Preâmbulo e o art. 3º, inciso II, que elegem, nesta mesma
ordem, o desenvolvimento como finalidade do Estado e como objetivo
fundamental da República, obviamente pressupõem, além das demais, também
uma infra-estrutura de transportes e uma logística adequadas à necessidade de
constante desenvolvimento61.
Ainda que de responsabilidade (competência) exclusiva do Estado, a
infraestrutura, quando precária ou inexistente, impossibilita os serviços públicos
e as atividades privadas, agride a dignidade, a saúde, o bem-estar e a própria
vida das pessoas.
A inexistência ou precariedade da infraestrutura concebida pelo Estado
compromete e até inviabiliza a vida em sociedade e, especialmente, o exercício de
direitos fundamentais, o que imprime ao problema alta relevância. Este gravame
impende a atuação do Estado como agente condutor do desenvolvimento e
prejudica imensuravelmente a inovação e a produção operada pela iniciativa
privada, a qual deixa de fluir naturalmente.
A bem da realidade, em território nacional, contrariamente ao
desenvolvimento, a ausência de investimentos em infraestrutura tem provocado
efeitos no sentido contrário. Ao longo das últimas décadas, o país perdeu
investimentos em virtude da precariedade de setores básicos e contabilizou
cifras impressionantes de prejuízos decorrentes de gargalos logísticos.
Para a Copa do Mundo, o setor de infraestrutura de transporte foi
contemplado por um planejamento caracterizado pelas concessões em sua
exploração (rodovias, portos e aeroportos), além de investimentos públicos
diretos no valor aproximado de R$ 1,21 bilhões para a expansão da capacidade
aeroportuária e R$ 1,44 bilhões direcionados a obras de reconstrução,
manutenção e ampliação das rodovias.
BLANCHET, Ob. cit., p. 32.
Idem, p. 33
60
61
43
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Em relação à construção e reforma dos estádios esportivos, trata-se
do principal custo isolado do evento, levando em consideração que algumas
cidades-sedes não dispõem de estádios em condições para sediar partidas de
competições internacionais. Nesse sentido, a FIFA exige requisitos de conforto,
acessibilidade, iluminação e segurança para a realização dos jogos, desse
modo, em algumas cidades-sedes, como Cuiabá, Natal, Recife e São Paulo,
serão construídos estádios novos, e, nas demais, haverá obras de reconstrução,
ampliação e reforma.62
2.2 O ASPECTO SOCIAL ENVOLVIDO NO EVENTO
As previsões constitucionais apresentadas, aliadas à compreensão do
direito ao desenvolvimento como um direito humano fundamental, se adéquam
a uma concepção de desenvolvimento não adstrito unicamente ao critério
econômico63. Elas conferem preocupação qualitativa à questão da satisfação de
necessidades essenciais da sociedade.
Essa preocupação com o desenvolvimento no campo social assume
outras vestes quando aplicada ao contexto jurídico de países subdesenvolvidos:
Característica comum a quase todos os países subdesenvolvidos é
a extrema concentração de poder econômico. Esta concentração de poder
limita a expressão das preferências e a habilidade da sociedade para mudar e
crescer. Limita a mudança pois esta não é possível sem o conhecimento dos
problemas e dos objetivos que a sociedade como um todo deseja perseguir.
Limita o crescimento porque, como visto, a existência de centros propulsores
de desenvolvimento baseados na demanda (consumidores) não é compatível
com a concentração do conhecimento econômico64.
Sobre a Copa do Mundo de 2014, a primeira evidência de satisfação
relaciona-se ao bem-estar que o evento certamente trará à população brasileira.
É inegável que sediar um evento mundial e tornar-se o foco desta realização
é um fenômeno capaz de conferir sensação de bem-estar à população65. Este
Disponível em: http://www.portaltransparencia.gov.br/copa2014/matriz/.
A já citada “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento”, produzida pela Organização
das Nações Unidas, a ONU, estabelece em suas considerações inaugurais: “Reconhecendo que
o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa o
constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua
participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios
daí resultantes”.
64
SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito como instrumento de transformação social e econômica.
Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, a. 1, n. 1, p. 15-44, jan./mar. 2003. p. 25-26.
65
Um grupo de economistas e cientistas liderado por Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel
de Economia em 2001, acreditam que o Produto Interno Bruto (PIB) é uma ferramenta limitada
62
63
44
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
bem-estar é considerado por muitos um elemento de análise do nível de
desenvolvimento de uma nação66.
Aliado ao aspecto do bem-estar psicológico, a grande soma de
investimentos acima descritos trará reflexos imediatos aos mais diversos setores
da sociedade, responsáveis pela prestação de serviços essenciais.
No que concerne à expansão e adequação do parque hoteleiro, a maior
parte das cidades sede não comporta a demanda do fluxo turístico causado pela
Copa, sendo que a capacidade está muito aquém da desejada. O déficit total
projetado, segundo o estudo da Ernest & Young e da Fundação Getúlio Vargas,
corresponde a 62.397 unidades. Assim, é nítida a necessidade de expansão
do setor. O investimento apontado corresponde à R$ 3,16 bilhões, os quais
somarão 19.493 novas unidades hoteleiras às cidades-sede.
Os investimentos em mídia e publicidade estão estimados em R$ 6,51
bilhões e serão efetuados principalmente pelo setor privado e concentrados
majoritariamente no ano de 2014.
para medir o progresso das sociedades, uma vez que não consegue mensurar, com eficácia, o
bem-estar social de uma nação por meio dos resultados desejados em todas as suas políticas
implementadas para tal fim.
66
O presidente da França, Nicolas Sarkozy, aderiu ao novo paradigma. Em 2008, ele organizou uma
comissão liderada pelos prêmios Nobel em Economia, os economistas Joseph Stiglitz e Amartya
Sem, cujo objetivo é dar maior foco em indicadores como saúde, coesão familiar e tempo de lazer
em vez da ênfase atual no PIB – medir a riqueza de forma parcial (bens e serviços) - O estudo
final denominado “Report of the commission on the measurement of economic performance
et social progress “, encontra-se disponível em http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr/en/index.htm:
“The Commission on the measurement of economic performance and social progress has been
created at the beginning of 2008 on French government’s initiative. Increasing concerns have
been raised since a long time about the adequacy of current measures of economic performance,
in particular those based on GDP figures. Moreover, there are broader concerns about the
relevance of these figures as measures of societal well-being, as well as measures of economic,
environmental, and social sustainability. Reflecting these concerns, President Sarkozy has
decided to create this Commission, to look at the entire range of issues. Its aim was to identify the
limits of GDP as an indicator of economic performance and social progress, to consider additional
information required for the production of a more relevant picture, to discuss how to present
this information in the most appropriate way, and to check the feasibility of measurement tools
proposed by the Commission. Commission’s work is not focused on France, nor on developed
countries. The output of the Commission has been made public, providing a template for every
interested country or group of countries. The Commission was chaired by Professor Joseph E.
Stiglitz, Columbia University. Professor Amartya Sen, Harvard University, was Chair Adviser.
Professor Jean-Paul Fitoussi, Institut d’Etudes Politiques de Paris, President of the Observatoire
Français des Conjonctures Economiques (OFCE), was Coordinator of the Commission. Members
of the Commission are renowned experts from universities, governmental and intergovernmental
organisations, in several countries (USA, France, United Kingdom, India). Rapporteurs and
secretariat have been provided by the French national statistical institute (Insee), OFCE, and
OECD. The Commission held its first plenary meeting on 22 - 23 April 2008 in Paris. Its final
report has been made public on 14 September 2009.
45
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Em relação aos investimentos em tecnologia da informação, estimam-se
necessários R$ 309 milhões para acomodar o grande fluxo de dados e capacidade
de processamento.
Os recursos destinados à implantação de centros de mídia e transmissão
de dados IMCs (International Media Centers) e IBC (International Broadcast
Center) também são vultosos. Apenas para a implantação do IBC, que
centralizará as informações enviadas aos outros países, os investimentos
estimados são de R$ 184 milhões.
Outro destes investimentos em segmentos promotores de melhorias nas
condições de vida é a reurbanização das cidades, revitalização de áreas turísticas
(379km2), entornos dos aeroportos (132km2) e dos estádios (0,6 km2). Esta
revitalização compreende iluminação pública, pavimentação de calçadas,
readequação de espaço e outras as quais possuem investimento estimado em
R$ 2,84 bilhões67.
Para garantir de forma efetiva a segurança pública, serão investidos R$
1,70 bilhões em infraestrutura de segurança, que engloba veículos e aeronaves,
sistemas de comunicação e tecnologia, treinamento de pessoal e armamentos.
Está prevista a instalação dos chamados Fan Parks, parques ou áreas ao
ar livre transformados em espaços de lazer para o público, bem como para sua
integração. Serão instalados em todas as cidades-sede, terão entrada gratuita e
contarão com diversas atividades de entretenimento para o público, inclusive com
telões que irão transmitir os jogos. Para isso, serão investidos R$ 204 milhões.
Além desses investimentos, ainda existem os gastos operacionais que
dizem respeito a segurança e energia, que serão de R$ 327 milhões e R$ 280
milhões respectivamente.
Some-se a esses elementos a política de sustentabilidade que, desde
o evento realizado na Alemanha em 2006, é pregado pelos Comitês de
Organização. Assim, são previstos, para a realização do evento medidas de
conservação de energia, minimização do uso de água, gestão integrada de
resíduos, mobilidade planejada, edificações “verdes”, sempre prezando pelas
certificações de entidades internacionais (Leed, Acqua, Breeam, etc.).
Dessa forma, além dos benefícios econômicos da realização da Copa do
Mundo no Brasil, temos ainda os efeitos sociais derivados das ações efetivadas
pela realização do evento, que já foram brevemente apontados e podem ser aqui
resumidos como a exposição positiva do Brasil na comunidade internacional,
o que deverá alavancar o desenvolvimento social do país, por meio do turismo,
dos impactos do programa de voluntariado sobre a escolaridade e renda da
A finalidade da norma que se extrai do art. 182 da Constituição, relativa à política de
desenvolvimento urbano, é manifestamente clara: “ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.
67
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
população, dos benefícios sociais resultantes dos investimentos em infraestrutura
(que poderiam demorar muito mais tempo para serem efetivados); da potencial
redução da violência e criminalidade em decorrência dos investimentos em
segurança e, ainda, dos impactos microeconômicos advindos da construção e
melhoria dos estádios e a existência de um novo ambiente de oportunidades que
se cria tendo em vista a ocorrência de um evento desse porte.
2.3 OS RISCOS DO EVENTO E A CONTRAMÃO DO DESENVOLVIMENTO
É evidente que toda a argumentação acima proposta no sentido de
determinar a realização da Copa do Mundo como uma medida de consagração
do desenvolvimento socioeconômico nacional, direito fundamental e garantia
constitucional (art. 3º da CF/88) dependerá do sucesso desta gestão, planejamento
e cumprimento dos cronogramas e metas propostos.
Na realidade, a indicação e definição do Brasil como país sede pode ser
considerada uma via de mão dupla. Se por um lado é capaz de alavancar uma
economia e promover profundas medidas de desenvolvimento social, por outro,
poderá registrar um fracasso capaz de causar profundos prejuízos.
Tal situação ocorreria diante de uma ineficiência econômica marcada por
orçamentos deficientes ou equivocados, ausência de tempo para readequações
junto aos projetos iniciais, custos extras devido ao não atendimento dos
cronogramas, distorções de ordem macroeconômica, cambial ou regulatória, etc.
A ineficiência poderá ser na deficitária qualidade e atendimento aos
visitantes, perdas econômicas, desordem, fluxo negativo de visitantes, imagem
negativa. É notória a carência de um sistema energético confiável, fluxo
adequado do transporte arterial, estádios adequados ao padrão internacional,
incapacidade do sistema hoteleiro e ineficiência da segurança pública, fatores
que agregam profundo desfio de gestão pública para reversão e concretização
dos impactos socioeconômicos positivos previstos.
3. CONCLUSÃO
O presente artigo teve com especial fundamento a aproximação de
eventos internacionais os quais, por tornarem o cenário nacional extremamente
atraente para investimentos estrangeiros, bem como, por exigirem um alto
grau de organização administrativa e infraestrutura, proporcionam cenário
hábil à promoção de ações governamentais em busca da consagração do
desenvolvimento nacional.
A despeito da existência do evento, bem como da assimilação de que sua
ocorrência efetiva medidas desenvolvimentistas, é fundamental registrar que
47
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
tais medidas não podem ser promovidas exclusivamente em decorrência destas
condições (país anfitrião de eventos internacionais).
A realidade aponta ao fato de que a prestação de serviços estatal,
em especial junto ao cenário aeroportuário e portuário, já há tempos
demonstram uma profunda inadequação com o ritmo de crescimento e
desenvolvimento de atividades particulares (empreendedores). Na realidade,
esta necessária infraestrutura e logística já constituem um verdadeiro gargalo
ao desenvolvimento.
A questão apenas ressalta que a gestão pública (atual e passadas) destes
serviços está absolutamente desconectas daquelas exigências constitucionais
que preservam a adequação, continuidade e sustentabilidade.
É esta conjuntura que acaba por frustrar o desenvolvimento nacional.
O direito ao desenvolvimento, conforme foi exaustivamente descrito ao longo
deste artigo, se trata de um direito fundamental, representado não apenas pela
esfera econômica, mas também social (bem-estar).
Sendo uma diretriz a ser promovida neste momento, ainda que imediatamente
busque o atendimento das exigências internacionais, o desenvolvimento, enquanto
fundamento da república federativa do Brasil presente na Constituição Federal,
deverá ser almejado e perseguido a todo o tempo.
A questão revela íntima ligação ao preceito de sustentabilidade68. E nem
poderia ser diferente, uma vez que a busca pelo desenvolvimento nacional, na
condição de fundamento da República Federativa, é contínuo69. A solução e
a promoção de medidas de desenvolvimento não devem ser adotadas apenas
diante de um motivo determinado, mas devem contemplar as necessidades da
presente e de futuras gerações.
Juarez FREITAS ressalta que “A sustentabilidade é multidimensional (ou seja, é ética, jurídicapolítica, social, econômica e ambiental), o que pressupõe, antes de tudo, uma reviravolta
hermenêutica habilitada a produzir o descarte de pré-compreensões espúrias, com libertação de
tudo que impede a convivência produtiva e solidária, sob o influxo da sustentabilidade como
princípio constitucional-síntese.” (in: Sustentabilidade – Direito ao future. 1ª edição. Belo
Horizonte: Editora Fórum, 2011, p. 337).
69
Neste sentido, Luiz Alberto BLANCHET ressalta que: “O desenvolvimento não é um ponto a ser
atingido, mas um estilo e meio, um movimento e não um estado.” Op.cit., p. 34.
68
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REFERÊNCIAS
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Sustentável. In: DOTTA, Alexandre Godoy; HACHEM, Daniel Wunder,
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em Inovações Regulatórias em Direitos fundamentais, Desenvolvimento e
Sustentabilidade e VI Evento de Iniciação Científica UniBrasil 2001. Alexandre
Godoy Dotta; Daniel Wunder Hachem; Luciano Elias Reis – Curitiba: Negócios
Públicos, 2011.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e sociedade: para uma teoria geral da
política. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
__________. O Dever de Sermos Pessimistas. In: __________. As ideologias e
o poder em crise: pluralismo, democracia, socialismo, comunismo, terceira via
e terceira força. 3. ed. Brasília-DF: Editora da Universidade de Brasília, 1994.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 10. ed. São Paulo:
Malheiros, 2011.
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Desenvolvimento e a Crise no Brasil: história, economia e política de Getúlio Vargas a Lula. São Paulo: Ed. 34, 2003.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São
Paulo: Saraiva, 1995.
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50
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 3
O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO NA ORDEM ECONÔMICA E SOCIAL: O
FOMENTO SOCIOAMBIENTAL POR MEIO DA PROMOÇÃO DE LICITAÇÕES
INCLUSIVAS E SUSTENTÁVEIS PARA OS GRANDES EVENTOS
Daniel Ferreira70
Fernando Paulo da Silva Maciel Filho71
SUMÁRIO: Introdução. 1. Do desenvolvimento (sustentável). 2. O desenvolvimento
(sustentável) na Constituição brasileira. 3. A atividade administrativa de fomento. 4. A funcionalização da licitação pública e dos contratos com vistas à promoção do desenvolvimento nacional sustentável. 5. Conclusões. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Já há certo tempo, discute-se no Brasil a possibilidade de as licitações e
contratos administrativos assumirem uma “função social”, ou seja, prestaremse à realização de outros interesses públicos que não à mera satisfação da
necessidade ou da utilidade administrativa ou coletiva que se vislumbra no
objeto licitado e contratado. 72
Advogado. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUCSP. Professor Titular de Direito
Administrativo da Faculdade de Direito de Curitiba e do Corpo Docente Permanente do Mestrado
em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA, junto ao
qual lidera o Grupo de Pesquisa “Atividade Empresarial e Administração Pública”.
71
Advogado. Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba
– UNICURITIBA. Especialista em Direito Administrativo pelo Centro Universitário Curitiba –
UNICURITIBA. Membro da Comissão de Direito Econômico da OAB-PR. Membro do Grupo de
Pesquisa “Atividade Empresaria e Administração Pública” (UNICURITIBA). Bolsita FUNADESP
(Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular).
72
Nesse sentido, o que se busca é “[...] reconhecer outra potencial ou compulsória finalidade para
o certame e que não se confunde com a satisfação da necessidade próxima, premente – de certa
parcela da coletividade ou da própria Administração Pública, reprise-se – a ser obtida mediante
regular execução do objeto contratado. Melhor dizendo, busca-se constatar a admissão pelo
Direito em vigor de adicional fim para ela – remoto: singular ou plúrimo (conforme o caso) –, de
modo que não se possibilite a satisfação de apenas um interesse público com sua exitosa realização,
encapsulado como primário (de uma particularizada coletividade) ou secundário (do aparato
administrativo), porém vários interesses públicos, num viés primário-primário (coletivo-coletivo)
ou secundário-primário (administrativo-coletivo). Como exemplo assuma-se, desde logo, uma
licitação que estipule, por força de lei, um critério ficto de empate entre propostas com vistas
a incentivar a formalização da atividade microempresária e facilitar seu acesso às contratações
públicas. Ou, ainda, a delimitação do objeto da licitação, por força de decreto hierárquico, a
bens e serviços ambientalmente sustentáveis. E nisso reside a cogitada ‘função social da licitação
pública’ apresentar-se, sempre que possível e cumulativamente, como um instrumento para
70
51
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
O que antes parecia uma possibilidade, lastreada na Carta da República e em
outras leis e regulamentos esparsos, hoje se vê transformado em dever legal geral,
porque a Lei Geral de Licitações se viu ontologicamente alterada pela Medida
Provisória n.º 495/2010, posteriormente convertida na Lei Federal nº 12.349/2010.
Dita alteração consistiu em inserir, no caput do art. 3º da Lei nº 8.666/93,
um terceiro fim para os certames, qual seja a promoção do desenvolvimento
nacional sustentável, o que dá nova roupagem aos certames concorrenciais,
sensíveis a uma patente realidade: a capacidade do “poder de compra”
estatal fazer voluntariamente mudar comportamentos empresariais tidos por
coletivamente desejáveis e numa perspectiva transcendente dos simples (sic)
deveres legais com o meio ambiente e com os colaboradores, dentre outros.
É com base nisso que o presente artigo busca a perquirir – por meio da
revisão bibliográfica e da análise das regras jurídicas vigentes – se e em que medida
é juridicamente possível incrementar a responsabilidade ecossocioambiental
empresarial a partir de políticas públicas no âmbito das licitações e das contratações
governamentais. Tudo isso, ademais, sem colidir com os outros dois princípiosfim das licitações, os da competitividade e da isonomia.
Da mesma forma, objetiva discutir e, eventualmente, demonstrar que o
fomento estatal não se mostra apenas útil, porém necessário para fins de se
incrementar a solidariedade no seio da sociedade, auxiliar na erradicação da
pobreza e da marginalização, e na minimização das desigualdades sociais,
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Afinal, ao contrário do que se propunha outrora, a tese do Estado
Mínimo, quase indiferente, não vingou. Com efeito, em que pese o notável
desenvolvimento tecnológico e organizacional verificado no setor privado, em
grande parte decorrente do predomínio do modelo econômico capitalista (de
economia de mercado), a cada dia se torna mais indispensável a influência estatal
na vida e na organização da sociedade – global, tecnológica, desigual e de riscos
(sociedade “pós-moderna”, “supermoderna”, “ultramoderna”, “hipermoderna”)
– destacadamente daqueles que de alguma forma se relacionam com o Estado.
Assim, as linhas que seguem visam a averiguar em até que medida o
Estado (e a Administração Pública) estão autorizados a intervir na busca de
concretização do desenvolvimento nacional sustentável (objetivo e direito
fundamental), não mais se atendo ao papel de controle e fiscalização como até
então se privilegiava.
a concretização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, bem como dos
demais valores, anseios e direitos nela encartados, sem prejuízo de outros, assim reconhecidos por
lei ou até mesmo por uma política de governo” (FERREIRA, Daniel. Função Social da licitação
pública: o desenvolvimento nacional sustentável (no e do Brasil, antes e depois da MP 495/2010).
Fórum de contratação e gestão pública – FCGP. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 52-53).
52
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A escolha do tema se deve ao fato de que com o advento da Carta de 1988 e,
portanto, mediante a expressa assunção de certos anseios, valores e direitos como
marcos caracterizadores do Estado Brasileiro, aparentemente se criou um “conflito”
entre alguns postulados clássicos (e ditos autoexcludentes). Por exemplo, entre
o do Estado Social e o da Livre Iniciativa (necessariamente atrelado ao da Livre
Concorrência), mas que não brigam entre si. E, ao contrário, que reclamam interação.
Portanto, investigar a possibilidade ou mesmo o dever de funcionalização
das licitações e dos contratos administrativos, objetivando a promoção do
desenvolvimento nacional sustentável, se mostra providência necessária, além
de oportuna e conveniente, mormente quando esse direito fundamental se vê
reprisado como nova finalidade legal dos processos licitatórios.
1. DO DESENVOLVIMENTO (SUSTENTÁVEL)
Para o trato do desenvolvimento faz-se necessária a fixação de duas
premissas absolutamente fundamentais, que nada mais são do que a prova do
caráter multidisciplinar do tema.
A primeira é não confundi-lo com crescimento, já que não são sinônimos.
De acordo com Luis Carlos Bresser Pereira, “o desenvolvimento é um processo
de transformação econômica, política e social, através da qual o crescimento do
padrão de vida da população tende a tornar-se automático e autônomo”.73 Logo,
não se pode falar apenas desenvolvimento econômico, ou social, ou político
etc., de modo que é sempre indispensável aliar todos os aspectos da realidade
enfocada, e no contexto de uma determinada comunidade ou nação.74
Neste sentido, Bresser esclarece que “quando falamos em desenvolvimento, temos sempre como objeto um sistema social determinado, o qual
se localizará geograficamente em uma região, um país, um continente. Será
sempre, porém, um sistema social. Suas partes, portanto, serão interdependentes. Quando houver modificações reais na estrutura econômica, estas
repercutirão na estrutura política e social, e vice-versa”.75 Nessa toada, o
verdadeiro desenvolvimento origina mudanças na estrutura econômica, mas
também deverá, simultaneamente, surtir repercussões na esfera ambiental,
política, cultural e social.
PEREIRA, Luiz C. Bresser. Desenvolvimento e crise no Brasil. 7. ed. Brasília: Editora
Brasiliense, 1977, p. 21.
74
Não é outra a lição encontrada na doutrina mais atenta. Vide: NUSDEO, Fábio. Desenvolvimento
econômico – um retrospecto e algumas perspectivas. In: SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e
desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 11-24, p. 17-18; RISTER, Carla Abrantkoski.
Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e conseqüências. Rio de Janeiro:
Renovar, 2007, p. 01-03.
75
PEREIRA, Luiz C. Bresser. Ibidem, p. 22.
73
53
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Melhor dizendo, essa transformação é posta em relevo por Ignacy Sachs,
quando assinala que:
[...] a noção de desenvolvimento é central nas preocupações da ONU.
Ao longo dos últimos 50 anos, ela se enriqueceu consideravelmente. A idéia
simplista de que o crescimento econômico, por si só, bastaria para assegurar
o desenvolvimento foi rapidamente abandonada em proveito de uma
caracterização mais complexa do conceito, expressa pelas adições sucessivas
de epítetos: econômico, social, cultural, naturalmente político, depois viável
[susteinable], enfim, último e recente acréscimo, humano, significando ter
como objetivo o desenvolvimento dos homens e das mulheres em lugar da
multiplicação de coisas.76
Assim, a segunda premissa é a de não tratar o desenvolvimento de forma
singularizante, tal como se propunha no discurso (neo)liberal. Veja-se que a
atual sociedade, globalizada e de riscos, faz prova por si de que a definição
singularizante de desenvolvimento (econômico) verificada nas últimas décadas
produziu nítidos reflexos – nem sempre bons e desejados – na realidade
social, cultural, ambiental e política da sociedade. Com efeito, a história da
humanidade não esconde que o aspecto econômico foi preponderante para o
desenvolvimento que até agora se seguiu, sendo que as demais transformações
e conseqüências (como, por exemplo, o desenvolvimento social) são reflexos e
conformados por ele.77
Mas como alerta Carla Abrantkoski Rister, o crescimento se expressa
mediante mudanças quantitativas, e que não redundam necessariamente em
melhorias na qualidade de vida da população. O desenvolvimento – repita-se
– “[...] consiste num processo de mudança estrutural e qualitativa da realidade
socioeconômica, pressupondo alterações de fundo que irão conferir a tal
processo a característica da sustentabilidade, entendida esta como a capacidade
de manutenção das condições de melhoria econômica e social e de continuidade
do processo”.78
Demais disso, Amartya Sen chama atenção para o fato de que:
[...] os fins e os meios do desenvolvimento requerem análise e exame
minuciosos para uma compreensão mais plena do processo de desenvolvimento;
é sem dúvida inadequado adotar como nosso objetivo básico apenas a
maximização da renda ou da riqueza, que é, como observou Aristóteles
“meramente útil em proveito de alguma outra coisa.” Pela mesma razão, o
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo:
Cortez, 2007. p. 351-352.
77
PEREIRA, Luiz C. Bresser. Op. cit., p. 21-22.
78
RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e
conseqüências. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 36.
76
54
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
crescimento econômico não pode sensatamente ser considerado um fim em si
mesmo. O desenvolvimento tem de estar relacionado sobretudo com a melhora
da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos. Expandir as liberdades
que temos razão para valorizar não só torna nossa vida mais rica e mais
desimpedida, mas também permite que sejamos seres sociais mais completos,
pondo em prática nossas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e
influenciando esse mundo.79
Ainda hoje, contudo, a definição de desenvolvimento sustentável mais difundida na doutrina é a prevista no Relatório Brundtland:80 “o desenvolvimento
sustentável é aquele que atende as necessidades do presente sem comprometer
as possibilidades de as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”.
Ou seja, esse documento alertou para a necessidade:
[...] urgente de encontrar formas de desenvolvimento econômico que se
sustentassem, sem a redução dramática dos recursos naturais nem com danos ao
meio ambiente. Definiu também, três princípios essenciais a serem cumpridos:
desenvolvimento econômico, proteção ambiental e equidade social, sendo que para
cumprir estas condições, seriam indispensáveis mudanças tecnológicas e sociais.81
Do contrário, a opção pelo crescimento econômico “isolado” poderá
gerar uma riqueza efêmera, incapaz de repercutir sobre a sociedade e, em
muitos casos, deixará o Estado em sua condição precária, típica de países
subdesenvolvidos, ou atualmente denominados “países em desenvolvimento”.82
Mas desenvolvimento requer ainda constância, viabilidade para o futuro
– sustentabilidade, enfim – sob pena de não passar de um arremedo de crescimento econômico ainda que atrelado a vantagens ambientais e sociais; “pensar
em desenvolvimento é, antes de qualquer coisa, pensar em distribuição de renda, saúde, educação, meio ambiente, liberdade, lazer, dentre outras variáveis
que podem afetar a qualidade de vida da sociedade”.83 Dessa forma, tem-se que:
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.
28-29.
80
Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/12906958/Relatorio-Brundtland-Nosso-FuturoComum-Em-Portugues>. Acesso em: 28 agosto 2012.
81
GONÇALVES, Daniel Bertoli. Desenvolvimento sustentável: o desafio da presente geração.
Revista Espaço Acadêmico, n. 51, ago/2005. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.
br/051/51goncalves.htm>. Acesso em 28. ago. 2012.
82
“Designa-se por subdesenvolvimento o estado das sociedades cujas economias não atingiram
o estágio de crescimento auto-sustentado ou, dito de outra forma, que não realizaram ainda sua
‘decolagem’ ou evolução industrial e, dada a dificuldade de aferir com exatidão tal passagem a
economias desenvolvidas, caracteriza-se habitualmente o fenômeno do subdesenvolvimento
por uma série de indicadores econômicos e sociais, dentre eles, o mais corrente é o rendimento
nacional per capita.” (RISTER, Carla Abrantkoski. Op cit., p. 21).
83
OLIVEIRA, Gilson Batista de. Uma discussão sobre o conceito de desenvolvimento. In:
Revista FAE, Curitiba, v.5, n.2, mai/ago, 2002, p. 38.
79
55
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
O objetivo da sustentabilidade social é melhorar os níveis de distribuição
de renda, com a finalidade de diminuir a exclusão social e a distância (econômica)
que separa as classes sociais. A sustentabilidade econômica diz respeito a aumentos na eficiência do sistema, seja na alocação de recursos ou na sua gestão.
Sustentabilidade ecológica concerne à preservação do meio ambiente, sem,
contudo, comprometer a oferta dos recursos naturais necessários à sobrevivência do ser humano.84
Em síntese, o desenvolvimento, para ser assim reconhecido, reclama
sustentabilidade e, além disso, consideração da sua natureza pluridimensional.
2. O DESENVOLVIMENTO (SUSTENTÁVEL) NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
Mas é preciso considerar, ainda, que
No Brasil o direito ao desenvolvimento socioeconômico se encontra
assentado na raiz do Direito, na Lei das leis, e configura um dos objetivos
perseguidos pela República (art. 3º, inciso II), ao qual se agrega direta e
imediatamente a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução
das desigualdades sociais e regionais (inciso III), de sorte a se construir uma
sociedade livre, justa e solidária (inciso I) e na qual se promove o bem de todos,
sem quaisquer preconceitos ou outras formas de discriminação (inciso IV). Mas
não só. Vem ele assegurado, com alarde, no seu próprio preâmbulo e para o qual
se invocou, inclusive, a proteção de Deus.85
Ou seja, ele não se apresenta como uma simples expectativa e nem, muito
menos, como ato de bondade. Configura, isto sim, um direito fundamental,
constitucionalmente garantido.
Manoel Messias Peixinho e Suzani Andrade Ferraro sustentam, ainda, que o:
[...] direito ao desenvolvimento nacional é norma jurídica constitucional
de caráter fundamental, provida de eficácia imediata e impositiva sobre todos
os poderes do Estado e, nesta direção, não pode se furtar a agir de acordo com
as respectivas esferas de competência, sempre na busca da implementação
de ações e medidas de ordem política, jurídica ou irradiadora que almejam a
consecução daquele objetivo fundamental.86
OLIVEIRA, Gilson Batista de. Ibidem, p. 42.
FERREIRA, Daniel; GIUSTI, Anna Flávia Camilli Oliveira. A licitação pública como instrumento
de concretização do direito fundamental ao desenvolvimento nacional sustentável. A&C – Revista
de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 12, n. 48, abr./jun. 2012.
Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=79914>. Acesso em:
29 agosto 2012 – destacamos.
86
PEIXINHO, Manoel Messias; FERRARO, Suzani Andrade. Direito ao desenvolvimento
como direito fundamental. In: XVI Congresso Nacional do CONPEDI, 2007, Belo Horizonte:
Fundação Boiteux, 2007. p. 6963. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/
84
85
56
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Antes mesmo, porém, ele é assim reconhecido internacionalmente,
notadamente a partir da “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento” (adotada
na Resolução n.º 41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas), de 1986.
Ele tem de se mostrar, ainda, ambientalmente sustentável, como assim
assumido por José Eli da Veiga,87 de forma a propiciar a todos usufruir o “direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida”, donde se impôs “ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações”, conforme imposto no art. 225 da Constituição da República.
Assim sendo, o desenvolvimento entendido como ambientalmente
viável, além de satisfazer as necessidades imediatas de uma sociedade e de seu
crescimento, associa esta intenção com o não comprometimento da qualidade
de vida das gerações futuras.
Todavia, a preocupação do constituinte foi muito além, porque evidenciou
preocupações com o desenvolvimento tecnológico e econômico (art. 5º, XXIX),
econômico e social (art. 21, IX), urbano (art. 21, XX), do ensino e nas ações
e serviços públicos de saúde (art. 43, VII, “e”; art. 35, III), geoeconômico e
social (art.43, caput), sócio-econômico equilibrado entre as diferentes regiões
do Brasil (art. 151, I), alicerçado em planos regionais (art. 159, I, “c”), regional
(art. 163, VII), social e econômico por meio do turismo (art. 180, caput), das
funções sociais da cidade (art. 182, caput), equilibrado do País (art. 192),
científico e tecnológico na área da saúde (art. 200, V), cultural do País (art. 215,
§ 3º), científico (art. 218), cultural e sócio-econômico (por meio do mercado
interno, art. 219), e, afinal, econômico (com recursos do PIS, art. 239, § 1º).
Por conseguinte, o desenvolvimento nacional, no Brasil e do Brasil,
deverá cumprir as diretrizes traçadas, bem como proporcionar uma relação
equilibrada entre bem-estar e crescimento em todos os matizes.
Destarte, é de se concluir que, a um só tempo, a nossa Carta Política
encampou o desenvolvimento nacional na sua mínima e tríplice feição
(ecossocioeconômica), à qual atrelou, ainda, cuidados com a cultura, com
a tecnologia, com a cidade, além de tutelar a liberdade e a solidariedade,88
anais/bh/manoel_messias_peixinho.pdf> Acesso: 25. ago. 2012.
87
VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro:
Garamond, 2010. p. 190-191.
88
Melina Girardi Fachin, por sua vez, esmiúça as obrigações decorrentes da assunção do
desenvolvimento como direito, nos seguintes termos: “As obrigações que nascem ao Estado, a
partir da assunção desse direito como fundamental, são de ordem positiva e negativa. Não se
circunscreve apenas à abscisão de empecilhos ao desenvolvimento, mas também ações concretas
de promoção progressiva e crescente do desenvolvimento com o máximo de recursos disponíveis.
Existem, destarte, face ao direito ao desenvolvimento, deveres positivos e negativos do estado e da
comunidade na qual este direito está inserido, com fundamento na solidariedade constitucional.”
57
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
complementando e justapondo o ideário de Ignacy Sachs e de Amartya Sen.
O direito ao desenvolvimento no Brasil constitui, assim, um direito de
terceira geração, um direito de solidariedade.89
E direitos dessa ordem, segundo Paulo Bonavides, não se destinam a proteger o interesse de um só indivíduo, grupo ou Estado; eles “têm por primeiro
destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”.90
É justamente esse patente reconhecimento que impõe a todos os atores
sociais, em especial à Administração Pública, a tomada de medidas efetivas no
sentido de concretização do direito fundamental ora tratado, eis que:
[...] o problema para o desenvolvimento está na falta de efetividade
das normas, quer por falta de interesse político e da insuficiente iniciativa da
sociedade civil no controle dos atos públicos. No entanto, existem instrumentos
jurídicos que podem direcionar a atuação estatal rumo ao desenvolvimento,
a exemplo da adoção de políticas públicas aliadas à transparência na gestão
pública e ao controle do Judiciário que podem ser o elo entre a positivação
constitucional e a efetivação do direito ao desenvolvimento.91/ 92
É nesse espaço, portanto, que as políticas públicas e, em especial, a atividade administrativa de fomento ganham renovado valor, especialmente porque:
[...] as determinações constitucionais não se dirigem à efetivação (direta
e imediata) do desenvolvimento nacional pelo Estado, apenas. Em várias
oportunidades a Constituição indica deveres atribuídos aos legisladores e aos
gestores públicos no sentido de estimular o desenvolvimento nacional.
Fica claro portanto, que o desenvolvimento do Brasil, no ideário do
Constituinte, revela-se como um processo compartilhado pela sociedade com o
(FACHIN, Melina Girardi. Direito fundamental ao desenvolvimento – uma possível ressignificação
entre a Constituição Brasileira e o sistema internacional de proteção dos direitos humanos. In:
PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado (Coords.). Direito ao desenvolvimento. Belo
Horizonte: Fórum, 2010. p. 195-196).
89
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 11. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009. p. 60.
90
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 569.
91
PEIXINHO, Manoel Messias; FERRARO, Suzani Andrade. Direito ao desenvolvimento
como direito fundamental. In: XVI Congresso Nacional do CONPEDI, 2007, Belo Horizonte:
Fundação Boiteux, 2007. p. 6971. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/
anais/bh/manoel_messias_peixinho.pdf>. Acesso: 29 agosto 2012.
92
O mesmo entendimento é sustentado por Ana Luiza Chalusnhak, ao afirmar que referido
direito fundamental (ao desenvolvimento nacional sustentável) encontra no fomento estatal
um mecanismo idôneo para garantir a sua eficácia. (CHALUSNHAK, Ana Luiza. O fomento
como forma de instrumento concretizador do direito fundamental ao desenvolvimento nacional
sustentável. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, p. 89, 01/06/2011 [Internet]. Disponível em: <http://
www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9569>.
Acesso: 20. agos. 2012).
58
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Estado, e que a este incumbe, por diversas formas, fomentar as ações privadas
afirmativas desse desiderato, tendo destacado algumas desde logo. Todavia, a
revelação das situações valoradas na Lei das leis não descarta que outras (leis)
venham a exprimir equivalentes atribuições, aliás, como a hodiernamente
imposta pela Lei nº 8.666/93, atualizada pela lei nº 12.349/2010.93
3. A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DE FOMENTO
Demais disso tudo, a Constituição da República Federativa de 1988
estabeleceu, no caput do art. 174, a função do Estado de agente normativo
regulador da atividade econômica.94
Nesse cenário, é certo que tais constatações produzem importantes reflexos
na forma de atuação estatal, passando a reclamar por uma atuação estimuladora
responsável e consciente do papel das empresas e dos indivíduos na sociedade.
No dizer de Célia Cunha Mello, “o Estado, na condição de agente
normativo e regulador da atividade econômica, exerce as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, limitando ou estimulando a ação dos
sujeitos econômicos.”95
Para Marçal Justen Filho:
[...] é possível afirmar que o Estado de Bem-Estar Social evoluiu para
transformar-se num Estado Regulador. Os poderes regulatórios externam não
apenas mera circunstância da existência do Estado como instituição política,
mas lhe asseguram natureza própria e inconfundível.
O modelo regulatório propõe a extensão ao setor dos serviços públicos
de concepções desenvolvidas na atividade econômica privada. Somente incumbe ao Estado desempenhar atividades diretas nos setores em que a atuação da
iniciativa privada, orientada à acumulação egoística de riqueza, colocar em risco valores coletivos ou for insuficiente para propiciar sua plena realização. O
Estado deve manter a participação no âmbito da segurança, da educação e da
seguridade social, evitando a mercantilização de valores fundamentais.96
É tarefa do Estado, portanto, na condição de agente regulador, identificar no
FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do
desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 63-64.
94
“Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na
forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o
setor público e indicativo para o setor privado”.
95
MELLO, Célia Cunha. O fomento da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 12.
96
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7. ed. rev. e atual. Belo Horizonte:
Fórum, 2011, p. 551.
93
59
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
mercado as externalidades e controlá-las por meio das políticas governamentais,
impulsionando-as quando positivas e internalizando-as quando negativas.97
De outra banda, a regulação estatal não tem como objetivo apenas a
eliminação os defeitos do mercado, sendo admitido ao Estado (e à Administração)
ir além, desde que esteja baseado em valores fundamentais. Tal é o caso do
desenvolvimento nacional sustentável:
Tradicionalmente, supunha-se que a intervenção estatal no domínio
econômico destinava-se a dar suporte ao mecanismo de mercado e a eliminar
eventuais desvios ou inconveniências. Já o modelo regulatório admite a possibilidade de intervenção destinada a propiciar a realização de certos valores de
natureza política ou social. O mercado não estabelece todos os fins a serem realizados pela atividade econômica. Isso se torna especialmente evidente quando
o mecanismo de mercado passa a disciplinar a prestação de serviços públicos.
A relevância de interesses coletivos envolvidos impede a prevalência da pura e
simples busca do lucro.98
Diogo Figueiredo Moreira Neto afirma, no contexto, que a atividade administrativa de fomento revela um “direcionamento não coercitivo do Estado
à sociedade, em estímulo das atividades privadas de interesse público. É uma
atividade que se sistematiza e ganha consistência acoplada ao planejamento
dispositivo”.99 Para ele, é “inegável que o fomento público, conduzido com
liberdade de opção, tem elevado alcance pedagógico e integrador, podendo ser
considerado, para um futuro ainda longínquo, a atividade mais importante e
mais nobre do Estado”.100
De forma similar, Carlos Ari Sundfeld mostra-se explicitamente favorável à Administração Fomentadora, à qual competiria “a função de induzir,
mediante estímulos e incentivos – prescindindo, portanto, de instrumentos imperativos, cogentes – os particulares a adotarem certos comportamentos”.101
“As externalidades correspondem, pois, a custos ou benefícios circulando externamente ao
mercado, vale dizer, que se quedam incompensados, pois, para eles, o mercado, por limitações
institucionais, não consegue imputar um preço. E assim o nome externalidade ou efeito externo
não quer significar fatos ocorridos fora das unidades econômicas, mas sim fatos ou efeitos
ocorridos fora do mercado, externos ou paralelos a ele, podendo ser vistos como efeitos parasitas”
(NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 6. ed. São Paulo: RT,
2010. p.153). Assim que um veículo movido a álcool gera uma externalidade positiva, realizando
um interesse geral, porque polui menos que o movido a gasolina.
98
JUSTEN FILHO, Marçal. Ibidem, p. 551.
99
MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, p. 45.
100
MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Ibidem, p. 45.
101
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003, p.
16. Em sentido análogo, Célia Cunha de Mello conceitua a administração fomentadora “como
um complexo de atividades concretas e indiretas que o Estado desempenha despido do poder de
97
60
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Mas em que consiste essa atividade administrativa de fomento? Silvio
Luis Ferreira da Rocha circunscreve-a como uma atividade teleológica, voltada
à satisfação das necessidades coletivas. Afinal, define-a de maneira descritiva e
excludente, a partir da consideração de que a Administração deixa de atuar de
modo direto e imediato e passa a agir de modo indireto e mediato. Isto é, assim
permitindo que as atividades sejam prestadas pelos particulares, as quais foram,
afinal, incentivadas pela Administração e servem igualmente para alcançar as
necessidades coletivas.102
Entretanto, como não poderia deixar de ser, há limites para incentivos
dessa ordem. Como alerta José Pimenta de Oliveira, o interesse público primário é a mola propulsora do fomento, sendo que o excesso às custas de recursos
públicos escoima a sua validade.103
De todo modo, a atividade administrativa de fomento possui algumas características: (i) é uma atividade administrativa que visa à satisfação das necessidades coletivas e à obtenção dos fins do Estado; (ii) não procura alcançar imediata
e diretamente tais fins, e sim objetiva que estes sejam alcançados pelas atividades
dos particulares mediante à proteção e à promoção dessas atividades, excluída
qualquer forma de intervenção coativa; (iii) a determinação concreta das atividades particulares a serem fomentadas caracteriza-se como uma questão política de
conveniência e política, escapando ao campo estritamente jurídico e; (iv) a participação é voluntária, ou seja, depende da vontade dos particulares.104
E para sua exteriorização, Celso Antônio Bandeira de Mello destaca a atividade de fomento como modalidade de intervenção estatal na ordem econômica
caracterizada pelos incentivos fiscais e financiamentos; na ordem social a vislumbra por meio da prestação de serviços públicos de natureza social e mediante
trespasse de recursos aos particulares a serem aplicados em fins sociais.105
Logo, os atos de fomento não se cingem “a conferir aos particulares possibilidades de autuações que estes já não tenham” e sim “consiste em prestações
autoridade, cujo labor se limita a promover e/ou incentivar atividades e regiões, visando melhorar
os níveis de vida da sociedade” (MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública.
Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 38).
102
ROCHA, Silvio Luis Ferreira da. Terceiro Setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 23.
103
OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade
no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 527.
104
ROCHA, Silvio Luis Ferreira da. Ibidem, p. 26. Célia Cunha Mello define a atividade de
fomento pela existência de quatro caracteres fundamentais, quais sejam: exercício de função
administrativa; proteção e/ou promoção de seu objeto; ausência de compulsoriedade e; satisfação
indireta das necessidades públicas. Compete destacar que a satisfação é indireta das necessidades
públicas em razão de não ser realizada diretamente pela Administração fomentadora, e sim pelo
agente fomentado (MELLO, Célia Cunha. Ibidem. 26-27, 31).
105
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008, p. 799-803.
61
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
produzidas pela Administração – sejam positivas (ajuda financeira a cientistas,
créditos subsidiados a empresas estratégicas) ou negativas (isenção de impostos) – para tornar mais fáceis ou eficazes atividades que, não obstante, os indivíduos são livres para explorar.”106
Entretanto, é preciso ficar devidamente aclarado que “a atividade de fomento não pode mais ser compreendida como benevolência do Estado, deixando de ser considerada mera liberalidade, favor ou graça, para se apresentar
como poderoso mecanismo de apoio, promoção e auxílio das iniciativas socialmente significantes, voltada à efetividade do direito fundamental ao desenvolvimento socioeconômico”.107
E o novo marco legal das licitações dá prova bastante disso.
4. A FUNCIONALIZAÇÃO DA LICITAÇÃO PÚBLICA E DOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS COM VISTAS À PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL
SUSTENTÁVEL
Como visto nas linhas anteriores, o Estado Brasileiro deve, por determinação constitucional, atuar como agente normativo e regulador da ordem
econômica, o que não lhe retira, contudo, a condição de consumidor de bens,
serviços e obras. Estima-se que pelo menos 10% do Produto Interno Bruto brasileiro possa ser imputado às contratações públicas. Já na Europa, o “poder de
compra” estatal atinge os consideráveis 15% do PIB do bloco econômico.108
Tais dados propiciam o deliberado uso do poder de compra do Estado,
no sentido de promover licitações e contratações públicas dirigidas ao desenvolvimento nacional sustentável, tanto no que diz respeito a um “consumo
consciente” quanto a incentivar a maximização da responsabilidade ecossocioambiental empresarial.
Na seara do chamado Direito Público, mais precisamente no entorno das
licitações públicas e das contratações administrativas, verificou-se nos últimos
anos o aparecimento de relevantes inovações legislativas que têm refletido e
repercutido na idéia de se agregar um novo fim aos processos e às contratações
da Administração no sentido de materializá-las como coletivamente úteis.
A primeira a alvoroçar o imaginário dos especialistas foi o Estatuto da
Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (LC 123/2006) que, em capítulo
SUNDFELD, Carlos Ari. Op. cit. p. 25.
MELLO, Célia Cunha. Op. cit. p. 36.
108
BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Governos Locais pela
Sustentabilidade – ICLEI. Guia de compras públicas sustentáveis para Administração Federal,
p.10. Disponível em: <http://cpsustentaveis.planejamento.gov.br/wp-content/uploads/2010/06/
Cartilha.pdf>. Acesso em: 28.ago. 2012.
106
107
62
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
específico, tratou de conferir acesso facilitado às licitações e contratações
públicas, inclusive por meio de preferência em situações de empate ficto (art.
44), reserva de mercado (licitações exclusivas – art. 48, I) e subcontratação
compulsória (art. 48, II), dentre outras vantagens, assim criando:
[...] uma mudança conceitual da função da licitação para fins da
Administração Pública brasileira. Trata-se de propiciar o desempenho de uma
função não econômica para a licitação. Em outras palavras, significa conferir à
licitação uma função que eu diria social, uma função indireta [...].109
Nessa mesma toada, em 29 de dezembro de 2009 foi instituída pela Lei
Federal nº 12.187 a Política Nacional de Mudanças Climáticas em conformidade com os compromissos assumidos pelo Brasil na Convenção-Quadro das
Nações Unidas sobre Mudança do Clima110 e no Protocolo de Quioto.
A citada lei expressamente legitimou o fomento público em prol do desenvolvimento sustentável por meio das licitações e contratações públicas, uma
vez que determinou o estabelecimento de critérios de preferência nas licitações e
concorrências públicas para as propostas que propiciem maior economia de energia, água e outros recursos naturais, bem como a redução da emissão de gases de
efeito estufa e de resíduos. É o que se extrai da disposição contida no seu art. 6º.111
Sobre a norma, Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira consigna que:
[...] o entendimento de que a preferência nas licitações decorrentes desse
texto legal, acima transcrito, não se limita às propostas com reflexos restritos à
questão climática – e isto nem seria possível em termos de ciências ambientais
–, pois o legislador, além de relacionar produtos que propiciem “maior econo JUSTEN FILHO. A LC n. 123 e os benefícios para pequenas empresas nas licitações públicas.
In: BACELLAR FILHO; SILVA. (Org.) Direito administrativo e integração regional: Anais do
V Congresso da Associação de Direito Público do Mercosul e X Congresso Paranaense de Direito
Administrativo, p. 159.
110
Como resultado da ECO-92 merecem destaque, para este trabalho, a assinatura, pelo Brasil,
da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, da Convenção sobre a
Diversidade Biológica, da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
e da Agenda 21. A Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima versa sobre medidas que visam
à redução da emissão de gases responsáveis pela elevação da temperatura da Terra, os chamados
gases de efeito estufa. Com base nessas medidas, a partir de 1992, os Estados passaram a tratar
sobre o assunto da mudança climática nas Conferências das Partes (COP). In: SOARES, Guido
Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público, v.1., 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 32.
111
“Art. 6o São instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima: [...] XII - as medidas
existentes, ou a serem criadas, que estimulem o desenvolvimento de processos e tecnologias,
que contribuam para a redução de emissões e remoções de gases de efeito estufa, bem como
para a adaptação, dentre as quais o estabelecimento de critérios de preferência nas licitações
e concorrências públicas, compreendidas aí as parcerias público-privadas e a autorização,
permissão, outorga e concessão para exploração de serviços públicos e recursos naturais, para as
propostas que propiciem maior economia de energia, água e outros recursos naturais e redução
da emissão de gases de efeito estufa e de resíduos.”
109
63
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
mia de energia, água”, após acrescentou “e outros recursos naturais”, para em
seguida dizer da redução de gases de efeito estufa e ampliar para “redução de
emissões de resíduos”, de modo bastante amplo.112
Seguindo o entendimento da autora, é possível estabelecer com base neste dispositivo legal, tratamento diferenciado para as propostas que propiciem
maior economia de quaisquer recursos naturais. Até porque, como acima visto,
o meio ambiente é um sistema e, por conseguinte, está totalmente interligado
(inclusive com os demais subsistemas), logo as ações de preservação dos recursos naturais sempre irão contribuir para a questão climática.
Posteriormente, em 02 de agosto de 2010 a Lei Federal nº 12.305 instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, a qual estabeleceu como um
de seus objetivos o tratamento diferenciado nas contratações públicas em prol
da aquisição de “produtos reciclados e recicláveis; bens, serviços e obras que
considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis” (ex vi do art. 7º da Lei Federal n.º 12.305/2010).113
E mais, ela frisou a responsabilidade poder público pela efetividade das
ações voltadas para assegurar a observância da Política (art. 25). Tal responsabilidade engloba, inclusive, a questão do ciclo de vida dos produtos, uma vez
que o poder público também é consumidor de produtos.114
Merece destaque que a condição do Estado de agente normativo e regulador da ordem econômica fica absolutamente evidente na redação do art. 42
FERREIRA, Maria Augusta Soares de Oliveira. As licitações públicas e as novas Leis de mudança
climática e de resíduos sólidos. In: SANTOS, Murillo Giordan; BARKI, Teresa Villac Pinheiro
(Coord.). Licitações e contratações públicas sustentáveis. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 119.
113
“Art. 7o São objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos: [...] XI - prioridade, nas
aquisições e contratações governamentais, para: a) produtos reciclados e recicláveis; b)
bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e
ambientalmente sustentáveis.”
114
Nesse sentido, observem-se as disposições encontradas no art. 30 da Lei Federal n.º 12.305/20120:
“Art. 30. É instituída a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, a ser
implementada de forma individualizada e encadeada, abrangendo os fabricantes, importadores,
distribuidores e comerciantes, os consumidores e os titulares dos serviços públicos de limpeza
urbana e de manejo de resíduos sólidos, consoante as atribuições e procedimentos previstos nesta
Seção. Parágrafo único. A responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos tem
por objetivo: I - compatibilizar interesses entre os agentes econômicos e sociais e os processos
de gestão empresarial e mercadológica com os de gestão ambiental, desenvolvendo estratégias
sustentáveis; II - promover o aproveitamento de resíduos sólidos, direcionando-os para a sua
cadeia produtiva ou para outras cadeias produtivas; III - reduzir a geração de resíduos sólidos,
o desperdício de materiais, a poluição e os danos ambientais; IV - incentivar a utilização de
insumos de menor agressividade ao meio ambiente e de maior sustentabilidade; V - estimular
o desenvolvimento de mercado, a produção e o consumo de produtos derivados de materiais
reciclados e recicláveis; VI - propiciar que as atividades produtivas alcancem eficiência e
sustentabilidade; VII - incentivar as boas práticas de responsabilidade socioambiental.”
112
64
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
da Lei em comento, o que legitima as ações de fomento público às iniciativas
ali indicadas115.
Assim, as licitações e as contratações públicas estão aptas a servir como
instrumento de fomento público, especialmente para instituir as medidas mencionadas no dispositivo acima citado. Aliás, não é outro o comando encontrado
no art. 80 do Decreto Federal nº 7.404, de 23 de dezembro de 2010, que estabelece normas para execução da Política Nacional de Resíduos Sólidos.116
Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira, compartilha este entendimento, e apresenta a seguinte análise sobre a questão do fomento público por meio
das licitações sustentáveis:
Ora, as iniciativas previstas no art. 42 são justamente aquelas que irão
estimular a adoção, na cadeia produtiva e de consumo nacional, da coleta
seletiva, reciclagem, logística reversa, gestão ambiental, além de outras medidas
que darão suporte à sistemática inaugurada pela nova lei. Trata-se, então, mais
uma vez do reconhecimento da capacidade de a Administração Pública
estimular essas práticas usando o seu poder de compra, pela aquisição de
produtos que as respeitem, ou seja, através das licitações sustentáveis.
[...]
Em conclusão, vale ressaltar que cabe à Administração Pública, para
seus novos contratos, a partir da entrada em vigor desta Lei, dar o exemplo,
de modo organizado e bem gerenciado, no sentido do cumprimento
desta lei, até com mais vigor do que outros entes privados, por missão
constitucional e legal, visto que as licitações sustentáveis terão um
papel de fomentadora da eficácia da nova Lei de Resíduos Sólidos.117
“Art. 42. O poder público poderá instituir medidas indutoras e linhas de financiamento para
atender, prioritariamente, às iniciativas de: I - prevenção e redução da geração de resíduos sólidos
no processo produtivo; II - desenvolvimento de produtos com menores impactos à saúde humana
e à qualidade ambiental em seu ciclo de vida; III - implantação de infraestrutura física e aquisição
de equipamentos para cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais
reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda; IV - desenvolvimento de
projetos de gestão dos resíduos sólidos de caráter intermunicipal ou, nos termos do inciso I do
caput do art. 11, regional; V - estruturação de sistemas de coleta seletiva e de logística reversa;
VI - descontaminação de áreas contaminadas, incluindo as áreas órfãs; VII - desenvolvimento de
pesquisas voltadas para tecnologias limpas aplicáveis aos resíduos sólidos; VIII - desenvolvimento
de sistemas de gestão ambiental e empresarial voltados para a melhoria dos processos produtivos
e ao reaproveitamento dos resíduos”.
116
“Art. 80. As iniciativas previstas no art. 42 da Lei nº 12.305, de 2010, serão fomentadas por
meio das seguintes medidas indutoras: [...] V - fixação de critérios, metas, e outros dispositivos
complementares de sustentabilidade ambiental para as aquisições e contratações públicas.
Parágrafo único. O Poder Público poderá estabelecer outras medidas indutoras além das previstas
no caput.”
117
FERREIRA, Maria Augusta Soares de Oliveira. Op. cit., p. 128 – destacamos.
115
65
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Esse contexto normativo, a Lei nº 8.666/93 também veio a ser objeto de
alteração. Em 15 de dezembro de 2010, a Medida Provisória nº 495/2010 foi
convertida na Lei nº 12.349, consagrando o entendimento defendido no presente artigo, qual seja o de que as contratações públicas são instrumento de
fomento público ao desenvolvimento nacional sustentável.
A partir desta data, o art. 3º da Lei de Licitações formalizou a promoção
do desenvolvimento nacional sustentável como nova finalidade da licitação.118
Assim, é dever do gestor público, além de garantir a isonomia e visar à obtenção
de proposta vantajosa para a Administração Pública, estabelecer critérios capazes de promover o desenvolvimento nacional sustentável. Para tanto, servirão
de norte para o gestor público para as políticas públicas implementadas pelo
governo, bem como a agenda política respectiva.
Ainda em 2010, o Congresso Nacional publicou a Lei Federal nº
12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial)119, sendo que o mesmo contém um
capítulo (V) específico sobre a imperiosidade de se fomentar o acesso da população negra ao mercado de trabalho. Vale destacar que o seu regulamento
(Decreto nº 4.228/2002) também tratou de disciplinar uma série de ações afirmativas a serem tomadas pelo Poder Público.
“Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia,
a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento
nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios
básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da
probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e
dos que lhes são correlatos” (destacamos).
119
“Art. 38. A implementação de políticas voltadas para a inclusão da população negra no
mercado de trabalho será de responsabilidade do poder público, observando-se: I - o instituído
neste Estatuto; II - os compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção Internacional
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965; III - os compromissos
assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção no 111, de 1958, da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), que trata da discriminação no emprego e na profissão; IV - os demais
compromissos formalmente assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional.” “Art. 39. O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de
trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à
promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas
similares nas empresas e organizações privadas. § 1o A igualdade de oportunidades será
lograda mediante a adoção de políticas e programas de formação profissional, de emprego e
de geração de renda voltados para a população negra. § 2o As ações visando a promover a
igualdade de oportunidades na esfera da administração pública far-se-ão por meio de normas
estabelecidas ou a serem estabelecidas em legislação específica e em seus regulamentos.§ 3o O poder público estimulará, por meio de incentivos, a adoção de iguais medidas pelo setor
privado(...)” (destacamos). “Art. 42. O Poder Executivo federal poderá implementar critérios para
provimento de cargos em comissão e funções de confiança destinados a ampliar a participação
de negros, buscando reproduzir a estrutura da distribuição étnica nacional ou, quando for o caso,
estadual, observados os dados demográficos oficiais.”
118
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Mais recentemente, no dia 05 de agosto de 2011, houve a conversão da
Medida Provisória nº 527/2011 na Lei nº 12.462, instituindo o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, a ser aplicado exclusivamente nas licitações e contratos para a realização da Copa das Confederações da Federação
Internacional de Futebol Associação - Fifa 2013, Copa do Mundo Fifa 2014,
Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. Nesse caso, a opção pelo regime
diferenciado deverá constar expressamente do ato convocatório (§ 2º do art. 1º),
uma vez que afastará, como regra, a aplicação da Lei nº 8.666/93
O Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, também tem
por objetivo o fomento público à inovação tecnológica (inc. III do § 1º do art.
1º) e ao desenvolvimento nacional sustentável (art. 3º). Até porque, na forma
aludida, qualquer disposição em sentido contrário seria absolutamente inconstitucional, tal como visto nos tópicos anteriores.
Foi prevista, inclusive, a possibilidade de solicitar certificação ambiental
nas licitações para aquisição de bens (inciso III do art. 7º). Inclusive, o inciso II
do parágrafo único do artigo 14 permitiu a exigência como requisito de habilitação – condição pessoal da licitante – requisitos de sustentabilidade ambiental.
E não é só, o artigo 10 do RDC indicou que poderá ser estabelecida remuneração variável, na contratação de obras e serviços, de engenharia ou não,
vinculada, inclusive, a critérios de sustentabilidade.
Feitas estas considerações sobre a evolução verificada no ordenamento
jurídico brasileiro, cabe, ainda, ressaltar mais uma “atualização” verificada na
Lei nº 8.666/93. Com efeito, a Lei Federal nº 8.666/93 sofreu nova modificação,
ao se inserir, por meio da Lei nº 12.440/2011, de 07 de julho de 2011, um novo
requisito de habilitação para os licitantes, qual seja a exigência de regularidade
trabalhista ao lado da regularidade fiscal120.
Vale mencionar que a referida inovação já é objeto de questionamento
judicial junto ao Supremo Tribunal Federal (ADIN n.º 4716), por provocação da
CNI (Confederação Nacional das Indústrias), o que certamente não será capaz
de abalar a sua funcionalidade em prol do desenvolvimento nacional sustentável
Diante do cenário exposto, verifica-se que cada dia mais os critérios de
sustentabilidade vinculam a Administração Pública na sua atividade de contratação, seja enquanto consumidora, seja enquanto fomentadora.
Isso tudo, por evidente, leva à conclusão de que as licitações públicas
não mais podem ser assumidas como um processo administrativo pautado pela
Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente,
documentação relativa a: (...) IV – regularidade fiscal e trabalhista; (...). Art. 29. A documentação
relativa à regularidade fiscal e trabalhista, conforme o caso, consistirá em: (...) V – prova de
inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho, mediante a apresentação de
certidão negativa, nos termos do Título VII-A da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada
pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1o de maio de 1943.
120
67
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
isonomia e que tem viés puramente econômico, fazendo-se mister examinálas, bem como aos contratos administrativos, como um instrumento para a
promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
Ademais, nesta especial seara, quando se fala em desenvolvimento
nacional sustentável quer-se dizer que os certames deverão valorar, também, os
aspectos ambientais, sociais, políticos, culturais e econômicos relacionados à
definição dos objetos, das regras de habilitação, das condições de aceitabilidade
das propostas e, afinal, das condições de execução do objeto.
Quando se aborda este caráter do desenvolvimento nacional sustentável
em matéria de licitações e contratos, pode-se pensar que este raciocínio é
inovador e decorre diretamente da Lei n.º 12.349/2010, que alterou a redação
do caput do art. 3º da Lei Federal n.º 8.666/1993121.
Todavia, a prescrição normativa do novo artigo 3º, caput, da Lei n.
8.666/93, após alteração advinda da Lei Federal n.º 12.349/2010, simplesmente
internalizou os direitos e as obrigações acerca do desenvolvimento em suas
variadas dimensões como já existentes na própria Constituição da República
Federativa de 1988 e de outras legislações esparsas nacionais.
Perceba-se, então, e a partir de todas essas novidades legislativas que
as finalidades legais da licitação não se confundem com a simples finalidade
material de satisfação de uma necessidade administrativa ou coletiva que se
resolve com a aquisição de certo bem ou com a contratação de certo serviço.
Ou seja, a própria Lei nº 8.666/93, em sua atual redação e em parceria com
as demais, traz outro fim objetivado pelo procedimento licitatório, exatamente
aquele que requer a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
Frise-se que as finalidades devem ser aspiradas em conjunto, ou seja, não
basta atingir apenas uma delas; é fundamental que todas sejam efetivadas para
que a licitação cumpra com seus objetivos legais e, com isso, seja válida sob o
ponto de vista jurídico.
De forma breve, quanto à garantia da isonomia, verifica-se que a licitação
deve ser realizada com o desígnio de equilibrar as condições dos futuros
proponentes para que, na apresentação de suas propostas, não sejam configurados
casos de concorrência desleal, por exemplo. Isso se dá no sentido de arredar
as assimetrias do mercado, continuamente em busca da melhor proposta.
Comumente, essa equalização se dá por meio de atribuição de tratamentos
“Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia,
a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento
nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios
básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da
probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e
dos que lhes são correlatos.”
121
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
diferenciados àqueles que se encontram em condições desequilibradas, o que
não representa uma violação a essa garantia.
No tocante à finalidade da seleção da proposta mais vantajosa, tem-se que
a referência se dá sobre todo o conjunto que envolve a questão, do qual emerge
a necessidade de ponderar diversos elementos, entre eles a observância aos
princípios correlatos, a qualidade do bem/serviço, o preço, o interesse público
e, mais recentemente, a vinculações decorrentes da busca pelo desenvolvimento
nacional sustentável. Desse modo, a licitação deve ser apreendida como uma
manifestação do princípio da República, na medida em que agrega todos esses
elementos em favor da proposta e do contratante que apresentem a melhor
condição de atender o interesse coletivo.
Como acima visto, não é possível, hoje, tratar da vantajosidade
apenas sob o aspecto econômico, principalmente devido a inserção do
desenvolvimento nacional sustentável às finalidades licitatórias. Isso porque
a licitação, no respeito aos princípios da Administração Pública, deve primar,
entre eles, pelo princípio da eficiência. Ora, caso uma compra pública ocorra
com base apenas no melhor preço, olvidando os outros aspectos relevantes
destacados há pouco, poderá incorrer em diversas incongruências com os
objetivos legais. Ou seja, não se verificam vantagens, legalmente balizadas,
em adquirir-se um bem ou serviço com altos índices de poluição, com pouca
durabilidade, desatualizado, entre outros aspectos depreciativos, apenas por
considerar a proposta econômica de menor valor.
Portanto, o desenvolvimento sustentável como escopo da licitação possui
fundamentos pretéritos à sua inclusão na Lei de Licitações, haja vista que esse
procedimento é um meio pelo qual o Poder Público cumpre com diversos de
seus deveres constitucionais. Não é outra a lição extraída da obra de Diogo de
Figueiredo Moreira Neto, na qual o autor observa que:
[...] os atos do Estado ou seus delegados estimulam ou incentivam,
direta, imediata e concretamente, a iniciativa dos administrados ou de outras
entidades, públicas e privadas, para que estas desempenhem ou estimulem, por
seu turno, as atividades que a lei haja considerado de interesse público para o
desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade.122
Em suma, o que vem à tona é a necessidade de funcionalização
(socioambiental) das licitações e dos contratos administrativos, de forma que
continuem a servir para o desenvolvimento nacional equilibrado (sustentável),
mas que também passem a servir como instrumentos para o controle do equilíbrio
social e ambiental na sociedade brasileira. Nada mais relevante e indispensável123.
MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Forense, Rio de
Janeiro, 2002, p. 524.
123
Segundo a reflexão de Amartya Sen, “a necessidade de um exame crítico dos preconceitos
122
69
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
É diante desse cenário que se identifica a função social da licitação, “como
um instrumento para a concretização dos objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, bem como dos demais valores, anseios e direitos nela
encartados, sem prejuízo de outros, reconhecidos por lei ou até mesmo uma
política de governo”.124
As compras realizadas pelo Poder Público devem ser vistas como um
eficiente instrumento de efetivação de políticas públicas, o que, por consequência,
corrobora, novamente, com a sua utilização em favor do desenvolvimento nacional
sustentável. Destarte, o poder de compra estatal reflete sua força na medida em
que sua magnitude representa grande parte da economia do país, cujos reflexos se
dão em diversos outros âmbitos (social, cultural, ambiental etc.).125
Assim é que a responsabilização socioambiental não deve ser implementada de
forma isolada, mas sim, de forma conjunta e integrada, através de conformações que
viabilizem segurança, lucratividade e satisfação nas relações entre os particulares e a
Administração Pública, sendo as licitações e os contratos administrativos instrumentos
propícios para este tipo de relação consensual. Eis a idéia de parceria e solidariedade
que gera uma nova perspectiva sobre os impactos das decisões e ações de todos os
agentes sociais para a busca de uma sociedade justa, fraterna e solidária.
Neste novo viés, o Poder Público se revela como sendo verdadeiro
fomentador para a efetivação da responsabilidade socioambiental das empresas,
o que o faz através de exigências promocionais (fomento) a partir das licitações
públicas, contratos administrativos ou por intermédio de parcerias. Segundo
Patrícia Almeida Ashley:
É preciso descentralizar o debate sobre responsabilidade social, que hoje
tem a empresa como centro e origem de toda responsabilidade, passando-se a
adotar novas premissas:
e atitudes político-econômicas tradicionais nunca foi tão grande. Os preconceitos de hoje (em
favor dos mecanismos de mercado puro) decerto precisam ser cuidadosamente investigados e, a
meu ver, parcialmente rejeitados” (SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo:
Companhia das letras, 2010. p. 150-151).
124
FERREIRA, Daniel. Ob. cit., p. 6.
125
Exemplo disso é encontrado na Lei Federal n.º 12.187/2009, que dispõe sobre a Política
Nacional sobre Mudança do Clima - PNMC, em seu artigo 6º, cujo teor explicita a possibilidade
de utilização das licitações destinadas à promoção do interesse público, in verbis: “Art. 6º São
instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima: (…) XII – as medidas existentes, ou a
serem criadas, que estimulem o desenvolvimento de processos e tecnologias, que contribuam para
a redução de emissões e remoções de gases de efeito estufa, bem como para a adaptação, dentre
as quais o estabelecimento de critérios de preferência nas licitações e concorrências públicas,
compreendidas aí as parcerias público-privadas e a autorização, permissão, outorga e concessão
para exploração de serviços públicos e recursos naturais, para as propostas que propiciem maior
economia de energia, água e outros recursos naturais e redução da emissão de gases de efeito
estufa e de resíduos”.
70
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
- buscar a responsabilidade social de todos os indivíduos, organizações e
instituições em suas decisões a ações na sociedade – para isso o núcleo familiar
e sua comunidade local precisam ter seu tempo e seu espaço resgatados com
políticas de proteção social e defesa de valores humanistas e solidários, a fim de
poder melhor educar suas novas gerações;
- considerar o poder de compra e consumo dos indivíduos, das
organizações privadas e públicas como fomentador de um mercado responsável,
ou sejam criar uma nova lógica de mercada que privilegie o fornecimento por
empresas que concebem seus produtos de forma socialmente responsável – o
que é distinto de empresas que reduzem o conceito de responsabilidade social
empresarial a apenas praticar benevolência ou assistencialismo empresarial,
dissociados de mudanças na essência do negócio em que opera;
- formação profissional de nível técnico e superior para uma sociedade
sustentável, proporcionando a consciência de vivermos em uma rede de
complexidade com múltiplos e simultâneos fatores antecedentes e resultantes.126
(destaquei).
Como visto acima, a licitação tem plena aptidão para servir como
instrumento nessa imperiosa (re)estruturação de uma nova teoria sobre
a relação entre o Estado e a atividade empresarial, retirando do Estado
o seu tradicional papel de contenção e fiscalização e alçando-o como
fator determinante ao direcionamento de políticas públicas de fomento,
sustentabilidade e inclusão social.
Assim, tanto o legislador como o administrador público estão incumbidos
de certas atribuições, dentre as quais a de potencializar certos comportamentos,
pessoais e coletivos, a partir de “vantagens”,127 o que invariavelmente já está a
repercutir na seara privada.
A responsabilidade socioambiental não é alcançada tão somente por
intermédio das licitações sustentáveis a partir da aquisição de produtos ecológica
e socialmente corretos, mas também deve a Administração Pública investigar
cientifica e tecnologicamente os mecanismos mais adequados para alcançar o
propósito do desenvolvimento nacional sustentável.
E no caso de desrespeito por parte dos órgãos e instituições incumbidos
de realizar licitações, tais ilegalidades devem ser apuradas, “não apenas pelos
interessados, pelas Cortes de Contas e pelo Ministério Público, porém pela
. ASHLEY, Patrícia Almeida. A mudança histórica do conceito de responsabilidade social
empresarial. In: ASHLEY, Patrícia Almeida (coord.). Ética e Responsabilidade social nos
negócios. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 58.
127
Confira: KOLADICZ, Aline Cristina. A atividade empresarial socioambientalmente
responsável e sustentável pela via do fomento estatal. Curitiba. 2009. Mestrado em Direito
Empresarial e Cidadania – UNICURITIBA. Disponível em: <http://tede.unicuritiba.edu.br/
dissertacoes/AlineKoladicz.pdf>. Acesso em 28.ago.2012.
126
71
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
sociedade civil em geral, de forma a se responsabilizar pessoalmente os
desidiosos com o trato dos referidos interesses públicos, sem prejuízo da eventual
e cumulativa anulação da licitação, no âmbito administrativo ou judicial”.128
Pelo exposto, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável
como nova finalidade das licitações deve ser considerada em todas as suas
esferas (social, ambiental e econômica, ao menos), não podendo tê-la como
mera faculdade do administrador. Nesse sentido, todas as medidas possíveis e
necessárias à sua promoção devem ser realizadas, sob pena de caracterização de
infração disciplinar e de ato de improbidade, no mínimo.
5. CONCLUSÕES
Pelo exposto, constata-se uma grande necessidade de revisitar a função
das licitações públicas e dos contratos administrativos, devendo repassar de uma
função puramente econômica para aglutinar-se com uma função social (leiase: dever legal) que deve se preocupar com a efetivação da responsabilidade
socioambiental dos envolvidos nos processos de compra pela Administração.
Neste ideário, visualiza-se que diversas legislações recentes enfatizam as
licitações sustentáveis sob o aspecto socioambiental, as quais são molas propulsoras
para o fortalecimento do Estado Brasileiro enquanto verdadeira Ordem Social e
Democrática de Direito, e que tem como objetivo fundamental a promoção do
desenvolvimento nacional, respeitando a sua forma pluridimensional.
O que se pretendeu evidenciar através do presente ensaio, portanto, é que
além de configurar um direito - fundamental e constitucionalmente assegurado -,
o desenvolvimento vincula os Poderes Públicos. Assim, impõe-se uma imediata
reestruturação da relação entre o Estado e a atividade empresarial, retirando do
Estado o seu tradicional papel de contenção e fiscalização e alçando-o como fator
determinante ao direcionamento de políticas públicas de fomento, sustentabilidade
e inclusão social, pois dessa forma não apenas se estará realizando uma atividade
precípua do Estado, mas – principalmente – exaltando-se direitos fundamentais e
interesses públicos dos destinatários do agir estatal.
E se estamos a falar de atividade administrativa, é absolutamente certo
que todas as medidas delas decorrentes somente podem estar atreladas à
efetivação do bem comum e à concretização de interesses públicos129, os quais
FERREIRA, Daniel. Op. cit, p. 17.
Segundo a doutrina mais atenta (Sabino Cassese, Marçal Justen Filho, dentre outros), não há como
prevalecer a noção de existência de somente um interesse público, mas sim de vários interesses
públicos “e que somente no caso concreto é que se mostrará sobranceiro, a aponto de preponderar,
um sobre o outro” (FERREIRA, Daniel. Função social da licitação pública: o desenvolvimento
nacional sustentável (no e do Brasil, antes e depois da MP nº 495/2010). Fórum de Contratação e
Gestão Pública- FCGP. V. 9, n. 107, nov. 2010. Belo Horizonte; Fórum, 2010, p. 2).
128
129
72
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
não podem se esquivar do grande ideal de promover uma sociedade mais justa,
fraterna, solidária e feliz130, tal qual manifestado no preâmbulo131 e no texto132
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A própria dimensão econômica e socioambiental da atividade empresarial
também vem colocando em cheque os modelos tradicionais de gestão dos
agentes econômicos e as formas convencionais de distribuição de obrigações
– defendidos pelo até então prevalente discurso neoliberal; eis que a idéia
de função social e de responsabilidade socioambiental vem convocando as
empresas, os indivíduos e a Administração Pública a atuarem num cenário muito
mais abrangente e complexo, qual seja, o do socioambientalismo solidário, do
qual decorrem uma série de imposições absolutamente vinculantes, inclusive
no que tange aos processos de contratação de serviços e compra de produtos
pela Administração Pública (“poder de compra”).
Sob este raciocínio, a recente alteração legislativa, que adaptou a
redação do art. 3º da Lei Federal 8.666/93 e, via de consequência, o próprio
conceito de licitação, evidencia uma inovação legislativa que incrementa a
responsabilidade socioambiental das empresas a fim de participarem junto com
o Estado na construção de uma sociedade justa, equilibrada, e solidária. No
atual modelo de Estado Socioambiental de Direito, toda a atividade estatal deve
ter como finalidade a concretização dos objetivos da República Federativa do
Brasil, expressamente indicados na Constituição. Por isso, enquanto atividade
estatal, as licitações e contratações públicas também devem ter como finalidade
o alcance desses objetivos, notadamente no que se refere à sua nova finalidade
legal (o desenvolvimento nacional sustentável).
Assim, reconhecido o poder de compra e o impacto das aquisições governamentais no mercado, não há mais como se admitir a neutralidade dos atores
sociais, sobretudo do Estado (e da Administração Pública), no que diz com a
É de se anotar que o direito à felicidade já é tido como direito fundamental em algumas
Constituições democráticas, tal como previsto na Constituição da Itália. O Poder Legislativo
brasileiro já se mobilizou para seguir a orientação da ONU que reconhece a busca da felicidade
como “um objetivo humano fundamental”. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 19,
que tramita no, pretende acrescentar a felicidade na lista dos direitos sociais previstos no Artigo
6º da Constituição. O texto já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e está pronto
para ser votado no plenário do Senado Federal.
131
“(...) para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada
na harmonia social e comprometida (....).”
132
“Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir
uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.”
130
73
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
promoção do desenvolvimento sustentável por via das licitações e das contratações administrativas.
Pelo contrário, reconhecendo-se o desenvolvimento como um objetivo
da República, um direito fundamental e, mais recentemente, um dever legal
expresso (Lei Federal n.º 8.666/93) resta absolutamente legitimado ao Estado
regular a ordem econômica com vistas a fomentar a sustentabilidade e a inclusão social por meio das suas licitações e das contratações públicas.
Conclui-se, assim, que as licitações e os contratos administrativos podem
e devem se prestar a tanto, propiciando o incremento da responsabilidade
socioambiental das empresas que já se mostram parceiras da Administração
Pública ou que assim almejam em breve tempo, o que certamente produzirá
reflexos em todo o meio social.
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
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78
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 4
A PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA COMO MODELO DE CONTRATAÇÃO
PÚBLICA PARA CONSTRUÇÃO OU REFORMA DE EQUIPAMENTOS PARA
OS GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS DE 2014 E 2016
Antenor Demeterco Neto133
SUMÁRIO: Introdução. 1. A parceria público-privada. 1.1 Definição. 1.2 Concessões
patrocinada e administrativa. 1.3 Alguns apontamentos sobre PPP no Reino Unido. 1.4
Project finance. 1.5 Value for money. 1.6 A alocação eficiente dos riscos. 2. A utilização de
PPP para construção ou reforma de equipamentos esportivos. 2.1 A PPP da Arena Esportiva
Fonte Nova. 2.2 A PPP do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão). 3. Conclusões. Referências
bibliográficas.
INTRODUÇÃO
No Brasil, as discussões acerca da parceria público-privada (PPP)
surgiram embrionariamente na década de 1990 motivadas por experiências
positivas advindas do Reino Unido e pelos programas governamentais de
desestatização da economia nacional.
No entanto, somente a partir do ano de 2003 com as edições das Leis
Estaduais de n.os 14.868/2003 em Minas Gerais e 11.688/2004 em São Paulo
o tema passou a ser uma realidade e iniciou-se então o processo que culminaria
na edição da Lei Federal de n.º 11.079/2004, conhecida como a Lei das PPPs.
A partir daí a PPP vem adquirindo cada vez mais importância como
alternativa de angariação de investidores e de viabilização financeira de projetos
de infraestrutura.
Se confrontada com outras formas mais comuns de custeio da
Administração Pública, como tributos e empréstimos, a PPP apresenta
consideráveis vantagens.
E o principal benefício possivelmente advenha da própria essência da
PPP, qual seja, no seu financiamento em geral assumido pela iniciativa privada,
Advogado militante nas áreas do Direito Empresarial Público e do Direito Eleitoral e Partidário.
Doutorando em “Direito Econômico e Socioambiental” pela PUC-PR. Mestre em “Organizações
e Desenvolvimento” pela UNIFAE – Centro Universitário. MBA em “Direito da Economia e da
Empresa” pela Fundação Getúlio Vargas. Pós-graduado em “Direito Tributário Contemporâneo”
pela Faculdade de Direito de Curitiba. Sócio da De Figueiredo Demeterco Sociedade de
Advogados. Assessor jurídico do CETRAN-PR. Presidente da Comissão de Direito Econômico
da OAB-PR. Membro da Academia Paranaense de Direito e Economia – ADEPAR.
133
79
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
o que exige uma avaliação criteriosa dos gastos e etapas da execução da obra,
bem como da possibilidade dos custos serem arcados, direta ou indiretamente,
pelos que desfrutarão do empreendimento.
O presente artigo tem o objetivo de fazer uma análise da utilização da
PPP para a construção ou reforma dos equipamentos esportivos que servirão
de infraestrutura para a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e para os Jogos
Olímpicos de 2016.
Para tanto, inicialmente far-se-á uma exposição teórica acerca do instituto
da PPP e, na seqüência, serão examinadas as peculiaridades dos casos da Arena
Esportiva Fonte Nova em Salvador e do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão)
em Belo Horizonte.
1. A PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA (PPP)
1.1 DEFINIÇÃO
No ordenamento jurídico brasileiro, o termo parceria público-privada
(PPP) pode ser empregado nos sentidos amplo e estrito.
A PPP em sentido amplo pode ser definida como:
(...) os múltiplos vínculos negociais de trato continuado estabelecidos entre
a Administração Pública e particulares para viabilizar o desenvolvimento, sob a
responsabilidade destes, de atividades com algum coeficiente de interesse geral.134
De acordo com essa definição, verifica-se que sob o termo PPP está
açambarcada uma gama de formas de interação entre a Administração Pública e a
iniciativa privada, inclusive a concessão comum prevista na Lei de n.º 8.987/1995.
Já em sentido estrito, a PPP pode ser vista como:
(...) um contrato organizacional, de longo prazo de duração, por meio do
qual se atribui a um sujeito privado o dever de executar obra pública e (ou) prestar
serviço público, com ou sem direito à remuneração, por meio da exploração da
infra-estrutura, mas mediante uma garantia especial e reforçada prestada pelo
Poder Público, utilizável para a obtenção de recursos no mercado financeiro.135
Na realidade, a Lei de n.º 11.079/2004, conhecida como a Lei das PPPs,
ao conceituar PPP no seu artigo 2º, limitou-se em mencionar a sua natureza
contratual e a citar duas de suas espécies: a concessão patrocinada e a concessão
administrativa.
Portanto, é possível ainda conceituar PPP em sentido estrito como:
(...) uma modalidade de contratação entre o poder público e entidades
privadas com vistas à realização de obras de grande porte e à prestação de
Sundfeld, 2005, p. 18.
Justen Filho, 2005, p. 549.
134
135
80
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
serviços públicos, através de concessões patrocinadas ou administrativas, em
que se verificam o compartilhamento dos riscos do empreendimento entre as
partes envolvidas, bem como o financiamento predominantemente privado.136
Para finalizar, é interessante citar o conceito desenvolvido por Fernão
Justen de Oliveira que traz características e personagens que em tese não são
obrigatórios em uma PPP, mas que na prática são quase que indispensáveis para
a viabilidade econômica do projeto. Segundo esse autor:
(...) serão espécies de parceria público-privada todas as iniciativas conjugadas
de cooperação financeira e organizacional, destinadas a satisfazer um interesse
da coletividade e sustentar o seu desenvolvimento, qualificadas pela distribuição
calibrada dos riscos e por um vínculo associativo entre as partes, consolidado por
contrato cuja celebração se justifica pela apuração do Value for Money e estruturada
sobre um project finance – o que remete à participação de um terceiro agente formal
na parceria público-privada: a instituição financeira que aprovará o project finance
e, nele amparada, financiará a parceria público-privada.137
1.2 CONCESSÕES PATROCINADA E ADMINISTRATIVA
De maneira implícita, como bem destacou Luiz Alberto Blanchet, a
Lei de n.º 11.079/2004 classificou concessão em três espécies: a) comum; b)
patrocinada; e c) administrativa.138
A concessão comum é aquela que vem definida na já conhecida Lei
de n.º 8.987/1995 que regulamenta a concessão e permissão da prestação de
serviços públicos.
E a concessão patrocinada, da mesma forma que a concessão comum, é
uma espécie do gênero concessão de serviço público, com a diferença de que
a forma de remuneração na primeira deve englobar tanto uma tarifa a ser paga
pelo usuário como uma contraprestação pecuniária da Administração Pública.139
Já a concessão administrativa pode ser dividida em dois tipos: a)
concessão administrativa de serviços públicos, também uma espécie do
gênero concessão de serviço público, na qual o serviço é prestado diretamente
ao administrado mediante uma contraprestação pecuniária paga pela
Administração Pública, sem qualquer cobrança de tarifa do usuário direto;
e b) concessão administrativa de serviços ao Estado, uma espécie do gênero
contrato administrativo de serviços ao Estado, que se caracteriza pela oferta
de utilidades à própria Administração Pública mediante uma remuneração
paga por esta, ou seja, neste caso o Estado é o usuário direto do serviço.140
Galvão, 2005, p. 9.
Oliveira, 2007, p. 92-93.
138
Blanchet, 2010, p. 22.
139
Sundfeld, 2005, p. 28.
140
Sundfeld, 2005, p. 29-31.
136
137
81
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
1.3 ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE PPP NO REINO UNIDO
O objetivo do presente artigo não é examinar a experiência do Reino
Unido com PPP, mas faz-se necessário apontar alguns aspectos que de certo
modo vieram a influenciar a adoção do instituto no Brasil.
Ainda que o termo seja utilizado de maneira flexível, a legislação do
Reino Unido define PPP como aquele projeto:
(...) (a) cujos recursos são fornecidos parcialmente por um ou mais
órgãos públicos e parcialmente por uma ou mais entidades privadas e (b) que é
projetado no todo ou em parte para auxiliar um órgão público no desempenho
de suas funções.141
A fixação de um foco único de responsabilidade é uma das principais
vantagens da PPP no Reino Unido, uma vez que não possibilita à iniciativa
privada justificar imperfeições na execução do projeto.
E é justamente esse deslocamento do risco da Administração Pública para
a iniciativa privada uma particularidade primordial da PPP no Reino Unido,
sendo geralmente o motivo mais importante para justificar o seu financiamento.
Porém, o risco avocado pela iniciativa privada poderá ser radicalmente
alterado de acordo com a maneira com que a receita do projeto será gerada.
Se, por exemplo, a Administração Pública arcar com uma porção significativa
de receita apenas para ter a possibilidade de fruição do empreendimento, a
iniciativa privada será claramente beneficiada, já que o risco de mercado será
consideravelmente menor.142
Deve-se destacar também que algumas experiências de PPP no Reino
Unido não implicaram em custeio privado. Foi o caso da construção de centros
de detenção para imigrantes que tinha como objetivo receber pessoas que
tiveram asilo negado ou que seriam deportadas. Como o governo do Reino
Unido atribuiu prioridade política à edificação desses centros, para assegurar
a sua rápida realização decidiu-se pelo custeio público do empreendimento.143
É importante ressaltar ainda com relação à PPP no Reino Unido, que do
ponto de vista do investidor, um traço comum dos projetos, é o atrelamento
do fluxo de caixa do próprio empreendimento ao custeio dos respectivos
desembolsos, sendo limitado o acesso aos bens dos financiadores, principalmente
após a conclusão da obra.144
McCormick, 2005, p. 15.
McCormick, 2005, p. 16-17.
143
McCormick, 2005, p. 16.
144
McCormick, 2005, p. 16.
141
142
82
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
1.4 PROJECT FINANCE
De acordo com o clássico conceito de John D. Finnerty:
(...) o project finance pode ser definido como a captação de recursos para
financiar um projeto de investimento de capital economicamente separável,
no qual os provedores de recursos vêem o fluxo de caixa vindo do projeto
como fonte primária de recursos para atender ao serviço de seus empréstimos
e fornecer o retorno sobre seu capital investido no projeto. Os prazos de
vencimento da dívida e dos títulos patrimoniais são projetados sob medida
para as características do fluxo de caixa do projeto. Para sua garantia, os títulos
de dívida do projeto dependem, ao menos parcialmente, da lucratividade do
mesmo e do valor dos seus ativos.145
É fácil reconhecer certa harmonia entre PPP e project finance, ainda que
sejam institutos com conceitos e objetivos distintos. A PPP é uma forma de
cooperação entre a Administração Pública e a iniciativa privada, enquanto que
o project finance é um instrumento de obtenção de investimentos com restrições
de responsabilidades e distribuição de riscos.146
O project finance foi concebido como uma maneira de financiamento onde
os desembolsos são arcados pelo próprio fluxo de caixa do empreendimento e
garantidos pelos ativos e recebíveis do mesmo.
Ou seja, as operações de project finance:
(...) podem ser entendidas como um conjunto de soluções financeiras, fiscais,
jurídicas, securitárias e outras que, embora preexistentes e já testadas individualmente,
devem conjugar-se de forma harmônica, permitindo o financiamento de determinado
empreendimento mediante seu próprio fluxo de recebíveis.147
Os projetos compatíveis com a estrutura de project finance
tradicionalmente envolvem valores e riscos significativos, o que se justifica
justamente pelas próprias particularidades do instituto, que o diferencia das
formas mais comuns de financiamento ao possibilitar a obtenção de recursos e
a distribuição de riscos.
E a PPP intenta justamente diminuir os riscos de mercado e de demanda,
os quais são total ou parcialmente assumidos pela Administração Pública para
possibilitar economicamente o empreendimento e, conseqüentemente, a sua
execução e financiamento por meio de project finance.
Outra particularidade essencial do project finance, identificada também
na PPP, é a criação de uma personalidade jurídica independente para o
empreendimento, de forma que seus ativos, obrigações jurídicas e fluxo de
Finnerty, 1999, p. 2.
Marins e Oliveira, 2011, p. 33.
147
Marins e Oliveira, 2011, p. 33.
145
146
83
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
caixa, não se confundam com os bens dos acionistas. Para tanto, é criada uma
empresa autônoma denominada sociedade de propósito específico (SPE).
Como se pode ver, são inúmeros os aspectos do project finance que
se identificam com a PPP. Inclusive, a filosofia do project finance pode ser
facilmente constatada na Lei Federal de n.º 11.079/2004, como por exemplo: a)
nos artigos 4º, inciso VII, e 6º, que se preocupam em garantir um fluxo mínimo
de recursos; b) no artigo 9º, que, como já dito, exige a criação de uma SPE; c) nos
artigos 4º, inciso VI, 5º, incisos III e IX, e 6º, parágrafo único, que se referem à
utilização de instrumentos contratuais de distribuição de riscos; d) no artigo 5º,
parágrafo 2º, inciso I, que estabelece mecanismos de garantia característicos de
project finance; e) na importância conferida ao contrato de PPP; f) na linguagem
utilizada pela lei, comum à iniciativa privada e ao mercado financeiro; e g) no
estímulo à utilização da arbitragem.148
1.5 VALUE FOR MONEY
Outra característica das operações que envolvem PPP estruturadas por
project finance é a apuração do value for money, expressão que não possui
uma tradução literal para o português, mas cujo significado pode ser entendido
como o de “custo-benefício”. É a verificação do value for money que justifica
a contratação.
Como bem destacam Marins e Oliveira:
(...) a análise VFM compara as vantagens socioeconômicas para a
sociedade (benefícios tangíveis e intangíveis) obtidas por meio da execução de
determinado serviço por um parceiro privado, em determinada qualidade, com
os custos (tangíveis e intangíveis) e receitas da prestação desse mesmo serviço
diretamente pelo Estado.149
E, como se tem visto, a apuração do value for money tem justamente
mostrado ser mais eficiente a transferência da responsabilidade pela realização
da obra e prestação do serviço à iniciativa privada.
A análise do value for money por meio da avaliação do fluxo de caixa
possibilita uma radiografia do procedimento financeiro, com o esclarecimento
das distinções entre os valores despendidos com o projeto em determinado
período e apresentação do produto final em montante líquido presente com
a incidência do abatimento de um percentual adequado de juros, para, dessa
forma, oportunizar o confronto dos resultados e permitir a contratação da
modalidade mais benéfica.150
Marins e Oliveira, 2011, p. 33-34.
Marins e Oliveira, 2011, p. 40.
150
Marins e Oliveira, 2011, p. 40.
148
149
84
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
1.6 A ALOCAÇÃO EFICIENTE DOS RISCOS
Como visto anteriormente, uma das principais características da PPP é a
repartição objetiva de riscos entre as partes. Em outras palavras, isso significa
destinar os riscos do projeto aos que melhor possam suportá-los em benefício
de todos os envolvidos.
De forma geral, pode-se dizer que um projeto de PPP está sujeito aos
seguintes riscos: a) de construção: que o financiador externo geralmente
mitiga ao condicionar a concessão do crédito à sua transferência a quem tem
mais condição de suportá-lo; b) de suprimento de matéria-prima: que quase
sempre é transferido para o fornecedor por meio de um contrato de longo prazo
com contraprestação já pré-determinada; c) de operação: que normalmente é
diminuído por meio de um contrato de longo prazo com uma operadora de
renome e apta a exercer o trabalho até que os investimentos sejam quitados ou
até que a entidade financiada seja capaz de operar o empreendimento; d) de força
maior ou caso fortuito: os quais não podem ser simplesmente transferidos, o que
obriga a entidade financiada a coberturas securitárias mais amplas possíveis; e)
de desapropriação ou encampação: que pode ser mitigado por meio de normas
legais ou de contratos de concessão que prevejam objetivamente os critérios
de indenização e seus valores, bem como cláusulas penais para os casos de
descumprimento; f) de governo: que pode ser reduzido com garantias prestadas
pela Administração Pública, como o Fundo Garantidor de Parcerias PúblicoPrivadas - FGP previsto nos artigos 16 e seguintes da Lei de n.º 11.079/2004, ou,
ainda, com coberturas securitárias; e, g) o institucional: que pode ser diminuído
com o incentivo à cultura da arbitragem, haja vista a morosidade do Judiciário
brasileiro, e, como entendem alguns investidores, também pelo financiamento
dos projetos por organismos multilaterais como o Banco Mundial.
2. A UTILIZAÇÃO DE PPP PARA CONSTRUÇÃO OU REFORMA DE EQUIPAMENTOS ESPORTIVOS
Tradicionalmente a PPP sempre foi um mecanismo utilizado para
viabilizar projetos de serviços públicos de infraestrutura como telefonia,
energia, transportes, entre outros.
No entanto, a escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo de Futebol
de 2014 e do Rio de Janeiro para ser sede dos Jogos Olímpicos de 2016 acarretará
numa demanda de investimentos superiores a R$ 6 bilhões e acabou por exigir a
utilização da PPP em segmentos não acostumados a essa forma de contratação.
A seguir será examinado como o mecanismo da PPP foi utilizado para
viabilizar os projetos da Arena Esportiva Fonte Nova em Salvador e do Estádio
Magalhães Pinto (Mineirão) em Belo Horizonte.
85
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
2.1 A PPP DA ARENA ESPORTIVA FONTE NOVA
A PPP da Arena Esportiva Fonte Nova é um projeto do Governo da Bahia
com o consórcio Fonte Nova Negócios e Participações formado pelas empresas
Odebrecht Participações e Investimentos e OAS.
Para a construção da obra a Fonte Nova Negócios e Participações
contratou o consórcio Arena Salvador, constituído pela Odebrecht Infraestrutura
e pela Construtora OAS.
O prazo previsto para concessão foi de 35 anos e o custo da obra de
aproximadamente R$ 597 milhões. Em março de 2013 as obras foram finalizadas
e o estádio entregue ao Governo da Bahia.
A principal dificuldade encontrada quando da estruturação da PPP da Arena
Esportiva Fonte Nova foi a baixa expectativa de renda que o empreendimento
gerava. Porém, a alocação eficiente dos riscos foi a solução encontrada pelos
envolvidos para suplantar essa dificuldade e viabilizar o projeto. Para tanto, o
Governo da Bahia fez um cálculo antecipado da demanda e ficou determinado
pelas partes que em caso de variação dessa demanda acima de 100%, as rendas
líquidas obtidas seriam divididas em partes iguais entre os envolvidos. E o
mesmo ocorreria em caso de variação da demanda abaixo de 100%, situação
em que os prejuízos seriam igualmente partilhados, não possibilitando assim a
revisão do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.151
O financiamento para a construção da obra foi assumido pelo
parceiro privado com taxas de juros subsidiadas junto ao Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e à Agência Baiana de
Fomento (Desenbahia), respectivamente nos valores de R$ 591 milhões e R$
50 milhões, e com a garantia de liquidez do Governo da Bahia.
A modalidade de PPP escolhida para a Arena Esportiva Fonte Nova foi
a de concessão administrativa prevista no artigo 2º, parágrafo 2º da Lei de n.º
11.079/2004, na qual a Administração Pública é a usuária direta ou indireta da
prestação dos serviços.
No caso, como a Administração Pública será a usuária do serviço, após o
término da obra o Governo da Bahia deverá pagar uma contraprestação mensal
ao parceiro privado, cujo total ao final dos 35 anos de concessão será de mais
ou menos R$ 592 milhões.
No entanto, deve-se destacar que a operação da PPP da Arena Esportiva
Fonte Nova está muito suscetível a quantificações equivocadas.
Como bem afirmam Paulo Sérgio Souza Andrade e Sandro Cabral, o
desempenho do contrato pode ser incrementado pela atuação positiva do clube de
futebol local nas competições que vier a participar. Da mesma forma elementos
Andrade e Cabral, 2011, p. 5.
151
86
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
externos podem ser prejudiciais, como, por exemplo, receitas menores que as
previstas em razão da utilização indevida da meia-entrada pelos torcedores.152
Porém, as receitas do empreendimento não serão provenientes apenas a
contraprestação mensal a ser paga pelo Governo da Bahia e da bilheteria dos
jogos. Ao negócio principal está associada uma série de atividades adicionais,
como a exploração de marketing, patrocínios, locação do estádio, eventos,
entretenimento, entre muitas outras, que se bem exploradas constituirão em
significativas fontes de renda ao parceiro privado.
Por último, lembram Paulo Sérgio Souza Andrade e Sandro Cabral
que no caso da PPP da Arena Esportiva Fonte Nova o parceiro privado
terá toda liberdade para definir a sua estratégia empresarial, assumindo
conseqüentemente todos os seus riscos. O que é importante porque os
eventuais prejuízos advindos da imprevisível variação da demanda não
poderão ser transferidos ao Governo da Bahia.153
2.2 A PPP DO ESTÁDIO MAGALHÃES PINTO (MINEIRÃO)
A PPP do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão) é um projeto do Governo
de Minas Gerais com o consórcio Minas Arena formado pelas empresas
Construcap, Egesa e Hap Engenharia, responsável pela execução da reforma e
posterior operação do equipamento.
O prazo previsto para concessão foi de 25 anos e o custo da obra de
aproximadamente R$ 695 milhões. No final de dezembro de 2012, as obras
foram finalizadas e o estádio reinaugurado.
No caso do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão), a modalidade de PPP
escolhida também foi a de concessão administrativa prevista no artigo 2º,
parágrafo 2º da Lei de n.º 11.079/2004, na qual a Administração Pública é a
usuária direta ou indireta da prestação dos serviços.
Quanto aos riscos, a PPP do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão)
determinou muito bem a sua distribuição entre os envolvidos. Por exemplo,
nos riscos relacionados à construção, envolvendo o cumprimento de prazos e
orçamento, o contrato estabeleceu marcos intermediários com a aplicação de
multas em casos de descumprimento. O contrato estabeleceu também incentivos
para o cumprimento dos prazos, já que parte do pagamento do parceiro privado
nos dois primeiros anos depende do término da obra dentro do previsto. E com
relação ao orçamento, o risco de extrapolação do valor inicialmente previsto é
exclusivo do parceiro privado.154
Andrade e Cabral, 2011, p. 6.
Andrade e Cabral, 2011, p. 6.
154
Marins e Oliveira, 2011, p. 53.
152
153
87
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Da mesma forma que no caso da Arena Esportiva Fonte Nova, o risco
de demanda também foi uma das principais dificuldades para a estruturação da
PPP do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão).
Os grandes clubes de futebol de Belo Horizonte exercem forte influência
sobre a demanda. Por isso, o Governo de Minas Gerais garantiu, em caso de
desacordo entre os clubes de futebol e o parceiro privado, a utilização de 66
datas do complexo para realização de partidas, estabelecendo-se dessa forma
uma fonte mínima de receita.
A PPP do Estádio Magalhães Pinto (Mineirão) estabeleceu ainda metas
mínimas de criação de receitas pelo parceiro privado como forma de diminuição
do risco financeiro e operacional da Administração Pública. Caso essas metas
não sejam alcançadas, além de afetar negativamente o saldo financeiro do
parceiro privado, incidirão multas em casos de recaimento.155
3. CONCLUSÕES
Como se pode verificar, a PPP foi a solução encontrada para viabilizar os
projetos da Arena Esportiva Fonte Nova em Salvador e do Estádio Magalhães
Pinto (Mineirão) em Belo Horizonte.
Ferramentas como a análise do value for money, a repartição objetiva
de riscos entre as partes, a exigência de resultados, e o cumprimento de
metas contratuais como condicionante para a liberação de pagamentos, foram
fundamentais para possibilitar as contratações desses empreendimentos.
E, no caso dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, fórmula
semelhante foi utilizada para a PPP do Parque Olímpico, cujo risco de demanda
será ainda maior após a realização do evento.
Enfim, a PPP é um instrumento interessante para empreendimentos
de grande complexidade e, espera-se, que seja também utilizada de fato para
resolver o gargalo da infraestrutura brasileira.
Marins e Oliveira, 2011, p. 54.
155
88
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
REFERÊNCIAS
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público-privada (PPP) da nova arena esportiva Fonte Nova. Jus Navigandi,
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revista/texto/19385.> Acesso em: 27.04.2012.
BERNASCONI, José Roberto. Palestra intitulada “Infraestrutura para a Copa –
Panorama Atual”. Seminário Internacional “Parcerias para o Desenvolvimento: PPPs e Concessões”. Rio de Janeiro, 16 e 17 de abril de 2012, promovido
e organizado em conjunto pela ABCE – Associação Brasileira de Consultores
de Engenharia, pelo SINAENCO – Sindicato da Arquitetura e da Engenharia e pela FEPAC - Federacion Panamericana de Consultores. Disponível em:
<www.sinaenco.com.br.> Acessado em: 17/07/2012 às 11h17.
Blanchet, Luiz Alberto. Parcerias público-privadas: comentários à Lei 11.079,
de 30 de dezembro de 2004. 1. ed. 5. reimpr. Curitiba: Juruá, 2010.
Finnerty, John D. Trad. Bazán Tecnologia e Lingüística, Carlos Henrique
Trieschmann, supervisor Eduardo Fortuna. Project finance: engenharia
financeira baseada em ativos. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1999.
GALVÃO, Graciema A. A. Aspectos históricos e introdutórios. Conexão Migalhas.
Parceria Público-Privada. Campinas: Millennium, ano 1, n. 1, p. 9-10, 2005. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva,
2005.
MARINS, Vinícius; OLIVEIRA, Rodrigo Reis de. As parcerias público-privadas
e o problema da alocação de riscos: uma análise do caso da modernização do
estádio “Mineirão” para a Copa do Mundo de 2014. Fórum de Contratação e
Gestão Pública - FCGP. Belo Horizonte: Editora Fórum, ano 10, n. 111, p. 3155, mar. 2011.
MCCORMICK, Roger. Trad. Renato Berger. A experiência no Reino Unido.
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público econômico (Lei n.º 11.079/2004). Belo Horizonte: Fórum, 2007.
89
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Parcerias público-privadas. São Paulo:
Malheiros, 2005.
_____. Guia jurídico das parcerias público-privadas. In: _____ (Coord.).
Parcerias público-privadas. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 15-44.
90
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 5
COPA DO MUNDO E INFRAESTRUTURA: NOTAS SOBRE O
FINANCIAMENTO E A MITIGAÇÃO DE RISCOS EM CONTRATOS PÚBLICOS
Fernando Menegat156
Iggor Gomes Rocha157
SUMÁRIO: Introdução. 1. Serviços públicos de infraestrutura e modelagem concessória.
1.1 A evolução histórica da prestação de serviços públicos. 1.2 Infraestrutura e modelagem
concessória: evolução das concessões liberais às “novas concessões”. 2. Financiamento e
mitigação de riscos nas concessões em infraestrutura. 2.1 Financiamento, remuneração e
garantias. 2.2 PPP, project finance e mitigação de riscos. 3. Infraestrutura e copa do mundo:
entre a “fuga para o direito privado” e a modernização da gestão pública de bens e serviços.
Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O Brasil vive tempos de euforia. Anunciado como sede da Copa do
Mundo de Futebol FIFA 2014, generalizou-se o sentimento de entusiasmo
da parte daqueles que sonhavam em ver a competição voltar, depois de ter
completado bodas de ouro, ao “país do futebol”. De outra parte, no entanto, não
foram poucas as vozes levantadas contra o evento e – principalmente – contra
as maléficas consequências que poderia acarretar. A despeito disso, o presente
artigo não tem como finalidade demarcar uma tomada de posição pelos autores
contrária ou favoravelmente à Copa do Mundo no Brasil. Em última análise, tal
discussão acaba sendo invariavelmente reconduzida ao campo dos gostos, tons
e sabores ideológicos de cada um – o que retira a (pretensa) cientificidade da
análise que se intenta desenvolver.
Partindo dessa singela premissa, o trabalho que ora se apresenta é
resultado de uma reflexão analítica realizada sobre alguns aspectos das
atividades de cunho infraestrutural que, em decorrência do evento em 2014,
deverão ser instauradas ou desenvolvidas a contento pelo Estado brasileiro –
inclusive por imposição da própria entidade que organiza o evento, a FIFA.
Mestrando em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito
Administrativo. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado
em Curitiba-PR.
157
Mestrando em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Especialista
em Direito Administrativo. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Advogado em Curitiba-PR.
156
91
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
O trabalho se desenvolve em três momentos distintos. Primeiramente,
serão tecidas considerações acerca da evolução histórica na prestação de
serviços públicos, com enfoque na situação brasileira – que é a que aqui nos
interessa –, tratando do conteúdo dos “serviços públicos infraestruturais” e da
passagem das “concessões clássicas” às “novas concessões”. Num segundo
momento, serão verticalizadas as concessões em infraestrutura enquanto
métodos de financiamento de projetos em infraestrutura, com foco no aspecto de
mitigação de riscos envolvidos. Por fim, conclui-se o texto com a apresentação
de algumas reflexões envolvendo os principais modelos contratuais passíveis de
utilização pela Administração Pública para promover a instauração e operação
de infraestruturas e a prestação de serviços (públicos) infraestruturais.
Desenvolver artigo em área de tamanha discussão é certamente um
grande desafio, que deve ser enfrentado tendo em mente que:
[...] quando nos debruçamos sobre temas novos ou no mínimo
controvertidos, é sempre bom fazer a ressalva de que se está construindo um
arcabouço teórico, para nós novo, a partir de dados da realidade econômica e
jurídica pouco consolidados. E quem se dedica a esta tarefa sempre deve se
despir de seus preconceitos, resistir à análise que se mostrar mais óbvia e tentar
buscar a totalidade dos aspectos envolvidos, tentando, se possível, apreender o
núcleo do que se discute.158
Enfim, as ideias adiante trazidas são feitas a título de contribuição, e
também de análise crítica, a este cenário dual que o país vive: de oportunidade
de desenvolvimento, modernização e investimentos, mas também de
responsabilidade em sediar uma Copa do Mundo, em razão da projeção política
que os sucessos e insucessos dessa empreitada podem gerar.
1. SERVIÇOS PÚBLICOS DE INFRAESTRUTURA E MODELAGEM CONCESSÓRIA
Falar do exercício de atividades de cunho infraestrutural em países
com forte herança da tradição jus-administrativista francesa – como é o caso
do Brasil, ao menos em parte –, é praticamente impossível sem se tecer um
paralelo com a noção 159 de serviço público. Pelo fato de as atividades ligadas às
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Universalização de Serviços Públicos e Competição:
o caso da distribuição de gás natural. Revista de Direito Administrativo, v. 223. p. 134.
159
Frise-se a pertinência de se falar em “noção”, e não propriamente num “conceito” de serviço
público. Isso porque, como afirmou Dinorá Grotti, não há propriamente uma entidade que possa
ser chamada de “serviço público”, assim caracterizado apenas por sua natureza ou por sua essência
(GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 88). O serviço público é uma noção, e não um dado, um objeto – encarálo de tal forma seria atribuir traços por demais positivistas à análise do instituto. O que é verificável,
de certo modo, é a existência de uma vocação da atividade para ser serviço público, de sorte que o
158
92
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
infraestruturas pressuporem a instalação de “redes” (e, portanto, exigirem pesados
investimentos), acaba havendo forte tendência de seu exercício em regime de
monopólio (exclusividade), colocando-se o problema da titularidade de tais
atividades que, em grande parte da Europa e no Brasil, foi solucionado mediante
sua assunção, pelo Estado, enquanto “tarefas de serviço público” (até mesmo
porque os bens que lhe dão suporte – as infraestruturas – são bens públicos).160
Daí porque parece ser de crucial importância tecer inicialmente um breve
cenário da evolução na prestação de serviços públicos pelo Estado, o que acaba
invariavelmente enfocando, como se verá, a prestação de serviços de cunho
infraestrutural.
1.1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS
Como parece intuitivo, a noção de serviço público não nasceu pronta,
acabada, definida em todos os seus contornos desde os primórdios. Na realidade,
como notou Dinorá GROTTI, “é possível detectar-se um fio histórico que conduz
desde o seu conceito político até sua posterior funcionalidade jurídica”.161
Adotando como marco inicial o Estado Absolutista, dotado de uma
administração pública do tipo patrimonialista,162 é certo dizer que este não tinha
como intenção repartir bens econômicos e riquezas, tanto menos promover o
bem comum dos cidadãos (então encarados meramente como súditos reais).163
Evidente que, num Estado com tal formatação, não há que se falar em prestação
de serviços públicos pela Administração Pública, conforme notou Gaspar Ariño
ORTIZ ao afirmar que o serviço público “é uma técnica institucional, finalista,
não puramente instrumental, impensável fora do contexto político-social e de
uma certa ideia de Estado que provém da Revolução”.164
Com o advento do Estado Liberal, deflagrado após as Revoluções
Burguesas, o cenário da prestação estatal de serviços públicos muda
sensivelmente. Isso porque, a despeito de o Estado de matriz liberal ser dotado,
serviço público aparece, assim, como uma qualificação especial atribuída a uma atividade por suas
características e pelo especial regime jurídico a que deve estar submetida, do mesmo modo que, por
exemplo, o título de OSCIP é uma qualificação para entidades do terceiro setor.
160
GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a
Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol.
1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 175-176.
161
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988.
São Paulo: Malheiros, 2003, p. 19.
162
BRESSER PEREIRA. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. In: PINHEIRO, WILHEIM e SACHS
(orgs.). Brasil: Um Século de Transformações. São Paulo: Cia das Letras, 2001. P. 222-259.
163
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
164
ORTIZ, Gaspar Ariño. La Regulación Económica: Teoría y prática de la regulación para la
competencia. Buenos Aires: Ábaco, 1996, p. 51.
93
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
por sua própria definição, de forte conotação abstencionista, tal caráter não
impediu o surgimento de um “semblante inicial” do serviço público, por duas
razões principais.
De um lado, por conta das necessidades decorrentes da Revolução
Industrial, o Estado Liberal viu-se na necessidade de instalar as infraestruturas
essenciais ao desenvolvimento da economia, à época inexistentes ou em elevado
grau de precariedade. Destarte, para alavancar o Capitalismo industrial,
teve o Estado de assumir a responsabilidade de criar ou desenvolver165 as
infraestruturas econômicas necessárias ao bom andamento das etapas da
cadeia econômica, em destaque as redes de transporte ferroviário, de gás e
de eletricidade. De outra banda, não era conveniente à ideologia do Estado
Liberal permitir que entes intermédios permanecessem fortalecidos – dentre
eles a Igreja Católica, dotada de extraordinário poder no medievo. Daí porque
o novel modelo estatal teve também de assumir a prestação de serviços em
substituição àqueles prestados sobretudo pela Igreja.
Foi assim, então, que surgiram, ainda no Estado Liberal, as primeiras
atividades qualificáveis como “serviços públicos”,166 de responsabilidade
do Estado: os serviços infraestruturais - ferrovias, eletricidade, gás - para
alavancar o Capitalismo, e os serviços sociais para suplantar a Igreja Católica –
notadamente educação e saúde.
No século XX, a eclosão de duas grandes guerras mundiais consecutivas
e a forte crise econômica representada pelo crack da bolsa de Nova Iorque de
1929 trouxeram novas alterações na atuação estatal. A destruição provocada
pelas guerras e a situação de penúria da população fez com que o paradigma
liberal de Estado fosse duramente combatido. De mero guardião das liberdades,
passou a ser considerado responsável pela reconstrução econômica e social da
Nação, garantidor de novos direitos aos cidadãos e, principalmente, necessário
prestador de serviços de cariz econômico e social.167
O Estado agigantou-se e, com ele, a Administração Pública passou a ter
de funcionar cada vez mais eficazmente na persecução de seus resultados. Logo
se notou que o Estado Liberal de premissa abstencionista não daria conta do
pesado fardo da reestruturação econômica e social. Economicamente, via-se necessário promover a intervenção estatal direta, de modo a equilibrar as finanças
nacionais prejudicadas pelos gastos com as guerras; socialmente, era imperioso
Responsabilidade esta que certamente não se confunde com o dever de prestar diretamente tais
atividades, conforme se verá a seguir.
166
Ainda que, logo quando de seu surgimento, não detivessem tal definição, que foi adquirida
somente após as teorizações da Escola do Serviço Público francesa, capitaneada por Duguit e Jèze,
em fins do séc. XIX e início do séc. XX.
167
Sobre o tema, cf. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo:
Malheiros, 2004.
165
94
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
permitir a intervenção estatal para garantir a promoção do bem-estar a uma
população assolada pelas batalhas. O estado de alta degradação econômica e
social tornou fundamental a superação da doutrina liberal, rumo a um Estado
que equilibrasse a equação econômica e prestasse os serviços necessários à população carente.168
Surge, assim, o Estado do Bem-Estar Social, consagrado nas Cartas
Constitucionais do pós-guerra, interventor na economia e garantidor de direitos
à população, necessário prestador de serviços públicos os quais passaram
a ser encarados como dever seu. No campo social, é o apogeu da noção de
Serviço Público preconizada por Leon Duguit;169 no campo econômico, foi a
prova dos pressentimentos e soluções que anos antes haviam sido expostos por
John Keynes. 170 No novo Estado Social, várias atividades foram incluídas no
“catálogo dos serviços públicos”, porquanto se alterou a própria finalidade da
sua prestação: o Estado Social presta serviços públicos para garantir direitos
fundamentais a seus cidadãos. A intervenção estatal na economia não parou de
se alargar até a década de 80 do séc. XX, formando um imenso setor público
social (a que correspondem os serviços públicos sociais) e econômico (a
que correspondem os serviços públicos econômicos). É por isso que alguns
designam o Estado desse período por Estado de Serviço Público.171
Mais recentemente, nas décadas de 80 e 90 do séc. XX, houve novas –
e profundas – alterações no quadro evolutivo do Estado, sobretudo por força
do processo de liberalização dos serviços públicos. O Estado Social entra em
crise por vários fatores (aumento do déficit público, ineficiência da gestão, etc.).
Na Comunidade Europeia (CE), a política de liberalização da CE implicou
o desmantelamento de monopólios públicos e a adoção de medidas para
eliminação de todo e qualquer condicionamento administrativo que impedisse
ou dificultasse a livre iniciativa e concorrência.172 A privatização estendeuse para vários setores básicos, antes explorados monopolisticamente pelo
Excelente histórico evolutivo da intervenção estatal na economia pode ser extraído de
LAUBADÈRE, André de. Direito Público Económico. Coimbra: Almedina, 1985, p. 35 e
seguintes.
169
Para aprofundamentos, vide: JUSTEN, Monica Spezia. A noção de serviço público no direito
europeu. São Paulo: Dialética, 2003, p. 17-76.
170
KEYNES, John Maynard. The end of Laissez-Faire. Londres: Hogarth Press, 1926.
171
GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a
Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol.
1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 180.
172
Tratou-se, portanto, não apenas de uma privatização de gestão ou de forma organizatória
da Administração, mas sim de uma verdadeira privatização de atividades públicas, que foram
deslocadas do Estado para o Mercado (privatização material). Aprofundar em: OTERO,
Paulo. Coordenadas Jurídicas da Privatização da Administração Pública. In Os Caminhos da
Privatização da Administração Pública. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 31-57.
168
95
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Estado. A partir de então, iniciou-se em diversos países um amplo processo de
desestatização, descentralização e desconcentração, de modo a retirar do Estado
tantos fardos quantos fossem possíveis, a fim de manter sob sua responsabilidade
somente as atividades realmente essenciais.
O novo formato estatal, denominado Estado Subsidiário ou Estado
Regulador,173 espalha-se pelo mundo a partir da década de 90 do século
passado, quando vários países tentam implementá-lo para superar suas crises
internas. Considerando, sobretudo, que as tarefas privatizadas continuam a
ser necessidades básicas essenciais aos cidadãos, exige-se uma disciplina
jurídica pública dessas atividades, uma regulação pública específica a ser feita
pelo Estado, que assume então, não mais uma responsabilidade de prestação
ou de execução direta, e sim uma nova responsabilidade, a “responsabilidade
de regulação”, direcionada a disciplinar o modo como os agentes privados
vão prestar os serviços. Pedro GONÇALVES afirma, nesse senso, que “[...]
do mesmo modo que, ao longo de todo o século XX e por toda a Europa, a
dependência da rede explicou e justificou o monopólio público, agora aquela
mesma circunstância explica, justifica e reclama uma regulação pública;
regulação que visa a garantia da abertura da rede a terceiros”.174
A regulação traduz, assim, a “pedra de toque do novo modelo de intervenção pública”,175 sendo o método de atuação principal desse “novo Estado”,
que deixa de prestar diretamente serviços públicos à população, mantendo-se
na posição de regulador e fiscalizador da prestação cometida aos particulares.
Esse novo modelo, de Estado Regulador, não representa assim a renúncia do
Estado face às atividades correspondentes aos serviços públicos, agora privadas
por força da privatização; ao contrário: a lógica do mercado é temperada pela
presença do Estado na posição de supervisor e fiscalizador do cumprimento
Para aprofundar, vide: MOREIRA, Vital. Auto-Regulação Profissional e Administração
Pública. Coimbra: Almedina, 1997; GONÇALVES, Pedro. Regulação, Electricidade e
Telecomunicações: estudos de Direito Administrativo da Regulação. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008; SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da Atividade Econômica: princípios e
fundamentos jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2008; POSNER, Richard. A. Theories of economic
regulation. In: The Bell Journal of economics and management science, v. 5, n. 2, 1974; LESSA
MATTOS, Paulo Todescan. O Novo Estado Regulador no Brasil: eficiência e legitimidade. São
Paulo: Singular, 2006.
174
GONÇALVES, Pedro. As concessões no sector elétrico. Temas de Direito da Energia, Coimbra,
n. 3, 2008, p. 191.
175
GONÇALVES, Pedro. Regulação, Electricidade e Telecomunicações: estudos de Direito
Administrativo da Regulação. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 12. Prossegue o autor, adiante
na mesma obra: “Em traços gerais, essa intervenção consiste, por um lado, na definição das
condições (normativas) de funcionamento das actividades reguladas, no cumprimento de uma
função de ‘orientação de sistema’, e, por outro lado, no controlo da aplicação e observância de tais
condições e na punição das infracções não criminais dos regulados” (Ibidem, p. 15).
173
96
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
de requisitos, garantidor inclusive do cumprimento, pelo próprio mercado, de
fins de natureza social.176 Pode-se dizer, com Caio TÁCITO, que o “pêndulo do
serviço público”177 entrou, a partir da década de 70 do séc. XX, numa queda
vertiginosa à procura de outro “hemisfério”.178
1.2 INFRAESTRUTURA E MODELAGEM CONCESSÓRIA: EVOLUÇÃO DAS CONCESSÕES LIBERAIS ÀS “NOVAS CONCESSÕES”
Antes de mais nada, deve-se delimitar um importante conceito reiteradamente utilizado no presente trabalho, a partir do qual se qualificam as atividades
econômicas (bens e serviços) que são alvo de análise: o conceito de infraestrutura.
Para os fins aqui pretendidos, seria inútil a adoção de um conceito econômico de infraestrutura, posto que por demais amplo. Perfilando os ensinamentos de Egon Bockmann MOREIRA, entende-se razoável definir juridicamente
infraestrutura como:
[...] a base física sobre a qual os diversos setores econômicos irão se desenvolver e se relacionar entre si. A todo processo de crescimento econômico
A regulação social é, no regime europeu, alcançada mediante imposição de obrigações de serviço
público e de serviço universal. Nesse sentido, vide: GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio
Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA,
Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 197-224.
177
TÁCITO, Caio. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. In: TÁCITO,
Caio. Temas de Direito Público, v. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 721-733.
178
De acordo com Pedro GONÇALVES, a atual crise do serviço público é, sobretudo, uma crise do
serviço público em sentido subjetivo, enquanto tarefa ou atividade econômica de responsabilidade
direta do Estado. A despeito disso, permanece a ideia de que certas atividades econômicas, por
sua importância aos cidadãos, devem ser sujeitas a um regime jurídico especial (“leis do serviço
público”): a liberalização pode então ser considerada um ataque à noção subjetiva de serviço
público, mas não à sua noção material e nem formal, também configuradoras do conceito clássico
do instituto (GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos
e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública,
vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 186). É justamente essa permanência que leva alguns a
afirmarem que o conceito de serviço público sobrevive, não mais para identificar tarefas públicas,
mas sim atividades econômicas de interesse público que, exercidas pelo Estado ou privados,
devem sujeitar-se a um regime específico em razão de sua importância para a coletividade (tratase de um relevo quase exclusivo à dimensão funcional do conceito, portanto). Nesse passo, Dinorá
Grotti reflete que o processo de liberalização e privatização dos serviços públicos implicou uma
nova semântica ao conceito clássico do instituto, assinalando sua dimensão material e formal,
sendo que foram cruciais nesse desenvolvimento a inserção das noções de serviço de interesse
geral, serviço de interesse econômico geral, de serviço universal e de obrigações de serviço público,
no ordenamento europeu. Daí a autora afirmar que o serviço universal se apresenta como a opção
atualizada e objetiva do tradicional serviço público, evitando a ligação automática do serviço
ao poder público em prol da liberdade de iniciativa, e mantendo o critério objetivo/material
(GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 80-81).
176
97
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
subjaz um conjunto de bens e serviços de base, o qual permite que os operadores promovam as suas atividades e possam atingir os respectivos objetivos. É,
enfim, o suporte indispensável à fluidez dos demais setores econômicos.179
De sua parte, Thiago MARRARA prefere falar em infraestruturas,
no plural, dentre as quais mereceriam destaque a infraestrutura energética,
infraestrutura ambiental, infraestrutura logística e infraestrutura social, sendo
que essas duas últimas – mais afetadas ao tema Copa do Mundo - compreendem,
respectivamente, o aparato destinado à prestação dos serviços de transporte
(rodovias, mobilidade, aeroportos, etc.) e serviços públicos sociais ou de
interesse público (como serviços culturais, de lazer, etc.). Para o autor, todavia,
“toda e qualquer grande infraestrutura sempre assume inegável papel social,
uma vez que, por seus efeitos diretos ou indiretos, condiciona o exercício de
direitos fundamentais básicos pelos cidadãos.”180
Destarte, entende-se por infraestrutura o conjunto de bens e instalações
físicas que propiciam o desenvolvimento de atividades econômicas e/ou a prestação de atividades qualificadas como serviços públicos.
Consoante acima visto, a necessidade de instalação de infraestruturas
para alavancar o Capitalismo Industrial foi um marco crucial para a modificação da atuação do próprio Estado Liberal, de matriz absenteísta. Na segunda
metade do séc. XIX, por conta da revolução industrial e das crescentes exigências e necessidades que pressupunham uma intervenção pública diversa da
mera “polícia”, e considerando que a construção e manutenção das grandes
infraestruturas pressupõem uma planificação econômica nacional, o Estado –
ainda que imbuído numa filosofia liberal – passou a ter de intervir na economia,
assumindo responsabilidades em atividades de natureza econômica (sobretudo
as grandes indústrias – transporte, eletricidade, gás, telefonia, etc.).
A bem da verdade é lícito afirmar que o setor das infraestruturas (componente dos assim chamados “serviços públicos econômicos”) é o terreno por excelência da aplicação do conjunto de técnicas de gestão pública que constituem
o cerne do presente artigo: as concessões.
Seguindo os ensinamentos de Pedro GONÇALVES e Licínio LOPES,
adotaremos para os fins aqui pretendidos a definição genérica de concessão administrativa, vista como “ato ou negócio jurídico (ato ou contrato administrativo) através do qual uma entidade pública transfere para outra entidade o direito
à exploração de atividades públicas ou procede à criação, na esfera jurídica de
MOREIRA, Egon Bockmann. A experiência das licitações para obras de infraestrutura e anova
lei das parcerias público-privadas. In: MOREIRA, Egon Bockmann; CUÉLLAR, Leila. Estudos de
Direito Econômico, volume 2. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 53.
180
MARRARA, Thiago. Regulação sustentável de infraestruturas. Revista Brasileira de
Infraestrutura - RBINF, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 95-120, jan./jun. 2012. p. 96-98.
179
98
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
outra entidade, de direitos relativos à utilização de bens públicos”.181 Nessa
aproximação, portanto, a concessão pode atribuir tanto o direito de exercer uma
atividade pública (que, de acordo com Vernalha GUIMARÃES e Vera MONTEIRO, pode constituir um serviço público ou não)182 como de utilizar um bem
público, de sorte que a clássica concessão de serviço público é apenas uma
dentre as modalidades concessórias.
Como se passa a expor em breves linhas, as concessões são classicamente indissociáveis da prestação de serviços públicos – notadamente no campo das
atividades de infraestrutura.
A despeito de alguns remontarem à Grécia Antiga a origem do desempenho de funções públicas por particulares,183 o marco inicial da história das
concessões de serviço público – enquanto técnica, não enquanto gênero contratual184 – é o liberalismo de meados do séc. XIX, porquanto “até o final do séc.
XVIII, [...] a concessão relacionava-se estritamente a conceitos de privilégio”,
sendo nada mais que uma “via de proteção do soberano a seus apaniguados”.185
Viu-se acima que, no liberalismo, a despeito da postura absenteísta que
em regra caracterizava a atuação estatal, os ventos da Revolução Industrial
exigiram do Estado certa inserção na economia, ao ponto em que o obrigou
a instalar as infraestruturas essenciais ao desenvolvimento do capitalismo
em ascensão. Tal responsabilidade, no entanto, não pode ser confundida com
o dever de execução/prestação direta das obras e atividades infraestruturais.
Nesse diapasão, a figura da concessão surgiu como instrumento de destaque,
estratégica quer sob o ponto de vista político-ideológico (conservação do
princípio da abstenção estatal), quer econômico-financeiro (construção de
grandes infraestruturas e serviços sem violentar as regras do mercado e sem
custos para o Erário).186 Lançando mão das concessões, ao mesmo tempo o
Estado satisfazia as necessidades econômicas criadas pela Revolução Industrial
GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a
Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol.
1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 226. A noção de concessão enquanto “gênero” é adotada,
em solo nacional, dentre outros, por: GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de Serviço
Público. São Paulo: Saraiva, 2012; MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010.
182
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de Serviço Público. São Paulo: Saraiva, 2012,
p. 135-138; MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 156-158.
183
Cf.: GONÇALVES, Pedro. A Concessão de Serviços Públicos. Coimbra: Almedina, 1999, p. 45.
184
MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 17.
185
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 51. Igual orientação pode ser extraída de: MONTEIRO, Vera. Concessão. São
Paulo: Malheiros, 2010, p. 18.
186
GROTTI, Dinorá A. Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço público. In:
SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Parcerias Público-Privadas. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 184.
181
99
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
e preservava a autonomia do mercado.187 Daí porque o Estado Liberal lança
mão amplamente da figura da concessão.188
Nas concessões do liberalismo (chamadas de “concessões clássicas”),
todas as responsabilidades corriam a cargo do concessionário, que agia em nome
próprio, por sua conta e risco, assumindo totalmente os ganhos e os riscos de
perda da concessão: o concessionário no liberalismo era remunerado única e
exclusivamente pelas tarifas cobradas dos usuários como contrapartida direta do
serviço prestado, não havendo qualquer forma de solidariedade por parte do poder
concedente – daí porque somente as atividades de cunho uti singuli (ou seja, que
proporcionassem utilidades individuais) podiam ser objeto de concessão, eis que
somente estas permitem uma quantificação tarifária individual.189
Como também já se analisou, no pós-guerra a situação de alta
degradação econômica e social fez com que o Estado – agora de Bem-Estar
Social e não mais Liberal – passasse a assumir uma intervenção direta nas
atividades econômicas e sociais: há uma profunda transformação no seu
papel, na medida em que o Estado não é apenas titular das tarefas, é também
seu executor/prestador direto. Guiado por essa filosofia, o Estado lançou mão
de amplos programas de nacionalização dos setores básicos (infraestrututais)
da economia, criando-se um enorme “setor empresarial público” (no Brasil,
com as autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista) para
absorver atividades e empresas privadas.190 Essa reserva pública sobre certas
atividades econômicas fez com que os privados somente pudessem nelas
atuar com base em concessão administrativa; a despeito disso, a utilização
da concessão para privados no período entra em franco declínio, preferindo
o Estado gerir diretamente os serviços públicos (quer pela Administração
Direta, quer principalmente pela Indireta, com destaque para as Empresas
Públicas, a quem o Estado concedia a exploração/gestão – normalmente
monopolística – das atividades econômicas e serviços públicos).
Essa novel formatação estatal certamente trouxe alterações à concepção
clássica liberal de concessão. A nacionalização de empresas e atividades
transformou o Estado em produtor de bens e serviços, mas nem por isso
houve um abandono das concessões; pelo contrário: elas foram convertidas
em instrumento essencial de organização e gestão dos serviços infraestruturais
(diversas empresas públicas, prestadoras por excelência dos serviços públicos
Bom resumo do período pode ser encontrado em: GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio
Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA,
Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 234-240.
188
GONÇALVES, Pedro. A Concessão de Serviços Públicos. Coimbra: Almedina, 1999, p. 102.
189
GONÇALVES, Pedro. A Concessão de Serviços Públicos. Coimbra: Almedina, 1999.
190
MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 24.
187
100
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
infraestruturais nesse novo Estado, não eram senão concessionárias191 – ainda
que impróprias).192 A maleabilidade das concessões no Estado Social não para
por aí: a técnica concessória foi estendida para a exploração e gestão de atividades
que não proporcionam utilidades individualizadas (uti universii), o que fez
alterar radicalmente o modo tradicional de remuneração do concessionário e
surgirem modos de remuneração variados – em alguns casos estabelecendo-se
um sistema baseado na solidariedade econômico-financeira entre concedente e
concessionário (compartilhamento de riscos).193
Deste breve escorço parece ter ficado claro que a técnica concessória foi
historicamente indissociável da construção e gestão das grandes infraestruturas
públicas.194 Ora, as primeiras concessões liberais tiveram por objeto justamente a
construção de obras públicas de grande vulto (ferrovias,195 redes de gás, sistemas
de iluminação pública).196 Ao longo do séc. XIX e no início do séc. XX, como o
Estado não possuía estrutura administrativa, capitais, nem conhecimento técnico,
a solução voltou-se para o recurso aos particulares, que construíam a obra,
montavam o serviço (transportes, eletricidade, gás, etc.) e o exploravam, tudo com
capitais próprios e “por sua conta e risco”. A técnica concessória foi inicialmente
utilizada, então, na modalidade de concessão de obra pública: o concessionário
tinha de investir nas obras necessárias à instalação das infraestruturas, ainda
inexistentes, e à montagem do serviço a partir delas.
No entanto, obviamente tinha de haver uma contrapartida remuneratória
ao concessionário para amortização do capital investido: daí a outorga ao
concessionário também do direito de explorar as obras durante um período, o
que envolvia a gestão da própria infraestrutura recém-construída e do serviço
A exemplo das clássicas distribuidoras locais de energia elétrica e de água (no Paraná, COPEL
e SANEPAR).
192
Sobre as concessões impróprias, cf.: JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de
Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 117-129.
193
GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a
Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol.
1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 237.
194
A afirmação foi extraída de: GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços
Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos
de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 238.
195
Jorge Luis Salomoni destaca a posição de destaque ocupada pelo transporte ferroviário na
evolução jurisprudencial argentina acerca da compreensão da noção de serviço público – e, por
consequência, da concessão (SALOMONI, Jorge L. Teoria General de los Servicios Públicos.
Buenos Aires: Ad-hoc, 1999, p. 125-193).
196
Não foi diferente no Brasil, como bem notou Caio Tácito: “a criação e expansão da rede de
estradas de ferro, de portos, de energia elétrica, de serviços de transporte coletivo se realizaram
satisfatoriamente mediante a concessão destes serviços” (TÁCITO, Caio. Temas de Direito
Público, v. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 754). No mesmo passo: JUSTEN FILHO, Marçal.
Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 52.
191
101
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
a partir dela prestado. Historicamente, foi a autonomização da prestação do
serviço com relação à construção da infraestrutura que tornou possível o
surgimento das concessões de serviços públicos, pura e simplesmente.197
No final do séc. XX, com a retirada do Estado da prestação direta dos
serviços públicos, promoveu-se consequentemente a derrocada dos clássicos
monopólios estatais, principalmente nos setores infraestruturais (exceto nos
segmentos onde não há monopólio natural, por óbvio), e a política regulatória estatal passou a privilegiar a abertura setorial à concorrência privada,198
regulando-a de modo a garantir a observância do regime jurídico mais adequado para a prestação das atividades – notadamente aquelas então qualifica A conclusão é lógica: como no início inexistiam as infraestruturas básicas para prestação
dos serviços (estradas de ferro, postes de iluminação, etc.), a solução de recorrer aos privados
mediante concessão obrigava-os a, primeiro, construir a infraestrutura (concessão de obra
pública) para, a partir daí, instalar e prestar o serviço em questão (transporte rodoviário,
manutenção dos lampiões). Após um tempo, amortizado esse capital inicialmente investido,
o Estado (titular da infraestrutura e do serviço), poderia optar entre manter pessoalmente
a infraestrutura e prestar o serviço, ou concedê-los a privados. Nesta última hipótese, como
a infraestrutura (base física) e o serviço a partir dela prestado são dissociáveis, o Estado pode
conceder a exploração dos bens públicos (infraestrutura) a um privado, e conceder a prestação do
serviço a outro. Daí porque se afirmou que a autonomização da construção da obra pública com
relação ao serviço a partir dela prestado é que permitiu o surgimento das concessões de serviço
público, pura e simplesmente. Note-se, então, que há três momentos autônomos no processo: a
construção e instalação das infraestruturas (concessão de obra pública), a sua gestão (concessão
de exploração do domínio público) e a gestão do serviço prestado a partir delas (concessão de
serviço público). Originariamente, tais momentos estavam funcional e juridicamente unidos
numa só concessão (a concessão de obra pública), mas com o tempo houve autonomização. Nesse
sentido, cf.: GONÇALVES, Pedro; MARTINS, Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos
e a Concessão no Estado Regulador. In: MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública,
vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 238-240. No mesmo sentido, aduz Vera Monteiro: “A
obra pública, no curso do século XIX, era o objeto predominante nos contratos de concessão. Ela
aparecia associada à construção de grandes infraestruturas públicas [...]. E é a partir da concessão
de obra pública que surge a concessão de serviço público (MONTEIRO, Vera. Concessão. São
Paulo: Malheiros, 2010, p. 21).
198
Nesse caminho, afirma Dinorá Grotti: “O desenvolvimento tecnológico produziu inovações
no âmbito econômico, em especial no tocante à teoria do monopólio natural, e antigos limites
naturais à ampla concorrência foram sendo superados” (GROTTI, Dinorá A. Musetti. A
experiência brasileira nas concessões de serviço público. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.).
Parcerias Público-Privadas. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 191). No mesmo passo, confira-se
a monografia específica sobre a regulação dos setores infraestruturais: FRÓES, Fernando. InfraEstrutura e Serviços Públicos: princípios da regulação geral e econômica. In: CARDOZO, José
Eduardo Martins; et. al. (orgs.). Direito Administrativo Econômico, v. I. São Paulo: Malheiros,
2006. p. 509-640. De igual sorte, cf., sobre o tema: MARQUES NETO, Floriano P. de Azevedo. A
Nova Regulação dos Serviços Públicos. Revista de Direito Administrativo, n. 228, Rio de Janeiro,
abr./mai./jun. 2002. p. 13-29; ARAGÃO, Alexandre Santos de. Serviços Públicos e Concorrência.
Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, ano 1, n. 2, abr./jun. 2003, p. 59-123.
197
102
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
das como serviços públicos, que, portanto, denotam amplo interesse público
em sua satisfação. Nesse amplo processo de privatizações e liberalizações dos
tradicionais serviços públicos infraestruturais, a concessão de serviço público
cedeu certo espaço para o surgimento de novos tipos de ajuste decorrentes
do consenso,199 bem como de novas figuras habilitantes do exercício, por privados, de atividades relacionadas ao setor de infraestrutura: em destaque, a
(polêmica) figura da autorização.200
Com a autonomização entre (a) exploração/gestão da infraestrutura de
suporte do serviço (a rede) e (b) exploração dos serviços por ela suportados,
e diante da nova lógica de livre acesso às redes,201 aceita-se a existência de
exclusividade apenas onde não for viável sua multiplicação (monopólio natural)
e, por conseguinte, o objeto primordial de concessão no novo cenário é a gestão
da rede (monopólio), mas não a gestão do serviço por ela proporcionado –
daí o deslocamento da concessão, antes de serviço público, para a gestão de
infraestruturas (redes), na modalidade de concessão de exploração do domínio
público. De resto, no que concerne ao serviço prestado a partir da rede, via
de regra no Brasil a concessão se presta apenas a habilitar apenas um dos
prestadores do serviço (o “prestador histórico”), sendo que os demais operam
no setor por meio de autorizações.202
A concessão de serviço público subsiste nos casos em que se associar o
serviço à prévia instalação da infraestrutura necessária para prestá-lo (concessão
de serviço público precedida de obra pública), tal como ocorria nas concessões
liberais clássicas – com a diferença de que hoje, com a autonomização das fases,
GROTTI, Dinorá A. Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço público. In:
SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Parcerias Público-Privadas. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 187.
200
Sobre a configuração atual das autorizações, vide: MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das
Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 58-70; JUSTEN FILHO, Marçal.
Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 44-47 e 129131; SILVA, Almiro do Couto e. Privatização no Brasil e o novo exercício de funções públicas
por particulares: serviço público “à brasileira”? Revista de Direito Administrativo 230, p. 45-74;
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações nos Serviços Públicos. Revista Eletrônica de
Direito Administrativo Econômico, Salvador, n.° 1, fevereiro de 2005. Disponível em: <www.
direitodoestado.com.br.>. Acesso em: 4 de novembro de 2012; GONÇALVES, Pedro; MARTINS,
Licínio Lopes. Os Serviços Públicos Econômicos e a Concessão no Estado Regulador. In:
MOREIRA, Vital (org.). Estudos de Regulação Pública, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004,
p. 303-313; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O Serviço Público e a Constituição Brasileira
de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 116-129 e 162-168; MONTEIRO, Vera. Concessão. São
Paulo: Malheiros, 2010, p. 78-97.
201
Para a qual contribuiu em muito a afamada teoria das Essential Facilities. Para aprofundar:
NESTER, Alexandre Wagner. Regulação e Concorrência: Compartilhamento de infra-estruturas
e redes. São Paulo: Dialética, 2006.
202
O exemplo típico, no Brasil, é o do setor de telecomunicações. Aprofundar em: FARACO, Alexandre
Ditzel. Regulação e Direito Concorrencial: as Telecomunicações. São Paulo: Paulista, 2003.
199
103
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
a Administração Pública pode optar entre atribuir ambas as concessões a um
mesmo concessionário ou a concessionários diversos. Além das concessões em
âmbito infraestrutural, das “indústrias de rede”, também a concessão de obras
públicas tem relevada importância para os fins do presente artigo, na medida
em que, graças ao modelo de financiamento que lhe está associado – o project
finance – tem permitido à Administração Pública brasileira travar parcerias com
privados em diversas áreas de interesse para a viabilização da Copa do Mundo.
Essa brutal mudança da formatação estatal ocorrida nas últimas
décadas, numa espécie de “retorno do pêndulo” propiciada pelos processos de
liberalização e privatização, certamente redimensionou a figura das concessões.
O contexto jurídico, tecnológico e econômico contemporâneo clamam por uma
nova modelagem das técnicas concessórias, que não mais podem corresponder
nem às concessões liberais clássicas, nem às concessões impróprias do welfare
state. Como bem notou Marçal JUSTEN FILHO, “não é cabível estender para
o presente e o futuro inúmeros pressupostos jurídicos que deram identidade
à concessão no passado”, motivo pelo qual “a alusão a um ‘novo’ serviço
público conduz, de modo inevitável, também a novidades no âmbito do
instituto da concessão”.203 Ainda que o instituto da concessão seja “velho”, seu
ressurgimento mais recentemente como o objetivo de privatizar a gestão de
bens e serviços públicos traduz novos caracteres.204
Daí porque diversos autores contemporâneos vêm desconstruindo
as características “típicas” ou “clássicas” das concessões (notadamente as
concessões de serviço público) em busca de um novo modelo, que contemple
as hodiernas feições que o instituto vem assumindo.205 A seguir, enfocaremos
algumas das notas mais evidentes que caracterizam as atuais concessões,
a estrutura do financiamento e a mitigação de riscos, tendo como base a
modelagem concessória que talvez exprima com mais pertinência a atual fase
do instituto: as Parcerias Público-Privadas, inauguradas no Brasil com a Lei
n.º 11.079/2004.
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 57.
204
Dinorá Grotti destaca a ampla tendência à prestação dos serviços públicos em regime
concorrencial, ao contrário das concessões liberais (concedidas com exclusividade aos privados)
e das concessões do Estado Social (em que vigoravam os monopólios públicos). GROTTI, Dinorá
A. Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço público. In: SUNDFELD, Carlos Ari
(coord.). Parcerias Público-Privadas. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 189-190.
205
Para aprofundamentos, ver: JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço
Público. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 57 e seguintes; MONTEIRO, Vera. Concessão. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 152 e seguintes; GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de Serviço
Público. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 17 e seguintes.
203
104
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
2. FINANCIAMENTO E MITIGAÇÃO DE RISCOS NAS CONCESSÕES EM INFRAESTRUTURA
2.1 FINANCIAMENTO, REMUNERAÇÃO E GARANTIAS
Pode-se dizer, de uma maneira geral, que dentre as possíveis
contribuições da utilização das PPPs para o Brasil, especificamente no que
pertine à Copa do Mundo, estão a própria viabilidade do desenvolvimento
da infraestrutura, rapidez, eficiência e entrega efetiva do projeto no período
acordado; a transferência e gerência do risco do projeto; a construção e
infraestrutura da área pública com financiamento, operação, e manutenção;
a transferência de habilidades do setor público e privado, de conhecimento
e de perícia; a eficiência do projeto e da construção integrando infraestrutura
pública com financiamento privado, operação e manutenção; a geração de
importantes recursos para propiciar a implementação de importantes projetos
com na entrega tempestiva; a competitividade entre empresas e setores, gerando
maior capacidade de construir grandes projetos (incluindo divisão dos riscos); o
planejamento para a provisão e a entrega de serviços públicos de qualidade com
o regime do desempenho satisfatório; a inovação e diversidade na provisão dos
serviços públicos; e a utilização efetiva dos recursos estatais em benefício dos
usuários de serviços públicos.
Vale ressaltar que a parceria público-privada tende a gerar, ao parceiro
público, uma melhoria na qualidade do serviço prestado à coletividade, e
ao parceiro privado um lucro que proporciona o “engajamento dos capitais
investidos, às suas competências, e à sua tomada de risco”. Por outro lado, um
fracasso da parceria tende a gerar para o parceiro público uma degradação na
qualidade o serviço e eventualmente custos caso tenha de (re)assumir o serviço,
e para o parceiro privado uma baixa remuneração ou mesmo a própria perda dos
capitais investidos.206
Fala-se, assim, em três conceitos diferentes: financiamento, garantias
e remuneração. Em primeiro lugar, Rafael VALIM reforça a diferenciação
entre o financiamento propriamente dito e a remuneração oriunda do objeto
concedido. Segundo ele, em que pese se tratarem de realidades intimamente
ligadas, a diferença entre as duas figuras é crucial para a compreensão de
ambas: o financiamento é, por um lado, a provisão do capital necessário à
realização de algum empreendimento, é a própria obtenção de recursos para
AOUST, Jean-Marie; BENNET, Craig; FISZELSON, Roger. A análise e a divisão dos riscos,
chave para o êxito de uma PPP. In: Financiamento das Infraestruturas e dos Serviços Coletivos:
o recurso à parceria público-privada. Os exemplos da experiência francesa no mundo. São Paulo:
DAEI (Direção dos Assuntos Econômicos e Internacionais), 2001. p. 61- 128.
206
105
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
a execução das obras necessárias ao desenvolvimento de uma concessão (seja
comum, administrativa ou patrocinada). De outra banda está a remuneração,
não menos importante por óbvio, mas que se traduz no conjunto de todas as
receitas emergentes daquela concessão, oriundas do Estado, dos usuários ou de
atividades paralelas ao objeto da concessão.207
Aliás, como lembra Maria Adelaide de Campos FRANÇA, a forma de
remuneração do parceiro privado deve servir propriamente como critério de
escolha da modalidade de concessão a ser contratada, já que na hipótese de
o projeto revelar-se economicamente autossustentável, independentemente
de remuneração direta ou subsidiada pelo Estado, deve-se adotar o regime de
concessão comum, e não de parceria público-privada.208
Por fim, vale dizer que o investimento do parceiro privado, necessário
à execução da parceria público-privada, em geral, terá como fonte de
capitação inicial de recursos os contratos de financiamento com instituições
financeiras e fundos de pensão, porém tais contratos, além de passíveis
de garantias prestadas pelo parceiro privado, permitem o oferecimento de
garantias prestadas pelo próprio parceiro público (vinculação de receitas;
instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei; a contratação de
seguro-garantia com as companhias seguradoras que não sejam controladas
pelo Poder Público; a garantia prestada por organismos internacionais ou
instituições financeiras, garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa
estatal criada para essa finalidade).
As garantias, nesse sentido são dadas aos financiadores do
empreendimento, e atuam precipuamente como mecanismo de mitigação de
riscos inerentes ao projeto. Visam, conforme sintetiza a autora supracitada,
imprimir eficiência, economicidade, e qualidade na prestação de serviços
públicos e na execução de obras de infraestrutura; atuar como fator de atração
do setor privado à contratação sob o regime de parceria público-privada; e atuar
como fator de atração de diversos agentes financeiros e investidores, tanto do
setor privado como do setor público, com vistas a garantir o cumprimento das
obrigações assumidas pelas partes.209
Por outro lado, como alertam Luiz BRANDÃO e Eduardo SARAIVA,
a concessão indiscriminada de garantias contratuais pode onerar em demasia
o Estado, pois ao oferecer essas garantias o governo está criando um passivo e
VALIM, Rafael. Notas sobre o financiamento e a remuneração de concessões comuns e de
parcerias público-privadas. Revista Brasileira de Infraestrutura - RBINF, Belo Horizonte, ano
1, n. 1, p. 121-134, jan./jun. 2012. p. 122-123.
208
FRANÇA, Maria Adelaide de Campos. Parcerias público-privadas: repartição objetiva de riscos.
Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 37.
209
FRANÇA, Maria Adelaide de Campos . Parcerias público-privadas: repartição objetiva de
riscos. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 39.
207
106
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
uma responsabilidade potencial para o futuro. Embora não produza impacto no
caixa do governo no momento presente, esse compromisso pode significar um
pesado ônus para as gerações futuras.210
Claro que cada projeto, e a respectiva potencial parceria, deve ser
analisada em separado, com suas peculiaridades. Ou seja, a viabilidade e os
riscos envolvidos tornam cada projeto distinto do outro: cada qual com sua forma
própria de financiamento, com suas garantias e indicadores de desempenho
peculiares, e forma própria de remuneração.
2.2 PPP, PROJECT FINANCE E MITIGAÇÃO DE RISCOS
Como se sabe, com o advento da regulamentação das parcerias públicoprivadas no direito brasileiro, surge uma nova possibilidade de engenharia
contratual: a alocação dos riscos feita de maneira prévia, no próprio contrato
administrativo. Por certo, não há como se prever todos os riscos aos quais se
sujeitarão os contratantes; todavia, aqueles que podem ser previstos devem ser
bem analisados e então previamente repartidos, como ocorre, por exemplo, nas
chamadas matrizes de riscos, anexadas a alguns contratos.
Enfim, a mitigação de riscos ante o sistema de garantias previsto na Lei
das PPPs é um “acréscimo ao que já se tinha de avanço ao modelo francês
em termos de seu compartilhamento na modalidade tradicional de concessões
públicas.”211
Por outro lado, em que pese o presente trabalho se voltar com maior
atenção às parcerias público-privadas, o questionamento há como se aplicar,
às concessões comuns (aos contratos administrativos de uma maneira geral)
a lógica da repartição objetiva de riscos inaugurada pela Lei de PPPs? parece ter duas respostas aceitáveis. Em primeiro lugar, pode-se responder afirmativamente. De fato, há espaço no ordenamento jurídico pátrio para que a
partilha contratual de riscos seja realizada também no âmbito das concessões
comuns. Esse espaço para autorregulação em matéria de alocação de riscos,
ordinário e extraordinário, não encontra óbice nem no texto constitucional, nem
na legislação infraconstitucional.212 Em segundo lugar, e uma resposta que se
dá com muito mais segurança, deixa-se de lado o debate sobre a aplicação da
regra explícita de repartição contratual de riscos (art. 4º, VI e art. 5º, III da Lei
BRANDAO, Luiz; SARAIVA, Eduardo. Risco privado em infra-estrutura pública: uma
análise quantitativa de risco como ferramenta de modelagem de contratos. Revista de
Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 41, n. 6, p. 1035-1067, dez./2007, p. 1044.
211
CALDAS, Roberto. Parcerias público-privadas e suas garantias inovadoras nos contratos
administrativos e concessões de serviços públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 240-241.
212
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de serviço público. São Paulo: Saraiva, 2012,
p. 255-256.
210
107
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
nº 11.079/04) às concessões comuns, para se afirmar que hão de ser buscados
critérios que possam ser utilizados pela Administração para que se tenha uma
alocação e uma gestão eficiente dos riscos.
Feitas essas brevíssimas considerações conceituais, retoma-se o tema do
financiamento dos empreendimentos em infraestrutura, como proposto no início do
trabalho. Em tese, o financiamento de uma concessão regida pela Lei nº 11.079/04
pode ser operacionalizado a partir de contratos de mútuo, emissão de debêntures
pela sociedade de propósito específico, ou até mesmo mediante a aquisição de
quotas da própria SPE.213 Todavia, uma figura específica merece atenção redobrada.
Ao lado dessas possibilidades, ganha força a utilização do instrumento do
project finance, uma espécie de financiamento de uma unidade econômica com fim
específico em que o investidor tem acesso aos fluxos de caixa do empreendimento
e em que os ganhos dessa unidade econômica geram fontes de recursos para
repagamento de seus empréstimos. Uma ideia que soa complexa, haja vista ser
um conjunto de técnicas, conforme explica Egon Bockmann MOREIRA:
Por meio da combinação estratégica de técnicas contratuais e de
engenharia financeira, que contemplam a criação de pessoa específica
(Sociedade de Propósito Específico – SPE) simultaneamente à implementação
de projeto de investimento cuja receita assegurará o pagamento do débito,
quem recebe a provisão do capital não é o controlador ou o concessionário,
mas o empreendimento ele mesmo. A empresa concessionária é unicamente
criada em vista da sua função: presta-se a servir de instrumento ao aporte de
recursos que permitirá a gestão do projeto e a obtenção dos lucros. De usual, os
direitos emergentes dos contratos e os créditos operacionais futuros são dados
em garantia de operações de mútuo. Essa complexa operação envolve tanto
empréstimos de longo prazo e investimento de longa maturação com futuras
receitas próprias (e a avaliação de sua rentabilidade) como a criação de múltiplas
pessoas jurídicas (e a respectiva divisão de funções) e o aporte de capitais por
parte de um grupo de instituições financeiras.214
Ou seja, sustenta o autor se tratar de uma forma de financiamento mais
adequada para projetos de longo prazo que exijam maior volume de capital
e tenham fluxo de caixa passível de avaliação quanto à sua previsibilidade e
consistência. Como a sua garantia é a receita interna ao projeto, não provoca
VALIM, Rafael. Notas sobre o financiamento e a remuneração de concessões comuns e de
parcerias público-privadas. Revista Brasileira de Infraestrutura - RBINF, Belo Horizonte, ano
1, n. 1, p. 121-134, jan./jun. 2012, p. 131-132.
214
MOREIRA, Egon Bockmann. Concessões de Serviços Públicos e Project Finance. Revista
Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de
Direito Público, nº. 23, agosto/setembro/outubro, 2010, p. 2. Disponível na Internet: <http://www.
direitodoestado.com/revista/REDAE-23-AGOSTO-2010-EGON-MOREIRA.pdf>. Acesso em: 4
nov. 2012.
213
108
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
repercussão imediata no balanço dos acionistas da sociedade, caracterizandose, em suma, pelo fato de ser próprio para projetos segregados, quando há
necessidade de uma SPE (assim como nas PPP’s) – o que normalmente se dá
em projetos novos – que nasce prévia ou simultaneamente a eles. Caracterizase também por exigir investimento de elevado porte com alto índice de débitos
em face do respectivo patrimônio líquido, e, sobretudo, por não haver garantias
pessoais dos investidores, contando os financiadores com o fluxo de caixa a ser
gerado pelo projeto para o pagamento do débito.215
O project finance (ou financiamento de projetos, como simploriamente
traduzido por vezes), traduz-se então como estrutura econômica e financeira
que não se confunde com as modelagens ordinárias de financiamento, como
tentativa de minimizar elementos tidos como inibidores ao investimento
privado. Com o seu uso, objetiva-se restringir a responsabilidade dos acionistas
empreendedores, ao passo em que se maximiza o seu eventual retorno, a partir
da segregação do risco da empreitada entre os acionistas patrocinadores, os
financiadores externos, eventuais provedores de serviços terceirizados e
fornecedores e, até mesmo, o Estado.
Por essa razão, trata-se de instrumento crucial para a consecução de fins
ligados à eficiência de investimentos em infraestrutura, sobretudo em matéria
de incremento da atratividade desses projetos. Aliás, no que diz respeito à
repartição objetiva de riscos entre as partes, à sustentabilidade financeira e às
vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria público-privada, devese ressaltar que tais diretrizes podem ser concretizadas por intermédio do
instrumento denominado project finance.
A atratividade do projeto é, sem dúvida, crucial para se cogitar resultados
eficientes. Nesse sentido, a opção por uma parceria público-privada para grandes
projetos de infraestrutura, tal como no caso dos participantes de um project
finance, interessa a toda uma gama de agentes, entre os quais se destacam as
empreiteiras, passando por consultoras, bancos e seguradoras. Entre os credores
também podem ser listados os fundos de pensão de patrocinadores públicos ou
privados e os fundos de investimento.216
Em verdade, pode-se até identificar em termos gerais certa semelhança
entre a estruturação financeira de uma PPP e de um project finance, sobretudo
MOREIRA, Egon Bockmann. Concessões de Serviços Públicos e Project Finance. Revista
Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de
Direito Público, nº. 23, agosto/setembro/outubro, 2010, p. 3. Disponível na Internet: <http://www.
direitodoestado.com/revista/REDAE-23-AGOSTO-2010-EGON-MOREIRA.pdf>. Acesso em: 4
nov. 2012.
216
BORGES, Luiz Ferreira Xavier; NEVES, Cesar das. PPP- Parceria Público-Privada: riscos e
mitigações em operações estruturadas de investimentos de infraestrutura. Revista do BNDES,
v.12, n. 23, p.73-118, 2005, p. 82.
215
109
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
no que tange ao comprometimento das partes em agir em conjunto e estarem
dispostas a montar sofisticadas estruturas para a obtenção das metas pretendidas.
São elementos comuns a segregação através de SPEs, a securitização da receita
futura em títulos que possam ser negociados, o foco em infraestrutura com as
regras das concessões e as técnicas de gestão eficiente e mitigação de risco.
Ademais, Luiz Ferreira Xavier BORGES e Cesar das NEVES sustentam que a
PPP deve caminhar para formas mais próximas a um project finance, na medida
em que a lei permite a divisão com o Estado dos ganhos na repactuação futura
de empréstimos e no incremento de receitas próprias do projeto.217
Partindo da premissa que o project finance é a estrutura financeira de um
projeto, considerando a aptidão e tolerância do capital em assumir parcela de
risco compatível com o retorno desejável, é através dele que serão delimitados
parâmetros acerca da sustentabilidade econômica e técnica ao projeto de parceria
público-privada. De qualquer sorte, ressalte-se que o art. 4º da Lei 11.074/04
prevê a (auto)sustentabilidade, vez que os recursos gerados pelo empreendimento
(oriundos da cobrança de tarifas conjugadas ou não, conforme a modalidade
de contrato de PPP, com a contraprestação do parceiro público) deverão ser
suficientes para garantir o cumprimento de todas as obrigações contratuais.
Várias são as dificuldades, claro. Luiz Ferreira Xavier BORGES lembra
que em grandes investimentos de infraestrutura, os ativos dos projetos sequer
servem como garantia pela impossibilidade de se executar represas, linhas de
transmissão, leitos rodoviários, ferroviários ou instalações portuárias ou de
transporte fluvial. Por isso mesmo, “o setor ressente-se, ainda, dos altos volumes
de recursos exigidos para o investimento de construção e pelo comprometimento
contábil da assunção de dívidas de longo prazo.”218
Experiência concreta no que pertine ao uso de novas modelagens
contratuais nesse contexto de realização da Copa do Mundo é o projeto de
modernização do Estádio Magalhães Pinto, o “Mineirão”, localizado em
Belo Horizonte. Em estudo específico sobre tal empreendimento, Vinicius
MARINS e Rodrigo Reis de OLIVEIRA trazem apontamentos que evidenciam
a concretização das tendências anteriormente narradas.
Para os autores, a forma clássica de financiamento de empreendimentos
tem sido, em certo modo, abandonada, de modo que os critérios tradicionais
para a concessão de crédito, baseados na situação financeira dos acionistas
BORGES, Luiz Ferreira Xavier; NEVES, Cesar das. PPP- Parceria Público-Privada: riscos e
mitigações em operações estruturadas de investimentos de infraestrutura. Revista do BNDES,
v.12, n. 23, p.73-118, 2005, p. 85-87.
218
BORGES, Luiz Ferreira Xavier. Mitigação de Risco nas Operações de Project Finance e de
Parceria Público-Privada Envolvendo Instituições Financeiras Públicas. Revista MundoPM Project Management, Rio de Janeiro, v. 7, p. 22-27, 2006, p. 24.
217
110
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
do projeto e na constituição de garantias reais e pessoais, deixam de ser
adotados, em razão do crescente uso do project finance. Dessa maneira, com
a compreensão dessa nova “filosofia contratual”, o fluxo de caixa e os ativos
do projeto passam a ser considerados fontes primárias de recursos destinada
ao pagamento do financiamento, garantindo aos financiadores um retorno
adequado sobre o capital investido.219
Especificamente da análise do contrato que concretiza o “Complexo do
Mineirão”, extrai-se que o Poder Concedente optou, por exemplo, por determinar
que a concessionária grande parte riscos inerentes à atividade às seguradoras,
compartilhando os demais a partir das premissas da eficiência alocativa e da busca
por melhor resultados. E a correta (leia-se: eficiente) alocação dos riscos eficiente dos
riscos tende a se traduzir em incentivo econômico a ambos os parceiros, estimulando
a prevenção e a mitigação dos riscos e coibindo “condutas oportunísticas geradas
pelo desalinhamento de interesses”. Todavia, frisam os autores:
Os desafios da implantação do modelo de gestão compartilhada vinculamse, contudo, a uma internalização da cultura pelo Poder Público, o que se
relaciona à ideia de distribuição parcimoniosa de riscos e bônus aos agentes
envolvidos. É somente a partir de tal premissa que as propaladas vantagens
econômicas dos projetos de parceria poderão revelar um benefício efetivo para
os cidadãos, propósito último da ação do Poder Público.220
Ora, as PPPs assim como sustentado até o momento - como opção para
os modelos tradicionais de contratação da iniciativa privada pelo Poder Público
- dirigem-se à mitigação dos riscos envolvidos, de forma a conferir viabilidade
e sustentabilidade econômica ao projeto e torná-lo propício a sua execução e
financiamento com uso do project finance. E no contexto da Copa do Mundo,
o desenvolvimento de projetos demanda um incremento na complexidade da
estruturação financeira dos contratos públicos, bem como implica na necessidade
de compartilhamento eficiente dos riscos envolvidos. Com isso, a estrutura
de riscos e mitigantes a ser desenhada contratualmente servirá de suporte ao
financiamento, de modo que seja eficaz para todas as partes envolvidas, o que é
obviamente fundamental para o sucesso dos projetos.
Portanto, há razões concretas para se crer que o modelo de financiamento
project finance, como instrumento da gestão eficiente de riscos encontrados,
MARINS, Vinícius; OLIVEIRA, Rodrigo Reis de. As parcerias público-privadas e o problema
da alocação de riscos: uma análise do caso da modernização do estádio “Mineirão” para a Copa do
Mundo de 2014. Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte, v. 10, n. 111, mar. 2011,
p. 1. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/39100>. Acesso em: 28 abr. 2011.
220
MARINS, Vinícius; OLIVEIRA, Rodrigo Reis de. As parcerias público-privadas e o problema
da alocação de riscos: uma análise do caso da modernização do estádio “Mineirão” para a Copa do
Mundo de 2014. Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte, v. 10, n. 111, mar. 2011,
p. 12. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/39100>. Acesso em: 28 abr. 2011.
219
111
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
possa ser utilizado de com entusiasmo por investidores, de modo a proporcionar
condições de desenvolvimento da infraestrutura nacional, viabilizando a
construção de estádios, estradas, portos, aeroportos, etc., que são, grosso modo,
o legado que a Copa do Mundo há de deixar.
Ou seja, a discussão sobre a parceria público-privada reside praticamente
sempre, em maior ou menor medida, nos requisitos para sua viabilização.
MOREIRA e CARNEIRO apontam duas condições básicas para sua efetivação: a)
o consenso de que novos investimentos em infraestrutura não podem ser mantidos
apenas pelo governo ou apenas pelo setor privado; b) a definição pelo Estado dos
setores de infraestrutura em que é desejável maior interação com o setor privado.221
Inicia-se no Brasil um processo de reconhecimento das PPPs como
umas das soluções para a retomada dos investimentos em infraestrutura, e
a Copa do Mundo é um ponto importante desse panorama. Insiste deixar
claro que, conforme o faz Bruno Vitali BELLO, que estas parcerias não são
simplesmente a terceirização de um serviço, com ou sem a utilização do
project finance. São projetos estruturados via contratos complexos, nos quais a
provisão dos serviços está diretamente relacionada ao fornecimento dos ativos
necessários e ao financiamento do projeto pelo parceiro privado. E mais: não
se confundem com a privatização do serviço público uma vez que o Estado
continua a exercer um papel primordial na definição e fiscalização dos serviços
privados. Adicionalmente, as PFI são direcionadas a projetos que não sejam
economicamente viáveis e, portanto, dependam, no todo ou em parte, de
remuneração pública para subsistir.222
3. INFRAESTRUTURA E COPA DO MUNDO: ENTRE A “FUGA PARA O DIREITO
PRIVADO” E A MODERNIZAÇÃO DA GESTÃO PÚBLICA DE BENS E SERVIÇOS
Não se pode negar que grandes eventos internacionais, como a Copa
do Mundo, traduzem-se em uma oportunidade para catalisar investimentos
que tenham por objetivo aperfeiçoar a infraestrutura de um país, dentre outros
benefícios à sociedade. Trata-se de um período (que não se confunde com apenas
os dias do evento) de grande estímulo ao crescimento econômico em razão
dos investimentos que mobiliza e dos efeitos nas diversas cadeias produtivas
das cidades-sede. E, ao menos em tese, se bem projetadas, as parcerias
público-privadas se colocam como uma das mais notáveis fontes alternativas
MOREIRA, Terezinha; CARNEIRO, Maria. A parceria público-privada na infra-estrutura
econômica. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 1, no 2, p.27-46, dez. 1994.
222
BELLO, Bruno Vitali. Modelagem de garantias governamentais em Project Finance e parcerias
público-privadas através da aplicação da teoria de opções reais. Dissertação (Mestrado em
Administração). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 35.
221
112
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
de financiamentos freqüentemente discutidas para o desenvolvimento de
projetos de infraestruturas e a provisão de serviços à sociedade, ampliando e/
ou resgatando os níveis de investimentos. Grosso modo, já que não há espaço
para maiores aprofundamentos teóricos sobre o modelo, pode-se dizer que
mediante esta parceria, o setor público “compra” serviços infraestruturais
ao invés de implantá-los diretamente, e o setor privado assume as tarefas de
conceber, implantar, manter e operar as infraestruturas e os diversos riscos daí
decorrentes.223
O que se pretendia com as breves notas aqui tomadas foi problematizar
como a opção por PPPs (e o possível uso do project finance) no país pode
ser traduzida como uma nova concepção em relação à tradicional política
nacional de investimentos, especialmente neste cenário de grandes eventos
internacionais (Copa do Mundo), a partir de um novo modelo, uma nova
disciplina legislativa, que alteram sensivelmente a forma de atuação do Estado
em setores estratégicos e a engenharia financeira dos contratos públicos. Enfim,
a defesa de projetos desenvolvidos por PPP tem em seu cerne a demanda por
investimentos em infraestrutura e a ausência de recursos públicos disponíveis,
que requerem formas alternativas de financiamento, celebradas pela assunção
e repartição de riscos pelo setor privado.224 José Virgílio Lopes ENEI sintetiza
da seguinte forma:
A PPP, como alternativa aos modelos tradicionais de contratação da
iniciativa privada pela administração publica, propõe-se a mitigar os riscos de
mercado e de demanda, que são total ou parcialmente assumidos pelo Poder
Público, de forma a conferir viabilidade econômica ao projeto e a tornálo propício à sua execução e financiamento em regime de financiamento de
projetos. De outra ótica, pode-se dizer que a PPP nada mais é do que a aplicação
das técnicas e filosofia do financiamento de projetos à interação do setor público
com o setor privado no âmbito dos projetos de infra-estrutura.225
Não há espaço nesse breve apanhado para se propor o aperfeiçoamento
dos marcos regulatórios em relação a contratos públicos e investimentos em
infraestrutura. Diante das possibilidades que a legislação brasileira oferece, sem
se pretender propor uma solução para o gargalo infraestrutural que o país possui,
OLIVEIRA, Selma Regina Martins Oliveira; CAZARINI, Edson Walmir. Avaliação de riscos em
projetos de parcerias público-privadas. In: XIII SIMPOI - Simpósio de Administração Logistica
e Operações Internacionais, 2010, São Paulo. Redes de Operações Globais: Oportunidades e
Desafios, 2010. v. Vol1., p. 1.
224
SAVI, Erika Monteiro de Souza; SAVI, Antonio Francisco. A inserção das parcerias públicoprivadas (PPPS) como alternativa para a retomada do desenvolvimento da infra-estrutura no
Brasil. In: XIII Simpósio de Engenharia de Produção, 2006, Bauru. XII SIMPEP 2006, p. 7.
225
ENEI, José Virgílio Lopes. Project finance: financiamento com foco em empreendimentos
(parcerias público-privadas, leveraged buy-outs e outras figuras afins). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 412.
223
113
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
sustenta-se que PPPs podem alavancar investimentos privados para setores que,
sem elas, dependeriam de investimentos públicos vultuosos. Permitem que o
Estado utilize seus recursos, que são escassos, em outras áreas. Nessa esteira,
os riscos não podem ser analisados de forma dissociada da adequada prestação
dos serviços, principalmente no que diz respeito à regularidade, à continuidade
e à modicidade das tarifas, alguns dos fatores que impactam os resultados dos
negócios. Em última instância, qualquer proposição deve ser capaz de conferir
atratividade ao projeto, garantir a remuneração do capital investido, proporcionar
segurança a investidores e financiadores e, principalmente, assegurar a melhoria
da qualidade dos serviços ofertados aos usuários.226
Numa espécie de “quadro-geral”, há hodiernamente várias aplicações
possíveis para a concessão administrativa que podem ser utilizadas pela
Administração Pública brasileira para dar cabo à “missão” de sediar a Copa do
Mundo de Futebol, em 2014:
(i) concessão de obras públicas, uma espécie de contrato administrativo
de empreitada de obras públicas que tem como contrapartida o direito de
exploração da obra: essa concessão tem por objeto simultaneamente a execução
e a exploração de obras públicas, tratando-se a rigor de uma “dupla concessão”
(da construção e da exploração), pelo menos até que haja amortização dos
custos – trata-se, conforme aduz Egon Bockmann MOREIRA, de uma “técnica
de financiamento de obras estatais por pessoas privadas”;227
(ii) concessão de exploração do domínio público, em que a Administração
confere a um particular o direito de exploração ou gestão econômica de um
bem público (concessão típica em sede de recursos naturais e, em relevo, das
infraestruturas, possível após a autonomização jurídica da gestão e exploração
das redes já existentes em relação à prestação do serviço por elas suportado);
(iii) a concessão comum de serviços públicos, regida pela Lei n. 8.989/1995,
resultante, também, da autonomização da construção das grandes obras de
infraestrutura com relação ao serviço (público) que a partir delas pode ser prestado,
pode ser definida como a atribuição/outorga, a um particular, do direito de prestar
determinada atividade de titularidade estatal qualificada como serviço público;
(iv) concessão de serviços públicos precedida de obras públicas,
sendo em verdade uma união das três modalidades concessórias anteriores: o
concessionário constrói a obra pública (infraestrutura), explora a rede e presta
o serviço a partir dela;
(v) em destaque absoluto, as parcerias público-privadas, regidas pela
lei 11.079/2004, que abarcam todas as modalidades concessórias acima
CARNEIRO, Maria Christina Fontainha. Investimentos em Projetos de Infra-Estrutura:
Desafios Permanentes. Revista Do BNDES, Rio De Janeiro, v. 13, n. 26, p. 15-34, dez. 2006.
227
MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das Concessões de Serviço Público. São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 25.
226
114
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
relacionadas, enfeixando-as numa sistemática própria pensada a partir da
modernização das técnicas de financiamento de contratos de grande vulto e
repercussão econômica (em verdade, como bem notou Egon Bockmann
MOREIRA, “as PPPs não são mais uma opção a ser livremente escolhida; são,
caso a caso, a opção que comprovadamente deve ser implementada em face dos
pressupostos fático normativos”).228
Não são poucos aqueles que, em solo nacional, levantam vozes
contrariamente à celebração desse tipo de parceria entre Poder Público e
entidades privadas, alegando, dentre outras coisas, a inconstitucionalidade da
“fuga para o direito privado”229 que tais ajustes implicam, o que seria inaceitável
do ponto de vista da necessária atuação estatal em áreas “sensíveis”.
Quer-nos parecer, todavia, que as técnicas concessórias desenhadas
em linhas rudimentares no presente ensaio não se prestam a tanto. Face à
realidade concreta vivida nos dias atuais, constata-se que a via concessória é
muitas vezes, senão a única, ao menos a via mais adequada para promover a
construção e gestão de obras e serviços públicos infraestruturais, sobretudo no
que se refere à Copa do Mundo: o Estado brasileiro não tem (e nem precisa) os
recursos financeiros e as técnicas necessárias para o desenvolvimento, em tão
curto prazo, de atividades de tamanha complexidade.
Nesse cenário, o recurso aos privados, tal como ocorreu no nosso período
imperial, finda por ser essencial ao Estado brasileiro para que desempenhe a
contento as atividades de sua responsabilidade, atendendo, assim, às “missões
sócio-econômicas” que lhe são imputadas pela Constituição. Não devemos
nos esquecer, nessa aproximação, que a concessão é “um instrumento de
implementação de certas políticas públicas. Não é, pura e simplesmente,
uma manifestação da atividade administrativa contratual do Estado. Muito
mais do que isso, é uma alternativa para realização de valores constitucionais
fundamentais”.230
Como em meados do séc. XIX disse um dos maiores “concessionários”
da história do Brasil, Irineu Evangelista de Sousa – o Barão de Mauá:
“Desgraçadamente entre nós entende-se que empresários devem perder, para
MOREIRA, Egon Bockmann. A experiência das licitações para obras de infraestrutura e anova
lei das parcerias público-privadas. In: MOREIRA, Egon Bockmann; CUÉLLAR, Leila. Estudos de
Direito Econômico, volume 2. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 51.
229
A expressão é tomada emprestado de Fritz Fleiner, consagrada na pena de Maria João
Estorninho (FLEINER, Fritz. Instituciones de Derecho Administrativo. Trad. Sabino Gendin.
Barcelona: Labor, 1933; ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado. Coimbra:
Almedina, 2009).
230
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 58.
228
115
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
que o negócio seja bom para o Estado, quando é justamente o contrário”.231
E novamente, como diz o velho brocardo, “a história se repete”, ainda
que com novos personagens e em novos cenários. Que não se repita, no entanto,
o resultado da última Copa do Mundo de Futebol sediada no Brasil, em 1950.
Apud CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, p. 31.
231
116
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
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121
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 6
NOTAS SOBRE A INFRAESTRUTURA AEROPORTUÁRIA ESTATAL NO
BRASIL: PASSADO, PRESENTE E FUTURO E SUA RELAÇÃO COM O
REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES
Daniel Müller Martins232
Eduardo Ramos Caron Tesserolli233
SUMÁRIO: Introdução. 1. Algumas considerações no plano do passado. 2. Do passado
ao presente: algumas alternativas possíveis. 3. Do presente ao futuro: perspectivas, definições e indefinições. 4. O RDC e a infraestrutura aeroportuária. 4.1 O que é o RDC? 4.2
Infraestrutura aeroportuária e RDC. 5. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A infraestrutura aeroportuária de um país ou região está relacionada
à satisfação de necessidades essenciais do Estado e dos cidadãos. Mas,
inegavelmente, é também um fator de competitividade econômica.
A análise da infraestrutura aeroportuária estatal no Brasil, sob a égide do
marco constitucional inaugurado em 1988, remete, em sua essência, ao campo
de uma atividade definida como serviço público e vinculada à promoção do
desenvolvimento social econômico.
Primeiro, em razão da opção da Constituição da República, em seu art.
21, XII, c234. Segundo, e indispensavelmente, já que a primeira razão seria
insuficiente, em si, para definir o serviço público, porque caracterizado o
substrato material, formal e subjetivo daquilo que serve a qualificá-lo em sua
essência, inclusive com expressa opção pelo Legislador infraconstitucional235.
Advogado e Consultor em Direito Público. Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor em cursos de Pós-Graduação em Direito
Administrativo. Professor Convidado da Escola Superior da Advocacia e Secretário da Comissão
de Direito da Infraestrutura e Estudo das Concessões Públicas da Ordem dos Advogados do
Brasil, Seção Paraná.
233
Advogado. Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe
Bacellar. Professor de Direito Administrativo da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP. Secretário
da Comissão de Direito Econômico e Vice-Presidente da Comissão de Direito da Infraestrutura e
Estudo das Concessões Públicas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Paraná. Associado à
ADEPAR – Associação Paranaense de Direito e Economia.
234
Art. 21. Compete à União: (...) XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão
ou permissão: (...) c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária (...).
235
Confira-se, por todos, a posição de Marçal Justen Filho, para quem “(...) as atividades referidas
nos diversos incisos do art. 21 da CF/88 poderão ou não ser qualificados como serviços públicos,
232
123
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Evidentemente não se está aqui a afirmar que todas as atividades
relacionadas à exploração da infraestrutura aeroportuária no Brasil se subsumem
ao regime jurídico do serviço público, indistintamente.
Com o passar dos anos, o crescimento da demanda e a evolução tecnológica
passaram a exigir novos contornos da infraestrutura aeroportuária, agregandose indispensavelmente à estrutura essencial - terminais (cargas e passageiros),
pátios, pistas e integração entre modais de transportes - a disponibilização de
bens e serviços de natureza acessória e comercial, a exemplo de restaurantes,
hotéis, lojas, espaços de convenções, centros de negócios, entre outros.
De qualquer modo, é inegável que a realidade correlata à exploração
e ao regime jurídico da infraestrutura aeroportuária estatal236 no Brasil,
de acordo com as circunstâncias e segundo a estruturação que se verificar como necessária. (...)
Defende-se a tese de que a Constituição determinou que certas atividades se configuram como
serviço público se estiverem presentes certos pressupostos. Logo, sempre que ausentes ditos
requisitos, não haverá serviço público. Ou seja, se não houver ofertas de utilidades destinadas
à satisfação de necessidades direta e imediatamente relacionadas com a dignidade da pessoa
humana ou a finalidades políticas essenciais, será vedado submeter as atividades referidas ao
regime de direito público. Existirá apenas atividade econômica em sentido restrito, ainda que
subordinada ao regime de autorização. Em contrapartida, estando presentes os pressupostos
referidos, será obrigatória a configuração de um serviço público” (Teoria Geral das Concessões
de Serviço Público, Dialética, 2003, p. 44-46). Em sentido próximo, é indispensável referir
também a síntese crítica de Fernando Vernalha Guimarães sobre o tema. Em especial, quando
afirma que “(...) os grupos das atividades inscritas no art. 21, incs. X a XII, foram presumidos
pela Constituição como sendo serviços públicos, ainda que se trate de uma presunção relativa,
passível de ser afastada pela constatação de que tais não atendem a um núcleo de materialidade
inerente à noção constitucional do serviço público. (...) De todo modo, parece conclusivo que
a inscrição dessas atividades nos incs. do art. 21 importa presumi-las como aptas a receber a
qualificação de serviço público. Mas essa definição ficará a cargo do legislador infraconstitucional,
que decidirá acerca da conveniência política em tomar dada atividade por serviço público ou por
atividade econômica em sentido estrito (demarcando daí o seu regime quanto a aspectos como a
reserva de prestação e a gradação do controle estatal). (...) Logo, o serviço público será a atividade
econômica assim definida por lei, presumidamente essencial e relevante para a coletividade e que
revele (materialmente) a necessidade de reserva à titularidade estatal (Concessão de Serviço
Público, Saraiva, 2012, p. 73 e seguintes).
236
A delimitação desta exposição à infraestrutura aeroportuária estatal é necessária e não revela
qualquer obviedade. De acordo com o Código Brasileiro de Aeronáutica - CBA (Lei nº 7.565, de
19 de dezembro de 1986), define-se aeródromo como toda área destinada a pouso, decolagem e
movimentação de aeronaves. Os aeródromos podem ser classificados em civis (quando destinados
ao uso de aeronaves civis) e militares (quando destinados ao uso de aeronaves militares). Os
aeródromos civis podem ser públicos ou privados. Vale dizer, o regime jurídico da infraestrutura
aeroportuária no Brasil contempla aeródromos privados, cuja exploração comercial é vedada
e somente podem ser utilizados mediante permissão de seu proprietário. Nestes, a abertura ao
tráfego dá-se mediante processo de registro perante a autoridade de Aviação Civil, podendo
ser fechados a qualquer tempo pelo proprietário ou pela própria autoridade competente. Nas
definições legais do CBA, aeroportos são os aeródromos públicos dotados de instalações e
124
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
passada e presente,traduz-se em flagrante incapacidade gerencial do Poder
Público em prestar adequadamente as atividades correlatas, seja no plano
quantitativo ou qualitativo.
No que diz respeito à sua essência, tratando-se a exploração da infraestrutura
aeroportuária como uma atividade econômica definida como serviço público, a
titularidade desse serviço será sempre estatal237. A sua exploração, porém, pode
ocorrer diretamente pelo Estado, por seus entes descentralizados ou mediante
delegação - concessão ou permissão - à iniciativa privada.
No caso brasileiro, até recentemente prevaleceu a opção política de
exploração da infraestrutura aeroportuária de forma direta pela Administração
central e por seus entes descentralizados estatais.
No entanto, a marcha do tempo e as correlatas exigências de modernização
não foram acompanhadas pela opção política inicial. O crescimento populacional
e o progresso econômico implicaram um aumento sensível da demanda, o que
não foi acompanhado pelos necessários investimentos em melhora quantitativa
e qualitativa da infraestrutura aeroportuária estatal.
Paralelamente, o desenvolvimento tecnológico passou a exigir uma atuação
rápida, segura e eficiente na exploração dessa infraestrutura, o que não se fez
possível acompanhar adequadamente no modelo inicialmente concebido e adotado.
A ineficiência do modelo refletiu-se - e ainda reflete-se - em clara
situação de estrangulamento do sistema, acompanhada da perda crescente de
qualidade e eficiência dos serviços disponibilizados aos cidadãos, impondo-se
uma mudança de rumos.
Sob estas premissas, o presente ensaio pretende expor em breves notas
essenciais essa evolução do regime jurídico da exploração da infraestrutura
aeroportuária estatal no Brasil, em pleno curso, com os olhos voltados ao que passou,
ao que hoje se experimentae também àquilo que se espera em futuro próximo.
Nesta esteira, analisar-se-á a recente edição do Estatuto do Regime
Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), o qual trouxe novas regras para as
licitações e os contratos necessários à realização “de obras de infraestrutura e de
contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação
distantes até 350 km (trezentos e cinquenta quilômetros) das cidades sedes”, nos
facilidades para apoio de operações de aeronaves e de embarque e desembarque de pessoas e
cargas. Helipontos são os aeródromos destinados exclusivamente a helicópteros. Heliportos são os
helipontos públicos, dotados de instalações e facilidades para apoio de operações de helicópteros
e de embarque e desembarque de pessoas e cargas.
237
Embora todo serviço público seja titularizado pelo Estado - e aqui não se quer afirmar reserva
de exclusividade do Estado, pois a análise do tema dependeria da amplitude do conceito de serviço
público, é preciso sublinhar que nem todas as atividades estatais são caracterizadas como serviço
público. Confira-se, a respeito, Fernando Vernalha Guimarães (Concessão..., cit., p. 82-86).
125
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
termos do artigo 1º, inc. III, da Lei Federal nº 12.462, de 5 de agosto de 2012.238
O RDC tem o condão de direcionar os investimentos em infraestrutura
demandados para a perfeita execução dos grandes eventos desportivos que
se realizarão no Brasil em 2013 – Copa das Confederações da Federação
Internacional de Futebol Associação (FIFA) 2013 -, 2014 – Copa do Mundo
FIFA 2014 – e 2016 – Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016.239
Desse modo, pretende-se concluir que o estudo do regime jurídico da
exploração da infraestrutura aeroportuária estatal é salutar dada a realização
de eventos desportivos de grande magnitude no cenário nacional, como se
mostrará adiante.
1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES NO PLANO DO PASSADO
No Governo de Emílio G. Médici, em 12 de dezembro de 1972, editou-se
a Lei nº 5.862, com a qual o Poder Executivo foi autorizado a constituir uma
empresa pública sob a denominação de Empresa Brasileira de Infra-Estrutura
Aeroportuária - INFRAERO, vinculada ao Ministério da Aeronáutica.
Nos termos dessa legislação, na sua redação original, a INFRAERO
foi constituída com a finalidade de implantar, administrar, operar e explorar
Segundo a súmula esta lei “Institui o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC;
altera a Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispõe sobre a organização da Presidência
da República e dos Ministérios, a legislação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a
legislação da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero); cria a Secretaria de
Aviação Civil, cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão e cargos de Controlador de
Tráfego Aéreo; autoriza a contratação de controladores de tráfego aéreo temporários; altera as
Leis nos 11.182, de 27 de setembro de 2005, 5.862, de 12 de dezembro de 1972, 8.399, de 7 de
janeiro de 1992, 11.526, de 4 de outubro de 2007, 11.458, de 19 de março de 2007, e 12.350, de
20 de dezembro de 2010, e a Medida Provisória no 2.185-35, de 24 de agosto de 2001; e revoga
dispositivos da Lei no 9.649, de 27 de maio de 1998”. Destaques nossos.
239
Assim dispõe o artigo 1º da Lei do RDC: Art. 1o É instituído o Regime Diferenciado de
Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários
à realização: I - dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de
Projetos Olímpicos a ser definida pela Autoridade Pública Olímpica (APO); e II - da Copa das
Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação - Fifa 2013 e da Copa do Mundo
Fifa 2014, definidos pelo Grupo Executivo - Gecopa 2014 do Comitê Gestor instituído para definir,
aprovar e supervisionar as ações previstas no Plano Estratégico das Ações do Governo Brasileiro
para a realização da Copa do Mundo Fifa 2014 - CGCOPA 2014, restringindo-se, no caso de
obras públicas, às constantes da matriz de responsabilidades celebrada entre a União, Estados,
Distrito Federal e Municípios; III - de obras de infraestrutura e de contratação de serviços para
os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km (trezentos e cinquenta
quilômetros) das cidades sedes dos mundiais referidos nos incisos I e II; IV - das ações integrantes
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); V - das obras e serviços de engenharia no
âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS.
238
126
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
industrial e comercialmente a infraestrutura aeroportuária até então sob
responsabilidade do Ministério da Aeronáutica.
A constituição da INFRAERO deu-se justamente no período em que
se vislumbrava a construção de novos terminais de passageiros, bem como a
reforma de algumas bases aéreas até então existentes, vinculadas à Força Aérea
Brasileira. Vale dizer, num momento histórico de notável mudança no plano da
infraestrutura aeroportuária240.
Desde a criação da INFRAERO, portanto, a opção política revelou-se no
sentido de concentrar as competências de implantação, administração, operação
e exploração da infraestrutura aeroportuária estatal, notadamente em relação
aos aeródromos públicos dotados de instalações e facilidades para apoio de
operações de aeronaves e de embarque e desembarque de pessoas e cargas.
Em 1986, com a edição do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº
7.565, de 19 de dezembro), definiu-se o sistema aeroportuário como elemento
integrante da infraestrutura aeronáutica, sendo constituído pelo conjunto de
aeródromos brasileiros, com todas as pistas de pouso, pistas de táxi, pátio de
estacionamento de aeronave, terminal de carga aérea, terminal de passageiros e
as respectivas facilidades (art. 26, caput).
É importante sublinhar que a edição desses diplomas legais se deu sob
a égide da Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1, de 17 de
outubro de 1969, que em seu art. 8º, XV, c, dispunha competir à União explorar,
diretamente ou mediante autorização ou concessão, a navegação aérea, e, em
seu art. 163 disciplinava ser facultada a intervenção no domínio econômico e o
monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei federal, quando
indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não
possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de
iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais.
A título de ilustração, veja-se que o Aeroporto do Galeão, hoje denominado Antonio Carlos
Jobim, tem sua história iniciada como base de antiga aviação naval, em 1924, com a instalação
da escola de aviação, sendo o terminal de onde saíram os primeiros Correios Aéreos Navais, em
1935. A partir de 1945, passou a ser oficialmente um Aeroporto Internacional, uma vez que os
antigos Hidroaviões da Pan American e da Condor, além de outras companhias, foram pouco a
pouco substituídos nas rotas internacionais por aviões maiores, dotados de rodas, que precisavam
de pistas em terra para pouso e decolagem. Tratava-se, porém, de instalação manifestamente
precária. Em 1950, o local para embarque e desembarque transferiu-se para onde hoje funcionam
escritórios de companhias cargueiras. Esse terminal, com diversas ampliações ao longo dos anos,
foi substituído pelo atual Terminal Número 1, que agregou o que de mais atual havia na época de
sua inauguração, em 20 de janeiro de 1977. O Aeroporto de Guarulhos, hoje denominado André
Franco Montoro, foi inaugurado em 1985, ou seja, pouco mais de uma década após a criação da
INFRAERO (informações disponíveis no sítio da INFRAERO, acessível em www.infraero.gov.br/
index.php/br/aeroportos.html. Acesso em 09 de novembro de 2012).
240
127
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Nesse sentido, à época, tinha-se que os aeródromos públicos seriam
construídos, mantidos e explorados diretamente pela União ou por empresas
especializadas da Administração Federal Indireta ou suas subsidiárias,
vinculadas ao Ministério da Aeronáutica, ou mediante convênio com os Estados
ou Municípios, ou ainda por concessão ou autorização (Lei nº 7.565/86, art. 36, I
a IV), estabelecendo o próprio Código Brasileiro de Aeronáutica - CBA, em seu
art. 39, §2º, que a atividade de operação e exploração de aeroportos e heliportos,
bem como dos seus serviços auxiliares, estava caracterizada como monopólio
da União, em todo o Território Nacional, ou das entidades da Administração
Federal Indireta referidas no art. 36.
Importante referir, também, que o CBA definia que os aeroportos
deveriam compreender as áreas destinadas à sua própria administração, ao
pouso, decolagem, manobra e estacionamento de aeronaves, ao atendimento
e movimentação de passageiros, bagagens e cargas, aos concessionários
ou permissionários dos serviços aéreos, ao terminal de carga aérea, aos
órgãos públicos que, por disposição legal, devam funcionar nos aeroportos
internacionais, ao público usuário e estacionamento de seus veículos, aos
serviços auxiliares do aeroporto ou do público usuário e ao comércio apropriado.
Com a Constituição de 1988, alterou-se a previsão constitucional para
outorgar à União não apenas a competência sobre a navegação aérea, mas
também, expressamente, sobre a infraestrutura aeroportuária (art. 21, XII,
c). Manteve-se, porém, a possibilidade da sua exploração de forma direta ou
mediante concessão, permissão ou autorização.
A Lei de constituição da INFRAERO foi recepcionada pela nova Carta
da República, bem como restou parcialmente recepcionado o Código Brasileiro
de Aeronáutica.
O passar do tempo, no entanto, trouxe consigo um aumento quantitativo
e qualitativo das atividades enquadradas na moldura da competência legal
outorgada à INFRAERO, o que não foi acompanhado do indispensável
planejamento estratégico e dos necessários investimentos em pessoal, tecnologia
e infraestrutura.
É relevante observar que com o passar dos anos a INFRAERO manteve
sob sua competência apenas os principais aeroportos do país, culminando por
administrar, operar e explorar 66 aeroportos (aeródromos públicos) no país, os
quais, é verdade, representam aproximadamente 97% do movimento nacional.
No entanto, segundo informações oficiais da própria INFRAERO, há
atualmente 720 (setecentos e vinte) aeródromos públicos no Brasil, além de 1.939
aeródromos particulares. Todos esses aeródromos públicos que não estão sob
gestão da INFRAERO são administrados e operados por Estado e Municípios,
através de convênios firmados com a União, através do Comando da Aeronáutica.
128
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Em 2005, com a Lei nº 11.182, de 27 de setembro, houve a criação
da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, entidade integrante da
Administração Pública Federal indireta, submetida a regime autárquico especial,
vinculada ao Ministério da Defesa, com prazo de duração indeterminado,
atribuindo-se-lhe competências de regulação e fiscalização das atividades de
aviação civil e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária.
Entre as competências legalmente outorgadas, atribuiu-se à ANAC o dever
de observar e implementar as orientações, diretrizes e políticas estabelecidas
pelo Governo federal, especialmente no que se refere ao estabelecimento
do modelo de concessão de infraestrutura aeroportuária, a ser submetido ao
Presidente da República, bem como conceder ou autorizar a exploração
da infraestrutura aeroportuária, no todo ou em parte, e estabelecer o regime
tarifário da exploração da infraestrutura aeroportuária, no todo ou em parte.
Vale dizer, a própria criação do ente regulador veio acompanhada de um
comando normativo intrínseco sobre a orientação a ser adotada na revisão do
modelo de gestão da infraestrutura aeroportuária até então vigente, definindo-se
a autarquia especial como poder concedente241.
Essa revisão de modelo fazia-se imperativa. A ineficiência do modelo
concebido à luz da concentração das competências de administração, operação
e exploração na INFRAERO está traduzida em alguns números que falam por si.
Entre 2003 e 2010, o Brasil apresentou um crescimento médio anual
no número de passageiros de 10,2%. Se considerarmos apenas o biênio
2009/2010, o crescimento foi de 20,4%. Em 2009, o país registrou 128 milhões
de passageiros e, em 2010, esse fluxo passou para 154 milhões242.
Entende-se, particularmente, que a escolha da autarquia reguladora para funcionar como poder
concedente não é a melhor opção legislativa, pois há flagrante risco de desnaturar o exercício da
função regulatória sob as indispensáveis marcas da independência e equidistância em relação ao
serviço concedido.
242
Campos Neto, Carlos Alvares da Silva e De Souza, Frederico Hartmann. Nota Técnica:
Aeroportos no Brasil: investimentos recentes, perspectivas e preocupações. IPEA - Diretoria
de Estudo Setoriais. Abril/2011. Os números são confirmados pelo estudo realizado pelo
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, disponível em http://www.
bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/empresa/pesquisa/
chamada3/capitulo3.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2012. De acordo com o Anuário
Estatístico Operacional da INFRAERO, exercício 2011, o movimento em 2010 foi de 155.363.964
passageiros, o que também se aproxima do estudo aqui utilizado como parâmetro (disponível em
http://www.infraero.gov.br/images/stories/Estatistica/anuario/ anuario_2011_2.pdf. Acesso em
09 de novembro de 2012).
241
129
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Movimento de aviões e de passageiros nos
aeroportos brasileiros
ANO
2003
AVIÕES
1,77
PASSAGEIROS
71,22
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
1,79
1,84
1,92
2,04
2,13
2,29
2,65
82,71
96,08
102,19
110,57
113,26
128,14
154,32
(em milhões de unidades)
O aumento do número de aeronaves e passageiros, igualmente
acompanhado pelo incremento do transporte de carga aérea (com exceção da
redução sazonal ocorrida entre 2007 e 2009 devido à crise econômica mundial),
em si não representa um problema. A questão está no acompanhamento
quantitativo e qualitativo proporcional da infraestrutura aeroportuária.
Neste ponto, impõe-se recorrer à taxa de ocupação dos aeroportos
do país, número que se obtém com a divisão da quantidade de passageiros
movimentados pela capacidade operacional nominal de cada aeroporto.
À luz de critérios técnicos mundialmente reconhecidos243, considerase que o limite de eficiência operacional de um aeroporto equivale à taxa de
ocupação igual a 80% (0,8). A partir deste conceito, é possível separar os
aeroportos em três grupos situacionais:
·Situação Adequada: taxa de ocupação ≥80%
·Situação Preocupante: taxa de ocupação >80%, mas ≤100%
·Situação Crítica: apresentam taxa de ocupação > 100%
Valendo-se dessas premissas, o já referido estudo técnico do IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, fundação pública federal vinculada à
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, analisou a taxa
de ocupação dos 20 principais aeroportos brasileiros para o biênio 2009-2010.
As conclusões são alarmantes. Veja-se a tabela a seguir, extraída do
referido estudo:
Graham, Anne. Managing airports: an international perspective. London: Routledge, 2011.
243
130
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Situação dos 20 principais aeroportos brasileiros, conforme taxa
de ocupação (2009-2010)
SITUAÇÃO ADEQUADA (4)
SITUAÇÃO ADEQUADA (3)
Galeão - RJ
Salvador - BA
Recife - PE
Santos Dumont - RJ
Galeão - RJ
Salvador - BA
Recife - PE
SITUAÇÃO PREOCUPANTE (5)
SITUAÇÃO PREOCUPANTE (5)
Curitiba - PR
Manaus - AM
Belém - PA
Natal - RN
Maceió - AL
Curitiba - PR
Belém - PA
Santos Dumont - RJ
SITUAÇÃO CRÍTICA (11)
SITUAÇÃO CRÍTICA (14)
Guarulhos - SP
Congonhas - SP
Brasília - DF
Confins - MG
Porto Alegre - RS
Fortaleza - CE
Viracopos - SP
Vitória - ES
Florianópolis -SC
Goiânia - GO
Cuiabá - MT
Guarulhos - SP
Congonhas - SP
Brasília - DF
Confins - MG
Porto Alegre - RS
Fortaleza - CE
Viracopos - SP
Manaus - AM
Florianópolis -SC
Vitória - ES
Natal - RN
Goiânia - GO
Cuiabá - MT
Maceió - AL
Os números são ainda mais preocupantes porque o estudo identifica que a
taxa média de ocupação em cada categoria, entre 2009 e 2010, apresentou sensível
aumento, aproximando-se cada categoria daquela imediatamente superior. Veja-se:
131
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Taxas de ocupação dos 20 principais aeroportos brasileiros
2009
2010
SITUAÇÃO
DO
AEROPORTO
TAXA MÉDIA
DE
OCUPAÇÃO
NÚMEROS
DE
AEROPORTOS
TAXA MÉDIA
DE
OCUPAÇÃO
NÚMEROS
DE
AEROPORTOS
Adequada
Preocupante
Crítica
64,63%
89,46%
164,26%
4
5
11
20
71,30%
94,40%
187,15%
3
3
14
20
TOTAL
Fonte: Infraero / Elaboração: Ipea
Desse modo, uma simples análise superficial dos dados estatísticos do
passado da infraestrutura aeroportuária, aliada à percepção individual que cada
passageiro é capaz de apresentar quando faz uso do sistema vigente, conduz
à conclusão de que urge a construção de um novo modelo institucional que
equacione o aprimoramento da infraestrutura com uma sensível melhoria no
serviço de navegação aérea, de modo a garantir um ambiente favorável aos
usuários e aos prestadores do serviço.
2. DO PASSADO AO PRESENTE: ALGUMAS ALTERNATIVAS POSSÍVEIS
Em face das premissas de enquadramento constitucional do serviço em
questão, algumas possibilidades se apresentavam, e ainda se apresentam ao
Governo brasileiro, com intuito de solucionar adequadamente os problemas
inerentes à administração, operação e exploração da infraestrutura aeroportuária.
A primeira delas seria uma verdadeira reconstrução quantitativa e
qualitativa da INFRAERO, com vultosos investimentos públicos, contratação
de pessoal e aprimoramento dos mecanismos de gestão pública aeroportuária,
refletidos na gestão empresarial da empresa pública, valendo-se da prerrogativa
estatal de exploração direta da infraestrutura aeroportuária.
Veja-se, todavia, que embora a INFRAERO tenha um plano de
investimentos de R$1,4 bilhão ao ano para o período de 2011 a 2014,
contemplando-se os 13 maiores aeroportos brasileiros e com os olhos voltados
para a Copa do Mundo de 2014, e mesmo que isso represente mais que o triplo
da média anual investida entre 2003 e 2010 pela empresa (R$430 milhões/ano),
tem-se como inegável a baixíssima eficiência na execução dos programas de
investimentos (aproximadamente 44% dos recursos previstos)244.
Confira-se, a respeito, o estudo contido na Nota Técnica do IPEA antes referido.
244
132
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Além disso, é importante observar que o movimento global anual em 2011
foi registrado em 179.949.252 passageiros, segundo a própria INFRAERO245.
Para administrar, operar e explorar aeroportos com tal movimento, a INFRAERO
possui 13.621 empregados detentores de cargo efetivo em agosto de 2011 e
14.275 em agosto de 2012. Adicionalmente, a empresa pública apresentava 33
empregados contratados exclusivamente para exercer cargo em comissão em
agosto de 2011 e 28 em agosto de 2012246.
Paralelamente aos empregados efetivos e comissionados, a INFRAERO
mantém terceirização de diversos serviços que lhe cabe prestar, mediante
contratos que totalizam 27.200 empregados terceirizados247.
A INFRAERO conta, pois, aproximadamente com 2 empregados
terceirizados para cada empregado efetivo ou comissionado, com uma média
aproximada de 1 empregado para cada 4.340 passageiros movimentados.
Ilustrativamente, veja-se que o aeroporto de Frankfurt, Alemanha,
administrado pela empresa FRAPORT AG e reconhecido como exemplo de
eficiência no âmbito da infraestrutura aeroportuária mundial, figura como o 9º
na lista global dos aeroportos mais movimentados com aproximadamente 53
milhões de passageiros no ano de 2010248.
A referida empresa, FRAPORT AG, contou com 19.792 empregados
efetivos no ano de 2010, do que resulta a média aproximada de 1 empregado
para cada 2.678 passageiros movimentados249.
Também a título ilustrativo, veja-se que entre os três aeroportos com
maior movimento na Grã-Bretanha - Heathrow (Londres), Gatwick (Londres) e
Manchester - a média de empregados diretos por passageiro é de 1/1.016, 1/755
e 1/847, respectivamente250.
Outro ponto que demonstra manifesta ineficiência da INFRAERO
no desempenho das competências que lhe foram outorgadas diz respeito à
exploração das receitas não-tarifárias, ou seja, a exploração comercial dos
aeroportos sob sua administração. Nos exercícios de 2010 e 2011, essas receitas
Confira-se o Anuário Estatístico Anual 2011, disponível em http://www.infraero.gov.br/
images/stories/Estatistica/anuario/anuario_2011_2.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2012.
246
Informação disponível em http://www.infraero.gov.br/index.php/br/empregados/quadro-depessoal.html. Acesso em 09 de novembro de 2012.
247
Informação disponível em http://www.infraero.gov.br/index.php/br/institucional/a-infraero.
html. Acesso em 09 de novembro de 2012.
248
Confira-se os números disponíveis em http://www.aci.aero/aci/aci/file/Press%20Releases/
2011/PR_01082011_2010_WATR.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2012.
249
Informação disponível em http://www.frankfurt-airport.com/content/frankfurt_airport/
en/misc/container/facts-and-figures-011/jcr:content.file/facts%20and%20figures%202011.pdf.
Acesso em 09 de novembro de 2012.
250
Graham, Anne. Managing airports: an international perspective. Routledge, p. 278.
245
133
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
comerciais representaram valor não superior a 18% sobre a receita total da
INFRAERO, o que está muito aquém do potencial de exploração da atividade251.
Não se pode deixar de mencionar, ainda, as distorções decorrentes da
destinação de recursos auferidos pela INFRAERO ao Tesouro Nacional e ao
Comando da Aeronáutica, impedindo-se, com isto, a destinação adequada dos
recursos arrecadados para a finalidade correlata.
A transferência dos recursos ao Tesouro Nacional e ao Comando da
Aeronáutica não seria um problema se eles retornassem ao setor aeroportuário,
por meio de investimentos públicos na infraestrutura aeroportuária. Mas não é
isso que acontece. O Tesouro Nacional faz aportes de capital na INFRAERO
e dela recebe tanto dividendos quanto a transferência das receitas que são
destinadas ao Comando da Aeronáutica ou à amortização da dívida pública.
Somando os dividendos com as transferências ao Tesouro Nacional e à
Aeronáutica, verifica-se que a INFRAERO repassou ao Governo Federal, no
período entre 2002 e 2010, aproximadamente R$11,5 bilhões. Deduzindo os
aportes de capital feitos na empresa, o volume líquido transferido ao Governo
foi de R$ 10,3 bilhões.
Os recursos repassados ao Tesouro Nacional são destinados à amortização
da dívida pública federal, nos termos das Leis no 9.825/1999 e 10.744/2003.
Os recursos repassados ao Comando da Aeronáutica, nos termos do art.
1º, §1º, da Lei nº 7.920/89, são destinados à “aplicação em melhoramentos,
reaparelhamento, reforma, expansão e depreciação de instalações aeroportuárias
e da rede de telecomunicações e auxílio à navegação aérea”.
Se o dinheiro transferido ao Comando da Aeronáutica tivesse sido
efetivamente investido nessas finalidades, teríamos o significativo valor
de R$ 7,3 bilhões adicionais com destinação específica para investimentos
em infraestrutura aeroportuária, o que não se verifica dos números oficiais
divulgados a título de investimentos realizados.
Evidencia-se, portanto, que a INFRAERO serve à realização do superávit
primário do Governo Federal, não havendo planejamento com objetivo central
no aprimoramento quantitativo e qualitativo da infraestrutura aeroportuária.
A estrutura tarifária e demais receitas auferidas garante recursos vultosos
ao setor aeroportuário, mas o atual sistema de partilha não permite a destinação
desses valores em volume suficiente à finalidade específica de aprimorar a
respectiva infraestrutura.
A realidade e as necessidades evidenciadas apontaram, e ainda apontam,
para outros rumos.
Informações financeiras e contábeis disponíveis em http://www.infraero.gov.br/images/
stories/Infraero/Contas/Processos/2011/2_relatorio_gestao_infraero_2011_298_445.pdf. Acesso
em 09 de novembro de 2012.
251
134
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Entre as demais soluções possíveis252, a opção política de Governo
caminhou no sentido da utilização do instituto jurídico-administrativo da
concessão para atribuir à iniciativa privada a gestão e o aprimoramento
quantitativo e qualitativo dos aeroportos até hoje sob controle da INFRAERO.
Pois bem. Esse caminho teve seus primeiros passos ao aeroporto de
com o aeroporto de São Gonçalo do Amarante/RN, próximo a Natal, incluído
no Plano Nacional de Desestatização (PND) pelo Decreto nº 6.373, de 14 de
fevereiro de 2008253, tendo sido designada a Agência Nacional de Aviação
À luz do Direito brasileiro, poder-se-ia cogitar da privatização da INFRAERO, da abertura
do seu capital ao mercado ou da transferência do serviço à iniciativa privada. Neste último caso,
seja através de concessão comum, seja através das modalidades de parceria público-privada
previstas na Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004. No Direito estrangeiro, a situação não
é muito distinta, embora dependa da leitura individualizada de cada ordenamento jurídico.
Anne Graham, em obra específica sobre o tema, descreve a situação enfrentada pela mudança
de paradigma em aeroportos ao redor do mundo, identificando as espécies de solução possíveis
para a “privatização” em sentido lato da infraestrutura aeroportuária: “Airports are generally
seen as attractive organizations to investors, for a number of reasons. Many of the airports,
particularly the major ones, face limited competition, both from other airports and other modes
of transport. There are very high barriers to entry within the industry due to the large capital
investment needed and the difficulties in finding appropriate, convenient locations where airport
development is allowed. However risks clearly exist as well, such as political interference in the
form of airport regulation and control over airport development and the changing nature of
the airline industry with developments such as desregulation and greater collaboration through
alliances. Airport privatization can occur in different ways (Carney and Mew, 2003). The types of
privatization models broadly fall into five categories: 1. Share flotation. 2. Trade sale. 3. Concession.
4. Project finance privatization. 5. Management contract. The selection of the most appropriate
type of privatization involves a complex decision-making process which will ultimately depend
on the government’s objectives in seeking privatization. For example, is the type of privatization
required lo lessen the burden on public sector finances, generate funds from the airport sale,
increase share-ownership or encourage greater efficiency, competition or management expertise
within the airport sector? In reaching a decision, factors such as the extent of control which the
government wishes to maintain; the quality and expertise of the current airport operators; further
investment requirements and the financial robustness of the airports under consideration all have
to be taken into account” (Managing airports..., cit., p. 25).
253
O Decreto nº 6.373/2008 foi editado com fundamento na Lei nº 9.491/1997, a qual disciplinou
o Programa Nacional de Desestatização – PND com os seguintes objetivos fundamentais: I reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades
indevidamente exploradas pelo setor público; II - contribuir para a reestruturação econômica
do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública
líquida; III - permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser
transferidas à iniciativa privada; IV - contribuir para a reestruturação econômica do setor privado,
especialmente para a modernização da infra-estrutura e do parque industrial do País, ampliando
sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia,
inclusive através da concessão de crédito; V - permitir que a Administração Pública concentre
seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução
das prioridades nacionais; VI - contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através
252
135
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Civil - ANAC como responsável pela execução e acompanhamento do processo
de desestatização da infraestrutura.
Esse aeroporto teve seus estudos de viabilidade elaborados entre fins de
2008 e julho de 2010, estabelecendo-se o modelo de concessão pelo Decreto nº
7.205, de 10 de junho de 2010.
Explica-se o caso do aeroporto de São Gonçalo do Amarante/RN - ASGA,
primeiro paradigma dos novos rumos adotados pelo Governo federal.
Tendo em vista o estrangulamento do aeroporto Augusto Severo, em
Natal/RN, e a intenção do Ministério da Defesa em transformá-lo em Base
Aérea Militar, após 12 anos de altos investimentos iniciais da INFRAERO na
construção de um aeroporto alternativo àquele primeiro, editou-se o referido
Decreto nº 6.373/2008.
Pelo Decreto nº 7.205/2010, estabeleceu-se que o modelo de concessão
aplicável à exploração do ASGA seria aquele delineado no art. 8º, inciso XXIV,
da Lei nº 11.182, de 27 de setembro de 2005, nas disposições aplicáveis da Lei
nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986, e da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de
1995. Ou seja, concessão comum, sendo a ANAC indicada para atuar como
poder concedente.
Procedeu-se, então, à elaboração de edital de concessão do ASGA, o
qual, submetido à apreciação do Tribunal de Contas da União em processo
de acompanhamento nº 034.023/2010-0), sob a relatoria do Ministro Valmir
Campelo, restou aprovado pelo Plenário em sessão ocorrida em 13 de abril
de 2011, com pequenas ressalvas, estando a decisão estampada no Acórdão
939/2011, DOU 20.04.2011.
E como funciona este modelo?
No caso, por se tratar de aeroporto que já teve investimentos iniciais
da INFRAERO, o objeto da concessão é a construção parcial, manutenção e
exploração do ASGA.
Pelo modelo aprovado, a concessão da infraestrutura aeroportuária
deveria dar-se por licitação pública na modalidade de leilão, tendo por critério
de julgamento o maior valor da outorga a ser oferecido pelo proponente ao
poder concedente.
O modelo contemplou a realização do leilão com a inversão de fases. Ou
seja, primeiro a abertura e classificação das propostas econômicas, incluindose fase de lances sucessivos efetuados de viva-voz (diferença de até 15% ou 3
melhores classificados). Posteriormente, a fase de habilitação.
Poderiam participar do leilão pessoas jurídicas brasileiras ou estrangeiras,
entidades de previdência complementar e fundos de investimentos, isoladamente
do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das
empresas que integrarem o Programa.
136
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ou em consórcio, sempre com compromisso de constituição se sociedade de
propósito específico – SPE.
Restou vedada a participação de empresas aéreas, suas controladoras,
controladas e coligadas isoladamente, podendo participar em consórcio desde
que limitada a 10% e sem participação na administração da SPE.
O valor previsto dos investimentos corresponde a R$ 650.290.000,00
durante todo o contrato e o prazo da concessão é de 28 anos, prevista a prorrogação
apenas em hipótese de necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro.
A remuneração do concessionário se dará por receitas tarifárias (tarifas
aeroportuárias com valores máximos fixados pelo poder concedente e revisão
ordinária a cada 5 anos) e receitas alternativas (receitas complementares ou
acessórias decorrentes da exploração comercial do aeroporto).
É preciso observar que já nesse primeiro modelo a intervenção do TCU
se mostrou de fundamental importância. Entre outros tantos aspectos técnicos
corrigidos e recomendados pelo TCU, veja-se que a Corte de Contas elevou
os valores mínimos de outorga de R$ 3 milhões inicialmente definidos pelos
órgãos e entidades técnicos do Governo Federal para R$ 51 milhões - correção
de 1700%, ou seja, 17 vezes. E no leilão, realizado em agosto de 2011, o
consórcio vencedor ofereceu R$ 170 milhões.
O contrato de concessão foi assinado em novembro de 2011.
3. DO PRESENTE AO FUTURO: PERSPECTIVAS, DEFINIÇÕES E INDEFINIÇÕES
Para analisar o caminho que agora se inicia a trilhar com os olhos voltados
ao futuro, é preciso identificar e compreender as estruturas administrativas
que atualmente detêm competências de gestão sobre a navegação aérea e a
infraestrutura aeroportuária.
No plano da Administração Direta, tem-se em primeira linha o Ministério
da Defesa, como resultado de desconcentração hierárquica e material.
No entanto, através da Medida Provisória nº 527, de 18 de março de 2011,
posteriormente convertida na Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011 (Lei que
instituiu o Regime Diferenciado de Contratações - RDC), houve a transferência
das competências referentes à aviação civil e infraestrutura aeroportuária para
uma reestruturada Secretaria de Aviação Civil, órgão subordinado à Presidência
da República254.
As competências fundamentais da Secretaria de Aviação Civil estão assim delineadas: I formular, coordenar e supervisionar as políticas para o desenvolvimento do setor de aviação
civil e das infraestruturas aeroportuária e aeronáutica civil, em articulação, no que couber, com
o Ministério da Defesa;II - elaborar estudos e projeções relativos aos assuntos de aviação civil
e de infraestruturas aeroportuária e aeronáutica civil e sobre a logística do transporte aéreo e
254
137
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
No âmbito da Administração Indireta, tem-se a INFRAERO – Empresa
Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária, empresa pública federal atualmente
vinculada à Secretaria de Aviação Civil, e não mais ao Ministério da Aeronáutica
como antigamente, a quem compete hoje implantar, administrar, operar e
explorar industrial e comercialmente a infraestrutura aeroportuária que lhe for
atribuída pela Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República, nos
termos do art. 2º da Lei nº 5.862, de 12 de dezembro de 1972 (Lei de autorização
da constituição da empresa).
Também na Administração Indireta, não se pode olvidar do relevante
papel desempenhado pela ANAC – Agência Nacional da Aviação Civil, entidade
de regulação e fiscalização das atividades de aviação civil e de infraestrutura
aeronáutica e aeroportuária, agora também vinculada à Secretaria da Aviação
Civil, conforme redação do Decreto nº 7.453, de 18 de março de 2011.
Atualmente, portanto, não obstante as competências legalmente
outorgadas à INFRAERO e à ANAC, percebe-se uma evidente concentração de
competências na reestruturada Secretaria da Aviação Civil, órgão subordinado à
Presidência da República, ao qual está vinculado o recém criado Fundo Nacional
de Aviação Civil (FNAC), consoante previsto no art. 63 da Lei nº 12.462/2011,
composto pelo adicional tarifário previsto no art. 1º da Lei nº 7.920, de 12 de
dezembro de 1989, pelos recursos referidos no art. 1º da Lei nº 9.825, de 23 de
agosto de 1999, pelos valores devidos como contrapartida à União em razão das
outorgas de infraestrutura aeroportuária, pelos rendimentos de suas aplicações
financeiras e por outros que lhe forem atribuídos.
Por expressa previsão legal, os recursos do FNAC devem ser aplicados
exclusivamente no desenvolvimento e fomento do setor de aviação civil e das
infraestruturas aeroportuária e aeronáutica civil, sendo possível a sua aplicação
no desenvolvimento, na ampliação e na reestruturação de aeroportos concedidos,
desde que tais ações não constituam obrigação dos concessionários, conforme
estabelecido no contrato de concessão.
do transporte intermodal e multimodal, ao longo de eixos e fluxos de produção em articulação
com os demais órgãos governamentais competentes, com atenção às exigências de mobilidade
urbana e acessibilidade;III - formular e implementar o planejamento estratégico do setor,
definindo prioridades dos programas de investimentos;IV - elaborar e aprovar os planos de
outorgas para exploração da infraestrutura aeroportuária, ouvida a Agência Nacional de Aviação
Civil (ANAC);V - propor ao Presidente da República a declaração de utilidade pública, para fins
de desapropriação ou instituição de servidão administrativa, dos bens necessários à construção,
manutenção e expansão da infraestrutura aeronáutica e aeroportuária;VI - administrar recursos
e programas de desenvolvimento da infraestrutura de aviação civil;VII - coordenar os órgãos e
entidades do sistema de aviação civil, em articulação com o Ministério da Defesa, no que couber;
eVIII - transferir para Estados, Distrito Federal e Municípios a implantação, administração,
operação, manutenção e exploração de aeródromos públicos, direta ou indiretamente.
138
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Nesse quadro de reestruturação administrativa e remanejamento
de competências, após a implantação do primeiro modelo de concessão
aeroportuária no aeroporto de São Gonçalo do Amarante/RN, o Governo
Federal editou o Decreto nº 7.531, de 21 de julho de 2011, com o qual foram
incluídos no Programa Nacional de Desestatização - PND, para os fins da Lei
nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, o Aeroporto Internacional Governador
André Franco Montoro, localizado no Município de Guarulhos/SP, o Aeroporto
Internacional de Viracopos, localizado no Município de Campinas/SP, e o
Aeroporto Internacional Presidente Juscelino Kubitschek, localizado em
Brasília, Distrito Federal.
Pelo mesmo Decreto, a ANAC foi declarada responsável por executar e
acompanhar o processo de desestatização dos serviços públicos, observada a
supervisão da Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República.
O novo modelo adotado sofreu ajustes em relação àquele adotado
inicialmente no ASGA.
Esses três aeroportos operam atualmente 30% dos passageiros, 57%
das cargas e 19% das aeronaves do tráfego aéreo brasileiro. Neles, o Governo
Federal definiu que as concessões deveriam ser feitas por meio de Sociedades
de Propósito Específico (SPEs), constituídas por investidores privados, com
participação obrigatória de até 49% da Empresa Brasileira de Infraestrutura
Aeroportuária - INFRAERO. Cada SPE, empresa privada, ficará responsável por
novos investimentos e pela gestão desses aeroportos (ampliação, manutenção
e exploração). Como acionista relevante das SPEs, a INFRAERO participará
das principais decisões da companhia, havendo a obrigação da celebração de
acordo de acionistas.
De acordo com as regras definidas, seria vencedor no leilão quem desse
o maior valor de contribuição ao sistema. O leilão dos três aeroportos ocorreu
de forma simultânea na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Um mesmo
grupo econômico, isoladamente ou em consórcio, somente poderia ser vencedor
de um único aeroporto. Além disso, uma empresa não poderia participar de mais
de um consórcio licitante. A proposta era estimular a concorrência e permitir,
posteriormente, a comparação de padrões operacionais entre aeroportos,
melhorando a prestação de serviço aos usuários.
As definições feitas pelo Governo Federal foram objeto de apreciação
pelo Tribunal de Contas da União em dezembro de 2011, através dos Acórdãos
nº 3232/11, 3233/11 e 3234/11 - Plenário255.
Nesses julgamentos, a Corte de Contas aprovou com ressalvas o primeiro
estágio de fiscalização da outorga de concessão, estabelecendo condicionantes
Íntegra dos acórdãos disponíveis em http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/ TCU/
jurisprudencia. Acesso em 09 de novembro de 2012.
255
139
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
à publicação dos editais.Entre eles, a adequação dos valores mínimos
estabelecidos para a outorga.
O papel do TCU mostrou-se relevantíssimo e, ademais, revelou a
incompetência dos entes governamentais envolvidos no planejamento do
processo de concessão.
De fato. No caso do aeroporto de Guarulhos/SP, o TCU determinou
a elevação do valor mínimo para a concessão de R$ 2,3 bilhões para R$ 3,8
bilhões, estabelecida pelo prazo de 20 anos, o que decorreu da reavaliação da
(super) estimativa dos investimentos alocados para a futura concessionária.
O TCU determinou mudanças ainda maiores nos outros dois aeroportos.
Em Viracopos/SP, cuja concessão foi licitada com prazo de 30 anos, o valor
mínimo passou de R$ 521 milhões para R$ 1,7 bilhão (acréscimo de 234%).
Em Brasília/DF, cuja concessão foi licitada com prazo de 25 anos, a elevação do
valor mínimo foi de 907%, de R$ 75 milhões para R$ 761 milhões.
A soma dos valores mínimos de outorga das três concessões passou de
R$ 2,9 bilhões para R$ 6,2 bilhões, um aumento de mais de 100%.
São inadmissíveis estas diferenças e não se pode creditá-las a meras
incorreções ou equívocos. Errar em bilhões é algo que não se coaduna com os
mínimos padrões de planejamento que se exige da Administração Pública.
O leilão desses aeroportos ocorreu em 06 de fevereiro de 2012 e
arrecadou 24,5 bilhões, com ágio de 348% sobre o valor mínimo das outorgas.
Esses valores correspondem ao valor presente estimado das receitas tarifárias
e não-tarifárias estimadas para todo o prazo da concessão. Além disso, a
concessionária deverá pagar ao poder concedente (ANAC) uma contribuição
fixa anual definida em contrato e outra contribuição variável incidente sobre
excedente de faturamento bruto anual.
Os contratos de concessão foram firmados em 14 de junho de 2012, todos
eles com cláusula compromissória que elege a arbitragem, em Brasília/DF,
como modo de resolução de eventuais conflitos.
Com essas concessões, a INFRAERO remanesce com a responsabilidade
pela administração, operação e exploração de 63 aeroportos (aeródromos públicos)
que contemplam aproximadamente 67% do movimento global de passageiros.
A partir daí, no plano das concessões aeroportuárias, o enfoque no futuro
se desdobra na análise de questões que surgirão dos contratos já celebrados,
bem como na análise de alterações que deverão ser feitas pelo Governo Federal
no modelo que será adotado em novas concessões que estão sob planejamento.
Nas duas situações de análise, entende-se que há uma situação comum
que deve ser objeto de altíssima preocupação. Trata-se da participação da
INFRAERO nas SPEs e as correlatas consequências de ordem prática e jurídica.
É importante observar que em todas as avaliações feitas pelo TCU em
relação aos modelos adotados, é reiterada a preocupação da Corte de Contas e
140
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
a recomendação de que por ocasião de futuras delegações seja examinada a real
necessidade de participação da INFRAERO.
A recomendação é oportuna e o modelo deve ser revisto. Não há
justificativa plausível para manter a INFRAERO com a participação definida
nos modelos já definidos e implantados, notadamente se os resultados auferidos
pela empresa pública, na condição de sócia das SPEs, estiverem submetidos ao
sistema de partilha de recursos que beneficia o Tesouro Nacional e o Comando
da Aeronáutica, sem destinação específica à infraestrutura aeroportuária dos
demais aeroportos brasileiros.
Além disso, uma visão do futuro, mas com os olhos atentos ao passado,
recomenda que a atuação do TCU seja contínua, não apenas em relação às novas
concessões, mas também sobre os contratos já celebrados, pois os exemplos
vivenciados demonstram que a ausência da intervenção daquela Corte seria
catastrófica na implementação dos modelos adotados.
Em relação aos contratos já celebrados, especialmente aqueles que
dizem respeito aos três maiores aeroportos em funcionamento, as principais
controvérsias decorrem de uma confusão de regimes jurídicos que se vislumbra
em diversas situações definidas contratualmente.
Vejam-se alguns exemplos.
Os três contratos firmados para concessão dos aeroportos de Guarulhos/
SP, Viracopos/SP e Brasília/DF definem um plano de transferência operacional
(PTO), incluindo plano de transição da gestão do aeroporto, plano de transição
dos recursos humanos e plano de comunicação e informação ao público.
Entre os estágios desse plano de transição, há um período de preparação
(10 dias + 20 dias após assinatura do contrato) seguido por um período de
operação assistida, no qual a INFRAERO mantém operação assistida pela
concessionária que deverá validar decisões gerenciais (período de 3 meses). Na
sequência, estipula-se uma fase de transição em que a concessionária assumirá
a operação com apoio da INFRAERO.
Surgem, então, questões controvertidas quanto à transferência dos
empregados da INFRAERO à concessionária. Na fase de operação assistida,
os empregados permanecem vinculados e remunerados pela INFRAERO, mas
na fase seguinte – operação de transição - os empregados da INFRAERO serão
cedidos à concessionária, mediante reembolso de todos os custos e encargos
trabalhistas e previdenciários e sub-rogação em contratos de cessão de espaço
físico (custos e ônus da extinção antecipada do contrato sub-rogado devem ser
arcadas pela concessionária, sem reembolso pela INFRAERO).
Não há, porém, uma definição precisa sobre o regime jurídico
aplicável nessas situações.
Outro ponto controvertido e polêmico diz respeito às obras cuja
responsabilidade é do Poder Público, definidas em anexos aos contratos de
141
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
concessão. Nessas obras, a responsabilidade é atribuída à INFRAERO, cabendolhe promover todos os atos necessários à contratação e completa execução dos
respectivos contratos.
Ocorre que eventuais atrasos na celebração ou execução desses contratos não
desobrigam a concessionária de seu dever de cumprir o contrato. Vale dizer, caso
a INFRAERO não celebre os contratos sob sua responsabilidade no prazo fixado,
a concessionária poderá – ou deverá - contratar a obra ou serviço, observadas as
disposições da Lei de Licitações, com posterior reembolso pela INFRAERO.
A situação revela uma insegurança quanto ao regime jurídico aplicável
e um agravamento desproporcional dos riscos atribuídos ao concessionário, o
que por certo está refletido nos custos de transação da equação econômicofinanceira firmada quando da celebração do contrato.
No que diz respeito ao novo modelo, ou então aos novos modelos que
serão adotados pelo Governo federal, persistem as indefinições. Há divulgação
extraoficial de que os próximos aeroportos que serão concedidos à iniciativa
privada serão aqueles do Rio de Janeiro/RJ (Galeão – Antonio Carlos Jobim) e
de Belo Horizonte/MG (Confins).
Para além de haver incertezas quanto ao regime jurídico que será aplicado,
o que ocasiona insegurança aos investidores interessados, percebe-se das notícias
veiculadas pela imprensa que parece haver uma confusão de competências com a
nova Empresa de Planejamento e Logística – EPL, criada pela Medida Provisória
nº 576, de 15 de agosto de 2012, pois o principal interlocutor sobre o novo modelo
a ser adotado tem sido o responsável por essa nova empresa estatal256.
Embora a nova EPL tenha entre seus objetos a prestação serviços na
área de estudos e pesquisas destinados a subsidiar o planejamento do setor de
transportes no País (art. 3º, II, da Lei nº 12.404/11), verifica-se clara superposição
de competências em relação à Secretaria de Aviação Civil, à ANAC e à própria
INFRAERO, através de medida provisória que teve sua vigência prorrogada até
dezembro de 2012, com conversão em Lei ainda incerta, o que causa manifesta
insegurança quanto ao marco regulatório que será adotado nas novas concessões.
4. O RDC E A INFRAESTRUTURA AEROPORTUÁRIA
A realização da Copa do Mundo FIFA 2014 e das Olimpíadas 2016 no
Brasil acarretou a necessidade de o governo brasileiro abrir o armário e iniciar
uma arrumação sobre tudo o que foi guardado bem no fundo, para ser resolvido
em momento oportuno.
Confira-se reportagem publicada em 18 de outubro de 2012, disponível em http://economia.
estadao.com.br/noticias/economia+negocios,novas-concessoes-de-aeroportos-nao-devem-termudancas-radicais-epl,131293,0.htm. Acesso em 09 de novembro de 2012.
256
142
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
O investimento em infraestrutura aeroportuária é um bom exemplo.
Desde o anúncio de que o Brasil sediará a Copa das Confederações FIFA
2013, a Copa do Mundo FIFA 2014 e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos 2016,
uma mudança de paradigma ocorreu. Antes, a infraestrutura brasileira recebia
pouca ou nenhuma atenção. A partir do referido anúncio, a infraestrutura entrou
na pauta do governo brasileiro.257
Deste modo, diante da enormidade de problemas infraestruturais
enfrentados pelo país, iniciou-se um movimento para alterar as leis, no sentido
de viabilizar a execução a tempo de todas as obras, dentre estas, as demandas
pelos aeroportos brasileiros.
Em 21 de julho de 2011, foi publicado o Decreto nº 7.531, o qual
dispõe sobre a inclusão do Aeroporto Internacional Governador André Franco
Montoro, localizado no Município de Guarulhos, o Aeroporto Internacional de
Viracopos, localizado no Município de Campinas, ambos no Estado de São
Paulo, e o Aeroporto Internacional Presidente Juscelino Kubitschek, localizado
em Brasília, Distrito Federal no Programa Nacional de Desestatização (PND).
Criado, originariamente, pela Lei n° 8.031, de 12 de abril de 1990, a qual foi
revogada pela Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, o PND prevê procedimentos
para a desestatização de algumas atividades econômicas (em sentido amplo)258,
visando promover o desenvolvimento nacional frente ao cenário internacional.
Ainda que se argumente a edição do Programa de Aceleração do Crescimento anterior ao
anúncio supramencionado, não se deve esquecer que a recepção da Copa do Mundo no Brasil é
sonho antigo do governo. Por isso, pode-se afirmar que a criação do PAC e a realização da Copa
2014 no Brasil foram pensados juntos.
258
Eros Roberto GRAU leciona que a distinção entre atividade econômica e serviço público, na
perspectiva da Constituição da República, é “inquestionável”. No entanto, antes de se iniciar a
distinção, necessária se faz a discriminação de intervenção estatal e de atuação estatal. Segundo o
autor, intervenção estatal indica, “em sentido forte”, atuação do Estado em campo de titularidade
da iniciativa privada; por outro lado, atuação estatal é a atuação do Estado tanto no campo de
titularidade própria quanto privada. “Em outros termos, teremos que intervenção conota atuação
estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito; atuação estatal, ação do Estado no
campo da atividade econômica em sentido amplo”. A partir desta diferenciação é que se está
autorizado, sob a luz da teoria de Eros Roberto GRAU, a passar a análise da distinção entre
atividade econômica e serviço público. A teoria do autor é bastante direta: afirma que a prestação
de serviço público está voltada a satisfação de necessidades, utilizando-se de bens e serviços,
recursos, esses, escassos. Portanto, conclui que serviço público, atividade econômica desenvolvida
primordialmente pelo setor público, é espécie (tipo) de atividade econômica, erigida à categoria
gênero; verifica-se, então, que o gênero – atividade econômica – contém duas espécies: o serviço
público e a atividade econômica. Diante do fato de que denomina da mesma forma gênero e
espécie, propõe o autor a seguinte convenção: “atividade econômica em sentido amplo conota
gênero; atividade econômica em sentido estrito, a espécie”. In: GRAU, Eros Roberto. A ordem
econômica da constituição de 1988. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 102-104.
257
143
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Entretanto, as concessões dos três aeroportos incluídos no PND por meio
do Decreto nº 7.531/11 foram licitadas segundo o processo determinado pela
Lei nº 8.666/93 e não conforme o RDC.
4.1 O que é o RDC?
O Regime Diferenciado de Contratações Públicas é uma nova modalidade
licitatória,259 entendimento ao qual a Infraero aderiu integralmente, como se
extrai da intitulação do edital “RDC Presencial nº 001/ADNE/SBJP/2011.260
A Lei Federal nº 12.462, de 5 de agosto de 2011, foi resultado da conversão
da Medida Provisória nº 527. Inicialmente, como adverte André Guskow
CARDOSO, “Ele [o RDC] foi introduzido no texto da medida provisória [527]
por meio de emenda parlamentar”.261
A Lei nº 12.462/11 é divida em dois capítulos, sendo que o primeiro trata
do RDC. A seção I dispõe sobre os aspectos gerais do RDC. Destaque-se que
a opção por este regime diferenciado implicará em afastamento das normas
contidas na Lei nº 8.666/93, nos termos do seu artigo 1º, § 2º (Lei do RDC).
O RCD tem por objetivos: “I - ampliar a eficiência nas contratações
públicas e a competitividade entre os licitantes; II - promover a troca de
experiências e tecnologias em busca da melhor relação entre custos e benefícios
para o setor público; III - incentivar a inovação tecnológica; e IV - assegurar
tratamento isonômico entre os licitantes e a seleção da proposta mais vantajosa
para a administração pública”, nos termos do § 1º do artigo 1º.
Esta Lei ora em comento incluiu no seio da licitação a noção de
sustentabilidade, tornando expresso o dever de a Administração Pública licitar
os objetos respeitando (artigo 4º, § 1º):
I - disposição final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos
gerados pelas obras contratadas;
II - mitigação por condicionantes e compensação ambiental, que serão
Confira-se tal posicionamento nos seguintes estudos: ZYMLER, Benjamin; CANABARRO DIOS,
Laureano. O Regime Diferenciado de Contratação (RDC) aplicável às contratações necessárias à
realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Fórum de Contratação e Gestão
Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 11, n. 125, maio 2012. Disponível em: http://www.bidforum.
com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=79102. Acesso em: 31 de maio 2012; ANDRADE, Ricardo
Barretto de; VELOSO, Vitor Lanza. Uma visão geral sobre o Regime Diferenciado de Contratações
Públicas: objeto, objetivos, definições, princípios e diretrizes. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA,
Cesar A. Guimarães. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC): comentários à lei nº
12.462 e ao decreto nº 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 27.
260
O referido edital está disponível em: http://licitacao.infraero.gov.br/arquivos_licitacao/2011/
SRNE/001_ADNE_SBJP_2011_RDC/Edital_RDC_Projeto.pdf. Acesso em: 21 jan. 2013.
261
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas: a questão da
publicidade do orçamento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, Cesar A. Guimarães
Pereira. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC): comentários à lei nº 12.462 e ao
decreto nº 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 73.
259
144
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
definidas no procedimento de licenciamento ambiental;
III - utilização de produtos, equipamentos e serviços que,
comprovadamente, reduzam o consumo de energia e recursos naturais;
IV - avaliação de impactos de vizinhança, na forma da legislação
urbanística;
V - proteção do patrimônio cultural, histórico, arqueológico e imaterial,
inclusive por meio da avaliação do impacto direto ou indireto causado pelas
obras contratadas; e
VI - acessibilidade para o uso por pessoas com deficiência ou com
mobilidade reduzida.
Trata-se de uma revolução na licitação. Significa que a Administração
Pública deverá, quando licitar os objetos em consonância com o artigo 1º da
Lei do RDC, observar as normas de Direito Ambiental para agir de maneira
sustentável. São as chamadas “licitações sustentáveis”.
Na Seção II, a Lei trata das “Regras Aplicáveis às Licitações no âmbito
do RDC” e é composta dos artigos 5º ao 38. No entanto, destacamos algumas
das inovações, conforme destaques a seguir.
A) Orçamento sigiloso. O artigo 6º estipula a possibilidade de a
Administração Pública omitir o orçamento estimado e, portanto, o preço
máximo que a Administração Pública se propõe a pagar.
Essa é uma inovação do RDC em relação à Lei nº 8.666/93, a qual
determina, no inciso II do § 2º do artigo 40, que o “orçamento estimado em
planilhas de quantitativos e preços unitários”. Esse dispositivo serve para
atender ao princípio da publicidade e, também, demonstrar para os cidadãos que
o preço dos bens adquiridos, dos serviços contratados ou das obras licitadas será
correspondente ao praticado no mercado, respeitando-se, ainda, o princípio da
economicidade e da contratação mais vantajosa para a Administração Pública.
O caput do artigo 6º da lei do RDC prevê que a adoção da regra do sigilo
do orçamento estimado ocorrerá “sem prejuízo da divulgação do detalhamento
dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das
propostas”, nos termos da segunda parte do caput do mesmo dispositivo.262
B) Indicação de marca. O artigo 7º, inciso I, da Lei do RDC prevê que
no caso de licitação para aquisição de bens poderá ser indicada marca ou modelo
do produto, desde que fundamentado o ato, conforme as hipóteses previstas nas
alíneas a a c do inciso I:
a) em decorrência da necessidade de padronização do objeto;
b) quando determinada marca ou modelo comercializado por mais de um
Sobre o tema, cf. MOTTA, Carlos Pinto Coelho; BICALHO, Alécia Paolucci Nogueira. RDC:
contratações para as copas e jogos olímpicos: Lei nº 12.462/2011, Decreto nº 7.581/2011. Belo
Horizonte: Fórum, 2012. p. 95-114.
262
145
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
fornecedor for a única capaz de atender às necessidades da entidade contratante; ou
c) quando a descrição do objeto a ser licitado puder ser melhor
compreendida pela identificação de determinada marca ou modelo aptos a servir
como referência, situação em que será obrigatório o acréscimo da expressão
“ou similar ou de melhor qualidade”.
C) Apresentação de amostra. No artigo 7º, inciso II, está preceituada a
faculdade da Administração para exigir que sejam apresentadas amostras antes
mesmo da sua habilitação no certame (inversão de fases). Entretanto, o ato que
exigir a apresentação de amostras deverá fundamentar a necessidade da exibição.
Segundo esse inciso, as amostras poderão ser exigidas no procedimento auxiliar de
pré-qualificação, na fase de julgamento das propostas ou na fase de lances, apenas.
D) Contratação integrada. Inspirada no item 1.9 do “Regulamento
do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobrás S.A.”, a contratação
integrada obriga o contratado a elaborar o projeto básico e executivo, além
de executar o contrato. A Lei do RDC dispõe sobre a contratação integrada no
artigo 9º e §§.
Esse regime de execução de obras e serviços de engenharia, nos termos
do artigo 9º, § 2º, incisos I, II e III, da Lei do RDC, quando for adotado, deverá
estar expresso na convocação e “I - o instrumento convocatório deverá conter
anteprojeto de engenharia que contemple os documentos técnicos destinados a
possibilitar a caracterização da obra ou serviço, incluindo: a) a demonstração e
a justificativa do programa de necessidades, a visão global dos investimentos e
as definições quanto ao nível de serviço desejado; b) as condições de solidez,
segurança, durabilidade e prazo de entrega, observado o disposto no caput e
no § 1o do art. 6o desta Lei; c) a estética do projeto arquitetônico; e d) os
parâmetros de adequação ao interesse público, à economia na utilização, à
facilidade na execução, aos impactos ambientais e à acessibilidade; II - o valor
estimado da contratação será calculado com base nos valores praticados pelo
mercado, nos valores pagos pela administração pública em serviços e obras
similares ou na avaliação do custo global da obra, aferida mediante orçamento
sintético ou metodologia expedita ou paramétrica; e III - será adotado o critério
de julgamento de técnica e preço.”
O disposto no artigo 9º excepciona a previsão do artigo 7º, § 2º, incisos I
e II, da Lei nº 8.666/93, o qual prevê que as obras e os serviços somente poderão
ser licitados quando “I - houver projeto básico aprovado pela autoridade
competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo
licitatório; II - existir orçamento detalhado em planilhas que expressem a
composição de todos os seus custos unitários”. Ainda, o artigo 9º do RDC
confronta o artigo 40, § 2º, incisos I e II, Lei nº Lei 8.666/93, deverão constar
como anexos do edital o projeto básico e/ ou executivo e orçamento estimado
em planilhas de quantitativos e preços unitários.
146
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
E) Inversão de fases. A Lei do RDC adotou a sistemática do Pregão e
definiu que a fase de julgamento das propostas de preço será antes da fase de
habilitação.
4.2 INFRAESTRUTURA AEROPORTUÁRIA E RDC
As obras em aeroportos poderão ser licitadas por meio do RDC em três
hipóteses: por meio da aplicação do inc. II, do art. 1º, da Lei do RDC263, desde
que as obras estejam inseridas no Plano Estratégico de Ações do Governo
Brasileiro do Comitê Gestor para realização da Copa do Mundo FIFA 2014;
por meio da aplicação do inciso III, do art. 1º, da Lei do RDC264; e, por fim, se
a obra estiver prevista nas ações do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), nos termos do inc. IV, do art. 1º, da Lei do RDC265.
Há diversas obras previstas na Matriz de Responsabilidades em andamento.
Nos termos do Anexo II da Resolução GECOPA nº 22/12266, há uma versão
atualizada da referida Matriz. Percebe-se, de seu “Anexo C – Aeroportos”, há
investimentos efetuados nos aeroportos localizados em Belo Horizonte, Brasília,
Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro,
Salvador, São Paulo (Guarulhos) e São Paulo (Vira-copos).
Deste modo, pode-se concluir que os aeroportos que se localizam a uma
distância superior a 350km das cidades sedes das competições descritas no art.
1º poderão ter suas obras de melhorias licitadas pelo RDC, desde que incluídas
previamente na Matriz de Responsabilidades editada pelo GECOPA – Grupo
Executivo do Comitê Gestor da Copa do Mundo FIFA 2014.
Art. 1o É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável
exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização: (...); II - da Copa das Confederações
da Federação Internacional de Futebol Associação - Fifa 2013 e da Copa do Mundo Fifa 2014,
definidos pelo Grupo Executivo - Gecopa 2014 do Comitê Gestor instituído para definir, aprovar
e supervisionar as ações previstas no Plano Estratégico das Ações do Governo Brasileiro para
a realização da Copa do Mundo Fifa 2014 - CGCOPA 2014, restringindo-se, no caso de obras
públicas, às constantes da matriz de responsabilidades celebrada entre a União, Estados, Distrito
Federal e Municípios.
264
Art. 1o É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente
às licitações e contratos necessários à realização: (...); III - de obras de infraestrutura e de contratação
de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km (trezentos e
cinquenta quilômetros) das cidades sedes dos mundiais referidos nos incisos I e II.
265
Art. 1o É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável
exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização: (...); IV - das ações integrantes
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
266
Disponível em: http://www.copa2014.gov.br/pt-br/sobre-a-copa/resolucoes-do-gecopa. Acesso
em: 13.02.2013.
263
147
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
5. CONCLUSÃO
Parece evidente que solucionar os gargalos de infraestrutura aeroportuária
não constitui um problema trivial. Cuida-se de atividade que demanda um
planejamento série e competente, acompanhado de investimentos de alto vulto.
As mudanças experimentadas nos últimos anos, com a opção política do
Governo federal pela concessão de alguns aeroportos à iniciativa privada veio
acompanhada de claros subterfúgios, quais sejam, a Copa do Mundo de 2014 e
os Jogos Olímpicos de 2016.
Afirmar que as modificações nos marcos normativos e regulatórios da
infraestrutura aeroportuária no Brasil revelam uma necessidade vinculada aos
eventos esportivos de 2014 e 2016 é um auto-engano. E como afirma Eduardo
Gianetti, “mentir para si mesmo e acreditar na mentira requer talento”.
Há situações, porém, em que o subterfúgio é indispensável e vem para
o bem. Ainda nas palavras de Eduardo Gianetti, o Brasil vive a “hipnose da
boa causa”, algo que produz nos indivíduos uma espécie de cegueira protetora.
É indisputável que as necessidades públicas relacionadas às deficiências da
infraestrutura aeroportuária brasileira existiam, existem e continuarão a existir
independentemente dos eventos esportivos de 2014 e 2016.
Mas se o Governo federal precisava de uma boa causa para justificar
suas ações e essa boa causa reside na Copa das Confederações de 2013,
Copa do Mundo de 2014 e nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016,
eventos expressamente referidos como fundamento do regime diferenciado de
contratações públicas instituído pela Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011, por
exemplo, evidencia-se que esse auto-engano veio para o bem.
As inovações trazidas pelo RDC, tratadas neste estudo, apontam que há
vontade política para a realização dos grandes eventos desportivos descritos
no art. 1º da Lei nº 12.462/11 no prazo estipulado e, por isso, a realização das
referidas obras de infraestrutura por meio da modalidade RDC servirá para que
a função administrativa seja realizada eficientemente e, com isso, seja atendido
o interesse público envolvido na realização das Copas e dos Jogos Olímpicos.
Ilustrativamente, veja-se que o movimento de passageiros estimado para
2014, apenas nos 13 (treze) principais aeroportos do país, de acordo com o
plano de investimento da INFRAERO, é de 152 milhões de passageiros.
No período entre 2011 e 2014, não obstante a desaceleração da economia,
estima-se um crescimento total de 46,4% na demanda por transporte aéreo e,
portanto, conclui-se por um movimento global previsto para 2014 em torno de
225,9 milhões de passageiros.
É evidente que esse crescimento da demanda é independente dos eventos
esportivos, mesmo porque a estimativa de turistas estrangeiros durante a Copa
148
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
do Mundo de 2014 está em torno de 500/600 mil pessoas, com movimento
interno de turistas domésticos de aproximadamente 3 milhões de passageiros.
Ocorre que apenas a adoção de novos marcos normativos não é suficiente.
É preciso haver planejamento e eficiência na aplicação desse conjunto normativo e
dos institutos que lhe são correlatos, sob pena de enfrentarmos seríssimos problemas
em curto prazo, mesmo com vultosos investimentos nos próximos anos.
O planejamento do Governo federal no âmbito da infraestrutura
aeroportuária não pode ficar limitado aos eventos esportivos vindouros. As
necessidades públicas vão muito além.
São indispensáveis ações emergenciais para solucionar os problemas
que reclamam solução em curtíssimo prazo, bem como deve-se adotar medidas
estruturantes de médio e longo prazo, sempre sob planejamento estratégico
marcado por balizas seguras, capazes de atrair a iniciativa privada enquanto
parceiro relevante na consecução dessa atividade de titularidade estatal.
Certamente, a realização das obras de infraestrutura aeroportuária por meio
do Regime Diferenciado de Contratações atenderá à demanda do incremento da
infraestrutura aeroportuária brasileira, por enquanto. O que sucederá após o
fim dos eventos desportivos é que demandará atenção do legislador ordinário
acerca da vigência da nova modalidade criada pela Lei nº 12.462/11.
149
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Ricardo Barretto de; VELOSO, Vitor Lanza. Uma visão geral sobre
o Regime Diferenciado de Contratações Públicas: objeto, objetivos, definições,
princípios e diretrizes. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, Cesar A.
Guimarães. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC):
comentários à lei nº 12.462 e ao decreto nº 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
BNDES. Infraestrutura Aeroportuária. Disponível em http://www.bndes.
gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/empresa/
pesquisa/chamada3/capitulo3.pdf. Acesso em 09 de novembro de 2012.
CAMPOS NETO, Carlos Alvares da Silva e DE SOUZA, Frederico Hartmann.
Nota Técnica: Aeroportos no Brasil: investimentos recentes, perspectivas e
preocupações. IPEA - Diretoria de Estudo Setoriais. Abril/2011.
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas:
a questão da publicidade do orçamento estimado. In: JUSTEN FILHO,
Marçal; PEREIRA, Cesar A. Guimarães Pereira. O Regime Diferenciado de
Contratações Públicas (RDC): comentários à lei nº 12.462 e ao decreto nº
7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
GRAHAM, Anne. Managing Airpoirts: an international perspective. 3ª
ed.Londres: Routlegde, 2011.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica da constituição de 1988. 10. ed.
rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de Serviço Público. São Paulo:
Saraiva, 2012.
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria das Concessões de Serviço Público. São
Paulo: Dialética, 2003.
MOTTA, Carlos Pinto Coelho; BICALHO, Alécia Paolucci Nogueira. RDC:
contratações para as copas e jogos olímpicos: Lei nº 12.462/2011, Decreto nº
7.581/2011. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
ZYMLER, Benjamin; CANABARRO DIOS, Laureano. O Regime Diferenciado
de Contratação (RDC) aplicável às contratações necessárias à realização da
Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Fórum de Contratação e
Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 11, n. 125, maio 2012. Disponível
em: http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=79102. Acesso
em: 31 de maio 2012.
150
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 7
AS GRANDES OBRAS PARA A COPA DO MUNDO DE 2014: ASPECTOS
DAS DESAPROPRIAÇÕES E O ESTÁDIO JOAQUIM AMÉRICO GUIMARÃES
José Rodrigo Sade 267
SUMÁRIO: Introdução. 1. A Copa do Mundo de 2014 em Curitiba. 2. Das desapropriações. 3. Questões de urgência. 4. O caso concreto do estádio Joaquim Américo Guimarães.
5. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Os estádios de futebol onde serão disputadas as partidas da Copa
do Mundo de 2014 são os principais equipamentos urbanos necessários à
competição, sem os quais simplesmente não haveria tais jogos.
Mas o nível de exigência imposto pela FIFA para esse espetáculo impõe
que haja intervenção estatal não apenas nos estádios e em seu entorno, como
também na questão da mobilidade urbana e aeroportos. Serão obras de trens,
metrôs e corredores de ônibus, e também ampliação e melhoria dos aeroportos.
Assim, os investimentos necessários serão altos, e em sua grande maioria
de recursos públicos, daí porque todo o cuidado na correta aplicação dos
mesmos é indispensável.
A construção e reforma dos estádios, a ampliação de aeroportos e
a instalação de novas vias de rodagem, acarretarão em conseqüências à
propriedade particular, e o presente artigo tratará justamente de algumas
nuances do procedimento de desapropriação.
Em qualquer das várias cidades ao redor do Mundo que já receberam
jogos, a Copa do Mundo sempre exigiu a participação na condição de
protagonistas dos diversos entes estatais envolvidos. Tal evento não se realizaria
se não houvesse a intervenção do Estado no domínio econômico, e umas dessas
formas de atuação é justamente por meio da desapropriação.
O mundial de futebol de 2014 irá durar 30 dias, mas os benefícios dele
advindos, desde que haja correção na execução das obras, certamente serão
permanentes.
São 12 (doze) as cidades que receberão a Copa do Mundo de 2014: Belo
Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre,
Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
Advogado atuante no Direito Empresarial. Pós-Graduado pela Universidade Federal do
Paraná. Cursando Legal Law Master pelo IBEMEC. Membro da Comissão de Direito Econômico
da OAB-PR.
267
151
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Considerando que em todas, em menor o maior grau, haverá intervenção
nos estádios e também obras de mobilidade urbana, estima-se um gasto na
ordem de pelo menos R$ 25 bilhões.
1. A COPA DO MUNDO DE 2014 EM CURITIBA
Em 20 de setembro de 2010 foi celebrado convênio entre o ESTADO
DO PARANÁ, o MUNICÍPIO DE CURITIBA e o CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE, com a interveniência do INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE CURITIBA – IPPUC, para a realização da Copa do
Mundo de 2014.
A adequação do estádio Joaquim Américo Guimarães e do centro de
imprensa foi exigência da FIFA para a realização de quatro jogos.
Nos termos do referido convênio, atualizado por aditivos, o valor estimado
dessa obra será de até 184 milhões. Ao ESTADO caberá o repasse ao MUNICÍPIO
do valor de cerca de R$ 60 milhões. Ao MUNICÍPIO caberá a concessão de até
R$ 123 milhões em incentivo construtivo e, por fim, ao CLUBE caberá arcar com
até R$ 61 milhões referente aos projetos, obras e serviços.
No plano da mobilidade urbana, que está incluído no chamado PAC da Copa
do GOVERNO FEDERAL, o MUNICÍPIO será responsável (i) pela reforma
completa da rodoferroviária e entorno, (ii) pela revitalização da Avenida Cândido
de Abreu, (iii) pela realização da Linha Verde Sul, (iv) pela reforma do Terminal
Santa Cândida, (v) pela revitalização da Avenida Marechal Floriano Peixoto, (vi)
pela implantação do Sistema de Mobilidade Urbana, (vii) pela implantação do
metrô e (viii) pela implantação do Corredor Aeroporto/Rodoferroviária, tudo
resultando em investimentos da ordem de pelo menos R$ 222 milhões.
São essas obras, enfim, que justificam a realização do evento, porque
visivelmente trarão melhoras significativas e permanentes à cidade-sede.
Ademais, desde quando anunciada a escolha de Curitiba como uma das
sedes, é certo que sua exposição na mídia só fez aumentar, o que contribui para
o incremento do turismo.
Esses investimentos produzem impactos na economia, sejam eles
diretos, como por exemplo com o aumento na produção das empreiteiras, que
para tanto necessitarão de mais mão de obra; e também indiretos, relacionados
ao fornecimento de insumos para tantas obras e, por fim, o impacto induzido
produzido a partir do consumo das famílias que será incrementado com novos
empregos, ganhos de salários, etc.
Estima-se que serão gerados algo em torno de vinte e dois mil novos
postos de trabalho diretos e outros nove mil indiretos, o que representa um
incremento de 38,47%. E tudo isso somado deve gerar como consequência a
152
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
expansão do PIB da Região Metropolitana de Curitiba em R$ 168,85 milhões,
segundos estudos feitos pelo IPARDES, de autoria de RICARDO KURESKI,
em artigo publicado no site da entidade.
Junto com as obras de responsabilidade do setor público, também a
iniciativa privada precisa se preparar bem para enfrentar a Copa do Mundo.
Serão necessárias mais vagas de hotel, mais restaurantes, mais serviços privados
de transporte (vans e táxis), guias, etc., tudo contribuindo para o aumento do
emprego, circulação de dinheiro e recolhimento de tributos.
É nesse ganho indireto que os defensores da Copa também se apegam
para a defesa da grande oportunidade que o evento encerra.
2. DAS DESAPROPRIAÇÕES
Como já se disse acima, as obras que serão realizadas sob o incentivo da
Copa do Mundo de 2014 exigirão pesados investimentos e não prescindirão da
expropriação de propriedades particulares.
Os imóveis particulares se apresentam indispensáveis para a ampliação
de estádios, para construção ou reforma de ruas, para instalação de metrôs, e
existe legislação específica que disciplina o processo pelo qual o Poder Público
se torna proprietário de um bem que até então era propriedade particular.
É de índole constitucional a garantia do direito de propriedade (art. 5º,
inciso XXII), sendo que somente por processo de desapropriação, mediante
justa e prévia indenização em dinheiro, o particular será expropriado:
A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade
ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e previa indenização
em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.
Há destaque na Constituição Federal para imóveis urbanos, para os quais
a regra foi repetida no § 3º, do artigo 182: “As desapropriações de imóveis
urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.”
A despeito da vigência da Lei nº 12462/2012, que trata do chamado
RDC - REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS, cujo
diploma trouxe importantes alterações no processo licitatório de obras públicas
destinadas aos jogos olímpicos, paraolímpicos, Copa das Confederações 2013
e Copa do Mundo FIFA 2014, o procedimento das desapropriações permanece
sendo regulado pelo mesmo Decreto-Lei nº 3365/1941.
Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello:
(...) desapropriação se define como o procedimento através do qual o
Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse
social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, normalmente
adquirindo-o para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa
153
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em
que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada
para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública, resgatáveis em
parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real.268
Além das situações de necessidade pública, utilidade pública ou interesse
social, também o pagamento da indenização prévia em dinheiro encerram os
pressupostos para a realização da desapropriação.
Para as obras da Copa do Mundo de 2014 as desapropriações serão por
utilidade pública, porquanto a utilização das propriedades foi considerada
vantajosa para o Poder Público, inclusive na intervenção do estádio Joaquim
Américo Guimarães.
O procedimento de desapropriação desafia duas fases, a primeira,
declaratória, na qual o Poder Público, através de Decreto, atinge determinada
propriedade privada e a declara de utilidade pública ou interesse social, enquanto
que a segunda, chamada de executória, é a realização no plano concreto de todas
as providências para a transferência da propriedade da esfera particular para o
domínio público. Essa segunda fase, conforme o caso, pode ainda desdobrar-se
em outras duas, uma administrativa, quando as partes conseguem resolver todos
os detalhes amigavelmente, e outra judicial, para os casos em que apenas com a
intervenção do Poder Judiciário ocorre a finalização do ato.
3. QUESTÕES DE URGÊNCIA
Não é errada a impressão que temos no sentido de que algumas coisas no
Brasil são deixadas sempre para última hora.
Desde quando o Brasil foi escolhido como sede da Copa do Mundo de
2014, sabe-se que diversas seriam as obras necessárias e que nenhuma dessas
obras ficaria pronta do dia para noite. Será preciso planejamento, cronogramas
físico-financeiros e, mais do que tudo, estrito respeito à legislação nacional.
A Administração Pública está obrigada a somente atuar na forma prevista
em lei (princípio da legalidade) e não deve haver espaços para manobras
e improvisos. Mesmo assim, nosso convencimento foi forjado ao longo dos
tempos a acreditar que os gestores públicos acabam deixando tudo para última
hora, e uma das consequências dessa estratégia é justamente o aumento dos
custos das obras e serviços.
No aspecto da licitação, é sabida a possibilidade de dispensa de licitação
nos casos de emergência, conforme previsão contida no art. 24, da Lei nº
8666/1993.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13 ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2001.
268
154
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
O resultado é sabido por todos e o caso dos Jogos Pan-Americanos de
2007 é ilustrativo. De um orçamento inicial de R$ 410 milhões, chegou-se
ao final a um custo de R$ 3,7 bilhões, grande parte executado sem licitação,
representando uma elevação de quase 800%.
As desapropriações também podem ser palco do mesmo problema. O
Poder Público, olvidando da importância da fase administrativa do procedimento
de desapropriação, não entra em contato com o expropriado (particular), e dá
inicio aos seus projetos e planos, anotando na rubrica de despesas um valor
quase sempre menor do que o mercado pratica.
Assim, determinada propriedade, exemplificativamente, tem seu valor
de mercado em R$ 1.000,00 o metro quadrado, mas o ente estatal no processo
judicial de desapropriação, alegando urgência, pede autorização para depositar
um valor que corresponde a apenas R$ 300,00 o metro quadrado.
O artigo 15, do Decreto-Lei nº 3365/1941, autoriza que o Poder Judiciário
conceda a imissão provisória na posse, desde que haja o depósito judicial do
valor da indenização e via de regra esse o pedido liminar de imissão de posse
é concedido. Ocorre que no decorrer do processo apura-se o correto valor da
indenização, quando então a conta sofrerá sensível aumento, dado que passarão
a incidir juros desde a imissão antecipada, correção e, sobretudo, o valor
apontado pelo perito judicial.
Com esse proceder, não é difícil encontrarmos processos de
desapropriação que se iniciam com valores singelos e que ao final ficam
consideravelmente grandes, tudo por conta da ausência de planejamento
prévio do administrador público.
Se por um lado essa prática pode contribuir para o rombo de orçamentos
administrativos, felizmente, por outro, o exercício da advocacia especializada
tem encontrado resposta para a defesa dos interesses do particular prejudicado
por essa inaceitável situação, que apenas não é mais grave do que a
desapropriação indireta, verdadeiro caso de esbulho possessório praticado
pela Administração Pública.
Utilizando-se do artigo 15, § 1º, do Decreto-Lei nº 3365/1941, o Poder
Público obtém a imissão provisória na posse, mas o que a prática demonstra é
que o depósito da importância apurada pelo próprio ente expropriante, via de
regra, é consideravelmente menor ao valor de mercado do bem.
Depois de realizado o depósito, é autorizado ao expropriado o
levantamento de 80% desse montante, desde que apresente certidões negativas
de dívidas fiscais (federal, estadual e municipal), nos termos dos artigos 33, §
2º e 34, ambos do decreto de regência.
Em contrapartida, vem ganhando força o entendimento de que, em respeito
ao princípio constitucional da justa e prévia indenização em dinheiro e em razão
155
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
da notória irrisoriedade dos valores praticados pela Administração Pública,
deve-se fazer uma perícia judicial prévia a fim de se apurar judicialmente o
valor de mercado do imóvel objeto da desapropriação, e com isso oferecer ao
expropriado condições de adquirir outro bem em igualdade de condições.
Com efeito, além da contestação, que nos termos do artigo 20 do referido
Decreto-Lei, somente poderá versar sobre vício do processo judicial ou
impugnação do preço, é possível requerer a suspensão da imissão provisória de
posse concedida ao expropriante, e que a mesma somente recobre vigência após
o depósito da importância apontada em pericia judicial prévia. O pedido deverá
ser instruído com os documentos de praxe e, especialmente, com mais de um
laudo de avaliação particular, apontando a discrepância do valor do depósito
frente ao valor de mercado do bem atingido.
O Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial de nº 330.179-PR
de relatoria do Ministro Humberto Gomes de Barros, reformando decisão do
egrégio Tribunal de Justiça do Paraná, determinou a suspensão da imissão
provisória da posse até que houvesse o depósito da importância apurada em
perícia judicial prévia:
RECURSO ESPECIAL. DESAPROPRIAÇÃO. IMISSÃO NA POSSE.
IMÓVEL URBANO. DECRETO Nº 3.365/41, ART. 15. I - A imissão provisória
em imóvel expropriando, somente é possível mediante prévio depósito de valor
apurado em avaliação judicial provisória. II - Neste caso, tendo-se consumado
a imissão provisória na posse, sem o cumprimento do pressuposto da avaliação
judicial prévia, corrige-se a falha, em nome do princípio constitucional da
justa indenização, mediante laudo elaborado por perito judicial do juízo, não
importando que se realize em época posterior à imissão na posse, já realizada.
Se é restrita a matéria de contestação, compete ao expropriado defender
com empenho e criatividade o seu direito.
4. O CASO CONCRETO DO ESTÁDIO JOAQUIM AMÉRICO GUIMARÃES
O estádio Joaquim Américo Guimarães é dos poucos de propriedade
particular e, por isso, é importante reconhecer que, para adequação do mesmo
ao padrão FIFA, recursos públicos serão injetados em propriedade privada.
Vige no ESTADO DO PARANÁ a Lei nº 15608/2007, que estabelece
normas sobre licitações, contratos e convênios no âmbito dos Poderes
constituídos do Estado.
E conforme o Convênio celebrado em 20 de setembro 2010, em sua
cláusula quarta, com redação dada por aditivos, caberá ao MUNICÍPIO
“promover as desapropriações dos imóveis no entorno do Estádio já definidos
pelo projeto aprovado pela FIFA.”
156
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Por exigência do artigo 134, da citada lei estadual, foi necessário a
elaboração de um PLANO DE TRABALHO, cujo instrumento deveria conter,
no mínimo, as seguintes informações:
I – identificação do objeto a ser executado;
II – metas a serem atingidas;
III – etapas ou fases de execução;
IV – plano de aplicação dos recursos financeiros;
V – cronograma de desembolso;
VI – previsão de início e fim da execução do objeto, bem assim da
conclusão das etapas ou fases programadas;
VII – comprovação de que os recursos próprios para complementar a
execução do objeto estão devidamente assegurados, se o ajuste compreender
obra ou serviço de engenharia, salvo se o custo total do empreendimento recair
sobre a entidade ou órgão descentralizador.
Desse documento, é possível aferir que o ESTADO DO PARANÁ deverá
aportar um montante total de R$ 61 milhões junto ao MUNICÍPIO, para a
implementação das medidas, programas e projetos necessários para a realização
dos jogos da Copa do Mundo, dentre os quais interessa ao presente artigo os
serviços e obras no entorno do estádio Joaquim Américo Guimarães, incluindose as várias desapropriações que serão necessárias.
Com a edição pelo MUNICÍPIO do Decreto nº 1957, publicado no Diário
Oficial do Município nº 97 de 22 de dezembro de 2011, foi possível saber que
ao todo serão 16 imóveis atingidos, englobando uma área aproximada de 6.500
mil metros quadrados.
A somatória dos valores indicados pelo MUNICÍPIO atinge o total de
R$ 12 milhões.
As mais recentes informações oficiais dão conta que desses 16 imóveis,
pelos menos 5 casos já estão sendo discutidos judicialmente e outros 4 tiveram
suas negociações encerradas sem acordo de valor, indicando que os respectivos
proprietários devem fatalmente buscar amparo judicial para suas pretensões. Nos
demais, proprietários e MUNICÍPIO chegaram a um acordo de valores e assim
foram lavradas escrituras públicas e realizado o pagamento do valor ajustado.
As desapropriações em questão se enquadram nas situações de
“melhoramento de centros de população” (art. 5º, alínea “e”, do Decreto-Lei n.º
3365/1941), “melhoramento de vias ou logradouros públicos” ou “execução de
planos de urbanização” (alínea “i”).
A existência de, quem sabe, 9 ou 10 ações judiciais, representam algum
risco ao bom andamento das obras, porque, como se viu acima, o processo
judicial de desapropriação pode se desdobrar em algumas burocráticas fases
processuais, máxime se o expropriado se dispuser obter decisão judicial no
157
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
sentido de realização de uma perícia judicial prévia, para apuração do valor do
depósito inicial.
A porta do quarto que se abre com a realização de uma perícia não
permite saber o que se encontrará dentro dele e nem por quanto tempo as partes
lá ficarão.
Sem falar que são comuns as discussões quanto a quem será o perito,
quanto ao valor dos seus honorários, quanto à pertinência ou não de determinados
quesitos e, por fim, quanto ao próprio valor indenizatório encontrado.
A edição de 23 de abril de 2012, do jornal GAZETA DO POVO, trouxe
um panorama preocupante sob dois diferentes aspectos.
Primeiro, que a pouco mais de dois anos do início do evento, ainda restam
pelo menos cinco imóveis com desapropriações pendentes, sem os quais não se
pode falar em prosseguimento e conclusão das obras.
Segundo, a reportagem informa a extrapolação do orçamento preparado
pelo MUNICÍPIO. Em um dos imóveis, a avaliação foi de R$ 730 mil, mas no
Poder Judiciário a avaliação judicial prévia apontou para R$ 1,35 milhão. De
acordo com o jornal “dos cinco imóveis ainda pendentes – dois na Avenida
Getúlio Vargas e outros três na Buenos Aires –, dois estão com certificado de
posse emitido, dois aguardam essa autorização e um com o oficial de Justiça
notificando os condôminos da necessidade de desocupação do imóvel. Em três,
o Judiciário considerou a avaliação da prefeitura baixa e determinou um novo
valor. Elevação que, em um dos casos, chega a 85%.”
Outro ponto relevante no aspecto das desapropriações é justamente como
se dará a transferência, posteriormente, dos bens desapropriados com recursos
públicos ao CLUBE ATLÉTICO PARANAENSE.
Inicialmente, os convênios celebrados não continham cláusula específica
disciplinando a contrapartida que o CLUBE deveria dar ao MUNICÍPIO por
receber os imóveis desapropriados.
Falava-se apenas na criação de um espaço comunitário no estádio, bem
como a instalação de algum determinado órgão público que poderia organizar
visitas de escolas, eventos esportivos, etc.
A simplicidade com que esse importante aspecto estava sendo conduzido
não passou despercebida.
Em maio de 2012 o TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO
PARANÁ determinou a suspensão dos repasses públicos ao estádio Joaquim
Américo Guimarães, até que fosse realizado e publicado aditivo ao contrato
firmado entre o ESTADO, o MUNICÍPIO e o CLUBE:
Em relação às desapropriações contempladas no convênio, restam
algumas questões a serem explicitadas: a destinação pública dos imóveis
desapropriados, após a realização da Copa; o motivo do aumento no número dos
imóveis que serão desapropriados; o valor de cada uma das desapropriações; e
os valores correspondentes à contrapartida do CAP.
158
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A permuta deverá se dar com base em critérios técnicos, mediante
a avaliação das áreas de propriedade do CLUBE e que serão transferidas ao
MUNICÍPIO, para que atinjam valores compatíveis com os gastos realizados
com dinheiro público, sendo que tais áreas poderão após ser utilizadas para
benefício da população.
Uma vez concluído o procedimento de desapropriação, a propriedade
atingida passa a incorporar o domínio do MUNICÍPIO, tornando-se bem
público e como tal indisponível.
Dessa forma, para que haja a regular transferência desse bem público ao
ente particular (CLUBE), revela-se indispensável a edição de lei autorizando
o Chefe do Poder Público Municipal a tomar tal medida, pois vige para a
Administração Pública o princípio da legalidade previsto no artigo 37, caput,
da Constituição Federal.
Também a Lei nº 8666/1993, em seu artigo 17, inciso I, estabelece a
necessidade de “autorização legislativa para órgãos da administração direta”,
tal qual o MUNICÍPIO DE CURITIBA, aliene seus bens.
Além da Corte de Contas e demais órgãos públicos envolvidos, é certo
que a sociedade deve-se encontrar alerta. Os meios de comunicação e sociedade
civil organizada serão fundamentais para que Curitiba seja referência no uso
correto e eficiente dos recursos públicos para a realização da Copa do Mundo
de 2014, divulgando positivamente a cidade para o resto do mundo.
5. CONCLUSÃO
Por envolver na grande maioria dos casos a intervenção do Poder
Judiciário, que não se movimenta sem a presença de operadores do direito,
acredita-se que no aspecto das desapropriações não haverá grandes tumultos
ou surpresas.
De qualquer forma, sabendo-se que infelizmente a morosidade na
entrega da prestação jurisdicional é uma realidade, cuja maior parcela de
responsabilidade pode ser atribuída à carência de estrutura, recomenda-se
cuidado redobrado dos gestores públicos.
Estão eles há anos empenhados e engajados nesse importante evento,
sabedores de que devem respeitar os princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência, daí porque não lhes será lícito argumentar
com falta de tempo para seus planejamentos.
Ainda que antiga, a legislação de regência vem cumprindo o seu papel,
como se pode verificar na jurisprudência mais recente.
Por outro lado, tal como já se disse acima, o acompanhamento que a
sociedade civil vem fazendo sobre os diversos aspectos que envolvem a
realização da Copa do Mundo de 2014 em Curitiba será decisivo para o sucesso
do evento em todas as suas dimensões.
159
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 330.179–PR. Relator
Ministro Humberto Gomes de Barros.
_____. Tribunal de Contas do Estado do Paraná. Disponível em: <http://www1.
tce.pr.gov.br/noticias/pleno-determina-suspensao-de-repasses-publicos-paraobras-no-estadio-da-copa/26/N>.
GAZETA DO POVO. Prefeitura quer finalizar desapropriações da Arena em
um mês. Edição de 23 de abril de 2013. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/copa2014/arena/conteudo.phtml?id=1365776&tit=Prefeitura-quer-finalizar-desapropriacoes-da-Arena-em-um-mes>.
KURESKI, Ricardo. Obras de mobilidade urbana para a Copa do Mundo
2014: impactos econômicos na região metropolitana de Curitiba e no Estado
do Paraná. Disponível em: <www.ipardes.gov.br/ojs/indexphp/cadernoipardes/
article/download/472/530>.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13 ed.
São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
160
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 8
O POTENCIAL CONSTRUTIVO E O CASE “ARENA DOS PARANAENSES”:
ALGUNS APONTAMENTOS JURÍDICOS E ECONÔMICOS
Victor Hugo Domingues269
SUMÁRIO: Introdução. 1. Apontamentos sobre o direito de construir: de onde vem (?) e
por onde seguir (?). 1.1 Três institutos diferentes: (i) outorga onerosa do direito de construir,
(ii) transferência de potencial construtivo e (iii) programas políticos urbanos de incentivos
específicos. 1.2 O incentivo construtivo especial como instrumento de política urbana. 2. O
potencial construído e sua dação em garantia: um problema jurídico. 3. Notas sobre os ativos imobiliários: alguns apontamentos de natureza econômica. 4. Conclusões articuladas.
Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
À vista da realização dos grandes eventos esportivos que aportam no Brasil
em 2014 e 2016, nomeadamente Copa do Mundo e Olimpíadas, a expansão
do investimento em infraestrutura traz a tona uma infinidade de controvérsias,
especialmente quando está em causa a relação entre o Poder Público e a iniciativa
privada. Por tal razão a Economia e o Direito são invariavelmente convocados
para dar cabo destas discussões, ou, ao menos elucidar alguns pontos sobre os
quais existem mais dúvidas do que certezas.
Neste terreno nebuloso em que se situa a questão do incentivo
econômico estatal, a manipulação do direito de construir como mecanismo de
financiamento, ou mesmo a concessão pública de garantias para a construção
de arenas esportivas, pontifica apenas um dos inúmeros problemas jurídicos e
econômicos que tangeciam a relação entre público e privado.
Como pano de fundo e case prático, será cotejado o repasse de dinheiro
efetuado pelas entidades financiadoras à Sociedade de Propósito Específico
CAP S/A Arena dos Paranaenses270, criada pelo Clube Atlético Paranaense para
Bacharelado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2005). Especialização em
Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná (2006). Mestre em Ciências JurídicoAmbientais na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2008/2012). Área de pesquisa
docente em Direito Econômico do Ambiente e Análise Econômica do Direito, Direito e Economia
Comportamental, Sociologia e Comportamento. Professor das Faculdades da Indústria do Paraná
(Sistema FIEP) da graduação e pós-graduação. Membro da Comissão de Direito Econômico da
OAB-PR, do Instituto dos Advogados do Paraná, da Associação Paranaense de Direito e Economia
e da Associação Brasileira de Direito e Economia.
270
Sobre a constituição da CAP/AS Arena dos Paranaenses consultar: http://www.arenacap.com.
269
161
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
receber o dinheiro repassado ao Estado do Paraná – advindo do BNDES – para
fins da dar atendimento ao Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014.
Referida operação, cunhada pela mídia como “engenharia financeira”,
consiste num convênio entabulado em 20 de setembro de 2010 entre o Estado do
Paraná, o Município de Curitiba e o Clube Atlético Paranaense, onde o Estado
do Paraná tomaria o empréstimo junto ao BNDES por via de sua Agência de
fomento, e concederia como caução as cotas de potencial construtivo transferidas
pelo Município de Curitiba ao Clube Atlético Paranaense.
Como se pode notar, existe uma série de questões paralelas que, de uma
forma ou outra, suscitam controvérsias sobre a legalidade da referida operação,
ou mesmo sobre sua viabilidade econômica, em razão do que opta-se por abordar
alguns pontos que estão à orbita do referido convênio, a saber: (i) natureza
jurídica e limites do potencial construtivo, (ii) o potencial construtivo como
garantia e (iii) contingenciamento de riscos em empreendimentos imobiliários.
É o que se passa a fazer nas linhas que seguem.
1. APONTAMENTOS SOBRE O DIREITO DE CONSTRUIR: DE ONDE VEM (?)
E POR ONDE SEGUIR (?)
É de notório conhecimento da doutrina jurídica que a ordenação do
território urbano tem matriz constitucional, e sua natureza jurídica está
assentada nas regras do direito administrativo urbanístico, portanto, uma vez
conhecido o estatuto legislativo donde exsurge a outorga onerosa do direito
de construir ou a transferência de potencial construtivo, revela-se mais
restrita a “margem de manobra” para a utilização do direito de construir como
mecanismo de financiamento e garantia em operações financeiras, justamente
porque submetido ao regime de direito público. Tanto assim, que a operação
que viabilizou o repasse de aproximadamente R$ 130.000.000,00 (cento e
trinta milhões de reais) à Sociedade de Propósito Específico CAP S/A Arena
dos Paranaenses, ganhou a o pejorativo de “engenharia financeira”.
Não obstante, tendo origem no artigo 182 e 183 da Constituição Federal,
a Lei Federal que regulamentou as diretrizes acerca do Estatuto da Cidade271 fixa
os limites e objetivos dos Planos Diretores a serem elaborados pelos Municípios,
portanto, o “solo criado”, representado pelo instituto da transferência de
potencial construtivo e da outorga onerosa do direito de construir, deve observar
os preceitos do regime de direito público.
Daí a necessidade de estabelecer a diferença entre três institutos que,
muito embora submetidos ao regime de direito público, são completamente
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271
Lei Federal de caráter nacional n° 10.257/2001.
162
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
diferentes em sua natureza, quais sejam: (i) outorga onerosa do direito de
construir, (ii) transferência de potencial construtivo e (iii) programas políticos
urbanos de incentivos específicos.
Como se sabe, a Lei nº 10.257/2001, que deu formas gerais ao
Estatuto das Cidades, desvela as características de uma lei geral de direito
urbanístico na medida em que institui princípios, cria institutos jurídicos
e manipula instrumentos a serem utilizados na ordenação dos espaços
urbanos. Logicamente, um dos instrumentos contemplados no Estatuto das
cidades são as ações específicas de incentivo, como sói ocorrer em casos de
especial necessidade – a Copa do Mundo e as Olimpíadas são os exemplos
mais significativos nesse sentido.
À época da elaboração das leis de natureza urbanística, não se cogitava
que num curto espaço de cinco anos o Brasil albergaria as duas maiores
competições esportivas do mundo, o que demanda admitir alterações estruturais
na organização da urbe em seus mais variados aspectos, como mobilidade,
segurança, ambientabilidade etc. Portanto, é preciso analisar o financiamento de
obras para os eventos esportivos pelo prisma da excepcionalidade, em vista do
que é necessário dotar a Administração Pública de mecanismos dinâmicos, que
se adaptam às situações reais conforme as exigências dos programas políticos
especiais. Neste sentido cabe mencionar as lições Odete Medauar sobre o tema:
Como já se disse no início do capítulo, nas últimas décadas vem florescendo
atuações administrativas instrumentalizadas por técnicas contratuais, decorrentes
de consenso, acordo, cooperação, parceria entre Administração e particulares ou
entre órgãos e entidades estatais. Diante desse modo de atuar, novos tipos de ajuste
foram surgindo, com moldes que não se enquadram no padrão clássico de contrato
administrativo, nem no padrão teórico de contrato vigente no século XIX.272
Neste plano, é evidente que existem caminhos a serem seguidos que não
estão previstos no sistema de regras da Administração Pública, o que também
nos leva a considerar se a legalidade estrita273, no sentido de que a Administração
Pública pode/deve executar somente o que está previsto em lei, pode vir a se
submeter ao regime de autonomia contratual em contratos administrativos, sem,
no entanto, perder a coerência interna do sistema.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 15ª Ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, p. 243.
273
De acordo com Odete Medauer: “Esse significado do princípio da legalidade não predomina
na maioria das atividades administrativas, embora no exercício do poder vinculado possa haver
decisões similares a atos concretizadores de hipóteses administrativas.” Direito ..., cit., p. 395.
No mesmo sentido Mauro Roberto Gomes de Matos arremata que o princípio da legalidade
não determina todos os atos da administração, todavia estes devem pautar toda e qualquer
discricionariedade no espírito traçado pela lei. In O Contrato Administrativo. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2002, p. 88.
272
163
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Contrario sensu, a higidez típica do regime de direito público poderia
interromper o curso das opções tomadas pelos agentes públicos, ao invés
de facilitar a realização do programa político. Veja-se que a tese doravante
apresentada não insiste na flexibilização da estrita legalidade administrativa,
mas sim na adequação do financiamento público para obras esportivas ao
regime dos contratos administrativos atípicos, que por sua vez nada mais são
senão instrumentos vinculativos por força de lei, assente sobre duas ou mais
declarações de vontade, “contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre
si, que vise criar, modificar ou extinguir relações jurídicas”.274
Ocorre porém, que o caso ora usado como exemplo faz uso de um mix
de instrumentos jurídicos para dar forma a operação financeira que possibilitou
a adequação do Estádio Joaquim Américo, de propriedade do Clube Atlético
Paranaense, aos padrões da FIFA, o que viabilizou por sua vez a escolha da
cidade de Curitiba como uma das sedes para a Copa de 2014. A par disso, tornase necessário dar clareza aos mecanismos então utilizados para verificar se, ao
passo que pertencem à diversos ramos do direito público, se compatibilizam
com os critérios de legalidade e finalidade inerentes aos atos praticados pela
Administração Pública.
Neste contexto, a operação financeira que envolve o direito de construir,
ou o “solo criado”, na acepção dos urbanistas, poderia se materializar em três
formatos diferentes: (i) outorga onerosa do direito de construir, (ii) transferência
de potencial construtivo e (iii) programas políticos urbanos de incentivos
específicos, cada qual com sua especificidade jurídica.
1.1 Três institutos diferentes: (i) outorga onerosa do direito de construir,
(ii) transferência de potencial construtivo e (iii) programas políticos urbanos de
incentivos específicos
No case “Arena dos Paranaenses” o empréstimo financeiro realizado pelo
Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDES ao Estado do Paraná via Agência
de Fomento do Paraná, e posteriormente repassado à Sociedade de Propósito
Específico CAP S/A para adequação do Estádio Joaquim Américo às exigências
da FIFA para o mundial de 2014, foi viabilizado mediante a concessão de garantia
por parte do Clube Atlético Paranaense de seu Centro de Treinamentos e também
de cotas de potencial construtivo, estas últimas recebidas da Prefeitura Municipal
de Curitiba mediante convênio. A dúvida que se objetou acerca da concessão de
cotas para negociação reside justamente na natureza dessa concessão, uma vez
que sua origem tem morada num ato da administração pública municipal que cria
e concede ao Clube Atlético Paranaense um ativo de valor mobiliário, advindo da
transferência e alienação do direito de construir.
CAETANO. Marcelo. Manual de Direito Administrativo, volume I, 10ª ed. Coimbra: Almedina,
2010, p. 574.
274
164
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A despeito das limitações ao direito de propriedade, especificamente ao
direito de edificar em solo urbano, a lei que definiu as diretrizes da organização
urbana ganhou o nome de Estatuto das Cidades, e trouxe em seu bojo dois
instrumentos jurídicos e econômicos que são fundamentais para dar eficiência
ao mercado imobiliário e a ordenação das cidades, (i) a outorga onerosa do
direito de construir e a (ii) transferência de potencial construtivo.275
A (i) outorga onerosa do direito de construir consiste na possibilidade
albergada ao proprietário do imóvel de adquirir junto à municipalidade, por
meio de aquisição de cotas, o direito de edificar acima do coeficiente de
aproveitamento básico estabelecido no Plano Diretor.
Nos termos do artigo 28 do Estatuto das Cidades, a municipalidade definirá
a fórmula do cálculo para cobrança, e também os casos passíveis de isenção do
pagamento da outorga, bem como a contrapartida do beneficiário particular. Como
se pode notar, a outorga onerosa do direito de construir não se adequa à hipótese
da cessão de cotas de transferência de potencial construtivo ao Clube Atlético
Paranaense, especialmente porque não se busca ampliar o Estádio Joaquim Américo
para além da permissão prevista no ordenamento da cidade de Curitiba. O Clube
Atlético Paranaense não está adquirindo o direito de ampliar sua área edificada
acima do coeficiente de aproveitamento básico estatuído pela municipalidade.
Não obstante, poder-se-ia argumentar que a concessão das cotas do
direito de construir constitui legítimo fundo “financeiro de destinação” típica
da outorga onerosa do direito de construir, porquanto a negociação de cotas
depreende um “produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à
realização de determinados objetivos ou serviços”, configurando em verdade
uma receita vinculada decorrente da alienação de ativos da Administração.276
De qualquer maneira, não parece plausível admitir que as receitas
advindas da negociação do potencial construtivo sejam encaradas como outorga
onerosa do direito de construir com criação de receita vinculada, justamente
pelo que já foi dito acima: não se busca ampliar a área edificante para além da
permissão prevista para a zona urbana do empreendimento.
Para Adilson Abreu Dallari a outorga onerosa do direito de construir e não tem a natureza
de limitação administrativa, mas assemelha-se, entretanto, ao concurso voluntário do particular
que suporta a contrapartida de construir além do permitido, conforme o encargo suportado
pelo loteador como condição para aprovação do projeto de loteamento urbano in Solo Criado:
constitucionalidade da outorga onerosa do direito de potencial construtivo. Direito
Urbanistico e Ambiental (coord. Adilson de Abreu Dallari e Daniela Campor Libório Di Sarno.
Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 43.
276
Artigo 71, da Lei Federal nº 4.320, de 1964. Na mesma Lei, o artigo 74 define: “A lei que
instituir fundo especial poderá determinar normas peculiares de controle, prestação e tomada de
contas, sem de qualquer modo, elidir a competência específica do Tribunal de Contas ou órgão
equivalente.”
275
165
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Da mesma forma, a (ii) transferência de potencial construtivo na cidade
de Curitiba, ou seja, a compensação por parte do poder público, advinda da
redução involuntária do direito de construir inerente ao imóvel depreciado, está
disciplinada pela Lei Municipal 11.266 de 16 de dezembro de 2004, que adequou
o Plano Diretor da cidade à Lei Federal do Estatuto da Cidade, e regulamentou a
partir do artigo 65 a transferência e alienação do potencial construtivo.
Conforme instituído pelo Estatuto das Cidades, a transferência do
direito de construir só autoriza o proprietário de imóvel urbano a aliená-lo
quando o imóvel de sua titularidade for considerado necessário para os fins
de implementação de equipamentos urbanos e comunitários; preservação
para fins de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural;
regularização fundiária para comunidades de baixa renda; e doação do referido
imóvel ao Poder Público277.
Neste sentido, o aproveitamento do instituto da transferência do potencial
construtivo, conforme descrito no Plano Diretor de Curitiba, só se realizará
nas seguintes hipóteses: (i) promoção, proteção e preservação do patrimônio
histórico cultural, natural e ambiental; (ii) programas de regularização fundiária,
urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de
interesse social; (iii) implantação de equipamentos urbanos e comunitários,
e espaços de uso público; (iv) melhoramentos do sistema viário básico; (v)
proteção e preservação dos mananciais da Região Metropolitana de Curitiba
mediante convênio ou consórcio entre os municípios envolvidos.278
Como visto, em nenhuma dessas hipóteses se enquadra o convênio
firmado entre Município, Estado e a Sociedade de Propósito Específico CAP
S/A, porquanto a transferência do direito de construir é numerus clausus.
Aliás, é preciso que haja um amesquinhamento da propriedade do eventual
beneficiário das cotas de potencial construtivo. Sobre a natureza jurídica
da transferência do potencial construtivo bem rematam Yara Darci Police
Monteiro e Egle Monteiro da Silveira:
Resta claro, portanto, que a transferência do direito de construir
constitui instrumento jurídico de natureza urbanística, destinado a compensar
o proprietário de imóvel afetado ao cumprimento de uma função de interesse
público ou social, dele desincorporando o direito de construir, segundo o
coeficiente de aproveitamento previsto no plano diretor, para ser exercitado em
outro local ou alienado a terceiros.279
Lei 10.257/2010, artigo 35 e incisos.
Artigo 65 e incisos da Lei de Adequação do Plano Diretor de Curitiba ao Estatuto das Cidades,
n.º 11.266/2004.
279
MONTEIRO, Yara Darci Police; SILVEIRA, Egle Monteiro da. Transferência do Direito de
Construir. In Estatuto da Cidade (coord. Adilson de Abreu Dallari e Sérgio Ferraz. São Paulo:
277
278
166
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Como se vê, o imóvel ora em questão – Estádio Joaquim Américo – não
está sofrendo a diminuição do seu direito de propriedade, ao contrário, o que
se busca é justamente ampliar as condições físicas da arena para que receba os
jogos da Copa do Mundo de 2014.
Diante da impossibilidade de enquadrar a legalidade da concessão de
cotas do direito de construir nas regras urbanísticas de transferência do potencial
construtivo, seja pela ótica do Estatuto da Cidade, seja nos termos do Plano
Diretor da Cidade de Curitiba, resta então enquadrar a referida concessão de
cotas na modalidade de programa político atípico, a ser disciplinado por meio
de disposições contratuais administrativas, sob demanda do Programa Especial
da Copa do Mundo FIFA 2014. Aliás, é perfeitamente admissível celebrar
contratos atípicos entre entidades públicas e privadas, porquanto inerentes à
autonomia e a liberdade de contratar da Administração Pública.
Como bem ponderou Marçal Justen Filho, a questão sobre o regime
jurídico do contrato administrativo implica reconhecer a incidência de
inúmeros ramos do Direito, sobremaneira porque “a expressão regime
jurídico é utilizada para indicar um feixe de noras dentro do conjunto total
do ordenamento jurídico (...),” e no mesmo sentido complementa: “Assim,
o regime da contratação administrativa envolve normas de direito civil, de
direito comercial, de direito penal etc.”280
Nesses termos, sem a possibilidade de subsumir o contrato que concedeu
cotas de potencial construtivo à Sociedade de Propósito Específico CAP/S.A.
nas modalidades de “solo criado” como se demonstrou acima, resta analisar
a referida operação jurídica sobre o prisma de figura inédita no âmbito da
legislação municipal, o Incentivo Construtivo Especial como Instrumento de
Política Urbana.
1.2 O INCENTIVO CONSTRUTIVO ESPECIAL COMO INSTRUMENTO DE
POLÍTICA URBANA
A possibilidade de concessão de potencial construtivo para a finalização
e adequação do Estádio Joaquim Américo foi instituída pela Lei Municipal
13.620/2010 que, num primeiro momento fixou a emissão de cotas no teto de
R$ 90.000,00 (noventa milhões de reais) e, posteriormente ampliou o valor
máximo da concessão para R$ 123.066.666,67 (cento e vinte e três milhões,
sessenta e seis mil, seiscentos e sessenta e seis reais e sessenta e sete centavos,
o que se deu por meio da Lei Municipal n.º 1419/2012.
Malheiros, p. 297.
280
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 8ª Ed. Belo Horizonte: Fórum,
2012, p. 109.
167
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Conforme o artigo 1º da referida Lei, a concessão do potencial construtivo
se deu com vistas à realização do Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014
e, no entendimento da Prefeitura Municipal de Curitiba a instrumentalização do
direito de construir – como mecanismo de financiamento e garantia – não tem
relação direta com a técnica de transferência de potencial construtivo, tampouco
com o manejo da outorga onerosa do direito de construir, mas revela a utilização
de um instrumento de política urbana criado com fundamento na Lei Municipal
nº 9801/2000 que, dentre outras coisas estabelece critérios para aplicação dos
Instrumentos de Política Urbana inéditos, o que se daria nos termos do artigo 30
e 182 da Constituição Federal, bem como nos artigos 145 a 154 da Lei Orgânica
do Município de Curitiba. Para dar cabo dessa nova figura administrativa, está
previsto na Lei Municipal nº 9801/2000 que o Município de Curitiba pode
admitir a transferência de potencial construtivo mediante Convênio281, e que
será permitida também a aplicação dos Instrumentos de Política Urbana não
previstos na Legislação de Zoneamento e Uso do Solo, mediante contrapartida
do setor privado, especialmente na alocação de recursos financeiros.282
A propósito, uma vez admitida a transferência de potencial construtivo
não prevista na legislação de Legislação de Zoneamento e Uso do Solo, resta
ao beneficiário do setor privado o ônus de definir as contrapartidas a serem
aproveitadas pela sociedade em geral, tendo em vista o aproveitamento dos
incentivos concedidos pela administração.
Outra não foi a recomendação do Tribunal de Contas do Estado do Paraná
que, mediante a expedição do Ofício nº 54/2012 requereu à Secretaria Municipal
da COPA 2014 a indicação precisa da devida compensação e contrapartidas
sociais ao Município de Curitiba pelo Clube Atlético Paranaense, na condição
de beneficiário da concessão dos créditos do potencial construtivo conforme
previsto no artigo 7º, da Lei nº 13.620/10.
Portanto, uma vez contextualizada a legalidade da referida cessão de cotas
de potencial construtivo como incentivo construtivo especial, dando origem a um
novo instrumento de política urbana, resta então definir os limites de utilização
das referidas cotas, o que exige adentrar nas questões que tratam do contrato
de empréstimo realizado pelo Estado do Paraná junto ao BNDES, que recebeu
como garantia as mesmas cotas de potencial construtivo outrora repassadas pelo
Município de Curitiba à Sociedade de Propósito Específico CAP S/A.
Neste cenário, é necessário anotar brevemente dois planos distintos acerca
da autonomia e da liberdade de contratar da Administração Pública. O primeiro
plano diz respeitos à liberdade quanto a opção de contratar, e o segundo plano
relaciona-se com a gestão própria do conteúdo do contrato e a possibilidade de
estipular suas cláusulas.
Lei Municipal 9801/2000, artigo 3º, parágrafo 2º.
Lei Municipal 9801/2000, artigo 4º, inciso V.
281
282
168
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Em ambos os planos o princípio da legalidade é farol que deve orientar a
materialização da vontade da Administração Pública, por evidente. Firme neste
propósito, tendo em vista que a definição genérica de contrato resume-se a uma
atribuição bilateral de vontades livres e autônomas, necessário admitir que
mesmo submetido ao regime de Direito Público o contrato celebrado, atípico
diga-se, sofre restrições do regime de direito público na mesma medida em
que é influenciado pelo gênero contratual mais amplo, assente na disciplina do
Direito das Obrigações. Neste sentido pontifica a doutrina que:
Os contratos administrativos atípicos com objeto possível de contrato
privado, estão, evidentemente, sujeitos à precedência de lei. Como não têm
por base a estatuição de um regime específico no Ordenamento Jurídicoadministrativo, não se põe quanto a eles a questão da determinação da natureza
injuntiva ou supletiva das normas que lhes são próprias. Esse problema poderá
contudo levantar-se – embora com menor acuidade – quando se trate de contrato
correspondente a um modelo típico de direito privado ao qual as partes hajam
acrescentando clausulas em que se estipulem poderes, obrigações ou sujeições
acessórias próprias do regime geral dos contratos administrativos. Em tal
hipótese, a questão consistirá em saber qual a medida em que as partes poderão
afastar a aplicação das normas que integram o regime do modelo privado do
contrato privado correspondente. 283
Aliás, os contratos híbridos, ou seja, aqueles que embora regidos pelo
direito público tem forte ascendência do direito privado, são uma subespécie
dos contratos administrativos, onde o regime de direito privado é parcialmente
derrogado pelo direito público.284 Mesmo nessas hipóteses, uma vez definido
que o princípio da legalidade deve reger mesmo a liberdade do ente público
quanto a liberdade de contratar, em especial à escolha do parceiro privado a ser
beneficiado mediante convênio e contrato, é assaz pertinente a critica sobre a
igualdade de tratamento que deve nortear os atos da Administração em relação
a escolha do parceiro privado. Nos dizeres de José Manuel Sérvulo de Correia:
Quanto menor é o enquadramento normativo da conduta contratual da
Administração – por fluidez na indicação do fim, por abertura na enunciação
de pressupostos ou pelo silencia sobre estes, por ausência parcial ou total de
especificação de feitos – tanto mais imperiosa a verificação de uma linha de
conduta estável, que se não compagine com as diferenças de soluções em
situações concretas idênticas.285
SÉRVULO CORREIA, José Manuel. Legalidade e Autonomia Contratual nos contratos
administrativo. Coimbra: Almedina, 1987, p. 631.
284
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2011, p. 259.
285
SÉRVULO CORREIA, José Manuel. Legalidade e Autonomia Contratual nos contratos
administrativo. Coimbra: Almedina, 1987, p. 674.
283
169
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Nesses termos, o princípio do tratamento isonômico, corolário do
princípio da igualdade, traz a tona alguns questionamentos acerca do método
de escolha utilizado pelo Estado do Paraná e a municipalidade, para outorgar
ao Clube Atlético Paranaense o benefício de concessão de cotas de potencial
construtivo, haja vista que o processo de escolha dos estádios que sediarão os
jogos do Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014 foi um critério,
além de totalmente discricionário, afeto somente à Fédération Internationale de
Football Association (FIFA).
Não parece razoável dotar um ente privado de benefícios estranhos a
qualquer outro particular que exerce a mesma atividade, neste específico caso
clubes de futebol. A escolha do Clube Atlético Paranaense para receber cotas
de potencial construtivo da Prefeitura de Curitiba, e depois dá-las em garantia
de financiamento para adequar seu estádio às exigências da FIFA, avança
contra o princípio do tratamento isonômico, e por consequência afeta também
o princípio da igualdade que deve nortear os atos da Administração, porquanto
até o presente momento, os motivos da escolha do parceiro privado não foram
suficientemente motivados, quiçá vinculados ao interesse público do Município.
No plano de gestão das cláusulas contratuais, desta feita em relação ao
contrato de empréstimo relativo ao BNDES, uma das objeções que se podem
levantar diz respeito à dação em garantia de cotas cedidas pelo Município de
Curitiba, que para todos os efeitos são patrimônio público.
Conforme se verá adiante, resta ausente de justificação válida formal
o ato administrativo que permitiu a dação em garantia de cotas de potencial
construtivo ao BNDES, ante o empréstimo realizado pelo Estado do Paraná
mediante a Agência de Fomento.
2. O POTENCIAL CONSTRUTIVO E SUA DAÇÃO EM GARANTIA: UM PROBLEMA JURÍDICO
Uma vez definida a natureza pública do crédito a ser instituído mediante
a concessão de cotas de potencial construtivo, tanto sua criação como a sua
dação como garantia de financiamento, podem vir a ser inquinadas pela
ilegalidade, ora porque não se pautam pela determinação legislativa formal, ora
porque não se enquadram nos limites materiais das disposições administrativas,
especialmente porque os critérios de razoabilidade e proporcionalidade que
conferem materialidade à vontade da Administração, colha-se o magistério de
José Roberto Pimenta Oliveira:
A razoabilidade/proporcionalidade exerce, em sede contratual, uma
função primordial de conciliação entre os interesses subjacentes ao vínculo, de
natureza pública e privada. Impõe que cada decisão administrativa, em vista
170
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
da respectiva abertura engendrada pela disciplina normativa e contratual, deva
buscar a solução mais respeitosa a todos os interesses envolvidos.286
Assim, considerando que o potencial construtivo concedido ao Clube
Atlético Paranaense é um recurso público produto de receita vinculada, destinado
a finalidades específicas, mostra-se necessário estabelecer os limites de sua
utilização em instrumentos contratuais, especialmente quando figuram como
caução de obrigação pecuniária, esta última dada como garantia do empréstimo
tomado pelo Estado do Paraná (Agência de Fomento) junto ao Banco Nacional
de Desenvolvimento – BNDES.
A disciplina das garantias dadas por entidades públicas está disciplinada
em dois momentos distintos pela Constituição Federal. Num primeiro
momento, o artigo 22, inciso XXVII da Constituição Federal, assevera
a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de
contratação administrativa, logo, sendo a garantia uma obrigação de meio,
podemos considerá-la uma subespécie do contrato287, portanto expressão de um
regime contratual288. Caberia então ao Município elaborar somente legislação
suplementar ao regime geral de contratação administrativa, conforme permite o
artigo 24, § 2º, da Constituição Federal.
Todavia, mesmo considerando a possibilidade de utilizar as cotas de
potencial construtivo como garantia acessória do empréstimo realizado junto
ao BNDES, com fins exclusivos para atender o Programa Especial da Copa do
Mundo FIFA 2014, não há como se considerar a Lei Municipal n.º 13.620/2010 –
que concedeu cotas de potencial construtivo – uma regra suplementar às normas
gerais de contratação administrativa, haja vista que a sua alienação está vinculada
às normas do Plano Diretor Municipal289, e não ao peculiar regime geral de
contratação administrativa. É o que se observa no artigo 2º, § 2º, da referida lei:
§ 2º A concessão do potencial construtivo fica condicionada à apresentação
e aprovação do Projeto Executivo e o seu respectivo orçamento, acompanhado
de estudos e análises de impactos sociais, econômicos e ambientais, conforme
prevê o Plano Diretor Municipal.
286
OLIVEIRA. José Roberto Pimenta. Razoabilidade e Contrato Administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 395.
287
p. 57. Venosa 8 ed., 2008.
288
VERNALHA, Fernando. Parceria Pública-Privada. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 360.
289
Lei 13.620/2010. Art. 2º O Programa autoriza a concessão de potencial construtivo de, no
máximo, R$ 123.066.666,67, referente ao valor previsto para execução das obras exigidas para
adequação do Estádio selecionado para sediar a Copa do Mundo - FIFA 2014 (Redação dada
pela Lei nº 14219/2012). § 1º O valor do potencial construtivo referido no caput deste artigo,
será vinculado à variação do CUB - Custo Unitário Básico de Construção. § 2º A concessão do
potencial construtivo fica condicionada à apresentação e aprovação do Projeto Executivo e o seu
respectivo orçamento, acompanhado de estudos e análises de impactos sociais, econômicos e
ambientais, conforme prevê o Plano Diretor Municipal.
171
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Caberia sim ao Município, ou mesmo ao Governo do Estado do Paraná,
a iniciativa de provocar os respectivos poderes legislativos a fim de elaborar
norma suplementar às regras gerais do regime de contratação administrativa, e
não ao Plano Direito do Município. Somente uma norma correlata ao regime
geral de contratação administrativa, inerente ao artigo 22, inciso XXVII da
Constituição Federal, poderia albergar a possibilidade de dação em garantia
das cotas de potencial construtivo cedidas à entidade privada em regime de
convênio. Daí advém a confusão conceitual da qual não se pode agora escapar,
pois ao utilizar o instituto do potencial construtivo como mecanismo de
garantia, a Administração Pública busca a liberdade que não tem, porquanto o
regime de garantias em contratos públicos não é correlato aos instrumentos de
política urbana, como fazem crer as leis municipais que cederam cotas ao Clube
Atlético Paranaense.
3. NOTAS SOBRE OS ATIVOS IMOBILIÁRIOS: ALGUNS APONTAMENTOS
DE NATUREZA ECONÔMICA
Atualmente existem inúmeros meios de investir no mercado mobiliário.
Os Fundos Imobiliários, regulados pela Lei 8.668/1993, onde a capacitação
de recursos financeiros se realiza pelo Sistema de Distribuição de Valores
Mobiliários, se assemelha à uma empresa de capital aberto, todavia sem
personalidade jurídica e obrigatoriamente sob a forma de condomínio fechado.
Os Fundos se organizam de modo a investir em negócios imobiliários de toda
natureza, como direitos reais sobre imóveis, ações, debêntures, recibos de
subscrição, cotas de outros fundos, letras hipotecárias etc.290
Os Fundos de Investimento Imobiliário - FII, como sói ocorrer
em qualquer investimento adstrito ao Sistema de Distribuição de Valores
Mobiliários, estão submetidos à volatilidade dos mercados. Isso significa
dizer que o ativo imobiliário depende, logicamente, da confiança dos agentes
econômicos no sucesso da administração dos FFI, ou seja, se há confiança e
rentabilidade, o investimento é realizado. Se, ao contrário, não existe o retorno
esperado, o agente privado, ou o cotista do Fundo, é o único a absorver o
prejuízo da escolha infortuna.
No caso das cotas de transferência de potencial administrativo, ou mesmo
na outorga onerosa do direito de construir, o regime público de concessão e
gestão das referidas cotas subsume-se a prerrogativas típicas da Administração
Pública, o que significa dizer que há uma manipulação coordenada verticalmente
A regulação dos Fundos de Investimentos em Mercados Imobiliária – FII, está disciplinada
pela Instrução CVM Nº 472, 31 de outubro de 2008, e os ativos negociáveis estão listados no artigo
45 e incisos da mesma instrução.
290
172
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
do preço e da quantidade de cotas emitidas, o que se realiza de acordo com os
desígnios do administrador do momento.
Normalmente, o mercado imobiliário não costuma convergir com a
realização do programa político de ocasião, em especial quando os problemas
decorrentes do processo de urbanização291 não seguem propriamente uma
lógica previdente.
Para dar vazão à negociação de cotas do potencial construtivo concedido
à Sociedade de Propósito Específico CAP S/A, o Decreto Municipal nº 826,
de 05/06/2012, autorizou a transferência de 60.000 cotas de 1 m2 cada uma ao
Programa Especial da Copa do Mundo FIFA 2014 (artigo 2º), no valor unitário
de R$ 500,00 (quinhentos reais) o que somaria total de R$ 30.000.000,00 (trinta
milhões de reais). Em 28 de dezembro de 2012, ao final da legislatura e no
“apagar das luzes”, a Lei Ordinária n.º 14.219/2012 alterou os dispositivos da Lei
13.620/2010 – que instituiu potencial construtivo relativo ao Estádio Joaquim
Américo Guimarães – e modificou ou artigo 2º da referida da Lei para autorizar
a concessão de potencial construtivo de, no máximo R$ 123.066.666,67 (cento
e vinte e três milhões, seiscentos e sessenta e seis mil e seiscentos e sessenta e
seis reais, e sessenta e sete centavos), referente ao valor previsto para execução
das obras exigidas para adequação do Estádio selecionado para sediar a Copa
do Mundo - FIFA 2014.
Nada impede que no limiar da referida adequação do Estádio Joaquim
Américo Guimarães qualquer outro mecanismo legislativo venha a ser
manipulado para aumentar, diminuir, modificar ou mesmo extinguir cotas
de potencial construtivo, desta feita invocando o abstrato e multifacetado
“interesse público” do governante de ocasião. Acrescente-se ainda que, as
expansões e contrações do mercado imobiliário, e por via reflexa a necessidade
de aquisição de cotas de potencial construtivo, ou mesmo a outorga onerosa do
direito de construir para fins de ampliação de qualquer área edificável, não é
impulsionado pelo poder público, mas atende a uma demanda própria do setor
imobiliário atuante no território municipal.
Para dar contornos finais resta uma dúvida quanto a manipulação do “solo
criado” para fins de financiamento público: qual o ponto ótimo de emissão de
cotas para evitar uma bolha no mercado de aquisições de potencial construtivo?
Qual o método para fixar o valor das cotas de potencial construtivo? Como
Para Janaína Rigo Santini e Ricardo Quinto Mattia pode-se listar uma série de incidentes que,
de uma maneira ou outra, tornam dificultoso o processo concretização de políticas urbanas, como
a crise generalizada de moradia e a proliferação de formas ilegais de habitação urbana, combinada
com a falta de políticas habitacionais e ausências de opções acessíveis oferecidas pelo mercado
imobiliário in Direito Urbanístico e Estatuto das idades. Revista de Direito Imobiliário 63/2007.
São Paulo: RT, 2007, p. 48/49.
291
173
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
evitar a manipulação do mercado de transferências quando apenas um agente
econômico é o titular de tamanho número de cotas de potencial construtivo?
São apenas algumas observações de cariz econômico que, na ausência de
adequados instrumentos jurídicos e administrativos hábeis para dar respostas
claras à população, só o tempo poderá responder.
4. CONCLUSÕES ARTICULADAS
4.1 Ao formador a concessão de cotas de potencial construtivo, como
mecanismos de financiamento de arenas privadas, a municipalidade faz uso
de instrumentos de política urbana como (i) a outorga onerosa do direito de
construir, (ii) transferência de potencial construtivo e (iii) programas políticos
urbanos de incentivos específicos.
4.2 Não há dúvida de que os instrumentos de política urbana utilizados
para viabilizar o financiamento público à adequação do Estádio Joaquim
Américo Guimarães tem que obedecer ao regime jurídico de direito público,
porquanto são ativos patrimoniais imobiliários de titularidade do Município
de Curitiba.
4.3 Da mesma forma, a celebração de contratos atípicos, celebrados entre
entes públicos e privados, com afluência de mais de um regime jurídico, não
apresenta ilegalidades primae face, podendo inclusive estar adstrita à autonomia
de contratar da administração pública, desde que observado o respectivo regime
legal respectivo.
4.4 A gestão das cláusulas contratuais, em especial a garantia concedida
por meio de patrimônio público (cotas do direito de construir), deve ser
complementar ao regime geral de contratos administrativos e não ao direito
urbanístico.
4.5 A manipulação do direito de construir, mediante emissão de cotas
de potencial construtivo, fundadas na edição e sobreposição de instrumentos
legislativos municipais, não se obedecem aos critérios de mercado, inerentes
à clareza, objetividade e segurança do investimento, podendo vir a apresentar
resultado diverso do esperado.
174
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
REFERÊNCIAS
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 15ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
MATOS, Mauro Roberto Gomes de. O Contrato Administrativo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002.
CAETANO. Marcelo. Manual de Direito Administrativo, volume I, 10ª ed.
Coimbra: Almedina, 2010.
DALLARI, Adilson Abreu. Solo Criado: constitucionalidade da outorga
onerosa do direito de potencial construtivo. Direito Urbanístico e Ambiental,
coord. Adilson de Abreu Dallari e Daniela Campor Libório Di Sarno. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
MONTEIRO, Yara Darci Police; SILVEIRA, Egle Monteiro da. Transferência
do Direito de Construir. Estatuto da Cidade, coord. Adilson de Abreu Dallari
e Sérgio Ferraz. São Paulo: Malheiros, 2001.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 8ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas,
2011.
SÉRVULO CORREIA, José Manuel. Legalidade e Autonomia Contratual
nos contratos administrativo. Coimbra: Almedina, 1987.
OLIVEIRA. José Roberto Pimenta. Razoabilidade e Contrato Administrativo.
São Paulo: Malheiros, 2006.
VERNALHA, Fernando. Parceria Público-Privada. São Paulo: Saraiva, 2012.
SANTINI, Janaína Rigo; MATTIA, Ricardo Quinto. Direito Urbanístico e Estatuto das idades. Revista de Direito Imobiliário 63/2007. São Paulo: RT, 2007,
p. 48/49.
175
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 9
O DIREITO DA CONCORRÊNCIA E A EXCLUSIVIDADE NOS CONTRATOS
DE TRANSMISSÃO DE GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS
Vinícius Klein292
Caroline Sampaio de Almeida293
SUMÁRIO: Notas introdutórias. 1. Premissas de direito concorrencial 1.1 O sistema da
lei antitruste brasileira. 1.2 As ‘válvulas de escape’ do direito concorrencial brasileiro. 1.3
O poder econômico como falha de mercado e a sua correção pelo sistema. 2. A posição
dos órgãos do SBDC. 2.1 A posição do Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(CADE) e sua análise crítica. 3. O entendimento do CADE e a Copa de Mundo. 4. Notas
conclusivas. Referências bibliográficas.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
As Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol são eventos que representam,
concomitante e paradoxalmente, ato de congraçamento universal e espírito competitivo,
que não se restringe às práticas esportivas. No campo econômico a competição pelos
direitos de transmissão desses eventos esportivos tende a ser acirrada.
O presente estudo objetiva analisar os aspectos concorrenciais desta
disputa, analisando um possível viés contrário a livre concorrência no modelo
de venda desses direitos por meio de um pacote fechado que inclui todas as
mídias (TV aberta, TV Fechada, Rádio, Celular e Internet) com exclusividade e
preferência para renovação.
Tanto o mercado quanto o Direito correspondem a uma das formas de
organização econômica e, conseqüentemente, alocação de recursos (escassos)
Doutor em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Doutorando em
Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito
das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Empresarial e Econômico na Universidade
Positivo (UP). Diretor Acadêmico da Associação Paranaense de Direito e Economia (ADEPAR).
Membro da Comissão de Direito Econômico da OAB/PR. Procurador do Estado do Paraná.
E-mail: <[email protected]>.
293
Doutora em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em
Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Especialista em Direito Público pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Professora
convidada no curso de Especialização em Direito Civil e Empresarial da PUCPR. Conselheira
Fiscal da Associação Paranaense de Direito e Economia (ADEPAR). Secretária da Comissão de
Vítimas de Crime e Segurança Pública e Membro da Comissão de Estudos à Violência de Gênero,
ambas da OAB/PR. Procuradora Jurídica da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária
(Infraero). E-mail: <[email protected]>.
292
177
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
na sociedade. Para cumprir a sua função, o mercado vale-se do Direito (Estado),
notadamente de princípios constitucionais econômicos, tais como livre iniciativa
e liberdade de contratar, tornando possíveis as garantias, respectivamente, de
acesso à arena de trocas e disposição de oportunidades de troca.294
Ambos são indissociáveis na medida em que o Direito aparelha o exercício,
pelo Estado, de políticas voltadas à preservação do mercado e à acumulação
de capital, fazendo uso, principalmente, de dois importantes instrumentos que
interagem e se complementam, quais sejam: a legislação antitruste e a política
de regulação econômica.
Nesse aspecto, a concessão de serviços de transmissão de televisão
no Brasil tem uma estrutura jurídica e regulatória peculiar em relação
a outros setores nacionais regulados da economia e modelos adotados
internacionalmente. Como o sistema legal brasileiro não dispõe de ferramentas
específicas para planejamento e controle de estruturas voltadas à concorrência
no setor televisivo, resta-lhe como alternativa o Sistema Brasileiro de Defesa da
Concorrência (SBCD) com suas imperfeições. Vale dizer, é limitado ao controle
de condutas anticoncorrenciais ex-post (quando violam a lei antitruste), sendo
ex ante somente nas hipóteses de fusão ou aquisição.
As transmissões esportivas, em particular, gozam de significativa
relevância em termos de audiência pública, mantendo a mesma tendência
observada em outros países.
Essas são algumas das questões a serem enfrentadas doravante no presente
trabalho, cuja finalidade é analisar os fundamentos concorrenciais da posição
adotada pelos órgãos que compõe o Sistema Brasileiro de Direito Concorrencial
(SBCD) acerca do modelo contratual de venda dos direitos de transmissão dos
grandes eventos esportivos, em especial da Copa do Mundo de futebol.
1. PREMISSAS DE DIREITO CONCORRENCIAL
1.1 O SISTEMA DA LEI ANTITRUSTE BRASILEIRA
A Constituição Federal de 1988 elegeu no seu artigo 1º, inciso IV, a “livre
iniciativa” como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Historicamente, a livre iniciativa corporificou o ideal de libertação dos
laços das corporações medievais para proporcionar mais espaço ao sistema de
mercado que à época começava a se impor. Essa liberdade traduzia nada mais
que o aumento do espaço de atuação privada em face de privilégios concedidos
a determinados agentes econômicos.
FORGIONI, Paula A. A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 204.
294
178
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A atual concepção da livre iniciativa traz em seu bojo esse conteúdo
histórico, ao defini-la como garantia aos agentes econômicos de ingresso
e permanência no mercado e de acesso às oportunidades, como a de troca,
firmando contratos.295
Já a “livre concorrência” está elencada constitucionalmente no artigo
170, inciso IV, como um dos princípios da ordem econômica, assegurando,
porém, a possibilidade de o Estado intervir para reprimir “o abuso do poder
econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência
e ao aumento arbitrário dos lucros” (art.173, §4º), com vistas à defesa do
consumidor (art.170, inciso V).
No sistema constitucional brasileiro, ambos os princípios da livre iniciativa
e livre concorrência são ferramentas destinadas à promoção da dignidade
humana, o que evidencia a pretensão constitucional de perseguir objetivos mais
amplos do que o do livre mercado simplesmente.296 A disciplina antitruste tem
por escopo, em outras palavras, não apenas implementar a eficiência, como
também preservar, ao teor dos ditames constitucionais, ambiente no qual as
empresas sejam estimuladas a competir, inovar e satisfazer as necessidades dos
consumidores, evitando-se a estagnação de mercados por agentes com grande
poderio econômico.297
Ao modelar a economia e a atuação dos agentes econômicos, o
antitruste se perfaz como um instrumento de garantia de existência digna,
conforme os ditames da justiça social, ou seja, de alcance do interesse
coletivo. Sua concretização pode ocorrer ora por aplicação da lei antitruste
ora pelo afastamento desse diploma legal a práticas restritivas. Vale dizer, o
Estado poderá deixar de aplicar a Lei Antitruste, suprimindo ou atenuando
o controle sobre o processo de concentração, com vistas a formatar o
funcionamento do mercado.298
É por esse motivo que a legislação antitruste tem se municiado de
mecanismos a fim de evitar o desempenho de uma função oposta àquela
desejada pela tutela da concorrência, criando, por exemplo, obstáculos ao
crescimento econômico e à salutar competição entre os agentes econômicos.
Tais mecanismos, doravante denominados “válvulas de escape”,299 decorrem
FORGIONI, Paula A. A evolução do direito comercial..., p.206.
GRAU, Eros Roberto; FORGIONI, Paula A. Loterias: serviços públicos. Livre iniciativa/livre
concorrência e imposição de restrições à atividade dos lotéricos. O Estado, a empresa e o contrato.
São Paulo: Malheiros, 2005, p.123.
297
FORGIONI, Paula A. Os fundamentos antitruste. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012, p.188.
298
FORGIONI, Paula A. Os fundamentos..., p.189.
299
Expressão dada por Paula A. FORGIONI aos meios técnicos que viabilizam à realidade permear
o processo de interpretação e aplicação da legislação antitruste (Os fundamentos..., p.194).
295
296
179
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
da necessidade de flexibilização do texto normativo de modo a adequá-lo à
cambiante realidade e ao contexto econômico e social no qual está destinado
a operar.300 Na sequência, analisar-se-ão três dessas válvulas de escape, quais
sejam: (i) regra da razão, isenções e autorizações; (ii) mercado relevante; e (iii)
o jogo do interesse protegido.
1.2 As ‘válvulas de escape’ do direito concorrencial brasileiro
Para melhor compreensão da “regra da razão”301 e suas variações
(isenções e autorizações), torna-se imperioso discorrer, ainda que brevemente,
sobre o famoso caso Pronuptia, de 1986, apreciado pela Corte de Justiça das
Comunidades Europeias, em que se examinou a conformidade das cláusulas de
um contrato de franchising em profundidade.302
A regra da razão foi elaborada originalmente como critério para
atenuar a aplicação do Sherman Act303 aos contratos comerciais, cuja seção I
permitia, em tese, a declaração de ilicitude de grande parte deles. A essência
da referida regra reside na aplicação do ato normativo somente aos casos em
que os dispositivos contratuais causassem uma desarrazoada (unreasonable)
restrição ao comércio.304
Com a evolução doutrinária e jurisprudencial, acrescentou-se a
expressão “injustificada”, passando a regra da razão a definir como contrária
ao direito concorrencial somente o comportamento ou estrutura que seja apta a
proporcionar uma restrição substancial e injustificável. Em face disso, práticas
antes consideradas ilegais passaram a ser analisadas de forma mais equilibrada,
sopesando-se os efeitos concorrenciais e as eficiências criadas por tais práticas.
BERNINI, Giorgio. As regras de concorrência. In: Trinta anos de direito comunitário.
Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 1984, p.347.
301
A regra da razão opõe-se à regra de “per se”. Nesta, o operador do direito só faz a subsunção
do fato à norma, sem analisar os elementos de mercado que cercam aquela conduta. Já pela
“regra da razão”, os elementos que cercam a conduta são levados em conta, ou seja, há uma maior
flexibilidade da norma em relação aos fatos concretos.
302
Acórdão de 28.1.1986 – Processo 161/84. Disponível em: <eur-lex.europa.eu>. Acesso em
18.07.2012.
303
O Sherman Antitrust Act é uma lei federal de defesa da concorrência nos Estados Unidos que
prevê disposições proibindo todo acordo com o intuito de restringir o comércio. Trata-se de um
controle repressivo da concorrência punindo-se a monopolização ou sua tentativa, mas não o
monopólio em si. Ao lado do Sherman Act, tem-se o Clayton Act, que estabelece um controle
preventivo ao vedar condutas passíveis de se caracterizarem como lesão à concorrência, nos
termos da incipiency doctrine. Para essa doutrina, deverá o julgador decidir por bloquear fusões
que conduzem a uma razoável probabilidade de poder de mercado quando pairarem dúvidas sobre
o caso concreto. No direito brasileiro, a Lei nº 12.529/2011, tal como na lei anterior, traz previsão
dos controles preventivo (art. 88) e repressivo (art.36) em relação aos atos de monopolização ou
tentativa de monopolização que podem causar lesão à concorrência.
304
SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. São Paulo: Malheiros
Editores, 1998, p. 142-146.
300
180
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A título elucidativo, fruto da evolução jurisprudencial, a regra da razão
atualmente pressupõe três análises prévias: (i) prejuízo aos consumidores
provocado pela restrição; (ii) objetivo perseguido pelo ato e se tal objetivo
possui virtude redentora (redeeming virtues) capaz de justificar a restrição; (iii)
possibilidade de empregar maneira alternativa, menos lesiva à concorrência,
para alcançar os objetivos pretendidos.305
No que se refere propriamente ao caso Pronuptia306, o Tribunal Superior
de Justiça Bundesgerichtshof formulou consulta à Corte para obter decisão
prejudicial à ação ajuizada pela empresa Pronuptia de Paris GmbH (masterfranqueada da empresa francesa, identificada no processo como franqueador)
contra a Pronuptia de Paris (franqueada), que buscava o pagamento de
royalties sobre três contratos de franchising celebrados entre ambas, por meio
dos quais a franqueada detinha, em caráter de exclusividade, a comercialização
de vestidos de noiva em três regiões geográficas da Alemanha: Hamburgo,
Oldemburgo e Hannover.
Em primeira instância, a franqueada foi condenada ao pagamento de
royalties atrasados, relativos aos exercícios de 1978 a 1980. Irresignada, a
franqueada pleiteou, em sede de apelação, a declaração de nulidade do contrato
por ofensa às normas de concorrência contidas no art. 85 do Tratado de Roma,
questionando, em especial, a exclusividade territorial que constituiria barreira à
livre circulação de mercadorias dentro do Mercado Comum. Com base em tais
argumentos, a decisão de primeira instância foi revertida, pois, embora o direito
alemão não vedasse tais contratos, eles continham restrições que violavam o
mencionado art. 85, sendo considerados nulos.
O franqueador interpôs, então, recurso perante o Supremo Tribunal da
Alemanha Federal, última instancia do Poder Judiciário naquele país, que
concluiu pela necessidade de interpretação do Direito Comunitário, questão
prejudicial ao julgamento, solicitando, assim, à Corte de Justiça o respectivo
pronunciamento.
A decisão prejudicial foi favorável ao franqueador, cuja conclusão foi pela
inaplicabilidade do disposto no nº 1 do artigo 85º do Tratado CEE, nos termos
do nº 3 do artigo 85º, ao contrato-tipo de concessão (franchise) de distribuição
praticado pela Pronuptia relativamente aos seus concessionários (franchisés)
na CEE. Em face disso, foram consideradas válidas e legais as cláusulas
que obrigavam o franqueado a aplicar os métodos comerciais desenvolvidos
AREEDA, Philip. The “rule of reason” in antitrust analysis: general issues. Washington, D.C.:
Federal Judicial Center, 1981, p.2. Disponível em: <www.fjc.gov>. Acesso em: 12.07.2012.
306
O caso Pronuptia está detalhado em: BESSIS, Philippe. Le contrat de franchisage: notions
actualles et apport au droit européen. Paris: L.G.D.J., 1992, Annexe 3. Na íntegra em português
ver: <eur-lex.europa.eu>. Acesso em: 26.07.2012.
305
181
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
pelo franqueador e a utilizar o know-how transmitido, assim como a vender
as mercadorias, objeto do contrato, somente em local instalado e decorado
segundo as instruções do franqueador.
Em outras palavras, a decisão do Tribunal Comunitário, limitada àqueles
contratos de franchising específicos, definiu que, embora o art. 85-1 do Tratado vede
contratos que possam afetar o comércio entre seus Estados-membros, a aplicação da
regra a um contrato de franchising dependeria não só do teor das cláusulas contidas
no contrato, mas também do contexto econômico em que viesse a se inserir.
O pronunciamento da Corte no caso Pronuptia, ao atenuar os limites das
regras do art. 85-1 e 85-3 do Tratado de Roma, evidenciou clara aplicação da
“regra da razão” (rule of reason).
Em 30.11.1988 a Europa adotou o Règlement d’Exemption nº 4.087/88 da
Comissão, relativa à aplicação do art. 85 do Tratado de Roma aos contratos de
franchising, o que colocou fim à incerteza jurídica quanto à sua aplicabilidade.
Insta ressaltar que cada Règlement disciplina um tipo específico e único de
contrato e que a isenção não é concedida a cláusulas individuais ou acordos
parciais, mas ao contrato como um todo, quando presentes as condições que
a justifiquem.307 Vale dizer, não se aplicam aos contratos de franchising, de
modo geral, as vedações do art. 85-1 do Tratado de Roma e os contratos que
se sujeitam aos critérios definidos para contratos de franchising nos termos do
Règlement n. 4.087/88, não necessitam ser submetidos à Comissão para obter
a isenção contida no art. 85-3.
No direito concorrencial brasileiro, a nova Lei Antitruste nº 12.529/2011
emprega a “regra da razão” de forma ampla, incluindo os modos e o montante
de restrição, além de suas justificativas. No seu art. 88, estão elencadas as
condições pelas quais os atos da prática comercial podem limitar ou de qualquer
forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados
relevantes de bens ou serviços, cujas hipóteses devem subsidiar a aplicação do
art. 36 do mesmo diploma, que define as infrações da ordem econômica.
Tanto a regra da razão, como as isenções e autorizações constituem
técnicas voltadas a permitir determinadas condutas, embora restritivas da
concorrência, afastando-se barreiras legais a sua concretização.
As isenções consistem na ausência de imposição de sanção prevista
para determinada prática restritiva da concorrência, ilícita sob o aspecto legal,
quando a mesma acarreta a melhoria da produção ou distribuição de bens
ou o progresso técnico ou econômico. Esse método contempla duas normas,
uma que veda de maneira geral as práticas restritivas da concorrência e outra,
específica, que autoriza a prática restritiva quando concedida a isenção. É o caso
CRETELLA NETO, José. Do Contrato Internacional de Franchising. Rio de Janeiro: Forense,
2000, p. 209.
307
182
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
do item 3 do artigo 101 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
(TFUE),308 que se aplica tão-somente aos acordos entre empresas restritivos da
concorrência.
No tocante às autorizações, ou leis específicas que afastam a aplicação da
lei antitruste, correspondem a restrições à livre concorrência ou livre iniciativa,
cujos limites e fundamentos devem ser apontados na lei e respaldados
na Constituição Federal. Por também assumirem contornos de exceção,
interpretam-se restritivamente, aplicando-se somente às pessoas e aos casos
nelas expressamente mencionados.309
As válvulas de escape, apesar de atenderem à necessidade de flexibilização
das normas antitruste e sua adequação à realidade, acarretam inevitável
insegurança jurídica e falta de previsibilidade no processo de interpretação e
aplicação de tais normas. A busca pela segurança da codificação e vinculação
do intérprete mostrou-se insuficiente ao longo dos anos,310 por conduzir a
uma incapacidade do sistema para disciplinar os casos concretos que lhe são
submetidos. O mesmo ocorreu com as doutrinas econômicas, cujas fórmulas
matemáticas fixas e previsíveis não foram capazes de contemplar a cambiante
realidade disciplinada pelo antitruste.
É justamente nesse contexto que os princípios jurídicos ganham relevância,
servindo de instrumento ao intérprete para a adequada aplicação de normas
Artigo 101º - 1. São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre
empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam
susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objectivo ou
efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que
consistam em: a) Fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de compra ou de venda, ou
quaisquer outras condições de transacção; b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição,
o desenvolvimento técnico ou os investimentos; c) Repartir os mercados ou as fontes de
abastecimento; d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso
de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência ; e)
Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações
suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o
objecto desses contratos [...] 3. As disposições no n.º 1 podem, todavia, ser declaradas inaplicáveis:
— a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas; — a qualquer decisão, ou categoria
de decisões, de associações de empresas, e — a qualquer prática concertada, ou categoria de
práticas concertadas, que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos
ou para promover o progresso técnico ou económico, contanto que aos utilizadores se reserve
uma parte equitativa do lucro daí resultante, e que: a) Não imponham às empresas em causa
quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objectivos; b) Nem dêem
a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial
dos produtos em causa.
309
FORGIONI, Paula A. Os fundamentos..., p.209-211.
310
Sobre as teorias modernas hermenêuticas ver: FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação
das leis. In: ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis.
2ª edição, Colecção cultura jurídica, Coimbra: Arménio Amado,1963, pp.127 e ss.
308
183
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
antitruste, com uma razoável expectativa de previsibilidade e segurança.311
Razoável porque não é possível garantir em grau máximo generalidade e
previsibilidade almejada pelos agentes econômicos, pois as normas antitruste
nada mais são que produto do próprio ambiente concorrencial mutante.
1.3 O PODER ECONÔMICO COMO FALHA DE MERCADO E A SUA CORREÇÃO
PELO SISTEMA
No Estado Democrático de Direito, a intervenção estatal na economia
ocorre em regime de exceção, observadas situações que impedem o mercado de
se autorregulamentar. Nesse sentido,
[S]egundo as teorias normativas da regulamentação, o Estado deve intervir
quando o sistema de transações impessoais de mercado, mediado somente pelos
preços, falha em proporcionar uma alocação eficiente de recursos. O mercado
perfeitamente competitivo constitui o padrão de referência dessas teorias,
operando em um ambiente de racionalidade ilimitada.312
Entre as falhas de mercado reconhecidas pela doutrina tradicional –
externalidades, assimetrias de informações e bens públicos – destaca-se o poder
econômico que merece maior atenção no presente trabalho.
Há duas modalidades de poder econômico. A primeira diz respeito
à situação de dependência econômica no âmbito das relações privadas e
sob um contexto jurídico-histórico relacional das partes. A segunda, por sua
vez, ocorre no campo das relações multilaterais de mercado e leva em conta
não somente o vínculo histórico das partes, mas toda dinâmica de mercado
que atribui a determinado agente um poder em face de seus concorrentes,
clientes e fornecedores.
Caracteriza-se, assim, uma situação de dependência econômica quando
um dos contratantes é capaz de impor suas condições a outra parte, que não
terá outra alternativa senão aceitá-las para sobreviver. Trata-se de uma posição
de superioridade de um dos contratantes em relação ao outro. Essa hipótese
de abuso costuma ser enquadrada no artigo 187 do Código Civil, desde que a
conduta seja desviada de sua função econômica ou ainda frustrada a legítima
expectativa do agente.313
Caso o abuso seja praticado por empresa em situação de poder de mercado
e implique prejuízo à livre concorrência, em qualquer de suas modalidades,
FORGIONI, Paula A. Os fundamentos..., p.254.
FARINA, Elizabeth Maria Mercier Querido; AZEVEDO, Paulo Furquim de; SAES, Maria Sylvia
Macchione. Competitividade: Mercado, Estado e Organizações. São Paulo: Singular, 1997, p. 115.
313
FORGIONI, Paula A. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009, p.36.
311
312
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
caracterizar-se-á abuso a ser coibido pelas autoridades de defesa da concorrência.
Haverá uma situação de poder de mercado quando uma empresa, com poder
econômico unilateral, tiver a capacidade de restringir produção e elevar preços
acima dos níveis de concorrência, independentemente da atuação de seus
concorrentes ou clientes.
Importante ressaltar que em situações de mercados monopolistas ou
oligopolistas, não há garantias de que consumidores serão beneficiados com
custos menores e, conseqüentemente, preços mais favoráveis, de modo que, sob
a ótica da teoria econômica, não será uma solução “ótimo de Pareto”, eficiente.314
É por essa razão que, numa análise ex ante, torna-se imperiosa a disciplina
das forças de mercado por regulamentação específica ou, ainda, a substituição
pela atuação estatal. Da mesma forma, sob a ótica ex post, vislumbra-se a
importância da implementação de uma política antitruste eficiente, que nada
mais seria do que a efetivação de políticas públicas atinentes aos aspectos
concorrenciais do mercado, que propiciem, por exemplo, condições de
sobrevivência a empresas com dependência de poder econômico.
Para neutralizar, senão eliminar tal falha de mercado, a intervenção
estatal tem sido o remédio utilizado pelas autoridades públicas. A ideia dessa
interferência estatal é a de retomar o normal funcionamento do mercado,
próximo ao modelo de concorrência perfeita.
2. A POSIÇÃO DOS ÓRGÃOS DO SBDC
O CADE já analisou a questão de possíveis práticas anticompetitivas de
associações e clubes de futebol e emissoras de televisão atinentes à negociação dos
direitos de transmissão dos campeonatos brasileiros de futebol em várias mídias.
De forma mais específica as infrações investigadas eram: i)
comercialização conjunta dos direitos de transmissão do Campeonato
Brasileiro de Futebol por parte dos times participantes (venda centralizada
de direitos) a partir do ano de 1997; ii) exclusão de concorrentes por parte
de associações de futebol, devido à não inclusão dos direitos de transmissão
de alguns times de futebol à época não integrantes daquela associação no
pacote de direitos cedido às emissora de televisão aberta e fechada; iii)
associação entre empresas de televisão para aquisição conjunta dos direitos
de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol nas temporadas de 1997
a 1999; iv) estipulação de cláusulas de exclusividade e de preferência nos
sucessivos contratos de cessão de direitos de transmissão em televisão aberta
e fechada dos jogos do Campeonato Brasileiro de Futebol desde 1997.
FARINA, Elizabeth Maria Mercier Querido; AZEVEDO, Paulo Furquim de; SAES, Maria
Sylvia Macchione. Competitividade: Mercado..., p. 151
314
185
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
No curso do processo, a associação de futebol responsável sustentou,
em síntese, ausência de infração à ordem econômica ante a: (i) autorização
constitucional e infraconstitucional para firmar acordos entre clubes de futebol
e sua organização em associações; (ii) livre associação das emissoras para
buscar um fim comum; (iii) realização de concorrência pública.
A emissora de TV detentora dos direito de transmissão do Campeonato
Brasileiro de Futebol aventou, de forma sucinta: (i) a necessidade de geração
de mais receita por meio da utilização de outras mídias; (ii) o impacto da
concorrência entre o futebol e outros programas televisivos na definição de
mercado relevante; (iii) a possibilidade de desequilíbrio econômico-financeiro
no caso de eventual quebra de exclusividade, o que afetaria o potencial de receita
da associação de futebol envolvida; (iv) a decisão de leiloar com exclusividade
e adotar a cláusula de preferência sempre foi tomada unilateralmente pela
associação de futebol responsável; (v) a cláusula de preferência, ao lado de
certas condutas, são admitidas pelo direito antitruste para proteger as empresas
do comportamento free-rider, a exemplo dos investimentos realizados pela
emissora ao longo dos anos; (vi) que não restou caracterizado o abuso de
posição dominante por parte da emissora.
Enfrentadas as preliminares de caráter processual invocadas pelos
investigados, a extinta Secretaria de Direito Econômico (SDE),315 após discorrer
sobre os contratos dos direitos de transmissão para televisão aberta e fechada em
análise, bem como sobre as experiências europeia e norte-americana, emitiu parecer.
A primeira questão importante para a análise da potencial conduta
restritiva vertical diz respeito à definição dos mercados relevantes de origem
(upstream ou à jusante) e alvo (downstream ou à montante).
A conclusão da SDE foi que: “definem-se os mercados downstream
supostamente afetados pelas condutas adotadas pelas representadas como os
mercados de: 1) transmissão de imagens e sons na televisão aberta; 2) transmissão
de imagens e sons na televisão fechada; 3) transmissão de imagens e sons na
internet; 4) transmissão de imagens e sons por meio de telefonia celular”316.
Quanto ao mercado upstream a SDE afirmou que: “Portanto, os dados acima
representados evidenciam a existência de um grupo de telespectadores (homens
adultos) para os quais o futebol não apresenta bons substitutos na televisão. Por
este motivo, define-se o mercado relevante upstream, sob a ótica do telespectador,
como os de jogos de futebol com a participação dos times nacionais.”317 Na ótica
As funções da SDE passam a ser exercidas, com o advento da Lei nº 12.529/2011, pela
Superintendência-Geral, órgão responsável pela análise de todos os atos de concentração
submetidos ao CADE.
316
Parecer SDE p. 29.
317
Parecer SDE p. 38.
315
186
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
dos anunciantes a conclusão é a mesma: “conclui-se que tanto pelos critérios
de afinidade com o público alvo e custo, quanto pela adequação temática, os
jogos de futebol transmitidos em televisão aberta são produtos diferentes dos
demais, do ponto de vista dos anunciantes. Por essas razões define-se o mercado
relevante do lado do anunciante também como o dos jogos regulares de futebol
com participação dos times nacionais.”318 Por fim, com relação as emissoras
abertas: “Considerando, portanto, que a variedade de grade de programação é
uma necessidade das emissoras, que os jogos de futebol transmitidos ao vivo
com participação de times nacionais são fundamentais para atrair o público
masculino adulto, para atrair elevados investimentos publicitários e também
para contribuir para a construção da imagem e a fixação da marca da emissora,
conclui-se que os outros programas de outras categorias de programação não se
apresentam como bons substitutos às transmissões de jogos de futebol. Assim,
também em relação às emissoras de televisão aberta, o mercado relevante deve
ser definido como o de jogos de futebol regulares com participação de times
nacionais.”319 Desse modo, o mercado relevante upstream é definido como o de
jogos regulares de futebol com a participação de times nacionais.
Após a definição do mercado relevante a SDE analisa também as
características do mercado delimitado, de modo a definir a existência ou não de
infração à ordem econômica.
No direito pátrio não há o chamado direito de arena – situação em que o clube
mandante tem a titularidade plena dos direitos de transmissão –, o que acarreta
um regime de co-propriedade forçado. Ademais, existe um grau significativo de
interdependência e necessidade de coordenação entre os clubes que disputam o
campeonato. Todas essas questões tornam a venda não centralizada mais custosa,
em especial em função dos elevados custos de transação.
A segunda questão importante é a possível associação entre emissoras
para a aquisição dos direitos de transmissão de Campeonatos de futebol,
o que restou que um acordo entre empresas incapazes de apresentar ofertas
isoladamente é pró-competitivo e não restritivo a livre concorrência.
Outra questão é a de que a SDE entende que caracteriza forte prejuízo
à livre concorrência a venda de direitos de transmissão agrupados em um só
pacote e com exclusividade e na inserção de cláusula de preferência quando da
renovação dos contratos. Assim, constatou-se que a venda conjunta de todas as
mídias (TV aberta, TV fechada, rádio, internet e celular).
Por fim, ao direcionar contratos em prol de seus interesses e em detrimento
da concorrência, resta caracterizada atitude que restringe a livre concorrência.
Nesse contexto a SDE sugeriu algumas medidas para fim de evitar os
danos a concorrência identificados. Para tanto, as diretrizes recomendadas para
Parecer SDE p. 43.
Parecer SDE p. 48.
318
319
187
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
o modelo de venda dos direitos de transmissão de campeonatos de futebol, a
exemplo do Campeonato Brasileiro de Futebol, foram as seguintes: i) venda dos
direitos de transmissão das diferentes mídias em pacotes separados; ii) proibição
da inclusão do direito de preferência na renovação em todos os contratos; iii)
limitação da vigência dos contratos a 4 (quatro) temporadas; iv) venda dos
direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro para a TV aberta em três
pacotes, sendo um com os jogos das quarta-feira e domingo, um segundo com
os jogos das quinta-feira e sábado e um terceiro com os melhores momentos dos
jogos para ser utilizado em reprises.
Posteriormente, o CADE acolheu o entendimento esposado pela SDE quanto
a definição dos mercados relevantes. Ainda, entendeu que é legítima a negociação
por meio de uma associação de Clubes, em função da ausência de direito de
arena no Brasil e das eficiências geradas em função do caráter cooperativo da
atividade. Quanto à cláusula de preferência observou que ela efetivamente reduz a
competitividade, gerando ineficiências. Acerca da obrigatoriedade de transmissão
em todas as mídias entendeu que essa conclusão deve ser contextualizada as diversas
mídias em questão são ao mesmo tempo substitutas e complementares a TV aberta.
Afinal, por exemplo, se duas empresas diversas detém os direitos de transmissão da
TV aberta e da TV fechada tem-se uma necessidade de coordenação dessas mídias,
visando evitar a canabalização dos produtos.
2.1 A POSIÇÃO DO CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA
(CADE) E SUA ANÁLISE CRÍTICA
É complexa a promoção da intervenção em geral do Estado no domínio
econômico e, em especial, no âmbito concorrencial. Vários casos já foram
decididos pelo CADE sobre mercados de TV fechada, mas há casos mais
específicos, como os de intervenção no mercado de transmissões esportivas.
Assim, observou-se uma certo receio do órgão em intervir de forma mais
incisiva em função da dificuldade de apreensão da racionalidade econômica
do mercado em análise. Esse contexto prevaleceu mesmo em um órgão com
contornos institucionais próprios, que foram desenhados visando facilitar e
apreensão do comportamento econômico.
A análise feita pelo CADE, entretanto, foi capaz de identificar algumas
características relevantes: no Brasil a venda conjunta dos direitos de transmissão
não enfrenta qualquer óbice concorrencial em função da ausência de direito
de arena; o produto jogo de futebol é único e não tem substituto perante os
anunciantes em função da penetração no público espectador de homens adultos;
o sublicenciamento pode ser instrumento eficaz para minorar os prejuízos
concorrenciais dos contratos de exclusividade de transmissão; a cláusula de
188
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
preferência e a venda em um pacote fechado de todas as mídias tem efeitos
bastante significativos de restrição a livre concorrência.
Essas características podem ser um instrumento interessante para analisar
as peculiaridades do grande evento esportivo objeto deste trabalho: a Copa do
Mundo de Futebol, é o que se fará na próxima seção.
3. O ENTENDIMENTO DO CADE E A COPA DE MUNDO
A principal similaridade entre a alienação dos direitos de transmissão
do Campeonato Brasileiro e da Copa do Mundo é a repetição do modelo de
venda conjunta de todas as mídias e a ausência de uma disputa ampla baseada
em preço tornam os tornam os termos do contrato de transmissão da Copa do
Mundo potencialmente danosos ao ambiente concorrencial pátrio.
Todavia, deve-se ponderar se a possibilidade de sub-licenciamento e as
características específicas da Copa do Mundo – curta duração e periodicidade a
cada quatro anos - seriam capazes de compensar os danos concorrenciais apontados.
Não é possível neste trabalho fazer uma análise mais precisa e definitiva,
entretanto, pode-se apontar algumas diretrizes gerais. O primeiro ponto diz
respeito a desnecessidade de grandes investimentos por parte da empresa
detentora dos direitos na relevância da seleção brasileira de futebol e do
evento Copa do Mundo. Ao contrário de outros esportes ou mesmo de alguns
campeonatos nacionais de futebol a sua importância para os brasileiros já está
consolidada na cultura nacional. Assim, não se identifica, numa análise mais
geral, a necessidade de proteção contra atitudes de carona (free-rider). Um
segundo ponto a ser considerado é que a maior periodicidade da Copa do Mundo,
nos moldes da linha de análise do CADE, reduz os impactos concorrenciais
negativos, mas não a ponto de tornar insignificantes.
Assim, o modelo de venda dos direitos de transmissão da Copa do Mundo
com um pacote fechado de todas as mídias – ao contrário do que ocorreu na
última Olimpíada – se seguida a linha de análise adotada pelo CADE tem o
potencial de efeitos concorrenciais negativos no mercado pátrio. Esse modelo,
apesar da ausência de condenação em função da celebração do TCC, já foi
considerado como pernicioso a livre concorrência. Apesar da ausência de um
estudo econômico detalhado, as características específicas da Copa do Mundo
não parecem ser capazes de suplantar esses efeitos negativos.
Desse modo, o trabalho iniciado pelo CADE na mitigação dos efeitos
anticoncorrenciais das práticas contratuais utilizadas nos processos de venda
de direitos de transmissão de eventos esportivos em geral e de competição de
futebol em especial não deve ser interrompido e na Copa do Mundo de Futebol
de 2014 tem-se uma grande oportunidade para repensar os fundamentos da
189
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
análise já realizada e eventualmente retomar uma atuação mais incisiva na
defesa da concorrência nesses mercados.
4. NOTAS CONCLUSIVAS
Em função dos recursos limitados a atuação da autoridade concorrencial
deve ser feita direcionada para os mercados e as práticas com maior
possibilidade de causar prejuízos significativos a livre concorrência. Para tanto
faz-se necessário uma atividade de escaneamento (screening) dos mercados,
de modo a identificar aqueles que demandam uma maior atenção na perspectiva
concorrencial. Essa é atividade a que se propôs esse estudo, demonstrar que o
mercado de direitos de transmissão de eventos esportivos merece um lugar no
conjunto dos mercados que demandam uma maior atenção concorrencial.
Ademais, trata-se de mercado que foi objeto de uma análise inicial,
todavia a atuação concorrencial mais incisiva foi afastada em função das
peculiaridades do caso.
Desse modo, pode-se concluir indicando que o modelo de venda dos
direitos de transmissão da Copa do Mundo de Futebol tem o potencial para causar
danos significativos ao ambiente concorrencial pátrio. Entretanto uma análise
mais assertiva dependeria de um estudo econômico mais aprofundado, o que
poderia ser feito pelo próprio Departamento de Estudos Econômicos do CADE.
190
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
REFERÊNCIAS
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191
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
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veja.abril.com.br
192
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 10
OS EVENTOS ESPORTIVOS DE 2014 E 2016 E O COMBATE AOS CARTÉIS
EM LICITAÇÕES NO BRASIL
Gustavo Flausino Coelho320
Ricardo Villela Mafra Alves da Silva321
SUMÁRIO: Introdução. 1. Cartel: caracterização e nocividade. 1.1 Previsão legal e
caracterização do cartel. 1.2 O custo social do cartel. 1.3 Conclusão preliminar: o prejuízo
gerado pelo cartel e a necessidade de sua repressão. 2. Cartel em licitação. 2.1 Cartéis
em licitação e os danos gerados pela prática no contexto da Copa do Mundo em 2014
e dos Jogos Olímpicos de 2016. 2.2 As modalidades de cartel em licitações e condições
estruturais necessárias. 2.3 O Papel do mercado relevante em casos de cartel em licitação.
2.4 Condições estruturais do mercado relevante e os procedimentos licitatórios relacionados
aos eventos esportivos de 2014 e 2016: por que o cartel será uma preocupação do CADE?
3. O CADE e o combate aos cartéis em licitações. 3.1 A jurisprudência do CADE. 3.2 As
ferramentas da Lei nº 12.529/2011: o programa de leniência e os procedimentos de busca e
apreensão. 4. Conclusão. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
O momento pelo qual passa o Brasil atualmente é marcado por
investimentos substanciais. Com as descobertas relativas às reservas do pré-sal,
a execução do Programa de Aceleração do Crescimento, além da conquista do
direito de sediar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, os
investimentos do governo no setor de infraestrutura no país devem crescer de
maneira considerável322. Esses investimentos governamentais incluirão gastos
com a aquisição de bens e serviços de particulares, que deverão ser precedidos
por processos licitatórios323.
Advogado graduado pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (FND/UFRJ). Especialista em Direito Societário e Mercado de Capitais pela Escola de
Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ).
321
Advogado graduado pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (FND/UFRJ).
322
Por exemplo, até setembro de 2012, R$ 385,9 bilhões haviam sido investidos em projetos
de infraestrutura previstos no Programa de Aceleração do Crescimento, sendo que as obras já
concluídas representam R$ 272,7 bilhões. Disponível em: <http://www.pac.gov.br/sobre-o-pac/
divulgacao-do-balanco>. Acesso em: 10 dez. 2012.
323
Conforme estabelece o artigo 2º da Lei nº 8.666/1993: “As obras, serviços, inclusive de
publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública,
320
193
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 incluem-se no
contexto de ampliação substancial dos gastos públicos com infraestrutura. Além
da construção de diversos estádios de futebol e centros esportivos em geral,
serão necessários também investimentos em mobilidade urbana, saneamento,
urbanização, geração de energia, dentre muitos outros. Somente para a Copa do
Mundo de 2014, por exemplo, estima-se que serão investidos aproximadamente
R$ 33 bilhões em infraestrutura324.
Os recursos que serão necessários para a realização da Copa do Mundo de
2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 devem ser utilizados de forma eficiente, de
modo a maximizar seu valor e garantir que sua aplicação ocorrerá em consonância
com os interesses públicos e da sociedade. Portanto, é essencial certificar-se
que as regras concorrenciais serão respeitadas nos procedimentos licitatórios
relacionados aos eventos esportivos que o Brasil sediará nos próximos anos.
A exigência de licitação como condição para a realização de compras
pelo poder público baseia-se na competição, uma vez que os participantes do
certame devem concorrer com vistas à obtenção do menor preço para a execução
dos serviços ou fornecimento de bens desejados pelo poder público325. Assim,
a concorrência está presente no conceito de licitação e deve ser garantida para
assegurar-se o êxito do procedimento. A literatura e a lógica econômica sustentam
que, em regra, a falta de concorrência em processos licitatórios propicia ao(s)
seu(s) participante(s) fixar um preço acima daquele que seria observado em
situação de competição, resultando em prejuízos à administração pública e
diminuindo o bem-estar da sociedade. A livre concorrência é um direito garantido
pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988326 e é protegida por
meio da Lei nº 12.529/2011, sendo um direito de titularidade da coletividade327.
Portanto, considerando o valor jurídico e também econômico da proteção
da concorrência, especialmente no âmbito de procedimentos relacionados à
utilização de recursos públicos, a observância das regras concorrenciais deve ser
estabelecida como uma das prioridades em licitações.
Nesse contexto, o presente artigo dedica-se ao estudo dos cartéis em
licitações. O cartel é frequentemente indicado como o ilícito concorrencial mais
quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação ressalvadas as
hipóteses previstas nesta Lei”.
324
Essa a outras estimativas podem ser encontradas em <http://www.copa2014.gov.br/pt-br/
sobre-a-copa/grandes-numeros>.
325
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª edição. Malheiros:
São Paulo, 2002, p. 466.
326
Conforme inciso IV do artigo 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IV - livre concorrência”.
327
Cf. parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 12.529/2011.
194
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
grave e danoso à coletividade. No caso dos cartéis em licitações, o prejuízo à
sociedade fica ainda mais claro, pois os recursos desviados pela prática são
pertencentes ao poder público e, consequentemente, à população em geral. Para
a adequada abordagem da prática do cartel em licitações, em primeiro lugar
buscar-se-á tipificar o cartel e analisar como ele prejudica os consumidores e
diminui o bem-estar da sociedade, demonstrando o seu custo social e esclarecendo
o efeito do “peso morto” (deadweight loss). Em seguida, analisar-se-á a prática
do cartel no contexto de procedimentos licitatórios e as particularidades que a
licitação apresenta para a defesa da concorrência. Para a adequada análise do
cartel em licitações, utilizar-se-á dois documentos elaborados pela Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”)328 e pela Secretaria
de Direito Econômico (“SDE”)329-330 sobre o tema. Após a abordagem teórica
do cartel em licitações, estudar-se-á a jurisprudência e a prática do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”) relacionadas à repressão do
cartel em procedimentos licitatórios. Por fim, a conclusão do presente estudo
buscará indicar as premissas que devem ser utilizadas para o combate ao cartel
em licitações, assim como recomendações para o aprimoramento da defesa da
concorrência em procedimentos licitatórios.
1. CARTEL: CARACTERIZAÇÃO E NOCIVIDADE
1.1 PREVISÃO LEGAL E CARACTERIZAÇÃO DO CARTEL
No ordenamento jurídico brasileiro, o cartel é previsto como infração
administrativa, além de ser tipificado como crime contra a ordem econômica
pela Lei nº 8.137/1990331. O inciso I do parágrafo 3º do artigo 36 da Lei nº
12.529/2011 define o cartel da seguinte forma:
[A]cordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer
forma: a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente; b) a produção
ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a
prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços;
c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou
serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões
ou períodos; d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública.
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Diretrizes para combater o
conluio entre concorrentes em contratações públicas. Fev. 2009. Disponível em: <http://www.
oecd.org/dataoecd/34/29/44162082.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2012.
329
Secretaria de Direito Econômico. Combate a cartéis em licitações. 2008. Disponível em: <http://
www.comprasnet.gov.br/banner/seguro/Cartilha_Licitacao.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2012.
330
Apesar de a SDE não atuar na defesa da concorrência desde a entrada em vigor da Lei nº
12.529/2011, o documento elaborado por este órgão ainda é referência adequada para a análise da
prática do cartel em licitações.
331
Cf. artigo 4º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990.
328
195
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Pode-se perceber, a partir da definição legal, que o cartel é um acordo
realizado entre concorrentes com objetivo de regular variáveis relevantes na
dinâmica concorrencial, como preço, quantidade e qualidade, independente da
forma ou do método adotado. O cartel, portanto, é espécie de colusão entre
agentes econômicos332.
O caput do artigo 36 da Lei nº 12.529/2011 determina que são infrações
à ordem econômica, “independentemente de culpa, os atos sob qualquer
forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir” os efeitos
anticompetitivos previstos em seus quatro incisos333. Portanto, a forma adotada
por membros de um cartel para estruturar o acordo ilícito é irrelevante para
a caracterização da infração administrativa. Desse modo, tanto cartéis
formalizados explicitamente, por meio de acordos escritos, ou tacitamente, i.e.,
sem a existência de um acordo propriamente dito334, podem ser penalizados pelo
direito concorrencial se obtidas provas suficientes para provar sua existência335.
É importante observar que nem todos os acordos entre concorrentes são
penalizados pelo direito concorrencial. Na sistemática do direito concorrencial
Conforme ressaltado por Calixto Salomão, a colusão entre agentes econômicos pode ser
horizontal, quando ocorrer entre concorrentes diretos, ou vertical, quando envolver agentes
econômicos percentes à diferentes etapas da mesma corrente produtiva (SALOMÃO FILHO,
Calixto. Direito concorrencial: as condutas. Malheiros: São Paulo, 2007, p. 260).
333
“Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos
sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes
efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a
livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III aumentar arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição dominante.”
334
A colusão tácita está relacionada com a ideia do “comportamento paralelo intencional”
mencionado por Calixto Salomão Filho (op. cit., p. 263). A instabilidade do cartel, causada pelo
incentivo de seus participantes oportunisticamente burlarem o acordo, faz com que a colusão
horizontal tácita seja mais difícil de ocorrer. Consequentemente, a teoria econômica indica que
a colusão tática somente poderá ocorrer em mercados que apresentem fatores estruturais que
confiram maior estabilidade ao acordo (v.g., homogeneidade do produto, presença de poucos
concorrentes, baixa taxa de inovação, existência de barreiras ao mercado, transparência de preços).
335
No contexto norte-americano, Herbert Hovenkamp ressalta o fato de que as autoridades
públicas concentram seus esforços principalmente com casos nos quais é mais fácil provar
o acordo ou contrato anticoncorrencial, embora os cartéis tácitos sejam aqueles que causam
os maiores prejuízos aos consumidores: “[o]ne disconcerting conclusion for antitrust policy
is that oligopoly strategies can be more stable and free from incentives to cheat than are cartel
strategies. [...] A related, equally disturbing conclusion is that the agreement requirement obliges
antitrust enforcers to put their limited resources in the wrong place. Since antitrust laws require
‘agreement’, enforcement money is generally spent in areas where an agreement can be proven.
But only the least stable situations require a qualifying antitrust agreement. In those areas where
cooperative interaction among firms is likely to do the most damage, no ‘agreement’ is required”
(HOVENKAMP, Herbert. Federal Antitrust Policy: the law of competition and its practice. 3ª
edição. St. Paul: West Publishing Co., 2005).
332
196
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
brasileiro, mesmo as práticas que geram efeitos anticoncorrenciais podem ser
consideradas lícitas caso tais efeitos adversos sejam compensados por ganhos
de eficiência336. A ponderação dos efeitos e do contexto no qual se insere a
prática anticoncorrencial foi introduzida pelos tribunais norte-americanos por
meio da “regra da razão” (rule of reason). Segundo essa regra, algumas condutas
anticompetitivas deveriam ser consideradas ilícitas per se – i.e., o simples fato
de adotá-las seria considerado ilegal – enquanto outras condutas deveriam ser
analisadas levando-se em consideração as circunstâncias e o contexto no qual
estavam inseridas337. Enquanto na prática norte-americana a necessidade de
ponderação dos efeitos construiu-se por meio do esforço jurisprudencial, no
Brasil ela se dá por força de previsão legal. Assim, não há no ordenamento
brasileiro qualquer prática que seja considerada ilegal per se. No entanto, dada a
inexistência de eficiências criadas pelo cartel, a prática é usualmente condenada
pelo CADE sem que haja ponderação de seus efeitos. Outros acordos, como
aqueles que estabelecem colaboração entre concorrentes para alcançar uma
finalidade comum ou outro tipo semelhante de interação entre competidores
devem ser analisados por meio da ponderação de efeitos, muito embora possam
envolver a fixação de preços ou regulação de condições de concorrência.
Portanto, a prática do cartel, conforme aqui descrita e tipificada pela Lei nº
12.529/2011, refere-se a acordos horizontais com o único intuito de regular
variáveis relevantes da dinâmica concorrencial, como preços, quantidade,
qualidade, área de atuação, dentre outras338.
Assim, o cartel é caracterizado como a prática pela qual concorrentes
estabelecem acordo, sob qualquer forma, tácito ou explícito, cujo único objetivo
é regular suas condições de concorrência, de modo a maximizar seus lucros, sem
nenhum tipo de contrapartida (i.e., criação de eficiências) para o consumidor.
Cf. artigo 88, parágrafo 6º: “Os atos a que se refere o § 5º deste artigo poderão ser autorizados,
desde que sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os seguintes objetivos:
I - cumulada ou alternativamente: a) aumentar a produtividade ou a competitividade; b) melhorar
a qualidade de bens ou serviços; ou c) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou
econômico; e II - sejam repassados aos consumidores parte relevante dos benefícios decorrentes”.
Apesar do mencionado dispositivo referir-se à aprovação de atos de concentração que geram
eficiências, não obstante apresentem também efeitos anticoncorrenciais, a mesma lógica pode ser
aplicada na análise de condutas anticompetitivas. Desse modo, não seria razoável que o CADE
condenasse práticas que geram eficiências que compensam os efeitos anticoncorrenciais criados.
337
Cf. HOVENKAMP, Herbert, op. cit., pp. 253 e ss.
338
As práticas que possuem como único objetivo restringir a concorrência são tratadas pelo direito
concorrencial norte-americano como “naked restraints”, em oposição às práticas que, embora
restrinjam a concorrência, buscam a criação de eficiências, chamadas de “ancillary restraints” (Cf.
HOVENKAMP, Herbert. The antitrust enterprise: principle and execution. Cambridge: Harvard
University Press, 2008, p. 125).
336
197
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
1.2 O CUSTO SOCIAL DO CARTEL
O cartel é geralmente indicado como a prática mais nociva ao consumidor,
em razão das perdas substanciais que gera. Estima-se que o cartel implique
em sobrepreço de 10 a 20% com relação ao preço em condições normais de
concorrência339. Na literatura jurídica e econômica, o custo social do cartel é
geralmente medido por meio do peso morto (deadweight loss) gerado pela prática.
Em condições de concorrência perfeita, os agentes econômicos não são
capazes de estabelecer o preço de seus produtos (que é, portanto, estabelecido
pelo mercado), podendo apenas determinar a quantidade que produzirão. Por
esse motivo, os agentes aumentam a quantidade ofertada até que o custo de
produção de uma unidade adicional (custo marginal) se iguale ao preço dado
pelo mercado, de modo a maximizar sua receita. Na medida em que o nível
de competição diminui e as condições de mercado se afastam do cenário de
concorrência perfeita, a quantidade produzida pelo agente econômico diminui,
causando, consequentemente, o aumento dos preços.
No entanto, enquanto houver concorrência, nenhum dos agentes
econômicos presentes no mercado poderá diminuir discricionariamente a
quantidade ofertada, pois correrá o risco de que a demanda reprimida seja
suprida por seu rival. Pode-se perceber, portanto, que a concorrência possui
papel primordial na manutenção de preços em patamares justos e na criação
de incentivos para inovar e aprimorar produtos e serviços, já que qualquer
tipo de escassez criada artificialmente por um competidor poderá ser sanada
pelo seu concorrente, gerando uma constante pressão competitiva sobre os
agentes econômicos340.
Quanto maior for a diferença entre o preço e o custo marginal em
determinado mercado, maior será o retorno financeiro de seus agentes
econômicos e menor será o bem-estar do consumidor, que estará pagando um
valor maior do que o necessário e justo pelos produtos ou serviços. O cartel
elimina a concorrência, criando uma situação de monopólio. Nessas situações,
o preço situa-se muito acima do custo marginal, criando prejuízos enormes aos
consumidores, gerando o peso morto representado no Gráfico ao lado341:
Secretaria de Direito Econômico. Combate a cartéis e programa de leniência. 2008. Disponível
em: <http://www.comprasnet.gov.br/noticias/Cartilha_Carteis.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2012.
340
Por essa mesma razão, afirma-se que cartéis são, por natureza, instáveis. Independente da forma
ou do método adotado por membros de um cartel, o acordo somente funcionará adequadamente
se for capaz de gerar escassez – seja ela de oferta, investimento, qualidade, inovação, ou de
qualquer outra variável econômica. Desse modo, todos os participantes do cartel terão incentivo
constante para burlar o acordo pactuado com os demais membros e suprir a demanda repremida
criada pela escassez artificial e, assim, ampliar sua participação de mercado.
341
Elaborado a partir de HOVENKAMP, Herbert, op. cit., p. 20; e NUNES, A. J. Avelãs. Economia
339
198
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Em mercado de concorrência perfeita, conforme demonstrado
anteriormente, o preço é dado pelo mercado e os agentes econômicos, com
o intuito de maximizar sua receita, produzirão quantidade Qc, equivalente
ao patamar no qual o custo de produção de uma unidade adicional é igual ao
preço dado pelo mercado (i.e., o patamar no qual o custo marginal encontra a
demanda). Na hipótese de concorrência perfeita, o bem-estar do consumidor é
maximizado, sendo o seu excedente representado pelo triângulo 1-3-6.
Na hipótese de monopólio, por outro lado, o monopolista é responsável
pela oferta total do mercado e, portanto, pode produzir a quantidade que
preferir342. Assim, o monopolista buscará estabelecer a sua produção no patamar
que apresentar o maior retorno financeiro, i.e., maior lucro. Como o lucro é
equivalente à diferença entre o custo de produção e o preço, multiplicado pelo
número de unidades produzidas, o monopolista buscará ofertar a quantidade
que oferecer o maior retorno financeiro de acordo com a seguinte equação: l
= q (p-c). O resultado dessa equação será maximizado totalmente quando o
monopolista oferta a quantidade representada no Gráfico 1 por Qm, no ponto
no qual a receita proveniente da produção de uma unidade adicional, a receita
marginal, cruza com a curva do custo marginal343.
Desse modo, o ganho do monopolista é representado no Gráfico 1 acima
pela área definida pelos pontos 2-3-5-4, enquanto o triângulo 4-5-6 representa
o peso morto causado pelo monopólio. O custo social do monopólio, portanto,
Política: a produção - mercados e preços. Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra:
Coimbra, 2007, pp. 373 e ss.
342
Por força do Princípio de Cournot, o monopolista pode optar por fixar o preço ou a quantidade
que preferir, mas nunca os dois simultâneamente: “[s]e fixa as quantidade que quer vender, é o
mercado que lhe diz o preço por que as compra; se fixa o preço a que deseja transacionar, é o
mercado que lhe diz as quantidades que absorve” (NUNES, A. J. Avelãs, op. cit., p. 375).
343
Caso o monopolista estabeleça sua quantidade em patamar no qual o custo marginal é maior
que a receita marginal, sua retorno financeiro será menor em cada unidade produzida, fazendo
que o retorno total diminua.
199
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
nada mais é do que a perda de eficiência causada pela maximização do retorno
financeiro do monopolista. Em razão da escassez causada pelo monopolista, os
consumidores buscarão substitutos imperfeitos dos seus produtos ou serviços,
criando ineficiência na alocação de recursos. Assim, além de pagar o sobrepreço
gerado pelo monopólio, os consumidores também são forçados a buscar transações
alternativas no mercado que representam um valor social reduzido344.
Além disso, o quadrado 2-3-5-4 representa a renda adicional auferida
pelo agente econômico em razão de seu monopólio, i.e., a renda transferida
do consumidor para o monopolista. No entanto, considerando que mercados
monopolizados são atraentes, o agente monopolista deve constantemente
adotar precauções para proteger seu domínio. Desse modo, grande parte ou
até a totalidade da renda representada pela área do quadrado 2-3-5-4 pode ser
utilizada pelo agente econômico para a proteção de seu monopólio345, gerando
uma situação na qual todos perdem.
1.3 CONCLUSÃO PRELIMINAR: O PREJUÍZO GERADO PELO CARTEL E A NECESSIDADE DE SUA REPRESSÃO
Como é possível perceber na breve exposição feita ao longo deste
capítulo, o cartel é uma prática concorrencial altamente nociva, capaz de gerar
sérios prejuízos ao consumidor e ineficiência. Por essa razão, e considerando
que a prática não oferece qualquer tipo de benefício compensatório, o cartel é
conduta ilícita per se, bastando a sua comprovação para que seja condenada
pelo órgão de defesa da concorrência.
Após a análise de como o cartel funciona e como os danos à coletividade
são gerados, passa-se agora ao estudo do cartel em licitações.
2. CARTEL EM LICITAÇÃO
2.1 CARTÉIS EM LICITAÇÕES E OS DANOS GERADOS PELA PRÁTICA NO CONTEXTO DA COPA DO MUNDO DE 2014 E DOS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
No contexto do planejamento para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos
Olímpicos de 2016, a questão dos cartéis em licitações gera preocupação não
só pelo sobrepreço resultante, mas também em razão de possíveis perdas de
qualidade e atrasos nos cronogramas previstos. Com o grande volume de
licitações previsto para os próximos anos, cria-se um ambiente propício para a
atuação concertada entre os agentes econômicos, pois, na hipótese de formação
HOVENKAMP, Herbert, op. cit., p. 20.
HOVENKAMP, Herbert, op. cit., p. 21.
344
345
200
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
de um cartel, haveria oportunidades suficientes para garantir que todos os
participantes tenham “o seu próprio contrato”.
A prática do cartel em licitações é causadora de grande prejuízo para o
poder público, podendo prejudicar o planejamento e orçamento elaborados para
a execução das obras previstas. Desta forma, no caso da Copa do Mundo de
2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, a colusão em processos licitatórios pode
dar causa a um inesperado aumento dos custos e atraso nas obras, prejudicando
todo o projeto e comprometendo o país frente às organizações internacionais
com as quais firmou obrigações. Além disso, os eventos esportivos que o Brasil
sediará exigem o mais alto padrão de qualidade e tecnologia nas instalações
e infraestrutura das cidades-sede. Em um ambiente de pouca concorrência,
a qualidade dos produtos e serviços é reduzida. Logo, o cartel em licitações
atinge diretamente o bem-estar da sociedade e os interesses do Estado.
2.2 AS MODALIDADES DE CARTEL EM LICITAÇÕES E CONDIÇÕES ESTRUTURAIS NECESSÁRIAS
Assim como nos cartéis tradicionais, os acordos horizontais em
licitações têm como objetivo primordial eliminar a concorrência entre os
agentes econômicos, de forma a possibilitar o aumento abusivo de preços.
Tanto na Lei nº 8.884/1994346, quanto na Lei nº 12.529/2011347, a prática do
cartel em licitações é prevista em dispositivo próprio, o que demonstra a grande
preocupação do legislador com o conluio entre concorrentes com o objetivo de
aumentar abusivamente os preços em procedimentos licitatórios.
No entanto, os cartéis em licitações possuem uma peculiaridade com
relação aos demais tipos de acordos horizontais ilícitos. O cartel tradicional
permite que todos os seus participantes recebam benefícios do acordo ilícito
imediatamente. A partir do momento em que o acordo ilícito é pactuado entre
os concorrentes, todos os participantes passam a extrair indevidamente uma
parcela excessiva da renda do consumidor. No entanto, o procedimento licitatório
só permite um agente vencedor por certame. Assim, os participantes do cartel
estruturam seus acordos de diversas formas para garantir que todos obterão os
benefícios advindos do acordo ilícito. Pode-se perceber que o cartel em licitações
será sempre operacionalizado mediante acordo expresso entre seus participantes.
Devido às peculiaridades dessa prática, não há que se falar em colusão tácita em
procedimentos licitatórios, pois os seus participantes deverão necessariamente
Cf. Artigo 21, inciso VIII, da Lei nº 8.884/1994. A Lei nº 8.884/1994 era considerada a lei
antitruste brasileira até 29 de maio de 2012, quando a Lei nº 12.529/2011 entrou em vigor,
revogando os dispositivos legais da lei anterior (exceto os artigos 86 e 87).
347
Cf. Artigo 36, parágrafo 3º, inciso I, alínea “d”, da Lei nº 12.529/2011.
346
201
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
organizar-se para decidir como o vencedor do certame distribuirá aos demais
agentes a renda extraída indevidamente do poder público ou, se o acordo envolver
diversas licitações, qual agente sairá vencedor em cada procedimento.
O cartel em licitações pode ser operacionalizado de diversas formas, a
depender das características do mercado em questão e de outras condições fáticas.
Assim, o acordo pode ser estruturado por meio de: (i) fixação de preços, no qual
os concorrentes determinam o valor de suas propostas em comum acordo; (ii)
divisão do mercado, quando a cada competidor é reservada uma determinada
região onde ele ganhará as licitações; (iii) direcionamento privado da licitação,
no qual os participantes do cartel acordam previamente quem será o vencedor do
certame e sob quais condições; e (iv) subcontratação posterior, quando o agente
escolhido para vencer o certame compromete-se a subcontratar os demais348. Para
efetivar o acordo ilícito, os participantes do cartel utilizam diferentes artifícios
na ocasião do procedimento licitatório, como, por exemplo: (i) oferecimento de
propostas fictícias; (ii) supressão de propostas; e (iii) propostas rotativas.
Por meio de propostas fictícias, os membros do cartel apresentam ofertas
com preços excessivamente elevados ou impõem condições inaceitáveis para
o comprador349. O objetivo da apresentação da proposta fictícia é simular a
existência de competição entre os concorrentes, quando na verdade já existe
definição, entre os agentes econômicos, sobre qual deles será o vencedor do
certame. Pela supressão de propostas, por sua vez, os agentes que participariam
do procedimento licitatório não comparecem ao certame para apresentação de
sua proposta ou, de outra forma, comparecem ao procedimento, mas retiram
a proposta previamente apresentada. Dessa forma, os agentes que retiram
ou não apresentam sua proposta buscam favorecer o participante do cartel
escolhido pelos demais membros do acordo para vencer o certame350. Por fim,
os participantes do cartel podem também estruturar um sistema de rodízios.
Quando há mais de um certame em um mesmo mercado, os participantes do
cartel podem decidir os vencedores de forma rotativa. Assim, “as empresas
conspiradoras continuam a concorrer, mas combinam apresentar alternadamente
a proposta vencedora (i.e. a proposta de valor mais baixo)”351.
OCDE, op. cit., pp. 1-2; e SDE, op. cit., pp. 9-10.
Cf. OCDE, op. cit., p. 2: “[A proposta fictícia] [o]corre quando indivíduos ou empresas
combinam submeter propostas que envolvem, pelo menos, um dos seguintes comportamentos:
(1) Um dos concorrentes aceita apresentar uma proposta mais elevada do que a proposta do
candidato escolhido, (2) Um concorrente apresenta uma proposta que já sabe de antemão que é
demasiado elevada para ser aceita, ou (3) Um concorrente apresenta uma proposta que contém
condições específicas que sabe de antemão que serão inaceitáveis para o comprador”.
350
Desse modo, “a supressão de propostas implica que uma empresa não apresenta uma proposta
para apreciação final” (OCDE, op. cit., p. 2).
351
OCDE, op. cit., p. 2.
348
349
202
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Independentemente da forma escolhida pelos agentes econômicos para
estruturar seu acordo, o cartel em licitações só poderá ocorrer na presença de
determinadas condições estruturais no mercado afetado. Conforme já esclarecido,
o cartel é instável por natureza, pois seus participantes têm o constante incentivo
para burlá-lo e suprirem a demanda reprimida criada pela escassez artificial.
Além disso, a peculiaridade da licitação, que só permite um vencedor em cada
certame, confere ainda mais instabilidade ao acordo. Neste sentido, para que o
acordo funcione de maneira adequada, as seguintes características devem estar
presentes: (i) reduzido número de empresas, i.e., o acordo deve ocorrer em um
mercado oligopolizado; (ii) existência de barreiras à entrada; (iii) previsibilidade
das variações da oferta e da procura; (iv) existência de associações comerciais e
associações de classe; (v) grande número de licitações; (vi) poucas alternativas
disponíveis no mercado para o produto licitado; (vii) homogeneidade dos
produtos ou serviços; e (viii) nível reduzido de inovação352-353. Como se pode
perceber, todas as características estruturais e fáticas do mercado necessárias
para possibilitar a existência de um acordo ilícito são aquelas que conferem ao
cartel estabilidade e segurança. Além disso, tais condições também diminuem
os custos de monitoramento com relação ao cumprimento do acordo pelos seus
participantes, reduzindo os incentivos para burlá-lo.
O número reduzido de agentes do mercado é um dos facilitadores de
acordos horizontais ilícitos. Com menos concorrentes no mercado, há mais
facilidade para que os participantes de um cartel coordenem-se e evitem que
outros agentes que não aderiram ao acordo possam suprir a demanda reprimida
gerada pela escassez artificial. Além disso, um elevado número de licitações no
mesmo mercado pode aumentar a probabilidade de conluio entre os concorrentes,
na medida em que facilita a prática do rodízio entre os ganhadores e também a
subcontratação posterior. Adicionalmente, a realização frequente de licitações
pelo poder público confere estabilidade ao cartel, pois cada participante sabe que
terá a sua oportunidade de vencer um certame. Variações previsíveis na procura e
na oferta também tornam a coordenação mais simples. Em mercados nos quais há
pouca oscilação com relação à oferta e à procura, os agentes econômicos podem
planejar com maior segurança o seu acordo ilícito. A existência de barreiras à
entrada no mercado também é um fator importante, pois o surgimento de um
novo competidor – atraído pela alta de preços provocada pelo cartel – pode
desestabilizar o conluio. A homogeneidade dos produtos ou serviços e o nível
de inovação tecnológica também são importantes, pois mercados nos quais os
OCDE, op. cit., pp. 3-4.
A SDE também aponta como características facilitadoras a comunicação frequente entre
competidores e a rigidez nas regras da licitação, que podem impedir o comprador de agir
rapidamente caso perceba algum indício de conluio entre os participantes do certame.
352
353
203
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
produtos e serviços possuem baixo nível de diferenciação e não há necessidade
de grandes investimentos em pesquisa e desenvolvimento apresentam maior
estabilidade. Ademais, a existência de associações comerciais e associações de
classe pode facilitar a colusão em procedimentos licitatórios, permitindo a troca
de informações entre os concorrentes.
2.3 O PAPEL DO MERCADO RELEVANTE EM CASOS DE CARTEL EM
LICITAÇÃO
Considerando que a possibilidade de ação concertada dos agentes
econômicos para participar de licitações está relacionada às condições do
mercado em questão, a definição do mercado relevante354 é essencial e
indispensável para a análise concorrencial dessa prática.
Em ocasiões anteriores, o CADE decidiu que a definição do mercado
relevante em casos relacionados a licitações atende a parâmetros diferentes355.
Nesse sentido, a dimensão produto do mercado relevante deve ser definida em
função do objeto da licitação, conforme definido pelo edital356. Desta forma,
o mercado de compras governamentais constitui um mercado em separado
em relação ao mercado privado, pois é regulado por regras próprias e possui
condições especiais que afetam a dinâmica concorrencial. Além disso, os
requisitos mínimos determinados pelo edital podem ser considerados como
barreiras à entrada, pois podem impedir determinados agentes de participarem
do certame357, o que torna ainda mais evidente o fato de que o procedimento
O mercado relevante é um conceito próprio do direito concorrencial. Uma das técnicas mais
utilizadas para a sua correta definição (e que também serve como bom referencial para explicar
o seu significado) é o teste do monopolista hipotético. Assim, o mercado relevante será aquele
no qual um monopolista hipotético poderia exercer seu poder de mercado sem ser contestado
por eventuais concorrentes. Portanto, “[o] mercado relevante é aquele em que se travam as
relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado”
(FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. 5ª edição. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012, p. 211).
355
No julgamento do processo administrativo nº 08012.002742/2005-65.
356
Cf. voto do conselheiro Vinícius Marques de Carvalho no processo administrativo nº
08012.002742/2005-65, p. 7: “[C]abe ressaltar que o mercado relevante em análise é o mercado
de compras governamentais, que se constitui um mercado à parte ao mercado privado, pois
contém aspectos e condições específicas em relação ao mercado privado. Sob a ótica da dimensão
do produto, o mercado é o de fitas reagentes, com concessão de uso gratuito, dos monitores
(aparelhos portáteis) para verificação de glicemia capilar, conforme estabelecido no Edital do
Pregão Presencial nº 05/2005”.
357
Cf. voto do conselheiro Vinícius Marques de Carvalho no processo administrativo nº
08012.002742/2005-65, p. 8: “[f]az-se necessário destacar que o Edital da licitação impõe relevante
barreira à entrada, na medida em que esse exclui novos entrantes ao exigir que as empresas
participantes detenham experiência prévia no fornecimento de fitas reagentes para verificação de
354
204
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
licitatório constitui um mercado relevante separado. Quanto à dimensão
geográfica, esta também deve ser delimitada em função da licitação. Por exemplo,
eventual restrição à participação de empresas estrangeiras estabelecida em
edital de procedimento licitatório impacta na definição do aspecto geográfico
(para âmbito nacional).
Ademais, há também nexo entre a definição do mercado relevante em
casos relacionados a licitações e o aspecto temporal do certame. Assim, é
importante ponderar a duração das fases inerentes ao procedimento licitatório
(v.g. habilitação, recebimento de propostas, abertura de propostas) e os custos
de transação relacionados à relação entre o agente privado e o ente público358.
Tais peculiaridades fazem com que haja uma clara diferenciação entre mercados
para compras governamentais e mercados privados.
2.4 Condições estruturais do mercado relevante e os procedimentos licitatórios relacionados aos eventos esportivos de 2014 e 2016: por que o cartel
será uma preocupação do CADE?
Conforme esclarecido ao longo da presente análise, as condições
estruturais de um determinado mercado exercem um papel primordial com
relação à possibilidade e probabilidade de formação de cartel para participação
em licitações. Além disso, determinadas disposições contidas nos editais dos
procedimento licitatórios podem afetar a definição do mercado relevante e
restringir o número de participantes capazes de concorrer no certame.
Com relação à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016,
pode-se afirmar que a variação da procura relacionada a compras governamentais
(licitações) é razoavelmente previsível, devido à tendência do aumento da demanda
nos próximos anos. A variação da oferta também pode ser previsível nos mercados
de difícil acesso, especialmente se os editais dos procedimentos licitatórios
impuserem elevada quantidade de exigências como condição para participação no
certame. Nos mercados que possuem grandes barreiras à entrada, a elasticidade da
oferta é baixa e o ingresso de um novo competidor, improvável, conferindo, desta
forma, grande estabilidade a um cartel que seja eventualmente firmado.
Portanto, é provável que as autoridades públicas e o CADE estejam
atentos a possíveis acordos ilícitos entre concorrentes para participação em
licitações relacionadas à Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de
2016. Assim, passa-se agora ao estudo da experiência do CADE relacionada
ao combate a cartéis em licitação e das ferramentas disponíveis ao órgão para a
repressão a essas condutas.
glicemia capilar, com compatibilidade de volume, quantidade, prazos etc.”
358
Cf. voto do conselheiro Vinícius Marques de Carvalho no processo administrativo nº
08012.002742/2005-65, p. 7: “[A] SDE lembra que a dimensão temporal é outro aspecto importante
para a análise, pois aspectos temporais podem afetar a produção e a demanda num dado mercado”.
205
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
3. O CADE E O COMBATE AOS CARTÉIS EM LICITAÇÕES
3.1 A JURISPRUDÊNCIA DO CADE
A jurisprudência do CADE demonstra que a maior dificuldade da
autarquia é provar a existência de acordo horizontal para participação em
licitações359. Como o cartel em licitações só pode ser operacionalizado por meio
de acordo expresso entre seus participantes, o CADE deve provar, mediante
contratos, atas, correspondências, conversas telefônicas, ou qualquer outro
tipo de evidência, a ocorrência do conluio. Em grande parte dos casos relativos
a cartéis em licitações que foram comprovados e condenados pelo CADE, a
autarquia utilizou as principais ferramentas dispostas pela Lei nº 12.529/2011
no combate aos cartéis: o programa de leniência e a busca e apreensão.
Para fins deste estudo, serão analisados brevemente os seguintes casos
de cartel em licitação condenados pelo CADE: (i) processo administrativo nº
08012.009118/1998-26 (acordo em licitação da Petrobras), condenado pelo
CADE em 20/09/2000; (ii) processo administrativo nº 08012.002127/200214 (cartel das britas), condenado pelo CADE em 13/07/2005; e (iii) processo
administrativo nº 08012.001826/2003-10 (cartel dos vigilantes), condenado
pelo CADE em 24/10/2007.
O processo administrativo nº 08012.009118/1998-26 refere-se a
suposto acordo entre participantes da licitação internacional promovida pela
Petrobras para a prestação de serviços de engenharia e suprimento de diversos
materiais para a adaptação de uma plataforma de petróleo para perfuração em
lâmina d’água de 1.200 metros. No caso, o acordo, intitulado “intercâmbio
de informações técnicas”, foi realizado entre dois potenciais participantes do
certame e dispunha que (a) caso a proposta vencedora fosse igual ou superior a
US$ 33 milhões, seria pago ao perdedor o valor de US$ 1 milhão; ou (b) caso a
proposta vencedora fosse inferior a US$ 33 milhões, seriam pagos US$ 250 mil
ao perdedor; ou (c) não havendo vencedor entre os agentes envolvidos, haveria
abertura de crédito no valor de US$ 250 mil por um dos agentes em favor
do outro360. Assim, além de pactuarem sua participação conjunta na licitação
Cf. processo administrativo nº 08000.001164/1997-53, arquivado em 29/03/2006; averiguação
preliminar nº 08000.017954/1995-43, arquivada em 17/01/2007; averiguação preliminar nº
08012.004432/2003-13, arquivada em 13/05/2009; averiguação preliminar nº 08012.004604/199867, arquivada em 28/10/2009; averiguação preliminar nº 08012.002742/2005-65, arquivada em
23/06/2010; averiguação preliminar nº 08012.007704/2004-18, arquivada em 07/07/2010; processo
administrativo nº 08000.019901/1997-10, arquivado em 06/04/2011; e averiguação preliminar nº
08012.014050/2007-21, arquivada em 18/05/2011.
360
Cf. voto vista do Conselheiro Thompson Almeida Andrade no processo administrativo nº
08012.009118/1998-26.
359
206
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
em questão, as partes também dispuseram sobre a distribuição dos benefícios
decorrentes do acordo.
Segundo o CADE, o acordo entre os dois agente apresentava potencial361
de falseamento da concorrência, uma vez que havia sido pactuado um ajuste de
vantagens condicionado à fixação do valor da proposta no certame promovido pela
Petrobras362. Além disso, concluiu-se que o acordo criou incentivos para alinhamento
na tomada de decisões dos concorrentes, arrefecendo a concorrência e contribuindo
para que o valor final ofertado na licitação fosse superior a US$ 33 milhões363.
O CADE considerou o acordo ilícito e condenou as representadas do
processo administrativo nº 08012.009118/1998-26 ao pagamento de multa
no valor de 1% do seu faturamento bruto, além de obrigá-las a retratarem-se
publicamente por meio de declarações em jornais de grande circulação.
O processo administrativo nº 08012.002127/2002-14 foi o primeiro no
qual os órgãos de defesa da concorrência utilizaram a ferramenta da busca e
apreensão para obter provas acerca de suposta conduta ilícita. O caso buscou
investigar suposto “cartel para fixar preços, alocar consumidores, restringir
a produção e fraudar licitações no mercado de pedra britada”, mediante
utilização, inclusive, de software para “direcionar as vendas e fiscalizar o
cumprimento do acordo”364. Assim, o cartel das britas é considerado um dos
casos de cartel clássico julgados pelo CADE, já que o acordo foi estruturado
de forma sofisticada, prevendo instrumentos de fiscalização e supervisão de seu
cumprimento, além de atuar em diversos meios, inclusive em licitações.
Além dos instrumentos de supervisão e monitoramento do cartel, as
evidências coletadas pelas autoridades de defesa da concorrência brasileiras
demonstraram que os participantes do acordo elaboraram um programa de
trabalho, que estabelecia os objetivos da colusão365. O programa de trabalho
era executado por órgãos administrativos criados pelos agentes econômicos
De acordo com a legislação concorrencial brasileiro, não é necessário comprovar a existência
de efeitos anticompetitivos da prática investigada, sendo suficiente demonstrar o potencial de a
conduta gerar efeitos adversos. Nesse sentido, cf. artigo 20, caput, da Lei nº 8.884/1994 e artigo 36,
caput, da Lei nº 12.529/2011.
362
Voto do conselheiro relator João Bosco Leopoldino da Fonseca no processo administrativo nº
08012.009118/1998-26, pp. 2 e ss.
363
Cf. voto vista do Conselheiro Thompson Almeida Andrade no processo administrativo nº
08012.009118/1998-26, p. 4: “[c]om esta intenção ou não, as suas propostas, ao invés de serem
intrinsecamente independentes e estarem fundamentadas em capacidades diferenciadas de fazer
uma oferta baseada em custos menores resultantes de diferentes níveis de eficiência produtiva,
estavam aditivadas por um acordo que reforçava o interesse em apresentar uma proposta acima
ou igual ao patamar de US$ 33 milhões”.
364
Cf. SDE, op. cit., p. 17.
365
Cf. voto do conselheiro relator Luiz Carlos Thadeu Delorme Prado no processo administrativo
nº 08012.002127/2002-14, p. 15.
361
207
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
para conduzir a gestão do cartel, como a “assembleia”, na qual as decisões
eram tomadas em conjunto pelos participantes do acordo, e o “comitê
gestor”, responsável por solucionar conflitos e gerir recursos financeiros,
dentre outras prerrogativas366.
Por meio da busca e apreensão realizada, o CADE conseguiu obter
documentos como atas de reunião, diretivas e regulamento para controle dos
preços, que foram essenciais para provar a existência de acordo e fundamentar
a condenação da prática. Como resultado, o CADE condenou as representadas
com multas variando entre 15% a 17% do seu faturamento bruto.
Por fim, o processo administrativo nº 08012.001826/2003-10 relaciona-se
com suposto cartel entre prestadores de serviços de vigilância no Estado do Rio
Grande do Sul, com atuação tanto no mercado privado como em licitações367.
Por meio do seu programa de leniência e por medidas de busca e apreensão, o
CADE obteve gravações de interceptações telefônicas, documentos diversos,
testemunhos e e-mails trocados por membros do cartel.
De acordo com as informações apuradas pelo CADE e conforme demonstrado pelas provas obtidas, os participantes do cartel dos vigilantes reuniam-se periodicamente para decidir quem seriam os vencedores das licitações previstas e qual seria
o preço ganhador em cada certame368. Adicionalmente, os participantes do ilícito
possuíam mecanismos de represália contra os agentes não alinhados ao acordo. Tais
mecanismos eram implementados, inclusive, com o auxílio de sindicatos369.
Ao fim, o CADE condenou os participantes do cartel a multas entre 15%
e 20% do faturamento bruto dos agentes, além de impor proibição de licitar e
obrigação de retratação pública por meio de jornal de grande circulação.
Como se pode perceber, os casos mais relevantes julgados pelo CADE
referentes a cartéis em licitação foram julgados e condenados com base em
evidências obtidas por meio de procedimentos de busca e apreensão e pelo
programa de leniência. Por outro lado, ainda há grande quantidade de casos
arquivados pela autarquia em razão de insuficiência de provas, já que cartéis
em licitação somente podem ser provados mediante acordo expresso entre seus
participantes.
Cf. voto do conselheiro relator Luiz Carlos Thadeu Delorme Prado no processo administrativo
nº 08012.002127/2002-14, p. 16.
367
Cf. voto do Conselheiro-relator Abraham Benzaquem Sicsú no processo administrativo nº
08012.001826/2003-10.
368
Assim, “[h]avia reuniões todas as segundas-feiras na sede do sindicato, ocasião em que todas
as empresas levavam os editais de licitações a ocorrer durante a semana, quando era decidido
quem vencederia e qual preço seria dado na licitação” (voto do Conselheiro-relator Abraham
Benzaquem Sicsú no processo administrativo nº 08012.001826/2003-10, p. 18).
369
Cf. voto do Conselheiro-relator Abraham Benzaquem Sicsú no processo administrativo nº
08012.001826/2003-10, p. 19.
366
208
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
3.2 AS FERRAMENTAS DA LEI Nº 12.529/2011: O PROGRAMA DE LENIÊNCIA
E OS PROCEDIMENTOS DE BUSCA E APREENSÃO
As duas principais ferramentas que o CADE dispõe são o acordo de
leniência e o procedimento de busca e apreensão. Como visto, a maior dificuldade
do CADE ao julgar casos relacionados a cartéis em licitações é provar, por meio
de documentos, gravações, acordos escritos ou comunicações entre os agentes,
a existência do conluio. Na maior parte dos processos administrativos relativos
a cartéis condenados pelo CADE, a autarquia utilizou o acordo de leniência e/
ou as buscas e apreensões para obter provas da existência de colusão.
Por meio do acordo de leniência, qualquer participante de um cartel
pode denunciá-lo ao CADE e receber, em troca, a extinção da ação punitiva
da administração pública ou a redução de 1/3 a 2/3 da penalidade aplicável,
desde que o denunciante auxilie com as investigações e que dessa colaboração
resulte (a) a identificação dos demais envolvidos na prática e (b) obtenção de
documentos e provas suficientes para condenar a infração370. Para poder celebrar
acordo de leniência com o CADE, é necessário que o agente (i) seja o primeiro
a propor o acordo; (ii) cesse completamente seu envolvimento na prática ilícita;
(iii) confesse sua participação no ilícito; e (iv) coopere com as investigações.
Adicionalmente, é necessário que o CADE não disponha previamente de
provas suficientes para provar a existência do ilícito371. Além da extinção da
punibilidade administrativa, também ocorre em favor do agente beneficiário da
leniência a extinção da punibilidade dos crimes tipificados na Lei nº 8.137/1990
e dos crimes relacionados à prática do cartel tipificados na Lei nº 8.666/1993 e
no artigo 288 do Código Penal372.
A busca e apreensão, por sua vez, deve ser requerida pelo CADE ao Poder
Judiciário. Como órgão administrativo, o CADE não possui competência para
determinar a busca e apreensão de bens pertencentes a suspeitos de envolvimento
em ilícitos concorrenciais. Por essa razão, é essencial a coordenação entre a
autarquia, a Procuradoria Federal Especializada junto ao CADE (ProCADE) e
os Ministérios Públicos Estaduais e Federal, com o objetivo de garantir eficácia
e legitimidade aos procedimentos de busca e apreensão. Na estrutura interna do
CADE, a competência para solicitar a busca e apreensão de bens junto ao Poder
Judiciário pertence à Superintendência-Geral373.
Cf. artigo 86 da Lei nº 12.529/2011.
Cf. parágrafo 1º do artigo 86 da Lei nº 12.529/2011.
372
Cf. artigo 87 da Lei nº 12.529/2011.
373
Cf. artigo 13, inciso VI, alínea “d”, da Lei nº 12.529/2011.
370
371
209
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
4. CONCLUSÃO
Conforme visto ao longo deste estudo, o cartel é considerado a prática
mais danosa à coletividade. Além de afetar o bem-estar da sociedade e
transferir renda dos consumidores para os participantes do cartel, os acordos
horizontais também envolvem um custo social representado pela alocação
ineficiente de recursos e meios de produção. As substituições imperfeitas que
os consumidores são forçados a realizar em razão da escassez artificial criada
pelo cartel faz com que seja criado um “peso morto”, prejudicando de maneira
ainda mais incisiva a coletividade. Ademais, a análise empírica indica que a
renda extraída do consumidor pelos membros do cartel muitas vezes é utilizada
para proteger o domínio criado. Nesse sentido, os mecanismos de supervisão,
monitoramento e fiscalização do acordo, assim como todas as cautelas adotadas
pelos seus membros para manter o conluio em confidencialidade representam
custos substanciais, consumindo recursos que poderiam ser utilizados em outras
atividades, como em investimentos em pesquisa e desenvolvimento, ampliação
de unidades de produção, melhoria de distribuição dos produtos, dentre outras.
A perspectiva de aumento das compras governamentais em razão das
obras para a construção da infraestrutura necessária para a Copa do Mundo
de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016 destaca a relevância da concorrência em
licitações. O intenso volume de compras e contratação governamental em
razão dos eventos esportivos que o Brasil sediará nos próximos anos cria as
condições estruturais que, segundo a teoria econômica, facilitam a existência
de conluio. Muito embora o cartel em licitações seja uma das práticas mais
danosas à administração pública e ao bem-estar da sociedade, ela também é
uma das mais difíceis de se provar. Para o CADE, é essencial evitar que acordos
ilícitos possam, de qualquer maneira, atrapalhar o bom andamento das obras
necessárias para a realização da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos
de 2016. Além de proteger o legado que esses eventos esportivos deixarão para
a população brasileira, a atuação do CADE também será determinante para
garantir que o poder público honrará com todos os compromissos que celebrou
junto à comunidade internacional para sediar a Copa do Mundo de 2014 e os
Jogos Olímpicos de 2016.
Por todo o exposto, pode-se concluir que o CADE deverá adotar uma
postura pró-ativa no combate à cartéis no âmbito de licitações com a Copa do
Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, atentando para os seguintes
pontos: (i) criação de incentivos para a delação premiada, fortalecendo o
programa de leniência e garantindo sua eficácia; (ii) cooperação com os
Ministérios Públicos Estaduais e Federais, para solicitar a expedição de
mandados de busca e apreensão, quando necessários; (iii) conscientização
210
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
dos órgãos públicos responsáveis por promover os procedimentos licitatórios
para a Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016, especialmente nos
mercados que apresentarem as condições estruturais propícias para a existência
de acordos ilícitos; (iv) criação de incentivos à máxima transparência durante os
procedimentos de licitação, de modo a dificultar eventuais rodízios, supressão
de propostas ou oferecimento de propostas fictícias; e (v) criação de incentivos
para que os órgãos públicos responsáveis por promover os procedimentos
licitatórios para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016
elaborem editais que não impeçam a participação de um grande número de
concorrentes, sem prejudicar a qualidade dos produtos e serviços contratados.
Da mesma forma, os agentes econômicos deverão atentar-se para as boas
práticas concorrenciais quando participarem de licitações relacionadas à Copa
do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016. Em especial, as seguintes
precauções devem ser adotadas para garantir o cumprimento com as regras da
livre concorrência: (i) evitar comunicações desnecessárias entre concorrentes;
(ii) não relevar o valor ofertado no certame para os outros participantes; (iii)
não participar de qualquer reunião ou discussão proposta por concorrentes
do procedimento licitatório; e (iv) instruir empregados e representantes a não
trocar informações com terceiros.
211
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
BIBLIOGRAFIA
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HOVENKAMP, Herbert. The antitrust enterprise: principle and execution.
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SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as condutas. Malheiros:
São Paulo, 2007.
212
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 11
A PERSONALIDADE JURÍDICA E A CAPACIDADE PROCESSUAL DO
COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL
Martinho Martins Botelho374
Le plus important aux Jeux olympiques n’est pas de gagner mais de participer, car l’important dans la vie ce n’est point le triomphe mais le combat; l’essentiel,
ce n’est pas d’avoir vaincu mais de s’être bien battu (Pierre de Frédy).
SUMÁRIO: Introdução. 1. A personalidade jurídica e a capacidade processual em
direito internacional. 1.1 Noções históricas da personalidade jurídica. 1.2 O tratamento
doutrinário da personalidade jurídica internacional. 2. O Comitê Olímpico Internacional
(COI). 2.1 Origens históricas. 2.2 Estrutura funcional. 3. A Carta Olímpica. 3.1 Composição
da Carta Olímpica 3.2 O movimento olímpico. 3.3 As recentes modificações da Carta
Olímpica. 4. A personificação da COI e sua capacidade processual. 4.1 Capacidade
processual do COI. 4.2 As vantagens e desvantagens da não utilização da capacidade
processual do Poder Judiciário: a via arbitral. 5. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Neste breve escorço, a proposta é refletir sobre o Comitê Olímpico
Internacional (COI), a sua personalidade jurídica e capacidade processual no
âmbito do Direito Internacional Desportivo. A reflexão passará pelas implicações
da personalidade jurídica em Direito Internacional, além das origens históricas
do COI, sua estrutura e a composição da Carta Olímpica de 2011, seguida por
todas as entidades que participam dos eventos olímpicos.
Procurar-se-á entender como o COI lida com temas relacionados com a
arbitragem e a solução de controvérsias, tendo em vista a discussão sobre a sua
capacidade processual.
Para descortinar o texto, geralmente se entende que a atuação do COI é
feita com justificativa ideológica: a de aproximar os povos por meio da cultura
da paz desportiva.
No entanto, em um primeiro momento, o surgimento do COI se deu
com a finalidade de fomentar a cultura dos jogos olímpicos da Antiguidade,
Martinho Martins Botelho. Doutor em Integração da América Latina pela Universidade de
São Paulo (USP). Doutorando em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM). Professor do Centro Universitário Internacional Uninter, das Faculdades Santa Cruz e
da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP PR). Advogado e Economista em Curitiba/PR.
374
213
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
os quais eram considerados como um festival religioso e atlético da Grécia
Antiga, sendo atribuída a primeira edição em 776 a.C.375
Os Jogos Olímpicos antigos eram os mais relevantes jogos pan-helênicos,
tendo sido proibidos pelo imperador cristão Teodósio I em 393 d.C., por serem
considerados uma manifestação de adoração de rituais pagãos.376
O período áureo dos Jogos Olímpicos da Antiguidade correspondeu ao
século V a.C.377
Os Jogos Olímpicos considerados modernos foram realizados em Atenas
em 1896, sendo disputados por amadores. Apenas no século XX, a competição
passou a ser disputada por profissionais.
Juntamente com os Jogos Olímpicos modernos, pensou-se em criar
uma estrutura centralizada em determinadas instâncias, o que representou o
surgimento do COI com a função de controlar os eventos olímpicos.378
Em função disso, é necessário que se faça uma distinção da natureza
jurídica do COI como entidade e a sua presença, ou não, como sujeito de direito
internacional público.
Nesse sentido, a finalidade da presente pesquisa é fazer uma avaliação
da possibilidade do COI possuir ou não subjetividade (personalidade de Direito
Internacional) e a sua capacidade processual perante o Direito das Gentes,
dentro do seu atual estágio evolutivo.
O trabalho está dividido em 4 partes, excluindo-se esta introdução. Na
primeira parte, aborda-se a questão da personalidade jurídica e da capacidade
processual em Direito Internacional, envolvendo-se com as noções históricas e
o tratamento doutrinário.
A segunda parte trata do COI, evolução histórica, natureza jurídica e
estrutura funcional; para se passar, na terceira parte, à Carta Olímpica de 2012,
na qual se trata do Movimento Olímpico, embasando a percepção da capacidade
processual do COI, inclusive frente à arbitragem internacional desportiva.
1. A PERSONALIDADE JURÍDICA E A CAPACIDADE PROCESSUAL EM DIREITO INTERNACIONAL
No âmbito dos estudos de Direito Internacional Público, durante a
década de 1980, questionara-se sobre o lugar ocupado pelo indivíduo e pelas
SWADDLING, Judith. The Ancient Olympic Games. Texas: University of Texas Press, 2000, p. 11.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica: Cultura Grega.
Vol. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 25.
377
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Ob. cit., p. 27.
378
LENSKYI, Helen Jefferson. Inside the Olympic Industry: Power, Politics and Activism. New
York: SUNY, 2000, p. 31.
375
376
214
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Organizações Não-Governamentais (ONGs) na sociedade internacional.
Tal questão fora alvo de algumas discussões, com significativa atenção
dos doutrinadores jurídicos e internacionalistas em geral, com a criação de
alguns avanços importantes.
Porém, mesmo com a questão da subjetividade internacional do indivíduo
e das ONGs ser restrito ao ser humano propriamente dito, recentemente,
tal realidade acabou ganhando contornos menos restritos, ampliando-se as
categorias de sujeitos de Direito Internacional.
A razão principal apontada para tal constatação é o avanço da sociedade
internacional atual, desde a década de 1980, de acordo com o surgimento de
novos problemas nas relações internacionais e no próprio Direito Internacional.
Visando a busca de maior efetividade, os internacionalistas mais
contemporâneos passaram a estudar também a subjetividade internacional das
pessoas coletivas, como as ONGs, e inclusive os povos e as minorias internacionais.
É nesse sentido, por exemplo, que Wolfgang Friedman assevera que o
termo nacional ou indivíduo, na seara do Direito Internacional, incluiria também
órgãos coletivos, além dos seres humanos.
O presente tópico está dividido em duas partes. Na primeira parte,
estudam-se as noções históricas da personalidade jurídica em Direito
Internacional e, na segunda, avalia-se o tratamento doutrinário da personalidade
jurídica internacional.
1.1 Noções históricas da personalidade jurídica
O Direito Internacional Público, tal como se conhece hodiernamente, foi
sistematizado em um período aproximado dos séculos XVI e XVII; e o seu
objeto era as relações ditas com determinado grau de estabilidade entre grupos
com poder de autodeterminação.
Porém, a ideia geral da sistematização de normas que regulassem a
relação entre os indivíduos, seres humanos; com especial preocupação com
questões internacionais como a paz e a guerra; é mais longínqua, antecedendo a
formação dos Estados modernos, reportando-se à Antiguidade.
Em razão disto, Antonio Truyol y Serra menciona a existência de um
Direito Internacional Público pré-histórico.379
Já se falou de notícias de realização de um tratado internacional no
período de 3.100 a. C. para se fixarem os limites da Lagash e Umma, na região
da Mesopotâmia; e também já em Roma, estavam previstas normas privadas
e públicas (jus gentium) que eram invocadas nas relações com os cidadãos
romanos e os demais povos; mesmo que ocorrera um abandono do direito
TRUYOL Y SERRA, Antonio. Fundamentos de derecho internacional publico. Barcelona:
Seix, 1950, p. 29.
379
215
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
internacional em razão do predomínio romano sobre os demais povos.380
Tais normas acabaram surgindo em razão da necessidade de se viabilizar
o comércio com o Império Romano.
Porém, as ideias mais antigas do Direito das Gentes sempre foram
formadas pela noção de unidade do indivíduo que defendia a paz e a
fraternidade entre os povos.
Tal ideia tinha origem nos mais diversos sentimentos religiosos dos
tempos e dos espaços, tal como no budismo, confucionismo, judaísmo e
cristianismo, entre outros.
Inaugurou-se uma procura por embasamento ético-jurídico para as ideias
mencionadas; sendo algo válido para todos os seres humanos, sem distinção de
raça ou cultura consubstanciado na ideologia.
Para o Direito Internacional Público, a expressão “Direito das Gentes”
tem origem dessa vontade de estabelecer a igualdade entre todos os seres
humanos, ressoando desde a Antiguidade.381
Por outro lado, na origem histórica do Direito Internacional na forma
conhecida atualmente, em uma sociedade politicamente organizada, confirmase a existência de tais ideias.
Assim, a escola espanhola do Direito das Gentes, contemporânea dos
grandes descobrimentos marítimos e do Direito Internacional do Mar, pregava
um conteúdo vinculado ao Direito Natural e à existência da comunidade
internacional do qual todos os povos faziam parte, restaurando a ideia de
igualdade do gênero humano.
Francisco de Vitória, teólogo espanhol neo-escolástico, é considerado o
primeiro idealizar do Direito Internacional, desconsiderando o nacionalismo
exclusivista e defendendo o relacionamento entre as nações como decorrência
da sociabilidade natural entre os povos.382
Tal ideia também foi corroborada por Hugo Grócio (Huig de Groot), jurista
do século XVII, jusinternacionalista que enfatizava o surgimento de regras a partir
do consentimento dos Estados nacionais, criando, com isso, uma base teórica que
conciliava o jusnaturalismo e o juspositivismo do Direito das Gentes.383
A partir de tais teorias, vinculadas ao Direito Natural e ao jus gentium
romano, os jusinternacionalistas passaram a admitir a subjetividade internacional
do indivíduo, do ser humano.
No entanto, a partir do século XIX, tal pensamento foi repelido e, com o
surgimento dos Estados modernos, passou-se a relegar o indivíduo ao segundo
TRUYOL Y SERRA, Antonio. Ob. cit., p. 31.
No direito germânico, fala-se mais em Direito dos Povos, Völkerrecht.
382
LITRENTO, Oliveiros. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Forense, 1997,
p. 63-64.
383
LITRENTO, Oliveiros. Ob. cit., p. 65.
380
381
216
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
plano na subjetividade internacional, sendo aceito apenas a ação internacional
dos Estados na dita comunidade internacional.
Na lição de René-Jean Dupuy, tal entendimento foi fruto da elevada
concentração do poder como função de solidariedade sentida pelos Estados,
explicando nos seguintes termos384:
A tendência natural destes é a de salvaguardar o seu monopólio, de abrir
a organização apenas aos Estados, de não acolher os indivíduos como tal. Por
outro lado, o seu objetivo não é de modo nenhum constituir um poder acima
deles, um governo supra-estadual, mas a maior parte das vezes, procuram
limitar-se a constituição de um aerópago onde possam cooperar com vista à
realização de um interesse comum.
Com isso, o Estado passa a ser o centro da subjetividade das relações
internacionais, seguido por embasamentos teórico-doutrinários tal como será
visto adiante.
1.2 O TRATAMENTO DOUTRINÁRIO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INTERNACIONAL
Na época contemporânea, em razão de relações sociais mais
estreitas e um inter-relacionamento maior entre os Estados nacionais,
principalmente em função de uma crescente interdependência e de maiores
facilidades de comunicação e de transporte; o direito internacional acaba
assumindo novos desafios.
Com isso, outros atores internacionais aparecem, resgatando-se a
preocupação com o indivíduo, principalmente, em razão da agressão a normas
de direitos humanos. Dá-se início a mecanismos de tutela jurídica do indivíduo,
punindo-se os violadores das normas de proteção dos seres humanos, ignorandose a tutela única dos interesses do Estado.
Na visão de Celso Duvivier de Albuquerque de Mello, mesmo que
a subjetividade jurídico-internacional do indivíduo pareça ser uma questão
simples, acaba não sendo apenas científico-acadêmica.385 Isso porque existiriam
razões relevantes para que o ser humano seja considerado como sujeito de
Direito Internacional, citando a dignidade humana que leva a ordem jurídica
DUPUY, René-Jean. Droit international public. Paris: Presses Universitaires de France, 1996,
p. 109. No original: “La tendance naturelle de ceux-ci est de préserver son monopole, ouvrant
ainsi la seule organisation aux États, en rejetant les individus en tant que tels. D’autre part, votre
objectif n’est en aucun cas constituer une puissance supérieure à eux, un gouvernement supranational, mais la plupart du temps, en cherchant à limiter la formation d’un aréopage où ils
peuvent coopérer en vue de détention d’une participation commun.“
385
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 1º vol. 11ª
ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 738.
384
217
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
internacional reconhecer e proteger direitos a ele relativos; e a própria noção de
Direito, criação do homem para o homem.
As doutrinas jurídicas que se defrontam com tal problema da subjetividade
internacional são: a doutrina estatal e a doutrina individualista.
A doutrina estatal tem um viés decorrente da concepção positivista
voluntarista do Direito Internacional, entendendo que o mesmo é fruto
apenas da vontade do Estado. Destarte, as normas internacionais afetariam os
indivíduos indiretamente, por meio da atuação (recepção ou não) das mesmas
pelos entes estatais. Os expoentes de tal corrente são Dionisio Anzilotti386 e
Karl Heinrich Triepel.387
A doutrina individualista, de concepção monista antivoluntarista, insere
o indivíduo não como mero sujeito de Direito Internacional Público, mas sim
como o seu único sujeito.
Para tal abordagem, como os Estados detêm meras técnicas de gestão de
interesses coletivos, eles não poderiam ter a condição de sujeitos.
Tal teoria foi liderada, inicialmente, por Pierre Marie Nicolas León
Duguit388 em 1901; e pelos seus seguidores Georges Scelle389 e Nikolaos
Polits390, entre outros.
Na visão de Hans Kelsen, não se poderia aceitar uma corrente ou outra,
mas ambas, chegando a afirmar que os Estados, assim como os indivíduos,
possuem subjetividade internacional, porque todo direito é regulador da conduta
humana.391
Ademais, outros autores têm posições diversas, ora aceitando o indivíduo
como sujeito secundário de direito internacional; ora apenas como objeto do
Direito Internacional.392
Contemporaneamente, a maioria dos jusdoutrinadores entende que o
Jurista e diplomata italiano, sendo um dos principais teóricos da corrente dualista que
defende ser o Direito Internacional e o direito interno de cada Estado, sistemas rigorosamente
independentes e distintos. Viveu de 1867 até 1950.
387
Jurista alemão, expoente da teoria dualista do Direito Internacional Público, que viveu de 1868
até 1946.
388
Jurista francês, expoente do Direito Público; vivendo de 1859 até 1928; sendo conhecido pelos
princípios da solidariedade e interdependência dos seres humanos em Direito Internacional
Público.
389
Jurista francês, mais conhecido pela sua atuação em Direito Internacional, sendo membro da
Comissão de Direito Internacional da ONU; sendo professor de René-Jean Dupuy. Viveu de 1878
até 1961.
390
Diplomata grego e professor de Direito Internacional, que presentou a Grécia na Liga das
Nações e no Comitê Olímpico Internacional em 1930-1933. Viveu de 1872 até 1942.
391
Nesse sentido, vide também: FERREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de
Direito Internacional Público. Coimbra: Almedina, 1997, p. 349 e ss.
392
É o exemplo de Angelo Piero Sereni e Rolando Quadri; ambos juristas italianos do século XX.
386
218
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
indivíduo pode ser sujeito de Direito Internacional, principalmente em função
da tendência do monismo nesse ramo jurídico.
Com isso, em geral, aceita-se a ideia da subjetividade jurídicointernacional, apenas dependendo da forma como as normas do ordenamento
jurídico o visualize.
No entanto, com o refinamento das relações jurídicas internacionais,
surgem novos atores, tais como as Organizações Não-governamentais (ONGs),
para as quais também se passou a questionar sobre a sua personalidade jurídica
e inclusive, em razão das suas atuações, sobre a capacidade processual.
É o caso do Comitê Olímpico Internacional (COI), ONG atuante no
campo desportivo internacional, a qual será analisada adiante, antes de adentrar
na questão central do presente estudo.
2. O COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL (COI)
O COI representa entidade com múltiplas funções, criado no final do
século XIX.
O entendimento dos eventos olímpicos passa, necessariamente, pela
compreensão desse ente central, cujos recursos financeiros advêm da venda de
direitos de transmissão das Olimpíadas, licenciamento de produtos relacionados
com o evento (mascotes, símbolos, imagens etc.) e também recursos de
patrocinadores oficiais.393
Em razão disso, passa-se a breves considerações das suas origens
históricas, da sua estrutura funcional e funções.
2.1 ORIGENS HISTÓRICAS
A ideia da criação do Comitê Olímpico Internacional (e do Movimento
Olímpico, a ser mencionado adiante) foi do francês Pierre de Frédy em 23 de
junho de 1894 no Congresso Internacional de Paris, organizado por Coubertin
na Université Paris-I, Panthéon-Sorbonne.394
A visão de Coubertin era restaurar os Jogos Olímpicos da Antiguidade com
a concepção moderna, enobrecendo e fortalecendo os esportes; garantindo a sua
LENSKYI, Helen Jefferson. Ob. cit., p. 56.
Coubertin ficou conhecido pela famosa frase: “Le plus important aux Jeux olympiques n’est pas
de gagner mais de participer, car l’important dans la vie ce n’est point le triomphe mais le combat ;
l’essentiel, ce n’est pas d’avoir vaincu mais de s’être bien battu.”. Livre tradução: “O importante na
vida não é o triunfo; mas a luta; o essencial não é ter vencido, mas ter lutado bem”. No mencionado
congresso, a primeira e segunda edição dos Jogos Olímpicos modernos foram rapidamente
acordados, sendo a de Atenas em 1896 e a de Paris em 1990, definindo-se também as cidades-sede
dos jogos.
393
394
219
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
independência e a sua duração; permitindo, com isso, o melhor cumprimento do
seu papel educativo no mundo moderno.
2.2 ESTRUTURA FUNCIONAL
O COI representa uma organização não-governamental (ONG)395, sem
fins lucrativos, constituída na Suíça na forma de associação de nacionalidade
suíça; reconhecida pelo Conselho Federal Suíço396; confiada ao controle e
desenvolvimento dos Jogos Olímpicos modernos; tendo como natureza jurídica
uma entidade de direito internacional público397, possuindo status jurídico e
existência perpétua, vale dizer, por prazo indeterminado.
O COI detém, atualmente, a autoridade suprema sobre os Jogos
Olímpicos, sendo que os seus Membros são constituídos por pessoas
naturais, nos termos do art. 16.1.1; não podendo ser constituído em número
superior a 115 ao todo.398
Todos os membros, atletas, devem cumprir determinadas condições
esportivas (condições de preparo desportivo; regras e regulamentos do COI
etc.) e também celebrar um Contrato de Participação do Evento (CPE, Event
Participation Contract, EPC) com o COI. Caso os atletas não assinem o CPE,
não têm autorização para participar do evento desportivo.399
O justo receito do COI é que algumas disputas possam surgir no contexto
dos Jogos Olímpicos, sendo que a arbitragem desportiva acaba sendo a mais
De acordo com a atual Carta Olímpica do COI, em vigência desde 08 de julho de 2011: “15
Statut juridique. 1. Le CIO est une organisation internationale non gouvernementale, à but non
lucratif, de durée illimitée, à forme d’association dotée de la personnalité juridique, reconnue par
le Conseil fédéral suisse conformément à un accord conclu en date du 1er novembre 2000. 2. Son
siège est à Lausanne (Suisse), capitale olympique. 3. Le but du CIO est de remplir la mission, le rôle
et les responsabilités que lui assigne la Charte olympique. 4. Afin de pouvoir accomplir sa mission
et remplir son rôle, le CIO peut constituer, acquérir ou de toute autre manière contrôler d’autres
entités juridiques, telles que des fondations ou sociétés.”
396
De acordo com sentença judicial de 17 de setembro de 1981; do Conselho Federal Suíço.
397
A expressão status legal não fora definido pela Carta. Tal denominação tem o significado de
ser uma entidade jurídica distinta, separada dos sujeitos de direito que a compõe. Nesse sentido,
tal designação já fora encarada em decisão exarada em sentença do Distrito de Nova Iorque, EUA
(S.D.N.Y) em 1979, no caso Lisa Avigliano e outros vs. Sumitomo Shoji America Inc. O caso
tratava sobre suposta imunidade processual de empresas subsidiárias japonesas sediadas nos
Estados Unidos em razão de tratado internacional de 1953.
398 Para o caso específico dos atletas, o número apresentado é bem maior. Nas Olimpíadas
de Londres de 2012, foram mais de 12.000 atletas de diferentes modalidades desportivas e
nacionalidades.
399
CHAPPELET, Jean-Loup; KÜBLER-MABBOTT, Brenda. International Olympic Committee
and the Olympic system: the governance of world sport. New York: Routledge, 2008, p. 45.
395
220
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
utilizada pelas vantagens oferecidas, tal como será avaliada adiante.400
Os principais objetivos e funções do COI são:
a) Criar normas que permitam a boa coordenação dos eventos olímpicos;
b) Administrar, organizar, controlar e realizar os Jogos Olímpicos;
c) Selecionar os países que servirão de sede para os jogos quadrienais,
assim como acompanhar e orientar na organização dos eventos de acordo com
os Comitês Olímpicos nacionais;
d) Administrar os direitos autorais de símbolos, marcas e imagens
relacionadas aos Jogos Olímpicos.
3. A CARTA OLÍMPICA
Relevante fonte jurídica do direito internacional desportivo dos Jogos
Olímpicos é a Carta Olímpica, que permite compreender os limites de atuação
dos diversos entes olímpicos.
Além da sua composição, o Movimento Olímpico e as recentes
modificações no seu texto serão vistas adiante.
3.1 COMPOSIÇÃO DA CARTA OLÍMPICA
A última versão da Carta é composta por 5 capítulos e 61 artigos; e
descreve diversos detalhes, diretrizes e regras; discriminado em: Movimento
Olímpico e os seus 3 principais componentes: Comitê Olímpico Internacional,
Federações Internacionais e Comitês Olímpicos Nacionais.
3.2 O MOVIMENTO OLÍMPICO
De acordo com a autoridade suprema do Comitê Olímpico Internacional,
o Movimento Olímpico inclui organizações, atletas e outras pessoas que,
espontaneamente, aderiram e concordaram em aderir à Carta Olímpica (CO),
nos termos da Regra 6 CO/2011.401
A arbitragem acaba sendo escolhida pelas partes contratantes (atleta individual e COI) de
acordo com cláusula compromissória específica definida no CPE.
401
De acordo com a CO/2011: “6. Jeux Olympiques. 1. Les Jeux Olympiques sont des compétitions
entre athlètes, en épreuves individuelles ou par équipes et non entre pays. Ils réunissent les
athlètes sélectionnés par leurs CNO respectifs, dont les inscriptions ont été acceptées par le CIO.
Les athlètes concourent sous la direction technique des FI concernées. 2. Les Jeux Olympiques
sont constitués des Jeux de l’Olympiade et des Jeux Olympiques d’hiver. Seuls les sports qui se
pratiquent sur la neige ou sur la glace sont consideres comme sports d’hiver.” Livre tradução: “6.
Jogos Olímpicos. Os Jogos Olímpicos são competições entre atletas, em eventos individuais ou
em equipe, e não entre países. Eles reúnem os atletas selecionados por seus respectivos CNOs
400
221
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Assim, a concepção do Movimento Olímpico é construída por meio
de um conjunto de ações combinadas, organizadas, de maneira universal e
permanente; executadas pela autoridade suprema do COI; sendo que todos os
indivíduos e entidades são inspirados pelos valores do Olimpismo.
O Movimento Olímpico exige o cumprimento da Carta Olímpica e
o reconhecimento pelo COI, sendo um princípio fundamental esses dois
determinantes; além da ética nos esportes, entre outros.402
O Movimento inclui ainda as Federações Esportivas Internacionais (FIs),
os Comitês Olímpicos Nacionais (CONs), os Comitês Organizadores dos Jogos
Olímpicos (COJO), além de outras federações reconhecidas, instituições e
organizações, atletas, juízes/árbitros, treinadores e outros técnicos desportivos.
A finalidade é claramente definida na Regra 1 da Carta de 2011, in verbis:
“O objetivo do Movimento Olímpico é contribuir para a construção de um
mundo melhor e mais pacífico, educando as pessoas jovens através do esporte
praticada em conformidade com o Olimpismo e os seus ganhos”.403
3.3 AS RECENTES MODIFICAÇÕES DA CARTA OLÍMPICA
Os Jogos Olímpicos modernos têm o referencial legal nas Cartas
Olímpicas históricas que representam codificações de regras e princípios
fundamentais das Olimpíadas, sendo composta, atualmente, dentro da visão do
chamado Movimento Olímpico.
(Comitês Nacionais Olímpicos), cujas inscrições foram aceitas pelo COI. Os atletas competem sob
a direção técnica das FIS (Federações Internacionais). Os Jogos Olímpicos são constituúdos pelos
Jogos da Olimpíada e pelos Jogos Olímpicos de Inverno. Apenas os esportes que são praticados na
neve ou gelo são considerados esportes de inverno.”
402
Nesse sentido, são destaques os seguintes artigos da CO/2011: “2 Mission et rôle du CIO. La
mission du CIO est de promouvoir l’Olympisme à travers le monde et de diriger le Mouvement
olympique. (...). 6 Jeux Olympiques.* 1. Les Jeux Olympiques sont des compétitions entre athlètes,
en épreuves individuelles ou par équipes et non entre pays. (...). 8 Le symbole olympique. Le
symbole olympique se compose de cinq anneaux entrelacés de dimensions égales (lês anneaux
olympiques), employés seuls, en une ou cinq couleurs.(…).”
403
In verbis: “1. Composition et organisation générale du Mouvement Olympique. 1. Sous l’autorité
suprême et la conduite du Comité International Olympique, le Mouvement olympique comprend
les organisations, les athlètes et les autres personnes qui se soumettent à la Charte olympique.
Le but du Mouvement olympique est de contribuer à la construction d’un monde meilleur et
pacifique en éduquant la jeunesse par le biais d’une pratique sportive en accord avec l’Olympisme
et ses valeurs. Livre tradução: “1. Composição e organização geral do Movimento Olímpico. 1.
Sob a autoridade suprema e a conduta do Comitê Olímpico Internacional, o Movimento Olímpico
compreende as organizações, os atletas e outras pessoas que se submetem à Carta Olímpica.
O objetivo do Movimento Olímpico é contribuir para a construção de um mundo melhor e
pacífico na educação de jovens através da prática despostiva em conformidade com o Olimpismo
e os seus valores.”
222
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Historicamente, a sua finalidade é melhor definir a gestão olímpica do
Comitê Olímpico Internacional404, as ações e o funcionamento do Movimento
Olímpico; estabelecendo condições para a celebração dos Jogos Olímpicos.
A Carta foi primeiramente publicada em 1908, com o título Annuaire du
Comité International Olympique.405
Algumas das regras contidas nessa primeira Carta tinham sido escritas
por Pierre de Frédy (mais conhecido pelo título Barão de Coubertin) em 1898.406
Embora a denominação utilizada seja Carta Olímpica, utilizado em todas
as edições; foi apenas em 1978 que efetivamente foi utilizado na publicação.
Algumas edições da Carta também foram divididas em várias partes
separadas, ao invés de uma única publicação como vem acontecendo atualmente.
Assim, são utilizados diferentes títulos, tais como:
a) Statuts / Règlements et protocole de la célébration des olympiades modernes et des Jeux olympiques quadriennaux / Adresses des membres, em 1921;
b) Règles olympiques, em 1946.
A Carta Olímpica contemporânea sofreu, recentemente, algumas
alterações, estando em vigência a partir de 08 de julho de 2011; sendo constituída
por um conjunto de regras e diretrizes para a organização dos Jogos Olímpicos;
e para o controle e gestão dos negócios olímpicos.
Estruturalmente, é constituída por princípios fundamentais, regras e
textos de aplicação407; adotados pelo COI.
Os idiomas oficiais são inglês e francês408; prevalecendo o idioma
francês em caso de discrepâncias em interpretações409; reconhecendo-se
ainda os idiomas francês, inglês, alemão, espanhol, russo e árabe; como de
A sede administrativa do COI foi, originalmente, em Paris; mas, desde 10 de abril de 1915;
mudou para Lausanne, na Suíça.
405
No século XXI, foram as seguintes Cartas Olímpicas publicadas pelo COI: 2000, 2001, 2003,
2004, 2007 e a última de 2010. Antes, tinham sido publicadas 59 Cartas, incluindo emendas,
modificações, protocolos etc.
406
As Cartas Olímpicas foram publicadas desde 1908; sendo que a atual é a 65ª em vigência. Entre
elas, existem diferenças instituições, de denominação e também de conteúdo.
407
O texto original da Carta em francês se refere a Texte d’application de la Régle”, sendo que em
inglês; utilizaram-se os Bye-Law to Rule. Historicamente, os Bye-Law podiam se referir a uma
regra de um local ou a aplicação limitada de uma regra superior por uma autoridade. Além disso,
referiam-se também a regras internas de uma companhia ou de uma organização. eram regras
que limitavam a aplicação de uma regra por uma autoridade. Acabam sendo mais frequentes no
Canadá, Reino Unido e em alguns países do Commonwealth; assim como nos Estados Unidos,
como no American Code Enforcement Officer ou nos Municipal Regulations Enforcement Officer.
408
23.1 À toutes les Sessions, une interprétation simultanée doit être fournie en français, anglais,
allemand, espagnol, russe et arabe.
409
23.3 En cas de divergence entre le texte français et le texte anglais de la Charte Olympique et de
tout autre document du CIO, le texte français fera foi sauf disposition expresse écrite contraire.
404
223
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
utilização em interpretações simultâneas.410
O conteúdo da Carta é dado em seis capítulos:
a) Capítulo 1: O Movimento Olímpico
b) Capítulo 2: O Comitê Olímpico Internacional (COI)
c) Capítulo 3: As Federações Internacionais (FI)
d) Capítulo 4: Os Comitês Olímpicos Nacionais Olímpicos (CON)
c) Capítulo 5: Os Jogos Olímpicos
d) Capítulo 6: Medidas e sanções, procedimentos disciplinares e solução
de controvérsias.
Ao longo da história dos Jogos Olímpicos, a Carta Olímpica,
frequentemente, tem sido utilizada como direito material aplicável para dirimir
controvérsias, estando reservada para três finalidades principais:
a) Estabelecer princípios e valores do Olimpismo;
b) Servir como uma lei do COI;
c) Definir os direitos e deveres dos quatro principais constituintes do
Movimento Olímpico: o Comitê Olímpico Internacional (COI), as Federações
Internacionais (FIs) e os Comitês Olímpicos Nacionais (CONs) e a Organização
dos Comitês dos Jogos Olímpicos.
4. A PERSONIFICAÇÃO DA COI E SUA CAPACIDADE PROCESSUAL
No âmbito do Direito Internacional, a personificação vem sendo
discutida sob a forma de organização de indivíduos em Organizações NãoGovernamentais.
As ONGs são conhecidas como pessoas jurídicas sem finalidade
existencial lucrativa, podendo ser tanto fundações quanto associações, criadas
por iniciativas privadas, públicas ou mistas; envolvendo pessoas de mesmas ou
várias nacionalidades na defesa de determinados interesses comuns.
A função de perseguir diversas causas, geralmente, é de característica
humanitária, ambiental, de cidadania, entre outras; podendo incluir
também a atuação dos Estados nacionais, de pessoas jurídicas privadas
com finalidade lucrativa etc.
Em geral, tal como no caso do COI – considerado ONG -, são
classificados como pessoas jurídicas de direito interno, tendo um caráter
heterogêneo, o que se dificulta a evolução da sua capacidade internacional,
segundo José Francisco Rezek.411
Além do COI, também representa o mesmo exemplo de tal complexidade
o Green Peace, sendo que ambos atingiram um grau de atuação compatíveis
23. 2 À toutes les Sessions, une interprétation simultanée doit être fournie en français, anglais,
allemand, espagnol, russe et arabe.
411
REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 13. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 156.
410
224
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
com a discussão sobre a subjetividade internacional para entidades como essas.
Outro exemplo igualmente pertinente é o da Cruz Vermelha Internacional
que fora criada como associação no âmbito do direito suíço, e que desempenha
relevante função internacional de defesa humanitária.
Com isso, a Cruz Vermelha tem o direito de atuar em vários Estados,
por razões humanitárias, sempre com a autorização deles. Goza de direitos e
obrigações perante a sociedade internacional, e, por isso, é considerada como
pessoa jurídica de direito internacional.
Igualmente, a Cruz Vermelha tem a prerrogativa de firmar acordos
internacionais com outras entidades internacionais, fortalecendo a consideração
de que se tratam de pessoas jurídicas de direito internacional.
O art. 25 da Convenção Europeia de Direitos Humanos estabelece que
as ONGs – tal como o COI – têm o direito individual de reclamar agressões a
normas comunitárias, tal como fora anteriormente concedido aos indivíduos
particulares. Com isso, é de se sustentar a tendência das subjetividades
autônomas das ONGs.
O mais relevante documento convencional a ser apresentado para o caso
do reconhecimento da personalidade jurídica das ONGs é o de 24 de abril
de 1986; a depender da forma regular da sua constituição jurídica de direito
privado interno, de acordo com as regras nacionais dos Estados signatários, nos
termos dos arts. 2º e 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Em razão da breve análise, conclui-se que, em geral, as ONGs podem
possuir características de sujeitos de direito internacional, tais como: capacidade
subjetiva para reclamar o cumprimento de direitos, sujeito de direitos objetivos,
incluindo-se a capacidade processual, tal como ocorre para o caso do COI, a
seguir analisado; reforçando-se a hipótese do trabalho.
4.1 CAPACIDADE PROCESSUAL DO COI
O COI tem a capacidade de ser parte em um processo, podendo ser
demandado (réu) e demandar judicialmente (autor), em razão de ser pessoa
jurídica de Direito Internacional Público.412
Para a doutrina jusprocessualista, a capacidade processual não é a mesma coisa que a capacidade
de ser parte em um processo judicial. A capacidade de ser parte em um processo é para quem
pode ser parte ativa (autor) ou passiva (réu). Tal circunstância cabe a qualquer pessoa, podendo
ser dada inclusive para menores de idade, os quais devem ser representados caso tenham menos
de 16 anos; ou assistidos, quando têm entre 16 e 18 anos. A capacidade processual somente é
dada para aqueles que detêm a capacidade para os atos civis, vale dizer, os menores de idade não
a possuem; além dos absolutamente incapazes e nem os relativamente incapazes. Já a capacidade
postulatória representa a possibilidade que a pessoa tem para requerer em juízo a reparação,
declaração ou reconhecimento de algum direito que entenda possuir. Via de regra, quem tem a
412
225
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
O direito aplicável no campo da capacidade de ser parte processual
no caso de ONGs internacionais ainda não é suficientemente preciso; assim
como o caso da determinação em razão dos diversos tribunais nacionais ainda
utilizaram abordagens de direito processual diferentes; sendo que, em alguns
casos, acaba sendo ignorado por completo.413
Duas avaliações distintas têm sido utilizadas para se determinar quando
uma entidade internacional tem personalidade jurídica de Direito Internacional
Público414: a abordagem indutiva415 e a abordagem objetiva.
A visão indutiva considera a organização documental da entidade
internacional para se determinar o propósito do ente, a partir do qual se
pode considerá-lo ou não como sujeição internacional. Caso a entidade seja
formada por atributos de personalidade jurídica; tal como poder de contratar;
a capacidade de atuar em juízo ativa e passivamente, além da concessão de
determinados privilégios e imunidades passa a existir. Com isso, o teste da
visão indutiva é aprovado e a entidade terá personalidade jurídica de direito
internacional público.
A visão objetiva, ao contrário, envolve etapas mais complexas, dividas
em quatro testes: a entidade deve ser mais do que um simples centro de ações de
nações para o alcance de finalidades comuns; deve possuir uma infraestrutura
física e operacional; deve realizar tarefas/operações específicas e especiais; e
deve ocupar uma posição relativamente desvinculada dos seus membros, com
determinada autonomia de decisões.
O COI tem personalidade jurídica de acordo com o teste indutivo, tendo
em vista a sua criação de acordo com o direito internacional inclusive do ponto
de vista de status legal e judicial, nos termos da Carta Olímpica de 2011.
A Carta Olímpica permite que o COI contrate com organizações em
outros países, visando afirmar a sua independência de controle político e
governamental, incluindo-se fundações e outras empresas.416
capacidade postulatória são advogados (públicos e privados), membros Ministério Público e das
Defensorias Públicas.
413
KLEIN, Pierre; SANDS, Philippe. Bowett’s law of international institutions. 6th edition.
United Kingdom: Sweet & Maxwell, 2000, p. 302.
414
KLEIN, Pierre; SANDS, Philippe. Ob cit., p. 299-304.
415
RAMA-MONTALDO, Manuel. International legal personality and implied powers of
international organizations, p.111- 112. In: British Yearbook of International Law, n. 44, 1970.
416
Regra 15.4 Afin de pouvoir accomplir sa mission et remplir son rôle, le CIO peut constituer,
acquérir ou de toute autre manière contrôler d’autres entités juridiques, telles que des fondations
ou sociétés. Livre tradução: “A fim de cumprir sua missão e cumprir o seu papel; o COI
poderá estabelecer, adquirir ou controlar outras pessoas jurídicas, tais como fundações
ou empresas.
226
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
O COI também satisfaz os quatro elementos do teste objetivo. É mais do
que um simples centro para harmonização de ações entre nações que participam
dos Jogos Olímpicos, assim como os seus membros têm direitos e obrigações
perante a organização.417
Ademais, tem uma infraestrutura composta por oficiais418, Comitês
Olímpicos Nacionais (CONs)419, Federações Nacionais de Esportes (FIEs)420, o
Movimento Olímpico, assim como as suas regras e textos de aplicação421; como
já fora mencionado anteriormente.
O Comitê tem uma função especial: promover e governar as Olimpíadas;
cumprindo a missão, papel e responsabilidades atribuídos pela Carta.
Por fim, o Comitê tem uma existência perpétua com sucessão indefinida,
ou seja, continua a existir embora as Federações Internacionais de Esportes
(FIEs) e/ou os Comitês Olímpicos Nacionais (COIs) possam sair da organização
e outros novos possam aderir à entidade.422
4.2 AS VANTAGENS E DESVANTAGENS DA NÃO UTILIZAÇÃO DA CAPACIDADE
PROCESSUAL DO PODER JUDICIÁRIO: A VIA ARBITRAL
Mesmo que a capacidade processual da COI possa ser questionada no
âmbito do Poder Judiciário, é na arbitragem que reside o maior interesse da
participação das questões do direito internacional desportivo.
Desde que ambas as partes, na maioria dos casos, tenham o seu lugar de
negócios ou domicílio em diferentes países, a celebração de uma convenção
arbitral dá-lhes a oportunidade da escolha de um foro “neutro”, para a solução
de controvérsias, o que pode não acontecer caso determinado litígio seja levado
a algum Poder Judiciário nacional.
Trata-se de uma vantagem: a neutralidade do foro jurisdicional.
Outra vantagem que se torna possível elencar é que as partes, pela via
arbitral, podem escolher árbitros que tenham conhecimento especializado, o
que se torna importante para o caso do direito internacional desportivo, em
função das particularidades dos contratos desportivos. Assim, é substancial
a utilização da arbitragem como mecanismo alternativo para a solução de
conflitos, ou, como se denomina comumentemente: mecanismo alternativo de
solução de controvérsia (MASC).
Regra 16.2.
Como o caso do Presidente do COI, Regra 20.
419
Regra 27.
420
Regra 25.
421
Regras 15 até 24.
422
Regra 15.1.
417
418
227
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Ademais, a confidencialidade das informações processuais arbitrais acaba
sendo relevante vantagem, porque acaba sendo, particularmente, interessante para
os litígios emergentes relacionados com eventos desportivos a fim de se evitar má
publicidade que poderia ser prejudicial para a comercialização de evento desportivo.
A autonomia da vontade das partes e a flexibilidade processual são
princípios orientadores da arbitragem internacional desportiva, ao contrário
das regras jurisdicionais estatais aplicáveis aos processos judiciais.423 Tal
característica pode ser importante para o caso do direito internacional desportivo,
uma vez que as partes envolvidas têm diferentes origens legais.
A autonomia da vontade arbitral permite, nesse sentido, chegar a um
acordo sobre conjunto híbrido de regras processuais que harmonizam o direito
civil com direito desportivo.
Até mesmo o idioma do processo pode ser relevante para o
procedimento arbitral.424
Em caso de descumprimento da sentença arbitral, existe a possibilidade
de execução, uma vez que, praticamente, para todos os Estados nacionais
é obrigatória a aplicação da Convenção de Nova Iorque de 1958 sobre
reconhecimento e execução de sentenças arbitrais.425
Além disso, as sentenças arbitrais detém segurança jurídica em função
da limitada possibilidade de serem revisadas, não sendo comparáveis a um
processo judicial passível de recursos. Em muitos casos, em razão disso, a
arbitragem possibilita a resolução mais rápida de solução de controvérsias, não
sendo uma regra geral, obviamente.
A celeridade de um processo arbitral em comparação com um processo estatal
vai depender de jurisdição para jurisdição, e de corte arbitral para corte arbitral.
No campo do direito desportivo, inclusive no caso de arbitragem
envolvendo o COI, o processo arbitral permite o fortalecimento do princípio
da uniformidade do esporte, segundo o qual todos os atletas são tratados do
mesmo modo, aplicando-se as mesmas normas materiais; corroborando com o
princípio da igualdade de condições nas modalidades desportivas.
Por outro lado, a arbitragem não é considerada uma solução completa
para os problemas jurisdicionais estatais, razão pela qual ainda vem sendo
questionada a depender das condições de cada caso concreto.
Como desvantagens da utilização da arbitragem, as partes processuais
(isso inclui o COI), devem estar cientes do risco que correm para os custos do
processo arbitral que podem superar os da jurisdição estatal.
GARCEZ, José Maria Rossani. A arbitragem nacional e internacional. Belo Horizonte: Del
Rey, 2007, p. 98.
424
GARCEZ, Jose Maria Rossani. A arbitragem na era da globalização. São Paulo: Forense, 2009, p. 23.
425
Referida convenção foi ratificada pelo Brasil na forma do decreto federal nº 4.311, de 23 de
julho de 2002.
423
228
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A base da jurisdição de um tribunal arbitral é um acordo privado entre as partes
(convenção arbitral), tendo, em geral, as cortes arbitrais um poder coercitivo.426
No entanto, aos tribunais arbitrais não têm, particularmente, as seguintes
características
a) falta o poder de impor medidas provisórias (ou liminares) e também
o cumprimento da sentença arbitral de maneira coercitiva (ausência do jus
coertium);
b) falta o poder de exigir a presença de testemunhas sob coerção;
c) falta o poder de sequestrar ou utilizar bens para garantir o cumprimento
da posterior sentença arbitral.
Ademais, inexistem regras universais para que a coisa julgada (res
judicata) exista.
Podem existir problemas com a independência e imparcialidade dos
juízes arbitrais quando as partes venham a escolhê-lo, assim como não se
garantem tais qualidades mesmo em caso de cortes arbitrais.
O art. 61 da CO/2011 estabelece, categoricamente, o que fora sustentado
aqui, in verbis427:
61. Solução de Controvérsias
1. As decisões do COI são definitivas. Qualquer controvérsia relativa à
sua aplicação ou interpretação não pode ser resolvida pelo Conselho Executivo
do COI e, em certos casos, por meio de arbitragem perante o Tribunal de
Arbitragem do Esporte (TAE).
2. Qualquer litígio por ocasião dos Jogos Olímpicos ou em conexão com
estes, serão submetidos, exclusivamente, ao Tribunal de Arbitragem do Esporte
(TAE), de conformidade com o Código de Arbitragem em matéria de esporte.
Em geral, os CPEs apresentam a seguinte cláusula compromissória, tal
como a recomendação do próprio COI, de acordo com a CO/2011428:
All disputes arising out of or in connection with the application of these
rules or the Olympic Games are finally settled by an arbitral tribunal consisting
of three arbitrators. The seat of the arbitration is in Lausanne, Switzerland.429
GARCEZ, Jose Maria Rossani. Ob. cit., p. 73.
No original: “61 Règlement des différends. 1. Les décisions du CIO sont définitives. Tout
différend relatif à leur application ou interprétation ne peut être résolu que par la commission
exécutive du CIO et, dans certains cas, par arbitrage devant le Tribunal Arbitral du Sport (TAS).
2. Tout différend survenant à l’occasion des Jeux Olympiques ou en relation avec ceux-ci sera
soumis exclusivement au Tribunal Arbitral du Sport (TAS), conformément au Code de l’arbitrage
en matière de sport.”
428
CHAPPELET, Jean-Loup; BRENDA, Kübler-Mabbott. International Olympic Committee
and the Olympic system: the governance of world sport. New York: Routledge, 2008, p. 29.
429
Tradução livre: “Todos os litígios decorrentes de ou em conexão com a aplicação destas regras
ou a Jogos Olímpicos são, finalmente, resolvidos por um tribunal arbitral composto por três
426
427
229
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Ainda existem algumas dúvidas na doutrina jurídica acerca da ausência
de uma decisão judicial de execução de sentença arbitral ainda ser considerada
uma desvantagem da arbitragem, principalmente, em função da falta de
uniformização das sentenças arbitrais em alguns casos.
Muito embora sejam situações questionadas, no âmbito do direito
desportivo do COI, a arbitragem é reconhecida como mecanismo oficial de
solução de divergências
5. CONCLUSÕES
O COI tem a capacidade de ser parte processual de acordo com o Direito
Internacional, podendo ser parte ativa e parte passiva em processos, inclusive
no Brasil; questão complementada pela noção de sujeição internacional, muito
embora uma parte da doutrina jurídica não a reconheça.
Ademais, para o COI, inexiste imunidade de jurisdição, em razão de
a mesma ter a natureza jurídica de ONG transnacional, não tendo imunidade
constitucional e tampouco infraconstitucional e/ou convencional.
Seguindo a tradição dos meios alternativos de solução de controvérsias,
as últimas Cartas Olímpicas vêm prevendo a solução de disputas por meio da
arbitragem apenas em determinados casos pela Corte de Arbitragem do Esporte,
em ocasiões de ou em conexão com os Jogos Olímpicos; de acordo com o Código
de Arbitragem Relacionado a Esportes (Code of Sports-Related Arbitration).
A questão a ser discutida que mereceria uma avaliação mais complexa
seria, basicamente, relacionada a dois aspectos na aplicação da arbitragem do
COI: a da provocação da jurisdição estatal e a do direito material aplicável
(inclusive a lex sportiva), a qual, certamente, mereceria um estudo a parte; que
vai além dos propósitos do presente trabalho.
árbitros. A sede da arbitragem é em Lausanne, Suíça.”
230
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
REFERÊNCIAS
CHAPPELET, Jean-Loup; KÜBLER-MABBOTT, Brenda. International
Olympic Committee and the Olympic system: the governance of world sport.
New York: Routledge, 2008.
DUPUY, René-Jean. Droit international public. Paris: Presses Universitaires
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FERREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de Direito
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GARCEZ, Jose Maria Rossani. A arbitragem na era da globalização. São
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_______. A arbitragem nacional e internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
KLEIN, Pierre; SANDS, Philippe. Bowett’s law of international institutions.
6th edition. United Kingdom: Sweet & Maxwell, 2009.
LENSKYI, Helen Jefferson. Inside the Olympic Industry: Power, Politics and
Activism. New York: SUNY, 2000.
LITRENTO, Oliveiros. Curso de Direito Internacional Público. Rio de
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MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional
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231
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
ARTIGO 12
COOPERAÇÃO INTERGOVERNAMENTAL E PREPARAÇÃO PARA
OS JOGOS OLÍMPICOS E PARAOLÍMPICOS DE 2016: O PAPEL DE
MEDIADORA DA AUTORIDADE PÚBLICA OLÍMPICA
Ricardo Silveira Ribeiro430
SUMÁRIO: Introdução: nasce a Autoridade Pública Olímpica. 1. APO: características
gerais, marco normativo e interlocução com atores governamentais relevantes. 2. Coopera
ção e comunicação entre os entes e órgãos governamentais: o lugar institucional de
mediadora da APO. 3. Conclusão. Bibliografia.
INTRODUÇÃO: NASCE A AUTORIDADE PÚBLICA OLÍMPICA
No dia 2 de outubro de 2009, a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida pelo
Comitê Olímpico Internacional (COI) para sediar os XXXI Jogos Olímpicos e
Paraolímpicos de 2016 após uma ampla competição que envolveu a disputa
com outras seis cidades.431 A grandiosidade do projeto olímpico, por si só, já
torna imenso o desafio de coordenar a preparação e realização dos jogos, pois
a infraestrutura e os serviços necessários implicam uma alocação de recursos
humanos e materiais em dimensões jamais vistas na realização de um grande
evento no Brasil.
Agregue-se a esse fato a necessidade de sincronização da atuação dos
setores público e privado. A governança inerente aos jogos envolve ações
organizadas do Comitê Rio 2016 e dos governos das três esferas da federação
– União, Estado do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro. O sucesso
de toda a operação, portanto, depende do quão eficiente essa colaboração será.
Ainda durante a fase de candidatura, foram estabelecidos inúmeros
compromissos internacionais com o COI. Um deles foi a criação de um
ente administrativo que teria a missão de coordenar as ações governamentais
necessárias aos Jogos de 2016 – a Autoridade Pública Olímpica (APO). No
Dossiê de Candidatura, os responsáveis por sua concepção atribuíram à APO
uma missão institucional bem mais ampla que a atual. No desenho institucional
Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Professor
Titular I da Universidade Norte do Paraná em Londrina/PR. Procurador Federal da AdvocaciaGeral da União.
431
As cidades foram Chicago, Praga, Tóquio, Baku, Doha e Madrid. Em fase mais avançada,
o processo seletivo contou com uma disputa acirrada entre Rio de Janeiro, Tóquio, Chicago e
Madrid. Cf. MORE about the election. Disponível em: <http://www.olympic.org/rio-2016summer-olympics>. Acesso em: 03 jan. 2013.
430
233
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
original, esse ente seria responsável por todos os aspectos do planejamento e
da execução das ações governamentais lá definidas, inclusive a elaboração de
projetos, licitações, contratações, execução de obras de infraestrutura, entrega
de serviços públicos e legado.432
Sob a perspectiva da escolha racional, esse compromisso fez todo sentido.
Procurou sinalizar ao Comitê Olímpico Internacional (COI) que a estrutura de
Estado Federal que vigora no Brasil não seria um óbice à cooperação entre os
entes políticos. Com uma promessa crível, minimizou-se a probabilidade de
não escolha do Rio de Janeiro por aversão ao risco.
Em 2010, com a vitória no processo seletivo internacional já assegurada,
os primeiros movimentos dos governos foram realizados para definir o marco
normativo da APO. O Governo Federal editou a Medida Provisória (MP)
n° 489, de 12 de maio de 2010, autorizando a União a integrar o consórcio
APO. Ao mesmo tempo, encaminhou projeto de lei com o objetivo de ratificar
o protocolo de intenções firmado entre a União, Estado do Rio de Janeiro e
Município do Rio de Janeiro para constituir a APO.433
Da análise do projeto e da MP n° 489/2010, nota-se uma mudança
na orientação original. No art. 2º deste ato normativo, por exemplo, a APO
não mais passaria a licitar e contratar obras e serviços. Seria uma espécie
de coordenadora e planejadora das ações governamentais e, somente em
caráter excepcional, assumiria tarefas de implantação dos projetos olímpicos
(elaboração de projetos, licitação e contratação).
Em verdade, essas últimas tarefas foram absorvidas por uma empresa
pública autorizada a funcionar como “braço executor” das ações da União à luz
do art. 2º da MP n° 488, de 12 de maio de 2010. É o que se vê na Exposição de
Motivos n° 12/2010/ME/MP/MF:
2. Dentre os compromissos assumidos pelo país, no processo eleitoral do
Comitê Olímpico Internacional – COI, que culminou com a eleição da cidade do
Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2016, constou a criação de um ente
público interfederativo, formado pela União, Estado do Rio de Janeiro e Município
do Rio de Janeiro, denominado Autoridade Pública Olímpica – APO, que tem por
objetivo coordenar os esforços governamentais com vistas a garantir a disponibilidade
das obras de infraestrutura e serviços necessários à realização dos Jogos.
3. Inúmeros debates ocorreram para definição de conceitos e estruturas
desta instituição, com a participação de diversos órgãos do Governo, […], nestes
DOSSIÊ de candidatura do Rio de Janeiro a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de
2016. Rio de Janeiro: 2009, V. I, temas 3 e 4, p. 50 e 66. O Dossiê pode ser consultado livremente
em: <http://www.rio2016.org/comite-organizador/transparencia/documentos>.
433
BRASIL. Congresso Nacional. PL 7374/2010. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/
proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=478092>. Acesso em: 04 jan. 2013.
432
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
debates, sugestionou-se que, além da Autoridade Pública Olímpica, também se
faria necessária a constituição de uma empresa, de capital exclusivo da União,
uma vez que apenas a APO seria insuficiente para o cumprimento integral dos
compromissos assumidos com o Comitê Olímpico Internacional, para prestar
serviços especializados aos entes envolvidos e à APO na elaboração dos
projetos, monitoramento intensivo das ações, planejamento da gestão do legado
esportivo, econômico e social, elaboração e revisão de estudos e, eventualmente,
a contratação e fiscalização de obras, equipamentos e serviços de engenharia.434
Em 22 de setembro de 2010, ambas as Medidas Provisórias perderam
vigência nos termos do art. 62, §§ 3º e 11, da CF/88, pois não foram apreciadas
tempestivamente pelo Congresso Nacional.435 Nessa mesma data, nova Medida
Provisória, a de nº 503, foi editada com o objetivo de ratificar o protocolo de
intenções que regulava a APO, dada a ausência de aprovação do projeto de lei
enviado à Câmara dos Deputados até então.
Tal como já anunciado pela MP n° 489/2010, a APO foi concebida com
competências muito mais restritas que as originalmente previstas pelo Dossiê
de Candidatura. Além disso, a União abandonou a via de instituir uma empresa
pública executora das políticas públicas relacionadas aos jogos, pois não mais
editou ato normativo nesse sentido.
A partir da conversão da MP nº 503/2010 na Lei nº 12.396, de 21 de
março de 2011, restou definitivamente materializada a ratificação pela União do
protocolo de intenções. Nos âmbitos do Estado do Rio de Janeiro e do Município
do Rio de Janeiro, as ratificações foram manifestadas pelas Lei n° 5.949, de 13
de abril de 2011, e Lei n° 5.260, de 13 de abril de 2011 respectivamente.436
Com as ratificações dos três entes políticos, a APO foi definitivamente
constituída com características institucionais bem peculiares e com competências
diversificadas, que incluem desde a coordenação das ações governamentais
para o planejamento dos Jogos de 2016 até a interlocução com entes públicos e
privados em caso de impasse.
O modelo original do Dossiê de Candidatura, contudo, foi abandonado. A
APO não mais realizaria as licitações e contratações inerentes às obras e prestações
de serviços dos Jogos de 2016. Apenas em caráter excepcional, nos termos
dos parágrafos segundo ao quinto da cláusula quarta do contrato de consórcio
BRASIL. Presidência da República. EM n° 12/2010/ME/MP/MF. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Exm/EM12-ME-MP-MF-MPV488-10.htm>.
Acesso em: 04 jan. 2013.
435
Cf. Atos Declaratórios do Presidente da Mesa do Congresso Nacional n° 34/2010 e 35/2010.
Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-1/medidas-provisorias/2010posteriores-a-emenda-constitucional-no32#content>. Acesso em: 04 jan. 2013.
436
O Estado do Rio de Janeiro chegou a editar a Lei n° 5.765, de 29 de junho de 2010, com o
objetivo de ratificar o protocolo de intenções. Posteriormente, essa lei foi revogada pelo art. 3º da
Lei n° 5.949, de 13 de abril de 2011.
434
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
público,437 poderia assumir essas competências se essa medida se justificar para
assegurar o adimplemento das obrigações dos entes políticos com o COI.438
Portanto, no marco normativo aprovado por leis de ratificação, a APO
passou a ser, apenas, uma instância de coordenação das ações governamentais,
monitoramento do adimplemento dos compromissos internacionais e definição
dos projetos olímpicos relevantes e das responsabilidades dos governos (cláusula
quarta do contrato de consórcio público). Certamente, são funções extremamente
importantes, mas, em termos práticos, pode-se questionar se seria justificável a
criação de um ente com tais competências. Há alguma razão que justifique a
existência da APO, para além da mera previsão em leis de ratificação?
Acreditamos que sim. No ambiente da preparação para os Jogos de 2016,
os atores governamentais ver-se-ão diante de inúmeras situações estratégicas,
nas quais as decisões de um ente tem potencial para afetar as recompensas
do outro. Em muitos momentos, essas interações criarão oportunidades para
cooperação e, de modo geral, o sucesso do planejamento e realização das
Olimpíadas e Paraolimpíadas no Brasil depende da capacidade de coordenação
entre os governos, a qual pode ser aumentada substancialmente com a presença
de um terceiro que facilite as comunicações recíprocas e oriente as ações. Na
literatura da teoria dos jogos com comunicação (games with communication),
esse terceiro é denominado mediador e, como demonstraremos, a APO pode
fazer as vezes de mediadora, aumentando as chances de cooperação e de
obtenção de recompensas superiores às do equilíbrio na ausência desse terceiro.
No concernente à organização formal do artigo, dividiremos o trabalho
em duas seções. Na primeira, serão discutidas algumas das características
institucionais da APO e do marco normativo que rege sua atuação. Nesse
primeiro momento, as considerações serão de ordem estritamente normativa.
Na segunda seção, faremos uma rápida revisão da literatura sobre jogos de
informação incompleta com comunicação, com o objetivo de demonstrar como
a existência de cheap talk e da figura do mediador podem induzir cooperação.
1. APO: CARACTERÍSTICAS GERAIS, MARCO NORMATIVO E INTERLOCUÇÃO COM ATORES GOVERNAMENTAIS RELEVANTES
A APO foi constituída como autarquia a partir das ratificações do
protocolo de intenções firmado entre a União, Estado do Rio de Janeiro e
O contrato de consórcio consta como anexo das leis de ratificação.
O risco de esse fato acontecer é baixo e existem entraves institucionais relevantes. Para que a
APO assuma licitações e contratações, há a necessidade de haver decisão unânime do Conselho
Público Olímpico que aprove essa possibilidade. O Conselho, por sua vez, é composto pelos
Chefes dos Poderes Executivos de cada ente ou por representantes dessas autoridades (cláusula
décima primeira do contrato de consórcio público), razão pela qual se torna muito difícil que essa
unanimidade ocorra.
437
438
236
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Município do Rio de Janeiro pelas Leis Federal nº 12.396, de 21 de março de
2011, Estadual nº 5.949, de 13 de abril de 2011, e Municipal nº 5.260, de 13
de abril de 2011. Nessa oportunidade, o protocolo de intenções converteu-se
em contrato de consórcio público e suas cláusulas podem ser consultadas nos
respectivos anexos das leis ratificadoras.
Em termos de estrutura jurídica, a APO foi delineada, fundamentalmente,
por essas leis. A cláusula vigésima sexta do contrato de consórcio acrescenta,
ainda, que se aplica à APO a Lei n° 11.107, de 6 de abril de 2005, e,
subsidiariamente, as disposições do Código Civil sobre associações civis.
Como autarquia, a APO possui personalidade jurídica de direito público,
submete-se às normas do regime jurídico de direito público e, juridicamente, sua
criação data do momento em que ocorreram todas as ratificações do protocolo
de intenções pelos três entes políticos (art. 37, XIX, da CF/88).
Sua designação, nas leis de ratificação, como “associação pública”,
contudo, deve ser adequadamente compreendida. A APO possui um “rótulo”,
uma “roupagem”, uma forma jurídica diferenciada de associação pública, que
em nada descaracteriza a natureza autárquica desse ente (cláusula terceira, inciso
V, e cláusula nona c/c art. 41, IV, do CC). Em verdade, associações públicas
não passam de autarquias especializadas na gestão de consórcios públicos. A
Lei n° 11.107/2005 e as leis ratificadoras, portanto, ao mencionarem o termo
“associação pública”, não quiseram indicar a existência de um quinto ente da
Administração Indireta no Brasil, mas, exclusivamente, classificar ou “rotular”
autarquias especializadas na gestão de consórcios como “associações públicas”.
Como associação pública, a APO deve ser entendida como entidade
interfederativa, pois integra a Administração Indireta de todos os entes políticos
consorciados (cláusulas segunda e nona do contrato de consórcio público c/c
art. 6º, §1º, da Lei n° 11.107/2005). Esse simples fato cria um problema teórico
e prático de grande proporção: a APO somente pode ser regulada por legislação
de caráter nacional ou existem possíveis exceções, nas quais normas estaduais,
federais e municipais poderiam impor seus respectivos comandos jurídicos?
A solução para essa dúvida parece estar no seguinte raciocínio: se a APO
pertence à Administração Indireta da União, do Estado do Rio de Janeiro e do
Município do Rio de Janeiro, não pode ser regida por legislação exclusivamente
aplicável a determinado ente, pois, do contrário, haveria lesão ao princípio
federativo (arts. 1º e 18 da CF/88). Um ente estaria impondo sua legislação à APO,
afastando unilateralmente a incidência da legislação dos demais consorciados.
Para evitar esse problema, deve-se entender que a APO somente poderá
ser regida por legislação de caráter nacional, isto é, por normas que se aplicam
a todos os entes políticos da República Federativa do Brasil. São exemplos:
normas gerais da Lei n° 8.666/1993; Lei Complementar n° 101/2000; Lei n°
4.320/1964. Há duas exceções, contudo, a essa regra.
237
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
A primeira resulta do próprio contrato de consórcio público. Cientes
da necessidade de um marco normativo sólido para o ente interfederativo,
os consorciados podem adotar, expressamente, uma lei ou ato administrativo
normativo de algum dos entes. Desde que a cláusula de escolha da legislação
seja ratificada pelas leis de cada ente, não se vê óbice a tal técnica, pois não estará
havendo qualquer usurpação da função normativa. Muito pelo contrário, os
Poderes Legislativos de cada ente validarão a escolha do contrato de consórcio
ou, na pior das hipóteses, não aprovarão a indicação da respectiva norma,
ratificando o consórcio de maneira parcial (art. 5º, §2º, da Lei n° 11.107/2005).
Por outras palavras, a função normativa ainda continua nas mãos de
cada Poder Legislativo. Essa técnica, apenas, permite que existam ganhos de
eficiência na aprovação do marco normativo do consórcio público, para que
não haja o problema de, a cada formação de um novo consórcio público, nova
legislação ter que ser aprovada.
No contrato de consórcio público da APO, há um exemplo claro de adoção
dessa técnica na cláusula décima sexta. De acordo com a íntegra desse dispositivo,
aplicar-se-á, parcialmente, à APO a Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, que
trata da contratação de servidores públicos temporários no âmbito federal.
Ainda sobre esse ponto, observe-se que se essa legislação escolhida
não detivesse o status de lei em sentido formal e material, o “problema” seria
ainda menor. Nada obstaria que o contrato de consórcio público indicasse um
decreto regulamentar ou outro ato administrativo normativo de um dos entes
consorciados para regular as relações jurídicas do consórcio, principalmente
porque a indicação estaria ratificada por cada uma das leis.
E se não houve indicação da legislação cabível no contrato de consórcio
público e essa medida se afigura como imprescindível à atuação da associação
pública? Nesse caso, tem-se a segunda exceção. A omissão deve motivar a
aplicação de legislação de determinado ente consorciado.
Como vimos, o consórcio é regido por legislação de caráter nacional e por
eventuais normas indicadas no contrato de consórcio público. Se, sob o ponto
de vista material, para viabilizar a atividade administrativa, há a necessidade de
uma norma reguladora de determinadas relações jurídicas, mas o contrato de
consórcio foi silente quanto a qual norma aplicar, deve-se entender que houve
omissão juridicamente relevante. A APO deve, então, procurar aplicar, no
que couber, as diretrizes da legislação federal em cada situação concreta.
Obviamente, dado o princípio federativo, essa é uma medida excepcional
e sua aplicação deve estar adstrita às situações nas quais a escolha de um marco
normativo torna-se crítica para a adequada atuação da APO: sem o apelo à
legislação de determinado ente, o consórcio teria sérias dificuldades para realizar
sua atividade administrativa. Observe-se, nesse sentido, o exemplo a seguir.
238
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
O pregão eletrônico é regulado por decretos elaborados por cada ente
federativo. Embora tenha sido previsto no art. 2º, §1º, da Lei n° 10.520/2002,
todo o detalhamento de seu modus operandi deve ser estabelecido por decretos
regulamentares. Assim, se a APO deseja utilizar-se do pregão eletrônico
para licitar a aquisição de bens ou a contratação de serviços comuns, terá
que enfrentar o problema relativo a qual norma aplicar, se a federal, estadual
ou municipal. De acordo com a ideia desenvolvida acima, deverá aplicar
o Decreto n° 5.450, de 31 de maio de 2005, sob pena de não ter marco
normativo à disposição para orientar sua atuação de maneira adequada e
perder a oportunidade de licitar por uma modalidade que traz enormes ganhos
para o Estado em eficiência e economicidade.
Certamente, o leitor deve estar se perguntando sobre as razões jurídicas
pelas quais a APO deveria adotar a legislação federal no que couber. Em verdade,
elas existem por dois motivos. Primeiramente, essa é a lógica subjacente à
própria Lei n° 11.107/2005, como se vê da leitura do art. 20:
Art. 20. O Poder Executivo da União regulamentará o disposto nesta Lei,
inclusive as normas gerais de contabilidade pública que serão observadas pelos
consórcios públicos para que sua gestão financeira e orçamentária se realize na
conformidade dos pressupostos da responsabilidade fiscal (grifos nossos).
Portanto, se cabe ao Poder Executivo da União regulamentar a lei dos
consórcios e disciplinar as normas gerais de contabilidade a serem seguidas,
isso significa que, se houver dúvida quanto a qual norma seguir, deverá optar-se
pela Federal, pois essa é a orientação jurídica mais compatível com o art. 20 da
Lei n° 11.107/2005.
Por outro lado, sob uma perspectiva mais pragmática, a APO tem a
peculiaridade de ser controlada externamente pelo Tribunal de Contas da União,
dados o art. 9º, parágrafo único, da Lei n° 11.107/2005, e a cláusula décima
segunda do contrato de consórcio. Parece, portanto, evidente que, em caso de
ausência de indicação da legislação relevante no contrato de consórcio público,
a atuação da APO deve basear-se no marco normativo federal no que couber,
pois esse é a grande fonte das interpretações do órgão de controle externo.
Feitas essas considerações, cabe lembrar que as ações governamentais
serão desenvolvidas por três entes políticos – a União, o Estado do Rio de
Janeiro e o Município do Rio de Janeiro. É dizer: obras e serviços a serem
disponibilizados pelos poderes públicos serão efetivamente implementados por
esses entes. Por esse motivo, no âmbito de cada ente, foram criadas instâncias
para cuidar dessas ações.
O Governo Federal, por meio do Decreto s/n° de 13 de setembro de 2012,
constituiu dois órgãos para cuidar dessas ações. O primeiro é o Comitê Gestor
dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 (CGOLIMPÍADAS), consti239
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
tuído com a missão de definir as políticas públicas para a organização dos jogos
no âmbito do Governo Federal (“definir diretrizes e ações”). O segundo denomina-se Grupo Executivo dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016
(GEOLIMPÍADAS) e suas atribuições são, essencialmente, de monitoramento
e coordenação da implementação das políticas definidas ex ante pelo CGOLIMPÍADAS. Em ambos os órgãos, observa-se a participação do Ministério do
Esporte e da Casa Civil, unidades administrativas decisivas, no âmbito federal,
para a coordenação de ações dentro da União. Observe-se, ainda, que o decreto
atribuiu ao Ministério do Esporte a função de coordenar o CGOLIMPÍADAS e
o GEOLIMPÍADAS.
No Município do Rio de Janeiro, as ações são realizadas por uma
empresa pública que tem por objetivo o exercício de funções de planejamento,
implementação de ações e monitoramento das mesmas; tudo de acordo com as
Leis Municipais n° 5.229, de 25 de novembro de 2010, n° 5.260, de 13 de abril
de 2011, e n° 5.272, de 7 de junho de 2011.
Por fim, o Estado do Rio de Janeiro optou por comandar as ações
governamentais por meio do Escritório de Gerenciamento de Projetos da
Secretaria de Estado da Casa Civil (EGP - Rio), órgão da Administração
Direta estadual instituído pelo Decreto n° 40.890/2007.
Esses três atores, contudo, não esgotam o número de potenciais
envolvidos nas ações dos Jogos de 2016, pois as obras e serviços mobilizam
tantas áreas temáticas (ex.: distribuição de energia elétrica, proteção ambiental,
acessibilidade) que, potencialmente, cada ação empreendida tem a possibilidade
de atrair a atuação de outros órgãos ou entes federais, estaduais ou municipais,
como o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), a Agência Nacional de Energia
Elétrica (ANEEL), o Ministério da Justiça, entre muitos outros.
É dentro desse contexto que começa a fazer sentido a APO. A diversidade
de atores e áreas temáticas aumenta a complexidade da organização dos Jogos no
âmbito governamental, pois há a necessidade de coordenação das ações de entes
e órgãos de diversas esferas da federação. Nesse sentido, um ente com natureza
interfederativa seria ideal para promover os diálogos e tratativas necessários,
principalmente se esse ente tivesse um nível de insulamento burocrático capaz
de blindá-lo contra o jogo político imediato.
A APO foi desenhada com esse objetivo. Suas competências incluem,
essencialmente, a representação dos entes consorciados, a coordenação, o
monitoramento do cumprimento dos compromissos internacionais com o COI e a
definição dos projetos olímpicos e das responsabilidades dos entes governamentais
(cláusula quarta do contrato de consórcio). Também é responsável por intermediar
o relacionamento dos atores governamentais com o Comitê Rio 2016, associação
civil responsável pela organização e realização dos Jogos de 2016.
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TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
É importante ressaltar que a APO tem a seu dispor instrumentos para
viabilizar o cumprimento dessas competências. Por exemplo, à luz do parágrafo
primeiro da cláusula quarta do contrato de consórcio público, pode realizar
estudos técnicos e firmar convênios, contratos e ajustes de qualquer natureza.
O insulamento parcial do jogo político direto procura ser feito a partir da
definição de um mandato de quatro anos para seu Presidente (cláusula décima
segunda), permitida a recondução. Durante esse período, o dirigente torna-se
estável e somente haverá a possibilidade de perda do mandato por renúncia,
condenação penal transitada em julgado ou destituição por decisão definitiva
em processo administrativo disciplinar (art. 2º da Lei n° 12.396/2011).
2. COOPERAÇÃO E COMUNICAÇÃO ENTRE OS ENTES E ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS: O LUGAR INSTITUCIONAL DE MEDIADORA DA APO
As seções anteriores delinearam o arcabouço institucional que rege a
APO. Até então, foram realizadas análises normativas, de modo que houve
pouco espaço para uma discussão dos aspetos positivos relativos à participação
da APO na organização e realização dos jogos.
Nesta seção, o enfoque será outro. Começaremos por fazer uma rápida
descrição do ambiente no qual as ações de preparação para os Jogos de 2016
se delinearão. A partir dessa, serão tecidas algumas considerações sobre as
possibilidades de cooperação nas situações estratégicas subjacentes. Por fim,
adentraremos na discussão sobre como a APO poderia atuar para aumentar a
possibilidade de novos equilíbrios Pareto superiores aos tradicionais. Como se
verá, o arcabouço teórico que orientará a abordagem desta seção vem da teoria dos
jogos. Assumimos alguma familiaridade do leitor com conceitos como situação
estratégica, jogo, estratégias, recompensas (payoffs) e resultados (outcomes).
Quando da análise do planejamento e organização dos Jogos de 2016,
deve-se ter em conta duas ideias.
Primeiramente, os Jogos propiciarão situações estratégicas entre
múltiplos atores em diversos momentos e circunstâncias. Assim, deve-se
descartar qualquer tentativa de modelar as relações entre dois ou mais entes ou
órgãos a partir de um só jogo (ex.: guerra dos sexos, dilema do prisioneiro), pois
múltiplas interações ocorrerão em condições completamente distintas. Não há,
portanto, um só jogo capaz de modelar todas as possíveis situações estratégicas
dos atores governamentais. Para cada jogo, uma situação estratégica com
características peculiares pode surgir, suscitando diferentes problemas de
cooperação. Dada a multidimensionalidade das áreas temáticas relativas a cada
jogo, as estratégias, as recompensas e os jogadores também não podem ser
evidenciados em uma discussão tão abstrata quanto a do presente artigo.
241
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Um segundo ponto é que iremos tratar aqui de um problema de
cooperação mais sutil. Não estamos a discutir se há viabilidade ou não
de haver uma “macrocooperação” entre os atores governamentais para o
planejamento e realização dos jogos. Em verdade, não é difícil prever que
haverá cooperação em grau suficiente para que os Jogos de 2016 sejam
realizados. É difícil imaginar uma situação na qual os entes políticos deixem
de cumprir completamente suas obrigações internacionais, de forma que
o Comitê Olímpico Internacional e o Comitê Paraolímpico Internacional
tenham que intervir para viabilizar a realização dos eventos. Há duas razões
para crermos que esse não é um problema real.
A primeira centra-se no fato de que uma falha dessa magnitude implica
altos custos para os agentes políticos dos três entes da federação. A visibilidade
dessa omissão tenderia a prejudicar, substancialmente, as carreiras dos agentes
políticos das três esferas, razão pela qual a “conexão eleitoral” opera como
forte incentivo para que sejam tomadas as decisões necessárias à viabilização
da cooperação. Por outro lado, ainda que o Estado do Rio de Janeiro e o
Município do Rio de Janeiro não dessem o suporte necessário à realização dos
jogos, os incentivos induzem a União a assumir a responsabilidade integral
por falhas dessa magnitude, pois, do contrário, poderia haver forte mobilização
da opinião pública no sentido de responsabilizar o Presidente por não haver
atuado, devidamente, para suprir tais omissões.
A segunda razão tem a ver com a própria dinâmica da cooperação. Os
entes e órgãos governamentais interagem, continuamente, em jogos distintos.
Embora nem sempre a estrutura de um jogo se repita, o fato é que se os atores
vão interagir em múltiplos jogos, devem antecipar que se os jogos se repetirão
durante longo período, haverá a perspectiva de cooperação futura. Deve,
portanto, haver cooperação no momento presente, para que se assegure uma
boa relação entre os jogadores durante todo o período.
Observe-se que essa é uma consequência típica da necessidade de garantir
futuramente a cooperação. Se um jogador não coopera agora, isso fará com que, no
futuro, o outro jogador lembre-se desse fato e deixe de cooperar. Se, por outro lado,
coopera agora, induz o outro jogador a cooperar também no futuro. Essa previsão
somente é possível quando há a perspectiva de jogos repetidos infinitamente ou, ao
menos, durante um grande número de vezes.439 Esse é o caso das interações entre
os entes e órgãos governamentais. Embora os jogos não se repitam infinitamente,
ocorrerão finitamente por um número muito grande de vezes, cuja quantidade é
desconhecida dos jogadores a priori. Por si só, isso possibilita fortes incentivos
para que haja cooperação agora a fim de garantir a cooperação futura.
SHEPSLE, Kenneth. Analyzing Politics: rationality, behavior, and institutions. New York/
London: Norton, 2010, p. 243 e nota 5.
439
242
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Por outras palavras, essas duas razões representam fortes incentivos
para que os governos apoiem a realização dos Jogos de 2016 de maneira
suficientemente forte. Por conseguinte, a não realização dos eventos por
ausência de apoio governamental é pouco provável.
Persiste, contudo, o risco de os entes governamentais não cooperarem
de maneira adequada no momento oportuno, no timing necessário à realização
dos eventos, pois os entes e órgãos estão sujeitos a diferentes preferências, são
responsivos a governantes distintos e os benefícios e custos da preparação e
realização dos Jogos de 2016 são assimétricos, isto é, são diferentes para cada
jogador, de modo que existe uma estrutura de incentivos à ação diferenciada
para cada ente ou órgão governamental.
Há potencialidade, portanto, para que ocorram dificuldades de cooperação
em cada jogo, sendo o decurso do tempo, em verdade, uma boa proxy da eficiência
com que esses problemas serão resolvidos. Quanto mais demorado o surgimento
da cooperação, mais próximas serão as datas de realização dos Jogos de 2016 e
mais alto será o risco de um inadequado suporte governamental para os eventos.
É aí “onde entra” a APO. Suas competências possibilitam que esse
ente faça as vezes de partícipe em jogos com cheap talk (“diálogo barato”,
“comunicação barata” ou “comunicação não custosa”).440 No contexto
da preparação para os Jogos de 2016, jogos com cheap talk serão jogos de
informação incompleta cuja comunicação entre os jogadores não possui
qualquer repercussão em suas recompensas.
Para que o jogo seja de informação incompleta, algum dos jogadores deve
deter informação privada não compartilhada com os demais jogadores,441
isto é, as características dos jogadores não são de conhecimento comum.
Algum jogador não conhece os objetivos do outro jogador, nem a importância
relativa dada aos objetivos, para cada estratégia. As recompensas, portanto, não
são conhecidas por algum jogador; não são de conhecimento comum.442
Por exemplo, quando uma empresa negocia coletivamente condições
de trabalho com o sindicato obreiro, nem a empresa sabe as cláusulas de
um acordo coletivo de trabalho que seriam aceitas pelos trabalhadores para
que eles não entrem em greve, nem os trabalhadores sabem o valor máximo
que a empresa está disposta a pagar para que a greve não ocorra.443 Para
ilustrar melhor a ideia, digamos que o sindicato dos trabalhadores pode ser
Como a tradução de cheap talk não é adequada, manteremos o termo em inglês.
MYERSON, Roger. Game Theory: analysis of conflict. Cambridge: Harvard, 2004, p. 67.
442
FIANI, Ronaldo. Teoria dos Jogos: com aplicações em Economia, Administração e Ciências
Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, p. 301 e 305.
443
O exemplo é uma adaptação de hipótese citada por BIERMAN, H. Scott; FERNANDEZ, Luiz.
Teoria dos Jogos. São Paulo: Pearson, 2011, p. 250.
440
441
243
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
radical ou moderado. A empresa pode não saber com que perfil está lidando.
Tecnicamente, a caraterística radical ou moderada pode ser denominada de
tipo do jogador. Assim, em um jogo de informação incompleta, algum jogador
não conhece o tipo do outro jogador. Outro exemplo: seleção de profissionais
competentes por empresa. Quando a empresa procura contratar um profissional
competente, dificilmente terá certeza de que eventual candidato a emprego é do
tipo competente ou incompetente.
Por outro lado, ocorre cheap talk quando o jogo permite comunicações
entre os jogadores que não representam custo significativo. Os jogadores
podem enviar mensagens, sem que suas recompensas sejam afetadas por esse
“diálogo”. Portanto, a comunicação é cheap por ser irrelevante às recompensas
do jogo e por não ser capaz de gerar propostas vinculantes, nem ser submetida
a qualquer controle de seu conteúdo no futuro.444
A primeira modelagem de jogos de informação incompleta com cheap
talk deve ser creditada ao artigo “Strategic Information Transmission”,
de Crawford e Sobel. Nesse trabalho, os autores analisaram o papel da
comunicação direta no jogo do emissor-receptor (sender-receiver game) e
chegaram à conclusão de que a possibilidade de comunicação direta entre os
jogadores pode ter um papel fundamental na definição de equilíbrios Pareto
superiores aos de um jogo sem a possibilidade de cheap talk. A relevância
da comunicação aumenta quando as preferências dos jogadores não diferem
muito. Quanto mais próximas as preferências ou objetivos dos jogadores,
melhor o equilíbrio resultante da cooperação.445
No modelo de Crawford e Sobel, uma expansão dos equilíbrios do jogo
pode ser observada ainda que o emissor não tenha compromisso com a revelação
de toda a verdade em sua mensagem. Basta que parte da informação privada
tenha sido revelada ao receptor. Daí a extrema importância do modelo446 para a
análise de situações estratégicas reais permeadas pela presença de informação
privada que não pode ser revelada na totalidade. Dito de outro modo: cheap
talk não funciona adequadamente se existirem fortes incentivos à mentira,
mas se a situação estratégica possibilitar incentivos para que um jogador
revele parcialmente sua informação privada, há grandes chances de haver
coordenação com resultados melhores.447 De uma maneira geral, experimentos
AUMANN, Robert; HART, Sergiu. Long Cheap Talk, Econometrica, v. 71, n. 6, p. 1.619-1.660,
Nov. 2003.
445
CRAWFORD, Vincent; SOBEL, Joel. Strategic Information Transmition. Econometrica, v. 50,
n. 6, p. 1,431-1.451, Nov. 1982.
446
KRISHNA, R. Vijay. Communication in Games with Incomplete Information: the two player
case. Disponível em: <http://www.econ.ed.ac.uk/papers/comm1.pdf>. Acesso em: 05 jan. 2013.
447
FARRELL, Joseph; RABIN, Matthew. Cheap Talk, The Journal of Economic Perspectives, v.
10, n. 3, p. 103-118, Summer, 1996.
444
244
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
confirmaram essas evidências em maior ou menor grau, principalmente em
circunstâncias nas quais as preferências entre os jogadores são similares.448
Como já se viu, uma das missões da APO é justamente servir de
interlocutora entre os órgãos e entes públicos. O ambiente no qual se encontra
permite que sejam travados diálogos entre os jogadores de maneira relativamente
livre, sem que esses fluxos de comunicação tenham qualquer repercussão
sobre as recompensas dos jogadores. À medida que a APO consegue facilitar
a comunicação entre os governos, há boas chances de haver o surgimento da
cooperação em equilíbrios melhores que os originalmente estabelecidos pelo
jogo. Com a proximidade das Olimpíadas e Paraolimpíadas, certamente a
comunicação por cheap talk não poderá se dar por tempo indefinido. Observese, contudo, que o tempo aumentará o custo de não cooperar e, por definição,
haverá maior probabilidade de atuação conjunta.
Assinar contratos também é uma forma de os jogadores expandirem
equilíbrios. A APO tem, inclusive, competência para promover ajustes de
qualquer ordem entre os jogadores. Entretanto, para que esse expediente
funcione adequadamente, a teoria dos jogos exige que haja a possibilidade de
assinatura de “contratos vinculantes” (binding contracts), capazes de obrigar
as partes, sob pena de uma autoridade responsável pelo enforcement punir ou
obrigar o cumprimento de suas cláusulas.
Formalmente, no direito brasileiro, há a possibilidade de as partes
fixarem sanções executáveis na via judicial em caso de descumprimento do
contrato. Portanto, seria fácil afirmar que a APO poderia resolver problemas
de cooperação por, simplesmente, deter a competência para celebrar contratos
com entes do poder público com o objetivo de assegurar a cooperação. Esse
raciocínio esbarra, contudo, em dois problemas.
Primeiramente, nem sempre os atores governamentais estarão dispostos a
assinar contratos ou ajustes, pois, na esfera administrativa, o procedimento para
tanto é extremamente burocrático e envolve um custo para os agentes públicos.449
Em segundo lugar, ainda que esses contratos sejam assinados, no contexto da
organização dos Jogos de 2016, deixar a cargo do Judiciário realizar o enforcement
das obrigações contratuais não é uma opção, pois não se tem controle sobre o
modo como o Poder Judiciário interpretará o ajuste e o procedimento processual
subjacente à judicialização é extremamente burocrático e tende a ser moroso, de
modo que atores racionais devem procurar evitá-la.
CRAWFORD, Vincent. A Survey of Experiments on Communication via Cheap Talk, Journal
of Economic Theory, 78, p. 286-298, 1998.
449
A assinatura de contratos e ajustes como convênios pressupõe a realização de uma série de atos
formais, para que haja o cumprimento da Lei n° 8.666/93 e da legislação correlata. Certamente,
há um custo em optar-se por formalizar contratos, convênios e ajustes em razão da necessidade
de cumprimento do procedimento burocrático.
448
245
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
Ceteris paribus, quanto mais próxima a data de realização dos Jogos
de 2016, menos incentivos os atores governamentais terão para judicializar
o cumprimento de obrigações contratuais. Assim, a assinatura de contratos e
ajustes entre entes e órgãos governamentais somente acontecerá quando for
estritamente necessária para fins de obediência à legislação. Não será um
mecanismo usual de resolução dos problemas de coordenação.
Será, então, que a única via disponível à APO para assegurar coordenação
é participar ativamente da cheap talk? A resposta é negativa. A APO, além
da via de participar da comunicação por cheap talk, pode fazer o papel de
mediador para ajudar os jogadores a chegarem à cooperação. Ao menos, essa
é uma de suas competências (cláusula quarta, incisos I e IV, do contrato de
consórcio público).
Um mediador é “uma pessoa ou máquina que pode ajudar os jogadores
a se comunicarem ou compartilharem informações”.450 Quando se usa a figura
de um mediador em jogos de informação incompleta com comunicação, os
melhores frutos ocorrem quando os jogadores se sentem livres para reportarem
sua informação privada ao mediador em segredo e, a partir de então, o mediador
faz uma recomendação de ação para os jogadores – um plano de mediação
(mediation plan) –, capaz de aumentar as utilidades esperadas das recompensas.
Se esse plano de mediação propiciar aos jogadores um equilíbrio
bayesiano com utilidade esperada ao menos tão boa quanto a utilidade que seria
obtida se os jogadores mentissem ou se desobedecessem as prescrições do plano,
não haverá incentivos para a seleção adversa ou para o risco moral e, portanto,
deve-se esperar cooperação dos jogadores independentemente da celebração de
qualquer contrato. O plano será, portanto, compatível em incentivos (incentive
compatible). O mediador, contudo, não poderá revelar a informação privada de
um jogador aos demais. Deve, apenas, revelar o mínimo de informação necessária
a cada jogador, privadamente, quando apresenta o plano de mediação.451
Não é difícil entender o porquê disso. Se o mediador revelasse toda a
informação privada ou a recomendação de ação de um jogador, o outro poderia
ter incentivos para jogar sua melhor resposta, obtendo recompensas melhores
em prejuízo do jogador que teve sua informação privada ou ação revelada.
Obviamente, esse segredo não permanece indefinidamente, mas pelo tempo
necessário a que os jogadores possam agir de modo cooperativo.
Às vezes, o jogo permite que o mediador faça recomendações aos
jogadores que são plausíveis para todos. Nesse caso, não fará sentido qualquer
recomendação privada, tal qual no jogo anterior. O jogo, então, deixa de ser um
“A person or machine that can help the players communicate and share information”. Cf.
MYERSON, Roger. Game Theory: analysis of conflict. Cambridge: Harvard, 2004, p. 250.
451
MYERSON, Roger. Game Theory: analysis of conflict. Cambridge: Harvard, 2004, p. 260.
450
246
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
simples jogo de informação incompleta e passa a ser denominado de problema
de escolha coletiva bayesiana (Bayesian collective-choice problem).
Tal qual no jogo de informação incompleta com comunicação, se a
recompensa esperada por reportar sua informação privada honestamente ao
mediador for superior à de mentir, haverá compatibilidade de incentivos. Há,
porém, um ponto. Este jogo supõe que os jogadores entrem em algum tipo de
acordo para que o mediador possa apresentar sua recomendação, seu plano de
escolha coletiva (collective-choice plan). É de se concluir que só participarão do
jogo se o mecanismo promovido pelo mediador promover utilidades esperadas
ao menos tão boas quanto às da alternativa de o acordo não ocorrer, ou seja, só
participarão se for individualmente racional (individually rational) participar.452
Quanto ao possível papel da APO como mediadora dos jogos de
informação incompleta com comunicação, há de se destacar que dependerá em
grande parte da reputação construída a partir de então com os jogadores nas
interações estratégicas cotidianas. Muito do papel de mediação somente pode
ser realizado quando os jogadores confiam no mediador e o veem como terceiro
desinteressado em relação as suas recompensas.453
Deve-se, ainda, destacar que, tal qual ocorre com problemas de ação
coletiva e de coordenação, oportunidades para o exercício de liderança surgem
normalmente dos processos de interação entre os atores. Se a APO conseguir
antecipar planos de ação para os atores e soluções para os problemas, ocupará
um lugar central na preparação e realização dos Jogos de 2016.
Por fim, algumas palavras devem ser ditas sobre o monitoramento do
cumprimento dos prazos e compromissos internacionais firmados com o COI.
Embora a APO tenha competência para tanto, observamos que o principal
sentido do contrato de consórcio não é fazer com que a autarquia seja um
“fiscal” da preparação e organização dos Jogos de 2016.
A APO não tem mecanismo à sua disposição para sancionar os entes
consorciados e, no máximo, tem certo poder de veto (veto power) estabelecido
no inciso VII da cláusula quarta do contrato de consórcio. Pode funcionar,
também, como “alarme de incêndio”, para que o Congresso Nacional atue, dado
seu dever de reportar ao Poder Legislativo Federal, a cada seis meses, “suas
atividades e calendário de ações a cumprir, para acompanhamento dos prazos
estabelecidos pelo Comitê Olímpico Internacional e pelo Comitê Paraolímpico
Internacional” (art. 6º da Lei n° 12.396/2011).
Com isso, queremos dizer que o monitoramento deve ser, apenas, um
instrumento à disposição da APO para que ela se mantenha informada de “tudo
MYERSON, Roger. Game Theory: analysis of conflict. Cambridge: Harvard, 2004, p. 263-267.
Lembramos que o mediador não é um jogador. O mediador é um terceiro que se interpõe entre
os jogadores com o objetivo de promover a cooperação.
452
453
247
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
que se tem por fazer” e da criticidade ou não de eventuais atrasos nas medidas
de preparação para os Jogos de 2016. Com essa informação, terá subsídios
melhores para agir e elaborar planos de mediação e de ação coletiva destinados
a orientar os jogadores.
3. CONCLUSÃO
Este artigo procurou enunciar a estrutura jurídica da Autoridade Pública
Olímpica e discutir se existem instrumentos à sua disposição para propiciar a
cooperação entre os entes governamentais.
Com uma rápida revisão de conceitos associados à teoria dos jogos de
informação incompleta com comunicação, concluiu-se que a APO não só tem
um conjunto de competências que lhe propiciaria atuar como uma facilitadora
da cheap talk, como poderia assumir o papel de mediadora da relação entre os
entes e órgãos federativos dentro de determinadas condições.
Embora, de uma maneira geral, o artigo faça uma análise ainda muito
abstrata do ambiente estratégico que permeia a preparação para os Jogos de 2016,
aponta para a existência de incentivos à cooperação que poderão ser importantes
para o sucesso da coordenação entre os entes e órgãos governamentais. Da
análise de suas competências, fica evidente que a APO, ao poder atuar
como mediadora, preenche um vazio institucional que pode potencializar a
coordenação, tal qual prevêem os modelos dos jogos de informação incompleta
com comunicação.
Assim, a existência de um ente administrativo com competências para
agir como interlocutor induz cooperação, quando se compara com a alternativa
institucional de deixarem os jogadores agirem sozinhos, isto é, agirem em um
ambiente que, eventualmente, não teria qualquer mediador à sua disposição.
Obviamente, essa é uma conclusão demasiadamente genérica, mas
pesquisadores interessados em análises mais concretas poderão investigar
jogos específicos, de modo a verificar se as hipóteses do presente artigo
demonstram-se hígidas.
248
TEMAS DE DIREITO ECONÔMICO: A COPA DO MUNDO DE 2014 E OS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016
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